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Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas

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-I ISTÓRIAS COMPARADAS.

HISTÓRIAS
CONECTADAS: ESCRAVIDÃO E MESTI-
ÇAGEM NO MUNDO IBÉRICO

Eduardo França Paiva


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Carlos Leonardo Kelmer Mathias

-LAGRANTES DO QUOTIDIANO: ÜM

DLHAR SOBRE o UNIVERSO CULTURAL


x>s HOMENS LIVRES P OBRES EM S ÃO
OÂO DEL-REI (1840-1860)
Edna Maria Resende
ESCRAVIDÃO E MESTIÇAGEM NA CRÔNICA
COLONIAL: ENTRE AMÉRICA E

Eliane Garcindo de Sá

E MÁSCARAS: P EQUENA
à P ARTICIPAÇÃO AFRICANA
MA PRODUÇÃO ARTÍSTICA MINEIRA

Fabiano Gomes da Silva

ÊR À GANDAIA: P OVO NEGRO NOS


IROS DAS MINAS
rancisco Eduardo de Andrade

NSITO EXTERNO E O MALOGRO DA


NTERIORIZAÇÀO HOLANDESA NO BRASIL
Isnara Pereira Ivo

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O L H A R E S

CONSELHO EDITORIAL

Priscila Antunes
(PRESIDENTE) Júnia Ferreira
Furtado Eduardo França
Paiva Eliana Regina
Dutra Regina Horta
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ESCRAVIDÃO, MESTIÇAGEM E HISTÓRIAS COMPARADAS
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ESCRAVIDÃO,
MESTIÇAGEM E
HISTÓRIAS

EDUARDO FRANÇA PAIVA ISNARA PEREIRA IVO

I ORGS.

EDIÇÕES ÜESB

PÓSGRAPUAÇÂO
■Ünistoriaufmg
Infothes Informação e Tesauro
P166 Paiva, Eduardo França, Org.; Ivo, Isnara Pereira, Org.
Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. / Organização de Eduardo França Paiva e
Isnara Pereira Ivo. — São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da
Conquista: Edunesb, 2008. (coleção Olhares)
354 p. ; 16 x 23 cm.
Simpósio Escravidão e Mestiçagem, Belo Horizonte, 2006.
ISBN 987-85-7419-834-7

1. História. 2. História do Brasil. 3. História da Escravidão. 4. História da Mestiçagem.


5. História Social da Cultura. 6. Escravidão. 7. Mestiçagem. 8. Minas Gerais. I.TÍtuIo.
II. Série. III. Ivo, Isnara Pereira, Org.
CDU
981
CDD
981
Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt - CRB-8-1922
ESCRAVIDÃO, MESTIÇAS EM E HISTÓRIAS COMPARADAS

Coordenação editorial Joaquim Antonio Pereira

Paginação Ray Lopes

Capa Carlos Clémen

Imagem da Capa | Albert Eckhout Mulher negra segurando um cesto, com seu filho, 1641 e Homem negro, segurando uma
lança, 1641.

CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Pefíuela Cafíizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da
Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gusjavo Bernardo Krause
Maria de Louraes Sekeff (in memoriam)
Cecilia dètAlmeida Salles Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Alessio Ferrara
À
1“ edição: julho de 2008
© Eduardo França Paiva | Isnara Pereira Ivo
ANNABLUME editora . comunicação Rua Tucambira, 79 . Pinheiros 05428-020 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax.
(011) 3812-6764 - Televendas 3031-1754 www. annabl ume. com. br
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

Histórias Comparadas, Histórias Conectadas: Escravidão e


Mestiçagem no Mundo Ibérico
Eduardo França Paiva
2 7 Repensando o Conceito do Paternalismo Escravista nas Américas
Douglas Cole Libby

41 TRÁFICO E FAMÍLIAS EM M INAS GERAIS: O CASO DE SÃO JOSÉ DO RIO DAS MORTES (1743-1850)
Afonso de Alencastro Graça Filho e Fábio Carlos Vieira Pinto 59 Práticas de Alforrias nas
Américas: Dois Estudos de Caso em Perspectiva Comparada Andréa Lisly Gonçalves 77 Cativos da
Arte, Artífices da Liberdade: A Participação de Escravos Especializados no Barroco Mineiro Camila
Fernanda Guimarães Santiago 89 O Braço Armado do Senhor: Recursos e Orientações Valorativas
nas Relações Sociais Escravistas em Minas Gerais na Primeira Metade do Século XVIII Carlos
Leonardo Kelmer Mathias 107 Flagrantes do Quotidiano: Um Olhar sobre o Universo Cultural dos
Homens Livres Pobres em São João Del-Rei (1840-1860) Edna Maria Resende 123 Escravidão e
Mestiçagem na Crônica Colonial: Entre América e África
Eliane Garcindo de Sá
139 Chafarizes e Máscaras: Pequena Referência à Participação Africana na Produção Artística
Mineira Fabiano Gomes da Silva 161 Viver À Gandaia : Povo Negro nos Morros das Minas ,
Francisco Eduardo de Andrade
TRÂNSITO EXTERNO E O M ALOGRO DA INTERIORIZAÇÃO HOLANDESA NO BRASIL
Isnara Pereira Ivo
197 Matas Plurais, Imoralidades Matrimoniais: O Despique entre Negros e Índios Cabanos de Jacuípe
(AL-PE, 1835-1850)
Janaina Cardoso de Mello 211 Saberes, Petrechos e Escravos: Oficiais Mecânicos e Senhores
José Newton Coelho Meneses 221 O Abolicionismo das Minas:
no Corpo Social das Minas Setecentistas
Um Breve Estudo Comparado do Movimento Abolicionista nas Cidades de Ouro Preto e Juiz de Fora nos
Últimos Anos da Escravidão Luiz Gustavo Santos Cota 241 Servir “De Portas a Dentro”: Pensando
Recife e Salvador na Segunda Metade do Século XIX Maciel Henrique Silva 257 Caxambu, Cateretê e
Feitiçaria entre os Escravos do Rio de • Janeiro e Minas Gerais no Século XIX Mareia Amantino
277 A trajetória Econômica da Comarca do Rio das Velhas: UM Estudo das Estruturas de Posse de
Escravos e as Relações com o Mercado Internacional de Escravos (Século XVIII)
Raphael Freitas Santos e Carolina Perpétuo Corrêa 293 Na África eu Nasci, no Brasil eu
me Criei: A Evangelização dos Escravos nas Minas Do Ouro \
Renato da Silva Dias 311 Estrutura de Posse e Demog^afia Escrava (Porto Feliz/SP, 1798-
1843)
Roberto Guedes
335 Origens Africanas ou Identificações Mineiras?: Uma Discussão Sobre a Construção das Identidades
Africanas nas Minas Gerais do Século XVIII Rodrigo Castro Rezende
APRESENTAÇÃO

Em 2005, considerando a necessidade de melhor conhecer a produção brasileira


sobre a história da escravidão e de temas afins, e de fazer que ela circulasse mais facilmente
entre especialistas, Eduardo França Paiva e Douglas Cole Libby, professores do
Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, decidiram propor a
realização do Simpósio “Escravidão: sociedades, culturas, economia e trabalho” no XXJII
Encontro Nacional da ANPUH, ocorrido em Londrina. A iniciativa recebeu a aprovação de
pesquisadores de todas as regiões do Brasil e muitos trabalhos foram inscritos, reflexo do
grande interesse pela temática. Durante a realização do fórum, ficou clara a renovação
metodológica, conceituai e historiográfica impressa pelos pesquisadores nos últimos anos,
assim como a notável qualidade dos trabalhos apresentados. O Simpósio, na avaliação final
do grupo, cobrira-se de êxito e não poderia ser extinto. De Londrina, saímos com alguns
compromissos acertados: reeditar o Simpósio e criar um site do grupo
(http://www.fafich.ufmg.br/escravidao/), que, desde então, ficou batizado de “Escravidão e
Mestiçagem”. As reedições do encontro não deveriam aguardar os dois anos entre uma e
outra ANPUH nacionais e, portanto, deveria ser anual, aproveitando os encontros regionais
da ANPUH.
Um ano mais tarde, realizou-se em Belo Horizonte o segundo Simpósio, com a
presença de vários dos primeiros participantes e de novos associados, mas, dessa vez, aberto
à participação, como ouvintes, de todos os interessados. A Comissão Organizadora do
encontro de BH contou, direta e indiretamente, com o trabalho de Eduardo França Paiva
(coord.), Isnara Pereira Ivo, Luiz Gustavo Santos Cota, Silvana Fani, Maciel Henrique
Silva, Ilton César Martins, Fabiano Gomes da Silva e Jener Cristiano Gonçalves. Contamos
com o apoio de várias instituições para realizar o evento e para que os participantes
pudessem se deslocar até Belo Horizonte. A UFMG,
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

o Departamento de História, o Programa de Pós-graduação em História, a Linha de Pesquisa


em História Social da Cultura e o Grupo de Pesquisa Escravidão, Mestiçagem, Trânsito de
Culturas e Globalização (séculos XV a XIX) (CNPq/UFMG) formaram a base sobre a qual
o Simpósio pôde ser organizado. Além disso, instituições às quais os participantes estavam
vinculados na época contribuíram para que todos pudessem estar presentes em BH. Desde
já, portanto, ficam registrados aqui nossos reconhecimento e gratidão.
Durante a apresentação dos trabalhos foi ficando claro, novamente, a qualidade das
reflexões e das pesquisas ali tomadas públicas, o interesse despertado por eles entre o
público de estudantes que acompanhava as atividades e a necessidade de se publicar os
resultados desses esforços coletivos. Assim, então, nasceu a idéia deste livro, que, passados
dois anos, toma-se realidade, novamente a partir de esforços compartilhados entre o núcleo
de voluntários que conformam o Grupo Escravidão e Mestiçagem. Trata-se do primeiro
livro do Grupo e sua aparição renova nossa disposição em darmos continuidade aos
trabalhos iniciados em Londrina e, também, em buscarmos cada vez mais amadurecimento
intelectual, maior perspicácia na pesquisa e maior contribuição para a renovação dos
estudos sobre história da escravidão e das mestiçagens. Por isso, o eixo central do encontro
de BH, que é o mesmo deste livro, permaneceu o mesmo: estudos em perspectiva
comparada.
Foi-se o tempo em que as histórias nacionais pautavam, necessariamente, o pensar e
o fazer dos historiadores, e que os resultados daí surgidos deviam buscar estabelecer as
peculiaridades, os ineditismos, as exclusividades de cada região, construindo identidades
herméticas, singulares e, ao mesmo tempo, simplistas. Isso, que foi tão importante em época
não muito distante, não o é mais no início do século XXI, ou, pelo menos, isso em nossa
perspectiva, não o deveria ser. Ao invés de verdadeiras “ilhas” auto-suficientes de história,
as realidades abordadas na maioria dos textos deste livro passaram a ser vistas em contorno
e em contexto mais amplos, conectadas temporal e espacialmente.a outras realidades,
abordadas em perspectiva comparada em alguns deles. É essaá proposta mais importante
aqui: incentivar estudos cada vez menos autocentrados, mas, ao contrário, lastreados em
fontes diversas, e, se possível, em línguas diferentes, em corpus conceitual-metodológico
adequado e em diálogo historiográfico profícuo efenovador. É essa a perspectiva de análise
que se pretendia na época e continua sendo a que buscamos imprimir aos trabalhos do
Grupo.
Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas é composto, em grande medida, de
textos de jovens historiadores, que terminaram recentemente seus mestrados e doutorados,
ou que ainda se encontram preparando-os. Isso não retira deles a qualidade, e, ainda mais
importante, são registros interessantes sobre como essa geração tem participado do esforço
de revisão e de inovação do tratamento dispensado à temática.

10
A PRESENTAÇÃO

Ficará claro para o leitor que a opção pela perspectiva comparada não implica em
exterminar as dimensões locais e regionais do escravismo e das mestiçagens, mas significa
tomar os temas para além daquelas fronteiras por vezes reducionistas e percebê-los no seio
de relações sociais que quase sempre serviram de base para as “pontes” estabelecidas entre
o locus e o orbis. Enfim, o primeiro livro do Grupo é uma coleção preciosa de textos
recentes, no sentido mais amplo desse termo, escritos por esses jovens historiadores que, em
breve, estarão formando novos historiadores, sob novas perspectivas historiográficas,
nutrindo, assim, a dinâmica espetacular dos domínios movediços de Clio.
Há também participação dos mais experientes, professores em alguns programas de
pós-graduação em História, orientadores de alguns dos autores. Coube a esses professores a
tarefa de pensar mais detidamente a História Comparada hoje e de propor caminhos nesse
sentido. Muito do que aparece aqui é fruto das experiências de pesquisa, de discussões, de
leituras e, sobretudo, da necessidade cada vez mais aparente de entender os escravismos e as
mestiçagens no Brasil como facetas ou como partes de processos muito mais complexos,
muito mais amplos no tempo e no espaço, muito mais imbricados em outros contextos, com
fronteiras muito menos visíveis, sem leis comuns, sem línguas únicas, polissêmicos e
diversos naturalmente, destituídos da pretensão quase sempre enganadora da exclusividade
histórica. Essa perspectiva é a que propusemos no Simpósio de 2006 e é a que aqui enlaça
temas os mais distintos.
Do Simpósio de BH ao livro que ora se apresenta passaram-se dois anos. Nesse
período o Grupo se encontrou outra vez em São Leopoldo, no XXIV Simpósio Nacional da
ANPUH, nossa casa mater, e, além de novos trabalhos, renovou coletivamente o
compromisso de permanecer atuante e de se consolidar. Este livro e o site, assim como
encontros nas ANPUHs regionais e novos simpósios nas nacionais foram considerados
imprescindíveis. Tudo isso tem sido feito, mesmo diante de dificuldades de variada
natureza, e os resultados continuam aparecendo, como este livro. Para que ele pudesse ser
publicado os autores empenharam seu tempo e recursos financeiros inclusive. Sem esse
aporte, nada seria possível, e os organizadores fazem questão de registrar o agradecimento
por esse esforço compartilhado e pelo acolhimento da idéia original. Agradecemos também
à Coleção Olhares, do PPGH-UFMG e da Editora Annablume, na pessoa de sua
coordenadora, professora Priscila Carlos Brandão Atunes, que aceitou incluir esse livro em
seu importante catálogo, ainda que recente. A FAFICH-UFMG e ao Departamento de
História, onde se encontra a sede do Grupo e em cujo domínio nosso site se encontra
registrado, nossa gratidão pelo apoio desde o início dos trabalhos. Agradecemos também o
patrocínio da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, co-editora deste livro, e à
Prefeitura de Vitória da Conquista, que nos concedeu auxílio financeiro. Finalmente, os
organizadores gostariam de
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

agradecer o apoio recebido de amigos e colegas que, indiretamente, mas de maneira


importante, contribuíram com a publicação deste Escravidão, mestiçagem e histórias
comparadas. Que ele seja o primeiro de uma série longa.

Belo Horizonte e Vitória da Conquista, 30 de março de 2008

Eduardo França Paiva e Isnara Pereira Ivo (organizadores)

\
>

12
HISTÓRIAS COMPARADAS, HISTÓRIAS CONECTADAS: ESCRAVIDÃO E

MESTIÇAGEM NO M

UNDO IBÉRICO

Eduardo França Paiva1

INTRODUÇÃO

A vida de negros e de mestiços - escravos, libertos e nascidos livres - na América


portuguesa, na América espanhola, bem como nas áreas francesas e holandesas do
continente, em cidades européias e em regiões africanas, é o foco central desse texto. O
período a ser examinado estende-se do século XVI ao XVIII e, às vezes, entra pelo século
XIX. As dimensões espacial e temporal são, certamente, muito amplas e o objetivo de
abarcar toda essa extensão é claramente pretensioso. Contudo, não é tarefa impossível e isso
depende muito do método de pesquisa e de conceitos-chave que permitirão viabilizar
reflexões e argumentos tão abrangentes, sem correr o risco de grandes generalizações e de
invenção de contextos históricos inexistentes, práticas que uma antiga história comparativa
acabou executando, instituindo-se, inclusive, como modelo científico absolutamente
confiável. Nesse caso, e em última instância, uma linha evolutiva da História, lastreada em
crenças civilizacionais e em rígidas hierarquias sociais e culturais, que estabelecia modelos
históricos ideais a serem perseguidos pela humanidade, condicionava toda a trajetória
histórica e, portanto, permitia as grandes comparações entre o que não era comparável, pelo
menos não o era dessa forma. Não é esse, evidentemente, o propósito desse texto.
Os conceitos-chave aos quais me referi acima auxiliam-nos a não cairmos nas
mesmas armadilhas intelectuais, culturais e ideológicas que marcaram o pensamento
historiográfico (e das ciências humanas, de uma forma geral) que optou pelas

1. Departamento de História da UFMG


E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

comparações indevidas, exageradas, equivocadas e comprometedoras (o que não nos isenta,


claro, de incorrermos em outros erros). A começar, o próprio conceito de cultura aqui
empregado, por mais difícil e arriscado que isso seja; isto é, conceituar cultura parte de um
pressuposto histórico-antropológico que relativiza as experiências históricas dos povos,
comparando-as ou não, e que desacredita procedimentos que, de alguma forma,
hierarquizem as práticas culturais de diferentes sociedades, partindo de modelos ideais.
Diferenciar práticas, crenças, representações, discursos, conhecimentos, formas de viver,
maneiras de se organizar, portanto, não significa, em absoluto, hierarquizá-las em estrutura
previamente estabelecida e, a partir daí, julgá-las e apontar as pretensas defasagens e
deficiências do passado, assim como indicar o caminho do presente para se alcançar um
futuro perfeito, superior, evoluído ou, simplesmente, civilizado.
Nesse sentido, conceitos aliados a nosso propósito são, por exemplo, além do de
comparação, revisado evidentemente, o de conexão entre contextos, conjunto de idéias e de
crenças, práticas, formas de organização religiosas e étnicas, maneiras de se relacionar inter
e intra grupos e culturas. É bom lembrar, sempre, que muito do que conhecemos e do que
entendemos como referências de um passado, heranças culturais, que, inclusive são
evocadas para dar sustentação a certas identidades e às memórias, não tiveram uma única
origem, mas, ao contrário, “nasceram” ou foram “inventadas”, simultaneamente ou não, por
diferentes povos, em diferentes tempos e espaços, às vezes com diferentes motivações e
usos, outras vezes não. E necessário, portanto, nos curarmos do vício da origem exclusiva,
marca tão importante de uma cultura ocidental e ocidentalizante, que parece ter triunfado
historicamente, sobretudo a partir do século XV. A perspectiva de conexão entre histórias
toma sentido ao inserir- se nesse universo. Fora dele, ela se confunde com a comparação
simplória e fácil.
Mas ainda existem outros desses conceitos-chave, sem os quais não é possível dar
prosseguimento a esse texto e que servem para esclarecer sobre a forma de comparar e de
conectar histórias eraum universo tão amplo como o mundo ibérico no período aqui
enfocado. As pemlanênçias, em um mundo de ritmo cotidiano menos frenético que o que
nós hoje conhecemos, sfto elementos imprescindíveis. A preservação de costumes, de
práticas, de maneiras de pensar e de formas de viver junta-se, nessa época, a ritmos lentos
de mudanças, não^obstante rupturas violentas explodirem sempre. Aspectos permanentes da
vida de grupos sociais - africanos, crioulos e mestiços, por exemplo - podem ser
encontrados descritos na diversificada documentação produzida por sociedades as mais
distintas. As comparações são, portanto, inevitáveis, e, em grande medida, reveladoras do
intenso trânsito (outro conceito-chave, associado) dos costumes, assim como das
semelhanças existentes nas histórias da miscigenação biológica e cultural, fortemente
processadas no mundo ibérico colonial e do século XIX. Desde já, creio, se faz importante
esclarecer que mestiçagem e hibridação não

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I

H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS

têm, aqui, um contrário que seria o natural, isto é, não têm a correspondência de culturas
puras, íntegras e estanques no tempo, anão ser no domínio das representações e dos
discursos, onde, historicamente, elas existem e persistem. Entretanto, o pressuposto adotado
é o de que, a não ser nessas duas últimas dimensões da realidade histórica, elas não existem.
Não estou de acordo, portanto, em atribuir-lhes uma existência “natural”.
Comparações e conexões têm no trânsito e na mobilidade culturais dois de seus
pilares mais sólidos e, saliente-se, desde já, que não há contradição entre as permanências e
os ritmos das transformações. Essas dinâmicas, na verdade, coexistiam, e, não
necessariamente, se mesclavam. Aliás, costumes, conhecimentos, práticas e representações
transitaram de canto a canto do mundo ibérico, e, muitas vezes, mantendo-se, relativamente
inalterados, isto é, parcialmente inalterados. Nesse caso, a mobilidade da gente (agentes
mediadores, poderíamos chamá-la assim em vários casos) possibilitou a transferência de
universos culturais, ainda que não in totum, de uma região à outra. E mais, possibilitou
também a sua apropriação por parte de grupos estranhos, pois uma outra face dessa história
foram, é claro, as ressignificações processadas, que imprimiram mudanças importantes sobre
os universos culturais transportados em escala planetária. O que permaneceu e o que mudou
a partir da intensa primeira globalização, sob a égide de uma miscigenação cada vez mais
forte e mais abrangente? Comparar, conectando culturas ora preservadas fora de seu
ambiente, ora modificadas, mas, inclusive, modificadas de maneira semelhante em regiões
muito distintas (culinária, ritmos e religiões sempre fornecem bons exemplos), bem como
conectando elementos de origem múltipla, “nascidos” quase que igualmente em locais
diferentes, e, talvez, simultaneamente, não deve, portanto, ser procedimento confundido com
a velha História Comparada, de padrões históricos pré-definidos e de cunho evolucionista,
estruturalista, determinista e, ainda, economicista.
Buscando não incorrer em antigos e em novos erros, dois temas - escravidão e
mestiçagem - serão, então, abordados de forma comparativa, tentando traçar conexões no
seio do enorme e diverso mundo ibérico, conectando, também, o local e o global. Esses
mundos ibéricos - talvez fosse melhor se referir assim a eles tradicionalmente apartados,
serão tomados aqui de maneira mais aproximada, a partir da atuação de agentes históricos e
das relações que eles estabeleceram entre os grupos sociais, sem que as diferenças entre eles
sejam negligenciadas. Como esses homens e mulheres, sobretudo os não-brancos, viveram,
atuaram e fomentaram o mais intenso processo de mestiçagem biológica e cultural da época
moderna, ocorrido tanto em áreas urbanas quanto em áreas rurais, é o que se pretende
abordar. Assim, pretendo demonstrar, ainda que inicialmente, o quanto as muitas e diferentes
regiões sob domínio das Coroas ibéricas estiveram próximas entre si, malgrado as distâncias
e não obstante as incontáveis diferenças.

15
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

TÃO LONGE E TÃO PERTO

Quais as características da escravidão urbana? Em primeiro


lugar, a proximidade física do escravo com a família do senhor.
Esse aspecto doméstico, que também se encontra no mundo das
plantações, há que se agregar outro, fundamental. O escravo
urbano vive em um espaço de circulação e de mediação: a rua, os
lugares públicos, as tabernas, as vendas, os mercados...2

Figura 1 Figura 2 Figura 3

Nas cidades, os forros constituíram uma população importante


numericamente, já que os escravos tinham a possibilidade de
resgatar sua própria liberdade, tratando livremente com seus
senhores as condições; estes podiam dar igualmente a liberdade a
seus escrayds^como consta em testamentos, sem
prestar contas às autoridades.
V

2. BERNAND, Carmen. Negros esclavos y librçd en las ciudades hispanoamericanas. Madrid: Fundación Histórica
Tavera, 2001, p. 15. Imagens apresentadas: Figura 1. Domingo MARTÍNEZ (Sevilla 1688- Madrid 1749) Carro
dei Aire (hacia 1748), Museu de Belas Artes, Sevilha; detalhe: negros, mulatos e índios no cortejo festivo nas
ruas de Sevilha, século XVHI; Figura 2. Chafariz d’El Rey no séc. XVI [Lisboa], Países Baixos, mestre
desconhecido, (c. 1570-80), Óleo sobre madeira de castanho, Lisboa, Coleção Particular, reproduzido em
RODRIGUES, Ana Maria, (coord.) Os negros em Portugal - sécs. XV a XIX. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 104; Figura 3. Johann Moritz Rugendas, Rua Direita,
Rio de Janeiro, Litografia coloria à mão, reproduzido em AGUTLAR, Nelson, (org.) Negro de corpo e alma.
Mostra do Descobrimento. Brasil 500 é mais. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000, p. 119.

16
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H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS

A proliferação dos híbridos, com as conotações simbólicas e


normativas que carregavam (ilegitimidade, deslealdade, vício,
luxúria, metáforas animais) se reflete em um vocabulário que
alude a uma pigmentação indeterminada, nem negra, nem
branca, mas “suja”, isto é, “de várias cores mal combinadas”, o
heterogêneo, “o que é sem concerto”.3

Figura 4 Figura S

Algumas mulatas desfrutaram de uma posição econômica


folgada, que as permitiu estabelecer pequenos negócios, possuir
suas próprias casas, etc. (...) Os mulatos puderam ocupar-se em
funções de certa responsabilidade social e de qualificação, às
quais os negros não podiam ascender.4

3. Bemand (2001: 19 e 24). Imagens apresentadas: Figura 4. Bairro Getzemaní, Cartagena de índias. Fotografias
do acervo do autor; Figura 5. Vista da Cidade do México, século XVII (detalhe), reproduzido em MEDINA,
Manuel Ramos (ed.). Historia de la Ciudad de México en los fines de siglo (XV-XX). México D. F.: Condumex,
2001, pp. 62-3.
4. ORTEGA, Antonino Vidal. “Entre la necessidad y el temor: negros y mulatos em Cartagena de índias a
comienzos dei siglo XVII”, in ARES QUEIJA, Berta & STELLA, Alessandro (coord.). Negros, mulatos
zambaigos; derroteros africanos en los mundos ibéricos. Sevilla: Escuela de Estúdios Hispano-
Americanos/Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2000, pp. 89-104 (99). Imagens apresentadas:
Figura 6. Pintura de castas, Escola Mexicana^século XVm, p. 82, “De Espanol, y Mestisa; Castisa” e “De
Espanol, y Negra; Mulata” (1763), Museo de América, Madrid, reproduzido em SAÍZ, Maria Concepción
Garcia. Las castas mexicanas; un gênero pictórico americano. México: Olivetti, 1989; Figura 7. “De índio, y
Mestisa, nace Coyote” “De Lobo, y Negra; nace Chino”, Museo de América, Madrid, Escola Mexicana
(1774), reproduzido em Saíz (1989: 130); Figura 8. Joaquim Cândido Guillobel, Figuras Populares do Rio de
Janeiro (c. 1814), reproduzido em MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. A travessia do Calunga Grande; três
séculos de imagens sobre o negro tio Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000, p. 323.

17
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

/~\ Figura 8
/

Os trechos reproduzidos acima, alsim como as imagens, poderiam facilmente ser


associados à escravidão no Brasil, sobretudo à escravidão nas áreas urbanas, onde o
fenômeno da mestiçagem e o volume de alforrias também se transformaram em marcas
indeléveis do mundo colonial. Entretanto, não se trata de descrições da América portuguesa,
nem, muito menos, de suas áreas urbanizadas setecentistas, nas quais mobilidade física e
social, assim como hibridação biológica e cultural se processaram com conhecida pujança.
Os trechos se referem à vida de escravos e de libertos, de africanos e de mestiços nas cidades
da América espanhola, nos séculos XVI e XVII.
H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS

Durante boa parte do Quinhentos, é provável que tenham entrado mais africanos
escravizados na América espanhola que na portuguesa, e, em grande medida, pelas mãos e
naus lusitanas. As áreas de mineração na Nova Espanha, no Vice-Reino do Peru, assim
como nas cidades e em algumas regiões rurais dessa extensa região do Novo Mundo
demandaram mão-de-obra escrava africana, seja para a extração mineral, seja para serviços
domésticos e agrícolas.
A semelhança entre as sociedades que se desenvolveram nas duas áreas coloniais,
assim como entre o perfil das populações que as compuseram demandam maior quantidade
de comparações. As diferenças entre os processos de ocupação européia do Novo Mundo
não podem apagar os inúmeros aspectos que as aproximavam, sobretudo os que marcavam a
vida de africanos e mestiços (aqui, penso, privilegiadamente, os mestiçados com negros)
nesse universo. Desde o século XVI, por exemplo, Lima e México, assim como Salvador,
haviam se tornado cidades em boa medida africanizadas, e, mais que isso, cidades mestiças,
uma vez que nelas circularam, se misturaram e, por vezes, coexistiram gente e culturas de
origens as mais diversas. Aliás, é necessário lembrai' que a experiência americana tinha
importantes precedentes na Europa, pois assim havia ocorrido, mais ou menos intensamente,
em cidades como Lisboa, Sevilha, Málaga, Valência e Veneza, e, em menor escala, em
Nantes e em Bordeaux, e, ainda, nas ilhas atlânticas, como a Madeira e as Canárias. Essa
precedência, após a primeira onda de “africanização” (seria uma mundialização da
escravidão africana e mestiça?!) do Novo Mundo, acabou se transformando, sublinhe-se, em
resposta e reflexo das práticas então em consolidação nas colônias americanas.
Já durante os séculos XVII e XVIII, o rol americano se ampliaria enormemente.
Nele se incluiriam Vera Cruz, Acapulco, Puebla, Cuzco, Ciudad Panamá, Cartagena de
índias, Antioquia, Quito, Guayaquil, La Paz, Santa Cruz de la Sierra, Buenos Aires,
Santiago de Chile, Montevidéu, Caracas e Havana, assim como áreas de mineração que se
formaram em tomo de Zacatecas, Guanajuato e San Luis Potosí, na Nova Espanha, e Villa
Rica Potosi, Huancavelica, Popayán, no Vice-Reino do Peru. Na América portuguesa, vilas
e cidades do litoral, tais como Olinda e Recife, Rio de Janeiro, Belém, São Luís, as do
Recôncavo Baiano e as das áreas de mineração, principalmente as de Mirias Gerais, Mato
Grosso e Goiás, também conheceram, umas mais que as outras, essa africanização e essa
hibridação intensas, movimento de dimensões incomparáveis na época moderna.
Práticas comuns entre a população escrava e liberta se repetiram nessas regiões,
durante esses três séculos, nos demonstrando que a idéia de áreas completamente diferentes
e apartadas, que vigorou durante tanto tempo, não corresponde à realidade colonial. Festas,
associações religiosas, cultos tradicionais e mesclados, ritmos, comidas, técnicas, naturalia,
mirabilia e monstrosa, línguas e saberes os mais diversos

19
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

foram elementos que circularam intensamente e que aproximaram essas populações. Assim,
desde o século XVI, reis negros foram eleitos nessas cidades; mulheres africanas e mestiças
dominaram o pequeno comércio de alimentos, nas ruas e nas vendas; mobilidade social e
ascensão econômica foram vivenciadas por negros e por mestiços; antigas técnicas de
mineração e de fundição, inalteradas e adaptadas, circularam e foram empregadas de
maneira semelhante; alimentos e remédios foram traficados, explorados e aclimatados;
alforrias e coartações - um direito costumeiro - foram conquistadas pelos escravos;
negociações e resistências se processaram separadamente, mas se complementaram
também; hibridismos e impermeabilidades foram processados largamente no plano do
cotidiano e, também, no das representações, do imaginário, dos discursos e das práticas. 5
Tomar os quadros de castas, comuns na Nova Espanha e no Peru a partir do fim do
século XVII, 6 como fontes, significa informar-se sobre costumes, culinária, indumentária,
circulação da natureza, atividades econômicas, hierarquias sociais, comércio planetário,
miscibilidade biológica e cultural e mobilidade social que existiram,

5. Ver, entre muitos outros: AIZPURU, Pilar Gonzalbo & ARES QUEIJA, Berta. (coord.). Las mujeres en la
construcción de las sociedades iberoamericanas. Sevilla/México: Escuela de Estúdios Hispano- americanos/El
Colégio de México, 2004; AIZPURU, Pilar Gonzalbo & ROMERO, Cecília Rabell. (coord.). Familia y vida
privada en la historia de Iberoamérica. México: El Colégio de México/ Universidad Nacional Autônoma de
México, 1996; Bernand (2001); BERNAND, Carmen & GRUZINSKI, Serge. Historia dei Nuevo Mundo. Los
mestizajes (1550-1640). México: Fondo de Cultura Econômica, 1999; CURTO, José C. & LOVEJOY, Paul E.
(ed.) Enslaving Connections: Changing Cultures ofAfrica and Brazil during the Era ofSlavery. New York:
Humanity Books, 2004; DANTAS, Mariana L. R. Black Townsmen: A Comparative Study of Persons of African
Orifw and Descent in Slavery and Freedom in Batimore, Maryland, and Sabará, Minas Gerais (1750-1810).
Baltimore, A dissertation submitted to Johns Hopkins University, 2003; GARCIA, Clara & MEDINA, Manuel
Ramos, (coord.) Ciudades mestizas: intercâmbios y continuidades en la expansión Occidental (siglosXVIaXIX).
Actas dei 3er. Congreso Internacional Mediadores Culturales. México: Condumex, 2001; GRUZINSKI, Serge.
Les quatrepartíès du monde; Histoire d 'une mondialisation. Paris: Éditions de la Martinière, 2004; LAVALLÉ,
Bemard. £1 cuestionamiento de la esclavitud en Quito colonial. Guaranda, Ecuador: UEB, 1996; LAHON, Didjer.
Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant VAncien Regime (1441-1830). Paris: EHESS, These pour
1’obtention du grade de Docteur de 1’EHESS, Anthropologie Sociale et Culturelle, 2001; ORTIZ, Fernando.
Los negros esclavos. La Habana, Editorial de Ciências Sociales, 1987; Ares Queija & Stella (2000); TARDIEU,
Jean-Pierre. El negro en el Cusco: los caminos de la alienación en la segunda mitad dei siglo XVII. Lima: Pontifícia
Universidad Católica dei Perú/Banco Central de Reserva dei Perú, 1998.

6. Ver sobre o tema BARRAGÁN, E. Garcia. José Augustin Arrieta, lumbres de lo cotidiano. México, 1998;
KATZEW, I. Casta Paiting, Images ofRace in Eighteenth-Century Mexico. New Haven: Yale, 2004; MAJLUF,
Natalia (ed.). Los cuadros de mestizaje el VirreyAmat: la representación etnográfica em el Perú colonial. Lima:
Museo de Arte de Lima, 1999; S AÍZ, Maria Concepción Garcia. Las castas mexicanas; un gênero pictórico
americano. México: Olivetti, 1989; SÁNCHEZ, Alberto Ruy (ed.). Artes de México: La pintura de castas. 2a ed.,
México: Artes de México y dei Mundo, n. 8, 1998.

20
H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS

em grande medida, desde o século XVI, e se estenderam até o fim do período colonial, tanto
na América espanhola, quanto na portuguesa. Compará-los às pinturas de Albert Eckhout, de
Franz Post e de Dirk Valkenburg (sobre as danças africanas no Suriname), aos desenhos de
Zacharias Wagener, assim como às aquarelas de Cario Julião e do bispo peruano Companon,
às figurinhas de Francisco Cândido Guilobel e ao extenso conjunto de registros iconográficos
dos viajantes do século XIX, significa traçar trajetórias parecidas, conhecer ambientes
semelhantes, identificar populações marcadas igual e indelevelmente pelo intenso fenômeno
da mestiçagem. Significa comparar sociedades forjadas, também, sob as lógicas das empresas
coloniais e do propósito de construção de um mundo novo globalizado ou de uma
mundialização inédita, sob a égide católico-ibérica, em grande medida.7
As imagens do século XIX, saliente-se novamente, trazem muitas informações sobre
permanências, antigos gostos, costumes, práticas e formas de viver, o que as transformam em
fontes imprescindíveis para trabalhos comparativos, como o que aqui se apresenta. Muitas
vezes, aliadas à documentação ou a relatos de viajantes do período, elas se transformam em
retratos fidedignos e reveladores daquele universo mestiço. Um bom exemplo são as imagens
existentes sobre áreas e empresas de mineração, em cujas representações aparecem
aglomerados de casas com telhados cônicos de palha, à moda africana, o que indica a
possível origem dos construtores e o provável uso de técnicas, instrumentos e conhecimentos
africanos nessas áreas coloniais, sejam as da América portuguesa, sejam as da América
espanhola.8

Figura 9 Figura 10

7. Ver Gruzinski (2004).


8. Imagens apresentadas: Figura 9. Vista do serviço diamantino no sítio do Monteiro no Rio Gequitinhonha
(1803); Figura 10. Modo de minerar para se tirarem Diamantes e Modo de Lavar os Diamantes, com as suas
respectivas declaraçõe (anterior a 1775), anônimas, reproduzidas em COSTA, Antônio Gilberto, (org.)
Cartografia da conquista do território das Minas. Lisboa/Belo Horizonte: Kapa Editorial/ Editora da UFMQ
2004, pp. 102 e 107.

21
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Para atestar a circulação e a apropriação de elementos construtivos tradicionais


africanos em terras do Novo Mundo (e foram muitos esses elementos, e há os ainda pouco
conhecidos), o relato de um viajante inglês, que visitou o Brasil entre 1807 e 1811, John
Mawe, é bastante importante. Ele subsidia as imagens existentes sobre a “africanização”
desse ambiente.

Ao fim do dia, alcancei uma eminência, da qual avistei um grupo


romântico de casas, semelhantes a um labirinto ou a uma cidade
negra da África. Descemos a colina, e nos aproximamos do lugar,
já noite fechada. Conduziram-me, à casa maior que as outras;
soube que estava em São Gonçalo, a primeira exploração de
diamantes que se encontra no Serro do Frio. Encontra-se, há
algum tempo, em declínio e emprega cerca de duzentos negros.

Mais à frente, continuava relatando:

Uma légua depois, chegamos a Mendanha, lugar afamado. Aí as


casas, em número de cem, são isoladas e geralmente de forma
circular, com tetos pontudos de palha, semelhantes às cabanas dos
africanos, embora muito mais largas. As paredes formadas de
estacas fincadas perpendicularmente na terra, entrelaçadas de
ramos de árvores e rebocadas de barro por dentro e por fora. As
casas dos oficiais são feitas dos mesmos materiais, mas de forma
mais cômoda, sendo caiadas interiormente. Ao lado de algumas
havia jardins cercados, o que animada a perspectiva, dando uma
ar de abastança a essas habitações simples e grosseiras.9

Por outro lado, Gonzalo Aguirre ^eltrán, em estudo mais recente que o texto de
Mawe, refere-se a uma antiga prática de construção de “Redondos” na costa pacífica do
México, que eram casas de/origem africana, cuja técnica e estética foram apropriadas pelos
índios da região, durante o período colonial, o que fez com que se considerasse uma técnica
indígena até meados do século XX. 10

9. MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978, pp. 151 e 154.

10. Ver BELTRAN, Gonzalo Aguirre [1958]. Cuijla; Esbozo etnográfico de un pueblo negro. México: Fondo de
Cultura Econômica, 1974, pp. 11-2, (Ia edição: México: Fondo de Cultura Econômica).

22
H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS

Um outro aspecto a ser destacado é o relativo aos modelos usados por viajantes,
artistas e cientistas para a elaboração das imagens desse universo, muitas vezes realizadas
sem que os autores conhecessem pessoalmente as áreas, os costumes e a população retratada.
Se, por um lado, isso poderia comprometer o resultado e, ainda mais, o uso desses registros
hoje, sem o devido cuidado, por outro, vários elementos que se repetem existiam
concretamente, não sendo, portanto, uma invenção improcedente. Isso fez com que muitas
imagens produzidas por agentes que nunca se conheceram, sobre realidades muito distintas
e, até mesmo, em períodos diferentes, resultassem em formas muito parecidas e retratassem
expressões, hábitos, costumes e agentes em atitudes bem semelhantes. Esse aspecto, claro,
acaba por fomentar comparações e conexões possíveis, que, longe de serem apenas fruto
artificial de modelos artístico-acadêmicos empregados ou de cópias realizadas umas sobre as
outras, resultam também do registro de elementos similares que realmente constituíam as
sociedades escravistas e as mestiçagens coloniais, tanto no período de produção das
imagens, quanto em tempos anteriores a elas. 11

Figura 11 Figura 12

11. Imagens apresentadas paralelamente para efeito de comparação: Figura 11. Desiré Roulin, Bords de la
Magdelaine, Le bal du petit ange (Orillas dei Magdalena, El baile dei angelito), Aquarela sobre papel (c.
1823), reproduzido em ÁLVARES RINCÓN, Beatriz. François Désiré Roulin: de La Guairá a Bogotá. Bogotá:
Banco de la República, 2003, p. 13; Figura 12. Spix & Martius (dei.) e Nachtmann (lith.), Die Baducca in S.
Paulo, Festa da Rainha in Minas (1823-1831), Litografia, reproduzida em Moura (2000: 370); Figura 13.
Johann Moritz Rugendas, Venda em Recife, Litografia coloria à mão, reproduzida em Aguilar (2000: 245);
Figura 14. Desiré Roulin, Place Major de Bogotá, Douane (Plaza Mayor de Bogotá, Aduana), Aquarela sobre
papel (c. 1823), reproduzida em Álvares Rincón (2003: 22); Figura 15. Desiré Roulin, Le díner à Ste. Marthe
(La cena en Santa Marta), Aquarela sobre papel (c.1823), reproduzida em Álvares Rincón (2003: 11); Figura
16. Jean Baptiste Debret, O Jantar (1834-1839), Litografia coloria à mão, reproduzida em Aguilar (2000:
125).

23
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Figura 15 Figura 16

Nesse universo a ser comparativamente desvelado, negros e mestiços - tanto os


escravos, quanto os libertos e os nascidos livres -, evidentemente, não são interlocutores
exclusivos, mas, aqui^ão interlocutores privilegiados. Por meio deles é que se pretende
dialogar com os outros grupos sociais, buscando-se compreender como hibridismos e
impermeabilidades se processaram intensamente, demonstrando como culturas e histórias
nunca são estáticas no tempo e no espaço, não obstante se processarem em ritmos marcados
pelas descontinuidades, mas, também, pelas permanências, bem como por via de
representações e de discursos que, por vezes, inventaram purezas e imutabilidade. 12
Entretanto, o conceito de hibridismo não encontra,

12. Ver: GRUZINSKI, Serge. La pensée métisse. Paris: Fayard, 1999; PATVA, Eduardo França. Escravidão e
universo cultural na colônia: Minas Gerais (1716-1789). Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001; PAIVA,
Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.) O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas
de viver (séculos XVIA XIX). São Paulo: Annablume/PPGH-UFMG, 2002.

24
H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS

aqui, quero insistir, um pressuposto conceituai fundado nas idéias de pureza e de


genuinidade étnicas e culturais, a não ser, exatamente, na dimensão do imaginário. Por isso,
a realidade colonial toma-se ainda mais complexa, pois sua marca mestiça coexiste com
projeções de pureza e de originalidade, tudo em grande ebulição histórica, vivenciando-se,
simultaneamente, tanto a europeização e a africanização do mundo americano, quanto a
construção de um universo novo, constituído de nativos, europeus, africanos e asiáticos, de
religiões as mais distintas, de saberes e de culturas tradicionais e modernas, tudo permeado
por incontáveis passeurs culturels,13 que trataram de tomar esses mundos menos apartados e,
inclusive, de produzirem, na “contra-mão”, uma certa americanização dos outros
continentes. Diante dessa interligação espacial que se intensifica a partir do século XVI,
histórias e historiografias desconectadas, autônomas, restritas a pequenas circunscrições
territoriais e a grupos específicos, de fronteiras rígidas, vêm perdendo importância. Elas,
geralmente, insistem nas singularidades (que nem sempre são realmente únicas), em
detrimento das ligações com processos históricos bem menos simples. Por isso mesmo é
que muitos negros e mestiços se transformaram, sob a pluma de historiadores mais
preocupados em entender esses movimentos plantários, nesses mediadores culturais, uma
categoria conceituai que facilita a compreensão deles a partir daquilo que eles sempre foram
historicamente: homens e mulheres que transitaram entre mundos, do locus ao orbis poder-
se-ia dizer, aproximando-os, fomentando-os e, também, distanciando-os, mesmo que
artificialmente, ao fortalecerem impermeabilidades.
Conhecer mais profundamente como todos esses agentes históricos atuaram na urbe
e nas áreas rurais das áreas portuguesa e espanhola da América, conectando- os, é missão
que já tarda a ser profundamente desenvolvida. Para tanto, um dos empecilhos a serem
removidos é, exatamente, o peso excessivo e às vezes deturpador das histórias e das
historiografias nacionais que o século XIX nos impingiu e que o século XX não refutou. Já
que essas comparações urgem e tardam, fica então, para todos nós, o convite e o desafio de
não mais postergá-las, sob o risco de perdermos a grande oportunidade de realizá-las em
consonância com as demandas de nosso tempo. Elas solicitam a nós, historiadores, a
ampliação dos universos históricos e culturais; as conexões entre eles; o nosso
deslocamento, mais balizado e revisado, entre o local e o global; a opção pela história da
diversidade e da alteridade; a releitura de nossas certezas historiográficas e, ainda, o
emprego de um novo aparato metodológico-conceitual que nos permita efetivar essas
transformações.

13. Ver: Paiva & Anastásia (2002); ARES QUEIJA, B. & GRUZINSKI, Serge (coord.). Entre dos mundos:
fronteras culturales e agentes mediadores. Sevilha, 1997; TACHOT, Louise Bénat & GRUZINSKI, Serge
(dir.). Passeurs culturels; mécanismes de métissage. Paris: Fondatíon Maison des sciences de
1’homme/Presses universitaires de Mame-la-Vallée, 2001.

25
REPENSANDO O CONCEITO DO PATERNALISMO ESCRAVISTA NAS AMÉRICAS

Douglas Cole Libby1

Adentrar no terreno da História Comparativa provavelmente representa o mais


perigoso de todos os exercícios aos quais o historiador pode dedicar-se. Tal afirmativa é
ainda mais verdadeira quando o historiador em questão pertence à classe dos empiricistas
radicais: daqueles que preferem pacientemente esperar longos meses e anos para ver o que
as fontes têm a dizer às reflexões teórico-metodológicas - acerca daquilo que as fontes
deveriam dizer. O problema, é claro, é que a comparação forçosamente conduz a
generalizações, as quais, por sua vez, quase sempre podem ser questionadas por pesquisas
que enfocam o específico. Por mais que eu me agarre ao específico, reconheço que, de
quando em vez, é preciso refletir sobre o quadro geral. Por mais que me sinta mais
confortável, perdido no interior da minha querida freguesia de Santo Antônio de São José
do Rio das Mortes, com todas suas peculiaridades sete e oitocentistas, sei que não posso
perder de vista o quadro geral em que tal freguesia se inseria: o escravismo moderno ou as
sociedades escravistas das Américas. Para mim, as sociedades escravistas, definidas,
sobretudo, em função de sua dependência com relação ao trabalho cativo de africanos ou de
afro- descendentes, foram se formando e se consolidando ao longo do século XVII em três
grandes regiões americanas: na América portuguesa - mais tarde o Brasil -, nas
multinacionais ilhas do Caribe e no Sul da América britânica continental - mais tarde os
estados sulistas da República dos Estados Unidos. Essas sociedades escravistas foram se
extinguindo ou sendo erradicadas por meio de vários níveis de violência - mas nunca
pacificamente, como queriam certas correntes historiográficas - a partir

1. Departamento de História da UFMG.


E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

da última década do século XVIII e ao longo de quase todo o século XIX. Notem que estou
deliberadamente excluindo as sociedades da América hispânica continental, pois lá o
escravismo não emergiu, a não ser temporariamente ou em regiões territorialmente muito
reduzidas.2
Pretendo tecer algumas considerações acerca das relações senhor/escravo, que
desempenharam um papel fundamental na formação, consolidação e continuidade histórica
de todas as sociedades escravistas das Américas. Com certeza, a natureza daquelas relações
variou substancialmente ao longo dos séculos e entre as diversas regiões e sub-regiões. Com
efeito, tais variações constituem o cerne deste meu empreendimento ensaístico. Apesar
disto, é mister reconhecer que, de maneira surpreendentemente consensual, ao longo de
mais de um século a historiografia internacional vem trabalhando com o conceito de
paternalismo para caracterizar as relações senhor/escravo. Este conceito remonta pelo
menos à sociedade escravista da Grécia clássica, e provavelmente tem suas origens nos
primórdios da própria escravidão, vindo, portanto, de tempos imemoriais.
Como meu objeto é o paternalismo do escravismo moderno, no entanto, tomo como
ponto de partida a publicação, em 1972, da obra prima de Eugene Genovese, Roll, Jordan,
Roll: The World the Slaves Made? apenas parcialmente traduzida para o português e
intitulada A terra prometida: o mundo que os escravos criaram.4 Observa- se pelo título que a
intenção do autor - na época, talvez, o maior expoente nos Estados Unidos do pensamento
de Antônio Gramsci - era de inspiração thompsoniana, ou seja, colocar o escravo como um
dos agentes de sua própria história. Eu diria, no entanto, que A terra prometida analisa
melhor as multifacetadas complexidades do paternalismo escravista do Velho Sul do que
amplia nossa compreensão da agência cativa na construção da História. A bem da verdade,
apesar de seu marxismo declarado, Genovese sempre se fascinou muito mais com a
fidalguia paternalista dos senhores de escravos sulistas do que com a cultura criada e vivida
pela população cativa do Sul, muito embora ele seja um dos mais importantes construtores
do nosso atual entendimento daquela cultura. XÍsuas interpretações da religiosidade
escrava, por exemplo, para mim permanecem as melhores e mais penetrantes de toda a
historiografia internacional especializada no assunto.
>

2. Ver, por exemplo: CARROL, Patrick J. Blcicks in Colonial Varacruz: Race, Ethnicity, and Regional
Develpoment. 2* ed., Austin: University of Texas Press, 2001.
3. GENOVESE, Eugene D. Roll, Jordan, Roll: The World the Slaves Made. New York: Vintage, 1972.
4. GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e
Terra/CNPq, 1988.

28
R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS

Já o paternalismo, tão bem desvendado por Genovese, é, de fato, do tipo ideal


- isso mesmo, de inspiração weberiana, por mais que o autor venha negar esta minha
alegação até seu futuro túmulo. E digo isto porque o paternalismo de Genovese é o
paternalismo da proverbial plantation - não aplantation de vinte cativos, conforme a
definição oficial do Novecentos norte-americano - mas a plantation de muitas dezenas de
peças, quiçá em tomo dos cem braços, entre homens, mulheres e crianças. Aliás, neste seu
fascínio beirando a nostalgia pelo mundo cavalheiresco dos senhores de escravos, Genovese
em muito se aproxima a Gilberto Freyre, em quem se inspira e que serve como referencial
máximo com relação ao escravismo brasileiro. Para além da afinidade freyriana, o
paternalismo de Genovese é o da plantation que emprega um administrador: uma figura
intermediária entre senhor e escravos, cuja situação contraditória e instável é
magistralmente analisada pelo autor, exatamente porque é reveladora de diversas das
complexidades que tanto caracterizaram as relações paternalistas. Pois bem, mesmo que o
objeto de Genovese seja bastante específico, isto é, o paternalismo consolidado do chamado
Velho Sul novecentista, nos últimos trinta anos todo o revisionismo historiográfico sobre o
escravismo brasileiro, de modo virtual, inspira-se, implícita ou explicitamente, no conceito
de paternalismo desenvolvido por Genovese em Roll Jordan, Roll. Poderia citar muitos
outros, mas, de imediato, vêm-me à cabeça autores como Sílvia Lara, Sidney Chaloub,
Hebe Maria Mattos, Robert Slenes, Marcus Joaquim Maciel de Carvalho e Eduardo França
Paiva.5 Se esta fina flor dos estudiosos que se dedicam à sociedade escravista brasileira
elege o conceito de paternalismo de Genovese como ponto de partida para se debruçarem
sobre as relações senhor/escravo, deve ser porque tal conceito é o mais bem elaborado no
vasto corpo da literatura internacional, não obstante as especificidades do objeto histórico
do autor.
A essa alturas, já passa da hora de eu explicitar o que é que entendo como o conceito
de paternalismo escravista de Eugene Genovese para, depois, procurar demonstrar como o
mesmo pode servir como instrumento na prática da História Comparativa. No entanto,
antes, peço licença aos caros ouvintes para delimitar,

5. LARA, Sílvia H. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750- 1808). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; MATTOS DE CASTRO, Hebe Maria. Das cores
do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1995; SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava (Brasil, sudeste, século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; CARVALHO, Marcus Joaquim
Maciel de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife (1822-1850). Recife: Editora Universitária da
UFPE, 1998; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais (1716-1789).
Belo Horizonte: Editora UFMQ 2001.

29
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

previamente, o escopo da minha discussão aqui hoje. Em primeiro lugar, as comparações


vão enfocar apenas o Velho Sul norte-americano e o Brasil, com ênfase nos séculos
XVIII e XIX. Fica de fora, portanto, o Caribe dos maiores engenhos de açúcar conhecidos
na época Moderna. Essa exclusão se justifica, em parte, no fato de que não tenho o mesmo
grau de familiaridade com a literatura pertinente sobre o Caribe que acredito possuir com
relação ao Sul dos Estados Unidos e ao Brasil. Por outro lado, e aqui vou me inspirando em
uma outra obra de Genovese, 6 uma das características mais marcantes das colônias
caribenhas foi o absenteísmo dos grandes proprietários europeus, a maioria dos quais
sempre preferiu desfrutar de uma vida com ares de nobreza na pátria-mãe ao desconforto e à
pestilência epidemiológica7 das paradisíacas ilhas pré-vintecentistas. Na verdade, inúmeros
senhores de vastos plantéis e imensos engenhos nunca sequer chegaram a pisar nas suas
propriedades coloniais, deixando o comando dos seus empreendimentos nas mãos de
administradores e advogados locais. Como mostrarei, para se desenvolver plenamente, o
paternalismo escravista dependia, de maneira fundamental, das relações pessoais que se
estabeleciam entre os escravos e seus senhores. E, neste sentido, logo se percebe que o
Caribe, de modo geral, constituiu um ambiente pouco propício à emergência de um
verdadeiro paternalismo escravista. Aprendemos com isto a importante lição que dita que o
administrador nunca pode substituir o senhor, e, concomitantemente, eu me livro da
necessidade de levar em consideração um vastíssimo leque de produção acadêmica que mira
o Caribe escravista.
Em segundo lugar, excluo o crescente corpo de produção historiográfica norte-
americana de cunho neo-revisonista, e que tem entre seus maiores expoentes Brenda
Stevenson, Walter Johnson, Ariela Gross, Ira Berlin, Wilma Dunaway, e Steven Deyle. 8 Ao
concentrar esforços no desvendamento dos imensuráveis sofrimentos da vida escrava,
sofrimentos estes frutos da indiferença, dos descuidos, e, sobretudo, do racismo de
proprietários brancos, o neo-revisionismo norte-americano dos últimos
6. GENOVESE, Eugene D. The World the Slavkholders Made: Two Essays in Interpretation. New York: Vintage,
1969.
7. Ver KIPLE, Kenneth F. The Caribbean Slave: A Biological History. Cambridge: Cambridge University Press,
1984.
8. STEVENSON, Brenda E. Life in Black and White: Family and Community in the Slave South. New York: Oxford
University Press, 1996; JOHNSON, Walter. Life Inside the Antebellum Slave Market. Cambridge MA: Harvard
University Press, 1999; GROSS, Ariela J. Double Character: Slavery and Mastery in the Antebellum Southern
Courtróom. Princeton: Princeton University Press, 2000; BERLIN, Ira. Generations ofCaptivity: A History
ofAfrican-American Slaves. Cambridge MA: Harvard University Press, 2003; DUNAWAY, Wilma A. The
African-American Family in Slavery and Emancipation. Cambridge, Cambridge University Press, 2003. DEYLE,
Steven. Carry Me Back: The Domestic Slave Trade in American Life. Cambridge: Cambridge University Press,
2005.

30
I

R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS

quinze anos pretende desbancar, entre muitos outros, as três obras-primas do revisionismo
da década de 1970: A terra prometida, a polêmica Time on the Cross, de Robert Fogel e
Stanley Engerman,9 e a magistral The Black Family in Slavery and Freedom, do saudoso
Herbert Gutman.10
Resolvi deixar de fora tais interpretações neo-revisionistas por várias razões. Elas
têm tido quase que nenhuma ressonância entre os estudiosos do escravismo brasileiro,
talvez porque estes não se disponham a renunciar tão facilmente às conquistas teórico-
metodológicas que deram vida e agência aos milhões de cativos que, no passado,
representavam a própria força vital da Colônia e do Império brasileiros. E, de fato, é preciso
dizer que o neo-revisionismo da academia ianque anda no fio da navalha, pois, ao insistir
enfaticamente nos aspectos negativos da vida escrava impostos por uma sociedade
dominada por senhores brancos, corre o risco de obviar a participação do escravo na sua
própria história. Em outras palavras, parece-me que, ao buscar explicações para um racismo
doentio, virulento e persistente - objetivo este, sem dúvida alguma, assaz laudatório - os
revisionistas, às vezes, podem estar jogando fora o bebê junto com a água do banho. Trata-
se de um processo perfeitamente compreensível: as preocupações da sociedade norte-
americana da virada do milênio se voltam para um recorrente problema social que exige um
constante repensar da história nacional. Cá, nos trópicos brasílicos, as preocupações do
momento são outras, donde a relevância da produção historiográfica lá de cima vai se
tomando cada vez menos clara. Finalmente, como considero que, em última análise, o
paternalismo escravista acaba se revelando um jogo no qual o senhor nunca sairá vitorioso,
não vejo por que me deter nos aspectos negativos da vida cativa, o que, nem de longe,
eqüivale negar a existência destes.
Muito bem, o que é, afinal, o paternalismo escravista na minha interpretação da
análise paradigmática de Genovese? Acho muito importante não perder de vista o fato de
que o escravo constituía uma propriedade privada do senhor. Do ponto de vista jurídico,
inclusive, a maioria daqueles que passaram a elaborar leis tratando da propriedade em
escravos teve que lançar mão às velhas e rigorosas tradições romanas, segundo as quais o
senhor desfrutava de uma autoridade absoluta sobre sua propriedade cativa. Não custa
lembrar aqui que a Europa das descobertas emergia de uma Idade Média na qual as
distinções entre a propriedade privada, comunitária ou pública haviam se tomado bastante
embaçadas. Neste sentido, e bastante ironicamente, a propriedade

9. FOGEL, Robert W. & ENGERMAN, Stanley L. Time on the Cross: The Economics of American Negro
Slavery. Boston: Little Brown, 1974.
10. GUTMAN, Herbert G The Black Family in Slavery and Freedom (1750-1925). New York: Vintage, 1976.

31
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

escrava acabou desempenhando um importante papel na consolidação do conceito da


propriedade privada, conceito este um dos principais alicerces do sistema capitalista e
firmemente baseado no trabalho assalariado.
O que mais importa para nos aqui hoje é que a natureza privada da propriedade
escrava significava que as relações senhor/escravo se desenvolviam e se desenrolavam
quase que exclusivamente no âmbito fechado do domínio senhorial. Dessa forma, tais
relações envolviam, pelo menos potencialmente, todos os aspectos da vida cotidiana de
ambas as partes: cativos, senhores, familiares e eventuais agregados. É bem verdade que um
bom número de estudos recentes traz à tona a surpreendente mobilidade física desfrutada
por certos escravos e escravas no dia-a-dia, muito especialmente aqueles que residiam nos
centros urbanos. Mesmo assim, pode-se dizer, sem medo de errar, que, na essência, senhor e
escravo eram unha e carne. Sobretudo, a manutenção da ordem se dava no nível das
unidades produtivas e no contexto das relações pessoais entre senhores e cativos. Isto quer
dizer que os problemas, os conflitos, e as reivindicações, que iam surgindo de maneira
natural, tiveram que ser resolvidos neste âmbito fechado e em meio a um cotidiano marcado
pela constante ameaça do castigo. E aqui insisto, junto com Sílvia Lara, que, até tempos
muito recentes, o ato de remediar erros e punir malfeitores era sinônimo de castigo físico.
Decidir pelo castigo, físico ou não, era um direito exclusivo do senhor ou da senhora,
reconhecido por todos, inclusive os cativos. A bem da verdade, castigar era um dever do
senhor, mesmo que ele próprio raramente tenha administrado as chicotadas ou as
palmatórias. Nas palavras de Sílvia, tratava-se de um castigo, ao mesmo tempo exemplar e
incontestado. Exemplar porque praticado com frugalidade para sublinhar de maneira
cristalina a seriedade da infração cometida ou da confiança traída. Exemplar porque a
administração da punição escolhida pelo senhor ou senhora realizava-se diante de todos os
companheiros e companheiras da propriedade, muitas vezes incluindo a maioria dos
moradores livres também. Exemplar porque o senhor ou a senhora designava alguém - um
administrador, um feitor ou, mais usualmente, um outro escravo - para administrar o castigo,
aplicar as chicotadas, as palmatórias e assim por diante. Incontestado porque ninguém, mas
realmente ninguém, questionava a adequação do castigo físico ou psicológico, muito menos
a autoridade do senhor em ordená-lo.
Um claro sinal desta incontestabilidade dos direitos senhoriais e do caráter privado
das relações paternalistas é a raridade com que o Estado as intermediava ou intervinha em
questões por elas levantadas. Em meio a povoamentos rarefeitos e diante das imensas
distâncias que separavam a metrópole da colônia, ou os engenhos e as lavras dos centros
administrativos coloniais, nem mesmo a legislação específica acerca das relações
senhor/escravo se faziam valer com regularidade. O Code Noir, as Siete Partidas ou as
Ordenações Filipinas, no mais das vezes, passaram

32
I

R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS

despercebidos ou eram deliberadamente ignorados. No fundo, o Estado se limitava a


interferir nas relações paternalistas apenas nos momentos de excepcionalidade, em particular
no contexto das grandes revoltas dos escravos. Apesar da pouca interferência do Estado, a
autoridade do senhor ou da senhora nunca foi verdadeiramente absoluta, nem totalmente
incontestada. Existiam comunidades regidas pelo paternalismo e nelas havia um código de
comportamento não escrito, um acordo de cavalheiros, segundo o qual um proprietário de
escravos nem podia ser excessivamente cruel nos castigos nem podia se mostrar frouxo e
condescendente para com os deslizes de seus cativos e cativas. Afinal, para a comunidade, o
essencial era a manutenção da ordem, e a ordem dependia da relativa tranqüilidade dos
escravos. E tal tranqüilidade era assegurada somente quando os excessos, para mais ou para
menos, eram evitados. Em outras palavras, o sossego dos cativos dependia de regras também
não escritas, mas quase sempre observadas por proprietários de posses de todos os
tamanhos. De fato, a comunidade não hesitava em aplicar sanções contra maus senhores,
muito embora este aspecto do mundo escravista e paternalista ainda careça de maiores
pesquisas entre nós.11
O que eram, então, as relações paternalistas para os senhores e os escravos? Da
maneira mais simples, pode-se pensarem um conjunto, mais ou menos simétrico, de direitos
e deveres. Do ponto de vista do senhor, cabia-lhe prover seus escravos com os elementos
básicos da sobrevivência - alimentação, vestimenta e habitação - mas também propiciar
momentos, regrados, é claro, de lazer, de alguma instrução religiosa e profissional, além de
aconselhamentos variados e sempre de natureza pessoal e privada. Em troca destes deveres
senhoriais, esperava-se trabalho regular e bem feito, obediência sem qualquer
questionamento, e lealdade ferrenha a sua pessoa e a sua família. Não sem certa relutância,
os escravos geralmente reconheciam e aceitavam os seus deveres para com o senhor. Com
efeito, há exemplos de cativos que, pelo menos publicamente, se mostravam orgulhosos de
pertencerem a homens ou mulheres ricos e importantes, não raramente intitulados membros
da nobreza.12 Era mais no caso dos deveres do senhor paia com seus cativos que as visões
de cada parte revelavam-se bastante distintas. Na medida em que os próprios escravos
conseguiam influenciar a qualidade e/ou a quantidade das rações e das roupas distribuídas,
ou a composição das suas habitações, como acontecia regularmente, os deveres senhoriais
tornavam-se direitos conquistados pelos cativos. Direitos estes sempre sujeitos à ampliação,
pois este jogo de deveres e direitos, na verdade, constituía uma constante

11. LAUDERDALE GRAHAM, S. Caetana diz não:histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 181-3.
12. Ver, por exemplo: Lara (1988).

33
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

medição de forças pela qual, a médio e longo prazo, os senhores concediam, mesmo que em
doses míseras, cada vez mais espaço autônomo aos seus escravos. Afinal, o castigo
exemplar e incontestado funcionava até certo ponto, mas, em nome da tranqüilidade e da
ordem, senhores sulistas e brasileiros tiveram que aceitar como corriqueiros os pequenos
furtos de comida e roupa que suplementavam o “generoso” fornecimento senhorial, as
pequenas insolências, as desobediências sem maiores conseqüências. Pior ainda, tiveram
que aceitar as pequenas fugas, através das quais escravos e escravas se ausentavam por
alguns dias para, depois, voltar e escapar do castigo graças à intermediação de algum
senhor vizinho. É neste sentido que sugeri antes que o paternalismo foi um jogo nunca
vencido pelos senhores, pela simples razão de que os cativos nunca cessaram na sua luta
pela conquista de espaços adicionais. Apenas lembraria que nenhum senhor jamais
admitiria reconhecer publicamente que, no fundo, era ele o vencido. Com efeito, é possível
até se comover com a sinceridade dos sentimentos de traição expressados por ex-senhores
diante do comportamento dos “seus” na esteira da Guerra Civil nos Estados Unidos13 ou da
Abolição no Brasil.14
É claro que este rápido resumo não faz jus à complexidade do paternalismo e nem
corresponde a nenhuma dada realidade histórica. É uma descrição necessariamente
idealizada, mas que contém os principais elementos de uma maneira de se comportar e de se
relacionar, assim como de se ver o mundo, por parte dos milhões de personagens históricos
que concretamente viveram o escravismo moderno. Serve apenas para nos ajudar a pensar
sobre a possibilidade ou não de formas distintas de paternalismo e, sobretudo, a sugerir
novos caminhos a serem trilhados pela historiografia especializada.
Já a historiografia especializada norte-americana vem tratando do paternalismo
escravista desde os primeiros escritos do pai dos estudos sobre a escravidão, Ulrich Bonnell
Phillips, ainda no final do século XIX. Embora se considerasse um estudioso, sobretudo, da
História Econômica, Phillips era uma espécie de Gilberto Freyre ianque, pois escrevia sobre
o passado escravista com a nostalgia de quem, quando criança, escutava as bonitas histórias
dos-ayôs maternos e paternos, todos ex-donos de suas plantations e muitos dezenas de
escravos. Phillips nem tentava disfarçar sua admiração pelo ethos do Velho Sul, com sua
aristocracia cavalheiresca, sustentada por milhões de homens e mulheres escravizadas desde
o nascimento.
Como objeto de estudo, o p'atemalismo escravista é tratado com muito mais
freqüência e regularidade nos Estados Unidos do que no Brasil, e este fato serve muito bem
como ponto de partida para tecer algumas considerações de natureza comparativa. Pode-se
afirmar que foi nas plantations, fazendas e pequenos centros

13. Genovese (1972); Gutman (1976).


14. Mattos de Castro (1995).

34
V

R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS

urbanos do Velho Sul que o paternalismo escravista mais se desenvolveu entre todas a
regiões escravistas do Novo Mundo. À primeira vista, trata-se de uma afirmação paradoxal,
uma vez que o regime escravista norte-americano se consolidou apenas no segundo quartel
do século XVIII, mais de um século depois da consolidação do escravismo da América
portuguesa - algo que se deu em tomo da virada para o século XVn - e mais de meio século
após o surgimento das primeiras sociedades plenamente escravistas no Caribe. Eu
argumentaria que um dos elementos constitutivos daquela consolidação, processada ao
longo das décadas de 1720 e 1730 nas colônias de Maryland e Virgínia, e um pouco mais
tarde nas Carolinas e na Geórgia, é a chave para entender por que a sociedade do Sul norte-
americano alimentou um paternalismo escravista tão aperfeiçoado. No caso, estou me
referindo ao fenômeno do crescimento natural da população mancípia, cujo início, 15 nada
fortuitamente, coincidiu com a maturação da sociedade escrava sulista. A partir daquele
momento, a maioria da população escrava do Sul, cada vez mais, seria nascida em solo
norte-americano, e isto apesar das maiores importações de africanos via o tráfico negreiro
internacional se darem em meados do século XVIII. Convém lembrar aqui que, do ponto de
vista da elite sulista, a adesão dos Estados Unidos ao tratado com a Grã-Bretanha, que levou
à supressão do tráfico negreiro transatlântico em 1807, não se inspirou em motivos
humanistas. Naquelas alturas, a população escrava do Sul se reproduzia a taxas bem
elevadas, taxas estas que, entre 1810 e 1860, fariam com que a escravaria aumentasse de 1,2
milhões para mais de 4 milhões. Já na época da Guerra da Independência tinha-se plena
consciência de que o tráfico negreiro era perfeitamente dispensável diante do robusto
crescimento natural. Em meio ao clima de pânico e histeria criado pela Revolução Haitiana,
o tráfico e seus africanos tomaram-se positivamente indesejáveis.
O que importa para a discussão de hoje é que, quando da virada do século XVm, três
ou quatro gerações de famílias proprietárias e de famílias escravas haviam convivido,
dando formas às relações senhor/escravo cada vez mais paternalistas. Outras três ou quatro
gerações iriam conviver e conquistar juntas o novo Sul das vastas plantações de algodão.
Eu sempre me impressiono com a fotografia que aparece na capa do The Black Family in
Slavery and Freedom, de Gutman. A foto, datada de antes da Guerra Civil norte-americana,
capta cinco gerações de uma única família escrava pertencente a uma única família
proprietária. Nem os neo-revisonistas negam o óbvio: a família foi a unidade básica da
organização social da escravidão sulista.

15. Ver: MENARD, Russell R. The Maryland Slave Population, 1658 to 1730: A Demographic Profile of
Blacks in Four Counties. William and Mary Quarterly, 3"1 ser., v. 32, n. 1, jan, 1975, pp. 29-54.

35
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Parece-me igualmente óbvio que a convivência de tantas gerações de escravos e senhores e


o resultante entrelaçamento de tantas histórias familiares e pessoais foram bastante
condizentes com um processo de aperfeiçoamento das relações paternalistas. Por mais que a
historiografia brasileira venha demonstrando a importância da família escrava aqui também,
não é minimamente plausível querer equacionar estes novos achados sobre o nosso passado
escravista com a experiência histórica norte-americana.
Há uma outra razão para a marcante preocupação da historiografia norte- americana
com o paternalismo escravista. É que o paternalismo brota de maneira simplesmente
prodigiosa das páginas e folhas de centenas de milhares de fontes produzidas por senhores e
senhoras de escravos e seus familiares, por administradores e outros empregados livres, por
médicos e advogados contratados por proprietários de cativos e até pelos próprios escravos.
A riqueza das fontes privadas, tão bem preservadas nos arquivos locais e estaduais do Sul, é
virtualmente incalculável e conduz ao constante escrutínio por historiadores do dia-a-dia de
escravos e senhores nas mais variadas situações. Os diários, as correspondências, os
registros de escravos, mantidos geração após geração, entre tanta outra documentação de
natureza privada, são de dar inveja a qualquer estudioso da sociedade escravista brasileira.
Aqui, nós não temos nada minimamente parecido. Por isso mesmo, precisamos ficar bem
atentos às janelas para o cotidiano que certos documentos oficiais e eclesiásticas nos abrem.
A bem da verdade, reconstituir o paternalismo escravista brasileiro é uma tarefa muito
difícil e que, às vezes, exige uma certa engenhosidade na interpretação das fontes
disponíveis.
Mais cedo eu aludi ao fato de que, nos Estados Unidos do século XIX, os órgãos
oficiais definiam qualquer unidade agrícola com vinte ou mais escravos como aquilo que,
para mim, é a paradigmáticaplantation do cinema, do teatro e da televisão. E, reitero que, no
meu entender, este é o paradigma idealizado por Eugene Genovese. Agora, convém destacar
que uma posse de vinte, trinta ou mesmo quarenta escravos não condiz com uma certa
visãe-que temos, na qual cabem, além do luxo da casa- grande, a pobreza das senzalas e
vasta escravaria, um claro distanciamento entre o senhor e sua família de estirpe
nobiHárquica e a plebe escrava. Tal distanciamento social, psicológico, físico e sin^bólico
seria um componente fundamental do paternalismo escravista, pois, nos momentos de
aparar conflitos ou de ordenar castigos, caberia ao senhor ou à senhora manter-se nas alturas
olímpicas de uma imaginada magistratura imparcial e perfeita. Trata-se de mais uma das
complexidades do paternalismo, pois tal distanciamento haveria de combinar com relações
genuinamente pessoais entre senhor e cada escravo de seu plantei, relações estas marcadas
por uma forte confiança mútua. De outra forma não há como explicar por que, em última
instância, os proprietários ouviam muito mais seus escravos do que o administrador, que,
afinal, era uma peça fora do jogo.

36
R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS

Sem dúvida, uma das grandes semelhanças entre as sociedades escravistas do Brasil
e do Velho Sul revelada nas pesquisas das últimas décadas é uma distribuição da
propriedade em escravos bem menos concentrada do que aquela imposta pela cartilha do
chamado Sistema Colonial. Tanto lá, quanto cá, havia as grandes posses e as imensas
unidades produtivas - mormente as dedicadas ao plantio do algodão, da cana de açúcar e do
café. Mas estas fazendas eplantations constituíam a exceção. A vasta maioria dos escravos
residia em unidades designadas como pequenas ou médias. Basta lembrar que, como aponta
Stuart Schwartz, 16 nem os engenhos de açúcar brasileiros merecem a fama de gigantes ou
de supostos feudos senhoriais fincados em pleno solo colonial. Na verdade, o típico
engenho tinha uma escravaria de tamanho médio para grande e sobrevivia através de uma
relação de interdependência para com lavradores de cana da vizinhança, que tinham posses
médias de cativos. Os grandes engenhos, com centenas de escravos e canaviais de perder de
vista, na verdade, eram um fenômeno quase que exclusivo das ilhas caribenhas. A realidade
das Américas portuguesa e britânica continental ou do Brasil e do Sul dos Estados Unidos
era bem outra.
Ora, diante desta realidade das pequenas e médias posses de escravos, parece- me
imperativo repensar o paternalismo escravista. Como manter um distanciamento “olímpico”
quando a comunidade conjunta de escravos e livres não passava de quarenta, cinqüenta ou
sessenta pessoas? As relações pessoais que se desenvolveram e se desenrolaram em meio ao
inevitável contato diário não seriam um tanto quanto distintas daquelas idealizadas no
paternalismo de Genovese, Freyre, Phillips e tantos outros? Todos sabemos que a
proximidade constante tanto pode gerar afeto genuíno, quanto pode provocar desafeto
constante e passível de se transformar em repentinos impulsos violentos. No empurra-
empurra de todo dia, marcado por imprevisibilidades irritantes, as reações iradas não
deveriam ser nada incomuns. E aí, não me parece que a ira repentina seja exatamente uma
boa precondição para o castigo exemplar e incontestado. E, vejam bem, não estou falando
das pequenas - às vezes diminutas - posses de um a cinco cativos. Nestes casos, a
intimidade forçosa das relações senhor/ escravo com certeza resultava em comportamentos
extremos, fossem afetos, fossem desafetos. Os diários e as correspondências de pequenos
proprietários e proprietárias do Sul e os processos-crime brasileiros mostram muito bem
que as pequenas posses eram marcadas por instabilidade, imprevisibilidade e, com certeza,
irrupções de violência

16. SCHWARTZ, Stuart B. Sugar Plantation in lhe Formation ofBrazilian Society (Bahia, 1550-1835). Cambridge:
Cambridge University Press, 1985, especialmente Chapter 11.

37
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

de todas as partes.17 Aqui no Brasil, a ênfase tem se dado sobre as pequenas propriedades
típicas dos centros urbanos, em particular o Rio de Janeiro, 18 Salvador,19 Recife/ Olinda20 e
as cidades mineiras dos séculos XVIII e XIX. 21 A propósito, considero simplesmente
brilhante a observação recente de Zephyr Frank acerca dos limites do tamanho das posses
de escravos impostos pelo ambiente urbano da Corte no Oitocentos. Posses de mais de uma
dúzia de cativos praticamente inexistiam na cidade do Rio, mesmo entre proprietários de
altíssimo poder aquisitivo. E isto por uma razão muito simples: como vigiar uma grande
quantidade de escravos em meio à confusão e à relativa anonimidade da cidade grande? 22
Muito bem. Apesar do que podem dizer por aí, o tamanho faz diferença, sim. E
quero crer que a questão da relação entre o tamanho de posse e o grau ou tipo de
paternalismo ainda não foi adequadamente discutida, seja aqui no Brasil, seja lá nos Estados
Unidos.23 Tão pouco tem-se examinado de maneira sistemática o paternalismo

17.Stevenson (1996); Dunaway (2003); FOX-GENOVESE. Elizabeth. Within the Plantation Household: Black and
White Women of the Old South. Chapei Hill, NC: The University of North Carolina Press, 1988; MORELL1,
Jonice dos Reis Procópio. Fragmentos do cotidiano: Montes Claros de Formigas no século XIX. Belo Horizonte:
UFMG, Dissertação de Mestrado, 2002; RODRIGUES, Tiago de Godoy. Sentença de uma vida: escravos nos
tribunais de Mariana (1830-1840). Belo Horizonte: UFMG, Dissertação de Mestrado, 2004; FREITAS DE
JESUS, Allyson Luiz. O sertão oitocentista: violência, escravidão e liberdade no Norte de Minas Gerais (1830-
1888). Belo Horizonte: UFMG, Dissertação de Mestrado, 2005.

18. KARASCH, Mary. Save Life in Rio de Janeiro (1808-1850). Princeton: Princeton University Press,
1987; LAUDERDALE GRAHAM; Sandra. House and Street: The Domestic World ofServants and Masters in
Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Austin: University ofTexas Press, 1992; NOGUEIRA DA SILVA,
Marilene. Rosa Negro na rua: a nova face da escravidão. São Paulo: Editora Hucitec/ CNPq, 1988.

19. ANDRADE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava em Salvador (1811-1860). São Paulo:
Corrupio/CNPq, 1988.
20. Carvalho (1998).
21. RESENDE, Edna Maria. Entre a solidariedade e a violência: valores, comportamentos e a lei em São João del-Rei
(1840-1860). Belo Horizonte: UFMQ Dissertação de Mestrado, 1999; VELLASCO, Ivan de Andrade. As
seduções da ordhn: violência, criminalidade e administração da justiça, Minas Gerais século XIX.
Bauru/SãoPaulo: Edusc/ANPOCS, 2004; MENESES, Jose Newton. Artes fabris e serviços banais: ofícios
mecânicos e as câmaras no final do Antigo Regime (Minas Gerais e Lisboa, 1750-1808). Niterói: Universidade
Federal Fluminense, Tese de Doutorado, 2003.
22. FRANK, Zephyr L. Dutra ’s World: Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Albuquerque:
University of New Mexico Press, 2004, pp. 77-8 e 85.
23. Mesmo assim, há discussão na academia norte-americana. Ver, por exemplo, PATTERSON, Orlando. Rituais
of Blood: Consequences of Slavery in Two American Centuries. New York: Basic Civitas, 1999; TADMAN,
Michael. Speculators and Slaves: Masters, Traders, and Slaves in the Old South. Madison: University of
Wisconsin Press, 1989; CRAWFORD, Stephen. “A View from the Slave Narratives”, in GOLDIN, Claudia
& ROCKOFF, Hugh (ed.). Strategic Factors in Nineteenth-Century American Economic History. Chicago:
University of Chicago Press, 1992, pp. 331-50.

38
R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS

escravista através do prisma da propriedade de escravos por parte de pessoas de afro-


descendência. Como pensar as relações entre senhores com o proverbial pé na cozinha ou
até mesmo africanos forros - para não falar em crioulos ou pardos forros
- e os seus cativos africanos e nativos? Aqui, se lida com a miscigenação para lá de
ampliada: uma mistura de cores, origens, condições e posições sociais que deixaria o típico
estudioso da sociedade escravista do Velho Sul completamente tonto. 24 E é com este
delicioso desafio para os estudiosos do escravismo brasileiro que fecho estas minhas
desordenadas ruminações.

24. A obra de Larry Koger (Black Slaveowners: Free Black Slave Masters in South C.arolina (1790- 1860).
Columbia: University of South Carolina Press, 1985) chega a soar patética quando comparada à realidade
brasileira da mesma época. Por black slaveowners, leia-se um número muito reduzido de mulatos forros,
residentes apenas de Charleston, e, freqüentemente, donos apenas de parentes próximos (filhos e esposos),
impossibilitados de receberem suas próprias alforrias graças à legislação draconiana pós-Revolução
Haitiana, a qual, na prática, simplesmente proibia a alforria (além de ordenar a expulsão de vários estados
sulistas daqueles anteriormente “agraciados” com a libertação).

39
Tráfico e Famílias Escravas em Minas Gerais: O Caso de São
José do Rio das Mortes (1 7 4 3 -1 8 5 0 )

Afonso de Alencastro Graça Filho1 Fábio Carlos Vieira Pinto2

INTRODUÇÃO

Podemos dizer que a pesquisa sobre famílias escravas em Minas Gerais, assim como
em outras regiões, avançou com o desdobramento dos estudos demográficos, também sendo
influenciada pelos trabalhos de Eugene D. Genovese (1974) e Herbert Gutman (1976), que
contribuíram para a crítica da imagem de “anomia social” que se tinha destas famílias. 3 As
primeiras incursões sobre o tema no Brasil, adotando esse novo viés analítico e esmiuçando
as fontes primárias, datam desse momento, ganhando maior consistência nos anos 1980. 4
São trabalhos geralmente dedicados às grandes

1. Professor adjunto da UFSJ.


2. Bolsista de Iniciação Científica. A pesquisa contou ainda com a participação de Pedro Henrique Belchior,
também bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
3. GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 (a
publicação original é de 1974). GUTMAN, Herbert G The Black Family in Slavery and Freedom (1750-1925).
Nova York: Pantheon Books, 1976.
4. Não é nossa intenção historiarmos todos os trabalhos dedicados ao tema. Como exemplo, nos anos 1970,
podemos indicar como pioneiros o artigo de GRAHAM, Richard, “A família escrava no Brasil colonial” in
GRAHAM, Richard. Escravidão, reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979, pp. 41-57; e SLENES,
Robert W. The Demography and Economics of Brazilian Slavery (1850- 1888). Califórnia: Stanford University,
Tese de Doutorado, 1976. Para uma história da historiografia brasileira sobre as famílias escravas, consultar:
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: as esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, cap. 1; ROCHA, Cristiany Miranda. Histórias de famílias escravas. Campinas:
Editora da Unicamp, 2004, cap. 1.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

plantations agroexportadoras, que dispunham de maiores escravarias, portanto de uma


chance mais elevada de encontrarmos casais de cativos.
Atualmente, a relevância da família escrava na historiografia se relaciona às
estratégias de foijar redes de solidariedade e resistência no cativeiro. Assim, a família
escrava se toma um locus importante de tensões, na perspectiva do controle social por parte
da casa-grande e na conquista de regalias pela senzala. Trata-se de uma relação entre
desiguais, mas que, segundo Robert Slenes (1999), impunha limites à ação senhorial de
livre disponibilidade sobre seus escravos, que passava a enfrentar a oposição dos laços de
conjugais juridicamente construídos e da solidariedade comunitária, minando o domínio dos
senhores escravistas.
A fragilidade e as dificuldades para a construção dessas redes comunitárias no
interior das senzalas foram relatadas por Hebe de Mattos, ao notar o consentimento de
pequenos privilégios aos escravos casados, gerando diferenças dentro dos cativeiros. 5
Na análise de Manolo Florentino e José Roberto Góes, a ênfase recai na teorização
do casamento como instrumento pacificador das senzalas, unindo cativos de mesma origem
através da predominância de casamentos endógamos e isolando os africanos recém-
chegados. O matrimônio entre os escravos servia ao controle senhorial e, por outro lado,
minorava as agruras da instituição escravocrata. 6 Nesse ponto, Slenes acrescenta sua
discordância principal com os autores acima, a de que o fortalecimento dos laços
comunitários poderia trazer também insegurança ao sistema escravista, sendo ambígua a sua
contribuição para a pacificação das senzalas.
Quanto aos casamentos endógamos de africanos e crioulos, os dados de Slenes para
Campinas (censo de 1801 e livro de assentos de casamentos de 1842-44) e os de Carla
Almeida para Mariana (inventários post-mortem, 1750-1850) mostram uma parcela
considerável de uniões mistas (crioulos/as e africanas/os), respectivamente de 31,1 %,
47,4% e 49,5% dos casais encontrados, ao contrário dos resultados dos inventários
pesquisados por Florentino e Góes para o agro fluminense (1790-1830), onde os
matrimônios exógamos somaram 23% dos casais escravos entre 1790-1807, declinando para
11% no período restante. Veremos que, nesse particular, a nossa pesquisa para São José se
aproxima da hipótese de Slenes, de que as preferências endógamas conviveram com a
aceitação de praticas exógamas. 7 Ainda mais que, em nosso caso, o matrimônio entre
crioulos foi muito inferior aos de africanos e os mistos.

5. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
6. FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico (Rio
de Janeiro, c.1790 - c.1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
7. Florentino & Góes (1997); Slenes (1999); ALMEIDA, Carla M. C. de. Demografía e laços de parentesco na
população escrava mineira (Mariana, 1750-1850). População e Família, CEDHAL/USP, v. 1, n.

42

J
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS

Em Minas Gerais, os estudos sobre a família escrava ainda estão em


desenvolvimento, apesar de já contarmos com um número razoável de trabalhos acadêmicos
de qualidade, especialmente demográficos, explorando fontes primárias como registros de
batismos, casamentos, inventários post-mortem e testamentos.8 Aproveitaremos para
encaixar nossa pesquisa nesse esforço atual.
Trata-se de um trabalho ainda em andamento, mas já com uma amostragem
documental satisfatória, apesar de incompleta. Portanto, os resultados apresentados não são
definitivos, mas dificilmente serão alterados nas suas constatações mais básicas.
Adotamos como temática a família escrava através dos dados de inventários post-
mortem. Nosso recorte espacial engloba a Vila de São José Del Rei e seus distritos, na
Comarca do Rio das Mortes. O corte cronológico foi definido a partir do inventário mais
antigo que conseguimos localizar, com ano de 1743, e tendo como baliza final o ano de
1850, com o fim do tráfico negreiro transatlântico. Esse espaço cronológico nos permite
fazer algumas considerações sobre a dinâmica da economia mineira e a importação de
escravos nos Setecentos e Oitocentos, visando corroborar as contribuições historiográficas
sobre a idéia de uma acomodação à economia de abastecimento e a crítica à decadência
mineira ao final do chamado “ciclo do ouro”. 9

1, jan/jun, 1998, pp. 235-60. Este índice representativo de casamentos mistos entre escravos, bem
como o que verificamos em nossa pesquisa, mostram que regionalmente divergem do livros de registros
de casamentos de escravos de Juiz de Fora (1845-88), naquele momento uma área de abertura da
agroexportação do café, onde Rômulo Andrade encontrou 17% deles em 117 assentos, predominando
os casamentos endógamos de crioulos e africanos, num total de 83%. Ver: ANDRADE, Rômulo.
Casamentos endogâmicos e casamentos mistos de escravos na Zona da Mata de Minas Gerais. Revista
Vertentes, São João del-Rei, Funrei, jan/jun, 1998, pp. 23-30.
8. Para Minas, merecem ser citados, entre outros, os trabalhos demográficos de LIBBY, Douglas & PAIVA,
Clotilde Andrade. “Profiles of a late eigtheenth-century slave parish: São José d’el Rey in 1795",
comunicação apresentada no Brasas IVCongress, Washington, nov, 1997; BOTELHO, Tarcísio Rodrigues.
Famílias e escravarias: família e demografia escrava no norte de Minas Gerais, no século XIX. São Paulo: USP,
Dissertação de Mestrado, 1994; BERGAD, Laird W. Slavery and the Demographic and Economic History of
Minas Gerais, Brazil (1720-1888). Cambridge University Press, 1999; e os estudos de HIGGINS, Kathleen J.
“Licentious liberty” in a brazilian gold-mining region: slavery, gender, and social control in eighteenth-century
Sabará, Minas Gerais. University Park: The Pennsylvania State University Press, 1999. FIGUEIREDO,
Luciano Raposo de A. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec,
1997; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia (Minas Gerais, 1716-1789). Belo
Horizonte: Editora da UFMQ 2001; BRÜGGER, Silvia M. J. Minas patriarcal: família e sociedade (S. João dei
Rei, séculos XVIII e XIX). Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 2002; ANDRADE, Rômulo. Limites impostos pela
escravidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco (Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX). São
Paulo: USP, Tese de Doutorado, 1995.

9. O debate sobre essa questão se inicia com mais ênfase nos anos de 1980, com os trabalhos de Roberto Martins.
A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG 1982; SLENES, R. W.
Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no

43
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Para a abordagem da família escrava, particularmente, tomamos como referência


metodológica e análise comparativa o trabalho de Florentino e Góes (1997) sobre o tema no
Rio de Janeiro. Os autores partem do pressuposto que o parentesco entre os escravos
contribuiu para a manutenção do escravismo, amenizando a tensão das relações de poder no
interior das senzalas, especialmente das mais populosas. Segundo Florentino e Góes: “A
verdade é que um plantei não era, em princípio, a tradução de um nós. Reunião forçada e
penosa de singularidades e dessemelhanças, eis como melhor se poderia caracterizá-lo”
(1997:35).
Dessa forma, a construção de laços de parentesco serviria para amenizar as
“dessemelhanças” entre os escravos, contribuindo com as “singularidades” que os uniriam
e, assim, reiterando as tensões étnicas resultantes do tráfico e dos casamentos endógamos. A
formação de famílias escravas permitiria a socialização dos africanos nas senzalas e
contribuiria para a estabilidade do plantei, com suas diferenças e conseqüente ampliação da
riqueza dos senhores, beneficiada pela reprodução das escravarias.
Autores como Slenes (1999), Sheila Faria, Stuart Schwartz, Silvia Brügger 10 e
também Florentino e Góes (1997) estenderam os laços de parentesco ao de compadrio. O
compadrio serviria como um elo de proteção estabelecido pelos escravos entre si ou com
outros setores sociais. Entretanto, não cabe aqui avançarmos nessa discussão do
apadrinhamento, uma vez que estaremos analisando apenas a família escrava nuclear: pai,
mãe e filhos.
Apesar da existência da família escrava ser um fato já comprovado e aceito pela
historiografia, o debate sobre a estabilidade da família escrava ainda não foi totalmente
superado. Ao contrário, Suely Queiroz, Jacob Gorender e outros autores ressaltaram as
dificuldades para a construção dos laços familiares no cativeiro e enfatizaram a
instabilidade dessas famílias, perpassadas pela ameaça da venda dos cônjuges e pela
promiscuidade.11

século XIX. Cadernos IFCH/UNlCÀMP, n. 17, 1985; e LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o
abastecimento da Corte na formação^ política do Brasil, 1802-1842. São Paulo: Símbolo, 1979. Ver também
GRAÇA FILHO, Afonso deAlencastro. A Princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais (São João
del-Rei, 1831-1888). São Paulo: Annablume, 2003.
10. FARIA, Sheila Siqueira de Castro. -Fámflia escrava e legitimidade: estratégias de preservação da autonomia.
Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 23, dez, 1992; SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes.
Bauru: Edusc, 2001; BRÜGGER, S. M. J. Minas patriarcal: família e sociedade (São João del-Rei, séculos
XVIIIE XIX). Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 2002. Para as discussões sobre o apadrinhamento de escravos,
ver também: BRÜGGER, S. M. J. “Legitimidade, casamento e relações ditas ilícitas em São João del-Rei
(1730-1850)”, in LIBBY, D. C. & PAIVA, C. A. (orgs.). 20 anos do Seminário sobre a Economia Mineira v. 2.
Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG, 2002.
11. QUEIRÓZ, Suely Robles Reis de. “Escravidão negra em debate”, in FREITAS, Marcos Cezar de (org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, pp 103-18; GORENDER, Jacob. A
escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.

44
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS

Para analisarmos a estabilidade da família escrava, procedemos ao estudo das


partilhas dos bens dos inventariados entre os herdeiros com o intuito de verificarmos se os
cônjuges e filhos eram mantidos unidos à família nuclear escrava pelos beneficiários dos
bens dos falecidos, ou se eram separados naquele momento da divisão da herança, sem
respeito aos laços conjugais construídos no cativeiro. Podemos adiantar que os nossos
resultados de pesquisa apontam para a consistência desses matrimônios, com a permanência
visivelmente majoritária dos casais após a divisão dos bens entre herdeiros.
Posicionando-nos de forma intermediária entre os que postulam a exclusividade do
tráfico negreiro ou da reprodução endógena 12 para a reposição da força de trabalho escrava
em Minas no período em tela, quantificaremos as nossas amostras dos plantéis de São José
avaliando a presença de nativos e de africanos. Da mesma forma, tentaremos separar os
africanos em grupos de nações, de acordo com a fonte, e os nativos em crioulos, cabras,
pardos e mulatos. A análise desses dados tem como objetivo perceber os momentos de
mudança no padrão de composição das escravarias e assim localizarmos os de maior
capacidade de renovação dos plantéis.
As características das posses de escravos na região também podem ser avaliadas
através dos inventários, mas esse fundo documental não possui uma representatividade
satisfatória para os que possuíam poucos bens ou estavam privados deles. 13 Tomando como
modelo as faixas de posses de escravarias trabalhadas por Douglas Libby e Clotilde Paiva, 14
os resultados são os seguintes: os donos de pequenos plantéis (até cinco escravos)
representavam 29,11% dos proprietários de escravos inventariados, mas detinham apenas
6,64% dos 7.002 cativos de nossa amostra de 525 inventários, com uma média de 3,16
escravos por plantei. As grandes posses (mais de trinta escravos) são raras, porém
significativas: 9,31% dos seus proprietários concentravam 34,33% do total dos escravos
inventariados, com a altíssima média de 51 seres por escravaria. Por outro lado, as
propriedades médio-pequenas, médias e médio-grandes

12. Os autores que defendem a idéia da reprodução da escravaria mineira através do tráfico atlântico são Robert
Slenes e Roberto Martins, nas obras já citadas. Francisco Vidal Luna e Wilson Cano (Economia escravista
em Minas Gerais. Cadernos IFCH/Unicamp, n. 10, out, 1983) postulam a reprodução endógena como fator
preponderante num quadro de decadência do Oitocentos em Minas. Preferimos a vertente defendida por
Libby e Paiva (1997), que trabalham com a hipótese conjunta de reprodução endógena e importação de
escravos. Ver também: PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. São
Paulo: USP/FFLCH, Tese de Doutorado, 1996.
13. Pode-se encontrar uma análise crítica sobre as deficiências dos inventários post-mortem como fonte histórica
em FRANK, Zephyr. Wealth Holding in Southeastem Brazil (1815-1860). Hispanic American Historical
Review, v. 85, n. 2, may, 2005, pp. 223-58.
14. LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1988. Ver também: Paiva, C. (1996); e Graça Filho (2003).

45
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

(de seis a trinta mancípios), que significavam 61,58% dos senhores de escravos,
englobavam a maior parcela dessa população, contando com 4.133 pessoas, ou seja, 59,03%
dos escravos, com a média de 13,29 cativos por plantei.
A estabilidade da família escrava
Até o momento, para a análise quantitativa dos casais escravos nos inventários post-
mortem da Vila de São José, entre 1743-1850, encontramos 745 escravos na condição civil
de casados. Esses cativos formam 362 casais nucleares, com ou sem filhos, dezenove
escravos casados sem referência ao cônjuge (ou este não se encontrava no plantei), 170
mães sem referência ao cônjuge, sete pais com filho(s) e sem a nomeação das esposas, um
viúvo, duas viúvas e 28 casos de filhos sem menção das mães nas escravarias (que poderiam
ser forras, falecidas ou pertencentes a outro senhor).
Para o acompanhamento das divisões dos casais entre herdeiros, algumas vezes
esbarramos com a ausência de informações ou a inexistência de autos de partilha, como no
caso de inventários em débito, embargados ou danificados. Ainda assim, foi possível a
reconstituição de um número significativo de divisões entre herdeiros referentes aos casais e
filhos inventariados. Por comparação, com o intuito de demonstrarmos a significância de
nossa amostragem, Florentino e Góes trabalharam com 374 inventários para áreas rurais
fluminenses de 1790 a 1830, compostos de 6.620 cativos, e encontraram 138 grupos
familiares, congregando 377 parentes. Na análise da partilha dos casais, perceberam que três
entre quatro famílias permaneciam unidas após a distribuição da herança. Nos momentos de
decréscimo do tráfico negreiro, período de 1790-1807, cerca de 75% das famílias
encabeçadas por crioulos mantinham-se unidas na divisão das heranças e as de maridos
africanos alcançaram o percentual de quase 90%. O incremento do tráfico, entre 1810-25,
reduziu esses percentuais para, respectivamente, 40 e 75% (Florentino & Góes, 1997:116-
7).
Para o caso dos 362 casais de cativos de S. José, apenas 34 foram separados, ou seja,
90,6% dos casais de cativos foram mantidos juntos no período total da amostra. Este dado
evidenciá^aT^grande preocupação dos senhores em respeitar a estabilidade dos laços
familiares construídos no cativeiro. Por ser quase uma regra a manutenção dos casais nos
cativeiro^ de São José, a comparação de percentuais nas variações de conjuntura do tráficd
nos parece irrisória, como pode ser percebida na tabela 2, que figura nas páginas seguintes.
A mesma preocupação não ocorria com o destino dos filhos, especialmente das mães
sem referência ao cônjuge. De 865 filhos arrolados nos inventários, cujas idades variavam
de recém-nascidos até os 24 anos, e que representavam 12,35% dos escravos, 375 foram
separados dos pais durante a partilha, o que significa 43,35% dos casos. Das 170 mães com
filhos, sem referência aos pais, 92 foram separadas da prole (54,12%).

46
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS

Apesar da separação dos filhos não ser predominante em termos relativos, era
significativa em relação ao percentual de casais que mantiveram sua integridade após a
partilha. Devemos também fazer a ressalva de que essas separações filiais diminuem
quando excluímos a prole já em idade ativa. Por exemplo, se considerarmos as separações
filiais ocorridas até a faixa etária de 15 anos, teremos 27,86% dos casos, conforme adiante
na tabela 3.
A existência daquelas mães sem cônjuges pode indicar a presença de uniões
consensuais, que hipoteticamente poderiam ter se originado com parceiros dentro do
mesmo plantei ou de outro senhor; ou ainda, de viuvez ou de cônjuge legítimo, forro ou
escravo, domiciliado fora das propriedades dos inventariados, caso quase excepcional,
como é sabido pela historiografia.15 É difícil especular sobre essa situação materna
enquanto a exploração de outras fontes, como os registros de batismo e casamento, ainda
não for possível e talvez derrame alguma luz sobre tais relações silenciadas pela pena dos
escrivãos.

Tabela 1. Escravarias e casais de escravos de S. José do Rio das Mortes

Escravos Casais*
Tamanho da escravaria % sobre o total de escravos % sobre o total de casais
<11 1517 21,66 53 14,64
11 a 20 1994 28,48 80 22,1
21 a 30 1087 15,52 37 10,22
>30 2404 34,33 192 53,04
Total 7002 100,0 362 100,0

Fonte: inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. *Estamos contabilizando
apenas os casais nos quais ambos os cônjuges aparecem nomeados claramente nos inventários.

As famílias escravas, assim como nos estudos de Slenes 16 e de Florentino e Góes


(1997), foram mais representativas nas médias e grandes fazendas, não deixando, no
entanto, de estarem presentes também em pequenos plantéis. 17

15. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998; Slenes (1999).
16. SLENES, Robert W. Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade
escrava (Campinas, século XIX). Estudos Econômicos, São Paulo, v. 17, n. 2, maio-ago, 1987.

17. Isto também é verificado para o distrito da Lage, pertencente ao município de São José, como demonstra
Maria L. R. C. Teixeira em sua dissertação de mestrado (Família escrava e riqueza na comarca do Rio das
Mortes: o distrito da Lage (1780-1850). Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 112): “(•••) mesmo com intensidade
menor, a reprodução natural esteve presente nos menores domicílios”.

47
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

As escravarias médias e grandes, na demografia histórica de Minas (Paiva, C., 1996;


Libby, 1988), podem ser definidas a partir do patamar de dez escravos em diante. O topo de
nossa amostra foi a ocorrência de um plantei de 116 cativos em 1830. 18Nas escravarias de
mais de dez cativos se encontravam 78,33% dos escravos de nossa amostra e 85,36 % dos
casais mencionados nos inventários. Apenas 6,64% (465 seres) habitavam nas escravarias
com até cinco cativos, onde apenas catorze casais de escravos foram inseridos. Na tabela 1,
a porcentagem de casais por número de escravos em cada uma das quatro faixas de tamanho
de plantei se situa entre 3,4% a 4,1%, e somente nas escravarias com mais de trinta escravos
se eleva para 7,99%.
A representati vidade do casamento entre a população de escravos inventariada para
as regiões fluminenses estudada por Florentino e Góes (1997: 92), variou no tempo (de
1790-1830) entre 35% a 25% do total dos cativos arrolados a partir da idade de quinze anos.
Nas listas nominativas de 1831-32, para os distritos rurais do município contíguo de São
João del-Rei, Silvia Brügger (2002: 276) encontrou a relação de 25,44% de cativos casados
e 45,02% de cativas casadas entre 4.586 escravos e 2.412 escravas com mais de doze anos,
o que indica uma presença razoável do matrimônio entre as escravarias da Comarca do Rio
das Mortes, considerando-se as dificuldades do desequilíbrio da razão entre os sexos,
especialmente entre africanos, o interdito de casamentos fora da escravaria de seus
senhores, conjugada à grande presença de pequenos proprietários. Em nossa pesquisa, as
porcentagens de matrimônios são semelhantes a estas. Os casados de ambos os sexos
representavam 29,4% de todos os escravos com idade declarada nos inventários acima dos
onze anos, ou seja, 2.537 pessoas, ou 33,45% de 2.227 cativos acima de quinze anos.
Os poucos casos de casais separados se distribuíram em onze ocorrências nos
plantéis com até dez cativos, dezesseis nos acima de dez até vinte cativos, dois entre 21 e
trinta cativos, e cinco nas escravarias superiores ao patamar de trinta mancípios.
Apesar da pequena incidência da separação de cônjuges escravos em S. José,
encontramos aqui o mesmo padr&p dos estudos já mencionados: o da maior instabilidade
para os casais nas pequenas é medias escravarias.
A distribuição dos casais no^empo revela que não há nenhuma discrepância visível
entre as décadas observadas quanto à existência de casais, como demonstra a tabela 2. 19
Todavia, no tocante à^eparação destes casais, as maiores ocorrências se registram nas
décadas de 1810 (24%) e 1840 (33%). Devemos ressaltar que os nossos dados para o último
decênio da pesquisa (1841-1850) são ainda pouco

18. Museu Regional de São João del-Rei. Inventário de D. Ana de Almeida e Silva, ano de 1830, cx. 313, na
fazenda Ribeirão de Sto. Antonio, Aplicação da Laje.
19. A variação fica entre 4,2l%e 6,91% de casais em relação ao número de escravos, sendo a média geral de
5,17%. Vide tabela 2.

48
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS

consistentes, pois a quantidade inventários que conseguimos utilizar é bem menor do que a
de anos anteriores. Sendo assim, só a conclusão do levantamento de inventários permitirá
saber se esses percentuais se mantêm estáveis ou são distorções derivadas dessa pequena
amostragem. De qualquer forma, insistimos que a pequena variação de separações toma essa
análise conjuntural pouco relevante.
De acordo com a bibliografia por nós utilizada, a década de 40 do século XIX
apresenta um alto nível de constituição de famílias escravas, tendo em vista a necessidade
de substituição dos escravos importados, pois desde a conjuntura dos anos 30 já se
prenunciava a extinção do tráfico atlântico (Florentino & Góes, 1997: 49; Brügger, 2002).
Para as duas primeiras décadas do Oitocentos, percebemos que a conjuntura econômica
parece ter sido desfavorável à importação de escravos, como pode ser visto na tabela 4,
quando a porcentagem de africanos em relação aos escravos nativos diminui e se recupera
nos anos 20 e 30. Ao contrário dos cativeiros fluminenses, os casais de escravos são-
joseenses decrescem neste momento de virada de século, em que a economia regional
parece apresentar uma queda em seu dinamismo. Esta hipótese explicaria o menor
percentual de constituição de casais e a maior separação de casais cativos no período. Vale
acrescentar que a maioria dos casais era formada com parceiros(as) africanos(as), seja
composto exclusivamente de africanos (44,2% de 310 casais com identificação étnica e de
cor) ou mistos (45,5%, idem) com um cônjuge africano. Isto pode ser visto na tabela 9, na
parte final deste texto. Os casais exclusivos de escravos nativos eram mais escassos e sua
incidência maior entre pequenos proprietários.

Tabela 2. Casais de escravos separados, por intervalo de tempo

Período Escravos r* Casais/escravos Ns casais Casais separados/ n9


Casais (%)
separado de casais (%)
1743-1800 3634 1644 4,51 s
16 9,76
1801-1810 1110 68 6,13 4 5,88
1811-1820 593 25 4,21 6 24,00
1821-1830 936 55 5,88 2 3,64
1831-1840 637 44 6,91 4 9,09
1841-1850 92 6 6,52 2 33,33
1743-1850 7002 362 5,17 34 9,39

Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN.

A situação contraditória entre o forte índice de preservação dos laços conjugais e o


de separação dos filhos na partilha dos bens toma-se mais paradoxal quando tomamos as
idades desses infantes desgarrados de seus pais. Considerando a idade

49
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

constante na data da inventariação dos bens, temos o seguinte quadro para os filhos
separados das mães:

Tabela 3. Filhos separados dos pais durante a partilha, com idade declarada (1743 -
1850)

2 9
Faixa N filhos N filhos separados Ns filhos separados % filhos separados/ total
etária (freqüência acumulada)
(freqüência (freqüência acumulada de filhos da amostra (n =
acumulada) 865)
<2 150 47 12,53 5,43
<6 334 136 36,27 15,72
<10 466 197 52,53 22,77
<16 560 241 64,27 27,86
<19 590 255 68,00 29,48
<25 605 263 70,13 30,40
Total* 865 375 100,0 43,35

Fonte: Inventáriospost-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. *Natotalização dos dados
foram acrescentados os casos de filhos que não conseguimos informações sobre a idade.

Podemos notar que 52,53% dos filhos separados estavam na faixa etária inferior a
dez anos. Portanto, a maioria dos filhos separados se encontrava em idade improdutiva, e
mais, 12,53% careciam de cuidados matemos. Acreditamos que boa parte desses casos se
resolveria dentro da lógica da exploração familiar presente nas unidades produtivas da
região, não ocorrendo uma separação real das famílias escravas. Isto por inferência das
informações disponíveis para o município vizinho de S. João Del Rei, onde a exploração
familiar foi comum nas unidades agrícolas (Graça Filho, 2003).20 Mas será preciso avançar
no conhecimento da estrutura organizacional das fazendas são-joseenses para
comprovarmos essa hipótese.
Essas porcentagens caem para 15,72% e 22,77%, respectivamente, quando nos
detemos na faixa de filhóTabaixo da idade ativa de seis ou dez anos, tomando como
referência o total de filhos da àmostra. Enquanto a proporção de filhos separados é de
31,33% no universo de crianças escravas na faixa de até dois anos, crescendo para 40,72%
na faixa até seis anrá, e tendo um pequeno acréscimo ao incorporarmos

20. Não podemos acreditar que essa separação se desse pela grande valorização das crianças em relação aos
casais. Isto porque os valores dos infantes sempre foram inferiores aos escravos adultos em idade produtiva
devido à mortalidade, bem como existia uma boa parcela de crianças em idade de aleitamento e pouco úteis a
qualquer trabalho, significando um custo imediato para os seus novos proprietários. Portanto, os dados
sugerem que a explicação deste fato precisa ser encontrada na organização funcional dessa sociedade.

50
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS

as proles com idade inferior aos dez anos, alcançando 42,27 dos infantes, ou seja, uma
adição de somente 1,55%. A maior proporcionalidade de separações nos primeiros anos de
vida, com um crescimento menor dessa tendência a partir dos dez anos, reafirma o que
apontamos e exige um melhor detalhamento dessas separações no interior das unidades
produtivas.
Grande parte dessas separações de filhos ocorreu na primeira década do século XIX,
em 36,27% dos casos (136 das 375 separações). Ao século XVIII pertencem 31,2%
daquelas separações de filhos, e a partir do ano de 1811 até 1850 a porcentagem restante é
de 32,53% dos casos. Novamente, podemos dizer que essa prática esteve em maior
evidência na passagem do século XVIII para o XIX, ao considerarmos a média de casos no
tempo.
O limiar do início do século XIX foi, para alguns historiadores, 21 um momento de
acomodação de Minas Gerais à economia de abastecimento, o que pressupõe uma maior
participação da reprodução endógena da mão-de-obra escrava, podendo explicar o
crescimento da participação do número de filhos pequenos nas escravarias e, por
conseguinte, o resultado encontrado.
Podemos tentar visualizar essas modificações acompanhando as escravarias no corte
temporal da pesquisa, através da origem de nascimento.

Tabela 4. Origem da escravaria dos inventários de S. José do Rio das Mortes


(1743-1850)

Período Africanos % de africanos no total de Nativos Total*


escravos de cada período
1743-1780 842 61,55 526 1.368
1781-1790 527 56,61 404 931
1791-1800 525 45,57 627 1.152
1801-1810 384 35,62 694 1.078
1811-1820 220 37,87 361 581
1821-1830 393 42,90 523 916
1831-1840 225 41,36 319 544
1841-1850 29 36,71 50 79
Total 3.145 47,30 3.504 6.649

Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. *0 número
total de escravos da tabela exclui 353 cativos para os quais não foi possível definir sua origem.

21. Libby (1988); ALMEIDA, C. M. C. de. Alterações nas unidades produtivas mineiras (Mariana, 1750-1850).
Niterói: UFF, Dissertação de Mestrado, 1994.

51
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Inicialmente, dividimos essa população em dois grandes grupos: o dos africanos e


dos nascidos no Brasil, onde agregamos os crioulos, pardos, cabras e mulatos. Pelo quadro
acima, notamos que a presença africana nas escravarias de S. José foi maior até as últimas
décadas do Setecentos. Os mesmos dados podem indicar a perda da capacidade de
importação de cativos pelo município no Oitocentos, quando a economia da mineração
praticamente se esgotara. No entanto, é nítida a continuidade do braço escravo africano na
lavoura são-joseense, embora inferior à população escrava nativa, quando se avança no
século XIX. A demonstração dessas informações por faixa etária produtiva pode referendar
essas observações, como veremos adiante.
Sabemos que pelo Rol de Confessados da Freguesia de S. José, de 1795, os africanos
ainda tinham uma presença majoritária de 60% entre a população escrava, ainda que
consideremos a exclusão dos infantes até sete anos por esse censo paroquial (Libby &
Paiva, 1997). João Fragoso22 também comprovou a grande entrada de escravos na província
mineira no período de 1824 a 1830, com a participação de 40,7% dos 145.158 escravos
saídos da Corte do Rio de Janeiro, havendo uma recuperação da presença africana em S.
José.

A REPRODUÇÃO DAS ESCRAVARIAS DE SÃO JOSÉ: TRÁFICO


OU REPRODUÇÃO ENDÓGENA?

Da amostra de 7.002 escravos distribuídos entre 525 proprietários dos


inventáriospost-mortem, não foi possível identificar a origem, se brasileira ou africana, de
353 cativos (5% do total). Abatida essa porcentagem, sobram 50% de brasileiros e 45% de
africanos. Inicialmente, para facilitar a comparação com outros estudos, podemos dividir o
período total de tempo abarcado pela pesquisa em decênios, desagregando os dados em
quatro subperíodos. O primeiro engloba 1743 a 1789, período no qual a mineração alcança
seu auge e entra em declínio (a partir da década de 1760). Em seguida, uma époc^aue já foi
chamada de “acomodação evolutiva” por Douglas Libby (1988), 23 compíreendendo os anos
entre 1790-1810, quando haveria uma transição entre a economia mihpradora e a economia
de abastecimento, que predominaria no século XIX. O terceiro subperíodo engloba os anos
1811a 1825, localizado numa fase “B” do ciclotle Kondratieff, de queda dos preços, que foi
vista como uma época de grande entrada de escravos pelo tráfico atlântico (Florentino &

22. FRAGOSO, João & FERREIRA, Roberto Guedes. “Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada. Os códices
390,421,424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte (1819-1833)”, in
BOTELHO, Tarcísio R. et al. (orgs.). História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-
MG, 2001, p.247.
23. Corroborado por Almeida (1994).

52
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS

Góes, 1997). Finalmente, os anos 1826-1850, marcados por uma conjuntura de pressão
inglesa contra o tráfico negreiro, resultando em leis, como as de 1831 e 1850, proibindo o
tráfico. Entre 1826 e 1830, a importação de africanos foi gigantesca, crescendo numa média
anual de 3,5% (37.200 africanos/ano). No qüinqüênio seguinte, a importação diminuiu
consideravelmente, para retomar fôlego daí em diante. Naquele período de expansão do
tráfico, de 1826-30, encontraríamos uma alta dos preços e uma busca maior por mulheres,
visando um aumento da reprodução natural. Essas hipóteses foram aventadas para o Rio de
Janeiro por Florentino e Góes (1997) e podem ser transpostas para o caso de São José.
Novamente, com o suporte dos números aqui apresentados, postulamos a
conjugação das duas hipóteses de reposição da escravaria de São José. Os números não
apresentam nenhuma discrepância exorbitante para desconsiderarmos qualquer das duas
formas mencionadas de aquisição da mão-de-obra cativa, mesmo com um predomínio em
números absolutos de brasileiros ou de africanos em alguns decênios na composição do
grupo em idade ativa. Pelos números da tabela 5, os africanos se caracterizavam pelas
faixas etárias típicas da população ativa e adulta. As compras mineiras de escravos exigiam
uma longa caminhada dos centros fornecedores até as propriedades senhoriais, o que quase
excluiria as crianças desse tráfico terrestre.

Tabela 5. Escravarias são-joseenses por faixas etárias e origem (1743-1850)

Faixas etárias Até 10 anos 11-15 anos 16-45 anos > 45 anos >45 anos
Períodos AF BR 2 AF BR 2 AF BR 2 AF BR 2 AF BR 2
1843-1800 1 190 191 4 54 58 226 141 367 141 18 159 372 403 775
1801-1810 239 239 1 73 74 74 151 225 41 17 58 116 480 596
1811-1820 1 123 124 6 44 50 113 146 259 80 33 113 200 346 546
1821-1830 4 175 179 20 50 70 258 224 482 90 51 141 372 500 872
1831-1840 - 92 92 12 39 51 175 131 306 23 39 62 210 301 511
1841-1850 - 13 13 - 7 7 21 23 44 5 6 11 26 49 75
Total 6 832 838 43 267 310 867 816 1683 380 164 544 1296 2079 3375

Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. * Só foram
considerados na tabela os escravos com idade declarada nos inventários.

Por outro lado, a predominância dos escravos nativos sobre os africanos na soma da
população cativa, a partir do início do Oitocentos, e a significativa presença de crianças
nascidas na região, até a idade de quinze anos, revelam a possibilidade da reprodução
endógena como mecanismo de reposição de parte da força de trabalho, ainda que
encontremos parcela majoritária de africanos nas faixas etárias produtivas pelos inventários
do Setecentos e das décadas de 1820 e 1830, momento de retomada do tráfico para a região.
Lembrando que os inventários post-mortem revelam as

53
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

escravarias no momento do falecimento dos senhores, e que suas importações de escravos


poderiam ter acontecido bem antes dessa data, particularmente na década de 1810 -
conforme indica Douglas Libby24 -, mas se mostra mais definida a partir da década 1820. A
amostragem dos infantes africanos (faixa de 11-15 anos) também permite localizar uma
tendência de renovação dos plantéis, por importação da mão- de-obra, naqueles dois
decênios.25
Pelo quadro acima, 61,58% dos escravos na faixa ativa (de 16-45 anos) até 1800
eram africanos, e na década seguinte ficaram reduzidos a 32,89% dos escravos dessa mesma
faixa etária, quando 80,54% de todos os escravos identificados eram nativos. A recuperação
das importações de africanos se dá a partir da segunda década do século XIX em diante,
tomando a cair na década de 1840, com a ressalva de que as informações de que dispomos
para esse período ainda são incipientes em nossa pesquisa.
A grande presença de nativos nas escravarias das primeiras décadas do século
XIX e a retomada das importações de escravos nas décadas seguintes nos levam a supor
que o período do final do Setecentos e início do Oitocentos foi de transformações, com o
arrefecimento da economia de S. José, que em seguida caminhou na direção de uma maior
inserção na economia mercantil de abastecimento, reativando a sua capacidade produtiva.
Consideraremos agora as etnias africanas que compõem a nossa amostragem. Antes,
porém, devemos ressaltar a dificuldade de se trabalhar com essa nomenclatura. Na verdade,
as designações não correspondem exatamente às etnias africanas, mas sim aos portos de
embarque na África, conforme nos informa Libby. 26 Ainda assim, devemos entender que
essa classificação adotada na Colônia tentava distinguir as identidades dos grupos de
africanos na homogeneidade do cativeiro. Dessa forma é que Mary Karasch (2000a)
compreende o uso destas etnias, como princípios

24. Essas constatações se harmonizam còm a cronologia da importação de escravos para a região desenvolvida
por Douglas Libby com basfe nos registros paroquiais de batismos. Ver: LIBBY, Douglas C. “O tráfico
negreiro e as populações escravas das Minas Gerais (c.1720-c.1850)’\ Comunicação apresentada no 2006
Meeting of the^Latin American Studies Association, San Juan, Puerto Rico, March 15-18, 2006.

2 5. KARASCH, Mary ‘“Minha nação’: identidades escravas no fim do Brasil colonial”, in SILVA, Maria Beatriz
Nizza da (org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000a, p. 130. Uma
discussão sobre as variações de etnias nas comarcas mineiras pode ser vista em GONÇALVES, Andréa
Lisly. “Escravidão, herança ibérica e africana e as técnicas de mineração em Minas Gerais no século
XVIII”, in Anais do XI Seminário sobre Economia Mineira. Belo Horizonte: Cedeplar/ UFMG, 2004.

26. LIBBY, Douglas C. As populações escravas das Minas setecentistas: um balanço preliminar mimeo, p. 25.

54
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS

organizadores de um sentido de comunidade aos que eram assim classificados. Mariza de


Carvalho Soares sugere o uso do termo “grupos de procedência” ao invés de etnias. As
designações de etnias eram criadas conforme o discernimento das autoridades do Império
português, e podiam variar regionalmente e no tempo. Por exemplo, o grupos dos minas da
Bahia não seria idênticos aos minas do Rio de Janeiro ou Minas. 27 Diante dessas
dificuldades, resolvemos nos ater à nomenclatura que encontramos nos documentos.
Adotando a separação por região de procedência na África utilizada por Libby 28 e
Karasch,29 agrupamos os grupos da tabela 6 em uma nova tabela, para percebermos de qual
região africana provinha a maior parte dos escravos são-joseenses. Benguelas, ganguelas,
angolas, cabindas, cassanges, rebolos e congos são referentes à África Centro-Oeste. Os
minas representam a maior população da parte ocidental, e os moçambiques, do oriente.
Seguindo a tabela 7, observamos que a importação de escravos africanos para São
José é predominantemente realizada na África Centro-Oeste. Dessa região provinham 82,1
% dos escravos africanos, contra apenas 8,19% da África Ocidental e 1,08% da África
Oriental.

Tabela 6. Sexo* e etnias africanas por período de tempo

Etnias Angola Benguela Ganguela Cabinda Cassange Congo Mina Moçambique Rebolo Outros**

Penodo H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M
1743- 337 47 386 44 20 2 12 - 9 1 97 4 145 47 6 35 - 111 12
1789
1790- 138 17 360 85 49 5 28 3 22 - 57 7 27 13 2 - 62 17 60 4
1810
1811- 57 11 137 50 12 4 11 1 6 3 28 6 3 3 1 - 22 9 18 3
1825
1826- 25 6 114 43 5 4 35 7 12 1 75 14 17 23 2 27 8 51 12
1850
TOTAL 557 81 997 222 86 15 86 11 49 5 257 31 192 63 32 2 146 34 240 31

Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de Sâo João del-Rei, IPHAN.
*Na tabela, H representa homens e M, mulheres.
“Foram incluídos na categoria “outros” os grupos de menor expressão nas escravarias são-joseenses, como cabo verde, cura e outros, bem
como os escravos africanos sem especificação de nação.

27. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 114-
27.
28. As populações escravas..., mimeo.
29. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras,
2000b, p. 97.

55
nr

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Tabela 7. Origem regional de africanos por período de tempo*

Períodos África Ocidental África Centro-Oeste África Oriental Total

1743-1789 194 994 6 1.317


1790-1810 40 850 2 956
1811-1825 6 357 1 385
1826-1850 17 376 25 481
Total 257 2.577 34 3.139
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. * Consideramos
as etnias agrupadas na tabela 6, com a exclusão da categoria “outros”.

Segundo Libby,30 até 1730 predominava a entrada de escravos minas na capitania


mineira. Estes desembarcavam em Salvador e de lá eram transferidos para a Comarca do
Rio das Mortes. Apesar de nossa amostragem ter início em 1743, a presença dessa etnia
continua a ser significativa no século XVIII, onde estão localizados 75,5% de todos os
minas de nossos inventários, e se destacam como o terceiro maior contingente de africanos
ao lado dos benguelas, angolas, congos e rebolos. Também é a partir de 1730 que passam a
predominar os escravos de origem centro-ocidental vindos do porto do Rio de Janeiro.
Quanto aos escravos do oriente africano, os moçambiques, são muito reduzidos no
XVIII e no início do XIX, só apresentando um número significativo de 1826 em diante,
acompanhando a mesma dinâmica que essa etnia teve nos embarques do Rio de Janeiro
(Karasch, 2000a e 2000b).
Com base no que foi dito até aqui, percebemos que a reprodução da escravaria de
São José Del Rei entre 1740 e 1850 foi realizada na conjugação da importação de africanos,
especialmente da África Centro-Oeste, com a reprodução endógena, tendo em vista o
crescimento dos escravos nativos a partir do século XIX.
Entre os escravos nativos, a predominância é dos crioulos, que compõem 79% da
amostra, como vemos^Bàixo:

Tabela 8. Origem'racial dos escravos nativos

Tipo racial* Crioulo Cabra Pardo Mulato Total

Sexo H H M H M H M H M
M f
1743-1850 1447 1292 113 103 204 171 68 69 1832 1635
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. Só foram
considerados os escravos com designação de origem de cor ou naturalidade, excluindo-se 37 escravos da amostra.

s
wr

R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS

A composição sexual desse contingente de escravos é mais equilibrada em relação ao


dos africanos, entre os quais os homens predominavam largamente em todas as etnias. Essa
presença francamente majoritária de homens entre os africanos fazia com que a reprodução
das escravarias dependesse em boa parte dos casamentos mistos, e nos faz pensar numa
certa dificuldade existente para os casamentos entre nativos, particularmente no limiar do
Oitocentos, com a queda das importações de africanos, quando deveriam ter se expandido.
A organização dos casais escravos por origem e etnias revela esta mestiçagem entre
africanos e nativos, ao mesmo tempo, apresenta uma tendência de casamentos endógenos
entre africanos, especialmente entre os benguelas (de 12,58% dos 310 casais).
Desses 310 casais que conseguimos as informações sobre a origem dos cônjuges,
44,2% são casamentos entre africanos, 45,5 são mistos de africanos com nativos, e apenas
10,3% se deram entre pares nativos. Somente 48 matrimônios foram contraídos dentro de
uma única etnia africana (35% dos casais africanos), sendo 39 dos casos entre benguelas
(81,25% do total desses casais endogâmicos), o que demonstra uma forte identidade cultural
entre parceiros dessa etnia, apesar de serem predominantes no quadro das nações africanas.
Segundo Robert Slenes (1999:53), as várias etnias da África Centro-Ocidental, do
grupo banto, compartilhavam significativas semelhanças lingüísticas e cosmológicas que
permitiram que seus membros, já na viagem forçada para o Brasil, constituíssem relações
pessoais que seriam continuadas nas escravarias do Sudeste brasileiro, principal região de
destino.31
A maior mestiçagem entre africanos e nativos, representada pelo número de casais
mistos, se dá em dois momentos no quadro acima, no declínio da mineração e na retomada
das importações de africanos a partir da década de 1820. Parece-nos, respectivamente, que,
num momento, a queda das importações estimulou a mestiçagem, e, noutro, mesmo
decaindo o número de casais, a chegada de africanos favoreceu a reprodução natural através
dos casamentos mistos ou de africanos, especialmente nas médias e grandes escravarias.
Com o impedimento de casamentos interpropriedades, a possibilidade de casamentos
mistos atenuaria a desproporção entre os sexos sempre presente na população cativa
africana, bem como as dificuldades dos laços parentais que poderiam inibir a escolha de
parceiros de igual origem por parte dos escravos nativos de um mesmo plantei para que
pudesse ser consagrada pela Igreja. 32

31. Ver também: SLENES, Robert. “Malungo! Ngoma Vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista da USP, São
Paulo, n. 12, 1991-92.
32. A doutrina católica proibia as uniões entre parentes até o terceiro grau, embora pudesse haver a dispensa para o
casamento entre primos, padrinhos e afilhados. Ver: Faria (1998: 59). Algumas etnias africanas também proibiam o
casamento entre primos-irmãos. Cf. Gutman (1976).

57
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Tabela 9. Casais de escravos por origens e etnias (1743-1850) (Total de 745 escravos
casados)
Períodos Casais de Casais %de Casais de Casais %de Casais Casais %de Total Total
mistos
africanos de Casais nativos de Casais mistos Casais (Freqüência de
(Freqüência africanos de (Freqüência nativo de (Freqüência mistos acumulada casais
acumulada africanos acumulada s nativos acumulada
1743-1789 35 35 46,0 5 5 6,6 36 36 47,4 76 76
1790-1810 88 53 41,1 20 15 11,6 97 61 47,3 205 129
1811-1825 114 28 60,5 24 4 9,3 110 13 30,2 248 43
1826-1850 137 23 -37,1 32 8 12,9 141 31 50,0 310 62
Total 137 137 44,2 32 32 10,3 141 141 45,5 310 310

Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. Foram excluídas 125
pessoas sem informações sobre as etnias ou origem dos cônjuges. Dentre eles, cinco mencionam cônjuges em outras escravarias, e catorze
deles não mencionam os parceiros.

De forma oposta, o número significativo de casamentos entre africanos revela, pela


desproporção do elemento feminino, uma escolha difícil e fortemente guiada por afinidades
culturais.

CONCLUSÕES

Ao demonstrarmos a estabilidade dos casais escravos em S. José do Rio das Mortes,


num índice elevado de permanência do núcleo familiar após a partilha dos bens
inventariados, nos deparamos com a situação aparentemente “paradoxal” da separação dos
filhos em quase a metade dos casos, especialmente durante a infância. Somos, desta forma,
obrigados a reconhecer a necessidade do estudo da organização familiar das fazendas e
unidades produtivas da região. Para isso, seria necessário cruzar os dados disponíveis nos
inventários com as listas nominativas e registros de batismos e casamentos da Freguesia de
São José dei Rei, para que possamos entender melhor a formação das redes de parentesco e
compadrio, que poderiam ajudar na elucidação das separações de filhos escravos em idade
imprópria para a exploração do trabalho.
A análise da participaçãcfciaà principais nações e etnias africanas nos plantéis de
São José nos demonstrou a interação*,entre a importação de africanos e a reprodução
endógena nas médias e grandes fazendas, apontando para a mestiçagem dos plantéis, bem
como para uma resistência culturaldos africanos nas alianças matrimoniais endógenas.
De imediato, podemos finalizar ressaltando a correlação entre a presença de
africanos nas escravarias são-joseenses, e a dinâmica econômica que parece indicar o
período final do século XVIII e início do XIX como momento de “acomodação evolutiva” e
de transformação da economia do ouro.
O diálogo desses resultados com os que deverão ser apresentados pelas demais
pesquisas em curso, dirigidas pelo Centro de Estudos Mineiros sobre a mesma região,
deverão nos dar um quadro mais aprofundado desses problemas.

58
PRÁTICAS DE ALFORRIAS NAS AMÉRICAS: DOIS ESTUDOS DE CASO EM

PERSPECTIVA COMPARADA

Andréa Lisly Gonçalves1

INTRODUÇÃO

Ao elaborar o seu programa de uma “história comparada das sociedades européias”,


Marc Bloc ressaltou a importância de se “estudar paralelamente sociedades ao mesmo
tempo vizinhas e contemporâneas, constantemente influenciadas umas pelas outras”. O
comparatismo, porém, e apesar da vantagem real que representa ao “reduzir insularidades”,
assumiu na historiografia, ao contrário do que se observou na sociologia, um papel bastante
modesto. Mesmo assim, quando formulado com sucesso, permitiu “testar o valor das
explicações propostas” e obrigou “a uma escritura mais analítica”, conforme observação de
Heinz-Gerhard Haupt.2
A reconstituição de alguns aspectos da prática de alforrias em sociedades “vizinhas e
contemporâneas”, proposta neste trabalho, visa apreender não apenas os aspectos comuns
dessa prática na história da escravidão moderna, mas também realçar as especificidades que
tomaram o comportamento das manumissões, nos diferentes contextos, irredutíveis a um
único esquema explicativo.
A partir de pesquisa historiográfica e em fontes documentais primárias - essas
últimas, sobretudo, para o Brasil - serão abordadas, inicialmente, as práticas de manumissão
na capital peruana, Lima, um enclave escravista em um contexto mais geral, onde as formas
de trabalho, ainda que compulsórias, não se identificavam à

1. Professora adjunta do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto.


2. HAUPT, Heinz-Gerhard. “O lento surgimento de uma história comparada”, in BAUTIER, Jean & JULIA,
Dominique (orgs.). Passados recompostos: campos e canteiros da história. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1998, pp.
205-16.
[T
~

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

escravidão. Aescolha sejustifica-ainda que apráticade alforrias não seja um fenômeno


decorrente apenas de fatores demográficos - porque naquela cidade, no ano de 1622,
concentravam-se 22 mil escravos dos 30 mil que foram enviados, a partir do tráfico
internacional, para o Vice-Reino do Peru.
Em seguida, serão considerados aspectos da prática de alforrias na Comarca de Ouro
Preto, Minas Gerais, a maior província escravista do Brasil imperial. Ao aproximar
experiências históricas tão distintas, pretende-se, dentre outros aspectos, ressaltar o fato de
que as alforrias, elemento indissociável das complexas e multifacetadas relações entre
senhores e escravos, correspondiam não a uma mera concessão, como fazia supor uma
“leitura senhorial” do processo que transformava escravos em libertos, mas a um longo e
tortuoso caminho de negociações e de resistência no qual homens e mulheres sujeitos ao
cativeiro mobilizavam os mais diferentes recursos societários, políticos e simbólicos.

ASPECTOS DA ESCRAVIDÃO E MANUMISSÕES NA AMÉRICA


ESPANHOLA
Inseridas em um contexto mais geral, em que predominavam formações históricas
nas quais o trabalhador, ainda que submetido a formas compulsórias de extração do sobre-
trabalho, não constituía, ele próprio, uma mercadoria, as áreas escravistas na América
hispânica não passaram, para boa parte dos analistas, de enclaves, em geral representados
por unidadesplantacionistas,3 diretamente voltadas para o comércio exterior.
Ainda que não se encontrasse ausente em algumas áreas de extração do metal
argentífero, o trabalho escravo africano representou nessas regiões apenas um fenômeno
residual.4 Fatores como a existência de um estoque de mão-de-obra submetida a várias
modalidades de trabalho compulsório, desde o período anterior à conquista, bem como a
dependência da metrópole espanhola em relação a outras potências no tocante ao tráfico de
escravo^africanos, 5 explicariam, pelo menos parcialmente, a \
3. “Los ingenios de azúcar se basaban, g» cambio [das áreas de extração da prata}, sobre todo en la esclavitud
negra.” Cf. SEMO, Enrique. História dei capitalismo en México. México: Era, 1985, p. 204.
4. ROMANO, Ruggiero. Mecanismos da conquista colonial: os conquistadores. São Paulo: Perspectiva, 1973, pp.
101-2.
5. A Coroa espanhola exercia apenas indiretamente o monopólio do tráfico de escravos africanos para suas
possessões na América. Através do sistema de asiento, Castela cedia o direito de abastecimento de mão-de-
obra africana para suas áreas coloniais às nações que controlavam as praças abastecedoras no continente
africano, num sistema de restrição e monopólio que resultava na elevação dos preços dos cativos. Cf.
CASTILHO, G Céspedes dei. “La sociedade Americana en los siglos XVI e XVII”, in VIVES, Vicens J.
(org.). História de Espana y América. Barcelona: Editorial Vicens Vives, 1974, p.

60
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS

não disseminação do trabalho escravo africano principalmente nas atividades de extração e


beneficiamento da prata. Já nos trabalhos de mineração do ouro, de expressão bem mais
reduzida no conjunto das atividades extrativas minerais da América hispânica, predominava
a exploração da mão-de-obra escrava.6
As avaliações sobre o contingente de escravos deslocados da África para as índias de
Castela, no entanto, na ausência de estatísticas mais seguras, parecem, como vem
demonstrando estudos mais recentes, ter sido subestimadas. Já nas primeiras décadas do
século XVI, algumas áreas da América hispânica constituíam o principal destino dos
africanos escravizados, traficados por portugueses, 7 nem sempre com o consentimento legal
da própria metrópole espanhola.8
A precariedade dos registros que, de acordo com John H. Franklin e Alfred A. Moss
Jr., deve-se, em boa parte, à sonegação fiscal cometida por vários proprietários, não
significa que eles inexistam. Sabe-se que a mão-de-obra escrava concentrava-se no Vice-
Reino da Nova Granada (atualmente Panamá, Colômbia, Venezuela e Equador) e era
proveniente dos portos de reexportação localizados nas costas do Caribe. Os dados, muito
provavelmente subestimados, pelo motivo anteriormente assinalado, só se encontram
disponíveis para o ano de 1810, e são os que se seguem:

500. Pedro Puntoni, em A mísera sorte: a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico
sul (1621-1648) (São Paulo: Hucitec, 1999, p. 191), observa que: “Os asientos foram suspensos em dois
momentos: durante os anos 1540-86 e 1640-62”, ambos relacionados aos desdobramentos da União Ibérica.
Nestas conjunturas, o abastecimento de escravos para as possessões espanholas era feito sem os acordos legais
consubstanciados nos asientos, sobretudo por nações como a Holanda.

6. BARGALLÓ, Modesto. La mineria y la metalurgia en la America Espanola durante la Epoca colonial. México:
Fondo de Cultura Econômica, 1955, p. 300.
7. A princípio, os africanos cativos eram levados por portugueses até Sevilha ou algum outro importante
entreposto castelhano, de onde eram reexportados para a América. Mas, segundo Saunders, já a partir de 1530,
“D. João III decide, todavia, encurtar a viagem aos escravos (e desta forma diminuir a mortalidade ocorrida no
mar alto), acedendo a que eles fossem mandados diretamente para o Novo Mundo a partir das ilhas de Cabo
Verde e de São Tomé”. Cf. SAUNDERS, A. C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal
(1441-1555). Lisboa: Imprensa Nacional, 1994, p. 51.
8. “Em 1559, Duarte Nunez de Leão dizia que em cada ano saíam de Portugal, quer para os reinos de Espanha,
quer para as ‘índias de Castela grandes quantidades de escravaria’, a fim de trabalharem nas minas e nos
engenhos de açúcar. A zona algarvia transformou-se num dos mais importantes entrepostos de escravos com
destino a Espanha, em especial Sevilha que, a partir da segunda metade do século XVI, se transformou no
grande mercado espanhol de negros. Rapidamente, porém, este mercado mostrou- se incapaz de atender às
constantes solicitações de suprimento de negros para os domínios da América espanhola, verdadeiros
sorvedouros de mão-de-obra escrava”. Cf. PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das consciências: a
escravatura na Época Moderna. Lisboa: Edições Colibri, 1995, pp. 51-2. Muito provavelmente, as minas a que a
autora se refere são as de minério aurífero, uma vez que, a partir de 1545, com a descoberta do Serro Potossí, a
base da organização do trabalho no altiplano Peru-boliviano constituiu-se, ainda que não apenas, como se verá,
predominantemente de indígenas transmigrados.

61
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

População negra e mestiça (escrava e livre) no Vice-Reino da Nova Granada (1810)

Panamá e Colômbia Venezuela Equador

Negros e mulatos 210.000 493.000 50.000


(escravos e livres)
População total 1.400.000 900.000 600.000
Fonte: FRANKLEN, John Hope & MOSS JR., Alfred A. From slavery tofreedom: a history ofAfrican Amerícans. New
York: McGraw-Hill, 1994, p. 50.

Os dados relativos ao Vice-Reino do Peru, que serão tratados em outra seção deste
artigo, e para o Uruguai e Argentina, reforçam a afirmação de que a escravidão negra na
América hispânica foi mais abrangente do que se supunha até bem pouco tempo.
Tanto Montevidéu quanto Bueno Aires foram dois dos principais portos de entrada
de escravos africanos durante o período colonial. Estima-se que em 1805, cerca de 2.500
escravos eram importados anualmente na região do Rio da Prata. Em 1803, o contingente de
negros de Montevidéu ultrapassava 1.040 escravos para uma população de 4.726 habitantes.
Há indícios, em função da existência de sete associações comunitárias que reuniam negros,
em 1827, de que a população negra também fora expressiva em Buenos Aires. Em ambos os
casos, supõem-se que a população negra e mestiça foi absorvida pela maciça imigração
européia para a região, ocorrida no século passado (Franklin & Moss Jr., 1994).

ALFORRIAS EM LIMA

Em seu estudo sobre família e trabalho escravo em Lima, Christine Hünefeldt,


mesmo admitindo que nas áreas mineradoras e de haciendas prevaleciam formas diversas de
trabalho compulspfta indígena, não hesita em afirmar que o estudo da escravidão na capital
peruana represepta “uma faceta adicional no mosaico de pesquisas sobre os diferentes
sistemas escraviâtas”.9 A autora não se detém na explicação dos motivos que levaram à
adoção da njão-de-obra escrava africana em Lima, em contraste com o sistema
predominante no restante do Peru, baseado na larga utilização do

9. HÜNEFELDT, Christine. Paying the Price of Freedom: Family and Labor among Lima’s Slaves (1800-1854).
Califórnia: University of Califórnia Press, 1994, p. 2. As traduções do inglês para o português foram feitas por
mim.

62
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS

trabalho indígena.10 No entanto, não deixa dúvidas de que o caso limenho seria uma variante
de um mesmo sistema escravista, não obstante as suas inequívocas particularidades frente às
demais formações escravistas da América.
Mas a inequívoca predominância da mão-de-obra indígena não deve obscurecer o
fato de que desde o início da colonização o tráfico de escravos para as colônias espanholas
da América do Sul dirigia-se, em boa proporção, para o Peru (Franklin & Moss Jr., 1994:
51). Tanto é assim que, após 1535, em função da demanda exercida pela conquista do Peru,
a quase totalidade dos 2 mil escravos oriundos da Alta Guiné foram exportados por Portugal
para a Espanha, e, de lá, para o Novo Mundo (Saunders, 1994:54).
A capital, Lima, se destacou não apenas por concentrar significativos contingentes de
trabalhadores cativos, que eram explorados nas mais diversas atividades, mas também por
funcionar como um mercado de escravos no qual se abasteciam os plantadores das diversas
regiões andinas. Em 1622, conforme mencionado, Lima contava com cerca de 67% dos 30
mil negros que habitavam o Peru (Franklin & Moss Jr., 1994: 51).
As estimativas mais austeras sobre o tráfico internacional de escravos para o Vice-
Reino do Peru acentuam que apenas uma pequena parcela dos cerca de um milhão e meio de
africanos que aportaram nas colônias espanholas entre os séculos XVI e XIX se dirigiram
para aquele vice-reino. Algo em tomo de cem mil escravos teriam sido direcionados para a
região, sobretudo a partir de 1750, como resultado do fim do monopólio comercial de
Castela- o que incluía o tráfico de escravos - sendo que 40% estiveram radicados em Lima.
Certamente estes números só levam em conta os escravos vindos diretamente da
África, quando se sabe que muitos dos escravos residentes em Lima provinham de
reexportações do Panamá ou de Cartagena. Apesar das dificuldades de se precisar o número
exato de negros na capital do Vice-Reino do Peru, os dados oficiais apontam que 25% da
população de Lima, em 1791, eram constituídos por negros (Franklin & Moss Jr., 1994:51).
Naquela cidade, a escravidão africana não foi um fenômeno exclusivamente urbano.
Ela esteve marcada pela articulação direta que se estabelecia entre a capital e seu entorno
formado por haciendas que, até meados do século, tinham sua produção, ou pelo menos parte
dela, voltada para o comércio exterior (Hünefeldt, 1994:15).

10. É curioso notar que os escravos africanos foram utilizados na extração de metal argentífero na Nova
Espanha, o mesmo não tendo sido registrado para o Peru: “No obstante, permanecia aún en las minas, en
parte considerable, el trabajo forzado ya sea como esclavos negros, especialmente en los valles de Colombia
y en Nueva Esparía, o con el regime de ‘tandas’ en Nueva Espanha y de ‘mitas’ en el Perú”. Cf. Bargalló
(1955: 235).

63
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Até a abolição do trabalho escravo, em 1854, a população cativa em Lima


apresentou um acentuado decréscimo, variando de 8.589, em 1818, a 4.500 cativos, em
1845.
A prática de alforrias na capital do antigo vice-reinado, ao longo da primeira metade
do século XIX, esteve nitidamente associada às possibilidades de constituição de famílias
escravas e aos vínculos que elas lograram estabelecer entre as haciendas que circundavam
Lima e a sua área propriamente citadina. Papel não menos importante parece ter sido o
desempenhado pela rede de vizinhança estabelecida entre libertos, escravos empregados em
atividades de serviços, mestiços, indígenas, cimarrones, logicamente potencializada pelo
contexto urbano que facultava aos recém egressos do cativeiro o acesso às possibilidades,
ainda que escassas, de subsistência.
Não restam dúvidas de que as variações na conjuntura também influíram na prática
de manumissões, ainda que, ao que parece, de maneira menos decisiva do que os arranjos
cotidianos estabelecidos entre senhores e escravos e suas extensas redes de ligação.
Evidenciam isto os parcos resultados práticos observados com a reiteração, no ano de 1812,
pela constituição liberal de Cádiz, da Cédula Real de 1789 que integrava o conjunto de
medidas estabelecidas pelas Reformas Bourbônicas, que afetavam diretamente as
possessões espanholas. A não ser no caso dos escravos que dispusessem de maiores
recursos, não apenas econômicos, mas, sobretudo, e mais uma vez, comunitários, e que
reunissem condições suficientes para o acesso aos tribunais, determinações como a garantia
da alforria para o escravo que denunciasse seu senhor por conspirar contra a Coroa ou a
punição dos senhores que dispensassem castigos excessivos a seus cativos permaneceram
letra morta.
Impacto maior sobre as manumissões talvez tenha sido o desencadeado pelos
acontecimentos relacionados à Guerra de Independência, que no Peru estendeu-se de 1820 a
1825. Menos, porém, do que pelo peso da efetivação das promessas de alforria feitas aos
escravos que se alistassem nas milícias da diferentes facções em conflito, que ao fim das
batalhas se revelaram falsas, do que pela inegável independência assimilada pelos
milicianos escráv^s, sobretudo pelo contato com o ideário liberal que agitou principalmente
as liderançak urbanas anticolonialistas. O final da guerra correspondeu também aos
propósitos dos proprietários de escravos de Lima de reforçarem as relações de dominação
escravistas, abaladas pelos sucessos da guerra civil, num movimento em que já não se
distinguia bem o ideário daqueles que recentemente haviam integrado as hostes liberais dos
partidários da restauração.
A decisão de conceder a alforria a um escravo permaneceu, também em Lima, e a
exemplo do que se observou nas demais formações escravistas, como uma prerrogativa do
proprietário. A autorização do senhor continuava sendo indispensável, inclusive nos casos
das alforrias pagas, nas quais o escravo tinha seu preço fixado por um avaliador. O que não
significa dizer que o processo não estivesse, na prática,

64
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS

sujeito a uma série de interferências ditadas, sobretudo, pelo maior ou menor poder de
pressão do próprio escravo.
As formas que muitos escravos limenhos encontraram para desafiar a leitura da
concessão da manumissão como decisão exclusiva do senhor variaram da negociação em
termos da diminuição dos preços arbitrados para a compra da alforria, passando pela fuga
seguida da tentativa do estabelecimento de negociações com o proprietário visando a
obtenção da manumissão em termos mais favoráveis ao escravo, até ao acionamento de
meios legais. No último caso, foram instituídos, exclusivamente para esta fim, tribunais,
onde se tentavam resolver, sobretudo, aqueles casos nos quais litigavam senhores e
possíveis libertos, estes últimos tentando impedir as ameaças de reescravização intentadas
por pretensos proprietários ou seus herdeiros.
As estratégias familiares adotadas para a obtenção da alforria eram regidas não
apenas pela lógica da disponibilidade de recursos ou de sua multiplicação, ainda que esses
fossem fatores decisivos, mas também por razões de cunho pessoal ou afetivo relacionadas
às condições impostas por um sistema de domínio exercido de forma privada.
A íntima ligação entre as haciendas e o centro urbano concorria para tomar a
manumissão da mulher uma prioridade no interior da própria família escrava.
Primordialmente porque cabia a ela, na maior parte dos casos, o cultivo dos lotes cedidos
pelo proprietário no interior da propriedade, uma vez que a demanda pelo braço masculino,
ainda que não exclusivamente, continuava como característica das formas extensivas de
cultivo, predominantes nestas unidades produtivas." O desempenho dessas atividades de
subsistência forçava a escrava ao estabelecimento de relações mais estreitas com o centro
urbano, onde se verificava a comercialização da produção dos lotes que excedia o consumo
dos membros da família, descontada também a parcela que era vendida ao proprietário da
hacienda.
Levando-se em conta uma racionalidade essencialmente econômica, a manumissão
da mulher escrava poderia significar, num prazo mais longo, a possibilidade de conquistar a
alforria para os demais membros da família, sobretudo pela maior facilidade que ela
encontrava em se estabelecer no pequeno comércio urbano.

11. De modo semelhante ao que se observou no Brasil, também em Lima os arranjos familiares facilitavam o
acesso do escravo a determinados bens, com destaque para os lotes de terra no interior da propriedade
plantacionista onde se desenvolvia uma produção de autoconsumo ou mercantil de subsistência. A
importância desse tipo de produção voltada para o mercado interno pode ser atestada, no caso específico da
capital peruana, pela paulatina reorientação da produção agroexportadora das haciendas para a produção
voltada para o mercado interno, ao longo da primeira metade do século XIX, a ponto de rivalizar com o que
era produzido na gleba de cultivo próprio dos cativos, com conseqüências diretas sobre a crise do trabalho
escravo em Lima. O processo se acentua quando se afirma a extração e exportação do fertilizante natural, o
guano, que responderá pelo grosso das exportações peruanas a partir de então.

65
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Excetuados o transporte de cargas, que requeria o emprego de força física, e o


desempenho de tarefas mais especializadas, como as exigidas aos artífices, as mulheres
dominavam as feiras locais, suprindo as unidades domésticas do necessário à subsistência.
Era desta atividade que, na maioria dos casos, provinha o pecúlio necessário à compra da
alforria dos demais membros da família.
Christine Hünefeldt, na obra que serve de base a esta rápida reconstituição dos
mecanismos que regiam o processo de manumissão em Lima, constrói, a partir de
inventários e de ações civis e criminais, o que se poderia chamar de um “modelo”, quase um
tipo ideal, que descreveria a experiência de muitas famílias limenhas na trajetória seguida
desde o cativeiro até a alforria.
Na maioria dos casos, a alforria dos filhos se colocava na prioridade inversa à
dispensada à manumissão da mãe escrava. Quando crianças, as despesas realizadas para sua
subsistência representariam gastos que, no mínimo, comprometeriam a integralização do
recurso necessário à compra da alforria de algum membro da família. No mesmo sentido, a
opção pela alforria da prole poderia comprometer até mesmo as possibilidades de satisfazer
as necessidades básicas essenciais à sobrevivência dos filhos.
Este era também o raciocínio do proprietário para o qual a realidade das altas taxas
de morbidade entre os cativos nascituros era mais um argumento poderoso que influía na
decisão de vendê-los, ainda que por preços aviltados, àqueles que, impedidos de participar
do circuito do tráfico internacional de escravos, se viam compelidos a arcar com os riscos
implícitos na subsistência da criança cativa. Para o senhor, uma outra razão que poderia
pesar na decisão da venda do escravo recém-nascido seria o de afastar os inconvenientes de
uma possível paternidade difícil de ser ocultada, ou que lhe fosse imputada de alguma
forma.
Assim que o escravo chegava à idade produtiva, no entanto, passava a atingir um
preço - sempre superior no caso dos escravos de sexo masculino - que tomava cada vez mais
remota a possibilidade de compra de sua alforria pelos pais, que, a partir de então, e quando
muifo, poderiam arcar com apenas uma parcela da quantia exigida para a manumissão. V
Um outro motivo, sem dúvidfa, pesava na disposição da família escrava de alforriar,
prioritariamente, a mã^: a premissa, observada em diversas formações escravistas, de que o
parto seguia o ventre, ou seja, a condição do filho definia-se a partir da condição da sua
genitora.
Tais argumentos são válidos, é óbvio, para o caso das alforrias pagas, que, em Lima,
representaram algo em tomo de 67% das manumissões efetivadas entre os anos de 1830 e
1850.
O predomínio de mulheres alforriadas, seja gratuitamente, seja de forma onerosa,
segue o padrão observado para a concessão de alforrias na maioria das

66
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS

formações escravistas do Novo Mundo. As restrições ao tráfico, adotadas a partir da


decretação do fim do comércio internacional de escravos para as possessões da América
hispânica em 1808, condicionaram o declínio do comércio pela rota do Panamá, logo
substituída pelo porto de Buenos Aires no suprimento de escravos africanos para as
haciendas e o centro urbano de Lima. No entanto, como foi observado inicialmente, o
declínio da população escrava nas haciendas sugere que a participação no tráfico deve ter
declinado ao longo do período antes mesmo da sua supressão definitiva.
Se, à semelhança do que se verificou nos demais contextos escravistas, ao declínio
do tráfico observou-se o crescimento da população de escravos crioulos, 12 então o que
ocorre em Lima é a diminuição relativa das mulheres no interior da população forra, o que
talvez refletisse a valorização da reprodução interna da população cativa, o que pode ter se
expressado na elevação do preço da escrava em relação ao do escravo, com influência
negativa sobre o número de manumissões femininas.
Identificar as estratégias adotadas pelos escravos no sentido de viabilizar a sua
manumissão, seja através da mobilização de recursos como a constituição de famílias, ou de
forrar o ventre, significa, antes de tudo, atribuir um sentido à prática da alforrias que
ultrapassa a sua interpretação enquanto uma concessão dadivosa e unilateral tomada ao
exclusivo talante do proprietário. As intrincadas negociações que se verificaram entre
senhores e escravos com vistas ao estabelecimento da alforria acabavam por se refletir,
limitando, no direito de propriedade que o senhor exercia sobre seus cativos.
De outra forma, como interpretar, por exemplo, iniciativas como a daqueles escravos
que, errando pelas ruas de Lima, interpelavam os passantes sobre a possibilidade de
tomarem-no como cativo adiantando ao senhor a quantia de sua alforria, quantia essa que
seria restituída ao comprador “à prestação” ao longo de anos de trabalho, findos os quais o
cativo receberia a tão almejada liberdade?
Pelo menos no contexto urbano de Lima, a luta pela conquista da alforria, ao
mobilizar uma extensa rede comunitária, possibilitava que a experiência transcendesse a
condição de mera estratégia individual para se tomar uma prática que socializava um
determinado segmento social, forjando laços de solidariedade e uma identificação de grupo.
Tais laços se mostrariam essenciais no enfrentamento das dificuldades resultantes da
instabilidade típica vivenciadapelo segmento de ex-cativos. Afinal, não teriam sido raros os
casos de ex-escravos que, mesmo portando suas cartas de alforria, acabavam confinados,
pela ação de alguma autoridade policial, nas tecelagens ou padarias públicas sob a acusação
de se encontrarem fugidos. Situações como estas

12. Desta forma, a distribuição entre os sexos no interior do plantei deve ter caminhado da proporção de três
homens para cada duas mulheres, no período 1792-1813, para uma crescente situação de equilíbrio.

67
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

apontam, ainda, para a reiteração da situação de instabilidade social a que estavam sujeitas
as camadas de libertos nas diversas formações escravistas.
A alta incidência de alforrias em Lima, cujo impacto demográfico alcançou tal
magnitude a ponto de tomai' residual a escravidão na capital peruana e em seu entorno,
representou a possibilidade de abolição gradual, e com a contrapartida da indenização aos
proprietários - financiada pelos próprios escravos que conquistavam a liberdade através da
compra - da escravidão na região.
O estudo do comportamento das manumissões na sociedade escravista de Lima da
primeira metade do século XIX auxilia na compreensão do fenômeno mais amplo das
alforrias no sistema escravista moderno. Para tanto, há que se ficar atento para as suas
particularidades muitas vezes ditadas pelas especificidades das estruturas sociais e
econômicas, bem como da história da região.
Por fim, o que parece decisivo ao entendimento da prática de alforrias em Lima é a
explicitação do fato de que a escravidão africana não foi, nem de longe, a forma
predominante de organização do trabalho no Peru, o que significa levar em conta fatores
como a inexistência de um poderoso setor social de traficantes de escravos, bem como a
ausência de uma classe dominante com interesses essencialmente escravistas capaz de
recorrer a expedientes que ultrapassassem o domínio estritamente privado dos senhores no
governo de seus escravos. Neste sentido, a afirmação de que a desconcentração da
propriedade escrava tenderia a fortalecer o domínio dos proprietários, uma vez que a
instituição contaria com o apoio de parcelas numericamente significativas da população,
não parece ser válida para o caso limenho. Ali, a pequena concentração da propriedade
escrava, em um contexto no qual a escravidão não era dominante, teria gerado situações em
que aos senhores se tomava cada vez mais difícil impedir determinadas áreas de autonomia
aos cativos, como a possibilidade de troca de senhor, ou de se deslocar até a capital
passando de escravo do eito para escravo de ganho.

ALFORRIAS NÍV‘COMARCA DE OURO PRETO

As cartas de alforria, ou “papéis de liberdade”, 13 registrados nos Livros de Notas do


Tabelião, constituíram^ documentação básica a partir da qual se buscou reconstituir alguns
aspectos da prática de manumissões em Minas provincial. Procurou-

13. Papel de liberdade teria o mesmo significado que carta de alforria. Curiosamente, nem todos os
contemporâneos do processo que se pretende reconstituir estavam seguros quanto ao termo que deveriam
empregar para nomear um documento desse tipo: “Saibam quantos este Publico Instrumento de papel de
Alforria e Liberdade ou como em Direito melhor nome tenha...” (PAPEL de alforria e liberdade de Maria,
crioula, apresentada por Maria Ribeira, de Nação Mina, em Vila Rica, 5 jun 1802.

68
I

P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS

se recuperar aqui os dados de todas as cartas preservadas nos arquivos cartorários dos
Termos de Mariana e Ouro Preto para o período compreendido entre 1808 e 1870, num total
de 1.874 papéis de liberdade. Através do emprego de métodos quantitativos, pretendeu-se
estabelecer o ritmo das manumissões ao longo dos anos, considerando, sempre que
possível, as variações determinadas pelas mudanças conjunturais, com destaque para o
período de cessação do tráfico internacional atlântico a partir de 1850.
Ao longo de todo o período em análise (1808-1870), houve predomínio do registro
de alforrias femininas. A abolição do tráfico, em 1850, não alterou essa situação. Assim, se
entre 1808 e 1850, em um contexto em que eram altas as taxas de masculinidade, 55,3%
dos alforriados eram mulheres, nos anos intermediários, entre 1851 e 1870, essa
porcentagem não apresentava variação significativa, ficando em 55,6%.14
As considerações feitas não levam em conta, no entanto, a ativa migração que se
verificaria entre o segmento de forros de Minas Gerais, num movimento que privilegiava a
população masculina.15 Não há como se certificar se, na opção pelo registro da carta de
alforria, o liberto do sexo masculino o faria no local onde servira como escravo, ou poderia
fazê-lo na região para a qual se deslocara em busca de melhores condições de
sobrevivência. Porém, há que se levar em conta também que a intensa mobilização de
população registrada para as áreas mineradoras tenderia a se arrefecer, tomando-se um
fenômeno adstrito ao século XVIII e aos anos iniciais dos Oitocentos, prevalecendo uma
certa sedentariedade, sobretudo com a afirmação das atividades agropastoris. A
predominância das mulheres entre os forros não deixou de ser um dado observável até
mesmo após a estabilização da economia, caracterizada, inclusive, para a Comarca de Ouro
Preto, como mercantil de subsistência.

Ouro Preto, Arquivo da Casa do Pilar, livro 175, folha 68); ou “Saibam quantos este Publico Instrumento de
lançamento de carta de liberdade ou como em Direito melhor nome tenha...” (CARTA de liberdade
apresentada por Mathias Peixoto de Sá, pardo, passada por Manoel Peixoto de Sá e outros herdeiros de D.
Joana Gertrudes de Campos, em Vila Rica, 28 maio 1804. Ouro Preto, Arquivo da Casa do Pilar, livro 176,
folha 1).
14. Nos limites deste trabalho, optei por não reproduzir, de forma pormenorizada, os dados processados a partir
das informações extraídas da documentação. Sobre o assunto, conferir minha tese de doutorado: As margens
da liberdade: práticas de alforria em Minas colonial eprovincial. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH,
2000.
15. “A região de minas era particularmente pouco propícia ao casamento, não só de escravos como também de
livres. O fluxo crescente e contínuo, até mesmo em inícios do século XIX, impedia o estabelecimento de
relações mais estáveis. Cidades ou vilas interioranas, portanto, também eram lugares de poucos casamentos
entre escravos, independente da região, mas com taxas nunca tão baixas quanto as portuárias e,
principalmente, mineradoras.” FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no
cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 325-6.

69
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Ainda que a proporção entre alforrias condicionais e incondicionais tenha variado ao


longo do tempo, as alforrias condicionais sempre preponderaram sobre as gratuitas ou
incondicionais, correspondendo essas, com algumas variações, a cerca de 60% das alforrias.
Feita tal constatação, optei por apresentar alguns dados relativos a cada uma dessas
modalidades de alforria condicional.

I. AS ALFORRIAS CONDICIONAIS

Uma das primeiras dificuldades enfrentada pelo estudioso do tema das manumissões
é exatamente a de classificar as diversas modalidades de alforrias condicionais que
emergem da documentação. Talvez pelo motivo de se definirem no âmbito privado das
relações escravistas, os termos que aparecem nos papéis de liberdade estão longe de
apresentarem um padrão único. Em outras palavras, pode-se afirmar que a compreensão que
os coevos deixaram transparecer na documentação sobre as diferentes condições a que
estivera submetida a maioria dos libertandos no caminho em direção à obtenção da alforria
está longe de ser unívoca.
Ainda que sujeitas aos prejuízos advindos da criação de categorias fixas, foram
delimitadas, dentre as fontes consultadas, quatro tipos de condicionalidade: as formas
parceladas de pagamento, denominadas no próprio documento como “coartação”; a
“prestação de serviços”; o pagamento feito à vista pelo próprio manumisso, designada como
“autopagamento”; o pagamento realizado “por terceiros” e a resultante de troca de cativos.
Há que ressaltar que, em muitos casos, as condições anteriormente especificadas poderiam
vir combinadas.

1.1. LIBERDADE “A CRÉDITO”

Definida como uma forma de manumissão na qual a quantia exigida pelo


proprietário em troca da liberdade era saldada em parcelas,16 e apontada como prática
comum no século XVIII minéiro , a incidência das coartações sobre o total de alforrias
registradas segue sendo significativ^, ao que tudo indica, também, ao longo do século

>

16. Sobre o tema ver: SCHWARTZ, Stuart. A manumissão dos escravos no Brasil colonial (Bahia, 1684- 1745).
Anais de História, Assis, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ano VI, pp. 71-114.
17. A esse respeito ver: MELLO E SOUZA, Laura de. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século
XVIU. Belo Horizonte: Humanitas, 1999; PAIVA, Eduardo F. Escravos e libertos nas Minas Gerais do
séculoXVIII: estratégias de resistência através de testamentos. São Paulo: Annablume, 1995.

70
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS

XIX em Minas Gerais. 18 Prova disso, é a existência de Livros de Notas destinados ao


registro exclusivo de papéis de liberdade e coartação. 19
Além de demonstrar a persistência de aquisição da alforria sob a forma de
pagamento parcelado, o registro constante no cabeçalho dos livros notariais aponta para a
necessidade dos senhores de se cercarem de garantias no sentido do cumprimento do acordo
estabelecido com o escravo que passa então a ser portador de uma “carta de corte”.
Das 1892 cartas de alforrias registradas, 202 referem-se a coartados. Mas esse
número distribui-se irregularmente ao longo dos anos. Assim, verifica-se que, para o
período 1808-1870, 10% das alforrias referiam-se a coartações, sendo razoavelmente
grande a variação desta proporção: o período 1848-1852 não apresenta coartações,
enquanto em alguns, como 1840, as coartações representam 23,1% dos registros de cartas
de alforria.

1.2 “ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE”: ALFORRIAS CONDICIONAIS POR


PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Certamente, é na definição da categoria “prestação de serviços”, 20 na qual se
enquadra a maioria das alforrias condicionais registradas na Comarca de Ouro Preto entre
1808 e 1870, que as dificuldades se apresentam de maneira mais nítida. 21 O principal
complicador provém do fato de que, apesar de condicional, ela apresenta elementos que a
aproximam das alforrias gratuitas, uma vez que não implicaria, em princípio, em qualquer
ônus de natureza monetária. Na maioria dos casos, o gozo da alforria ficava condicionado à
continuidade da prestação de serviços ao senhor até a morte deste, numa situação em que o
destino do alforriando ficava à mercê da fatalidade.

18. Sobre os diversos tipos de alforria na província de Minas Gerais, ver: Gonçalves (2000: 200-8).
19. É o caso do Livro 8, onde se lê: “Este Livro Há de servir como de Notas do 2 o Tabelião para lançar papeis de
coartamentos, liberdade e outros quais. Mariana, 20 de julho de 1819”, 2 o Ofício, ACSM.
O termo aparece, na documentação, ora como “coartamento”, ora como “coartação”, ainda que o primeiro
seja mais comum.
20. O termo adotado aparece em vários papéis de manumissão, como o de Nicolau crioulo, que ficava forro “em
condição de prestar serviços por tempo de dois anos”. Papel de liberdade passado por Ana Rosa de São
José. Livro 10, folha 67,2o Ofício. São José de Barra Longa, ACSM, 21 set 1832.
21. Essa modalidade de alforria se aproxima bastante daquela que predominou, no século XIX, nas áreas urbanas
do estado norte-americano de Maryland, sobretudo em Baltimore, onde era designada como “escravidão a
termo”. O curioso é que naquela região institui-se um movimentado mercado de forros a termo, o que não
parece ter se observado aqui. Cf. WHITMAN, Stephen. Diverse good causes: manumission and the
transformation of urban slavery. Social Science History, Minnesota, Duke University Press, v. 19, n. 3, 1995,
p. 351.of urban slavery. Social Science History, Minnesota, Duke University Press, v. 19, n. 3, 1995, p. 351.

71
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Porém, a natureza monetária dessa modalidade de alforria poderia se manifestar, por


exemplo, naqueles casos em que o beneficiado fosse um escravo especializado que
recebesse uma remuneração regular pelo desempenho de seu ofício, trabalhando por conta
própria ou para terceiros. Nesse caso, a prestação de serviços teria um significado bastante
diferente daquelas situações nas quais a obrigação recaísse sobre um escravo doméstico.
Dentre as modalidades de alforria condicionais, a de prestação de serviços era a mais
comum, representando de 52% a 77,3% das manumissões obtidas ao longo do período. Nem
sempre esse tipo de alforria esteve identificado à prestação de serviços de natureza
doméstica. Nesse sentido parece plausível supor, ainda que a documentação não ofereça
dados mais precisos, que a contrapartida do alforriando nessas condições estaria dada, para
além do estreitamento dos laços com o senhor, pela elevação dos ônus, inclusive
financeiros, a que ficaria sujeito a partir da concessão da alforria.
Outras vezes, à obrigação de prestação de serviço vinha se somar o pagamento de
uma quantia em dinheiro, o que poderia sugerir tanto um arranjo que levasse em conta as
condições financeiras do escravo que não lograra reunir a soma total que lhe daria o acesso à
sua liberdade,22 quanto a tentativa do ex-senhor de assegurar algum tipo de ascendência
sobre o liberto, mantendo-o sob sua órbita na condição de agregado ou dependente,
aprofundando assim os vínculos de domínio pessoal.
Talvez seja nas alforrias com a condição de prestação de serviços que se revele com
maior clareza um dos principais significados, ou resultados, da política de manumissões: a
“produção de dependentes”. Não seria por acaso que a alforria em massa, sob a condição de
que os escravos permanecessem junto a seus senhores até a morte desse, ou por um número
determinado de anos, constituísse em uma das propostas defendidas por alguns setores como
solução para os problemas de mão-de- obra, quando a crise do sistema escravista já dava
sinais claros de agravamento.23

\
>

22. Situação semelhante é revelada pela carta de liberdade do escravo Manoel de Nação Benguela, na qual a
proprietária declara: “Recebi certa quantia e suposto não chegue todo o importe de seu valor contudo por
minha morte o deixo forro sendo porém como digo obrigado a me servir enquanto eu viva for”. Carta de
alforria passada por Ana Maria da Silva. Livro 7, folha 37v., 2 o Ofício. Mariana, 31 jul 1816, ACSM.

23. Relatório que à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou no ato de abertura de sessão ordinária
de 1870 o vice-presidente Dr. Agostinho José Ferreira Bretãs. Ouro Preto: Tipografia Provincial, 1870, pp. 14-5.

72
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS

1.3 ESCRAVOS ALFORRIADOS PORAUTOCOMPRA E POR


PAGAMENTO DE TERCEIROS
Para efeitos de classificação, a modalidade de alforria condicional designada como
“autocompra” compreende as manumissões onerosas saldadas à vista pelo próprio escravo.
O total de escravos alforriados por autocompra foi de 249, correspondendo a cerca de
13,3% do total das alforrias do período.
A distinção entre o autopagamento e aquele feito por pessoa outra que não o
beneficiário direto da manumissão (“pagamento por terceiros”), por sua vez, parece- me
importante por, pelo menos, dois motivos. O primeiro, pelo que o procedimento tem de
revelador sobre os laços comunitários, ou familiares, que permitiam que escravos se
apropriassem de recursos monetários, seja sob a forma de empréstimos ou de doações, estas
últimas certamente fruto de relações de parentesco.
A influência dos laços de parentesco por compadrio, um dos mais importantes
vínculos familiares não-consangüíneos, sobre a prática de alforrias, não cessava no
momento do batismo. Afastada a possibilidade de que um escravo crioulo viesse a ser
batizado em idade adulta, determinadas conveniências levariam o padrinho a alforriai* um
afilhado quando este já se encontrasse próximo até mesmo de atingir uma idade menos
produtiva, como se pode verificar a partir de alguns casos registrados na documentação.
O segundo, pelo fato de que, ficando caracterizado, como é possível depreender- se
de vários documentos, que o empréstimo partia de um agente interessado em usufruir o
trabalho do liberto, delineava-se assim uma forma específica de obtenção de mão-de-obra
que se distanciava do aluguel apenas pelo lado do alforriando. Em outros termos, da mesma
forma que no sistema de aluguel, o adiantamento do valor exigido para a compra de alforria
de um escravo poderia solucionar o problema de mão-de-obra daqueles empreendedores
que, por razões diversas, optavam por explorar temporariamente o trabalhador cativo,
aproveitando-lhes os anos de maior produtividade com a vantagem adicional de ter
assegurado um certo reconhecimento por parte do libertando, o que conferiria alguma
estabilidade à relação.
Da parte do escravo que se encontrava em uma situação de transição como esta, o
sistema apresentava uma vantagem nítida em relação ao contrato de aluguel estabelecido
entre senhores, uma vez que ao fim de alguns anos ele teria assegurado o direito à alforria.
Certamente, os escravos que exerciam algum ofício sem dúvida foram os mais beneficiados
por situações deste tipo.

73
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

1.4 MANUMISSÕES RESULTANTES DA TROCA DE CATIVOS

Algumas alforrias foram resultado de um tipo particular de troca em que a


contrapartida oferecida pelo libertando era a sua substituição por um outro escravo. 24
Que razões levariam um proprietário a aceitar, como forma de pagamento de alforria,
um escravo em substituição a outro? Se a resposta parece óbvia e consiste na suposição de
que a troca seria vantajosa, por exemplo, porque o escravo substituto apresentaria melhores
condições físicas do que o titular, ainda assim permanece a questão dos motivos que
levariam a troca a assumir essa forma e não uma expressão monetária. Afinal, restará
sempre por responder por que o proprietário preferiu a intermediação de um seu cativo no
mercado de escravos a exigir do interessado o valor em moeda que lhe permitisse participar
diretamente na aquisição de um outro mancípio.
Um outro tipo de substituição poderia resultar em alforria. Trata-se daquelas
situações em que o forro irá ocupar o lugar de alguém convocado para o serviço militar.
Minas Gerais teria sido, juntamente com São Paulo, a província do Império que teve
menor participação no recrutamento militar, numa situação que não se altera até mesmo
quando o Ministério da Guerra passou a fixar quotas a serem preenchidas por cada uma das
províncias. Minas escudava-se na lei que isentava os trabalhadores rurais do serviço nas
tropas, afirmando-se enquanto província essencialmente agrícola. 25
Naqueles casos, porém, nos quais não era possível evadir-se, uma das alternativas
encontradas por alguns mineiros foi a de se fazer substituir por um ex- escravo, alforriado
exatamente para esse fim.
A extensão dos danos causados pelo recrutamento militar no conjunto da sociedade
colonial e imperial, largamente apontada pela historiografia, sugere que a prática de
apresentar um escravo em seu lugar, por ocasião do alistamento, poderia ser um
procedimento relativamente comum entre os proprietários, não fosse o fato de que o
recrutamento atingia, rrí^joritariamente, as camadas mais pobres da

>

24. As alforrias resultantes da troca de cativos, para efeito de quantificação, foram registradas juntamente com as
alforrias por autocompra. Sem dúvida, essa categoria não contempla, satisfatoriamente, aqueles casos em que
a manumissão é concedida para que o liberto assuma o lugar de alguém recrutado pelo serviço militar. Sobre
o tema ver: GONÇALVES, Andréa Lisly. “Alforrias resultantes da troca de cativos (Comarca de Ouro Preto,
século XIX)”, in GONÇALVES, Andréa Lisly & POLITO, Ronald (orgs.). Termo de Mariana: história e
documentação. Ouro Preto: UFOP, v. 2, pp. 47-55.
25. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte agrário e o Império (1871-1889). Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 33.

74
I

P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS

população.26 No caso específico de Minas Gerais, a sua “inaptidão” para o serviço militar
deve ter limitado ainda mais o número de situações deste tipo, ainda que alguns casos,
como o de Marciano, se encontrem registrados.

REFLEXÕES FINAIS

Apesar de as informações aqui reunidas serem insuficientes para que se efetue


qualquer procedimento identificado a uma história comparada - ainda que mais não seja
pela disparidade entre os dados reunidos para cada um dos contextos abordados eles
permitem que se considere a prática de alforrias a partir de algumas variáveis que parecem
comuns: a preponderância do sexo feminino sobre o masculino entre os alforriados; o
predomínio das alforrias condicionais sobre as gratuitas. Sobressai-se das experiências a
variedade dos expedientes concertados no processo de alforria. Ainda que os arranjos sejam
diferenciados de acordo com o contexto (apesar dos vários pontos que os aproximam), deles
se depreende que a conquista da liberdade era o resultado de longos processos de
negociação, pressões e conflitos que marcaram a atuação de africanos escravizados e
crioulos e suas relações com seus proprietários. Apesar de a intervenção do poder público
ter se mostrado limitada, até mesmo no contexto limenho, onde se estabeleceram tribunais
que pretendiam regulamentar prática de alforrias, a afirmação, de resto correta, de que o
exercício de poder no sistema escravista se dava no âmbito privado, não significava que o
domínio do senhor fosse infenso às pressões que partiam das senzalas

26. PRADO JR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1979. De acordo com Maria
Cristina Cortez Wissenbach: “Se ao longo do período colonial o recrutamento para tropas constituiu o maior
espantalho de populações livres, a fuga ao alistamento intensificou-se na sociedade do Império (...).
Associado à truculência dos agentes recrutadores, para os quais ‘não havia hora ou lugar que lhes fosse
defeso’, esse temor levava, ao menor sinal, a população a desertar os lugares habitados, indo refugiar-se no
mato. Também nas cidades encontravam-se os mesmos indícios”. Cf. WISSENBACH, Maria Cristina C.
Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850/1888). São Paulo: Hucitec/Programa de
História Social-USP, 1998, p. 57.

75
\
>

i.
CATIVOS DA ARTE, ARTÍFICES DA LIBERDADE:
A PARTICIPAÇÃO DE ESCRAVOS ESPECIALIZADOS NO BARROCO MINEIRO

Camila Fernanda Guimarães Santiago1

Desde que a História ampliou suas fontes e objetos, desvencilhando-se do cárcere


textual e eventual, as imagens apresentam-se como promissor campo de investigação.
Usando formas e cores como artifícios de sedução, elas despertam no historiador o desejo
de questioná-las, entendê-las. Faz-se necessário o estreitamento do diálogo com outras
áreas do conhecimento, em especial a História da Arte, tradicionalmente preocupada em
tratar as manifestações artísticas na duração. Tais intercursos teóricos são fundamentais
para que os historiadores possam lapidar seus instrumentos metodológicos de estudo das
imagens.
Mas como compreender historicamente as imagens, as obras de arte? Como imiscuí-
las no tempo em que foram confeccionadas, nas conformações coletivas das quais faziam
parte? Não há respostas prontas para as perguntas. Cada pesquisa traceja os vínculos
explicativos entre as formas artísticas em foco e o entorno delas. Conclusões simplistas,
que as considerem expressões ou sintomas da época, devem ser cuidadosamente avaliadas,
pois, muitas vezes, são frutos de arquiteturas imaginativas dos estudiosos, ansiosos por
perceberem os fragmentos do passado integrando-se e significando-se, reciprocamente,
com harmonia. Não raramente, partem da perigosa idéia de contexto histórico, arcabouço
obstinado em coadunar elementos da vida social, econômica, política e religiosa de outrora.
Caberia assim, ao historiador desavisado, apenas encaixar as peças artísticas no quadro
previamente construído.

1. Professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Doutoranda no Programa de Pós-graduação em


História da Universidade Federal de Minas Gerais.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Outra forma de entendimento, também discutível, refere-se à resignada concepção da arte


como autônoma, desconectada, em essência significativa, do ambiente que a criou,
relacionando-se apenas com sua ensimesmada trajetória pretérita, numa diacronia endógena.
Esses questionamentos renovam-se ao refletirmos sobre o barroco/rococó produzido
no século XVIII e início do XIX nas Minas Gerais. É preciso perscrutar a historicidade das
manifestações tendo em vista seu momento criador, marcado pela insinuação do catolicismo
reformado, pela ausência de ordens religiosas, por conglomerados urbanos, por intenso
calendário festivo e vários outros fatores. Isso não significa submetê-las a tais aspectos
previamente conhecidos, o que poderia emudecê-las na sua potência em apontar novas
interpretações possíveis para a época.
Com o objetivo de agregar subsídios para verticalizações mais maduras sobre as
relações entre as imagens e seu tempo, o presente texto ilumina faceta muito mencionada
mas pouco analisada da produção mineira setecentista e oitocentista: a participação de
escravos especializados-pintores, entalhadores, carpinteiros e outros
- nos trabalhos, arrematados por seus donos, de edificação e decoração de capelas e igrejas.
Acredito que somente através de estudos dessa natureza, que objetivem melhor conhecer as
relações sociais estabelecidas no e através do fazer artístico, será possível avaliar com maior
solidez as oportunidades vivenciadas pelos cativos de imprimirem nos monumentos traços
de seus universos culturais - técnicas, preferências cromáticas, temáticas, concepções de
espaço pictórico, conhecimentos de materiais, pigmentos - agindo, assim, como mediadores
culturais e contribuindo para criações mestiças.
Entendo este trabalho como prudente etapa reflexiva rumo a conclusões mais
contundentes acerca dos hibridismos culturais, pois uma obra mestiça não é produto
necessário de um meio marcado pela mestiçagem biológica, mas da articulação de
fragmentos culturais de diversas procedências, mais ou menos próximos no seu interior. É
imprescindível, àqueles que pretendem estudá-la, amplo conhecimento dos universos
dialogicamente integrados para^slumbrar as potencialidades de cada um em contribuir para
a mistura, seja através'de técnicas, de formas ou símbolos. Elementos esses apropriados e
ressignificados no seio do elo que os integra, não devendo ser vistos como puros, originais,
mas historicamente híbridos, em tal ou qual aspecto. Renovados, por fim, na tensão
estabelecida com os demais no bojo da criação mestiça, ficando a leitura aberta às
capacidades interpretativas dos observadores.
Começo, portanto, a tecer delicada teia entre as imagens e outras dimensões do
vivido, indagando sobre as mediações que levariam, ou não, certo tipo de organização do
trabalho a interferir nas formas dos monumentos. As fontes consultadas sugerem que o
aprendizado e o exercício de uma arte ou ofício disponibilizaram, para alguns escravos, vias
de mobilidade social coroadas, por vezes, com a alforria ou a coartação, o que será também
discutido.

78
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE

ESCRAVOS ARTISTAS E OFICIAIS: ATUAÇÃO, INSERÇÃO E


MOBILIDADE SOCIAL
Há um debate sobre terem sido pintores e entalhadores, nas Minas da Colônia,
considerados oficiais mecânicos ou artistas. Muitos autores acreditam numa certa
indistinção entre ofícios mecânicos e artes figurativas no período. 2 Na Europa, desde o
Renascimento, pintores e escultores alcançaram dignidade conferida antes apenas aos que
se dedicavam às artes liberais. 3 O novo estatuto eximiu-os da pecha de trabalhadores
manuais e desvencilhou-os da regulamentação das corporações de ofícios. Em Lisboa e
Porto, os pintores da técnica a óleo adquiriram no século XVII o mesmo privilégio (Araújo,
2003:20).
A questão complexifica-se uma vez que todo oficial mecânico gozava de autonomia
maior na capitania mineira, onde as corporações, efetivamente, inexistiram ou foram muito
fracas. Era função das Câmaras tentar normalizar a capacidade dos profissionais, mediante
os exames e, através dos regimentos, os preços cobrados. 4 Pintores e entalhadores pouco se
submeteram ao controle dos Concelhos, o que é indício de sua diferenciação. 5 Decerto que
precedências entre artes e ofícios não serão desvendadas apenas considerando prerrogativas
estabelecidas além-mar; mas mediante confronto das regras com os papéis sociais e os
privilégios conquistados pelos trabalhadores na lida diária. Talvez, nas Minas, tais índices
nem permeassem o sistema de categorizações socialmente forjado. Como já mencionado,
contemplarei a participação dos escravos dos artistas e dos oficiais em atividades ligadas à
construção e decoração dos templos, sejam elas vistas como mecânicas ou artísticas.
Preferirei, no caso de pintura e entalhe, o termo arte e, para seus realizadores, artistas. Para
as demais tarefas pertinentes - carpintaria, marcenaria, construção, etc. - utilizarei o termo
ofícios mecânicos. A palavra artífice será usada para ambas as atividades. Essa

2. BOSCH1, Caio César. O barroco mineiro: artes e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1988. pp. 15-6; ARAÚJO,
Jeaneth Xavier. Para a decência do culto de Deus: artes e ofícios na Vila Rica setecentista. Belo Horizonte:
UFMG/FAFICH, Dissertação de Mestrado, 2003, pp. 7-8. Nesse mesmo texto, nas páginas 137-8, a autora
afirma que os pintores “(...) classicamente não se enquadrariam dentro dos chamados ofícios mecânicos, pois
pertenceriam à categoria dos profissionais liberais”.
3. Gramática, dialética, retórica, geometria, aritmética, astronomia e música
4. MENESES, José Newton Coelho. Artes fabris e serviços banais: ofícios mecânicos e as câmaras no final do Antigo
Regime (Minas Gerais e Lisboa, 1750-1808). Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 2003, p. 243.

5. VASCONCELLOS, Salomão de. Ofícios mecânicos em Vila Rica durante o século XVIII. Revista do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 4, 1940, p. 331. Após vasculhar todos os códices
da Câmara de Vila Rica produzidos entre 1711 -1830, o pesquisador encontrou apenas uma carta de exame de
pintor.

79
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

diferenciação, contudo, decorre mais de uma escolha do que de convicção sobre o


entendimento de cada tipo de labor na época.
O ambiente de criação nas Minas era formado por elementos culturais de diversas
procedências e condições: mestres portugueses, auxiliares brancos, nascidos na terra, negros
de várias etnias, mulatos, escravos, libertos, livres, letrados, analfabetos, párocos, capelães,
conhecedores do latim, além de livros religiosos ilustrados impressos em Flandres, Lisboa,
Veneza, tratados de pintura, arquitetura. Propiciava-se, portanto, a trânsitos culturais em
múltiplos sentidos, a mesclas inusitadas que devem estar testemunhadas nas igrejas, ainda
inexploradas por falta de conhecimento, sensibilidade ou ferramentas teóricas dos
estudiosos. Na medida em que qualquer desses elementos promovia a passagem de
determinado traço cultural aos demais, seja uma técnica, um know-how, um símbolo, um
material - madeira, pigmento - estaria agindo como mediador cultural e marcando, ou não, a
obra em confecção com sua trajetória histórico-cultural.6 O mediador é capaz de dissolver
fronteiras culturais e fomentar o tráfego de fragmentos de um universo a outro. Nesse
sentido, mesmo os livros poderiam mediar conhecimentos, estilos, inspirações. 7 Os escravos
artífices também.
Embora artista e oficiais mecânicos fossem parcela restrita da escravaria, 8 era
comum aos artistas e oficiais possuírem cativos aprendizes e auxiliares. Eles formavam- se
através do contato cotidiano e próximo com os respectivos mestres/senhores. Havia artífices
que treinavam escravos alheios mediante pagamentos de seus donos, bem como forros,
negros e mulatos às expensas de pessoas da localidade. Empenhou- se em tal atividade o
famoso entalhador da Comarca de Guimarães, Francisco Vieira Servas, atuante nas Minas
entre 1752-1811.9 No início do aprendizado, os escravos dedicavam-se às tarefas menos
elaboradas, como a mistura das tintas ou o carregamento e desbastamento inicial da madeira
ou da pedra (Araújo, 2003: 125).

6. Serge Gruzinski discute a possibjjiâãde de um ambiente de trabalho mestiço elaborar criações não- mestiças,
que pouco contêm dos vários, universos culturais mobilizados para sua confecção. Cf. GRUZINSKI, Serge.
“Os índios construtoihes de catedrais: mestiçagens, trabalho e produção na Cidade do México (1550-1600)”,
in PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de
pensarjJformas de viver (séculos XVI a XIX). São Paulo: Annablume/ PPGH/UFMG, 2002.

7. Mary Del Priore apresenta a possibilidade de objetos culturais agirem como mediadores. Cf. DEL PRIORE,
Mary Lucy. “Salvajes en la iglesia: el friso de Saint-Jacques de Dieppe, un caso de bricolage cultural”, in
ARES QUEIJA, B. & GRUZINSKI, Serge (coords.). Entre dos mundos: fronteras culturales e agentes mediadores.
Sevilha, 1997, pp. 386-7.
8. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001,
p. 91.
9. RAMOS, Adriano Reis. Francisco Vieira Servas, o grande artista português do barroco mineiro. Telas e artes,
Belo Horizonte, v. 1, n. 7, 1998, p. 27.

80
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE

Em seguida, passavam a confeccionar partes menos visadas das composições. Ao mestre,


na dinâmica coletiva de trabalho, cabia a concepção geral da obra, seu risco ou esboço, a
divisão das tarefas e a orientação dos trabalhadores. Dedicava-se também às principais
partes da criação em termos da hierarquia iconográfica religiosa, da importância em relação
ao conjunto ou da posição, mais perto do olhar do observador. Nas pinturas e na talha,
segundo AdalgisaArantes Campos:

O mestre ou responsável pela arrematação cuida da concepção


geral, da trama arquitetônica, balcões e medalhão central.
Contudo, os fundos, nuvens e as figuras que não estão no foco
principal ficam para o ateliê, composto de aprendizes (homens
livres, os oficiais) e mão-de-obra escrava. Se perto da visão do
devoto (espectador), ou em situação de absoluto destaque, é
feita pelo mestre. Se à distância, pelo ateliê. 10

Seria, então, fitando detalhes menos evidentes das peças de arte religiosa que
encontraríamos traços culturais dos universos negro e mulato?
Em interessante estudo sobre o desenho subjacente às pinturas de Manoel da Costa
Ataíde, acessado por modernas técnicas fotográficas, Beatriz Coelho detectou, na têmpera
do forro da capela de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, partes inteiras do risco
bastante distintas do estilo solto do marianense, caracterizadas por dureza atribuível a seus
auxiliares.11 Sabe-se que Ataíde ensinava o ofício de pintura a seus escravos, e contava com
a ajuda deles nas empreitadas. Em 1804, o pintor tinha Pedro Angola, Manoel e Ambrósio
como auxiliares de pintura. Em 1813, seus cativos eram Pedro Angola, Maria Crioula e
Victorino Crioulo (Campos, 2002:255-7).12
Aleijadinho também possuía escravos na sua equipe de trabalho, encarregada,
segundo Myriam Ribeiro, da execução de peças inteiras de escultura, sobretudo para o
conjunto de Congonhas, onde as 64 estátuas dos Passos da Paixão foram realizadas em
apenas três anos e meio durante estágio já avançado da doença do mestre. Somente duas
imagens do Passo da Prisão, Cristo e São Pedro, podem ser consideradas

10. CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Vida cotidiana e produção artística de pintores leigos nas Minas Gerais: José
Gervásio de Souza Lobo, Manoel Ribeiro Rosa e Manoel da Costa Ataíde”, in Paiva & Anastásia (2002:
257-8).
11. COELHO, Beatriz Ramos de Vasconcellos. O desenho subjacente na pintura de Manoel da Costa Ataíde.
Barroco, Belo Horizonte, n. 17, 1993-96, p. 238.
12. De acordo com o texto, o pintor deve ter tido dois escravos, um após o outro, angolas de nome Pedro, pois,
em 1804, o mencionado Pedro Angola teria 45 anos, e, em 1813, 44. Ou então, a idade de Pedro em 1813
era de 54 anos. Tendo a acreditar na segunda hipótese.

81
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

totalmente feitas pelo célebre mulato. Da mesma forma, dentre vários outros exemplos, os
profetas Jeremias e Baruch tiveram apenas as cabeças esculpidas por Antônio Francisco
Lisboa.13
Para realizarem desenhos, esculturas, partes periféricas das obras, os escravos teriam
que receber ensinamentos, orientações, saber interpretar o esboço feito por mestres, saber
transpor uma imagem de certa gravura para a escultura ou pintura. É possível que
manuseassem livros ilustrados, em latim, e mesmo tratados de pintura e arquitetura. Os
artífices senhores de escravos possuíam livros pertinentes às suas profissões. No inventário
dos bens de Ataíde, por exemplo, arrolou-se “Hum d° [livro] segredo das Artes dous
tomos”.14 Manuel Francisco de Araújo, carpinteiro e mestre de obras, mencionou em seu
testamento “um livro de arquitetura que me custou nove mil réis”. 15 Francisco Xavier
Carneiro, pintor pardo de Mariana, responsável por obras como os forros das capelas das
ordens terceiras do Carmo e de São Francisco de Mariana, possuía vários livros, dentre eles:
“as ciências das sombras relativas ao dezenho, segredo necessário para as artes da
pintura”.16 João Nepomuceno Correia e Castro, pintor do interior do Santuário do Senhor
Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, refere-se aos livros que tinha junto com “tudo a
que pertence a meu oficio de pintor”.17 Não sabendo ler, o que deveria ser o mais comum,
os escravos podiam ouvir a leitura desses volumes, observar e atribuir sentido aos seus
desenhos e gravuras.
É preciso considerar a grande capacidade de aprendizado e adaptação desses pupilos
de cor e entrever os amálgamas culturais processados no transcurso das relações que
travaram com os novos ensinamentos. Não teriam esses intercursos culturais deixado
marcas nas peças artísticas? Sanar a questão é grande desafio, pretendido em estudos
vindouros, mas já, aqui, entrevisto.
Elucidar o trabalho dos escravos no dia^a-dia do fazer artístico e construtivo é algo
extremamente difícil, pois os registros textuais da época, nossas fontes, não tinham a menor
intenção em descrevê-lo. Oferecem, no entanto, pistas. Na primeira metade do século
XVIII, o ofíclàl mecânico Antônio Pereira de Souza associou-se a

13. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeipo de. Aleijadinho: passos e profetas. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002, pp.
38 e 60.
14. Inventário dos bens de Manoel da Costa Ataíde, in MENEZES, Ivo Porto. Manoel da Costa Ataíde. Belo
Horizonte: UFMG, 1965, p. 140.
15. Testamento de Manuel Francisco de Araújo. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de
Janeiro, n. 18, 1978, p. 100.
16. Inventário de Francisco Xavier Carneiro, 1840. Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM), códice
59, auto 1346, 2o ofício, fls. 4.
17. Testamento de João Nepomuceno Correia e Castro, 1794. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana
(AEAM), Testamento 619, fls. 4

82
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE

Manoel Barbosa de Mello para edificarem a capela de Bento Rodrigues, termo da Vila do
Ribeirão do Carmo. Buscando ressarcimento dos prejuízos advindos do não cumprimento
de Antônio Pereira de sua parte no trato, Manoel Barbosa recorreu à Justiça, daí
conhecermos a história, pelo libelo cível. Juntos, receberiam 1.155 oitavas de ouro pela
empreitada, pagas em três vezes. Ficou acertado que o oficial entraria com seus
conhecimentos e compraria, para auxiliá-lo, dois escravos especializados “hú negro
serrador e hú mulato carpinteiro”.18 Manoel, por sua vez, deveria disponibilizar seus
escravos e fornecer as telhas que faria no seu sítio. Acusava seu sócio de não ter adquirido
os cativos e nem ter comparecido regularmente no canteiro, o que foi endossado pelas
testemunhas “sendo esta muitas vezes a causa de os negros de A. não terem quem os
guiasse para trabalharem” e “se retirava outra vez o A. para a roça com os seus escravos
perdendo nesta forma os serviços delles”. 19
Percebe-se a importância dos escravos para os profissionais da construção. Não os
possuindo, Antônio Pereira precisou unir-se com o dono de um sítio, proprietário mais
abastado. Sozinho, também, não gerenciaria com satisfação os negros de Manoel,
acostumados aos serviços rurais. Compraria, portanto, escravos que desempenhariam
tarefas restritas e orientariam os leigos. A circunstância revela a existência de mercado
especial de cativos oficiais, diferentes dos demais em capacidades e preços. As “peças”
poderiam chegar em Minas Gerais com as aptidões já reconhecidas, adquiridas em África
ou outros locais por onde passaram antes de cortarem o sertão. Ofertadas, tinham
compradores específicos, interessados em mais do que simples força muscular. Estudos
recentes desvendam lógicas subjacentes ao tráfico negreiro, que passa a ser visto, em
alguns casos, como fornecedor de mão- de-obra mais ou menos especializada. Eduardo
França Paiva atribui a preferência dos mineradores pelos escravos da Mina - oriundos dessa
região ou embarcados em algum dos seus portos - ao reconhecimento do know-how mineiro
e metalúrgico desses negros.20 Abre-se a possibilidade de demarcarmos predomínios
étnicos entre os cativos artistas e oficiais decorrentes, talvez, de seus conhecimentos.
Angolas ressaltam-se, após um olhar inicial, mas estudos mais sistemáticos, quantitativos,
são indispensáveis para prosseguirmos em linha interpretativatão instigante.

18. Manoel Barbosa de Mello. Libello cível em que diz como A. M.el Barbosa de Mello contra Ant.o Pr.a de
Souza reo p.lo melhor modo q. em dir.to haja lugar. Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, n. 3,
1954, p. 81.
19. A. é o autor da ação. Cf. Anuário (1954: 84-5).
20. PAIVA, Eduardo França. “Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no novo
mundo”, in Paiva & Anastásia (2002: 187-8).

83
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Outra questão inferida pela leitura do documento é a divisão de trabalho entre


mancípios no canteiro de obras. Os cativos que o réu, segundo o autor da ação,
comprometeu-se em comprar, dedicar-se-iam a atividades específicas no processo
construtivo. Aos demais, escravos do autor, Manoel Barbosa, caberiam as outras tarefas.
Dependiam da orientação do oficial ou mesmo dos seus escravos especialistas.
Vislumbram-se, entre os escravos, hierarquias criadas a partir de autoridade assentada em
conhecimentos acumulados. Tais líderes agiriam, por vezes, como intermediários entre o
mestre da obra e trabalhadores comuns, repassando regras, ordens e advertências.
Pendularmente posicionados, ora ali, junto ao mestre, ora acolá, próximos da escravaria,
artífices cativos deveriam repassar, para cada interlocutor, demandas e dúvidas dos demais,
“traduzindo”, por vezes, partes de um universo cultural para outro.
A importância de escravos na execução de obras de arte e de construção agiganta- se
ao considerarmos que muitos artífices, sobretudo os mais reconhecidos, arrematavam
serviços, concomitantemente, em mais de uma vila ou arraial das Gerais. Nessas ocasiões,
podiam deixar cativos habilitados numa das empreitadas enquanto labutavam na outra. Em
1826, Manoel da Costa Ataíde entrou com uma ação contra a Irmandade de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos de Mariana requerendo o pagamento da última parcela referente à
pintura e douramento da capela-mor da confraria. A quantia não lhe tinha sido paga por não
ter sido a obra aprovada pelos louvados. O interessante é que, dentre os argumentos dos
irmãos para não quitarem a dívida, reforçados por suas testemunhas, constava acusação do
pintor ter deixado a encomenda com seus aprendizes enquanto adornava a capela da Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Carmo de Vila Rica. José Joaquim do Couto, pintor pardo,
testemunhou a favor da Irmandade afirmando ter trabalhado na capela-mor do Rosário, a
convite de Ataíde, por um mês “poco mais ou menos” junto com o filho, Francisco, o
aprendiz, Raimundo e os moleques do mestre. Durante esse período, Ataíde teria
comparecido no canteiro um só dia, quando determinou o que seus subordinados deveriam
fazer.21 O depoimenfodfe José Joaquim ilumina o trabalho em equipe, típico da produção
artística do período, ffcrmado por profissionais de diversas condições, lado a lado: o
depoente, pintor livrè ou liberto, pardo; o filho de Ataíde com sua concubina parda forra,
Maria do Gbrmo; Raimundo, o aprendiz, provavelmente livre, e os referidos moleques,
propriedades do pintor.

21. Libelo cível em que foi autor o alferes Manoel da Costa Ataíde, 1826. ACSM, códice 239, auto 5972, 2 o
ofício, fls. 42f.

84
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE

Escravos artistas e oficiais distinguiam-se dos demais não só na distribuição e


organização do trabalho, mas também na relação que estabeleciam com os donos.
Esclarecedores são os testamentos dos artífices e artistas, nos quais relevo é, por vezes,
conferido aos cativos especialistas. No testamento de Manuel Francisco de Araújo,
carpinteiro e mestre de obras, destaca-se a figura de Paulo, seu escravo carpinteiro.
Araújo morreu antes de concluir os altares laterais e os púlpitos da capela da Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo de Vila Rica, arrematados por 1:950$000,
que deveriam ser pagos em quatro vezes. Apesar de só ter assentado dois altares, já tinha
recebido 1:462$500. Como garantia pela conclusão da empreitada, hipotecou aos
carmelitanos todos seus bens, com exceção do escravo Paulo, como afirmou em testamento.
Morreu devendo anuais à mesma Ordem Terceira, que instituiu por testamenteira e
herdeira, prometendo-lhe, caso aceitasse, incluir Paulo na herança, único bem livre da
hipoteca. Mencionou dois bons escravos, Pedro, oficial de enxó, e “o moleque Paulo é
muito bom oficial de carpinteiro e por isso e pelo seu bom gênio, vale muito bem duzentos
mil réis”.
Avaliando o carpinteiro tão bem e enaltecendo suas qualidades, Manuel lançava- se
do recurso que tinha, em morte, para seduzir o sodalício a aceitar sua testamentaria, bem
como encomendar devidamente sua alma pois, como foi dito, devia-lhe mensalidades. Ao
que parece, o português confiava em Paulo para terminar os altares, pois declarou que ele e
Pedro “sabem muito bem o que eu possuo de madeiras, trastes (...) os ditos meus escravos
Pedro e Paulo, aqui declarados, deverão trabalhar nas obras dos ditos altares debaixo da boa
administração de quem as fizer”. Os escravos conheciam e, provavelmente, participaram da
organização do trabalho do mestre; sabiam do montante e da localização da matéria-prima
restante, tornando-se, assim, necessários para o prosseguimento da obra. O novo
arrematante dependeria, em algum grau, dessas informações de Pedro e Paulo, envolvidos
com o serviço por mais tempo. Araújo acreditava que sua morte não paralisaria as
edificações, muito devido a Paulo, seus conhecimentos técnicos e sobre a disposição da
matéria-prima. A distinção do carpinteiro fica ainda mais evidente ao considerarmos que o
artista possuía outros escravos, mas só os menciona no testamento por ter sido, por eles,
roubado.
Quase no final do documento, Manuel Araújo sugeriu à Ordem Terceira que, em
relação a Pedro e Paulo “se o dito meu testamenteiro digo, e herdeira quizerem no fim da
obra e lhe parecer bom, se eles obedecerem e o merecerem, passei-lhes papel de quorte por
algum tempo, no preço por cada um valer”. 22 O processo de

22. Testamento de Manuel Francisco de Araújo. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de
Janeiro, n. 18, 1978, pp. 100-3.

85

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

aprendizagem de um ofício muito achegava o cativo de seu dono. As lições do mestre


esperavam contrapartida do aprendiz, materializada no objeto construído. Nesse sentido, o
diálogo, sabe-se lá mediado por que tipo de linguagem, era incentivado. Ensinar e aprender
eram atividades que aproximavam os dois pólos de uma relação nem sempre marcada nos
arranjos cotidianos pela imposição e a resistência. Dominando as técnicas transmitidas, o
escravo tomava-se fundamental para o mestre, acompanhando-o por suas andanças pela
capitania, auxiliando nas obras, em porções maiores ou menores, e conduzindo negros
envolvidos no trabalho. Atuavam, senhores e escravos oficiais, lado a lado, compartilhando
e superando desafios impostos pela empreitada. Sendo assim, é compreensível a atitude de
Manuel Araújo em sugerir a coartação de seus “semoventes” especializados. Considerando
a importância de Paulo para o mestre, talvez ele não tenha sido alforriado por ser o único
atrativo para que os carmelitanos levassem adiante a testamentaria do falecido e rezasse por
sua alma. O caso de Paulo não é único. Vários outros artistas e oficiais mecânicos
manumitiram ou coartaram seus escravos auxiliares em testamento.
O supracitado entalhador Francisco Vieira Servas declarou em testamento que,
dentre seus cativos: “deicho o meu escravo Joze Angola, official de entalhador, forro e o
meu testamenteiro lhe dará corenta mil reis e hum sortimento de ferros do officio escolhido
a eleição do dito escravo”.23 A vida de aprendiz e auxiliar rendeu a Joze não apenas a
alforria, mas instrumentos de trabalho e montante em dinheiro para se inserir socialmente
como liberto. Ele se “formou” em atividade reconhecida na época, pois entalhadores eram
responsáveis, por exemplo, pela execução dos retábulos barrocos e rococós. Conhecia,
portanto, os estilos em vigor e a iconografia religiosa. Provavelmente, acompanhou e
ajudou Servas na ornamentação da Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Catas Altas
do Mato Dentro, da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, em Caeté, e da Capela de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, em Mariana.
É possível conjeturar sobre a trajetória geográfica e social de Joze. Ele saiu de
Angola, região da África ociáental assim denominada pelos portugueses que por lá já se
faziam presentes desde antes dç 1504. Atravessou o mar a bordo de um navio negreiro.
Aportou, muito provavelmente, no Rio de Janeiro, onde chegavam, majoritariamente,
angolas e contos (Paiva, 2001:72). Adentrou o sertão e, em Minas Gerais, foi comprado por
um entalhador renomado. Por fim, com a morte do português, retomou a liberdade perdida
do outro lado do Atlântico. Mas ele não era mais o mesmo, uma vez que se tornara produto
das trocas culturais vivenciadas ao longo de sua

23. Testamento de Francisco Vieira Servas. Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, n. 4, 1955-1957, p.
43.

86
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE

história. E com essa bagagem realocou-se, em nova condição, no mercado artístico mineiro.
Antonio, escravo pintor do já referido marianense Francisco Xavier Carneiro, foi
coartado em testamento por 300$000, valor considerável, proporcional a sua especialidade.
Caso pagasse a quantia em quatro anos, a testamenteira de Xavier Carneiro daria-lhe
50$000 de desconto. O artista possuía outros escravos, como Francisco Angola e Joaquim
Benguella, que não foram agraciados da mesma forma. Somente Maria, escrava doméstica,
foi alforriada no testamento.24
Ataíde, em testamento, deixou Pedro e Maria forros. 25 Seria o Pedro Angola que o
acompanhou durante boa parte de sua vida, seu auxiliar de pintura? Provável, mas difícil
afirmar, uma vez que o inventariante refere-se a ele como nação mirfumba.
O pintor bragantino José Soares de Araújo, responsável por várias pinturas na
Comarca do Serro do Frio, como as que decoram a capela da Ordem Terceira do Carmo de
Diamantina, declarou em testamento a posse de 26 escravos de variadas nações: cassonge,
rebolo, mina, benguela, congo, angola, cabundongo entre outras. O mestre devia dividir
seus escravos entre as várias atividades a que se dedicava: pintura, lavras e sítios. Apenas
cinco escravos não eram africanos, dentre eles o mulato Vidal, pintor e dourador. Soares de
Araújo dedicou-se a ensinar sua arte ao africano João, mencionado como “João cabundongo
com princípeo de pintor”. No testamento e codicilo, alforriou e coartou vários escravos,
dentre eles João cabundongo, provavelmente seu aprendiz, o que é difícil afirmar, pois a
fonte aponta outro escravo chamado de João cabundongo “com hum calombinho na
testa”.26
Dentre os grandes pintores atuantes em Minas atualmente em minha mira, exceção
parece ter sido João Nepomuceno Correia e Castro, sem aprendizes cativos mencionados
em testamento. Em testamento, o pintor elencou quatro escravos: Pedro Angola, Domingos
Angola, Juliana Angola e Lucinda crioula, as duas últimas de sua mulher. Nada afirmou
sobre ter-lhes ensinado algo referente à pintura e nem os coartou ou alforriou. Por outro
lado, seus aprendizes não foram identificados como escravos: Joaquim da Natividade, a
quem morreu devendo 30 e tantas oitavas; Francisco de Paula e Bemardino de Senna, aos
quais deixou riscos, estampas e debuxos.27

24. Testamento de Francisco Xavier Carneiro, 1838. ACSM, códice 288, auto 5244, I o ofício, fls 1 v.
25. Testamento de Manoel da Costa Ataíde, in Menezes (1965: 134).
26. Testamento do Guarda-mor José Soares de Araújo, 1799. Arquivo da Biblioteca Antonio Torres, maço 36, n.
377, Io ofício, fls. 4v e 6f.
Dentre as testemunhas que assinaram a aprovação do testamento, todas livres maiores de 14 anos, consta um
certo Francisco de Paula Oliveira e Senna, talvez o aprendiz do pintor que recebeu as estampas. É possível
que ele tivesse algum grau de parentesco com o outro aprendiz de Nepomuceno, Bemadino de Senna, que,
inclusive, passou recibo dos legados para a testamenteira. Testamento de João Nepomuceno Correia e
Castro, 1794. AEAM, n. 618. fls. 4f, 4v, 5v e 9f.

87
FT

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Testamentos de artistas e oficiais mecânicos são fontes singulares para lançarmos


luz sobre as interações entre senhores e escravos e o destino dos cativos após a morte dos
donos. Entrevendo a morte, esses homens registraram detalhes preciosos de suas vidas
materiais, relações sociais bem como expectativas e ansiedades íntimas. O historiador,
lendo os documentos, reencontra-os, a despeito dos séculos que os separam. Só
quantificando a incidência de oficiais e artistas que libertaram seus auxiliares em testamento
será possível afirmar com mais segurança ter sido corriqúeiro o procedimento. O
estreitamento, ao longo dos anos de convivência, dos laços entre senhores e escravos
especializados pode ter favorecido a prática. A partir de pesquisa sistemática em inventários
e testamentos das Comarcas do Rio das Mortes e Rio das Velhas, não estritamente de
oficiais mecânicos e artistas, Eduardo França Paiva observa que os donos de menor número
de cativos foram os que mais alforriavam ou coartavam via testamento “dado, claro, a
proximidade cotidiana entre senhor/escravo” (Paiva, 2001: 174), dentre outros fatores. De
acordo com o autor, as manumissões não devem ser entendidas apenas como dádivas de
“bons senhores”, mas como conquistas diariamente articuladas pelos escravos nos
interstícios dos contatos firmados com os donos. Restitui-se, por esse olhar, a historicidade
ativa dos escravos, desconsiderada por abordagens que os anulam enquanto sujeitos,
vitimizando-os. Fitando a atuação dos escravos nos canteiros de obras e a vinculação entre
eles e seus donos, vislumbra- se a miríade de situações vivenciadas de “garimparem” sua
libertação.
Aprender e executar uma arte ou oficio facilitava, ao que tudo indica, a mobilidade
social dentro do cativeiro. Os ensinamentos aproximavam o senhor de seu escravo e
alçavam-no da condição de simples força bruta à de sujeito especializado, melhor avaliado e
estabelecido em meio à escravaria. Desempenhava, por vezes, tarefas de liderança e
orientação de seus companheiros de cativeiro, distinguindo-se deles. Os mestres podiam,
inclusive, passar a depender, em alguma medida, dessas “peças chaves”, como ficou claro
no caso de Paulo, escravo carpinteiro de Manuel Araújo. Por fim, a liberdade, deixada em
testamento, coroava uma vida de trabalho e aprendizado.

88
O BRAÇO ARMADO DO SENHOR: RECURSOS E ORIENTAÇÕES VALORATIVAS
NAS RELAÇÕES SOCIAIS ESCRAVISTAS EM MINAS GERAIS NA PRIMEIRA METADE
DO SÉCULO XVIII

Carlos Leonardo Kelmer Mathias1

A PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA

O texto que se segue teve por base o estudo dos 154 indivíduos que tomaram parte,
quer como revoltosos, quer não, dos acontecimentos relativos à Revolta de Vila Rica,
ocorrida em meados de 1720. Da análise de tais sujeitos, deparei-me com situações nas
quais as relações sociais inerentes ao mundo escravista do Brasil colonial ganhavam
contornos inusitados. De saída, chamava a atenção um fato aparentemente sem maiores
implicações, a saber: por vezes, o escravo arriscava seu pescoço em benefício de seu
senhor. Há de se destacar que mesmo indivíduos da monta de um Pascoal da Silva
Guimarães - principal líder da revolta e um dos homens mais poderosos de Vila Rica
naqueles tempos -, sem o apoio de seus negros não teria muito como fazer valer sua
vontade e, por conseguinte, seu poder. Por bem, sendo Pascoal da Silva revoltoso, assim
também o eram seus escravos. Logo, se ele caísse, levaria consigo sua escravaria. Entendo
que atuando ao lado de Pascoal da Silva na revolta, seus escravos estavam, de certa forma,
lutando pelas suas próprias vidas. Para além da busca pela manutenção de suas existências
terrenas, apenas o capricho de seu dono é que não era razão suficiente para fazê-los
arriscarem suas peles. Afinal, antes de os interesses pessoais de Pascoal da Silva o levar a
formular, e pôr em prática, suas estratégias revoltosas, a encarnação de seus escravos não
estava tão a perigo assim. Deduz-se, pois, que algo mais esses cativos deveriam obter para
expor suas vidas em benefício de seu senhor. Trabalhar essa questão é o objetivo principal
do presente capítulo.

1. Doutorando em História Social pela UFRJ. Bolsista CNPq.



E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Parte-se do pressuposto de que por detrás de relações sociais como a acima relatada
havia, na grande maioria das vezes, uma sutil e refinada negociação entre senhor e escravo -
negociação essa que, por via de regra, regia os rumos dessas mesmas relações. Aqui,
percebo os cativos como sujeitos dotados de um conjunto de valores e de orientações ao
qual se voltavam quando por tomar esta ou aquela decisão. Nesses termos, vale uma ou
duas palavras de acerca de Fredrik Barth.
Conforme apontado por João Fragoso, em Barth a sociedade é considerada ao
mesmo tempo fragmentada e aberta. Nas palavras do autor:

(...) fragmentada em razão de os autores envolvidos nas


interações serem personne diferentes e, portanto, agirem
conforme seus recursos e orientações valorativas. Suas ações
resultavam de escolhas e de estratégias próprias, o que confere
à interação um certo grau de tensão e, neste sentido, de
incerteza ou de imprevisibilidade.

E mais, para Barth:

(...) as sociedades seriam também abertas, porque as ações dos


agentes se guiariam por valores de distintos mundos.
Barth, estudando a sociedade de Bali (Indonésia), encontrou
grupos influenciados pela moderna educação ocidental, outros
pelo conhecimento islâmico, assim como segmentos instruídos
pela prática hinduísta. Estas pessoas, apesar de diferentes entre
si e de terem concepções de mundo distintas, viviam juntas,
estabeleciam relações, numa palavra, formavam uma
sociedade.2

De tais consideraçõesfa^noção de estratégia, tal qual trabalhada por Barth, invoca


uma sociedade em que o sistema de normas encontra-se fraturado por uma série de
incoerências internas. Logó, o comportamento deixa de ser visto como uma “conseqüência
mecânica”, passándo a fazer parte de um processo dinâmico das transformações sociais. 3
Nesse sentido, estratégia toma-se um termo chave ao ter-se

2. FRAGOSO, João Luis Ribeiro. À espera das frotas: a micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de
Janeiro, 1600-1750). Rio.de Janeiro: PPGHIS, Tese de Professor titular, 2005, p. 24.
3. ROSENTAL, Paul André. “Construir o ‘macro’ pelo ‘micro’: Fredrik Barth e a ‘microstoria’”, in REVEL,
Jaques (org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998, passim; Cf.
também: LIMA FILHO, Henrique Espada Rodrigues. Microstoria: escalas, indícios e singularidades. Campinas:
Unicamp, Tese de Doutorado, 1999, p. 163.
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR

em conta as interações entre os indivíduos, uma vez que por elas perpassam os seguintes
aspectos: 1) a ação de cada indivíduo está sujeita à situação que se lhe apresenta, assim
como aos recursos materiais que detém; 2) cada transação traz consigo uma incerteza, uma
vez que o resultado da ação depende da reação do outro indivíduo.
Do acima exposto, depreende-se que a idéia de estratégia está, por conseguinte,
profundamente relacionada à idéia de racionalidade. Desse modo, Fredrik Barth “faz do
indivíduo um ator”, capaz de realizar escolhas e de tomar decisões segundo seus recursos.
Essas escolhas dependem, dentre outras coisas, das previsões das ações e reações de outros
atores sociais dentro de uma “margem de manobra” que delimita um “universo de
possíveis”. Assim, e procurando fugir de uma análise determinista, a noção de estratégia
traz consigo um campo de atuação limitado e nem sempre eficaz para o indivíduo, uma vez
que este pode “percebê-lo ou avaliá-lo incorretamente - ou simplesmente, não utilizá-lo”
(Rosental, 1998). As várias estratégias são, então, traçadas ou abandonadas por parecerem
ao sujeito satisfatórias ou insatisfatórias, ou seja, o indivíduo espera que o valor a ser ganho
seja superior ao daquele a ser perdido.4
Trabalhando com tal modelo de análise para a sociedade do Rio de Janeiro
seiscentista, João Fragoso percebe sua validade destacando a variedade de grupos
compositores da, e atuantes na, sociedade em questão. Dentre os quais, cita o autor: 1) a
nobreza da terra - influenciada pelo Antigo Regime e sua concepção corporativa da
sociedade; 2) os negros, pardos e forros - “segmentos sociais portadores de visões sobre
parentesco e religiosidade, vindos dos reinos do Golfo da Guiné e da África Centro-
Ocidental”; 3) demais grupos (Fragoso, 2005:25). Guardadas as devidas ressalvas, creio que
o mesmo pode ser dito e aplicado no que concerne à sociedade mineira colonial.

A PERCEPÇÃO PRÁTICA

Na busca pela obtenção e manutenção de sua posição de mando dentro da sociedade,


a elite, inevitavelmente, deveria adquirir legitimidade social. Nesse ponto, as negociações
com a escravaria exerciam uma função primeira. Conforma destaca João Fragoso:

4. BARTH, Fredrik. Process andform in social life: selected essays of Fredrik Barth. London: Routledge & Kegan
Paul, 1981, vol. 1. Por valor entende-se “um padrão detido pelos atores que afeta seus comportamentos por
orientar suas escolhas (...) refere-se a um padrão de avaliação para o que as pessoas querem ter e ser” (pp. 91-
2, grifos do autor).

91
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

(...) destes entendimentos dependia a própria existência física


daqueles fidalgos (...) da mesma maneira, o grau de sintonia
das relações senhores-escravos contribuía decisivamente para a
plasticidade da estratificação social nos trópicos. Grosso modo,
garantir a legitimidade dos cativos ajudava na confecção dos
privilégios estamentais da terra. Uma família de
conquistadores, para pretender tais prerrogativas diante da
sociedade e do rei, devia atentar para os interesses dos cativos.
Afinal, os últimos forneciam a mão de obra para as plantatinos
e sustento da fazenda. Além disso, os cativos eram agentes
essenciais nos jogos políticos. Para tanto, basta recordar o
emprego dos escravos armados nos conflitos bélicos pela
liderança da república [como no caso da contenção da revolta
de Vila Rica de 1720]. Assim como lembrar da possibilidade de
os cativos surgirem como espécies de agentes políticos para seu
senhor. Por exemplo: as malhas parentais, fictícias ou não, dos
cativos com escravos de outros donos, com forros e demais
grupos sociais produziam a sua sociabilidade, entretanto
podiam aparecer como canal de comunicação de um dado
fidalgo tropical com tais segmentos sociais (2005:93-4).5

Seguem alguns exemplos nos quais o braço armado do senhor atuava como “agentes
essenciais nos jogos políticos”.
Em 02 de julho de 1711, já tendo recebido de D. Antônio de Albuquerque -
governador da capitania entre 1709 e 1713 - a superintendência do distrito de Vila Rica,
Pascoal da Silva Guimarães foi provido, pelo mesmo governador, no posto de mestre-de-
campo do terço de auxiliares do mesmo distrito. Lê-se na carta patente que Pascoal da Silva
estava servmdo no posto de
4
I
sargento-mor das ordenánças do distrito das Minas Gerais do
Ouro Preto com satisfação motivos que me obrigaram [ao
governador] a provê-lo no mesmo posto quando entrei nestas
Minas a sossegá-las, encarregando-o juntamente da
superintendência e administração da justiça do dito distrito

5. Cf. também: KELMER MATH1AS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses e estratégias de ação no contexto da
revolta mineira de Vila Rica (c. 1709-c. 1736). Rio de Janeiro: UFRJ/PPGH3S, Dissertação de Mestrado, 2005a.

92
r O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR

(...) cuja ocupação exercitou com muito bom modo e atenção


do bem comum e justiça das partes, e nas partes da Fazenda
Real, e sua arrecadação se houve também com muito zelo (...)
hei por bem provê-lo /como por esta o faço/ para o posto de
mestre de campo do terço de auxiliares que levanto no distrito
das Minas Gerais do Ouro Preto.6

Dois meses depois de ter recebido a patente de mestre-de-campo, Pascoal da Silva


mandou trinta escravos armados à sua custa em companhia de D. Antônio de Albuquerque
quando esse marchou para o Rio de Janeiro pela feita da invasão francesa de 1711,
remetendo, em seguida, outros tantos cativos seus. 7
Do governador D. Antônio de Albuquerque, Pedro da Rocha Gandavo recebeu, em
23 de maio de 1711, sesmaria de uma légua de terra em quadra em um sítio seu no distrito
da Itatiaia, onde possuía “bastante fábrica de escravos”. 8 De D. Brás Baltasar
- governador da capitania entre 1713 e 1717 Pedro da Rocha foi servido com o posto de
sargento-mor da cavalaria de ordenança,9 e, posteriormente, com o posto de coronel de um
regimento de cavalaria de ordenança do distrito de Vila de Nossa Senhora do Carmo. Nessa
última carta, o governador deu conta que Pedro da Rocha auxiliou D. Antônio de
Albuquerque, em 1711, com doze escravos armados às suas custas, ressaltou sua atuação na
junta que se estabeleceu para firmar em trinta arrobas a arrecadação dos quintos régios,
destacou sua participação na contenção de uma sublevação ocorrida na Vila do Carmo, e,
por fim, sublinhou sua participação nos cargos de juiz ordinário, vereador e almotacé de
Vila Rica.10 Sempre se valendo de seus escravos armados.
Rafael da Silva Souza esteve, de forma bem acentuada, envolvido com os negócios
da governabilidade e da governança. Em 06 de janeiro de 1711, recebeu do governador D.
Antônio de Albuquerque patente de sargento-mor do terço dos auxiliares do Ribeirão de
Nossa Senhora do Carmo. 11 Em 19de março de 1712, El-Rei escreveu

6. Patente passada a Pascoal da Silva Guimarães do posto de mestre-de-campo do terço auxiliar do distrito
das Minas Gerais, 02 jul 1711. APM, SC 07, fls. 122-122v.
7. FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de bandeirantes e sertanistas do Brasil. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989, pp. 195-6.
8. Carta de sesmaria passada a Pedro da Rocha Gandavo, 23 maio 1711. APM, SC 09, fls. 103-103v., Para os
oficiais da comarca da Vila do Carmo, s/d. APM, SC 09, fls. 52-52v. e Catálogo de sesmaria. Revista do
Arquivo Público Mineiro, v. 1, 1988.
9. Carta patente passada a Pedro da Rocha Gandavo, 20 jan 1715. APM, SC 09, fls. 168-168v.
10. Carta patente passada a Pedro da Rocha Gandavo, 18 fev 1717. APM, SC 09, fls. 266v.-267.
11. Patente passada ao sargento-mor Rafael da Silva e Souza do terço dos auxiliares do Ribeirão do Carmo, 06
jan 1711. APM, SC 07, fl. 116v.

93
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

a carta de confirmação da referida patente, na qual deu conta que Rafael da Silva serviu,
durante mais de dois anos, no posto de capitão de infantaria da ordenança do mesmo
distrito.12 Pela feita da invasão francesa à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em
1711, apresentou-se ao governador com duzentos escravos armados e pagos às suas
custas.13 De próprio punho, Rafael da Silva deu conta que “ele por seus importantes
serviços e capacidade ficou encarregado do governo das Minas pelo governador D. Antônio
de Albuquerque em que o dito baixou socorro ao Rio de Janeiro”, servindo com patente de
coronel no distrito do Ribeirão do Carmo, mas com ocupação de capitão-mor.14
José Luís Borges Pinto recebeu, possivelmente antes de setembro de 1711, uma carta
patente de confirmação do posto de sargento-mor do terço auxiliar dos distritos do Rio das
Velhas e Sabará, o qual exercia havia mais de dois anos “com boa satisfação, cuidado e
desinteresse em tudo o que se fazia do serviço do dito governador como bem o mostrou em
prisões que lhe mandei fazer, confisco de comboios e de fazendas”. Ainda na referida carta,
D. Antônio de Albuquerque deu conta que José Luís servia nas Minas do Ouro com
“bastante zelo e despesa de sua fazenda”. 15 Em 02 de janeiro de 1714, D. Brás Baltasar deu
conta que o sargento-mor dos auxiliares José Borges Pinto socorreu a praça do Rio de
Janeiro em 1711 com “seus escravos armados e assim na marcha como em todo o tempo
que agente de guerra se deteve naquela cidade procedeu sempre com grande valor e acerto e
executando todas as ordens que lhe foram dadas com muito cuidado e atividade”. Relatou
ainda que José Borges se ofereceu voluntariamente para o confisco dos comboios acima
referidos e, tendo andado pela estrada da Bahia com seus escravos armados durante dezoito
dias,

(...) tomou para a Real Fazenda a importância de trinta mil


oitavas de ouro, em cuja expedição, jornada tem grande
trabalho pela falta de [ilegível] e mantimentos como tudo
consta

12. Carta patente (Ia e 2a vias) de Rafael da Silva Souza provido no posto de sargento-mor auxiliar da Ordenança
do distrito do Ribeirão do Carmo. Lisboa, 19 mar 1712. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. l,doc. 31. J

13. VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 296. É
possível que o autor tenha exagerado um pouco no número de escravos apresentados por Rafael da Silva a
Dom Antônio de Albuquerque em 1711.
14. Requerimento de Rafael da Silva e Souza, capitão-mor em Vila Rica de Ouro Preto encarregado do governo
das Minas na ausência do governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, solicitando para
continuar a governar seu distrito na ausência do governador, 10 jul 1727. AHU, Cons. Ultra. - Brasil/MQ cx.
11, doc. 15.
15. Carta patente passada a José Luís Borges do posto de sargento mor do terço auxiliar dos distritos do Rio das
Velhas e Sabará, s/d. APM, SC 08, fl. 13.

94
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR

das suas certidões e atendendo outrossim a ser pessoa de


conhecida nobreza (...) hei por bem de o nomear e prover no
posto de coronel do regimento que mandei formar das tropas
de cavalaria da ordenança.16

Parece-me bastante descabida a idéia de que José Luís e seus escravos sujeitar- se-
iam a passar dezoito dias de perrengue - às custas de sua fazenda e vida - somente para
servir aos interesses de El-Rei sem, mesmo que extra-oficialmente, nada obter em troca. Ao
se oferecer voluntariamente para o confisco dos comboios e fazendas que passavam pela
estrada da Bahia, José Luís estabelecia uma estratégia de ação esperando que o valor a ser
ganho fosse superior ao ser pedido. Malgrado o fato de não me ter sido possível encontrar
nenhum documento que tratasse abertamente de tal diligência - que me permitisse, portanto,
obter algum vestígio de um possível ganho material aferido ou por José Luís, ou por seus
escravos José Luís obteve a patente de coronel das tropas de cavalaria de ordenança, posto
que lhe conferia, literalmente, prerrogativas de mando e, consecutivamente, contribuía para
reforçar seu estatuto de nobreza.
Contudo, a questão toma-se mais sofisticada se nos perguntarmos o porquê dos
escravos de José Luís não terem se rebelado e fugido com as “trinta mil oitavas de ouro”
volvidas à Real Fazenda, uma vez que, oficialmente, somente José Luís foi recompensado
por agir “com boa satisfação, cuidado e desinteresse em tudo o que se fazia do serviço do
dito governador”.17 Tal problema matiza, acredito, dois pontos complementares, quais
sejam: 1) não foi apreendida somente a quantia de trinta mil oitavas de ouro; antes, esse
montante foi apenas a parte que coube à Real Fazenda; 2) os escravos de José Luís tiveram
ou alguma participação no restante do valor apreendido, ou algum outro tipo de ganho, o
qual, quando medido a uma possível ação contra José Luís, fosse por eles tido como mais
vantajoso. Não cabe aqui ficar especulando sobre o que se passou nos dezoito dias de
diligência, apenas ressaltar o refinado grau de negociação que envolvia não apenas as
relações entre as autoridades régias e a elite local, mas também entre essa elite e aqueles
que contribuíam para que a mesma fosse reconhecida enquanto tal. Para além disso, sugere
recursos e orientações valorativas de tais cativos no tomar esta ou aquela decisão.

16. Carta patente passada a José Borges Pinto, 02 jan 1714. APM, SC 09, fls. 93v.-94.
17. Destaco que 30 mil oitavas de ouro valia 36:000$000 contos de réis, um valor verdadeiramente assombroso
para ter sido obtido através do confisco de mercadorias em apenas 18 dias. Tal quantia pode estar, talvez,
comprometida.

95
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Antônio Corrêa Sardinha “se houve com conhecido zelo e boa satisfação” em 1711,
empregando-se na diligência com “vinte escravos seus armados”, tudo, como por via de
regra ocorria às custas de sua fazenda. 18 Meses antes da realização da diligência, Antônio
Correa fora servido, além da mercê do posto de capitão dos auxiliares do terço do distrito do
Ribeirão,19 com meia légua de terra em quadrada em um sítio “adiante de Catas Altas”, em
cuja terra empregara-se no fabrico de cana.20 Em 02 de fevereiro de 1714 obteve, do então
governador D. Brás Baltasar, carta patente de capitão dos auxiliares de uma companhia
levantada no distrito do Serro do Frio. 21 Em 24 de julho de 1717, “tendo consideração ao
[seu] merecimento, nobreza e capacidade”, o mesmo governador fez dele sargento-mor das
ordenanças do distrito de Vila do Carmo.22 Cinco meses antes, em 26 de fevereiro de 1717,
D. Brás Baltasar concedia a Antônio Correa um punhado de terra em sesmaria em um “sítio
adiante das Catas Altas”.23
Desde 1709, Domingos Nunes Neto servia nas Minas do Ouro, tendo galgado os
postos de alferes de uma companhia da ordenança do distrito de Vila do Carmo e capitão
dos arraiais da Passagem. Em 1715, utilizou escravos seus armados para desempenhar o
cargo de cobrador dos Reais Quintos.24
Um fato digno de nota passou-se com o sargento-mor LuizTenório de Molina. Um
tal Gonçalo Nunes de Souza emprestou a quantia de 810 oitavas de ouro (972$000 réis) a
um outro tal Francisco Ferreira de Queirós, que, como algumas vezes ocorria, não pagou a
quantia devida. Não se sabe por que, o sargento-mor Tenório de Molina foi encarregado de
cobrar a referida dívida, cuja diligência concluiu até bem demais. Tenório de Molina enviou
dezoito escravos seus armados e mais o alferes de ordenança Francisco Ferreira Izidro 25 à
residência de Ferreira de Queirós para cobrar a dívida. As 810 oitavas devidas
transformaram-se em 1.130 (1:356$000 réis). Uma breve incursão na matemática demonstra
que 320 oitavas de ouro (384$000 réis) foram cobradas a mais. Afora o espólio sofrido,
Francisco Ferreira de Queirós ainda foi

18. Carta patente passada a Antônio Correa Sardinha, 12 jan 1718. APM, SC 12, fl. 29.
19. Patente passada a Antônio Correa Sárdinha do posto de capitão dos auxiliares do terço do distrito do
Ribeirão. 06 jul 1711, APM, SC 07, fls. 118-118v.
20. Carta de sesmaria passada ao capitão Antônio Correa Sardinha, 18 abr 1711. APM, SC 07, fls. 96- 96v., e
Catálogo de sesmaria. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 2, 1988.
21. Carta patente passada a Antônio Correa Sardinha, 02 fev 1714. APM, SC 09, fl. 81.
22. Carta patente passada a Antônio Correa Sardinha, 24 jul 1717. APM, SC 09, fl. 264v.
23. Catálogo de sesmaria. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 2, 1988.
24. Carta patente passada a Domingos Nunes Neto, 12 jan 1722. APM, SC 15, fls. 19-20.
25. Carta patente passada a Francisco Ferreira Izidro, 1718. Na lista de 1720, Izidro aparece como a patente de
sargento-mor engenheiro. APM, SC 12, fl. 44v.

96
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR

levado à cadeia de Vila Rica. Embora o caso tenha chegado ao conhecimento de D. pedro
de Almeida - governador da capitania entre 1717 e 1721 - este se manteve em silêncio
sobre o ocorrido.26
Casos como este ilustram, para além da relação entre o governador e os poderosos
locais, a negociação inerente as relações entre “iguais” - Tenório de Molina e Ferreira
Izidro, e o primeiro com Ferreira de Queirós - e entre os poderosos e seus escravos. Nada
posso afirmar de concreto para o caso acima relatado que confirme a negociação existente
entre “iguais” e seus escravos, cuja constatação não impede, por assim dizer, de realizar
conjecturas. Uma delas, a existência de uma relação de reciprocidade entre o sargento-mor
e Ferreira de Queirós para que o primeiro realizasse a cobrança em benefício do segundo -
o qual, de outro modo, poderia levar tempo demais para receber, ou até mesmo perder seu
ouro. O mesmo tipo de relação poderia existir entre o sargento-mor e o alferes, o qual
levaria parte das 320 oitavas por ter auxiliado na diligência. E, a mais relevante dentre elas,
a negociação que perpassava a relação entre o sargento-mor e seus escravos armados; esta
sim, a principal conjectura.
A mesma idéia sugerida para o caso de José Luis Borges Pinto pode ser aqui
também aludida, qual seja: os escravos do Luis Tenório de Molina tiveram participação na
divisão das 320 oitavas de ouro. Tal hipótese, caso aceita, corrobora com a noção segundo
a qual as prerrogativas de mando estão diretamente ligadas à posse de escravos
- desde que, evidentemente, o proprietário esteja em condição de armá-los às suas custas,
poder desviá-los de suas atividades principais para a realização de outras diligências, e,
evidentemente, tenha estabelecido uma via de reciprocidade com tais negros.
Em 10 de dezembro de 1722, D. Lourenço de Almeida - governador da capitania
entre 1721 e 1732 - deu conta dos bons serviços e procedimentos de Manuel da Costa
Pinheiro, observando que desde os tempos do governador D. Brás Baltasar Manuel da
Costa vinha executando todas as diligências das quais era encarregado com muito zelo e
distinção, conduzindo os quintos reais para o Rio de Janeiro e atuando com tamanho
destaque na repressão de Pitangui que se tornou a principal razão do sucesso da dita
repressão. Tudo às custas de seus escravos armados. 27 Creio ser inevitável não deixar de
nos perguntarmos do porquê de os tais escravos não terem matado Manuel da Costa e
fugido com os Reais Quintos! Ao invés disso,

26. Requerimento de Francisco Ferreira de Queirós preso na cadeia de Vila Rica do Ouro Preto, por se ter
queixado da opressão que lhe era feita pelo sargento-mor, Luiz Tinoco de Molina, solicitando a liberdade.
14 jan 1725. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. 6, doc. 4.
27. Parecer do Conselho Ultramarino sobre os soldados presos e castigados nas Minas Gerais por ordem do
governador, D. Pedro de Almeida Portugal, 08 nov 1722. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MQ cx. 3, doc. 84.

97
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

fizeram a guarda dos mesmos. A complexidade da relação senhor-escravo somente pode ser
mais bem compreendida tendo em conta a sutil e refinada negociação inerente a ela. De
mais a mais, deve-se ter em conta os recursos e orientações valorativas desse braço armado,
“mãos e pés do senhor”, nas palavras caras a Antonil.
Por fim, gostaria de fazer uma ressalva acerca da percepção das alforrias, quer como
elemento de negociação entre senhor-escravo, quer enquanto parte integrante do conjunto
valorativo dos cativos.
Analisando as cartas de alforria e liberdade presentes nos dez primeiros livros de
notas do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana- livros estes que dão conta dos anos
compreendidos entre 1711 e 1719 (este último ano incompleto) -, encontrei um total de 295
cartas, representando 391 libertos. Tais cartas trazem consigo uma enorme gama de
informações acerca do mundo escravista colonial mineiro para o caso em questão. De tais
dados, interessa-me a data da alforria, o nome do senhor - ou melhor, ex-senhor seu oficio,
o nome do alforriado, seu sexo, idade, nação e o tipo de alforria - se gratuita, por serviços
ou paga (caso no qual tomei nota do valor da alforria) quem pagou pela manumissão,
origem do escravo, quaisquer tipos de cláusulas inerentes ao acesso à liberdade e
observações gerais.
Acerca de tal documentação, cabem algumas observações, dentre as quais: 1) trata-
se de um período de formação da sociedade mineira e, nesse sentido, a mão-de- obra do
negro era, além de bastante cara (o valor médio de um escravo transacionado em Minas
Gerais entre 1711 e 1717 batia na casa de 382$162 réis),28 fundamental; 2) o caráter
violento dessa sociedade (no período compreendido entre 1694 e 1736, a capitania de Minas
do Ouro vivenciou 46 levantes, sendo que 37 ocorreram entre 1694 e 1720) 29 fazia o braço
armado de seu senhor ainda mais imprescindível; 3) estou trabalhando com apenas 295
cartas de alforria e liberdade e, em função disso, pode apresentar um padrão que seja
característico apenas dessa segunda década do século XVIII, ou ainda pode ser
característico apenas da Comarca de Vila Rica; 4) por vezes, na carta de alforria não vinha
discriminada a idade do alforriado - procurei contornar tal problema torrfancta como
escravo adulto, afora os casos para os quais foram dadas as idades, aquele qüe obteve sua
alforria através da compra; nesses termos, estou partindo do pressuplosto de que para o
escravo comprar sua própria alforria ele deveria ser capaz dé guardar moeda, o que, por sua
vez, demanda uma idade mínima a partir da qual um escravo já pode ser tomado como
adulto. Feitas as devidas reservas, seguem os dados.

28. Cf. KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Práticas mercantis de uma sociedade em formação: Minas Gerais
na segunda década do século XVIII. Rio de Janeiro: PPGHIS, 2006, texto inédito.
29. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber- Ihe o caldo
dourado” 1693 a 1737. São Paulo: USP/FFLCH, Tese de Doutorado, 2002, pp. 390-8.

98
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR

Dos 391 escravos alforriados entre 1711 e 1719,274 eram do sexo feminino e apenas
117 do masculino. Atendo-me a este último sexo - haja vista que o braço armado do senhor
era composto, ou pelo menos assim seria de se supor, apenas por homens - encontrei 96
crianças, ou seja, escravos de 10 dias (para citar o mais novo) até 13 anos. Para os demais
21 sem idade definida na documentação, seis foram alforriados gratuitamente, catorze
obtiveram sua liberdade pagando por ela e apenas um, de 20 anos, não me foi possível
detectar o motivo pelo qual fora alforriado. Caso se admita que todos esses 21 ex-escravos
fossem adultos, ou seja, de 15 a 40 anos, teríamos, para o total de escravos alforriados do
sexo masculino, a cifra de 18%. Tomando apenas os escravos alforriados gratuitamente em
função de seus serviços, ou dito de outro modo, aqueles agraciados com a liberdade em
função de terem, dentre outras coisas, arriscado a pele por seu senhor e, logo, essa liberdade
fazendo parte do universo valorativos desses cativos, tem-se a cifra de 3,5%. Nesses
termos, apenas 3,5% dos escravos alforriados do sexo masculino teriam sido beneficiados
pela negociação com seus senhores; na melhor das hipóteses, 18% deles.
Evidentemente, a coisa não é tão simples assim. Não devemos perder de vista as
ressalvas acima feitas para com a documentação por mim pesquisada. Infinidades de outras
variáveis podem, e devem, ser levadas em consideração na análise dos dados acima. A
título de exemplo, em 30 de julho de 1718, Vicente Jorge alforriou Miguel, escravo de
nação mina, pelo valor de 300$000 réis. O detalhe dessa carta consiste no fato de que foi a
esposa de Miguel quem pagou por ela. 30 Maria Correia, a esposa em questão, era preta
forra, ex-escrava do capitão Domingos Gonçalves Barbosa - o que aponta para a relação
entre plantéis de diferentes senhores -, e havia obtido sua alforria em 19 de julho de 1716
pagando, igualmente, os mesmo 300$000 réis. 31 Uma possível conjectura para análise de
alforrias para os cativos componentes do braço armado do senhor seria pensar a relação
inversa ao caso acima enunciado, ou seja, em função dos serviços prestados pelo marido a
escrava obtinha a alforria. Porém, isso não passa de uma conjectura quiçá impossível de ser
testada.

* * *

Em 18 de maio de 1715, a negra Rosa São Thomé, em função dos serviços por ela
prestados a João Francisco de Araújo, teve sua carta de liberdade registrada em cartório.
Uma dentre os 37 escravos alforriados no ano, Rosa não teria seu episódio contado caso
não fosse a condição imposta por seu ex-senhor para que a liberta

30. ACSM, LN. 08, Io of.


31. ACSM, LN. 04, Io of.

99
ir

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

gozasse de seu novo estatuto. Por ela, Rosa não poderia residir na mesma vila na qual
estivesse João Francisco, sob risco de ser re-escravizada e vendida pelo valor mais justo. 32
Termo muito semelhante foi imposto por Manoel Gouveia Soares na carta de liberdade
passada a Francisca Mina em 01 de julho de 1718. Manumissa gratuitamente em função dos
serviços por ela prestados, Francisca seria imediatamente restituída à sua qualidade de
cativa se permanecesse nas Minas enquanto por lá estivesse Manoel Gouveia. 33 Situação
mais delicada era a de Natália, alforriada em 18 de junho de 1715, também gratuitamente
em reconhecimento a seus serviços, pelo capitão Pedro de Almeida, sob a condição de
poder ser, a qualquer momento, reconduzida à escravidão se essa fosse a vontade de seu
benfeitor, o capitão Pedro de Almeida. 34 Ocorrências extremas como as acima relatadas -
em um caso, os ex-donos não queriam ver suas ex-escravas nem pintadas, e, noutro, o ex-
senhor poderia fazê-lo quando bem o desejasse -, indicam a complexidade inerente à
escravidão e reforçam a conclusão apontada por Stuart Schwartz, segundo a qual, “a
escravidão foi um sistema, e não um simples conjunto de relações econômicas”. 35
Outros casos corroboram ainda mais a assertiva acima. Ainda no ano de 1715, o
padre franciscano João Coelho alforriou Ana da Silva (gratuitamente) sob a cláusula de que
caso ela voltasse a servir a qualquer outro senhor, deveria ser imediatamente reconduzida ao
cativeiro sob as ordens dos padres franciscanos mais próximos da localidade na qual Ana se
encontrasse.36 Antônia, negra Mina alforriada por José Ribeiro mediante a prestação de
futuros serviços, deveria acompanhá-lo a qualquer parte “assim da América como do Reino
e não lhe faltando a obediência por que nesse caso a poderá obrigar a cativeiro ou vendê-
la”.37 Destino quase idêntico foi o de Lourença da Costa, negra Mina alforriada por serviço
em 08 de abril de 1717, sob a condição de servir a Manoel da Costa enquanto este
permanecesse na América.38 Mais indeterminado foi tempo de espera submetido à Ventura
e a Teodózia, ambas crianças e com três anos de idade. Não obstante terem obtido suas
liberdades gratuitamente junto a Manoel Coelho Melo, Ventura e Teodózia seriam
obrigadas a esperar, e talvez torcer, pela morte de Manoel para efetivamente serem
reconhecidas como libertas.39 Em tese,

>
32. ACSM, LN. 04, Io of., 18 maio 1715.
33. ASCM, LN. 08, Io of., 01 jul 1718.
34. ACSM, LN. 04, Io of., 18 jun 1715.
35. SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: Edusc, 2001, p. 218.
36. ASCM, LN. 04, Io of., 12 set 1715.
37. ASCM, LN. 04, Io of., 18 nov 1715.
38. ASCM, LN. 05, Io of., 08 abr 1717.
39. ASCM, LN. 09, Io of., 18 dez 1718.

100
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR

Afonsa e Olaia aguardariam menos tempo por tal reconhecimento. Foram alforriadas sob a
condição de servirem, respectivamente, por mais quatro e dois anos a seus senhores. 40
Percebe-se, pois, que uma carta de alforria nem sempre significava uma imediata
inclusão do manumisso nesse rol. Muito menos “isentava o liberto de todas as obrigações
para com o ex-senhor” (Schwartz, 2001: 212). Não apenas as ressalvas impostas nas cartas
de alforria detinham a faculdade de reinstituir o ex-cativo à sua antiga condição, como
também o poderiam fazer os herdeiros dos senhores que passaram a carta. Dessa forma,

o registro de alforria constituía-se em um hábito adotado, na


maioria dos casos, com o objetivo de se evitar contestações
quanto à intenção do proprietário, resguardando sua vontade,
principalmente contra os litígios de herdeiros, e preservando o
interesse do escravo atingido pelo benefício.41

E mais, além de conferir garantias jurídicas a um documento expedido em âmbito


particular - o que atribuía um aumento na proteção ao liberto se porventura seu novo
estatuto fosse contestado -, registrar a alforria em cartório

poderia apresentar uma dimensão simbólica cujo alcance


talvez ajude a esclarecer algo sobre o significado da condição
de liberto em relação à de escravo mesmo que tal não se
desdobrasse em qualquer modificação significativa das
condições vividas sob o cativeiro (Gonçalves, 1999: 232).

De qualquer forma, se “ascender na hierarquia social exigia dos escravos ultrapassar


o cativeiro por meio da via institucional (isto é, conservadora) da alforria”, 42 nada mais
natural do que os cativos buscarem dar garantias jurídicas às suas cartas de liberdade. A
meu ver, isso insinua que no complexo jogo do sistema escravista colonial na América lusa
os escravos não apenas eram capazes de identificar e compreender suas regras como, por
vezes, agiam com base nelas.

40. ASCM, LN. 08, Io of., 29 abr 1718 e 27 maio 1718, respectivamente.
41. GONÇ AVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade: estudo sobre a prática das alforrias em Minas colonial e
provincial. São Paulo: USP/FFLCH, Tese de Doutorado, 1999, p. 167.
42. FLORENTINO, Manolo. Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista. Topoi. Revista de História. Rio
de Janeiro, PPGHIS/UFRf/7 Letras, n. 5, set, 2002, p. 10.

101
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Uma das imagens mais precisas das relações estabelecidas entre senhor/escravo no
contexto da manumissão talvez tenha sido pintada por Ligia Bellini, autora cuja análise
buscou apresentar um cativo possuidor da ciência de “seduzir, tomar-se cúmplice dos
senhores, aproveitando oportunidades e locomovendo-se taticamente no sentido de tomar a
sua vida a melhor possível”. E ainda:

Na convivência cotidiana, na micropolítica da vida diária,


podemos observar escravo e senhor tendo freqüentemente que
negociar entre si, enfrentar-se, fazer acordos, enfim, criar
espaços em que um e outro têm sua chance de exercer
influência e pequenos poderes.43

Apenas ressaltaria que estas relações se davam em proporções desiguais, sendo que,
evidentemente, o escravo estava em condições menos favoráveis do que seu senhor. Dessa
forma, várias estratégias foram empreendidas pelos cativos na busca pela suas
manumissões, dentre as quais o estabelecimento de laços de solidariedade, quer entre si
mesmos - como o casamento, por exemplo -, quer com outros senhores
- como as relações de compadrio.
Das 159 alforrias pagas no período em questão, 35 o foram por outras pessoas que
não o próprio manumisso. O peso da família pode ser atestado pelo fato de terem sido vinte
as cartas de liberdade pagas por membros consangüíneos. O destaque fica por conta da
participação feminina, responsável por dezessete pagamentos, quinze pela alforria de seus
filhos e dois de seus maridos. Já o homem agiu como pai em duas ocasiões e como irmão
em uma.44 Tais dados reforçam a capacidade feminina, em função de sua participação em
atividades mercantis, de acumular pecúlio 45 para, dentre outros destinos, a compra de sua
alforria ou a de algum parente seu. Essa característica pode ser plenamente constatada
observando-se o caso de Maria Correia, já citado anteriormente.

43. BELLINI, Lígia. “Por amor e por interesse: a relação senhor/escravo em cartas de alforria”, in REIS, João
José (org.). Escravidão e inversão da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.
74. Sobre a refinada negociação entre senhor e escravo ver: Kelmer Mathias (2005a); KELMER
MATHIAS. As condições da governabilidade: um refinado jogo de interesses na América Lusa da primeira
metade do século XVIII. LPH - Revista de História, volume duplo, edição comemorativa, n. 14, 2006b;
KELMER MATHIAS. De volta às condições da governabilidade, na busca de um equilíbrio: notas acerca
da sociedade mineira na primeira metade do século XVIII. REHB - Revista Eletrônica de História do Brasil, v.
7, n. 2, 2005b; e Fragoso (2005).
44. ACSM, LN 2-11, Io of.
45. FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII.
Rio de Janeiro: José Olympio. 1993.

102
r O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR

Em 30 de julho de 1718, Maria Correia, então preta forra e de naturalidade mina,


pagou 300$000 mil-réis a Vicente Jorge pela alforria de seu marido, Miguel Mina. 46 Cerca
de dois anos antes, ela havia adquirido sua própria liberdade pagando ao capitão Domingos
Gonçalves Barbosa a exata quantia de 300$000 mil-réis 47 Para que não se tenha dúvida
acerca da importância do valor total reunido por Maria, em 1717 o preço médio de “uma
morada de casas” na Vila do Carmo era de 439$ 154 réis. 48 Para além do casamento entre
escravos de plantéis diferentes, também pode ser percebido o peso da família no calculo
econômico dos cativos. A mulher surge como o principal elemento responsável pela sua
própria alforria, a do filho e, às vezes, a do próprio marido.
Que não se despreze uma maior afeição da mãe do que do pai em relação ao filho, a
enorme desproporção entre a participação materna e a paterna na libertação de seus
progênitos pode ser explicada em função mesmo da inserção feminina em atividades
ligadas ao pequeno comércio. Negras de tabuleiro, quitandeiras e moças- dama, a mulher
escrava nas Minas setecentista gozava de meios mais diversificados daqueles, por via de
regra, à disposição do homem - minerar e atuar em atividades agropastoris, mormente.
A importância do compadrio pode ser atestada por terem sido catorze os casos nos
quais o ônus da manumissão paga recaiu sobre a figura do padrinho ou da madrinha.
Alguns exemplos ilustram com bastante clareza as diferentes estratégias postas em práticas
pelos cativos no momento de buscarem padrinhos para si mesmos e seus filhos. Em 12 de
janeiro de 1716, Maria de Almeida, criança crioula de 5 anos, teve sua alforria paga a
Jerônimo da Fonseca Gomes por Maria de Almeida, sua madrinha e escrava de Domingos
de Sousa Dias. 49 Destacando o fato de serem homônimas, percebe-se o afeto muito
provavelmente existente entre madrinha e afilhada e entre a madrinha e a mãe da afilhada, a
qual batizou sua filha com o mesmo nome da futura madrinha, Maria de Almeida. Esse
afeto ganha proporções ainda maiores em função de a madrinha ter pagado 72$000 mil-réis
- cerca de 19% do valor necessário para sua própria manumissão - pela alforria da afilhada,
sendo que ela mesma continuaria no cativeiro.
Caso semelhante ocorreu com Suzana Benguela, que pagou por sua carta de
liberdade 240$000 mil-réis ao capitão José Correia Penteado. O interessante é registrar
como foi composta a referida quantia. Dela, Suzana contribuiu com a maior parte,

46. ACSM, LN. 08, Io of., 30 jul 1718.


47. ACSM, LN. 04, Io of., 19 jul 1716.
48. KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Relatório anual: Rio de Janeiro: UFRJ/PPGHIS, 2006c.
49. ACSM, LN. 04, Io of., 12jan 1716.

103
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

192$000 mil-réis. Os outros 48$000 mil-réis couberam a duas outras escravas inteirar. 50
Não posso afirmar a ocorrência do compadrio no caso acima, mas isso não impede a
existência de alguma relação de solidariedade, ou até mesmo de reciprocidade, entre as
cativas acima. Fato esse indicador da riqueza, assim como da complexidade, das relações
sociais escravistas havidas entre esses agentes históricos.
Padrinhos com condição social mais elevada também atuaram no auxílio a seus
protegidos na busca pela liberdade. Dentre as catorze ocorrências, três assim o foram.
Contudo, mais interessante do que os casos nos quais um padrinho - com patente de capitão
ou sargento-mor - pagou pela alforria de seu afilhado, são os casos em que essas pessoas o
fizeram sem que a relação de compadrio se perpetrasse. Este foi o ocorrido, por exemplo,
com Maria de Encarnação, figura que pagou 276$000 mil-réis por sua liberdade a
Alexandre Álvares de Castilho. Desse total, 116$400 réis foram pagos pelo capitão José
Rodrigues Lima.51 Pela documentação, não é possível identificar a natureza da relação
existente entre o capitão José Rodrigues e Maria da Encarnação, o que não excluiu o
próprio compadrio. Mas lança luz sobre as diferentes estratégias empregadas pelos escravos
nas suas empreitadas em prol da liberdade. Caminho diferente tomou Antônia, cativa que
teve sua alforria paga pelo padre Manoel Gomes da Cruz a Manoel Ferreira da Costa. O
padre alegou ter arcado com os 264$000 mil-réis necessários para a manumissão de
Antônia por estar a fazer uma “esmola” a ela. Porém, não obstante este nobre ato de
caridade, a referida forra imediatamente assimilou à categoria de liberta a de devedora, pois
o padre estipulou prazo para Antônia dar conta da quantia.52
Paulatinamente, descortina-se o cotidiano daqueles inseridos nas relações de
manumissão. Em um contexto no qual homens e mulheres mandavam em outros homens e
mulheres, o sexo feminino levava vantagem. Não propositadamente todos os exemplos
acima alçaram o femeo no rol dos libertos. Que se confira o valor devido à importância do
homem na produção do ouro e dos gêneros de abastecimento, assim como ao seu valor
enquanto braço armado senhoril, as mulheres parecem ter sido mais versadas nos trâmites
daHberdade. Conforme se verá, na lida com seu senhor, seus filhos eram os mais
beneficiàtíos.
Para que dúvidas não restem sobre a versatilidade da mulher no trato com seu senhor
em prol da liberdade própfia ou de seus filhos, cito o caso passado com Joana. Em 28 de
maio de 1719, João de Brito alforriou, de uma tacada só, Joana e seus cinco filhos. Moça
iniciada cedo na vida sexual, Joana - agraciada com a manumissão em

50. ACSM, LN. 09, Io of., 23 jan 1719.


51. ACSM, LN. 08, Io of., 30 maio 1718.
52. ASCM, LN. 02, Io of., 04 abr
1715.

104
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR

função de seus serviços prestados - deu a luz ao menino crioulo Caetano com 15 anos.
Cerca de dois anos depois, nasceu Roberto. Decorridos mais dois anos, veio Gertrudes.
Félix esperou um pouco mais, três anos. Voltando à média, Maria, a caçula, deu suas caras
no mundo decorridos outros dois anos. Não obstante Joana ter obtido sua liberdade por
serviço, Caetano, Roberto e Gertrudes foram alforriados gratuitamente. Segundo João de
Brito, além dele os haver criado “como se fossem seus filhos” e ter por eles “muito amor”,
os alforriava “por desencargo de consciência”. Quem sabia o que se dava na consciência de
João de Brito já passou dessa para melhor - ou pior! Vai ver bateu o arrependimento de
alguma ação desferida por João aos três guris, ou talvez se tratasse de uma expressão de
época com significado específico. O que realmente importa é o meio pelo qual Félix e
Maria alçaram à liberdade. Suas alforrias foram concedidas mediante pagamento. A coisa
fica ainda mais interessante quando se observa não ter sido Joana a responsável pelo
pagamento. Para a liberdade de Félix concorreu seu padrinho, José Pereira de Almeida, com
os 88$800 réis necessários. O benfeitor de Maria, novamente um padrinho, foi Jacinto
Sanches, figura que desembolsou 60S000 mil-réis.53
Pode-se argumentar o fato de terem sido Caetano, Roberto e Gertrudes filhos de
João com Joana, caso não válido para Félix e Maria. Em função de seus serviços prestados,
Joana obteve sua liberdade sem pagar por ela no momento da manumissão. Por amor a seus
filhos ilegítimos, João os alforriou também gratuitamente. Por castigo à pulada de cerca de
Joana, João somente conferiu a manumissão a Félix e Maria mediante pagamento, cena da
qual participam os respectivos padrinhos - talvez os verdadeiros pais. Especulações à parte,
incontestável foi a capacidade de Joana de negociar com seu senhor e com os padrinhos de
seus rebento, além da própria alforria, a liberdade de seus cinco filhos, três gratuitas e duas
pagas. Ou seja, de uma única vez, a mulher cativa passou pelas três mais difundidas formas
de obter a manumissão. Notam-se as várias estratégias empreendidas por Joana, assim
como seu universo de orientações valorativas (Barth, 1981).
Por fim, uma curiosidade. De um documento de leitura delicada, presente no Livro
de Nota número 06, do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, consta terem estado
Maria, a escrava, e Antônio Álvares, o proprietário, a registrar mais uma carta de liberdade.
Todavia, o tabelião, sem dizer o porquê, interrompeu a feitura do documento limitando-se a
escrever em caixa alta “não teve efeito”, sem, contudo, relatar o motivo pelo qual “não teve
efeito”. É sabido o fato de nem mesmo uma carta de alforria registrada em cartório ser
garantia total da condição de liberto, podendo, em muitos casos, o forro ser reconduzido à
servidão ainda que não conste da carta

53. ACSM, LN. 09, Io of., 28 maio 1719.

105
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

nenhuma cláusula para tanto. Porém, parece-me interessante atentar para o fato de até
mesmo no momento exato do registro da carta de alforria ser possível senhor e escravo
entrarem em desentendimentos, e, por conseguinte, quebrarem o acordo da liberdade.
Ainda que este não tenha sido o motivo real pelo qual a escritura não tenha tido efeito, fica
aqui registrada a idéia...

\
>

106
Flagrantes do Quotidiano: Um Olhar sobre o Universo
Cultural dos Homens Livres Pobres em São João Del-Rei
(1840-1860)

1
Edna Maria Resende

Esta comunicação elegeu como protagonistas, sapateiros, alfaiates, pedreiros,


seleiros, funileiros, arreadores, soldados, artesãos, jomaleiros, enfim, trabalhadores livres e
forros enredados em relações quotidianas ordinárias. Não fosse o envolvimento dessas
pessoas em brigas, agressões, assassinatos, roubos, que desencadearam uma série de
procedimentos por parte da Justiça para incriminá-las, provavelmente muito pouco
poderíamos saber dessa parcela da população excluída dos processos políticos do Brasil
imperial.
Os homens livres e pobres foram durante muito tempo tratados com pouca
consideração pela historiografia. Os estudos historiográficos, orientados por uma
concepção que reduzia a sociedade e a economia colonial e imperial ao tripé da grande
propriedade, da monocultura exportadora e do trabalho escravo, deixaram a massa de
homens livres expropriados à margem da História. Apesar desse descaso, alguns estudos
tiveram, como objeto, os livres pobres. Esses trabalhos, no entanto, não rompem com essa
perspectiva reducionista da economia e da sociedade brasileira, enxergando os livres pobres
como um setor marginalizado e desclassificado. 2
Não obstante ter a historiografia registrado a existência de uma parcela crescente da
população livre e não proprietária de escravos, ela atribui a essa camada social um lugar de
indefinição na sociedade. Caio Prado Júnior, ao descrever a estratificação da

1. Doutoranda na UFMG e professora da Unipac, em Barbacena/MG


2. Sobre o assunto podemos citar, por exemplo: PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 21a ed.,
São Paulo: Brasiliense. 1989; FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 2a
ed., São Paulo: Ática, 1974; MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século
XVIII. 2a ed., Rio de Janeiro: Graal, 1986.
r

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

sociedade colonial, coloca senhores e escravos nos extremos da organização econômica e


social da Colônia. Em meio a essas duas categorias nitidamente definidas e entrosadas na
obra da colonização, abre-se um vácuo imenso, ocupado pela camada dos desclassificados,
dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou
sem ocupação alguma (Prado Jr., 1989:281).
A explicação para a instabilidade, fluidez e desclassificação desse setor social que
vivia à margem da vida colonial encontra-se, segundo o autor, na onipresença da escravidão
e no sistema econômico da produção colonial. A utilização do trabalho escravo nos vários
setores econômicos gerou uma visão pejorativa do trabalho, visto pelo trabalhador livre
como indigno e desabonador. Além disso, a grande lavoura exportadora restringia as
perspectivas de inserção daquela parcela da população não engajada na produção de gêneros
destinados à exportação. Um mercado interno insignificante e dependente das incertezas do
mercado internacional limitava as possibilidades de participação daquela camada
desclassificada, caracterizada por sua ociosidade e turbulência. 3
O desenvolvimento de pesquisas sobre o mercado interno acenou para a existência
de atividades produtivas muito diversificadas. Descobriu-se, ainda, imensa diversificação
social nos padrões de propriedade escrava. No Brasil escravista, embora grande parcela da
população livre não possuísse escravos, os livres, libertos e mesmo cativos eram
proprietários de escravos.
Tais especificidades levaram a uma relativização dos posicionamentos que
explicavam a sociedade escravista brasileira no tocante à relação polarizada entre os
senhores e os escravos. Por outro lado, os chamados “homens livres pobres” não podem
mais ser vistos como um setor social sem perspectivas de inserção social. Se eles não
participavam diretamente da produção de gêneros destinados à exportação, certamente
desenvolviam alguma atividade ligada ao mercado interno.
Não se pode ignorar a importância da população livre em termos numéricos. Durante
o século XIX, houve significativo crescimento demográfico, especialmente da população
livre de cor. Sefpo) um lado, essa parcela da população não fazia parte da elite econômica e
política, por òutro, não se deve apressadamente considerá-la à margem da vida econômica e
sbcial do país, numa situação de anomia e desclassificação. ^
A força de trabalho cativo não foi empregada exclusivamente na agroexportação. As
pesquisas também evidenciam a diversificação social nos padrões de propriedade escrava.
Pelo menos até 1850, em muitas regiões, a posse de cativos era bastante

3. A constituição da imagem dessa parcela da população livre não inserida nas atividades produtivas como vadia e desclassificada
deve-se, em grande parte, à utilização dos discursos das autoridades e da elite da época como fontes de pesquisa.

108
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO

difundida. Predominava uma maioria de pequenos proprietários. 4 Até a extinção do tráfico


africano, a oferta de escravos era bastante ampla, o que possibilitava o acesso à propriedade
escrava não só da população livre como dos libertos e cativos. Por outro lado, significativa
parcela da população livre não era proprietária de escravos. 5
Também a questão fundiária foi marcada por profundas diferenças regionais e
temporais no Brasil escravista. Segundo Hebe de Castro, havia larga difusão da posse da
terra, não se definindo claramente a fronteira entre riqueza e pobreza, existindo, inclusive,
proprietários de terras empobrecidos e posseiros abastados (Castro, 1988: 41-2).6
Diante de um universo social tão complexo e diversificado impõe-se a necessidade
de relativizar a noção de homens livres pobres. Essa necessidade ganha uma relevância
ainda maior se levarmos em conta os dados demográficos. De acordo com o recenseamento
de 1872, a população do Império constituía-se de 4,2 milhões de negros e mestiços livres,
3,8 milhões de brancos e 1,5 milhão de escravos. 7 Levando- se em consideração as
dimensões reduzidas da elite econômica e política, enxergar a camada livre e não
participante das decisões políticas como marginalizadas, econômica e socialmente,
significa condenar milhões de pessoas, livres e escravas, a viverem numa não-sociedade,
marcados pela desclassificação e pela anomia (Castro, 1995: 39-40). Por outro lado, a
marginalização dessa camada da população não pode ser atribuída à sua funcionalidade na
organização socioeconômica escravista.
Priorizar o estudo dessa camada livre da população não significa, contudo, negar a
importância da escravidão na sociedade brasileira. O mundo dos homens livres foi marcado
pela cultura escravista. O significado da liberdade era definido em oposição ao da
escravidão. A experiência da liberdade na sociedade escravista foi marcada pela
possibilidade de os homens moverem-se e fixarem-se, criando laços capazes de romper com
a transitoriedade (Castro, 1995:15-58).

4. Para Minas Gerais, no século XVIII, Francisco Vidal Luna aponta a predominância de proprietários com um a
quatro escravos, apud CASTRO, Hebe Maria Mattos de. “Novas perspectivas acerca da escravidão no Brasil”,
in CARDOSO, Ciro Flamarion S. (org.). Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1988, p. 32. Considerando a primeira metade do século XIX, em Minas Gerais, Libby aponta a
difusão do grupo de proprietários com cinco ou menos escravos. Cf. LIBBY, Douglas Cole. Transformação e
trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 98.

5. De acordo com Libby, a grande maioria dos domicílios mineiros (66,7%) não possuía nenhum escravo.
Somente um terço da população livre teve acesso à propriedade escrava. Cf. Libby (1988: 98).
6. Conforme observa a autora: “O acesso à terra e à propriedade escrava não configuram um parâmetro
absoluto para se estabelecer a estratifícação social entre os homens livres sob o escravismo”.
7. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil
século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p.39.

109
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

A produção de novos livres pela ordem escravista era contínua, em conseqüência


dos processos de empobrecimento e das alforrias. A inserção social desses homens móveis
foi marcada, no entanto, por uma hierarquização racial. A referência à cor da pele apontava
uma diferenciação social.
Os homens livres, para enfrentar o desenraizamento, além de estabelecer laços,
procuravam ter acesso a casa e roça próprias, e, principalmente, tomar-se senhores de
escravos. A facilidade de acesso à propriedade de cativos, presente até meados do século
XIX, possibilitou a homens livres e forros adquirirem escravos. Chegaram eles a constituir
a maioria dos proprietários de cativos no período. A pulverização da propriedade escrava
levava à legitimação da propriedade de cativos, assim como valorizava nas representações
da liberdade o ideal de não-trabalho. O trabalho regular era visto com desprezo na
sociedade escravista, sendo associado à condição escrava. Dessa forma, um homem seria
livre à medida que não trabalhasse ou vivesse de rendas.
Depois de 1850, a noção de liberdade vigente até então começa a mudar. Diante
desse novo contexto de perda de legitimidade da escravidão, o ideal de liberdade
referenciado à cor branca e à potência da propriedade escrava fragiliza-se. Embora a noção
de liberdade não se identifique mais com a cor branca e com a propriedade escrava, ela
continua ainda a definir-se em oposição à escravidão. A identidade dos homens livres agora
se constrói com base na mobilidade, na autonomia e na ausência de coerção física.
Talvez a autonomia dessa camada social seja a chave para compreendermos a
marginalização presente no discurso da época, atribuindo ao livre pobre o estereótipo de
vadio e desclassificado. A facilidade de os homens livres garantirem sua sobrevivência sem
se subordinar aos grandes proprietários, a autonomia que tinham para buscar assalariamento
eventual e temporário, a aversão ao trabalho regular para outrem faziam com que
escapassem do controle social presente nas relações de dependência pessoal. Assim,
homens livres e libertos, ao se negarem a trabalhar regularmente para outrem e ao fugirem
do controle direfcTàos grupos dominantes, eram tidos como vadios pela elite. \
A discussão apresentada acima deixa claras as limitações da percepção da sociedade
escravista estratificadá entre os senhores, os escravos e os homens livres pobres. Se, por um
lado, os homens livres se definiam em oposição aos escravos, por outro, os lugares sociais
ocupados pelos homens livres apresentaram variações de região para região. Dessa forma, a
proposição da estratifícação social para determinada localidade precisa obedecer às
especificidades regionais, evitando-se estabelecer rótulos.
Dentro dessa perspectiva, o desenvolvimento da província de Minas Gerais, com
economia dinâmica, diversificada, mercantilizada e voltada para o abastecimento

110
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO

do mercado interno, não pode ser encarado nos moldes do desenvolvimento das regiões
agroexportadoras.
O conhecimento mais adequado da história de Minas oitocentista é viável somente
com a realização de estudos regionalizados da sociedade mineira provincial. Diante das
inúmeras especificidades que marcaram a realidade oitocentista mineira, toma-se relevante
dirigir nossa atenção para a cidade de São João del-Rei.
São João del-Rei, durante o século XIX, caracterizava-se por uma vigorosa atividade
comercial, e se constituía em um importante entreposto que exportava para o Rio de Janeiro
gêneros de abastecimento e centralizava o fluxo de mercadorias de diferentes regiões.8
Além disso, a cidade destacava-se como centro financeiro e creditício. 9 São João del-Rei
apresentava infra-estrutura urbana consolidada, com aglomerado de mais de mil casas,
número expressivo de artesãos e vendas bem supridas de produtos importados. Já no início
dos Dezenove, os viajantes que passaram pela região não deixaram de se impressionar com
o dinamismo e a urbanização da Vila.
Cidade com intensa atividade comercial, São João del-Rei certamente oferecia mais
oportunidades de participação a seus habitantes e, provavelmente, apresentava
peculiaridades quanto àestratificação social, aos espaços de inserção socioeconômicada
população, aos lugares sociais ocupados por brancos e mestiços, livres, forros e escravos.
Os distritos do município de São João del-Rei eram predominantemente agrícolas,
embora existisse um grupo importante de artesãos, de pessoas ligadas ao comércio e de
trabalhadores livres prestadores de serviços, além de pessoas que se dedicavam à pecuária,
à mineração, às funções públicas, à saúde e ao ensino. Essas atividades eram
desempenhadas predominantemente por homens. As mulheres dedicavam-se à fiação e à
tecelagem, aos serviços domésticos, aos trabalhos em tecidos e às atividades agrícolas. 10
O espaço urbano da cidade de São João del-Rei oferecia reais oportunidades de
inserção econômica e social à população de cor, especialmente num contexto cultural
marcado pela hierarquização racial, em que a cor da pele era definidora de status na
sociedade. Além disso, o fato de a cidade oferecer um amplo leque de oportunidades à
população faz-nos especular sobre a existência de uma estrutura social mais aberta, que
possibilitava, inclusive, a mobilidade social em alguns setores. 11

8. LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil (1808-
1842). São Paulo: Símbolo, 1979.
9. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A Princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais (São João
del-Rei, 1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
10. MARTINS, Ângela M. “Século XIX: estrutura ocupacional de São João del-Rei e Campanha”, in V Seminário
sobre a Economia Mineira, Cedeplar/UFMG, Belo Horizonte, 1990, pp. 31-51.
11. A partir da Lista Nominativa de Habitantes de 1838 foi possível indicar alguns setores ocupacionais em que
estava alocada a população, como o comércio, as funções públicas, as atividades mecânicas
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Na verdade, os núcleos urbanos, ao concentrar grande número de atividades


artesanais, exerciam papel fundamental na vida daqueles que dominavam um oficio
especializado. À medida que ofereciam um quadro de relativa abertura aos homens livres e
libertos, representavam uma opção para romperem com a situação de transitoriedade e se
fixarem, estabelecendo relações pessoais e garantindo um lugar social no mundo dos livres.
Diante da complexidade do contexto econômico e social da província mineira e da
cidade de São João del-Rei, especialmente, toma-se problemático definir os artesãos e os
assalariados como pobres livres nos moldes da historiografia clássica. Mas, se não viviam
em uma situação de anomia e desclassificação, afinal como viviam os artesãos e jomaleiros,
livres e forros, brancos, pardos ou negros no espaço urbano de São João del-Rei? Que
valores e significados pautaram suas existências e seu quotidiano?
Os processos criminais representam uma das poucas possibilidades de tomarmos
contato com o universo de pessoas anônimas que viveram em outra época sem deixar
qualquer outro registro. Essa documentação mostra-se bastante fecunda, possibilitando-nos
captar diversas nuanças de seu universo cultural. Embora a intermediação da linguagem
jurídica formalizada permita apenas o acesso a histórias de vida fragmentadas, com a
análise qualitativa desses fragmentos pode-se recuperar as experiências quotidianas dessas
pessoas. Mesmo que consigamos enxergar apenas alguns lampejos dessas histórias, ainda
assim suas revelações são de uma riqueza impressionante, permitindo-nos imaginar um
quotidiano povoado de festas, bebedeiras, laços de amizade, tensões e brigas.
Essas pessoas viviam em uma sociedade marcada por relações pessoais. Ao se
estabelecerem no universo urbano, necessariamente criaram relações comunitárias,
desenvolvendo fortes laços de solidariedade, amizade e vizinhança. Tais relações
aproximavam livres e libertos, brancos empobrecidos e mestiços, unindo e identificando
culturalmente essa parcela da^opulação.12

e manuais, que ocuparam parcela bastante expressiva da população. Foi possível ainda investigar a inserção
social da população tenjtó como referência a cor. O cruzamento dos dados sobre cor e ocupação indicou que
algumas ocupações eram desempenhadas predominantemente pela população branca, outras pela população
de cor e a maioria tanto por brancos, quanto por mestiços e pretos. Para um detalhamento dessa questão, ver:
RESENDE, Edna Maria. Entre a violência e a solidariedade: valores, comportamentos e a lei em São João del-Rei
(1840-1860). Belo Horizonte: UFMG/ Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Dissertação de Mestrado,
1999.

12. Aqui, não podemos deixar de considerar a perspectiva de classe proposta por Thompson, em que se destaca a
importância da experiência comum compartilhada na formação de uma identidade de interesses entre um
grupo social. Cf. THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da libertação. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997, v. 1.

I 12
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO

As relações pessoais desempenhavam papel estrutural na sociedade escravista.


Estabelecer laços era condição fundamental para a inserção na ordem social, escapando- se
da desclassificação e da anomia. A vida de livres, libertos e escravos entrelaçava-se em
relações quotidianas verticais e horizontais. Em alguns processos criminais, as relações
pessoais verticais são referidas. Um réu, denunciado por tentativa de homicídio, acusa as
testemunhas de serem suas inimigas, em vista da dependência delas de um inimigo do réu.13
Em outro caso, o réu atribui a denúncia a seu inimigo, que teria insuflado a ofendida a
intentar a queixa.14 Não obstante a existência da dominação pessoal, que pressupõe relações
recíprocas de favores e obrigações, emerge dos processos analisados uma intrincada rede de
relações pessoais horizontais. Nota-se uma convivência muito próxima entre os livres,
pertencentes a um mesmo grupo social, e os escravos. Por mais que a legislação se
esforçasse para cercear esse convívio, são inúmeras as referências que denotam a estreiteza
desses relacionamentos. 15
A vida quotidiana do grupo social analisado foi fortemente marcada por relações de
amizade, parentesco e vizinhança. Dos 57 casos investigados, em 28 essas relações
aparecem explicitamente.16 Em outros processos, embora as relações de vizinhança não
estejam na base da motivação dos crimes, percebe-se sua presença no depoimento das
testemunhas. Muitas pessoas acabavam testemunhando os acontecimentos por
encontrarem-se à janela de suas casas. Numa sociedade com poucas opções de
divertimento, bisbilhotar a rua era uma prática corriqueira, acessível a todos. A própria
arquitetura das ruas e casas favorecia o devassamento da vida alheia. Na verdade, esse
controle sobre a intimidade alheia demonstra a importância das relações comunitárias na
vida do indivíduo, que só existe dentro de um grupo. 17

13. Processo 02, caixa 05,1841. Arquivo do Museu Regional de Sào João del-Rei (AMRSJDR).
14. Processo 12, caixa 05, 1841. Ver também: Processo 09, caixa 12, 1856; Processo 05, caixa 15, 1859.
AMRSJDR.
15. Os artigos 135 e 136 do Código de Posturas da Câmara Municipal de São João del-Rei proibiam as danças de
batuques e não permitiam aos escravos tocar, cantar, dançar nas ruas e povoações, embora abrissem uma
exceção para as festas religiosas (quibetes e reinados), desde que não fossem à noite (art. 137). Os escravos
que não estivessem comprando também estavam proibidos de freqüentar e permanecer nas tavemas e casas
de bebidas (art. 203). A população estava proibida, ainda, de jogar entrudo (art. 151).

16. Em dez casos há relações de vizinhança, em onze de amizade e em oito as tensões resultaram de relações
amorosas. Foram analisados 66 documentos, mas nove deles são partes separadas dos processos (execuções
de sentenças, por exemplo), ou tratam de traslados decorrentes de pedidos dos réus para serem julgados
individualmente.
17. John Lucoock, em Notas sobre o Rio de Janeiro epartes meridionais do Brasil (Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1975, p. 302), chama a atenção para esse traço arquitetônico: “A aparência geral de São João
del-Rei é a de todas as vilas portuguesas da mesma categoria; as casas são baixas,

113
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

O estabelecimento de sólidos vínculos familiares e pessoais era fundamental para


que livres e forros rompessem com os processos de desenraizamento e provisoriedade. As
relações comunitárias eram condição essencial para a garantia da sobrevivência, já que as
relações de solidariedade vertical eram estabelecidas entre famílias e não entre indivíduos
(Castro, 1995: 53-75).18 As relações comunitárias eram marcadas pelo princípio de
solidariedade, possibilitando a complementaridade de seus membros mediante relações de
contraprestação. Entretanto, essas relações de reciprocidade coexistiam com as rupturas e
tensões.19
Os ajustes violentos irrompem momentaneamente, e estão associados a
circunstâncias corriqueiras do quotidiano, envolvendo vizinhos, amigos e colegas de
trabalho. Atividades rotineiras, como recolher lenha, poderiam inesperadamente resultar em
agressões violentas, como a história vivenciada, em 1841, por Poncianna Vieira,

crioula forra, moradora nesta cidade [São João del-Rei], Rua


do Tejuco que no dia 1.° de novembro indo ao Morro que serve
de quintal das cazas do fallecido Serafim dos Anjos Vieira
Maxado, serião 4 ou 5 óras da tarde a apanhar huns gravetes
para o fogo, lhe sahindo ao encontro Joze de Calazans, e José
Rodrigues de Matos e a maltratarão rigorosamente de
pancadas e depois com toda a barbaridade e a a rastarão (sic)
pella orta abaixo, athe a porta da rua, onde a jugarão no meio,
e ahi a maltratarão de (sic) novamente como tudo consta dos
autos.2tf

caiadas de branco, e munidas de janelas de rótula; as ruas são estreitas, torcidas, longe de uniformes, e muito
escorregadias (...). O assento das casas é de tal forma irregular que elas dominam e devassam umas às
outras, sendo as que mais alto se colocam escolhidas para sedes de repartições públicas ou para as
residências particulares melhores”.
18. Segundo a autora: “(...) para o^horflens livres, a família nuclear como unidade de produção e consumo e a
reciprocidade entre iguais eram aj)ase econômica da sobrevivência. (...) A solidariedade vertical cabia,
fundamentalmente, o papel de'^ustentar as condições costumeiras que davam estabilidade a todo o sistema”
(p. 75). Assim, a manéira culturalmente esperada de um migrante integrar-se numa nova área não era
pedindo emprpgo ou acolhida a um potentado local, mas travando relações duradouras com os que ali
viviam, baseados em relações costumeiras. Do ponto de vista do homem livre, a solidariedade vertical era,
assim, herdada de relações horizontais anteriores, antes que escolhida (P- 74).

19. Maria Sylvia de C. Franco (1974), ao analisar as condições de vida dos homens livres das regiões do café,
mostra que na organização social desse grupo, caracterizada pela extrema carência, estão presentes
elementos integradores e elementos de ruptura. As conclusões da autora, embora referentes aos pobres livres
de uma região agroexportadora, podem ser aplicadas ao universo cultural dos livres urbanos de São João del-
Rei.
20. Processo 12, caixa 05, 1841. AMRSJDR.

I 14
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO

Situações como a de Poncianna Vieira são típicas de grupos sociais assombrados


pela escassez dos recursos de sobrevivência. Uma cultura fundada em mínimos vitais, ao
mesmo tempo em que institui relações de complementaridade, conduz também a uma
expansão das áreas de atrito e a um agravamento das pendências daí resultantes (Franco,
1974:26). No caso do processo acima, a lenha representa bem indispensável, e
provavelmente escasso, tanto para a preta Poncianna quanto para o réu, o funileiro Joze
Calazans. A competição estabelecida entre eles resolveu-se com a eliminação do adversário
por meio da violência.
No entanto, a violência não está presente exclusivamente nas situações que põem
em risco a sobrevivência. Como demonstra Franco, a violência eclode de circunstâncias que
não comprometem as probabilidades de sobrevivência, apresentando um caráter costumeiro
e suficientemente arraigado (Franco, 1974: 28). Qualquer motivo era suficiente para esses
homens se armarem e liberarem sua agressividade com ameaças, injúrias e pancadas.
Diante do desaparecimento de sua besta, o oficial de carpinteiro Antonio José de Siqueira
armou-se com uma faca de ponta e foi até a casado Alferes Elias da Costa Souto, entre 10 e
11 horas da noite, dirigindo ameaças e insultos a Elias. Irado, Antonio Siqueira ameaçava
matar o ofendido e sua família, fazendo correr rios de sangue por aquela mesma rua. 21
Os processos abordados acima remetem-nos para a tentativa de compreensão dos
significados dos atos violentos. A existência de diferentes tipos de violência, com
diferentes significados, impõe a necessidade de se investigar as evidências contextuais dos
casos para caracterizar os atos violentos. 22
A persistência de irrupções momentâneas sugere, nesse momento, a ineficiência do
discurso civilizador em domesticar os impulsos agressivos, prevalecendo um conjunto de
valores próprios dessas camadas baixas urbanas. No entanto, esses comportamentos
irracionais e impulsivos não deixaram de ser identificados pela camada dirigente como
bárbaros, incivilizados e criminosos. Burton, um europeu portador dos conceitos da
civilização, escandaliza-se com o que vê:

Os pobres matam uns aos outros por causa de brigas por


questões de terras, perdas no jogo, amor e bebida; a cachaça

21. Processo 03, caixa 14, 1859. AMRSJDR.


22. Diante dessa diversidade de significados, Pieter Spierenburg, em “Faces of violence: homicide trends and
cultural meanings (Amsterdam, 1431-1816)” (Journal of Social History, 1994, pp. 701-16), propõe a
classificação da violência como impulsiva, racional, ritual e instrumental, apontando um sistema de dois
eixos relacionados, mas distintos. Um dos eixos opõe violência ritual (guiada por códigos culturais
implícitos da comunidade) à violência instrumental (que pressupõe um meio para um fim), sendo seu fator
determinante o significado social do ato. O segundo eixo opõe a violência impulsiva à violência racional
(planejada) e é determinado pela personalidade do ator.

I 15
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

termina sempre em derramamento de sangue. Via de regra,


todos os homens andam armados (...). O derramamento de
sangue é encarado sem muito horror; praticamente, não há
aquela preocupação e aquele respeito pela vida humana que
caracterizam os antigos países da Europa.23

Em uma sociedade em que o uso da força era muito difundido, e na qual as pessoas,
apesar de todas as proibições, andavam armadas, a violência era prática corriqueira. 24
Livres, libertos e escravos, brancos, pardos ou pretos, partilhando valores culturais e
experiências comuns, viviam e trabalhavam numa cidade onde as atividades comerciais,
muito mais que um espaço de sobrevivência, constituíam-se no centro da vida social das
pessoas. Durante o dia, envolvidos na labuta do cotidiano, esses homens teciam relações
sociais baseadas na solidariedade e na amizade. Por outro lado, a faina diária também era
marcada por relações tensas. No final da tarde e à noite, explodia a violência. A rua e as
casas de negócio eram os cenários mais freqüentes para esses acontecimentos, que viravam
notícia e corriam de boca em boca.
Numa cidade em que, somente de vez em quando, a rotina era rompida pelo temor e
maravilhamento provocados pela chegada das companhias de circo e teatro, a rua era o
espaço de lazer e de encontros entre as pessoas. 25 Era também um dos focos de tensão social
e de conflitos. Na rua, tinham lugar tanto as festas religiosas, as procissões e as alvoradas,
quanto os batuques e as comemorações dos dias santos do entrudo. Nessas ocasiões, as
pessoas se divertiam, estreitando-se o convívio entre escravos, livres e forros. Mas essas
reuniões eram ainda o espaço para que alfaiates, pedreiros, sapateiros, jomaleiros,
carpinteiros, caldeireiros, funileiros, livres ou escravos acertassem suas diferenças. Em
muitos processos, o crime era motivado pela existência de rixas antigas entre os envolvidos.
O pardo Antonio Marcelino, sapateiro, numa noite de abril de 1840, atirou com uma
espingarda no escravo Manoel Mina. Segundo uma testemunha, o réu Antonio Marcelino já
andava de rixa antiga e premeditada para

23. BURTON, Richard. Viagem do Rio de 'Janeiro a Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Universidade
de São Paulo, 1976,jy 331.
24. A análise dos diferentes tipos de crime, atentando para sua contextualização, para suas motivações e para seus
traços ritualísticos possibilitará a compreensão dos diversos aspectos da violência e do universo cultural dos
envolvidos. Os protagonistas em questão envolveram-se principalmente em crimes contra a pessoa
(agressões físicas, homicídios e injúrias verbais), crimes contra a propriedade (furtos e roubos), e crimes
contra a ordem pública (infração de posturas, desacato à autoridade e porte de armas proibidas). Para uma
análise detalhada da questão da violência, ver: Resende (1999: 90-131).

25. Sobre os espetáculos de teatro e circo em Minas Gerais no século XIX, ver: DUARTE, Regina Horta. Noites
circenses. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO

com o preto Manoel Mina.26 Também motivado por antigas rixas, o alfaiate Anastacio José
da Silva feriu com facadas José Leandro de Souza. As testemunhas afirmaram que os
envolvidos, tendo bebido, estavam espiritualizados.27
Na maioria das vezes, no entanto, os desentendimentos, insultos e brigas surgiam de
brincadeiras mal compreendidas. Essas brincadeiras e as disputas amorosas entre amigos,
freqüentemente embriagados, acabavam resultando em ferimentos graves e, às vezes, em
morte, como se pode perceber da história do réu Francisco Lucio. Num domingo de
fevereiro de 1849, por ocasião do entrudo, o jomaleiro Francisco Joaquim Lucio feriu
gravemente Manoel Antonio Pereira, levando-o à morte. O próprio réu disse que tinha
amizade com o ofendido, vivendo como irmãos. As testemunhas confirmaram que eles
andavam sempre juntos. Uma testemunha contou que era costume do ofendido, empregado
no abate de animais, oferecer a Francisco Lucio carne e sangue dos animais que ele abatia.
Certa feita, Francisco Lucio e Manoel Pereira, depois de jantarem e beberem aguardente na
casa de Manoel dos Passos - patrão do réu - acompanhados de um escravo, foram até o
lugar denominado Pau do Angá para brincarem o entrudo, atirando limões uns nos outros.
Segundo o réu, “entrando o dito Manoel Antonio Pereira para o terreiro e sendo molhado
ahi voltou com um taxo (sic) de água suja ou podre e atirou nas ditas suas irmãs, molhando
os carros e parecendo mal a elle respondente”. Além disso, o ofendido passou a descompor
com palavras as irmãs do réu. Um pouco depois desses desentendimentos, por volta das
cinco horas da tarde, Francisco Lucio encontrou Manoel Pereira em frente a um açougue,
na Rua do Curral, dando-lhe várias facadas.28
Todavia, a rua não era o único espaço de convivência entre o lazer e a violência.
Quotidianamente, eram as vendas, as casas de negócio e as tavemas os locais mais
freqüentados pelos diversos segmentos da população pobre e pelos escravos. Ainda no
século XVIII, as vendas eram vistas como abrigo de atividades ilícitas, como espaço de
desordem, ao possibilitarem encontros furtivos e relações ilícitas, e promoverem festas
suspeitas, além de levarem os escravos a dilapidarem seus jornais. No século XVIII, a
aglomeração de pessoas no interior das vendas era vista com temor pela elite. A reunião de
escravos, resultando em planejamento de fugas, a comercialização de ouro roubado, a
presença de negros quilombolas em busca de pólvora e chumbo para a resistência, ao lado
de oficiais mecânicos à procura de gêneros alimentícios, instrumentos de trabalho e roupas
transformavam as vendas

26. Processo 02, caixa 05, 1840. AMRSJDR.


27. Processo 01, caixa 19, 1859. AMRSJDR. No século XIX, as bebidas alcoólicas eram chamadas de bebidas
espirituosas.
28. Processo 15, caixa 08, 1849. AMRSJDR.

I 17
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

em locais perigosos para a ordem vigente. 29 Essa ameaça se tomava concreta, pois os bailes
e batuques, regados por aguardente, resultavam, quase sempre, em brigas, ferimentos e
mortes.
No século XIX, o quotidiano das vendas e casas de negócio de São João del- Rei
parece refletir ainda muitas das características dos Setecentos. A venda continuava sendo
um espaço procurado não apenas para a aquisição de produtos necessários para a
sobrevivência, mas também continuava sendo, fundamentalmente, um espaço de lazer
coletivo. Os homens pobres livres e os escravos freqüentavam as casas de negócio em busca
de divertimento, de jogos e de bebidas. As posturas da Câmara Municipal proibiam lojas,
tavemas, bodegas e armazéns de ficarem abertos depois das nove horas da noite (art. 202). 30
Essa proibição, porém, não impedia a ocorrência de brigas e ferimentos no interior das
vendas, mesmo depois de fechadas. Foi o que ocorreu na Sexta-Feira das Dores de 1855, na
casa de negócios de Messias Lopes do Nascimento, situada na Rua do Barro. O réu Sérgio
Dias Cardoso, tido como desordeiro pelas testemunhas, entrou na casa de negócios de
Messias armado com uma pistola. Por volta das dez horas da noite, depois de fechada a
porta do estabelecimento, Sérgio começou a ameaçar e injuriar Messias, até que este
conseguiu tomar-lhe a arma.31 Aliás, o hábito de as pessoas andarem armadas, embora o
Código Penal proibisse o porte de armas, 32 seguramente contribuiu para o crescimento do
número de ferimentos e mortes decorrentes de agressões físicas. As brigas e desordens
durante os jogos também deviam ser rotineiras. Pelo menos, esse foi o motivo apontado
para explicar os ferimentos que o pedreiro Francisco José Baptista fez em Sabino José
Francelino, também na Rua do Barro, depois de se alterarem durante uma partida de
truque.33
As Posturas proibiam os jogos de azar nas casas públicas de jogo, tavemas e
botequins (art. 101, § 1 °), além de proibirem terminantemente a participação de escravos
em qualquer tipo de jogo nas casas de negócio ou em qualquer lugar público (art. 103). Não
era permitido o ajuntamento de escravos, exceto se estivessem comprando, em tavemas e
casas de bebídàs (art. 203). Por sua vez, o tavemeiro não estava autorizado a comprar
objetos suspeitos dos escravos (art. 143). No entanto, todas essas situações parecem ter
ocorrido freqüentemente. Os escravos não só eram
>

30. FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
31. Código de Posturas da Câmara Municipal de São João del-Rei, 1829. ORD/132/Ordens Imperiais, 1828-
1841. ACMSJDR, Biblioteca Municipal Baptista Caetano de Almeida, São João del-Rei.
32. Processo 20, caixa 11, 1855. AMRSJDR.
34. Artigo 297. Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1859.
33. Processo 12, caixa 17, 1860. AMRSJDR.

I 18
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO

assíduos freqüentadores dos botequins e armazéns, muitos dos quais se transvestiam em


casas de jogos proibidos, como levavam objetos roubados para o pagamento das dívidas de
jogo. Num processo de infração do Código de Posturas, em 1841, é provável que o escravo
Félix se tenha encontrado nessa situação. Francisco Santos Silva realizava jogos proibidos
em sua residência. Desses jogos participavam o alfaiate Adriano Teixeira Martins,
acompanhado de mais dois companheiros, além do escravo Félix. Ao final do jogo, os réus
se apropriaram de uma quantia em dinheiro que o escravo estava encarregado de levar a seu
senhor, em Vassouras. 34
O processo em que são réus Joaquim José Dias e o alfaiate Joaquim Xavier das
Chagas também é elucidativo. O alfaiate furtou uma peça de casimira francesa da loja de
Severino Chaves de Miranda, na Rua do Curral, e imediatamente foi vendê-la ao negociante
de molhados Joaquim José Dias.35 Em outro processo,36 Joaquim José Dias foi condenado
por promover a realização de jogos proibidos (roleta e rifa) em sua casa de negócios,
situada na Rua do Rosário.
Possivelmente, muitos roubos e furtos, envolvendo pobres livres e escravos, estejam
relacionados aos jogos. Talvez seja esse o caso dos pretos forros João Capistrano de Souza
Caldas, oficial de sapateiro, e Martinho da Paixão Paiva, oficial de alfaiate. Ambos
roubaram a quantia de um conto e tantos mil réis do estabelecimento comercial de Manoel
Gomes de Castro, localizado na Rua Direita.37
Se o comércio realizado nas vendas, nos armazéns e tavemas preservou muitos
traços do século XVIII, em pelo menos um aspecto podemos notar uma sensível
modificação. No século XVIII, grande parte das tarefas relacionadas ao comércio e ao
abastecimento era desempenhada pelas mulheres (Figueiredo, 1993). 38 No século
XIX, as mulheres estão ausentes do espaço público. Com exceção das festas religiosas,
raramente as mulheres ocupam o espaço da rua. Recolhidas em suas casas, elas cuidavam
dos afazeres domésticos e da fiação e tecelagem. De agentes da desordem, no século XVIII,
foram transformadas em criaturas pacíficas. Raros são os casos como o da parda Emília
Maria de Jesus, espancada em 1856 com um chicote pelo alfaiate Polidoro da Silva
Brandão, na Rua do Barro, devido a desentendimentos e rixas. 39

34. Processo 09, caixa 05, 1841. AMRSJDR.


35. Processo 03, caixa 16, 1859. AMRSJDR.
36. Processo 15, caixa 15, 1859. AMRSJDR.
37. Processoll, caixa 12, 1856. AMRSJDR.
38. Como vimos, na Lista Nominativa o número de mulheres empregadas no comércio é insignificante. Da
mesma forma, a presença das mulheres nos processos criminais, seja como testemunha ou ré, é
infinitamente menor se comparada aos homens: 69 mulheres (22,8%) foram arroladas como testemunhas e
apenas 4 (5%) foram processadas como rés.
39. Processo 16, caixa 12, 1856. AMRSJDR.

I 19
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Os homens freqüentadores das tavernas e armazéns eram vistos como turbulentos,


desordeiros e vadios. Na sociedade escravista, o trabalho era identificado com a condição de
escravo. Essa mentalidade levava os pobres livres e os libertos a trabalharem apenas o
suficiente para a subsistência e, muitas vezes, a procurarem garantir a sobrevivência
cometendo atos ilícitos.40 Por isso, foram rotulados de vadios e desordeiros. A grande
maioria dos envolvidos nos processos declarou, porém, ter ocupação. Em 66 documentos
analisados, apenas dois réus foram acusados de vadiagem. Mas, para as autoridades, a
participação dos pobres livres nessas reuniões noturnas, regadas de aguardente, para se
divertirem e jogarem, freqüentemente se envolvendo em situações violentas, não deixava de
ser manifestação da ociosidade dessa parcela da população.
Na verdade, há um distanciamento entre a legislação e os princípios norteadores da
vida quotidiana dessas pessoas, que trabalhavam e se divertiam, bebendo e jogando, e que
pelos mais variados motivos brigavam e, em seguida, se reconciliavam. Na maioria dessas
histórias, a solidariedade e a violência caminhavam lado a lado. E é essa característica que
toma compreensível o surgimento de agressões inesperadas, resultando em ferimentos ou
mortes entre pessoas que mantinham relações amistosas. É ainda esta ligação entre violência
e solidariedade a chave para entendermos o enorme índice de desistências observadas nos
processos criminais. Curiosa é a justificativa dada pelo ofendido Adão Franco, crioulo, no
termo de desistência que ofereceu no processo em que o réu Manoel Luis de Jesus foi
acusado de agressões físicas. Adão crioulo desistiu de acusar Manoel por considerar de sua
inteira responsabilidade os ferimentos que sofreu, uma vez que caiu sobre a faca ao tentar
alcançar o réu. Ele declarou que

em dia do mês de outubro do anno de mil oitocentos e trinta e


nove achava-se em a Praia da Agua Limpa com o supplicado
Manoel Luis de Jesus com quem sempre teve amisade e vevião
na maior armonia/farrfo que estando o supplicante algum tanto
alterado de bebidas espirituosas travou-se de rasoens com o dito
supplicado Manoel Luis de Jesus e este vendo que elle
supplicante o queria máltratar com uma faca que trasia retirou-
se, e este supplicante sempre perseguindo aquelle, acontesse que
ao tempo em que se lançava sobre elle com aquella faca na mão
precipitou-se elle suplicante, e sobre a mesma cahira de

40. REIS, Liana M. “Poder, vadiagem e marginalização social em Minas Gerais (1850-1888)”, in XVIII Simpósio
Nacional de História - História e Identidades, Recife, 1995, mimeo, pp. 6-9.
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO

maneira tal que se ferio com ella gravemente. Ora elle


suplicante mal aconselhado requerera perante o Juiz de Paz um
auto de corpo de delicto, que de fato se fez, porém doendo-lhe
na sua consciência (...) e tambem não querendo que padessa a
innocencia Por ser elle suplicante o proprio agressor isto mesmo
o queria declarar por termo, para que quando viesse aparecer
aquele Auto já mais elle possa servir de base para ser
processado o Suplicado pois nestas offensas não teve este parte
alguma.41

O exemplo máximo de restabelecimento das relações de solidariedade depois da


eclosão da violência nos é dado pelo termo de desistência interposto pelo ofendido José da
Costa no processo contra seu agressor, o carpinteiro Antonio Fernandes de Souza. 42 José da
Costa, alegando ter amizade com o réu e estar condoído com a miséria da mulher e da mãe
do suplicante, pede para ser deferido o termo de perdão ao réu, pois mesmo tendo sido o réu
que cometeu o crime, mas o que não afirma, foi sem dúvida por si achar fora de si mesmo
por bebidas espirituosas e que a ofensa foi leve, visto ter se recuperado em menos de 25
dias.
Para a Justiça Oficial, as justificativas dadas pelos réus e testemunhas para explicar o
crime de Antonio Fernandes eram descabidas, não passavam de motivos frívolos. Este foi o
posicionamento do promotor, referindo-se aos motivos que levaram o réu a espancar José da
Costa. Para o promotor, o réu cometeu o crime sobre o frívolo pretexto de ter o ofendido
comunicação com os espíritos invisíveis.
No entanto, para essas pessoas, as justificativas eram plausíveis. O recurso à
violência era uma prática legítima e válida. Diante de insultos e agressões, o homem não
podia acovardar-se. Necessitando mostrar sua coragem e ousadia, a violência não deixava
de pertencer à ordem natural das coisas.
Por outro lado, a Justiça Oficial marcava presença com um código abstrato e alheio a
esses valores. Mas essa presença paralela impedia a defesa consciente das práticas
violentas. Na realidade, havia uma adesão formal às normas jurídicas, como denota a
própria denúncia dos crimes perante a Justiça. A denúncia freqüentemente era atribuída aos
maus conselhos de uma pessoa inimiga. No entanto, essa adesão convencional a valores
externos manifesta-se também no próprio desenrolar do processo, com a desistência dos
ofendidos, que chegam até mesmo a negar a ocorrência do delito denunciado por eles.

41. Processo 13, caixa 05, 1858. AMRSJDR.


42. Processo 01, caixa 10, 1853. AMRSJDR.

121
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Essas atitudes ganham significado se inseridas num sistema de valores que incorpora
a violência não apenas como um comportamento regular, mas positivamente valorado
(Franco, 1974: 500). Se para os códigos legais o comportamento violento dos pobres livres
configurava crime, porque infringia a lei, para os pobres livres a violência não adquire essa
conotação. Nossos protagonistas, vivenciando relações que oscilavam entre a solidariedade
e a violência, não enxergavam como crime os ajustes violentos em que se envolviam. Ao
contrário, seus atos violentos eram tidos como legítimos e normais.

122
ESCRAVIDÃO E MESTIÇAGEM NA CRÔNICA COLONIAL: ENTRE
AMÉRICA E ÁFRICA

Eliane Garcindo de Sá1

O processo de colonização, elemento constitutivo do movimento de mundialização


que assinala o que se convencionou denominar Idade Moderna transformou de maneira
profunda o contato entre as sociedades no planeta. Um processo de migração de
abrangência, amplitude e profundidadejamais experimentadas, se instala e se desenvolve
crescentemente. Etnias e culturas distintas - grupos fenotipcamente diversos são postos em
contato interagindo sob relações de poder controladas nas suas diretrizes mais amplas por
europeus, na constituição da ocidentalidade.
Na montagem, manutenção e expansão de um complexo sistema mundial de
produção, parte da população mundial é redistribuída e todo e qualquer sistema de valores e
referências é redimensionado. Do convívio entre sociedades e grupos distintos nas suas
trajetórias e composição étnico-cultural diferenciadas se impõe a (re)construção de sistemas
de reconhecimento e referência de identidades e alteridades para todos os elementos
constitutivos de uma nova articulação econômico-social-cultural de âmbito mundial.
A escravidão negra foi responsável pela diáspora de grande parte da população
africana. A América recebeu desde logo um enorme contingente de escravos negros cuja
participação exerceu papel fundamental na inserção da região no sistema colonial. Em
algumas zonas ele foi, de fato, condição central na colonização.

1. Departamento de História da UERJ.


w

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

As relações entre colonizadores e colonizados, entre “brancos”, “negros” e “índios”,


livres e escravos desenham as sociedades modernas e marcam acentuadamente a história
das regiões que alimentam e recebem os contingentes de negros escravizados. Os atores
sociais que vivenciam as novas condições e relações atuam nesse cenário, avaliando e
refletindo sobre as práticas e representações que se forjam. Constroem novos sistemas de
referências através dos quais se posicionam e definem diretrizes e projetos aos quais
emprestam adesão.
Entre finais do século XVI e início do XVIII, uma geração já nascida sob a vigência
da colonização ibérica na América e na África registra, nos cânones da cultura das letras e
da historicidade moderna, expressões de um “pensamento mestiço” em que se pode
observar construções de referências constituídas sobre as condições históricas em que se
insere e atua.
Estes continentes estarão em continuada relação, a África alimentando com sua
população e cultura a América, receptora desta população. As trocas entre essas regiões
serão aprofundadas com o comércio triangular através do Atlântico. As condições históricas
destas relações de dimensões locais, regionais e mundiais apontam para o entendimento do
que se poderia tratar como “histórias conectadas”. A consideração da multiplicidade destas
condições e circunstâncias expressas nas construções representativas de e em sua própria
gênese representa um desafio e uma possibilidade de ampliar horizontes neste quadro
histórico.
A crônica colonial - produzida nas regiões coloniais por atores da colonização
- representa importante material para o conhecimento da questão das relações nas
sociedades coloniais e de suas complexas articulações mundiais.
Aqui estamos focalizando um conjunto de fontes constituído pelas obras de dois
cronistas oriundos do Vice-Reino do Peru, um “índio” e um “mestiço”, e de um “mulato” de
Cabo Verde. Estes contemporâneos, cuja produção dos discursos coincide com a vigência
da União Ibérica, têm como interlocutores as metrópoles e o universo da monarquia
católica, e fornecem importantes elementos e referências sobre as relações sociais - raciais,
religiosas e culturais. Não só pelo que narram, mas ainda e principalmente pela abordagem
qufe sustenta a estrutura dos textos e a argumentação dos discursos sobre a escravidão e ò
negro, alcançam nosso interesse específico no momento. Permitem observar oi
fundamentos, os elementos e articulações entre registros que se constituem como sistemas
de referência para seus protagonismos diante da questão.
Os atores em foco são o “índio” Felipe Waman Poma de Ayala, da obra Nueva
crônica y buen gobierno; o “mestizo” Inca Garcilaso de la Vega, da obra La Florida e
Comentários reales; e o “mulato” André Alvarez D’Almada, da obra Tratado breue dos Rios
de guiné do cabo verde des do Rio de Sanaga ate os baixos de Santa Anna; de todas as nações de
Negros q(ue) ha na ditta costa, e de seus Costumes, armas,

124
E SCRAVIDÃO E M ESTIÇ AGEM NA C RÔNIC A C O LONIA L

trajes, juramentos,
gerras feito pelo capitão Andre Aluares dalmada natural da Ilha de santhiago de
cabo verde pratico e versado nas ditas partes. Ano 1594}
O exercício de reflexão que aqui se propõe se sustenta nos discursos produzidos
pelos autores, identificando elementos do sistema de referências que preside as narrativas
em relação à questão étnica e social que envolve os diferentes grupos em interação na
condição colonial, nos seus primórdios. É um exercício inicial que visa apontar as
possibilidades de estudos comparativos de circunstâncias históricas cuja conexão pode ser
observada através da consideração de alguns critérios que presidem a abordagem dos
autores sobre as relações raciais e a questão da escravidão. Estas observações podem ser
cotejadas entre as obras e autores e analisadas à luz da consideração do lugar de inserção
dos autores, enquanto atores distribuídos em maior ou menor distância geográfica, atuando
sob condições históricas locais bastante diversificadas, certamente, mas enfrentando
questões semelhantes, da Guiné às índias.
Dentre os textos selecionados, o de Almada foi o primeiro a ser produzido. Observe-
se também que esta produção tem origem na região da qual estarão sendo distribuídos
grandes contingentes de escravos para o mundo colonial americano.
André Álvarez D’Almada, primeiro autor mulato da África portuguesa, nasceu na
ilha de Santiago, Cabo Verde. Era filho do capitão Ciprião Álvares de Almada, “nobre e um
dos principais daquela ilha”, e de uma “mulher parda”, sendo “neto de uma mulher preta
por parte de sua mãe”. Este mestiço foi “capitão” e comerciante nas ilhas de Cabo Verde e
na Guiné; a 19 de agosto de 1598 recebeu o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo.
Almada escreveu em 1594 uma obra de que se conhecem duas versões semelhantes
com o título3 Tratado breue dos Rios de guiné do cabo verde des do Rio de Sanaga ate os baixos
de Santa Anna; de todas as nações de Negros q(ue) ha na ditta costa, e de seus Costumes, armas,
trajes, juramentos, gerras feito pelo capitão Andre Aluares dalmada natural da Ilha de santhiago
de cabo verde pratico e versado nas ditas partes. Ano 1594.4

2. AYALA, Felipe Guaman Poma de. El Primer Nueva Corónica y Buen Gobierno. Edición critica de John Murra y
Rolena Adomo. México: Siglo XXI, 1980, 3 vols.; VEGA, El Inca Garcilaso de la. Comentários reales de los
incas. Prólogo, edición y cronologia de Aurélio Miro Quesada. 2a ed., Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1983,2
vols.; D’ALMADA, André Álvarez. Tratado Breve dos Rio de Guiné do Cabo Verde dês do Rio Sanagá até os
baixos de Santa Ana de todas as nações de negms que há na dita costa e de seus costumes, armas, trajos, juramentos,
guerras. Feito pelo capitão André Álvarez d'Álmada natural da Ilha de Santiago de Cabo Verde prático e versado nas
ditas partes, Ano 1594. Leitura, introdução e notas de Antônio Brásio. Lisboa: Editorial L.I.A.M., 1964.

3. GARCIA, José Manuel. A historiografia portuguesa dos descobrimentos e da expansão (séculos XV a XVII):
autores, obras e especializações memoriais. Lisboa, 2006, no prelo.
4. Aqui estamos utilizando a publicação citada anteriormente, organizada por Antônio Brásio (D’Almada,
1964).

125
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Este texto de Almada permaneceu desconhecido até 1841. As diversas intenções


atribuídas ao autor em estudos posteriores não puderam ser confirmadas por falta de
registros. O que se pode, entretanto, depreender da leitura do texto, é que ao escrever uma
“verdadeira notícia” sobre a região, fundada no conhecimento direto da região está
manifestado o interesse de Almada na evangelização, ocupação e controle sobre a região
descrita por parte dos portugueses. A salvação das almas - de brancos e negros - é um
argumento para insistir na necessidade da assistência religiosa. Outro argumento e favor da
atenção da metrópole para a região é a presença ameaçadora de ingleses e franceses. Trata-
se, portanto, de garantir a posse e controle do território colonial.
O texto produzido por Almada se caracteriza pelo distanciamento em que se coloca
o autor com relação à África e aos negros. Como observa Brásio (D’Almada, 1964: xvi),
Almada é um “português mestiço”, mas, observamos nós, cuja qualidade mestiça, embora
registrada, não cria vínculo de identidade entre o autor e as origens africanas. A descrição
que faz do universo a que se refere é predominantemente a de uma visão da natureza. No
entanto, a diretriz de organização do texto segue uma seqüência ditada pela localização dos
diversos grupos de negros nos limites da área sobre a qual se propõe tratar:

E como os reinos dos negros sejam tantos e as linguagens tão


várias como os costumes diversos, porque em cada espaço em
menos de vinte léguas há duas e três nações, todas misturadas, e
os reinos uns pequenos, e outros grandes, sujeitos uns aos
outros, e como suas seitas e costumes e as leis do seu governo e
juramentos venham, pela maior parte, a ser todos uns, não será
necessário fazer declarações (nem) particular menção, porque
de todos direi geralmente (D’Almada, 1964:2).

Almada registra a presençà de grupos distintos, mas que não destaca do conjunto na
narrativa: \

E este Fulos são detés homens robustos bem dispostos, a cor


amulatada, os cabelos corredios, e ainda alguns crespos, trazem
as barbas crescidas (...). Estes Fulos deste sertão, vendo a um
dos nossos, pasmam pelos verem brancos, sem embargo de eles
não serem negros (D’Almada, 1964:16 e 18).
Há em toda esta terra os Jalofos, Barbacins e Mandingas, uma
nação de negros tida e havida entre eles por Judeus; não sei de
donde precederam (...)

126
E SCRAVIDÃO E M ESTIÇ AGEM NA C RÔNIC A C O LONIA L

Estes Judeus quando morrem não os enterram em terra como


os outros (...).
Os mais negros desta Costa enterram-se por esta maneira: têm
seus cemitérios ao longo das aldeias aonde moram (D’Almada,
1964:35 e 38).

A narrativa focaliza num mesmo plano as descrições e considerações sobre gentes,


produtos, acidentes geográficos, animais, usos e costumes. A escravidão praticada pelos
negros aparece como continuidade do registro da nesta seqüência. Paralelamente, surgem
juízos da distinção entre esta escravidão e a escravidão para os colonizadores, como dos
efeitos da ação evangelizadora sobre as relações complementares entre estas.

Os escravos que hão e vendem cativam em guerras e em juízos e


furtos, porque os vão furtar de uma parte a outra. E são
grandes ladrões e vendem muitos escravos furados a estes
negros. Viu-se já em Guiné trazerem a vender alguns escravos
destes aos nossos, e eles por respeito de os defenderem não os
compraram. E os que os traziam e vinham vender. Por não
serem descobertos, os mataram em terra; não sei de fora bom
comprá-los, porque resultava disso receberem o batismo e
serem cristãos; não me meto mais largo nesta matéria, porque
são casos que eu não sei determinar.
Nesta terra de Guinala se fez a maior feira que há em toda a
terra dos negros, chamada de Bijorrei, na qual se ajuntam mais
de doze mil negros e negras, os mais formosos que há em todo o
Guiné. E vendem tudo o que naquela terra á e das
circunstantes, a saber: escravos, roupa, mantimentos, vaca,
ouro que há nesta terra algum e fino. (...)
Não deixará de alterar-se o preço dos escravos e das outras
mercadorias povoando-se esta terra; mas é necessário que se
acuda (mais) ao serviço de Deus, que ao proveito dos homens
(D’Almada, 1964:46 e 100).

Algumas observações pontuais sinalizam uma hierarquia na consideração das


diferenças entre os grupos descritos, sustentada por critérios de “civilização” e aparência
física:

127
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Estão estes Arriatas e Falupos por amansar e são muito negros e


se entendem os Ariatas com os Falupos (...)•
Tornando a estes Falupos que habitam nesta terra de doze
graus, ao longo do mar, são negros pretos; chamo pretos (a)
muito negros (D’Almada, 1964:60 e 61).

Pode-se sem receio afirmar que Almada se representa como parte do projeto
português que não demonstra qualquer vinculação aos negros, e que os descreve como
componentes. A escravidão é naturalizada e a sua própria condição de mestiço não parece
interferir ou ser considerada como elemento na construção de referências relativas ao
universo africano. Quando menciona “os negros da nossa África” está se referindo a um
contingente com o qual se relaciona como colonizador. A nossa África não é a África dos
negros, mas dos portugueses.
É dessa África, e muito especialmente a partir de Cabo Verde e São Tomé, que
seguem os escravos negros para as colônias espanholas, e a partir de 1535 aumentam sua
entrada no Peru, enquanto se reduz a entrada de negros vindos da Metrópole. Valorizam-se
os bozales em detrimento dos hispanizados (Alencastro, 2000).
O reconhecimento da presença negra e da condição escrava tem distinto caráter no
Novo Mundo. A diferença das condições provocada pela introdução do negro nas índias
permite uma distinta percepção do lugar e atribuição de valores e elementos classificatórios
em relação aos grupos. Um exemplo pode nos ajudar a precisar a direção.
Entre os nossos testemunhos busquemos a Garcilaso. A referência mais antiga a uma
“taxionomia” dos grupos em contato se encontra em Garcilaso no seguinte trecho:

El governador Hemando de Soto, con mucho contento de averlo


hallado, mandó a dos soldados naturales de la de Cuba,
mestizos, que asífíos llaman em todas las índias Occidentales a
los que somos hijos 1^e espanol y de índia o de índio y espanola,
y llaman mulaüos, como en Espana, a los hijos de negro y de
india o de índio y de negra. Los negros llaman criollos a los hijos
de espanol y espanola y a los hijos de negro y negra que nascen
en índias, por dar a entender que son nascidos allá y no de los
que van de acá de Espana. Y este vocablo criollo han
introduzido los espanoles ya em su lenguaje para significar lo
mismo que los negros. LLaman assimismo cuarterón, o
cuatratuo, al que tiene cuarta parte de índio, como es el hijo de
espanol y de mestiza o de mestizo y

128
»

E SCRAVIDÃO E M ESTIÇ AGEM NA C RÔNIC A C O LONIA L

de espanola. Llaman negro llanamente ai guineo y espanol a do


que es. Todos estos nombres ay en índias para nombrar las
naciones intrusas no naturales delia.5

Uma versão mais detalhada aparece nos Comentários reales, sob o título “Nombres
Nuevos para Nombrar Diversas Generaciones”:

Lo mejor de lo que ha pasado a las índias se nos olvidaba, que


son los espanoles y los negros que después acá han llevado por
esclavos para servirse de ellos, que tampoco los había antes en
aquella mi tierra de estas dos naciones se han hecho allá otras,
mezcladas de todas maneras, y para diferenciar les llaman por
diversos nombres, para entenderse de ellos. Y aunque en
nuestra historia de La Florida dijimos algo de esto, me pareció
repetirlo aqui, por ser éste su propio lugar. Es así que al espanol
o espanola que va de acá llaman espanol o castellano, que ambos
nombres se tienen allá por uno mismo, y así he usado yo de ellos
en esta historia y en La Florida. A los hijos de espanol y de
espanola nacidos allá dicen criollo o criolla, por decir que son
nacidos en índias. Es nombre que lo inventaron los negros, y ací
lo muestra la obra. Quiere decir entre ellos negro nacido en
índias: inventáronlo para diferenciar los que van de acá, nacidos
en Guinea, de los que nacen allá, porque tienen, por más
honrados y de más calidad, por haber nacido en la patria, que
no sus hijos, porque nacieron en tierra ajena, y los padres se
ofenden si les llaman criollos. Los espanoles, por la semejanza,
han introducido este nombre en su lenguaje para nombrar los
nacidos allá. De manera que al espanol y al guineo nacidos allá
le llaman criollos y criollas. Al negro que va de acá, llanamente
le llaman negro o guineo. AI hijo de negro y de india, o de indio
y de negra, dicen mulato y mulata. A los hijos de éstos llaman
cholo; es vocablo de la isla de Barlovento; quiere decir perro, no
de los castizos, sino de los muy bellacos gozcones; y los espanoles
usan de el para vituperio.

5. VEGA, El Inca Garcilaso de la [16051. La Florida. Introdución y notas de Carmen de Mora. Madrid:
Alianza Editorial, 1988, p. 180.
r

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

A los hijos de espanol y de india o de indio y espanola, nos


llaman mestizos, por decir que somos mezclados de ambas
naciones; fue impuesto por los primeros espanoles que tuvieran
hijos en indias, y por ser nombre impuesto por nuestros padres
y por su significación me lo llamo yo a boca llena, y me honro
con él. Aunque en índias, si a uno de ellos le dicen “sois un
mestizo” o “es un mestizo”, lo toman por menosprecio. De donde
nació que hayan abrazado con grandísimo gusto el nombre
montanés, que, entre otras afrentas y menosprecio que de ellos
hizo un poderoso, les impuso en lugar dei nombre de mestizo. Y
no consideran que aunque en Espana el nombre montanés sea
apellido honroso, por privilégios que se dieron a los naturales de
las montanas de Asturias y Vizcaya, llamándoselo a otro
cualquiera, que no sea natural de aquellas províncias, es nombre
vituperoso, porque en propia significación quiere decir: coza de
montana, como lo dice en su Vocabulario el gran maestro
Antonio Lebrija, acreedor de toda la buena latinidad que hoy
tiene Espana; y en lengua general dei Perú, para decir montanés
dicen sacharuna, que en propia significación quiere decir
salvaje, y por llamarles aquel buen hombre disimuladamente
salvajes, les llamó montanés; y mis parientes, no entendiendo
lamalicia dei imponedor, se precian de su afrenta, habiéndola de
huir y abominar, y Ilamarse como nuestros padres nos llamaban
y no recibir nuevos nombres afrentosos, etc.
A los hijos de espanol y de mestiza, o de mestiza y espanol
llaman cuatralbos, por decir que tienen cuarta parte de indio y
tres de espanol. A los hijos de mestiza y de india o de indio y
mestiza llaman tresalbos, p6índècir que tienen tres partes de
indio y una de espanol. Todos estos nòmbres y otros, que por
excusar hastío dejamos de decir, se han inventado en mi tierra
para nombrar las generaciones que ha havido después que los
espanoles fueron a ella; y podemos decir que ellos llevaron con
las demás cosas que no había antes (...) (Vega, 1983, v. II: 265-6).

Transcrevemos na íntegra o texto, embora longo, para que fiquem evidentes alguns
aspectos. Chama atenção a referência a nações intrusas: no primeiro texto, para indicar os
que não são naturais das índias. No segundo texto citado permanece o registro de distinção
entre naturais e os que chegam com a conquista/colonização -

130
E SCRAVIDÃO E M ESTIÇ AGEM NA C RÔNIC A C O LONIA L

não havia deles antes. Este capítulo transcrito está colocado numa seqüência em que
Garcilaso trata de gêneros introduzidos pelos espanhóis: “Porque a los presentes y venideros
será agradable saber las cosas que nos las habia en el Peru antes que los espanoles lo
ganaran” (Vega, 1983, v. II: 40).
Nessa avaliação, entre as coisas trazidas pelos espanhóis o autor considera que de
melhor chegou às índias foram os próprios espanhóis e os negros que levaram para escravos
para servir-lhes.
A indicação dos “nomes novos” e de seus significados apontam a abrangência das
trocas de gentes e culturas, evidenciando a variedade de tipos e aportes culturais, a
necessidade da troca e da invenção na construção da sociedade indiana colonial.
Garcilaso entende a chegada dos espanhóis como destino e finalidade - cumprimento
de um ciclo. Teria início a terceira idade, em que se consolidaria evangelização e
hispanização, o que representava um avanço e a possibilidade da salvação no modelo
católico. Nessa situação, a presença dos mestizos - categoria em que se classifica com
orgulho - consolidava o projeto. Este grupo representava para ele, que reconhecia a
existência de preconceitos, obra e desejo dos pais espanhóis, o que legitimava o mestiço -
“mezclado de ambas naciones”.
Os negros - introduzidos nas índias como escravos para servir aos espanhóis -
parecem estar em lugar e posição indiscutíveis, parte do cumprimento do destino. Está
registrada a variedade de possibilidades de “miscigenação”, com comentários que se
limitam à construção conceituai dos termos. Os argumentos que apresenta são referências
que atribui aos agentes criadores dos termos. Toma partido apenas na explanação sobre a
condição mestiça, em que se qualifica.
A situação da população negra introduzida como escrava não parece provocar em
Garcilaso qualquer questionamento, o que diferencia o tratamento dos “índios”, tantas vezes
defendidos no conjunto de sua obra.
A abordagem de seu contemporâneo, Felipe Guaman Poma de Ayala, se distancia
substancialmente da interpretação de Garcilaso. Garcilaso era filho de conquistador
espanhol e princesa inca. Vai ainda jovem para a Espanha, onde se estabelece e constrói seu
protagonismo mestiço, dedicando-se às armas, letras e religião no centro do universo
metropolitano, de onde publica e divulga sua produção.
Poma tem uma trajetória bem diferente: é um índio yarovilca, vive na região andina,
presta serviços à administração espanhola, escreve seu texto ao rei como recurso para salvar
o universo indígena dos efeitos dos desmandos, excessos e falta de espírito religioso dos
colonizadores. O texto - sob a forma de uma carta ao rei, escrito em espanhol, aymara e
quéchua, composto por desenhos anotados que compõem a narrativa - não chega às mãos
reais e fica perdido até inícios do século
XX. Uma grande preocupação perpassa todo o texto de Poma: o desaparecimento físico dos
índios e a destruição de seu universo moral e cultural.

131
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS E SCRAVIDÃO E M ESTIÇ AGEM NA C RÔNIC A C O LONIA L

A avaliação que faz da presença do espanhol é, portanto, dúbia, já que afirma As relações entre negros criollos com as índias se apresentam com relações
fidelidade ao rei e faz referência a um desejo de que todos se tomem espanhóis (comentário pecaminosas, de trocas enganosas. Não só os negros criollos são desqualificados, mas
que merece melhor análise em outra ocasião). Ao mesmo tempo responsabiliza o espanhol, também as negras criollas e as índias que se relacionam com eles são “índias putas”. As
colonizador, pela desordem e perda do reino, o que penalizaria inclusive o rei, segundo negras criollas são ladras para servir a seus homens. É importante lembrar que esta
argumenta. representação é recorrente na obra quando o autor trata de espanhóis nascidos nas índias e
Traçando um complexo quadro da situação em que se encontra a região, apresenta de mestiços.
uma descrição étnico-social dos grupos. Entre os espanhóis inclui mestiços e mulatos. Esta A apresentação do espanhol, senhor, tem entrada a partir da ação dos negros, de
classificação é bastante detalhada, e os espanhóis, negros e índios são classificados por paciência e amor a Cristo, que introduz o texto sobre a ação do amo velhaco. Este amo é
diferentes critérios de acordo com sua atividades e atributos - considerando os efeitos de sua igualmente representado em situações de atuação de espanhóis castigando índios, em outras
atuação para o beneficio da coroa e dos índios. Assim, os espanhóis podem ser “criollos”, seções da obra. Igualmente, a postura e reação dos negros se repete em cenas semelhantes
“de Castilla”, “de los tambos”, “cristianos”, etc. Há uma gama de qualidades de origem, onde os castigados são índios.
conduta e moral que situa tanto espanhóis como negros numa ordem valorativa. A origem Pode-se perceber uma grande diferença na abordagem de Poma. Sobretudo, os
espanhola ou africana indica qualidade positiva. Os nascidos nas índias que não sejam negros bozales, de Guiné, aparecem qualificados positivamente como cristãos, portadores de
índios - criollos, negros e brancos - estão, por princípio, apontados com qualidades uma tradição evangelizadora. Seriam estes os mesmos negros descritos por Almada?
negativas. “Mestizos” e “mulatos” são também desqualificados. A mudança radical na avaliação entre os bozales e o criollos, como já se mencionou,
Por princípio, Poma se opõe a qualquer tipo de mestiçagem: “Para ser buena criatura guarda coerência com um postulado do autor relacionado com o que poderíamos chamar
de Dios, hijo de Adán u de su muger Eua, criado de Dios, espanol puro, yndio puro, negro “pureza de origem”. O que assusta Poma e faz condenar entre espanhóis e negros a geração
puro” (Ayala, 1980:661). nascida na colônia talvez seja a concretização da dominação. Esta condição aparece sempre
Os negros merecem uma seção específica no texto e aqui encontramos considerações relacionada com atitudes de luxúria, roubo, destruição de costumes e, sobretudo, com a
de juízos de valor, explicitados pelo autor, com relação à qualidade - negro à condição - inviabilização da geração de índios e possibilidade da geração de mestiços - estes
escravidão - e à circunstância moral - atributos - para qualificação pessoal nas relações representando a grande ameaça para Poma.
vigentes. Não podemos aqui alargar a análise da obra de Poma, mas queremos ainda chamar a
Poma é dos três autores o que mais se detém nas reflexões sobre o negro e a atenção para algumas observações e considerações que evidenciam a multiplicidade de
condição da escravidão. Seu discurso é tecido entre o texto escrito e o desenho anotado, olhares sobre a questão, incluindo aí a abordagem de recepção e reconhecimento da
numa construção complexa, bastante elucidativa. Selecionamos três registros apresentadas chegada de um contingente numeroso de negros, subordinados e escravizados pelos
em desenhos acompanhados dos textos referentes, fazendo observar que na obra de Poma colonizadores espanhóis.
são indissociáveis os recursos da letra e do traço. As figuras 1, 2 e 3, em anexo , ao final Poma propunha um tratamento capaz de permitir a manutenção de uma vida digna e
do^texto, nos permitem acompanhar alguns aspectos da elaboração do estranhamento do cristã. Propugnava que os escravos fossem casados - para o serviço de Deus, multiplicação
auíqr em relação aos negros, a escravidão negra e as relações entre os diferentes grupos em dos filhos de bendição para os céus e multiplicação da fazenda do amo. Deveriam ter sua
interação. própria fazenda e instância administrativa - reguladora dos castigos. Não dispensava o
Uma primeira aproximação^deixa perceber uma representação hispanizada dos castigo, enérgico, para correção de conduta:
negros, em costumes, gestos e vestimentas, mas em que sobressaem aspectos fenotípicos
que identificam e diferenciam negros, índios e brancos. Y ancí em ciendo vellaco un negro o negra es muy santa cosa y
Nas relações entre os grupos pode-se observar, e neste conjunto se traduzem alguns seruicio de Dios y e su Magestad y bien de sus animas y de su
dos princípios do sistema de referências que orienta o autor: os negros, representados em ato carne cargalle de hierro. No ai que asotalle ni brealle. No hace
piedoso de oração, como um casal, traduzem uma condição de igualdade que deveria, para caso de ello. El hierro amansa, para qué aues de estar
Poma, nortear os contatos entre os grupos: negros com negros. amenasándole cin provecho y está em el monte huydo. Ei

132 133
I

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

buen castigo es bues hierros, amansa vellacos, Esto declaro para


el seruicio de Diso y de su Magestad (Ayala, 1980: 665).

Não deixa de reconhecer também os maus tratos dos amos:

Como lleva los buenos negros y critianos tanta pasencia, ciendo


casado, serviendo a Dios el madito de su amo espanol y peor son
lias mugeres con poço temor e Dios y de la justicia lãs maltrata y
pide jornal a cho rreales ya a doze y a quatro reales de tributo.
Y no lê da de comer ni de bestir, andan desnudos;como se uen
esclabos callan y decimulan y se (e(ncomiendan a Dios por los
pobres de ellos. Y no ay justicia y anci se huyen de ellos (Ayala,
1980: 667).

Entre os três autores, Poma é o que realiza uma análise mais circunstanciada da
condição da escravidão, e reconhece qualidade humana do negro, neste caso, igualando
todos os grupos étnicos em contato através do critério moral religioso aplicado geralmente.
O projeto de salvação do universo indígena, a denúncia e o reconhecimento das
atitudes negativas de cada uma destes grupos como fator de desestruturação deste universo
torna o discurso de Poma mais complexo e atento à presença, lugar, atuação e qualificação
moral dos diversos contingentes, e garante um espaço para uma descrição crítica da
escravidão, do negro e da mestiçagem.
Outra diferença que se pode ser observar no cotejo entre estes autores está com a
avaliação positivada da trajetória histórica das sociedades indígenas antes da colonização.
Embora se considerando que as sociedades originárias não se concebessem num tempo
histórico, como o que se desenha no universo da ocidentalidade, os autores indianos
abordam o passado dessas sociedades - anterior à situação colonizadora - a partir da
dimensão da temporalidade ocidental e buscam integrar tal passado, refundado, ^íesmo que
seja como o marco de ruptura - reconhecem e legitimam o passado pré-hispânico. Tanto
Poma como Garcilaso resgatam a tradição de um passadolreinventado. O primeiro, como
caminho, o segundo, como superação; mas ambos como registro de uma identidade em meio
ao estranhamento.
Almada não fala de um passado dos povos descritos que considera perdido, uma vez
que a oralidade teria levado à perda de registro, mas de um presente que deve ser mudado,
objeto de imediata atuação colonial. O universo que descreve não se referencia a sua
identidade.

134
E SCRAVIDÃO E M ESTIÇ AGEM NA C RÔNIC A C O LONIA L

Garcilaso e Poma se identificam com as sociedades originais e identificam os


elementos introduzidos pela colonização com valorações diferentes O primeiro para
postular a mestiçagem, o segundo para negá-la.
Almada não registra a questão da mestiçagem como tema. A menção que faz ao
descrever os fulas (D’Almada, 1964: 16 e 18), mencionando sua cor amulatada, indica
indubitavelmente o registro de características fenotípicas do mulato, percebido como um
tipo específico. Entretanto, a questão da mestiçagem não parece constituir um processo
social similar ao exposto pelos autores andinos que traduzem circunstâncias distintas. Luis
Felipe Alencastro observa, com relação a Angola, que privilégios concedidos a mulatos
teriam contribuído para individualizá-los. Outro fator para que não se reconhecesse
socialmente a mestiçagem seria a africanização dos mulatos, levados por suas mães para sua
aldeias, na ausência dos pais brancos (Alencastro, 2000).
As regras e códigos de convivência entre brancos, negros e índios, ou seja, os
confrontos entre diferentes povos e sociedades na gênese da constituição de um mercado
mundial se produziram em condições de força, desigualdades e poder, cuja estranheza é
possível observar nos discursos dos protagonistas destas cenas.
Na tentativa de, entre outros motivos, organizar os novos e velhos mundos em
confronto, estes atores/autores da mundialização nos deixaram suas referências, certezas e
dúvidas.
Observa-se, através dos seus discursos, uma distinção na identificação dos diferentes
grupos que interagem. Há uma dimensão relacionai entre eles, que permite situá-los.
Garcilaso e Poma falam de índios, espanhóis, negros, mulatos, zambahigos; enfim, de
elementos de uma demografia que recebe, se acrescenta e se diversifica. Em outra situação,
na fonte geradora dos recursos para a escravidão negra que alavancaria a economia
mundial, exportando as peças que o mercado consome, Almada fala de nós e os negros -
vistos para fora do mundo português. São estes negros, expatriados na África, que chegados
às índias, representam a construção de um imenso mercado - de gentes, culturas, valores.
As possibilidades de ampliação e aprofundamento das observações das condições,
correlações e cotejos entre os elementos desta circunstância histórica não se esgotam aqui.
Esperamos ter apontado, ainda que brevemente, possibilidades de reflexão sobre aspectos
relevantes na construção das sociedades coloniais, definidos a partir das condições da
escravidão moderna.

135
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

7 oi

PRIMEIRA HISTÓRIA {...} CRISTIANO NEG}RO, NE}grã que salen se negros bozales de Guinea (...)
Déstos salió el bienauenturado San Juan Buan{auentura]/ Sacra Magestad qe el rey de Guinea negro
son gente rrecia que uenzerá al Gran Turco / sugetará para el servicio de Dios y de buen a corona
rreal, ayudándole con armas y comida/ (Ayala, 1980: 663).lio Miro Quesada.
E SCRAVIDÃO E M ESTIÇ AGEM NA C RÔNIC A C O LONIA L

/&06{720} / NEGROS/COMO LLEBA EM TANTA paciência y amor de Jesucristo los puenos negros
y negras y el vellaco de su amo no tiena caridad y amos de prógimo/ soberbioso/(Ayala, 1980:
666).
E S C R A V I DÃ O , Mestiçagem e Histórias Comparadas

709)723} / NEGROS/ CÓMO LOS CRIOLLOS negros hurtan plata de sus amos para enganar a lãs yndias
putas, y lis negras criollas hurta para servir a sus galanes espanoles y negros./”Caymi culqe, yndia”
{“Aqui tienes plata, yndia"} /”Apo, muy cino” {Senor, muy senor”}/ luxuria/ (Ayala, 1980: 669).
CHAFARIZES E MÁSCARAS: PEQUENA REFERÊNCIA A PARTICIPAÇÃO
AFRICANA NA PRODUÇÃO ARTÍSTICA MINEIRA

Fabiano Gomes da Silva1

Anos atrás, o historiador inglês A. J. R. Russell-Wood sugeriu uma reavaliação dos


estudos sobre a escravidão africana no Brasil colonial. Na oportunidade, ele propôs
ponderar a migração forçada de milhões de africanos para a América portuguesa através do
prisma africano. Esse contingente de imigrantes chegou aos portos da colônia “com valores,
crenças, comportamentos, práticas, conceitos e perspectivas sobre eles próprios, sobre seu
papel na sociedade e no mundo e sua posição nele”, o que os distinguia dos escravos e
libertos nascidos no Brasil.2
Anteriormente, outros historiadores brasileiros e brasilianistas também destacaram a
importância dos estudos sobre as sociedades africanas para o entendimento dos processos
de formação do país. Nesses trabalhos, nossa história colonial começava a ultrapassar os
limites territoriais impostos pela metrópole, afastando-se das perspectivas que percebiam a
colônia como simples prolongamento da Europa, para cada vez mais ser entendida dentro
da complexa relação de complementaridade com o continente africano. 3 Muitos desses
pesquisadores aceitaram o desafio de diminuir a distância entre as histórias da África e do
Brasil, contribuindo decisivamente para o entendimento da história codificada e não escrita
que constitui a dimensão africana da nossa formação. 4

1. Professor substituto na UFOP. Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Através de um prisma africano: uma nova abordagem ao estudo da diáspora
africana no Brasil colonial. Tempo, Rio de Janeiro, n. 12, dez, 2001, p. 25.
3. ALENCASTRO, Luis Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul (séculos XVI eXVII). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 9.
4. REIS, João José [1985]. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Ed. rev. e ampl. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003; CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Um importante aspecto que permeia as diferentes propostas desses estudiosos pode


ser buscado no fato de os universos culturais das populações africanas e afro- americanas
não serem reduzidos exclusivamente à matriz européia. Existiram espaços para a
manutenção e/ou recriação de normas, princípios e gramáticas que nortearam as maneiras
de morar, as vivências religiosa e mágica, as formas de sociabilidade e trabalho, além das
práticas alimentares e de parentescos. Mas esses universos nem sempre foram acessíveis ou
passíveis de serem decodificados pelo poder senhorial. Como bem nos lembrou Robert W.
Slenes - ao discorrer sobre a aproximação entre as senzalas sem janelas no Brasil e a
gramática do espaço dos cativos de origem banta para os senhores de escravos era estranho
“o mundo mais íntimo de seus cativos, e estes, por sua vez, não se interessavam em abrir-
lhes ‘janelas’ para as senzalas” (Slenes, 1999:207).
Estimulados por discussões e problemáticas desses autores, poderíamos nos
perguntar em que medida seria possível inserir sob esse prisma, ou dimensão africana, a
produção artística de Minas Gerais do século XVIII, comumente chamada de barroca e
rococó. Para isso analisaremos o que determinados pesquisadores têm pensado a respeito da
participação escrava e africana nesse universo, e, em seguida, usaremos parte da
ornamentação de um chafariz construído na segunda metade do Setecentos para discutirmos
a possível incorporação de novos significados por parte das populações africanas e afro-
americanas das vilas mineradoras.

MUNDO DO TRABALHO: HISTORIOGRAFIA E


ESCRAVIDÃO NOS CANTEIROS DE OBRAS
O universo laborai e artístico colonial mineiro foi objeto de muitos estudos.
Normalmente, essas pesquisas se restringiram a repertoriar ora as fontes que ligavam o
referido universo às tendências européias, na figura do mestre português, ora as que
instauravam uma originalidade e genialidade na interpretação e na recriação dessas
tendências européias na figufíSo artífice mulato ou pardo. A solução para ligar os

________________________ \
epidemias na Corte imperial. São £áulo: Companhia das Letras, 1996; SLENES, Robert W. Na senzala uma flor:
esperanças e recordações na formação da família escrava (Brasil, Sudeste, século XIX). Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999; Ainda nessa pequena e incompleta relação, podemos acrescentar os trabalhos de COSTA E
SILVA, Alberto da. A enxada e a lança: a África antes dos
portugueses. Rio de Janeiro/São Paulo: Nova Fronteira/Edusp, 1992; ___________________ . A manilha e o
libambo: a África e a escravidão de I500_a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional,
2002; MELLO E SOUZA, Marina de. Reis negros no Brasil escravista: história da Festa de Coroação de Rei
Congo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG 2002. A expressão “história codificada e não escrita” foi adaptada de
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001, p. 255.

140
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

dois grupos acabou sendo encontrada na miscigenação ocorrida no seio da primitiva geração
de mestres e oficiais portugueses na primeira metade do século XVIII, emblematicamente
representada pelo português Manoel Francisco Lisboa e por seu filho mulato, Antônio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho.5 Dessa forma, ficava estabelecida uma conexão
relativamente fácil de visualizar e comprovada por documentos entre as influências
européias e uma “arte verdadeiramente brasileira”, dentro dos quadros da produção artística
em Minas Gerais. 6
O silêncio quanto à participação escrava e forra nesses estudos, em específico a de
africanos, parecia não incomodar, mesmo que o foco fosse uma sociedade escravista em que
o mundo do trabalho era quase exclusivamente dominado pelos escravos. Nas palavras de
um dos maiores estudiosos da arquitetura mineira, “o Brasil, até século XVIII, era
integralmente e só português (...). Portuguesa era a maioria da população ponderável, os
usos e costumes, as ferramentas, o modo de ser da colônia”. 7 Nessa perspectiva, somente
após a descoberta do ouro nos sertões da colônia e com a posterior miscigenação entre as
populações é que surgiria “uma nova gente”, formada por pardos e mulatos engenhosos. 8
Os artífices pardos/mulatos e os materiais locais (pedra-sabão e a madeira) seriam as
principais chaves para o entendimento da rica e diversificada produção artística, verificada
na segunda metade do século XVIII, em Minas Gerais. A essência da autenticidade,
singularidade e/ou originalidade da arte colonial em Minas seria encontrada na escultura de
madeira e pedra-sabão (esteatita), materiais que possibilitaram novas concepções plásticas. 9
Entre esses materiais, a pedra-sabão se apresenta como “a mais singular afirmação material
da civilização mineira”,10 pois foi nela que o artista- síntese do Barroco mineiro, Antônio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho, “pôs o seu gênio de escultor” (Machado, 1985:216),
“assimilando heranças formais e lições de técnica de toda a anterior experiência plástica
luso-brasileira” (Ávila, 1984:27).

5. Essa perspectiva é bem explicitada em: CARRATO, José Ferreira. Igreja, lluminismo e escolas mineiras
coloniais. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1968, pp. 7-8. Veja também: MELLO, Suzy. Barroco mineiro.
São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 49; VASCONCELLOS, Sylvio. Vida e obra de Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho. São Paulo: Cia. Ed. Nacional: INL/MEC, 1979, p. 3.
6. MACHADO, Lourival Gomes. “Arquitetura e artes plásticas”, in HOLANDA, Sérgio Buarque de (dir).
História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1985,1.1, v. 2, pp. 109 e 119-20.
7. VASCONCELLOS, Sylvio. “O Aleijadinho e a consciência de nacionalidade (I)”, in LEMOS, Celina
Borges. Sylvio de Vasconcellos: textos reunidos: arquitetura, arte e cidade. Belo Horizonte: Editora BDMG
Cultural, 2004, p. 87. O texto de Vasconcelos foi publicado originalmente em 1968.
8. VASCONCELLOS, Sylvio. “Vida e arte do Aleijadinho (I)”, in Lemos (2004: 263). O texto de
Vasconcelos foi publicado originalmente em 1964.
9. ÁVILA, Affonso. Iniciação ao Barroco mineiro. São Paulo: Nobel, 1984, p. 17; MACHADO, Lourival
Gomes. Barroco mineiro. 3a ed., São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 169.
10. NEVES, Joel. Idéias filosóficas no Barroco mineiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986, p. 133.

141
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

A participação escrava e africana na produção artística mineira só voltaria à tona no


embalo do centenário da Abolição, com o trabalho das pesquisadoras Cristina Ávila e Maria
do Carmo Andrade Gomes. Naquela oportunidade, elas chamaram atenção para a
insuficiência de estudos sobre a participação dos negros no Barroco mineiro, influência que
“se faz notar nos próprios domínios da arte, da música e da literatura”. 11 Entretanto, para as
autoras, a possível produção artística de fatura africana e afro- americana esteve submetida
“por um lado aos cânones estéticos dos modelos eruditos europeus e por outro teve seu
conteúdo rigidamente ordenando pelos preceitos da contra-reforma católica” (Ávila &
Gomes, 1988:71).
Os estudos mais atuais sobre a atividade construtiva e artística mineira têm ampliado
os referenciais para além da “genialidade” do mulato, rompendo com quadros explicativos
vinculados às leituras nacionalistas da “geração modernista”. Mutatis mutandis, alguns dos
novos estudiosos vêm abrindo caminho para pesquisas sobre artífices até então pouco
conhecidos (mas não menos importantes), levantamentos sistemáticos acerca da atuação dos
renomados oficiais portugueses e a participação de auxiliares (escravos, forros e livres)
dentro das oficinas desse mestres. 12
No campo construtivo, o historiador Jaelson Bitran Trindade tem sustentado que “a
grande maioria das igrejas construídas no Brasil até o último quartel do século XVIII,
mesmo aquelas pertencentes às irmandades de negros ‘de nação’, de crioulos, de mulatos,
de cativos ou forros, tiveram como mestres planeadores ou executores dos edifícios (...)
homens brancos”. 13 Esse autor tem usado recorrentemente contratos e registros de
pagamentos das obras para mostrar que o quadro de construtores das edificações
monumentais, na segunda metade do Setecentos, não condiz com a propagada ascensão dos
mulatos no mundo artístico mineiro. O domínio da demanda seria tão completo por parte
dos mestres e dos oficiais reinóis que, até nas “obras de igrejas de homens de cor negra -
africanos e crioulos - de Mariana e Ouro Preto, conforme os contratos indicam,
praticamente tudo foi feito por homens brancos.” ^
11. ÁVILA, Cristina & GOMES, Maria dcrÇarmo A. O negro no Barroco mineiro: o caso da Igreja do Rosário
de Ouro Preto. Revista do Departamento de História, Belo Horizonte, n. 6, jun, 1988, p. 69.
12. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro/de; FILHO, Olinto Rodrigues dos Santos & SANTOS, Antônio
Fernandes Batista. O Aleijadinho é sua oficina: catálogo das esculturas devocionais. São Paulo: Capivara, 2003;
CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Aspectos da vida pessoal, familiar e artística de Manoel da Costa Ataíde”, in
CAMPOS, Adalgisa Arantes (org.). Manoel da Costa Ataíde: aspectos históricos, estilísticos, iconográficos e
técnicos. Belo Horizonte: C/Arte, 2005, p.80; TRINDADE, Jaelson Bitran. A produção de arquitetura nas
Minas Gerais na província do Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Tese de Doutorado,
2002.
13. TRINDADE, Jaelson B. “Arte colonial: corporação e escravidão’', in ARAÚJO, Emanoel (org.). A mão afro-
brasileira: significado da contribuição artística e histórica. São Paulo: TENENGE/Fundação Emílio Odebrecht,
1988, p. 121.

142
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

Quanto à participação escrava, afirma que eram simples serventes e que “faziam os trabalhos
mais árduos e os mais simples” (Trindade, 2002:36 e 71).
Outros estudiosos chegaram a conclusões muito próximas às apresentadas acima.
Eles geralmente recorreram à documentação produzida pela Câmara (carta de exame e
registro de licenças ou provisão de oficio) para recomporem o exercício dos ofícios
mecânicos, especialmente em Vila Rica. De acordo com as referidas fontes, nessa vila, o
fazer mecânico era dominado pelos homens livres, sendo a participação de escravos e forros
pouco expressiva.14
É preciso chamar atenção para as características das fontes manuseadas em grande
volume nesses trabalhos, isto é, os contratos de arrematações e a documentação camarária
(cartas de exame e licenças de ofícios). O contrato era uma peça jurídica firmada entre o
arrematante e o cliente, em que cada um assegurava o cumprimento das condições
acordadas, o que de forma alguma garantia a participação direta e/ou a autoria do
arrematante na obra arrematada, já que ele poderia subempreitar parte ou mesmo toda a
obra para outro oficial. Além disso, o arrematante poderia colocar escravos especializados,
seus ou alugados, sob sua supervisão ou de algum oficial de confiança. Muitos desses
registros de subempreitadas não são localizados na documentação, pois era recorrente o
estabelecimento de acordos baseados simplesmente na palavra fiada, o que dificulta
bastante o trabalho de atribuição de autoria.
Quanto à documentação camarária relacionada ao registro de cartas de exame e de
licenças para o exercício das atividades mecânicas, temos sugerido que tais documentos
abarcavam um número não muito abrangente dos oficiais mecânicos, especialmente os
forros. Talvez os valores cobrados e as exigências dos testes tenham impedido muitos
artífices de regularizarem sua atividade perante as autoridades. Por outro lado, é possível
que outros tenham estrategicamente optado por permanecerem como simples jomaleiros
sem registro, circulando ao sabor das oportunidades e atuando em obras arrematadas ou sob
a responsabilidade de mestres e de oficiais de reconhecido prestígio.
As restrições das fontes utilizadas por tais autores não oferecem muitos subsídios
para aferir, com segurança, a presença escrava e forra no conjunto de artífices mineiros do
século XVIII. Uma alternativa à limitação dessas fontes pode ser encontrada,
particularmente, no trabalho cuidadoso com inventários, testamentos,

14. RIOS, Wilson de Oliveira. A lei e o estilo: a inserção dos ofícios mecânicos na sociedade colonial brasileira
(Salvador e Vila Rica, 1690-1750). Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 2000, pp. 121-2; SILVA FILHO,
Geraldo. O oficialato mecânico em Vila Rica no século XVIII e a participação do
escravo e do negro. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Dissertação de Mestrado, 1996,
p.81.

143
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

registros de notas e ações cíveis, visando à reconstituição da presença dos escravos e dos Nos contratos de obras arrematadas na Câmara, João Barbosa, entretanto, era o
forros nas equipes de trabalho. Como essa questão já foi abordada anteriormente, único oficial de pedreiro citado nos recibos, sem referência aos escravos oficiais. Não seria
examinaremos a vida profissional de um pedreiro de Vila Rica para visualizarmos as de outra forma, já que estamos falando de uma sociedade escravista, perpassada por uma
dinâmicas da oficina de um construtor e, especialmente, evidenciarmos a participação e a série de mecanismos institucionalizados que delimitavam os campos de atuação das
relativa autonomia dos cativos especializados no dia-a-dia das obras desses arrematantes.15 populações livre, liberta e escrava.
Trata-se do pedreiro português, natural do Porto, chamado José Barbosa de Oliveira, Com a leitura mais cuidadosa do inventário desse construtor foi possível identificar
atuante entre 1780 e 1810. Participou como irmão das duas principais associações religiosas novas facetas desse ambiente de trabalho que sugeriam o modo de funcionar das
dos homens livres da freguesia onde residia: a Ordem Terceira de São Francisco de Assis e arrematações. No documento foram listados os devedores do referido pedreiro, destacando-
a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz. Era pedreiro de boa instrução, possuía se as contas da construção da casa do Capitão José da Silva Amorim, no ano de 1807, com
um Livro Mestre do oficio de pedreiro e servia de escrivão da Irmandade do Santíssimo a quantidade de dias trabalhados e os valores dos jornais da fábrica. Na obra, que custou
Sacramento na Matriz de Antônio Dias, em Ouro Preto. É possível que, concomitantemente 505$000 réis e que durou quase um ano, o proprietário da fábrica trabalhou 43 dias. Na
ao ofício de pedreiro, desempenhasse funções em alguma ordenança militar. Quando maior parte do ano, a obra ficou sob a responsabilidade dos escravos pedreiros João
faleceu, em 1810, constava em seu inventário um monte-mor de 5:606$017 réis, que incluía Femandez, pardo, e Manuel, de nação mofumbe, que trabalharam, respectivamente, 343 e
jóias, móveis, imóveis, ferramentas, dívidas, créditos e catorze escravos, dentre os quais 180 dias. Provavelmente, eram esses escravos oficiais que resolviam muitos dos problemas
cinco com o ofício de pedreiro: João Femandez, pardo; Roque, de nação benguela; cotidianos no local de trabalho.
Custodio, pardo (pedreiro e carpinteiro); Manoel, de nação mofumbe, e João, de nação Lembramos que a presença de cativos especializados fomentava as distinções entre
congo. A outra parte do plantei era composta pela família do pedreiro João: sua esposa, eles na fábrica. Para tanto, basta observarmos que os cativos com oficio de pedreiro, como
Rosa, de nação angola, e as filhas do casal, Maria, crioula de 14 anos, Ana, crioula de 12 João Fernandes e Manoel, custavam $337 réis por dia, ao passo que os sem ofício, $150
anos, e Sebastiana, crioula de 9 anos, além de Marta, de nação angola, esposa do pedreiro réis diários. O arrematante/oficial, fazendo jus à sua posição na hierarquia, recebia $762
Manoel, Isabel, de nação angola, e mais três escravos africanos. 16 réis por dia.17
A “fábrica” ou oficina de João Barbosa era composta por ele, seus cinco escravos A forma como se organizou essa fábrica sugere que o construtor se aproximava mais
oficiais e mais três escravos serventes. Também foi identificado no inventário o conjunto de da figura de um administrador de obras, que se valia das habilidades de seus oficiais cativos
ferramentas: seis martelos de pedreiros, seis picões e sete colheres de pedreiro. A para satisfazer suas arrematações.18 O tamanho e a capacidade técnica de sua fábrica
equivalência entre o número de oficiais pedreiros e o de ferramentas reforça a noção de influía, em certa medida, no prestígio que ele tinha entre seus clientes e camaradas de
trabalho coletivo nesse ambiente. ofício. Expressões como “de sorte se conservou sua fábrica” ou “dono de grande fábrica”
sinalizam nessa direção.
As informações acima suscitam observações nos trabalhos de alguns críticos dos
^ esquemas interpretativos originados no âmbito do modernismo brasileiro, porque, ao se
15. Algumas dessas questões foram trabalhadas em: SELVA, Fabiano Gomes da. “Trabalho e escravidão nos elegerem fontes eivadas de restrições jurídicas, como contratos de arrematação e cartas de
canteiros de obras em Vila Rica no século XVHI”, in PAIVA, Eduardo França (org.). Brasil- Porlugal: exame ou de licença de ofícios, acabam sendo superestimados os trabalhadores reinóis. A
sociedades, culturas e fopnas de governar no mundo português (sécs. XVI a XVIII). São Paulo: Annablume, 2006,
crítica não se embasou num conhecimento mais profundo dos outros universos culturais
pp. 279-310.
16. Museu da Inconfidência, Casa do Pilar (MICP). Inventário, 2o ofício, códice 19, auto 198, José Barbosa de que compunham a sociedade mineira no período colonial.
Oliveira, Vila Rica, 20 nov 1810. Para os diversos significados que a família escrava tinha tanto para os
escravos quanto para os senhores, ver: Slenes (1999:131-236). Sobre as relações entre ocupação profissional
e família escrava ver FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e
tráfico Atlântico (Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, pp. 103-13;
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII. 2a ed., São Paulo: Annablume, 17. MICP. Inventário, 2° ofício, cód. 19, auto 198, fls. 13 - 13v.
2000; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia. Belo Horizonte: UFMG, 2001. 18. Para A. J. R. Russell-Wood, o artesão proprietário de escravos: “(...) era, com freqüência, mais um feitor do
que artesão praticante, supervisionando o trabalho de escravos negros ou mulatos e depois dando apenas os
toques finais.” RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, p. 62.

144 145
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Passamos do artífice mulato, que deglutia criativamente as fontes e influências


metropolitanas, para o auto-suficiente artífice português reinol, com seus modelos eruditos
europeus. Quanto aos africanos escravos e libertos, continuaram a não ter vez na história
dessa sociedade, apesar de, provavelmente, constituírem o maior grupo populacional até o
final do Setecentos.19
A ponderação da dimensão africana nessa produção só será possível se a bibliografia
especializada demonstrar maior interesse por práticas mágicas e religiosas, conhecimentos
técnicos, noções estéticas, formas de morar e maneiras de trabalhar com madeira, ferro,
pedra e marfim nas diversas comunidades e sociedades africanas, que forneceram homens e
mulheres para a região mineradora. Isso se faz mais que urgente, pois nos parece que o
universo cultural das populações africanas e afro- americanas no espaço colonial não se
resume exclusivamente à matriz européia. A reprodução do modelo europeu não assegurava
nem garantia a manutenção de um sentido ou significado exclusivamente europeu no
cotidiano de populações tão heterogêneas como eram as das vilas mineradoras. E é nessa
direção que tentaremos seguir, ao analisarmos parte da ornamentação de um chafariz
construído no período colonial.

CHAFARIZES COLONIAIS:ABASTECIMENTO, GROTESCOS E


MÁSCARAS

Nas Minas Gerais, a princípio, os escravos domésticos e alugados foram utilizados


na condução de água dos córregos e riachos para as moradias de seus senhores, até que, por
iniciativa do Senado da Câmara e de alguns particulares, chafarizes e fontes começaram a
ser erguidos tanto no espaço público quanto em residências particulares. Com a
consolidação dos incipientes núcleos urbanos mineradores, os chafarizes, fontes e bicas
públicas adquiriram grande importância por se constituírem na principal fonte de
abastecimento de água para o contingente populacional considerável das vilas mineiras até
as priméíras décadas do século XIX. 20
Nessas vilas mineradoras, as aüforidades coloniais e metropolitanas precisavam
garantir o controle e o sossego da população, bem como iniciar a delimitação paulatina dos
espaços das vilas e arraiais, visatido a assegurar seus interesses diante de população

19. Entre 1698 e 1770, mais de 341 mil escravos entraram nas Minas, permanecendo como grupo majoritário até
1776, quando a população livre começou a superar percentualmente os escravos. Cf. Russell-Wood (2005:
164).
20. Sobre o abastecimento de água em Minas Gerais no período colonial, ver: MOURÃO, Paulo Kruger Corrêa.
Abastecimento de água em Minas nos tempos coloniais. Kriterion, Belo Horizonte, n. 35-36, jan-jun, 1956,
pp. 234-46; e CARVALHO, Feu. Pontes e chafarizes de Villa Rica de Ouro Preto. Belo Horizonte: Edições
Históricas, s/d.

146
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

tão inconstante como-aquela das primeiras décadas da extração auríferas. Por isso, não
tardaram em regulamentar o uso, a ocupação e o abastecimento do espaço urbano,
especialmente estabelecendo editais na intenção de assegurar a manutenção da população
citadina com o abastecimento regular de víveres, água e madeira.21
O abastecimento de água fazia parte das preocupações e atribuições camarárias
desde o início da formação de Vila Rica, o que motivou a constituição de redes de
aquedutos para abastecer chafarizes e fontes ainda na década de 1720. 22 No total foram
construídos dezoito chafarizes, sendo a maioria durante as reformas urbanas implementadas
entre 1740 a 1760, movimentando gastos que chegaram a 12:376$566 réis. Na mesma
época, também se executou o calçamento de dezenas de ruas na vila. É possível que,
durante o Setecentos, essa vila mineradora tivesse a maior rede de chafarizes públicos da
América portuguesa.23
A construção de chafarizes e fontes era muitas vezes motivada por solicitações e
reclamações dos moradores da vila. As comunidades nos arraiais usavam, com certa
freqüência, abaixo-assinados para solicitarem ao Senado da Câmara a construção e o
conserto desses equipamentos urbanos, bem como para a resolução de pendengas por causa
do uso particular dos córregos, riachos, fontes e chafarizes em detrimento do bem
comum.24
Usualmente, a Câmara publicava editais de arrematação para a edificação e/ou
reparo dos chafarizes e fontes, confiando-os a importantes arrematantes, pedreiros e
mestre-de-obras. Vencia a concorrência quem oferecesse menor preço e se

21. Sobre a importância do abastecimento às vilas, dentro da política de acomodação das populações nos centros
mineradores, ver: ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira
metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. Sobre as atribuições do Senado da Câmara na
regulação do espaço das vilas, ver: RUSSELL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um
estudo de divergência cultural. Revista de História, v. LV, n. 109, 1977, pp. 25-79.

22. João Domingues da Veiga recebeu 600$000 réis pelo conserto nos aquedutos do chafariz que existia na praça
da vila em 1726. Ver: APM, CMOP, cód. 21.
23. A cidade do Rio de Janeiro, centro político-administrativo da Colônia, tinha apenas 11 chafarizes ao final do
Setecentos, incluindo o do Pocinho da Glória e a fonte dos Amores no Passeio Público, do Mestre Valentim.
Cf. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade, da invasão francesa até
a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 36.

24. A documentação sobre o sistema de abastecimento de água em Ouro Preto é considerável. Quanto à
reclamação da população a respeito do fornecimento de água, bem como das construções de novos
chafarizes, citamos os seguintes documentos: Arquivo Público Mineiro (APM), Câmara Municipal de Ouro
Preto (CMOP), Documentação Não Encadernada (DNE), caixa 16, doc. 16, 23 jan 1745; CMOP, DNE, cx.
16, doc. 44, 27 abr 1745; CMOP, DNE, cx. 16, doc. 72, 23 jun 1745; CMOP, DNE, cx. 18, doc. 23, 03 mar
1746; CMOP, DNE, cx. 32, doc. 33, 09 abr 1755; CMOP, DNE, cx. 77, doc. 85, 1804: CMOP, DNE, cx. 79,
doc. 37, 1806; CMOP, DNE, cx. 79, doc. 38, 07 jun 1806.

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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

comprometesse com seus bens ou de seus fiadores para concluir a obra no tempo
previamente estipulado. O arrematante quase sempre executava a obra sob orientação de
um risco (planta, desenho), observando as condições - conjunto de cláusulas como tipos de
rochas, quantidade de bicas, formas de vedação das canalizações, etc.
- fornecidas pelo contratante.
Em outras situações era possível que os próprios moradores concorressem
diretamente para a execução da obra, com seus escravos e ferramentas, como sugere o
abaixo-assinado enviado ao procurador da Câmara de Vila Rica, em 1745, em que:

Dizem os Moradores do bairro do Rosário desta Vila, abaixo


assinados, que eles suplicantes padecem grave detrimento na
falta de água para suas casas por lhes ser preciso conduzi-la de
longe, desejam remediar tão urgente necessidade determinando
fazer huma fonte à sua custa, de tras do quintal da Igreja do
Rosário, por ser commodo para toda a vizinhança sem prejuízo
de algum, nem deste senado; e para isso carecem q. o mesmo
senado lhes conceda huma suficiente porção de agoa, da que
vem pela mesma para os moradores do ouro preto.25

Os moradores insistiam em não fazer uso dos recursos da Câmara para a construção
dessa nova fonte de água. Igualmente importante parece ser a inclusão do
pedreiro/calceteiro Diogo Alves de Araújo Crespo no rol de moradores que encaminharam
o documento, visto que ele se comprometeu, juntamente com João Soares Gomes, a
executar a obra no prazo de dois meses às suas custas. Na autorização do procurador, não
consta a exigência de risco ou desenho do chafariz, nem que tenha sido enviado especialista
(“louvados”) para averiguá-lo; apenas se faz referência à disposição espacial da fonte e à
existência de uma “carranca de bronze” e de um tanque, preocupações muitofnais voltadas
para o volume e o aproveitamento da água canalizada do que para questões es^ticas.
No caso acima, a localização parece contribuir para um menor dispêndio de tempo e
recursos dos morador-eé. Isso porque o transporte da água era feito em vasilhames pelos
escravos de ganho que, juntamente com os escravos domésticos, abasteciam as residências
de seus proprietários ou de quem pagasse por esse serviço.

25. APM, CMOP, DNE, caixa 16, doc. 44, 27 out 1745, fl. 2.

148
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

O trabalho diário desses carregadores de águas concorria para transformar os


espaços dos chafarizes e fontes em locais de presença predominante de escravos e libertos.
Com baldes na cabeça, lavando roupas, banhando moleques, saciando a sede de mulas e
cavalos, tais trabalhadores marcavam a paisagem cotidiana da urbe com seus esforços,
cantigas e conversas. E possível pensar que os chafarizes e fontes servissem como locais
para formação e manutenção de redes de sociabilidade mais amplas do que aquelas
estabelecidas no círculo do plantei do senhor, partilhando sonhos, estratégias e
sofrimentos.26 Também era locus de rivalidades, distúrbios e crimes entre escravos e
libertos, bastando a diminuição ou a falta de água na bicas para ocorrerem “desgraças entre
os escravos”.27
Quanto à constituição, os chafarizes foram, em sua maioria, executados em alvenaria
de pedra, um tradicional frontispício com colunas, bicas e tanque. Fundindo arquitetura com
arte decorativa, os chafarizes mineiros são marcados pela presença de rebuscada
ornamentação de origem européia, como carrancas, sátiros, serpentes marinhas, pelicanos,
conchas, escudos, volutas, pinhas e ramagens. Chamamos atenção para as carrancas,
freqüentes na ornamentação, caracterizadas pela representação de seres fantásticos, exóticos
e monstruosos, prática há muito inscrita no universo plástico dos grotescos europeus. 28
Possivelmente, os grotescos usados na ornamentação de gabinetes, palácios e
capelas na Itália, na Espanha, na Alemanha e nos Países Baixos contribuíram para a
propagação desses seres fantásticos e exóticos encontrados na ornamentação dos chafarizes,
tanto na Europa quanto no Novo Mundo. Especialmente pela facilidade de circulação
através de obras sacras como livros de horas, folhetos, catecismos, além de livros tão
diversos como romances e gramáticas que foram ornamentados em suas margens com esses
elementos desde o século XV. 29

26. Sobre a importância dos chafarizes, pontes e outros locais da urbe para a configuração social dessas
populações, ver: WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros
em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998, pp. 182 e 194.
27. APM, CMOP, DNE, caixa 18, doc. 23, 03 mar 1746, fl. lOv.
28. Grotescos designam elementos de uma arte ornamental originária da Antigüidade, localizada no século XV
em escavações feitas em grutas na Itália, e disseminada nos séculos seguintes em desenhos, gravuras,
pinturas, utensílios e jóias, municiando pintores, escultores, arquitetos e construtores de rico material
decorativo. Cf. KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo:
Perspectiva, 1986, pp. 17-20.
29. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia da Letras, 2001, pp. 163-78. O caráter
relativamente popular do repertório que compunha os grotescos ajuda a entender como eles foram
absorvidos por mestres-de-obras e pedreiros ibéricos. Em Lisboa, a ornamentação do portal- retábulo do
Mosteiro dos Jerônimos (1502) ilustra bem a influência dos grotescos na cultura dos construtores
portugueses.

149
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Detalhe de um painel de grotescos italiano, 1520. Fonte: Gruzinski (2001: Figura I. Carranca de um chafariz em Ouro Preto.
168) Fonte: Escola de Cantaria/DEMIN/UFOP.

O aspecto lúdico, leve, fantasioso, monstruoso e bizarro dos grotescos criava


espaços para a absorção de motivos diferentes dos comumente utilizados na Europa, como
ocorrido no século XVII, quando determinados motivos chineses (“chinesices”) foram
considerados “igualmente grotescos por causa da mistura dos domínios, da monstruosidade
nos seus elementos e de alteração das ordens e proporções” (Kayser, 1986:29).
Devemos notar que esses empréstimos e releituras dentro do repertório dos
grotescos não foram exclusividades dos espaços metropolitanos. Vejamos o caso dos
artistas indígenas no México colonial que incorporaram seres e imagens do universo
indígena no conjunto decorativo dos grotescos europeus. Entretanto, esse jogo de
imbricações de fontes não garantia a eliminação da carga simbólica que tais elementos
puramente ornamentais carregavam anteriormente, sobretudo quando se discute no âmbito
de sociedades coloniais, reconhecidas pela diversidade de matrizes culturais de sua
população (europeus, indígenas, africanos e mestiços). Para o historiador francês Serge
Gruzinski, os usos dos grotescos em solo americano
y^
eram mais cômodos ainda porque tinham um aspecto lúdico e
inofensivo, apto a desviar a atenção dos censores, e eram fruto
de uma prática^artesanal aparentemente sem sentido e
repetitiva, concentrada no registro, falsamente inócuo, do
ornamental e do decorativo (...) os grotescos se prestam a todos
os jogos de correspondência entre registro mais díspares.
Quanto à sua Leitura alegórica, era uma faca de dois gumes:
permitia introduzir um significado ortodoxo nas imagens pagas,
mas não impedia a ninguém neles enxergar mensagens
subversivas (2001: 191).

150
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

Num ambiente de misturas, trocas e impermeabilidades culturais, como fora o da


população do Novo Mundo, a simples reprodução de elementos europeus comumente corria
o risco de ter novos conteúdos e significados incorporados às suas concepções formais. 30
Parece-nos que algo similar poderia ter ocorrido com algumas carrancas européias que
ornamentaram os chafarizes mineiros.31
Em síntese, os chafarizes e fontes em Vila Rica eram estruturas construídas, na
maior parte, pelo Estado, e destinadas ao abastecimento e ao sossego dos povos. Em
determinadas ocasiões foram requeridas por homens livres, que, por vezes, também
contribuíam com suas finanças para a edificação desses objetos. A concepção arquitetônica
e a ornamentação, intimamente vinculada ao universo europeu, não diferiam muito dos
modelos portugueses. Movimentando o quadro, os escravos e libertos dominaram a labuta
diária nesses espaços, disputando, à força, baldes de água para seus senhores e/ou clientes,
sem muito influir na construção, ornamentação e localização.
Entretanto, ainda nos parece possível tomar mais complexo esse quadro. Na parte
construtiva, chamamos a atenção para o fato de que muitos dos grandes construtores
(mestre-de-obras, pedreiro, canteiro, carpinteiro) possuíam escravos africanos e
mulatos/pardos trabalhando nas obras arrematadas por eles. Esses escravos especializados
desempenhavam funções que iam além do simples desbaste grosseiro de rocha ou do
carregamento de entulhos. Ocupavam postos de oficiais de reconhecida habilidade por seus
senhores e demais artífices da obra, vindo, inclusive, a se responsabilizarem, em certos
momentos, pelas necessidades mais cotidianas da obra, como demonstrado no caso do
pedreiro português José Barbosa de Oliveira (Silva, 2006).32

30. “Os grotescos e a mitologia grego-latina neutralizam certos princípios ocidentais de realidade propagados
pela Igreja, agem como um curto-circuito nas formas impostas pela nova ordem visual. Oferecendo uma
sintaxe sem preconceitos, operando à margem de uma ortodoxia tridentina exigente e rígida, permitem
combinações que ordenam, de acordo com outros eixos, tradições que coexistem em solo americano.” Cf.
Gruzinski (2001: 195).
31. O pesquisador Moacyr Laterza estudou a ornamentação de alguns chafarizes mineiros e propôs que as
carrancas barrocas fossem estudadas sob a influência dos grotescos. Cf. LATERZA, Moacyr. Alguns
aspectos da gárgula barroca mineira. Barroco, Belo Horizonte, n. 12, 1982/1983, pp. 205-6.
32. O aspecto coletivo e o uso de oficiais escravos na produção artística e mecânica em Minas Gerais foram
abordados por outros pesquisadores. Ver: Campos (2005:80); SANTIAGO, Camila Fernandes Guimarães.
Cativos da arte, artífices da liberdade: a participação de escravos especializados no Barroco mineiro.
Comunicação apresentada no II Simpósio Escravidão e Mestiçagem: História Comparada, Belo Horizonte, 2006,
mimeo; MENESES, José Newton Coelho. Artes fabris e serviços banais: ofícios mecânicos e as Câmaras no final
do Antigo Regime (Minas Gerais e Lisboa, 1750- 1808). Niterói: UFF/Programa de Pós-Graduação, Tese de
Doutorado, 2003.

151
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Quanto à decoração, vamos nos deter na análise das carrancas de um chafariz


setecentista, localizado em Diamantina, na atual Praça Dom Joaquim, antigo Largo do
Rosário, construído em 1787 por ordem do governador Luís da Cunha e Menezes, como
registra o monumento. Ainda não conseguimos informações sobre quem arrematou, qual o
valor e os oficiais que trabalharam na obra, nem sobre alguma interferência da Irmandade da
IgrejaN. S. do Rosário no processo construtivo, como a solicitação de construção ao
governador ou o fornecimento de oficiais pedreiros.
A informação de que o monumento foi construído sob ordens do governador pode
sugerir algumas pistas, principalmente porque, dois anos antes, ele vinha orientando os
comandantes dos distritos a capturarem negros quilombolas, vadios, delinqüentes e escravos
que estivessem “perambulando” sem autorização dos senhores, para juntá- los aos presos no
trabalho de extração de rochas para construção da Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica,
gastando apenas com a alimentação deles.33
A construção da Casa de Câmara e Cadeia de Vila Rica mobilizou grande parte dos
oficiais de pedreiro, canteiros e carpinteiros da capitania (Lopes, 1952: 210), sendo
montadas oficinas de ferreiro, carpinteiro e pedreiro, onde dezenas de escravos e ex-
escravos foram treinados, especialmente para o trabalho com rochas. 34 E possível que os
autores do chafariz confeccionado no Largo do Rosário de Diamantina tenham saído dessa
obra realizada em Vila Rica. O deslocamento de pedreiros/canteiros da principal obra
empreendida pelo governador só se justificaria caso houvesse demanda comprovada: uma
solicitação da Irmandade do Rosário dos Pretos e/ou dos moradores do bairro. 35 Há também
a possibilidade de ser uma obra para o engrandecimento do mandato de governador tão
impopular como fora Luís da Cunha e Menezes.
Apesar de não termos as informações acima, isso não nos impede de avançarmos nas
sugestões a respeito da encenação e da ornamentação desse chafariz. Quanto ao arranjo
espacial, o referido chafariz está disposto próximo ao espaço da Capela de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos, chegando a fechar parte do adro da capela. Tradicionalmente o adro
servia de locus para a realização das costumeiras festividades católicas e perfazia parte
impoftante do percurso da Festa de Coroação de Rei Congo desde os tempos coloniais, além
de áer local de enterro dos irmãos menos abastados da irmandade.36
>

33. LOPES, F. Antônio. Câmara e Cadeia de Vila Rica. Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, 1952, p.
207.
34. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), caixa 125, doc. 34.
35. Em Vila Rica, as “obras secundárias podiam, ser realizadas pelos próprios moradores, que usufruíam delas, ou
financiadas pelas irmandades leigas”. Cf. BORREGO, Maria Aparecida de M. Códigos epráticas: o processo de
constituição urbana de Vila Rica colonial. São Paulo: Annablume, 2004, p. 140.
36. Sobre sepultamentos nas irmandades dos negros, ver: EUGÊNIO, Alisson. O crepúsculo dos confrades: morte
e diferenciação social na sociedade escravista mineira. Revista do IFAC, n. 4, dez, 1997, pp. 71-5.

152
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

O chafariz do Largo do Rosário foi todo construído em quartzo-clorita-xisto,


apresentando fachada simples, colunas, tanque e duas bicas. Entretanto, são as duas
carrancas que o diferenciam dos demais. Ao contrário dos grotescos e das figuras
mitológicas de destacada temática européia, as carrancas desse chafariz apresentam
características negróides e antropomórficas, com formato e feitura bem estilizados, rostos
delgados, lábios grossos e narizes alongados (figura 2). Elas apresentam similitudes com
traços das figuras identificadas nos chamados oratórios afro-brasileiros, presentes no Museu
do Oratório em Ouro Preto, e descritos pelo historiador Eduardo França Paiva. 37

Figura 2. Carranca do Chafariz do Largo do Rosário (1787), Diamantina/MG.


Fonte: Escola de Cantaria/Demin/UFOP.

Na carranca acima percebemos que os oficiais de pedreiro não passaram com a bica
da rede de abastecimento pela boca da figura, como seria usual, mas criaram um orifício
acima do lábio superior, talvez para reforçar as características de um componente de
importância quase universal no cotidiano das populações do continente africano, as
máscaras.

37. Ver: PATVA, Eduardo França. “Mestiçagem e impermeabilidade cultural nas áreas urbanas das Minas Gerais,
(Brasil, século XVIII, XIX e XX)”, in GARCIA, Clara & MEDINA, Manuel Ramos. Actas dei 3er. Congresso
Internacional Mediadores Culturales. México: CEHM/Condumex, 2001, p. 378.

153
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

As máscaras, nas mais diferentes regiões e grupos no continente africano, eram


objetos imbuídos de poderes mágicos, ligados a ritos agrários, funerários, iniciação,
representação de ancestrais e proteções diversas. O manuseio desses objetos perpassa todos
os instantes da vida dos africanos, do nascimento à morte, reavivando o que tais momentos
têm de mais coletivo e universal na experiência da comunidade, como manter o respeito a
certas normas sociais e políticas, instruir os mais jovens, preservar a ordem da vida, ou
simplesmente divertir os moradores.38
O uso tão diverso contribuiu para que a confecção de máscaras não se restringisse a
um grupo de especialistas, mas fosse importante elemento na vida de quase todos os
membros da comunidade (Paulme, 1962:13). Entretanto, a fabricação delas devia observar
práticas e preceitos ritualísticos, como o tipo e a dureza do material, ferramentas utilizadas
na confecção e restrições de gênero. Inclusive, a fatura de uma nova máscara deveria ser
previamente autorizada pela pessoa de maior ascendência religiosa no grupo, o “feiticeiro”
ou “chefe das máscaras” (Monti, 1992: 15; Laude, 1968: 80).

Figura 3: Máscara da Costa do Marfim, em madeira. Figura 4: Máscara Warenga da região do Congo, em
Fonte: LEUZINGER, EjTheArt of Black África. New madeira. Fonte: Laude (1968:163).
York: Rizzoli International Publications, 1977, p.
230.

38. PAULME, Denise. Las esculturas dei África negra. México: Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1962;
LAUDE, Jean. Las artes dei áfrica negra. Barcelona: Editorial Labor, 1968, pp. 139-79; MONTI, Franco. As
máscaras africanas. São Paulo: Martins Fontes, 1992; WILLETT, Frank. AfricanArt. Revised edition,
Singapore: Thames and Hudson, 1993.

154
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

As máscaras africanas eram confeccionadas com materiais os mais diversos. A


madeira foi largamente utilizada - o que se deve provavelmente à sua maior disponibilidade
em determinada localidade bem como as fibras vegetais e os tecidos. Materiais como metal,
marfim e pedra também foram usados, principalmente, na produção de peças voltadas para
a satisfação das cortes de autoridades e chefes africanos, a chamada “arte de corte”.39 Já o
tamanho das peças não era fixo, existindo até mesmo pequenas máscaras que serviam como
amuletos e pingentes, sendo carregadas ao peito, na indumentária ou junto aos bens
pessoais. As concepções estilísticas desses objetos variavam do naturalismo a estilizações
extremamente abstratas, sendo que esse naturalismo não guarda correlações com a nossa
noção de cópia fidedigna do real (Monti, 1992:13-4).
A identificação de uma provável máscara africana ou afro-americana na
ornamentação de um chafariz e o fato de os chafarizes fazerem parte da política das
autoridades coloniais e metropolitanas para abastecimento e sossego das povoações
mineiras nas urbes, como afirmado anteriormente, seria, a princípio, uma situação
contraditória, no mínimo incerta. Não obstante, percebemos que a contradição era apenas
aparente, visto que essa máscara estava contextualizada dentro duma longa tradição
artesanal européia utilizada pelos mestres-de-obras e pedreiros reinóis e locais (as referidas
carrancas).
Os seres fantásticos, monstruosos e exóticos representados nas carrancas eram,
muitas vezes, vistos em suas dimensões lúdicas, ornamentais e decorativas, atribuídas por
construtores portugueses, religiosos, senhores e outros setores da população. Por isso, as
carrancas/máscaras do chafariz do adro da Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos,
em Diamantina, poderiam ter sido interpretadas simplesmente como uma reprodução formal
e grosseira das carrancas européias. Com isso, não se quer dizer que inexistissem outros
significados para além desse olhar; ao contrário, parece-nos que, para grupos como os
africanos e afro-americanos dessa comunidade, os referidos objetos poderiam conter
significado distinto.
Nessa direção, entendemos que a ornamentação desse chafariz teria alimentado
leituras nem sempre acessíveis àqueles que não partilhassem os mesmos universos
culturais. Para os colonos e as autoridades européias, o chafariz continuava nos moldes dos
construídos na metrópole, tendo a tradicional composição com colunas, tanque, bicas e
figuras fantásticas ou seres mitológicos. Já para alguns grupos de africanos e seus
descendentes, as máscaras do chafariz poderiam remeter-se ao culto dos ancestrais e dos
espíritos da natureza, à proteção da comunidade e à demarcação de

39. Cf.: Monti (1992: 99); PALERMO, Miguel Angel & DUPEY, Ana Maria. Arte popular africana. Buenos Aires:
Centro Editor de América Latina S.A, 1977, p. 66; Laude (1968: 61-76 e 158).

155
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

espaço sagrado. Essa evidência é reforçada pela constatação de que, entre os grupos bantos
da África Centro-Ocidental, os ancestrais e os espíritos da natureza geralmente “habitavam
fontes de água, pedras, árvores e o mundo dos mortos”. 40
Ainda como anotamos acima, existiam, na confecção das máscaras, preceitos que
deveriam ser observados, especificamente, o tipo de material usado e os rituais praticados
por determinados grupos. O material pétreo empregado nas máscaras do chafariz em
questão é uma variação do característico quartzito de Minas Gerais, o quartzo-clorita-
xisto,41 que apresenta um tom esverdeado de fácil distinção dos esteatitos (pedra-sabão) de
mesma tonalidade. Como a rocha mais abundante, nos arredores de Diamantina, é o
quartzito de tonalidade clara, o uso do quartzito xistoso de cor esverdeada se fez mesmo
contrariando o costume adotado entre os construtores coloniais de aproveitar as pedreiras
mais próximas da obra, visando a reduzir tempo e custos. Entretanto, é interessante perceber
que essas rochas (quartzito, xisto, esteatito) têm registro na estatuária africana. Entre os
bacongos, por exemplo, os chefes e ancestrais eram esculpidos em esteatito, em tons que
variavam do cinza ao esverdeado, muito próximos das tonalidades assumidas pelo quartzo-
clorita-xisto.42 Será que era intencional a seleção desse tipo específico de rocha, seja por
suas qualidades como dureza, tonalidade e/ou pelos usos anteriores nos rituais africanos?
Acreditamos ser difícil dar uma resposta satisfatória no atual momento da pesquisa,
principalmente por nos faltar informações a respeito dos construtores e de fontes que
confirmem níveis de influência da comunidade de africanos e afro- americanos na
edificação da obra. Quanto à.produção e ao uso ritual de máscaras nesse meio, podemos
apresentar indícios que sugerem a confecção e a utilização desse elemento no mesmo espaço
minerador. É o que se depreende do registro dos viajantes J. B. Von Spix e C. F. P. Von
Martius, em 1818, quando relatam que:

É costume dos negros do Brasil nomearem todos os anos um rei


e sua corte. Esse rei não tem prestígio algum, político nem civil,
sobre os ^eus* companheiros de cor; goza apenas da dignidade
vaga, tal cóíno o rei da fava, no dia de Reis, na Europa, razão
por que :o governo luso-brasileiro não opõe dificuldade alguma
Vessa formalidade sem significação. Pela votação geral, foram
nomeados o rei congo e a rainha xinga

40. MELLO E SOUZA, Marina de. Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. Tempo, Rio de
Janeiro, n. 11, jul, 2001, p. 174.
41. É uma rocha metamórfica com tonalidade verde.
42. Cf.: Silva (2006); e ALLISON, Phillip. African Stone Sculpture. New York/Washington: Frederick A. Praeger,
1968, pp. 42-6.

156
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

[Njinga], diversos príncipes e princesas, com seis mafucas


(camareiros e camareiras), e dirigiam-se em procissão, à igreja
dos pretos. Negros, levando o estandarte, abriam o préstito;
seguiam-se outros levando imagens do Salvador, de São
Francisco, da Mãe de Deus, todas pintadas de preto; vinha
depois a banda de música dos pretos, com capinhas vermelhas e
roxas, todas rotas, enfeitadas com grandes penas de avestruz,
anunciando o regozijo, ao som de pandeiros e chocalhos, de
ruidoso canzá e da chorosa marimba; marchava à frente um
negro de máscara preta, como mordomo, de sabre em punho\
depois, os príncipes e princesas, cujas caudas eram levadas por
pajens de ambos os sexos; o rei e a rainha do ano antecedente,
ainda com cetro e coroa; e, finalmente, o real par, recém-
escolhido (...)• Chegando à igreja da Mãe de Deus, preta e só dos
pretos, o rei deposto entregou o cetro e a coroa ao seu sucessor, e
este fez uma visita de gala, na sua nova dignidade, ao intendente
do Distrito Diamantino, com toda a sua corte.43

Aos olhos desses viajantes, auxiliados por seus interlocutores, especialmente o


intendente do Distrito Diamantino, essas manifestações de eleição de reis e rainhas entre os
negros não continham nem poderiam conter significado para além de suas referências
européias; por isso, eram aceitas. No entanto, muito mais diversa é a leitura que atualmente
se tem dessas festividades, como se constata na obra sobre as origens históricas das festas
de coroação de reis do Congo, da historiadora Marina de Mello e Souza (2002). Nesse
estudo, os elementos tradicionais de origem africana se imbricaram na liturgia e nas crenças
católicas para recompor novas identidades dentro das comunidades africanas e afro-
descendentes, o que acabou por incutir leituras diferenciadas na interpretação dos festejos
de coroação de reis do Congo. Enquanto, para os africanos e afro-americanos, os festejos
possibilitavam relembrar e reviver noções de chefias africanas, ritos de entronização e a
prestação de fidelidades, para a comunidade senhorial, traziam uma lembrança nostálgica
do Império português que se estendeu pelas quatro partes do mundo (Europa, África,
América e Ásia) e se dedicou diutumamente à expansão da fé católica. 44

43. SPIX, J. B. Von & MARTIUS, C. F. P. Von. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1938, v. 2, p. 129, grifo nosso.
44. Amparada nos trabalhos de alguns africanistas norte-americanos, essa autora tem chamado atenção para a
existência de um catolicismo africano nos séculos XVI, XVII e XVIII que combinava o
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS C HAFARIZES E M ÁSCA RAS

Voltando às máscaras, o “negro de máscara preta” e “sabre em punho”, à frente da Ao final, o manuseio ritual desses vestígios, como as máscaras nas festividades de
corte real, teria alguma função religiosa? Seria ele o responsável pelo controle da confecção coroação de reis e rainhas nas comunidades de africanos e afro-americanos, sugere indícios
desses objetos na comunidade, o “chefe das máscaras”? É possível que sim, uma vez que que nos permitem não só pensar as dimensões que práticas religiosas (européias e africanas)
sua disposição, logo à frente dos antigos e novos reis e rainhas, poderia estar relacionada adquiriam na região, mas também observar a existência de indivíduos capazes de
aos mecanismos usados para legitimar a nova realeza dentro da comunidade negra.45 executarem essas peças dentro de preceitos e concepções plásticas, apropriadas ou
O viajante francês Francis Castelnau, que visitou outra localidade mineira, Sabará, recriadas, muito particulares para essa comunidade negra.
em 1843, também descreveu as festividades para eleição do rei congo. Em suas palavras, Conclusão
esse rei tinha “grande influência sobre os companheiros”, posição bem diversa da descrição Tentamos mostrar, neste pequeno exercício, que o olhar do historiador para o
feita 25 anos antes pelos viajantes Spix e Martius para o Distrito Diamantífero. Castelnau universo cultural das populações das vilas mineiras no século XVIII não pode negligenciar
relata muito sucintamente o evento, destacando que o rei e a rainha dos negros traziam à a heterogeneidade dessas comunidades. Identificar e catalogar formas e objetos nesses
cabeça “coroas de prata maciça e cetros dourados”, muito bem protegidos por “um grande espaços pode ser importante em um primeiro momento do trabalho, mas isso deve vir
guarda-chuva” (apud Mello e Souza, 2002: 283-4). Ainda segundo ele: “Coisa digna de acompanhado da exploração dos significados que tais elementos possam adquirir nas
reparo, o rei traz uma máscara preta, como se tivesse receio de que a permanência no país tradições culturais diversas que coexistem e, às vezes, mantêm- se impermeáveis em solo
lhe tivesse desbotado a cor natural.” Analisando esse relato, Marina de Mello e Souza colonial. Nesse sentido, é temerário negar a participação de escravos e libertos, africanos e
acredita que mestiços na produção de significados dentro da produção artística mineira sem antes
descortinar a dimensão africana em nossa formação. Temos noção, entretanto, das
ao usar a máscara sob a coroa de prata, o rei Congo punha lado dificuldades que nos aguardam, pois geralmente o pesquisador acaba por se deparar com o
a lado sua África natal e o novo mundo para o qual foi trazido, silêncio das fontes a respeito dessas questões, o que exige grande esforço para o manuseio
ressaltando suas raízes africanas. Ao usar uma máscara negra, de diversificada gama de documentos e muita engenhosidade para decodificar dados que,
além de todas as implicações mágicas que isto poderia ter, o rei muitas vezes, não eram acessíveis nem para o grupo senhorial.
Congo afirmava a sua cor original (2002: 286).

A máscara notoriamente dividia espaço com as insígnias reais européias (coroa e


cetro), criando imagens em que símbolos distintos coexistiram, mas nem por isso se
misturaram, mantendo-se muitas vezes impermeáveis em seus significados, apesar de as
referidas cerimônias se apresentarem de forma híbrida, mesclando elementos do universo
europeu e africano.

\

cristianismo ensinado pelos religiosos no Congo com elementos da cosmogonia banta. Para maiores
informações, ver: THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico (1400-1800).
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pp. 312-54.
45. A legitimação dessa eleição podia perpassar esferas distintas. Primeiro, como relatado na descrição dos
viajantes Spix e Martius, a nova realeza buscava visitar o intendente do distrito para ali formalizar a nova
eleição e se legitimar “como representante dos negros no mundo dos brancos”. Segundo, já dentro da
comunidade negra, “os mecanismos de legitimação do poder do novo rei passavam pela sua escolha e pelos
rituais festivos como a coroação, os cortejos e as danças dramáticas” (Mello e Souza, 2002: 282).

158 159
VIVER À GANDAIA: Povo NEGRO NOS MORROS DAS MINAS

1
Francisco Eduardo de Andrade

Dali vindo, visitar convém ao senhor o povoado dos pretos:


esses bateavam em faisqueiras - no recesso brenho do
Vargem-da-Cria - donde ouro já se tirou. Acho, de baixo
quilate. Uns pretos que ainda sabem cantar gabos em sua
língua da Costa.

João Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.

TRABALHO DOS NEGROS NA MINERAÇÃO DOS ALTOS

A história da mineração nas Minas do ouro pode ser caracterizada, sob o ponto de
vista da exploração e das técnicas empregadas, como um esforço geral de subida: desde o
leito do ribeiro onde se depositou o aluvião aurífero de pintas ricas, passando por tabuleiros
(vale imediato) e grupiaras (a meia encosta), até atingir os altos da serra, quando
efetivamente ocorreu um aprofundamento com abertura de catas ou de buracos que
serviram de toscas galerias.
É difícil datar o começo de cada inflexão nas formas de exploração, incluindo- se as
melhorias ou adaptações técnicas e os novos arranjos no processo e divisão do trabalho.
Também não se pode esquecer que essas mudanças não aconteceram da mesma maneira em
todas as Minas, e nem começaram ao mesmo tempo em todos os

1. Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade Federal de Ouro
Preto.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

lugares. Além disso, melhorias técnicas como o rosário (maquinismo de esgotamento de


água) deram renovado alento à extração dos veios auríferos dos vales. Portanto, a história
das técnicas da mineração e das atividades mineradoras, no século XVIII, não pode ser
constituída de modo linear ou homogêneo.
No entanto, nos antigos centros mineradores - Minas Gerais, Rio das Velhas, Rio das
Mortes, Serro Frio - o processo exploratório de fato ganhou as encostas das serras. Sabia-se
que os depósitos ou veios aluviais eram apenas a manifestação superficial da verdadeira
riqueza mineral (de ouro ou de diamantes) dos filões ou das formações subterrâneas. O
problema sempre foi chegar até eles com um custeio compensador, com uma inversão de
trabalho e capital inferior aos ganhos da extração. Sabia-se também que as águas das
chuvas, durante eras, tinham causado nas montanhas uma erosão constante, cujo resultado
foi juntar e concentrar nos vales as areias e cascalhos auríferos. Portanto, na lavagem do
cascalho ou das terras e rochas das montanhas que continham ouro (talho aberto) se usava
um meio que a própria natureza mostrava descoberta.
Foi essa, então, a técnica mais utilizada nas encostas durante todo o século XVm,
embora aqui e ali, notadamente a partir da década de 1730, os mineradores buscassem maior
eficiência da extração do ouro, abrindo buracos de galerias ou catas nas serras que deviam
conter ricas jazidas. Mesmo assim, se a lavagem do material aurífero não era, conforme a
técnica, largamente utilizada logo no início do processo de extração, no final ela sempre
estava presente, quando os mineradores e faiscadores utilizavam as bateias para lavar/apurar
o ouro que se previa.2
Para os faiscadores e jomaleiros, escravos ou livres, a repetida lavagem das terras
auríferas era uma necessidade da qual não podiam escapar. Não possuíam mais ferramentas
além da bateia feita de madeira, do almocafre e da alavanca. A obtenção do ouro dependia
inteiramente das lavagens contínuas para separar e purificar (apurar) o metal. Eles tinham
que se movimentar constantemente, escalando as montanhas ou faiscando nos ribeiros à
procura de oportunidades de exploração mais favoráveis.
Os negros e os mestiçíos^sendo forros ou nascidos livres, comumente não
conseguiam obter, e menos ainfcja manter, a posse das datas minerais nos descobrimentos.
Na prática, com ou sem o Regimento das Minas do Ouro, publicado em 1702, a maioria dos
pobres fetí alijada da concessão de datas minerais quando o ribeiro descoberto possuía
grande riqueza. É certo que o Regimento de 1702 tentou, até certo ponto, evitar tal exclusão.
No entanto, sabemos que na interpretação e na

2. Para uma abordagem, que deve ser considerada criticamente, das técnicas empregadas na mineração do ouro
até início do século XIX, ver: ESCHEWEGE, Wilhelm L. von. Pluto brasiliensis. Belo Horizonte/ São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1979, v. 1, pp. 167-95; FERRAND, Paul. O ouro em Minas Gerais. Belo Horizonte: Centro de
Estudos Históricos e Culturais/Fundação João Pinheiro, 1998.

162
V IVER À G ANDAIA

aplicação do texto legal, durante o século XVIII, o papel dos ricos foi priorizado na
mineração, concedendo-se datas maiores e mais promissoras aos que tivessem maiores
posses (escravos e capital) para sustentar uma grande lavra.
Os escravos jomaleiros que faiscavam ou exploravam terras auríferas por conta
própria, seguindo as ordens dos seus senhores, não tinham como obter, por si mesmos, uma
data mineral. Os senhores pobres, ou que eram excluídos da partilha de algum
descobrimento nos vales ou nas faldas das montanhas, devido às tramóias ou outros
motivos, deixavam os seus escravos trabalharem como jomaleiros para que tentassem a
sorte nos interstícios das lavras alheias. Havia também escravos que faziam seus próprios
acordos de trabalho nas explorações dos mineradores.
Os jomaleiros lavravam nas partes de ribeiros abandonadas ou não reclamadas, mas
usavam também faiscar nos depósitos que resultavam das lavagens dos mineradores.3
Esses trabalhadores negros e mestiços investigavam as chances de boas explorações
nos morros e ribeiros, não somente nos territórios das vilas, mas muitas vezes nas terras
desconhecidas dos sertões. Junto com notícias do descobrimento das minas de Pitangui, no
sertão da Comarca do Rio das Velhas, veio a denúncia ao governo da capitania de Minas
Gerais, em 1715, de que haviam sido “negros e carijós os que fizeram o descobrimento [no
morro] e quando seus senhores lhes acudiram já eles tinham sumido o que haviam tirado”.4
Talvez isso fosse meramente uma justificativa dos poderosos locais para burlar a cobrança
dos quintos reais, mas, de fato, pouco tempo antes, havia chegado uma reclamação ao
governador, agora contra os senhores com força de autoridade, que ameaçavam a posse de
um mestiço descobridor nas novas minas. O governador notificou o superintendente:

Quero que goze e tenha [a posse da data da lavra] Gervásio de


Campos, sem réplica ou embargo, algum conforme despacho
que lhe mandei pôr na sua carta de data (...), e diga vossa mercê
às pessoas que lhe querem tirar o que lhe toca, que se metam
pelo mato e que façam descobrimentos próprios, e que não
queiram usurpar o que não é seu, e se Gervásio de Campos é
bastardo não importa, porque El Rei se serve dos
procedimentos e não das nobrezas, porque ele é senhor delas e
pode dá-las e tirá-las.5

3. Os faiscadores nas minas de Itabira, por exemplo, souberam aproveitar da extração lucrativa dos mineradores
em certa época. Cf. SAINT-HILA1RE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975, p. 122.
4. Arquivo Público Mineiro (APM), Seção colonial (SC), códice 4, f. 187v, 24 mar 1715.
5. APM, SC, códice 9, f. 33v-34, 10 ago 1714.

163
■f

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Os escravos e livres pobres mais perscrutadores eram seduzidos pelas novidades que
outros jornaleiros ou os escravos fugidos e quilombolas costumavam trazer do sertão.
Supõe-se que tenha havido uma “rede de informações criada pelos quilombolas”, ou no
meio da escravaria, fazendo circular notícias que alertavam tanto sobre a movimentação das
tropas de repressão quanto sobre os meios mais promissores de ganho. 6
Em 1760, um escravo chamado José Nagô, retomando uma imagem tradicional,
disse saber de uma lagoa com muito ouro que ficava num campo próximo a um quilombo.
Alçaram-no, então, em guia de uma bandeira chefiada por Bartolomeu Bueno do Prado, no
sertão oeste das Minas. No entanto, quando se experimentou as pintas do metal, socavando
as vertentes da lagoa e os córregos contíguos, só “se lhe achou (...) malacacheta que parecia
ouro, sem que se achasse faisqueira alguma dele”. 7 A estreita ligação, bastante comum na
época, entre a localização dos quilombos do sertão e a existência de ricas minas nas suas
vizinhanças talvez seja um bom indício da mediação quilombola de alguns desses relatos ou
notícias de supostos tesouros escondidos.
Os trabalhadores negros e mestiços, muitas vezes, ao longo do século XVIQ,
revelavam os segredos de explorações nos ribeiros ou nas catas das serras somente se
estivesse em jogo algum benefício. Por isso havia sempre uma premiação prevista aos
escravos que achassem diamantes de valor ou denunciassem jazidas de metais preciosos.
Embora a classificação da premiação concedida aos escravos “pela achada de diamantes”
não constasse em lei escrita, o costume determinou prêmios aos achadores das lavagens do
cascalho: desde uma faca flamenga para quem achasse diamante de quatro vinténs (0,44 g)
até a concessão da alforria para aquele que manifestasse uma pedra de uma oitava (32
vinténs ou 3,5 g de peso).8 É certo supor,

6. GUIMARÃES, Carlos Magno. Qtíiíofribos e política (MG, século XVIII). Revista de História, São Paulo, n.
132, 1995, p. 76. v
7. APM, SC, códice 103, f. ll-12v [2 out 1760]; APM, SC, códice 103, f. 8v-10v, 13 nov 1760.
8. APM, Secretaria de Governo (SG), caixa'52, documento 15, 14 mar 1801. O alvará régio de 24 de dezembro de
1734 já determinava que>escravo que achasse e manifestasse diamante de vinte ou mais quilates seria
alforriado em nome do rei. Também se tornaria forro o escravo que denunciasse alguma apropriação de
diamante contrária ao direito exclusivo do rei. Caso o senhor não manifestasse o diamante e o seu escravo o
denunciasse, este obteria, além da alforria, um prêmio de 200$000 réis. Tendo-se praticado um ilícito mais
grave, que era o extravio desses diamantes do rei, e sendo o denunciante um cativo, o prêmio ainda seria a sua
alforria. No alvará de 11 de agosto de 1753. na época do contrato da demarcação diamantina, observava-se que
o escravo denunciante do comércio ilegal das pedras seria libertado com o prêmio pecuniário obtido pela
denúncia, e o que sobrasse deveria entregar-se ao liberto. Cf. FERREIRA, Francisco Ignácio. Repertório jurídico
do mineiro. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1884, pp. 41-8.

164
V IVER À G ANDAIA

portanto, que entre os escravos das Minas sempre havia alguma expectativa de alforria
quando negociavam direitos com os senhores e outras autoridades coloniais.
Todavia, o mais comum entre esses exploradores do sertão parece ter sido, havendo
chance de uma autonomia proveitosa, guardar segredo sobre os achados. É isso bastante
compreensível, observando-se as relações costumeiramente violentas e a hierarquia
político-jurídica da época. Estava sempre presente o fato de os poderosos conseguirem
freqüentemente tirar a posse da lavra ou os direitos de descobrimento das mãos dos mais
fracos ou desprotegidos.
Se os libertos, os escravos ou os livres pobres que trilhavam o sertão permanecessem
faiscando os cascalhos pouco promissores dos ribeiros, os trabalhos dos seus ajuntamentos
eram admitidos pelos coloniais, ou mesmo protegidos por alguns agentes do governo. Mas
tudo mudava de figura se a extração de ouro assumisse maior vulto. No Rio do Peixe, o
comandante encarregado da vigilância do descoberto encontrou 12 forros minerando nos
ribeiros, mas avisou o governador:

os não expulsei porque os donos das terras em que trabalhavam


consentiram em que trabalhassem, para melhor exploração e
crédito das terras, e tirassem o ouro seja como for; porque se as
faisqueiras alargarem pelos tabuleiros e grupiaras, têm muito
que lavrar além de muitos ribeiros que se hão de descobrir, e
vão descobrindo.9

O trabalho dos libertos servia para experimentar a riqueza aurífera, aumentando a


reputação do descoberto. Se as extrações do metal mostrassem ser duradouras, subindo
pelas encostas, então era o caso de repartição de datas aos lavradores poderosos, com os
quais, de qualquer modo, os libertos exploradores tinham que se arranjar para continuar
fazendo as suas catas.
O ouro das catas nas serras era, no entanto, o que os escravos jomaleiros certamente
mais procuravam, e quando o encontravam não revelavam o descoberto facilmente.
Acostumado a explorar os buracos dos morros, um escravo das vizinhanças de Curvelo,
“com experiência de mineiro de minas novas”, foi surpreendido por um oficial e
administrador de fazenda, em 1782, portando folhetas de ouro. O jomaleiro acabou
indicando as catas de onde havia tirado as folhetas. O problema ali era a falta de água, pois
o escravo era obrigado a percorrer certa distância para lavar o cascalho. Talvez temendo a
apropriação que se seguiria, e tentando reverter uma situação desfavorável, o descobridor
negro propôs um trato: que o administrador acertasse

9. APM, SC, códice 224, f. 72-74, 24 out 1781.

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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

com seu senhor deixá-lo ali no período das chuvas, pois havia de conseguir um jornal
semanal de duas oitavas. Não se sabe se o trato vingou. De qualquer modo, logo depois o
administrador mandou um prático de minas e alguns escravos da fazenda fazerem
explorações nos morros. Ele quis ainda que o governo da capitania reconhecesse o
descoberto que manifestou...10
Essa história permite compreender uma parte obscura dos conflitos exploratórios das
primeiras décadas do século XVIII, e característicos do imaginário dos descobrimentos das
Minas do ouro. Refiro-me aqui a certos acontecimentos da denominada “Guerra dos
Emboabas”, nos últimos anos da primeira década, e da revolta de Vila Rica, no período do
governo do Conde de Assumar, no final da década de 1710.
Há fortes indícios, no conflito emboaba, de uma disputa latente, em grande parte
estimulada pelos agentes de poder, entre os carijós, muito identificados com os paulistas, e
os emigrados pobres (brancos, negros e mestiços) e escravos dos chamados emboabas - os
forasteiros das regiões açucareiras do litoral. Um contemporâneo, lembrando as mortes
havidas num confronto entre paulistas e emboabas, sugeriu o perfil étnico dos adversários:
do lado paulista ficaram alguns mortos, “entre brancos e carijós”, e do lado emboaba “só
morreu um branco e um preto”. Um emboaba ativo no movimento recordou décadas depois
que, nos descobertos do Rio das Mortes, o número de alistados do lado emboaba foi cerca
de 260 “brancos” e perto de 500 “negros”, e com estes constituiu-se uma companhia cujo
comando entregou-se a um “forro”. Alguns negros portaram armas, mas o restante tomou o
que podia: “foices de roçar e paus de ponta tostada”. 11
Além dessas claras diferenças étnicas e de estilos de vida, a tensão entre esses
trabalhadores aumentava porque competiam por lugares ou pontos de exploração das minas
de ouro recém descobertas. Somente quando os forasteiros ricos e pobres já forçavam as
repartições das terras minerais é que os paulistas tentaram consolidar os seus direitos de
exploração, apoiando-se, nesse momento de pressão, no braço africano e nos direitos
possessórios. ^ ^

10. APM, Avulsos Capitania de Minas Gerais (AvC), caixa 12, documento 31, 27 maio 1782.
11. “Relação do princípio descoberto destas Minas Gerais e os sucessos de algumas coisas mais memoráveis que
sucederam de seu princípio até o tempo que as veio governar o Excelentíssimo Senhor Dom Brás da
Silveira”, in CÓDICE Costa Matoso. Belo Horizonte: Centro de Estudos Históricos e Culturais/ Fundação
João Pinheiro, 1999, p. 201; “História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas
minas, casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e ereção das suas vilas”, in Códice (1999: 284). '

166
V IVER À G ANDAIA

No princípio das Minas, as lavras dos paulistas, bastante rendosas nos leitos e nas
margens dos ribeiros auríferos, continuaram subordinadas ao habitual deslocamento
sertanista e descobridor. Por isso, os bandeiristas de Piratininga e os seus carijós,
itinerantes, estabeleceram-se nos vales. Houve àquela altura pouco interesse deles em fazer
canais e diques, ou em manter mais ferramentas além do necessário para as bateadas. Em
compensação, os pobres e os trabalhadores negros dos senhores emboabas que não estavam
satisfeitos com a ocupação paulista das datas minerais mais lucrativas começaram, desde
1703 ou 1705, a ocupar e explorar os flancos mais baixos das montanhas (tabuleiros e
grupiaras). A situação ficou mais ou menos acomodada até o momento em que os paulistas,
conferindo o Regimento das Minas de 1702, procuraram estender os seus direitos de
descobridores e mineradores aos veios montanhosos. Além disso, aconteceu certo impasse a
respeito da utilização dos recursos, aumentando a tensão entre os partidos em disputa:
enquanto os paulistas assenhoreavam os cursos maiores de água, os pobres, escravos e
senhores emboabas tomavam posse das encostas mal servidas de nascentes ou cursos
estáveis de água, recurso essencial nas lavagens da terra e cascalho de aluvião.
Na segunda década do século XVIII, o problema acentuou-se. Ficou claro para todos
os exploradores que sem o acesso à água não era possível manter a mineração nas
montanhas. A gente emboaba e os seus escravos, que se apossaram dos veios e catas das
encostas, passaram a disputar as águas com os seus detentores.
A apropriação das águas necessárias às lavras acabou sendo um bom negócio para os
senhores mais poderosos. Os líderes do antigo Partido Emboaba, como Manuel Nunes
Viana e Pascoal da Silva Guimarães, segundo denúncias, em conluio com certos
superintendentes reinóis, apossavam-se das águas das vertentes das serras, requerendo
sesmarias das terras se as não podiam deter por meio da propriedade de datas de terras
minerais. Esses donos das águas costumavam vendê-las aos outros lavradores por “preços
exorbitantes”.12
Os pobres e os escravos jomaleiros, nessa situação, ficavam vulneráveis ao peso
político e econômico dos mais poderosos mineradores. Na realidade, essa tática senhorial de
controlar o uso das águas resultava do fato de que não conseguiam, apesar de tudo, obter o
domínio pleno das explorações das montanhas. Os agentes da Coroa portuguesa, e,
sobretudo, a tenaz resistência da arraia-miúda de cor criaram obstáculos ao seu poderio.

12. Cf. ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas nos
sertões do ouro (1680-1822). São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Tese de Doutorado, 2002, pp.
264-84.

167
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

OS DIREITOS DO “POVO” NOS MORROS EA JUSTIÇA DO REI


Especialmente, o conjunto montanhoso da serra de Vila Rica, com seus
prolongamentos até a Vila do Ribeirão do Carmo (Mariana) e a freguesia de Catas Altas, foi
um lugar de trabalho e moradia dos trabalhadores livres e escravos. Esses pobres fizeram
vingar o costume de utilização dos depósitos e formações minerais dos morros,
aproveitando-se do Direito português.
O trabalho dos faiscadores e jomaleiros, particularmente, determinou a exploração
coletiva, possibilitando a apropriação em comum, ou então regulada pelo direito comum de
recursos públicos, como as terras minerais, as águas das vertentes e as madeiras.
Assim, nos morros das vilas ou dos arraiais mais populosos, os agentes seguiram o
estilo mais adequado às condições locais (sociais e de exploração), considerando os altos,
nos termos do governador Lourenço de Almeida, em 1728, “faisqueiras públicas para todos
os moradores”.13
O Direito português já previra que as minas, os cursos de água e as madeiras das
matas eram de direito público ou realengos (patrimônio da Coroa). Por isso, as autoridades
reinóis viam as riquezas minerais como exclusividade do patrimônio do rei, cujo direito de
uso concedia-se aos mineradores qualificados. Mas, na prática, a apropriação comunitária
dos morros abriu espaço para que a exploração aurífera fosse comum e menos excludente do
que as determinações escritas. Em tal circunstância, a lei régia mesclava-se ao direito
comum e ao costume. Desse modo, o estatuto realengo das terras vinha fundamentar e
resguardar a sua utilização pública. Antônio Manuel Hespanha, analisando o equilíbrio de
poderes no Antigo Regime português, conclui a esse respeito:

Se os poderes senhoriais se impõem por uma violência


quotidiana e efectívã^o poder real faz-se desejar e faz-se amar
como refrigério em relação à opressão e à injustiça. Daí que, na
linguagem da época, sei- regalengo [i.e. realengo] seja ser “livre”.
Ou seja, com<^ mecanismos ideológicos de legitimação do poder
real, antecipam-se os modelos moderno e contemporâneo de
uma disciplina política baseada na adesão espontânea, ou
mesmo no amor, dos dominados.14

13. APM, SC, códice 27, f. 50-50v, 24 nov 1728.


14. HESPANHA, Antônio Manuel. Às vésperas do Leviathan: instituições e poder político (Portugal, séc. XVII).
Coimbra: Almedina, 1994, p. 438. Cf. ainda: HESPANHA, Antônio Manuel. História de Portugal moderno.
Político e institucional. Lisboa: Universidade Aberta, 1995, p. 65.

168
V IVER À G ANDAIA

Portanto, os morros, onde estariam os maiores haveres de ouro, disputados pelos


moradores das vilas que os corroíam com buracos, catas e “minas”, eram reputados
realengos; disso decorriam, além dos procedimentos técnicos e de segurança específicos, os
ajustes de trabalho entre os exploradores. Num manuscrito intitulado Modo e estilo que se
tem observado e parece se deve observar no uso de minerar nos morros e distrito de Vila Rica do
Ouro Preto, começou-se explicando que para a extração aurífera “em terras realengas e
comuns a todos, se adquire posse com serviços que nelas se faz” (Códice, 1999:766-8). Não
havia, então, direito aos títulos individuais de propriedade - as cartas de datas. Aposse e a
apropriação dependiam inteiramente dos serviços que se faziam - de catas (de talho aberto
ou buracos) ou de pretendidas minas. Tomou-se prática do governo mandar cessar a divisão
das datas minerais quando havia grande ajuntamento popular nos descobertos cujos
depósitos subterrâneos de ouro (sua dimensão e sua ramificação) eram difíceis de avaliar.
Justificou-se a medida aplicada no Rio das Pedras, no termo de Vila Rica: “porque é razão
que este descobrimento seja geral para todo o povo se acomodar nele, e como outrossim
pode suceder haver entre o povo algumas desordens de quererem brigar uns com os outros”
sem recorrer às justiças.15
Na exploração de ouro dos morros de Matacavalos e de Santana, situados na Vila do
Ribeirão do Carmo, procurou-se seguir o Regimento das Minas, fazendo a divisão das datas
aos que tivessem serviços de águas, mas isso não excluía os direitos populares, mesmo
porque os morros já eram o cenário habitual da vida dos forros e escravos. Tentando
compor uns e outros no morro de Matacavalos, o governador da capitania ordenou ao
guarda-mor comissário em 1721: “Vá ao dito morro repartir as datas que couberem na
forma do regimento e, outrossim, determinar a terra que há de ficar livre para o povo poder
minerar, fazendo nela buracos ou rasgões”. Essa terra ficaria acima, superior às lavras dos
mineradores, “em parte donde não prejudique a correnteza da água, e lavras repartidas”. 16
Portanto, os faiscadores, não tendo jeito de conseguir água, quando apropriada pelos
mineradores poderosos que faziam serviços de “catas de talho aberto”, exploravam os
buracos (nos moldes praticados pelo escravo de Curvelo), que se abriam nos lugares mais
elevados do que os serviços de águas, sem nenhum impedimento. Enquanto aqueles
tirassem ouro, os mineradores ou os senhores de cabedal não os deviam “arruinar nem
lançar fora” (Códice, 1999:766).

15. APM, SC, códice 27, f. 37v-38, 22 mar 1728.


16. Providencial parece ter sido a doença alegada pelo guarda-mor do distrito para não ir até o morro. APM,
SC, códice 21, f. 4v [26 set 1721]; APM, SC, códice 21, f. 4v-5 [26 set 1721]; Códice (1999: 768-9).

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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Expressão do colorido social nas Minas Gerais, esses negros e os moradores pobres,
embora estivessem impossibilitados de manter lavras nos altos e fossem constrangidos pelas
autoridades locais, aproveitavam qualquer oportunidade de ganho onde ela surgisse. Desde
que se noticiou um descobrimento de ouro em um certo “morro grande”, logo o governador
da capitania mandou ordenanças para coibir os conflitos, pois ali já se achava uma
“multidão de negros”.17 O mesmo governador, Conde de Assumar, um ano depois, criticou
os senhores que, ao invés de manter lavra aberta, preferiam favorecer “o maior mal e o
maior perigo das minas que são os negros que andam na faisqueira, os quais são como os
gandaeiros, que vão por onde lhes parece buscar ouro”. 18 Ele ressaltou o fato de que, para
muitos donos de escravos, era mais lucrativo viver dos jornais dos cativos do que empregá-
los em exploração própria. Assumar parecia não compreender as condições do negócio de
minas, principalmente em lugares concorridos pelos pobres, ou que apresentavam o
potencial duvidoso - a experiência de fracassos e de endividamento dos mineradores
mostrou que era melhor um aproveitamento dos investimentos alheios do que assumir os
riscos de um empreendimento pessoal. Além disso, a capacidade de investimento para a
abertura da lavra era bastante limitada para a maioria. Desde as primeiras décadas do século
XVffi, em Vila Rica e na Vila do Carmo predominavam as pequenas posses de escravos
(cerca de 64% dos senhores possuíam no máximo até cinco cativos em 1718), e, dentre
estas, destacava-se um número significativo de senhores forros cujos escravos, tanto quanto
os seus donos, certamente empregavam-se nas faisqueiras públicas.19
O maior mal que as autoridades coloniais percebiam não advinha somente da
faiscação, mas da associação desta atividade com o comércio dos vendeiros (e vendeiras), e
o que praticava as negras de tabuleiro. A gente de cor comerciante costumava seguir as
pegadas dos trabalhadores da mineração, indo aos ajuntamentos exploratórios para fazer
suas vendagens em ranchos ou tendas. Tentava-se impedir tais laços e a atividade das
vendas, que favoreciam o contrabando de ouro, como no morro de Matacavalos,
onde/fòi'proibido que se fizessem ranchos. Nas diversas

17. APM, SC, códice 11, f. 127 [22 abr 1719].


18. APM, SC, códice 4, f. 245-245v [10 maio 1720].
19. LUNA, Francisco Vidal. “Estrutura da posse de escravos em Minas Gerais (1718)”, in BARRETO, Antônio
Emílio Muniz et al. História econômica: ensaios. São Paulo: IPE, 1883, pp. 28-9. No Serro Frio, pelo cálculo
baseado na matrícula de capitação de 1738, 22,2% dos proprietários eram forros (número mais elevado do
que o encontrado em Vila Rica), predominando entre estes as mulheres (63%). A média de escravos
possuídos pelos forros da comarca era de 2,02 cativos. Cf. COSTA, Iraci dei Nero da & LUNA, Francisco
Vidal. De escravo a senhor. Revista do Arquivo Público Mineiro (doravante RAPM), Belo Horizonte, n. 41, jul-
dez, 2005, pp. 108-15.

170
V IVER À G ANDAIA

faisqueiras dos morros das Minas existiam proibições no mesmo sentido. Mantinha- se viva
na memória dos governantes, determinando medidas repressivas em outras situações, a
reação enérgica do Conde de Assumar, quando procurou arrasar o morro do emboaba
renitente, Pascoal da Silva Guimarães, em 1720, mandando demolir e queimar os ranchos e
vendas ali instaladas.20
Na prática, contudo, tais proibições ao exercício do comércio fixo ou volante não
eram efetivamente cumpridas, pois criavam obstáculos à própria continuidade da extração
aurífera, tanto a das lavras dos senhores quanto a que faziam os faiscadores ejomaleiros. 21
Os ajustes de trabalho entre os senhores e os seus escravos faiscadores, baseados na
autonomia destes, excluíam provisões regulares ou matalotagens por conta das casas
senhoriais. Nem as ferramentas de faiscar costumavam ser fornecidas pelos senhores. A
gravidade era maior, conforme a denúncia do secretário do governo, quando se mandavam
escravas à faisqueira, pois tal prática escondia o fato de que, sem o almocafre e a bateia, as
mulheres cometeriam várias imoralidades para entregar os jornais diários no fim da semana
aos seus donos.22 Contudo, o escravo não tentava reverter esses ajustes, inicialmente
desfavoráveis e injustos?
A habilidade mostrada pelos negros que viviam nas condições adversas do
escravismo transparece, com efeito, no modo de viver “à gandaia”. 23 Apesar do virtual
monopólio das águas de lavagem - tática senhorial de apropriação efetiva das formações
auríferas mais lucrativas -, com o apoio dos governantes da Coroa (quando as situações
injustas não comprometiam o governo), os negros “gandaeiros” - escravos e forros
- forjaram seu espaço e conseguiram ganhos próprios.

20. DISCURSO histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Centro
de Estudos Históricos e Culturais/Fundação João Pinheiro, 1994, pp. 135-7.
21. Cf. FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século
XVIII. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/Editora da UnB, 1993, pp. 41-71.
22. [APM, SC, códice 35, Representação do secretário do governo de Minas Gerais, Manuel Afonseca de
Azevedo, ao rei, 20 fev 1732], apud BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas
Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972, pp. 120-3.
23. No Dicionário Houaiss da língua portuguesa, o termo “gandaia” (gandaya) data de 1713, quando foi transcrito
no Dicionário de Rafael de Bluteau. A origem da palavra é controversa: provém de outras línguas européias,
ou talvez seja de origem “banta”. Os significados de gandaia, manifestando o seu conteúdo lato, é indicativo
do cruzamento de percepções conflitantes sobre o trabalho de faiscação dos negros livres e escravos no
século XVIII: 1 “O ato de revolver o lixo com a finalidade de encontrar objetos de algum valor [Já expresso
por Rafael de Bluteau: “He andar buscando no lixo, e nas enxurradas, ferrinhos e outras cousas, que a agoa
leva.”] / 2. O ofício de trapeiro / 3. Condição de vadio; mandriice; ociosidade”. Cf.
http://v.houaiss.uol.com.br.

171
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

ANDAR À G AN DAI A NAS MINAS

Os escravos gandaeiros atuavam com notável mobilidade espacial, permitida por


seus senhores, que os tinham como jomaleiros ou faiscadores. Eles deviam circular
principalmente nos arredores das vilas, indo de uma freguesia a outra, apesar da repressão
dos poderes coloniais. Em 1749, o visitador do bispado de Mariana em Itatiaia, no termo de
Vila Rica, registrou:

Sou informado que nesta freguezia se acham muitos Escravos


forros e captivos, vindo de outras partes com o título de virem
tratar da vida sem outra agencia alguma mais que as as offensas
de Deos do que se seguem gravíssimos prejuízos as almas e ao
bem publico: pello que mando ao Rdo. Parocho (...) se informe
exactamente do seu modo de vida [do escravo de fora] e achando
que não tem com que possa sustentarse ou com venda capaz ou
pello seu próprio braço (...) a mande logo despejar.24

A referência a “escravos forros e cativos” não foi sinal de confusão do visitador,


mas, conferindo a fluidez social nesses ajuntamentos, indica um modo de classificação dos
negros e mestiços cuja condição (livre ou escrava) complicava-se com a sua freqüente
mobilidade. Eles mantinham laços de amizade e de parentesco (real ou fictício)
fundamentais para partilhar da rede de convivência e de ajuda mútua nas perambulações. 25
Daí ser pouco provável que os negros gandaeiros buscassem faisqueiras fora do circuito dos
espaços de convívio - freguesias próximas -, quando não se configurava a rede de alianças
que preparava as trocas materiais e de informações. O Conde de Assumar, temeroso da
solidariedade negra que favorecia as rebeliões, já havia tentado em 1719 sustar a concessão
de alforrias e impedir que os forros possuíssem escravos ou apadrinhassem outros negros
nos batismos e casamentos (Figueiredo, 1993:45-6). ^

24. Tombo/Itatiaia. RODRIGUES, Flávio Carneiro (org.). Cadernos históricos do Arquivo Eclesiástico da
Arquidiocese de Mariana Segunda coletânea das visitas pastorais às paróquias do bispado de Mariana no século
dezoito. Mariana: Dom Viçoso, 2004, p. 159.
25. A coartação (parcelamento do valor da alforria) não deixava de desempenhar um papel na constituição dos
laços de fidelidade e gratidão que prendiam os escravos aos seus senhores. É, portanto, compreensível que
os pequenos proprietários de escravos, notadamente os senhores forros, usassem mais desse expediente de
libertação do que os proprietários mais abastados (nas comarcas do Rio das Velhas e do Rio das Mortes). Cf.
PAIVA, Eduardo França. Por meu trabalho, serviço e indústria: histórias de africanos, crioulos e mestiços na
Colônia (Minas Gerais, 1716-1789). São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Tese de Doutorado, 1999,
pp. 197-202.

172
V IVER À G ANDAIA

O pequeno comércio abastecia de gêneros alimentícios os trabalhadores, sobretudo


jomaleiros, cujo modo de vida itinerante dificultava a condução de cargas maiores. É o que
transparece numa petição encaminhada ao governo da capitania, apesar da tonalidade
criminosa conferida aos tratos dos escravos:

Um dos escravos das ditas fazendas [que] é costumado e


atualmente dá asilo a escravos errones, socorrendo os de todo o
necessário com tanto escândalo e animosidade que não falta
quem diga que ele é ciente e noticiado de qualquer quilombo
ainda existente na distância de 30 ou 40 léguas (apud
Guimarães,
1995:79).

Esses escravos podiam morar temporariamente nos ranchos dos vendeiros (ou das
vendeiras) negros, onde se cozinhavam mantimentos e se vendiam gêneros de consumo
imediato (Figueiredo, 1993:46). As casas dos negros assumiam feições variadas; podiam
ser, ao mesmo tempo, vendas de diversos gêneros, hospedarias, pontos de alimentação,
locais de festejos ou de atividade religiosa. O bispo do Rio de Janeiro, quando passou pela
freguesia de Itatiaia, poucos anos antes de o visitador de Mariana encontrar ali muitos
escravos de fora, alertou o pároco sobre os “ajuntamentos de negros, que com instrumentos
fazem suas festas de noute e de dia, nas quaes mais fazem a vontade do Demônio do que se
divertem e dellas só tirão ofensas graves que fomentão com o título de divertimento”
(Rodrigues, 2004:152).26
Todavia, não era incomum os escravos jomaleiros entrarem no sertão mais remoto,
como vimos. Os negros, de fato, eram os descobridores das jazidas de ouro e diamantes nas
suas andanças em vertentes das serras, beneficiando-se até certo ponto da crise econômica
nas Minas. Um anônimo, na década de 1730, explicou que os moradores estavam “em
suma miséria, de sorte que não se atrevem a baldarem por algum tempo os jornais dos seus
negros, e os descobrimentos que se fazem no interior das Minas são casualmente [feitos]
por negros faiscadores, que andavam como à gandaia”.27 A Coroa procurava coibir essas
entradas dos negros e pobres e regular os descobrimentos de minerais preciosos na segunda
metade do século XVIII, impondo penas severas (como as que puniam os salteadores de
caminhos) aos supostos vadios ou habitantes de “sítios volantes” que não fossem viver nas
vilas e trabalhar nas suas

26. Cf. ainda: MOTT, Luiz. Acontudá: raízes setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro. Revista do
Museu Paulista, São Paulo, v. 31, 1986, pp. 124-47.
27. Biblioteca Nacional de Lisboa, códice 738.

173
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

vizinhanças. Admitia-se que tais habitações seriam tão danosas à república quanto os
quilombos de escravos fugidos.28
As atividades dos gandaeiros nos lugares ou pontos na serra mais concorridos eram
sazonais, porque na época da seca (ou inverno) a falta de água impedia seriamente a
extração do ouro; mas na época das chuvas (ou verão) os trabalhos persistiam. Numa
descrição das Minas da segunda década do século XVIII, esclarece-se o seguinte, sobre a
mineração na Vila de São João del-Rei: havia “lucrosas minas, mas de suma dificuldade, e
não para todos, senão no inverno (sic) de cujas enxurradas se aproveitam indo os negros à
gandaia a que se chama faisqueira”. Na época da seca, “perece o comum e somente lucram
alguns particulares com força de escravos, dando catas na falda do dito monte [da vila]”. 29
Assim, na seca (maio a outubro), os faiscadores libertos e escravos, se não quisessem batear
os resíduos (ou sobras) dos desmontes nos vales, deviam buscar outros meios de vida ou
fazer explorações em locais do sertão.
Os negros dessas faisqueiras públicas só podiam trabalhar em conjunto, fazendo
ajustes entre si ou com os detentores de lavras para a forma conveniente de extração do
metal. Deviam ainda associar-se, quando a situação requeria, aos pobres de diversos
matizes. Deste modo, a atividade das gandaias não pode ser reduzida a um mero
ajuntamento de negros, reunidos desordenamente para satisfazer as necessidades mais
imediatas do ganho, como parece à primeira vista nos escritos de autoridades coloniais
temerosas. Ela provavelmente compreendia certa organização das ocupações, conforme as
fases da separação do material aurífero, do transporte nos carumbés e da lavagem ou
apuração nas bateias, num alentado ritmo de trabalho.
Pode-se inferir o trabalho coletivo dos faiscadores e o ritmo próprio que imprimiam
à extração do ouro através dos cantos de trabalho. Aires da Mata Machado, pioneiro nos
estudos sobre os negros e a escravidão em Minas Gerais, coligiu cantigas de trabalho
entoadas pelos negros nas lavras de São João da Chapada, nas proximidades de Diamantina.
Felizmente, ele publicou esses vissungos, designação dos cantos de trabalho, em 1943.30
Tais canções, indicativas do fato evidente da reunião para o cumprimento conjunto
da tarefa, marcavam a sincronia das ações necessárias ao pleno exercício do trabalho.
Quando havia canções^as lavras e faisqueiras, as vozes dos trabalhadores

28. Carta régia, 22 jul 1766. RAPM, Belo Horizonte, v. 16, jan- jun, 1911, pp. 451-2.
29. Biblioteca da Ajuda, 54/ XIII/ 4 24, Descrição do mapa q. comprehende os limites do governo de São Paulo
e Minas, e também os do Rio de Janeiro, f. IO-IOV.
30. MACHADO FILHO, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Rio de Janeiro: José Olympio,
1943, pp. 69-112.

174
V IVER À G ANDAIA

e os seus movimentos, utilizando os instrumentos de mineração, permitiam que


constituíssem seu ritmo (variável) e a duração de trabalho.31
O “fundamento” - para os informantes é a tradução, o sentido do texto e a sua
música - de vários cantos, pelo que Mata Machado pôde traduzir, revela os temas do
esforço composto para fazer as explorações minerais: o caminho, o descoberto, a jornada
comum de trabalho, o desmonte, a secagem de água das catas, a necessidade de água para
lavagem, o serviço intenso, o conflito entre os exploradores (rixa e reação ao companheiro
indolente), a relação com o senhor, o trato com o comerciante do arraial, e a moradia no
quilombo ou no sertão. Além disso, havia cantos relacionados aos desejos que aliviavam o
trabalho: a liberdade quilombola ou o amor de uma prostituta do povoado.
Especialmente um canto, conduzido por solo e dois coros, tem um fundamento (na
transcrição de Mata Machado) que expressava, pelo menos, uma expectativa de autonomia
na jornada de trabalho e do direito de exploração própria: “O sol está entrando, vamo-nos
embora para o rancho/ O sol entrou, vamos para o rancho/ Eu vou entrar é para minha
faisqueira”.32
No início do século XIX, quando a faiscação dava resultados em geral bem
minguados, o mineralogista Eschwege ainda via os faiscadores “nos canais de alimentação
[de água para desmontar o morro] e nos córregos”. Ele asseverou “que muitos negros
pobres, todos os anos, trabalham nos canais e leitos de rio, na lavagem do ouro e na escolha
da formação existente nesses refugos, obtendo considerável proveito”. 33 Mas os ajustes dos
homens de cor podiam envolver até alguma forma de arrendamento (comum ou não) de
lavras pouco produtivas. Na mesma época, o proprietário de uma cata antiga da serra de
Vila Rica tinha permitido que alguns libertos procedessem à faiscação em troca do
pagamento de um estipêndio diário.34
Havia, no âmbito do agrupamento negro, aqueles que, tendo ascendência política
(ou simbólica) sobre os demais, exerciam papéis de liderança, como indicam algumas
narrativas dos conflitos relacionados à mineração nos morros das Minas.

31. São sugestivas, nesse sentido, as melodias: “O final de quase todos os vissungos, pela sua lentidão no
andamento e pelo seu ritmo livre, lembra a terminação das mais típicas cantigas sertanejas”. Para o
estudioso, a linguagem empregada e as melodias indicam uma origem banto dos vissungos recolhidos
(Machado Filho, 1943: 64-6).
32. Essa é a tradução para o seguinte vissungo: “[Solo] Oenda auê, a a!/ Ucumbí oenda, auê, a.../ Oenda auê, a
a!/ Ucumbí oenda, auê, no calunga// [Coro lo] Ucumbí oenda, ondoró onjó/ Ucumbí oenda ondoró onjó
(bis)// [Coro 2o] lô vou oendá, pu curima auê/ Iô vou oenda pu curima auê (bis) (Machado Filho, 1943: 81-
2).
33. ESCHWEGE. Wilhelm L. von. Pluto brasiliensis. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979, v.
1, p. 175.
34. SP1X, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1981,
p. 207.

175
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

No arraial de Congonhas, em 1762, correndo a notícia de um descobrimento de rica


formação de ouro, juntou-se logo uma multidão, como sempre aconteceu nos descobertos,
promovendo uma ocupação “desordenada”. Os que se arvoraram em proprietários do
descoberto apelaram ao superintendente das Minas, exigindo a desocupação do lugar. O
magistrado mandou os seus oficiais expulsarem dali a multidão. Quando os oficiais de
Justiça chegaram ao descoberto foram recebidos com gritos de “viva o povo” e “viva el
rei”. É certo que tais palavras de ordem eram comuns nos motins, mas nos morros com
minas elas assumiam uma conotação especial, como foi apontado. O “povo” resistiu com
armas (pistolas, clavinas, foices, zagaias, facas), e os oficiais foram obrigados a retroceder.
Numa outra tentativa de desocupação, conseguiu-se expulsar os amotinados. Mas
logo depois eles voltaram. Somente numa terceira tentativa é que o motim foi desfeito.
A composição social e étnica dos envolvidos - estimados em mais de 100 pessoas - é
reveladora. Constavam somente seis brancos. O ajuntamento compunha- se, quase que
totalmente, de escravos jomaleiros, mulatos, cabras, forros, mulheres pretas e mulatas e
crianças. Sabia-se que alguns mulatos e crioulos eram de fora do arraial, ocupando alguns o
posto de capitães-do-mato. Exerciam estes alguma forma de liderança na exploração?
Parece que sirri, pois pouco tempo depois um “tumulto de mulatos e caboclos”
armados conseguiu impedir que um Alexandre de Souza, sob acusação de dívida, fosse
detido e conduzido à Vila Rica. O prisioneiro, depois de solto pelos companheiros, foi
levado para o descoberto, palco do motim. Conforme as testemunhas da devassa instaurada,
os promotores desse atentado à justiça local haviam sido os “capitães-do- mato do vieiro”.35
Fica, assim, evidente que existiam lideranças negras e mulatas, combinando e e
propondo táticas e estratégias de trabalho, e reagindo a qualquer usurpação considerada
injusta. Os capitães-do-mato, suportando uma experiência semelhante à dos outros homens
livres de tfórjhtilizaram as próprias funções destacadas de polícia da escravaria para
assumir a chefiàdos mesmos negros, fossem cativos ou forros.
Deve-se observar ainda que ós conflitos entre os exploradores dos veios das encostas
eram regidos, na práticá, pelo direito local ou de “rústicos”, segundo as concepções
tradicionais dos pobres. Tal direito mostrava-se bastante flexível, e

35. Embora eu tenha interpretado distintamente os acontecimentos, o relato baseia-se na narrativa dos conflitos
apresentada por AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no
Brasil colonial. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Tese de Doutorado,
1999, pp. 91-3. Cf. Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (doravante AHMI), I o ofício, devassa,
códice 449/ auto 9463; AHMI, Querelas, códice 1739-1789, f. 117v-l 19.
V IVER À G ANDAIA

promovia uma composição mutuamente propícia aos litigantes. 36 Nesse sentido, a


concessão de direitos de propriedade a uns poucos, como aconteceu em Congonhas,
conferindo-se títulos de datas minerais, feriam as posses e a condição de trabalho autônomo
dos livres pobres, forros e escravos. A reação a isso não se fez esperar.

ATÍTULO DE CONCLUSÃO

Quando as primeiras vilas das Minas do ouro foram fundadas, em 1711, o estilo dos
faiscadores negros era usual. Durante o século XVIII, os camaristas das vilas reagiram a
essa autonomia escrava e livre pobre baseada numa sociabilidade própria, e, afetados por
isso, acusaram sistematicamente os moradores dos morros de praticarem toda a sorte de
imoralidades e crimes, inclusive de municiar quilombos e esconder escravos fugidos. No
entanto, essa história não se faz simples assim. Pois ali mesmo onde os historiadores e os
agentes luso-brasileiros vêem crimes e desvios morais, núcleos ou casas de quilombos, há o
traçado de uma autonomia construída cotidianamente, e a negação do enquadramento
efetuado pelos poderes coloniais (governos civil e eclesiástico).
A gandaia dos negros e mestiços, cativos e forros, era constituída no silêncio
- ensina o pai, em uma cantiga de trabalho, ao filho que grita o achado de um diamante:
“silêncio!”. Por outro lado, havia o intenso rumor dos batuques e das vozes quilombolas.
No que se refere às Minas, a conduta ruidosa (ou criminosa), “plantada” pelos agentes
desses poderes na dissimulação do trabalho dos negros (cativos ou livres) serviria para
atingir ou reprimir a autonomia e qualquer reação política.
De qualquer maneira, os diversos morros da capitania de Minas, com certo amparo
no poder régio, viraram refúgios desses negros, tomando-se um espaço vivido com mais
liberdade do que embaixo, nos vales ou nos largos das vilas. Sobretudo em sertões, como
olha Guimarães Rosa, trilhados por faiscadores e jomaleiros, formaram- se uns povoados
negros.

36. Sobre o direito dos rústicos e seu confronto com o direito erudito (direito comum e direito régio), ver:
HESPANHA, Antônio Manuel. Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique. IUS commune,
n. 10, 1983, pp. 1-48.

177
TRÂNSITO EXTERNO E O MALOGRO DA
INTERIORIZAÇÃO HOLANDESA NO BRASIL

Isnara Pereira Ivo1

Se é verdade não ser o mundo senão uma cidade de que todos os


homens são habitantes, e vergonhoso, no dizer de Sêneca, nada
saber senão e somente com a ajuda dos livros, não há
curiosidade mais justa e gloriosa do que a que conduz alguém,
levado pelo conhecimento de sua pátria, a ir verificar
pessoalmente o que existe de louvável ou censurável nas outras
nações.2

Estas são as primeiras palavras da narrativa de Pierre Moreau, escrita entre os anos
de 1646 e 1648, acerca do mundo em que vive - uma cidade - e sobre o sentimento que o
impele a deslocar-se para um espaço inusitado e sem fronteiras - a curiosidade.
O sentimento instigante que impele Moreau ao conhecimento pleno para além
daquele expresso em livros é o mesmo que o permite conceber o mundo como uma grande
pólis, conectada por tênues fronteiras, agregando identidades múltiplas que interligam seus
habitantes. A gigantesca urbe pensada por Moreau associa os mesmos caracteres do mundo
ibérico iluminado pelas coroas planetárias: um espaço mundializado que reúne frágeis e
resistentes fronteiras culturais num universo multifacetado em diversas línguas, crenças,
saberes e valores.

1. Professora do Departamento de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).


Doutoranda em História na UFMG
2. MOREAU, Pierre & BARO, Roulox. História das últimas lutas no Brasil entre holandeses eportugueses e relação
da viagem ao país dos tapuias. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

A conexão intercontinental empreendida por portugueses e espanhóis no século XVI


fomentou experiências e trocas culturais até então desconhecidas, e permitiu a circulação de
pessoas num mundo repleto de novos sentimentos, sabores e técnicas. As Coroas católicas
promoveram a presença de europeus em solo tropical africano, em terras do mundo asiático
e do novo mundo americano.
O processo de mundialização aqui considerado refere-se às ações resultantes das
ambições planetárias experimentadas por um conjunto político sob o poder do rei Felipe II a
partir de 1580, quando a união das duas Coroas ibéricas acrescentou Portugal, e suas
possessões de além-mar, à herança de Carlos V. As monarquias católicas, sob controle de
um único soberano, dominaram um gigantesco império até 1640, abrigando uma
diversidade de lugares, costumes, línguas e os mais inusitados diálogos: católicos e
seguidores de Confúcio em Macau, judeus, anglicanos e calvinistas em Pernambuco, negros
islamizados e católicos em Salvador, na Bahia, constituem exemplos de convivências
múltiplas no novo espaço planetário das Coroas ibéricas.
Este novo cenário tornou-se um mundo orientado pelas miscibilidade e
adaptabilidade lusitanas que proporcionaram, desde o século XV, o deslocamento de seus
agentes como “peças de um tabuleiro de gamão”, conforme afirmou Freyre, ao concluir que
a mobilidade foi um dos segredos da vitória portuguesa sobre populações e culturas tão
diversas e ricas quanto distantes: “O domínio imperial realizado por um número quase
ridículo de europeus correndo de uma para outra das quatro partes do mundo, então
conhecido, como num formidável jogo de quatro cantos”.3
As pessoas que transitaram pelo Império português, circulando pelas “quatro partes
do mundo”, mobilizaram saberes e sabores, sentimentos e identidades, técnicas e culturas,
crenças e valores. Igualmente, favoreceram transferências e diálogos culturais entre
universos aparentemente incompatíveis, elaborando mediações muitas vezes insólitas. Elas
contribuíram com sua articulação para a permeabilização das fronteiras culturais, tomando-
se, portanto, responsáveis pelo trânsito de e entre culturas. 4
Desde o século XV, descobridores, burocratas, mercadores e aventureiros
transitaram nesse império de escala intercontinental. O mundo assistiu às aventuras de
portugueses e espanhóis, os quais se díeslocaram não só da Europa para a América:

3. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação dafamília brasileira sob o regime da economia patriarcal.
16a ed.. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 9, grifo nosso.
4. ARES QUEIJA, Berta & GRUZINSKI, Serge (coords.). “Presentación”, in __________________ . Entre dos
mundos: fronteras culturales y agentes mediadores. Sevilha, 1997, p. 10 (I Congresso Internacional sobre
Mediadores Culturais, realizado em 1995); PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria
Junho (orgs.). “Introdução”, in _____________ . O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de
viver (séculos XVI a XIX). São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGH-UFMQ 2002, p. 9.

180
T RÂNSITO E XT ERNO E O M A LOGR O DA I NTERIORIZAÇÃ O H O LANDESA NO B RASIL

as frotas ibéricas percorreram toda a superfície da terra.5 O ímpeto desta mobilização de


descobrir, explorar e conquistar só pode ser comparado ao desejo de evangelizar, visto não
somente nos europeus que se dirigiram para o Novo Mundo, para a África ou para a Ásia; da
mesma forma, africanos, índios e mestiços americanos transferiram- se para o Velho Mundo,
alguns como escravos, outros como afortunados descendentes da nobreza indígena americana
que passaram a viver na Espanha.
Aventura, curiosidade, conquistas, ou mesmo um intenso desejo de conhecimento,
como é o caso do francês Pierre Moreau, são alguns dos elementos presentes nas
experiências insólitas e nas viagens arriscadas empreendidas por esses agentes sociais aos
mais longínquos espaços. Diversos missionários, artistas e aventureiros abriram caminhos
pelos mares ou pelas florestas. A lista dos personagens que transitaram pelo mundo ibérico é
longa e não nos permite contabilizar todos aqueles operadores que, em diversas partes do
mundo, experimentaram as mais inusitadas vivências.
A incidência de circulações e trânsitos, implementados por diversos atores sociais
que, indo e vindo de um lugar para o outro, protagonizaram distintos contatos, nos permite
pensar em que medida a sua intensidade pode ser responsável por relações e conexões entre
mundos diferentes e, aparentemente, incompatíveis. Quantos proscritos, degredados,
náufragos e viajantes solitários circularam por cenários inóspitos do mundo ultramarino
lusitano, vivenciando as mais diversas experiências, sem contudo se agasalharem, e sem se
acomodarem aos inusitados e perigosos espaços distantes? Esses anônimos ou mesmo
transeuntes, com suas experiências efêmeras, esquecidos, circulando em diversas partes do
globo, não são os responsáveis pelos nexos entre universos apartados e distantes. A reflexão
se volta para aqueles que, mesmo em ambientes e culturas adversas, conseguiram deslocar-se
do anonimato e protagonizar, em escalas variadas, transferências culturais entre o seu mundo
e o novo espaço recém-vivenciado. Estamos nos referindo àqueles que, nas redes do
cotidiano, tecem as mais diferentes tramas, em graus e dimensões também distintos,
dilatando as fronteiras entre os universos culturais, facilitando a permeabilização entre
mundos tidos como incompatíveis, imergindo e interiorizando novas experiênciasv
O espaço africano dos séculos XV e XVI, metamorfoseado pelos portugueses como um
espaço para estas vivências, é o locus para os primeiros agentes do Velho Mundo realizarem
suas pioneiras investidas em solo não europeu. Serão os mulatos e brancos, alguns
deportados, aventureiros, ou cristãos novos, denominados de

5. GRUZINSKI, Serge. Les quatreparties du monde; hisíoire d 'une mondialisaíion. Paris: Éditions de la
Martinière, 2004, p. 39.

181
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

“lançados”,6 os primeiros encarregados europeus a imergirem no universo tropical da África.


De acordo com Boulégue,7 eram, em sua maioria, provenientes da Ilha de Santiago, em Cabo
Verde; outros seriam europeus não-portugueses, mas a eles culturalmente assimilados.
Os lançados, vivendo como africanos, absorvendo práticas e crenças cabo- verdianas
e são-tomenses, foram os intermediários entre as sociedades locais e o mundo lusitano. Eram
auxiliados pelos grumetes - africanos semidestribalizados, cristãos, civilizados e de posição
superior. Também em Angola, encontravam-se promotores de natureza semelhante,
interligados pela atividade comercial: aviados e pombeiros. Os aviados eram os mestiços e
funcionários baixos que exerciam o comércio com o interior da Colônia após a proibição do
comércio no sertão aos brancos. Os pombeiros descalços - negros com “calções” - também
semidestribalizados, desempenhavam a função de interlocutores entre os comerciantes de
Luanda e os chefes locais, atividade que, muitas vezes, concorria com a dos aviados. Tanto
as comunidades de lançados como as dos aviados diluíram-se em processos de mestiçagem,
que perduraram até nossos dias em Luanda, Cabo Verde e São Tomé (Venâncio, 1999: 185).
Também nos primeiros anos do século XVI, tem-se o registro de uma das primeiras
presenças européias nas costas brasileiras. Objeto de iconografias, de lendas e de relatos
fantásticos, o registro do sobrevivente de um naufrágio na ilha de Itaparica
- Diogo Álvares Correia, o Caramuru - também recebeu olhar da historiografia. Vivendo
como os índios, falando a língua deles, e chegando mesmo a adotar um nome tupinambá e a
se casar com uma indígena, Caramuru tornou-se o primeiro caso de interiorização cultural
européia na América lusitana.8 De característica semelhante, o cronista Bernal Diaz dei
Castilho registrou a história de dois espanhóis que

6. O termo lançados ou tangomaus (porfiti^üèíses lançados na Guiné) pode derivar do verbo lançar, jogar
fora, degredar, explicando, assim, o estatuto social desses agentes. Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O
trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sid. São Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 48. 1
7. VENÂNCIO, José Carlos. “Mestiços em ^frica: mediadores culturais naturais”, in LOUREIRO, Rui
Manoel & GRUZINSKI, Serge (coords.). Passar as fronteiras. Lagos, 1999, p. 184 (Atas do “II Colóquio
Internacional sobre Mediadores Culturais, séculos XV a XVM”, realizado em 1997).
8. Para Janaína Amado, a historiografia não tem dúvida da existência deste personagem, mas também
não a comprova com veemência, apesar de Gabriel Soares de Sousa ter escrito sobre um náufrago
encontrado nas costas da Bahia em companhia do donatário Francisco Coutinho. Registra a autora que, a
partir dos Poemas épicos de Santa Rita Durão e os relatos do Padre Simão de Vasconcelos, o registro de
Caramuru perpetuou-se em obras posteriores. Cf. AMADO, Janaína. Diogo Álvares, o Caramuru, e a fundação
do Brasil. Cascais, 1998, pp. 175-209, (Actas dos IV Cursos Internacionais de Verão de Cascais - Mito e
Símbolo na História de Portugal e do Brasil).

182
T RÂNSITO E XT ERNO E O M A LOGR O DA I NTERIORIZAÇÂ O H O LANDESA NO B RASIL

naufragaram, ainda em 1509, em terras espanholas, e se integraram, posteriormente, à


comunidade maia. Como Caramuru, Jerônimo de Aguilar e Gonzalo Guerrero permaneceram
no universo indígena por vários anos, protagonizando sociabilidades e aventuras inusitadas.
Aguilar, após o reencontro com seus pares europeus, recusou- se a retomar ao mundo cristão;
Guerrero, por sua vez, apoiou a causa indígena em luta contra os espanhóis conquistadores.9
A experiência vitoriosa de diversos agentes europeus em terras inóspitas,
especialmente os agentes ibéricos, comparativamente, contribui para reflexão acerca das
dificuldades de interiorizaçâo protagonizadas pelos batavos em terras tropicais no Brasil. De
outra maneira, nos permite entender algumas variáveis envolvidas nas resistências e
impermeabilidades que dificultaram a mediação cultural holandesa. A capitania de
Pernambuco é o cenário privilegiado para esta análise, tendo como base o relato escrito pelo
francês Pierre Moreau sobre os dois anos em que esteve no Brasil à época da guerra de
ocupação.
Antes do exame acerca das dificuldades de interiorizaçâo expressas no relato de
Moreau, é necessário esclarecer algumas questões que envolvem o processo de misturas e de
trocas culturais, e, também, refletir acerca do caráter das fronteiras culturais, assim como das
permeabilidades e impermeabilidades culturais verificadas no processo.
Como pensar as impermeabilidades e resistências culturais que separam dois
universos díspares? A análise de algumas experiências pode ajudar a compreender as
relações e conexões possíveis num processo de encontro entre universos distintos. Alguns
atributos, como a criatividade do ser humano, são elementos facilitadores e de importância
fundamental nas trocas culturais. Pesquisando o processo de cristianização implementado
pelo missionário Matteo Ricci, em fins do século XVI, em Macau, Rebollo 10 analisa as
questões que envolveram as permeabilidades, as mobilidades e os limites das fronteiras,
sejam elas culturais, religiosas ou ideológicas, e constata que a habilidade e a plasticidade do
missionário jesuíta o permitiram transitar entre universos culturais adversos e tidos, a priori,
como intransponíveis. A ciência foi o principal mecanismo utilizado por Ricci para se
aproximar do governo chinês. Se a aproximação física e exterior foi relativamente fácil, a
mediação encontrou dificuldades em outros níveis, principalmente, o religioso e o ético-
moral.

9. GRUZINSKJ, Serge. A passagem do século: 1480-1520. As origens da globalização. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999, pp. 108-9.
10. REBOLLO, Beatriz Moncó. “Misioneros em China. Matteo Ricci como mediador cultural”, in Ares Queija
& Gruzinski (1997: 329-49); REBOLLO, Beatriz Moncó. “Mediación cultural y fronteras ideológicas”, in
Loureiro & Gruzinski (1999: 339-54).

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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Relatos e estudos de experiências nos permitem pensar que a permeabilidade cultural


não é total e nem geral, mas seletiva, e que a análise deve ser precedida do reconhecimento
dos mecanismos e objetos envolvidos. As trocas culturais variam em níveis de intensidade,
pois os universos culturais constituem fronteiras de níveis diferentes: algumas são brandas,
passíveis de serem transpostas; outras são rígidas, resistentes e impermeáveis, dificultam e,
mesmo, impedem o processo de mestiçagem que, a priori, pode ser marcado por vitórias e
derrotas que constroem um espaço novo, peculiar, sincretizando elementos heterogêneos e
distintos, abrigando valores, crenças e saberes que podem tanto se incluir, como se excluir.
Para que as misturas possam ser compreendidas, é preciso repensar o termo “cultura”,
alertando-se, ainda, para o perigo que se corre ao falar de culturas puras singularizadas em
espaços desconhecidos, pois “todas as culturas são híbridas (...) as misturas datam das
origens da história do homem”.11 O conceito de cultura foi constantemente aplicado para
explicar os mundos pré-modemos e para analisar as novas realidades sociais da modernidade
e da contemporaneidade, alimentando uma compreensão de que pode existir uma totalidade
coerente, estável, capaz de orientar e condicionar os comportamentos de determinado grupo
social ou espaço sócio- histórico:

A démarche “culturalista” leva a imprimir à realidade uma


obsessão pela ordem, pelo recorte e pela formatação, que na
verdade é típica da modernidade. Insistindo nas especificidades
e diferenças, em detrimento do que liga cada cultura a outros
conjuntos, próximos ou distantes, logo se chega às retóricas da
alteridade e, depois, às do multiculturalismo (Gruzinski,
2001:51).

Serge Gruzinski chama a ajenção para outra problemática de igual envergadura:


alteridades e identidades atribmdas a grupos sociais ou indivíduos singularizam e
particularizam características estáve^ e invariantes. Para exemplificar, ele mostra como a
história da América, preocupada em narrar o confronto entre astecas e espanhóis,
negligenciou a existênerá de variados grupos móveis ou estratificados em constante relação
com os invasores europeus. Não se pode pensar que as realidades históricas são portadoras de
sistemas homogêneos que abrigam personagens igualmente puros e incólumes a qualquer
tipo de troca cultural.

11. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 41.

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T RÂNSITO E XT ERNO E O M A LOGR O DA I NTERIORIZAÇÃ O H O LANDESA NO B RASIL

As misturas envolvem, além de corpos, toda a existência, abarcando as atividades


inerentes à vida e às formas de organização social dos homens. As trocas culturais verifícam-
se em todos os aspectos da vida em sociedade, sejam eles políticos, religiosos, econômicos
ou mesmo institucionais.
Refletir sobre esses aspectos é repensar os dualismos rígidos - Colônia e Metrópole -
e os binômios - dominação e controle - e sinalizar para uma reinterpretação das formas de
relações construídas pelas autoridades coloniais e os colonos. As recentes abordagens
historiográficas apontam para o fato de que “os colonos conseguiam negociar as políticas e
práticas da Coroa no sentido de tomá-las menos opressivas e/ ou mais de acordo com as
prioridades, necessidades e práticas da sociedade colonial”. 12 Também têm demonstrado que
o sistema lusitano de concessão de mercês contribuía para o reforço da nobreza da terra, ora
fortalecendo o caráter excludente e hierárquico da sociedade colonial, ora amenizando
possíveis conflitos com aqueles que representavam a Coroa portuguesa no Novo Mundo. As
pesquisas recentes da historiografia sobre a América espanhola e portuguesa têm
demonstrado como as mediações estabelecidas no mundo colonial ibérico foram
protagonizadas em diversos níveis.
Não se trata apenas de fazer retomar à cena a forma como aqueles que “‘não tinham
poder’ se apropriavam de instituições e mecanismos da política do governo em proveito
próprio”, como alerta Lara.13 Mas de perceber como, no seio dessas institucional idades
coloniais, se abrigavam elementos de caráter híbrido, resultantes dos velhos elementos do
Antigo Regime e das novas substâncias agregadas no Novo Mundo.
As autoridades portuguesas, no processo de conquistas e de sedimentação colonial,
não abriam mão de recursos para agraciar os colonos com vistas ao exercício pleno da
economia. A prática de concessão de privilégios, excessiva entre os portugueses, será escassa
no mundo pernambucano holandês. O relato de Pierre Moreau não comprova outra assertiva
senão esta.
As poucas informações sobre a vida desse francês, que, motivado pela curiosidade,
desloca-se para a Holanda e se oferece para contribuir na guerra de ocupação de uma das
áreas mais lucrativas da colônia portuguesa, foram encontradas

12. RUSSELL-WOOD, A. J, R. “Prefácio”, in FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista &
GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 3.
13. LARA, Silvia unold LaraHUHunold. “Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime
na América portuguesa”, in BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de
governar: idéias e práticas políticas no império português (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2005, p. 35.

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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

em seu próprio relato. Em 1645 foi nomeado para compor o governo do Brasil holandês,
permanecendo aqui por dois anos.
A narrativa de Moreau, muitas vezes cética e angustiada pelos horrores da guerra que
presenciara entre os anos de 1646 e 1648, revela parcelas do olhar batavo sobre os
acontecimentos em Pernambuco, ao tempo em que denuncia as resistências e aversões que os
holandeses, em terras tropicais, nutriam pelos “brasilianos”. Além de ter pesquisado nos
registros da Companhia das índias Ocidentais (West-Indische Compagne-WIC), Moreau
consultou memórias e foi testemunha ocular e atenta das mazelas da aventura malograda.
O olhar angustiado deste francês sobre o conflito denuncia os sentimentos pouco
nobres presentes nas ações holandesas: “as misérias e calamidades que acompanharam a
sublevação dos portugueses no Brasil e a guerra que se lhe seguiu, a qual teve como causas
principais a avareza, a crueldade, a injustiça e a imprudência dos comandantes” (Moreau &
Baro, 1979:15). De forma talvez involuntária, Moreau descortina o tipo de afeição que ele
próprio alimenta pelos moradores do sertão pernambucano:

(...) secreta e maligna disposição do ar que se respira, infectado


pelos demônios que corrompem o natural de seus habitantes.
Esta rica parte da América, em vez de gozar tranqüilidade,
parece estar destinada apenas à carnificina e à crueldade, que
sempre viu executadas pelos descendentes naturais e dos que a
nossa Europa aí conduziu (Moreau & Baro, 1979:17-8).

Gaspar Barléu,'4 entretanto, parece dar um outro tom às cores e às gentes que
habitavam os trópicos. Ao afastar-se da premissa comum na época de que careciam de fé, de
lei e de rei, reconhece que “os costumes, o caráter, o trajar dos brasileiros ou são comuns a
todas as nações oupeculiares a algumas, conforme a sua diversidade” (1974:22).
Contrariamente a^íoreau, assinala, em seguida, as multiplicidades das representações que
percebe nos moráçlores de Pernambuco: “têm horror aos espíritos malignos (...) prezam os
feiticeiros. Gostam da poligamia e do divórcio. Não tratam mal as esposas, antes as
cortejarrí, menos quando embriagados, o que também é freqüente com os holandeses”
(1974:23).

14. Segundo Mario Guimarães Ferri, o nome Gaspar Barléu é o nome aportuguesado do historiador holandês
Caspar van Baerle. O texto foi .publicado em latim na cidade de Amsterdã, em 1647, onde assinava Caspar
Barlaeus. Barléu era amigo de Nassau, e o propósito de sua obra é louvar as ações de governo e de Estado
empreendidas pelos batavos no Nordeste do Brasil. Cf. FERRI, Mario G “Prefácio”, in BARLÉU, Gaspar.
História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,
1974.

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Barléu relata que a “tomada de S. Salvador, metrópole da capitania, (...) custou pouco
trabalho, e bem assim a dos fortes circunjacentes, fadaram a empresa com felizes auspícios,
divulgando entre os bárbaros a fama do povo ultramarino, já tão firme com os primeiros
sucessos” (1974: 16). Este feito, ocorrido em 1623, teve duração curta, pois a cidade foi
retomada logo em seguida. Barléu, como Moreau, atribuiu a derrota à lascívia batava:
“enquanto se cuidava mais das delícias do que da utilidade, quebrantados na ociosidade e na
intemperança, os ânimos dos chefes e dos soldados, o espanhol recuperou a cidade com um
rápido cerco” (1974:16).
É possível que as Coroas católicas não destinassem tanta preocupação à defesa de sua
colônia, conforme acreditou Barléu. Também para o cronista francês, a ocupação de
Pernambuco foi efetiva e sem muita resistência. O espírito bajulador de Barléu destacou os
bons tratos que os holandeses, após a vitória, dedicaram aos “brasilianos” - os tapuias - que
eram escravizados pelos portugueses. O Conselho de Estado, após a ocupação, decretou a
proibição de capturar, reter e tomar cativo, sob pena de morte, os índios tapuias. No que
concerne aos negros e mestiços, as determinações foram diferenciadas: os negros africanos,
mulatos e mamelucos tomaram-se encarregados do trabalho escravo. Segundo Moreau, a
origem mestiça dos mulatos (português e negra) e dos mamelucos (português e brasiliana),
os faz ingratos e pouco confiáveis “em face deste rico presente de sua liberdade restituída”
(Moreau & Baro, 1979:15).
Ao assumir que foram os holandeses os responsáveis pela libertação dos índios que
viviam em Pernambuco, Moreau mitifica a contradição das premissas calvinistas contrárias à
escravidão, que, no Novo Mundo, não se sustentaram diante dos empreendimentos coloniais
dos batavos. Para Stols, a hipocrisia holandesa sobre

o tema da escravidão desaparece ou inexiste entre os dois


extremos de uma moral calvinista, que não admitia a
escravidão, e do horror total do escravo empalado, tal como foi
estigmatizado no livro de John Stedman, em 1796 (...).
Escravismo é coisa exclusiva de português, de brasileiro, ou
quando muito dessa gente marginal e depravada do Ultramar
holandês.15

Segundo Stols,16 os holandeses foram os responsáveis pelo incentivo e aumento do


comércio de homens, chegando mesmo a facilitar a compra de escravos a crédito,

15. STOLS, Eddy. “Flamengos, holandeses e a sua aprendizagem na escravidão (sécs. XVI e XVII)”, in Paiva &
Anastasia (2002: 42-3).
16. STOLS, Eddy. “‘Não há fronteiras ao sul do Equador’ ou ‘os pecados do Brasil’ holandês”, in Loureiro
& Gruzinski (1999: 383).

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T

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contribuindo, de outro modo, para a exploração dura e cruel dos escravos pelos devedores
portugueses. As terras brasileiras não eram totalmente desconhecidas dos holandeses. Os
contatos comerciais datam dos primeiros anos do século XVI: “Foi, porém durante a trégua
de 1609-1621 que o seu tráfico com o Brasil tomara grande impulso, isso a despeito das
explícitas e reiteradas proibições baixadas pela Coroa espanhola no tocante ao comércio dos
estrangeiros com a Colônia”.17
A habilidade da Companhia das índias Ocidentais, no que se refere ao tráfico de
escravos, não se compara aos poucos cuidados destinados à composição dos generais
dirigentes do empreendimento. Os alemães Sigismundt Schkoppe e Arciszewskes,
acompanhados pelo Conde João Maurício de Nassau (Johan Maurits van Nassau-Siegen),
foram os primeiros comandantes encarregados de defender a Holanda do rei da Espanha.
Para Stols (1999:381), a necessidade batava de contratar mercenários estrangeiros,
especialmente alemães, escoceses e franceses protestantes, misturando luteranos, anglicanos
e calvinistas, fomentou discriminações e discórdias constantes.
Neste episódio, Moreau optou por registrar apenas as conquistas que a Holanda
obteve auxiliada por esses homens ricos, abastados e aventureiros: “Conquistaram cerca de
trezentas léguas do país em comprimento, contíguas umas às outras, e todos os fortes e
praças que os tinham em sujeição, para tomá-los além da capitania do Ceará, próximo da
Linha, até a Baía de todos os Santos” (Moreau & Baro, 1979: 26). A posse de riquezas
parece ter sido um dos critérios utilizados para selecionar comandantes para a Companhia
das índias Ocidentais, e também o foi para o recebimento de judeus em Pernambuco. A
elevada arrecadação tributária, obtida com a presença judaica, foi brindada com a construção
de uma sinagoga em Recife e outra na Cidade Maurícia.
Os altos impostos cobrados aos judeus pelas autoridades da Companhia foram
também estendidos aos moradores de Pernambuco e constituíram-se alvo de reclamações
constantes dos portugueses. Cobrava-se dos residentes, após avaliação, a vigésima parte do
valor de stíaspropriedades, e, por diversas vezes, a décima dos aluguéis das casas, além do
pedágio fe^n pontes de madeira que ligavam as principais localidades da capitania. O ilustre
crcfnista não consegue disfarçar sua perplexidade diante dos abusos tributários pratietdos:

(...) exigindo impostos tão excessivos pelo direito de passagem


da ponte para os homens, cavalos, carros e mercadoria, que um
homem a cavalo e o seu escravo chegavam a pagar trinta e

17. BOXER, Charles R. Os holandeses no Brasil (1624-1654). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961, p.
27.

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dois soidos (...) não era permitido trafegar por aí e embarcar


qualquer coisa a não ser nos navios da companhia (Moreau &
Baro, 1979:27).

Este aspecto, por si só, não explica as dificuldades administrativas da interiorizaçâo


holandesa, uma vez que os lusitanos também exerciam práticas abusivas no que se refere ao
fisco. Mas tais excessos podem nos ajudar a compreender como os portugueses e os nativos
foram sobrecarregados dos custos da ocupação batava.
O excludente monopólio comercial exercido pela Companhia abarcava desde a
exportação da cana-de-açúcar e do pau-brasil até o comércio a varejo de bens de primeira
necessidade. A apropriação, via saque, dos bens de portugueses ricos e a total exclusão dos
residentes da vida administrativa e política durante os anos de ocupação são alguns dos
elementos de um conjunto de fatores que permite entender as dificuldades da mediação
holandesa.
A estrutura administrativa das Câmaras portuguesas, espalhadas por diversas partes
do globo durante os séculos XVI e XVII, possuía vários pontos de confluência com suas
congêneres metropolitanas. Seja em Macau, Goa, Luanda, Salvador, Rio de Janeiro ou
mesmo Pernambuco, a pluralidade sociocultural lusitana forjou matizes e adaptações
institucionais que permitiram aos colonos das diversas partes do Império colorir os órgãos
político-administrativos do Reino e adaptá-los às suas realidades locais. Até meados do
século XVIII, segundo Hespanha, pode-se caracterizar a monarquia portuguesa como de
caráter corporativo por abarcar os seguintes pressupostos:

O poder real compartilhava o espaço político com poderes de


maior ou menor hierarquia; o direito legislativo da Coroa era
limitado e enquadrado pela doutrina jurídica (ius communè) e
pelos usos e práticas jurídicos locais; os deveres políticos cediam
perante os deveres morais (graça, piedade, misericórdia,
gratidão) ou afetivos, decorrentes de laços de amizade,
institucionalizados em redes de amigos e de clientes; os oficiais
régios gozavam de uma proteção muito alargada dos seus
direitos e atribuições, podendo fazê-los valer mesmo em
confronto com o rei e tendendo, por isso, a minar e expropriar o
poder real.18

18. HESPANHA, Antônio Manuel. “A constituição do império português. Revisão de alguns de enviesamentos
correntes”, in Fragoso, Bicalho, & Gouvêa (2001: 166).

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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Os mecanismos frágeis e excludentes do modo de governar batavo impediram- lhes


de construir órgãos sólidos de administração que pudessem mediar as demandas locais com
os objetivos dos novos donos do lugar. As medidas militares excessivas acabaram por
disseminar o medo e a desordem, implantando descontentamento, não só entre os moradores,
mas entre os próprios soldados holandeses, sobrecarregados pelas atividades da conquista:

As autoridades holandesas falharam na instalação de um


poderio forte com referências claras e unívocas. Sem instituições
judiciárias repressivas adequadas como os tribunais da
Inquisição ou os “rasphuizen” não conseguiram garantir a
ordem pública nem instalar um controle social.
Predominava o elemento militar e reinava a violência a partir
das suas fortalezas (Stols, 1999: 385).

As imprevisibilidades vigentes na vida social de Pernambuco são vistas por Moreau


como resultantes da avareza dos holandeses e judeus, e da irreligião de todos que ali viviam.
Apesar da liberdade religiosa existente, a realização de missas e a freqüência aos respectivos
templos eram raras: “Todos, indiferentemente, levavam vida lasciva e escandalosa (...)
coabitavam promiscuamente, sem falar dos incestos e pecados contra a natureza” (Moreau &
Baro, 1979:30). Situação que, segundo Moreau, não impediu que diversos avanços
territoriais fossem alcançados frente ao poderio do rei da Espanha. As ocupações de praças
do Ceará, Rio Grande, Paraíba e outras localidades próximas seriam festejadas pela desejada
reconquista da Bahia de Todos os Santos, locus e símbolo do coroamento da ocupação
holandesa nos trópicos. Para Mello, “parece duvidoso que, sem a restauração portuguesa de
1640, não teria havido a restauração pernambucana em 1654; que a Espanha teria cedido de
fato o Nordeste aos Países Baixos, como, aliás, o fez no papel no tratado de Munster de
1648”.19
Menos cético que Moréáu^porém mais bajulador, Barléu não se esquivou de
relacionar as medidas de controle socf^l e de administração empreendidas por Nassau
durante o seu governo nos trópicos (Bartéu, 1974:317-27). Decretos e atos objetivando o
esquadrinhamento da população-são destacados pelo cronista batavo como viáveis e
eficazes: cuidados com a prática dos preceitos religiosos, conservação das fortificações e das
trincheiras, combate aos abusos dos administradores, controle sobre a freqüência às tavemas
e proibição dos jogos de azar, principalmente pelos membros das milícias, entre outras
iniciativas que visavam ao bem-estar dos colonos.

19. MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (1641- 1669). Rio de
Janeiro: Topbooks, 1998, p. 15.

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A visão pessimista de Moreau sobre as causas da derrota holandesa não escamoteia o


que considera de pior na empreitada batava nos trópicos: a avareza dos seus comandantes e
daqueles que foram enviados para contribuir financeiramente com a Companhia. Judeus e
anglicanos engrossaram as fileiras da irreligião e dos variados abusos cometidos pelo corpo
político e administrativo. Moreau é categórico ao afirmar que a mesquinhez dos dirigentes
em não conceder armas aos portugueses para sua defesa cotidiana foi a causa final da
perdição. Segundo ele, os holandeses falharam ainda em não ter enviado para o Brasil a
“escória” de sua população para misturar-se entre os “brasilianos” e portugueses que aqui
viviam.
Gaspar Barléu preocupou-se mais em relatar as iniciativas positivas dos seus
compatriotas a destacar as dificuldades: “Ocupando o Conde com a guerra, tomou o
Conselho várias e acertadas providências de ordem interna para utilidade do povo, as quais,
comunicadas àquele nos acampamentos, foram por ele ratificadas” (1974:47). No seu escrito,
engrandeceu as ações e a sabedoria do Conde em lidar com os problemas internos da nova
terra, louvando a capacidade de fazer aliados, antigos inimigos; e registrou as medidas de
combate à desordem e à lascívia ao determinar para Pernambuco as mesmas leis
matrimoniais vigentes na Holanda. O respeito do Conde à pluralidade cultural é louvado por
Barléu quando este escreve acerca das medidas educacionais adotadas e das garantias aos
judeus de preservarem o período sabático.
De outro modo, as conclusões sobre a derrota, aos olhos do cronista francês, revelam
que as questões que envolvem o malogro da interiorização holandesa não abarcam apenas
elementos de cunho político e administrativo, mas abrangem outros de natureza distinta. A
resistência mental, expressa na narrativa do cronista diante dos “brasilianos”, considerados
portadores de demônios e ações encantadas, dificulta a mediação, impedindo-os de se
imiscuírem no universo indistinto daqueles que poderiam tomar-se seus aliados frente às
tropas lusas.
As dificuldades de se misturarem com a vida cotidiana, de mesclar seus costumes, os
impediram de permeabilizar fronteiras que poderiam ter sido transpostas em seu
empreendimento de ocupação e posse. Do ponto de vista da ação militar, a violência, o
terror, a disciplina excessiva, e também a avareza, foram os aliados responsáveis pela sua
derrota. Moreau registra que as deserções dos soldados sobrecarregados pelo terror e pela
disciplina de seus comandantes enfraqueceram o contra-ataque holandês: “Embora todos
estes tremendos castigos devessem inspirar ainda aos mais mal intencionados, no entanto não
retinham nem impediam os soldados do Recife de evadir-se freqüentemente” (Moreau &
Baro, 1979: 70). O francês prossegue, estupefato, registrando o terror das ações dos
comandantes da Companhia:

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A severidade da disciplina militar era tão extraordinária que,


em lugar de castigar os que mereciam punição, davam exemplos
de horror. Se um soldado saía sem licença do cabo, ou demorava
mais tempo que o determinado, se esquecia de empunhar as
armas em posição de sentido quando passava qualquer oficial,
era mantido dias inteiros exposto ao sol sobre um cavalete, com
balas atadas aos pés e cinco ou seis mosquetes20 nas costas, ou
então eram obrigados a caminhar incessantemente em fila,
diante de um corpo de guarda, durante sete ou oito horas em
seguida, sem repousar, com oito ou dez mosquetes sobre o corpo
(Moreau & Baro, 1979:71).

A observação de Southey talvez não esteja tão provida de veneno, como afirma
Boxer ao transcrever a assertiva do inglês sobre a desumanidade da disciplina da Companhia
das índias Ocidentais: “Os holandeses foram sempre um povo cruel (...) não havendo
nenhuma outra nação cuja história colonial tenha sido tão indesculpável e imperdoavelmente
fatal à natureza humana” (Boxer, 1961: xvii). Além de enfrentar o horror e a disciplina brutal
dos seus superiores, os soldados eram usados para construções das fortalezas, obrigação
respondida com deserção: “Diversos soldados, muito constrangidos pelo trabalho braçal,
desertaram para o lugar onde os portugueses começavam a formar uma tropa” (Moreau &
Baro, 1979:67).
Moreau assinalou que, a cada território conquistado, os fortes portugueses eram
destruídos e substituídos por fortes holandeses. A sobrecarga do trabalho em construções
advinha do levantamento de pontes, castelos e da destruição dos demais monumentos
portugueses. Esforço que, na verdade, não condiz com o urbanismo batavo, considerado por
Stols como bastante tímido no Brasil:

Nas construções e r b a n i s m o , afora uma ponte e as casas


palacianas de Jo laurício, as realizações holandesas
permaneceram bem modestas e não tinham comparação com a
criatividade arquitetônica nas outras capitais ou grandes
cidades da América lustf-espanhola. Pouco ou nenhum espaço
reservou-se para a sociedade civil (1999: 385).

20. O mosquete é uma arma de fogo antiga e muito pesada, precisando ser apoiada em uma forquilha para ser
usada.

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Os frágeis e impróprios mecanismos de controle social desagregaram, inclusive, o


corpo militar da Companhia. Stols classifica os desertores, ou “vira-casacas”, de
“‘boschloopers’, indivíduos ou pequenos grupos que se desligavam das tropas e procuravam
seu sustento no mato, caçando e pescando, da mesma maneira como faziam-no os negros
‘marrons’. Os mercenários franceses também abandonavam facilmente seu campo”
(1999:391).
Os Estados Gerais falharam, segundo Moreau, por não terem se preocupado em
formar um Conselho austero, descente e de valor ético-moral, iniciativa tomada num
momento em que a causa já estava perdida:

Deveriam ter ali mantido um Conselho composto dos homens


mais excelentes de seu país, como aqueles que enviaram depois
da desgraça, os quais teriam sabido manter boa ordem e polícia
perfeita, estando munidos e prevenidos contra as perfídias dos
portugueses, e não admitindo que os negócios importantes
fossem confiados a pessoas de baixa profissão, que preferiam
seu interesse particular ao público, os quais, por fim, pensando
ter tudo ganho, tinham perdido tudo (Moreau & Baro,
1979:88).

Moreau registra um episódio interessante quando ocorre a mudança de posição dos


tapuias e “brasilianos” que apoiavam os holandeses. A morte do alemão Jacó Rabbi, acusado
de ter matado o sogro de um dos generais da milícia, Joris Garstman, acirra os ânimos entre
tapuias e holandeses. Para o cronista francês, a opção de matar o alemão não estava
totalmente desprovida de razão. Abraçando a causa batava, afirma: “Este homem intrépido
de tal forma se adaptara a estes selvagens em seus costumes e modo de viver, que se tomara
como se fosse um deles, e estes de tal modo a ele se afeiçoaram que o fizeram um de seus
principais capitães” (Moreau & Baro, 1979: 63). A conseqüência foi mais uma vitória
portuguesa com o apoio dos tapuias: “Fizeram uma incursão ao Ceará, onde mataram e
massacraram todos os habitantes holandeses do interior” (Moreau & Baro, 1979:66).
Segundo Stols (1999), as imersões holandesas não foram capazes de iniciativas que
pudessem culminar com instituições sólidas, nem mesmo na esfera educacional. Não se criou
nenhum centro universitário ou qualquer incentivo para atividades culturais ou científicas. As
iniciativas de Nassau, nesse sentido, ficaram restritas ao seu seleto grupo de amizades
européias. Resultado que contrasta com a equipe de cartógrafos, pintores, botânicos, médicos
e artistas que vieram na comitiva de Nassau em 1637. Nesse ano vieram para Pernambuco o
cientista Willem Piso, o cartógrafo Zacharias Wageners, o naturalista George Marcgraf e os
pintores Franz Jansz Post e Albert Eckhout.

193
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS T RÂNSITO E XT ERNO O M A LOGRO I NTERI ORIZAÇÃO H OLANDESA NO B RASIL

O Tratado de Piso e Marcgraf- Historiae Naturalis Brasilae - com o patrocínio de para dinamizar ou mesmo reativar os engenhos abandonados com a guerra de ocupação:
Nassau, publicado na Holanda em 1648, representa uma das maiores contribuições
científicas sobre a fauna e a flora do Nordeste do Brasil. Os mapas elaborados por Marcgraf e Os engenhos de açúcar arruinados e desprovidos de
Wageners são tidos como bastante precisos na localização dos pequenos núcleos habitados trabalhadores, nossos por direito do fisco, foram vendidos em
do litoral nordestino. Post registrou em desenhos, gravuras e telas, as imagens da conquista: hasta pública, uns por 20.000 florins, outros por 30.000,60.000,
cidades, fortificações e fatos considerados por ele como relevantes da ocupação batava no 70.000 e alguns por 100.000, rendendo à Companhia 2.000.000
Nordeste brasileiro. A obra de Eckhout é considerada como o primeiro registro etnográfico de florins (Barléu, 1974:50).
europeu sobre os nativos do Novo Mundo.
Situação similar é registrada em carta de Nassau ao Príncipe de Orange nos primeiros
O limite da ciência e da arte desses profissionais, em Pernambuco, pode ser
anos da ocupação do Nordeste do Brasil, quando aquele, às margens do rio São Francisco,
explicado, talvez, pela pluralidade dos idiomas presentes na “Torre de Babel” tropical. Os
encantou-se com a riqueza da fauna e da flora locais:
moradores falavam, além do português, flamengo, francês, alemão, inglês, italiano, espanhol
e línguas indígenas. Nem mesmo Nassau fez opção por aprender o português. Para Stols Sou de opinião que se devastem as lavouras e terras de outra
(1999), além das dificuldades impostas por não dominarem de forma satisfatória o português, margem do rio. Mandou-se aos habitantes que, de vontade ou à
a forte inclinação dos holandeses pela bebida alcoólica os distanciava ainda mais dos força, transportassem para a banda de cá famílias, haveres e
moradores pernambucanos e alimentava resistências para laços matrimoniais com os gados afim de não administrarem bastimentos (sic) ao inimigo
portugueses. (Barléu, 1974:45).
As dificuldades de se misturarem aos moradores do lugar, em diversos aspectos,
impediram os holandeses de mesclar o mundo colonial com os seus valores culturais, A opção de Nassau em “devastar” as lavouras substituiu a iniciativa mais sensata de
costumes, idioma e mesmo no que se refere ao modo de governar. Iniciativas que, também povoar para dinamizar a produção local, apesar de, logo em seguida, registrar ao seu
para Moreau, teriam evitado a desgraça holandesa: soberano sugestão mais plausível diante de tanta riqueza que presenciara:

Deviam ter ali misturado os seus com os portugueses, assim Aqui e ali vagueiam animais, que pastam em manadas de 1.500,
como acertadamente fizeram os reis de Portugal para povoá- lo, 5.000,7.000 cabeças. Pasmei e não acreditaria nestas
de modo que são os netos dos primeiros habitantes que ocupam maravilhas, se não as contemplasse com estes olhos. Só de
o país e estão tão bem naturalizados e acostumados a prover-se habitadores carece a terra, e pede colonos para povoar e
somente com os frutos que a terra lhes dá, o que os holandeses cultivar os seus desertos (Barléu, 1974:45).
não podem fazer, que raramente comem pão da Europa, apesar
dejà^erem deles tanta questão que o cobrem de açúcar quando Nessa correspondência, Nassau informou ao Príncipe de Orange que escreveu ao
o encontram (Moreau & Baro, 1979: 88). Conselho dos Dezenove, solicitando que enviasse para o Brasil os refugiados alemães que se
encontravam desterrados na Holanda, e que, caso isso não fosse possível, se
O malogro da interiorização batava numa das regiões mais ricas da colônia lusitana
expôs a inabilidade e a insensibilidade holandesa em relação à economia local, tão lucrativa abrissem as prisões de Amsterdam e se mandassem para cá os
para os cofres lusos. Este aspecto, completamente ausente no relato de Moreau, ilustra, galés, para que, revolvendo a terra com a enxada, corrijam as
talvez, o mesmo descaso batavo para com este importante elemento de conquista e posse. suas improbidades, lavem com o suor honesto a anterior
Para Stols (1999: 375), houve incapacidade de reativar a economia açucareira e também infâmia e não se tomem molestos à República, mas úteis
indiferença diante das outras riquezas brasileiras, como o algodão e o fumo. (Barléu, 1974:
Barléu, mais preocupado com as questões econômicas que Moreau, relatou um 45-6).
episódio bastante curioso e que, de fato, demonstra a pouca astúcia holandesa

195
194
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Maurício de Nassau ponderou acerca de sua sugestão, ratificando a necessidade de


manter o status de Colônia, apesar de acreditar que “não se podem, sem colonos, cultivar os
desertos e as terras incultas do Brasil. Não é, entretanto, possível convidá- los a virem para o
Brasil sem lhes conceder licença para negociar” (Barléu, 1974:92). Constantemente,
registrou o Conde o recebimento de reclamações dos naturais para que se retomasse à forma
como negociavam sua produção, ou seja, ao seu próprio arbítrio. O monopólio do comércio
pela Companhia acabou por tomar os colonos locais servos dos novos donos da terra. O
cronista batavo acreditou ser possível estudar quais medidas poderiam atrair novos
moradores para o Brasil, não descartando a possibilidade de “fomentar, com privilégios e
concessões, a cobiça dos holandeses, sobretudo daqueles que se animarem a construir novos
engenhos e encetar plantação decana” (Barléu, 1974:130).
Preocupado mais em engrandecer os feitos de Nassau, Gaspar Barléu esquivou- se de
ser veemente ao destacar os erros políticos e as dificuldades administrativas do modo de
governar holandês. O ceticismo do francês Pierre Moreau desnudou, de forma cáustica, o
malogro batavo nos trópicos, denunciando os abusos disciplinares contra os soldados e os
moradores locais, o caráter mercenário do exército, a rigidez e a falta de plasticidade dos
órgãos políticos e administrativos, totalmente comprometidos pela mesquinhez e pela
imoralidade de seus membros.
De qualquer modo, as dificuldades e o insucesso batavos nos trópicos não podem
impedir de se considerar, como lembra Boxer (1961), que foi a Holanda, e não a Inglaterra,
com os feitos memoráveis da época de Elizabeth, que, no curso da primeira metade do século
XVII, fez dobrar a espinha do poder marítimo das nações ibéricas.

196
Matas Plurais, Imoralidades Matrimoniais: O Despique
entre Negros e Índios Cabanos de Jacuípe (AL-PE,
1835-1850)

Janaína Cardoso de Mello1

Desde a década de 1980, a produção historiográfica brasileira tem se dedicado à


renovação dos modelos interpretativos a respeito da questão social, alterando
significativamente as reflexões sobre as relações de dominação na sociedade brasileira de
forma a compreender o processo dinâmico de negociação e interação que perpassa
o comportamento dos indivíduos.
Dessa forma houve uma ampliação da idéia de “ação política” inserindo nesta
concepção personagens até então excluídos das visões positivistas, ao se levar em conta a
constituição de uma complexa rede de poder com forças extremamente desiguais, porém
permeáveis e não sujeitas à imposições sistemáticas de cima para baixo durante todo o
tempo.
Nesse sentido, o conceito de “cultura política” torna-se fundamental no panorama da
ressignifícação historiográfica do final do século XX, uma vez que permite

explicações/interpretações sobre o comportamento político de atores individuais e coletivos,


privilegiando suas percepções, suas lógicas cognitivas, suas vivências, suas sensibilidades.
Ou seja, realizando o exercício historiográfico que implica se

1. Doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora assistente de História
do Brasil na Universidade Estadual de Alagoas e coordenadora do Núcleo de Estudos Argonautas - Pesquisa
em História de Alagoas.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

deslocar no tempo e no espaço, compreendendo as orientações


dos atores, segundo seus próprios códigos culturais.2

Esse trabalho pretende refletir sobre as complexas relações de elaborações culturais


entre negros e índios, oriundos da guerra cabana, de Pernambuco e Alagoas, no Oitocentos.
Finalizado o conflito entre cabanos e as forças legalistas, remanescentes do contingente
aguerrido se estabeleceram no arraial do Riacho do Mato Frio sob a liderança do mulato
Vicente Ferreira de Paula.
Nas matas plurais operou-se um sistema de trocas matrimoniais com a finalidade de
criar uma “comunidade de filhos” que mantivesse a continuidade do grupo. Os relatos do frei
franciscano José Plácido de Messina descreveram o “despique” como um abuso de natureza
anticristã e repugnante à moralidade católica. Prática recorrente entre negros papa-méis
(escravos fugidos) e índios tapuais-kariri, estendeu-se no pós-guerra com regras de interação
e reciprocidade na troca de mulheres em meios rurais excluídos do sistema de ordenamento
vigente.
Busca-se compreender os costumes tradicionais de negros escravos, índios e caboclos
como forma de resistência cultural às imposições do mundo branco. Para isso, este trabalho
fundamenta-se em leituras de Dirceu Lindoso, Manuel Correia de Andrade, Eduardo França
Paiva, E. P. Thompson, João José dos Reis e Eduardo Silva.

O DESPIQUE MATRIMONIAL NA “REBELDIA” DOS COSTUMES

Em 1832 eclodiu nas matas do sul de Pernambuco e norte de Alagoas uma rebelião
rural intitulada Cabanada devido a participação de segmentos populares que residiam de
forma precária em palhoças de terra batida. A documentação oficial do governo provincial
pemambucanorelatava às autoridades centrais:

Panelas por cujo interior^e derramavão os desgraçados


rebeldes, he hum território de inacessíveis montanhas, e coberto
de gigante arVõredo; poucos homens práticos d’aquelles
lugares, grimpando pelos outeiros, fazem

3. GOMES, Ângela de Castro. “História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões”, in
SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs.). Culturas
políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 30.

198
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS

repentinamente fogo estragador sobre os nossos caçadores e


fogem por pequenos e quaze intranzitaveis trilhos.3

Esse movimento social provinha das tensões entre os grupos políticos regionais
compostos por liberais (exaltados e moderados) e restauradores. Com a elevação do governo
moderado à Regência, muitos senhores locais haviam perdido posições importantes que
ocuparam até a abdicação de D. Pedro I, a exemplo de Torres Galindo,
0 ex- capitão mor da vila de Santo Antão e responsável pela condução dos primeiros
conflitos que desencadearam a guerra no interior das duas províncias do norte do país. 4
Outros chefes locais restauracionaistas, como João Batista de Araújo, proprietário de
terras em Barra Grande (Alagoas), empenharam-se na sublevação da população rural, que
contava com a participação de pequenos proprietários, posseiros, libertos e escravos
acompanhados por seus senhores.
Após um incidente relacionado ao recrutamento forçado e apropriação de terras
indígenas, durante o qual o cacique Hipólito Nunes Bacelar foi assassinado quando de sua
prisão por tropas do governo, os índios do aldeamento localizado às margens do rio Jacuípe
aderiram ao movimento cabano.
A participação de pobres no movimento cabano defendendo o retomo de Pedro
1 ao trono brasileiro contrastava-se com outros movimentos sociais do período, como a
Cabanagem (PA) ou a Balaida (MA), nos quais os segmentos populares engajavam- se em
torno de grupos liberais exaltados que defendiam propostas republicanas. Por isso a
cabanada permaneceu durante muito tempo obscura na historiografia brasileira, que apenas
ressaltava seu caráter reacionário sem perceber as complexidades em jogo.
A guerra cabana eclodiu num momento em que as tendências liberais em divergência
não trouxeram melhorias significativas à vida dos homens e mulheres simples do campo.
Logo, suas idéias eram vistas com desconfiança, enquanto a imagem do príncipe, “deposto
arbitrariamente” em sua concepção, se fortalecia na tradição do “pai protetor”. Concepção
percebida nas palavras do líder cabano Vicente Ferreira de Paula:

3. Ofício do govemo de Pernambuco ao ministro do Império Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, lo nov 1832.
A citação faz parte das transcrições que compõem o acervo documental do pesquisador Manuel Correia de
Andrade, compreendendo sua pesquisa na seção de manuscritos do Arquivo Público Jordão Emerenciano
(PE). O referido material gentilmente cedido pelo autor encontra-se sob minha guarda pessoal. Optou-se pela
manutenção do linguajar original em todas as transcrições.
4. ANDRADE, Manuel Correia de. A guerra dos cabanos. Recife: UFPE, 2005, pp. 49-51.

199
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Adoramos o nosso Imperador o Senhor D. Pedro Primeiro,


respeitamos o seo Augusto Filho, porém odiamolo no caráter de
Imperador, porque seo Pai não abdicou à Coroa Brasileira por
sua espontânea liberdade, mas sim foi um roubo feito que todo o
Brasil conhece!5

Dessa forma as lideranças caramurus aliavam tradição às brechas possíveis para


conquistas sociais mais amplas. Sobre esse aspecto, afirma Edward P. Thompson que
“quando procura legitimar seus protestos, o povo retoma freqüentemente às regras
paternalistas de uma sociedade mais autoritária, selecionando as que melhor defendam seus
interesses atuais”.6
A diversidade étnica e de classes sociais que caracterizou esse movimento aponta para
a defesa de tradições que eram apropriadas diferentemente por seus partícipes. De um lado,
os proprietários rurais desejavam manter seus privilégios e comando político, revertendo a
situação de alijamento de funções politicamente valorizadas na província. De outro, as
camadas pobres desejavam assegurar seu acesso às terras de florestas (que em momentos de
extrema escassez de víveres lhes garantia frutos, peixes e mel consumidos como única fonte
de sobrevivência alimentar), uma vez que se intensificava o processo de avanço da economia
açucareira sobre as matas incultas.
Ao trabalhar a reivindicação dos costumes nas sociedades rurais inglesas do século
XVIII, Thompson ressalta a ambivalência deste, e sua melhor compreensão a partir do
conceito de habitus de Bourdieu, enquanto um ambiente que incluía práticas, expectativas
transmitidas, regras que impunham limites, mas também possibilidades:

No contexto desse habitus, todos os grupos procuravam


maximizar suas vantagens. Cada um se aproveita dos costumes
do outro. Os ricos empregavam os seus bens, todas as
instituições e o da autoridade local. Os
fazendeiros medianos, dó^tipo pequeno proprietário rural,
influenciavam os tribunais locais e procuravam redigir
regulamentos mais rigordsos que servissem de barreiras contra
grandes e pequenos abusos; podiam também empregar a

5. Carta, 20 dez 1834, publicada pelo Diário da Administração Pública, 5 jan 1835, alocado no setor de
documentação microfilmada da Fundação Joaquim Nabuco.
6. THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia
das Letras, 2005, p. 19.

200
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS

disciplina das leis de assistência aos pobres contra os que


estavam abaixo deles na escala social, e de vez em quando
defendiam os seus direitos contra os ricos e poderosos na justiça.
Os camponeses e os pobres empregavam atos furtivos, o
conhecimento de cada arbusto e atalho, e a força de seu número
(Thompson, 2005: 90; grifo do autor).

Assim, para além do marxismo clássico que incide na definição de classes ajustadas a
sua localização na estrutura econômica em relação aos meios de produção, os estudos de
Thompson abriram um novo espaço para uma concepção mais plural que percebe as relações
inter e intragrupais.
Alicerçado por esse viés interpretativo, o estudo da Cabanada opera uma nova
dimensão, que implica na observância de valores cotidianos, usos e negociações possíveis.
A documentação relativa às Diretorias dos índios, localizadas no Arquivo Público de
Alagoas (Sessão de Manuscritos), refere-se à organização de aldeamentos mistos por ordens
religiosas no sertão. Além de abrigar comunidades indígenas de origens diferenciadas e
muitas vezes hostis entre si, como os tapuia-tupi, também cediam espaço para negros,
conformando assim uma miscigenação que resultava em “índios escuros”, como eram
descritos pela população de Camaragibe (AL).
Contudo, os relatos sobre a prática conhecida como “despique” foram elaborados
pelo frei José Plácido de Messina em 1841. Tratava-se do exercício da troca provisória de
mulheres em ambientes rurais. De acordo com Dirceu Lindoso:

O modelo de “despique” cabano-jacuipense se caracteriza como troca de mulher


casada dentro de uma ordem de sucessividade poligínica, e que cabe aos homens operar a
troca de mulher. O poligino é pois o trocador, o agente da troca.7

Ou seja, mesmo durante o conflito cabano essa prática, que não possuía uma
estabilidade de cônjuges, já era usual nos arraiais cabanos nos confins das matas. Entre um
ataque e outro às forças legalistas, era necessário cuidar da reprodução cabana, isolada nas
matas por conta da situação aguerrida.
No período pós-guerra, o despique adquiriu um formato diferenciado, pois se
dedicava à troca das viúvas dos combatentes cabanos, criando uma rede de integração e de
laços de solidariedade que se apoiava no uso sexual e no auxílio entre terceiros.

7. LINDOSO, Dirceu. Formação de Alagoas boreal. Maceió/São Paulo: Catavento, 2000, p. 159.

201
i
r

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

No modelo cabano-jacuipense, a troca de uma mulher casada era feita por outra nas
mesmas condições. Seguia, portanto, uma sucessão dual. Dessa forma, essa reciprocidade
anulava ressentimentos relacionados à idéia de traição, pois, se ela ocorria, era mútua e com
anuência dos dois casais envolvidos nesse sistema, diferentemente do modelo do pós-guerra,
no qual se estabeleceu uma rotatividade plural na oferta de mulheres viúvas.
Contudo, não se pode entender esse sistema como uma abertura à promiscuidade, uma
vez que o mesmo servia para controlar a liberdade sexual ao fazer com que cada poligino
cuidasse de uma mulher por vez. Esta, além do serviço sexual, lhe oferecia também o
trabalho doméstico. A legitimação desse matrimônio poligâmico consensual estabelecia-se
sob regras de conduta evitando o incesto e demarcando os espaços na divisão de bens
agrícolas.
É possível ter uma visualização mais clara desse sistema a partir da compreensão do
organograma abaixo.

COMUNIDADE DE FILHOS

Modelo A: Parentesco porcoagnação. Consagüinidade pela linha feminina

Modelo B: Parentesco por agnação. Consangüinidade pela linha masculina

Modelo C: Parentesco classifipatório. Comunidade de filhos por agregação

Mulher com seus filhos O poligino e os filhos

com outro homem com outra mulher

202
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS

Modelo de heranças resultantes do parentesco

Modelo A => herança singular pelo filho do poligino e outra mulher


Modelo B => herança dual filho do poligino + outra mulher
Modelo C => herança substituída pelas formas de auxílio mútuas, por decisão arbitrai
do poligino
Fonte: Lindoso (2000: 165).

Para além de simples arranjos biológicos, o que se deve depreender desse sistema
eram os significados culturais das associações familiares. Na relação entre desiguais (índios e
negros) socializavam-se modos de convivência. O costume do despique potencializava a
sobrevivência econômica comunitária, provendo ainda recursos (sociais e culturais) em meio
a um ambiente de indigência e desigualdade frente aos núcleos familiares dos grandes
latifúndios.
Esse modelo de enlaces reprodutivos possui uma vivência anterior à época dos Terços
Paulistas no período colonial (1674), formado por índios aldeados comandados por militares
com o objetivo de destruir os mocambos de negros fugidos situados entre o vale do rio
Mundaú e os campos dos palmares de Quipapá.
O uso do despique era parte importante para a manutenção das comunidades
indígenas que lutavam contra as doenças e violência ocasionadas pelos brancos. Isolados em
locais do sertão, usavam a rotatividade de relacionamentos como forma de garantir a prole
que daria continuidade a suas tradições. Em muitas regiões, povos hostis encontravam nesse
sistema uma forma de contornar as rivalidades e constituírem a pacificação, além de
solucionarem problemas relativos a escassez de parceiros(as) no mesmo grupo.
Os Terços, ao recrutarem índios soldados, não conseguiram desarticular de todo essa
prática, que na maioria dos casos é aceita por seus comandantes com a finalidade de se
manter a reprodução nas aldeias e assim garantir a continuidade do contingente necessário
aos serviços de exploração das matas.
A experiência coletiva dos indígenas como circunscritos nesses Terços criou um
modelo de religiosidade sincrética, que aliava elementos do catolicismo a crenças tapuia-
kariri (danças ritualísticas, ervas curativas, etc.). Não havia de fato uma preocupação dos
capitães desse agrupamento na conversão total dos índios sob a sua guarda. Esse papel era
destinado aos párocos que, em razão da mobilidade dos Terços, perdiam o contato regular
com seus fiéis, abrindo brechas para a reelaboração dos ensinamentos religiosos oficiais.
Além das hostilidades entre etnias indígenas diferenciadas, a desarticulação desses Terços
promoveu sua sedentarização em terras concedidas como sesmarias a

203
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

capitães que haviam comandado os ataques aos mocambos. Dessa forma, tanto o lugar-
tenente Cristóvão de Mendonça Arrais, como seus sucessores, mantiveram a posse dos
grupos indígenas com a criação das Companhias de índios chefiadas por grandes
proprietários da região. Segundo DirceuLindoso:

No decorrer de um século o aldeamento dos índios Kariri foi


transferido para a outra margem do rio Jacuípe, e no sítio
antigo construiu-se um arraial de brancos e mestiços, que virou
povoado e vila. Em 1832 esse aldeamento de índios é um dos
pontos de eclosão da Guerra dos Cabanos (Lindoso, 2000:
153).

A convivência mista entre índios e negros também é observada nos mocambos e


quilombos desde o período colonial. Desse contato, na troca de experiências e costumes
foram assimilados e ressignifícados valores sociais. Os mesmos indígenas que eram usados
como forças repressivas aos escravos fugidos tomaram-se também parceiros sexuais e
constituíram relações familiares mestiças.
Logo, o uso do despique como prática de ampliação demográfica era recorrente no
cotidiano indígena e mocambeiro de territórios do Nordeste, mantendo uma continuidade
necessária durante o conflito cabano, e após o término desse, em função do grande
contingente de homens mortos no embate.
O sistema gerador da comunidade de filhos permitia, através dos laços de
solidariedade concebidos, a garantia da sobrevivência possível do gmpo em questão, bem
como seu funcionamento, pois as tarefas individuais eram divididas em decisões coletivas.
As matas tomavam-se, assim, refúgios para a convivência de uma pluralidade étnica
que além de compartilhar seus produtos in natura estimulava o empenho ao desenvolvimento
de roçados de mandioca, milharais e arrozais que sustentavam os pobres rurais.

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204
Matas Plurais, Imoralidade Matrimoniais Figura 1.

Mapa do polígono da Guerra Cabana

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POLlGONO DE REPRESSÃO MlUTAR ANTiCABANO

redutos cabanos vilas, povoados


e engenhos área poligonal do
1
espaço de aV militar
Fronteira principal.

Fonte: LINDOSO, Dirceu. A utopia armada: rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real (1832-1850). Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983, pp. 436-7.

205
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

A PLURALIDADE ÉTNICA E A VIDA “SEM LEI” NAS MATAS

No início da Cabanada encontravam-se na base popular do movimento cabano


trabalhadores livres, chamados localmente de “moradores”, que viviam em terras arrendadas
produzindo precariamente uma condição de subsistência familiar em pequenas lavouras. De
acordo com os estudos de Hebe Mattos no Sudeste escravista:

Ser “lavrador” significava pelo menos ter uma casa, um cercado


e uma roça, ou seja, uma “situação” consensualmente sua, que
pelo costume podia alienar e deixar em herança. Isto os
diferenciava não só dos escravos, mas também do homem móvel
e desenraizado.8

O trabalho como lavrador permitia ao pobre livre um mínimo acesso a terra, e para
isso a estabilidade da constituição de uma família e os laços de socialização na região eram
fundamentais. Assim, mesmo sendo negro ou mestiço, seu tratamento seria sempre
diferenciado do escravo, pois possuía a capacidade de, na medida do consentido, “viver para
si” e não a de obrigatoriamente “viver para outrem”.
Essa situação de distinção normalmente acompanhava a proteção de um “padrinho”,
ocasionando laços de fidelidade, por isso a mobilização desses pobres livres pelos senhores
de engenho no momento de combate com as forças do governo.
Antonio Timóteo de Andrade liderou o ataque a Panelas do Miranda, localidade
fronteiriça do agreste na qual se intensificara o avanço territorial dos grandes proprietários
sobre as terras “sem dono”, cercando-as e expulsando os pequenos posseiros dessa região. O
próprio líder dessa fase popular do movimento cabano havia sido expulso das terras há muito
ocupadas por sua família.
A economia exportadora dos grandes engenhos canavieiros, baseada na exploração da
mão-de-obra de négròs, lavradores e índios, implicava na caracterização dos fazendeiros
como “senhores possuidores de terras”, expressão utilizada por Márcia Motta ao
compreender que:
>
Para os fazendeiros, a questão não se colocava em termos do
acesso à terra, mas sim na dimensão do poder que eles viriam a
exercer sobre quem não a detinha. A existência de matas

8. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil,
século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 50.

206
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS

virgens significava a possibilidade de extensão deste poder: o


fazendeiro ou a ampla camada de lavradores poderiam vir a
ocupá-las, permitindo a consolidação de pequenos posseiros
também ansiosos por assegurar e legitimar de algum modo a
posse de suas terras. Para o fazendeiro, portanto, disputar uma
nesga, uma desprezível fatia de terra significava resguardar seu
poder, impedir que terceiros viessem a reivindicar direitos sobre
coisas e pessoas que deviam permanecer, de fato ou
potencialmente, sob seu domínio.9

Entre 1834 e 1835, os negros papa-méis (termo regional que definia os escravos
fugitivos que se alimentavam de mel silvestre nas matas) tomam-se a quase totalidade da
revolta cabana sob a liderança do mulato Vicente Ferreira de Paula. A rígida disciplina
militar com a qual conduzia as forças cabanas e o aldeamento do Riacho do Mato Frio era
proveniente do período em que fora soldado. Procurava ser reconhecido como Comandante-
Geral da Força Restauradora, General das Forças Realistas, ou Capitão de Todas as Matas. 10
Dessa forma, a representação que ele criava de si mesmo era alicerçada pela defesa
dos postulados absolutistas, pregando fidelidade ao ex-imperador do Brasil e professando a fé
católica. Era ele aquele que à frente dos cabanos restauraria o trono ao seu “legítimo” dono:
Pedro I. Seus pontos de vista foram colocados em uma carta de 1834, na qual afirmava: “Eu
trabalho na riligião sancta edefendo ao sr. Dom Pedro primeiro ou quem suas vezes fizer
vindo assignado pelo mesmo Sr. Que Deos o Guarde”.11
Sua ligação com a religiosidade oficial nas matas era transformada e ressignificada
com a partilha de experiências negras, indígenas e mestiças. Dessa forma, embora os cabanos
mantenham práticas como a reza regular do terço nos acampamentos e o silêncio respeitoso
após a mesma, frei Messina, assim como outros sacerdotes locais, reclamava de uma “vida
desregrada” sem batismos, casamentos ou missas que difundia uma “imoralidade
degenerativa” da alma. Essa vida “sem lei” aliada à sua atitude, derramando o sangue das
forças do governo, conduziria os cabanos à perda da redenção e conseqüentemente do
paraíso.

9. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio
de Janeiro: Vício de Leitura/Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 39.

10. ALMEIDA, Luis Sávio de. Memorial biographico do Capitão de Todas as Matas. Recife: UFPE, Tese de
Doutorado, 1995.
11. Carta, 20 dez 1834, publicada pelo Diário da Administração Pública, 5 jan 1835, no setor de documentação
microfilmada da Fundação Joaquim Nabuco.

207
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Os apelos de religiosos, como o bispo D. João da Purificação Marques Perdigão,


auxiliaram na mediação realizada entre o governo provincial de Pernambuco e alguns
rebeldes que, em razão da oferta de benefícios em sementes, remédios, roupas, alimentos e
mesmo terras, aceitaram render-se em fins de 1834. Mas a proclamação dessa autoridade
religiosa aos rebeldes também estava impregnada pela mesma visão de “imoralidade e
selvageria cabana”:

Que resultado podeis colher da saptisfação de tantas paixões


vivendo sem Lei, e aniquilando vossos similahntes, com tanto e
tão grande detrimento de vossa alma! Por ventura deveis ser
Eternos neste mundo! Como vos degradais da dignidade de
Christo para vos involverdes nos vícios, constituindo-vos filhos
das trevas e do erro!12

Entretanto, a guarda-negra papa-mel irá constituir uma identidade de “povos das


matas”, assumindo o risco de uma morte em combate, porém preservando sua liberdade
insurrecional para constituir um espaço de sobrevivência entre roçados e a prática do
despique até 1850.
A essa parcela populacional só restaria o retomo ao cativeiro em caso de capitulação,
por isso permanecer de armas em punho era a única alternativa ao sistema escravista que se
perpetuava no Brasil oitocentista.
As ações da guarda-negra papa-mel eram marcadas por saques às plantações vizinhas,
das quais retiravam víveres e escravos, além de manterem vivo o costume do despique com o
consentimento de Vicente Ferreira de Paula.
O período regencial, envolto em variados conflitos entre os diferentes grupos políticos
locais, fragilizara uma sociedade cujo temor de insurreições escravas e ofensivas militares
eclodindo em vários cantos do país abria brechas a ataques menores. Ao estudar a realidade
da Bahia, João José dos Reis e Eduardo Silva afirmam que:

Os negros parecem atentas e, por toda a parte, agem nos


momentos mais oportunos,’quando a sociedade está dividida,
seja por guerra de invasão, seja por dissensões internas (...).
Muitos, por toda parte e em todos os períodos, aproveitam-se
das desarrumações da casa.13

12. Proclamação do bispo de Pernambuco aos cabanos, publicada no Diário da Administração Pública de
Pernambuco, n. 56, 16 fev 1835, alocado no setor de documentação microfilmada da Fundação Joaquim
Nabuco.
13. REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Cia das Letras, 2005, p. 74.

208
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS

Assim também agiam os segmentos cativos de Alagoas e Pernambuco em busca de


uma sobre vida nas matas. Fugir ou ser resgatado de um engenho de açúcar possibilitava
novas formas de sociabilidade.
Por isso, a identidade do grupo não está dada, porque o mesmo é formado
majoritariamente por negros fugitivos, convivendo com poucos índios e mestiços, casos que
evidenciam diferentes posições na estrutura social, uma vez que a liberdade tolhida aos
escravos não o era com relação aos indígenas ou lavradores livres que participaram da
Cabanada e permaneceram na região fronteiriça de Pernambuco e Alagoas no pós-guerra.
O rearranjo de seu ambiente tradicional promove a desconfiguração do que outrora
representara clivagens entre os atores sociais. Assim, a partilha de terras no Riacho do Mato,
a liderança de Vicente Ferreira de Paula e a posse de terras para subsistência são nutridas por
uma negociação simbólica entre as partes envolvidas. A cor da pele ou a nomenclatura dos
habitantes das matas são substituídas naquele local, mesmo que temporariamente, pela
designação de “povos das matas”. Assim, são reconhecidos pela sua liderança imediata,
como também pelas forças do governo que os observam à distância.
Nesse aspecto, pode-se compreender que a complexidade das relações interétnicas
entre os cabanos, aliada à solidez dos laços estabelecidos, tornava a fidelidade ao projeto de
sobrevivência nas matas constantemente ameaçado pelo avanço dos canaviais, uma questão
de sobrevivência coletiva.
Eduardo França Paiva, em seus estudos sobre Minas Gerais setecentista, já havia
apontado um esforço individual e coletivo para atenuar a violência e a desumanidade do
escravismo:

Uma boa estratégia para usufruir de alguns privilégios


reservados aos livres foi, certamente, facilitar a miscigenação
étnica e o sincretismo cultural e religioso. A partir daí e distante
do poder institucionalizado ou das regras de classificação social
mais visíveis, instala-se um sistema de influências mútuas, uma
verdadeira via cultural de mão dupla, que atenua a
discriminação.14

Herança do escravismo colonial, no período regencial os escravos buscavam formas


de resistir ao sistema que ainda perdurava em bases violentas. A negociação insere-se, então,
no quadro de atitudes cotidianas, na qual se desenvolvia um processo

14. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através
dos testamentos. São Paulo: Annablume, 2000, p. 196.

209
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

de incorporação dos modos de vida brancos (em muitos casos, muito mais uma teatralização
do que sua real aceitação), mas, sobretudo compreendendo uma reelaboração desses valores a
partir da experiência de negros e mestiços.
Essas ressignificações culturais não se limitavam ao círculo das camadas populares,
mas sim transmigravam para as classes abastadas como artifício de interação que não se
restringia a uma simples relação de forças entre dominantes e subordinados. Até porque havia
uma rede de relações sociais muito mais plural, cuja plasticidade de interpretações e vivência
tomava possível uma intermediação entre mundos desiguais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No período regencial, Pernambuco e Alagoas viram-se envolvidos num turbilhão de


contestações de ordem social, envolvendo desde sedições militares a rebeliões restauradoras
compostas pela plebe rural. No que tange especificamente à Cabanada, vários agentes numa
pluralidade de origens étnicas e status sociais desenvolveram estratégias de mediação política
e cultural que permitiam uma sobrevivência possível na região conflagrada.
Esse trabalho pretendeu articular as práticas políticas desses atores sociais aos seus
costumes mais arraigados (como o despique), para, a partir dessa interação, refletir a respeito
da intricada relação entre a cultura e a política que configurava o ambiente em questão.
Assim, cabanos, compostos por negros escravos fugidos, mestiços e índios construíram e
continuamente reformularam sua inserção nas relações de poder em vigor, não mais como
agentes passivos (visão da historiografia tradicional), mas, ao contrário, como sujeitos que
negociaram perdas e ganhos ao longo desse processo histórico.
Dessa forma, o despique enquanto estratégia de manutenção de uma comunidade de
filhos que proporcionasse a continuidade do grupo, proveniente das tradições indígenas que
remontam ao período colonial, transmigrou aos mocambos de escravos fugidos e nestes
constituíram rdaçôes de miscigenação organizadas.
Tanto na guerra cabana contop em seu período posterior, os matrimônios poligâmicos
coexistiram com matrimônios nucleares, embora fossem desestimulados pelos religiosos da
época, que proclamavam a imoralidade e a promiscuidade de tais atitudes.
Entretanto, mesmo possuindo uma relação de proximidade muito estreita com a
religiosidade católica, o despique continuou a ser uma prática comum compreendendo os
pobres rurais e promovendo a integração social, econômica e cultural destes.

210
SABERES, PETRECHOS E ESCRAVOS: OFICIAIS MECÂNICOS E SENHORES NO
CORPO SOCIAL DAS MINAS SETECENTISTAS

José Newton Coelho Meneses1

A reflexão interpretati va que dá origem a esta comunicação pressupõe as Minas


Gerais setecentistas como um espaço de fronteira. Parte da premissa de perceber a cultura
que se desenvolve nesse espaço histórico como distinta, mas integrada ao contexto colonial e
à sua lógica intrínseca. É, ainda, tributária de uma discussão sobre cultura que percebe a
permeabilidade como uma característica inerente aos contatos entre manifestações distintas.
Aponta, por fim, para a tenuidade dessa dimensão, que implica pensar fronteira como espaço
em definição e, em decorrência, com trajetória histórica que o coloca em confronto e em
encontro com um sistema maior que lhe envolve. Como quer Sérgio Buarque de Holanda, há
o caminho “que convida ao movimento” e há a fronteira que se estabelece

entre paisagens, populações, hábitos, instituições, técnicas, até


idiomas heterogêneos que aqui se confrontavam, ora a esbater-
se para deixar lugar à formação de produtos mistos ou
simbióticos, ora a afirmar-se, ao menos enquanto não a
superasse a vitória final dos elementos que se tivessem revelado
mais ativos, mais robustos ou melhor equipados (Holanda,
1994)2

1. Professor adjunto da EV-UFMG.


2. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 3a ed., São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp.
12-3.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

A sociedade das Minas setecentistas se constrói, portanto, em ambiente de fronteira. É


espaço polissêmico de negociação de rumos, onde a diferenciação e a busca identitária
impõem conflitos de interesse e choques de temporalidades distintas. E, se é fronteira, o é do
mundo luso.
O trabalho mecânico ou os mesteres, como eram chamadas as atividades manuais no
ambiente do Antigo Regime português, além da evidente e óbvia participação essencial na
construção das sobrevivências das populações, construiu, no exercício de seus homens e de
suas mulheres, formas de inserção e de representação no nível do poder local pouco
consideradas pela interpretação historiográfica no Brasil. Tais representações, mesmo que
comumente sejam interpretadas como desimportantes, quando considerada a sociedade
nobiliárquica do período merecem reflexão teórica.
A condição mecânica, evidente obstáculo à nobilitação dos indivíduos no Antigo
Regime, não impossibilitou que as categorias ocupacionais dos diversos trabalhos manuais se
posicionassem socialmente de forma a reservar para suas atividades um status que não se
limitava à importância econômica de seus afazeres. Quer na mínima participação em decisões
camarárias, quer nas franjas das associações sócio-religiosas, mediadas pelas irmandades
leigas, esses trabalhadores se posicionaram civilmente no ambiente das aglomerações urbanas
no mundo português. Nas Minas Gerais ou nas vilas e cidades do Reino, os artesãos
buscaram participação na vida política de cada urbe, evidenciada por farta documentação, em
alguns casos, e presumida, devido à quase ausência documental, em outros. Além de tudo,
foram indivíduos importantes na configuração do tecido social e na sustentação da vida dos
aglomerados urbanos e de seus entomos rurais. Nessa busca participativa, enfrentaram
resistências, conciliaram interesses e foijaram identidades.
Ser senhor de escravos, é claro, foi uma das formas instrumentais de evidenciar status
e de se inserir na trama social. A complexa estrutura ocupacional e o dinamismo econômico
que lhe criou mercado teriam exigido dos oficiais mecânicos uma busca na eficácia nas
atividades, resuiíãhdo na incorporação pragmática de técnicas e de tecnologias, bem como
nas estratégias de inserção nas teias sociais e de poder local, respondendo a uma
racionalidade instmmental típica dos saberes tradicionais. Assim, a mão-de-obra escrava foi
opção para muitos homens livres que passaram a usá-la de forma a ter eficiência produtiva,
incorporar saberes em sua oficina e ser senhor de cativos.
É bom lembrar aqui que a complexidade desse mundo do trabalho ao final do Antigo
Regime é marcada por uma conjuntura histórica caracterizada por uma restrita racionalidade
maximizadora que não se liga radicalmente ao mercado, mas muito mais a uma tradição
corporativa e de herança cultural; à interferência do Estado na regulamentação ocupacional; a
um sentimento de identidade do ofício que dificulta a

212
S ABERES , P ETR ECHOS E E SCRAVOS

escolha estritamente econômica e facilita a busca de reconhecimento social da atividade e de


sociabilidades possíveis a partir desse reconhecimento. Por fim, a ocupação pode dar ao
oficial mecânico as oportunidades de busca ou manutenção de privilégios individuais e de
prerrogativas profissionais, dentro de uma presumível livre circulação de mercadorias. Nessa
complexidade, ser senhor de escravos facultaria a qualquer oficial mecânico a evidência de
integração identitária no corpo social em que labutava.

OFICIAL MECÂNICO E SENHOR

A Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará é espaço de trabalho para


muita gente. Sede da Comarca do Rio das Velhas, ela congrega uma população diversificada
que constrói e busca ordenar a vida, edificando riquezas e estruturas de sustentação social.
Nela, colonos portugueses e indivíduos nascidos em seu espaço, deles herdeiros ou vindos de
outras partes da América portuguesa, dedicam-se a produzir e a administrar patrimônios
particulares e interesses públicos. Por suas ruas existem construções civis e eclesiásticas a
ocuparem trabalhadores; transitam animais de carga e de transporte a abastecê-la de
mantimentos e de matérias-primas; circulam comerciantes ambulantes e se instalam os que
conseguiram sediar; fervilham interesses e jogos de poder que a tomam integrada ao seu
tempo; teatralizam-se aparências; forjam-se vivências. Em seu grande Termo, dezenas de
distritos e logradouros pontilham ao seu redor com campos e lavras, matos e capoeiras, e
mais gente do trabalho, escravos e livres, a oferecerem serviços e artes.
Arcângelo Ribeiro de Queiroz é homem de ofício que vive na órbita da Vila. 3 Nela,
oferece serviços e produtos e carrega seus petrechos e sua tenda. Requisitado aqui e ali, ele se
desloca a fazer ferraduras, dobradiças, pregos, cravos e as imprescindíveis foices e enxadas.
Não possui animais e as costas de seus quatro escravos transportam produtos e petrechos
necessários à ocupação. São martelos (quatro), tenazes (três), tufos (dois), tomo (um), fole
(um), craveira (uma) e a pesada bigorna, além de produtos forjados em casa e que se busca
vender. Lá, no Sítio dos Papudos, na Freguesia do Rio das Pedras, está a esposa com os dois
filhos legítimos menores e as duas escravas. Ela cuida dos filhos e elas das roças de mandioca
e de milho, e do engenho de roda onde produzem farinhas, ajudadas por um escravo. A
fazenda tem casa de vivenda coberta de telha, tenda de ferreiro instalada, rancho de
passageiros - os dois cobertos de telha senzala coberta de palha e o engenho de roda é coberto
de capim. Há, ainda, o paiol que, no tempo do inventário post mortem, estava com três
alqueires de milho estocados.

3. BD-CRV (07)12, Inv. 195. O ferreiro morre aos 40 anos, em 1800, em seu local de domicílio.

213
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Na Vila, Arcângelo tem amante, uma preta forra, de nome Maria Ribeiro, sua ex-
escrava, que lhe deu e cuida de três filhos e três filhas, mulatos. Ela será sua inventariante e o
trata de “meu senhor”. Dos seus escravos (seis) sabemos o nome apenas de um: é João, negro
angola, de 29 anos, avaliado em 200$000 (duzentos mil réis) e que tem “princípios de
ferreiro” e é, provavelmente, seu auxiliar/aprendiz de utilidade vital em sua ocupação.
Manoel de Mello Pimentel é carapina e vive no Arraial de Roça Grande, bem perto da
Vila.4 Mora em uma casa de vivenda, no arraial, onde trabalha em sua oficina e possui umas
terras minerais no veio d’água do aglomerado. Sua oficina é razoavelmente equipada com
serra braçal nova, serra velha e um grande caixão de ferramentas com machados (dois), enxó,
juntoura, plaina, formões (seis), goivas, martelos e compasso. Tem um cavalo (“ruço”) velho
e manso, que lhe serve de montaria, e os arreios usados no animal. Para ajudar na lida da
oficina e da família (esposa e nove filhos) ele possui onze escravos (um casal e seus quatro
filhos, uma escrava com três filhos e uma outra escrava). Sua inventariante não nos fornece a
ocupação dos escravos. Provavelmente, pela ausência da referência e pelos valores da
avaliação, não possuem luzes de ofício algum.5
Próximo a Roça Grande, no mesmo Termo da Vila de Sabará, na barra do riacho
D’Anta, vive o sapateiro Antônio de Matos Prestes. 6 Casado com Anna de São Joaquim Leal,
tem quatro filhos pequenos e onze escravos que lhe ajudam na oficina e cuidam de sua roça,
onde possui um cavalo e dezesseis cabeças bovinas. Os bens profissionais de sua oficina são
petrechos próprios de um sapateiro: ferramentas e materiais (solas e peles de veado) para a
confecção das peças que ele manufatura e vende. Da atividade mista de oficial mecânico e de
agricultor sustenta a família e a vida rústica.
Ferreiro, carapina e sapateiro são homens simples que laboram na Vila de Sabará e
têm escravos para o trabalho de suas próprias ocupações ou para suprirem as necessidades de
serviços nas atividades econômicas que a ocupação principal permitiu investimentos. Usando
ou nãodéescravos para exercer o próprio ofício ao seu lado, possuíram considerável número
de cativos.
Em Santa Luzia, em seu sítio Chamado Amorim, vive e labuta o oficial de carapina
Luiz Ferreira Souto, com>ua esposa Izabel e seus cinco filhos menores de 12 anos. 7 Sua
fazenda tem “casas, senzalas, tudo coberto de capim” e mais “terras de

4. BD-CRV, Inv. 398. Manoel de Mello Pimentel falece em 22 de maio de 1781.


5. O escravo Angola, Miguel, de 40 anos, é o melhor avaliado em 100S000.
6. BD-CRV, Inv. 334, aberto em 08 maio 1776, depois do falecimento do sapateiro, em 11 de março 1776.
7. BD-CRV, Inv. 402. Falecido em 05 de novembro de 1781.

214
S ABERES , P ETR ECHOS E E SCRAVOS

plantas, matos virgens, capoeiras, campos e terras minerais com lavras e com hortas e um
rego d’água que cobre as terras minerais”. Sua oficina, além das ferramentas usuais de seu
ofício, possui uma balança de meia libra, dezenove almocrafes usados, quinze enxadas “já
com seu uso”, oito alavancas em bom estado e uma foice. Para aproveitar as posses e os
saberes ele possui, 31 escravos, entre homens e mulheres, jovens e velhos. Alguns ajudam
com seus jornais e outros trabalham em suas terras e na oficina. O escravo José, preto mina,
de 35 anos, trabalha no ofício de barbeiro “como se livre fosse” e lhe atende com o jornal
combinado. Como o seu dono, é artesão de ofício, o que lhe possibilita ganhar a vida,
sustentar o senhor e assegurar um dia a sua liberdade.8
Nem mais, nem menos, esses são típicos homens livres, oficiais mecânicos por
atividade usual, senhores comuns de escravos em uma sociedade escravista na qual a posse
de negros é utilidade e distinção. Não são portugueses da elite, são todos nascidos nas barras
do Rio das Velhas, e nas suas beiras manufaturam artes e prestam serviços que lhes
competem pelos seus saberes e lhes são permitidos pelas demandas sociais. Diversificaram
suas atividades e buscaram na terra objeto além da matéria- prima para o próprio ofício.
Senhores em um mundo de senhores, na simplicidade de suas vivências, identificaram-se
com a condição de proprietários de escravos e amalgamaram formas de viver, produzir e
comercializar produtos no mercado do banal.
Distante dali, ao norte, na Comarca do Serro Frio, há um arraial populoso e
fervilhante em economias variadas e em diamantes que lhe brotam dos vales. Mais populoso
que a própria sede da comarca - a Vila do Príncipe - a sede do Distrito Diamantino, o Tejuco,
agasalha uma vida urbana que exige cuidados de segurança e serviços variados de tantos
oficiais mecânicos quantos os que conseguem se estabelecer no local. O olhar vigilante da
Câmara está na Vila do Príncipe, longe de seus moradores, mas, nem por isso, suas
determinações deixam de regrar suas ações. A estrutura administrativa ali é rígida e atenta, e
o trabalho mecânico será, como na Vila, alvo dos tentáculos funcionais do rei.
O sapateiro Bernardo Antônio da Rocha, homem solteiro e livre, mas avô de uma
neta, filha de sua filha natural que morreu e a deixou só no mundo, exerce sua atividade com
comodidades que a vida lhe oferta.9 Possui as ferramentas e demais petrechos de um
sapateiro (couros, solas, meadas de fios), mas o que tem maior

8. Alguns outros exemplos semelhantes a esses deixam aqui de ser mencionados por economia de espaço e de
paciência dos leitores. Dentre outros, o do mestre de ferreiro que morre “demente, louco, desajuizado do
juízo”, Antônio Gonçalves Ferreira. BD-CRV - (20) 3, Inv. 180.
9. BAT/Inv. 045, CSO. Abertura em 1810.

215
TT

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

valor no rol de bens materiais inventariados de sua loja é “um chapéu de sol usado” (2$000
réis). No entanto, seu capital mais evidente está no grupo de homens escravos que aluga para
a Real Extração dos Diamantes, em alguns outros cativos que lhe pagam jornal, e em outros
que trabalham com ele. Se castiga com palmatória a esses últimos, como na gravura de
Debret, não se pode saber: este instrumento não está arrolado em seus bens, mas,
provavelmente, não estaria, mesmo se ele o tivesse, já que não era comum enumerar e avaliar
bens de madeira de tão pouca monta.
São sete os escravos do sapateiro Bernardo: seis homens e uma mulher, todos muito
jovens e valorizados, que lhe facultam uma vida farta e sem preocupações. Deixa os bens
para sua herdeira, a neta, e, arrolados são, sobretudo, vários créditos a receber, além de
animais e casa de vivenda.
Escravos de ganho, alugados à Real Extração ou no exercício do ofício que pratica,
não estão quantificados em seu inventário post mortem. Em vida, entretanto, o sapateiro tirou
deles a força que moveu sua economia e que deixou de herança à neta.
José Pedro de Azevedo é caso similar.10 Oficial de latoeiro, seus serviços são
demandas constantes e corriqueiras para aparelhar as casas com vasilhames e as construções
com calhas e proteções de folhas. Natural de Manga, “do Bispado da Bahia”, migrou para o
Tejuco atraído pelo mercado que lhe sustenta. Morre sem ter conseguido ter bens imóveis,
mas deixa para sua esposa e sua mãe, que viviam com ele, a sua “tenda de latoeiro”, “um par
de caixas de madeira com as ferramentas de seu ofício”, roupas de uso, louças, talheres,
armas e três valiosos escravos benguelas com luzes do seu ofício que poderiam sustentá-las
como oficiais em oficina produtiva.
O minhoto, Martinho Alves Chaves, tem atividade diversificada. 11 Tudo leva a crer
que, a partir de sua atividade básica de ferreiro, construiu cabedal que propiciou a ele chances
comuns de ampliação da atividade econômica. Tem duas moradas de casas no Arraial do
Tejuco, uma maior e mais valiosa e outra simples, além de duas lavras minerais próximas à
cachoeira dos Cristais e à cachoeira da Sentinela, nos arredores do arraial. Tem, aind^Tuhi
“capão de mato” em outra localidade que seu inventário não identifica. Possui 23 esfcravos.
A maioria vive e minera nas lavras, onde o senhor tem vivendas e senzalas. O escravo Paulo
“com luzes do ofício de ferreiro” e bastante idoso (80 anos) comandai trabalho de outros
escravos na tenda de ferreiro bem equipada e com matéria-prima abundante (39 chapas de
ferro) que fica no Tejuco. O rol de bens domésticos dá-nos a idéia de uma vida confortável na
morada do

10. BAT/Inv. 010, CPO. Abertura em 1799, acompanhado de testamento.


11. BAT/Inv. 034, CPO. Abertura em 1808, acompanhado de testamento. Ver estudo sobre este caso em:
Meneses (2000: 230-1).

216
S ABERES , P ETR ECHOS E E SCRAVOS

arraial, bem situada à Rua da Quitanda, “com duas frentes, ambas de sobrado” e vizinhança
com as “casas das Recolhidas de Macaúbas”: móveis simples, mas em abundância,
vasilhames fartos, imagens de santos em madeira, barro e latão, colchões, mantas e lençóis,
além de indumentária numerosa. A relação de dívidas junto ao comércio de Francisco
Martins Pena denota compras de alimentos básicos (farinhas, feijão, milho, rapaduras),
tecidos, aviamentos e ferramentas.
Martinho confecciona em sua tenda, alavancas, marrões, machados, enxadas, foices e
almocrafes para uso próprio e para o comércio. É português e senhor de escravos, o que lhe
facultava, com certeza, inserção social cimentada nos valores de sua origem e cabedal.
A situação desses oficiais mecânicos que se transformam em senhores de escravos é,
no mínimo, contraditória: se o trabalho braçal é para a sociedade portuguesa escravista ato de
escravo, e se o senhor de escravo normalmente não utiliza as mãos para o trabalho, como
seria a relação desse senhor de escravo que trabalha como oficial mecânico? E que estatuto
teria, nessa relação, o escravo artesão semi- especializado, ou mesmo, especializado? Essa
reflexão merece, com certeza, espaço ampliado na pesquisa historiográfica e não é objetivo
desse estudo fazê-lo neste momento. Supõe-se, de forma preliminar, que a relação entre esses
homens, artesãos de mesmo ofício ou de ofícios distintos, localizados em estratos sociais que
tendiam a opor-se um ao outro, e, por fim, unidos por laços da relação escravista, era menos
desnivelada e mais solidária quando comparada a de outros senhores e escravos sem
especialização.12
A situação do escravo perito em alguma arte era destacada em seu meio. Trabalhando
para seu dono, às vezes exercendo a mesma atividade dele - com quem pode ter tido a chance
de aprender o ofício ou desenvolvendo o artesanato como escravo de ganho, o cativo artesão
tinha valor acrescido pela especialização e pela qualidade de seu desempenho no labor
manual. Como escravos de ganho, sujeitavam- se aos exames e correições normais e, neste
caso, viviam o paradoxo de serem tratados, momentaneamente, como homens livres, em
busca de legalidade para o exercício laborai.
É o caso, por exemplo, de Paulo Mina, escravo de Antônio Pinto Carneiro, de Ouro
Branco, examinado e autorizado pela “carta de confirmação” a exercer o ofício de ferrador,
como descreve o registro abaixo:

12. Mary Karasch insinua um exercício de verificação dessa situação para o Rio de Janeiro, na primeira metade
do século XIX, sem, no entanto, se dedicar plenamente à essa questão. Ver: KARASCH, Mary C. A vida dos
escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; especialmente no capítulo 7,
“Carregadores e propriedade: as funções dos escravos no Rio de Janeiro”.

217
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Manoel Ribeiro de Carvalho, ferrador e alveitar, aprovado juiz


do dito ofício no presente ano nesta vila e seu termo, por eleição./
Certifico que perante mim e o escrivão do dito ofício,
Isidoro Leite Esquerdo, se examinou o preto Paulo Mina,
escravo de Antônio Pinto Carneiro, morador de Ouro Branco,
termo desta vila, o qual examinamos e aprovamos, para poder
ferrar, sangrar, curar uma encravadura, deitar uma carga, o
que fizemos por o achar apto o suficiente para poder exercer a
dita ocupação, o que juramos aos santos evangelhos e pedimos
as justiças de sua Majestade, que Deus guarde, a façam cumprir
e guardar como dela se contém, dada e passada nesta Vila Rica
do Ouro Preto, aos vinte e cinco dias do mês de setembro de mil
setecentos e cinqüenta anos, e eu escrivão do dito ofício que o
escrevi, digo, sobrescrevi e assinei, [seguem assinaturas]13

Paulo Mina, provavelmente um escravo de ganho de grande valor pela demanda por
seu serviço especializado e valorizado, sujeita-se ao exame para exercer seu ofício e usa seus
saberes para garantir uma condição distinta no contexto de sua condição de cativo. É homem
escravo que se estabelece como ferrador e alveitar para ganho de seu senhor e, como oficial
mecânico, está sob a lei como se livre fosse.
Para um oficial mecânico livre, o fato de ter escravo apto em atividade no ramo do
labor artesanal especiaüzado abria chances de aumentar o lucro por sua atividade,
diversificando seu atendimento e estendendo-o a possibilidades de demandas díspares. Para o
escravo especializado em ofício artesanal vigorava a mesma labuta dos escravos do eito, a
mesma condição de trabalhador compulsório, mas, provavelmente, uma diferenciada relação
com o senhor e uma maior possibilidade de adquirir recursos para sua liberdade futura, muito
embora seu valor fosse acrescido pela condição de ter luzes de tíácío ou de possuir saberes
especiais demandados socialmente. V
Faiscando outros serviços, esses homens das Minas retiraram de aluviões díspares o
substrato de suas vidas e-€fe suas sobrevivências. À luz de saberes, usaram as mãos que
forjaram, teceram e construíram instrumentos de outros trabalhos, edificações civis e
eclesiásticas, tecidos de necessidades para alguns, petrechos de utilidade para todos.
Estatutariamente se estabeleceram em seus aglomerados humanos e teatralizaram suas
condições de viver e de aparecer. Viveram nas Minas de Portugal

13. APM/CMOP 50, f. 150.

218
S ABERES , P ETR ECHOS E E SCRAVOS

da América e foram mais que mineradores ou mineiros. Foram peças fundamentais de uma
construção socioeconômica e cultural. Elaboraram mais que produtos artesanais: foijaram
identidades que compuseram um rico amálgama de vivências e sobrevivências em formas
diversificadas de fazeres e em buscas variadas de distinção.
Nessa busca, o trabalho escravo compôs, como trama, o tecido social que envolvia
súditos da Coroa portuguesa em busca de sobrevivência, riqueza, privilégios e estatura
social. Trabalhadores manuais e escravos fizeram parte de teias de relações complexas,
difíceis de cozer e impossíveis de desfazer. Sobretudo, foram capazes de construir relações,
produtos e serviços em sistema que os integrava a um espaço histórico sui generis, mas
perfeitamente integrado ao processo colonial. Senhores uns, escravos outros, foram seres de
uma construção histórica na qual um e outro, com seus saberes e petrechos, além de suas
vontades e possibilidades, se impuseram como fios fundamentais para o tecido social das
Minas.

219
\
O ABOLICIONISMO DAS MINAS: UM BREVE ESTUDO COMPARADO DO
MOVIMENTO ABOLICIONISTA NAS CIDADES DE OURO PRETO E JUIZ DE FORA
NOS ÚLTIMOS ANOS DA ESCRAVIDÃO

Luiz Gustavo Santos Cota1

No dia 13 de maio de 1888, os repiques dos sinos das igrejas, as estrondosas


explosões dos fogos de artifício e seguidos vivas à liberdade ecoaram pelas ruas do Império
anunciando a promulgação de um “decreto salvador”. Para muitos que participaram desta
festa, o fim da escravidão representava naquele momento a eliminação do último obstáculo
que impedia o pleno progresso da jovem nação brasileira. Livre dos grilhões opressores da
escravidão, o Brasil seguiria rumo a um futuro civilizado. Todavia, sabemos que essa história
é bem mais complexa do que parece.
Os caminhos percorridos até a promulgação da Lei Áurea em 1888 são muito mais
tortuosos e confusos do que pode representar a festa narrada por aqueles que assistiram à
chegada ao ponto final desse caminho. Uma emaranhada teia de discussões e projetos sobre a
extinção da escravidão no Império brasileiro foi fiada desde os primeiros anos de
Independência até o surgimento da Campanha Abolicionista nos anos de 1880. 2 Do
gradualismo proposto pelos reformistas da “geração da Independência” e sua implantação
efetiva na década de 1870, com a Lei do Ventre Livre, até o clamor imediatista do
abolicionismo radical na década seguinte, muito foi discutido, proposto ou mesmo colocado
em prática.

1. Bacharel em História pela Universidade Federal de Ouro Preto e aluno do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
2. Figuras como José Bonifácio de Andrada e Silva, João Severiano Maciel da Costa, José Eloy Pessoa da Silva e
Frederico César Burlamaque desenvolveram argumentos favoráveis à emancipação cativa de forma gradual
ainda no contexto do pós-Independência. Ver: CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil.
RiodeJaneiro: Civilização Brasileira, 1978. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. José Bonifácio de
Andrada e Silva. Organização e introdução de Jorge Caldeira. São Paulo: Ed. 34, 2002.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

A necessidade de um processo gradual que assegurasse os direitos dos proprietários, a


possibilidade da substituição da mão-de-obra escrava pelo imigrante europeu, o perigo
representado pela rebeldia escrava e o lugar dos ex-escravos após o fim da escravidão foram
alguns dos temas que circularam pelo Brasil mesmo após 1888.3
Com o avanço das pesquisas, a idéia do abolicionismo como unicamente um “negócio
de brancos” foi relativizada. Foram evidenciadas as ligações entre aquele movimento, muitas
vezes tido como meramente de salão, e as camadas populares que circulavam pelas ruas e
senzalas do Império.4 O abolicionismo passou a ser destacado como um movimento
multifacetado e complexo.
Essa pluralidade do movimento abolicionista foi levada em conta por Maria Helena
Machado em O plano e o pânico. A autora chama a atenção para a variedade e complexidade
dentro do que se convencionou chamar genericamente de abolicionismo, questionando as
generalizações que levavam a um caráter ora heróico, ora malfeitor e elitista. Seu trabalho
relativiza as lideranças incontestes desta visão, focalizando

uma complexa interação de projetos e atuações diversas que, ao


atingir estratos sociais perigosamente instáveis, colocou em
curso uma atuação política muito menos comprometida com os
cânones do liberalismo, do imperialismo e do racismo científico
do que até o momento se tem admitido.5

Maria Helena Machado rompe com a tese de que o abolicionismo teria se limitado
apenas à ação legal e ordeira, condenando as atitudes tidas como “inconseqüentes”.
Matizando a ação abolicionista em São Paulo nos anos finais do regime escravista, a autora
percebeu como a “arraia miúda” e vários grupos abolicionistas interagiam mesclando idéias
de natureza bem diversa. Em vários pontos

3. Para saber mais sobre os vários projetos quéNenvolviam a extinção da escravidão no Brasil do século XIX,
ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites (século XIX).
Rio de Janeiro: Paz^Terra, 1987.
4. Refiro-me principalmente à chamada “Escola Paulista”, cujos integrantes defenderam a tese de que a única
preocupação dos abolicionistas era assegurar a passagem ao capitalismo sem quebrar a hierarquia social
vigente no país, aproveitando-se da inércia dos cativos que não teriam a capacidade de se organizarem na luta
pela abolição. Ver: LANNI, Otávio. As metamoifoses do escravo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962;
CARDOSO, Femando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976; FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3a ed., São Paulo: Ática, 1978, 2
vols.
5. MACHADO, Maria Helena P. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ/Edusp, 1994, p. 146.

222
O A BO LICIONISMO DAS M INAS

do Império, os meetings e demais manifestações de rua organizadas pelos abolicionistas


chamavam a atenção dos setores populares dos centros citadinos, que mesmo de forma
turbulenta e desorganizada sentiam-se atraídos pelas palavras que ecoavam pelas ruas
(Machado, 1994:148).
Ao contrário do que se convencionou afirmar durante algum tempo, o abolicionismo
seria um “movimento de frente ampla”, que abriu espaço para tendências e atuações muito
variadas. Ao mesmo tempo em que apresentava uma faceta mais conservadora, limitando-se
aos debates, discursos e ações legais, a adesão do “zé povinho” (e a radicalização de várias
de suas alas) fez com que o abolicionismo, muitas vezes, rompesse com as propostas
gradualistas e emancipacionistas (Machado, 1994:160).
Mesmo sendo influenciado, por exemplo, pelas teorias científicas que circulavam
com desenvoltura pelo acanhado círculo intelectual brasileiro, o movimento abolicionista não
teria conseguido transformar tais idéias, como o racialismo, 6 em uma “camisa de força
ideológica” capaz de uniformizar seu discurso e prática. Sendo um movimento composto por
agentes tão variados, teve uma multiplicidade de interpretações das idéias em voga. Além
disso, ao tomar contato com os populares, estas mesmas idéias ganhavam cores imprevisíveis
e “pouco ortodoxas”.
Maria Helena Machado também rompe com a idéia de que o movimento teria se
limitado aos muros das cidades. Para tanto, cita a ação de grupos radicais (como os caifazes
no meio rural), estabelecendo assim uma ponte entre a ação dos escravos nas fazendas do
interior de São Paulo e o abolicionismo urbano. Após auxiliar as fugas de fazendas do
interior paulista e da capital, os abolicionistas conduziam os fugidos para a cidade de Santos,
onde estes, através da união com outros escravos, refugiavam-se nos quilombos do Jabaquara
e Vila Matias (Machado, 1994:149).
Essa interação entre abolicionistas e escravos também foi alvo da pesquisa
empreendida por Eduardo Silva em As camélias do Leblon e a abolição da escravatura.
Empreendendo um trabalho de História Cultural, Silva inicia uma jornada ao Brasil do fim
do século XIX através de um símbolo abolicionista, a camélia. Usada na lapela, presenteada
em forma de buquê ou cultivada nos jardins da Corte, a flor, que simbolizava a luta contra a
escravidão, trazia em si muito mais que um símbolo de um

6. Preferimos utilizar o conceito de “racialismo” elaborado por Tzvetan Todorov, ao invés de “racismo
científico”, como têm feito vários autores. Todorov faz uma distinção clara entre racismo e racialismo, sendo
o primeiro caracterizado por um comportamento revestido de ódio e desprezo para com indivíduos de
características físicas diferentes. Já o racialismo seria uma ideologia, uma doutrina referente às raças humanas
foijada na Europa ocidental em um período amplo que vai do século XVIII a meados do XX. Ver:
TODOROV, Tzvetan. Nós o os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1993.

223
r

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

movimento, mas a sua complexa prática. O ponto de produção e distribuição das “flores da
liberdade” era nada mais nada menos que um quilombo situado no que é hoje o bairro do
Leblon no Rio de Janeiro. Este, por sua vez, representava um novo tipo de resistência ao
sistema escravista.7
Diferentemente do que ficou conhecido como “quilombo-rompimento”, caracterizado
pela negação da ordem escravista e de relativa autonomia em relação à “sociedade branca”, o
quilombo do Leblon era apoiado ou mesmo patrocinado por abolicionistas, constituindo-se
como um ponto de encontro entre estes e os escravos fugidos (além de ser um símbolo de
resistência e difusão dos ideais do movimento). A existência do “quilombo-abolicionista”
reforça a complexidade da atuação antiescravista, já que representa a interação entre o
movimento e os maiores interessados na abolição, os escravos (Silva, 2003).
Ao lado do quilombo do Jabaquara, em Santos, o quilombo do Leblon servia como
uma espécie de “instância de intermediação” entre os fugitivos e a sociedade. Ao contrário
do “modelo clássico” de quilombo, os laços entre a comunidade escrava e a sociedade - ou
melhor, entre os fugidos e o círculo político da Corte - eram muito nítidos. Entre seus líderes
estavam cidadãos bem conhecidos da sociedade da capital do Império, muitos deles membros
da Confederação Abolicionista (Silva, 2003:13).
O comerciante português José de Seixas Magalhães, idealizador e proprietário das
terras do quilombo, fez com que as belas flores cultivadas em parceria com os fugidos
chegassem até a mesa da família imperial. As camélias do Leblon enfeitavam a mesa de
trabalho da princesa regente no Palácio das Laranjeiras, uma mostra da cumplicidade das
autoridades imperiais, ou melhor, da realeza, com o quilombo abolicionista (Silva, 2003:15).
Essa visibilidade do mocambo para a sociedade em volta fez com que ele se tomasse
um dos símbolos do abolicionismo ao lado das flores nele cultivadas. Nas barbas da polícia e
demais autoridades, abolicionistas e escravos promoviam belas e animadas festas, inclusive
com uma boa batucada (Silva, 2003: 15). Um batuque desafiador que marcava o ritmíído
clamor pela liberdade.
O objetivo deste texto é exatar^nte tentar colaborar para a compreensão deste
complicado processo na província dè Minas Gerais, para ser mais específico, em duas de suas
importantes cidades^a capital Ouro Preto e a próspera Juiz de Fora. Acreditamos que através
da análise das reações da sociedade nas referidas cidades (centros citadinos localizados em
regiões com dinâmicas sociais e econômicas bem distintas) poderemos perceber de forma
mais ampla como a província reagiu ao processo de derrubada da instituição escravista.

7. SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
O A BO LICIONISMO DAS M INAS

A carência de um número maior de estudos sobre o processo de abolição em Minas


Gerais pode ser minorada através da análise das especificidades regionais da província, o que
amplia - através da recuperação das singularidades do abolicionismo mineiro - a
compreensão do processo como um todo. Destacando suas especificidades com relação a
outras regiões do Império, talvez possamos impedir generalizações feitas com base nas
análises empreendidas para outras províncias. Assim, nossa intenção aqui é apresentar um
pequeno paralelo entre Ouro Preto e Juiz de Fora, comparando a ação abolicionista nas
referidas cidades nos últimos anos do regime escravista.
Centro político da província, Ouro Preto localiza-se na região antigamente
denominada como Metalúrgica-Mantiqueira, uma das primeiras áreas de colonização de
Minas e berço dos primeiros núcleos urbanos impulsionados pela mineração. Já durante o
século XIX, a região diversificou sua base econômica, a mineração passou a ter menor
importância e a dividir o espaço com outras atividades, como a agricultura de subsistência e
a pecuária.8 Mesmo com a escravidão fazendo-se presente através das atividades econômicas
já citadas, a região assistiu, durante as décadas de 1870 e 1880, ao êxodo de sua mão-de-obra
cativa para outras áreas de Minas, como a Zona da Mata - região da cidade de Juiz de Fora.9
Para se ter uma idéia, no ano de 1886, o município de Ouro Preto contava com o número de
1.986 escravos, enquanto que Juiz de Fora abrigava 20.905. 10
Pólo da região tida como o “centro dinâmico” da economia da província, dominada
pela agricultura de exportação (café), Juiz de Fora se tornou, na virada do século XIX para o
XX, o primeiro centro industrial de Minas Gerais, o que teria determinado o
desenvolvimento de sua infra-estrutura urbana e de seus arrabaldes.11
No período equivalente às duas últimas décadas de existência do sistema escravista, a
região da Zona da Mata teria recebido, segundo as contas de Martins e Slenes,
aproximadamente 61% do influxo líquido de escravos para regiões mineiras que ganharam
mão-de-obra cativa durante esse período. Já por volta de 1880, a

8. LIBBY, Douglas Cole. A transformação e trabalho em uma economia escravista. Minas Gerais no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1988.
9. SLENES, Robert W. Os múltiplos porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no século
XIX. Estudos Econômicos. São Paulo, v.18, n. 3, 1988, p. 465.
10. Relatório apresentado pelo I o vice-presidente da província, Antônio Teixeira de Souza Magalhães, ao
Desembargador Francisco de Faria Lemos, 01 jun 1887. Disponível no site da Chicago Universit:
www.crl.edu/content/brazil/mina.html
11. Sobre o desenvolvimento urbano e industrial de Juiz de Fora, ver: GIROLETTI, Domingos. Industrialização
em Juiz de Fora (1850-1930). Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 1988; e PIRES, Anderson.
Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (187001930). Niterói: UFF, Dissertação de
Mestrado, 1993.

225
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

região concentrava cerca de 35% da escravaria mineira. 12 A maior parte dessa mão- de-obra
encontrava-se concentrada nas mãos de grandes fazendeiros de café do município de Juiz de
Fora.
Rômulo Garcia Andrade constatou, através do estudo de inventários post-mortem e de
editais de leilões publicados nos jornais de Juiz de Fora, analisados no período entre de 1870
e 1880, que o tamanho médio das propriedades do município era de 236 alqueires, com
plantéis compostos entre sessenta a 198 escravos e 237.714 pés de café. 13 Segundo Andrade,
os grandes proprietários (possuidores de mais de cinqüenta escravos) concentravam 85% dos
cativos, 88% da produção de café e 84% das terras. Os médios proprietários (entre dez a
dezenove escravos) detinham 12% dos escravos, 10% do café e 14% das terras, enquanto que
os pequenos proprietários concentravam apenas 3% dos escravos, 2% das terras e do café
(Andrade, 1991: 111).
Diante de diferenças tão marcantes, pretendemos constatar qual teria sido a influência
destas mesmas diferenças sobre o surgimento do movimento abolicionista nos referidos
centros citadinos.
Começando pelas informações conferidas pela escassa historiografia sobre a abolição
em Minas, Oiliam José afirma que o tímido movimento abolicionista mineiro teria entre seus
principais centros justamente as cidades de Ouro Preto e Juiz de Fora. Para o autor, a
exemplo do que teria ocorrido com a propaganda republicana na província, a campanha
abolicionista seria “nada aparatosa e circunscrita ao meio estudantil ou ao pequeno grupo de
profissionais liberais que atuavam nas localidades mineiras”.14 Nesse ponto, ao destacar a
importância dos profissionais liberais e estudantes dentro do movimento abolicionista, o
autor entra em sintonia com parte da historiografia brasileira que aponta esses grupos como a
base do abolicionismo.
Para Emília Viotti, o crescimento das cidades e das profissões liberais foi um fator
decisivo para que o abolicionismo despontasse na década de 1880.15 Segundo a autora:

Graças à multipíícação de empresas e profissões liberais


formou-se uma camada i^enos comprometida com a escravidão
e que irá servir de suporte à ação abolicionista. A gênese da
consciência que -rfega a ordem vigente não está

12. Slenes (1988:458 e 465); e MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à
escravidão numa economia não-exportadora. Estudos Econômicos. São Paulo, Instituto de Pesquisas
Econômicas, v. 13, n. 1, jan-abr, 1983_
13. ANDRADE, Rômulo Garcia. Escravidão e cafeicultura em Minas Gerais: o caso da Zona da Mata. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 11, n. 22, maio-ago, 1991, pp. 95-125.
14. JOSÉ, Oiliam. A Abolição em Minas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962, p. 9.
15. COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à Colônia. 3a ed., São Paulo: Brasiliense, 1989.

226
O A BO LICIONISMO DAS M INAS

necessariamente vinculada à condição de classe, mas a ação


revolucionária propriamente dita, que faz progredir o
movimento subversivo, resultará, principalmente, da adesão
daqueles setores da opinião pública (Costa, 1989: 441).

Richard Graham segue pelo mesmo caminho, sustentando que o crescimento do


abolicionismo no meio urbano se deve ao fato de que os abolicionistas teriam se dirigido às
necessidades dos novos grupos profissionais que afloraram em cidades como Rio de Janeiro
e em São Paulo, sobretudo após a Guerra do Paraguai. Estes grupos seriam compostos,
principalmente, por engenheiros e advogados, além de oficiais militares, tendo, segundo o
autor, adotado uma “visão moderna e progressiva do mundo, cuja vitória no Brasil era
dificultada pela escravidão”.16
De acordo com Oiliam José, a cidade de Ouro Preto, ao lado da vizinha Mariana
(sede do bispado mineiro), seria um dos centros “onde se agitavam as idéias mais em voga,
desde as científicas e religiosas até as políticas e sociais” em virtude da concentração de
estudantes das escolas superiores ali localizadas: a Escola de Farmácia e a Escola de Minas
(Oiliam, 1962: 93). Após ter ressaltado o caráter extremamente moderado do movimento
abolicionista em Minas Gerais, o autor se refere ao abolicionismo ouropretano, no qual os
estudantes teriam ocupado um papel de destaque, como o responsável pelas ações mais
radicais dentro da província, como o incentivo às fugas e ocultação dos escravos fugidos
(Oiliam, 1962: 95).
Oiliam destaca a atuação da Sociedade Abolicionista Ouropretana, entidade que teria
sido fundada no ano 1882. De acordo com o autor, essa sociedade abolicionista teria se
limitado, no início de suas atividades, à ação individual de seus membros e a uma minguada
propaganda. Posteriormente, em um período não precisado pelo autor, a entidade, juntamente
com outros grupos abolicionistas - dos quais o autor não cita os nomes compostos
principalmente por estudantes e professores das escolas superiores, teria entrado em sua fase
“mais agressiva”, com maior ênfase nas propagandas e atitudes mais incisivas.
Quanto a mais informações sobre articulações entre a ação abolicionista e a rebeldia
dos cativos, o autor, ao citar as comemorações da Abolição em 13 de maio de 1888, deixa a
entender que os abolicionistas teriam dirigido o processo sozinhos. Mesmo reconhecendo a
importância da rebeldia escrava para a fragilização do sistema escravista em Minas, Oiliam
José destaca a relação amistosa entre senhores e escravos na província. Mesmo na
comemoração daquele que seria o dia mais importante em suas vidas, os escravos mais
pareciam penetras do que convivas.

16. GRAHAM, Richard. Escravidão, Reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979.

227
I
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Em meio ao povo, estavam dezenas de libertos que, ainda


chocados com a liberdade obtida, não sabiam como participar
desse regozijo coletivo. Aliás, em toda a Província, foram os
brancos que mais se rejubilaram com o 13 de maio. Os negros,
pelo afastamento social em que jaziam, nem ao menos tiveram
meios para se projetarem nas comemorações da assinatura da
“Lei Áurea”, embora fossem os maiores beneficiários dela
(Oiliam, 1962:96).

Ao analisar os jornais mineiros entre 1850 e 1888, Liana Maria Reis constatou um
amplo debate acerca da possibilidade da extinção do elemento servil no Império, com
manifestações tanto a favor como contra a abolição. Com base na análise da documentação
oficial e da imprensa, a autora constatou que o movimento abolicionista ocorreu em Minas
Gerais acompanhando os debates em tomo da questão servil que ocorria em âmbito
nacional.17
Com relação à cidade de Ouro Preto, Liana Reis também notou a existência de mais
três sociedades abolicionistas, além da já citada Sociedade Abolicionista Ouropretana. Foram
anunciadas as fundações do Clube Abolicionista Mineiro Visconde do Rio Branco (1883), da
Sociedade Libertadora Mineira e do Clube de Libertos Viscondessa do Rio Novo (ambas
fundadas em 1884) (Reis, 1993: 111).
Ao analisar os jornais ouropretanos editados no período tratado, Liana Reis constatou
ainda que as atividades da Sociedade Abolicionista Ouropretana eram bem anteriores à data
apontada por Oiliam José (1882) (Reis, 1993:109). De acordo com um anúncio publicado no
jornal A Província de Minas, no dia 05 de junho de 1881, a entidade já estava organizada e
inclusive distribuía suas primeiras alforrias. Dois cativos foram beneficiados pela caridade
dos membros. Os “pobres” Leopoldina e Fellipe “puderam já entrar no pleno gozo de sua
liberdade”.18 Entretanto, ao contrário do que acreditou Liana Reis, a organização da
Sociedade era ainda anterior a junho de 1881.
Uma nota publicada no mesmo periódico do mês em fevereiro daquele ano noticiava a
fundação da Sociedade Abolicionista Ouropretana:
7
Sociedade Emancipadóra. No Domingo ultimo, realizou-se no
theatro desta cidade uma numerosa reunião para o fim de ser
instalada nesta capital uma associação destinada à promover
meios para a libertação de escravos.

17. REIS, Liana Maria. Escravos e abolicionismo na imprensa mineira (1850-1888). Belo Horizonte: Universidade
Federal de Minas Gerais/Departamento de História, Dissertação de Mestrado, 1993.
18. A Província de Minas. Ouro Preto, 05 jun 1881.

228
O A BO LICIONISMO DAS M INAS

A generosa e philantropica ideia partio de moços intelligentes,


dignos professores e alunnos da escola de minas.
Nessa reunião foi eleita a directoria interina da Sociedade que
ficou assim organizada: presidente, o Sr. Dr. Archias Medrado;
vice-presidente, o Sr. Te. Cel. Hermogenes Rosa; secretários; os
Srs.: Alcides Medrado e A. Olintho dos S. Pires; thesoureiro, o
Sr. José Rodrigues Gomes Junior.
A sociedade já obteve em favor de seu philantropico fim um
beneficio dado pelo Sr. Cazali, com a magnifica companhia
eqüestre e gymnastica que dirige.
O espectáculo realizou-se na noite de 15 do corrente, com
avultada concurrencia publica e extraordinarios applausos dos
espectadores.19

Todas essas entidades manifestaram suas ações através dos jornais da capital,
anunciando a aprovação de seus estatutos, suas reuniões, além, é claro, das libertações de
escravos. Contudo, ao contrário do que afirmou Liana Reis, para quem não teriam existido
em Minas Gerais jornais que se intitulassem declaradamente abolicionistas, cabendo apenas
aos periódicos republicanos “posturas mais agressivas, propondo reformas políticas,
criticando o governo e defendendo o fim da escravidão” (Reis, 1993: 53), Ouro Preto assistiu
a criação de pelo menos três jornais dedicados à causa da abolição.
Foram encontradas referências sobre a circulação de três jornais abolicionistas em
Ouro Preto: O Trabalho:periódico litterario, instructivo e abolicionista (1883), A Vela do
Jangadeiro - periódico abolicionista (1884) e Ordem e Progresso - órgão do Club Abolicionista
Mineiro Visconde do Rio Branco (1884).
Dos três jornais foram encontradas apenas algumas edições d’0 Trabalho e do A Vela
do Jangadeiro. Do primeiro periódico restou apenas uma edição, datada de 23 de fevereiro de
1883, localizada na Biblioteca Nacional. Já do A Vela do Jangadeiro foram encontradas duas
edições depositadas na Hemeroteca do Estado de Minas Gerais (07 de setembro e 21 de
dezembro de 1884) e outras duas na Biblioteca Nacional (13 de julho e 24 de agosto de
1884). A comprovação da existência desses periódicos, mesmo que através de notas
publicadas nos demais jornais da capital, é uma boa amostra da organização e do
compromisso dos abolicionistas ouropretanos.
O conservador José Pedro Xavier da Veiga, redator e proprietário do A Província de
Minas, chamava a atenção de seus leitores para a fundação do primeiro jornal abolicionista da
capital:

19. A Província de Minas. Ouro Preto, 19 fev 1881.

229
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

O Trabalho
Com este título, começou ante-hontem sua publicação nesta
cidade em “periodico litterario, instructivo e abolicionista”,
redigido pelos Sr.s José Pedro Furst e Manoel Martiniano
Ferreira Ozzori, moços que louvavelmente consagrão ao estudo
o tempo que lhes sobeja dos trabalhos quotidianos.
Neste numero-estréa, o Trabalho já revela a intelligencia e bons
sentimentos de seus jovens redactores, que mostrão-se adhesos
ás boas ideas que o amor das letras e da liberdade desperta, e
que o espirito religioso sôe gerar illuminando nobres tentativas,
que a experiencia e o estudo saberão dirigir por bom caminho.
Não temos senão palavras de sympathia e de animação para o
novo periodico ouro-pretano, ao qual desejamos sinceramente
toda a sorte de prosperidades.
“Quem trabalha reza”, diz um provérbio oriental, que não faz
mais do que synthetizar n’uma phare magnífica a grande e
fecunda lei imposta á humanidade pelo Supremo Legislador.
Seja, pois, o - Trabalho - não só o título mas também a divisa
effectiva dos moços que hasteão modestamente esse labaro
promissor nas officinas da imprensa.20

A ação das sociedades abolicionistas na antiga capital também foi mencionada pelo
mesmo José Pedro Xavier da Veiga em suas Efemérides mineiras?1 Veiga menciona as
“esplêndidas festas populares” realizadas no dia 25 de março de 1884, em Ouro Preto, em
comemoração à abolição na província do Ceará “promovidas pelas beneméritas associações
abolicionistas Visconde do Rio Branco e Libertadora Mineira”. Veiga descreve com detalhe
osjestejos:

Houve também, à noite, Sjo paço da Assembléia Provincial,


magnífico sarau musical-literário, sendo recitadas brilhantes
poesias e proferidos bélos discursos. Enorme concorrência
popular e entusiasmo da mocidade generosa deram à gesta, de
inolvidável alegria, o cunho da maior espontaneidade,

20. A Província de Minas. Ouro Preto, 04 jan 1883.


21. VEIGA, José Pedro Xavier da. Efemérides mineiras (1664-1897): índice onomástico. Belo Horizonte: Centro de
Estudos Históricos e Culturais da Fundação João Pinheiro, 1998.
O A BO LICIONISMO DAS M INAS

ativando muito a abençoada propaganda abolicionista (Veiga,


1998).

O farmacêutico Aurélio Egydio dos Santos Pires, na época um jovem estudante do


Liceu Mineiro, também testemunhou a festa organizada pelas sociedades abolicionistas por
ocasião da abolição cearense.22 Suas lembranças abundam em relação ao crescimento da
campanha abolicionista naquele ano de 1884. Em meio às aulas no Liceu Mineiro, onde Pires
teve contato com o escritor Bernardo Guimarães, o jovem estudante assistiu ao aumento da
organização dos clubes e a criação do jornal abolicionista^ Vela do Jangadeiro, fundado e
dirigido por seus professores Samuel Brandão e Affonso de Britto.
Impulsionadas pela libertação na província cearense, as sociedades abolicionistas da
capital conseguiram arregimentar um bom número de simpatizantes, muitos deles
professores e estudantes. Muitas de suas reuniões eram realizadas nas salas do Liceu Mineiro
ou na Escola de Minas.
O regozijo e as palavras de ordem dos abolicionistas na ocasião da emancipação
cearense foram registrados, segundo Pires, no A Vela do Jangadeiro, que espraiava as palavras
dos líderes como o repetidor e preparador de física e química da Escola de Minas, Leônidas
Damásio, que, naquele momento, profetizava o fim do “sistema nefasto”:

No dia de hoje, nós vivemos a pensar numa melhor organização


social, que nos obstinamos a olhar pra frente, pedindo mais luz
e mais liberdade para o Brasil, podemos realentar as nossas
crenças. A extinção total dos escravos brasileiros vem perto, e
aqueles que tem como ideal religioso a marcha progressiva da
humanidade feliz e livre, ajoelham-se ante a visão da pátria, que
surge mais pura e mais bela, para a geração que nos deve
suceder! (Pires, 1939: 83)

Pires segue apontando aqueles que seriam os principais líderes do abolicionismo


ouropretano:

Em tomo de Archias Medrado, que empunhava o lábaro da


nova crença, grupavam-se legionários da cruzada bendicta, tais
como Leônidas Damásio, Manoel Joaquim de Lemos,

22. PIRES, Aurélio. Homens e factos de meu tempo: 1862-1937. São Paulo, 1939.

231
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Antônio Olyntho, Eduardo Machado de Castro, Affonso de


Britto, Samuel Brandão, Joaquim Francisco de Paula, Josephino
Pires, Tibério Mineiro e tantos outros que constituíam a guarda
avançada desse luzido exército que se batia denotadamente pela
causa nobilíssima da abolição (Pires, 1939:61).

Entre os nomes elencados no “exército abolicionista”, estavam professores,


advogados e políticos de respeito daquela Ouro Preto de fins do século XIX. Um deles
merece nossa especial atenção, trata-se do primeiro governador republicano de Minas:
Antônio Olyntho, irmão mais velho de Aurélio e também seu companheiro na República das
Lages, uma moradia de estudantes. Antônio Olyntho dos Santos Pires assumiu o cargo
interinamente após a Proclamação da República, ocupando-o por apenas sete dias, de 17 a 24
de novembro de 1889.23 No caso, o vínculo familiar com um dos líderes do movimento
antiescravista e militante republicano funciona como mais um componente para a ativação da
memória de nosso confidente.
De acordo com Aurélio Pires, a agitação proporcionada pela atuação das sociedades
abolicionistas ganhou a pronta adesão dos estudantes da velha capital. Suas reminiscências
revelam como as idéias antiescravistas foram recebidas por ele e seus colegas, que não
titubeavam em abandonar os livros para se juntar aos abolicionistas, no caso, seus próprios
professores:

Quantas vezes, fechávamos, repentinamente e de estalo, nossos


livros de estudo, e íamos atroar as pacatas ruas ladeirantes e
frígidas da cidade anciã, com nossos berros de abolicionistas e
de republicanos imberbes, tanto mais sinceros quanto mais
inoffencivos, com os quaes suppunhamos abalar o mundo!
(Pires, 1939:68)

Pouco antes da Abolição, ámâa ocorreram outros fatos que mereceram a atenção de
Aurélio. No dia 30 de novembro dç 1887, por ocasião do jubileu sacerdotal do Cônego
Joaquim José de Sant’Arma, vigário de Ouro Preto, líder do Partido Liberal da cidade e
membro da Sociedade Abolicionista Ouropretana, teriam sido distribuídas pelo religioso
centenas de cartas de alforria em plena Praça da Independência (hoje Praça Tiradentes),
oferecidas por senhores de escravos em homenagem ao sacerdote.

23. Relatório apresentado pelo ex-governador Antônio Augusto de Lima ao Presidente do Estado de Minas
Gerais José Cesário de Faria Alvim, 15 jun 1891. Documento digitalizado, disponível no site da Chicago
University: www.crl.edu/content/brazil/mina.htm

232
O A BO LICIONISMO DAS M INAS

Tais manifestações públicas contra o regime escravista (mesmo revestidas de uma capa
elitista e ordeira, representada pela comportada “cúpula” abolicionista que assistia e
participava educadamente dos concertos musicais e quermesses anunciadas nos jornais da
cidade) provocaram reação oposta de alguns de seus companheiros mais afoitos e dos
principais interessados no fim do jugo escravista, os escravos.
De acordo com Pires, adentrando o ano de 1888, a “velha capital se transformou em
asilo de numerosos fugidos que desertavam das fazendas em busca de liberdade que lhes era
assegurada pelos irmãos brancos” (1939: 84). Ouro Preto teria se transformado no principal
destino dos cativos que fugiam do domínio de seus senhores. Chegando à capital, eram
acolhidos e ocultados pelos abolicionistas radicais, que dessa forma rompiam com a imagem
bem comportada das quermesses e desafiavam autoridades e escravocratas.
Um relato em um livro de tombo de uma freguesia da vizinha Mariana confirma o
fato de abolicionistas ouropretanos receberem escravos fugidos e, inclusive, em alguns casos,
terem negociado sua liberdade com os respectivos senhores. 24 O professor que produziu e
que, infelizmente, não assinou seus textos, relata as reações de cativos e senhores após várias
pessoas da freguesia terem libertado seus escravos em janeiro de 1888, por influência da
pastoral do então bispo diocesano Dom Antônio Maria Correa de Sá e Benevides, produzida
no fim do ano anterior. Na pastoral, Benevides pedia aos sacerdotes e fiéis que libertassem,
como ato de caridade e humanitarismo (além de representar um presente em honra ao jubileu
sacerdotal do Papa Leão XIII), ao menos parte dos cativos que ainda possuíssem.25
Convencidos pelas doces e humanitárias palavras do prelado, vários senhores da freguesia de
Furquim decidiram libertar todos seus escravos no dia do padroeiro da localidade, primeiro
de janeiro.26
Em meio à bela festa organizada, muitos dos convivas não foram agraciados com a
preciosa e tão sonhada liberdade. De acordo com o relato, a festa de entrega das cartas de
liberdade foi assistida por escravos de várias fazendas “de perto e de longe”. Seus senhores,
ausências notadas pelo relator, discordavam totalmente do ato e ainda temiam a possibilidade
de ocorrer um levante por parte dos cativos, já que a leitura da pastoral e a notícia da
libertação, que de fato ocorreu no dia do padroeiro, despertaram profunda ansiedade entre os
escravos. Indiferentes à ausência dos

24. Livro do Tombo, Furquim (1884-1901). Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Folha 19, verso.

25. BENEVIDES, Antônio Maria Corrêa de Sá e. Pastoral do Excelentíssimo e Reverendíssimo Sr. Dom Antônio
Maria Corrêa de Sá e Benevides, bispo de Mariana, sobre a extinção do elemento servil. Mariana: Joaquim Alves
(antigo Bom Ladrão), 1887.
26. Livro do Tombo, Furquim (1884-1901). Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.

233
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

fazendeiros escravocratas e à chuva que alagava as ruas do arraial, os furquinenses


marcharam em procissão pelas mas após o Te Deum, felicitando os senhores que tinham
libertado seus escravos, o que durou até às 10 horas da noite.
Mesmo ao cair da noite, muitos escravos permaneceram no arraial sendo
aconselhados por várias pessoas a voltarem para suas fazendas, o que só teria ocorrido no dia
seguinte. Na ocasião, a alegria da festa se transformou em dor para muitos desses escravos,
pois ao retomarem às suas senzalas foram recebidos a chicotadas pelos senhores. Reação
violenta e ilegal contra a escapulida dos escravos e contra o ato promovido em Furquim, uma
vez que os castigos físicos haviam sido proibidos em 1886.
Segundo o anônimo professor, escravos da fazenda do Engenho Novo retomaram ao
arraial no mesmo dia trazendo consigo um companheiro ferido pelo administrador da
fazenda, Simão da Costa Carvalho. Tal fato teria despertado indignação nas pessoas que, de
pronto, exigiram que se fizesse auto de corpo de delito, algo impossível no momento em que
o fato ocorrera, já que era noite, e tanto subdelegado de polícia quanto o seu suplente
residiam fora do arraial. Na ausência das autoridades policiais, as pessoas presentes apelaram
ao juiz de paz para que tomasse as devidas providências; no entanto, este recusou-se a fazê-lo
correndo para casa. Mesmo com o povo à sua porta pedindo justiça, a autoridade continuou
negando-se a agir. Então, a solução proposta pelos presentes foi a fuga.
No dia seguinte, mais precisamente às 10 da manhã, aconselhados por aqueles que os
acolheram, os cativos partiram para Ouro Preto a fim de encontrarem o auxílio dos
abolicionistas da capital, onde chegaram na noite desse mesmo dia. Segundo o documento,
após acolher os fugidos, os abolicionistas iniciaram uma negociação com o advogado dos
senhores dos escravos, o sr. José da Costa Carvalho Sampaio, a qual resultou na liberdade dos
mesmos com o ônus de serviço por dois anos.
O aumento das fugas para a capital passou a preocupar inclusive alguns líderes
abolicionistas. Atitude tida por alguns como irresponsável, o acoitamento de fugidos parece
ter alcançado proporções consideráveis na reta final do processo de abolição em Ouro Preto.
Uma declaração estampada no jornal Liberal Mineiro, órgão do Partido Liberal, dá uma boa
amostra de como os nervos de alguns estremeciam com essa situação: ^

Devemos como órgão de um partido sério na província e


insuspeito à causa do abolicionismo, que nos tem merecido todos
os extremos, desmascarar, para inutilisal-a, a calunnia, adrede
assoalhada, de que cabe-nos responsabilidade por esse êxodo de
trabalhadores servis que tem procurado a capital como refugio
para sua sorte miseranda.
T O A BO LICIONISMO DAS M INAS

A attitude franca e positiva que desde muito assumimos nesta


questão, agitando-a em bem dos escravos e dos senhores, que
não devião ser colhidos de sorpreza pelos acontecimentos
mathematicamente previstos, nos dá autoridade e insuspeição
para dizermos que não vemos sem desgosto e apprehensões a
agglomeração, na capital, de elementos que lhe podem pertubar
a segurança e a tranqüilidade, sem que nem a idea abolicionista
e nem os míseros, de cuja sorte tanto nos condoenmos, colhão do
facto o mínimo proveito.27

Mesmo os membros do Partido Liberal (que diziam apoiar a causa abolicionista


através de seu órgão de imprensa, e que, inclusive, possuíam entre seus correligionários
líderes das sociedades abolicionistas locais, como o já citado Cônego Sant’Anna) alertavam
sobre o perigo e o prejuízo que os fugidos representariam para a sociedade, mesmo sendo um
fato previsto “matematicamente”. Por sua vez, os escravos não se dirigiriam para Ouro Preto
sem esperar por lá algum tipo de auxílio, no caso de pessoas que tinham uma concepção bem
diferente da “idea abolicionista” a que se referiram os editores do jornal.
Se na capital a ação abolicionista, comportada ou não, era notória e tinha seu espaço
no seio de sua sociedade, em Juiz de Fora o panorama é completamente diverso.
Ao contrário do que ocorria em Ouro Preto, onde os clubes abolicionistas divulgavam
abertamente seus passos, ou pelo menos boa parte deles, nos vários jornais existentes na
capital, ou mesmo naqueles fundados pelas próprias entidades abolicionistas, a imprensa
juizforana da época se caracteriza pela ausência desse tipo de ação informativa. Até o
presente momento não foi constatada a presença de grupos abolicionistas organizados na
“Manchester Mineira”, contrariando a afirmação de Oiliam José de que Juiz de Fora, assim
como a capital, seria um reduto abolicionista.
Apesar de possuir condições teoricamente favoráveis para o surgimento de uma
mentalidade abolicionista, como o dinamismo econômico que possibilitou o desenvolvimento
urbano e o florescimento de profissões liberais, Juiz de Fora não parece ter assistido ao
surgimento de uma camada menos comprometida com a escravidão como sugeriu Emília
Viotti ao se referir à classe média urbana que se desenvolvia no Brasil ao longo segunda
metade do século XIX.

27. Liberal Mineiro, Ouro Preto, 03 mar 1888. Hemeroteca Pública do Estado de Minas Gerais.

235
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Assim como Oiliam José, Thiago Bueno Pereira também atribui a Juiz de Fora o
título de “palco privilegiado de muitos dos embates relativos à ‘questão servil”’. 28 O autor se
vale do fato da cidade ter sido um grande centro econômico para afirmar (corroborando a
idéia de Viotti) que para ali teriam convergido um grande fluxo de idéias abolicionistas
(Pereira, 2005: 5). Entretanto, o autor esbarra na falta de comprovação empírica para tal
afirmação. Assim como em outros pontos do Império, os jornais juizforanos de fato
estamparam artigos sobre a questão servil; contudo, não noticiaram nenhum tipo de atividade
abolicionista na cidade.

Derroquemos os fracos alicerces da escravidão, ao estrangeiro


estreitamos o amplexo de irmãos, nacionalizando-os, recebamos
ativos e jubilosos as grossas correntes de imigração e o advento
da liberdade em breve echoará no grande concerto da livre
América.29

Às portas da Abolição, o articulista saudava alegremente os “irmãos” imigrantes,


enquanto se despedia dos bárbaros negros que, ao que parece, não fariam parte do “grande
concerto da livre América”. Era necessário pensar na manutenção da mão- de-obra nas
fazendas já que o país estava

atravessando período difícil de transformação rápida do


trabalho, e de reorganização econômica. (...) A lavoura
tradicional deve ter-se convencido de que estão contados os dias
da escravidão, limitada fatalmente pela lei ao século atual.30

Diante deste quadro desafiador, muitos fazendeiros batiam na tecla de que a melhor
solução seria “manter o princípio geral da lei de 28 de setembro de 1871”,31 justamente

\
aquela que limitaria a escjgvidão ao século XIX. Segundo Ana Lúcia Duarte Lanna, enquanto
os cafeicultoresMe São Paulo, notadamente os do Oeste paulista,
28. PEREIRA, Thiago Bueno. Abolicionismo oá\ Juiz de Fora (MG, 1870/1888). Anais do XXIIISimpósio
Nacional de História. ANPUH. Londrina: Editorial Mídia, 2005. (Disponível em http://
www.anpuh.uepg.br/xxiii-simposio/anais/textos/THIAGO%20BUENO%20PEREIRA.pdf).
29. A Propaganda, 16jun 1887. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/ MQ
apud Pereira (2005: 5).
30. O Pharol, 17 nov 1886. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/MQ apud
Pereira (2005: 7).
31. Primeira consideração feita pelos fazendeiros quando da fundação do Clube da Lavoura da cidade de Juiz de
Fora. O Pharol, 12 jan 1881. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/MG

236

.
O A BO LICIONISMO DAS M INAS

insistiam em um projeto de substituição da mão-de-obra escrava pelos imigrantes europeus,


os “lavradores” de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro ainda apostavam na
vigência da Lei do Ventre Livre, promulgada em 1871, que, além da libertação dos
nascituros, garantia uma transição gradual da escravidão para a o trabalho livre sem ferir a
ordem pública e o Estado, além de livrar os proprietários de maiores prejuízos através do
pagamento de indenizações.32
A despeito da calorosa saudação feita aos imigrantes nas páginas do A Propaganda, a
mão-de-obra escrava continuou sendo a principal forma de trabalho utilizada nas fazendas de
café da região até a Abolição.33 Recebidos ou não com o “amplexo de irmãos”, os imigrantes
não se constituíram como principal mão-de-obra na região, sendo que a utilização de
italianos e alemães foi voltada principalmente para as atividades urbanas e industriais da
cidade de Juiz de Fora (Giroletti, 1988). O problema da mão-de-obra foi resolvido com o
trabalhador local, como indicou Ana Lúcia Lanna(1988).
Contudo, se até agora não foi possível observar a ação abolicionista em Juiz de Fora,
o medo de seu avanço por parte dos fazendeiros da região é algo impressionante. Em reunião
no ano de 1881, o Clube da Lavoura, através de seu presidente, deixava clara a preocupação
de seus companheiros com o avanço daquele movimento “irresponsável”:

Disse S.S que nesta época, em que alguns espíritos precipitados,


aventam questões que podem perturbar a ordem pública,
promovendo a desorganização do trabalho, e principalmente do
trabalho agrícola, não era de estranhar que a distinta classe de
lavradores, prevendo o perigo, se congregasse para o
conseguimento de medidas que tenham por fim salvaguardar os
seus interesses.

Esses interesses, garantidos pela lei, são tão importantes, que não afetam somente os
lavradores, mas compreendem em vasta esfera quase toda a fortuna pública e particular. 34

32. LANNA, Ana Lúcia Duarte. A transformação do trabalho: a passagem para o trabalho livre na Zona da Mata
mineira (1870-1920). Campinas: Editora da Unicamp, 1988, pp. 54-6.
33. SARAIVA, Luiz Fernando. Estrutura de terras e transição do trabalho em um grande centro cafeeiro (Juiz de
Fora, 1870-1900). X Seminário sobre a Economia Mineira. Diamantina, 2002, p. 6. Disponível em
http://www.cedeplar.ufrng.br/seminarios/diamantina_2002.php.
34. OPharol, 13 jan 1881. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/MG

237
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

A imagem fantasmagórica daqueles “espíritos precipitados” colocava em xeque os


interesses particulares desses “lavradores”. Interesses particulares que, muitas vezes,
acabavam confundidos com os interesses públicos em virtude da influência que os grandes
proprietários exerciam sobre a política local.35 A própria Câmara Municipal de Juiz de Fora
armou guarda em defesa dos interesses agrícolas, como podemos notar no trecho a seguir:

A Câmara Municipal da cidade de Juiz de Fora, como


intérprete fiel dos sentimentos e interesses de seus munícipes,
resolveu unanimemente, em sessão do três do corrente mês, por
indicação de um de seus membros, representar ao senado e à
Câmara dos senhores deputados, no intuito de solicitar
providências e medidas que façam cessar o estado anormal de
coisas criado pelo movimento abolicionista, o qual, pela atitude
assumida, constituiu-se elemento de desordem e fontes de
atentados contra a propriedade servil, reconhecida e garantida
pela legislação do país; pondo em perigo constante a segurança
pessoal dos proprietários de escravos, principalmente
lavradores, promovendo intempestivamente a desorganização
do trabalho, em condições já muito precárias; e desconhecendo
que o problema da emancipação depende de medidas complexas
e de máxima prudência.36

A ausência de indícios da organização de grupos abolicionistas na cidade leva- nos a


crer que os senhores vereadores poderiam estar se referindo não ao movimento local, mas
sim às agitações de outros pontos do Império, como a Corte ou mesmo a capital da província.
Contudo, isso não significa dizer que não tenha existido alguma agitação de motivação
abolicionisfàçm Juiz de Fora, mesmo que por “debaixo dos panos”. Pelo contrário, podemos
inferir através do grande temor dos escravocratas que a possibilidade de qualquer ação
abc^icionista na região era interpretada como a fonte de uma possível deterioração de seu
domínio sobre os cativos.

35. Rômulo Andrade (1991: 111) identificou a presença dos grandes proprietários entre os cidadãos votados nas
eleições da Câmara Municipal de Juiz de Fora em 1860. Ao adentrarem a vida pública, os cafeicultores
escravocratas garantiam uma ampla base de sustentação ao escravismo e às suas atividades econômicas.

36. O Pharol, 08 maio 1884. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/ MG

238
O A BO LICIONISMO DAS M INAS

Levando em conta que a região de Juiz de Fora foi a que mais recebeu mão-de- obra
escrava nas décadas de 1870 e 1880 em Minas, ou seja, seus plantéis eram relativamente
novos, qualquer agitação nas senzalas poderia levar aqueles escravos a organizarem fugas ou
mesmo violentos motins.37 Além disso, os exemplos abundavam em outras regiões, muitas
vezes com participação abolicionista, como no interior paulista, o que certamente aumentava
a tensão entre os fazendeiros.

PISTAS PARA FUTURAS CONCLUSÕES

Muito longe de ser um quadro pronto e bem acabado, este texto representa apenas um
esboço do que o aprofundamento das pesquisas sobre a Abolição em terras mineiras ainda
poderão revelar. No entanto, este pequeno esboço nos apresenta pistas para que possamos
entender melhor um período tão importante da história e como as diferentes realidades
regionais construíram processos históricos igualmente diversos, longe das generalizações
muitas vezes apresentadas pela historiografia.
Com uma economia menos dependente da mão-de-obra cativa e sendo ainda o
principal palco da política provincial, Ouro Preto assistiu à livre organização do movimento
abolicionista na década de 1880. Movimento que, na reta final em direção à Abolição, parece
ter visto várias de suas alas abandonarem os bem comportados salões e migrarem para o
contato direto com os cativos. Esta mudança, que somente o aprofundamento das pesquisas
poderá detalhar, parece ter sido fundamental para que a antiga capital se transformasse em
um refugio para os escravos fugidos da região.
Já aquela que viria a ser chamada de “Manchester Mineira”, uma alusão a seu
desenvolvimento industrial na virada do século XIX para o XX, Juiz de Fora assistiu à
organização dos grandes fazendeiros escravistas que temiam a ação abolicionista.
Contrariando algumas afirmações feitas por parte da historiografia de que os centros urbanos
mais desenvolvidos propiciariam as condições ideais para o florescimento do movimento
abolicionista, em Juiz de Fora a organização defensiva dos escravocratas parece ter
conseguido fazer com que os apelos abolicionistas locais silenciassem, pelo menos nos
veículos de imprensa da cidade. O temor da invasão de uma “onda branca” que trouxesse
consigo outra “negra”, tirou o sono dos fazendeiros escravistas. Estes tentaram
obstinadamente construir obstáculos para os “irresponsáveis” que se espalhavam pelo
Império naquela época e queriam o fim imediato da escravidão. Como já sabemos, eles não
conseguiram.

37. Sobre tráfico de escravos para Juiz de Fora, ver: MACHADO, Cláudio Heleno. Tráfico interno e
concentração de população escrava no principal município cafeeiro da Zona da Mata de Minas Gerais (Juiz
de Fora, segunda metade do século XDC). X Seminário sobre a Economia Mineira. Diamantina, 2002.
http://www.cedeplar.ufing.br/seminarios/diamantina_2002.php

239
SERVIR “DE PORTAS A DENTRO”: PENSANDO
RECIFE E SALVADOR NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX

Maciel Henrique Silva1

Recife e Salvador constituem importantes centros comerciais no Brasil do século


XIX, sobretudo a partir de 1808 sob o influxo da Abertura dos Portos. Cidades portuárias e
escravistas eram núcleos populacionais de considerável contingente de escravos e
descendentes. Mulheres escravas, forras e livres pobres, fossem negras, pardas ou brancas,
eram engajadas nos serviços domésticos em diferentes condições e circunstâncias.
Governantas, amas de criação, amas de leite, cozinheiras, copeiras, mucamas, lavadeiras e
engomadeiras, essas mulheres viviam submetidas às relações de subordinação e dependência
intensificadas no contexto da escravidão brasileira. Seus serviços eram genericamente
definidos como “de portas a dentro”, o que implicava um grau de proximidade e intimidade
com patrões e patroas, senhores e senhoras, que marcava seu cotidiano. Esse texto se propõe
a discutir os significados dos serviços domésticos para criadas e seus empregadores no
contexto da sociedade escravista, tomando Recife e Salvador como objeto de análise.

CONTEXTO HISTÓRICO E CENÁRIO URBANO

1808 é um ano axial quando o tema é a dinâmica urbana das cidades portuárias
brasileiras. A Abertura dos Portos, com a conseqüente integração do Brasil nas correntes
internacionais de comércio, favoreceu a expansão urbana de Recife e Salvador. Cidades
mercantis, elas saberão se beneficiar da hegemonia regional que exerciam, mantendo

1. Centro Federal de Educação Tecnológica de Pernambuco (Cefetpe). Mestre em História pela UFPE.
Pesquisador do Grupo de Estudos História Sociocultural da América Latina (Gehscal).
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

em sua órbita cidades e províncias vizinhas, e recebendo o fluxo imigratório de suas


hinterlândias: a Zona da Mata pernambucana e o Recôncavo baiano. Enquanto a praça
comercial recifense exercia a função de entreposto comercial para a mata e o agreste
pernambucanos, para as chamadas “capitanias anexas” de outrora e para o Ceará e Alagoas a
praça soteropolitana era o entreposto de toda a Bahia, do Sergipe, do sertão são-franciscano e
mesmo da margem pernambucana do rio São Francisco. 2 Constituíam portas de entrada de
produtos estrangeiros que eram reexportados para essas regiões. Muitos habitantes das
hinterlândias migraram para as dinâmicas Recife e Salvador no período imperial.
Entretanto, essa condição econômica privilegiada, ao menos no nível regional, não
esconde fraquezas crônicas que são afetadas por problemas externos e internos ao longo do
século XIX. Problemas não satisfatoriamente resolvidos pelo governo imperial, como a
modernização dos portos de ambas as cidades, a questão dos transportes e do crédito à grande
lavoura, por exemplo, debilitavam as economias das duas maiores províncias nortistas, o que,
associado à espoliação fiscal em favorecimento do Sul, gerava descontentamentos mal
dissimulados pela elite nortista.3
O abastecimento urbano, ao menos para Salvador, também surgia como um sério
problema. As precárias condições de transporte, aliadas às instáveis condições climáticas e
pedológicas do Recôncavo, dificultavam o abastecimento da “gulosa” cidade de Salvador e
das zonas litorâneas de povoamento denso. Mais populosa do que o Recife, a capital baiana
parece sofrer mais. Mas o Recife, apesar dos inúmeros sítios e chácaras dos arredores,
também não passou imune ao problema. As secas periódicas que assolavam o sertão
interferiam na oferta de gêneros de primeira necessidade, como farinha de mandioca, feijão e
toucinho, e deviam influir no aumento dos preços.4
Apesar das dificuldades apontadas acima, ambas as cidades continuaram a exercer
forte atração populacional em todo o século XIX, recebendo inúmeras pessoas que, saídas de
lugares pouco dinâmicos, julgavam encontrar nesses núcleos urbanos meios de ganhar a vida.
TodaviáfSalvador e Recife, durante muito tempo ainda, não comportariam atividades
industriais dç vulto, e é muito provável que o mercado de
7

2. Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte agrário e o Império (1871-1889). 2a ed., Rio de Janeiro: Topbooks,
1999, pp. 220-1.
3. Cf. Mello (1999). Ver ainda: MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade de Salvador e seu mercado no
século XIX. São Paulo/Salvador: Hucitec/Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978.

4. Cf. Mattoso (1978:58-9). Para o encarecimento dos gêneros básicos em Pernambuco, ver: EISENBERG, Peter
L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de Janeiro/Campinas: Paz
e Terra/Editora da Unicamp, 1977, p. 176.

242

-
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”

trabalho, ao menos para as pessoas pobres e de cor, se mantivesse relativamente restrito ao


artesanato doméstico e às atividades do pequeno comércio ambulante. A urbe soteropolitana,
como aponta Kátia Mattoso (1978: 280-90), empregava trabalhadores livres e escravos nas
atividades de construção civil e naval, e particularmente no setor comercial. O Recife não é
muito diferente. A zona portuária congregava muitos trabalhadores no bairro denominado
Recife Antigo, mas a maior parte da mão-de-obra escrava e livre trabalhava mesmo nos
serviços domésticos e no pequeno comércio: vendedores e vendedoras ambulantes, caixeiros,
lojistas, tabemeiros, mascates, boceteiras. É claro que a diversidade socioprofissional é uma
realidade, e inúmeros prestadores de serviços trabalham em obras esporádicas, como
pedreiros, carapinas, oleiros etc., havendo ainda o crescimento, em todo o século XIX, do
aparato burocrático, incitando o gosto pelas sinecuras. O Recife, entretanto, tem um
personagem peculiar em sua paisagem: o canoeiro, que pelo menos até a primeira metade do
século XIX era figura onipresente.5 Logo se vê que, ao menos do ponto de vista de muitas
pessoas originárias de cidades em decadência, ou de vida socioeconômica apática, ou
deserdados do meio rural, Recife e Salvador ofereciam perspectivas muito mais amplas do
que jamais tinham visto.
O resultado se exprime em números que, embora contestáveis, fornecem um quadro
verossímil: Salvador, que tinha 45.600 habitantes em 1805, aparece em 1872 com uma
população de 108.138 habitantes, e em 1890 com 144.959 habitantes, e se adicionarmos a
população dos Termos, os dados saltam para 173.879 habitantes; o Recife, por sua vez,
passaria de 29.211 habitantes em 1828 para 117.948 em 1873. 6 Conquanto o olhar dos
viajantes quase sempre tenda a superestimar a quantidade de pessoas da capital baiana, a
população de meados do século a 1872 foi estimada entre 140 mil e 185 mil habitantes. Ao
menos para os impressionados olhos dos estrangeiros, Salvador é considerada uma “grande
cidade marítima” (Mattoso, 1978: 132-3). Distorções à parte, é plausível crer na pujança
soteropolitana.
Salvador também tem mais escravos do que o Recife, e sua população é
majoritariamente negra e mestiça, o que também impressiona os olhos, os ouvidos e os
narizes dos estrangeiros que visitam a cidade. O Recife vê sua população escrava se
estabilizar até os estertores do regime. Se considerarmos apenas as quatro freguesias

5. Para essa rápida descrição do quadro socioprofissional do Recife, ver: CARVALHO, Marcus J. M. de.
Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife (1822-1850). Recife: Editora da UFPE, 1998, especialmente
a parte 1; e SILVA, Maciel Henrique. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e representações de vendeiras e criadas
no Recife do século XIX (1840-1870). Recife: UFPE/Programa de Pós-Graduação em História, Dissertação de
Mestrado, 2004.
6. Os dados estão em Mattoso (1978: 138-41) e Silva (2004: 51-6). Um paralelo entre as duas cidades fica mais
coerente quando se soma a população das chamadas “freguesias da cidade” com as “freguesias do termo”,
zonas mais afastadas da região mais urbanizada, mas nem por isso pouco povoada.

243
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

centrais (Recife ou São Frei Pedro Gonçalves, Santo Antônio, São José e Boa Vista), os
cativos somavam quase sempre algo em tomo de sete a oito mil. Ao menos as contagens de
1828 e 1856, bem como os dados publicados no Diário de Pernambuco, em 1873, ficam
nessa margem.7 A composição racial recifense carece de dados mais específicos.
Infelizmente poucos pernambucanos foram tão precisos e detalhistas quanto Figueira de
Mello que, em 1852, escreveu o Ensaio sobre a estatística civil e política da província de
Pernatnbuco, mas ainda assim seus dados sobre cor são gerais para toda a província. 8 De
todo modo, é razoável supor, pelas reações dos cronistas que visitaram Pernambuco, que o
número de negros e mestiços em geral fosse relativamente grande. Tollenare, em 1817,
chegou a dizer que “o número dos negros livres e dos mulatos é aqui muito considerável”;
todavia, quando esteve em Salvador e adentrou a igreja que se situava em frente a sua
residência, estimou que nela estivessem “dez ou doze pessoas negras para cada branca”.9
Dados qualitativos, mas significativos da superioridade numérica de negros e pardos frente
aos brancos na capital baiana. Bert Barickman, em grande estudo sobre a economia do
Recôncavo, aponta que nos séculos XVIII e XIX apenas uma minoria da população era
branca, enquanto a grande maioria da população “era formada por africanos, pretos nascidos
no Brasil e ‘pardos’, ‘mulatos’ e ‘cabras’”.10
Quanto à estrutura social, Salvador e Recife oitocentistas já estão bem distantes da
dicotômica divisão senhor/escravo, normalmente associada às regiões deplantations
escravistas produtoras de gêneros para exportação. Apesar da aparente imobilidade e
ausência de hierarquias no meio rural, essa estrutura social é mais complexa do que a binária
relação senhor/escravo, e uma vasta bibliografia já provou isso. A questão nodal suscitada
por Kátia Mattoso, e que pode ser pensada para o Recife, é: esse modelo de estratificação
social rural influenciou as relações sociais no meio urbano, ou a sociedade constituída no
meio urbano é autônoma e de características peculiares? O esforço a ser empregado para
oferecer uma resposta satisfatória ultrapassa os limites desse texto, mas se pode pensar como
Kátia Mattoso, que sugeriu uma hipótese plausível: o Brasil escravocrata érüral transfere para
a cidade “o esquema de relações sociais de tipo subordinativo”, particíüarmente o das
“relações do tipo patriarcal”;

7. Ver dados em Carvalho (1998) e Silva (2004).


8. MELLO, Jerônymo Martiniano Figueira de. Ensaio sobre a estatística civil e política da província de
Pernambuco. Recife: Typografia de M. F. de Faria, 1852. Consultar reedição do Conselho Estadual de
Cultura, 1979.
9. Cf. TOLLENARE, L. F. de. Notas dominicais. Recife: Governo do Estado de Pernambuco, 1978, p. 113 e p.
223.
10. Cf. BARICKMAN, B. J. Um contraponto baiano: açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo (1780-
1860). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 45.

244
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”

todavia, a cidade brasileira oitocentista vê emergir uma sociedade “mais aberta”, com uma
variada gama de categorias sociais intermediárias, em grande parte compostas por pessoas
mestiças (Mattoso, 1978: 151-69).
Levando-se essa idéia adiante, pode-se sugerir que os diferentes grupos sociais das
cidades aqui consideradas ainda se pautavam no Oitocentos por valores inter- relacionados
como família, honra, diferenças raciais e de gênero, e, obviamente, a escravidão. Valores
esses temperados por uma dinâmica social própria do meio urbano oitocentista: novos tipos
de sociabilidades, profissões, maior autonomia espacial, acesso menos restrito à moeda,
maior contato entre os grupos sociais, etc.
Soteropolitanos e recifenses oitocentistas de variada condição social, como
funcionários públicos de diversos escalões, profissionais liberais (médicos, professores),
grandes proprietários de terra, ricos comerciantes de grosso trato, militares, membros do
clero secular e regular, médios proprietários urbanos (donos de casas de pasto, tabernas,
lojas), homens e mulheres de profissões não definidas continuam a utilizar a mão-de-obra
escrava, seja para sobrevivência econômica (alugando-os ou pondo-os a ganho) ou para
executar a inúmera gama de serviços pessoais: dar recados, fazer compras nos mercados
públicos, cozinhar, lavar roupas e demais atividades domésticas. Para as famílias ricas, uma
criadagem numerosa serve como sinal de elevado status; para as famílias menos abonadas,
uma ou duas criadas no máximo livravam seus senhores e patrões de todo o trabalho manual.
Tollenare, que habitou Recife e Salvador na segunda década do século XIX, foi enfático:
“uma casa decente” precisava de dez ou doze cativos para os serviços domésticos (Carvalho,
1998: 63; Tollenare, 1978: 201). Não havia, seja na Bahia ou em Pernambuco, tantas famílias
abastadas a esse ponto. E o que as mulheres cativas, pardas, negras livres, brancas pobres,
que serviam nesse cenário social, pensavam acerca de seu trabalho? Abaixo, segue a
discussão.

SERVIR DE “PORTAS A DENTRO” NO RECIFE E EM


SALVADOR
Para começo dessa história, não há muita razão para se pensar que as condições de
trabalho da criadagem doméstica, as relações hierárquicas, os padrões de tratamento, os
significados da escravidão doméstica fossem muito diferentes entre Salvador e Recife. Com
estruturas sociais semelhantes, é razoável admitir que os grupos médios e a elite de ambos os
lugares adotassem práticas sociais ancoradas em valores culturais comuns. As criadas, por
sua vez, adotam táticas similares que lhes permitem sobreviver às agruras do serviço.
Escravas, libertas e livres pobres tinham de negociar com patrões e senhores (de
ambos os sexos) exigentes. Regra geral, as expectativas senhoriais se assentavam

245
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

na fidelidade, nos bons costumes, na honra e na capacidade de exercer o ofício (força física e
habilidades). As mulheres relativamente idosas, para recifenses e soteropolitanos, eram
preferíveis às criadas jovens. Ainda na década de 1930, os baianos esposavam nítida
preferência por “senhoras de meia idade”. Segundo Alberto Heráclito Ferreira Filho, além da
experiência comprovada, essas mulheres já estariam “aquietadas das extravagâncias
mundanas”, evitando assim eventuais dissabores como uma gravidez indesejada.11
Também no Recife do século XIX, o padrão se repete: normalmente, na busca de
criadas honestas, os anunciantes acrescentavam que elas deveriam ser de meia idade, ou de
“maior idade”, pois se supunha que estas mulheres cuja vida sexual e reprodutiva já havia
passado, não trariam problemas com “seduções”, namoros ou casos de gravidez. Nota-se
mesmo uma busca efetiva por mulheres idosas para fazer companhia a pessoas solitárias,
companheiras essas que poderiam ser já viúvas, como o próprio solitário. Idade elevada, para
muitos daqueles que buscavam criadas pelos jornais, era sinônimo de maior estabilidade e
segurança, além dos aspectos específicos da experiência no ofício. Era uma “mulher de maior
idade, de honesta conduta” que um funcionário desejava para tratar de crianças e “governar”
uma casa de família. E ela ainda teria de dar “abono a sua conduta”. Esse perfil se mantém,
com menor ou maior ênfase, de 1840 a 1870. 12 Só mais um exemplo: em 1853, um
anunciante precisava de uma ama para o “serviço diário de uma casa de pouca família”, e
dava “preferência a uma de maior idade e assento”.13
Seja no Recife ou em Salvador, os significados dos serviços domésticos para
inúmeras criadas livres e forras estavam associados à falta de outras oportunidades de
trabalho, à necessidade de proteção e segurança, e à busca de “bom tratamento”. Nem sempre
monetarizada, a relação entre patrões e criadas muitas vezes se restringia a permutar proteção
por obediência, como bem apontou Sandra Graham em importante estudo sobre o tema.14
Nos espaços sociais aqui considerados, a miséria, a orfandade, quando associadas à
fragilidadejda adolescência ou da velhice, entre outros fatores, impunham às mulheres livres
e libertas (fossem brancas, negras ou mestiças) a

11. FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Ouem pariu e bateu, que balance! Mundos femininos, maternidade e
pobreza (Salvador, 1890-1940). Salvador: CEB, 2003, p. 52.
12. Diário de Pernambuco {DP), 27 mar 1860, Laboratório de Pesquisa e Ensino de História da UFPE (LAPEH).

13. DP, 09 mar 1853, LAPEH. Um dos significados da palavra assento é “propósito, prudência, do homem sisudo,
pacato, “homem de assento”, considerado, ponderado, constante no que concorda, e resolve. (...)”. Cf.
MORAES SILVA, Antonio de. Dicionário da língua portuguesa. 4a ed., tomo 1. Lisboa: Impressão Régia,
1831, p. 198. Uma mulher idosa seria, portanto, portadora de maior ponderação, e cumpriria os acordos que
fossem realizados entre as partes.
14. Cf. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910).
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

246
T S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”

necessidade de adentrar os lares de famílias abastadas e remediadas quase na condição de


escravas da casa. Até mesmo mulheres que se apresentavam como “senhoras” solteiras -
provavelmente brancas pobres ou empobrecidas - não tinham outra opção a não ser se
oferecer para prestar serviços “de portas a dentro”. O Diário de Pernambuco, nos anos 1845 e
1856, veiculou os anúncios abaixo:

Uma senhora de bons costumes, maior de 50 anos, que sabe


coser chão, bordar, fazer lavarinto, ler, escrever, fazer pão-de-
ló, bolos, pudins, pastéis, massas de todas as qualidades; se
oferece para ensinar essas habilidades nesta praça, ou para
servir de companhia em alguma casa de família, dando-lhe
somente o sustento e algum vestuário em paga de seu trabalho;
quem de seu préstimo se quiser utilizar, dirija-se a rua do
Caldeireiro n. 88. (DP, 16 abr 1845).
Oferece-se uma senhora solteira que não tem pai nem mãe para
servir de companhia a uma senhora viúva que não tenha filhas,
e prestando-lhe algum serviço não por dinheiro, e nem precisa
dar-lhe de vestir: quem quiser anuncie sua morada.
(DP, 14 mar 1856).

A primeira mulher pode mesmo ser considerada idosa para os padrões da época, e
presume-se que seja branca e livre. Entretanto, provavelmente vivendo na solidão e na
pobreza, ela precisa recorrer ao trabalho doméstico: primeiro apela para ensinar prendas
domésticas, ler e escrever, mas depois admite que aceita servir como ama de companhia em
alguma casa de família, tendo apenas o teto, a comida e algum vestuário como pagamento. Já
a segunda, ao contrário, parece ser jovem e, tendo caído na orfandade, precisa de algo que se
assemelhe a um lar: oferece serviços praticamente gratuitos para alguma viúva que a
aceitasse. Esta “senhora solteira”, mesmo estando necessitada, julgava-se digna o suficiente
para recusar dinheiro e roupas. Do antigo status, ela só possuía o vestuário. Desprotegida,
talvez vivendo sozinha, ela precisava da proteção de uma senhora “honesta” que lhe
trouxesse respeitabilidade e inviolabilidade da honra, e uma viúva parecia ser uma boa
opção, pois além do mais não precisaria trabalhar muito. Uma “senhora” jovem, nessas
condições, não cogitaria servir em uma casa de grande família, ou muito menos realizar
serviços chamados “de portas a fora”, como vendedora de aluguel. O ideal seria viver sob a
proteção de alguma pessoa solitária.15

15. Maria Odila da Silva Dias, quando enfatiza o empobrecimento a que estavam sujeitas muitas mulheres na
cidade de São Paulo no século XIX, pode estar bem próxima da verdade. Pelo menos, esse

247
I
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Famílias paupérrimas da Bahia e Pernambuco, que não podiam sustentar uma prole
numerosa, entregavam filhas ainda adolescentes para ficar sob os “cuidados” de famílias dos
extratos baixo, médio e de elite da sociedade, para aprenderem a servir de “portas a dentro”.
Em Salvador, essas meninas se chamavam “Catarinas”, e, como se considerava um favor
retirá-las da casa de seus pais, não recebiam remuneração pecuniária. Entregues assim sob a
tutela de outra família, podiam ser castigadas e deviam permanecer no interior das casas de
seus amos, onde podiam aprender rudimentos de escrita. Mas o aprendizado maior era
mesmo disciplina, obediência e o trabalho manual. Servas agregadas, as Catarinas estavam
abaixo do status da doméstica propriamente dita.16
No Recife, particularmente entre 1840 e 1870, não encontramos referências explícitas
às Catarinas no Diário de Pernambuco e demais registros consultados, mas a prática de
ensinar meninas era imensamente difundida. Uma senhora boa engomadeira e costureira
poderia ensinar esses ofício a escravas, com o acréscimo de ensinar a bordar roupas com
letras {DP, 10 mar 1842); mesmo uma crioula forra poderia se propor “a ensinar a coser a
pequenas pardas e pretas, por módico preço” {DP, 07 mar 1849); uma mulher que não
declarou sua condição recebia em sua casa meninas forras ou escravas para ensinar a ler,
escrever, bordar, marcar de linha e seda, lavarinto e costura {DP, 24 mar 1847).
As sociedades baiana e pernambucana também tinham instituições que socializavam
as meninas desde cedo para cumprirem circunscritos papéis sociais, raciais e de gênero. No
Recife, a Roda dos Enjeitados; na Bahia, a Santa Casa de Misericórdia. Uma e outra
recebiam crianças abandonadas pelos pais, genericamente nomeadas de “expostos”, e
aquelas que sobrevivessem às precárias condições de criação desses estabelecimentos
ficavam à disposição dos empregadores. As mulheres estavam destinados os contratos de
serviços domésticos, e isso se tivessem sorte. Pelo menos no Recife da década de 1840, os
patrões preferiam escravas a contratarem mulheres livres originárias da Casajdos Expostos. 17
Estando a escravidão doméstica

empobrecimento de senhoras brancas se dá também no Recife da mesma época. Cf. DIAS, Maria Odila da
Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX - Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.
22. E sobre o “mito da branca ociosa”, ver: NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Mulheres brancas no fim do
período colonial. Cadernos Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, Campinas, n. 4, 1995, pp. 75-
96.
16. Para as Catarinas em Salvador, ver: Ferreira Filho (2003: 55-6); e ainda SANCHES, Maria Aparecida
Prazeres. Fogões, pratos e panelas: poderest práticas e relações de trabalho doméstico. Salvador (1900-1950).
Salvador: UFBA, Dissertação de Mestrado, 1998, pp. 84-5. Trabalho orientado pela Prof. Dra. Maria Inês
Côrtes de Oliveira.
17. Sobre a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, ver: Sanches (1998: 62-3). Sobre a Casa dos Expostos
instalada no Recife, ver: Silva (2004: 208-9).

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S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”

ainda solidamente assentada na primeira metade do século XIX, as meninas enjeitadas desde
a infância podiam, quando adultas, ser vítima de nova rejeição: eventuais empregadores
ainda preferiam as escravas ou quiçá governantas estrangeiras em seus lares, mas não
admitiam assalariar criadas saídas da Casa, suspeitas de vícios aos olhos das “pessoas de
família”. Em 1842, o presidente da província de Pernambuco se queixava da permanência de
expostos adultos na instituição por não encontrarem colocação no mercado de trabalho:

(...) sem ocupação por falta de um Colégio próprio, ou de


pessoas capazes, que as queiram por contrato, receando que
nenhum serviço elas prestem, vista a repugnância que as
pessoas livres de nossa terra ainda têm para o serviço
doméstico por contrato.18

Para patrões baianos e pernambucanos, as estratégias de controle e dominação não


eram muito diferentes. Os laços cotidianos com outras famílias que também se serviam de
criadas constituíam uma teia de informações que podia ser acionada para a correta escolha de
uma criada. Ao mesmo tempo, os jornais de ambas as províncias denunciavam criadas que
supostamente haviam logrado as expectativas de seus amos e amas. Os conflitos entre as
partes apareciam ora de maneira velada ora explicitamente nas páginas dos periódicos. Assim
pode-se chegar a vislumbrar um pouco das cenas domésticas. Chamadas persuasivas
denunciando roubos, furtos, seduções, exerciam a função de manter os empregadores
vigilantes para evitar que situações semelhantes se repetissem em seus lares. No meio
urbano, o ato de alugar domésticas era problemático e perigoso do ponto de vista senhorial.
Não se está mais na condição de ter “crias da casa”, escravas que desde cedo viviam sob o
olhar de seus senhores e que seriam portanto confiáveis e fiéis. No quadro da escravidão
urbana, as cidades brasileiras do século XIX enfrentavam dilemas diferentes dos da casa
grande do período colonial. No meio urbano, muitos não podem possuir escravas, e devem
alugar uma para todo o serviço ou recorrer ao crescente número de mulheres livres e libertas
ansiosas por uma colocação. Cresce assim todo um quadro de desconfianças e expectativas
mútuas.
Mulheres livres e libertas, por sua vez, exercendo funções antes ocupadas por
escravas, sentiam-se (porque não raro era isso que ocorria) tratadas como cativas, e podiam
tomar comportamentos semelhantes. Um português anunciou no Diário de

18. Relatório do Presidente da Província Francisco do Rêgo Barros, ano de 1842. APEJE, Arquivo Público
Estadual Jordão Emerenciano.

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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Pernambuco, em 02 de março de 1840, que sua criada, também portuguesa, havia fugido de
sua casa “sem ter ajustado contas”, e protestava contra quem a estivesse ocultando. Observe-
se também que a forma de registrar o fato é idêntica ao modo de se anunciar as fugas dos
escravos. É tema a se investigar com mais profundidade, mas a presença portuguesa em
Pernambuco ao longo do século XIX é inconteste, e conta-se aos milhares. Em 1872,
segundo o censo, havia 6.646 portugueses na província (Eisenberg, 1977:220). Muitas
portuguesas pobres tinham suas passagens adiantadas por interessados (muitos eram mesmo
parentes), e ficavam praticamente trabalhando como serva, sem remuneração pecuniária,
pagando a dívida contraída. Ao que parece, tradicionalmente Pernambuco atraía mais
portugueses do que a província baiana.
Para patrões e patroas amedrontados, havia mulheres que se fingiam ser domésticas
com intenções de roubar a casa. O Diário de Notícias da Bahia, em 1905, denunciou uma
“criada gatuna”, que teria sido educada unicamente nos “princípios da gatunagem” (Sanches,
1998: 68). No Recife oitocentista, o quadro de denúncia é riquíssimo e também visa causar
impacto entre os patrões leitores de periódicos. A seguir temos um exemplo emblemático da
preocupação dos patrões e de seus métodos de se apoiarem na intenção de evitar a
contratação de criadas insubmissas:

Avisa-se a qualquer pai de família, que precise de ama-de-leite


para criar algum de seus filhos, especule bem, que não seja a
crioula Maria Theodora, filha da criada Anastácia, naturais de
Igarassú, moradoras em Olinda, e ora residentes no pátio da
Ribeira de S. Antonio; pois a dita ama costuma tomar
pagamento adiantado, e depois mostra-se enfadada, levanta- se
com seus amos, e, quando os apanha descuidados, foge pela
porta fora, deixando a criança sem leite, assim como fez pelas
11 horas da noitedo dia 12 do corrente, em uma casa aonde
estava criando: consta não parar em parte alguma. {DP,
14 mar 1846). ^

A intenção de gerar impacto, prtíVenir, alertar aos demais patrões está explícita.
Além de citar o nome de Theodora, o anunciante mencionou ainda o nome da mãe, o que
atingia logo as duas em suas futuras pretensões de trabalho. Seja como for, jamais ficaremos
sabendo a versão da criada para essa história. Afinal, são os patrões que constroem as
histórias de criadas consideradas por eles ingratas, relapsas e mal comportadas, manchando a
imagem delas perante os seus pares. Acusavam-se as criadas também de comportamentos
“desregrados”:

250
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”

Previne-se aos pais de famílias, que não consintam em sua casa


a parda Henrique Maria da Conceição na qualidade de ama, por
isso que nesta qualidade em certa casa se portou
desregradamente, a ponto de seduzir a um rapaz de 16 anos,
que servia a mesma casa na qualidade de criado para sair logo
que ela fosse despedida, como aconteceu, desaparecendo às 6
horas da manhã, como fugido. {DP, 16 fev 1855).

Para esse anunciante, a sedução empreendida pela parda que lhe servia de ama
custou-lhe ainda a perda de outro criado, um rapaz de 16 anos. A parda, ao que parece, sabia
que ia ser dispensada, pois provavelmente tinha notado que seus serviços não estavam
agradando, e resolveu convencer o rapaz a sair com ela quando isso ocorresse. As tensões
entre patrões e criadas eram logo percebidas, pois afloravam sem máscaras. O criado, ainda
adolescente, também não devia estar muito satisfeito com a casa em que servia, e só esperou
a oportunidade mais favorável. Aquelas pardas que ofereciam seus serviços pelos “Avisos
Diversos” do Diário de Pernambuco na segunda metade do século XIX realmente tinham de
se esforçar por retirar de si as máculas que lhes eram atribuídas. A década de 1840 tem várias
pardas buscando trabalho nos lares recifenses:

Uma parda viúva de idade de 49 anos, de bons costumes como


pode provar com atestados se necessário for, se oferece ao
serviço interno de alguma casa de homem solteiro, ou casado
com pouca família; quem a pretender dirija-se a rua do Jardim,
casa térrea junto ao sobrado do Rm. Sr. Fr. Caetano. {DP, 14
mar 1840).
Oferece-se uma parda moça para ama de casa estrangeira,
sendo de portas a dentro; engoma, cose e cozinha, tudo com
perfeição; a qual já esteve um ano e tanto na casa do Illmo. Sr.
Doutor Sarmento: na rua do Fogo, n. 54. {DP, 12 mar 1847).

É visível o esforço dessas duas pardas em comprovar sua conduta para seus virtuais
contratantes. Ser viúva e de idade, como era o caso da primeira, poderia lhe ajudar a
encontrar trabalho, já que demonstra que um dia fora casada, algo que era visto pela elite da
época como um sinal de distinção e honra. A segunda, provavelmente com o consentimento
do famoso médico da província, utiüzou o fato de ter permanecido mais de um ano servindo
em sua casa para demonstrar que tinha bom precedente. Para conseguir nova inserção como
doméstica, a parda se utilizou do prestígio de seu ex-patrão, algo que nem todas podiam
contar.

251
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Uma crioula, tentando demonstrar ter experiência como doméstica, e assim convencer
o/a contratante de sua competência, diz que é “afeita a servir até mesmo em casas
estrangeiras, se oferece por preço cômodo para isso” {DP, 02/03/1841). Aparentemente, ela
continua a querer servir em casa estrangeira, pois é “para isso” que se oferece. Embora não
tenhamos quantificado, é visível um grande número de mulheres recifenses que preferem
servir em casas de famílias ou homens estrangeiros. Podemos apenas sugerir algumas razões
para essa preferência: os patrões nacionais podiam freqüentemente confundir as criadas livres
ou forras com as escravas, trátando- as igualmente e sem a devida distinção que as primeiras
gostariam de receber; os patrões estrangeiros podiam oferecer, quem sabe, compensações
maiores ou melhor tratamento. Mas essas afirmações carecem de base empírica, tanto no
Recife quanto em Salvador, e não se pode afirmar com segurança se havia maiores diferenças
entre um patrão nacional ou um estrangeiro no tratamento de suas criadas.
No Rio de Janeiro da belle époque, os jornais também veiculavam charges e músicas
satirizando criadas que supostamente tomavam ares de patroa, mostrando- se com
inapropriados sentimentos de superioridade (Ferreira Filho, 2003: 53-4). Uma anedota
publicada no Diário de Pernambuco diz algo sobre a representação que os patrões e patroas
construíam acerca das criadas:

A senhora X... muda de criada, e recebe em troca uma galega


mais desenvolvida no físico do que no moral. Filha minha, lhe
diz ela, você ganhará por mês quatro cruzados novos, e alem
desta soldada hei também de vesti-la. Na seguinte manhã a
senhora X... chama pela sua nova criada, mas esta não
responde, toma a chamá-la, e continua o mesmo silêncio.
Começa de novo, e ninguém acode. Já impaciente levanta-se a
senhora, e vai procurar a criada. Então que é isto Catharina;
não me ouviu chamá-la? Sim, minha senhora, bem ouvi! disse
a bestunta, alargandó^osTWaços, porém, como a minha ama
declarou que me vestiria, está^a esperando. (DP, 04 mar 1861).
7

A senhora X, personagem fíctíCia, chama a criada de “filha minha”, como a insinuar


a ocorrência de um tratamento costumeiro pautado por uma intimidade familiar, e propõe um
acordo que se pretende generoso: salário e vestuário. Mas a criada, uma “bestunta”, não era
capaz sequer de entender o que sua senhora propunha. Os contratantes, de fato, buscavam
criadas que fossem diligentes, capazes, inteligentes ou, no dizer da piada, que fossem
desenvolvidas tanto no físico quanto no moral. Mas a anedota pode ter ainda outro sentido
para além da simples ridicularização da inteligência das criadas. Ela sugere ainda que estas
poderiam se fazer de desentendidas e interpretar

252
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”

a sua maneira as ordens de seus empregadores, tomando-se necessário, portanto, que as


patroas e patrões fossem firmes e precisos em suas ordens. Havia criadas mais espertas do
que outras, obviamente, e que, ao saírem para fazer compras, deixavam-se demorar pelas ruas
para retardar sua volta para os serviços internos. Outras também poderiam criar táticas para
evitar o desgaste físico do trabalho intenso, como afirma Mary Karasch. A resistência das
escravas domésticas se dava da seguinte forma:

Os donos descreviam sua “propriedade sem vontade” como


preguiçosa, apática, sempre doente, ineficaz, desastrada e sem
disposição para tomar qualquer iniciativa ou fazer qualquer
coisa que não fosse o estipulado pelo senhor. A queixa de uma
senhora, por exemplo, era que suas criadas domésticas só
obedeciam aos seus comandos exatos e que tinha de dar
instruções detalhadas e precisas todos os dias. Nunca era
suficiente dar uma ordem geral para manter a casa limpa; ela
precisava dizer a cada escrava especificamente o que fazer. Se
uma ficava doente, as outras não faziam o trabalho dela. Uma
criada não lavava roupas, nem uma cozinheira punha a mesa.
(...) Dessa maneira, os escravos limitavam a quantidade de
trabalho que um senhor podia extrair deles.19

Seja em Salvador ou Recife, as criadas que mais trabalhavam eram aquelas que
serviam a famílias de poucos recursos, pois sozinhas deviam se ocupar de todos os afazeres
da casa (Sanches, 1998:42). Eram as chamadas “criadas de todo o serviço” ou “de portas a
dentro e portas a fora”, expressões comuns nos anúncios de jornais baianos e
pernambucanos. Mulheres que ofereciam seus serviços e patrões que procuravam criadas
pelos jornais tinham de ser explícitos quanto às tarefas a cumprir para uma negociação
equilibrada. Um anunciante que buscava uma escrava “que seja muito boa cozinheira”
avisou, em um primeiro momento, que ela seria “ocupada unicamente nos respectivos
misteres”, e em troca oferecia o sustento, vestuário e 8$ réis mensais (DP, 23 mar 1848).
Uma semana depois, o anunciante, que dizia ter pouca família, muda um pouco sua
estratégia, e menciona apenas que daria 10$ réis mensais, sem falar em sustento ou vestuário.
Todavia, continua a reforçar que a escrava seria ocupada “unicamente nos respectivos
arranjos” (DP, 31 mar 1848).

19. Cf. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1800-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 436.

253
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Esse anúncio dá a entender, em primeiro lugar, que o locatário não podia dispor dos serviços
de uma escrava para os quais ela não fora contratada. Segundo, pode-se supor que o próprio
locatário ou comprador - pois este não deixou claro se iria comprar ou alugar a escrava - já
reconhecia que as escravas resistiam a realizar tarefas que fugiam de “sua” especialidade.
Nem todas as mulheres domésticas, no contexto da escravidão, desejavam morar o
tempo todo com patrões vigilantes e autoritários. Lavadeiras, costureiras e engomadeiras
estão entre as criadas que, quase sempre, podiam se ocupar de suas atividades sem prestar
fidelidade estrita a uma única casa. Trabalhando de ganho, elas faziam seu horário de acordo
com a demanda de serviços que assumiam. Ao menos em Pernambuco, a partir da década de
1850, muitas pretas e pardas livres e forras passaram a propor horários mais ou menos
favoráveis, e que lhes permitissem dormir em suas moradias. Alguns contratantes também
propunham acordos que resguardavam a autonomia da doméstica a partir das 5 horas da
tarde: uma família buscou alugar uma mulher forra para trabalhar das 6 horas da manhã até
às 5 da tarde (DP, 02 mar 1857). Do mesmo modo, uma moça livre ou forra anunciou que
cozinharia, engomaria e costuraria em casa de uma pequena família, mas “vindo dormir em
sua casa” (DP, 20 jan 1862). As lavadeiras recifenses possuíam mesmo verdadeiros negócios,
recebendo em suas casas roupas de diversos fregueses, e entregando-as lavadas e engomadas:

Recebe-se roupa para lavar e engomar, e também para engomar


somente, por preços módicos, mandando se buscar e entregar
em casa de seus donos: quem precisar desse serviço procure na
Boa-Vista, rua do Destino n. 20, ou anuncie. (DP, 29 mar
1862).

Algumas criadas baianas também não precisavam viver sob o teto das famílias que
lhes contratavam. Lavadeiras devasta clientela tinham autonomia espacial e faziam sua
própria rotina de trabalho (Ferreii^. Filho, 2003: 58-9). Os lares dos patrões e patroas baianos
e pernambucanos podiain até se reputar honrados, mas nem por isso algumas mulheres livres
e forras queriám habitar neles. Talvez a experiência cotidiana já tivesse ensinado a essas
mulheres a ambígua condição de viver “protegida” e ao mesmo tempo “vigiada”
continuamente pelos rigores do patriarcalismo e escravismo ainda vigentes no longo século
XIX.20

20. Para a idéia de que o século XIX adentra o século XX, ver: FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. 6a ed.,
rev., São Paulo: Global, 2004, p. 48.

254
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No complexo quadro da escravidão urbana do Brasil oitocentista, grandes centros


urbanos como Salvador e Recife giravam na órbita dos inúmeros serviços pessoais,
especialmente aqueles exercidos cotidianamente dentro dos lares das famílias dos grupos
médios e de elite. Embora as escravas fossem preferíveis por inúmeras razões, cada vez mais
mulheres libertas e livres pobres dividiam os espaços que a mão-de-obra cativa deixava.
Essas criadas, não sendo escravas propriamente ditas, não encontram terreno fácil, e têm de
negociar com patrões recifenses e soteropolitanos desconfiados. Precisam usar códigos
comuns à linguagem senhorial (aparecem como mulheres honradas, fiéis e obedientes) e ao
mesmo tempo arrancar concessões importantes para manutenção de um mínimo de
autonomia: dormir em suas casas, exercer apenas o serviço combinado, receber o prometido
“bom tratamento” senhorial.
Muitas dessas mulheres, contemporâneas ainda da escravidão, não podiam sempre
exigir pagamento em dinheiro, mas podiam aprender a usar táticas que lhes garantiam um
mínimo de dignidade na desigual relação com seus patrões. Talvez fosse conveniente usar as
experiências seculares da escravidão - e muitas delas usavam
- e fazer como a escrava de nação que era engomadeira, cozinheira, costureira, lavadeira de
sabão e barrela, e “excelente para uma casa de família”, na expressão de sua própria senhora,
mas que, não querendo lhe servir, teve de ser vendida pela mesma senhora que agora a
enchia de predicados {DP, 23 mar 1842). Para ser doméstica, na Bahia ou em Pernambuco no
século XIX, era preciso bem mais do que saber o ofício específico: era preciso força física
para suportar a jornada de trabalho, e ainda saber negociar as relações. Algumas sabiam.

255
Caxambu, Cateretê e Feitiçaria Entre os Escravos do
Rio de Janeiro e Minas Gerais no Século XIX

Marcia Amantino1

As manifestações culturais negras têm sido estudadas nos últimos anos a partir de
variados enfoques e com uma ampla gama de fontes. 2 Tais pesquisas demonstraram que
apesar do sistema escravista ter sido, em sua essência, baseado na violência, posto que era
um sistema de trabalho compulsório e que só era mantido graças ao uso constante de recursos
de imposição da força, os cativos conseguiram desenvolver mecanismos de manutenção e
recriação de valores próprios. Estes foram forjados, portanto, dentro da lógica deste sistema,
e em função disto sofreram limitações que incidiram, em maior ou menor escala, em suas
elaborações culturais.
O que se pretende neste texto é demonstrar como alguns grupos de escravos que
viviam em Minas Gerais e no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX criaram
formas de manifestações culturais próprias, ainda que permeadas por valores cristãos. Para
isto, diferentes tipos de fontes foram usadas a fim de dar um suporte maior para as
inferências. A análise inicia-se no século XVIII, momento em que a sociedade já estava
bastante preocupada com as manifestações públicas dos cativos e via nelas um sinal de que
poderiam perder o controle sobre a escravaria. Um das razões para uma rápida análise deste
momento foi demonstrar que as preocupações senhoriais que serão identificadas na
documentação do século posterior vinham de

1. Professora da Pós Graduação da Universidade Salgado de Oliveira (Universo).


2. MINTZ, S & PRICE, R. O nascimento da cultura qfro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro:
Pallas/Universidade Cândido Mendes, 2003; SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica,
religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro (século XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; SOUZA,
Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da Festa de Coroação de Rei Congo. Belo Horizonte:
UFMQ 2002.
V

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

outros tempos, e que não foram suficientes para impedir a continuidade das manifestações
culturais negras.
Foram utilizados também processos criminais objetivando-se entender a dinâmica
social das comunidades negras envolvidas em festas, brigas, assassinatos e outros elementos
do cotidiano, bem como materiais recolhidos de jornais, literatura, e da iconografia.
Analisando a composição social dos cativos que viviam no Sudeste brasileiro, mais
precisamente na grande lavoura de Rio de Janeiro e São Paulo e na agropecuária da Zona da
Mata mineira, percebe-se que a maioria era de africanos provenientes da região Centro-
Ocidental da África e tinham suas línguas ligadas ao tronco lingüístico bantu. 3 Entre os que
foram enviados ao Sudeste havia, além de uma certa unidade lingüística, determinados traços
culturais que, em suas essências, eram comuns. De acordo com Slenes, 4 entre estas pessoas a
estruturação familiar baseava-se na organização em forma de linhagens, ou seja, grupos com
ancestrais comuns. Além disto, havia nestas sociedades a crença de que o universo era regido
pelas idéias de ventura e desventura, e que o mesmo em sua forma perfeita produziria a
harmonia, a saúde e o bem-estar. Ao contrário, quando em desequilíbrio, produziria o
infortúnio e as doenças. Para equilibrá-lo novamente, somente recorrendo àqueles que
poderiam fazer a ligação entre as divindades e os humanos, aos objetos sagrados e ou
preparados ritualísticos. Acreditavam também que as doenças eram causadas pela desventura
ou por feitiço, e somente um contra-feitiço ou a proteção de um amuleto poderia livrá-los do
mal. A cura, seria então, a expulsão do mal de dentro do corpo do indivíduo por alguém que
tivesse ligações com o mundo divino.5
Devido a grande distância e desconhecimento que existia entre os variados segmentos
sociais, as diferentes manifestações culturais negras quase sempre foram vistas com receio.
Antonil dedicou partes de sua obra para discutir a importância das práticas culturais negras
para a manutenção do sistema escravista, e advertiu aos senhores que “negar-lhes totalmente
os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e
melancólicos, de pouca vida e saúde”, e que, para evitar isto, deixassem seus escravo^
“criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano”.
V

3. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia das Letras, 2000, cap. 1

4. SLENES, R. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava (Brasil, Sudeste, século
XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
5. DECRAEMER,Willy; VANSINA, Jan & FOX, Reneé. Religious movements in Central África: a theoretical
study. Comparative studies in society and history, n. 18, 1976, pp. 458-75.

258

LL
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

Ao mesmo tempo em que as reuniões dos cativos eram momentos de sociabilização e


de diminuição das tensões, eram também de arranjos e de reafirmação de alguns dos valores
africanos ou de valores já adaptados a uma nova cultura negra que os senhores gostariam de
ver eliminados.
Variados mecanismos foram, ao longo do tempo, utilizados para mostrar aos que
lidavam diretamente com os cativos como deveriam se comportar para ter sempre escravos
dóceis e confiáveis e eliminar os desvios perturbadores da ordem. Em 1728, Nuno Marques
Pereira, publicava em Lisboa a sua obra Compêndio narrativo do peregrino da América6 com o
objetivo de mostrar e tentar sanear os problemas de ordem moral que ocorriam no Brasil
através de exemplos virtuosos. Entre os anos de 1728 e 1765, o livro teve cinco edições,
demonstrando sua aceitação pelo público.
A obra desenvolvia vários discursos espirituais e morais e muitas advertências contra
os abusos que se achavam introduzidos pela “malícia diabólica no Estado do Brasil”. Seu
autor detectou inúmeros problemas na Colônia e se propôs, através da parábola de um
peregrino, a mostrá-los a fim de que fossem eliminados e que a fé verdadeira e pura pudesse
ser vencedora da luta entre o bem e o mal. Para ele, diversos abusos eram cometidos no
Brasil em nome da luxúria, da soberba e da vaidade, e as pessoas deveriam mudar suas
formas de vida a fim de que não fossem para o inferno. Com relação aos escravos,
aconselhava o mesmo que Vieira7 havia preconizado anos antes: que tivessem paciência,
resignação e que prestassem obediência aos senhores, e a estes, que fossem cristãos e que
dessem bons tratamentos aos cativos a fim de que não fugissem.
Em uma de suas parábolas, Pereira conta uma história acontecida com o peregrino
numa fazenda onde pernoitara. Assim que o dia amanhecera, fora interrogado pelo
proprietário da mesma se teria passado uma boa noite de sono. Respondeu que não tinha
podido dormir a noite inteira devido ao “estrondo dos tabaques, pandeiros, canzás, botijas e
castanhetas; com tão horrendos alaridos, que se me representou a confusão do inferno”
(Pereira, 1728).
O senhor explicou então ao viajante que era comum os escravos se reunirem para
tocarem “seus calundus”,8 e que ele, em função de os negros estarem fazendo o que queriam,
dormia sossegado. Continuou explicando que estes calundus eram

6. PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio narrativo do peregrino da América em que se tratam de vários discursos
espirituais e morais e mintas advertências e documentos contra os abusos que se acham introduzidos pela malícia
diabólica no Estado do Brasil. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa (Impressor do Santo Ofício),
1728.
7. Carta do Padre Antonio Vieira a certo fidalgo. Bahia, 2 jun 1691, apud AZEVEDO, J. L. de. História de
Antonio Vieira. Lisboa, vol. II, p. 372
8. Calundus, de acordo com Câmara Cascudo, no Dicionário do folclore brasileiro, possuía até meados do século
XVni uma significação religiosa com elementos que mais tarde serão encontrados nos candomblés enas
umbandas.

259
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

uns folguedos ou adivinhações que dizem estes pretos que


costumam fazer nas suas terras e, quando se acham juntos,
também usam deles cá, para saberem várias coisas, como as
doenças, de que procedem; e para adivinharem algumas coisas
perdidas, e também para terem ventura em suas caçadas e
lavouras e para muitas outras coisas (Pereira, 1728).

O peregrino, horrorizado, fez o senhor perceber o quanto estava cheio de pecados -


pois não respeitava a lei divina, permitia idolatrias em suas terras e, ainda por cima, não
retirava os negros do pecado em que viviam na África, pois

é certo que, por direito especial de uma Bula do Sumo


Pontífice, se permitiu que eles fossem cativos, com o pretexto
de serem trazidos à nossa santa fé católica, tirando-se-lhes
todos os ritos e superstições gentílicas, e ensinando-lhes a
doutrina cristã, o que se não poderia fazer, se sobre estes não
tivéssemos domínio (Pereira, 1728).

O senhor ficou tão apavorado com tudo o que o peregrino lhe falava que mandou os
escravos trazerem para o terreiro da fazenda os instrumentos usados na noite anterior. Todos
foram queimados em uma grande fogueira da qual saía, segundo o peregrino

um horrendo fedor (...) com um fumo tão negro, que não havia
quem o suportasse; e estando até então o dia claro, se fechou
logo com uma neblina tão escura, que parecia se avizinhava a
noite. Porém eu, que fiava tudo da Divina Majestade, lhe rezei
o Credo; e imediatamente com uma fresca viração tudo se
desfez (Pereira, 172$)T^

Em outra passagem de sua obra, o peregrino foi questionado pelo fazendeiro se as


quijilas9 praticadas pelos negrds eram pecaminosas. Seu questionador explicou a ele que os
negros que vinham de Angola e da Costa do Marfim tinham por costume guardar “alguns tão
pontualmente como se fora um mandamento da lei de Deus e

9. Quijilas ou quizilas são interdições religiosas determinadas, em sua maioria, de acordo com os orixás de cada
pessoa. Assim, uma não deve comer melancia, outras, mandioca, outros, azeite de dendê e assim por diante.
Entretanto, há também como quijilas interdições que não passam por estas questões alimentares. Elas também
podem ser impedimentos do uso de determinadas cores nas roupas, de hábitos cotidianos e outros.

260
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

antes morrerão que deixar de observá-lo; e este consiste em não comerem caça, ou peixe,
marisco e muitas outras coisas” (Pereira, 1728).
O peregrino respondeu que a quijila era

um pacto explícito, que fazem este gentio com o diabo, sobre a


qual assenta alguma conveniência corporal da parte do que o
faz, como ter bom sucesso na guerra, fortuna na caçada, na
lavoura e etc. (...) Entretanto, nem tudo estava perdido. Em sua
explicação, afirmou já ter visto muitos negros que depois de
batizados e confessados (...) usarem de comer do que lhes era
proibido por quijilas em suas terras e ficarem livres de lhes
fazer mal o que comerem (Pereira, 1728).

Nos dois momentos discutidos pelo peregrino evidencia-se que os negros dos quais
ele tratava tinham muito claro a concepção de que era necessário realizar determinadas
tarefas e guardar certas interdições para propiciar boas relações com as divindades. A busca
era pela ventura e pelo sucesso em suas empreitadas, mesmo que sob o domínio da
escravidão.
As idéias que estas passagens discutem não eram novas. Na realidade, eram oriundas
de tempos remotos e suas origens podem ser buscadas já nos primeiros contatos entre os
europeus e os africanos. Entretanto, elas permanecerão no imaginário popular durante muito
tempo e as práticas culturais africanas serão, por séculos, vistas como diabólicas ou como
superstições de povos atrasados. E exatamente estas idéias que associavam os africanos a
povos primitivos serão uma das bases para as primeiras justificativas de sua escravização.
Através de práticas cotidianas e de relações pautadas na dominação a população acabaria
tendo contato com estas imagens que criavam, principalmente, a noção de inferioridade dos
negros. Estes eram diferentes, contrários e inferiores aos brancos.
Apesar de os senhores terem estas concepções sobre seus cativos, estes não deixaram
de produzir sua cultura, ainda que bastante misturada com elementos cristãos e mesmo
indígenas. Esta cultura produzida pelos escravos pode ser entendida como uma readaptação
de práticas africanas em uma nova realidade permeada pela escravização e pelos contatos
com grupos variados (Mintz & Price, 2003: cap. 2). Trata-se, portanto, de uma
interpenetração de variadas matrizes culturais. Assim, as festividades e as práticas religiosas
negras são bons indícios para a verificação da circularidade cultural 10 entre culturas distintas.
Ainda que cativos, e com suas

10, BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987;
GINZBURG C. “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”, in . A micro-
história e outros ensaios. São Paulo: Difel, 1989.

261
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

possibilidades culturais limitadas pelo cativeiro, encontraram formas de reafirmarem sua


capacidade criativa. Estas formas podem ser entendidas quando se percebe que a escravidão
influenciou os homens livres e os não-livres, e assim não se pode pensar em uma sociedade
dicotômica dividida entre senhores e escravos. A sociedade escravista era muito mais
complexa do que isto. Os senhores, em tese, determinavam como as instituições negras e
suas práticas culturais e sociais iriam existir. Mas, na prática, eles as aceitavam como parte
de uma realidade à qual eles também precisavam se adaptar a fim de manter sua escravaria
controlada, ainda que apenas dentro de um certo limite.

AS MANIFESTAÇÕES NEGRAS

As festas promovidas pelos escravos misturavam práticas religiosas, bebidas, comidas


e danças de vários grupos étnicos que, em função do cativeiro, desenvolveram mecanismos e
formas de convivência. Estas práticas reunidas eram incompreensíveis para a maior parte dos
que não estavam inseridos nos meandros das culturas negras, e eram vistas como bárbaras e
necessitando de controle em nome da manutenção não só dos valores cristãos, mas também
da própria escravidão. Ainda que alguns senhores liberassem seus cativos para as suas festas,
como no caso da parábola do peregrino, pode-se imaginar que o que estava por trás desta
certa frouxidão era uma tentativa de controlar seus escravos e ao mesmo tempo lhes dar
condições de, num certo sentido, extravasarem as agruras do cativeiro. Todavia, as práticas
religiosas negras, quer elas tivessem uma roupagem católica ou não, sempre foram alvo das
preocupações das autoridades.
Um processo localizado no Centro de Documentação Histórica de Vassouras mostra
um pouco destas práticas. Lino, um escravo Moçambique que residia na Fazenda do Retiro,
de propriedade da Baronesa de Campo Belo, foi entregar azeite na Fazenda do Secretário e
resolveu ficar por lá para tomar parte no “brinquedo que tem o nome de caxambu entre os
es6ra\tas e que de facto tomou parte na dansa e nas libações de aguardente”. 11 Durante a
festa, discutiu com Felix e o matou quando todos os outros escravos já estavam recolhidos.
No decorrer do processo ficamos sabendo que os cativos tinham autorização do senhor para
ficarem até às 10 horas tocando o caxambu, e que, terminada a reunião, fossem para suas
senzalas. Lino não se lembrava de nada por estar embriagado, mas foi condenado pelo artigo
194 do

11. Processo Criminal. CDH, Vassouras, cx 228, 1872.

262
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

Código Criminal. Novamente, há a associação da cachaça com a dança e as práticas culturais


negras.12
O senhor que permitiu este caxambu não era o único. Apesar dos perigos que todos
acreditavam existir nestes encontros, era evidente que proibi-los poderia ser muito pior.
Muitos eram coniventes com estas práticas culturais e permitiam que seus escravos fizessem,
de tempos em tempos, seus encontros. Em julho de 1885, parte dos cativos que viviam nas
imediações da cidade de Cataguases, em Minas Gerais, vivenciaram um cateretê bastante
diferente. A história dele ficou registrada graças a uma queixa-crime feita por Custódio José
Fernandes e do processo dela decorrente.13
Segundo ele, em julho, na noite do dia 10 para o seguinte, mais de vinte escravos o
espancaram quando o mesmo fora à fazenda de seu pai buscar um escravo de sua propriedade
que estava fugido. Lá chegando, encontrou os escravos dançando o cateretê e foi agredido.
Devido à complexidade deste processo é necessário desvendar o ocorrido aos poucos.
Vejamos.
A vítima, Custódio, era filho de Salustiano José Fernandes, um homem bem
conceituado na região, pois no ano de 1852 vendera parte das terras da fazenda das Três
Barras, herdada de seu pai, o alferes Severino Ribeiro de Resende, para a criação do Arraial
do Brejo e para a posterior construção da capela dedicada a Santo Antonio.14 Custódio era
solteiro e dono de terras, mas não se dava com seu pai. No dia da confusão fora à fazenda do
mesmo - a Fazenda da Cachoeira - em busca de um escravo de nome Claudino, que era um
fujão contumaz. Custódio acreditou que Claudino estaria açoitado na dita fazenda. Partiu
para lá com mais três pessoas. Ao chegar, deu voz de prisão aos escravos que estavam
dançando. Pai e filho começaram então uma discussão violenta. Salustiano, muito zangado,
disse ao filho que ali não era quilombo e ordenou que o mesmo deixasse a propriedade.
Assim que o grupo regressou ao arraial encontrou com Raimundo e Geraldo, dois escravos de
Leopoldino Antunes de Siqueira, cunhado de Custódio. Eles tinham ido ao arraial para
comprar aguardente para a festa que estava acontecendo na Fazenda da Cachoeira. Custódio
partiu então para a fazenda de seu cunhado para lhe avisar que seus escravos também
estavam fora. Recebeu a resposta de que ele mesmo, senhor dos cativos, havia autorizado a
ida deles, e que estariam apenas se divertindo. Leopoldino tentou convencer o cunhado a não
regressar à fazenda, mas não conseguiu. Custódio, então, resolveu

12. A existência de libações de aguardente pode remeter a algum tipo de oferenda, já que libar significa oferecer
líquidos de origem orgânica a uma divindade. Infelizmente, não há como saber a que divindade foram
feitas as libações pelos escravos da Fazenda do Secretário.
13. Processo Criminal. CDH, Cataguases, CAT 1, CR 203 e 205, cx 10.
14. BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia,
1995.

263
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

retomar à fazenda do pai e ficou de tocaia observando o cateretê feito pelos negros. Imaginou
ter visto Claudino, o escravo fugido. Partiu em direção aos negros e então entrou no meio da
roda com seus companheiros. Rapidamente os negros, “como se estivessem prevenidos”, os
atacaram com foices, paus e facas.
A primeira testemunha do processo, Antonio Ferreira Sabino, um dos acompanhantes
de Custódio, afirmou que durante a surra ouvia os escravos incentivando os outros e aos
gritos afirmavam que era para matar porque o senhor deles tinha dinheiro. A terceira
testemunha explicou melhor esta questão do dinheiro. Afirmou não saber com certeza se
entre o pai e o ofendido havia alguma rixa séria, mas que durante a confusão ouviu alguém
gritar: “Mata, tenho dez contos para gastar!”. Além disso, momentos antes, enquanto estavam
de tocaia, ouviram alguns escravos dizerem de dentro da senzala: “Deixa o cubacho vir que
nós prepara elle”.
Custódio afirmou no processo que a surra fora ordenada pelo seu pai e uma negra de
nome Angélica. E que os negros bateram nele como feras.
O processo se desenrolou com acusações mútuas entre pai e filho. E, em novembro do
mesmo ano, o promotor público faz a seguinte acusação contra Custódio e o grupo que o
ajudou:

Forão invadir a propriedade alheia, dando absurdas e ilegaes


ordens de prisão com o papel de testemunha de modo a
poderem inverter seus próprios e reprovados actos a seo bel
prazer, colocando os que pacificamente se divertião em seu
domicílio o papel de agressores, de assassinos com a gravidade
de converter o pobre velho cego, pai do chefe dos assaltantes
em mandante do assassinato do próprio filho ... onde
pacificamente os escravos se divertião autorizados por seus
senhores.

Para complicar ainda mais a vjda de Custódio, uma das testemunhas usadas por ele foi
Maria Luiza Magdalena, tid^pelo promotor como

pobre e desgraçada crerâtura que desertando do leito nupcial


veio conspurcar-se no leito do adultério que lhe offereceu o
offendido, como consta do respectivo depoimento e reperguntas
facto pela qual perdeo aquela moralidade e boa forma que a
fazia capaz de depor e ser crida em juízo, como é de direito.

264
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

A denúncia de Custódio foi julgada improcedente. Alegaram que os ferimentos não o


teriam incapacitado ao serviço por mais de trinta dias, que os peritos usados por ele não eram
profissionais, que ele não era miserável e não havia sido flagrante. Em função de tudo isto,
ele teve ainda que pagar as custas da ação.
Este processo resgata algumas idéias que têm sido alvo de discussões entre aqueles
que se dedicam a estudar o passado escravista. Durante muito tempo, a historiografia
tradicional demonstrou que o escravo era tratado como coisa e sem qualquer direito a exercer
suas práticas culturais. A ele não caberia espaços sociais para manter sua cultura, ou mesmo
para, através de diferentes contatos com outros grupos, reestruturar sua vida, em função dos
limites do cativeiro.15 A produção historiográfica atual tem, através de diferentes abordagens
metodológicas e de fontes, alterado este quadro e demonstrado que, apesar do cativeiro e de
suas agruras, os cativos conseguiam mecanismos de exercer algumas de suas práticas
culturais.16
Os cativos de Salustiano e de Leopoldino estavam, na visão de seus senhores, se
divertindo. Mas as próprias testemunhas ora afirmam que se tratava de um cateretê, ora de
um caxambu e ora de um canjerê. O que estas informações conflituosas significam?
Antes de tudo, é essencial definir cada uma das práticas. Segundo Câmara Cascudo, o
cateretê era considerada uma dança honesta. Tanto que o próprio Anchieta a utilizou em seus
autos. Era composta de “duas filas, uma de homens outra de mulheres, uma diante da outra,
[que] evolucionam, ao som de palmas e de bate pés, guiados pelo violeiro que dirige o
bailado”.17
De acordo com Stein, o caxambu seria “uma posição intermediária entre a cerimônia
religiosa e a diversão secular”.18 Acontecia nos sábados e dias santos à noite e também eram
chamados de dias de pagode. Nos dias que antecediam a dança, os escravos tratavam de fazer
circular nas vendas, nas roças e nas estradas a notícia

15 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata
do Rio Grande do Sul. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962; GORENDER, Jacob. O escravismo
colonial. São Paulo: Ática, 1982; GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.

16. FLORENTINO, M. & GÓES, R. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico (Rio de Janeiro, 1790-
1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; Souza (2002); Slenes (1999); Soares (2000); PAIVA,
Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia (Minas Gerais, 1716-1789). Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2001; ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro
(1830-1900). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
17. CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1976. Verbete “caxambu”.

18. STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café (1850-1900). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990, p. 243.

265
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

da festa. No dia combinado, acendiam uma fogueira no meio do terreiro e a festa então se
iniciava com o chamado de um tambor denominado o “chamador do povo”. Entretanto, este
não era o principal tambor. Os tambores importantes para a festa eram outros dois. O maior
era denominado de “caxambu” e o outro menor era o “candongueiro”. Caxambu é, portanto,
o nome do tambor em forma de cone, de origem africana e denomina a dança. Os
percursionistas marcavam o ritmo com as palmas das mãos enquanto os jongueiros
(versejadores) cantavam os versos. Presidindo a sessão havia o rei e uma rainha, que
recebiam as homenagens dos participantes. O rei, depois de cumprimentar respeitosamente
os tambores, iniciava o caxambu.
A presença do caxambu demonstra a importância de uma tradição africana mantida no
cativeiro. O tambor é, para algumas sociedades africanas, uma peça chave no contato com os
ancestrais e com as divindades. Lumanisa, 19 um filósofo africano, defende a idéia de que a
dança, o canto e o batuque formariam um trio inseparável e poderoso na cultura de seu povo,
uma vez que os três elementos são sagrados porque o som é a palavra de Deus e a forma
deste entrar no corpo do indivíduo é através a dança. Daí a dificuldade ou mesmo a
impossibilidade de separar estes três elementos quando se tenta analisar as performances
negras.
Já o canjerê é, de acordo com Jacques Raimundo: “uma reunião de indivíduos com
práticas feiticistas, para atrair incautos, sob a promessa de livrá-los de moléstias e outros
males”.20 No Rio de Janeiro, o canjerê é associado a macumba, mas em Minas Gerais ele
significa apenas feitiço. Para Câmara Cascudo, o canjerê é uma dança negra de fundo
religioso.21
Pode se perceber no decorrer do processo que o termo utilizado variou conforme a
urgência e a necessidade de incriminar o encontro dos escravos. A única vez que apareceu a
palavra Canjerê, denotando, portanto, um encontro mais perigoso para a sociedade branca,
foi já no final do processo e foi dita pelo próprio Custódio. Antes, ele mesmo referia-se à
festa como cateretê. No momento em que a sua situação já estava se delineando contrária
ao^seus interesses, ele, em novo depoimento, acusou claramente seu pai e a escrava de terem
incentivado os escravos a atacá-lo e usou o termo canjerê, reforçando o perigo que,aqueles
escravos e o senhor que admitia este encontro representavam.
Voltemos à festa do caxambi^dos escravos de Salustiano. A festa em questão ocorreu
no dia 10 de julho, véspera, portanto, do dia de São Bamabé. Era comum que as festividades
negras acontecessem nas noites de sábado e nas anteriores aos dias de

19. LUMANISA, A. Fu-Kiau Kia Bunseki. Le mukongo et le monde Qui l 'entourait: cosmogonie Kongo; recherches
etsynthèses. Kinshasa: Office National de la Recherche et le Développement, 1969.
20. RAIMUNDO, Jacques. O negro brasileiro, apud Cascudo (1976: verbete canjerê).
21. Cascudo (1976: verbete canjerê).

266
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

santos. Ainda que São Bamabé não fosse um santo de devoção dos negros, pode-se imaginar
que o mesmo fosse o santo do orago da capela da fazenda, ou ainda o santo de devoção do
senhor da mesma. Os escravos estariam aproveitando a data para cultuar seus próprios
valores? Pode ser. A dança, conforme visto anteriormente, estava presente em vários
momentos da vida dos cativos e, qualquer que fosse o motivo da reunião, era uma boa causa
para reafirmar os valores dos antepassados. Tanto nas festividades alegres e profanas como
nas tristes e religiosas ela estava presente marcando uma identidade cultural muito específica.
Um folhetim publicado em um jornal da cidade de Vassouras,22 no Rio de Janeiro em
1883, é interessante para percebermos como estas festividades negras podiam ser usadas de
diferentes formas, em contextos e áreas geográficas díspares. A história mostra a execução de
um cateretê após o batizado de uma criança já morta. A história se passa nos Sertões de
Macabú, região que no século XIX pertencia a Macaé. O texto intitula-se “O baptizado de um
pagão” e seu autor é Nuno Álvares. Devido a beleza e riqueza de informações o texto será
citado na íntegra.

Em 1869, eu estava nos Sertões de Macabú... quando pernoitei


uma noute em um rancho de tropeiros à margem do rio Imbê,
junto de umas palhoças occupadas por diversas pessoas
empregadas na lavoura.
Duas de entre ellas vierão offerecer-me hospedagem e ao
mesmo tempo me convidarão para assistir ao baptismo de um
menino morto pagão... acceitei o convite que me despertou
atenção.
Era um pequeno espaço na rude casa de sapê. No fundo, um
oratório de madeira deixava ver a imagem de um Christo de
cedro todo ensangüentado e rubro dos reflexos das velas de
sebo que projetavão suas sombras movediças no âmbito do
quarto. Sombras vagas e vacilantes que se cortavão em formas
phantasticas, causavão desagradável sensação. Além da
imagem do Christo, agonisava a um lado, São Francisco de
Pádua com uma enorme espada de chumbo encravada na
cabeça, e o infallivel Santo Antonio, bonachão e obeso
ostentava o seu vestuário de saragoça, com os lábios untados
em um sorriso sarcástico.

22. O Vassourense. Periódico imparcial, noticioso e literário. Vassouras, 1882-1996, 8 abr 1883, ano 2, n. 14, Casa
da Hera.

267
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Dez ou doze mulheres com saias de chita, camisas de morim e


lenços de cores por abainhar, accocoravão-se em cima de dous
giraos de madeira, que servião de cama, e outros tantos
homens, com calças de algodão, camisas de riscado americano
e immensas facas pendentes aos lados, olhavão em pásmaceira
os santos do altar.
Chegava a hora. Devia ser a meia noute que o fato se daria, e
deveria ter lugar a função. Eu esperava ancioso. Educado em
uma escola cheia de religião e pureza, mas de progresso e
aspirações para as espheras do bello, e da verdade, sentia
instinctiva repugnância por aquellas scenas de credulidade e
ignorância.
De repente, appareceu no relance da porta, uma negra velha,
baixa, de melenas desgrenhadas, sórdida e nojenta com seus
ascos de feitiçaria. Trazia na mão esquerda um ramo de alecrim
e na direita uma tijela de água benta.
Escutem! Escutem! Vai dar meia noute: Que então a criança
morta pagan no dia de Nossa Senhora das Candeias havia de
gritar, havia de chorar e que depois seria baptizada.
E todos escutavão. Houve um silêncio de bronze. Sentia-se o
arfar dos peitos e das respirações e um bafo de suor azedo, que
tresandava tonteiras.
A negra velha, benzia o alecrim e fazia exgrares e gatimonhas
taes diante dos santos que eu vi o predilecto dos responsos
accentuar o seu sorriso sarcástico.
Gritou! Gritou!... exclamou a velha depois de algum tempo,
gritou! Gritou!
E o echo das montaphas ao longe repetio o grito de vinte e
quatro vozes unisonas: gritou! Gritou!...
Então, passou-se uma âçena curioza. Atropeladamente acendeu
cada qual uma vella de cebo e a negra velha com uma de cera
benta foi cercada e conduzida athé a sepultura do pagão. Era
uma cova raza, cercada frescamente de bambus, ornados de
folhas e flores agrestes.
Junto a cova, os homens e as mulheres se ajoelharão. A velha
benzeu-a três vezes em cruzes, e de cada uma dizia:
A Senhora da Candeia
Te baptiza alma christã
O teu grito deu alarma
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

A papai e a mamãe!
Os versos forão repetidos três vezes por todos. Seguiu-se um
grande cateretê que durou até o alvorecer do dia; para solenizar
o baptizado do pagão.
Não assisti o resto da festa. Chegando ao rancho, fiz a minha
leitura de costume, e cahiu-me sob os olhos este versículo da
Bíblia:
“Bem aventurados são os pobres de espírito porque delles é o
reino do céo!”.
Consoladora esperança! Esclamei e adormeci.

Diferentemente da maior parte dos documentos apresentados acima, este folhetim é


uma criação de seu autor. Entretanto, isto não significa afirmar que não possui traços da
realidade com a qual a população convivia. O que Nuno Álvares fez foi organizar suas
crenças e concepções a fim de realizar uma crítica ao que, segundo ele, eram práticas
supersticiosas de gente ignorante. Todavia, estas práticas estavam sendo denunciadas com
constância pelos jornais, demonstrando a resistência das mesmas junto a certas categorias
sociais.
Este folhetim possui uma série de informações que podem revelar um pouco sobre as
crenças e práticas culturais de populações pobres e que, provavelmente, possuía traços
culturais forjados na experiência do cativeiro.
O fato de o cronista ter sido convidado a participar da cerimônia não é algo estranho
para esta sociedade. Era comum pessoas convidarem desconhecidos para comporem o
cerimonial fúnebre de crianças, também chamadas de “anjinhos”. De acordo com Vailati, 23
citando diversos viajantes que percorreram a cidade do Rio de Janeiro ao longo do século
XIX, o enterro, de uma forma geral, e mais ainda o de crianças, era uma cerimônia pública e
ostentatória, e quanto mais gente participasse mais dignidade conferia à família do morto.
Para Soares, o sepultamento era “uma etapa importante do ritual que celebrava o ingresso do
morto na morada dos ancestrais; palmas, cantos, tambores e danças combinadas era uma
forma de atraí-los”.24
Infelizmente, o autor do folhetim não afirma, com exceção da “negra velha”, se os
demais participantes eram negros, escravos ou livres. Relata apenas que eram pessoas
empregadas na lavoura. Pela descrição da casa, das vestimentas e das práticas culturais dos
participantes do evento, pode-se inferir tratar-se de indivíduos que estavam

23. VAILATI, Luiz Lima. Os funerais de anjinho na literatura de viagem. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 22, n. 44, 2002, pp. 365-92.
24. SOARES, Mareio de Souza. A doença e a cura: saberes médicos e cultura popular na corte imperial. Niterói:
UFF, Dissertação de Mestrado, 1999, p. 212.

269
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

de alguma maneira ligados ao universo cultural negro. Entretanto, pode-se perceber


claramente a presença de concepções religiosas cristãs misturadas nestas práticas religiosas.
Mas, ainda assim, Nuno Álvares não deixa de sinalizar que a relação daquelas pessoas com
as imagens católicas e tudo o que faziam lhe causava “uma desagradável sensação”. A
situação ficou pior para ele quando a negra velha chegou. Entretanto, sua presença é
fundamental para o desenrolar dos fatos. Ela não estava participando de todo o evento e
chegou a casa quando já ia dar meia-noite. Logo, pode-se presumir que sua figura era de
destaque, e era a pessoa que desempenhava nas imediações algum papel ritual específico. O
horário de sua chegada é propício para qualquer atividade mágico-religiosa. O conhecimento
popular atrela os mistérios que envolvem a vida e a morte com as horas noturnas e o seu
ponto alto seria à meia-noite, momento maior do poder dos espíritos. De acordo com Reis,
grande parte das cerimônias fúnebres dos africanos e seus descendentes eram realizadas à
noite, pois este era o momento consagrado à morte, ao contrário do dia, relacionado à vida.25
Nuno Álvares descreve a negra velha de maneira pejorativa e afirma que a mesma
tinha “ascos de feitiçaria”. Ela trazia consigo um ramo de alecrim e uma tigela de água benta.
O que estes elementos significavam? A água benta é usada para lavar os pecados, afastar a
bruxaria, o demônio e os maus espíritos, e coloca a pessoa sob a proteção do Espírito Santo.
Já o alecrim, ou melhor, o Rosmarinus officinalis, é uma planta usada no interior do Brasil. Ela
tem muitas funções. Em 1846, Thomas Ewbank registrou que “quando uma pessoa se
imagina possuída, ela comumente procura um padre para fazer o sinal da cruz com um ramo
de alecrim mergulhado na água benta”.26 Além disto, o alecrim servia também para enfeitar o
caixão de crianças e para desviar o mau-olhado com seu perfume. A negra velha vinha
preparada.
A criança havia morrido no dia de Nossa Senhora das Candeias, ou seja, no dia 31 de
dezembro, e estava enterrada próxima a casa, portanto, em lugar nâo-santo. Quando a função
dentro de casa terminou, foram todos para a sepultura, e lá, a velha negra, portando uma vela
de cera benta, benzeu a cova três vezes em cruzes e repetiu uma espécie de batizado da
criáfíçamvocando Nossa Senhora da Candeia. Esta santa católica é na religião afro-brasileira
idéçtificada com Oxum, que dentre outras funções tem uma ligação direta com a maternidade
e com as crianças pequenas. Após o término do batizado, os participantes iniciaitm um
cateretê que durou até o amanhecer para “solenizar o batizado do pagão”.

25. REIS, João José. A morte é umafesta: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil, séc. XIX. São Paulo: Cia das
Letras, 1991, pp. 160-1.
26. EWBANK, Thomas. A vida no Brasil ou diário de uma viagem ao País do Cacau e das palmeiras. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1976, pp. 188-9.

270
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

Sem ter entendido nada do que assistiu, e achando que tudo não passava de superstição de
gente atrasada, Nuno Álvares se retirou, e em seu quarto, ao ler a Bíblia, chegou à conclusão
de que ainda haveria esperanças para aquelas criaturas, pois eram “pobres de espíritos” e,
segundo o versículo, seria deles o reino do céu. A imagem a seguir também retrata um
enterramento de uma criança.

pfrrt, À-fuJ-Ayú

Fonte: ROULIN, Desiré. Lê bal du angelel Século XIX, Nova Granada.27

Esta cena bem poderia estar ilustrando a história de Nuno Álvares no jornal O
Vassourense. Todavia, ela foi feita a milhares de quilômetros do Sertão de Macabú. Trata-se
de uma imagem feita em Nova Granada por Desiré Roulin. Nela aparece uma criança morta
sendo velada por diversas pessoas. Mas há mais informações além desta. A cena mostra uma
reunião entre grupos étnicos diversos. A criança morta parece ser branca, mas a mulher
sentada ao lado de seu corpo aparenta ser uma mestiça de índio com negro. A cena que se
desenvolve ao lado do corpo da criança morta descreve uma situação de dança e música. Ao
todo aparecem na roda onze pessoas. Destas, cinco podem ser identificadas como negras, três
mulheres são de cores mais claras, sugerindo serem pardas, e quatro são indígenas. Com
exceção de

27. Esta imagem foi gentilmente cedida pelo professor Eduardo França Paiva.

271
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

duas índias e um negro (que está dançando), todos batem palmas, estão vestidos de forma
muito simples e estão descalços. É interessante identificar que há na cena três músicos.
Destes, dois são indígenas e o terceiro é um negro velho. Sua figura é emblemática. É ele
quem segura e toca o tambor, conforme já visto, instrumento sagrado para algumas
sociedades africanas. Pelos gestos dos dois dançarinos negros, pode-se inferir que o ritmo da
música é marcante e a cena lembra algumas reproduções retratando cenas de danças na África
e também entre os escravos no Brasil.
A criança morta está deitada segurando entre as mãos um crucifixo, símbolo da fé
cristã, veste um camisolão e seu corpo está sobre uma mesa forrada com uma toalha branca. 28
Em seus cabelos há uma coroa de flores.
Apesar daquela negra velha feiticeira ser uma criação de Nuno Álvares, a crença na
feitiçaria era algo presente no dia-a-dia das pessoas. Em 1890, Sergio, um homem negro de
mais ou menos 50 anos, foi aparentemente envenenado por Ana, filha de André, com uma
xícara de café. André era um africano que vivia em Laranjal, região próxima a Cataguases, há
apenas cinco meses. Antes de morrer, Sergio deu estas informações e complementou a história
alegando que ele e André não se davam bem porque este último havia, tempos antes, tomado
posse de uma casa que pertencia a ele sem haver pago nada. Além disso, ele queria se casar
com Ana, filha de seu inimigo, e não obteve autorização do pai da moça.29
As testemunhas do processo, ao serem interrogadas sobre se tinham conhecimento se
André costumava administrar beberagem, responderam que ele era “temido pelo povo que o
tinhão como feiticeiro”. Sebastião Molhinet afirmou ainda que “André é malquisto por todos
os vizinhos e temido porque dizem ser elle feiticeiro”.
André foi preso e as vísceras de Sergio foram enviadas para autópsia. No
interrogatório feito ao réu André, o mesmo afirmou que não havia nenhuma rixa entre eles. Ao
ser perguntado sobre o “uso que fazia da fava de Santo Ignácio que foi encontrada em sua
casa”, respondeu que “ministrava a um seu animal quando doente e isto por experiência tendo
visto a outros fazer aplicações em idênticos casos”.
Entretanto, o exame das -tfíscferas nada detectou e André foi solto. Mas o que
significou o encontro da fava de Saníp Inácio na casa de André? Esta planta, cujo nome
científico é Strychnos ignatii, pòssuí em suas sementes estricnina, um forte veneno que, quando
ingerido, atua no sistema nervoso. Se André usava a planta para dar como remédio a um
animal ou se a usava como veneno é difícil sabermos. Todavia, ele e vários outros dominavam
o conhecimento sobre a manipulação da erva e isto era um perigo.

28. O branco era a cor associada aos mortos em grande parte das sociedades africanas.
29. Processo Criminal. CDH. Cataguases. CAT 1, CR 428, cx 20.

272
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

Esta história de André lembra um romance publicado nas décadas finais do período
escravista, tendo como principal personagem um escravo que vivia em Leopoldina, região
muito próxima a que vivia André, Ana e Sérgio. Trata-se do romance O escravo, de autoria
de João Raymundo Duarte.30 Seu principal personagem é Amâncio, um escravo africano que
possuía uma “índole indomável”. Desde criança sonhava com sua liberdade. Trazia em si
uma incontestável liderança frente aos demais cativos. Não que fosse amado. Não o era. Na
realidade, seus companheiros o temiam. Como símbolo maior de seu poder, afirmava para
todos que era feiticeiro. Dominava os conhecimentos das plantas, das ervas e usava suas
capacidades tóxicas em seu proveito. Seus inimigos desapareciam vítimas de acidentes
estranhos e sua fama estendia-se por toda a região próxima à Leopoldina. Em função de tudo
isto, vivia sendo castigado pelos feitores. Mas não desanimava. Continuava a vida odiando
ser cativo e odiando ainda mais a seus senhores.
Um dia percebeu que era necessário acabar com o seu cativeiro e de seus
companheiros. Planejaram, então, uma insurreição que deveria envolver os escravos da
região e não apenas os de sua fazenda. Entretanto, foram denunciados. A solução encontrada
por muitos foi a fuga para os matos. Formaram assim, o Quilombo da Taquara. Amâncio foi
aprisionado novamente, espancado e depois vendido para um médico que se apiedou de sua
desgraça e passou não só a tratá-lo bem, como lhe deu a alforria e ambos passaram a
trabalhar juntos, atendendo a população. Mas esta é uma outra história. Por ora, o que nos
interessa na vida de Amâncio é o seu conhecimento sobre o poder das ervas.
A concepção de que o escravo era um ser inferior estava tão impregnada na forma de
compreender a sociedade que mesmo os abolicionistas e seus discursos reproduziam esta
crença. Amâncio era um escravo diferente, porque era uma exceção à regra, já que, segundo
o autor, a escravidão dele era incompatível com a sua altivez e inteligência. Para o autor:
“raras vezes [a altivez e a inteligência eram] encontradas nos indivíduos de sua raça”.
Durante o período que Amâncio era cativo, usava seus conhecimentos sobre as
plantas para amedrontar e se livrar de seus inimigos. Daí sua fama de feiticeiro. A partir do
momento em que ele foi tratado como um homem livre e passou a trabalhar ao lado do
médico e seus conhecimentos se voltaram para salvar vidas, ele deixou de ser identificado de
maneira pejorativa. O conhecimento por parte de alguns membros

30. Este romance foi publicado em Campinas, nos números 11, 12, 13 e 14 do jomal Iniciador, em outubro de
1881, e reeditado por João R. Duarte em seu livro Recordações mineiras. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger,
1917.

273
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

da sociedade era algo temido porque, de certa forma, conferia poder. No caso, o poder de
vida e de morte controlado por seres tidos como inferiores, selvagens, vingativos e violentos
por natureza.
Por um lado, havia por parte dos senhores de escravos um medo generalizado não só
dos ataques diretos as suas pessoas ou a de seus familiares, mas também aos ataques mais
sutis feitos através de feitiços que os africanos conheciam profundamente. Entretanto, estas
mesmas idéias e medos eram usados por parte dos abolicionistas para demonstrar o quanto o
escravismo era perigoso para a sociedade branca, porque era um mal que desmoronava a
família a partir de dentro da casa grande. Joaquim Manuel de Macedo, em sua obra
abolicionista As vítimas algozes, também usará deste artifício para mostrar que a escravidão
era uma instituição que estava acabando com a moral da família brasileira, na medida em
que as pessoas ficavam muito próximas e em contatos diretos com seres pouco
desenvolvidos moralmente. Em um de seus contos, Pai Raiol é um feiticeiro terrível que
manipula as pessoas de acordo com seus intentos, e acaba por matar a família de seu senhor
através de uma série de feitiços. Para o autor, o feitiço era africano e para ele:

Não há fazendeiro prudente ou ajuizado que tolere dentro de sua


fazenda a prática de feitiçaria; algum, e tem havido exemplos,
que apadrinhou esta brutal impostura, foi desgraçado infecto
dessa louca superstição e acabou dela vítima.31

É ainda Macedo que explica quem era o feiticeiro africano:

É o negro herbolário, o botânico prático e que conhece as


propriedades e a ação terrível de raízes, folhas e frutas que
debilitam, enlouquecem e fazem morrer o homem; que abatem
com as forças físidaTa força moral do homem, e ao que eles
chamam “amansar” o senhor (Macedo, 1991: 77).
7

Amâncio foi descrito de marfeira muito semelhante:

Tinha consciência de sua superioridade entre seus parceiros;


d’ella tirava partido impondo-se entre elles como possuidor de
dons sobrenaturaes: disia-se - feiticeiro - e ai d’aquelle que
ousasse ir de encontro a sua vontade: conhecedor perfeito da

31. MACEDO, Joaquim Manuel de. As vítimas algozes. Rio de Janeiro: Scipione, 1991, p 76.
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .

flora cTaquellas matas, não era estranho ao principio tóxico de


certas raízes com as quaes manobrava em proveito de seus
planos, confirmando de uma forma supersticiosa o conceito em
que era tido (Duarte, 1917).

Se André usou realmente o veneno da planta contra seu inimigo é algo que
provavelmente nunca saberemos. Entretanto, o que importa é a possibilidade do ato. A
feitiçaria, era, portanto, uma possibilidade, real ou não, com a qual a sociedade convivia. O
caso de Benjamim e Justina, moradores em um arraial próximo à cidade de Cataguases, é
mais um exemplo disto.
Na noite do dia 3 de janeiro de 1897, Serafim Francisco da Costa e alguns
companheiros invadiram a casa de Benjamim Benguela e sua mulher Justina, ambos
africanos com cerca de 80 anos. Espancaram barbaramente os dois. Como conseqüência, o
casal veio a falecer. Através do processo criminal e dos depoimentos das testemunhas,
tomamos conhecimento de que o motivo de tal atitude por parte de Serafim foi a crença de
que Benjamim era um feiticeiro e que havia colocado um feitiço nele, evidenciado, segundo
sua crença, numa ferida que não cicatrizava.32
Após terem assassinado Benjamim, puxaram Justina para o terreiro e a espancaram
nas “partes genitais” com um pau de enrolar fumo. Tal utensílio de espancamento não foi
aleatório. De acordo com Machado Filho,33 havia algumas formas de se anular o poder dos
feiticeiros e de quebrar seu encanto mágico. O que o grupo tentou fazer ao espancar Justina
foi exatamente isto. Toda a cerimônia de anulamento de poder dos feiticeiros deveria ser
feita numa sexta feira, em tomo de uma fogueira queimando hastes secas de alho, guiné e
fumo de corda. Dever-se-ia aplicar no feiticeiro um defumatório, quebrar em suas costas
ovos chocos e depois dar-lhe uma surra com pau de fumo, ou seja, um pedaço de madeira
onde se enrola fumo de corda. Na realidade, os espancadores cumpriram apenas a última
parte do ritual e com algumas adaptações.
O grupo foi acusado também de ter roubado “dous bahus de folha onde tinhão
guardado dinheiro [105 mil réis] e algumas imagens de santos”.
Alguns que participaram do espancamento disseram no depoimento que não
acreditavam que Benjamim tivesse feito a tal feitiçaria, mas que Serafim acreditava
piamente. Além das doenças sofridas por Serafim, um outro motivo para sua crença nas
práticas de feitiçaria de Benjamim era o fato de que ele “era muito trabalhador e vivia com
fartura”.

32. Processo Criminal. CDH, Cataguases, CAT 2, CR 763, cx 32.


33. MACHADO FILHO, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia,
1985, p. 50.

275
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Antonio Tormenta, um dos que espancou os dois africanos, afirmou que estava com
medo de se envolver em semelhante caso, mas que Serafim afirmou que não era crime bater
em feiticeiro, e de qualquer forma estariam protegidos por pessoas importantes na região.
Em março de 1899, Serafim Francisco da Costa foi condenado a um total de 29 anos
de prisão. Entretanto, em junho do mesmo ano, foi absolvido. A defesa alegou que ele estaria
cumprindo ordens (não informou de quem), e que estava sem o domínio de suas faculdades
mentais. O promotor pediu o cancelamento do julgamento alegando ser impossível que ele
não tivesse domínio de seus atos. Não conseguiu. Parece que seu protetor tinha, realmente,
algum poder.
Em 19 de agosto de 1910, somente dois dos participantes do espancamento haviam
sido julgados e absolvidos. Os processos dos demais não haviam sido sequer analisados pelo
júri.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através de processos judiciais, queixas crimes, literatura, crônicas de jornais e outros


tipos de fontes, alguns aspectos das festividades e ou das práticas religiosas executadas por
escravos ou por seus descendentes que viviam no Rio de Janeiro ou em Minas Gerais na
segunda metade do século XIX puderam ser analisadas. Tais práticas culturais remetem a
uma complexidade de arranjos de matrizes culturais díspares que tiveram de ser adaptados à
realidade do cativeiro, gerando uma nova forma de entendimento e vivência acerca dos
valores trazidos pelos descendentes destas populações cativas. Não se trata de buscar
remanescências africanas nestas sociedades. Pelo contrário, o que se buscou foi perceber as
novas matrizes culturais que foram forjadas no interior de um sistema escravista, opressor
por natureza, mas não impeditivo de criações e recriações culturais.
A documentação permitiu identificar o quanto a cultura negra era desconhecida e,
conseqüentemente, temida petésautoridades e pelos senhores. Entretanto, em vários
momentos, foi possível também identificar certa tolerância destes últimos com as crenças e
concepções negras motivada, sem dúvida, pelo receio de que uma proibição pudesse
desencadear problemas maiôres no interior dosplantéis.
A escravidão, apesar de sua violência intrínseca, não conseguiu através de seus
representantes proprietários de homens destruir no escravo a capacidade criativa e a
necessidade de se manter vivo e acreditando em algo. Os cativos, de formas variadas,
buscaram condições de resistir ao processo de desumanização intentada por seus senhores e
pelo sistema. A recriação de práticas culturais e a apropriação de categorias de outros grupos
étnicos do que lhes serviam em termos de crenças foi, sem dúvida, a maior resistência ao
cativeiro.

276
A TRAJETÓRIA ECONÔMICA DA COMARCA DO RIO DAS VELHAS:
Um ESTUDO DAS ESTRUTURAS DE POSSE DE ESCRAVOS E AS
RELAÇÕES COM O MERCADO INTERNACIONAL DE ESCRAVOS

(SÉCULO

1 2
Raphael Freitas Santos Carolina Perpétuo Corrêa

Após a redução das explorações auríferas, a sociedade e a economia mineira teriam


entrado em colapso. Essa realidade, que perpassaria a segunda metade do século XVIII e
quase todo o século XIX, teria se consolidado logo depois que a mineração teria deixado de
ser a atividade majoritária, passando esse título para a agricultura de subsistência. Nesse
sentido, cunhou-se a noção de “decadência” para explicar esse momento da história de
Minas Gerais.
Conforme diagnosticou Celso Furtado:

(...) não havendo criado as regiões mineiras formas permanentes


de atividade econômica - à exceção de alguma agricultura de
subsistência - era natural que, com o declínio da produção do
ouro, viesse uma rápida e geral decadência.3

De acordo com essa lógica de raciocínio, a economia teria se atrofiado, perdido


vitalidade, e a sociedade involuído para “uma massa de população totalmente desarticulada,
trabalhando com baixíssima produtividade numa agricultura de subsistência” (Furtado,
1970: 93).

1. Mestre era História pela UFMG e professor da Faculdade ASA.


2. Mestre em História pela UFMG e professora da Faculdade ASA.
3. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 10a ed., São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1970,
p. 91.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

A decadência teria acontecido uma vez que a produção do ouro não engendrava
segmentos produtivos in loco. Como se gastava muito na importação de gêneros de
subsistência e quase nada se produzia dentro das Minas, sua economia não teria se
dinamizado e, por isso, não teria condições de se sustentar diante da crise na mineração.4
Na contramão da noção de “decadência” da economia mineira foram produzidos
estudos que apontaram para a dinamicidade dessa região, mesmo após a crise na mineração. 5
Isso porque, como já disse Kenneth Maxwell: “A economia regional, com suas propriedades
rurais horizontais integradas, era particularmente capaz de absorver o choque das
transformações que vieram após a exaustão do ouro aluvial”. 6
Vem sendo demonstrado que, devido à complexidade da formação econômica e
social das Minas ao longo do século XVIII, algumas regiões mineiras foram capazes de
superar a crise na mineração, reorientando as atividades produtivas em tomo da agricultura
mercantil e de subsistência no século XIX.7 A constatação de que cerca de 46% dos 75.778
africanos desembarcados no Rio de Janeiro entre 1822 e 1833 foram destinados ao mercado
mineiro8 consiste em importante argumento contra a noção de uma decadência generalizada.
Isso indica que a economia mineira não só foi capaz de sustentar uma utilização maciça de
mão-de-obra escrava nas atividades agropastoris

4. De acordo com Laura de Mello e Souza a produção do ouro não teria engendrado “segmentos produtivos in
loco, pois importava-se a maior parte dos meios de subsistência e quase não havia produção interna ou
retenção do excedente produzido”. Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro: a pobreza
mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 28. Por isso, a produção de alimentos passara a ser uma
atividade de grande vulto nas Minas a partir do declínio da exploração aurífera. Segundo Zemella: “Vemos
que, ao declinar o século XVIII, o panorama econômico da capitania de Minas Gerais era bem diferente do
que se descortinava no início da centúria. O desenvolvimento da agricultura, da pecuária e das manufaturas,
conferindo à capitania elemento de auto-suficiência, permitiu- lhes dispensar os fornecimentos externos”. Cf.
ZEMELLA, Mafalda P. [1951]. O abastecimento da capitania de Minas Gerais no século XVIII. 2a ed., São Paulo:
Hucitec/Edusp, p. 258.
5. Ver, por exemplo: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A Princesa do Oeste: elite mercantil e economia de
subsistência em São Joãb del-Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
6. MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira (Brasil-Portugal, 1750- 1808). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 1^2.
7. Nesse sentido destacam-se os trabalhos de: SLENES, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia
escravista de Minas Gerais no séetíío XIX. Cadernos 1FCH-UN1CAMP, n. 17,1985;LIBBY, Douglas Cole.
Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988;
LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil (1808-1842).
São Paulo: Símbolo, 1979; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho. Alterações nas unidades produtivas mineiras
(Mariana, 1750-1850). Niterói: UFF. Dissertação de Mestrado, 1994; CARRARA, Ângelo Alves. As minas e os
currais; produção rural e mercado interno de Minas Gerais (1674-1807). Rio de Janeiro: Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, 1997.

8. FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.
177.

278
A T RAJETÓRIA E CONÔMICA DA C OMARCA DO R IO DAS V ELHAS

destinadas ao autoconsumo e aos mercados locais, como foi capaz de ampliar seu contingente
cativo decorrer do século XIX por meio de novas importações.9
Tais números apontam para duas questões importantes: a) que a importação e a posse
de cativos podem ser importantes indicadores do grau de dinamismo da economia
setecentista; b) que não apenas as atividades voltadas para o mercado externo que eram
lucrativas - e que o mercado interno era importante o suficiente para pelo menos ensejar a
aquisição, junto ao mercado internacional, de mão-de-obra escrava africana.
Uma vez que a economia mineira contava com um dinamismo que se sustentava para
além da exploração aurífera- mesmo durante a primeira metade do século XVIII
- foi possível uma “acomodação evolutiva” ao longo do século XIX, contribuindo, assim,
para ampliação do contingente escravo na região.10 Além disso, a capitania era marcada pela
combinação de diversos ritmos de desenvolvimento, altemando-se, no tempo e no espaço, os
de crise e de prosperidade." Dada essa complexidade de realidades econômico-sociais,
variando no tempo e nos espaço, acreditamos que a compreensão das Minas setecentistas só
se dará a partir da proliferação de estudos regionais com preocupações comparativas. Embora
tais diferenças não se encerrassem em divisões artificiais como comarcas e termos, estudos
locais podem oferecer um panorama capaz de revelar algumas nuances, apontando para as
especificidades de cada região mineira.
A Comarca do Rio das Velhas, por exemplo, se localizava no centro da capitania de
Minas Gerais. Era rica em veios auríferos (a região entre Sabará e Caeté) e em terras férteis,
tanto para agricultura quanto para a pecuária. Possuía ainda importantes entrepostos
comerciais, como Santa Luzia, Sabará, Roça Grande e Pitangui. Foi uma região marcada,
portanto, pela diversificação produtiva. No entanto, a atividade mais importante, sem sombra
de dúvidas, foi a produção mineral, e, apesar do impacto da crise da mineração não ter sido
imediatamente sentido, como na Comarca de Ouro Preto, 12 acreditamos que causaria perdas
irreparáveis a médio e longo prazos.

9. De acordo com os dados apresentados por Roberto Martins, a população escrava em Minas Gerais subiu de
170 mil, em 1819, para 380 mil, em 1878. Cf. MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas
Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG 1980, p. 1.
10. Sobre a redefinição do conceito de “acumulação evolutiva” desenvolvido por Celso Furtado, ver: Libby
(1988).
11. SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: Estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). São
Paulo: Hucitec, 1997, pp. 235-6.
12. MÔNICA, Daniele. A produção social da desigualdade: hierarquização social e estratégias de classe na
formação da sociedade mineira (Mariana, 1701-1750). Mariana: Universidade Federal de Ouro Preto,
Monografia de Bacharelado, 2003, apud SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Crédito e circulação
monetária na colônia: o caso fluminense (1650-1750)”, in Anais do I Encontro da Pós- Graduação em História
Econômica. Caxambu: ABPHE, 2003, p. 14.

279
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Já a Comarca do Rio das Mortes abrangia uma extensa área, com relevo
diversificado, que abrigava desde regiões montanhosas e ricas em águas, até terrenos planos
com extensos campos, propícios para a criação de gado. As áreas mais dinâmicas dessa
região eram as vilas de São João e São José del-Rey, Barbacena, Baependi e Queluz.
Contava, portanto, com uma significativa produção mineral, mas se destacou, desde os
primórdios, a produção agrícola pastoril. Tal característica teria sido responsável por uma
realidade diversa das demais comarcas ao final do século XVm. Enquanto em outras
regiões o declínio da extração mineral teria abalado significativamente a economia regional,
no Rio das Mortes, devido à sua vocação agropastoril e sua proximidade com a fronteira do
Rio de Janeiro, se consolidou como uma região escravista, produtora de alimentos e voltada
par o mercado interno (Graça Filho, 2002).
Do contraste entre as comarcas do Rio das Velhas e do Rio das Mortes fica patente a
complexidade da capitania de Minas Gerais. Existiram diferenças enormes entre regiões,
parecendo-nos mais apropriado falar em economias mineiras que em uma “economia
mineira”. Tendo em vista as especificidades regionais, o objetivo do presente trabalho é, a
partir das tendências apontadas sobre as estruturas de posse de escravos na Comarca do Rio
das Velhas, detectar possíveis especificidades da região em foco, reafirmando as nuances
regionais e as idéia de que as Minas são muitas.
Para tanto, utilizamos de dados retirados de inventários post-mortem. Os inventários
post-mortem são documentos judiciais produzidos com o objetivo de fazer uma espécie de
balanço dos bens e dívidas de uma pessoa, após seu falecimento, a fim de legalizar o
processo sucessório. Uma das vantagens desse tipo de fonte é que seu formato variou muito
pouco ao longo do tempo, possibilitando análises seriais. Os inventários caracterizam-se,
portanto, por grande uniformidade de informações, contento, quase sempre, dentre outras
informações, os nomes dos escravos do inventariado, sua avaliação, sua região de origem (na
África ou no Brasil) e, eventualmente, a idade e atuaç ~ )fissional dos cativos. 13

Todavia, apesar de sua e í utilidade, os inventários, como de resto qualquer


documento histórico, precisam ser usadas com parcimônia. Libby aponta os problemas
inerentes a esse tipo de fonte, como, pór exemplo, a temporalidade do “retrato” dos bens ali
arrolados - deve-se ter em rríente que o documento é produzido no momento da morte do
senhor de escravos, fase muito específica do “ciclo” da própria posse escravista. Como nos
lembra Gutman,14 as diferentes fases da vida dos senhores se

13. Sobre os inventáriospost mortem, ver: MAGALHÃES, Beatriz R. Inventários e seqüestras: fontes para a
História Social. Revista do Departamento de História da UFMG. Belo Horizonte, v. 9,1989, pp. 31 -45.
14. GUTMAN, Herbert G The Black Family in Slavery andFreedom (1750-1925). New York: Pantheon
Books/Random House, 1976.

280
A T RAJETÓRIA E CONÔMICA DA C OMARCA DO R IO DAS V ELHAS

refletem na composição de sua escravaria. Assim, parece plausível pensar, por exemplo, que
um senhor moço, no começo da vida, recorreria com muito mais freqüência ao mercado de
escravos, já que vivia um momento de investimento e montagem de sua unidade produtiva.
Em oposição, um velho fazendeiro, proprietário de longa data, talvez tivesse dentre os seus
bens um plantei escravo já consolidado, que contava com várias famílias e quiçá crescente
por si mesmo. Em outras palavras, os inventários não refletiriam necessariamente o caráter
das posses de escravos como um todo, em um dado momento.
Além disso, é preciso ter em mente que, principalmente quando utilizados como
evidências indiretas do tráfico de escravos, os inventários inevitavelmente trazem dados um
pouco “atrasados” em relação à aquisição de escravos no mercado. Como afirma Graça
Filho: “os inventáriospost-mortem revelam as escravarias no momento do falecimento dos
senhores e (...) suas importações de escravos poderiam ter acontecido bem antes dessa
data”.15
De fato, os inventários nos oferecem apenas uma fotografia de uma unidade
produtiva, ou seja, provisória e referente a um recorte bastante específico no tempo. Isso não
quer dizer, necessariamente, que esse recorte represente o momento de declínio de uma
unidade produtiva. A morte do proprietário não significa, necessariamente, a morte de seus
bens. Ou seja: os inventários dizem muito sobre o passado de uma unidade produtiva, mas
ensinam também sobre o seu presente.
Além disso, com freqüência, os inventários de grandes proprietários estão
desaparecidos. De acordo com Libby: “É bastante plausível sugerir que, de uma forma ou de
outra, as famílias da elite mineira e seus advogados conseguiam ficar de posse de inventários
que deveriam ter permanecido nos cartórios”.16 Isso também faria com que os grandes
plantéis estejam sub-representados em dados extraídos dessa documentação.
Apesar de todas as precauções, nada desautoriza a utilização dos inventários como
fontes de pesquisa, mesmo quando o objeto em foco é a estrutura de posse de escravos. Ao
trabalhar com esses dados, estaremos tentando vislumbrar tendências, sem jamais ter a
pretensão de, através deles, reconstituir a realidade estudada.

15. GRAÇA FILHO. “Famílias escravas em São José do Rio das Mortes (1743-1850)”, in 1 st International
History Workshop on Population and Economy in Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG/Centro de Estudos
Mineiros, 14 e 15 dez 2005, p. 15, texto inédito.
16. LIBBY, Douglas Cole. “Minas na mira dos brasilianistas: reflexões sobre os trabalhos de Higgins e Bergad”,
in BOTELHO, Tarcísio R. (org.). História quantitativa e serial: um balanço. Belo Horizonte: ANPUH-MG
2001, p. 295.

281
E SCRAVID ÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Foram examinados, por meio de uma base de dados, 750 inventários, produzidos
entre 1713 e 1793, dos quais foi possível extrair informações sobre 8.462 escravos descritos
entre os bens dos inventariados.17 Para melhor acompanhar as mudanças processadas na
economia mineira setecentista e nas estruturas de posse de escravos, os dados foram
analisados em períodos de aproximadamente 20 anos, marcados por momentos distintos da
economia regional. São eles: Io) 1713-1733; 2o) 1734-1753; 3o) 1754-1773; 4o) 1774-1793.
A conjuntura econômica de cada um destes períodos pôde ser caracterizada a partir
dos próprios dados, especialmente com base principalmente na média de escravos por
inventariado, importante indicador da dinamicidade de uma economia (tabela 1).

Tabela 1. Posse média de escravos por inventariado ao longo do século XVIII

Períodos Escravos por inventariado


Entre 1713-1733 10,8
Entre 1734-1753 14,7
Entre 1754-1773 12,5
Entre 1774-1793 7,6

Fonte: Banco de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas, século XVIÜ.

O primeiro período enfocado, referente ao intervalo entre 1713 e 1733, corresponde à


montagem da estrutura produtiva da sociedade mineira - daí a incidência de posses
escravistas menores. Embora o ouro já tivesse sido ali encontrado desde o final do século
XVII, com os achados de Femão Dias Paes na jornada de Sabarabuçu (1674-1681),18 a
ocupação efetiva ocorreu após a elevação à vila do antigo arraial de Nossa Senhora de
Conceição do Sabará, em 1711, e com a criação da comarca, em 1713.
O segundo momento, representado aqui pelos inventários feitos entre 1734 e 1753,
representaria o auge da produçào mineral, quando a posse média de escravos atingiu seu
ápice: 14,7 cativos por inventariado. Embora não haja consenso na historiografia quanto ao
momento áureo da economia mineira (Silveira, 1997:108),

17. As informações quantitativas foram potencializadas por meio da utilização de uma base de dados
informatizada, gentilmente cedida pela professora Beatriz R. Magalhães, coordenadora do Projeto “Banco
de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas, século XVIII”.
18. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. A época colonial. 11 a ed., Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, v. 2, p. 261.

282
A Trajetória Econômica da Comarca do Rio das Velhas

alguns autores, como Virgílio Noya Pinto, acreditam que as maiores remessas de ouro foram
enviadas a Portugal entre 1735 a 1760.19
A partir da década de 1750, além da diminuição na arrecadação com a exploração do
ouro, fazia-se sentir, de acordo com os discursos dos memorialistas, um quadro que sugeria a
desagregação da região. Tal discurso foi corroborado, muitas vezes acriticamente, por uma
parte da historiografia, que denominou todo o período correspondente à segunda metade do
século XVIII como uma época de “decadência” da economia mineira.
Embora concordemos com a historiografia revisionista, crítica dessa noção de
decadência, percebemos que no terceiro período (1754-1773) há uma ligeira queda na média
de escravos por inventariado, embora a redução mais significativa vá ocorrer no período
seguinte. Tal queda estaria indicando uma perda de dinamismo econômico, provavelmente
relacionada à desaceleração da atividade mineratória, já a partir da década de 1760.
Seja como for, a se julgar por nossos dados, a conjuntura de desaquecimento da
economia da Comarca do Rio das Velhas se consolidará no período seguinte (1774- 1793),
quando a média de escravos por inventariado sofre uma acentuada queda, passando para 7,6.
As conseqüências desse desaquecimento econômico podem ser percebidas quando analisada
a inserção da região ao mercado negreiro internacional (tabela 2).

Tabela 2. Relação entre escravos coloniais e africanos inventariados ao longo do


século XVIII

Coloniais Africanos Total


Período N % N % N
1713-1733 102 23,6 331 76,4 433
1734-1753 494 25,8 1.42 74,2 1.916
2
1754-1773 776 27,0 2.09 73,0 2.870
4
1774-1793 1.06 42,0 1.46 58,0 2.526
1 5
Fonte: Banco de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das
Velhas, século XVIII

19. PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos estudos da
economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.

283
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Percebemos, a partir da análise da tabela acima, que durante o período de montagem


da economia e da sociedade mineiras a taxa de africanidade era bastante elevada; de fato, a
mais alta de todo o século. É bastante lógico que, nesse primeiro momento, a imensa maioria
dos escravos fosse importada da África. O interessante é que a taxa de africanidade
permanece elevada, sofrendo apenas uma redução muito ligeira, até 1773. No período
posterior, todavia, ela sofre brusca queda, que se coaduna perfeitamente com os dados
anteriormente analisados sobre a média de escravos por proprietário, que naquele mesmo
momento sofrem drástica redução.
Em parte, o aumento da participação dos crioulos na escravaria da comarca após
1774 estaria diretamente relacionada à redução da compra de escravos importados, resultado
direto da perda de dinamismo econômico da região, e do concomitante aumento do potencial
de reprodução natural do população mancípia. 20 Isso pode ser verificado na tabela 3,
principalmente no que tange à razão de sexo dos africanos, muito mais elevada que dos
coloniais.

Tabela 3: Taxa de africanidade entre os escravos inventariados durante o século


XVIII

Coloniais Africanos

Homens Homens Mulheres Razão Homens Mulheres Razão


1713-1733 47 55 85,5 263 68 386,8

1734-1753 276 218 126,6 1.213 209 580,4


1754-1773 451 325 138,8 1.875 219 828,8
1774-1793 643 418 153,8 1.256 209 601,0

Fonte: Banco de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas, século XVIII.

20. O tráfico negreiro africano trazia para o Novo Mundo muito mais homens que mulheres, e muito poucas
criancinhas pequenas - nã«J'ím}5ortando se esta situação era desencadeada pela natureza da oferta africana
ou pela demanda americana. A constante chegada de levas de escravos africanos com tais características
resultava, portanto, em aumento da distribuição desigual entre os sexos e, conseqüentemente, vinha a
dificultar ou mesmo inviabilizar o crescimento vegetativo da população escrava. A impossibilidade de
reprodução natural de populações escravas em curto prazo, em uma economia extensiva em expansão,
criava um círculo vicioso, dando continuidade à dependência do tráfico para aumento do contingente cativo.
A incapacidade reprodutiva, todavia, poderia não vigorar em todas as situações no tempo e nos espaço. Um
arrefecimento do tráfico negreiro durante um período razoável de tempo, permitindo um maior equilíbrio
entre os sexos, podia criar condições propícias à reprodução natural, como ocorreu no Sul dos Estados
Unidos, no início do século XIX. Ver: CORREA, Carolina Perpétuo. "Por que sou um chefe de famílias e o
senhor da minha casa proprietários de escravos e famílias cativas em Santa Luzia (Minas Gerais, século XIX). Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais/Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Dissertação
de Mestrado, 2005, p. 38.

284
A Trajetória Econômica da Comarca do Rio das V elhas

No entanto, o progressivo aumento da razão de sexo dos escravos coloniais parece


sugerir que a queda na taxa de africanidade não se devesse somente ao incremento na
reprodução natural. Note-se que a desproporção entre os sexos para os escravos coloniais
atinge o seu ponto mais elevado justamente no período 1774- 1793, quando o recurso ao
mercado internacional de escravos tomou-se menos intenso. Isso sugere que talvez os
senhores da comarca estivessem adquirindo escravos coloniais, devido ao momento de
recessão econômica e ao capital cada vez mais escasso.
De modo geral, os dados sobre o tráfico negreiro (de qualquer lugar para qualquer
lugar) ainda são muito incertos, embora os pesquisadores estejam produzindo informações
cada vez mais confiáveis. De acordo com os dados de Eltis e Richardson, percebemos que,
ao longo do século XVM, houve um aumento constante no volume dos escravos saídos da
África em direção às Américas. Notamos também que a importância das diferentes regiões
africanas com fornecedores de cativo sofreu alterações.
No início do século XVIII, a maioria dos escravos embarcados pra a América era
proveniente da África Ocidental (Baía de Benin e Costa do Ouro). No entanto, a África
Ocidental, em especial a Costa do Ouro, foi, ao longo dos Setecentos, paulatinamente
perdendo importância, tanto em termos relativos quanto absolutos, e a África Centro-
Ocidental foi ganhando terreno. No final do século a maioria dos escravos já saía desta
última região, que, em termos absolutos foi responsável por um volume de exportação de
homens incomparavelmente mais elevado que qualquer outra durante o total do período. /

Tabela 4. Partidas de escravos das principais regiões exportadoras da África durante o


século XVIII

Homens Baía de % Costa do % África % Todas as


Centro-Ocidental
Benin Ouro regiões
1701-1725 181,7 19,0 408,3 42,6 257,2 26,8 958,6
1726-1750 186,3 14,2 306,5 23,4 552,8 42,2 1311,3
1751-1775 263,9 13,9 250,5 13,1 714,9 37,5 1905,2
1776-1800 240,7 12,5 264,6 13,8 816,2 42,5 1921,1

Fonte: Adaptado de ELTIS, David & RICHARDSON, David. Os mercados de escravos africanos recém-chegados às Américas: padrões de preços
(1763-1865). Topai, Re\’ista de História, Rio de Janeiro, n. 6, mar, 2003, p. 10.

O aumento percentual na proporção de escravos oriundos da Costa Centro- Ocidental


pode ser explicado também pelo incremento do mercado internacional de escravos durante
esse período. A partir da década de 1740, o porto do Rio de Janeiro

285
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

se toma o maior entreposto comercial de escravos da América portuguesa - conforme aponta


a tabela 3. Nesse período intensificou-se, principalmente, o comércio com o porto de Luanda
e os demais portos de Angola.21 Depois dos conflitos que assolaram a região durante o século
XVII, a região de Congo e Angola passaram a participar mais ativamente do mercado
atlântico de escravos.22 O aumento da oferta de cativos provenientes dessa região pode ser
visto na tabela 5.
O aumento da entrada de escravos via Região Sudeste (principalmente através do
porto do Rio de Janeiro) é concomitante a uma diminuição da entrada de cativos pela Bahia,
que aos poucos vai perdendo a sua posição de maior porto receptor de escravos.

"^xTabela 5. Chegada de escravos nos principais portos da América portuguesa ^


durante o século XVIII

Período Bahia Sudeste Todas as


do Brasil regiões

N % N % N
1701-1725 199,6 24,2 122 14,8 825,8

1726-1750 104,6 9,2 213,9 18,8 1136,9


1751-1775 94,4 5,7 210,4 12,7 1653,9

1776-1800 112,5 6,5 247,2 14,2 1735,4

Fonte: ELTIS, David e RICHARDSON, David. Os mercados de escravos africanos recém- chegados às
Américas: padrões de preços, 1763-1865. IN: Topoi, Revista de História, Rio de Janeiro, n. 6, março
2003, p. 16.

Ainda se está longe de um conhecimento aprofundado sobre o tráfico de escravos


para a região das Minas. Todavia, sabe-se que a maior parte desses escravos, inicialmente,
foi adquirida junto ao mercado africano. Entraram nesse momento, majoritariamente,
escravos ociímSos do que chamamos genericamente de Costa Ocidental, principalmente da
Costa da Mina.23 Os escravos mina chegaram a Minas Gerais principalmente pelos
caminhosque ligavam a Bahia à capitania, através do rio

21. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a Africa e o Rio de
Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.; 64-69.
22. SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002.
23. A origem dos escravos, declarada nos documentos, diz respeito apenas ao local de desembarque dos
cativos, e não ao seu grupo étnico de origem. Ao categorizar a origem dos escravos em Costa Ocidental
e Centro-Ocidental, sabemos que muitas especifícidades de origem étnica estão sendo ignoradas.

286
A T RAJETÓRIA E CONÔMICA DA C OMARCA DO R IO DAS V ELHAS

das Velhas. De fato, nos primeiros anos de ocupação do território mineiro, essa era a
principal rota comercial com o mercado externo, o que explicaria a predominância de
escravos da África Ocidental.
Uma outra explicação plausível para a preponderância de escravos dessa região
específica da África passaria pelos conhecimentos técnicos na extração mineral e em
metalurgia que possuíam esses indivíduos. Em alguma parte dessa região africana, segundo
Del Priori e Venâncio, “a exploração das minas era submetida a um rigoroso controle e
consistia na principal fonte de renda dos soberanos”.24 Ainda de acordo com os autores, “a
extração de ouro [na África Ocidental] atingiu seu apogeu no século XVII” (Priore &
Venâncio, 2003:113).
A valorização dos negros mina estaria relacionada, também, à superstição corrente
entre os mineiros de. que escravos dessa região teriam o dom especial para descobrir novas
minas. Segundo Paiva:

Esses homens e mulheres embarcados na Costa da Mina com


destino ao Brasil eram tradicionais conhecedores de técnicas de
mineração do ouro e do ferro, além de dominarem antigas
técnicas de fundição desses metais. Eles conheciam muito mais
sobre a matéria que os portugueses (...). Ao que parece, o poder
quase mágico dos mina para acharem ouro e a sorte na
mineração associada a uma concubina mina eram, na verdade,
aspectos alegóricos de um conhecimento técnico apurado.25

Com a intensificação da exploração mineral, a economia da Comarca do Rio das


Velhas mostrou sinais de crescimento. Nesse período, as atenções estavam voltadas todas
para as Minas. O porto do Rio de Janeiro foi consolidando como centro econômico da
América portuguesa, em grande medida devido à sua posição estratégica em relação à região
mineradora. O crescimento econômico da região, somado ao aumento do comércio com o
Rio de Janeiro e as conjunturas internacionais descritas acima, permitiram a importação cada
vez maior de escravos africanos, principalmente aqueles adquiridos na Costa Centro-
Ocidental.

24. PRIORE, Mary dei & VENÂNCIO, Renato Pinto. Ancestrais: uma introdução à história da África atlântica. São
Paulo: Campus, 2003, p. 113.
25. PAIVA, Eduardo França. Bateisas, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo
Mundo. In: PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço:
maneiras de pensar e formas de viver (séculos XVI a XIX). São Paulo: Annablume, 2002, p. 187.

287
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Mas, como apontam os dados apresentados anteriormente, o final do século XVIII foi
um período de empobrecimento da Comarca do Rio das Velhas. Isso se explicaria,
possivelmente, pela ligação estreita da economia regional com a atividade mineradora. Ao
que parece, após a rarefação do ouro houve uma intensa migração, possivelmente para dentro
dos limites da comarca, o que teria gerado uma mudança econômica importante para a
região.26
Embora os números de entradas de escravos nas Minas durante o Setecentos ainda
seja precária, existem alguns estudos criativos que tentam perceber tendências a partir de
dados indiretos. Um bom exemplo é um trabalho de Libby, que se utilizou de registros
paroquiais de batismos de escravos adultos como indicadores das tendências de compra de
escravos africanos em localidades de Minas Gerais.27
Trabalhando com três bases de dados cedidas por outros pesquisadores, estudou a
Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei, entre 1736-1854 (embora faltem
registros para os intervalos 1754-60; 1775-8; 1842-7); a localidade de Catas Altas, entre
1715-1753 (com lacunas apenas para o ano de 1720); e, finalmente, a Paróquia de Nossa
Senhora do Pilar do Ouro Preto, no período que se estende de 1712 a 1843 (com uma
lamentável lacuna para o intervalo 1720-35).
Impressiona a consistência das tendências encontradas para cada uma destas
localidades. De modo geral, os números, elevados no começo do século XVIII, começam a
cair por volta da metade do século (décadas de 40 e 50, para São João e Catas Altas, e 50,
para Ouro Preto). A tendência decrescente se mantém até a década de 90 dos Setecentos, com
aumentos esporádicos em São João e Ouro Preto, mas não em Catas Altas. À virada do
século, as cifras atingem seu nível mais baixo, chegando a cessar totalmente em Catas Altas,
em 1809-10, em São João, em 1805- 10, e em Ouro Preto, em 1811.0 século XIX alvorece,
portanto, com as importações de escravos africanos por estas localidades mineiras em seu
ponto mais baixo desde a introdução do escravismo na região.
Essa nova realidade econômica vivida em toda a capitania, em algum momento após
a redução na extração minefal^trouxe mudanças nas condições de aquisição de escravos.
Percebe-se a diminuição nas ônportações de escravos africanos e o aumento dos escravos
coloniais. No entanto, um tiado sobre esse período é bastante peculiar à Comarca do Rio das
Velhas. A regiãó, entre os anos de 1773 e 1793, de acordo com a tabela 6, apresentou uma
mudança peculiar na origem dos escravos importados da África.

26. Será necessário um estudo mais aprofundado com relação a tais mudanças para que se possa efetivamente
caracterizá-las. Por enquanto, ela pode ser simplesmente intuída.
27. LIBBY, Douglas Cole. Notes on the slave trade and natural increase in Minas Gerais in the eighteenth and
nineteenth centuries. November, 2004, draft. Citado com autorização do autor.

288
A T RAJETÓRIA E CONÔMICA DA C OMARCA DO R IO DAS V ELHAS

Tabela 6. Origem dos escravos africanos inventariados

Período 1713-1733 1734-1753 1754-1773 1774-1793 MÉDIA

Origem
Centro-Ocidental 40% 49% 49% 35% 45%
Ocidental 60% 49% 48% 63% 53%
Outras regiões 0% 2% 3% 2% 2%

Fonte: Banco de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas, século XVIII

durante o século XVIII


Os dados para o período 1713-1733 condizem com as noções correntes na
historiografia sobre o tráfico para as Minas. Nesse momento observamos uma predominância
de cativos oriundos da Costa Ocidental africana (60%), como seria de se esperar. Uma análise
menos agregada dos dados mostrou-nos inclusive que parte considerável desses escravos era
proveniente da Costa da Mina.
Esse quadro sofre algumas mudanças significativas no período seguinte. Entre 1734-
1753, a porcentagem de escravos da Costa Centro-Ocidental se iguala aos da Costa Ocidental,
sendo que cada uma dessas regiões responde por 49% dos cativos africanos inventariados.
Essa equivalência se manteve praticamente inalterada até 1773.
Acreditamos que tal equilíbrio esteja relacionado a um aumento, cada vez maior, do
comércio com o porto carioca. Lembramos também que o período 1734-1753 corresponde a
um momento de aumento tanto na demanda por escravos na região das Minas quanto em um
incremento da oferta de escravos no mercado internacional.
Os números para os anos 1774-1793 são intrigantes. Nesse momento houve uma
diminuição brusca na proporção de escravos oriundos da África Centro-Ocidental, que
passaram a representar apenas 35% dos cativos inventariados, contra 63% da África
Ocidental. De acordo com a tabela 4, 42,5% dos escravos que saíam da África entre 1776-
1800 vinha dos portos da região Centro-Ocidental, enquanto menos de 30% partia da região
Ocidental. Ou seja, as posses escravistas da Comarca do Rio das Velhas apresentavam, no
final do século XVIII, uma conformação diversa das posses do Sudeste do Brasil (ver tabela
5). Acreditamos que esse dado é muito valioso e que nele reside a chave para a compreensão
da conjuntura econômica da comarca naquele momento.
Entre as hipóteses vislumbradas, podemos dizer que, em um contexto de crise,
conforme apontam os dados sobre a Comarca do Rio das Velhas, a compra de escravos junto
ao mercado internacional apenas se justificava pelos conhecimentos específicos que os
cativos pudessem ter. Quando a necessidade da força de trabalho não era

289
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

acompanhada de nenhum conhecimento técnico específico, era possível recorrer, nesse


período, aos escravos nascidos na América portuguesa. Eles poderiam ser adquiridos por um
preço bem menor junto ao mercado interno, ou poderiam ter nascido no próprio plantei. Isso
explicaria, por um lado, o aumento da proporção de escravos nascidos na América
portuguesa e, por outro lado, a predominância de escravos da Costa Ocidental africana.
No entanto, acreditamos que essa mudança na estrutura de posse de escravos africanos
estava muito mais ligada à oferta do que à demanda de cativos. Antes de tudo, é importante
lembrar que o comércio de cativos no mercado interno não era, na maioria das vezes, um
ramo especializado e não havia uma distinção clara entre tropeiros e comboieiros. Segundo
Cláudia Chaves,28 de todos os registros de entrada de mercadorias na capitania ao longo do
século XVIII analisados pela autora, só nos do Caminho Novo aparecem com freqüência
carregamentos compostos exclusivamente por cativos. Mas, mesmo no Caminho Novo, os
mesmos negociantes que transportavam, em algumas viagens, somente escravos, em outras
levavam cargas diversas (Chaves, 1999: 53).
Observando os investimentos dos comerciantes locais e as dívidas contraídas por eles
junto a comerciantes cariocas, percebe-se que boa parte dos negócios entre essas duas regiões
estava assentada em produtos de luxo.29 Com a escassez do ouro na região do Rio das Velhas,
as relações comerciais entre as principais praças da comarca (como Sabará, Roça Grande,
Santa Luzia e Pitangui) e o Rio de Janeiro diminuem consideravelmente. Com isso,
comprava-se menos de tudo da praça do Rio de Janeiro, inclusive escravos.
O comércio com a Bahia, no entanto, apesar de provavelmente ter diminuído durante
esse período, permaneceu com certo fôlego. Dessa região, além dos escravos da Costa
Ocidental, chegavam produtos para o abastecimento da comarca, como gado e fumo, por
exemplo.
Tal panorama não teria sidgobservado em outras regiões mineiras. Quando
comparados a Comarca do Rio dás Velhas à Comarca do Rio das Mortes, por exemplo, os
resultados se mostram bastante diferentes. A região do Rio das Mortes, por um lado, também
foi atingida pela recessão ao final dos Setecentos, o que teve um impacto na sua
capacidade/necessidade de adquirir escravos africanos - conforme aponta a tabela 6. Mas, por
outro lado, ao contrário da Comarca do Rio das Velhas, a região

28. CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo:
Annablume, 1999, p. 52.
29. SANTOS, Raphael Freitas. Devo que pagarei: sociedade, mercado e práticas creditícias na Comarca do Rio das
Velhas (1713-1773). Belo Horizonte: UFMG/Programa de Pós-Graduação em História, Dissertação de
Mestrado, 2005.

290
A Trajetória Econômica da Comarca do RIO das Velhas

sempre manteve estreitas relações com o porto Rio de Janeiro. Grande parte dos alimentos
que abasteciam a cidade do Rio de Janeiro eram provenientes do sul de Minas, encabeçado
pela vila de São João del-Rei. Essa relação passou a ser cada vez mais estreita. Isso explicaria
o fato de ter permanecido, no final do século XVIII, a predominância de escravos da África
Centro-Ocidental na região do Rio das Mortes, conforme aponta a tabela abaixo.

Tabela 7. Origem regional de africanos por período de tempo

África África África Total de


Ocidental Centro-Oeste Oriental
africanos
Períodos N % N % N % N
1743-1789 194 14,7 994 75,5 6 0,5 1.317
1790-1810 40 4,2 850 88,9 2 0,2 956
1811-1825 6 1,6 357 92,7 1 0,3 385
1826-1850 17 3,5 ] 376 78,2 25 5,2 481

Total 257 8,2 0 2.577 82,1 34 1,1 3.139

Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850, Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN, apud
Graça Filho (2005: 15).

entre 1743 e 1850


Acreditamos que a Comarca do Rio das Velhas enfrentou efetivamente um processo
de crise, em algum momento a partir da segunda metade do século XVIII, com a diminuição
da atividade mineratória. Um desdobramento de tal conjuntura econômica foi a alteração nos
padrões de posses de escravos (diminuição da média de escravos por inventariado e redução
da taxa de africanidade). Além disso, a crise engendrou uma diminuição das ligações
comerciais com a praça do Rio de Janeiro, percebida aqui, principalmente, a partir da
mudança na composição da população escrava africana (havendo, no período 1774-1793, um
aumento proporcional no número de escravos da África Ocidental em detrimento dos da
África Centro- Ocidental). Por outro lado, as relações comerciais com a Bahia (responsável
pela importação de escravos da África Ocidental), ao que parece, foram menos afetadas pela
crise.
Ao que tudo indica, a crise no final do XVIII aconteceu em toda a capitania. No caso
específico da Comarca do Rio das Velhas, essa crise engendrou uma reordenação das relações
comerciais. Mas essa não é uma conclusão extensível a todas as regiões mineiras. Isso porque
os desdobramentos da crise variaram de acordo com as diferentes realidades regionais. Se a
capitania de Minas Gerais apresentava, no século XVm, um mosaico de realidades
socioeconômicas, será somente a partir de estudos regionais articulados que um panorama
mais preciso da economia mineira setecentista poderá ser traçado.

291
v
i

y
Na África EU Nasci, No Brasil EU Me Criei: A
Evangelização dos Escravos nas Minas do Ouro1

2
Renato da Silva Dias

INTRODUÇÃO
Segundo a ideologia escravista cristã,3 para transformar os africanos em escravos
“dóceis” e aptos para o trabalho, a condição primeira seria catequizar e batizá-los, primeiro
passo para “incutir-lhes religião”. Assim acreditavam, via de regra, as autoridades
metropolitanas, os eclesiásticos e os agentes da administração colonial
- leitura feita também por parte de nossa historiografia. 4
Todavia, foi grande nas Minas o abismo entre a “construção ideológica” e a história
vista pelos códigos de doutrina, da realidade cotidiana, entre a norma e a prática social. No
planalto das Gerais, a conversão dos africanos ao catolicismo sofreu diversas interferências,
estando longe do desejado. Vários foram os fatores que confluíram e se somaram,
contribuindo ainda mais para impedir aquilo que autoridades seculares e religiosas tanto
esperavam: fazer os africanos aceitarem a condição social imposta no sistema escravista
americano; resumindo: tomá-los escravos submissos. Projeto inalcançável antes mesmo de
ser implantado.

1. Este artigo é parte integrante da tese Para glória de Deus, e do rei? Política, religião e escravidão ms Minas do Ouro
(1693-1745), defendida no Depto. de História da UFMG, em 2004, sob a cuidadosa orientação da Prof. Dr\
Carla Maria Junho Anastasia, a quem dedico este trabalho. Durante a pesquisa usufruí da bolsa de doutorado,
concedida por 20 meses pela Fapemig, pela qual sou grato.
2. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros, Unimontes.
3. Expressão cunhada por Ronaldo Vainfas, em Ideologia e escravidão (Petrópolis: Vozes, 1986).
4. GOULART, José PAvpxo.Dafuga ao suicídio. Rio de Janeiro: Conquista/ INL, 1972, p. 18; MATTOSO, Kátia
M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 114; Vainfas (1986: 34); BOSCHI, Caio
César. Os leigos e o poder: São Paulo: Ática, 1986.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

Na África, antes de serem embarcados para a longa jornada até as Minas, a


evangelização dos escravos já sofria seus primeiros revezes, e com eles começava a fazer
água o argumento que legitimava a captura e tráfico dos africanos para as Américas. Isto
porque, sendo informado que o cabido da sede vacante e bispos do Reino de Angola faltavam
ao cumprimento de seus deveres de catequizar e batizar os escravos a serem embarcados para
o Brasil - ritual que, segundo o catolicismo, redime os pecados e introduz os homens na
cristandade, sendo, portanto, extremamente necessário para “evitar o perigo de poderem
morrer na viagem com a perda infalível da sua salvação” - D. João V ordenou aos bispos de
Pernambuco e Rio de Janeiro, e ao arcebispo da Bahia que assim que aportarem àquelas
regiões os navios vindos d’África, os mesmos deveriam informar “os que vêm doentes e
façam com que se lhe acuda prontamente os que não vierem batizados para que não faleçam
sem batismo”. O monarca ordenou ainda às autoridades para recomendarem aos párocos das
freguesias das suas dioceses que “examinem os escravos que tem cada um dos moradores e se
alguns estão por batizar e catequizar” e, nesse caso, os padres deveriam fazer lista assinada
por cada um dos moradores, a ser remetida aos ouvidores gerais das comarcas daquelas
freguesias.5
Da leitura desse documento, alguns problemas emergem: primeiro, a propagação do
imaginário religioso ocidental, fundido no discurso teológico da justificação da escravidão - o
que é retratado no temor da perda da salvação das almas dos escravos, caso viessem a perecer
durante o percurso sem o prévio batismo. A catequização e o batismo dos africanos
escravizados tomavam-se parte das crenças, do “imaginário” da época, difundido nas letras
coloniais e, ao mesmo tempo, era o elemento de defesa do tráfico de escravos. Do contrário,
por que o rei ordenaria aos párocos que examinassem todos os africanos para saber se algum
não havia recebido o sacramento, e simplesmente não ordenou novo batismo dos mesmos?
Destaca-se que essa tarefa não era nada fácil, primeiro porque era necessário encontrá-los - e
os escravos eram vendidos e transportados para praticamente todas as regiões colonizadas da
América portuguesa - e, seguidamente, era preciso distinguir os “pagãos” dos recém-cristãos,
o que também não era tão simples, pois,, segundo relatos de alguns pesquisadores, em muitos
casos o ritual do batismo na Africa era efetivado em massa, sem prévia catequização, ou
mesmo independeiíte da vontade dos “batizandos”.6 Surge aqui um

5. Ordem régia. Lisboa, 29 abr 1719. SC-04, fl. 205-207 [rl. 01, gav. G-3]. Resta assinalar que, no caso de
descumprimento das ordens pelos senhores, os mesmos seriam acometidos “com todo o rigor” a penalidades
prescritas nas Ordenações do Reino. Conferir também: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, livro I,
título XIV, § 54. Doravante se utilizará a sigla CAB.
6. Sobre este aspecto, cf.: VILAR, Enriqueta Vila. “La evangelización dei esclavo negro y su integración en el
mundo americano”, in ARES QUEIJA, Berta & STELLA, Alessandro (coords.). Negros, mulatos,

294
Na África E U Nasci, No Brasil E U M E Criei

ponto de matriz teológica que passa quase despercebido na leitura do texto: o sacramento do
batismo não pode ser recebido por duas vezes - à exceção dos casos sub-conditione, mas que
também exigiam a averiguação pelos prelados. Portanto, o rebatismo de escravos tomava-se
uma agressão à doutrina.7

A EVANGELIZAÇÃO DOS ESCRAVOS NAS MINAS

Essa era, no entanto, apenas a ponta do iceberg, pois, transportados por mar e terras
aos altiplanos mineiros, o problema da catequese e da instrução religiosa dos africanos tomou
contornos bem mais drásticos. Em uma série de cartas, D. Pedro de Almeida e Portugal,
conde de Assumar, expôs ao monarca as exasperantes desordens “que choravam algumas
pessoas mais católicas de verem o desempenho em que toda a casta de negros se acham neste
governo em tudo o que toca a religião”, isso porque, continua o governador:

não só se deixa em idade muito adulta sem os batizarem, mas


sendo adultos os não catequizam e os batizam ignorando os
princípios fundamentais da religião sem os quais nem os
catecúmenos podem receber este sacramento, nem os Párocos
administrá-lo.8

As reclamações foram mais além, uma vez que não se encontrava “um só Vigário que
destine (como era obrigado) algum tempo para instruir na Doutrina, nem aos brancos, nem
aos negros” estes ainda faltavam às resoluções dos concílios e decretos dos sumos pontífices:
“em não tratarem do seu rebanho com aquela obrigação que por direito divino lhe é imposta
de apascentarem as suas ovelhas com o pasto espiritual”. A “desgraça maior” para Assumar,
resultava da “ambição e [do] vil interesse radicado ou influído em todos os que entram neste
país lhes faz abusar dos sacramentos

zambaigos: derroteros africanos en los mundo ibéricos. Sevilla: Escuela de Estúdios Hispano-Americanos, 2000,
p. 195; BOWSER, Fréderick. El esclavo africano en el Perú colonial (1524-1650). México, 1970, p. 76; e Mattoso
(1982: 44). Para o mundo colonial, cf.: KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).
São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 342.
7. Sobre o “rebatismo”, cf.: CAB, livro I, título XV, § 58. Segundo Enriqueta Vila Vilar, a questão das normas
sobre a evangelização dos escravos era seguidamente reiterada através de seguidas cédulas reais, e o tema dos
batismos e rebatismos dos escravos gerou verdadeira obsessão na época, e fez produzir ampla correspondência
entre os jesuítas e prelados nos três continentes, África, Europa e América. Cf. Vilar (2000: 190-2).

8. Carta do governador D. Pedro de Almeida e Portugal ao rei. “Minas Gerais”, 22 ago 1719. SC-04, fl. 693-
697. (grifo nosso).

295
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

a troco das oitavas de ouro”. A causa para tamanho disparate não era, como se supunha, a
falta de vigários “colados”, isto é, que recebessem a côngrua régia:

(...) porque vejo que nos confins da Bahia e no Rio de Janeiro


aonde o são, nem por isso são instruídos, mas com tudo não se
experimenta naquelas partes um escândalo tão geral por que o
estado eclesiástico está mais de baixo dos olhos e do cajado do seu
pastor, o que aqui pela suma distância não [se] pode conseguir.

Impotente diante dos fatos, restou a Assumar informar o “deplorável estado em que
viviam neste país quase todos os eclesiásticos”, pois, além da incúria (a falta de batismo e
ensinamento da doutrina, a brancos e negros, destaca-se), e não desejando “ofender os reais
ouvidos” do monarca, nosso narrador “desmanchou no ar” a sólida reputação dos
eclesiásticos construída pela teologia e códigos canônicos, arrematando:

O seu menor vício é estarem publicamente fazendo gala de que se


distingam por mais pomposas e bem trajadas as suas concubinas
pelas quais tomam duelos e tem públicas contendas com os mais
profanos e só lhe serve a imunidade do seu caráter para viverem
mais licenciosamente.

Além disso, faziam contratos de compras e vendas ilícitas, sendo usurários, ou seja,
eram ícones do mau exemplo que inspirava os leigos. 9 Percebe-se, então, o descumprimento
das ordens régias por parte da própria hierarquia eclesiástica (mas também pela população),
uma vez que deveriam instruir os escravos na fé cristã e, a partir desse ponto, já se pode
começai a desconfiar daqueles que supunham que nos tempos coloniais - e destacam-se
afquias Minas setecentistas - a religião teria tomado os escravos submissos. V
Bem, se se parasse nesses relatos e a eles fosse dado crédito, já se constataria que a
vida religiosa dos escravos, sua irftrodução ao catolicismo, andava bem distante das
condições desejáveis. São fartos os documentos informando as péssimas condições na
evangelização: adultos sem batismo e catequese, escravos batizados sem a prévia
catequização, ou seja, se a instrução para os escravos já era sumária, “para gente rude”, aos
“escravos brutos e boçais”, não se exigia um conhecimento doutrinai

9. Conferir o capítulo “O sal da terra, a luz do mundo” em meu trabalho de doutoramento.

296
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B RASIL E U M E C RIEI

muito profundo (na verdade era bastante sumária), 10 mas nem mesmo esta os escravos
estavam recebendo. Além do mais, os desvios dos padres deixavam a evangelização a desejar.
Em setembro de 1719, o governador das Minas remeteu carta aos vigários das varas
de Minas, informando que o rei se achava “lastimado”, pois fora informado, pelos próprios
escravos, que nas Minas “morrem sem batismo, ou por incúria dos pastores espirituais ou por
falta destes os não instruírem e catequizarem nos mistérios de nossa Sagrada Fé para
receberem aquele sacro mandamento”. Para corrigir esses problemas, uma petição foi emitida
ao bispo e ao governador, que encarregou aos vigários das varas de Minas a árdua tarefa de
retificar essa falha. Estes, por sua vez, deveriam encomendar aos párocos de suas jurisdições
que examinassem “os escravos que cada morador da sua freguesia tem para batizar e
catequizar”, enviando as listas com os nomes dos senhores aos ouvidores, que acionariam os
senhores que fossem omissos em suas obrigações.11
Tal informação, que se repete diversas vezes em cartas sobre a incúria dos clérigos -
que não dispensavam tempo maior para catequizar os escravos e que exorbitavam nas taxas
cobradas das desobrigas para enterrar, batizar e celebrar as núpcias entre os africanos e
descentes - por ora é suficiente para questionar o porquê de os africanos estarem reclamando
o “pasto espiritual”, uma vez que suas crenças religiosas se prendiam ao imaginário de suas
terras natais. Não seria essa uma forma de eles mostrarem que estão cientes de seus direitos,
no caso, de receber os sacramentos do batismo, de enterro, de não trabalhar aos domingos, dia
de encontro com seus “parentes”, e que se articulam no jogo colonial? Por enquanto apenas
se fazem as especulações, que serão respondidas no momento adequado.
Tais reclamações não eram, como se poderia argumentar, retrato da improvisação
social vivida durante os primeiros anos da ocupação deste território, ou resultado da escassez
e demora no pagamento das côngruas régias. Vários fatores confluíram para a caracterização
desse fenômeno, que não se circunscreveu à

10. CAB, livro. I, título XIV, § 50. É necessário, entretanto, tomar cuidado com as generalizações, como
afirmações de que o catolicismo era “epidérmico”, “superficial”; preocupado somente com os aspectos
exteriores; fruto do “primarismo espiritual das gentes ignorantes”; fato da “falência do sentimento moral”;
ou que sua aceitação pelos escravos era apenas uma “capa exterior”. Cf., respectivamente: Boschi (1986:36-
7 e 73); HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 111;
CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1968, pp. 29, 45, 73. MONTENEGRO, João Alfredo de. Evolução do catolicismo no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1972, pp. 22, 24 e 32. COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à Colônia. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, s/d, pp. 238-9 e 251.
11. Carta do governador D. Pedro de Almeida aos vigários das varas das Minas. Vila do Carmo, 23 set
1719. SC-11, fl. 151.

297
r
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS

administração de Assumar (1717-21), iniciando-se nos primeiros anos da ocupação da


região, e persistindo por todo o século.
Aos 26 dias do mês de abril de 1712, Antônio de Albuquerque escreveu ao rei,
representando a “necessidade de servos e escravos de pasto espiritual” - curioso jogo de
linguagem, próprio ao estilo literário da época, no qual os padres transformar-se- iam em
“escravos da catequização” e, conseqüentemente, deviam “servir” aos africanos,
catequizando-os! Nessa, o ilustre dignitário solicitou, pela falta de clérigos, a vinda de doze
religiosos capuchos do mosteiro de Santo Antônio, que passariam a assistir nas vilas do
Carmo, Vila Real e do Rio das Mortes.12 Ante o escândalo relatado, como a morte de
escravos sem os primeiros sacramentos, e dos abusos dos padres que cobravam altos valores
por conhecenças, D. João V resolveu então a aceder ao pedido desse governador, consultando
primeiramente o bispo do Rio de Janeiro, que respondeu, aos oito de agosto de 1713, ser
conveniente a fundação dos três “hospícios”, onde quatro religiosos residiriam em cada vila,
pois assim os moradores teriam quem administrasse os sacramentos “com desinteresse”, “mas
também o de lhes educarem e ensinarem a seus filhos a gramática”. Com a posse do novo
governador, D. Brás Baltazar da Silveira, o rei emitiu ordem para que D. Brás informasse e
ouvisse os religiosos sobre essa matéria, e desse um novo parecer, relatando o que os mesmos
concluíram sobre esse assunto, além dos custos dessa implantação.13
Diante das desordens constantes na vida religiosa, além de solicitar um “Bispo
Missionário”, “que servisse de freio e de exemplo aos Eclesiásticos e Seculares, porquanto o
do Rio de Janeiro humanamente não pode acudir a tempo a distâncias tão dilatadas”, e
estando informado do pedido de Antônio de Albuquerque (solicitação de doze capuchos), o
Conde de Assumar achou essencial ainda que se mandassem “vir ao menos doze padres da
Companhia de Jesus que se recolhessem em alguma casa conforme o estado da terra o
permitisse com a decência possível”. Se, de fato, os capuchinhos vieram às Minas, ao que
parece, sua estada não surtiu tantos resultados como esperado, motivo pelo qua]4ez D. Pedro
de Almeida preferir jesuítas e, além disso, como se vê, também em matéçia de política “nada
se perde, nada se cria...”, tudo se copia.14 Nj
Na documentação analisada, em nenhum momento as autoridades se preocuparam
com as condições de vida dos cativos, a falta de alimentação, de vestimenta, de abrigo ou os
possíveis castigos sofridos pelos mesmos; no mais das vezes, reprimiam-se abusos
individuais - excesso de violência, separação de família,

12. Carta do governador Antônio de Albuquerque ao rei. Lisboa, 16 out 1712. SC-05, fl.30.
13. Ordem régia. Lisboa, 11 jul 1714. SC-05, fl. 34.
14. Carta do governador Conde de Assumar ao rei. Minas, 22 ago 1719. SC-04, fl. 695-6.

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N A Á FRICA E U N ASCI , N O B RASIL E U M E C RIEI

maus-tratos, abusos de poder senhorial -, mas isso a partir de reclamações individuais. Não se
encontrou nem mesmo uma advertência geral, o que não é de assustar, haja vista que o mais
importante era o “bom andamento da religião”, percebida como instrumento para manter os
escravos sob controle, e o temor de que esses perdessem sua salvação. Fato da mentalidade
religiosa cristã da época do Barroco, bem como do pensamento escravista, a vida no além era
mais importante que a corrupção física do corpo; então, preocupava-se menos com a matéria
que com o espiritual, ou seja, com a alma dos escravos, e, além do mais, não se poderia
colocar o sistema escravista em xeque.
Como exemplo disso, veja-se: na carta régia, de 29 de abril de 1719, ordenou- se o
batismo dos escravos na África, para se evitar o perigo de morrerem na viagem, “com a perda
infalível da sua salvação”. Na carta emitida em 1698, o monarca ordenou ao governador e
capitão geral do Estado do Brasil que repreendesse severamente os oficiais de guerra ou
pessoas poderosas que não permitiam aos escravos receberem a doutrina, isso “para que se
evite este escândalo e prejuízo das almas dos pobres escravos”. Enfim, D. João V escreve
“lastimado das informações que lhe foram presentes dos mesmos escravos”, residentes nas
Minas, sobre a morte dos escravos sem batismo por incúria ou falta de pastores espirituais, o
que levaria à “condenação de tantas almas”.15 Percebe-se, assim, que o discurso salvacionista,
debatido, pisado e repisado desde o século XVI por juristas e teólogos, principalmente
hispânicos,16 mas também por autores residentes no Brasil, como Nuno Marques Pereira e os
padres Antônio Vieira, Jorge Benci e Manoel Ribeiro da Rocha, fincou raízes na sociedade
colonial.17
A desorganização na vida religiosa mineira trazia um grande problema para a
legitimidade do rei, responsável pelo bom andamento da vida religiosa, inclusive dos
escravos. Disso sabiam as autoridades coloniais e até mesmo os escravos. Reclamando ao rei
a “má doutrina dos negros”, que “vivem e morrem como brutos”, Assumar

Í5. Ordem régia. Lisboa, 29 abr 1719. SC-04, fl. 205-207. [rl. 1, gav. G-3]; Ordem régia, Lisboa, 07 fev 1698,
apud BENCI, Jorge S. I. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977, p.
196; Carta de D. Pedro de Almeida “Para os Vigários da Vara de estas Minas”. Vila do Carmo, 23 set 1719.
SC-11, fl. 151.
16. Aqui se faz alusão ao padre Bartolomé de Las Casas, bem como ao filósofo Juan Ginés de Sepúlveda, além
dos clérigos Bemardino de Sahagún, Diego Durán, José de Acosta e o vice-rei do Peru, Francisco de
Toledo. Cf.: TODOROV, Tzvetán. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes,
1999; BRUIT, Hector. “O visível e o invisível na conquista hispânica da América”, in VAINFAS, Ronaldo
(org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, pp. 78- 99; LOBO, Eulália Maria
Lahmeyer. “Bartolomé de Las Casas e a lenda negra”, in Vainfas (1992: 102-15).

17. Sobre este aspecto, conferir o capítulo “Filhos de Canaã: de escravos do demônio a filhos adotivos de
Deus”, em minha tese de doutoramento.

299
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

concluiu que uma das causas, a mais essencial, é “por que vindo a maior parte deles já adultos
de Angola e da Costa da Mina, dificilmente aprendem a falar a Língua Portuguesa”, e por
isso:

Carecia muito esta falta de saberem os Vigários as Línguas de


Angola e da Costa da Mina com os dialetos que com pouca
diferença dela se desviam cuja diligência não é invencível por que
assim como nos Colégios dos padres da Companhia da América
não professam estes sem saberem a Língua Geral da terra para
estarem hábeis para as missões dos índios e muitos dos ditos
padres sabem a língua de Angola e da Costa da Mina da mesma
forma e nos mesmos Colégios podia haver classes em que os
clérigos aprendessem as ditas Línguas e devia Vossa Majestade
encomendar ao Bispo do Rio de Janeiro que não provesse Igrejas
se não a estas, concorrendo nelas os mais requisitos.18

Percebe-se que Assumar tinha conhecimento das práticas religiosas da América


hispânica e se preocupava com a evangelização dos cativos, por isso deixa o monarca numa
situação desconcertante, pressionando-o, pois, ao requisitar que os clérigos que fossem
providos nas igrejas de Minas já tivessem como pré-requisito o conhecimento de tais línguas,
e, para isso, sugere que nos colégios dos jesuítas poderia “haver classes em que os Clérigos
aprendessem as ditas línguas”, acrescentando:

(...) estaria Vossa Majestade obrigado a mandá-la fazer sendo


que o título mais legítimo em que se funda o direito de Vossa
Majestade tem no domínio destas conquistas é unicamente com o
fim da propagagãq da fé Católica e para que a gente da terra que
habitava, e não tinha nenhuma luz do Evangelho se ensinasse na
nossa Religião>e suposto que os negros não são deste país como
sejam conduzidos pelos portugueses para estes domínios de
Vossal&ajestade e destes é o maior número que os habitavam não
parece razão bastante para que se não atenda a Salvação de
tantas mil almas que se condenam certamente por estas faltas
(grifos nossos).

18. Carta de Assumar ao rei (sobre a falta de instrução religiosa dos negros). Vila do Carmo, 04 out 1719.
SC-04, fl. 234v. (grifo nosso).

300
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B R ASIL E U M E C RIEI

Nesse trecho nota-se novamente que o discurso salvacionista cristão estava


plenamente difundido no mundo colonial, mesmo nas Minas setecentistas. A este propósito,
no Regimento que levou Dom Manoel que foi Governar o Rio de Janeiro, documento escrito
em Lisboa, em 1699, foi o próprio monarca que, preocupado com a evangelização dos índios,
declarou:

A principal coisa que obrigou aos Senhores Reis meus


antecessores (...) a mandarem povoar aquela Capitania e aos
mais do Estado do Brasil foi a Redução do gentio delas de nossa
santa Fé católica.19

Destarte, esse recomenda ao governador do Rio de Janeiro que mantenha os


privilégios aos convertidos, fazendo o possível para que os mesmos mantenham-se cristãos,
administrando as aldeias, além do bom tratamento “dos ministros que se ocupam na
conversão e doutrina dos gentios, favorecendo-os e ajudando-os em tudo que para esse efeito
for necessário”, pagando os seus salários.20 E aterradora a complementaridade no conteúdo
entre as declarações de Assumar e do próprio D. Pedro II (de Portugal) e, como se vê, não
restam dúvidas de que o direito de conquista se funda na obrigação de propagar a fé; a
Ecclesia Militans está intimamente unida ao poder temporal lusitano, fornecendo-lhe também
as bases morais da exploração econômica - o que revela um dos aspectos da dimensão do
político na esfera do sagrado.
Das observações acima lê-se que a maioria dos escravos africanos não entendiam o
que se lhes falava, pois numa língua desconhecida para eles (o português e, às vezes, o
latim), e os vigários e demais clérigos não compreendiam as línguas africanas. Pelo conteúdo
da carta de Assumar deduz-se também que esses não utilizavam tradutores - o que era
permitido pelas Constituições.21 Portanto, muitas vezes o batismo era ministrado sem a
necessária compreensão da doutrina católica, e grande parte dos africanos recém-chegados
praticamente repetiam orações e participavam dos rituais sem abarcarem bem seus
significados.22

19. Ordem régia (4o parágrafo do Regimento que levou Dom Manoel que foi Governar o Rio de Janeiro).
Lisboa, 23 set 1699. SC-02, fl. 172/179.
20. Ordem régia (4o parágrafo do Regimento que levou Dom Manoel que foi Governar o Rio de Janeiro).
Lisboa, 23 set 1699. SC-02, fl. 172/179.
21. CAB, livro I, título III, § 8.
22. Digo grande parte porque, não obstante a bibliografia dar indícios de como seria a catequização na África,
ainda não conheço nenhum trabalho específico sobre a evangelização dos africanos em seu continente.
Marina de Melo e Souza afirmou que a cristianização da costa da Guiné já era empreendida no século XVI,
contudo, afirma a autora, apesar dos esforços dos missionários e do empenho da

301
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Mas não é só isso, esse discurso legaliza a escravização, não só dos africanos mas
também dos ameríndios, no caso de “Guerra Justa”, justifícando-a teologicamente, o que se
tomava um consolo para os senhores escravistas, bem como para as autoridades. Ao contrário
do que se pensa, essa ideologia não se restringia às penas dos letrados coloniais, mas era
discutida pelas autoridades e população, isto em pleno século XVIII. Pois veja-se: em 1714,
D. Brás Baltasar da Silveira, e novamente em 1718, D. Pedro de Almeida e Portugal,
governadores das Minas, requisitaram ao rei o direito de formarem aldeias de índios para
combater os quilombolas. Contudo, essa iniciativa não foi impetrada, uma vez que, na
impossibilidade de se usar os aldeados, não se encontrou número suficiente para formar as
ditas aldeias - o que demonstra que as autoridades tinham uma concepção bastante funcional
para a catequese dos ameríndios: forma de “domesticá-los” e utilizá-los para combater um
inimigo mais temido, os africanos.23 Já em 1747, os moradores de Guarapiranga queixaram-
se ao rei sobre o dano causado pelo “gentio bravo” dos sertões, e ainda, “pedindo que me vos
conceda licença para poderem entrar neles com bandeiras, a conquistá-los”, e descobrir ouro,
abundante nas terras dos indígenas. Além dessa licença, solicitaram permissão para que
aqueles capturados fossem cativos. Ou seja: o direito de conquista ou a “Guerra Justa” ainda
era argumento utilizado para a posse das terras dos nativos e sua escravização. 24
Em relação aos negros, em uma passagem do “papel acerca do estabelecimento de
um seguro de escravos...”, documento que propôs, como indica o seu título, a formação de
um seguro para cobrir o valor dos escravos no caso de fugas e para financiar índios
catequizados para a caça e apreensão dos fugitivos, o seu anônimo autor deixa claro que o
argumento de legitimação da escravidão africana era de conhecimento público, pois, como
afirmou, os escravos negros eram “por justa razão cativos, sem que nenhum deva ser forro
por sua má natureza” e, mais adiante, após tentar demonstrar a justeza das medidas sugeridas,
afirmou que estabelecido o dito seguro, sendo o mineiro inteligente, não poderá ser pobre,
porque o que o faz pobre é a “falta de domínio” dos cátivos^ que “por sua rústica natureza
[faltos] do juízo, sem lembrança gentílica do que há jí>puco saíram, antes querem morrer aos
tiros que acomodarem-se com o cativeiro que por justa razão devem ter”.25

política real portuguesa, esta ficou muito aquém das expectativas. Cf. MELO E SOUZA, Marina de. Reis
negros no Brasil escravista. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2000, pp.40-1. Cf. ainda: Bowser (1970: 76);
Vilar (2000: 202); e Mattoso (1982: 44).
23. Carta régia. Lisboa, 04 nov 1714. SC-04, fl. 95-97; Carta do governador Conde de Assumar ao rei, Vila do
Carmo. 13 jul 1718. SC-04, fl. 214-215 [fil 01, gav. E-l].
24. Carta régia ao governador Gomes Freire de Andrada. Lisboa, 06 maio 1747. SC-10, fl. 85.
25. “Papel acerca do estabelecimento de um seguro de escravos e suas muitas utilidades”. Vila Real de Sabará,
1751. CÓDICE COSTA MATOSO. Coleção das noticias dos primeiros descobrimentos das

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N A Á FRICA E U N ASCI , N O B R ASIL E U M E C RIEI

Retomando à carta remetida aos vigários da vara por D. Pedro de Almeida, em que o
rei se achava “lastimado " pela morte dos escravos sem batismo, pode-se perceber que a
mesma também revela um dos traços norteadores da construção da identidade política da
monarquia lusitana - a representação do soberano como pai dos seus vassalos e a teoria do
poder divino dos reis. Assim se inicia a missiva:

Sua Majestade que Deus Guarde como Pai de seus vassalos e que
tanto deve atender não só a suas comodidades temporais, mas
com razão mais superior as espirituais sendo-lhe por Deus
encarregada esta incumbência como parte essencial do governo
dos povos que lhe encarregou em suas reais mãos.26

Nas letras coloniais o discurso salvacionista cristão se funde com a teoria do direito
divino dos reis e, desta forma, apesar da peculiaridade do caso português - que tem sua
identidade mística constituída na delegação direta de poder ao rei por Cristo, e no auxílio
sobrenatural conferido nas batalhas contra os muçulmanos e espanhóis (e não na sagração
régia ou no poder taumatúrgico dos reis como no caso dos monarcas ingleses e franceses) 27 -
o soberano passa a ser encarregado por Deus, segundo o narrador, não só das “comodidades
temporais”, mas também das “espirituais”.28
Outro motivo pelo qual os escravos não recebiam a doutrina foi a não- consecução,
por parte dos senhores, das prescrições religiosas. A exemplo do Conde de Assumar, que
proferiu seu mea culpa, ao confessar que tratava da religião “como acessório e não como a
principal couza”, outros agentes administrativos também descuidavam da religião.
Aproveitando-se dessas omissões, muitos dos senhores escravistas, menos crédulos e mais
afoitos em “granjearem as oitavas de ouro”, não catequizavam os escravos e não permitiam
que isso fosse feito, para que, assim, eles produzissem mais. 29

minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral do Ouro Preto, de que tomou
posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos
Históricos e Culturais, 1999, pp. 529-36.
26. Carta de D. Pedro de Almeida e Portugal aos vigários da vara. SC-11, fl. 151. Vila do Carmo, 23 set 1719.

27. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII).
São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
28. Carta de D. Pedro de Almeida e Portugal aos vigários da vara. SC-11, fl. 151. Vila do Carmo, 23 set 1719.

29. Carta de Assumar ao Rei (apresenta as razões da falta de instrução religiosa dos negros). Vila do Carmo, 04
set 1719. SC-04, fl. 713-716.

303
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Segundo as determinações da Igreja, que ratificaram a terceira lei do decálogo, os


domingos e os dias de festas de guarda foram feitos para o descanso e a oração, devendo ser
“guardados” do trabalho. Nessa obrigação também incorrem os escravos. 30 Os senhores da
capitania da Bahia, como posteriormente seriam os de Minas, foram acusados de, apesar do
cuidado dos prelados e das recomendações deixadas nas visitações pastorais, não deixarem
“aos escravos o tempo necessário para assistirem missa nas igrejas e aprender a Doutrina
Cristã”. Como essa era falta grave, pertencendo à esfera das obrigações dos bispos, o rei
ordenou ao governador e capitão geral do Estado do Brasil que dê auxílio ao presbítero,
fazendo o que puder “para que se evite este escândalo e prejuízo das almas dos pobres
escravos”. Os senhores escravistas eram os responsáveis diretos pela educação religiosa dos
cativos que possuíam, mas a lógica do mercado às vezes falava mais alto, calando as
obrigações morais e religiosas.
Lembre-se que esta mesma recomendação foi dada também aos ministros, aos oficiais
de guerra ou ainda a pessoas poderosas que, se não cumprissem a “obrigação de Cristãos”,
também inclusas na lei, seriam repreendidos severamente. Se, apesar da ordem, os senhores
permanecessem no abuso, o governador deveria informar ao rei para que este pudesse
castigá-los. Essa resolução não se limitou àquele momento, pois o monarca deixou expressa
sua ordem para registrar essa carta nos livros da Secretaria de Governo, “para que todos
vossos sucessores a dêem à sua devida execução”. Apesar da decisão, era assaz difícil que ela
fosse cumprida em longo prazo.31
Como no documento dirigido ao vice-rei na Bahia, nas Minas, muitos senhores

os fazem trabalhar toda a semana e muitos que vão minerar


reservam os domingos e dias santos para mandar os negros
carregar os mantimentos das roças por não perderem com este
trabalho nenhum dia da semana.

Esses proprietários escravistas foram censurados por não obedecer às exortações dos
padres ou aos mandamentos, que rezam:
7

guardar aos domingos -sèm distinção de pessoa e a da Igreja que


quer se guardem os dias festivos, mas tão pelo contrário fazem
muitos que abusando da humildade e sujeição de seus

30. CAB, livro H, títulos XI e XII. Cf. ainda: Benci (1977: 58, 184, 191-97); e PEREIRA, Nuno Marques.
Compêndio narrativo do peregrino da América. Rio de Janeiro: Academia Brasileira, 1939, p. 156.

31. Ordem régia, Lisboa, 07 fev 1698, apud Benci (1977: 196).

304
Na África E U Nasci, No Brasil E U M E Criei

escravos lhes impõem preceitos he contra a mesma lei de Deus.32

Pode-se perceber também, na leitura da carta do eruditíssimo Conde de Assumar, que


as autoridades coloniais tinham noção de que o domínio sobre os escravos esbarrava em
limites, construídos pela Igreja e difundidos pela Colônia através dos sermões dos letrados
coloniais, pelos predicadores, vigários e clérigos em geral - fronteiras as quais os escravos
buscavam manter e alargar.
Além do desconhecimento das línguas africanas e da dificuldade daqueles homens em
aprender o português, somam-se as restrições pela insuficiência e incúria dos padres, e pela
má-vontade de proprietários, que preferiam vê-los trabalhando a ir à missa, ou percebiam o
casamento como empecilho à venda; e esse era um problema importante para a
governabilidade das Minas, uma vez que a religião era a “primeira base de toda a
Monarquia”.33 O próprio Conde de Assumar, que produziu grande “safra” de documentos
sobre o tema, acreditava que o “melhor freio para povos rebelados era inspirar lhe Religião”.
Para este governador, os habitantes das Minas eram intratáveis, e para conter sua insolência
dever-se-ia investir na religião, apesar dos custos que isso traria à Fazenda de El Rei. 34 A
religião teria o poder de apaziguá- los e, como se sabe, na época, acreditava-se que “viver
como católico” era sinônimo de ser bom cidadão.35 A partir daí, pode-se entender a sua
aflição com a falta de padre, e com o andar da vida religiosa.
Além de escassos para um território tão vasto, os párocos viviam sobrecarregados.
Além de celebrar missas, era sua incumbência oficiar os casamentos, batizados, ouvir seus
paroquianos na ocasião das desobrigas pascais, promover eventos, como procissões, festas do
padroeiro, oficiar missa de corpo presente, procissões de enterro, etc. Do mesmo modo, nos
casos de haver dúvidas sobre se os escravos haviam sido batizados na África ou em outra
parte, eram os vigários os responsáveis por fazer as diligências necessárias. 36 Os párocos
também dirigiam a ação pastoral, devendo ensinar, ou indicar quem o fizesse, os escravos aos
domingos.37 Enfim, o tempo era bastante reduzido para tantas tarefas.
Ao que parece, um trabalho pastoral com atenção particularizada aos escravos e o
ensinamento minucioso nas coisas da fé foram, nesses primeiros momentos, deixados de
lado. A esse respeito, pronunciou-se D. Frei Manoel da Cruz em seu

32. Carta do governador D. Pedro de Almeida ao rei. Vila do Carmo, 04 out 1719. SC-04, fl. 234v.
33. Carta da Câmara de Vila Rica, 16 out 1738. Arquivo Histórico Ultramarino, cx. 36, doc.70. 16.
34. Carta do governador D. Pedro de Almeida ao rei. 22 ago 1719. SC-04, p. 695.
35. Carta régia. 09 nov 1709. SC-05, fl. 23.
36. CAB, livro I, título XV, § 61.
37. CAB, livro I, título II, § 6.

305
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

relatório ao Vaticano - substituição da visita ad limina que não pôde realizar por motivos de
saúde - informando ao patriarca da igreja que “o território desta região aurífera, a nenhum
outro inferior na incontável multidão de habitantes e adventícios, sobrepuja as maiores
cidades do Orbe na torpeza diversificada dos vícios”. E os vícios maiores a “arder” naquela
região eram, para o epíscopo, a ambição pelo ouro, as injustiças, a soberba, a arrogância, a
vaidade e a avareza. E desses nem mesmos os eclesiásticos ficaram imunes, uma vez que
“procuram libras, não livros, obedecem às moedas, não às monições, ajudam alguém com
preço, não com prece”. De tudo isto, o que sobejava como único louvor era a “copiosa
liberalidade para com os santos”, os recursos destinados aos templos.38
Talvez os escravos pertencentes aos eclesiásticos, em paróquias onde os havia mais
zelosos, fossem mais bem instruídos no catolicismo. Mas, de modo geral, os negros recebiam
apenas exortações públicas nas missas e sermões. Acredita-se que o montante maior de
mancípios que detinha conhecimento mais aprofundado da nova doutrina pertencessem a
senhores e senhoras diligentes na fé, o que também era problemático. Certamente deveria
haver senhores preocupados com a salvação da alma de seus escravos, haja vista que isso
fazia parte do zelo cristão, sendo uma obrigação religiosa, e a sua falta, um pecado grave.
Contudo, o que se percebe, é que muitos dos proprietários de escravos se opunham - e/ou não
se importavam - à catequese, ao casamento religioso e à participação nos demais
sacramentos.
Em outras regiões da América portuguesa, a tarefa de catequizar os escravos teve o
apoio dos religiosos regulares, mas, nas Minas, as ordens religiosas foram proibidas, e isto foi
sentido na evangelização dos africanos, fazendo com que os governadores Antônio de
Albuquerque e D. Pedro de Almeida e Portugal instassem ao rei que permitisse a vinda desses
religiosos - capuchinhos e jesuítas.
Por meio da prédica,39 usando recursos retóricos, comuns à cultura do Barroco,
mostrando as penas do inferno e os benefícios post-mortem - o paraíso para aquelas boas
ovelhas - os párocos buscavam inculcar o medo, o respeito à religião, informando modelos de
vida, o que repercutiano sentido político, em uma medida para apaziguar a violência
coletiva.40 Resta saber se ds escravos acreditavam nisso, pois o “viver em colônia” mostrava-
se bem mais complexo.

38. “Relatório de D. Frei Manoel da Cruz à Santa Sé”. Mariana, 01 jul 1751, § 6o. Divulgação Monsenhor Flávio
Carneiro Rodrigues. Agradeço à professora Adalgisa Arantes Campos pela cessão do documento.
39. MORÁN, Manuel & ANDRÉS-GALLEGO, José. “El predicador”, in VILLARI, Rosário (org). El hombre
barroco. Madrid: Alianza Editorial, 1992, pp. 169 e 176.
40. Basta para isso, e a título de exemplo, conferir alguns dos preceitos cristãos contidos no decálogo. Pode-se
perceber claramente que os mandamentos contêm prescrições para um bom convívio social, como a
obediência aos pais, o controle da violência, de assassinatos, de adultério, do latrocínio e de falsas acusações.
CAB, livro. III, título XXII, § 558.

306
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Para as Minas, convergiram os escravos das mais diversas regiões da África,


principalmente da Costa da Mina e da África Centro-Ocidental, trazendo, portanto, diversas
concepções escatológicas. Além desse fato, enfrentava-se dificuldades com o clero, com a
distância dos bispos, a baixa freqüência das visitas pastorais, e com os senhores, afoitos com
o enriquecimento rápido. Dessa maneira, o controle político via religião sofreu inúmeros
percalços nas Minas.
Tamanha era a diferença entre a cruzada evangelizadora no Peru seiscentista e das
Minas um século depois. Naquela região eram distribuídos livros de orações, catecismos e
instruções, impressos em Lima, na língua dos escravos, tendo-se mesmo considerado o
estabelecimento de línguas africanas no Colégio de San Pablo de Lima e a impressão de um
dicionário e uma gramática nesses idiomas.41 Nas Minas, como em todo o território da
América portuguesa, era expressamente proibida a impressão de livros, folhetos ou qualquer
outro tipo de material, que deveria ser publicado em Portugal e com as devidas licenças da
Igreja.42 Não se encontrou, na literatura, qualquer referência a texto doutrinário publicado em
línguas africanas; e a única menção a catecismo para africanos é o texto da “Breve
instrução,43 publicado nas Constituições da Bahia, mas em português, para se repartirem por
casas dos fregueses, em ordem a eles instruírem aos seus escravos nos mistérios da fé, e
Doutrina Cristã”.44 Mas também estes de nada adiantariam, uma vez que os eclesiásticos não
conheciam tais idiomas. Como resultante dessas dificuldades em doutrinar, as livres
interpretações, os desvios dos cânones, as práticas mágico-religiosas africanas grassavam
assustadoramente naquela região.45

41. Bowser (1970: 303). O mesmo pode ser dito para Cartagena, onde os clérigos ensinavam a doutrina aos
escravos em “língua angola”. Cf.: Vilar (2000: 196).
42. Um esforço nessa direção foi a publicação d’A Arte da língua de Angola, publicada em Lisboa, em
1694. Segundo o historiador Ronaldo Vainfas, esse foi um esforço pioneiro de sistematização da língua
africana, ampliando a ação missionária dos jesuítas. Ainda segundo o autor, a impressa inexistiu por
completo no Brasil entre os séculos XVI e XVII. Cf. Vainfas (1986: 48-9).
43. “Breve Instrução dos mistérios da fé, acomodada ao modo de falar dos escravos do Brasil, para serem
catequizados por ela”. CAB, pp. 219-22.
44. CAB, livro I, título III, § VIII.
45. São fartas na literatura as referências a senhores indiferentes às praticas religiosas de seus escravos. Cf.:
Pereira (1939: 123-6); e ainda: MELO e SOUZA, Laura. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia.
das Letras, 1996; MOTT, Luiz. “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”, in MELO e
SOUZA, Laura de (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1997; e LONDONO,
Fernando Torres. Público e escandaloso: Igreja e concubinato no Antigo Bispado do Rio de Janeiro. São Paulo:
Universidade de São Paulo, Tese de Doutorado, 1992, pp. 231-2.

307
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do choque entre as religiões africanas no mundo colonial, sistemas religiosos que


apresentavam homologias, mas também grande divergência com o catolicismo, cabia aos
senhores, mas principalmente aos párocos, a tarefa de catequizar os negros e convencê-los de
seu “regime de verdade” católico, subtraindo as suas “superstições gentílicas”, como se dizia.
Esse embate resultava em um problema de duplo caráter, teológico e político, pois a
escravização dos negros era justificada pelos “representantes de Cristo”, que criavam formas
de explicar o inexplicável.
Não obstante, o que se percebe é que os eclesiásticos não se preocuparam, não
estavam preparados, ou estavam muito atarefados para estas funções. Além disso, muitos
senhores não viam com bons olhos seus escravos evangelizados e o casamento in facie
ecclesiae, pois estes deixavam de trabalhar aos domingos e dias de festas religiosas, e a
família assim constituída não poderia ser vendida separadamente. 46
As reclamações das desordens na vida religiosa das Minas repercutiam em Portugal,
onde o monarca buscava “emendar os erros”. Figurando na construção imaginária daquela
época como pai, piedoso e benevolente, representante de Deus na terra e por ele incumbido
pelo zelo da religião, cabia à Coroa criar ações para a solução dos problemas na vida religiosa
de seus vassalos. Qualquer desvio, como os dos clérigos e dos senhores, deveria ser
corrigido.
A documentação deixa claro que a preocupação maior era com a falta de doutrina dos
escravos, que morriam sem batismo. Havia religiosos, contrariando as especificações das
Constituições, que batizavam os cativos sem o conhecimento doutrinai mínimo necessário e,
até mesmo, no caso dos maiores de sete anos, dispensando a vontade dos escravos, o que
anulava totalmente as disposições epistolares. Não se cogitava acabar com o rendoso negócio
da escravidão, entretanto, era obrigação do rei corrigir e manter sob vigilância os abusos dos
senhores e autoridades, coibindo os desmandos dos mesmos. Um dos elementos componentes
do imaginário político na época efajustamente essa matriz teológica. \

46. Também no mundo colonial hispânico, muitos senhores resistiam a aceitar que seus escravos fossem
catequizados e participassem do culto^divino, sacramentos e ritos, pois os escravos “boçais”, transformados
em “ladinos” pela catequese, aprendiam as artimanhas da sociedade e conheciam os direitos que o
escravismo cristão lhes facultava, por isso eram menos valorizados e ficavam “manhosos” no trabalho. Em
relação aos casados, tomava-se mais difícil a venda de um dos consortes separadamente. Assim, apesar da
relativa proteção da Igreja, muitos senhores ignoravam a lei e separavam as famílias. Contudo, afirmar que. o
aprendizado da língua vernácula diminuiria o valor do cativo é, acredita-se, apenas um argumento retórico
que escondia os fins últimos da escravidão: a extração do maior rendimento possível do trabalho escravo em
um curto prazo de tempo. As informações obtidas pelos estudos demográficos nas Minas setecentistas
também não permitem essa afirmação. Cf.: Vilar (2000); e Bowser (1970: 303).

308
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B R ASIL E U M E C RIEI

A aproximação das igrejas paroquiais no ambiente urbano, a presumível vigilância


dos vigários e da população também são elementos de diferenciação na vivência - ou táticas
de resistência - da religião, diversa do meio rural. Se os governadores e funcionários
coloniais ficaram abismados pela despreocupação dos eclesiásticos com o múnus religioso,
certamente foi no interior, nos sertões e lugarejos rurais, que os filhos de Canaã se afastaram
ainda mais da “palavra de Deus” e da doutrina.
Também deve-se ter em mente que, nas vilas mineiras, diversos fatores, como a maior
facilidade para a obtenção da liberdade, distinguia os escravos dos libertos, os “boçais” dos
“crioulos”, e os negros dos mestiços. Assim sendo, os interesses e condições de vida
deixaram de ser os mesmos, tomando-os grupos com características diferenciadas, porém,
não avessos uns aos outros. Exemplo disso é que muitos dos forros, na espera de obterem
melhores condições de vida, não queriam ser confundidos com os escravos recém-chegados
do tráfico. Eles deviam, ao menos, “parecer ser” cristãos.
Se diversos foram os fatores que, congregados, tomaram a vivência do catolicismo
múltipla, há elementos comuns que os reúnem na sua pluralidade - pluralidade essa marcada
pelas diferenças étnicas, por seu grau de inserção e vivência dos rituais africanos ou pelos
diversos fatores que emergiram no contexto colonial. Em comum, havia a determinação de
negar e, se possível, reverter sua condição de objeto, mercadoria, para livremente poderem
determinar os rumos de suas vidas.
Controlar os escravos e fazê-los produzir tomava-se um jogo complexo, que incluía
as punições corporais e os “castigos exemplares”, além da religião. De tal modo acreditavam
as autoridades coloniais e assim defende a historiografia. Segundo Enriqueta Vila Vilar: “A
cristianização dos escravos era uma maneira de incorporá-los de forma dócil ao sistema
produtivo; quer dizer, de integrá-los”. Por isso, conclui a autora: “A religião ensinava aos
escravos a aceitação de seu estado”.47
Tais análises, resultantes fundamentalmente de concepções teóricas como o marxismo
ou o estruturalismo, pecam quando confrontadas com as especificidades históricas. Essas não
permitem aos sujeitos sociais outras formas de apreensão da religião - vista somente como
instância de controle; deste modo, os homens não são capazes de agir, sendo manipulados em
suas vontades por uma ideologia ou por uma supraconsciência religiosa, ambas sufocando os
desejos, reduzidos a zero. Assim sendo, os escravos são “docilizados”, “anomizados” pela
Igreja, “estrutura estruturante e estruturada” do social. 48 O resultado possível dessa equação
seria a perda da capacidade de ação.

47. Vilar (2000: 191-2; tradução nossa). Sobre este aspecto, ver também: Boschi (1986: 55, 67 e 155-6).
48. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,!987.

309
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

O que se pode destacar também é o etnocentrismo que subjaz. Não se deveria buscar
entender antes as cosmogonias e cosmologias africanas, ou seja, os quadros de valores que
configuram os modos pelos quais aqueles escravos, em sua pluralidade cultural, percebiam o
mundo e o sagrado? Vila Vilar, como alguns letrados coloniais, fala de “ameaças infernais”
para fazer os africanos obedecerem. Contudo, o paraíso, o inferno e o purgatório não faziam
parte dos imaginários religiosos africanos, e seria difícil pensar que esses abandonariam suas
crenças ancestrais, tomando-se cristãos “puros”. Ameaçar com o inferno podia parecer até
pitoresco, para eles, uma vez que os africanos não acreditavam nisso! 49
O último ponto, que remete mais diretamente à evangelização, é que os escravos
reinterpretavam a religião, filtrando somente o que lhes interessava. As palavras contidas na
Bíblia também podiam ensiná-los a se erguer como indivíduos, filhos do mesmo Deus, e
essas contradições foram exploradas pelos cativos. Deve-se pensar também que, para que
houvesse a “sujeição social”, seria necessário, no mínimo, que a catequização e o
doutrinamento dos escravos ocorressem sem máculas. Mas, como se tem indicado, isso
estava bastante distante do desejável.
Certamente, como já disse Assumar, “em parte aonde a fé anda pegada com custo, e
onde o respeito está pendurado por um fio”, seria difícil que esse controle existisse. Em
relação à doutrinação dos escravos africanos propriamente ditos, o governador mostrou-se
mais ainda escandalizado, afirmando que a doutrina da Igreja mineira é muito diferente da
católica, pois, se desta, a regra é a piedade e a virtude, daquela é a “ambição a avareza, o
interesse”, e, além disso:

pouco importava que o negro soubesse se recebia pão, se Nosso


Senhor Jesus Cristo; e estava tão introduzido esse abuso que já
corria neste país como provérbio que o negro que trás calção e
jaleco é capaz de Comunhão, ainda que seja um bruto.50

Com tudo isso, pensar a Igreja cçmo mecanismo totalizante, capaz de incutir a
sujeição aos escravos evangelizados, de^e ser no mínimo relativizado, senão superado por
meio da observação das práticas^ociais. Somente assim poder-se-á perceber as apropriações
culturais, fruto de concepções religiosas anteriores ao tráfico, adaptadas, evidentemente, aos
limites impostos pelo ambiente colonial. Este é o verdadeiro desafio que se nos coloca a
história.

49. Vilar (2000: 192). Conferir essa discussão no capítulo “Para melhor viver...”, em minha tese de
doutoramento.
50. Carta de Assumar ao bispo do Rio de Janeiro. Vila do Carmo, 13 set 1718. SC-11, fl. 50v-53. [fil 03, gav. G-
3] (grifo nosso).

310
Estrutura de Posse e Demografia Escrava (Porto
Feliz/SP, 1798-1843)

2
Roberto Guedes

INTRODUÇÃO

Mediante análise serial de listas nominativas de habitantes, o trabalho analisa a


estrutura de posse e a demografia escrava na vila de Porto Feliz, São Paulo, durante a
primeira metade do século XIX. A freguesia de Araritaguaba (posteriormente, Porto Feliz)
fazia parte da vila de Itu, que no século XVTI era um ponto de passagem importante na rota
que ligaya_SâqPaulo a áreas de apresamento de indígenas.2 Em inícios do século XVIII, com
a descoberta de minas em Coxipó-Mirim e Cuiabá, Itu/ Araritaguaba se tomou fundamental
na rota fluvial das monções, dela partindo as embarcações até as áreas mineradoras. Criou-se
uma estrutura agrária em Itu/ Araritaguaba voltada ao abastecimento das expedições,
principalmente de milho e feijão.3 Entre finais do século XVIII e meados do XIX,
acompanhando o desenvolvimento da atividade canavieira no Oeste paulista, 4 Porto Feliz se
tomou um

1. Doutor em História Social pela UFRJ. Professor do Departamento de História e Economia da UFRRJ.
2. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994, pp. 17-98.
3. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990; GODOY, Silvana Alves de. Itu e
Araritaguaba na rota das monções (1718 a 1838). Campinas: Unicamp, Dissertação de Mestrado, 2002, pp. 120-
61.
4. As vilas do Oeste, no século XVII, eram Itu e Jundiaí, respectivamente fundadas em 1654 e 1655. Como
enfatizo o período até meados do XIX, considero “Oeste paulista” as vilas criadas até 1850, a saber: Itu,
Jundiaí, Mogi Guaçu, Campinas, Capivari, Piracicaba, Franca, Tietê, Batatais, Rio Claro, Limeira. Cf.
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1700- 1836). São Paulo: Hucitec,
2000, p. 140.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

dos municípios do “Quadrilátero do Açúcar”, área compreendida entre Sorocaba, Piracicaba,


Mogi Guaçu e Jundiaí.5

POPULAÇÃO ESCRAVA: REPRODUÇÃO NATURAL E


TRÁFICO

No desenrolar da atividade açucareira na primeira metade do século XIX, período


aqui abordado, a população escrava tendeu ao crescimento, com oscilações de ritmo 6 (quadro
1).

Quadro 1. População escrava (Porto Feliz, 1798-1843)7

Ano 1798 1803 1805 1808 1810 1813 1815 j 1818 1820 1824 1829 1836 1843
Escravos 1.443 1.913 2.053 2.290 2.172 2.420 2.782 3.689 3294 3226 4.928 4.171 4.122

Nos anos de 1820, 1824, 1829 e 1843, as listas não incluem a freguesia de Piracicaba.
Fonte para 1836: MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da província de São Paulo. São Paulo: Governo do Estado, Coleção
Paulística, vol. 11, 1978, p. 140

Para se ter uma idéia do desenvolvimento da escravaria em Porto Feliz, a comparação


com o município de Campinas é elucidativa. Nesta vila, a população cativa cresceu 5% ao
ano entre 1801 e 1829, tendo 4.800 escravos em 1829. 8 Neste mesmo ano de 1829, o
contingente cativo em Porto Feliz era um pouco maior, mas o

5. PETRONE, Maria Thereza S. A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio (1765- 1851). São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1968, pp. 8 e 47.
6. As oscilações de ritmo se devem principalmente a fatores locais. Na fase de montagem dos engenhos, entre
1798 e 1808, o crescimento foi constante, recaindo em 1810. Refluxo que se deve a uma agitação escrava
ocorrida em Porto Feliz e Itu em 1809-1810, colaborando para fazer baixar o contingente cativo. Mais
importante,:1810 também foi um ano em que geou em Porto Feliz, o que sugere uma redução no acesso a
escravos em um ano de má colheita, bem como uma elevação da mortalidade. A tendência de crescúiíentb é
retomada entre 1813 e 1818, e revertida de 1818 para 1820, mas as listas não incluem a freguesia.de
Piracicaba no último ano. Em 1824, esta freguesia foi desmembrada, e dos 3.689 cativos de Portqi Feliz do
ano de 1818, 1.050 (28,4%) estavam nela e apenas um senhor de engenho constava em 1824. Por estes
motivos, a população refluiu entre 1818 e 1824. No geral, a população cresceu dufante a década de 1820.
Relacionando o ano de 1829 ao de 1820, houve um aumento, em números absolutos, de 1.631 escravos,
49,5%. Em 1836, os cativos seriam 4.171, redução derivada do desmembramento de Capivari em 1832. Por
fim, a população escrava praticamente permaneceu estável entre 1836 e 1843, apesar do desmembramento de
Pirapora em 1842.

7. Todos os quadros foram elaborados com base nas Listas Nominativas de Porto Feliz (LNPF) para os anos de
1798, 1803, 1805, 1808, 1810, 1813, 1815, 1818, 1820, 1824, 1829 e 1843, arquivadas no Arquivo do Estado
de São Paulo (AESP). Referências adicionais serão citadas.
8. SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999, pp. 70-71.

312
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

ritmo de crescimento foi diferente. Entre 1798el818,o crescimento médio anual foi de 4,8%,
quase igual ao de Campinas entre 1801 e 1829.9
Assim, durante a primeira metade do século XIX, a população escrava de Porto Feliz
cresceu muito, absorvendo cativos do tráfico atlântico. 10 Em várias partes do Brasil de
outrora, o tráfico foi a fonte maior de reprodução física da escravidão. Sendo seletivo no que
toca às estruturas sexual e etária dos traficados, quanto mais africanos desembarcavam, mais
acentuados eram os desequilíbrios demográficos. A vila de Porto Feliz, ainda que distante do
porto carioca, era extremamente vinculada a ele, já que grande parte dos escravos que
comprava vinha da Corte do Rio de Janeiro.11 A par de variações, o desenvolver da população
escrava na vila acompanhou a tendência de crescimento de desembarques de africanos no
porto do Rio de Janeiro,12 principalmente a partir de 1810 (gráfico 1).

9. Desagregando os dados, nota-se que o crescimento foi de 9,9% ao ano entre 1815 e 1818 e de 2,7%, entre
1818 e 1829. No período global, entre 1798 e 1843, a população escrava aumentou 2,7% ao ano, em média.

10. Segundo as estimativas de Florentino, entre 1790 e 1808, vigência do período de estabilidade dos
desembarques de cativos africanos no porto carioca, o crescimento médio anual foi de 0,35%. Entre 1809 e
1830, ocorreu um período global de expansão do tráfico, subdividido em dois blocos. Entre 1809 e 1825, o
crescimento médio anual foi de 2,4%, e, entre 1826 e 1830, de 4,5%. Cf. FLORENTINO, Manolo. Em costas
negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (sécs. XVIII e XIX). Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, pp. 51-9. Entre 1831 e 1835, cerca de 57.800 cativos africanos aportaram
no Rio, 11.560 por ano. Finalmente, de 900 a 950 mil cativos chegaram na Corte entre 1800 e 1851. Destes,
285.714 vieram entre 1844 e 1850,40.816 por ano. Cf. KARASCH, Mary. Slave Life in Rio de Janeiro (1808-
1850). Princeton: Princeton University Press, 1987, pp 29-30; ELTIS, David. The nineteenth-century
transatlantic slave trade: an annual series of imports into the Américas brocken down by region. Hispanic
American Historical Review, 1987, v. 67, n. 1, pp. 114-5.

11. FERREIRA, Roberto Guedes. Pardos: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.
1798 - c. 1850). Rio de Janeiro: UFRJ, Tese de Doutorado, 2005, cap. I.
12. Evidente que o tráfico cresceu mais. Entre 1798 e 1829, período em que é possível a comparação para o
conjunto da escravaria da vila, o tráfico cresceu em média 6,4% ao ano, enquanto o contingente cativo
cresceu a uma taxa anual de 4%. Porém, comparando o período que vai de 1803 a 1829, pois não há dados
sobre naturalidade em 1798, a taxa de crescimento médio anual dos cativos africanos foi de 5%, um pouco
mais próxima a do tráfico, 6,8%.

313
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Gráfico 1. Desembarques de escravos africanos no porto do Rio de Janeiro e


população escrava (Porto Feliz, 1798-1829)

Anos

' Desembarques de Africanos —•— Escravos em Porto Feliz — - - Linear (Escravos em Porto Feliz)
---------- Linear (Desembarques de Africanos)

Fontes: LNPF e Florentino (1995: 59).

O gráfico 1 demonstra que, apesar da tendência de crescimento, em certos momentos


as oscilações foram inversas ou em ritmos distintos. Por exemplo, entre 1808 e 1813, o
contingente africano diminuiu na vila, mas a população escrava se manteve estável. Outro
exemplo é que, del810al818, a população aumentou e o tráfico oscilou (gráfico 1 e quadros 1
e 5). Há duas possibilidades. A primeira é a de que a importação de africanos não cessou
tanto quando o tráfico refluiu, e a segunda seria uma reprodução natural; é óbvio que não o
suficiente para repor a população, mas para manter os crioulos em 42%, entre os adultos, até
1818 (quadro 7). Destarte, se de um lado o aumento da população escrava se deve
basicamente à importação de africanos, de outro a participação crioula é significativa.
O tema da reprodução natrírai da população cativa recebe ênfases distintas. Pesquisas
indicam variações locais evtemporais. Francisco Luna e Herbert Klein \ destacam que, no
século XVTII, a escravaHa da capitania paulista era majoritariamente \ formada por nascidos no
Brasil, apresentando taxas positivas de crescimento natural. No século XIX, o desenvolvimento
da população foi fundamentalmente baseado na imigração forçada de africanos. Por isto, do
último quartel do século XVIII até fins dos anos de 1840, a presença de africanos foi crescendo
entre a escravaria, até constituir-se em força de trabalho dominante. No século XIX, a taxa de
reprodução natural era negativa por causa do volume e da seletividade do tráfico atlântico, com
\ predomínio de homens. Ademais, a população escrava tinha baixas taxas de fecundidade \
(relação entre crianças de 0 a 4 anos e mulheres de 15 a 44 anos), o que se agravou no

314
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

decorrer do tempo. Nas áreas açucareiras do Oeste paulista, 13 este processo era mais intenso
do que no conjunto da capitania, e os africanos constituiriam 2/3 dos escravos em 1836 (Luna
& Klein, 2003:133-41).
Por seu turno, Maurício Alves reconhece o papel do tráfico de escravos para a
reproduçãada populaç_ão_esciaya, mas destaca a ampla participação de crioulos nà vila de
Taubaté e as possibilidades de crescimento endógeno, sobretudo nas unidades com mais de
dez cativos. Nas três primeiras décadas do século XIX, o contingente de crioulos supera o de
africanos. A entrada destes entre os anos de 1805 e 1829 apenas manteve “a presença de
africanos entre 38 e 45% dos cativos com quinze anos ou mais”. Além disto, as taxas de
fecundidade nas escravarias com mais de dez escravos se aproximam das taxas da população
livre, e tanto maior a escravaria, mais próxima dos livres. A presença de crianças se associa à
elevada proporção de cativos nascidos em Taubaté, indicando uma forte reprodução
endógena. Assim, apesar da alta participação de adultos nos momentos de expansão
econômica, o que significa que a proporção de crianças era incapaz de repor geracionalmente
a escravaria, houve “um crescimento endógeno significativo na reposição da população
cativa”.14
Em Porto Feliz, no período global situado entre 1798 e 1843, a maior presença
africana entre os adultos constata que a população escrava se reproduziu basicamente por
importação de cativos. Porém, ao que tudo indica, a vila ensaiou uma crescimento natural no
início do século XIX, processo interrompido com a atividade açucareira, como afirmaram
Luna e Klein. Por isso, até 1818 a presença de crioulos no município era expressiva, ainda
que não como em Taubaté. Comparando ambas as vilas, nota-se que o crescimento da
população africana segue ritmo similar, isto é, era mais presente no início, sofreu um refluxo
e se recupera em seguida. A diferença é que, em Porto Feliz, a assiduidade de africanos era
mais intensa, atingindo metade da população cativa em 1824, ao passo que Taubaté só o
realizou depois, em 1835, pois, em 1829, cerca de 2/3 dos cativos ainda eram crioulos (Alves,
2001:169 e 181). O diferencial reside na maior absorção de africanos em Porto Feliz devido à
lavoura canavieira. /
Por outro lado, o contingente africano em Porto Feliz está aquém do de Campinas,
talvez a vila com maior proporção de escravos estrangeiros na capitania paulista da primeira
metade do século XIX.15 Nesta vila, ainda em 1801, os africanos

13. As áreas açucareiras da capitania incluem Campinas, Guaratinguetá, Porto Feliz, Itu, Jundiaí, Mogi das
Cruzes, Pindamonhangaba, São Sebastião e Sorocaba. Os municípios analisados do Oeste paulista são
Itu/Capivari, Jundiaí e Mogi Guaçu. Cf. LUNA, Francisco V. & KLEIN, Herbert. Slavery and the
economy ofSão Paulo (1750-1850). Standford: Standford University Press, 2003, pp. 29 e 228.
14. ALVES, Maurício Martins. Formas de viver: formação de laços parentais entre cativos em Taubaté (1680-
1848). Rio de Janeiro: UFRJ, Tese de Doutorado, 2001, pp. 189-94.
15. Campinas parece ter tido a maior população africana no Oeste paulista. Itu só apresentará
predominância de africanos em 1829. Entre os de naturalidade conhecida, 2.009 (55,6%) eram

315
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

eram 70,1% entre os escravos com mais de 15 anos (Slenes, 1999: 71). Em Porto Feliz, os
crioulos eram 42% entre os adultos em 1818, e os africanos só se tomam maioria, na
escravaria como um todo, em 1829 (quadros 5 e 7).
Sintetizando, durante as primeiras décadas do século XIX, Porto Feliz se situa entre
Campinas e Taubaté no que tange à presença de africanos adultos na escravaria e, por
conseguinte, na absorção de cativos vindos de além-mar. Por outra parte, segue a tendência da
capitania paulista como um todo, isto é, um ensaio de crescimento natural interrompido pelo
tráfico.16 Resta saber quem comprava escravos na vila e como isto alterou a demografia
cativa.

africanos e 1.603 (44,4%) crioulos. LUNA, Francisco V. & KLEIN, Herbert. Escravos e senhores no Brasil
no inicio do século XIX: São Paulo em 1829. Estudos Econômicos. São Paulo, FEA/USP,
1990, v. 20, n. 3, p. 355. Em Jundiaí, os africanos também só atingem o índice de 63% do total em 1829
(Luna & Klein, 2003 : 44). Infelizmente, não é possível saber o percentual entre os adultos nestas áreas. Seja
como for, tudo indica que Campinas se antecipou a um processo que se concretiza em outras áreas do Oeste
paulista a partir de meados dos anos 30 do século XIX. Para outros locais da capitania/província, ver:
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de escravos efamília escrava em Bananal. São
Paulo: Annablume/FAPESP, 1999, pp. 133-4; SANTOS, Jonas. Senhores e escravos: a estrutura da posse de
escravos em Mogi das Cruzes no início do século XIX. Estudos de História. Franca: UNESP, 2002, v. 9, n. 2,
p. 242.
16. Sobre reprodução natural em outros locais, cf. GUTIÉRREZ, Horácio. Demografia escrava numa economia
não-exportadorji: Paraná, 1800-1830. Estudos Econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1987, v. 17, n. 2;
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. Marcelino, filho de Inocência crioula, neto de Joana Cabinda:
um estudo sobre as famílias escravas em Paraíba do Sul. Estudos Econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1987, v.
17, n. 2. Minas Gerais é talvez o caso mais debatido. Há os que destacam a reprodução natural. VerJJJNA,
Francisco. V^& CANO,-Wilson. A reprodução natural de escravos em Minas Gerais (século XIX): hipótese.
Cadernos doJCHF. Campinas: Unicamp, n. 8, 1993; LIBBY, Douglas C. Demografia e escravidão. Revista de
História. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto. Depto. de História, 1992; e PAfVATciotilde &
LIBBY, Douglas. Caminhos alternativos: escravidão e reprodução em Minas Gerais do século XIX. Estudos
Econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1995, v. 25, n. 2. Por outro lado, Roberto Martins ressalta que Minas era
importador líquido de escravos no século XIX, portanto, que o trafico foi primordial para a reprodução da
população escrava. Cf. MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão
numa economia não-exportadorai/'és7íroros Econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1983, v. 13, n. 1. Laird Bergad
critica a idéia de que Minas Cjerais do século XIX importava quantidade significativa de cativos,
sustentando que a reprodução erà> fundamentalmente natural, invertendo a tendência do século XVIII,
quando a capitania importava escravos. Cf. BERGAD, Laird W. Escravidão e história econômica: demografia
de Minas Gerais (1720-1880). Bauru: Edusc, 2004. Assim, o caso mineiro seria o inverso do paulista, pois esta
última área teria importado escravos no século XIX e se baseado na reprodução natural no século XVIII.
Porém, sem ter o tema da reprodução escrava como objeto, João Fragoso e Roberto Guedes demonstram
que, nas primeiras décadas do século XIX, Minas Gerais era a área do Sudeste que mais importava cativos
africanos que passavam pela Corte do Rio de Janeiro, o que sugere estar correta a tese de Roberto Martins.
Cf. FRAGOSO João & FERREIRA, Roberto Guedes. “Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada. Os
códices 390, 421, 424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte (1819-
1833)”, in BOTELHO, Tarciso Rodrigues et alii (orgs.). História quantitativa e serial no Brasil: um balanço.
Goiânia: ANPUH-MQ 2001-2002.

316
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

ESTRUTURA DE POSSE

A importação de escravos variou conforme o tamanho das escravarias, 17 entendidas


como o número de escravos de um senhor e/ou presente nos fogos. Os escravistas são aqui
divididos entre pequenos (até dez escravos), médios (entre onze e vinte) e grandes (com mais
de 21). O quadro 2 evidencia que pequenos senhores sempre formaram a esmagadora maioria
dos escravistas, flutuando entre 59,9% a 76,9%, mas não detiveram mais de 38,3% dos
escravos, chegando a possuir parcos 14,8% em 1829. Sua presença oscilou. Até 1815, nunca
foram menos de 71,9% dos proprietários e, entre 1820 e 1829, diminuíram sua participação,
declinando em termos absolutos, tendência revertida em 1843. A parcela de escravos
possuídos diminui quase constantemente até 1829. Contudo, sempre foram a maioria dos
senhores (quadro 2).

Quadro 2. Estrutura de posse de escravos (1798-1843)

Escravarias
1 a 10 11 a 20 Mais 21
Senhores Escravos Senhores Escravos Senhores Escravos TS TE
Ano # % # % # % # % # % # % # #
1798 147 75,8 552 38,3 31 16,0 439 30,4 16 8,2 452 31,3 194 1443
1803 191 75,8 683 35,7 41 16,3 598 31,3 20 7,9 632 33,0 252 1913
1805 176 72,4 667 32,5 43 17,7 620 30,2 24 9,9 767 37,3 243 2053
1808 192 71,9 706 30,8 43 16.1 613 26T8 32 12,0 971 42,4 267 2290
1810 203 74,9 707 32,6 42 15,5 640 29,5 26 9,6 825 37,9 271 2172
1813 227 76,9 849 35,3 37 12,5 548 22,8 31 10,6 1005 41,9 295 2402
1815 245 74,2 912 32,8 49 14.8 695 25,0 36 11.0 1175 42,2 330 2782
1818 268 70,7 978 26,5 55 14,5 821 22,3 56 14,8 1890 51,2 379 3689
1820 213 67,8 799 24,3 49 15,6 730 22,2 52 16,6 1765 53?5 314 3294
1824 196 67,1 763 23,7 39 13,4 602 18,7 57 19,5 1861 57,6 292 3226
1829 208 59,9 730 14?8 48 13,8 749 15,2 91 26,3 3449 70,0 347 4928
1843 231 68,5 937 22,7 41 12,2 619 15,0 65 19?3 2566 62,3 337 4122
TS = Total de Senhores; TE = Total de Escravos.

17. Sobre estrutura de posse, um bom balanço se encontra em Motta (1999: cap. 2). O autor enfatiza a
pulverização da propriedade escrava e não mais um quadro formado por grandes escravarias. No mesmo
sentido, dentre outros, cf.: SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial
(1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988, cap. 16; e MARCONDES, Renato Leite. A
propriedade escrava no vale do Paraíba Paulista durante a década de 1870. Estados Históricos. Rio de
Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2002, n. 29.

317
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Os médios senhores formaram o grupo mais estável no que concerne à assiduidade, ao


redor de 12,2% e 17,7%, sem oscilações muito fortes e com um pequeno pendor de queda,
mas perderam escravos de forma rápida. Como os pequenos senhores, os médios contraíram
sua parcela em cativos ao longo do período, mormente a partir de 1813 e 1824. Possuíam
31,3% dos escravos em 1803 e 15% em 1829 e 1843. Este percentual de declínio se aproxima
do dos pequenos senhores no período global.
No conjunto, até 1815, médios e pequenos senhores não eram menos de 85% dos
proprietários e possuíam mais da metade da escravaria, chegando a reter 68,7% no primeiro
ano da amostragem, mas, a partir de 1818, os cativos passam a viver majoritariamente nas
grandes escravarias. Em 1798, os grandes senhores eram 8,2% do total e tinham 31,3% da
escravaria da vila, mas, em 1829, os percentuais são, respectivamente, de 26,3% e 70%.
Ainda em 1843, eram 19,3% dos proprietários com 62,3% da escravaria. Portanto, ao mesmo
tempo em que os senhores de até vinte cativos assistiram à redução de seu peso, em
assiduidade e em posse de escravos,
o oposto ocorreu entre os grandes. Isto significa que a concentração da propriedade escrava
se exacerbou durante o desenvolvimento do sistema agrário da primeira metade do século
XIX. Mas seria errôneo supor que a participação cada vez mais intensa de grandes senhores
se fez em detrimento da de pequenos e médios escravistas. O fato é que os maiores senhores
se expandiram mais, pelo menos até 1818, quando está incluída a importante freguesia de
Piracicaba. Como se vê, em números absolutos, pequenos e médios senhores quase dobraram
sua participação entre 1798 e 1818, ao passo que os grandes mais que triplicam. Em 1820 e
1824, a presença de todos decresce, efeito do desmembramento de Piracicaba. De 1824 a
1836, crescimento mais exacerbado dos grandes senhores volta a ocorrer, o que só se inverte
em 1843, provavelmente por causa dos desmembramentos das freguesias de Capivari em
1832 e de Pirapora em 1842.
Na verdade, o aumento mais amplo da participação dos grandes senhores e a
concomitante concentração da propriedade escrava se devem à atividade açucareira, embora a
maior parte dos escravistà^ não empregasse seus escravos neste setor (quadro 3).
V

318
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

Quadro 3. Mão-de-obra escrava em fogos produtores e não produtores de cana


(1798-1843)

Fogos cora cana Fogos sem cana Total


Ano # % TE %TE # % TE %TE Fogos Escravos
1798 92 47,7 1.042 72,2 101 52,3 401 27,8 193 1.443
1803 84 33,1 1.192 62,3 170 66,9 721 37,7 254 1.913
1805 89 36,5 1.271 623 155 63,5 768 37,7 244 2.039
1808 81 29,7 1.450 63,3 192 70,3 840 36,7 273 2.290
1810 71 26,1 1.308 60,7 201 73,9 847 39,3 272 2.155
1813 68 23,1 1.367 56,9 227 76,9 1.035 43,1 295 2.402
1815 97 30,1 1.805 65,9 225 69,9 934 34,1 322 2.739
1818 149 38,3 2.629 71,6 240 61,7 1.045 28,4 389 3.674
1820 116 36,6 2.343 72,0 201 63,4 909 28,0 317 3.252
1824 110 38,6 2.492 77,5 175 61,4 725 22,5 285 3.217
1829 135 38,7 3.851 79,0 214 61,3 1.023 21,0 349 4.874
1843 91 26,8 2.790 67,7 248 73,2 1.332 32,3 339 4.122
TE = Total de escravos. Exclui casos de número de escravos e/ou produções ilegíveis.
Produtores de cana são senhores de engenho, engenheiros e plantadores de cana de
partido.

Na capitania, como um todo, houve o acirramento da concentração da propriedade


escrava a partir de 1815, inclusive entre os senhores de engenho, já que a média de escravos
aumentou entre eles (Luna & Klein, 2003: 33 e 48). Porto Feliz seguiu este processo e fogos
com menos de vinte cativos foram diminuindo entre os que se dedicaram à lavoura
açucareira, principalmente a partir de 1824. Assim, pequenos e médios produtores de cana
eram 80% em 1798 e continuaram majoritários até 1820, mas, a partir de 1824, foram
reduzindo sua participação e possuindo cada vez menos escravos (quadro 4). Logo, é
provável que a lavoura canavieira tenha se elitizado em Porto Feliz por causa do fator
trabalho. Se, inicialmente (até cerca de 1813-15), foi possível a pequenos escravistas
ingressar na lavoura canavieira, a média de escravos crescente dos produtores de cana indica
que, a partir de 1824, não mais foi tão facilmente acessível a pequenos escravistas o ingresso
ou a permanência na atividade, como se deu na capitania/província (Luna & Klein, 2003:123-
7).

319
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Quadro 4. Estrutura de posse de escravos entre produtores de açúcar (Porto Feliz,


1798-1843)

Entre 1 e 10 Entre 11 e 20 Mais de 20


Senhores Escravos Senhores Escravos Senhores Escravos TS TE ME
Ano # % # % # % # % # % # % # # */o
1798 53 57,6 253 24,2 23 25,0 340 32,5 16 17 f4 454 43,4 92 1.047 11.4
1803 39 47,6 207 17,4 23 28,0 353 29,6 20 24,4 632 53,0 82 1.192 14,5
1805 36 42,9 208 16,4 28 33,3 414 32,6 20 23,8 649 51,1 84 1.271 15,1
1808 25 31,3 172 11,9 26 32,5 382 26?3 29 36,3 896 61,8 80 1.450 18,1
1810 20 29,0 132 10,1 25 36,2 406 31,0 24 34,8 770 58,9 69 1.308 19,0
1813 17 25,0 121 24 35,3 373 27,3 27 39,7 873 63,9 68 1.367 20,1
00
O
O

1815 27 28,7 175 9,7 33 35,1 481 26,6 34 36,2 1149 63,7 94 1.805 19,2
1818 49 34?5 275 10.5 41 28,9 622 23,7 52 36,6 1732 65,9 142 2.629 18,5
1820 32 28,3 226 9,6 37 32,7 576 24,6 44 38,9 1541 65,8 113 2.343 20,7
1824 24 21,8 176 7,1 31 28,2 494 19,8 55 50,0 1822 73.1 110 2.492 22,7
1829 16 12,0 90 23 34 25,6 538 14,0 83 62,4 3223 83,7 133 3.851 29,0
1843 10 11,4 61 2,2 18 20,5 291 10,4 61 68,2 2438 87,4 88 2.790 31j7_
TE = Total de Escravos; TS = Total de Senhores; ME = Média de escravos.
Exclui casos ilegíveis e com margem a dúvidas. A partir de 1820, Piracicaba está ausente.

Em suma, considerando todos, produtores e não produtores de cana (quadro 2), nota-
se que a estrutura de posse sofreu mudanças no período 1815-1820, solidificadas a partir de
1824. Ademais, os resultados sublinham que a posse de escravos era centralizada, mas com
significativa participação de pequenos e médios escravistas. Os pequenos senhores jamais
deixaram de ser a maioria, demonstrando que a aquisição de mão-de-obra cativa era, até certo
ponto, facilitada enquanto durou o tráfico atlântico. Neste sentido, a propriedade escrava era
ao mesmo tempo concentrada e disseminada.18 Desconsiderando o ano de 1836, a cujas listas
nominativas, na íntegra, não foi possível ter acesso, nunca menos de 27,2% dos fogos tinham
escravos, sendo que o índice atingiu 37,5% em 1798 (estes números não estão em quadros).
Num período global de expansão das atividades açucar^ir^ e de produção de alimentos,
pequenos, médios e grandes senhores freqüentaram o mercado atlântico de escravos,
principalmente os últimos. \
Apesar deste acesso relativamente facilitado à propriedade escrava, concomitante e
paradoxalmente, ao longo do períodtí ampliou-se a proporção de fogos sem escravos, uma
vez que, em 1843,72,5% estavam nesta situação e 62,5% em 1798, uma redução de 10,0%. A
expansão da atividade econômica, acompanhada da tendência de

18. FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e
elite mercantil no Rio de Janeiro ( C.1790-C.1840). Rio de Janeiro: Diadorim, 1993, pp. 38-48; Schwartz (1988:
cap. 16).

320
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

crescimento da população escrava, não apenas intensificou a concentração da propriedade


escrava, mas também diminuiu o acesso a ela, proporcionalmente. 19
Demografia Escrava: Alterações na Naturalidade Escrava
Antes de demonstrar as mudanças na naturalidade, ressalvas são necessárias.
EmPorto Feliz, a_cor não é o melhor critério para caracterizara origem. Nas listas
nominativas, os termos preto e negro eram utilizados para africanos e para escravos nascidos
no Brasil (os crioulos). Ojermo preferencial é negro, comumente referido apenas com a letra
n, ao passo que pardo é p e , exclusivamente para livres, brancos, letra b. Mas, em certas
companhias ou freguesias, em alguns anos, pardo cede a mulato, letra m, e negro, a preto, p.
Outras vezes, escreve-se Pard ou Pret. Como preto era usado para africanos e crioulos, não
designava naturalidade. Os crioulos eram descritos como tais, e, para os africanos,.
aidentifiça_^ão era feita pelajnenção à origem^ngoJ^^uiné,rebolo, dentreoutras.
Sublinhe-se que há inconstância no registro da informação sobre naturalidade. À
medida que o tráfico crescia, era menos caracterizada. Assim, em 1803,79 (4,1 %) escravos
não tinham naturalidade conhecida, 181 (7,9%) em 1808, 194 (8,9%) em 1810, 323 (13,4%)
em 1813, 458 (16,4%) em 1815, 645 (17,5%) em 1818, 764 (23,2%) em 1820, e 1.145
(23,2%) em 1829.20 Levando-se em conta somente os dois últimos anos, para 1820 o que
incide sobre o sub-registro não é a prioridade da informação em uma faixa de posse, mas a
idiossincrasia de quem fazia o registro, uma vez que, por exemplo, inexistem dados para a
freguesia de Araraquara. Para 1829, ao contrário, menor a escravaria, maior a desinformação.
Dos 1.145 sem naturalidade registrada, 261 estavam em escravarias com até dez escravos, o
que significa ausência de informação para 35,8% dos escravos desta faixa de posse.
Respectivamente, 237 (31,6%) para os escravos de médios senhores e 647 (18,8%) para os
de grandes propriedades. Estando a maior parte dos escravos nas grandes propriedades, a
análise não fica comprometida. Ainda sobre 1829,1.076 (94%) dos 1.145 escravos sem
naturalidade conhecida tinham mais de onze anos de idade, o que toma a amostragem mais
confiável para os abaixo desta idade. Provavelmente, boa parcela dos primeiros era composta
por africanos.
Outro problema para o período posterior a 1820-1824 é a maneira como, em ' certas
ocasiões, foram registradas as procedências ou naturalidades. Quem elaborava as listas
mencionava que determinado escravo era angola, congo, crioulo, e, principalmente, guiné ou
gentio, e repetia a origem-naturalidade para os escravos

19. Pesquisa futura analisará se esta redução deriva de imigração e/ou de elevação do preço de escravos.
20. Excluí o ano de 1798 porque não contempla a naturalidade, e o de 1843 porque está em fase de análise.

321
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

\ seguintes do mesmo fogo, usando a palavra dito em sua forma abreviada, d°. A 'impressão
que fica é a de desconhecimento da origem africana e/ou de má vontade
I ém registrá-la. Isto se nota principalmente nas maiores escravarias, o que enviesaria
os dados, mas outros aspectos, como o desequilíbrio sexual em prol dos homens e o alto
percentual de adultos, não deixam dúvidas de que a maioria dos escravos das unidades em
questão era de origem africana, embora não os tenha considerado para efeito de cálculo.
Destarte, a presença africana está subestimada em 1829. Toda esta ressalva é para destacar
que não almejo exatidão nos números, somente perceber tendências.
Passando agora à análise da naturalidade (quadro 5), constata-se que, até 1820,
prevaleceram cativos crioulos na vila, mas com diferenças entre as faixas de posse. Os
pequenos senhores, em geral, tinham as menores taxas de africanos, que só ultrapassaram os
nascidos no Brasil em 1829; entre os médios escravistas, os africanos excedem os crioulos
em 1824 e, entre os grandes, desde 1818. De 1815 a 1820, reduz-se em todas as faixas de
posse a participação de crioulos em relação ao período anterior, mas ainda eram maioria no
total da vila. O ano de 1829 é de ruptura e exacerba a marca africana em todas as posses,
quando, até entre pequenos escravistas, os africanos estavam mais assíduos que crioulos.

Quadro 5. Naturalidade (africana ou crioula) por faixa de posse (1798-1829)

Pequenas Médias Grandes Total


Africanos Crioulos Africanos Crioulos Africanos Crioulos Africanos Crioulos
Ano # % # % # % U •/. # % # % # % # %
1803 246 38.9 387 61T1 217 38.1 352 61,9 318 50,3 314 49,7 781 42,6 1053 57,4
1805 212 37,3 356 62,7 220 43T2 289 56,8 356 50,2 353 49,8 853 44,1 1082 55,9
1808 203 34.5 386 65,5 213 37,3 358 62,7 446 47,0 503 53,0 862 40,9 1247 59.1
1810 184 29.4 442 70,6 215 37,9 352 62,1 296 26,4 827 73,6 695 35,1 1283 64,9
1813 191 28,1 489 71,9 190 40.8 276 59,2 327 35,0 606 65,0 708 34,1 1371 65,9
1815 264 37,7 436 62,3 242 48,8 254 51,2 521 46,2 606 53,8 1027 44,2 1296 55,8
1818 240 32,4 500 67?6 318 45JT -^82 54?6 820 53,4 716 46,6 1446 47,5 1598 52,5
1820 228 37,1 386 62,9 252 48,1 272 51,9 732 52.5 662 47,5 1212 47,9 1320 52,1
1824 216 44,4 271 55,6 238 57,6 175 42,4 644 50,9 622 49,1 1098 50,7 1068 49,3
1829 244 52,0 225 48,0 345 67,4 167 32,6 216 77,3 636 22,7 2754 72,8 1028 27,2
5
Exclui os de naturalidade desconhecida.
Não há informação sobre naturalidade para 1798? e o de 1843 se encontra em
análise.

No cômputo global, em todo o período, Porto Feliz recorreu ao mercado de escravos


de modo amplo, mas, durante a fase inicial, até 1808, a proporção de africanos era
impulsionada principalmente por grandes senhores, com maiores percentuais de cativos desta
naturalidade. Como estes proprietários eram minoria entre os senhores, e não concentravam a
maior parcela dos escravos, prevaleciam os crioulos na população

322
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

escrava em sua totalidade. Entre 1815 e 1820, os crioulos, ainda majoritários, começaram a
assistir à redução de sua presença, uma vez que, com a expansão do sistema agrário e a
concomitante exacerbação da concentração da propriedade escrava, os senhores,
principalmente os grandes, freqüentaram com mais força o mercado de escravos africanos.
Pelo exposto, o perfil da naturalidade escrava em Porto Feliz até 1815-1818 dependeu
mais dos pequenos e médios senhores do que dos grandes. A segunda metade da década de
1810 assistiu a mudanças, consolidadas em 1824-1829. Como se viu, nestes mesmos
subperíodos também ocorreram as alterações na estrutura de posse. Em função disto, a partir
de agora a análise será feita em anos representativos. Para perceber as tendências, divido o
período global em três anos. O ano de 1805 é o de predomínio de crioulos e de pequenos e
médios senhores; o de 1818 representa a fase de mudança; e o de 1829 é o de consolidação da
concentração da propriedade escrava e da presença africana.

CRIANÇAS,ADULTOS E IDOSOS

O quadro 6 elucida que houve tendência decrescente na presença de crianças, 21 mas,


ainda que não chegassem aos 30%, a freqüência maior de crianças no início indica dois
aspectos. O primeiro é o de ter ocorrido uma reprodução natural significativa, ao menos na
fase inicial, embora não o bastante para repor a população. O segundo seria a antigüidade das
unidades, sobretudo das pequenas e médias escravarias, predominantes na vila.

21. Stuart Schwartz (1988: 288) caracterizou crianças, adultos e idosos dentre os que estavam entre 0 e 13 anos,
14 e 50 anos e mais de 50 anos, respectivamente. José Flávio Motta adota os mesmos parâmetros. Cf. Motta
(1999: 130,133, 135 e 230). Góes e Florentino reduzem para 41 anos a idade inicial dos idosos. Cf. GÓES,
José Roberto & FLORENTINO, Manolo. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de
Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. Sheila Faria situou entre as crianças os que
tinham menos de 13 anos, porque era a partir desta idade que os cativos passavam a ser cobrados no
trabalho. Cf. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 299 e 352. Adoto aqui a idade de 14 anos como o último ano da infancia,
e de 46 como o primeiro da velhice. Adultos são os situados entre 15 e 45 anos. No entanto, se o
desempenho de uma tarefa puder ser um critério para caracterizar as faixas etárias, note-se que, na Corte do
Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, os cativos entre 41 e 50 anos estavam, em sua maioria,
associados a uma ocupação. Em inventários que informaram ocupação, entre 1801 e 1844, havia 101
cativos nesta faixa etária, dos quais 83% ainda trabalhavam. Dos 149 que estavam acima de 50 anos, 70,4%
trabalhavam. Por outro lado, das 159 crianças entre sete e 14 anos, 56,6% tinham alguma ocupação. Destas,
48,8% eram aprendizes. Mas, ao que parece, a naturalidade influenciava a idade inicial de ingresso na fase
produtiva. Entre 58 africanos de sete a 14 anos, 74,1% trabalhavam, dos quais

323
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Quadro 6. Faixa etária por posse de escravos (1805,1818 e 1829)

Escrava rias Cria ncas .. M u ltos Ido; sos Total


# % n % # %
Grande 199 26.5 ..494 65.7 59 7,8 . 752
Média 184 30.1 356 58.2 72 11,8 612
Peauena 189 28.7 412 62.6 57 8,7 658
Tota) 572 28.3 1.262 62.4 188 9,3 2.022
1818
Faixas Etárias Cria ncas Adii ltos Ido; pos Total
Escrava rias # % # % # %
Grande 444 23,5 1.300 68,9 144 7.6 1.888
Média 199 24.2 561 68.3 61 7.4 821
Peouena 253 25.9 639 65.3 86 8,8 ...... 978
Total 896 24.3 2.500 67.8 291 7.9 3.687
1829
Faixas Etárias Cria ncas Adu ltos Ido tos Total
Escravarias # % # % U •/.
Grande ... 772 22.4 2.441 70.9 230 6.7 3.443
Média 177 23.6 525 70.1 47 6.3 749
Pequena 189 25.9 495 67.8 46 6.3 730
Total 1.138 23.1 3.461 70.3 323 6,6 4.922

Crianças (0 a 14 anos); Adullos (15 a 45 anos); Idosos (46 anos ou mais). Exclui idades
ilegíveis.

Porto Feliz era de ocupação relativamente antiga, constando nas listas nominativas de
Itu, como freguesia de Araritaguaba, desde 1767.22 Daí a marca expressiva de crianças ainda
em 1805, o que foi alterado pelo tráfico. Um exemplo é o plantei de Salvador Martins
Bonilha, que durou de 1798 e 1820 (22 anos). Em 1798, tinha quarenta escravos, sendo oito
crianças. Em 1803,42 e nove, respectivamente; em 1805,47 e doze; em 1808, 52 e oito; em
1810, 50 e oito; em 1813, 36 e oito; em 1815, 39 e dois; em 1818, 32 e quatro; em 1820, 45 e
quatro. Entre os cativos de Salvador, a assiduidade de criap-çS&foi relativamente estável até
1813.23 A partir de

\
32,6% eram aprendizes. Entre os lOl^rioulos na mesma faixa etária, 46,5% tinham ocupação. Entre estes,
63,8% eram aprendizes. Enfim, ainda que africanos e crioulos entrassem no mundo do trabalho na mesma
faixa etária, os primeiros o faziam com mais freqüência. Portanto, os crioulos tinham maiores chances de ter
uma “infância” mais prolongada. Cf. FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal: família e compadrio entre
escravos na freguesia de São José no Rio de Janeiro (1802-1821). Niterói: UFF, Dissertação de Mestrado, 2000.

22. Ano 1767. Lista Nominativa de Itu, AESP.


23. Ano 1798, la Companhia (Cia.), fogo (f.) 79; 1803, la Cia., f. 115; 1805, la Cia., f. 55; 1808 la Cia., f. 142;
1810, la Cia., f. 129; 1813, la Cia., f. 114; 1815, la Cia., f. 56; 1818, 5a Cia., f. 77; 1820, 5a Cia., f. 15.
LNPF, AESP.

324
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

1815, começa a decair. As mudanças da faixa de posse e do perfil etário foram feitas com a
incorporação de africanos, predominante entre os adultos. Por outro lado, no início do
processo produtivo as crianças podiam ser até ausentes. Salvador Martins Bonilha -
homônimo do anterior24 - em 1824 tinha dez escravos e nenhuma criança e, em 1829,
respectivamente, 40 e três.
Estes casos demonstram que a montagem e/ou a reprodução dos engenhos alterou a
estrutura etária da vila em seu conjunto. Porto Feliz, uma antiga freguesia de Itu, contou,
inicialmente, com uma proporção maior de crioulos e crianças. A partir de 1815, as mudanças
ocasionadas pelo tráfico modificaram o perfil da escravaria.
Em números absolutos (quadro 6), o acréscimo do contingente de crianças, de 1818
para 1829, também se deve ao tráfico, uma vez que não poucos cativos com até catorze anos
de idade eram africanos, mormente os que tinham mais de dez anos. Em 1829, dos 1.138 com
menos de quinze anos, 137 não têm naturalidade conhecida e, agregando aos crioulos todos
os 77 menores de cinco anos,25 também sem naturalidade descrita, os cativos nascidos no
Brasil são 569 (50%). Os demais 432 (37,9%) vieram da África. Entre os de origem sabida,
os africanos alcançam 43,1%. O acréscimo de crianças, em números absolutos, em 1829, não
deriva da reprodução natural. Estes novos escravos foram absorvidos principalmente pelos
grandes senhores, já que em suas propriedades as crianças crioulas estavam presentes em
índices menores do que nas demais escravarias (quadro 7).
Associando faixa etária e naturalidade, vê-se no quadro 7 que, no geral, os africanos
eram maioria entre idosos e adultos em todos os períodos, mas os índices se elevam
sobremaneira em 1829. Para os idosos, a amplitude de africanos se assemelha à dos adultos,
no sentido de um acirramento em sua assiduidade no último momento. Entre as crianças,
como era de se esperar, a prevalência de crioulos é marcante, embora os africanos mais que
quintuplicam sua marca, em números absolutos, no passar do tempo, devido principalmente
ao contingente de crianças africanas nas grandes escravarias em 1829 (quadro 7).

24. Ano 1824, la Cia., f. 12; 1829, 7a Cia., Capivari, f. 216. LNPF, AESP.
25. Considerando que o tráfico trazia poucas crianças nesta faixa etária.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Quadro 7. Faixas etárias, naturalidade e escravaria (Porto Feliz, 1805-1829)


1805
Grandes Médias Pequenas Total
Naturalidade Ni Africanos Crioulos Ni Africanos Crioulos Ni Africanos Crioulos Ni África nos Crioulos
Faixa Etária # H % # % # # % # % # # % # % # # % # %
Crianças 8 34 17,8 157 82,2 10 20 11,5 154 88,5 24 16 9,7 149 90, 42 70 13a 460 86.8
Aduitos 5 310 63,4 179 36,6 16 193 56,8 147 43^ 37 17 46,7 200 3
53. 58 678 56, 526 43,7
35 59,3 24 40,7 5 38 56,7 29 43,3 5
6 29 56,9 22 343, 11 3
102 57, 75 42,4
Idosos
Total 1 379 50,5 372 49,5 34 253 43,2 333 56,8 68 22 37,0 377 1
63, 118 853 6
44, 1.08 55,9
6 1 0 1 2
1818
Grandes Médias Pequenas Total
Naturalidade Ni Africanos Crioulos Ni Africanos Crioulos Ni Africanos Crionlos Ni Africanos Crionlos
Faixa Etária # # % # % # # % # % # # % # % # n % # %
Crianças 71 82 22,0 291 78,0 18 33 18,2 148 81.8 77 20 11.4 156 88, 166 135 18, 595 81,5
25 676 64.8 367 35,2 85 272 57,1 204 42,9 13 22 43,9 6
282 56, 480 5
1.16 57, 853 42,2
Aduitos
9
22 85 69,7 37 30,3 4 31 54,4 6
26 45.6 20 1
26 39,4 1
40 60, 46 9
142 8
58, 103 42,0
Idosos
33 843 54,8 695 45,2 103 336 47,1 378 52,9 21 26 35,8 6
478 64, 645 0
1.44 48, 1.55 51,8
Total
1 1 7 2 6 2 1
1829
Grandes Médias Pequenas Total
Naturalidade Ni AJricanos Crionlos Ni Africanos Crioulos Ni Africanos Crioulos Ni Africanos Crioulos
Faixa Etária # # % # % # # % # % # # % n % # # % # %
71 1
Crianças 99 342 50,8 331 49,2 47 55 42,3 75 57,7 68 35 28,9 86 T 214 432 46, 492 53,2
52 1.68 88,1 228 11,9 181 270 78,5 74 21,5 19 19 63,3 110 36, 901 2.14 8
83, 412 16,1
Adultos
5
65 8
133 80,6 32 19,4 21 20 76,9 6 23,1 5
20 0
19 73.! 7 7
26, 106 8
172 9
79. 45 20,7
Idosos
9 3
Toíal 64 2.16 78,5 593 21,5 237 345 69,0 15 31,0 26 24 54,6 203 45r4 1.14 2.75 74, 951 25,7
7
Ni = N8o informa 5a naturalidade; % = Percentual entre os de naturalidade
5 1 4
conhecida. 5 4 3

Contudo, apesar da africanização das escravarias, até 1818 era considerável o número
de crioulos entre os adultos. Se sua presença nesta faixa etária for um indicador de
reprodução natural da população escrava, os dados sugerem que houve uma ligeira
reprodução natural entre pequenos e médios senhores até 1818 (quadros 6 e 7). Estas
escravarias eram as menos africanizadas, principalmente as pequenas. Foram elas que
basicamente sustentaram a participação de crioulos adultos em tomo de 42%, até 1818. Como
observei antes, a vila de Porto Feliz tinha muitos crioulos, se comparada a Campinas, onde os
africanos eram 70% entre os que tinham mais de 15 anos, em 1801 (Slenes, 1999:71).
Estes números indicam ^^peyssibilidade de reprodução natural, variável por
escravaria. Entre os pequenos senhores, a freqüência de crioulos adultos até aumenta entre
1805 e 1818 e quase se manteve mesma nas médias propriedades. Até 1818, juntas, tinham
mais crioulos adulto^ do que os grandes senhores (quadros 6 e 7). Como concentravam a
maioria dos escravos até 1815, grande parte da preponderância de crioulos no conjunto da
escravaria da vila se deu por causa das pequenas e médias escravarias. Sendo a presença de
crianças também um pouco mais constante nestas duas menores propriedades, a maior
incidência de crioulos adultos deve resultar da reprodução natural.
É evidente que tudo isto não era bastava para manter a população escrava, sequer para
reproduzi-la no ritmo ditado pela expansão das atividades agrárias. Com

326
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

a mudança no perfil de posse e na naturalidade na segunda metade da década de 1810, a


população só cresceria, dentre outros aspectos, com equilíbrio sexual na escravaria, mas não
foi isto que ocorreu.

HOMENS E MULHERES

A demanda dos engenhos tomou a população predominantemente masculina.26 Nunca


menos de 62,0% do total de cativos eram homens em Porto Feliz, atingindo 67,7% em 1829
(quadro 8). O impacto do tráfico foi tão grande que a vila, apesar de distante do porto
carioca, tinha percentuais de homens próximos aos do meio agrário fluminense, onde, entre
1790 e 1830, os homens eram cerca de 67%.27 O desequilíbrio sexual, evidentemente, variava
por escravaria, faixa etária e naturalidade. No que concerne à faixa de posse, em todos os
anos e em todas as unidades, havia mais homens que mulheres, com tendência a aumentar,
até 1829. O índice de homens girava ao redor de 69% nas médias e nas grandes escravarias e
era bem menor nas pequenas propriedades (quadro 8).

26. Os motivos da predominância de homens no tráfico encontram explicações divergentes^ Para Herbert Klein,
as"mulEeres faziam as mesmas tarefas qüeoThomens nas lavouras americanas, mas elas eram altamente
valorizadas na África e no Oriente, devido ao seu potencial produtivo, reprodutivo e simbólico. Eram utilizadas
como mão-de-obra, além de fundamentais para o estabelecimento de status e de alianças, o que elevou o seu
valor na África e restringiu sua oferta no mercado atlântico, onde os homens eram preferencialmente oferecidos.
Cf. KLEIN, Herbert. “Economic aspects of the eighteenth-century Atlantic slave trade”, inTRACY, James.
TheRiseofMerchcmtEmpires. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, pp. 295-7. Vertente distintaé
apresentada por Manolo Florentino, ao argumentar que, se o preço dos cativos fosse^Õndicionado pela oferta
afncãnã, as mulheres seriam mais caras que os homens no mercado brasileiro, o que não ocorreu, já que
africanos eram mais caros que africanas e crioulos mais que crioulas, ou seja, os homens eram mais caros que as
mulheres. Cf. Florentino (1995: 68). Calcado em outras bases, sobretudo na indiferença de preços por gênero no
Brasil, Klein, em co-autoria com Luna, reitera a idéia de que a ofertaJgm primazia sobre ademanda. Em suas
palavras: “Foram as condições da oferta, ao invés da preferência dos senhoreTdêêngenho por si, que
determinaram a dominância de escravos africanos sobre crioulos”.
No original: “It was thus supply conditions, rather than the preferences of the senhores de engenho per se, which
determined the dominance of African over creole slaves”. Cf. Luna & Klein (2003:48; tradução nossa). Evidente
que o crescimento natural da escravaria não atendeu à demanda de mão- s de-obra dos senhores de engenho de
Porto Feliz, mas parece que para Luna e Klein foi o continente africano que fez perdurar não só a estrutura da
demografia cativa, mas a própria escravidão, já que, sem tráfico, a população escrãvãnãõse reproduziria.

27. GOES, José Roberto. Escravos ãã paciência: estudò^sobre a obediência escrava no Rio de Janeiro (1790-1850).
Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 1998Jp. 161.

327

i
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Quadro 8. Estrutura sexual por escravaria (1805-1829)

1!) 05
Escravaria Gra nde Mé dia Peai pena . . Tolâl
Sexo U % # % U u %
Feminino 238 31.4 232 37.5 306 45.9 776 38.0
Masculino 520 68.6 386 62.5 360 54,1 1.266 62.0
Total 758 _____ 100.0 618 _ 666 ....
100,0 2.042 100,0
100,0 .
_____ _ __ 18 18
Escravaria Grande Mé dia Pec! jena Total
Sexo n % # % u % # %
Feminino 583 30.8 257 31.3 415 42,4 1.255 34.0
Masculino 1.307 69.2 564 68.7 563 57.6 2.434 66.0
Total 1.890 100.0 821 100.0 978 100.0 3.689 100.0
1829
Escravaria Grande Mé Jia Peouena Total
Sexo .1 ! % #... . . •/- n1% #1%
Exclui escravos de sexo ilegivel.

De acordo com a faixa etária, entre os adultos os desequilíbrios sexuais eram


elevadíssimos, sobretudo nas duas maiores faixas de tamanho, nas quais os homens sempre
eram mais de 68%. As proporções de idosos seguem de perto ou superam as dos adultos
nestas escravarias. Nas pequenas posses, vigiam os menores desequilíbrios sexuais entre
adultos e idosos. Entre as crianças, os desajustes sexuais eram menores em todas as
propriedades, próximo a 55% em todo o período (quadro 9).
O desequilíbrio sexual por naturalidade se evidencia nos quadros 10 e 11. Enquanto
entre os africanos, nunca menos de 74,2% do total eram homens, entre os crioulos quase nâo
havia desequilíbrio sexual, salvo os idosos, em 1829, mas em parcos números absolutos.
Entre os africanos, os de sexo masculino prevaleciam em todas as faixas etárias, com maiores
índices entre os idosos. Este desequilíbrio sexual não dependeu tanto da faixa de posse. Nas
duas maiores propriedades, em todo o período, os índices de homens entre os adultos
africanos oscilaram entre 76% e 87,2%, e eram apenas um pouco men£>rçs entre os
pequenos senhores, em tomo de 70%. No conjunto da população, entre os de naturalidade
conhecida, os africanos predominaram entre os homens com mais de 14 anos. Adultos e
idosos africanos de sexo masculino somavam 631 escravos em 1805, o que corresponde a
68,6% dos homens, enquanto os crioulos eram 288 (11,4%). Em 1818, africanos e crioulos
com mais de 14 anos eram, respectivamente, 1.075 (67,9%) e 508 (32,1%) e, em 1829, 1.767
(87,8%) e 245 (12,2%).28 A maioria dos homens era de origem africana.
Em síntese, a africanização das escravarias gerou ou acirrou os desequilíbrios
sexuais, principalmente entre os escravos estrangeiros.

28. Estes índices não estão na tabela

328
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

Quadro 9. Sexo dos cativos por faixa etária e escravaria (Porto Feliz, 1805-
1829)
1805
Faixa Etária Crianci Adulto Idoso Total
Sexo F M M F M M F M M M M
Escravaria
Grande
#
K7
#
109
%
55.6
#
123
«
366
%
74.8
ti17 ti
42
%
71,2
#
227 517
# %
69.5
Média 90 93 111 245 68.8 26 46 619 227 384 62.8
Peauena 88 101 53,4 18$ 226 54,9 24 33 57.9 298 360 54.7
Total 265 m 53.3 420 837 66.6 67 17.1 752 1 62.6
1818 7,61
Faixa Etária Crianci Adnlto Idoso Total
Sexo F M M F M M F M M F M M
Escravaria
Grande
#
ti
231
%
52.0
#
332
ti
968
%
74.5
ti
38
Ü
106
% # #
1.30
%
69.1
213 73.6 583
Média 1 01 96 48,2 HO 421 75.0 14 47 77,0 257 5
564 68.7
Peauena 114 139 54,9 268 371 58 1 33 61.6 415 563 57.6
Total 430 466 52.0 740 1.76 70.4 85 206 70, R 1.25 2.41 66.0
0 5 2.
1829
Faixa Etária Zrianc Adulto Idoso Total
Sexo F s M M F M M F M M F M M
Escravaria
Grande
ü
3,51
#
47 |
%
54,5
#
<W
#
1.78
%
73.2
ti
45
#
185
%
80,4
#
1
#
2.19
%
69.5
Média 104 58.8 4
139 7
386 73.5 15 32 68.1 050
227 3
522 69.7
73
Peauena 94 95 50,3 201 ?94 59.4 17 ?9 63.0 312 418 57.3
Total $20 54.5 994 2.46 71.3 V 240 7$,2 1,58 3- 67.7
c
o

7 9 333
M = Masculino; F = Feminino; M% = Percentual masculino.
Exclui escravos com idades ilegíveis.

Quadro 10. Homens e mulheres entre africanos

1805
priane Adulto Idoso Total
Sexo F s M M F M M F M M F M M
Escravaria ti U % # # % ti # % ti % %
Grande 4 30 88.2 39 267 87.3 8 27 77,1 51 324 86.4
Média 4 16 80.0 31 162 83.9 5 33 86,8 40 211 54,1
Peauena 7 9 56.3 54 121 69.1 8 2i 72.4 69 151 68.6
Total 15 55 78.6 124 550 81.6 21 8] 79.4 160 6R6 81.1
1818
Crianç Adulto Idoso Total
Sexo F Ma M F M M F M M F M M
Escravaria ti ti •/„ ti ti % ti ti % # % %
Grande 28 54 65.9 111 565 83.6 1<» 69 81.2 155 81.6
§
5
0
0

Média 7 26 78.8 43 229 84.2 4 27 87.1 r>4 2K2 83.9


Peauena 7 13 65.0 56 165 74.7 6 20 76.9 69 198 74.2
42 93 68 9 210 959 82 0 26 116 81 7 278 1.16 80.8
1829 8
Crianç Adulto Idoso Total
Sexo F Ma M F M M F M M F M M
Escravaria ti ti •/. ti ti % ti # % ti % %_
Grande ni 215 62.9 399 1.28 76.4 28 105 78,9 554 1,60 74.4
Média 16 39 70.9 55 9
215 79.6 7 13 65,0 78 9
267 77.4
Peouena 13 22 62.9 56 134 70.5 8 11 57.9 77 167 AX.4
___ lotai ____ 156 276 63.9 510 1.63 76.3 43 129 75.0 709 2.04 74.2
M = Masculino; F = Feminino; M% = Percentual
8
masculino.
3
Exclui escravos com idades ilegíveis.

329
"

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Quadro 11. Homens e mulheres entre crioulos


1805
Criança Adulto Idoso Total
Sexo F M M F M M F M M F M M
F. «cravaria ti ti % ti tt % a tf % ti % %
Grande 78 79 50.3 82 97 54,2 9 15 t'2,5 169 191 53.1
Média 80 73 47.7 75 72 49.0 18 i! 37.9. 173 156 47,4 _
Peauena 70 79 53.0 117 83 41.5 12 10 45.5 199 172 46,4
Total 228 231 50.3 274 252 . 47 9 39 36 48,0 54! 519 49.0
1818
Criança Adulto Idoso Total
Sexo F M M F M M F M M F M M
Escravaria # # % # # % # # % ti % %
Grande 163 149 47.8 171 195 51.3 15 22 59,5 349 366 51,2
Média 86 66 43.4 79 125 61.3 9 17 65.4 174 208 54.5
Peauena 85 93 52.2 154 128 45,4 19 ?.1 52,5 258 242 48.4
Total 334 308 48.0 404 448 5? ,6 43 60 58.3 781 816 51.1
1829
Criança Adalto Idoso Total
Sexo F M M F M M F M M V M M
% % # % % %
Escravaria
Grande
ti
195
ti
179 47.9
ti
116
ti
112 49.1
tí 26 81.3
ti
317 317 50.0
6
Média 43 44 50.6 33 41 55.4 2 4 66.7 78 89 53,3
Peauena 51 57 52.8 55 55 50.0 0 7 100.0 106 1.19 52.9
Total 289 2$Q 49.2 204 20? 59.5 8 37 82.2 501 525 51.2
F = Feminino; M = Masculino; M% = Percentual masculino.
Exclui casos de sexo e/ou idades ilegíveis.

A par de todas as tendências, ressalte-se que os cativos de pequenos senhores


apresentavam os menores desequilíbrios sexuais entre os adultos. Juntos, pequenos e médios
senhores tinham a maior parte das mulheres férteis da vila, em termos absolutos, até 1818
(quadro 12). Este fator, aliado ao menor desequilíbrio sexual nos pequenos plantéis. talvez
tenha favorecido um ambiente mais propício à reprodução natural, sobretudo por causa dos
crioulos. As mulheres crioulas superaram os homens nas pequenas escravarias até 1818 e,
mesmo entre os grandes senhores, majoravam em 1829 (quadro 11). No geral, as crioulas
eram maioria entre as mulheres escravas até 1818 (quadro 12), ao contrário do què<sucedia
entre os homens.
Os dados apresentados demonstram que a reprodução natural possível nas ,duas
primeiras décadas repousou em grande parte sobre mulheres de pequenos e |médios senhores,
mas, fundamentalmente, crioulas em idade fértil.29 Até 1820, o pativo que nascia seria
basicamente filho de mãe crioula, mesmo que se agreguem às africanas as mulheres adultas
de naturalidade desconhecida. A fase de mudança no perfil da naturalidade escrava entre os
adultos influenciou mais a naturalidade dos

29. Talvez tenha ocorrido o mesmo em Itu, onde as mulheres de naturalidade conhecida somavam 1.360, sendo
801 (58,9%) crioulas e 559 (41,1%) africanas. Cf. Luna & Klein (1990: 55 e 349-79).

330
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

homens, não tanto a das mulheres, que só sentiram decisivamente o impacto do tráfico em
1829. A partir de então, as potenciais mães eram africanas, provavelmente em índices
maiores do que os demonstrados nos quadros 11 e 12. Em 1829, foi tão intenso o efeito do
tráfico que as africanas não deixariam de ser maioria, mesmo agregando às crioulas as
mulheres sem informação sobre naturalidade. Logo, na década de 1830, as mães eram
predominantemente africanas.

Quadro 12. Mulheres africanas e crioulas (entre 15 e 45 anos) por escravaria

1805
Afr canas Cri pulas TNC NI TF
Escravaria # % # % # # #
Grande 39 32.2 82 67.8 121 ? 123
Médias 31 29.2 75 70,8 106 5 m
Pequenas 54 31,6 117 68,4 171 15 186
Total _ 124 31.2 __ 274 . .... 68.8 398 22 420
1818
Afr canas Crio® las TNC m TF
Escravaria # % # % # # #
Grande 111 39.4 171 60,6 282 50 332
Médias 43 35.2 79 64.8 122 18 140
Pequenas 56 26.7 154 73.3 210 58 268
Total 210 34.2 404 65.8 614 126 740
829
Afn canas Criou las TNC NI TF
Escravaria # % # % # # #
Grande 399 77.5 116 22.5 515 139 654
Médias 55 62.5 33 37.5 88 51 139
Pequenas 56 50,5 55 49.5 111 90 201
Total 510 7_U_ .... 204 .. 2.8,6 714 280 994
TNC = Total com naturalidade conhecida TF = Total Feminino NI = Não informa % entre
os de naturalidade conhecida.

As crioulas e as africanas só não seriam as maiores responsáveis pela reprodução


natural nos respectivos períodos em que predominaram se uma naturalidade gerasse mais
filhos do que a outra, especialmente as africanas, se chegassem ao Brasil em idade tal que
reduzissè seus anõs férteis; mas a alta proporção de crianças africanas em 1829 indica o
inverso. Para Porto Feliz, não é possível aferir a fecundidade30 por

30. Fertilidade é o potencial reprodutivo das mulheres e fecundidade é o resultado obtido da fertilidade.
CARVALHO, José Alberto. Introdução a alguns conceitos básicos e medidas em demografia. Belo Horizonte:
ABEP, 1994, p. 23.

331
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

naturalidade, porque quase não há menção à filiação nas listas nominativas. Pode ser que
haja diferenças ocasionadas por fatores de ordem cultural, que se expressavam através do
prolongamento entre as concepções e da abstinência sexual entre as africanas, mas ainda não
disponho de fontes, como registros de batismo ou inventários post-mortem, que aludam à
filiação e que permitam suprir esta lacuna, infelizmente. Pesquisas indicam que as africanas,
no Brasil, diminuíram o intervalo genésico e prolongavam a idade da última concepção
(Góes & Florentino, 1997:133-9).31
O único tópico sobre fecundidade passível de análise é sobre o tamanho das unidades.
Como se sabe, a tendência era a de a fecundidade ser maior nas grandes propriedades (Alves,
2001:188-9; Luna& Klein, 2003:150-1) ePortoFeliznão fugiu à regra, isto é, as unidades com
menos de dez escravos sempre apresentaram a menor taxa de fecundidade, e as das médias
escravarias se assemelhavam às das grandes (quadro 13). Porém, as taxas, que já eram baixas
até 1818, definham ainda mais em 1829.
No entanto, até a fase de mudança, mais importante para a limitada reprodução natural
foi a presença de crioulas nas médias e nas pequenas escravarias, que concentravam a maior
parte dos escravos até 1815. A partir de 1829, a reprodução natural - insuficiente para as
necessidades da lavoura canavieira - se baseou em mães africanas de grandes senhores.

31. Os estudos têm divergido sobre o assunto. Hebert Klein afirma que o tráfico atlântico concorreu para a baixa
taxa de fertilidade entre a população cativa, isto é, além de minoritárias no tráfico, as mulheres, por serem
predominantemente adultas, teriam seu potencial reprodutivo diminuído nas Américas, o que, associado a
maiores espaçamentos entre as concepções, devido à amamentação prolongada, reduziria as taxas de
fecundidade. Cf. Klein (1987:306-7). José Góes e Manolo Florentino relativizam as afirmações de Klein.
Segundo os autores, ainda que apenas 1/4 das cativas africanas chegasse ao Brasil antes dos quinze anos,
cerca de 85% tinham idades variando entre quinze e 29 anos (metade das quais com dezenove anos ou
menos). As escravas desembarcadas no Brasil ainda eram portadoras da maior parte de “suas
potencialidades genésicas”. Pariam pela primeira vez em tomo dos dezenove anos (idade no
limitg^áupferior), isto é, seis anos antes que as mulheres inglesas dos séculos XVII e XVIII, sete antes das
francesas do século XVIII, um ano antes da mulher livre colonial. Dito de outra maneira, seguindo o padrão
afidcano, havia tuna precocidade nas concepções entre as mulheres escravas no Brasil. No que diz respeito
ao período de intervalação genésica, os autores argumentam que, ainda que a precocidade<das concepções
fosse relativamente contrabalançada pelos maiores espaçamentos (que estariam entre dois e três anos e
meio, limites mínimo e máximo, respectivamente, podendo chegar ao padrão africano, oscilante entre três e
quatro anos), as cativas no Brasil tenderam a prolongar a idade da última concepção, se comparadas ao seu
continente de origem. Na África, isto ocorreria por volta dos 31-33 anos, ao passo que, aqui, seria em tomo
dos 37 anos, na fase de estabilidade do tráfico, atingindo os 45 anos nos momentos de maiores
desembarques. Portanto, mesmo aceitando a idéia de intervalos prolongados entre as concepções, a
precocidade da primeira gravidez e o prolongamento da última apontam para a “urgência da procriação
cativa”, tal a necessidade de fazer aliados e, assim, contribuir para o estabelecimento da “paz das senzalas”.
Cf. Góes & Florentino (1997: 133-9).

332
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA

Quadro 13. Fecundidade por escravaria (1805-1829)

1805 1818 1829


Mulher Criança Fecun Mulher Criança Fecun Mulber Criança Fecan
Escravaria # # # # # #
Grande 123 65 0,52 332 119 0,35 654 177 0,27
Média 111 62 0,55 140 62 0,44 139 39 0,28
Pequena 186 57 0,30 268 73 0,27 201 38 0,18
Total 420 184 0,43 740 254 0,34 994 254 0,25
Mulheres de 15 a 45 anos; Crianças de 0 a 4 anos; Fecun = Taxa de Fecundidade.

CONCLUSÃO

Demonstrou-se aqui alterações na estrutura de posse e na demografia escrava na vila


de Porto Feliz derivadas do desenvolvimento da atividade açucareira, sobretudo no decorrer
das três primeiras três décadas do século XDÍ. À predominância de pequenos e médios
senhores, correspondia a predominância de uma população crioula majoritariamente
reproduzida nestas escravarias, ao passo que à preponderância de grandes senhores, que
concentravam a propriedade escrava, estruturou-se uma reprodução baseada em africanos
importados, principalmente por estes escravistas. Destarte, sem a pretensão de ser um
modelo, uma análise pontual, centrada em um município, pode elucidar aspectos mais amplos
sobre estrutura de posse e demografia cativa.

333
ORIGENS AFRICANAS OU IDENTIFICAÇÕES MINEIRAS? UMA
DISCUSSÃO SOBRE A CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES AFRICANAS
NAS MINAS GERAIS DO SÉCULO XVIII

RODRIGO CASTRO REZENDE1

INTRODUÇÃO

No testamento de Joana Machado, preta forra, em 06 de março de 1782, ao residir no


arraial de São Gonçalo do Rio Abaixo, freguesia de Santo Antônio do Ribeirão de Santa
Bárbara, além de afirmar que era solteira, de nunca ter se casado e não possuir filhos,
declarou que era “natural da Costa da Mina e de nação coira, filha do gentio da guiné donde
vim para esta freguesia (...) e nesta recebi o sacramento do santo batismo”. 2 Pelo testamento
de Joana Machado podemos observar sua origem, o local em que residia, assim como a
freguesia onde foi batizada. Contudo, as palavras de Joana Machado nos passam a falsa
impressão de que a testante era de origem coira, ou courana, isto é, de que ela pertencia,
desde quando vivia na África, a etnia coira. O testamento de Joana mostra não sua verdadeira
origem, apesar de esta possibilidade não poder ser descartada, mas tratar-se de uma origem
inventada, um emblema de proveniência fomentado em uma sociedade a qual Joana
Machado não pertencia. Estas terminologias de nação, muito embora tenham sido
apropriadas pela população africana em Minas, fazem parte de um mundo de signos não-
africano. Em outras palavras, queremos dizer que a testamenteira poderia ter outra origem
que não fosse esta de nação coira.

1. Mestre em História Social da Cultura pela UFMG


2. MO/CPO-TEST-códice 55, fl.60. Testamento de Joana Machado, Arraial do Rio Abaixo, Freguesia de
Santo Antônio do Ribeirão de Santa Bárbara, 06 mar 1782.
!|

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Tenho como objetivo neste artigo demonstrar que as nações atribuídas aos africanos
fazem referência ao universo simbólico não-afiicano. Ou seja: os indivíduos do Continente
Negro recebiam termos que pudessem ser reconhecidos na sociedade em que estavam. Estes
termos explicavam, a meu ver, muito mais a respeito da cultura e da sociedade daqueles que
imputavam terminologias e características aos africanos, do que serviam para mensurar as
qualidades próprias dos africanos. O termo naçãg, enfim, era uma idéia, uma representação
não-africana apropriada pelos africanos. Os africanos, por outro lado, possuíam outras
identidades que ficavam a margem da percepção não-africana. Estas identidades serviam, via
de regra, para sustentar dentre os africanos suas verdadeiras origens étnicas, ou melhor, suas
identidades históricas.3

REPRESENTAÇÕES NÃO-AFRICANAS

As representações imputadas aos africanos sempre foram balizadas pela )


mutabilidade. Estas representações derivam em parte das relações vivenciadas pelos / portugueses
e pelos luso-brasileiros na África, e dos ajustes manifestados no bojo da / sociedade colonial entre
africanos e não-africanos. No período medieval, os povos da África Negra eram interpretados
como descendentes de Cã, o filho amaldiçoado de - Abraão, e o continente africano como o lugar
aberto ao Sol, em que seus habitantes, filhos de Cã, eram amaldiçoados, e, portanto queimados -
negros. Desse modo, a cor
negra dos povos africanos legitimou, no pensamento europeu do medíevo, as diversas
designações depreciativas concernentes aos africanos. 4 /
Com a expansão ultramarina portuguesa e o aumento das fricções culturais entre
europeus e africanos, algumas dessas imagens iniciais seriam transformadas. Ao atingir a
região do atual Senegal no século XV, os portugueses identificaram, através do
reconhecimento de alguns valores e códigos culturais dos povos encontrados nesta região,
dois grupos distintos que viviam de um lado e do outro do rio Senegal. A região ao norte
desse rio seriáfa partir de então, classificada como Terras dos Niouros, pela grande
quantidade de if^uçulmanos ali encontrados, e ao sul seria
----------------------------------------------- -j/
3. lChamo de identidade histórica, ou renunciada, a identidade dos grupos ou dos indivíduos que, por algum -'-
'motivo qualquer, está latente, encoberta e, via de regra, não se toma visível aos que não pertencem
àquele grupo. Estas identidades, normalmente, são ofuscadas por outras que servem de identificação dos
grupos ou dos indivíduos. Na verdade, a identidade histórica é a identidade original do sujeito ou do grupo,
antes que estes, por qualquer motivo, tenham que renunciá-la e anunciar outra(s) diante de seu

Í contexto social. Para mais detalhes sobre este conceito, ver: OLFVEIRA, Roberto Cardoso de.
Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Livraria Pioneira, 1976, pp. 10-2.
4. DEL PRIORE, Mary & VENÂNCIO, Renato Pinto (org.). Ancestrais: uma introdução à história da África
Atlântica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pp. 59-63.

336

.
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?

denominada como as Terras dos Negros^uxlos-guineus. O termo Guiné, a partir de então,


seria utilizado como sinônimo,d£. Afidca-Hegra. Entretanto, com o aumento das atividades
comerciais portuguesas no litoral africano e a conseqüente necessidade de criar novos portos,
feitorias e fortes fez com que algumas dessas construções adquirissem importância e se
desvinculassem do termo Guiné. Neste caso, a Costa da Mina e o Reino do Congo, no século
XVII, foram classificados de forma independente da designação Guiné.5 Entre o final do
século XVII e o início do Setecentos, as relações entre os colonos da América Lusitana e os
africanos se estreitam ainda mais, obrigando os povos não-africanos a aprimorarem as formas
de identificação das origens dos africanos.6 A partir desse momento, os indivíduos da África
negra enviados à América lusitana “combinam nomes cristãos (com ou sem sobrenome) com
reinos, localidades e portos africanos” (Soares, 2000:25). Então, as designações conferidas
aos indivíduos da África negra, no século XVIII, seguem as nações de origens que os
indivíduos não-africanos filiaram a eles e não às suas verdadeiras origens propriamente
ditas.7
Comumente, estas representações faziam parte do universo simbólico do grupo que
representava os indivíduos do Continente Negro, isto é, dos não-africanos8. Diante disto, as
representações, segundo Chartier, “embora, aspirem à universalidade de um diagnóstico
fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as foijam. Daí, para
cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de que os
utiliza”.9 Em outras palavras, as representações se referem à sociedade em questão e, mesmo
no interior desta sociedade, as representações variam de grupo para grupo. Neste caso, as
representações traduzem os comportamentos e as visões de mundo de uma sociedade
segundo sua própria realidade histórica. A isto se alia o fato de que as representações em si
são polissêmicas e se referem à condição humana. Nesta perspectiva, a imaginação social, ou
o imaginário, da qual as representações são tributárias, se alude a uma determinada

5. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro
(século XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 43-51.
6. REIS, Liana Maria. “Colonizadores, africanos e escravidão: representações e identidades nas Minas Gerais do
Século do Ouro”, in COSENTINO, Francisco Carlos & SOUZA, Marco Antônio de. 1500- 2000: trajetórias.
Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva, Curso de História, 1999, pp. 69-82.

7. SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da escravidão. Rio de Janeiro: Léo Cristiano, 1997, p. 147.
8. Segundo Schwartz, os relatos sobre o Outro funcionam mais como uma autoprojeção do Eu, do que como uma
descrição confiável do Outro. Sobre esta matéria, ver: SCHWARTZ, Stuart B. (Ed). Implicit Understandings:
Observing, Reporting, and Reflecting on the Encounters Between Europeans and Other Peoples in the Early Modem
Era. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p.4.
9. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990, p. 17.

337
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

sociedade assentada em um exato momento, e, por isso, cada período “traz consigo uma certa
definição do homem, simultaneamente descritiva e normativa, ao mesmo tempo [em] que se
dota, a partir dela, de uma determinada idéia de imaginação, daquilo que ela é ou daquilo que
deveria ser”.10 O imaginário, então, expressa a identidade de um grupo, pois este grupo se
coloca em um determinado local no mundo, se diferenciando dos demais grupos, e, por isso,
as referências simbólicas deste grupo indicam os indivíduos que a ele pertencem, mas
também demonstram como e por que outros indivíduos não fazem parte do grupo em
questão. Assim, as representações formam as identidades que, por si mesmas, “supõe[m]
uma distinção clara entre o que representa e o que é representado. E ainda marca[m] (...) uma
presença, [uma] apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa”. 11 Ou seja:
identificam um grupo em relação aos demais.
Assim, as identidades, na verdade,

são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto


com o outro; por se ter de estar em contacto, por ser obrigado a
se opor, a dominar ou ser dominado, a tomar-se mais ou menos
livre, a poder ou não construir por conta própria o seu mundo
de símbolo e, no seu interior, aqueles que qualificam e
identificam a pessoa, o grupo, a minoria, a raça, o povo.
Identidades são, mais do que isto, não apenas o produto
inevitável da oposição por contraste, mas o próprio
reconhecimento social da diferença. A construção das imagens
com que sujeitos e povos se percebem passa pelo emaranhado
de suas culturas, nos pontos de interseção com as vidas
individuais. Ela tem a ver, ali, com processos ativos de
conflito, luta, manipulação.12

Neste caso, o termo nação^uFflizado pelos portugueses no século XVIII, designava


um \

nome colletivo, que se diz da<}ente, que vive em alguma


grande região, ou Reyno, debaixo do mesmo Senhorio. Nisto se

10. BACZKO, Bronislaw. “Imaginação social”, in Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da
Moeda, 1985, pp. 296-332, v. 5, p. 309.
11. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo: USP, v. 11, n. 5,
1991, pp. 173-91.
12. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade & etnia: construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo:
Brasiliense, 1986, p. 42.

338
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?

diferença Nação de Povo, porque nação comprehende muitos


povos, & assim Beirões, Minhotos, Alentejoens, & c. compoem
a nação Portugueza; Bávaros, Saxões, Suabos, Amburguezes,
Branderburguezes, & c. compoem a nação Alemãa;
Castelhanos, Aragonezes, Andaluzes, & c. compoem a nação
Hespanhola. [Havendo ainda nações] (...) de extraordinário, &
monstruoso Gentio.13

Dessa forma, o uso português do termo nação era aplicado a dois tipos de gentes: aos
não-gentios, como, por exemplo, aos indivíduos provenientes dos reinos europeus; e aos
gentios, que é sinonímia de idólatras e pagãos. Em ambos os casos, o termo nação era aposto
aos indivíduos que viviam na mesma região e sob a tutela do mesmo soberano. Ou seja: a
nomenclatura nação de gentios era utilizada pelos portugueses “no sentido de um povo com
uma cultura comum, a mercadores judeus e a africanos escravizados”. 14
Por outro lado, as definições de Bluteau diferenciam o termo nação do termo etnia,
pois este último

Derivase do Grego Ethuos, Gente, & Ethnico vai o mesmo q


Gentio, ou cousa de Gentio. Gentes, ou Gentiles chamavão os
Hebreos, aos que não adoravam, como elles, ao verdadeiro
Deos. Este mesmo nome derão os Romanos aos Estrangeiros,
que se lhes entregavão, como se vé no Codex Theodosiano
(Bluteau, 2000: v. 3, p. 354, verbete ethnico).

Desse modo, pelas definições de Bluteau, o termo nação poderia ser composto de
várias etnias, e, além disso, nem toda nação era formada por gentios, ao passo que toda etnia
era gentílica. A meu ver, este foi o caso dos africanos em Minas Gerais no século XVIII,
pois, embora o substantivo nação projetasse uma origem comum aos sujeitos que fossem
designados por ele, no caso dos africanos, suas procedências eram incertas e comumente
conhecia-se apenas os povos, as localidades e, em alguns casos, os reinos que enviavam
escravos ao Atlântico. Isto teve como corolário a amálgama de indivíduos de origens
distintas e, na maioria das vezes, desconhecidas

13. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Rio de Janeiro: UERJ, 2000, CD-ROM, verbete
“nação”, v. 5, p. 658.
14. KARASCH, Mary C. “Minha nação: identidades escravas no fim do Brasil colonial”, in SILVA, Maria
Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, cap. 8, pp.
127-41.

339
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

em uma única nação. Em função disso, Karasch ressalta que o termo nação, utilizado para
qualificar e representar os indivíduos da África Negra, na verdade expressava uma
“‘comunidade imaginada’ (...), que tinham de se juntar todos em novas comunidades que já
não estavam baseadas numa etnia específica”.15 Portanto, os africanos eram denominados e
unidos em uma nação imaginada, a partir da atribuição de algumas características comuns ao
grupo, que eram formuladas conforme a visão de mundo da sociedade em que estavam
inseridos.16 Essas comunidades imaginadas eram construídas não apenas pela imposição da
sociedade luso-brasileira, mas também pelos aspectos comuns dos indivíduos que a
compunham. Minas Gerais é emblemática desse viés.
A descoberta do ouro nos sertões da América Lusitana no final do século XVII
possibilitou o azo para a migração de indivíduos dos mais distantes rincões da Colônia e do
Reino para as Gerais. Estes primeiros imigrantes “trouxeram seus signos, seus símbolos e sua
cultura que, uma vez incorporados à mente do colonizado, forjaram parte de sua
identidade”.17 Por conta disso, estes indivíduos oriundos de áreas muitas vezes distintas umas
das outras deram, através de suas próprias histórias, definições díspares para o meio que
estavam construindo. Não obstante estes indivíduos tenham culturas distintas, as adaptações e
as sobreposições culturais entre eles eram inevitáveis. Estes encontros multiculturais
acabaram por resultar “na aproximação entre universos geograficamente afastados, em
hibridismos e em impermeabilidades, em (re)apropriações, em adaptações e em sobreposição
de representações e de práticas culturais”.18 Desse modo, os olhares da população não-
africana existentes em Minas eram mutáveis e instáveis, variavam constantemente,
produzindo imagens diversas sobre os africanos.

15. KARASCH, Mary C. Slave life in Rio de Janeiro (1808-1850). Princeton: Princeton University Press, 1987, p.
39.
16. Muitas vezes isso ocorria no interior da África. Law cita o caso do escravo Baquaqua, originário de
Tchamba, cidade localizada ao norte do atual Benin, fora dos limites do antigo Daomé. Baquaqua, depois de
ter sido vendido por pelo menos duas vezes, foi comprado por uma mulher em Abomey, capital do Daomé.
Esta mulher lhe atribuiu a identidade de “(...) ‘Efau’, isto é, Fom, referindo aparentemente a uma cidade ao
norte do Daomé; lá [em Abomey] ele foi vendido novamente para um homem ‘muito rico’ que vivia no
local, e foi presumivelmente este homem que subseqüentemente levou-o do sul de Abomey para Ajudá,
onde ‘eles me levaram para a casa de um homem branco’, que o vendeu novamente”. Cf. LAW, Robin.
Ouidah: The Social History of a WestAjrican Slaving Port (1727-1892). Ohio: Ohio University Press, 2004, pp.
138-9.
17. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas
setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 24.
18. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia (Minas Gerais, 1716-1789). Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2001, p. 27.

340
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?

Emblemático deste caso é a divergência entre os termos Guiné e África em Minas


Gerais no século XVÜI. Estas terminologias muitas vezes eram utilizadas como sinonímias,
mas também poderiam representar lugares distintos. Como exemplo disso, D. Maria I, rainha
de Portugal, em 01 de setembro de 1778, é solicitada pela Câmara da Vila Nova da Rainha a
conceder uma mercê para ajudar os moradores de Minas ao combate dos escravos fugidos
que causavam grandes danos na população. Nesta carta, os membros da Câmara ressaltam a
lealdade dos moradores das Minas à Coroa portuguesa, justificando a ajuda aos habitantes das
Gerais no combate contra a insubmissão da gente preta da “África e da Guiné”. 19 Neste
episódio, o termo Guiné aparece dissociado da terminologia África, como se fosse uma região
autônoma a esta, o que comprova a volatilidade das representações destinadas ao continente
africano em Minas e demonstrando a falta de um termo consensual entre a população. Assim,
a designação dada ao Continente Negro em Minas pode aparecer como África e Guiné, como
supracitado, ou ainda com termos menos freqüentes, como etíopes, fazendo referência não
aos africanos da Costa Oriental, mas a todo e qualquer africano.
Este foi o caso aventado na correspondência do governador das Minas, D. Antonio de
Noronha, remitida à D. Maria I, rainha de Portugal, em 09 de novembro de 1778. Nesta carta,
D. Antonio de Noronha observa que os negros eram

o inimigo mais pemeciozo porq. Sendo estas Minas só cultivadas


com gente preta barbara de Africa e Guiné (...) contandosse pa
húm branco mais de cem Etiopes, q’ como barbaros impellidos
de Sua natural frieza, tem por varias vezes intentado despojamos
das próprias vidas (...) [Pede o Governador das Gerais] Pa V.
Mage Seja Servido pôr os Seos Reaes olhos de piedc nesta
capitania da qal Se comunica a Coroa Portugueza as fonrças com
q’ Se faz temer os príncipes da Europa, e mais Regiões e de
donde Se pode Esperar mais aventejadas no q’ Se pode descubrir
e Conquistar o Gentio Brazilico.20

Estas passagens acima citadas nos permitem observar a grande fluidez das
representações propaladas aos africanos. Tomando como exemplo os indivíduos das nações
mina e angola, poderemos apreender como eram fluídas as imagens dadas aos africanos.
Antes de tudo, deve-se ressaltar que estas nações eram usadas como termos

19. AHU. Cx.113; doc.32.


20. Carta de D. Maria, rainha de Portugal, ao governador das Minas, d. Antonio de Noronha, 09 nov 1778.
APM. Seção Colonial, Códice SC 218, fl. 189-93

341
r

E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

genéricos em Minas, isto é, minas e angolas eram terminologias aplicadas aos indivíduos
provenientes, respectivamente, da África Ocidental e da África Centro-Ocidental.21 Prova
disto nos é oferecida pela carta de D. João V, rei de Portugal, em 18 de junho de 1725, a qual
explicita a D. Lourenço de Almeida, governador de Minas, os motivos pelos quais não
aconteceu o levante escravo nas Gerais na década de 1720. Nesta carta, D. João V explica
que

os negros intentarão soblevaremse contra os brancos, o q.


conseguiriam, se não houvesse entre elles a diferença de que os
negros de Angolla queriam que fosse Rey de todos húm dos do
seo Reyno, e os Minas tambem de q. fosse da Sua mesma pátria
(...) [Como providência para evitar levantes escravos futuros, o
Rei determina que] se vam para essas minas os negros de Angolla
pois Se tem visto que estes sam mais confidentes e mais sogeitos e
obedientes do q. os minas a quem o seo feroz e valentia pode
animar a entrarem em algua deliberação de se opporem contra
os brancos.22

A visão descrita acima é interessante para apreendermos algumas questões referentes


às representações imputadas a estas duas nações africanas. A primeira concerne à dissensão
entre angolas e minas, que apesar de poderem ter as mesmas condições sociais, às diferenças
eram mantidas; a segunda diz respeito às representações dadas a elas. Neste caso, tanto o
termo mina quanto o angola foram usados em um intento pejorativo, genérico e amplo. Na
verdade, como se referissem, de modo geral, aos indivíduos da África Ocidental - os minas -
e da África Centro-Ocidental - os angolas; por último, nota-se a idéia de submissão dos
angolas e de rebeldia dos minas. Esta última observação explica, em parte, o costume da
população mineira na utilização de escravos advindos da África Ocidental em tropas
particulares e mesmo nos serviços militares em Minas.
No parecer dado pelo govemadòr do Rio de Janeiro ao Conselho Ultramarino, de 18
de setembro de 1728, esta apropriação fica clara. Nessa correspondência, o governador alude
que a população.-rtiineira usava os escravos da Costa Ocidental africana

21. Sobre o estudo da nação mina enquanto um termo genérico, ver: FURTADO apud LIBBY, Douglas Cole.
“O tráfico negreiro e as populações escravas das Minas Gerais (c. 1720-c. 1850)”, inI Workshop do Centro de
Estudos Mineiros. Belo Horizonte: UFMQ 2005.
22. Carta do rei de Portugal, D. João V, ao governador das Minas, D. Lourenço de Almeida, 18 jun 1725. APM,
Seção Colonial, Códice SC 23, fl. 47.

342
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?

para [os] auxiliar[em] em suas vinganças, soberbas e vaidades,


fazendo-se acompanhar para qualquer parte com grande
quantidade de negros, bem vestidos e armados (...) adiantando-
se nisto os negros da Costa da Mina dos quais usam mais seus
senhores pela confiança que deles fazem para despique dos
seus ódios.23

O uso e o temor da população mineira aos escravos vindos da Costa da Mina era tal
que em Vila Rica, em 19 de julho de 1753, o governador de Minas, Gomes Freire de
Andrade, escreve ao comandante dos diamantes sugerindo a este que forme uma tropa de
pedestres composta por quinze negros minas com mais dez dragões para acabar com os
levantes de negros que estavam sucessivamente ocorrendo no Distrito Diamantino. 24 Em
outros momentos, os próprios não-africanos se apropriavam das representações atribuídas aos
africanos. Na disputa ocorrida entre o Conde de Assumar, governador das Gerais, e Manuel
Nunes Viana, este último

aterrorizava a (...) população com desmandos, arbitrariedades,


despotismo e com a notícia que tinha o seu corpo fechado, isto
é, impermeável a qualquer mal, material ou espiritual, que
adivinhava, também, o que se passava dentro das casas das
pessoas, tudo subsidiado por sua tropa de mandingueiros. 25

Neste caso, Manuel Nunes Viana não apenas possuía uma tropa de mandingas, que
eram vistos como feiticeiros, mas Viana também alegava ter os mesmos poderes mágicos dos
mandingas.
Além da utilização desses escravos da África Ocidental em tropas e batalhões, os
chamados minas eram representados como exímios mineradores. 26 Em 1726, por exemplo, o
governador do Rio de Janeiro, Luís Vaia Monteiro, observava que é “pella

23. LARA, Silvia Hunold. “Os minas em Minas: linguagem, domínio senhorial e etnicidade”, in XX Simpósio
Nacional da Associação Nacional de História. Florianópolis/São Paulo: História/Fronteiras/ Humanitas/
FFLCH/USP/ANPUH, 1999, v. 3. pp. 681-8.
24. Carta do governador de Minas Gerais, Gomes Freire de Andrade, ao comandante dos diamantes, 19 jul 1753.
APM, Seção Colonial, Códice SC 107, fl. 40v-l, fil. 23, G3.
25. PAIVA, Eduardo França. “Milícias negras e culturas afro-brasileiras (Minas Gerais, Brasil, século XVm)”,
in Anais do XIVEncontro Regional de História daANPUH-MG. Juiz de Fora: ANPUH - MG jul, 2004, p. 5.

26. Sobre esta representação, ver, entre outros: BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário da terra e gente de
Minas. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, Série Publicações do Arquivo Público Mineiro, n. 5, 1985, p. 126.

343
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

mesma cauza não há mineyro que poça viver sem hua Negra Mina, dizendo que só com ellas
tem fortuna”.27 Neste caso, a preferência dada aos minas estava em sua qualidade técnica na
mineração.
Entretanto, em outro testemunho de época, Tomás Francisco Xavier Hares,
preocupado com o aumento das dívidas dos mineradores na aquisição de escravos minas que
vinham da Bahia, recomenda ao rei de Portugal a substituição dos escravos da Costa da
Mina, mais caros, pelos da África Oriental. E, assim, explica Hares, que mesmo sendo os
moçambiques inferiores aos minas nos trabalhos praticados em Minas

essa diferença só serve pa o particular. O comum chegasse mais


pa as faz^, que menos custava (...). Alem de que essa diferença
da qualidade se exalta em huns gêneros o presso, nam
impossibilita nos outros o prestimo; e assim, (...) nam fáram os
negros da costa da mina havendo os do Oriente,
[pois], com aqueles [os africanos da Costa Oriental] se póde
mt0 bem extrahir o ouro; e fabricar as faz^, porque sam aptos p a
hum, e outro exercicio. Achasse já abonado pela experiencia
este prestimo; porque com efeito no Brazil e minas o tem
mostrado os negros daquele hemisferio transportados nas Naus,
que vem de Moçambique.28

Na correspondência de Hares vislumbra-se que a importância dos escravos minas para


a população mineira está no fato de estes poderem praticar com alguma vantagem os vários
tipos de trabalhos, não havendo uma especialidade declarada dos minas em extrair o ouro.
Desse modo, percebemos por estes testemunhos de época que as representações conferidas
aos minas variavam de indivíduo para indivíduo e de contexto para contexto. Antes de
iniciarmos uma outra discussão que propomos no presente artigo, cabe ainda observarmos
como estas representações poderiam estar ligadas à própria visão de mundo individual.
D. Lourenço de Almeida, governador de Minas, escreve em 20 de abril de 1722 ao rei
de Portugal, D. João V. Nessa^correspondência, o governador das Gerais demonstra sua
preocupação em relação à população mineira. D. Lourenço de Almeida

27. PAIVA, Eduardo França. “Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo
Mundo”, in PAIVA, Eduardo França & ANASTÁSIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço:
maneiras de pensar e formas de viver (séculos XVI a XIX). São Paulo: Annablume/PPGH/UFMG, 2002, pp. 187-
207.
28. AHU. Cx.60, doc.76.

344
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?

fundamenta sua preocupação dizendo que “é a má qualidade de que elas se vão enchendo”
que o preocupa, e acrescenta ao rei: “Será esta gente a mais perniciosa que pode haver nestes
povos que pela distância e largueza destes sertões, se faz muito dificultoso o poder Vossa
Majestade conservar nelas as tropas que bastem para dominar tão má casta de gente”. Mais
adiante, completa o governador: “A razão porque nestas Minas há e vai havendo tanta
quantidade de mulatos, é porque nelas não há outra casta de mulheres senão negras”. 29 Além
de utilizar a terminologia negra para se referir às crioulas e as africanas indistintamente, D.
Lourenço de Almeida faz, de forma quase latente, referência ao seu próprio universo
simbólico. Ao denominar crioulos, africanos e mulatos como castas de gentes, o governador
está, implicitamente, demonstrando como ele percebia a população de cor mineira. Segundo
Souza, D. Lourenço de Almeida, antes de se tornar governador em Minas, residiu em Goa,30
e, por isso, ele se apropriou dos símbolos utilizados na índia para se referir aos homens de
cor em Minas Gerais.
Desse modo, percebermos que as nações africanas foram inventadas, imaginadas, ou
mesmo, descobertas em Minas Gerais. Os não-africanos imputavam origens e representações
aos africanos. Estas terminologias eram formas de traduzir, explicar e reduzir o outro,
“enquanto realidade viva, ao poder da realidade eficaz dos símbolos e valores de quem pode
dizer quem são as pessoas e o que valem, umas diante das outras, umas através das outras”
(Brandão, 1986:7). Em outras palavras, as nações e as representações atribuídas aos africanos
não significavam uma identidade étnica em si, mas sim a construção de uma comunidade
imaginada em Minas. Segundo Barth, os grupos étnicos são categorias de organização social
e de auto-identificação dos indivíduos que os compõem. Esta auto-identificação é fomentada
pela escolha individual do sujeito.31 No caso dos africanos das Gerais do século XVIII, suas
nações de origens eram atribuídas, imputadas, ou seja, eram impostas através do outro - o
não-africano. A meu ver, nações africanas não são etnias, mas sim minorias sociais criadas
em uma sociedade estranha aos africanos. Oliveira observa que o termo

29. Carta do governador de Minas Gerais, D. Lourenço de Almeida, ao rei de Portugal, D. João V, 20 abr 1722.
Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte: APM, 1980, p. 86.
30. MELLO E SOUZA, Laura de. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte:
UFMQ 1999, pp. 175-99.
31. BARTH, Fredrik. “Grupos étnicos e suas fronteiras”, in POUTIGNAT, Philippe & STREEFF-FENART,
Jocelyne (orgs.). Teorias da etnicidade. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997, pp. 185-227. Diego Villar critica a
posição de Barth no que concerne à escolha individual na escolha de sua identidade étnica. Segundo Villar,
a mudança para uma nova identidade étnica pressupõe um recomeço, uma transformação e uma adaptação.
Estes obstáculos poderiam fazer com que os indivíduos, ou não se esquecessem de suas identidades étnicas
originais, ou, até mesmo, que eles não alterassem suas identidades étnicas. Para mais detalhes, ver:
VILLAR, Diego. Uma abordagem crítica do conceito de “etnicidade” na obra de Fredrik Barth. Revista
Mana. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, abr, 2004.

345
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

etnia exprime uma forma de interação entre grupos culturais


articulados num contexto social comum. (...). E como etnia é
um conceito relacionai, uma relação, as populações nacionais
transformam-se em etnias apenas quando interagem com
grupos minoritários, passando a ser orientados por ideologias
étnicas (ou raciais) e investindo-se em identidades sociais
contrastantes, marcadas por símbolos étnicos (Oliveira, 1976:
105).

Pela citação de Oliveira observamos que as nações africanas percebidas como


pertencentes à população mineira, ou então, não interagindo com outras minorias sociais, ou
com outras etnias, nada mais são que minorias sociais. Ou seja: em Minas Gerais no século
XVIII, havia identidades étnicas quando grupos minoritários se relacionavam entre si, não
quando os africanos eram representados pelo restante da população. Desse modo, estamos
querendo dizer que, como a identidade é relacionai, a identidade étnica de um grupo ou de
um indivíduo só é posta a frente do grupo ou do sujeito quando esta se relaciona com outros
grupos ou indivíduos que também se servem de identidades étnicas. No caso de Minas, as
nações africanas eram identificadas como um outro interno, isto é, uma minoria social, ao
passo que as identidades étnicas poderiam existir quando membros de diversas nações
estivessem em contato. Neste último caso, a relação seria interétnica e não de uma minoria
social diante do restante da população.

AS IDENTIDADES ÉTNICAS

Na medida em que as identidades eram construídas, reconstruídas e sobrepostas,


muitas das heranças culturais africanas eram fortalecidas e conseguiram sobreviver. A estas
heranças culturais chamaremos de identidades históricas. Em outras palavras, estas
identidades permaneceram, nãoTàro, distantes dos estereótipos criados para representar as
nações africanas. Estas heranças culturais africanas eram percebidas, mas não decodificadas
pela parcela não-afriòana da população mineira. As línguas, as escarificações, as
organizações interétaricas e outras manifestações culturais dos africanos foram conservadas
fora das percepções de mundo dos não-africanos. Ou seja: permaneceram impermeáveis
(Paiva, 2001: 36). E, ainda, só tinham sentido lógico nas relações interétnicas que pautavam
as relações entre as nações africanas, ou mesmo em uma única nação.
Neste último caso, por exemplo, Maria Inês Côrtes de Oliveira explica, ao estudar o
termo nagô na Bahia do século XIX, que os indivíduos que compunham esta nação
derivavam dos grupos de língua ioruba - como ijesha, ijebu, etc. mas

346
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?

também poderiam ter jejes e minas em sua composição. Assim como as nações dos minas e
dos jejes poderiam ter iorubas compondo suas nações. 32 Ou seja: pode ser que em uma única
nação africana em Minas houvesse várias etnias.
As diferenças culturais entre as várias nações e as interpretações autônomas dos
africanos dos signos existentes na sociedade mineira do Setecentos, em grande medida
conservaram-se intocadas pelos não-africanos. Não obstante muitas das práticas culturais
africanas tenham sido restringidas e a norma social fosse, em muitos casos, imposta aos
africanos, havia espaço para a construção de uma visão de mundo própria destes indivíduos.
Estas visões de mundo próprias dos africanos ensejam a possibilidade de analisarmos suas
identidades étnicas.
Emblemático deste viés é a advertência que o governador interino das Minas,
Martinho de Mendonça, fez aos oficias da Câmara da Vila Real de Sabará no ano de 1735.
Segundo o governador interino, ao discordar sobre o ato de marcar os escravos que fugissem,
avisa:

Os senhores conselheiros e Sua Majestade não sabem a rústica


razão e viver dos negros, porque estes todos são marcados na
cara nas suas terras e quantos mais lavores têm maior garbo e
fidalguia para os ditos negros, e assim que já se não usa de
marcar calos nas costas, como se mandou na dita provisão, por
não servir isso de exemplo algum.33

As marcas e os calos dos quais o governador interino se refere nada mais são do que
as escarificações que, entre várias nações africanas, desempenhavam uma função social,
ritualística e, comumente, identitária. Não apenas as escarificações, mas também todo o
universo simbólico do passado dos africanos era usado como instrumento de identidade
coletiva e de transformação social. Por conta disso, muitos dos africanos em Minas
reinventavam suas identidades a partir não apenas das representações que lhes eram
atribuídas, mas também por suas heranças culturais. Neste caso, a escarificação significou
“um tipo de insígnia, um emblema nacional, uniforme para todos indivíduos do mesmo
grupo e diferente de um povo para outro, de maneira a dar a cada um uma característica
distinta”.34 Em outras palavras, essas marcas alicerçavam as identidades étnicas e autônomas
dos africanos em Minas, identidades estas que os não-africanos desconheciam.

32. OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. Retrouver une identité: jeux sociaux des africains de Bahia (vers 1750-vers
1890). Paris: Paris-Sorbonne (Paris IV), Tese de Doutorado, 1992, p. 274, nota 2.
33. CÓDICE COSTA MATOSO, pp. 535-6; fl.264.
34. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835. Edição rev. e ampl. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 312.

347
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Pela passagem acima percebe-se que os não-africanos muitas vezes desconheciam a


pluralidade cultural africana, mesmo aquela no interior de cada nação. Outro exemplo disso
nos é oferecido em carta anônima, de 1751, escrita na Vila Real do Sabará. Nesta
correspondência, cujo destino também é inominado, fica explícita uma característica de
herança cultural que forjava as identidades étnicas próprias dos africanos em Minas. O nosso
remetente anônimo descreve os embaraços que têm passado os senhores de escravos em
Minas pela prática habitual dos escravos fugirem. Segundo ele:

Todo negro que se costuma a fugir e ainda os que ficam,


“fugir”, dizem eles, “fugir é bom”, porque se os matam lá no
mato, dizem, “moré, moré, morreu, acabou o cativeiro e foi
descansar na sua terra”. E para isso têm tomado tal modo e os
senhores medo de os castigarem que nem a doutrina lhes
ensinam.35

A fuga em si não expressaria uma marca coletiva de um grupo, mas o ato de buscar
na morte uma forma de liberdade sim. Miller observa que entre os africanos da Costa Centro-
Ocidental a morte estava associada ao regresso à terra natal. Esta prática “pode ter (...)
[restaurado], na morte, identidades pessoais perdidas em vida”. 36 Além disso, o suicídio
favoreceu a construção de identidades a priori desconhecidas pelos não-africanos. Assim,
muitos dos valores e das características atribuídas a uma nação da África Centro-Ocidental,
na verdade, eram compactuados por muitos dos indivíduos desta origem e não apenas por
uma única nação. Ainda segundo Miller, os indivíduos da África Centro-Ocidental na
América lusitana mantinham um entendimento comum de comunidade, independente das
nações que lhes eram atribuídas, pois suas heranças culturais eram similares. 37
A língua era uma das identidades étnicas que mais habitualmente foi usada na
construção das identidades autônomas dos africanos. As nações africanas, mesmo aquelas
provenientes de regiões em efueéxistiam diferentes idiomas, formulavam dialetos próprios
para desenvolver a comunicação entre o grupo. Estes dialetos eram, não raramente,
incompreendidos pelos não-africanos. Neste caso, Castro demonstra que
y-

35. CÓDICE COSTA MATOSO, p.535-532; fl.260v.


36. MILLER, Joseph Calder. “Retention, reinvention, and remembering: restoring identities through enslavement
in África and under slavery in Brazil”, in CURTO, José C. & LOVEJOY, Paul E. (eds.). Enslaving
Connections: Changing Cultures of África and Brazil during the Era of Slavery. Amherst NY: Humanity Books,
2004, cap.4, pp. 81-121.
37. MILLER, Joseph Calder. “Central África during the era of the slave trade (c.l490s-1850s)”, in HEYWOOD,
Linda (ed.). Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora. Cambridge: Cambridge
University Press, 2002, cap.l, pp. 21-69.

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O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?

os africanos da nação mina fomentaram nas Minas Gerais, da primeira metade do século
XVIII, uma língua geral mina que “retratava um processo inicial de crioulização por
absorção de traços lexicais e gramaticais de outras línguas do grupo gbe, tendo o fon como
língua lexicalizadora”.38
Estas e outras características entre os africanos foram comuns em Minas Gerais. Tais
valores e códigos culturais permaneceram impermeáveis aos não- africanos. Os africanos
podem ter repudiado determinados valores locais por motivos de preservação cultural, ou
ainda por considerarem esta impermeabilidade cultural como um fator de sobrevivência em
um habitat a priori estranho. O fato é que esta resistência cultural desenvolveu uma
percepção própria de cada grupo sobre as representações que eles recebiam. Assim, cada
nação africana atribuiu símbolos próprios às suas representações e criaram identidades
autônomas àquelas imaginadas pelo restante da população mineira. Ou seja: criaram suas
próprias identidades étnicas.
Prova disto nos é oferecido por Roza Moreira de Carvalho, moradora da vila de São
José dei Rei, que no ano de 1796 declarou em seu testamento que era “natural da Costa da
Mina do Estado da Guiné”.39 Recorrendo ao dicionário de Bluteau descobrimos que a palavra
Estado, no Setecentos, aludia aos negócios, ao modo de viver, à estratifícação social, a
prontidão, à saúde, a família e ao “Reino. Império. As terras do Senhorio, ou domínio de
algum Princepe”, ou ainda, se refere as terras eclesiásticas (Bluteau, 2000: v. 3, pp 301-4,
verbete “Estado”). Assim como no caso de Joana Machado, descrito na introdução, Roza
Moreira fez questão de deixar em seu testamento sua origem gentílica. Em outras palavras,
Roza não apenas revelou sua origem, mas também sua identidade. Para tanto, a testamenteira
articulou as terminologias da sociedade em que estava, Estado e Guiné, para representar sua
verdadeira identidade.
Em um inventário, Quitéria da Silva, moradora de São João del-Rei, declarava, em
1794, que era “natural do gentilismo da Costa da Mina”.40 Neste caso, Quitéria da

38. YAI apud CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século
XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Secretaria de Estado da Cultura, Col. Mineriana, Série
Clássicos, 2002, p. 59. Ver também sobre este assunto: YAI, Olabiyi. “Texts of enslavement: fon and
yoruba vocabularies from eighteenth and nineteenth century, Brazil”, in LOVEJOY, Paul E. (ed.). Identity in
the Shadow of Slavery. Londres: Continuum, 2000, cap. 6, pp. 102 -12 .

39. LIBBY, Douglas Cole & GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Reconstruindo a liberdade: alforrias e
forros na freguesia de São José do Rio das Mortes (1750-1850). Revista Varia História. Belo Horizonte:
FAFICH/UFMQ n. 30, jun, 2003, pp. 112-51.
40. FARIA, Sheila de Castro. “Sinhás pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras
no sudeste escravista (sec. XVIII-XIX)”, in SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MATTOS, Hebe Maria
& FRAGOSO, João L. (orgs.). Escritos sobre história e educação: homenagem à Maria Yedda Leite Linhares.
Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2001, pp. 289-329.

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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Silva fez questão de assumir sua origem gentílica, isto é, sua identidade étnica, ou sua
identidade histórica Contudo, nem sempre estas identidades históricas foram preservadas, ou,
até mesmo, muitos fizeram questão de esquecer suas origens gentílicas originais. Este foi o
caso, por exemplo, de Maria do Rosário, também moradora de São João del- Rei, que em seu
testamento, datado em 1771, declarou que era

natural da Costa da Mina de donde vim pequena para esta


terra, não tenho herdeiro algum ascendentes ou descendentes
nesta ou naquela - porque todos ficaram na minha pátria na
gentilidade e sou forra e liberta de toda escravidão e nunca fui
casada com pessoa alguma (Faria, 2001: 305).

A palavra pátria, segundo Bluteau, significa, neste contexto:

A terra, Villa, Cidade, ou Reyno, em que se nasceo. Ama cada


hú a sua patria, como origem do seu ser, & centro do seu
descanço. (...) Tem a patria qualidades retetivas para os que
nascem nella, & attrativas para os que delia se apartão.
Representavão os antigos o amor da patria em figura de
mancebo, porque este amor, ao contrario dos outros, cresce
com os annos, & não passa das caricias ao desdem, & do fogo
à neve, como quando chega a velhice. O mais agradavel
domicilio, he o da casa paterna, & os que mais estimão os
peregrinos mais que os sedentários na opinião de Plutarco, são
como aquelles que preferem as estrellas fixas às errantes.
Até as feras amão os seus covis, & as serpentes as suas
cavernas (Bluteau, 2000: v. 6, p. 306, verbete “pátria”).

Percebe-se, então, que o tern1o~‘*pátria”, empregado por Maria do Rosário, segundo


a definição de Bluteau, denotava Um lugar de origem, um local de saudades para aqueles que
estavam afastados de suas'terras natais. No entanto, no testamento de Maria do Rosário, ela
passa a idéia deíer rejeitado sua terra natal, e que somente os seus parentes, segundo Maria,
ainda vivendo na África, permaneceram na gentilidade, ao passo que ela não. Muito embora
estas observações não sejam mais do que especulações, nós podemos notar que havia em
Minas Gerais no século XVIII, entre os escravos africanos, identidades que não faziam parte
única e exclusivamente dos valores e códigos culturais da sociedade mineira, mas sim de
algo que foi adquirido na África, e que, por isso, não raro serviram de fundamentação para o
desenvolvimento das identidades étnicas e históricas dos africanos.

350
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendemos neste artigo discutir a pluralidade do conceito de identidade e etnia,


tendo como atores os africanos residentes em Minas Gerais no século XVIII. Vimos que as
características imputadas aos africanos muitas vezes faziam parte da cultura e da sociedade
não-africana - neste caso, a mineira. Os não-africanos das Gerais acabavam por atribuir aos
africanos características culturais retiradas de seus próprios símbolos, isto é, as
peculiaridades de cada nação africana era retirada do universo simbólico da sociedade
mineira. Os africanos, neste caso, eram analisados conforme os valores e códigos culturais
mineiros e não pelos seus próprios. Aliado a isto, os africanos, dentro da sociedade mineira,
não eram percebidos como grupos étnicos em si, mas como minorias sociais. Minorias
sociais estas que identificavam o outro interno, ou seja, os grupos que faziam parte da
sociedade, mas que, ao mesmo tempo, eram diferenciados e estranhos a ela. Os africanos, por
sua vez, se apropriavam destas representações e construíam suas identidades dentro desta
sociedade. Estas identidades eram transformadas dentro dos grupos e, não raro, ganhavam
autonomia.
As identidades de nação, quando vistas por outras nações ou por outras etnias, se
transformavam em identidades étnicas. Estas amalgamavam valores e códigos culturais
africanos e da sociedade mineira. As nações africanas também eram formadas por várias
identidades étnicas em seus cernes. Assim, em uma única nação africana poderiam coexistir
várias identidades étnicas. Desse modo, tentamos neste artigo não alcançar soluções para o
estudo das identidades e etnias entre os africanos de Minas no século XVIII, masm ao
contrário, buscamos problematizar o uso destes conceitos no contexto em apreço.

351
y
Coleção
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TÍTULOS PUBLICADOS

O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver - Séculos


XVI a XIX Eduardo França Paiva & Carla Maria Junho Anastasi
(organizadores)

Cinema Carioca nos anos 30 e 40 Os filmes musicais nas telas da


cidade Suzana Cristina de Souza Ferreira

Espelho de cem faces: o universo relacionai de um advogado


setecentista Álvaro de Araújo Antunes

Trabalho livre, trabalho escravo:


Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX Júnia Ferreira Furtado e
Douglas Colle Libby (organizadores)

Política, nação e edição: o lugar dos impressos na construção da


vida política (Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII e XX)
Eliana de Freitas Dutra e Jean-Yves Mollier (organizadores)

Encontros Brasil-Portugal: sociedades, culturas e formas de


governar no mundo português (Séculos XVI-XVIII) Eduardo França
Paiva (organizador)

No sertão das Minas: escravidão, violência e liberdade (1830-1888)
Alysson Luiz Freitas de Jesus

Brasil, ficção geográfica Ciência e Nacionalidade no país d‘Os
Sertões Luciana Murari
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS

Sons, formas, cores e movimentos na modernidade atlântica - Europa,


Américas e África Júnia Ferreira Furtado (organizadora)

Juizes e infratores: o tribunal eclsiástico do bispado de Mariana (1748-
1800) Maria do Carmo Pires

Folganças populares: festejos de entrudo e carnaval em Minas Gerais no
século XIX Patrícia Vargas Lopes de Araújo

O livro da capa verde O regimento diamantino de 1771 e a vida no distrito


diamantino no período da real extração Júnia Ferreira Furtado

Entre a solidariedade e a violência: valores, comportamentos e a lei em


São João Del-Rei (1840-1860) Edna Resende

Na forma do ritual romano: casamento e família em Vila Rica (1804-1839)


Mirian Moura Lott

Um em casa de outro: concubinato, família e mestiçagem na comarca do
Rio das Velhas (1720-1780)
Rangel Cerceau Netto

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^ Linear B
gráfico
MATAS P LURAIS. IMORALIDADES MATRIMONIAIS : O
DESPIQUE ENTRE NEGROS E ÍNDIOS CABANOS DE
JACUÍPE (AL-PE,1835-1850)
• Janaina Cardoso de Mello
S ABERES, P ETRECHOS E ESCRAVOS: OFICIAIS
MECÂNICOS E S ENHORES NO CORPO S OCIAL DAS
MINAS S ETECENTISTAS
• José Newton Coelho Meneses
O ABOLICIONISMO DAS MINAS: UM BREVE ESTUDO
COMPARADO DO MOVIMENTO ABOLICIONISTA NAS
CIDADES DE OURO P RETO E JUIZ DE F ORA NOS
ÚLTIMOS ANOS DA ESCRAVIDÃO
• Luiz Gustavo Santos Cota
S ERVIR “DEP ORTAS A DENTRO”: P ENSANDO
RECIFE E S ALVADOR NA S EGUNDA METADE
XIX
DO S ÉCULO

• Maciel Henrique Silva


CAXAMBU, CATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE os
ESCRAVOS DO RIO DE JANEIRO E MINAS GERAIS NO
S ÉCULO XIX
• Mareia Amantino
A trajetória Econômica da Comarca do Rio das
Velhas: Um Estudo das Estruturas de Posse de
Escravos e as Relações com o Mercado Internacional
de Escravos (Século XVIII)
• Raphael Freitas Santos e Carólina Perpétuo
Corrêa
Na África eu Nasci, no Brasil eu me Criei: A
Evangelização dos Escravos nas Minas Do Ouro
• Renato da Silva Dias
ESTRUTURA DE P OSSE E DEMOGRAFIA ESCRAVA
(P ORTO F ELIZ/SP, 1798-1843)
• Roberto Guedes
ORIGENS AFRICANAS OU IDENTIFICAÇÕES
MINEIRAS?: UMA D ISCUSSÃO S OBRE A CONSTRUÇÃO
DAS IDENTIDADES AFRICANAS NAS MINAS GERAIS DO
S ÉCULO XVIII
• Rodrigo Castro Rezende

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