Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas
Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas
Escravidão, Mestiçagem e Histórias Comparadas
HISTÓRIAS
CONECTADAS: ESCRAVIDÃO E MESTI-
ÇAGEM NO MUNDO IBÉRICO
4-3-1850)
Alencastro Graça Filho
arlos Vieira Pinto
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CONSELHO EDITORIAL
Priscila Antunes
(PRESIDENTE) Júnia Ferreira
Furtado Eduardo França
Paiva Eliana Regina
Dutra Regina Horta
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ESCRAVIDÃO, MESTIÇAGEM E HISTÓRIAS COMPARADAS
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ESCRAVIDÃO,
MESTIÇAGEM E
HISTÓRIAS
I ORGS.
EDIÇÕES ÜESB
PÓSGRAPUAÇÂO
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Infothes Informação e Tesauro
P166 Paiva, Eduardo França, Org.; Ivo, Isnara Pereira, Org.
Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. / Organização de Eduardo França Paiva e
Isnara Pereira Ivo. — São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: PPGH-UFMG; Vitória da
Conquista: Edunesb, 2008. (coleção Olhares)
354 p. ; 16 x 23 cm.
Simpósio Escravidão e Mestiçagem, Belo Horizonte, 2006.
ISBN 987-85-7419-834-7
Imagem da Capa | Albert Eckhout Mulher negra segurando um cesto, com seu filho, 1641 e Homem negro, segurando uma
lança, 1641.
CONSELHO EDITORIAL
Eduardo Pefíuela Cafíizal Norval Baitello Junior Maria Odila Leite da
Silva Dias Celia Maria Marinho de Azevedo Gusjavo Bernardo Krause
Maria de Louraes Sekeff (in memoriam)
Cecilia dètAlmeida Salles Pedro Roberto Jacobi Lucrécia D’Alessio Ferrara
À
1“ edição: julho de 2008
© Eduardo França Paiva | Isnara Pereira Ivo
ANNABLUME editora . comunicação Rua Tucambira, 79 . Pinheiros 05428-020 . São Paulo . SP . Brasil Tel. e Fax.
(011) 3812-6764 - Televendas 3031-1754 www. annabl ume. com. br
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
41 TRÁFICO E FAMÍLIAS EM M INAS GERAIS: O CASO DE SÃO JOSÉ DO RIO DAS MORTES (1743-1850)
Afonso de Alencastro Graça Filho e Fábio Carlos Vieira Pinto 59 Práticas de Alforrias nas
Américas: Dois Estudos de Caso em Perspectiva Comparada Andréa Lisly Gonçalves 77 Cativos da
Arte, Artífices da Liberdade: A Participação de Escravos Especializados no Barroco Mineiro Camila
Fernanda Guimarães Santiago 89 O Braço Armado do Senhor: Recursos e Orientações Valorativas
nas Relações Sociais Escravistas em Minas Gerais na Primeira Metade do Século XVIII Carlos
Leonardo Kelmer Mathias 107 Flagrantes do Quotidiano: Um Olhar sobre o Universo Cultural dos
Homens Livres Pobres em São João Del-Rei (1840-1860) Edna Maria Resende 123 Escravidão e
Mestiçagem na Crônica Colonial: Entre América e África
Eliane Garcindo de Sá
139 Chafarizes e Máscaras: Pequena Referência à Participação Africana na Produção Artística
Mineira Fabiano Gomes da Silva 161 Viver À Gandaia : Povo Negro nos Morros das Minas ,
Francisco Eduardo de Andrade
TRÂNSITO EXTERNO E O M ALOGRO DA INTERIORIZAÇÃO HOLANDESA NO BRASIL
Isnara Pereira Ivo
197 Matas Plurais, Imoralidades Matrimoniais: O Despique entre Negros e Índios Cabanos de Jacuípe
(AL-PE, 1835-1850)
Janaina Cardoso de Mello 211 Saberes, Petrechos e Escravos: Oficiais Mecânicos e Senhores
José Newton Coelho Meneses 221 O Abolicionismo das Minas:
no Corpo Social das Minas Setecentistas
Um Breve Estudo Comparado do Movimento Abolicionista nas Cidades de Ouro Preto e Juiz de Fora nos
Últimos Anos da Escravidão Luiz Gustavo Santos Cota 241 Servir “De Portas a Dentro”: Pensando
Recife e Salvador na Segunda Metade do Século XIX Maciel Henrique Silva 257 Caxambu, Cateretê e
Feitiçaria entre os Escravos do Rio de • Janeiro e Minas Gerais no Século XIX Mareia Amantino
277 A trajetória Econômica da Comarca do Rio das Velhas: UM Estudo das Estruturas de Posse de
Escravos e as Relações com o Mercado Internacional de Escravos (Século XVIII)
Raphael Freitas Santos e Carolina Perpétuo Corrêa 293 Na África eu Nasci, no Brasil eu
me Criei: A Evangelização dos Escravos nas Minas Do Ouro \
Renato da Silva Dias 311 Estrutura de Posse e Demog^afia Escrava (Porto Feliz/SP, 1798-
1843)
Roberto Guedes
335 Origens Africanas ou Identificações Mineiras?: Uma Discussão Sobre a Construção das Identidades
Africanas nas Minas Gerais do Século XVIII Rodrigo Castro Rezende
APRESENTAÇÃO
10
A PRESENTAÇÃO
Ficará claro para o leitor que a opção pela perspectiva comparada não implica em
exterminar as dimensões locais e regionais do escravismo e das mestiçagens, mas significa
tomar os temas para além daquelas fronteiras por vezes reducionistas e percebê-los no seio
de relações sociais que quase sempre serviram de base para as “pontes” estabelecidas entre
o locus e o orbis. Enfim, o primeiro livro do Grupo é uma coleção preciosa de textos
recentes, no sentido mais amplo desse termo, escritos por esses jovens historiadores que, em
breve, estarão formando novos historiadores, sob novas perspectivas historiográficas,
nutrindo, assim, a dinâmica espetacular dos domínios movediços de Clio.
Há também participação dos mais experientes, professores em alguns programas de
pós-graduação em História, orientadores de alguns dos autores. Coube a esses professores a
tarefa de pensar mais detidamente a História Comparada hoje e de propor caminhos nesse
sentido. Muito do que aparece aqui é fruto das experiências de pesquisa, de discussões, de
leituras e, sobretudo, da necessidade cada vez mais aparente de entender os escravismos e as
mestiçagens no Brasil como facetas ou como partes de processos muito mais complexos,
muito mais amplos no tempo e no espaço, muito mais imbricados em outros contextos, com
fronteiras muito menos visíveis, sem leis comuns, sem línguas únicas, polissêmicos e
diversos naturalmente, destituídos da pretensão quase sempre enganadora da exclusividade
histórica. Essa perspectiva é a que propusemos no Simpósio de 2006 e é a que aqui enlaça
temas os mais distintos.
Do Simpósio de BH ao livro que ora se apresenta passaram-se dois anos. Nesse
período o Grupo se encontrou outra vez em São Leopoldo, no XXIV Simpósio Nacional da
ANPUH, nossa casa mater, e, além de novos trabalhos, renovou coletivamente o
compromisso de permanecer atuante e de se consolidar. Este livro e o site, assim como
encontros nas ANPUHs regionais e novos simpósios nas nacionais foram considerados
imprescindíveis. Tudo isso tem sido feito, mesmo diante de dificuldades de variada
natureza, e os resultados continuam aparecendo, como este livro. Para que ele pudesse ser
publicado os autores empenharam seu tempo e recursos financeiros inclusive. Sem esse
aporte, nada seria possível, e os organizadores fazem questão de registrar o agradecimento
por esse esforço compartilhado e pelo acolhimento da idéia original. Agradecemos também
à Coleção Olhares, do PPGH-UFMG e da Editora Annablume, na pessoa de sua
coordenadora, professora Priscila Carlos Brandão Atunes, que aceitou incluir esse livro em
seu importante catálogo, ainda que recente. A FAFICH-UFMG e ao Departamento de
História, onde se encontra a sede do Grupo e em cujo domínio nosso site se encontra
registrado, nossa gratidão pelo apoio desde o início dos trabalhos. Agradecemos também o
patrocínio da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, co-editora deste livro, e à
Prefeitura de Vitória da Conquista, que nos concedeu auxílio financeiro. Finalmente, os
organizadores gostariam de
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
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12
HISTÓRIAS COMPARADAS, HISTÓRIAS CONECTADAS: ESCRAVIDÃO E
MESTIÇAGEM NO M
UNDO IBÉRICO
INTRODUÇÃO
14
I
têm, aqui, um contrário que seria o natural, isto é, não têm a correspondência de culturas
puras, íntegras e estanques no tempo, anão ser no domínio das representações e dos
discursos, onde, historicamente, elas existem e persistem. Entretanto, o pressuposto adotado
é o de que, a não ser nessas duas últimas dimensões da realidade histórica, elas não existem.
Não estou de acordo, portanto, em atribuir-lhes uma existência “natural”.
Comparações e conexões têm no trânsito e na mobilidade culturais dois de seus
pilares mais sólidos e, saliente-se, desde já, que não há contradição entre as permanências e
os ritmos das transformações. Essas dinâmicas, na verdade, coexistiam, e, não
necessariamente, se mesclavam. Aliás, costumes, conhecimentos, práticas e representações
transitaram de canto a canto do mundo ibérico, e, muitas vezes, mantendo-se, relativamente
inalterados, isto é, parcialmente inalterados. Nesse caso, a mobilidade da gente (agentes
mediadores, poderíamos chamá-la assim em vários casos) possibilitou a transferência de
universos culturais, ainda que não in totum, de uma região à outra. E mais, possibilitou
também a sua apropriação por parte de grupos estranhos, pois uma outra face dessa história
foram, é claro, as ressignificações processadas, que imprimiram mudanças importantes sobre
os universos culturais transportados em escala planetária. O que permaneceu e o que mudou
a partir da intensa primeira globalização, sob a égide de uma miscigenação cada vez mais
forte e mais abrangente? Comparar, conectando culturas ora preservadas fora de seu
ambiente, ora modificadas, mas, inclusive, modificadas de maneira semelhante em regiões
muito distintas (culinária, ritmos e religiões sempre fornecem bons exemplos), bem como
conectando elementos de origem múltipla, “nascidos” quase que igualmente em locais
diferentes, e, talvez, simultaneamente, não deve, portanto, ser procedimento confundido com
a velha História Comparada, de padrões históricos pré-definidos e de cunho evolucionista,
estruturalista, determinista e, ainda, economicista.
Buscando não incorrer em antigos e em novos erros, dois temas - escravidão e
mestiçagem - serão, então, abordados de forma comparativa, tentando traçar conexões no
seio do enorme e diverso mundo ibérico, conectando, também, o local e o global. Esses
mundos ibéricos - talvez fosse melhor se referir assim a eles tradicionalmente apartados,
serão tomados aqui de maneira mais aproximada, a partir da atuação de agentes históricos e
das relações que eles estabeleceram entre os grupos sociais, sem que as diferenças entre eles
sejam negligenciadas. Como esses homens e mulheres, sobretudo os não-brancos, viveram,
atuaram e fomentaram o mais intenso processo de mestiçagem biológica e cultural da época
moderna, ocorrido tanto em áreas urbanas quanto em áreas rurais, é o que se pretende
abordar. Assim, pretendo demonstrar, ainda que inicialmente, o quanto as muitas e diferentes
regiões sob domínio das Coroas ibéricas estiveram próximas entre si, malgrado as distâncias
e não obstante as incontáveis diferenças.
15
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
2. BERNAND, Carmen. Negros esclavos y librçd en las ciudades hispanoamericanas. Madrid: Fundación Histórica
Tavera, 2001, p. 15. Imagens apresentadas: Figura 1. Domingo MARTÍNEZ (Sevilla 1688- Madrid 1749) Carro
dei Aire (hacia 1748), Museu de Belas Artes, Sevilha; detalhe: negros, mulatos e índios no cortejo festivo nas
ruas de Sevilha, século XVHI; Figura 2. Chafariz d’El Rey no séc. XVI [Lisboa], Países Baixos, mestre
desconhecido, (c. 1570-80), Óleo sobre madeira de castanho, Lisboa, Coleção Particular, reproduzido em
RODRIGUES, Ana Maria, (coord.) Os negros em Portugal - sécs. XV a XIX. Lisboa: Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, p. 104; Figura 3. Johann Moritz Rugendas, Rua Direita,
Rio de Janeiro, Litografia coloria à mão, reproduzido em AGUTLAR, Nelson, (org.) Negro de corpo e alma.
Mostra do Descobrimento. Brasil 500 é mais. São Paulo: Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais, 2000, p. 119.
16
»
Figura 4 Figura S
3. Bemand (2001: 19 e 24). Imagens apresentadas: Figura 4. Bairro Getzemaní, Cartagena de índias. Fotografias
do acervo do autor; Figura 5. Vista da Cidade do México, século XVII (detalhe), reproduzido em MEDINA,
Manuel Ramos (ed.). Historia de la Ciudad de México en los fines de siglo (XV-XX). México D. F.: Condumex,
2001, pp. 62-3.
4. ORTEGA, Antonino Vidal. “Entre la necessidad y el temor: negros y mulatos em Cartagena de índias a
comienzos dei siglo XVII”, in ARES QUEIJA, Berta & STELLA, Alessandro (coord.). Negros, mulatos
zambaigos; derroteros africanos en los mundos ibéricos. Sevilla: Escuela de Estúdios Hispano-
Americanos/Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 2000, pp. 89-104 (99). Imagens apresentadas:
Figura 6. Pintura de castas, Escola Mexicana^século XVm, p. 82, “De Espanol, y Mestisa; Castisa” e “De
Espanol, y Negra; Mulata” (1763), Museo de América, Madrid, reproduzido em SAÍZ, Maria Concepción
Garcia. Las castas mexicanas; un gênero pictórico americano. México: Olivetti, 1989; Figura 7. “De índio, y
Mestisa, nace Coyote” “De Lobo, y Negra; nace Chino”, Museo de América, Madrid, Escola Mexicana
(1774), reproduzido em Saíz (1989: 130); Figura 8. Joaquim Cândido Guillobel, Figuras Populares do Rio de
Janeiro (c. 1814), reproduzido em MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. A travessia do Calunga Grande; três
séculos de imagens sobre o negro tio Brasil (1637-1899). São Paulo: Edusp, 2000, p. 323.
17
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
/~\ Figura 8
/
Durante boa parte do Quinhentos, é provável que tenham entrado mais africanos
escravizados na América espanhola que na portuguesa, e, em grande medida, pelas mãos e
naus lusitanas. As áreas de mineração na Nova Espanha, no Vice-Reino do Peru, assim
como nas cidades e em algumas regiões rurais dessa extensa região do Novo Mundo
demandaram mão-de-obra escrava africana, seja para a extração mineral, seja para serviços
domésticos e agrícolas.
A semelhança entre as sociedades que se desenvolveram nas duas áreas coloniais,
assim como entre o perfil das populações que as compuseram demandam maior quantidade
de comparações. As diferenças entre os processos de ocupação européia do Novo Mundo
não podem apagar os inúmeros aspectos que as aproximavam, sobretudo os que marcavam a
vida de africanos e mestiços (aqui, penso, privilegiadamente, os mestiçados com negros)
nesse universo. Desde o século XVI, por exemplo, Lima e México, assim como Salvador,
haviam se tornado cidades em boa medida africanizadas, e, mais que isso, cidades mestiças,
uma vez que nelas circularam, se misturaram e, por vezes, coexistiram gente e culturas de
origens as mais diversas. Aliás, é necessário lembrai' que a experiência americana tinha
importantes precedentes na Europa, pois assim havia ocorrido, mais ou menos intensamente,
em cidades como Lisboa, Sevilha, Málaga, Valência e Veneza, e, em menor escala, em
Nantes e em Bordeaux, e, ainda, nas ilhas atlânticas, como a Madeira e as Canárias. Essa
precedência, após a primeira onda de “africanização” (seria uma mundialização da
escravidão africana e mestiça?!) do Novo Mundo, acabou se transformando, sublinhe-se, em
resposta e reflexo das práticas então em consolidação nas colônias americanas.
Já durante os séculos XVII e XVIII, o rol americano se ampliaria enormemente.
Nele se incluiriam Vera Cruz, Acapulco, Puebla, Cuzco, Ciudad Panamá, Cartagena de
índias, Antioquia, Quito, Guayaquil, La Paz, Santa Cruz de la Sierra, Buenos Aires,
Santiago de Chile, Montevidéu, Caracas e Havana, assim como áreas de mineração que se
formaram em tomo de Zacatecas, Guanajuato e San Luis Potosí, na Nova Espanha, e Villa
Rica Potosi, Huancavelica, Popayán, no Vice-Reino do Peru. Na América portuguesa, vilas
e cidades do litoral, tais como Olinda e Recife, Rio de Janeiro, Belém, São Luís, as do
Recôncavo Baiano e as das áreas de mineração, principalmente as de Mirias Gerais, Mato
Grosso e Goiás, também conheceram, umas mais que as outras, essa africanização e essa
hibridação intensas, movimento de dimensões incomparáveis na época moderna.
Práticas comuns entre a população escrava e liberta se repetiram nessas regiões,
durante esses três séculos, nos demonstrando que a idéia de áreas completamente diferentes
e apartadas, que vigorou durante tanto tempo, não corresponde à realidade colonial. Festas,
associações religiosas, cultos tradicionais e mesclados, ritmos, comidas, técnicas, naturalia,
mirabilia e monstrosa, línguas e saberes os mais diversos
19
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
foram elementos que circularam intensamente e que aproximaram essas populações. Assim,
desde o século XVI, reis negros foram eleitos nessas cidades; mulheres africanas e mestiças
dominaram o pequeno comércio de alimentos, nas ruas e nas vendas; mobilidade social e
ascensão econômica foram vivenciadas por negros e por mestiços; antigas técnicas de
mineração e de fundição, inalteradas e adaptadas, circularam e foram empregadas de
maneira semelhante; alimentos e remédios foram traficados, explorados e aclimatados;
alforrias e coartações - um direito costumeiro - foram conquistadas pelos escravos;
negociações e resistências se processaram separadamente, mas se complementaram
também; hibridismos e impermeabilidades foram processados largamente no plano do
cotidiano e, também, no das representações, do imaginário, dos discursos e das práticas. 5
Tomar os quadros de castas, comuns na Nova Espanha e no Peru a partir do fim do
século XVII, 6 como fontes, significa informar-se sobre costumes, culinária, indumentária,
circulação da natureza, atividades econômicas, hierarquias sociais, comércio planetário,
miscibilidade biológica e cultural e mobilidade social que existiram,
5. Ver, entre muitos outros: AIZPURU, Pilar Gonzalbo & ARES QUEIJA, Berta. (coord.). Las mujeres en la
construcción de las sociedades iberoamericanas. Sevilla/México: Escuela de Estúdios Hispano- americanos/El
Colégio de México, 2004; AIZPURU, Pilar Gonzalbo & ROMERO, Cecília Rabell. (coord.). Familia y vida
privada en la historia de Iberoamérica. México: El Colégio de México/ Universidad Nacional Autônoma de
México, 1996; Bernand (2001); BERNAND, Carmen & GRUZINSKI, Serge. Historia dei Nuevo Mundo. Los
mestizajes (1550-1640). México: Fondo de Cultura Econômica, 1999; CURTO, José C. & LOVEJOY, Paul E.
(ed.) Enslaving Connections: Changing Cultures ofAfrica and Brazil during the Era ofSlavery. New York:
Humanity Books, 2004; DANTAS, Mariana L. R. Black Townsmen: A Comparative Study of Persons of African
Orifw and Descent in Slavery and Freedom in Batimore, Maryland, and Sabará, Minas Gerais (1750-1810).
Baltimore, A dissertation submitted to Johns Hopkins University, 2003; GARCIA, Clara & MEDINA, Manuel
Ramos, (coord.) Ciudades mestizas: intercâmbios y continuidades en la expansión Occidental (siglosXVIaXIX).
Actas dei 3er. Congreso Internacional Mediadores Culturales. México: Condumex, 2001; GRUZINSKI, Serge.
Les quatrepartíès du monde; Histoire d 'une mondialisation. Paris: Éditions de la Martinière, 2004; LAVALLÉ,
Bemard. £1 cuestionamiento de la esclavitud en Quito colonial. Guaranda, Ecuador: UEB, 1996; LAHON, Didjer.
Esclavage et Confréries Noires au Portugal durant VAncien Regime (1441-1830). Paris: EHESS, These pour
1’obtention du grade de Docteur de 1’EHESS, Anthropologie Sociale et Culturelle, 2001; ORTIZ, Fernando.
Los negros esclavos. La Habana, Editorial de Ciências Sociales, 1987; Ares Queija & Stella (2000); TARDIEU,
Jean-Pierre. El negro en el Cusco: los caminos de la alienación en la segunda mitad dei siglo XVII. Lima: Pontifícia
Universidad Católica dei Perú/Banco Central de Reserva dei Perú, 1998.
6. Ver sobre o tema BARRAGÁN, E. Garcia. José Augustin Arrieta, lumbres de lo cotidiano. México, 1998;
KATZEW, I. Casta Paiting, Images ofRace in Eighteenth-Century Mexico. New Haven: Yale, 2004; MAJLUF,
Natalia (ed.). Los cuadros de mestizaje el VirreyAmat: la representación etnográfica em el Perú colonial. Lima:
Museo de Arte de Lima, 1999; S AÍZ, Maria Concepción Garcia. Las castas mexicanas; un gênero pictórico
americano. México: Olivetti, 1989; SÁNCHEZ, Alberto Ruy (ed.). Artes de México: La pintura de castas. 2a ed.,
México: Artes de México y dei Mundo, n. 8, 1998.
20
H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS
em grande medida, desde o século XVI, e se estenderam até o fim do período colonial, tanto
na América espanhola, quanto na portuguesa. Compará-los às pinturas de Albert Eckhout, de
Franz Post e de Dirk Valkenburg (sobre as danças africanas no Suriname), aos desenhos de
Zacharias Wagener, assim como às aquarelas de Cario Julião e do bispo peruano Companon,
às figurinhas de Francisco Cândido Guilobel e ao extenso conjunto de registros iconográficos
dos viajantes do século XIX, significa traçar trajetórias parecidas, conhecer ambientes
semelhantes, identificar populações marcadas igual e indelevelmente pelo intenso fenômeno
da mestiçagem. Significa comparar sociedades forjadas, também, sob as lógicas das empresas
coloniais e do propósito de construção de um mundo novo globalizado ou de uma
mundialização inédita, sob a égide católico-ibérica, em grande medida.7
As imagens do século XIX, saliente-se novamente, trazem muitas informações sobre
permanências, antigos gostos, costumes, práticas e formas de viver, o que as transformam em
fontes imprescindíveis para trabalhos comparativos, como o que aqui se apresenta. Muitas
vezes, aliadas à documentação ou a relatos de viajantes do período, elas se transformam em
retratos fidedignos e reveladores daquele universo mestiço. Um bom exemplo são as imagens
existentes sobre áreas e empresas de mineração, em cujas representações aparecem
aglomerados de casas com telhados cônicos de palha, à moda africana, o que indica a
possível origem dos construtores e o provável uso de técnicas, instrumentos e conhecimentos
africanos nessas áreas coloniais, sejam as da América portuguesa, sejam as da América
espanhola.8
Figura 9 Figura 10
21
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Por outro lado, Gonzalo Aguirre ^eltrán, em estudo mais recente que o texto de
Mawe, refere-se a uma antiga prática de construção de “Redondos” na costa pacífica do
México, que eram casas de/origem africana, cuja técnica e estética foram apropriadas pelos
índios da região, durante o período colonial, o que fez com que se considerasse uma técnica
indígena até meados do século XX. 10
9. MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1978, pp. 151 e 154.
10. Ver BELTRAN, Gonzalo Aguirre [1958]. Cuijla; Esbozo etnográfico de un pueblo negro. México: Fondo de
Cultura Econômica, 1974, pp. 11-2, (Ia edição: México: Fondo de Cultura Econômica).
22
H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS
Um outro aspecto a ser destacado é o relativo aos modelos usados por viajantes,
artistas e cientistas para a elaboração das imagens desse universo, muitas vezes realizadas
sem que os autores conhecessem pessoalmente as áreas, os costumes e a população retratada.
Se, por um lado, isso poderia comprometer o resultado e, ainda mais, o uso desses registros
hoje, sem o devido cuidado, por outro, vários elementos que se repetem existiam
concretamente, não sendo, portanto, uma invenção improcedente. Isso fez com que muitas
imagens produzidas por agentes que nunca se conheceram, sobre realidades muito distintas
e, até mesmo, em períodos diferentes, resultassem em formas muito parecidas e retratassem
expressões, hábitos, costumes e agentes em atitudes bem semelhantes. Esse aspecto, claro,
acaba por fomentar comparações e conexões possíveis, que, longe de serem apenas fruto
artificial de modelos artístico-acadêmicos empregados ou de cópias realizadas umas sobre as
outras, resultam também do registro de elementos similares que realmente constituíam as
sociedades escravistas e as mestiçagens coloniais, tanto no período de produção das
imagens, quanto em tempos anteriores a elas. 11
Figura 11 Figura 12
11. Imagens apresentadas paralelamente para efeito de comparação: Figura 11. Desiré Roulin, Bords de la
Magdelaine, Le bal du petit ange (Orillas dei Magdalena, El baile dei angelito), Aquarela sobre papel (c.
1823), reproduzido em ÁLVARES RINCÓN, Beatriz. François Désiré Roulin: de La Guairá a Bogotá. Bogotá:
Banco de la República, 2003, p. 13; Figura 12. Spix & Martius (dei.) e Nachtmann (lith.), Die Baducca in S.
Paulo, Festa da Rainha in Minas (1823-1831), Litografia, reproduzida em Moura (2000: 370); Figura 13.
Johann Moritz Rugendas, Venda em Recife, Litografia coloria à mão, reproduzida em Aguilar (2000: 245);
Figura 14. Desiré Roulin, Place Major de Bogotá, Douane (Plaza Mayor de Bogotá, Aduana), Aquarela sobre
papel (c. 1823), reproduzida em Álvares Rincón (2003: 22); Figura 15. Desiré Roulin, Le díner à Ste. Marthe
(La cena en Santa Marta), Aquarela sobre papel (c.1823), reproduzida em Álvares Rincón (2003: 11); Figura
16. Jean Baptiste Debret, O Jantar (1834-1839), Litografia coloria à mão, reproduzida em Aguilar (2000:
125).
23
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Figura 15 Figura 16
12. Ver: GRUZINSKI, Serge. La pensée métisse. Paris: Fayard, 1999; PATVA, Eduardo França. Escravidão e
universo cultural na colônia: Minas Gerais (1716-1789). Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001; PAIVA,
Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.) O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas
de viver (séculos XVIA XIX). São Paulo: Annablume/PPGH-UFMG, 2002.
24
H ISTÓRIAS C OMPARADAS , H ISTÓRIAS C ONECTADAS
13. Ver: Paiva & Anastásia (2002); ARES QUEIJA, B. & GRUZINSKI, Serge (coord.). Entre dos mundos:
fronteras culturales e agentes mediadores. Sevilha, 1997; TACHOT, Louise Bénat & GRUZINSKI, Serge
(dir.). Passeurs culturels; mécanismes de métissage. Paris: Fondatíon Maison des sciences de
1’homme/Presses universitaires de Mame-la-Vallée, 2001.
25
REPENSANDO O CONCEITO DO PATERNALISMO ESCRAVISTA NAS AMÉRICAS
da última década do século XVIII e ao longo de quase todo o século XIX. Notem que estou
deliberadamente excluindo as sociedades da América hispânica continental, pois lá o
escravismo não emergiu, a não ser temporariamente ou em regiões territorialmente muito
reduzidas.2
Pretendo tecer algumas considerações acerca das relações senhor/escravo, que
desempenharam um papel fundamental na formação, consolidação e continuidade histórica
de todas as sociedades escravistas das Américas. Com certeza, a natureza daquelas relações
variou substancialmente ao longo dos séculos e entre as diversas regiões e sub-regiões. Com
efeito, tais variações constituem o cerne deste meu empreendimento ensaístico. Apesar
disto, é mister reconhecer que, de maneira surpreendentemente consensual, ao longo de
mais de um século a historiografia internacional vem trabalhando com o conceito de
paternalismo para caracterizar as relações senhor/escravo. Este conceito remonta pelo
menos à sociedade escravista da Grécia clássica, e provavelmente tem suas origens nos
primórdios da própria escravidão, vindo, portanto, de tempos imemoriais.
Como meu objeto é o paternalismo do escravismo moderno, no entanto, tomo como
ponto de partida a publicação, em 1972, da obra prima de Eugene Genovese, Roll, Jordan,
Roll: The World the Slaves Made? apenas parcialmente traduzida para o português e
intitulada A terra prometida: o mundo que os escravos criaram.4 Observa- se pelo título que a
intenção do autor - na época, talvez, o maior expoente nos Estados Unidos do pensamento
de Antônio Gramsci - era de inspiração thompsoniana, ou seja, colocar o escravo como um
dos agentes de sua própria história. Eu diria, no entanto, que A terra prometida analisa
melhor as multifacetadas complexidades do paternalismo escravista do Velho Sul do que
amplia nossa compreensão da agência cativa na construção da História. A bem da verdade,
apesar de seu marxismo declarado, Genovese sempre se fascinou muito mais com a
fidalguia paternalista dos senhores de escravos sulistas do que com a cultura criada e vivida
pela população cativa do Sul, muito embora ele seja um dos mais importantes construtores
do nosso atual entendimento daquela cultura. XÍsuas interpretações da religiosidade
escrava, por exemplo, para mim permanecem as melhores e mais penetrantes de toda a
historiografia internacional especializada no assunto.
>
2. Ver, por exemplo: CARROL, Patrick J. Blcicks in Colonial Varacruz: Race, Ethnicity, and Regional
Develpoment. 2* ed., Austin: University of Texas Press, 2001.
3. GENOVESE, Eugene D. Roll, Jordan, Roll: The World the Slaves Made. New York: Vintage, 1972.
4. GENOVESE, Eugene D. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e
Terra/CNPq, 1988.
28
R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS
5. LARA, Sílvia H. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro (1750- 1808). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1988; CHALOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; MATTOS DE CASTRO, Hebe Maria. Das cores
do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil, século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1995; SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava (Brasil, sudeste, século XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999; CARVALHO, Marcus Joaquim
Maciel de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife (1822-1850). Recife: Editora Universitária da
UFPE, 1998; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais (1716-1789).
Belo Horizonte: Editora UFMQ 2001.
29
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
30
I
quinze anos pretende desbancar, entre muitos outros, as três obras-primas do revisionismo
da década de 1970: A terra prometida, a polêmica Time on the Cross, de Robert Fogel e
Stanley Engerman,9 e a magistral The Black Family in Slavery and Freedom, do saudoso
Herbert Gutman.10
Resolvi deixar de fora tais interpretações neo-revisionistas por várias razões. Elas
têm tido quase que nenhuma ressonância entre os estudiosos do escravismo brasileiro,
talvez porque estes não se disponham a renunciar tão facilmente às conquistas teórico-
metodológicas que deram vida e agência aos milhões de cativos que, no passado,
representavam a própria força vital da Colônia e do Império brasileiros. E, de fato, é preciso
dizer que o neo-revisionismo da academia ianque anda no fio da navalha, pois, ao insistir
enfaticamente nos aspectos negativos da vida escrava impostos por uma sociedade
dominada por senhores brancos, corre o risco de obviar a participação do escravo na sua
própria história. Em outras palavras, parece-me que, ao buscar explicações para um racismo
doentio, virulento e persistente - objetivo este, sem dúvida alguma, assaz laudatório - os
revisionistas, às vezes, podem estar jogando fora o bebê junto com a água do banho. Trata-
se de um processo perfeitamente compreensível: as preocupações da sociedade norte-
americana da virada do milênio se voltam para um recorrente problema social que exige um
constante repensar da história nacional. Cá, nos trópicos brasílicos, as preocupações do
momento são outras, donde a relevância da produção historiográfica lá de cima vai se
tomando cada vez menos clara. Finalmente, como considero que, em última análise, o
paternalismo escravista acaba se revelando um jogo no qual o senhor nunca sairá vitorioso,
não vejo por que me deter nos aspectos negativos da vida cativa, o que, nem de longe,
eqüivale negar a existência destes.
Muito bem, o que é, afinal, o paternalismo escravista na minha interpretação da
análise paradigmática de Genovese? Acho muito importante não perder de vista o fato de
que o escravo constituía uma propriedade privada do senhor. Do ponto de vista jurídico,
inclusive, a maioria daqueles que passaram a elaborar leis tratando da propriedade em
escravos teve que lançar mão às velhas e rigorosas tradições romanas, segundo as quais o
senhor desfrutava de uma autoridade absoluta sobre sua propriedade cativa. Não custa
lembrar aqui que a Europa das descobertas emergia de uma Idade Média na qual as
distinções entre a propriedade privada, comunitária ou pública haviam se tomado bastante
embaçadas. Neste sentido, e bastante ironicamente, a propriedade
9. FOGEL, Robert W. & ENGERMAN, Stanley L. Time on the Cross: The Economics of American Negro
Slavery. Boston: Little Brown, 1974.
10. GUTMAN, Herbert G The Black Family in Slavery and Freedom (1750-1925). New York: Vintage, 1976.
31
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
32
I
11. LAUDERDALE GRAHAM, S. Caetana diz não:histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005, pp. 181-3.
12. Ver, por exemplo: Lara (1988).
33
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
medição de forças pela qual, a médio e longo prazo, os senhores concediam, mesmo que em
doses míseras, cada vez mais espaço autônomo aos seus escravos. Afinal, o castigo
exemplar e incontestado funcionava até certo ponto, mas, em nome da tranqüilidade e da
ordem, senhores sulistas e brasileiros tiveram que aceitar como corriqueiros os pequenos
furtos de comida e roupa que suplementavam o “generoso” fornecimento senhorial, as
pequenas insolências, as desobediências sem maiores conseqüências. Pior ainda, tiveram
que aceitar as pequenas fugas, através das quais escravos e escravas se ausentavam por
alguns dias para, depois, voltar e escapar do castigo graças à intermediação de algum
senhor vizinho. É neste sentido que sugeri antes que o paternalismo foi um jogo nunca
vencido pelos senhores, pela simples razão de que os cativos nunca cessaram na sua luta
pela conquista de espaços adicionais. Apenas lembraria que nenhum senhor jamais
admitiria reconhecer publicamente que, no fundo, era ele o vencido. Com efeito, é possível
até se comover com a sinceridade dos sentimentos de traição expressados por ex-senhores
diante do comportamento dos “seus” na esteira da Guerra Civil nos Estados Unidos13 ou da
Abolição no Brasil.14
É claro que este rápido resumo não faz jus à complexidade do paternalismo e nem
corresponde a nenhuma dada realidade histórica. É uma descrição necessariamente
idealizada, mas que contém os principais elementos de uma maneira de se comportar e de se
relacionar, assim como de se ver o mundo, por parte dos milhões de personagens históricos
que concretamente viveram o escravismo moderno. Serve apenas para nos ajudar a pensar
sobre a possibilidade ou não de formas distintas de paternalismo e, sobretudo, a sugerir
novos caminhos a serem trilhados pela historiografia especializada.
Já a historiografia especializada norte-americana vem tratando do paternalismo
escravista desde os primeiros escritos do pai dos estudos sobre a escravidão, Ulrich Bonnell
Phillips, ainda no final do século XIX. Embora se considerasse um estudioso, sobretudo, da
História Econômica, Phillips era uma espécie de Gilberto Freyre ianque, pois escrevia sobre
o passado escravista com a nostalgia de quem, quando criança, escutava as bonitas histórias
dos-ayôs maternos e paternos, todos ex-donos de suas plantations e muitos dezenas de
escravos. Phillips nem tentava disfarçar sua admiração pelo ethos do Velho Sul, com sua
aristocracia cavalheiresca, sustentada por milhões de homens e mulheres escravizadas desde
o nascimento.
Como objeto de estudo, o p'atemalismo escravista é tratado com muito mais
freqüência e regularidade nos Estados Unidos do que no Brasil, e este fato serve muito bem
como ponto de partida para tecer algumas considerações de natureza comparativa. Pode-se
afirmar que foi nas plantations, fazendas e pequenos centros
34
V
urbanos do Velho Sul que o paternalismo escravista mais se desenvolveu entre todas a
regiões escravistas do Novo Mundo. À primeira vista, trata-se de uma afirmação paradoxal,
uma vez que o regime escravista norte-americano se consolidou apenas no segundo quartel
do século XVIII, mais de um século depois da consolidação do escravismo da América
portuguesa - algo que se deu em tomo da virada para o século XVn - e mais de meio século
após o surgimento das primeiras sociedades plenamente escravistas no Caribe. Eu
argumentaria que um dos elementos constitutivos daquela consolidação, processada ao
longo das décadas de 1720 e 1730 nas colônias de Maryland e Virgínia, e um pouco mais
tarde nas Carolinas e na Geórgia, é a chave para entender por que a sociedade do Sul norte-
americano alimentou um paternalismo escravista tão aperfeiçoado. No caso, estou me
referindo ao fenômeno do crescimento natural da população mancípia, cujo início, 15 nada
fortuitamente, coincidiu com a maturação da sociedade escrava sulista. A partir daquele
momento, a maioria da população escrava do Sul, cada vez mais, seria nascida em solo
norte-americano, e isto apesar das maiores importações de africanos via o tráfico negreiro
internacional se darem em meados do século XVIII. Convém lembrar aqui que, do ponto de
vista da elite sulista, a adesão dos Estados Unidos ao tratado com a Grã-Bretanha, que levou
à supressão do tráfico negreiro transatlântico em 1807, não se inspirou em motivos
humanistas. Naquelas alturas, a população escrava do Sul se reproduzia a taxas bem
elevadas, taxas estas que, entre 1810 e 1860, fariam com que a escravaria aumentasse de 1,2
milhões para mais de 4 milhões. Já na época da Guerra da Independência tinha-se plena
consciência de que o tráfico negreiro era perfeitamente dispensável diante do robusto
crescimento natural. Em meio ao clima de pânico e histeria criado pela Revolução Haitiana,
o tráfico e seus africanos tomaram-se positivamente indesejáveis.
O que importa para a discussão de hoje é que, quando da virada do século XVm, três
ou quatro gerações de famílias proprietárias e de famílias escravas haviam convivido,
dando formas às relações senhor/escravo cada vez mais paternalistas. Outras três ou quatro
gerações iriam conviver e conquistar juntas o novo Sul das vastas plantações de algodão.
Eu sempre me impressiono com a fotografia que aparece na capa do The Black Family in
Slavery and Freedom, de Gutman. A foto, datada de antes da Guerra Civil norte-americana,
capta cinco gerações de uma única família escrava pertencente a uma única família
proprietária. Nem os neo-revisonistas negam o óbvio: a família foi a unidade básica da
organização social da escravidão sulista.
15. Ver: MENARD, Russell R. The Maryland Slave Population, 1658 to 1730: A Demographic Profile of
Blacks in Four Counties. William and Mary Quarterly, 3"1 ser., v. 32, n. 1, jan, 1975, pp. 29-54.
35
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
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R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS
Sem dúvida, uma das grandes semelhanças entre as sociedades escravistas do Brasil
e do Velho Sul revelada nas pesquisas das últimas décadas é uma distribuição da
propriedade em escravos bem menos concentrada do que aquela imposta pela cartilha do
chamado Sistema Colonial. Tanto lá, quanto cá, havia as grandes posses e as imensas
unidades produtivas - mormente as dedicadas ao plantio do algodão, da cana de açúcar e do
café. Mas estas fazendas eplantations constituíam a exceção. A vasta maioria dos escravos
residia em unidades designadas como pequenas ou médias. Basta lembrar que, como aponta
Stuart Schwartz, 16 nem os engenhos de açúcar brasileiros merecem a fama de gigantes ou
de supostos feudos senhoriais fincados em pleno solo colonial. Na verdade, o típico
engenho tinha uma escravaria de tamanho médio para grande e sobrevivia através de uma
relação de interdependência para com lavradores de cana da vizinhança, que tinham posses
médias de cativos. Os grandes engenhos, com centenas de escravos e canaviais de perder de
vista, na verdade, eram um fenômeno quase que exclusivo das ilhas caribenhas. A realidade
das Américas portuguesa e britânica continental ou do Brasil e do Sul dos Estados Unidos
era bem outra.
Ora, diante desta realidade das pequenas e médias posses de escravos, parece- me
imperativo repensar o paternalismo escravista. Como manter um distanciamento “olímpico”
quando a comunidade conjunta de escravos e livres não passava de quarenta, cinqüenta ou
sessenta pessoas? As relações pessoais que se desenvolveram e se desenrolaram em meio ao
inevitável contato diário não seriam um tanto quanto distintas daquelas idealizadas no
paternalismo de Genovese, Freyre, Phillips e tantos outros? Todos sabemos que a
proximidade constante tanto pode gerar afeto genuíno, quanto pode provocar desafeto
constante e passível de se transformar em repentinos impulsos violentos. No empurra-
empurra de todo dia, marcado por imprevisibilidades irritantes, as reações iradas não
deveriam ser nada incomuns. E aí, não me parece que a ira repentina seja exatamente uma
boa precondição para o castigo exemplar e incontestado. E, vejam bem, não estou falando
das pequenas - às vezes diminutas - posses de um a cinco cativos. Nestes casos, a
intimidade forçosa das relações senhor/ escravo com certeza resultava em comportamentos
extremos, fossem afetos, fossem desafetos. Os diários e as correspondências de pequenos
proprietários e proprietárias do Sul e os processos-crime brasileiros mostram muito bem
que as pequenas posses eram marcadas por instabilidade, imprevisibilidade e, com certeza,
irrupções de violência
16. SCHWARTZ, Stuart B. Sugar Plantation in lhe Formation ofBrazilian Society (Bahia, 1550-1835). Cambridge:
Cambridge University Press, 1985, especialmente Chapter 11.
37
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
de todas as partes.17 Aqui no Brasil, a ênfase tem se dado sobre as pequenas propriedades
típicas dos centros urbanos, em particular o Rio de Janeiro, 18 Salvador,19 Recife/ Olinda20 e
as cidades mineiras dos séculos XVIII e XIX. 21 A propósito, considero simplesmente
brilhante a observação recente de Zephyr Frank acerca dos limites do tamanho das posses
de escravos impostos pelo ambiente urbano da Corte no Oitocentos. Posses de mais de uma
dúzia de cativos praticamente inexistiam na cidade do Rio, mesmo entre proprietários de
altíssimo poder aquisitivo. E isto por uma razão muito simples: como vigiar uma grande
quantidade de escravos em meio à confusão e à relativa anonimidade da cidade grande? 22
Muito bem. Apesar do que podem dizer por aí, o tamanho faz diferença, sim. E
quero crer que a questão da relação entre o tamanho de posse e o grau ou tipo de
paternalismo ainda não foi adequadamente discutida, seja aqui no Brasil, seja lá nos Estados
Unidos.23 Tão pouco tem-se examinado de maneira sistemática o paternalismo
17.Stevenson (1996); Dunaway (2003); FOX-GENOVESE. Elizabeth. Within the Plantation Household: Black and
White Women of the Old South. Chapei Hill, NC: The University of North Carolina Press, 1988; MORELL1,
Jonice dos Reis Procópio. Fragmentos do cotidiano: Montes Claros de Formigas no século XIX. Belo Horizonte:
UFMG, Dissertação de Mestrado, 2002; RODRIGUES, Tiago de Godoy. Sentença de uma vida: escravos nos
tribunais de Mariana (1830-1840). Belo Horizonte: UFMG, Dissertação de Mestrado, 2004; FREITAS DE
JESUS, Allyson Luiz. O sertão oitocentista: violência, escravidão e liberdade no Norte de Minas Gerais (1830-
1888). Belo Horizonte: UFMG, Dissertação de Mestrado, 2005.
18. KARASCH, Mary. Save Life in Rio de Janeiro (1808-1850). Princeton: Princeton University Press,
1987; LAUDERDALE GRAHAM; Sandra. House and Street: The Domestic World ofServants and Masters in
Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Austin: University ofTexas Press, 1992; NOGUEIRA DA SILVA,
Marilene. Rosa Negro na rua: a nova face da escravidão. São Paulo: Editora Hucitec/ CNPq, 1988.
19. ANDRADE, Maria José de Souza. A mão de obra escrava em Salvador (1811-1860). São Paulo:
Corrupio/CNPq, 1988.
20. Carvalho (1998).
21. RESENDE, Edna Maria. Entre a solidariedade e a violência: valores, comportamentos e a lei em São João del-Rei
(1840-1860). Belo Horizonte: UFMQ Dissertação de Mestrado, 1999; VELLASCO, Ivan de Andrade. As
seduções da ordhn: violência, criminalidade e administração da justiça, Minas Gerais século XIX.
Bauru/SãoPaulo: Edusc/ANPOCS, 2004; MENESES, Jose Newton. Artes fabris e serviços banais: ofícios
mecânicos e as câmaras no final do Antigo Regime (Minas Gerais e Lisboa, 1750-1808). Niterói: Universidade
Federal Fluminense, Tese de Doutorado, 2003.
22. FRANK, Zephyr L. Dutra ’s World: Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Albuquerque:
University of New Mexico Press, 2004, pp. 77-8 e 85.
23. Mesmo assim, há discussão na academia norte-americana. Ver, por exemplo, PATTERSON, Orlando. Rituais
of Blood: Consequences of Slavery in Two American Centuries. New York: Basic Civitas, 1999; TADMAN,
Michael. Speculators and Slaves: Masters, Traders, and Slaves in the Old South. Madison: University of
Wisconsin Press, 1989; CRAWFORD, Stephen. “A View from the Slave Narratives”, in GOLDIN, Claudia
& ROCKOFF, Hugh (ed.). Strategic Factors in Nineteenth-Century American Economic History. Chicago:
University of Chicago Press, 1992, pp. 331-50.
38
R EPENSANDO O C ONCEITO DO P ATERNALISMO E SCRAVISTA NAS A MÉRICAS
24. A obra de Larry Koger (Black Slaveowners: Free Black Slave Masters in South C.arolina (1790- 1860).
Columbia: University of South Carolina Press, 1985) chega a soar patética quando comparada à realidade
brasileira da mesma época. Por black slaveowners, leia-se um número muito reduzido de mulatos forros,
residentes apenas de Charleston, e, freqüentemente, donos apenas de parentes próximos (filhos e esposos),
impossibilitados de receberem suas próprias alforrias graças à legislação draconiana pós-Revolução
Haitiana, a qual, na prática, simplesmente proibia a alforria (além de ordenar a expulsão de vários estados
sulistas daqueles anteriormente “agraciados” com a libertação).
39
Tráfico e Famílias Escravas em Minas Gerais: O Caso de São
José do Rio das Mortes (1 7 4 3 -1 8 5 0 )
INTRODUÇÃO
Podemos dizer que a pesquisa sobre famílias escravas em Minas Gerais, assim como
em outras regiões, avançou com o desdobramento dos estudos demográficos, também sendo
influenciada pelos trabalhos de Eugene D. Genovese (1974) e Herbert Gutman (1976), que
contribuíram para a crítica da imagem de “anomia social” que se tinha destas famílias. 3 As
primeiras incursões sobre o tema no Brasil, adotando esse novo viés analítico e esmiuçando
as fontes primárias, datam desse momento, ganhando maior consistência nos anos 1980. 4
São trabalhos geralmente dedicados às grandes
5. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
6. FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico (Rio
de Janeiro, c.1790 - c.1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
7. Florentino & Góes (1997); Slenes (1999); ALMEIDA, Carla M. C. de. Demografía e laços de parentesco na
população escrava mineira (Mariana, 1750-1850). População e Família, CEDHAL/USP, v. 1, n.
42
J
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS
1, jan/jun, 1998, pp. 235-60. Este índice representativo de casamentos mistos entre escravos, bem
como o que verificamos em nossa pesquisa, mostram que regionalmente divergem do livros de registros
de casamentos de escravos de Juiz de Fora (1845-88), naquele momento uma área de abertura da
agroexportação do café, onde Rômulo Andrade encontrou 17% deles em 117 assentos, predominando
os casamentos endógamos de crioulos e africanos, num total de 83%. Ver: ANDRADE, Rômulo.
Casamentos endogâmicos e casamentos mistos de escravos na Zona da Mata de Minas Gerais. Revista
Vertentes, São João del-Rei, Funrei, jan/jun, 1998, pp. 23-30.
8. Para Minas, merecem ser citados, entre outros, os trabalhos demográficos de LIBBY, Douglas & PAIVA,
Clotilde Andrade. “Profiles of a late eigtheenth-century slave parish: São José d’el Rey in 1795",
comunicação apresentada no Brasas IVCongress, Washington, nov, 1997; BOTELHO, Tarcísio Rodrigues.
Famílias e escravarias: família e demografia escrava no norte de Minas Gerais, no século XIX. São Paulo: USP,
Dissertação de Mestrado, 1994; BERGAD, Laird W. Slavery and the Demographic and Economic History of
Minas Gerais, Brazil (1720-1888). Cambridge University Press, 1999; e os estudos de HIGGINS, Kathleen J.
“Licentious liberty” in a brazilian gold-mining region: slavery, gender, and social control in eighteenth-century
Sabará, Minas Gerais. University Park: The Pennsylvania State University Press, 1999. FIGUEIREDO,
Luciano Raposo de A. Barrocas famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII. São Paulo: Hucitec,
1997; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia (Minas Gerais, 1716-1789). Belo
Horizonte: Editora da UFMQ 2001; BRÜGGER, Silvia M. J. Minas patriarcal: família e sociedade (S. João dei
Rei, séculos XVIII e XIX). Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 2002; ANDRADE, Rômulo. Limites impostos pela
escravidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco (Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX). São
Paulo: USP, Tese de Doutorado, 1995.
9. O debate sobre essa questão se inicia com mais ênfase nos anos de 1980, com os trabalhos de Roberto Martins.
A economia escravista de Minas Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG 1982; SLENES, R. W.
Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia escravista de Minas Gerais no
43
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
século XIX. Cadernos IFCH/UNlCÀMP, n. 17, 1985; e LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o
abastecimento da Corte na formação^ política do Brasil, 1802-1842. São Paulo: Símbolo, 1979. Ver também
GRAÇA FILHO, Afonso deAlencastro. A Princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais (São João
del-Rei, 1831-1888). São Paulo: Annablume, 2003.
10. FARIA, Sheila Siqueira de Castro. -Fámflia escrava e legitimidade: estratégias de preservação da autonomia.
Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 23, dez, 1992; SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes.
Bauru: Edusc, 2001; BRÜGGER, S. M. J. Minas patriarcal: família e sociedade (São João del-Rei, séculos
XVIIIE XIX). Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 2002. Para as discussões sobre o apadrinhamento de escravos,
ver também: BRÜGGER, S. M. J. “Legitimidade, casamento e relações ditas ilícitas em São João del-Rei
(1730-1850)”, in LIBBY, D. C. & PAIVA, C. A. (orgs.). 20 anos do Seminário sobre a Economia Mineira v. 2.
Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG, 2002.
11. QUEIRÓZ, Suely Robles Reis de. “Escravidão negra em debate”, in FREITAS, Marcos Cezar de (org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, pp 103-18; GORENDER, Jacob. A
escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.
44
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS
12. Os autores que defendem a idéia da reprodução da escravaria mineira através do tráfico atlântico são Robert
Slenes e Roberto Martins, nas obras já citadas. Francisco Vidal Luna e Wilson Cano (Economia escravista
em Minas Gerais. Cadernos IFCH/Unicamp, n. 10, out, 1983) postulam a reprodução endógena como fator
preponderante num quadro de decadência do Oitocentos em Minas. Preferimos a vertente defendida por
Libby e Paiva (1997), que trabalham com a hipótese conjunta de reprodução endógena e importação de
escravos. Ver também: PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. São
Paulo: USP/FFLCH, Tese de Doutorado, 1996.
13. Pode-se encontrar uma análise crítica sobre as deficiências dos inventários post-mortem como fonte histórica
em FRANK, Zephyr. Wealth Holding in Southeastem Brazil (1815-1860). Hispanic American Historical
Review, v. 85, n. 2, may, 2005, pp. 223-58.
14. LIBBY, Douglas C. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1988. Ver também: Paiva, C. (1996); e Graça Filho (2003).
45
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
(de seis a trinta mancípios), que significavam 61,58% dos senhores de escravos,
englobavam a maior parcela dessa população, contando com 4.133 pessoas, ou seja, 59,03%
dos escravos, com a média de 13,29 cativos por plantei.
A estabilidade da família escrava
Até o momento, para a análise quantitativa dos casais escravos nos inventários post-
mortem da Vila de São José, entre 1743-1850, encontramos 745 escravos na condição civil
de casados. Esses cativos formam 362 casais nucleares, com ou sem filhos, dezenove
escravos casados sem referência ao cônjuge (ou este não se encontrava no plantei), 170
mães sem referência ao cônjuge, sete pais com filho(s) e sem a nomeação das esposas, um
viúvo, duas viúvas e 28 casos de filhos sem menção das mães nas escravarias (que poderiam
ser forras, falecidas ou pertencentes a outro senhor).
Para o acompanhamento das divisões dos casais entre herdeiros, algumas vezes
esbarramos com a ausência de informações ou a inexistência de autos de partilha, como no
caso de inventários em débito, embargados ou danificados. Ainda assim, foi possível a
reconstituição de um número significativo de divisões entre herdeiros referentes aos casais e
filhos inventariados. Por comparação, com o intuito de demonstrarmos a significância de
nossa amostragem, Florentino e Góes trabalharam com 374 inventários para áreas rurais
fluminenses de 1790 a 1830, compostos de 6.620 cativos, e encontraram 138 grupos
familiares, congregando 377 parentes. Na análise da partilha dos casais, perceberam que três
entre quatro famílias permaneciam unidas após a distribuição da herança. Nos momentos de
decréscimo do tráfico negreiro, período de 1790-1807, cerca de 75% das famílias
encabeçadas por crioulos mantinham-se unidas na divisão das heranças e as de maridos
africanos alcançaram o percentual de quase 90%. O incremento do tráfico, entre 1810-25,
reduziu esses percentuais para, respectivamente, 40 e 75% (Florentino & Góes, 1997:116-
7).
Para o caso dos 362 casais de cativos de S. José, apenas 34 foram separados, ou seja,
90,6% dos casais de cativos foram mantidos juntos no período total da amostra. Este dado
evidenciá^aT^grande preocupação dos senhores em respeitar a estabilidade dos laços
familiares construídos no cativeiro. Por ser quase uma regra a manutenção dos casais nos
cativeiro^ de São José, a comparação de percentuais nas variações de conjuntura do tráficd
nos parece irrisória, como pode ser percebida na tabela 2, que figura nas páginas seguintes.
A mesma preocupação não ocorria com o destino dos filhos, especialmente das mães
sem referência ao cônjuge. De 865 filhos arrolados nos inventários, cujas idades variavam
de recém-nascidos até os 24 anos, e que representavam 12,35% dos escravos, 375 foram
separados dos pais durante a partilha, o que significa 43,35% dos casos. Das 170 mães com
filhos, sem referência aos pais, 92 foram separadas da prole (54,12%).
46
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS
Apesar da separação dos filhos não ser predominante em termos relativos, era
significativa em relação ao percentual de casais que mantiveram sua integridade após a
partilha. Devemos também fazer a ressalva de que essas separações filiais diminuem
quando excluímos a prole já em idade ativa. Por exemplo, se considerarmos as separações
filiais ocorridas até a faixa etária de 15 anos, teremos 27,86% dos casos, conforme adiante
na tabela 3.
A existência daquelas mães sem cônjuges pode indicar a presença de uniões
consensuais, que hipoteticamente poderiam ter se originado com parceiros dentro do
mesmo plantei ou de outro senhor; ou ainda, de viuvez ou de cônjuge legítimo, forro ou
escravo, domiciliado fora das propriedades dos inventariados, caso quase excepcional,
como é sabido pela historiografia.15 É difícil especular sobre essa situação materna
enquanto a exploração de outras fontes, como os registros de batismo e casamento, ainda
não for possível e talvez derrame alguma luz sobre tais relações silenciadas pela pena dos
escrivãos.
Escravos Casais*
Tamanho da escravaria % sobre o total de escravos % sobre o total de casais
<11 1517 21,66 53 14,64
11 a 20 1994 28,48 80 22,1
21 a 30 1087 15,52 37 10,22
>30 2404 34,33 192 53,04
Total 7002 100,0 362 100,0
Fonte: inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. *Estamos contabilizando
apenas os casais nos quais ambos os cônjuges aparecem nomeados claramente nos inventários.
15. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998; Slenes (1999).
16. SLENES, Robert W. Escravidão e família: padrões de casamento e estabilidade familiar numa comunidade
escrava (Campinas, século XIX). Estudos Econômicos, São Paulo, v. 17, n. 2, maio-ago, 1987.
17. Isto também é verificado para o distrito da Lage, pertencente ao município de São José, como demonstra
Maria L. R. C. Teixeira em sua dissertação de mestrado (Família escrava e riqueza na comarca do Rio das
Mortes: o distrito da Lage (1780-1850). Belo Horizonte: UFMG, 1998, p. 112): “(•••) mesmo com intensidade
menor, a reprodução natural esteve presente nos menores domicílios”.
47
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
18. Museu Regional de São João del-Rei. Inventário de D. Ana de Almeida e Silva, ano de 1830, cx. 313, na
fazenda Ribeirão de Sto. Antonio, Aplicação da Laje.
19. A variação fica entre 4,2l%e 6,91% de casais em relação ao número de escravos, sendo a média geral de
5,17%. Vide tabela 2.
48
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS
consistentes, pois a quantidade inventários que conseguimos utilizar é bem menor do que a
de anos anteriores. Sendo assim, só a conclusão do levantamento de inventários permitirá
saber se esses percentuais se mantêm estáveis ou são distorções derivadas dessa pequena
amostragem. De qualquer forma, insistimos que a pequena variação de separações toma essa
análise conjuntural pouco relevante.
De acordo com a bibliografia por nós utilizada, a década de 40 do século XIX
apresenta um alto nível de constituição de famílias escravas, tendo em vista a necessidade
de substituição dos escravos importados, pois desde a conjuntura dos anos 30 já se
prenunciava a extinção do tráfico atlântico (Florentino & Góes, 1997: 49; Brügger, 2002).
Para as duas primeiras décadas do Oitocentos, percebemos que a conjuntura econômica
parece ter sido desfavorável à importação de escravos, como pode ser visto na tabela 4,
quando a porcentagem de africanos em relação aos escravos nativos diminui e se recupera
nos anos 20 e 30. Ao contrário dos cativeiros fluminenses, os casais de escravos são-
joseenses decrescem neste momento de virada de século, em que a economia regional
parece apresentar uma queda em seu dinamismo. Esta hipótese explicaria o menor
percentual de constituição de casais e a maior separação de casais cativos no período. Vale
acrescentar que a maioria dos casais era formada com parceiros(as) africanos(as), seja
composto exclusivamente de africanos (44,2% de 310 casais com identificação étnica e de
cor) ou mistos (45,5%, idem) com um cônjuge africano. Isto pode ser visto na tabela 9, na
parte final deste texto. Os casais exclusivos de escravos nativos eram mais escassos e sua
incidência maior entre pequenos proprietários.
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN.
49
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
constante na data da inventariação dos bens, temos o seguinte quadro para os filhos
separados das mães:
Tabela 3. Filhos separados dos pais durante a partilha, com idade declarada (1743 -
1850)
2 9
Faixa N filhos N filhos separados Ns filhos separados % filhos separados/ total
etária (freqüência acumulada)
(freqüência (freqüência acumulada de filhos da amostra (n =
acumulada) 865)
<2 150 47 12,53 5,43
<6 334 136 36,27 15,72
<10 466 197 52,53 22,77
<16 560 241 64,27 27,86
<19 590 255 68,00 29,48
<25 605 263 70,13 30,40
Total* 865 375 100,0 43,35
Fonte: Inventáriospost-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. *Natotalização dos dados
foram acrescentados os casos de filhos que não conseguimos informações sobre a idade.
Podemos notar que 52,53% dos filhos separados estavam na faixa etária inferior a
dez anos. Portanto, a maioria dos filhos separados se encontrava em idade improdutiva, e
mais, 12,53% careciam de cuidados matemos. Acreditamos que boa parte desses casos se
resolveria dentro da lógica da exploração familiar presente nas unidades produtivas da
região, não ocorrendo uma separação real das famílias escravas. Isto por inferência das
informações disponíveis para o município vizinho de S. João Del Rei, onde a exploração
familiar foi comum nas unidades agrícolas (Graça Filho, 2003).20 Mas será preciso avançar
no conhecimento da estrutura organizacional das fazendas são-joseenses para
comprovarmos essa hipótese.
Essas porcentagens caem para 15,72% e 22,77%, respectivamente, quando nos
detemos na faixa de filhóTabaixo da idade ativa de seis ou dez anos, tomando como
referência o total de filhos da àmostra. Enquanto a proporção de filhos separados é de
31,33% no universo de crianças escravas na faixa de até dois anos, crescendo para 40,72%
na faixa até seis anrá, e tendo um pequeno acréscimo ao incorporarmos
20. Não podemos acreditar que essa separação se desse pela grande valorização das crianças em relação aos
casais. Isto porque os valores dos infantes sempre foram inferiores aos escravos adultos em idade produtiva
devido à mortalidade, bem como existia uma boa parcela de crianças em idade de aleitamento e pouco úteis a
qualquer trabalho, significando um custo imediato para os seus novos proprietários. Portanto, os dados
sugerem que a explicação deste fato precisa ser encontrada na organização funcional dessa sociedade.
50
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS
as proles com idade inferior aos dez anos, alcançando 42,27 dos infantes, ou seja, uma
adição de somente 1,55%. A maior proporcionalidade de separações nos primeiros anos de
vida, com um crescimento menor dessa tendência a partir dos dez anos, reafirma o que
apontamos e exige um melhor detalhamento dessas separações no interior das unidades
produtivas.
Grande parte dessas separações de filhos ocorreu na primeira década do século XIX,
em 36,27% dos casos (136 das 375 separações). Ao século XVIII pertencem 31,2%
daquelas separações de filhos, e a partir do ano de 1811 até 1850 a porcentagem restante é
de 32,53% dos casos. Novamente, podemos dizer que essa prática esteve em maior
evidência na passagem do século XVIII para o XIX, ao considerarmos a média de casos no
tempo.
O limiar do início do século XIX foi, para alguns historiadores, 21 um momento de
acomodação de Minas Gerais à economia de abastecimento, o que pressupõe uma maior
participação da reprodução endógena da mão-de-obra escrava, podendo explicar o
crescimento da participação do número de filhos pequenos nas escravarias e, por
conseguinte, o resultado encontrado.
Podemos tentar visualizar essas modificações acompanhando as escravarias no corte
temporal da pesquisa, através da origem de nascimento.
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. *0 número
total de escravos da tabela exclui 353 cativos para os quais não foi possível definir sua origem.
21. Libby (1988); ALMEIDA, C. M. C. de. Alterações nas unidades produtivas mineiras (Mariana, 1750-1850).
Niterói: UFF, Dissertação de Mestrado, 1994.
51
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
22. FRAGOSO, João & FERREIRA, Roberto Guedes. “Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada. Os códices
390,421,424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte (1819-1833)”, in
BOTELHO, Tarcísio R. et al. (orgs.). História quantitativa e serial no Brasil: um balanço. Goiânia: ANPUH-
MG, 2001, p.247.
23. Corroborado por Almeida (1994).
52
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS
Góes, 1997). Finalmente, os anos 1826-1850, marcados por uma conjuntura de pressão
inglesa contra o tráfico negreiro, resultando em leis, como as de 1831 e 1850, proibindo o
tráfico. Entre 1826 e 1830, a importação de africanos foi gigantesca, crescendo numa média
anual de 3,5% (37.200 africanos/ano). No qüinqüênio seguinte, a importação diminuiu
consideravelmente, para retomar fôlego daí em diante. Naquele período de expansão do
tráfico, de 1826-30, encontraríamos uma alta dos preços e uma busca maior por mulheres,
visando um aumento da reprodução natural. Essas hipóteses foram aventadas para o Rio de
Janeiro por Florentino e Góes (1997) e podem ser transpostas para o caso de São José.
Novamente, com o suporte dos números aqui apresentados, postulamos a
conjugação das duas hipóteses de reposição da escravaria de São José. Os números não
apresentam nenhuma discrepância exorbitante para desconsiderarmos qualquer das duas
formas mencionadas de aquisição da mão-de-obra cativa, mesmo com um predomínio em
números absolutos de brasileiros ou de africanos em alguns decênios na composição do
grupo em idade ativa. Pelos números da tabela 5, os africanos se caracterizavam pelas
faixas etárias típicas da população ativa e adulta. As compras mineiras de escravos exigiam
uma longa caminhada dos centros fornecedores até as propriedades senhoriais, o que quase
excluiria as crianças desse tráfico terrestre.
Faixas etárias Até 10 anos 11-15 anos 16-45 anos > 45 anos >45 anos
Períodos AF BR 2 AF BR 2 AF BR 2 AF BR 2 AF BR 2
1843-1800 1 190 191 4 54 58 226 141 367 141 18 159 372 403 775
1801-1810 239 239 1 73 74 74 151 225 41 17 58 116 480 596
1811-1820 1 123 124 6 44 50 113 146 259 80 33 113 200 346 546
1821-1830 4 175 179 20 50 70 258 224 482 90 51 141 372 500 872
1831-1840 - 92 92 12 39 51 175 131 306 23 39 62 210 301 511
1841-1850 - 13 13 - 7 7 21 23 44 5 6 11 26 49 75
Total 6 832 838 43 267 310 867 816 1683 380 164 544 1296 2079 3375
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. * Só foram
considerados na tabela os escravos com idade declarada nos inventários.
Por outro lado, a predominância dos escravos nativos sobre os africanos na soma da
população cativa, a partir do início do Oitocentos, e a significativa presença de crianças
nascidas na região, até a idade de quinze anos, revelam a possibilidade da reprodução
endógena como mecanismo de reposição de parte da força de trabalho, ainda que
encontremos parcela majoritária de africanos nas faixas etárias produtivas pelos inventários
do Setecentos e das décadas de 1820 e 1830, momento de retomada do tráfico para a região.
Lembrando que os inventários post-mortem revelam as
53
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
24. Essas constatações se harmonizam còm a cronologia da importação de escravos para a região desenvolvida
por Douglas Libby com basfe nos registros paroquiais de batismos. Ver: LIBBY, Douglas C. “O tráfico
negreiro e as populações escravas das Minas Gerais (c.1720-c.1850)’\ Comunicação apresentada no 2006
Meeting of the^Latin American Studies Association, San Juan, Puerto Rico, March 15-18, 2006.
2 5. KARASCH, Mary ‘“Minha nação’: identidades escravas no fim do Brasil colonial”, in SILVA, Maria Beatriz
Nizza da (org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000a, p. 130. Uma
discussão sobre as variações de etnias nas comarcas mineiras pode ser vista em GONÇALVES, Andréa
Lisly. “Escravidão, herança ibérica e africana e as técnicas de mineração em Minas Gerais no século
XVIII”, in Anais do XI Seminário sobre Economia Mineira. Belo Horizonte: Cedeplar/ UFMG, 2004.
26. LIBBY, Douglas C. As populações escravas das Minas setecentistas: um balanço preliminar mimeo, p. 25.
54
T RÁFICO E F AMÍLIAS E SCRAVAS EM M INAS G ERAIS
Etnias Angola Benguela Ganguela Cabinda Cassange Congo Mina Moçambique Rebolo Outros**
Penodo H M H M H M H M H M H M H M H M H M H M
1743- 337 47 386 44 20 2 12 - 9 1 97 4 145 47 6 35 - 111 12
1789
1790- 138 17 360 85 49 5 28 3 22 - 57 7 27 13 2 - 62 17 60 4
1810
1811- 57 11 137 50 12 4 11 1 6 3 28 6 3 3 1 - 22 9 18 3
1825
1826- 25 6 114 43 5 4 35 7 12 1 75 14 17 23 2 27 8 51 12
1850
TOTAL 557 81 997 222 86 15 86 11 49 5 257 31 192 63 32 2 146 34 240 31
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de Sâo João del-Rei, IPHAN.
*Na tabela, H representa homens e M, mulheres.
“Foram incluídos na categoria “outros” os grupos de menor expressão nas escravarias são-joseenses, como cabo verde, cura e outros, bem
como os escravos africanos sem especificação de nação.
27. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 114-
27.
28. As populações escravas..., mimeo.
29. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras,
2000b, p. 97.
55
nr
Sexo H H M H M H M H M
M f
1743-1850 1447 1292 113 103 204 171 68 69 1832 1635
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. Só foram
considerados os escravos com designação de origem de cor ou naturalidade, excluindo-se 37 escravos da amostra.
s
wr
31. Ver também: SLENES, Robert. “Malungo! Ngoma Vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista da USP, São
Paulo, n. 12, 1991-92.
32. A doutrina católica proibia as uniões entre parentes até o terceiro grau, embora pudesse haver a dispensa para o
casamento entre primos, padrinhos e afilhados. Ver: Faria (1998: 59). Algumas etnias africanas também proibiam o
casamento entre primos-irmãos. Cf. Gutman (1976).
57
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Tabela 9. Casais de escravos por origens e etnias (1743-1850) (Total de 745 escravos
casados)
Períodos Casais de Casais %de Casais de Casais %de Casais Casais %de Total Total
mistos
africanos de Casais nativos de Casais mistos Casais (Freqüência de
(Freqüência africanos de (Freqüência nativo de (Freqüência mistos acumulada casais
acumulada africanos acumulada s nativos acumulada
1743-1789 35 35 46,0 5 5 6,6 36 36 47,4 76 76
1790-1810 88 53 41,1 20 15 11,6 97 61 47,3 205 129
1811-1825 114 28 60,5 24 4 9,3 110 13 30,2 248 43
1826-1850 137 23 -37,1 32 8 12,9 141 31 50,0 310 62
Total 137 137 44,2 32 32 10,3 141 141 45,5 310 310
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850. Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN. Foram excluídas 125
pessoas sem informações sobre as etnias ou origem dos cônjuges. Dentre eles, cinco mencionam cônjuges em outras escravarias, e catorze
deles não mencionam os parceiros.
CONCLUSÕES
58
PRÁTICAS DE ALFORRIAS NAS AMÉRICAS: DOIS ESTUDOS DE CASO EM
PERSPECTIVA COMPARADA
INTRODUÇÃO
60
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS
500. Pedro Puntoni, em A mísera sorte: a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico no Atlântico
sul (1621-1648) (São Paulo: Hucitec, 1999, p. 191), observa que: “Os asientos foram suspensos em dois
momentos: durante os anos 1540-86 e 1640-62”, ambos relacionados aos desdobramentos da União Ibérica.
Nestas conjunturas, o abastecimento de escravos para as possessões espanholas era feito sem os acordos legais
consubstanciados nos asientos, sobretudo por nações como a Holanda.
6. BARGALLÓ, Modesto. La mineria y la metalurgia en la America Espanola durante la Epoca colonial. México:
Fondo de Cultura Econômica, 1955, p. 300.
7. A princípio, os africanos cativos eram levados por portugueses até Sevilha ou algum outro importante
entreposto castelhano, de onde eram reexportados para a América. Mas, segundo Saunders, já a partir de 1530,
“D. João III decide, todavia, encurtar a viagem aos escravos (e desta forma diminuir a mortalidade ocorrida no
mar alto), acedendo a que eles fossem mandados diretamente para o Novo Mundo a partir das ilhas de Cabo
Verde e de São Tomé”. Cf. SAUNDERS, A. C. M. História social dos escravos e libertos negros em Portugal
(1441-1555). Lisboa: Imprensa Nacional, 1994, p. 51.
8. “Em 1559, Duarte Nunez de Leão dizia que em cada ano saíam de Portugal, quer para os reinos de Espanha,
quer para as ‘índias de Castela grandes quantidades de escravaria’, a fim de trabalharem nas minas e nos
engenhos de açúcar. A zona algarvia transformou-se num dos mais importantes entrepostos de escravos com
destino a Espanha, em especial Sevilha que, a partir da segunda metade do século XVI, se transformou no
grande mercado espanhol de negros. Rapidamente, porém, este mercado mostrou- se incapaz de atender às
constantes solicitações de suprimento de negros para os domínios da América espanhola, verdadeiros
sorvedouros de mão-de-obra escrava”. Cf. PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das consciências: a
escravatura na Época Moderna. Lisboa: Edições Colibri, 1995, pp. 51-2. Muito provavelmente, as minas a que a
autora se refere são as de minério aurífero, uma vez que, a partir de 1545, com a descoberta do Serro Potossí, a
base da organização do trabalho no altiplano Peru-boliviano constituiu-se, ainda que não apenas, como se verá,
predominantemente de indígenas transmigrados.
61
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Os dados relativos ao Vice-Reino do Peru, que serão tratados em outra seção deste
artigo, e para o Uruguai e Argentina, reforçam a afirmação de que a escravidão negra na
América hispânica foi mais abrangente do que se supunha até bem pouco tempo.
Tanto Montevidéu quanto Bueno Aires foram dois dos principais portos de entrada
de escravos africanos durante o período colonial. Estima-se que em 1805, cerca de 2.500
escravos eram importados anualmente na região do Rio da Prata. Em 1803, o contingente de
negros de Montevidéu ultrapassava 1.040 escravos para uma população de 4.726 habitantes.
Há indícios, em função da existência de sete associações comunitárias que reuniam negros,
em 1827, de que a população negra também fora expressiva em Buenos Aires. Em ambos os
casos, supõem-se que a população negra e mestiça foi absorvida pela maciça imigração
européia para a região, ocorrida no século passado (Franklin & Moss Jr., 1994).
ALFORRIAS EM LIMA
9. HÜNEFELDT, Christine. Paying the Price of Freedom: Family and Labor among Lima’s Slaves (1800-1854).
Califórnia: University of Califórnia Press, 1994, p. 2. As traduções do inglês para o português foram feitas por
mim.
62
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS
trabalho indígena.10 No entanto, não deixa dúvidas de que o caso limenho seria uma variante
de um mesmo sistema escravista, não obstante as suas inequívocas particularidades frente às
demais formações escravistas da América.
Mas a inequívoca predominância da mão-de-obra indígena não deve obscurecer o
fato de que desde o início da colonização o tráfico de escravos para as colônias espanholas
da América do Sul dirigia-se, em boa proporção, para o Peru (Franklin & Moss Jr., 1994:
51). Tanto é assim que, após 1535, em função da demanda exercida pela conquista do Peru,
a quase totalidade dos 2 mil escravos oriundos da Alta Guiné foram exportados por Portugal
para a Espanha, e, de lá, para o Novo Mundo (Saunders, 1994:54).
A capital, Lima, se destacou não apenas por concentrar significativos contingentes de
trabalhadores cativos, que eram explorados nas mais diversas atividades, mas também por
funcionar como um mercado de escravos no qual se abasteciam os plantadores das diversas
regiões andinas. Em 1622, conforme mencionado, Lima contava com cerca de 67% dos 30
mil negros que habitavam o Peru (Franklin & Moss Jr., 1994: 51).
As estimativas mais austeras sobre o tráfico internacional de escravos para o Vice-
Reino do Peru acentuam que apenas uma pequena parcela dos cerca de um milhão e meio de
africanos que aportaram nas colônias espanholas entre os séculos XVI e XIX se dirigiram
para aquele vice-reino. Algo em tomo de cem mil escravos teriam sido direcionados para a
região, sobretudo a partir de 1750, como resultado do fim do monopólio comercial de
Castela- o que incluía o tráfico de escravos - sendo que 40% estiveram radicados em Lima.
Certamente estes números só levam em conta os escravos vindos diretamente da
África, quando se sabe que muitos dos escravos residentes em Lima provinham de
reexportações do Panamá ou de Cartagena. Apesar das dificuldades de se precisar o número
exato de negros na capital do Vice-Reino do Peru, os dados oficiais apontam que 25% da
população de Lima, em 1791, eram constituídos por negros (Franklin & Moss Jr., 1994:51).
Naquela cidade, a escravidão africana não foi um fenômeno exclusivamente urbano.
Ela esteve marcada pela articulação direta que se estabelecia entre a capital e seu entorno
formado por haciendas que, até meados do século, tinham sua produção, ou pelo menos parte
dela, voltada para o comércio exterior (Hünefeldt, 1994:15).
10. É curioso notar que os escravos africanos foram utilizados na extração de metal argentífero na Nova
Espanha, o mesmo não tendo sido registrado para o Peru: “No obstante, permanecia aún en las minas, en
parte considerable, el trabajo forzado ya sea como esclavos negros, especialmente en los valles de Colombia
y en Nueva Esparía, o con el regime de ‘tandas’ en Nueva Espanha y de ‘mitas’ en el Perú”. Cf. Bargalló
(1955: 235).
63
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
64
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS
sujeito a uma série de interferências ditadas, sobretudo, pelo maior ou menor poder de
pressão do próprio escravo.
As formas que muitos escravos limenhos encontraram para desafiar a leitura da
concessão da manumissão como decisão exclusiva do senhor variaram da negociação em
termos da diminuição dos preços arbitrados para a compra da alforria, passando pela fuga
seguida da tentativa do estabelecimento de negociações com o proprietário visando a
obtenção da manumissão em termos mais favoráveis ao escravo, até ao acionamento de
meios legais. No último caso, foram instituídos, exclusivamente para esta fim, tribunais,
onde se tentavam resolver, sobretudo, aqueles casos nos quais litigavam senhores e
possíveis libertos, estes últimos tentando impedir as ameaças de reescravização intentadas
por pretensos proprietários ou seus herdeiros.
As estratégias familiares adotadas para a obtenção da alforria eram regidas não
apenas pela lógica da disponibilidade de recursos ou de sua multiplicação, ainda que esses
fossem fatores decisivos, mas também por razões de cunho pessoal ou afetivo relacionadas
às condições impostas por um sistema de domínio exercido de forma privada.
A íntima ligação entre as haciendas e o centro urbano concorria para tomar a
manumissão da mulher uma prioridade no interior da própria família escrava.
Primordialmente porque cabia a ela, na maior parte dos casos, o cultivo dos lotes cedidos
pelo proprietário no interior da propriedade, uma vez que a demanda pelo braço masculino,
ainda que não exclusivamente, continuava como característica das formas extensivas de
cultivo, predominantes nestas unidades produtivas." O desempenho dessas atividades de
subsistência forçava a escrava ao estabelecimento de relações mais estreitas com o centro
urbano, onde se verificava a comercialização da produção dos lotes que excedia o consumo
dos membros da família, descontada também a parcela que era vendida ao proprietário da
hacienda.
Levando-se em conta uma racionalidade essencialmente econômica, a manumissão
da mulher escrava poderia significar, num prazo mais longo, a possibilidade de conquistar a
alforria para os demais membros da família, sobretudo pela maior facilidade que ela
encontrava em se estabelecer no pequeno comércio urbano.
11. De modo semelhante ao que se observou no Brasil, também em Lima os arranjos familiares facilitavam o
acesso do escravo a determinados bens, com destaque para os lotes de terra no interior da propriedade
plantacionista onde se desenvolvia uma produção de autoconsumo ou mercantil de subsistência. A
importância desse tipo de produção voltada para o mercado interno pode ser atestada, no caso específico da
capital peruana, pela paulatina reorientação da produção agroexportadora das haciendas para a produção
voltada para o mercado interno, ao longo da primeira metade do século XIX, a ponto de rivalizar com o que
era produzido na gleba de cultivo próprio dos cativos, com conseqüências diretas sobre a crise do trabalho
escravo em Lima. O processo se acentua quando se afirma a extração e exportação do fertilizante natural, o
guano, que responderá pelo grosso das exportações peruanas a partir de então.
65
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
66
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS
12. Desta forma, a distribuição entre os sexos no interior do plantei deve ter caminhado da proporção de três
homens para cada duas mulheres, no período 1792-1813, para uma crescente situação de equilíbrio.
67
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
apontam, ainda, para a reiteração da situação de instabilidade social a que estavam sujeitas
as camadas de libertos nas diversas formações escravistas.
A alta incidência de alforrias em Lima, cujo impacto demográfico alcançou tal
magnitude a ponto de tomai' residual a escravidão na capital peruana e em seu entorno,
representou a possibilidade de abolição gradual, e com a contrapartida da indenização aos
proprietários - financiada pelos próprios escravos que conquistavam a liberdade através da
compra - da escravidão na região.
O estudo do comportamento das manumissões na sociedade escravista de Lima da
primeira metade do século XIX auxilia na compreensão do fenômeno mais amplo das
alforrias no sistema escravista moderno. Para tanto, há que se ficar atento para as suas
particularidades muitas vezes ditadas pelas especificidades das estruturas sociais e
econômicas, bem como da história da região.
Por fim, o que parece decisivo ao entendimento da prática de alforrias em Lima é a
explicitação do fato de que a escravidão africana não foi, nem de longe, a forma
predominante de organização do trabalho no Peru, o que significa levar em conta fatores
como a inexistência de um poderoso setor social de traficantes de escravos, bem como a
ausência de uma classe dominante com interesses essencialmente escravistas capaz de
recorrer a expedientes que ultrapassassem o domínio estritamente privado dos senhores no
governo de seus escravos. Neste sentido, a afirmação de que a desconcentração da
propriedade escrava tenderia a fortalecer o domínio dos proprietários, uma vez que a
instituição contaria com o apoio de parcelas numericamente significativas da população,
não parece ser válida para o caso limenho. Ali, a pequena concentração da propriedade
escrava, em um contexto no qual a escravidão não era dominante, teria gerado situações em
que aos senhores se tomava cada vez mais difícil impedir determinadas áreas de autonomia
aos cativos, como a possibilidade de troca de senhor, ou de se deslocar até a capital
passando de escravo do eito para escravo de ganho.
13. Papel de liberdade teria o mesmo significado que carta de alforria. Curiosamente, nem todos os
contemporâneos do processo que se pretende reconstituir estavam seguros quanto ao termo que deveriam
empregar para nomear um documento desse tipo: “Saibam quantos este Publico Instrumento de papel de
Alforria e Liberdade ou como em Direito melhor nome tenha...” (PAPEL de alforria e liberdade de Maria,
crioula, apresentada por Maria Ribeira, de Nação Mina, em Vila Rica, 5 jun 1802.
68
I
se recuperar aqui os dados de todas as cartas preservadas nos arquivos cartorários dos
Termos de Mariana e Ouro Preto para o período compreendido entre 1808 e 1870, num total
de 1.874 papéis de liberdade. Através do emprego de métodos quantitativos, pretendeu-se
estabelecer o ritmo das manumissões ao longo dos anos, considerando, sempre que
possível, as variações determinadas pelas mudanças conjunturais, com destaque para o
período de cessação do tráfico internacional atlântico a partir de 1850.
Ao longo de todo o período em análise (1808-1870), houve predomínio do registro
de alforrias femininas. A abolição do tráfico, em 1850, não alterou essa situação. Assim, se
entre 1808 e 1850, em um contexto em que eram altas as taxas de masculinidade, 55,3%
dos alforriados eram mulheres, nos anos intermediários, entre 1851 e 1870, essa
porcentagem não apresentava variação significativa, ficando em 55,6%.14
As considerações feitas não levam em conta, no entanto, a ativa migração que se
verificaria entre o segmento de forros de Minas Gerais, num movimento que privilegiava a
população masculina.15 Não há como se certificar se, na opção pelo registro da carta de
alforria, o liberto do sexo masculino o faria no local onde servira como escravo, ou poderia
fazê-lo na região para a qual se deslocara em busca de melhores condições de
sobrevivência. Porém, há que se levar em conta também que a intensa mobilização de
população registrada para as áreas mineradoras tenderia a se arrefecer, tomando-se um
fenômeno adstrito ao século XVIII e aos anos iniciais dos Oitocentos, prevalecendo uma
certa sedentariedade, sobretudo com a afirmação das atividades agropastoris. A
predominância das mulheres entre os forros não deixou de ser um dado observável até
mesmo após a estabilização da economia, caracterizada, inclusive, para a Comarca de Ouro
Preto, como mercantil de subsistência.
Ouro Preto, Arquivo da Casa do Pilar, livro 175, folha 68); ou “Saibam quantos este Publico Instrumento de
lançamento de carta de liberdade ou como em Direito melhor nome tenha...” (CARTA de liberdade
apresentada por Mathias Peixoto de Sá, pardo, passada por Manoel Peixoto de Sá e outros herdeiros de D.
Joana Gertrudes de Campos, em Vila Rica, 28 maio 1804. Ouro Preto, Arquivo da Casa do Pilar, livro 176,
folha 1).
14. Nos limites deste trabalho, optei por não reproduzir, de forma pormenorizada, os dados processados a partir
das informações extraídas da documentação. Sobre o assunto, conferir minha tese de doutorado: As margens
da liberdade: práticas de alforria em Minas colonial eprovincial. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH,
2000.
15. “A região de minas era particularmente pouco propícia ao casamento, não só de escravos como também de
livres. O fluxo crescente e contínuo, até mesmo em inícios do século XIX, impedia o estabelecimento de
relações mais estáveis. Cidades ou vilas interioranas, portanto, também eram lugares de poucos casamentos
entre escravos, independente da região, mas com taxas nunca tão baixas quanto as portuárias e,
principalmente, mineradoras.” FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no
cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 325-6.
69
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
I. AS ALFORRIAS CONDICIONAIS
Uma das primeiras dificuldades enfrentada pelo estudioso do tema das manumissões
é exatamente a de classificar as diversas modalidades de alforrias condicionais que
emergem da documentação. Talvez pelo motivo de se definirem no âmbito privado das
relações escravistas, os termos que aparecem nos papéis de liberdade estão longe de
apresentarem um padrão único. Em outras palavras, pode-se afirmar que a compreensão que
os coevos deixaram transparecer na documentação sobre as diferentes condições a que
estivera submetida a maioria dos libertandos no caminho em direção à obtenção da alforria
está longe de ser unívoca.
Ainda que sujeitas aos prejuízos advindos da criação de categorias fixas, foram
delimitadas, dentre as fontes consultadas, quatro tipos de condicionalidade: as formas
parceladas de pagamento, denominadas no próprio documento como “coartação”; a
“prestação de serviços”; o pagamento feito à vista pelo próprio manumisso, designada como
“autopagamento”; o pagamento realizado “por terceiros” e a resultante de troca de cativos.
Há que ressaltar que, em muitos casos, as condições anteriormente especificadas poderiam
vir combinadas.
>
16. Sobre o tema ver: SCHWARTZ, Stuart. A manumissão dos escravos no Brasil colonial (Bahia, 1684- 1745).
Anais de História, Assis, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, ano VI, pp. 71-114.
17. A esse respeito ver: MELLO E SOUZA, Laura de. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século
XVIU. Belo Horizonte: Humanitas, 1999; PAIVA, Eduardo F. Escravos e libertos nas Minas Gerais do
séculoXVIII: estratégias de resistência através de testamentos. São Paulo: Annablume, 1995.
70
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS
18. Sobre os diversos tipos de alforria na província de Minas Gerais, ver: Gonçalves (2000: 200-8).
19. É o caso do Livro 8, onde se lê: “Este Livro Há de servir como de Notas do 2 o Tabelião para lançar papeis de
coartamentos, liberdade e outros quais. Mariana, 20 de julho de 1819”, 2 o Ofício, ACSM.
O termo aparece, na documentação, ora como “coartamento”, ora como “coartação”, ainda que o primeiro
seja mais comum.
20. O termo adotado aparece em vários papéis de manumissão, como o de Nicolau crioulo, que ficava forro “em
condição de prestar serviços por tempo de dois anos”. Papel de liberdade passado por Ana Rosa de São
José. Livro 10, folha 67,2o Ofício. São José de Barra Longa, ACSM, 21 set 1832.
21. Essa modalidade de alforria se aproxima bastante daquela que predominou, no século XIX, nas áreas urbanas
do estado norte-americano de Maryland, sobretudo em Baltimore, onde era designada como “escravidão a
termo”. O curioso é que naquela região institui-se um movimentado mercado de forros a termo, o que não
parece ter se observado aqui. Cf. WHITMAN, Stephen. Diverse good causes: manumission and the
transformation of urban slavery. Social Science History, Minnesota, Duke University Press, v. 19, n. 3, 1995,
p. 351.of urban slavery. Social Science History, Minnesota, Duke University Press, v. 19, n. 3, 1995, p. 351.
71
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
\
>
22. Situação semelhante é revelada pela carta de liberdade do escravo Manoel de Nação Benguela, na qual a
proprietária declara: “Recebi certa quantia e suposto não chegue todo o importe de seu valor contudo por
minha morte o deixo forro sendo porém como digo obrigado a me servir enquanto eu viva for”. Carta de
alforria passada por Ana Maria da Silva. Livro 7, folha 37v., 2 o Ofício. Mariana, 31 jul 1816, ACSM.
23. Relatório que à Assembléia Legislativa Provincial de Minas Gerais apresentou no ato de abertura de sessão ordinária
de 1870 o vice-presidente Dr. Agostinho José Ferreira Bretãs. Ouro Preto: Tipografia Provincial, 1870, pp. 14-5.
72
P RÁTICAS DE A LF ORRIAS NAS A MÉRICAS
73
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
>
24. As alforrias resultantes da troca de cativos, para efeito de quantificação, foram registradas juntamente com as
alforrias por autocompra. Sem dúvida, essa categoria não contempla, satisfatoriamente, aqueles casos em que
a manumissão é concedida para que o liberto assuma o lugar de alguém recrutado pelo serviço militar. Sobre
o tema ver: GONÇALVES, Andréa Lisly. “Alforrias resultantes da troca de cativos (Comarca de Ouro Preto,
século XIX)”, in GONÇALVES, Andréa Lisly & POLITO, Ronald (orgs.). Termo de Mariana: história e
documentação. Ouro Preto: UFOP, v. 2, pp. 47-55.
25. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte agrário e o Império (1871-1889). Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 33.
74
I
população.26 No caso específico de Minas Gerais, a sua “inaptidão” para o serviço militar
deve ter limitado ainda mais o número de situações deste tipo, ainda que alguns casos,
como o de Marciano, se encontrem registrados.
REFLEXÕES FINAIS
26. PRADO JR. Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1979. De acordo com Maria
Cristina Cortez Wissenbach: “Se ao longo do período colonial o recrutamento para tropas constituiu o maior
espantalho de populações livres, a fuga ao alistamento intensificou-se na sociedade do Império (...).
Associado à truculência dos agentes recrutadores, para os quais ‘não havia hora ou lugar que lhes fosse
defeso’, esse temor levava, ao menor sinal, a população a desertar os lugares habitados, indo refugiar-se no
mato. Também nas cidades encontravam-se os mesmos indícios”. Cf. WISSENBACH, Maria Cristina C.
Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850/1888). São Paulo: Hucitec/Programa de
História Social-USP, 1998, p. 57.
75
\
>
i.
CATIVOS DA ARTE, ARTÍFICES DA LIBERDADE:
A PARTICIPAÇÃO DE ESCRAVOS ESPECIALIZADOS NO BARROCO MINEIRO
78
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE
2. BOSCH1, Caio César. O barroco mineiro: artes e trabalho. São Paulo: Brasiliense, 1988. pp. 15-6; ARAÚJO,
Jeaneth Xavier. Para a decência do culto de Deus: artes e ofícios na Vila Rica setecentista. Belo Horizonte:
UFMG/FAFICH, Dissertação de Mestrado, 2003, pp. 7-8. Nesse mesmo texto, nas páginas 137-8, a autora
afirma que os pintores “(...) classicamente não se enquadrariam dentro dos chamados ofícios mecânicos, pois
pertenceriam à categoria dos profissionais liberais”.
3. Gramática, dialética, retórica, geometria, aritmética, astronomia e música
4. MENESES, José Newton Coelho. Artes fabris e serviços banais: ofícios mecânicos e as câmaras no final do Antigo
Regime (Minas Gerais e Lisboa, 1750-1808). Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 2003, p. 243.
5. VASCONCELLOS, Salomão de. Ofícios mecânicos em Vila Rica durante o século XVIII. Revista do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 4, 1940, p. 331. Após vasculhar todos os códices
da Câmara de Vila Rica produzidos entre 1711 -1830, o pesquisador encontrou apenas uma carta de exame de
pintor.
79
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
6. Serge Gruzinski discute a possibjjiâãde de um ambiente de trabalho mestiço elaborar criações não- mestiças,
que pouco contêm dos vários, universos culturais mobilizados para sua confecção. Cf. GRUZINSKI, Serge.
“Os índios construtoihes de catedrais: mestiçagens, trabalho e produção na Cidade do México (1550-1600)”,
in PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço: maneiras de
pensarjJformas de viver (séculos XVI a XIX). São Paulo: Annablume/ PPGH/UFMG, 2002.
7. Mary Del Priore apresenta a possibilidade de objetos culturais agirem como mediadores. Cf. DEL PRIORE,
Mary Lucy. “Salvajes en la iglesia: el friso de Saint-Jacques de Dieppe, un caso de bricolage cultural”, in
ARES QUEIJA, B. & GRUZINSKI, Serge (coords.). Entre dos mundos: fronteras culturales e agentes mediadores.
Sevilha, 1997, pp. 386-7.
8. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001,
p. 91.
9. RAMOS, Adriano Reis. Francisco Vieira Servas, o grande artista português do barroco mineiro. Telas e artes,
Belo Horizonte, v. 1, n. 7, 1998, p. 27.
80
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE
Seria, então, fitando detalhes menos evidentes das peças de arte religiosa que
encontraríamos traços culturais dos universos negro e mulato?
Em interessante estudo sobre o desenho subjacente às pinturas de Manoel da Costa
Ataíde, acessado por modernas técnicas fotográficas, Beatriz Coelho detectou, na têmpera
do forro da capela de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, partes inteiras do risco
bastante distintas do estilo solto do marianense, caracterizadas por dureza atribuível a seus
auxiliares.11 Sabe-se que Ataíde ensinava o ofício de pintura a seus escravos, e contava com
a ajuda deles nas empreitadas. Em 1804, o pintor tinha Pedro Angola, Manoel e Ambrósio
como auxiliares de pintura. Em 1813, seus cativos eram Pedro Angola, Maria Crioula e
Victorino Crioulo (Campos, 2002:255-7).12
Aleijadinho também possuía escravos na sua equipe de trabalho, encarregada,
segundo Myriam Ribeiro, da execução de peças inteiras de escultura, sobretudo para o
conjunto de Congonhas, onde as 64 estátuas dos Passos da Paixão foram realizadas em
apenas três anos e meio durante estágio já avançado da doença do mestre. Somente duas
imagens do Passo da Prisão, Cristo e São Pedro, podem ser consideradas
10. CAMPOS, Adalgisa Arantes. “Vida cotidiana e produção artística de pintores leigos nas Minas Gerais: José
Gervásio de Souza Lobo, Manoel Ribeiro Rosa e Manoel da Costa Ataíde”, in Paiva & Anastásia (2002:
257-8).
11. COELHO, Beatriz Ramos de Vasconcellos. O desenho subjacente na pintura de Manoel da Costa Ataíde.
Barroco, Belo Horizonte, n. 17, 1993-96, p. 238.
12. De acordo com o texto, o pintor deve ter tido dois escravos, um após o outro, angolas de nome Pedro, pois,
em 1804, o mencionado Pedro Angola teria 45 anos, e, em 1813, 44. Ou então, a idade de Pedro em 1813
era de 54 anos. Tendo a acreditar na segunda hipótese.
81
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
totalmente feitas pelo célebre mulato. Da mesma forma, dentre vários outros exemplos, os
profetas Jeremias e Baruch tiveram apenas as cabeças esculpidas por Antônio Francisco
Lisboa.13
Para realizarem desenhos, esculturas, partes periféricas das obras, os escravos teriam
que receber ensinamentos, orientações, saber interpretar o esboço feito por mestres, saber
transpor uma imagem de certa gravura para a escultura ou pintura. É possível que
manuseassem livros ilustrados, em latim, e mesmo tratados de pintura e arquitetura. Os
artífices senhores de escravos possuíam livros pertinentes às suas profissões. No inventário
dos bens de Ataíde, por exemplo, arrolou-se “Hum d° [livro] segredo das Artes dous
tomos”.14 Manuel Francisco de Araújo, carpinteiro e mestre de obras, mencionou em seu
testamento “um livro de arquitetura que me custou nove mil réis”. 15 Francisco Xavier
Carneiro, pintor pardo de Mariana, responsável por obras como os forros das capelas das
ordens terceiras do Carmo e de São Francisco de Mariana, possuía vários livros, dentre eles:
“as ciências das sombras relativas ao dezenho, segredo necessário para as artes da
pintura”.16 João Nepomuceno Correia e Castro, pintor do interior do Santuário do Senhor
Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, refere-se aos livros que tinha junto com “tudo a
que pertence a meu oficio de pintor”.17 Não sabendo ler, o que deveria ser o mais comum,
os escravos podiam ouvir a leitura desses volumes, observar e atribuir sentido aos seus
desenhos e gravuras.
É preciso considerar a grande capacidade de aprendizado e adaptação desses pupilos
de cor e entrever os amálgamas culturais processados no transcurso das relações que
travaram com os novos ensinamentos. Não teriam esses intercursos culturais deixado
marcas nas peças artísticas? Sanar a questão é grande desafio, pretendido em estudos
vindouros, mas já, aqui, entrevisto.
Elucidar o trabalho dos escravos no dia^a-dia do fazer artístico e construtivo é algo
extremamente difícil, pois os registros textuais da época, nossas fontes, não tinham a menor
intenção em descrevê-lo. Oferecem, no entanto, pistas. Na primeira metade do século
XVIII, o ofíclàl mecânico Antônio Pereira de Souza associou-se a
13. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeipo de. Aleijadinho: passos e profetas. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002, pp.
38 e 60.
14. Inventário dos bens de Manoel da Costa Ataíde, in MENEZES, Ivo Porto. Manoel da Costa Ataíde. Belo
Horizonte: UFMG, 1965, p. 140.
15. Testamento de Manuel Francisco de Araújo. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de
Janeiro, n. 18, 1978, p. 100.
16. Inventário de Francisco Xavier Carneiro, 1840. Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM), códice
59, auto 1346, 2o ofício, fls. 4.
17. Testamento de João Nepomuceno Correia e Castro, 1794. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana
(AEAM), Testamento 619, fls. 4
82
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE
Manoel Barbosa de Mello para edificarem a capela de Bento Rodrigues, termo da Vila do
Ribeirão do Carmo. Buscando ressarcimento dos prejuízos advindos do não cumprimento
de Antônio Pereira de sua parte no trato, Manoel Barbosa recorreu à Justiça, daí
conhecermos a história, pelo libelo cível. Juntos, receberiam 1.155 oitavas de ouro pela
empreitada, pagas em três vezes. Ficou acertado que o oficial entraria com seus
conhecimentos e compraria, para auxiliá-lo, dois escravos especializados “hú negro
serrador e hú mulato carpinteiro”.18 Manoel, por sua vez, deveria disponibilizar seus
escravos e fornecer as telhas que faria no seu sítio. Acusava seu sócio de não ter adquirido
os cativos e nem ter comparecido regularmente no canteiro, o que foi endossado pelas
testemunhas “sendo esta muitas vezes a causa de os negros de A. não terem quem os
guiasse para trabalharem” e “se retirava outra vez o A. para a roça com os seus escravos
perdendo nesta forma os serviços delles”. 19
Percebe-se a importância dos escravos para os profissionais da construção. Não os
possuindo, Antônio Pereira precisou unir-se com o dono de um sítio, proprietário mais
abastado. Sozinho, também, não gerenciaria com satisfação os negros de Manoel,
acostumados aos serviços rurais. Compraria, portanto, escravos que desempenhariam
tarefas restritas e orientariam os leigos. A circunstância revela a existência de mercado
especial de cativos oficiais, diferentes dos demais em capacidades e preços. As “peças”
poderiam chegar em Minas Gerais com as aptidões já reconhecidas, adquiridas em África
ou outros locais por onde passaram antes de cortarem o sertão. Ofertadas, tinham
compradores específicos, interessados em mais do que simples força muscular. Estudos
recentes desvendam lógicas subjacentes ao tráfico negreiro, que passa a ser visto, em
alguns casos, como fornecedor de mão- de-obra mais ou menos especializada. Eduardo
França Paiva atribui a preferência dos mineradores pelos escravos da Mina - oriundos dessa
região ou embarcados em algum dos seus portos - ao reconhecimento do know-how mineiro
e metalúrgico desses negros.20 Abre-se a possibilidade de demarcarmos predomínios
étnicos entre os cativos artistas e oficiais decorrentes, talvez, de seus conhecimentos.
Angolas ressaltam-se, após um olhar inicial, mas estudos mais sistemáticos, quantitativos,
são indispensáveis para prosseguirmos em linha interpretativatão instigante.
18. Manoel Barbosa de Mello. Libello cível em que diz como A. M.el Barbosa de Mello contra Ant.o Pr.a de
Souza reo p.lo melhor modo q. em dir.to haja lugar. Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, n. 3,
1954, p. 81.
19. A. é o autor da ação. Cf. Anuário (1954: 84-5).
20. PAIVA, Eduardo França. “Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no novo
mundo”, in Paiva & Anastásia (2002: 187-8).
83
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
21. Libelo cível em que foi autor o alferes Manoel da Costa Ataíde, 1826. ACSM, códice 239, auto 5972, 2 o
ofício, fls. 42f.
84
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE
22. Testamento de Manuel Francisco de Araújo. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de
Janeiro, n. 18, 1978, pp. 100-3.
85
■
23. Testamento de Francisco Vieira Servas. Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, n. 4, 1955-1957, p.
43.
86
C ATIVOS DA A RTE , A RTÍFIC ES DA L IBER DADE
história. E com essa bagagem realocou-se, em nova condição, no mercado artístico mineiro.
Antonio, escravo pintor do já referido marianense Francisco Xavier Carneiro, foi
coartado em testamento por 300$000, valor considerável, proporcional a sua especialidade.
Caso pagasse a quantia em quatro anos, a testamenteira de Xavier Carneiro daria-lhe
50$000 de desconto. O artista possuía outros escravos, como Francisco Angola e Joaquim
Benguella, que não foram agraciados da mesma forma. Somente Maria, escrava doméstica,
foi alforriada no testamento.24
Ataíde, em testamento, deixou Pedro e Maria forros. 25 Seria o Pedro Angola que o
acompanhou durante boa parte de sua vida, seu auxiliar de pintura? Provável, mas difícil
afirmar, uma vez que o inventariante refere-se a ele como nação mirfumba.
O pintor bragantino José Soares de Araújo, responsável por várias pinturas na
Comarca do Serro do Frio, como as que decoram a capela da Ordem Terceira do Carmo de
Diamantina, declarou em testamento a posse de 26 escravos de variadas nações: cassonge,
rebolo, mina, benguela, congo, angola, cabundongo entre outras. O mestre devia dividir
seus escravos entre as várias atividades a que se dedicava: pintura, lavras e sítios. Apenas
cinco escravos não eram africanos, dentre eles o mulato Vidal, pintor e dourador. Soares de
Araújo dedicou-se a ensinar sua arte ao africano João, mencionado como “João cabundongo
com princípeo de pintor”. No testamento e codicilo, alforriou e coartou vários escravos,
dentre eles João cabundongo, provavelmente seu aprendiz, o que é difícil afirmar, pois a
fonte aponta outro escravo chamado de João cabundongo “com hum calombinho na
testa”.26
Dentre os grandes pintores atuantes em Minas atualmente em minha mira, exceção
parece ter sido João Nepomuceno Correia e Castro, sem aprendizes cativos mencionados
em testamento. Em testamento, o pintor elencou quatro escravos: Pedro Angola, Domingos
Angola, Juliana Angola e Lucinda crioula, as duas últimas de sua mulher. Nada afirmou
sobre ter-lhes ensinado algo referente à pintura e nem os coartou ou alforriou. Por outro
lado, seus aprendizes não foram identificados como escravos: Joaquim da Natividade, a
quem morreu devendo 30 e tantas oitavas; Francisco de Paula e Bemardino de Senna, aos
quais deixou riscos, estampas e debuxos.27
24. Testamento de Francisco Xavier Carneiro, 1838. ACSM, códice 288, auto 5244, I o ofício, fls 1 v.
25. Testamento de Manoel da Costa Ataíde, in Menezes (1965: 134).
26. Testamento do Guarda-mor José Soares de Araújo, 1799. Arquivo da Biblioteca Antonio Torres, maço 36, n.
377, Io ofício, fls. 4v e 6f.
Dentre as testemunhas que assinaram a aprovação do testamento, todas livres maiores de 14 anos, consta um
certo Francisco de Paula Oliveira e Senna, talvez o aprendiz do pintor que recebeu as estampas. É possível
que ele tivesse algum grau de parentesco com o outro aprendiz de Nepomuceno, Bemadino de Senna, que,
inclusive, passou recibo dos legados para a testamenteira. Testamento de João Nepomuceno Correia e
Castro, 1794. AEAM, n. 618. fls. 4f, 4v, 5v e 9f.
87
FT
88
O BRAÇO ARMADO DO SENHOR: RECURSOS E ORIENTAÇÕES VALORATIVAS
NAS RELAÇÕES SOCIAIS ESCRAVISTAS EM MINAS GERAIS NA PRIMEIRA METADE
DO SÉCULO XVIII
A PROPOSTA TEÓRICO-METODOLÓGICA
O texto que se segue teve por base o estudo dos 154 indivíduos que tomaram parte,
quer como revoltosos, quer não, dos acontecimentos relativos à Revolta de Vila Rica,
ocorrida em meados de 1720. Da análise de tais sujeitos, deparei-me com situações nas
quais as relações sociais inerentes ao mundo escravista do Brasil colonial ganhavam
contornos inusitados. De saída, chamava a atenção um fato aparentemente sem maiores
implicações, a saber: por vezes, o escravo arriscava seu pescoço em benefício de seu
senhor. Há de se destacar que mesmo indivíduos da monta de um Pascoal da Silva
Guimarães - principal líder da revolta e um dos homens mais poderosos de Vila Rica
naqueles tempos -, sem o apoio de seus negros não teria muito como fazer valer sua
vontade e, por conseguinte, seu poder. Por bem, sendo Pascoal da Silva revoltoso, assim
também o eram seus escravos. Logo, se ele caísse, levaria consigo sua escravaria. Entendo
que atuando ao lado de Pascoal da Silva na revolta, seus escravos estavam, de certa forma,
lutando pelas suas próprias vidas. Para além da busca pela manutenção de suas existências
terrenas, apenas o capricho de seu dono é que não era razão suficiente para fazê-los
arriscarem suas peles. Afinal, antes de os interesses pessoais de Pascoal da Silva o levar a
formular, e pôr em prática, suas estratégias revoltosas, a encarnação de seus escravos não
estava tão a perigo assim. Deduz-se, pois, que algo mais esses cativos deveriam obter para
expor suas vidas em benefício de seu senhor. Trabalhar essa questão é o objetivo principal
do presente capítulo.
Parte-se do pressuposto de que por detrás de relações sociais como a acima relatada
havia, na grande maioria das vezes, uma sutil e refinada negociação entre senhor e escravo -
negociação essa que, por via de regra, regia os rumos dessas mesmas relações. Aqui,
percebo os cativos como sujeitos dotados de um conjunto de valores e de orientações ao
qual se voltavam quando por tomar esta ou aquela decisão. Nesses termos, vale uma ou
duas palavras de acerca de Fredrik Barth.
Conforme apontado por João Fragoso, em Barth a sociedade é considerada ao
mesmo tempo fragmentada e aberta. Nas palavras do autor:
2. FRAGOSO, João Luis Ribeiro. À espera das frotas: a micro-história tapuia e a nobreza principal da terra (Rio de
Janeiro, 1600-1750). Rio.de Janeiro: PPGHIS, Tese de Professor titular, 2005, p. 24.
3. ROSENTAL, Paul André. “Construir o ‘macro’ pelo ‘micro’: Fredrik Barth e a ‘microstoria’”, in REVEL,
Jaques (org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1998, passim; Cf.
também: LIMA FILHO, Henrique Espada Rodrigues. Microstoria: escalas, indícios e singularidades. Campinas:
Unicamp, Tese de Doutorado, 1999, p. 163.
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR
em conta as interações entre os indivíduos, uma vez que por elas perpassam os seguintes
aspectos: 1) a ação de cada indivíduo está sujeita à situação que se lhe apresenta, assim
como aos recursos materiais que detém; 2) cada transação traz consigo uma incerteza, uma
vez que o resultado da ação depende da reação do outro indivíduo.
Do acima exposto, depreende-se que a idéia de estratégia está, por conseguinte,
profundamente relacionada à idéia de racionalidade. Desse modo, Fredrik Barth “faz do
indivíduo um ator”, capaz de realizar escolhas e de tomar decisões segundo seus recursos.
Essas escolhas dependem, dentre outras coisas, das previsões das ações e reações de outros
atores sociais dentro de uma “margem de manobra” que delimita um “universo de
possíveis”. Assim, e procurando fugir de uma análise determinista, a noção de estratégia
traz consigo um campo de atuação limitado e nem sempre eficaz para o indivíduo, uma vez
que este pode “percebê-lo ou avaliá-lo incorretamente - ou simplesmente, não utilizá-lo”
(Rosental, 1998). As várias estratégias são, então, traçadas ou abandonadas por parecerem
ao sujeito satisfatórias ou insatisfatórias, ou seja, o indivíduo espera que o valor a ser ganho
seja superior ao daquele a ser perdido.4
Trabalhando com tal modelo de análise para a sociedade do Rio de Janeiro
seiscentista, João Fragoso percebe sua validade destacando a variedade de grupos
compositores da, e atuantes na, sociedade em questão. Dentre os quais, cita o autor: 1) a
nobreza da terra - influenciada pelo Antigo Regime e sua concepção corporativa da
sociedade; 2) os negros, pardos e forros - “segmentos sociais portadores de visões sobre
parentesco e religiosidade, vindos dos reinos do Golfo da Guiné e da África Centro-
Ocidental”; 3) demais grupos (Fragoso, 2005:25). Guardadas as devidas ressalvas, creio que
o mesmo pode ser dito e aplicado no que concerne à sociedade mineira colonial.
A PERCEPÇÃO PRÁTICA
4. BARTH, Fredrik. Process andform in social life: selected essays of Fredrik Barth. London: Routledge & Kegan
Paul, 1981, vol. 1. Por valor entende-se “um padrão detido pelos atores que afeta seus comportamentos por
orientar suas escolhas (...) refere-se a um padrão de avaliação para o que as pessoas querem ter e ser” (pp. 91-
2, grifos do autor).
91
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Seguem alguns exemplos nos quais o braço armado do senhor atuava como “agentes
essenciais nos jogos políticos”.
Em 02 de julho de 1711, já tendo recebido de D. Antônio de Albuquerque -
governador da capitania entre 1709 e 1713 - a superintendência do distrito de Vila Rica,
Pascoal da Silva Guimarães foi provido, pelo mesmo governador, no posto de mestre-de-
campo do terço de auxiliares do mesmo distrito. Lê-se na carta patente que Pascoal da Silva
estava servmdo no posto de
4
I
sargento-mor das ordenánças do distrito das Minas Gerais do
Ouro Preto com satisfação motivos que me obrigaram [ao
governador] a provê-lo no mesmo posto quando entrei nestas
Minas a sossegá-las, encarregando-o juntamente da
superintendência e administração da justiça do dito distrito
5. Cf. também: KELMER MATH1AS, Carlos Leonardo. Jogos de interesses e estratégias de ação no contexto da
revolta mineira de Vila Rica (c. 1709-c. 1736). Rio de Janeiro: UFRJ/PPGH3S, Dissertação de Mestrado, 2005a.
92
r O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR
6. Patente passada a Pascoal da Silva Guimarães do posto de mestre-de-campo do terço auxiliar do distrito
das Minas Gerais, 02 jul 1711. APM, SC 07, fls. 122-122v.
7. FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de bandeirantes e sertanistas do Brasil. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989, pp. 195-6.
8. Carta de sesmaria passada a Pedro da Rocha Gandavo, 23 maio 1711. APM, SC 09, fls. 103-103v., Para os
oficiais da comarca da Vila do Carmo, s/d. APM, SC 09, fls. 52-52v. e Catálogo de sesmaria. Revista do
Arquivo Público Mineiro, v. 1, 1988.
9. Carta patente passada a Pedro da Rocha Gandavo, 20 jan 1715. APM, SC 09, fls. 168-168v.
10. Carta patente passada a Pedro da Rocha Gandavo, 18 fev 1717. APM, SC 09, fls. 266v.-267.
11. Patente passada ao sargento-mor Rafael da Silva e Souza do terço dos auxiliares do Ribeirão do Carmo, 06
jan 1711. APM, SC 07, fl. 116v.
93
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
a carta de confirmação da referida patente, na qual deu conta que Rafael da Silva serviu,
durante mais de dois anos, no posto de capitão de infantaria da ordenança do mesmo
distrito.12 Pela feita da invasão francesa à cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em
1711, apresentou-se ao governador com duzentos escravos armados e pagos às suas
custas.13 De próprio punho, Rafael da Silva deu conta que “ele por seus importantes
serviços e capacidade ficou encarregado do governo das Minas pelo governador D. Antônio
de Albuquerque em que o dito baixou socorro ao Rio de Janeiro”, servindo com patente de
coronel no distrito do Ribeirão do Carmo, mas com ocupação de capitão-mor.14
José Luís Borges Pinto recebeu, possivelmente antes de setembro de 1711, uma carta
patente de confirmação do posto de sargento-mor do terço auxiliar dos distritos do Rio das
Velhas e Sabará, o qual exercia havia mais de dois anos “com boa satisfação, cuidado e
desinteresse em tudo o que se fazia do serviço do dito governador como bem o mostrou em
prisões que lhe mandei fazer, confisco de comboios e de fazendas”. Ainda na referida carta,
D. Antônio de Albuquerque deu conta que José Luís servia nas Minas do Ouro com
“bastante zelo e despesa de sua fazenda”. 15 Em 02 de janeiro de 1714, D. Brás Baltasar deu
conta que o sargento-mor dos auxiliares José Borges Pinto socorreu a praça do Rio de
Janeiro em 1711 com “seus escravos armados e assim na marcha como em todo o tempo
que agente de guerra se deteve naquela cidade procedeu sempre com grande valor e acerto e
executando todas as ordens que lhe foram dadas com muito cuidado e atividade”. Relatou
ainda que José Borges se ofereceu voluntariamente para o confisco dos comboios acima
referidos e, tendo andado pela estrada da Bahia com seus escravos armados durante dezoito
dias,
12. Carta patente (Ia e 2a vias) de Rafael da Silva Souza provido no posto de sargento-mor auxiliar da Ordenança
do distrito do Ribeirão do Carmo. Lisboa, 19 mar 1712. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. l,doc. 31. J
13. VASCONCELOS, Diogo de. História antiga das Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, p. 296. É
possível que o autor tenha exagerado um pouco no número de escravos apresentados por Rafael da Silva a
Dom Antônio de Albuquerque em 1711.
14. Requerimento de Rafael da Silva e Souza, capitão-mor em Vila Rica de Ouro Preto encarregado do governo
das Minas na ausência do governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, solicitando para
continuar a governar seu distrito na ausência do governador, 10 jul 1727. AHU, Cons. Ultra. - Brasil/MQ cx.
11, doc. 15.
15. Carta patente passada a José Luís Borges do posto de sargento mor do terço auxiliar dos distritos do Rio das
Velhas e Sabará, s/d. APM, SC 08, fl. 13.
94
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR
Parece-me bastante descabida a idéia de que José Luís e seus escravos sujeitar- se-
iam a passar dezoito dias de perrengue - às custas de sua fazenda e vida - somente para
servir aos interesses de El-Rei sem, mesmo que extra-oficialmente, nada obter em troca. Ao
se oferecer voluntariamente para o confisco dos comboios e fazendas que passavam pela
estrada da Bahia, José Luís estabelecia uma estratégia de ação esperando que o valor a ser
ganho fosse superior ao ser pedido. Malgrado o fato de não me ter sido possível encontrar
nenhum documento que tratasse abertamente de tal diligência - que me permitisse, portanto,
obter algum vestígio de um possível ganho material aferido ou por José Luís, ou por seus
escravos José Luís obteve a patente de coronel das tropas de cavalaria de ordenança, posto
que lhe conferia, literalmente, prerrogativas de mando e, consecutivamente, contribuía para
reforçar seu estatuto de nobreza.
Contudo, a questão toma-se mais sofisticada se nos perguntarmos o porquê dos
escravos de José Luís não terem se rebelado e fugido com as “trinta mil oitavas de ouro”
volvidas à Real Fazenda, uma vez que, oficialmente, somente José Luís foi recompensado
por agir “com boa satisfação, cuidado e desinteresse em tudo o que se fazia do serviço do
dito governador”.17 Tal problema matiza, acredito, dois pontos complementares, quais
sejam: 1) não foi apreendida somente a quantia de trinta mil oitavas de ouro; antes, esse
montante foi apenas a parte que coube à Real Fazenda; 2) os escravos de José Luís tiveram
ou alguma participação no restante do valor apreendido, ou algum outro tipo de ganho, o
qual, quando medido a uma possível ação contra José Luís, fosse por eles tido como mais
vantajoso. Não cabe aqui ficar especulando sobre o que se passou nos dezoito dias de
diligência, apenas ressaltar o refinado grau de negociação que envolvia não apenas as
relações entre as autoridades régias e a elite local, mas também entre essa elite e aqueles
que contribuíam para que a mesma fosse reconhecida enquanto tal. Para além disso, sugere
recursos e orientações valorativas de tais cativos no tomar esta ou aquela decisão.
16. Carta patente passada a José Borges Pinto, 02 jan 1714. APM, SC 09, fls. 93v.-94.
17. Destaco que 30 mil oitavas de ouro valia 36:000$000 contos de réis, um valor verdadeiramente assombroso
para ter sido obtido através do confisco de mercadorias em apenas 18 dias. Tal quantia pode estar, talvez,
comprometida.
95
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Antônio Corrêa Sardinha “se houve com conhecido zelo e boa satisfação” em 1711,
empregando-se na diligência com “vinte escravos seus armados”, tudo, como por via de
regra ocorria às custas de sua fazenda. 18 Meses antes da realização da diligência, Antônio
Correa fora servido, além da mercê do posto de capitão dos auxiliares do terço do distrito do
Ribeirão,19 com meia légua de terra em quadrada em um sítio “adiante de Catas Altas”, em
cuja terra empregara-se no fabrico de cana.20 Em 02 de fevereiro de 1714 obteve, do então
governador D. Brás Baltasar, carta patente de capitão dos auxiliares de uma companhia
levantada no distrito do Serro do Frio. 21 Em 24 de julho de 1717, “tendo consideração ao
[seu] merecimento, nobreza e capacidade”, o mesmo governador fez dele sargento-mor das
ordenanças do distrito de Vila do Carmo.22 Cinco meses antes, em 26 de fevereiro de 1717,
D. Brás Baltasar concedia a Antônio Correa um punhado de terra em sesmaria em um “sítio
adiante das Catas Altas”.23
Desde 1709, Domingos Nunes Neto servia nas Minas do Ouro, tendo galgado os
postos de alferes de uma companhia da ordenança do distrito de Vila do Carmo e capitão
dos arraiais da Passagem. Em 1715, utilizou escravos seus armados para desempenhar o
cargo de cobrador dos Reais Quintos.24
Um fato digno de nota passou-se com o sargento-mor LuizTenório de Molina. Um
tal Gonçalo Nunes de Souza emprestou a quantia de 810 oitavas de ouro (972$000 réis) a
um outro tal Francisco Ferreira de Queirós, que, como algumas vezes ocorria, não pagou a
quantia devida. Não se sabe por que, o sargento-mor Tenório de Molina foi encarregado de
cobrar a referida dívida, cuja diligência concluiu até bem demais. Tenório de Molina enviou
dezoito escravos seus armados e mais o alferes de ordenança Francisco Ferreira Izidro 25 à
residência de Ferreira de Queirós para cobrar a dívida. As 810 oitavas devidas
transformaram-se em 1.130 (1:356$000 réis). Uma breve incursão na matemática demonstra
que 320 oitavas de ouro (384$000 réis) foram cobradas a mais. Afora o espólio sofrido,
Francisco Ferreira de Queirós ainda foi
18. Carta patente passada a Antônio Correa Sardinha, 12 jan 1718. APM, SC 12, fl. 29.
19. Patente passada a Antônio Correa Sárdinha do posto de capitão dos auxiliares do terço do distrito do
Ribeirão. 06 jul 1711, APM, SC 07, fls. 118-118v.
20. Carta de sesmaria passada ao capitão Antônio Correa Sardinha, 18 abr 1711. APM, SC 07, fls. 96- 96v., e
Catálogo de sesmaria. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 2, 1988.
21. Carta patente passada a Antônio Correa Sardinha, 02 fev 1714. APM, SC 09, fl. 81.
22. Carta patente passada a Antônio Correa Sardinha, 24 jul 1717. APM, SC 09, fl. 264v.
23. Catálogo de sesmaria. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 2, 1988.
24. Carta patente passada a Domingos Nunes Neto, 12 jan 1722. APM, SC 15, fls. 19-20.
25. Carta patente passada a Francisco Ferreira Izidro, 1718. Na lista de 1720, Izidro aparece como a patente de
sargento-mor engenheiro. APM, SC 12, fl. 44v.
96
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR
levado à cadeia de Vila Rica. Embora o caso tenha chegado ao conhecimento de D. pedro
de Almeida - governador da capitania entre 1717 e 1721 - este se manteve em silêncio
sobre o ocorrido.26
Casos como este ilustram, para além da relação entre o governador e os poderosos
locais, a negociação inerente as relações entre “iguais” - Tenório de Molina e Ferreira
Izidro, e o primeiro com Ferreira de Queirós - e entre os poderosos e seus escravos. Nada
posso afirmar de concreto para o caso acima relatado que confirme a negociação existente
entre “iguais” e seus escravos, cuja constatação não impede, por assim dizer, de realizar
conjecturas. Uma delas, a existência de uma relação de reciprocidade entre o sargento-mor
e Ferreira de Queirós para que o primeiro realizasse a cobrança em benefício do segundo -
o qual, de outro modo, poderia levar tempo demais para receber, ou até mesmo perder seu
ouro. O mesmo tipo de relação poderia existir entre o sargento-mor e o alferes, o qual
levaria parte das 320 oitavas por ter auxiliado na diligência. E, a mais relevante dentre elas,
a negociação que perpassava a relação entre o sargento-mor e seus escravos armados; esta
sim, a principal conjectura.
A mesma idéia sugerida para o caso de José Luis Borges Pinto pode ser aqui
também aludida, qual seja: os escravos do Luis Tenório de Molina tiveram participação na
divisão das 320 oitavas de ouro. Tal hipótese, caso aceita, corrobora com a noção segundo
a qual as prerrogativas de mando estão diretamente ligadas à posse de escravos
- desde que, evidentemente, o proprietário esteja em condição de armá-los às suas custas,
poder desviá-los de suas atividades principais para a realização de outras diligências, e,
evidentemente, tenha estabelecido uma via de reciprocidade com tais negros.
Em 10 de dezembro de 1722, D. Lourenço de Almeida - governador da capitania
entre 1721 e 1732 - deu conta dos bons serviços e procedimentos de Manuel da Costa
Pinheiro, observando que desde os tempos do governador D. Brás Baltasar Manuel da
Costa vinha executando todas as diligências das quais era encarregado com muito zelo e
distinção, conduzindo os quintos reais para o Rio de Janeiro e atuando com tamanho
destaque na repressão de Pitangui que se tornou a principal razão do sucesso da dita
repressão. Tudo às custas de seus escravos armados. 27 Creio ser inevitável não deixar de
nos perguntarmos do porquê de os tais escravos não terem matado Manuel da Costa e
fugido com os Reais Quintos! Ao invés disso,
26. Requerimento de Francisco Ferreira de Queirós preso na cadeia de Vila Rica do Ouro Preto, por se ter
queixado da opressão que lhe era feita pelo sargento-mor, Luiz Tinoco de Molina, solicitando a liberdade.
14 jan 1725. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MG, cx. 6, doc. 4.
27. Parecer do Conselho Ultramarino sobre os soldados presos e castigados nas Minas Gerais por ordem do
governador, D. Pedro de Almeida Portugal, 08 nov 1722. AHU, Cons. Ultra.-Brasil/MQ cx. 3, doc. 84.
97
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
fizeram a guarda dos mesmos. A complexidade da relação senhor-escravo somente pode ser
mais bem compreendida tendo em conta a sutil e refinada negociação inerente a ela. De
mais a mais, deve-se ter em conta os recursos e orientações valorativas desse braço armado,
“mãos e pés do senhor”, nas palavras caras a Antonil.
Por fim, gostaria de fazer uma ressalva acerca da percepção das alforrias, quer como
elemento de negociação entre senhor-escravo, quer enquanto parte integrante do conjunto
valorativo dos cativos.
Analisando as cartas de alforria e liberdade presentes nos dez primeiros livros de
notas do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana- livros estes que dão conta dos anos
compreendidos entre 1711 e 1719 (este último ano incompleto) -, encontrei um total de 295
cartas, representando 391 libertos. Tais cartas trazem consigo uma enorme gama de
informações acerca do mundo escravista colonial mineiro para o caso em questão. De tais
dados, interessa-me a data da alforria, o nome do senhor - ou melhor, ex-senhor seu oficio,
o nome do alforriado, seu sexo, idade, nação e o tipo de alforria - se gratuita, por serviços
ou paga (caso no qual tomei nota do valor da alforria) quem pagou pela manumissão,
origem do escravo, quaisquer tipos de cláusulas inerentes ao acesso à liberdade e
observações gerais.
Acerca de tal documentação, cabem algumas observações, dentre as quais: 1) trata-
se de um período de formação da sociedade mineira e, nesse sentido, a mão-de- obra do
negro era, além de bastante cara (o valor médio de um escravo transacionado em Minas
Gerais entre 1711 e 1717 batia na casa de 382$162 réis),28 fundamental; 2) o caráter
violento dessa sociedade (no período compreendido entre 1694 e 1736, a capitania de Minas
do Ouro vivenciou 46 levantes, sendo que 37 ocorreram entre 1694 e 1720) 29 fazia o braço
armado de seu senhor ainda mais imprescindível; 3) estou trabalhando com apenas 295
cartas de alforria e liberdade e, em função disso, pode apresentar um padrão que seja
característico apenas dessa segunda década do século XVIII, ou ainda pode ser
característico apenas da Comarca de Vila Rica; 4) por vezes, na carta de alforria não vinha
discriminada a idade do alforriado - procurei contornar tal problema torrfancta como
escravo adulto, afora os casos para os quais foram dadas as idades, aquele qüe obteve sua
alforria através da compra; nesses termos, estou partindo do pressuplosto de que para o
escravo comprar sua própria alforria ele deveria ser capaz dé guardar moeda, o que, por sua
vez, demanda uma idade mínima a partir da qual um escravo já pode ser tomado como
adulto. Feitas as devidas reservas, seguem os dados.
28. Cf. KELMER MATHIAS, Carlos Leonardo. Práticas mercantis de uma sociedade em formação: Minas Gerais
na segunda década do século XVIII. Rio de Janeiro: PPGHIS, 2006, texto inédito.
29. CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as Minas numa moenda e beber- Ihe o caldo
dourado” 1693 a 1737. São Paulo: USP/FFLCH, Tese de Doutorado, 2002, pp. 390-8.
98
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR
Dos 391 escravos alforriados entre 1711 e 1719,274 eram do sexo feminino e apenas
117 do masculino. Atendo-me a este último sexo - haja vista que o braço armado do senhor
era composto, ou pelo menos assim seria de se supor, apenas por homens - encontrei 96
crianças, ou seja, escravos de 10 dias (para citar o mais novo) até 13 anos. Para os demais
21 sem idade definida na documentação, seis foram alforriados gratuitamente, catorze
obtiveram sua liberdade pagando por ela e apenas um, de 20 anos, não me foi possível
detectar o motivo pelo qual fora alforriado. Caso se admita que todos esses 21 ex-escravos
fossem adultos, ou seja, de 15 a 40 anos, teríamos, para o total de escravos alforriados do
sexo masculino, a cifra de 18%. Tomando apenas os escravos alforriados gratuitamente em
função de seus serviços, ou dito de outro modo, aqueles agraciados com a liberdade em
função de terem, dentre outras coisas, arriscado a pele por seu senhor e, logo, essa liberdade
fazendo parte do universo valorativos desses cativos, tem-se a cifra de 3,5%. Nesses
termos, apenas 3,5% dos escravos alforriados do sexo masculino teriam sido beneficiados
pela negociação com seus senhores; na melhor das hipóteses, 18% deles.
Evidentemente, a coisa não é tão simples assim. Não devemos perder de vista as
ressalvas acima feitas para com a documentação por mim pesquisada. Infinidades de outras
variáveis podem, e devem, ser levadas em consideração na análise dos dados acima. A
título de exemplo, em 30 de julho de 1718, Vicente Jorge alforriou Miguel, escravo de
nação mina, pelo valor de 300$000 réis. O detalhe dessa carta consiste no fato de que foi a
esposa de Miguel quem pagou por ela. 30 Maria Correia, a esposa em questão, era preta
forra, ex-escrava do capitão Domingos Gonçalves Barbosa - o que aponta para a relação
entre plantéis de diferentes senhores -, e havia obtido sua alforria em 19 de julho de 1716
pagando, igualmente, os mesmo 300$000 réis. 31 Uma possível conjectura para análise de
alforrias para os cativos componentes do braço armado do senhor seria pensar a relação
inversa ao caso acima enunciado, ou seja, em função dos serviços prestados pelo marido a
escrava obtinha a alforria. Porém, isso não passa de uma conjectura quiçá impossível de ser
testada.
* * *
Em 18 de maio de 1715, a negra Rosa São Thomé, em função dos serviços por ela
prestados a João Francisco de Araújo, teve sua carta de liberdade registrada em cartório.
Uma dentre os 37 escravos alforriados no ano, Rosa não teria seu episódio contado caso
não fosse a condição imposta por seu ex-senhor para que a liberta
99
ir
gozasse de seu novo estatuto. Por ela, Rosa não poderia residir na mesma vila na qual
estivesse João Francisco, sob risco de ser re-escravizada e vendida pelo valor mais justo. 32
Termo muito semelhante foi imposto por Manoel Gouveia Soares na carta de liberdade
passada a Francisca Mina em 01 de julho de 1718. Manumissa gratuitamente em função dos
serviços por ela prestados, Francisca seria imediatamente restituída à sua qualidade de
cativa se permanecesse nas Minas enquanto por lá estivesse Manoel Gouveia. 33 Situação
mais delicada era a de Natália, alforriada em 18 de junho de 1715, também gratuitamente
em reconhecimento a seus serviços, pelo capitão Pedro de Almeida, sob a condição de
poder ser, a qualquer momento, reconduzida à escravidão se essa fosse a vontade de seu
benfeitor, o capitão Pedro de Almeida. 34 Ocorrências extremas como as acima relatadas -
em um caso, os ex-donos não queriam ver suas ex-escravas nem pintadas, e, noutro, o ex-
senhor poderia fazê-lo quando bem o desejasse -, indicam a complexidade inerente à
escravidão e reforçam a conclusão apontada por Stuart Schwartz, segundo a qual, “a
escravidão foi um sistema, e não um simples conjunto de relações econômicas”. 35
Outros casos corroboram ainda mais a assertiva acima. Ainda no ano de 1715, o
padre franciscano João Coelho alforriou Ana da Silva (gratuitamente) sob a cláusula de que
caso ela voltasse a servir a qualquer outro senhor, deveria ser imediatamente reconduzida ao
cativeiro sob as ordens dos padres franciscanos mais próximos da localidade na qual Ana se
encontrasse.36 Antônia, negra Mina alforriada por José Ribeiro mediante a prestação de
futuros serviços, deveria acompanhá-lo a qualquer parte “assim da América como do Reino
e não lhe faltando a obediência por que nesse caso a poderá obrigar a cativeiro ou vendê-
la”.37 Destino quase idêntico foi o de Lourença da Costa, negra Mina alforriada por serviço
em 08 de abril de 1717, sob a condição de servir a Manoel da Costa enquanto este
permanecesse na América.38 Mais indeterminado foi tempo de espera submetido à Ventura
e a Teodózia, ambas crianças e com três anos de idade. Não obstante terem obtido suas
liberdades gratuitamente junto a Manoel Coelho Melo, Ventura e Teodózia seriam
obrigadas a esperar, e talvez torcer, pela morte de Manoel para efetivamente serem
reconhecidas como libertas.39 Em tese,
>
32. ACSM, LN. 04, Io of., 18 maio 1715.
33. ASCM, LN. 08, Io of., 01 jul 1718.
34. ACSM, LN. 04, Io of., 18 jun 1715.
35. SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. São Paulo: Edusc, 2001, p. 218.
36. ASCM, LN. 04, Io of., 12 set 1715.
37. ASCM, LN. 04, Io of., 18 nov 1715.
38. ASCM, LN. 05, Io of., 08 abr 1717.
39. ASCM, LN. 09, Io of., 18 dez 1718.
100
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR
Afonsa e Olaia aguardariam menos tempo por tal reconhecimento. Foram alforriadas sob a
condição de servirem, respectivamente, por mais quatro e dois anos a seus senhores. 40
Percebe-se, pois, que uma carta de alforria nem sempre significava uma imediata
inclusão do manumisso nesse rol. Muito menos “isentava o liberto de todas as obrigações
para com o ex-senhor” (Schwartz, 2001: 212). Não apenas as ressalvas impostas nas cartas
de alforria detinham a faculdade de reinstituir o ex-cativo à sua antiga condição, como
também o poderiam fazer os herdeiros dos senhores que passaram a carta. Dessa forma,
40. ASCM, LN. 08, Io of., 29 abr 1718 e 27 maio 1718, respectivamente.
41. GONÇ AVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade: estudo sobre a prática das alforrias em Minas colonial e
provincial. São Paulo: USP/FFLCH, Tese de Doutorado, 1999, p. 167.
42. FLORENTINO, Manolo. Alforrias e etnicidade no Rio de Janeiro oitocentista. Topoi. Revista de História. Rio
de Janeiro, PPGHIS/UFRf/7 Letras, n. 5, set, 2002, p. 10.
101
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Uma das imagens mais precisas das relações estabelecidas entre senhor/escravo no
contexto da manumissão talvez tenha sido pintada por Ligia Bellini, autora cuja análise
buscou apresentar um cativo possuidor da ciência de “seduzir, tomar-se cúmplice dos
senhores, aproveitando oportunidades e locomovendo-se taticamente no sentido de tomar a
sua vida a melhor possível”. E ainda:
Apenas ressaltaria que estas relações se davam em proporções desiguais, sendo que,
evidentemente, o escravo estava em condições menos favoráveis do que seu senhor. Dessa
forma, várias estratégias foram empreendidas pelos cativos na busca pela suas
manumissões, dentre as quais o estabelecimento de laços de solidariedade, quer entre si
mesmos - como o casamento, por exemplo -, quer com outros senhores
- como as relações de compadrio.
Das 159 alforrias pagas no período em questão, 35 o foram por outras pessoas que
não o próprio manumisso. O peso da família pode ser atestado pelo fato de terem sido vinte
as cartas de liberdade pagas por membros consangüíneos. O destaque fica por conta da
participação feminina, responsável por dezessete pagamentos, quinze pela alforria de seus
filhos e dois de seus maridos. Já o homem agiu como pai em duas ocasiões e como irmão
em uma.44 Tais dados reforçam a capacidade feminina, em função de sua participação em
atividades mercantis, de acumular pecúlio 45 para, dentre outros destinos, a compra de sua
alforria ou a de algum parente seu. Essa característica pode ser plenamente constatada
observando-se o caso de Maria Correia, já citado anteriormente.
43. BELLINI, Lígia. “Por amor e por interesse: a relação senhor/escravo em cartas de alforria”, in REIS, João
José (org.). Escravidão e inversão da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p.
74. Sobre a refinada negociação entre senhor e escravo ver: Kelmer Mathias (2005a); KELMER
MATHIAS. As condições da governabilidade: um refinado jogo de interesses na América Lusa da primeira
metade do século XVIII. LPH - Revista de História, volume duplo, edição comemorativa, n. 14, 2006b;
KELMER MATHIAS. De volta às condições da governabilidade, na busca de um equilíbrio: notas acerca
da sociedade mineira na primeira metade do século XVIII. REHB - Revista Eletrônica de História do Brasil, v.
7, n. 2, 2005b; e Fragoso (2005).
44. ACSM, LN 2-11, Io of.
45. FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII.
Rio de Janeiro: José Olympio. 1993.
102
r O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR
103
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
192$000 mil-réis. Os outros 48$000 mil-réis couberam a duas outras escravas inteirar. 50
Não posso afirmar a ocorrência do compadrio no caso acima, mas isso não impede a
existência de alguma relação de solidariedade, ou até mesmo de reciprocidade, entre as
cativas acima. Fato esse indicador da riqueza, assim como da complexidade, das relações
sociais escravistas havidas entre esses agentes históricos.
Padrinhos com condição social mais elevada também atuaram no auxílio a seus
protegidos na busca pela liberdade. Dentre as catorze ocorrências, três assim o foram.
Contudo, mais interessante do que os casos nos quais um padrinho - com patente de capitão
ou sargento-mor - pagou pela alforria de seu afilhado, são os casos em que essas pessoas o
fizeram sem que a relação de compadrio se perpetrasse. Este foi o ocorrido, por exemplo,
com Maria de Encarnação, figura que pagou 276$000 mil-réis por sua liberdade a
Alexandre Álvares de Castilho. Desse total, 116$400 réis foram pagos pelo capitão José
Rodrigues Lima.51 Pela documentação, não é possível identificar a natureza da relação
existente entre o capitão José Rodrigues e Maria da Encarnação, o que não excluiu o
próprio compadrio. Mas lança luz sobre as diferentes estratégias empregadas pelos escravos
nas suas empreitadas em prol da liberdade. Caminho diferente tomou Antônia, cativa que
teve sua alforria paga pelo padre Manoel Gomes da Cruz a Manoel Ferreira da Costa. O
padre alegou ter arcado com os 264$000 mil-réis necessários para a manumissão de
Antônia por estar a fazer uma “esmola” a ela. Porém, não obstante este nobre ato de
caridade, a referida forra imediatamente assimilou à categoria de liberta a de devedora, pois
o padre estipulou prazo para Antônia dar conta da quantia.52
Paulatinamente, descortina-se o cotidiano daqueles inseridos nas relações de
manumissão. Em um contexto no qual homens e mulheres mandavam em outros homens e
mulheres, o sexo feminino levava vantagem. Não propositadamente todos os exemplos
acima alçaram o femeo no rol dos libertos. Que se confira o valor devido à importância do
homem na produção do ouro e dos gêneros de abastecimento, assim como ao seu valor
enquanto braço armado senhoril, as mulheres parecem ter sido mais versadas nos trâmites
daHberdade. Conforme se verá, na lida com seu senhor, seus filhos eram os mais
beneficiàtíos.
Para que dúvidas não restem sobre a versatilidade da mulher no trato com seu senhor
em prol da liberdade própfia ou de seus filhos, cito o caso passado com Joana. Em 28 de
maio de 1719, João de Brito alforriou, de uma tacada só, Joana e seus cinco filhos. Moça
iniciada cedo na vida sexual, Joana - agraciada com a manumissão em
104
O B RAÇO A R MADO DO S ENHOR
função de seus serviços prestados - deu a luz ao menino crioulo Caetano com 15 anos.
Cerca de dois anos depois, nasceu Roberto. Decorridos mais dois anos, veio Gertrudes.
Félix esperou um pouco mais, três anos. Voltando à média, Maria, a caçula, deu suas caras
no mundo decorridos outros dois anos. Não obstante Joana ter obtido sua liberdade por
serviço, Caetano, Roberto e Gertrudes foram alforriados gratuitamente. Segundo João de
Brito, além dele os haver criado “como se fossem seus filhos” e ter por eles “muito amor”,
os alforriava “por desencargo de consciência”. Quem sabia o que se dava na consciência de
João de Brito já passou dessa para melhor - ou pior! Vai ver bateu o arrependimento de
alguma ação desferida por João aos três guris, ou talvez se tratasse de uma expressão de
época com significado específico. O que realmente importa é o meio pelo qual Félix e
Maria alçaram à liberdade. Suas alforrias foram concedidas mediante pagamento. A coisa
fica ainda mais interessante quando se observa não ter sido Joana a responsável pelo
pagamento. Para a liberdade de Félix concorreu seu padrinho, José Pereira de Almeida, com
os 88$800 réis necessários. O benfeitor de Maria, novamente um padrinho, foi Jacinto
Sanches, figura que desembolsou 60S000 mil-réis.53
Pode-se argumentar o fato de terem sido Caetano, Roberto e Gertrudes filhos de
João com Joana, caso não válido para Félix e Maria. Em função de seus serviços prestados,
Joana obteve sua liberdade sem pagar por ela no momento da manumissão. Por amor a seus
filhos ilegítimos, João os alforriou também gratuitamente. Por castigo à pulada de cerca de
Joana, João somente conferiu a manumissão a Félix e Maria mediante pagamento, cena da
qual participam os respectivos padrinhos - talvez os verdadeiros pais. Especulações à parte,
incontestável foi a capacidade de Joana de negociar com seu senhor e com os padrinhos de
seus rebento, além da própria alforria, a liberdade de seus cinco filhos, três gratuitas e duas
pagas. Ou seja, de uma única vez, a mulher cativa passou pelas três mais difundidas formas
de obter a manumissão. Notam-se as várias estratégias empreendidas por Joana, assim
como seu universo de orientações valorativas (Barth, 1981).
Por fim, uma curiosidade. De um documento de leitura delicada, presente no Livro
de Nota número 06, do Arquivo da Casa Setecentista de Mariana, consta terem estado
Maria, a escrava, e Antônio Álvares, o proprietário, a registrar mais uma carta de liberdade.
Todavia, o tabelião, sem dizer o porquê, interrompeu a feitura do documento limitando-se a
escrever em caixa alta “não teve efeito”, sem, contudo, relatar o motivo pelo qual “não teve
efeito”. É sabido o fato de nem mesmo uma carta de alforria registrada em cartório ser
garantia total da condição de liberto, podendo, em muitos casos, o forro ser reconduzido à
servidão ainda que não conste da carta
105
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
nenhuma cláusula para tanto. Porém, parece-me interessante atentar para o fato de até
mesmo no momento exato do registro da carta de alforria ser possível senhor e escravo
entrarem em desentendimentos, e, por conseguinte, quebrarem o acordo da liberdade.
Ainda que este não tenha sido o motivo real pelo qual a escritura não tenha tido efeito, fica
aqui registrada a idéia...
\
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106
Flagrantes do Quotidiano: Um Olhar sobre o Universo
Cultural dos Homens Livres Pobres em São João Del-Rei
(1840-1860)
1
Edna Maria Resende
3. A constituição da imagem dessa parcela da população livre não inserida nas atividades produtivas como vadia e desclassificada
deve-se, em grande parte, à utilização dos discursos das autoridades e da elite da época como fontes de pesquisa.
108
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO
4. Para Minas Gerais, no século XVIII, Francisco Vidal Luna aponta a predominância de proprietários com um a
quatro escravos, apud CASTRO, Hebe Maria Mattos de. “Novas perspectivas acerca da escravidão no Brasil”,
in CARDOSO, Ciro Flamarion S. (org.). Escravidão e abolição no Brasil: novas perspectivas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1988, p. 32. Considerando a primeira metade do século XIX, em Minas Gerais, Libby aponta a
difusão do grupo de proprietários com cinco ou menos escravos. Cf. LIBBY, Douglas Cole. Transformação e
trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 98.
5. De acordo com Libby, a grande maioria dos domicílios mineiros (66,7%) não possuía nenhum escravo.
Somente um terço da população livre teve acesso à propriedade escrava. Cf. Libby (1988: 98).
6. Conforme observa a autora: “O acesso à terra e à propriedade escrava não configuram um parâmetro
absoluto para se estabelecer a estratifícação social entre os homens livres sob o escravismo”.
7. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista (Brasil
século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p.39.
109
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
110
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO
do mercado interno, não pode ser encarado nos moldes do desenvolvimento das regiões
agroexportadoras.
O conhecimento mais adequado da história de Minas oitocentista é viável somente
com a realização de estudos regionalizados da sociedade mineira provincial. Diante das
inúmeras especificidades que marcaram a realidade oitocentista mineira, toma-se relevante
dirigir nossa atenção para a cidade de São João del-Rei.
São João del-Rei, durante o século XIX, caracterizava-se por uma vigorosa atividade
comercial, e se constituía em um importante entreposto que exportava para o Rio de Janeiro
gêneros de abastecimento e centralizava o fluxo de mercadorias de diferentes regiões.8
Além disso, a cidade destacava-se como centro financeiro e creditício. 9 São João del-Rei
apresentava infra-estrutura urbana consolidada, com aglomerado de mais de mil casas,
número expressivo de artesãos e vendas bem supridas de produtos importados. Já no início
dos Dezenove, os viajantes que passaram pela região não deixaram de se impressionar com
o dinamismo e a urbanização da Vila.
Cidade com intensa atividade comercial, São João del-Rei certamente oferecia mais
oportunidades de participação a seus habitantes e, provavelmente, apresentava
peculiaridades quanto àestratificação social, aos espaços de inserção socioeconômicada
população, aos lugares sociais ocupados por brancos e mestiços, livres, forros e escravos.
Os distritos do município de São João del-Rei eram predominantemente agrícolas,
embora existisse um grupo importante de artesãos, de pessoas ligadas ao comércio e de
trabalhadores livres prestadores de serviços, além de pessoas que se dedicavam à pecuária,
à mineração, às funções públicas, à saúde e ao ensino. Essas atividades eram
desempenhadas predominantemente por homens. As mulheres dedicavam-se à fiação e à
tecelagem, aos serviços domésticos, aos trabalhos em tecidos e às atividades agrícolas. 10
O espaço urbano da cidade de São João del-Rei oferecia reais oportunidades de
inserção econômica e social à população de cor, especialmente num contexto cultural
marcado pela hierarquização racial, em que a cor da pele era definidora de status na
sociedade. Além disso, o fato de a cidade oferecer um amplo leque de oportunidades à
população faz-nos especular sobre a existência de uma estrutura social mais aberta, que
possibilitava, inclusive, a mobilidade social em alguns setores. 11
8. LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil (1808-
1842). São Paulo: Símbolo, 1979.
9. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A Princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais (São João
del-Rei, 1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
10. MARTINS, Ângela M. “Século XIX: estrutura ocupacional de São João del-Rei e Campanha”, in V Seminário
sobre a Economia Mineira, Cedeplar/UFMG, Belo Horizonte, 1990, pp. 31-51.
11. A partir da Lista Nominativa de Habitantes de 1838 foi possível indicar alguns setores ocupacionais em que
estava alocada a população, como o comércio, as funções públicas, as atividades mecânicas
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
e manuais, que ocuparam parcela bastante expressiva da população. Foi possível ainda investigar a inserção
social da população tenjtó como referência a cor. O cruzamento dos dados sobre cor e ocupação indicou que
algumas ocupações eram desempenhadas predominantemente pela população branca, outras pela população
de cor e a maioria tanto por brancos, quanto por mestiços e pretos. Para um detalhamento dessa questão, ver:
RESENDE, Edna Maria. Entre a violência e a solidariedade: valores, comportamentos e a lei em São João del-Rei
(1840-1860). Belo Horizonte: UFMG/ Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Dissertação de Mestrado,
1999.
12. Aqui, não podemos deixar de considerar a perspectiva de classe proposta por Thompson, em que se destaca a
importância da experiência comum compartilhada na formação de uma identidade de interesses entre um
grupo social. Cf. THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da libertação. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997, v. 1.
I 12
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO
13. Processo 02, caixa 05,1841. Arquivo do Museu Regional de Sào João del-Rei (AMRSJDR).
14. Processo 12, caixa 05, 1841. Ver também: Processo 09, caixa 12, 1856; Processo 05, caixa 15, 1859.
AMRSJDR.
15. Os artigos 135 e 136 do Código de Posturas da Câmara Municipal de São João del-Rei proibiam as danças de
batuques e não permitiam aos escravos tocar, cantar, dançar nas ruas e povoações, embora abrissem uma
exceção para as festas religiosas (quibetes e reinados), desde que não fossem à noite (art. 137). Os escravos
que não estivessem comprando também estavam proibidos de freqüentar e permanecer nas tavemas e casas
de bebidas (art. 203). A população estava proibida, ainda, de jogar entrudo (art. 151).
16. Em dez casos há relações de vizinhança, em onze de amizade e em oito as tensões resultaram de relações
amorosas. Foram analisados 66 documentos, mas nove deles são partes separadas dos processos (execuções
de sentenças, por exemplo), ou tratam de traslados decorrentes de pedidos dos réus para serem julgados
individualmente.
17. John Lucoock, em Notas sobre o Rio de Janeiro epartes meridionais do Brasil (Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1975, p. 302), chama a atenção para esse traço arquitetônico: “A aparência geral de São João
del-Rei é a de todas as vilas portuguesas da mesma categoria; as casas são baixas,
113
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
caiadas de branco, e munidas de janelas de rótula; as ruas são estreitas, torcidas, longe de uniformes, e muito
escorregadias (...). O assento das casas é de tal forma irregular que elas dominam e devassam umas às
outras, sendo as que mais alto se colocam escolhidas para sedes de repartições públicas ou para as
residências particulares melhores”.
18. Segundo a autora: “(...) para o^horflens livres, a família nuclear como unidade de produção e consumo e a
reciprocidade entre iguais eram aj)ase econômica da sobrevivência. (...) A solidariedade vertical cabia,
fundamentalmente, o papel de'^ustentar as condições costumeiras que davam estabilidade a todo o sistema”
(p. 75). Assim, a manéira culturalmente esperada de um migrante integrar-se numa nova área não era
pedindo emprpgo ou acolhida a um potentado local, mas travando relações duradouras com os que ali
viviam, baseados em relações costumeiras. Do ponto de vista do homem livre, a solidariedade vertical era,
assim, herdada de relações horizontais anteriores, antes que escolhida (P- 74).
19. Maria Sylvia de C. Franco (1974), ao analisar as condições de vida dos homens livres das regiões do café,
mostra que na organização social desse grupo, caracterizada pela extrema carência, estão presentes
elementos integradores e elementos de ruptura. As conclusões da autora, embora referentes aos pobres livres
de uma região agroexportadora, podem ser aplicadas ao universo cultural dos livres urbanos de São João del-
Rei.
20. Processo 12, caixa 05, 1841. AMRSJDR.
I 14
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO
I 15
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Em uma sociedade em que o uso da força era muito difundido, e na qual as pessoas,
apesar de todas as proibições, andavam armadas, a violência era prática corriqueira. 24
Livres, libertos e escravos, brancos, pardos ou pretos, partilhando valores culturais e
experiências comuns, viviam e trabalhavam numa cidade onde as atividades comerciais,
muito mais que um espaço de sobrevivência, constituíam-se no centro da vida social das
pessoas. Durante o dia, envolvidos na labuta do cotidiano, esses homens teciam relações
sociais baseadas na solidariedade e na amizade. Por outro lado, a faina diária também era
marcada por relações tensas. No final da tarde e à noite, explodia a violência. A rua e as
casas de negócio eram os cenários mais freqüentes para esses acontecimentos, que viravam
notícia e corriam de boca em boca.
Numa cidade em que, somente de vez em quando, a rotina era rompida pelo temor e
maravilhamento provocados pela chegada das companhias de circo e teatro, a rua era o
espaço de lazer e de encontros entre as pessoas. 25 Era também um dos focos de tensão social
e de conflitos. Na rua, tinham lugar tanto as festas religiosas, as procissões e as alvoradas,
quanto os batuques e as comemorações dos dias santos do entrudo. Nessas ocasiões, as
pessoas se divertiam, estreitando-se o convívio entre escravos, livres e forros. Mas essas
reuniões eram ainda o espaço para que alfaiates, pedreiros, sapateiros, jomaleiros,
carpinteiros, caldeireiros, funileiros, livres ou escravos acertassem suas diferenças. Em
muitos processos, o crime era motivado pela existência de rixas antigas entre os envolvidos.
O pardo Antonio Marcelino, sapateiro, numa noite de abril de 1840, atirou com uma
espingarda no escravo Manoel Mina. Segundo uma testemunha, o réu Antonio Marcelino já
andava de rixa antiga e premeditada para
23. BURTON, Richard. Viagem do Rio de 'Janeiro a Morro Velho. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Universidade
de São Paulo, 1976,jy 331.
24. A análise dos diferentes tipos de crime, atentando para sua contextualização, para suas motivações e para seus
traços ritualísticos possibilitará a compreensão dos diversos aspectos da violência e do universo cultural dos
envolvidos. Os protagonistas em questão envolveram-se principalmente em crimes contra a pessoa
(agressões físicas, homicídios e injúrias verbais), crimes contra a propriedade (furtos e roubos), e crimes
contra a ordem pública (infração de posturas, desacato à autoridade e porte de armas proibidas). Para uma
análise detalhada da questão da violência, ver: Resende (1999: 90-131).
25. Sobre os espetáculos de teatro e circo em Minas Gerais no século XIX, ver: DUARTE, Regina Horta. Noites
circenses. Campinas: Ed. da Unicamp, 1995.
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO
com o preto Manoel Mina.26 Também motivado por antigas rixas, o alfaiate Anastacio José
da Silva feriu com facadas José Leandro de Souza. As testemunhas afirmaram que os
envolvidos, tendo bebido, estavam espiritualizados.27
Na maioria das vezes, no entanto, os desentendimentos, insultos e brigas surgiam de
brincadeiras mal compreendidas. Essas brincadeiras e as disputas amorosas entre amigos,
freqüentemente embriagados, acabavam resultando em ferimentos graves e, às vezes, em
morte, como se pode perceber da história do réu Francisco Lucio. Num domingo de
fevereiro de 1849, por ocasião do entrudo, o jomaleiro Francisco Joaquim Lucio feriu
gravemente Manoel Antonio Pereira, levando-o à morte. O próprio réu disse que tinha
amizade com o ofendido, vivendo como irmãos. As testemunhas confirmaram que eles
andavam sempre juntos. Uma testemunha contou que era costume do ofendido, empregado
no abate de animais, oferecer a Francisco Lucio carne e sangue dos animais que ele abatia.
Certa feita, Francisco Lucio e Manoel Pereira, depois de jantarem e beberem aguardente na
casa de Manoel dos Passos - patrão do réu - acompanhados de um escravo, foram até o
lugar denominado Pau do Angá para brincarem o entrudo, atirando limões uns nos outros.
Segundo o réu, “entrando o dito Manoel Antonio Pereira para o terreiro e sendo molhado
ahi voltou com um taxo (sic) de água suja ou podre e atirou nas ditas suas irmãs, molhando
os carros e parecendo mal a elle respondente”. Além disso, o ofendido passou a descompor
com palavras as irmãs do réu. Um pouco depois desses desentendimentos, por volta das
cinco horas da tarde, Francisco Lucio encontrou Manoel Pereira em frente a um açougue,
na Rua do Curral, dando-lhe várias facadas.28
Todavia, a rua não era o único espaço de convivência entre o lazer e a violência.
Quotidianamente, eram as vendas, as casas de negócio e as tavemas os locais mais
freqüentados pelos diversos segmentos da população pobre e pelos escravos. Ainda no
século XVIII, as vendas eram vistas como abrigo de atividades ilícitas, como espaço de
desordem, ao possibilitarem encontros furtivos e relações ilícitas, e promoverem festas
suspeitas, além de levarem os escravos a dilapidarem seus jornais. No século XVIII, a
aglomeração de pessoas no interior das vendas era vista com temor pela elite. A reunião de
escravos, resultando em planejamento de fugas, a comercialização de ouro roubado, a
presença de negros quilombolas em busca de pólvora e chumbo para a resistência, ao lado
de oficiais mecânicos à procura de gêneros alimentícios, instrumentos de trabalho e roupas
transformavam as vendas
I 17
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
em locais perigosos para a ordem vigente. 29 Essa ameaça se tomava concreta, pois os bailes
e batuques, regados por aguardente, resultavam, quase sempre, em brigas, ferimentos e
mortes.
No século XIX, o quotidiano das vendas e casas de negócio de São João del- Rei
parece refletir ainda muitas das características dos Setecentos. A venda continuava sendo
um espaço procurado não apenas para a aquisição de produtos necessários para a
sobrevivência, mas também continuava sendo, fundamentalmente, um espaço de lazer
coletivo. Os homens pobres livres e os escravos freqüentavam as casas de negócio em busca
de divertimento, de jogos e de bebidas. As posturas da Câmara Municipal proibiam lojas,
tavemas, bodegas e armazéns de ficarem abertos depois das nove horas da noite (art. 202). 30
Essa proibição, porém, não impedia a ocorrência de brigas e ferimentos no interior das
vendas, mesmo depois de fechadas. Foi o que ocorreu na Sexta-Feira das Dores de 1855, na
casa de negócios de Messias Lopes do Nascimento, situada na Rua do Barro. O réu Sérgio
Dias Cardoso, tido como desordeiro pelas testemunhas, entrou na casa de negócios de
Messias armado com uma pistola. Por volta das dez horas da noite, depois de fechada a
porta do estabelecimento, Sérgio começou a ameaçar e injuriar Messias, até que este
conseguiu tomar-lhe a arma.31 Aliás, o hábito de as pessoas andarem armadas, embora o
Código Penal proibisse o porte de armas, 32 seguramente contribuiu para o crescimento do
número de ferimentos e mortes decorrentes de agressões físicas. As brigas e desordens
durante os jogos também deviam ser rotineiras. Pelo menos, esse foi o motivo apontado
para explicar os ferimentos que o pedreiro Francisco José Baptista fez em Sabino José
Francelino, também na Rua do Barro, depois de se alterarem durante uma partida de
truque.33
As Posturas proibiam os jogos de azar nas casas públicas de jogo, tavemas e
botequins (art. 101, § 1 °), além de proibirem terminantemente a participação de escravos
em qualquer tipo de jogo nas casas de negócio ou em qualquer lugar público (art. 103). Não
era permitido o ajuntamento de escravos, exceto se estivessem comprando, em tavemas e
casas de bebídàs (art. 203). Por sua vez, o tavemeiro não estava autorizado a comprar
objetos suspeitos dos escravos (art. 143). No entanto, todas essas situações parecem ter
ocorrido freqüentemente. Os escravos não só eram
>
30. FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
31. Código de Posturas da Câmara Municipal de São João del-Rei, 1829. ORD/132/Ordens Imperiais, 1828-
1841. ACMSJDR, Biblioteca Municipal Baptista Caetano de Almeida, São João del-Rei.
32. Processo 20, caixa 11, 1855. AMRSJDR.
34. Artigo 297. Código Criminal do Império do Brasil. Rio de Janeiro: E. e H. Laemmert, 1859.
33. Processo 12, caixa 17, 1860. AMRSJDR.
I 18
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40. REIS, Liana M. “Poder, vadiagem e marginalização social em Minas Gerais (1850-1888)”, in XVIII Simpósio
Nacional de História - História e Identidades, Recife, 1995, mimeo, pp. 6-9.
F LAGRANTES DO Q UOTIDIANO
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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Essas atitudes ganham significado se inseridas num sistema de valores que incorpora
a violência não apenas como um comportamento regular, mas positivamente valorado
(Franco, 1974: 500). Se para os códigos legais o comportamento violento dos pobres livres
configurava crime, porque infringia a lei, para os pobres livres a violência não adquire essa
conotação. Nossos protagonistas, vivenciando relações que oscilavam entre a solidariedade
e a violência, não enxergavam como crime os ajustes violentos em que se envolviam. Ao
contrário, seus atos violentos eram tidos como legítimos e normais.
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ESCRAVIDÃO E MESTIÇAGEM NA CRÔNICA COLONIAL: ENTRE
AMÉRICA E ÁFRICA
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trajes, juramentos,
gerras feito pelo capitão Andre Aluares dalmada natural da Ilha de santhiago de
cabo verde pratico e versado nas ditas partes. Ano 1594}
O exercício de reflexão que aqui se propõe se sustenta nos discursos produzidos
pelos autores, identificando elementos do sistema de referências que preside as narrativas
em relação à questão étnica e social que envolve os diferentes grupos em interação na
condição colonial, nos seus primórdios. É um exercício inicial que visa apontar as
possibilidades de estudos comparativos de circunstâncias históricas cuja conexão pode ser
observada através da consideração de alguns critérios que presidem a abordagem dos
autores sobre as relações raciais e a questão da escravidão. Estas observações podem ser
cotejadas entre as obras e autores e analisadas à luz da consideração do lugar de inserção
dos autores, enquanto atores distribuídos em maior ou menor distância geográfica, atuando
sob condições históricas locais bastante diversificadas, certamente, mas enfrentando
questões semelhantes, da Guiné às índias.
Dentre os textos selecionados, o de Almada foi o primeiro a ser produzido. Observe-
se também que esta produção tem origem na região da qual estarão sendo distribuídos
grandes contingentes de escravos para o mundo colonial americano.
André Álvarez D’Almada, primeiro autor mulato da África portuguesa, nasceu na
ilha de Santiago, Cabo Verde. Era filho do capitão Ciprião Álvares de Almada, “nobre e um
dos principais daquela ilha”, e de uma “mulher parda”, sendo “neto de uma mulher preta
por parte de sua mãe”. Este mestiço foi “capitão” e comerciante nas ilhas de Cabo Verde e
na Guiné; a 19 de agosto de 1598 recebeu o hábito de cavaleiro da Ordem de Cristo.
Almada escreveu em 1594 uma obra de que se conhecem duas versões semelhantes
com o título3 Tratado breue dos Rios de guiné do cabo verde des do Rio de Sanaga ate os baixos
de Santa Anna; de todas as nações de Negros q(ue) ha na ditta costa, e de seus Costumes, armas,
trajes, juramentos, gerras feito pelo capitão Andre Aluares dalmada natural da Ilha de santhiago
de cabo verde pratico e versado nas ditas partes. Ano 1594.4
2. AYALA, Felipe Guaman Poma de. El Primer Nueva Corónica y Buen Gobierno. Edición critica de John Murra y
Rolena Adomo. México: Siglo XXI, 1980, 3 vols.; VEGA, El Inca Garcilaso de la. Comentários reales de los
incas. Prólogo, edición y cronologia de Aurélio Miro Quesada. 2a ed., Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1983,2
vols.; D’ALMADA, André Álvarez. Tratado Breve dos Rio de Guiné do Cabo Verde dês do Rio Sanagá até os
baixos de Santa Ana de todas as nações de negms que há na dita costa e de seus costumes, armas, trajos, juramentos,
guerras. Feito pelo capitão André Álvarez d'Álmada natural da Ilha de Santiago de Cabo Verde prático e versado nas
ditas partes, Ano 1594. Leitura, introdução e notas de Antônio Brásio. Lisboa: Editorial L.I.A.M., 1964.
3. GARCIA, José Manuel. A historiografia portuguesa dos descobrimentos e da expansão (séculos XV a XVII):
autores, obras e especializações memoriais. Lisboa, 2006, no prelo.
4. Aqui estamos utilizando a publicação citada anteriormente, organizada por Antônio Brásio (D’Almada,
1964).
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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Almada registra a presençà de grupos distintos, mas que não destaca do conjunto na
narrativa: \
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Pode-se sem receio afirmar que Almada se representa como parte do projeto
português que não demonstra qualquer vinculação aos negros, e que os descreve como
componentes. A escravidão é naturalizada e a sua própria condição de mestiço não parece
interferir ou ser considerada como elemento na construção de referências relativas ao
universo africano. Quando menciona “os negros da nossa África” está se referindo a um
contingente com o qual se relaciona como colonizador. A nossa África não é a África dos
negros, mas dos portugueses.
É dessa África, e muito especialmente a partir de Cabo Verde e São Tomé, que
seguem os escravos negros para as colônias espanholas, e a partir de 1535 aumentam sua
entrada no Peru, enquanto se reduz a entrada de negros vindos da Metrópole. Valorizam-se
os bozales em detrimento dos hispanizados (Alencastro, 2000).
O reconhecimento da presença negra e da condição escrava tem distinto caráter no
Novo Mundo. A diferença das condições provocada pela introdução do negro nas índias
permite uma distinta percepção do lugar e atribuição de valores e elementos classificatórios
em relação aos grupos. Um exemplo pode nos ajudar a precisar a direção.
Entre os nossos testemunhos busquemos a Garcilaso. A referência mais antiga a uma
“taxionomia” dos grupos em contato se encontra em Garcilaso no seguinte trecho:
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»
Uma versão mais detalhada aparece nos Comentários reales, sob o título “Nombres
Nuevos para Nombrar Diversas Generaciones”:
5. VEGA, El Inca Garcilaso de la [16051. La Florida. Introdución y notas de Carmen de Mora. Madrid:
Alianza Editorial, 1988, p. 180.
r
Transcrevemos na íntegra o texto, embora longo, para que fiquem evidentes alguns
aspectos. Chama atenção a referência a nações intrusas: no primeiro texto, para indicar os
que não são naturais das índias. No segundo texto citado permanece o registro de distinção
entre naturais e os que chegam com a conquista/colonização -
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não havia deles antes. Este capítulo transcrito está colocado numa seqüência em que
Garcilaso trata de gêneros introduzidos pelos espanhóis: “Porque a los presentes y venideros
será agradable saber las cosas que nos las habia en el Peru antes que los espanoles lo
ganaran” (Vega, 1983, v. II: 40).
Nessa avaliação, entre as coisas trazidas pelos espanhóis o autor considera que de
melhor chegou às índias foram os próprios espanhóis e os negros que levaram para escravos
para servir-lhes.
A indicação dos “nomes novos” e de seus significados apontam a abrangência das
trocas de gentes e culturas, evidenciando a variedade de tipos e aportes culturais, a
necessidade da troca e da invenção na construção da sociedade indiana colonial.
Garcilaso entende a chegada dos espanhóis como destino e finalidade - cumprimento
de um ciclo. Teria início a terceira idade, em que se consolidaria evangelização e
hispanização, o que representava um avanço e a possibilidade da salvação no modelo
católico. Nessa situação, a presença dos mestizos - categoria em que se classifica com
orgulho - consolidava o projeto. Este grupo representava para ele, que reconhecia a
existência de preconceitos, obra e desejo dos pais espanhóis, o que legitimava o mestiço -
“mezclado de ambas naciones”.
Os negros - introduzidos nas índias como escravos para servir aos espanhóis -
parecem estar em lugar e posição indiscutíveis, parte do cumprimento do destino. Está
registrada a variedade de possibilidades de “miscigenação”, com comentários que se
limitam à construção conceituai dos termos. Os argumentos que apresenta são referências
que atribui aos agentes criadores dos termos. Toma partido apenas na explanação sobre a
condição mestiça, em que se qualifica.
A situação da população negra introduzida como escrava não parece provocar em
Garcilaso qualquer questionamento, o que diferencia o tratamento dos “índios”, tantas vezes
defendidos no conjunto de sua obra.
A abordagem de seu contemporâneo, Felipe Guaman Poma de Ayala, se distancia
substancialmente da interpretação de Garcilaso. Garcilaso era filho de conquistador
espanhol e princesa inca. Vai ainda jovem para a Espanha, onde se estabelece e constrói seu
protagonismo mestiço, dedicando-se às armas, letras e religião no centro do universo
metropolitano, de onde publica e divulga sua produção.
Poma tem uma trajetória bem diferente: é um índio yarovilca, vive na região andina,
presta serviços à administração espanhola, escreve seu texto ao rei como recurso para salvar
o universo indígena dos efeitos dos desmandos, excessos e falta de espírito religioso dos
colonizadores. O texto - sob a forma de uma carta ao rei, escrito em espanhol, aymara e
quéchua, composto por desenhos anotados que compõem a narrativa - não chega às mãos
reais e fica perdido até inícios do século
XX. Uma grande preocupação perpassa todo o texto de Poma: o desaparecimento físico dos
índios e a destruição de seu universo moral e cultural.
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A avaliação que faz da presença do espanhol é, portanto, dúbia, já que afirma As relações entre negros criollos com as índias se apresentam com relações
fidelidade ao rei e faz referência a um desejo de que todos se tomem espanhóis (comentário pecaminosas, de trocas enganosas. Não só os negros criollos são desqualificados, mas
que merece melhor análise em outra ocasião). Ao mesmo tempo responsabiliza o espanhol, também as negras criollas e as índias que se relacionam com eles são “índias putas”. As
colonizador, pela desordem e perda do reino, o que penalizaria inclusive o rei, segundo negras criollas são ladras para servir a seus homens. É importante lembrar que esta
argumenta. representação é recorrente na obra quando o autor trata de espanhóis nascidos nas índias e
Traçando um complexo quadro da situação em que se encontra a região, apresenta de mestiços.
uma descrição étnico-social dos grupos. Entre os espanhóis inclui mestiços e mulatos. Esta A apresentação do espanhol, senhor, tem entrada a partir da ação dos negros, de
classificação é bastante detalhada, e os espanhóis, negros e índios são classificados por paciência e amor a Cristo, que introduz o texto sobre a ação do amo velhaco. Este amo é
diferentes critérios de acordo com sua atividades e atributos - considerando os efeitos de sua igualmente representado em situações de atuação de espanhóis castigando índios, em outras
atuação para o beneficio da coroa e dos índios. Assim, os espanhóis podem ser “criollos”, seções da obra. Igualmente, a postura e reação dos negros se repete em cenas semelhantes
“de Castilla”, “de los tambos”, “cristianos”, etc. Há uma gama de qualidades de origem, onde os castigados são índios.
conduta e moral que situa tanto espanhóis como negros numa ordem valorativa. A origem Pode-se perceber uma grande diferença na abordagem de Poma. Sobretudo, os
espanhola ou africana indica qualidade positiva. Os nascidos nas índias que não sejam negros bozales, de Guiné, aparecem qualificados positivamente como cristãos, portadores de
índios - criollos, negros e brancos - estão, por princípio, apontados com qualidades uma tradição evangelizadora. Seriam estes os mesmos negros descritos por Almada?
negativas. “Mestizos” e “mulatos” são também desqualificados. A mudança radical na avaliação entre os bozales e o criollos, como já se mencionou,
Por princípio, Poma se opõe a qualquer tipo de mestiçagem: “Para ser buena criatura guarda coerência com um postulado do autor relacionado com o que poderíamos chamar
de Dios, hijo de Adán u de su muger Eua, criado de Dios, espanol puro, yndio puro, negro “pureza de origem”. O que assusta Poma e faz condenar entre espanhóis e negros a geração
puro” (Ayala, 1980:661). nascida na colônia talvez seja a concretização da dominação. Esta condição aparece sempre
Os negros merecem uma seção específica no texto e aqui encontramos considerações relacionada com atitudes de luxúria, roubo, destruição de costumes e, sobretudo, com a
de juízos de valor, explicitados pelo autor, com relação à qualidade - negro à condição - inviabilização da geração de índios e possibilidade da geração de mestiços - estes
escravidão - e à circunstância moral - atributos - para qualificação pessoal nas relações representando a grande ameaça para Poma.
vigentes. Não podemos aqui alargar a análise da obra de Poma, mas queremos ainda chamar a
Poma é dos três autores o que mais se detém nas reflexões sobre o negro e a atenção para algumas observações e considerações que evidenciam a multiplicidade de
condição da escravidão. Seu discurso é tecido entre o texto escrito e o desenho anotado, olhares sobre a questão, incluindo aí a abordagem de recepção e reconhecimento da
numa construção complexa, bastante elucidativa. Selecionamos três registros apresentadas chegada de um contingente numeroso de negros, subordinados e escravizados pelos
em desenhos acompanhados dos textos referentes, fazendo observar que na obra de Poma colonizadores espanhóis.
são indissociáveis os recursos da letra e do traço. As figuras 1, 2 e 3, em anexo , ao final Poma propunha um tratamento capaz de permitir a manutenção de uma vida digna e
do^texto, nos permitem acompanhar alguns aspectos da elaboração do estranhamento do cristã. Propugnava que os escravos fossem casados - para o serviço de Deus, multiplicação
auíqr em relação aos negros, a escravidão negra e as relações entre os diferentes grupos em dos filhos de bendição para os céus e multiplicação da fazenda do amo. Deveriam ter sua
interação. própria fazenda e instância administrativa - reguladora dos castigos. Não dispensava o
Uma primeira aproximação^deixa perceber uma representação hispanizada dos castigo, enérgico, para correção de conduta:
negros, em costumes, gestos e vestimentas, mas em que sobressaem aspectos fenotípicos
que identificam e diferenciam negros, índios e brancos. Y ancí em ciendo vellaco un negro o negra es muy santa cosa y
Nas relações entre os grupos pode-se observar, e neste conjunto se traduzem alguns seruicio de Dios y e su Magestad y bien de sus animas y de su
dos princípios do sistema de referências que orienta o autor: os negros, representados em ato carne cargalle de hierro. No ai que asotalle ni brealle. No hace
piedoso de oração, como um casal, traduzem uma condição de igualdade que deveria, para caso de ello. El hierro amansa, para qué aues de estar
Poma, nortear os contatos entre os grupos: negros com negros. amenasándole cin provecho y está em el monte huydo. Ei
132 133
I
Entre os três autores, Poma é o que realiza uma análise mais circunstanciada da
condição da escravidão, e reconhece qualidade humana do negro, neste caso, igualando
todos os grupos étnicos em contato através do critério moral religioso aplicado geralmente.
O projeto de salvação do universo indígena, a denúncia e o reconhecimento das
atitudes negativas de cada uma destes grupos como fator de desestruturação deste universo
torna o discurso de Poma mais complexo e atento à presença, lugar, atuação e qualificação
moral dos diversos contingentes, e garante um espaço para uma descrição crítica da
escravidão, do negro e da mestiçagem.
Outra diferença que se pode ser observar no cotejo entre estes autores está com a
avaliação positivada da trajetória histórica das sociedades indígenas antes da colonização.
Embora se considerando que as sociedades originárias não se concebessem num tempo
histórico, como o que se desenha no universo da ocidentalidade, os autores indianos
abordam o passado dessas sociedades - anterior à situação colonizadora - a partir da
dimensão da temporalidade ocidental e buscam integrar tal passado, refundado, ^íesmo que
seja como o marco de ruptura - reconhecem e legitimam o passado pré-hispânico. Tanto
Poma como Garcilaso resgatam a tradição de um passadolreinventado. O primeiro, como
caminho, o segundo, como superação; mas ambos como registro de uma identidade em meio
ao estranhamento.
Almada não fala de um passado dos povos descritos que considera perdido, uma vez
que a oralidade teria levado à perda de registro, mas de um presente que deve ser mudado,
objeto de imediata atuação colonial. O universo que descreve não se referencia a sua
identidade.
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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
7 oi
PRIMEIRA HISTÓRIA {...} CRISTIANO NEG}RO, NE}grã que salen se negros bozales de Guinea (...)
Déstos salió el bienauenturado San Juan Buan{auentura]/ Sacra Magestad qe el rey de Guinea negro
son gente rrecia que uenzerá al Gran Turco / sugetará para el servicio de Dios y de buen a corona
rreal, ayudándole con armas y comida/ (Ayala, 1980: 663).lio Miro Quesada.
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/&06{720} / NEGROS/COMO LLEBA EM TANTA paciência y amor de Jesucristo los puenos negros
y negras y el vellaco de su amo no tiena caridad y amos de prógimo/ soberbioso/(Ayala, 1980:
666).
E S C R A V I DÃ O , Mestiçagem e Histórias Comparadas
709)723} / NEGROS/ CÓMO LOS CRIOLLOS negros hurtan plata de sus amos para enganar a lãs yndias
putas, y lis negras criollas hurta para servir a sus galanes espanoles y negros./”Caymi culqe, yndia”
{“Aqui tienes plata, yndia"} /”Apo, muy cino” {Senor, muy senor”}/ luxuria/ (Ayala, 1980: 669).
CHAFARIZES E MÁSCARAS: PEQUENA REFERÊNCIA A PARTICIPAÇÃO
AFRICANA NA PRODUÇÃO ARTÍSTICA MINEIRA
1. Professor substituto na UFOP. Mestre em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.
2. RUSSELL-WOOD, A. J. R. Através de um prisma africano: uma nova abordagem ao estudo da diáspora
africana no Brasil colonial. Tempo, Rio de Janeiro, n. 12, dez, 2001, p. 25.
3. ALENCASTRO, Luis Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul (séculos XVI eXVII). São
Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 9.
4. REIS, João José [1985]. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. Ed. rev. e ampl. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003; CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e
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________________________ \
epidemias na Corte imperial. São £áulo: Companhia das Letras, 1996; SLENES, Robert W. Na senzala uma flor:
esperanças e recordações na formação da família escrava (Brasil, Sudeste, século XIX). Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999; Ainda nessa pequena e incompleta relação, podemos acrescentar os trabalhos de COSTA E
SILVA, Alberto da. A enxada e a lança: a África antes dos
portugueses. Rio de Janeiro/São Paulo: Nova Fronteira/Edusp, 1992; ___________________ . A manilha e o
libambo: a África e a escravidão de I500_a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional,
2002; MELLO E SOUZA, Marina de. Reis negros no Brasil escravista: história da Festa de Coroação de Rei
Congo. Belo Horizonte: Ed. da UFMG 2002. A expressão “história codificada e não escrita” foi adaptada de
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001, p. 255.
140
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
dois grupos acabou sendo encontrada na miscigenação ocorrida no seio da primitiva geração
de mestres e oficiais portugueses na primeira metade do século XVIII, emblematicamente
representada pelo português Manoel Francisco Lisboa e por seu filho mulato, Antônio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho.5 Dessa forma, ficava estabelecida uma conexão
relativamente fácil de visualizar e comprovada por documentos entre as influências
européias e uma “arte verdadeiramente brasileira”, dentro dos quadros da produção artística
em Minas Gerais. 6
O silêncio quanto à participação escrava e forra nesses estudos, em específico a de
africanos, parecia não incomodar, mesmo que o foco fosse uma sociedade escravista em que
o mundo do trabalho era quase exclusivamente dominado pelos escravos. Nas palavras de
um dos maiores estudiosos da arquitetura mineira, “o Brasil, até século XVIII, era
integralmente e só português (...). Portuguesa era a maioria da população ponderável, os
usos e costumes, as ferramentas, o modo de ser da colônia”. 7 Nessa perspectiva, somente
após a descoberta do ouro nos sertões da colônia e com a posterior miscigenação entre as
populações é que surgiria “uma nova gente”, formada por pardos e mulatos engenhosos. 8
Os artífices pardos/mulatos e os materiais locais (pedra-sabão e a madeira) seriam as
principais chaves para o entendimento da rica e diversificada produção artística, verificada
na segunda metade do século XVIII, em Minas Gerais. A essência da autenticidade,
singularidade e/ou originalidade da arte colonial em Minas seria encontrada na escultura de
madeira e pedra-sabão (esteatita), materiais que possibilitaram novas concepções plásticas. 9
Entre esses materiais, a pedra-sabão se apresenta como “a mais singular afirmação material
da civilização mineira”,10 pois foi nela que o artista- síntese do Barroco mineiro, Antônio
Francisco Lisboa, o Aleijadinho, “pôs o seu gênio de escultor” (Machado, 1985:216),
“assimilando heranças formais e lições de técnica de toda a anterior experiência plástica
luso-brasileira” (Ávila, 1984:27).
5. Essa perspectiva é bem explicitada em: CARRATO, José Ferreira. Igreja, lluminismo e escolas mineiras
coloniais. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1968, pp. 7-8. Veja também: MELLO, Suzy. Barroco mineiro.
São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 49; VASCONCELLOS, Sylvio. Vida e obra de Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho. São Paulo: Cia. Ed. Nacional: INL/MEC, 1979, p. 3.
6. MACHADO, Lourival Gomes. “Arquitetura e artes plásticas”, in HOLANDA, Sérgio Buarque de (dir).
História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1985,1.1, v. 2, pp. 109 e 119-20.
7. VASCONCELLOS, Sylvio. “O Aleijadinho e a consciência de nacionalidade (I)”, in LEMOS, Celina
Borges. Sylvio de Vasconcellos: textos reunidos: arquitetura, arte e cidade. Belo Horizonte: Editora BDMG
Cultural, 2004, p. 87. O texto de Vasconcelos foi publicado originalmente em 1968.
8. VASCONCELLOS, Sylvio. “Vida e arte do Aleijadinho (I)”, in Lemos (2004: 263). O texto de
Vasconcelos foi publicado originalmente em 1964.
9. ÁVILA, Affonso. Iniciação ao Barroco mineiro. São Paulo: Nobel, 1984, p. 17; MACHADO, Lourival
Gomes. Barroco mineiro. 3a ed., São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 169.
10. NEVES, Joel. Idéias filosóficas no Barroco mineiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986, p. 133.
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C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
Quanto à participação escrava, afirma que eram simples serventes e que “faziam os trabalhos
mais árduos e os mais simples” (Trindade, 2002:36 e 71).
Outros estudiosos chegaram a conclusões muito próximas às apresentadas acima.
Eles geralmente recorreram à documentação produzida pela Câmara (carta de exame e
registro de licenças ou provisão de oficio) para recomporem o exercício dos ofícios
mecânicos, especialmente em Vila Rica. De acordo com as referidas fontes, nessa vila, o
fazer mecânico era dominado pelos homens livres, sendo a participação de escravos e forros
pouco expressiva.14
É preciso chamar atenção para as características das fontes manuseadas em grande
volume nesses trabalhos, isto é, os contratos de arrematações e a documentação camarária
(cartas de exame e licenças de ofícios). O contrato era uma peça jurídica firmada entre o
arrematante e o cliente, em que cada um assegurava o cumprimento das condições
acordadas, o que de forma alguma garantia a participação direta e/ou a autoria do
arrematante na obra arrematada, já que ele poderia subempreitar parte ou mesmo toda a
obra para outro oficial. Além disso, o arrematante poderia colocar escravos especializados,
seus ou alugados, sob sua supervisão ou de algum oficial de confiança. Muitos desses
registros de subempreitadas não são localizados na documentação, pois era recorrente o
estabelecimento de acordos baseados simplesmente na palavra fiada, o que dificulta
bastante o trabalho de atribuição de autoria.
Quanto à documentação camarária relacionada ao registro de cartas de exame e de
licenças para o exercício das atividades mecânicas, temos sugerido que tais documentos
abarcavam um número não muito abrangente dos oficiais mecânicos, especialmente os
forros. Talvez os valores cobrados e as exigências dos testes tenham impedido muitos
artífices de regularizarem sua atividade perante as autoridades. Por outro lado, é possível
que outros tenham estrategicamente optado por permanecerem como simples jomaleiros
sem registro, circulando ao sabor das oportunidades e atuando em obras arrematadas ou sob
a responsabilidade de mestres e de oficiais de reconhecido prestígio.
As restrições das fontes utilizadas por tais autores não oferecem muitos subsídios
para aferir, com segurança, a presença escrava e forra no conjunto de artífices mineiros do
século XVIII. Uma alternativa à limitação dessas fontes pode ser encontrada,
particularmente, no trabalho cuidadoso com inventários, testamentos,
14. RIOS, Wilson de Oliveira. A lei e o estilo: a inserção dos ofícios mecânicos na sociedade colonial brasileira
(Salvador e Vila Rica, 1690-1750). Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 2000, pp. 121-2; SILVA FILHO,
Geraldo. O oficialato mecânico em Vila Rica no século XVIII e a participação do
escravo e do negro. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Dissertação de Mestrado, 1996,
p.81.
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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
registros de notas e ações cíveis, visando à reconstituição da presença dos escravos e dos Nos contratos de obras arrematadas na Câmara, João Barbosa, entretanto, era o
forros nas equipes de trabalho. Como essa questão já foi abordada anteriormente, único oficial de pedreiro citado nos recibos, sem referência aos escravos oficiais. Não seria
examinaremos a vida profissional de um pedreiro de Vila Rica para visualizarmos as de outra forma, já que estamos falando de uma sociedade escravista, perpassada por uma
dinâmicas da oficina de um construtor e, especialmente, evidenciarmos a participação e a série de mecanismos institucionalizados que delimitavam os campos de atuação das
relativa autonomia dos cativos especializados no dia-a-dia das obras desses arrematantes.15 populações livre, liberta e escrava.
Trata-se do pedreiro português, natural do Porto, chamado José Barbosa de Oliveira, Com a leitura mais cuidadosa do inventário desse construtor foi possível identificar
atuante entre 1780 e 1810. Participou como irmão das duas principais associações religiosas novas facetas desse ambiente de trabalho que sugeriam o modo de funcionar das
dos homens livres da freguesia onde residia: a Ordem Terceira de São Francisco de Assis e arrematações. No documento foram listados os devedores do referido pedreiro, destacando-
a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz. Era pedreiro de boa instrução, possuía se as contas da construção da casa do Capitão José da Silva Amorim, no ano de 1807, com
um Livro Mestre do oficio de pedreiro e servia de escrivão da Irmandade do Santíssimo a quantidade de dias trabalhados e os valores dos jornais da fábrica. Na obra, que custou
Sacramento na Matriz de Antônio Dias, em Ouro Preto. É possível que, concomitantemente 505$000 réis e que durou quase um ano, o proprietário da fábrica trabalhou 43 dias. Na
ao ofício de pedreiro, desempenhasse funções em alguma ordenança militar. Quando maior parte do ano, a obra ficou sob a responsabilidade dos escravos pedreiros João
faleceu, em 1810, constava em seu inventário um monte-mor de 5:606$017 réis, que incluía Femandez, pardo, e Manuel, de nação mofumbe, que trabalharam, respectivamente, 343 e
jóias, móveis, imóveis, ferramentas, dívidas, créditos e catorze escravos, dentre os quais 180 dias. Provavelmente, eram esses escravos oficiais que resolviam muitos dos problemas
cinco com o ofício de pedreiro: João Femandez, pardo; Roque, de nação benguela; cotidianos no local de trabalho.
Custodio, pardo (pedreiro e carpinteiro); Manoel, de nação mofumbe, e João, de nação Lembramos que a presença de cativos especializados fomentava as distinções entre
congo. A outra parte do plantei era composta pela família do pedreiro João: sua esposa, eles na fábrica. Para tanto, basta observarmos que os cativos com oficio de pedreiro, como
Rosa, de nação angola, e as filhas do casal, Maria, crioula de 14 anos, Ana, crioula de 12 João Fernandes e Manoel, custavam $337 réis por dia, ao passo que os sem ofício, $150
anos, e Sebastiana, crioula de 9 anos, além de Marta, de nação angola, esposa do pedreiro réis diários. O arrematante/oficial, fazendo jus à sua posição na hierarquia, recebia $762
Manoel, Isabel, de nação angola, e mais três escravos africanos. 16 réis por dia.17
A “fábrica” ou oficina de João Barbosa era composta por ele, seus cinco escravos A forma como se organizou essa fábrica sugere que o construtor se aproximava mais
oficiais e mais três escravos serventes. Também foi identificado no inventário o conjunto de da figura de um administrador de obras, que se valia das habilidades de seus oficiais cativos
ferramentas: seis martelos de pedreiros, seis picões e sete colheres de pedreiro. A para satisfazer suas arrematações.18 O tamanho e a capacidade técnica de sua fábrica
equivalência entre o número de oficiais pedreiros e o de ferramentas reforça a noção de influía, em certa medida, no prestígio que ele tinha entre seus clientes e camaradas de
trabalho coletivo nesse ambiente. ofício. Expressões como “de sorte se conservou sua fábrica” ou “dono de grande fábrica”
sinalizam nessa direção.
As informações acima suscitam observações nos trabalhos de alguns críticos dos
^ esquemas interpretativos originados no âmbito do modernismo brasileiro, porque, ao se
15. Algumas dessas questões foram trabalhadas em: SELVA, Fabiano Gomes da. “Trabalho e escravidão nos elegerem fontes eivadas de restrições jurídicas, como contratos de arrematação e cartas de
canteiros de obras em Vila Rica no século XVHI”, in PAIVA, Eduardo França (org.). Brasil- Porlugal: exame ou de licença de ofícios, acabam sendo superestimados os trabalhadores reinóis. A
sociedades, culturas e fopnas de governar no mundo português (sécs. XVI a XVIII). São Paulo: Annablume, 2006,
crítica não se embasou num conhecimento mais profundo dos outros universos culturais
pp. 279-310.
16. Museu da Inconfidência, Casa do Pilar (MICP). Inventário, 2o ofício, códice 19, auto 198, José Barbosa de que compunham a sociedade mineira no período colonial.
Oliveira, Vila Rica, 20 nov 1810. Para os diversos significados que a família escrava tinha tanto para os
escravos quanto para os senhores, ver: Slenes (1999:131-236). Sobre as relações entre ocupação profissional
e família escrava ver FLORENTINO, Manolo & GÓES, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e
tráfico Atlântico (Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, pp. 103-13;
PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII. 2a ed., São Paulo: Annablume, 17. MICP. Inventário, 2° ofício, cód. 19, auto 198, fls. 13 - 13v.
2000; PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia. Belo Horizonte: UFMG, 2001. 18. Para A. J. R. Russell-Wood, o artesão proprietário de escravos: “(...) era, com freqüência, mais um feitor do
que artesão praticante, supervisionando o trabalho de escravos negros ou mulatos e depois dando apenas os
toques finais.” RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, p. 62.
144 145
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
19. Entre 1698 e 1770, mais de 341 mil escravos entraram nas Minas, permanecendo como grupo majoritário até
1776, quando a população livre começou a superar percentualmente os escravos. Cf. Russell-Wood (2005:
164).
20. Sobre o abastecimento de água em Minas Gerais no período colonial, ver: MOURÃO, Paulo Kruger Corrêa.
Abastecimento de água em Minas nos tempos coloniais. Kriterion, Belo Horizonte, n. 35-36, jan-jun, 1956,
pp. 234-46; e CARVALHO, Feu. Pontes e chafarizes de Villa Rica de Ouro Preto. Belo Horizonte: Edições
Históricas, s/d.
146
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
tão inconstante como-aquela das primeiras décadas da extração auríferas. Por isso, não
tardaram em regulamentar o uso, a ocupação e o abastecimento do espaço urbano,
especialmente estabelecendo editais na intenção de assegurar a manutenção da população
citadina com o abastecimento regular de víveres, água e madeira.21
O abastecimento de água fazia parte das preocupações e atribuições camarárias
desde o início da formação de Vila Rica, o que motivou a constituição de redes de
aquedutos para abastecer chafarizes e fontes ainda na década de 1720. 22 No total foram
construídos dezoito chafarizes, sendo a maioria durante as reformas urbanas implementadas
entre 1740 a 1760, movimentando gastos que chegaram a 12:376$566 réis. Na mesma
época, também se executou o calçamento de dezenas de ruas na vila. É possível que,
durante o Setecentos, essa vila mineradora tivesse a maior rede de chafarizes públicos da
América portuguesa.23
A construção de chafarizes e fontes era muitas vezes motivada por solicitações e
reclamações dos moradores da vila. As comunidades nos arraiais usavam, com certa
freqüência, abaixo-assinados para solicitarem ao Senado da Câmara a construção e o
conserto desses equipamentos urbanos, bem como para a resolução de pendengas por causa
do uso particular dos córregos, riachos, fontes e chafarizes em detrimento do bem
comum.24
Usualmente, a Câmara publicava editais de arrematação para a edificação e/ou
reparo dos chafarizes e fontes, confiando-os a importantes arrematantes, pedreiros e
mestre-de-obras. Vencia a concorrência quem oferecesse menor preço e se
21. Sobre a importância do abastecimento às vilas, dentro da política de acomodação das populações nos centros
mineradores, ver: ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira
metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. Sobre as atribuições do Senado da Câmara na
regulação do espaço das vilas, ver: RUSSELL-WOOD, A. J. R. O governo local na América Portuguesa: um
estudo de divergência cultural. Revista de História, v. LV, n. 109, 1977, pp. 25-79.
22. João Domingues da Veiga recebeu 600$000 réis pelo conserto nos aquedutos do chafariz que existia na praça
da vila em 1726. Ver: APM, CMOP, cód. 21.
23. A cidade do Rio de Janeiro, centro político-administrativo da Colônia, tinha apenas 11 chafarizes ao final do
Setecentos, incluindo o do Pocinho da Glória e a fonte dos Amores no Passeio Público, do Mestre Valentim.
Cf. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade, da invasão francesa até
a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 36.
24. A documentação sobre o sistema de abastecimento de água em Ouro Preto é considerável. Quanto à
reclamação da população a respeito do fornecimento de água, bem como das construções de novos
chafarizes, citamos os seguintes documentos: Arquivo Público Mineiro (APM), Câmara Municipal de Ouro
Preto (CMOP), Documentação Não Encadernada (DNE), caixa 16, doc. 16, 23 jan 1745; CMOP, DNE, cx.
16, doc. 44, 27 abr 1745; CMOP, DNE, cx. 16, doc. 72, 23 jun 1745; CMOP, DNE, cx. 18, doc. 23, 03 mar
1746; CMOP, DNE, cx. 32, doc. 33, 09 abr 1755; CMOP, DNE, cx. 77, doc. 85, 1804: CMOP, DNE, cx. 79,
doc. 37, 1806; CMOP, DNE, cx. 79, doc. 38, 07 jun 1806.
147
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
comprometesse com seus bens ou de seus fiadores para concluir a obra no tempo
previamente estipulado. O arrematante quase sempre executava a obra sob orientação de
um risco (planta, desenho), observando as condições - conjunto de cláusulas como tipos de
rochas, quantidade de bicas, formas de vedação das canalizações, etc.
- fornecidas pelo contratante.
Em outras situações era possível que os próprios moradores concorressem
diretamente para a execução da obra, com seus escravos e ferramentas, como sugere o
abaixo-assinado enviado ao procurador da Câmara de Vila Rica, em 1745, em que:
Os moradores insistiam em não fazer uso dos recursos da Câmara para a construção
dessa nova fonte de água. Igualmente importante parece ser a inclusão do
pedreiro/calceteiro Diogo Alves de Araújo Crespo no rol de moradores que encaminharam
o documento, visto que ele se comprometeu, juntamente com João Soares Gomes, a
executar a obra no prazo de dois meses às suas custas. Na autorização do procurador, não
consta a exigência de risco ou desenho do chafariz, nem que tenha sido enviado especialista
(“louvados”) para averiguá-lo; apenas se faz referência à disposição espacial da fonte e à
existência de uma “carranca de bronze” e de um tanque, preocupações muitofnais voltadas
para o volume e o aproveitamento da água canalizada do que para questões es^ticas.
No caso acima, a localização parece contribuir para um menor dispêndio de tempo e
recursos dos morador-eé. Isso porque o transporte da água era feito em vasilhames pelos
escravos de ganho que, juntamente com os escravos domésticos, abasteciam as residências
de seus proprietários ou de quem pagasse por esse serviço.
25. APM, CMOP, DNE, caixa 16, doc. 44, 27 out 1745, fl. 2.
148
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
26. Sobre a importância dos chafarizes, pontes e outros locais da urbe para a configuração social dessas
populações, ver: WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros
em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec, 1998, pp. 182 e 194.
27. APM, CMOP, DNE, caixa 18, doc. 23, 03 mar 1746, fl. lOv.
28. Grotescos designam elementos de uma arte ornamental originária da Antigüidade, localizada no século XV
em escavações feitas em grutas na Itália, e disseminada nos séculos seguintes em desenhos, gravuras,
pinturas, utensílios e jóias, municiando pintores, escultores, arquitetos e construtores de rico material
decorativo. Cf. KAYSER, Wolfgang. O grotesco: configuração na pintura e na literatura. São Paulo:
Perspectiva, 1986, pp. 17-20.
29. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia da Letras, 2001, pp. 163-78. O caráter
relativamente popular do repertório que compunha os grotescos ajuda a entender como eles foram
absorvidos por mestres-de-obras e pedreiros ibéricos. Em Lisboa, a ornamentação do portal- retábulo do
Mosteiro dos Jerônimos (1502) ilustra bem a influência dos grotescos na cultura dos construtores
portugueses.
149
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Detalhe de um painel de grotescos italiano, 1520. Fonte: Gruzinski (2001: Figura I. Carranca de um chafariz em Ouro Preto.
168) Fonte: Escola de Cantaria/DEMIN/UFOP.
150
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
30. “Os grotescos e a mitologia grego-latina neutralizam certos princípios ocidentais de realidade propagados
pela Igreja, agem como um curto-circuito nas formas impostas pela nova ordem visual. Oferecendo uma
sintaxe sem preconceitos, operando à margem de uma ortodoxia tridentina exigente e rígida, permitem
combinações que ordenam, de acordo com outros eixos, tradições que coexistem em solo americano.” Cf.
Gruzinski (2001: 195).
31. O pesquisador Moacyr Laterza estudou a ornamentação de alguns chafarizes mineiros e propôs que as
carrancas barrocas fossem estudadas sob a influência dos grotescos. Cf. LATERZA, Moacyr. Alguns
aspectos da gárgula barroca mineira. Barroco, Belo Horizonte, n. 12, 1982/1983, pp. 205-6.
32. O aspecto coletivo e o uso de oficiais escravos na produção artística e mecânica em Minas Gerais foram
abordados por outros pesquisadores. Ver: Campos (2005:80); SANTIAGO, Camila Fernandes Guimarães.
Cativos da arte, artífices da liberdade: a participação de escravos especializados no Barroco mineiro.
Comunicação apresentada no II Simpósio Escravidão e Mestiçagem: História Comparada, Belo Horizonte, 2006,
mimeo; MENESES, José Newton Coelho. Artes fabris e serviços banais: ofícios mecânicos e as Câmaras no final
do Antigo Regime (Minas Gerais e Lisboa, 1750- 1808). Niterói: UFF/Programa de Pós-Graduação, Tese de
Doutorado, 2003.
151
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
33. LOPES, F. Antônio. Câmara e Cadeia de Vila Rica. Anuário do Museu da Inconfidência, Ouro Preto, 1952, p.
207.
34. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), caixa 125, doc. 34.
35. Em Vila Rica, as “obras secundárias podiam, ser realizadas pelos próprios moradores, que usufruíam delas, ou
financiadas pelas irmandades leigas”. Cf. BORREGO, Maria Aparecida de M. Códigos epráticas: o processo de
constituição urbana de Vila Rica colonial. São Paulo: Annablume, 2004, p. 140.
36. Sobre sepultamentos nas irmandades dos negros, ver: EUGÊNIO, Alisson. O crepúsculo dos confrades: morte
e diferenciação social na sociedade escravista mineira. Revista do IFAC, n. 4, dez, 1997, pp. 71-5.
152
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
Na carranca acima percebemos que os oficiais de pedreiro não passaram com a bica
da rede de abastecimento pela boca da figura, como seria usual, mas criaram um orifício
acima do lábio superior, talvez para reforçar as características de um componente de
importância quase universal no cotidiano das populações do continente africano, as
máscaras.
37. Ver: PATVA, Eduardo França. “Mestiçagem e impermeabilidade cultural nas áreas urbanas das Minas Gerais,
(Brasil, século XVIII, XIX e XX)”, in GARCIA, Clara & MEDINA, Manuel Ramos. Actas dei 3er. Congresso
Internacional Mediadores Culturales. México: CEHM/Condumex, 2001, p. 378.
153
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Figura 3: Máscara da Costa do Marfim, em madeira. Figura 4: Máscara Warenga da região do Congo, em
Fonte: LEUZINGER, EjTheArt of Black África. New madeira. Fonte: Laude (1968:163).
York: Rizzoli International Publications, 1977, p.
230.
38. PAULME, Denise. Las esculturas dei África negra. México: Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1962;
LAUDE, Jean. Las artes dei áfrica negra. Barcelona: Editorial Labor, 1968, pp. 139-79; MONTI, Franco. As
máscaras africanas. São Paulo: Martins Fontes, 1992; WILLETT, Frank. AfricanArt. Revised edition,
Singapore: Thames and Hudson, 1993.
154
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
39. Cf.: Monti (1992: 99); PALERMO, Miguel Angel & DUPEY, Ana Maria. Arte popular africana. Buenos Aires:
Centro Editor de América Latina S.A, 1977, p. 66; Laude (1968: 61-76 e 158).
155
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
espaço sagrado. Essa evidência é reforçada pela constatação de que, entre os grupos bantos
da África Centro-Ocidental, os ancestrais e os espíritos da natureza geralmente “habitavam
fontes de água, pedras, árvores e o mundo dos mortos”. 40
Ainda como anotamos acima, existiam, na confecção das máscaras, preceitos que
deveriam ser observados, especificamente, o tipo de material usado e os rituais praticados
por determinados grupos. O material pétreo empregado nas máscaras do chafariz em
questão é uma variação do característico quartzito de Minas Gerais, o quartzo-clorita-
xisto,41 que apresenta um tom esverdeado de fácil distinção dos esteatitos (pedra-sabão) de
mesma tonalidade. Como a rocha mais abundante, nos arredores de Diamantina, é o
quartzito de tonalidade clara, o uso do quartzito xistoso de cor esverdeada se fez mesmo
contrariando o costume adotado entre os construtores coloniais de aproveitar as pedreiras
mais próximas da obra, visando a reduzir tempo e custos. Entretanto, é interessante perceber
que essas rochas (quartzito, xisto, esteatito) têm registro na estatuária africana. Entre os
bacongos, por exemplo, os chefes e ancestrais eram esculpidos em esteatito, em tons que
variavam do cinza ao esverdeado, muito próximos das tonalidades assumidas pelo quartzo-
clorita-xisto.42 Será que era intencional a seleção desse tipo específico de rocha, seja por
suas qualidades como dureza, tonalidade e/ou pelos usos anteriores nos rituais africanos?
Acreditamos ser difícil dar uma resposta satisfatória no atual momento da pesquisa,
principalmente por nos faltar informações a respeito dos construtores e de fontes que
confirmem níveis de influência da comunidade de africanos e afro- americanos na
edificação da obra. Quanto à.produção e ao uso ritual de máscaras nesse meio, podemos
apresentar indícios que sugerem a confecção e a utilização desse elemento no mesmo espaço
minerador. É o que se depreende do registro dos viajantes J. B. Von Spix e C. F. P. Von
Martius, em 1818, quando relatam que:
40. MELLO E SOUZA, Marina de. Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. Tempo, Rio de
Janeiro, n. 11, jul, 2001, p. 174.
41. É uma rocha metamórfica com tonalidade verde.
42. Cf.: Silva (2006); e ALLISON, Phillip. African Stone Sculpture. New York/Washington: Frederick A. Praeger,
1968, pp. 42-6.
156
C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
43. SPIX, J. B. Von & MARTIUS, C. F. P. Von. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1938, v. 2, p. 129, grifo nosso.
44. Amparada nos trabalhos de alguns africanistas norte-americanos, essa autora tem chamado atenção para a
existência de um catolicismo africano nos séculos XVI, XVII e XVIII que combinava o
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS C HAFARIZES E M ÁSCA RAS
Voltando às máscaras, o “negro de máscara preta” e “sabre em punho”, à frente da Ao final, o manuseio ritual desses vestígios, como as máscaras nas festividades de
corte real, teria alguma função religiosa? Seria ele o responsável pelo controle da confecção coroação de reis e rainhas nas comunidades de africanos e afro-americanos, sugere indícios
desses objetos na comunidade, o “chefe das máscaras”? É possível que sim, uma vez que que nos permitem não só pensar as dimensões que práticas religiosas (européias e africanas)
sua disposição, logo à frente dos antigos e novos reis e rainhas, poderia estar relacionada adquiriam na região, mas também observar a existência de indivíduos capazes de
aos mecanismos usados para legitimar a nova realeza dentro da comunidade negra.45 executarem essas peças dentro de preceitos e concepções plásticas, apropriadas ou
O viajante francês Francis Castelnau, que visitou outra localidade mineira, Sabará, recriadas, muito particulares para essa comunidade negra.
em 1843, também descreveu as festividades para eleição do rei congo. Em suas palavras, Conclusão
esse rei tinha “grande influência sobre os companheiros”, posição bem diversa da descrição Tentamos mostrar, neste pequeno exercício, que o olhar do historiador para o
feita 25 anos antes pelos viajantes Spix e Martius para o Distrito Diamantífero. Castelnau universo cultural das populações das vilas mineiras no século XVIII não pode negligenciar
relata muito sucintamente o evento, destacando que o rei e a rainha dos negros traziam à a heterogeneidade dessas comunidades. Identificar e catalogar formas e objetos nesses
cabeça “coroas de prata maciça e cetros dourados”, muito bem protegidos por “um grande espaços pode ser importante em um primeiro momento do trabalho, mas isso deve vir
guarda-chuva” (apud Mello e Souza, 2002: 283-4). Ainda segundo ele: “Coisa digna de acompanhado da exploração dos significados que tais elementos possam adquirir nas
reparo, o rei traz uma máscara preta, como se tivesse receio de que a permanência no país tradições culturais diversas que coexistem e, às vezes, mantêm- se impermeáveis em solo
lhe tivesse desbotado a cor natural.” Analisando esse relato, Marina de Mello e Souza colonial. Nesse sentido, é temerário negar a participação de escravos e libertos, africanos e
acredita que mestiços na produção de significados dentro da produção artística mineira sem antes
descortinar a dimensão africana em nossa formação. Temos noção, entretanto, das
ao usar a máscara sob a coroa de prata, o rei Congo punha lado dificuldades que nos aguardam, pois geralmente o pesquisador acaba por se deparar com o
a lado sua África natal e o novo mundo para o qual foi trazido, silêncio das fontes a respeito dessas questões, o que exige grande esforço para o manuseio
ressaltando suas raízes africanas. Ao usar uma máscara negra, de diversificada gama de documentos e muita engenhosidade para decodificar dados que,
além de todas as implicações mágicas que isto poderia ter, o rei muitas vezes, não eram acessíveis nem para o grupo senhorial.
Congo afirmava a sua cor original (2002: 286).
\
—
cristianismo ensinado pelos religiosos no Congo com elementos da cosmogonia banta. Para maiores
informações, ver: THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico (1400-1800).
Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pp. 312-54.
45. A legitimação dessa eleição podia perpassar esferas distintas. Primeiro, como relatado na descrição dos
viajantes Spix e Martius, a nova realeza buscava visitar o intendente do distrito para ali formalizar a nova
eleição e se legitimar “como representante dos negros no mundo dos brancos”. Segundo, já dentro da
comunidade negra, “os mecanismos de legitimação do poder do novo rei passavam pela sua escolha e pelos
rituais festivos como a coroação, os cortejos e as danças dramáticas” (Mello e Souza, 2002: 282).
158 159
VIVER À GANDAIA: Povo NEGRO NOS MORROS DAS MINAS
1
Francisco Eduardo de Andrade
A história da mineração nas Minas do ouro pode ser caracterizada, sob o ponto de
vista da exploração e das técnicas empregadas, como um esforço geral de subida: desde o
leito do ribeiro onde se depositou o aluvião aurífero de pintas ricas, passando por tabuleiros
(vale imediato) e grupiaras (a meia encosta), até atingir os altos da serra, quando
efetivamente ocorreu um aprofundamento com abertura de catas ou de buracos que
serviram de toscas galerias.
É difícil datar o começo de cada inflexão nas formas de exploração, incluindo- se as
melhorias ou adaptações técnicas e os novos arranjos no processo e divisão do trabalho.
Também não se pode esquecer que essas mudanças não aconteceram da mesma maneira em
todas as Minas, e nem começaram ao mesmo tempo em todos os
1. Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor da Universidade Federal de Ouro
Preto.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
2. Para uma abordagem, que deve ser considerada criticamente, das técnicas empregadas na mineração do ouro
até início do século XIX, ver: ESCHEWEGE, Wilhelm L. von. Pluto brasiliensis. Belo Horizonte/ São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1979, v. 1, pp. 167-95; FERRAND, Paul. O ouro em Minas Gerais. Belo Horizonte: Centro de
Estudos Históricos e Culturais/Fundação João Pinheiro, 1998.
162
V IVER À G ANDAIA
aplicação do texto legal, durante o século XVIII, o papel dos ricos foi priorizado na
mineração, concedendo-se datas maiores e mais promissoras aos que tivessem maiores
posses (escravos e capital) para sustentar uma grande lavra.
Os escravos jomaleiros que faiscavam ou exploravam terras auríferas por conta
própria, seguindo as ordens dos seus senhores, não tinham como obter, por si mesmos, uma
data mineral. Os senhores pobres, ou que eram excluídos da partilha de algum
descobrimento nos vales ou nas faldas das montanhas, devido às tramóias ou outros
motivos, deixavam os seus escravos trabalharem como jomaleiros para que tentassem a
sorte nos interstícios das lavras alheias. Havia também escravos que faziam seus próprios
acordos de trabalho nas explorações dos mineradores.
Os jomaleiros lavravam nas partes de ribeiros abandonadas ou não reclamadas, mas
usavam também faiscar nos depósitos que resultavam das lavagens dos mineradores.3
Esses trabalhadores negros e mestiços investigavam as chances de boas explorações
nos morros e ribeiros, não somente nos territórios das vilas, mas muitas vezes nas terras
desconhecidas dos sertões. Junto com notícias do descobrimento das minas de Pitangui, no
sertão da Comarca do Rio das Velhas, veio a denúncia ao governo da capitania de Minas
Gerais, em 1715, de que haviam sido “negros e carijós os que fizeram o descobrimento [no
morro] e quando seus senhores lhes acudiram já eles tinham sumido o que haviam tirado”.4
Talvez isso fosse meramente uma justificativa dos poderosos locais para burlar a cobrança
dos quintos reais, mas, de fato, pouco tempo antes, havia chegado uma reclamação ao
governador, agora contra os senhores com força de autoridade, que ameaçavam a posse de
um mestiço descobridor nas novas minas. O governador notificou o superintendente:
3. Os faiscadores nas minas de Itabira, por exemplo, souberam aproveitar da extração lucrativa dos mineradores
em certa época. Cf. SAINT-HILA1RE, Auguste de. Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais.
Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975, p. 122.
4. Arquivo Público Mineiro (APM), Seção colonial (SC), códice 4, f. 187v, 24 mar 1715.
5. APM, SC, códice 9, f. 33v-34, 10 ago 1714.
163
■f
Os escravos e livres pobres mais perscrutadores eram seduzidos pelas novidades que
outros jornaleiros ou os escravos fugidos e quilombolas costumavam trazer do sertão.
Supõe-se que tenha havido uma “rede de informações criada pelos quilombolas”, ou no
meio da escravaria, fazendo circular notícias que alertavam tanto sobre a movimentação das
tropas de repressão quanto sobre os meios mais promissores de ganho. 6
Em 1760, um escravo chamado José Nagô, retomando uma imagem tradicional,
disse saber de uma lagoa com muito ouro que ficava num campo próximo a um quilombo.
Alçaram-no, então, em guia de uma bandeira chefiada por Bartolomeu Bueno do Prado, no
sertão oeste das Minas. No entanto, quando se experimentou as pintas do metal, socavando
as vertentes da lagoa e os córregos contíguos, só “se lhe achou (...) malacacheta que parecia
ouro, sem que se achasse faisqueira alguma dele”. 7 A estreita ligação, bastante comum na
época, entre a localização dos quilombos do sertão e a existência de ricas minas nas suas
vizinhanças talvez seja um bom indício da mediação quilombola de alguns desses relatos ou
notícias de supostos tesouros escondidos.
Os trabalhadores negros e mestiços, muitas vezes, ao longo do século XVIQ,
revelavam os segredos de explorações nos ribeiros ou nas catas das serras somente se
estivesse em jogo algum benefício. Por isso havia sempre uma premiação prevista aos
escravos que achassem diamantes de valor ou denunciassem jazidas de metais preciosos.
Embora a classificação da premiação concedida aos escravos “pela achada de diamantes”
não constasse em lei escrita, o costume determinou prêmios aos achadores das lavagens do
cascalho: desde uma faca flamenga para quem achasse diamante de quatro vinténs (0,44 g)
até a concessão da alforria para aquele que manifestasse uma pedra de uma oitava (32
vinténs ou 3,5 g de peso).8 É certo supor,
6. GUIMARÃES, Carlos Magno. Qtíiíofribos e política (MG, século XVIII). Revista de História, São Paulo, n.
132, 1995, p. 76. v
7. APM, SC, códice 103, f. ll-12v [2 out 1760]; APM, SC, códice 103, f. 8v-10v, 13 nov 1760.
8. APM, Secretaria de Governo (SG), caixa'52, documento 15, 14 mar 1801. O alvará régio de 24 de dezembro de
1734 já determinava que>escravo que achasse e manifestasse diamante de vinte ou mais quilates seria
alforriado em nome do rei. Também se tornaria forro o escravo que denunciasse alguma apropriação de
diamante contrária ao direito exclusivo do rei. Caso o senhor não manifestasse o diamante e o seu escravo o
denunciasse, este obteria, além da alforria, um prêmio de 200$000 réis. Tendo-se praticado um ilícito mais
grave, que era o extravio desses diamantes do rei, e sendo o denunciante um cativo, o prêmio ainda seria a sua
alforria. No alvará de 11 de agosto de 1753. na época do contrato da demarcação diamantina, observava-se que
o escravo denunciante do comércio ilegal das pedras seria libertado com o prêmio pecuniário obtido pela
denúncia, e o que sobrasse deveria entregar-se ao liberto. Cf. FERREIRA, Francisco Ignácio. Repertório jurídico
do mineiro. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1884, pp. 41-8.
164
V IVER À G ANDAIA
portanto, que entre os escravos das Minas sempre havia alguma expectativa de alforria
quando negociavam direitos com os senhores e outras autoridades coloniais.
Todavia, o mais comum entre esses exploradores do sertão parece ter sido, havendo
chance de uma autonomia proveitosa, guardar segredo sobre os achados. É isso bastante
compreensível, observando-se as relações costumeiramente violentas e a hierarquia
político-jurídica da época. Estava sempre presente o fato de os poderosos conseguirem
freqüentemente tirar a posse da lavra ou os direitos de descobrimento das mãos dos mais
fracos ou desprotegidos.
Se os libertos, os escravos ou os livres pobres que trilhavam o sertão permanecessem
faiscando os cascalhos pouco promissores dos ribeiros, os trabalhos dos seus ajuntamentos
eram admitidos pelos coloniais, ou mesmo protegidos por alguns agentes do governo. Mas
tudo mudava de figura se a extração de ouro assumisse maior vulto. No Rio do Peixe, o
comandante encarregado da vigilância do descoberto encontrou 12 forros minerando nos
ribeiros, mas avisou o governador:
165
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
com seu senhor deixá-lo ali no período das chuvas, pois havia de conseguir um jornal
semanal de duas oitavas. Não se sabe se o trato vingou. De qualquer modo, logo depois o
administrador mandou um prático de minas e alguns escravos da fazenda fazerem
explorações nos morros. Ele quis ainda que o governo da capitania reconhecesse o
descoberto que manifestou...10
Essa história permite compreender uma parte obscura dos conflitos exploratórios das
primeiras décadas do século XVIII, e característicos do imaginário dos descobrimentos das
Minas do ouro. Refiro-me aqui a certos acontecimentos da denominada “Guerra dos
Emboabas”, nos últimos anos da primeira década, e da revolta de Vila Rica, no período do
governo do Conde de Assumar, no final da década de 1710.
Há fortes indícios, no conflito emboaba, de uma disputa latente, em grande parte
estimulada pelos agentes de poder, entre os carijós, muito identificados com os paulistas, e
os emigrados pobres (brancos, negros e mestiços) e escravos dos chamados emboabas - os
forasteiros das regiões açucareiras do litoral. Um contemporâneo, lembrando as mortes
havidas num confronto entre paulistas e emboabas, sugeriu o perfil étnico dos adversários:
do lado paulista ficaram alguns mortos, “entre brancos e carijós”, e do lado emboaba “só
morreu um branco e um preto”. Um emboaba ativo no movimento recordou décadas depois
que, nos descobertos do Rio das Mortes, o número de alistados do lado emboaba foi cerca
de 260 “brancos” e perto de 500 “negros”, e com estes constituiu-se uma companhia cujo
comando entregou-se a um “forro”. Alguns negros portaram armas, mas o restante tomou o
que podia: “foices de roçar e paus de ponta tostada”. 11
Além dessas claras diferenças étnicas e de estilos de vida, a tensão entre esses
trabalhadores aumentava porque competiam por lugares ou pontos de exploração das minas
de ouro recém descobertas. Somente quando os forasteiros ricos e pobres já forçavam as
repartições das terras minerais é que os paulistas tentaram consolidar os seus direitos de
exploração, apoiando-se, nesse momento de pressão, no braço africano e nos direitos
possessórios. ^ ^
10. APM, Avulsos Capitania de Minas Gerais (AvC), caixa 12, documento 31, 27 maio 1782.
11. “Relação do princípio descoberto destas Minas Gerais e os sucessos de algumas coisas mais memoráveis que
sucederam de seu princípio até o tempo que as veio governar o Excelentíssimo Senhor Dom Brás da
Silveira”, in CÓDICE Costa Matoso. Belo Horizonte: Centro de Estudos Históricos e Culturais/ Fundação
João Pinheiro, 1999, p. 201; “História do distrito do Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento das suas
minas, casos nele acontecidos entre paulistas e emboabas e ereção das suas vilas”, in Códice (1999: 284). '
166
V IVER À G ANDAIA
No princípio das Minas, as lavras dos paulistas, bastante rendosas nos leitos e nas
margens dos ribeiros auríferos, continuaram subordinadas ao habitual deslocamento
sertanista e descobridor. Por isso, os bandeiristas de Piratininga e os seus carijós,
itinerantes, estabeleceram-se nos vales. Houve àquela altura pouco interesse deles em fazer
canais e diques, ou em manter mais ferramentas além do necessário para as bateadas. Em
compensação, os pobres e os trabalhadores negros dos senhores emboabas que não estavam
satisfeitos com a ocupação paulista das datas minerais mais lucrativas começaram, desde
1703 ou 1705, a ocupar e explorar os flancos mais baixos das montanhas (tabuleiros e
grupiaras). A situação ficou mais ou menos acomodada até o momento em que os paulistas,
conferindo o Regimento das Minas de 1702, procuraram estender os seus direitos de
descobridores e mineradores aos veios montanhosos. Além disso, aconteceu certo impasse a
respeito da utilização dos recursos, aumentando a tensão entre os partidos em disputa:
enquanto os paulistas assenhoreavam os cursos maiores de água, os pobres, escravos e
senhores emboabas tomavam posse das encostas mal servidas de nascentes ou cursos
estáveis de água, recurso essencial nas lavagens da terra e cascalho de aluvião.
Na segunda década do século XVIII, o problema acentuou-se. Ficou claro para todos
os exploradores que sem o acesso à água não era possível manter a mineração nas
montanhas. A gente emboaba e os seus escravos, que se apossaram dos veios e catas das
encostas, passaram a disputar as águas com os seus detentores.
A apropriação das águas necessárias às lavras acabou sendo um bom negócio para os
senhores mais poderosos. Os líderes do antigo Partido Emboaba, como Manuel Nunes
Viana e Pascoal da Silva Guimarães, segundo denúncias, em conluio com certos
superintendentes reinóis, apossavam-se das águas das vertentes das serras, requerendo
sesmarias das terras se as não podiam deter por meio da propriedade de datas de terras
minerais. Esses donos das águas costumavam vendê-las aos outros lavradores por “preços
exorbitantes”.12
Os pobres e os escravos jomaleiros, nessa situação, ficavam vulneráveis ao peso
político e econômico dos mais poderosos mineradores. Na realidade, essa tática senhorial de
controlar o uso das águas resultava do fato de que não conseguiam, apesar de tudo, obter o
domínio pleno das explorações das montanhas. Os agentes da Coroa portuguesa, e,
sobretudo, a tenaz resistência da arraia-miúda de cor criaram obstáculos ao seu poderio.
12. Cf. ANDRADE, Francisco Eduardo de. A invenção das Minas Gerais: empresas, descobrimentos e entradas nos
sertões do ouro (1680-1822). São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Tese de Doutorado, 2002, pp.
264-84.
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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
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V IVER À G ANDAIA
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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Expressão do colorido social nas Minas Gerais, esses negros e os moradores pobres,
embora estivessem impossibilitados de manter lavras nos altos e fossem constrangidos pelas
autoridades locais, aproveitavam qualquer oportunidade de ganho onde ela surgisse. Desde
que se noticiou um descobrimento de ouro em um certo “morro grande”, logo o governador
da capitania mandou ordenanças para coibir os conflitos, pois ali já se achava uma
“multidão de negros”.17 O mesmo governador, Conde de Assumar, um ano depois, criticou
os senhores que, ao invés de manter lavra aberta, preferiam favorecer “o maior mal e o
maior perigo das minas que são os negros que andam na faisqueira, os quais são como os
gandaeiros, que vão por onde lhes parece buscar ouro”. 18 Ele ressaltou o fato de que, para
muitos donos de escravos, era mais lucrativo viver dos jornais dos cativos do que empregá-
los em exploração própria. Assumar parecia não compreender as condições do negócio de
minas, principalmente em lugares concorridos pelos pobres, ou que apresentavam o
potencial duvidoso - a experiência de fracassos e de endividamento dos mineradores
mostrou que era melhor um aproveitamento dos investimentos alheios do que assumir os
riscos de um empreendimento pessoal. Além disso, a capacidade de investimento para a
abertura da lavra era bastante limitada para a maioria. Desde as primeiras décadas do século
XVffi, em Vila Rica e na Vila do Carmo predominavam as pequenas posses de escravos
(cerca de 64% dos senhores possuíam no máximo até cinco cativos em 1718), e, dentre
estas, destacava-se um número significativo de senhores forros cujos escravos, tanto quanto
os seus donos, certamente empregavam-se nas faisqueiras públicas.19
O maior mal que as autoridades coloniais percebiam não advinha somente da
faiscação, mas da associação desta atividade com o comércio dos vendeiros (e vendeiras), e
o que praticava as negras de tabuleiro. A gente de cor comerciante costumava seguir as
pegadas dos trabalhadores da mineração, indo aos ajuntamentos exploratórios para fazer
suas vendagens em ranchos ou tendas. Tentava-se impedir tais laços e a atividade das
vendas, que favoreciam o contrabando de ouro, como no morro de Matacavalos,
onde/fòi'proibido que se fizessem ranchos. Nas diversas
170
V IVER À G ANDAIA
faisqueiras dos morros das Minas existiam proibições no mesmo sentido. Mantinha- se viva
na memória dos governantes, determinando medidas repressivas em outras situações, a
reação enérgica do Conde de Assumar, quando procurou arrasar o morro do emboaba
renitente, Pascoal da Silva Guimarães, em 1720, mandando demolir e queimar os ranchos e
vendas ali instaladas.20
Na prática, contudo, tais proibições ao exercício do comércio fixo ou volante não
eram efetivamente cumpridas, pois criavam obstáculos à própria continuidade da extração
aurífera, tanto a das lavras dos senhores quanto a que faziam os faiscadores ejomaleiros. 21
Os ajustes de trabalho entre os senhores e os seus escravos faiscadores, baseados na
autonomia destes, excluíam provisões regulares ou matalotagens por conta das casas
senhoriais. Nem as ferramentas de faiscar costumavam ser fornecidas pelos senhores. A
gravidade era maior, conforme a denúncia do secretário do governo, quando se mandavam
escravas à faisqueira, pois tal prática escondia o fato de que, sem o almocafre e a bateia, as
mulheres cometeriam várias imoralidades para entregar os jornais diários no fim da semana
aos seus donos.22 Contudo, o escravo não tentava reverter esses ajustes, inicialmente
desfavoráveis e injustos?
A habilidade mostrada pelos negros que viviam nas condições adversas do
escravismo transparece, com efeito, no modo de viver “à gandaia”. 23 Apesar do virtual
monopólio das águas de lavagem - tática senhorial de apropriação efetiva das formações
auríferas mais lucrativas -, com o apoio dos governantes da Coroa (quando as situações
injustas não comprometiam o governo), os negros “gandaeiros” - escravos e forros
- forjaram seu espaço e conseguiram ganhos próprios.
20. DISCURSO histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Centro
de Estudos Históricos e Culturais/Fundação João Pinheiro, 1994, pp. 135-7.
21. Cf. FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século
XVIII. Rio de Janeiro/Brasília: José Olympio/Editora da UnB, 1993, pp. 41-71.
22. [APM, SC, códice 35, Representação do secretário do governo de Minas Gerais, Manuel Afonseca de
Azevedo, ao rei, 20 fev 1732], apud BARBOSA, Waldemar de Almeida. Negros e quilombos em Minas
Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972, pp. 120-3.
23. No Dicionário Houaiss da língua portuguesa, o termo “gandaia” (gandaya) data de 1713, quando foi transcrito
no Dicionário de Rafael de Bluteau. A origem da palavra é controversa: provém de outras línguas européias,
ou talvez seja de origem “banta”. Os significados de gandaia, manifestando o seu conteúdo lato, é indicativo
do cruzamento de percepções conflitantes sobre o trabalho de faiscação dos negros livres e escravos no
século XVIII: 1 “O ato de revolver o lixo com a finalidade de encontrar objetos de algum valor [Já expresso
por Rafael de Bluteau: “He andar buscando no lixo, e nas enxurradas, ferrinhos e outras cousas, que a agoa
leva.”] / 2. O ofício de trapeiro / 3. Condição de vadio; mandriice; ociosidade”. Cf.
http://v.houaiss.uol.com.br.
171
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
24. Tombo/Itatiaia. RODRIGUES, Flávio Carneiro (org.). Cadernos históricos do Arquivo Eclesiástico da
Arquidiocese de Mariana Segunda coletânea das visitas pastorais às paróquias do bispado de Mariana no século
dezoito. Mariana: Dom Viçoso, 2004, p. 159.
25. A coartação (parcelamento do valor da alforria) não deixava de desempenhar um papel na constituição dos
laços de fidelidade e gratidão que prendiam os escravos aos seus senhores. É, portanto, compreensível que
os pequenos proprietários de escravos, notadamente os senhores forros, usassem mais desse expediente de
libertação do que os proprietários mais abastados (nas comarcas do Rio das Velhas e do Rio das Mortes). Cf.
PAIVA, Eduardo França. Por meu trabalho, serviço e indústria: histórias de africanos, crioulos e mestiços na
Colônia (Minas Gerais, 1716-1789). São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Tese de Doutorado, 1999,
pp. 197-202.
172
V IVER À G ANDAIA
Esses escravos podiam morar temporariamente nos ranchos dos vendeiros (ou das
vendeiras) negros, onde se cozinhavam mantimentos e se vendiam gêneros de consumo
imediato (Figueiredo, 1993:46). As casas dos negros assumiam feições variadas; podiam
ser, ao mesmo tempo, vendas de diversos gêneros, hospedarias, pontos de alimentação,
locais de festejos ou de atividade religiosa. O bispo do Rio de Janeiro, quando passou pela
freguesia de Itatiaia, poucos anos antes de o visitador de Mariana encontrar ali muitos
escravos de fora, alertou o pároco sobre os “ajuntamentos de negros, que com instrumentos
fazem suas festas de noute e de dia, nas quaes mais fazem a vontade do Demônio do que se
divertem e dellas só tirão ofensas graves que fomentão com o título de divertimento”
(Rodrigues, 2004:152).26
Todavia, não era incomum os escravos jomaleiros entrarem no sertão mais remoto,
como vimos. Os negros, de fato, eram os descobridores das jazidas de ouro e diamantes nas
suas andanças em vertentes das serras, beneficiando-se até certo ponto da crise econômica
nas Minas. Um anônimo, na década de 1730, explicou que os moradores estavam “em
suma miséria, de sorte que não se atrevem a baldarem por algum tempo os jornais dos seus
negros, e os descobrimentos que se fazem no interior das Minas são casualmente [feitos]
por negros faiscadores, que andavam como à gandaia”.27 A Coroa procurava coibir essas
entradas dos negros e pobres e regular os descobrimentos de minerais preciosos na segunda
metade do século XVIII, impondo penas severas (como as que puniam os salteadores de
caminhos) aos supostos vadios ou habitantes de “sítios volantes” que não fossem viver nas
vilas e trabalhar nas suas
26. Cf. ainda: MOTT, Luiz. Acontudá: raízes setecentistas do sincretismo religioso afro-brasileiro. Revista do
Museu Paulista, São Paulo, v. 31, 1986, pp. 124-47.
27. Biblioteca Nacional de Lisboa, códice 738.
173
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
vizinhanças. Admitia-se que tais habitações seriam tão danosas à república quanto os
quilombos de escravos fugidos.28
As atividades dos gandaeiros nos lugares ou pontos na serra mais concorridos eram
sazonais, porque na época da seca (ou inverno) a falta de água impedia seriamente a
extração do ouro; mas na época das chuvas (ou verão) os trabalhos persistiam. Numa
descrição das Minas da segunda década do século XVIII, esclarece-se o seguinte, sobre a
mineração na Vila de São João del-Rei: havia “lucrosas minas, mas de suma dificuldade, e
não para todos, senão no inverno (sic) de cujas enxurradas se aproveitam indo os negros à
gandaia a que se chama faisqueira”. Na época da seca, “perece o comum e somente lucram
alguns particulares com força de escravos, dando catas na falda do dito monte [da vila]”. 29
Assim, na seca (maio a outubro), os faiscadores libertos e escravos, se não quisessem batear
os resíduos (ou sobras) dos desmontes nos vales, deviam buscar outros meios de vida ou
fazer explorações em locais do sertão.
Os negros dessas faisqueiras públicas só podiam trabalhar em conjunto, fazendo
ajustes entre si ou com os detentores de lavras para a forma conveniente de extração do
metal. Deviam ainda associar-se, quando a situação requeria, aos pobres de diversos
matizes. Deste modo, a atividade das gandaias não pode ser reduzida a um mero
ajuntamento de negros, reunidos desordenamente para satisfazer as necessidades mais
imediatas do ganho, como parece à primeira vista nos escritos de autoridades coloniais
temerosas. Ela provavelmente compreendia certa organização das ocupações, conforme as
fases da separação do material aurífero, do transporte nos carumbés e da lavagem ou
apuração nas bateias, num alentado ritmo de trabalho.
Pode-se inferir o trabalho coletivo dos faiscadores e o ritmo próprio que imprimiam
à extração do ouro através dos cantos de trabalho. Aires da Mata Machado, pioneiro nos
estudos sobre os negros e a escravidão em Minas Gerais, coligiu cantigas de trabalho
entoadas pelos negros nas lavras de São João da Chapada, nas proximidades de Diamantina.
Felizmente, ele publicou esses vissungos, designação dos cantos de trabalho, em 1943.30
Tais canções, indicativas do fato evidente da reunião para o cumprimento conjunto
da tarefa, marcavam a sincronia das ações necessárias ao pleno exercício do trabalho.
Quando havia canções^as lavras e faisqueiras, as vozes dos trabalhadores
28. Carta régia, 22 jul 1766. RAPM, Belo Horizonte, v. 16, jan- jun, 1911, pp. 451-2.
29. Biblioteca da Ajuda, 54/ XIII/ 4 24, Descrição do mapa q. comprehende os limites do governo de São Paulo
e Minas, e também os do Rio de Janeiro, f. IO-IOV.
30. MACHADO FILHO, Aires da Mata. O negro e o garimpo em Minas Gerais. Rio de Janeiro: José Olympio,
1943, pp. 69-112.
174
V IVER À G ANDAIA
31. São sugestivas, nesse sentido, as melodias: “O final de quase todos os vissungos, pela sua lentidão no
andamento e pelo seu ritmo livre, lembra a terminação das mais típicas cantigas sertanejas”. Para o
estudioso, a linguagem empregada e as melodias indicam uma origem banto dos vissungos recolhidos
(Machado Filho, 1943: 64-6).
32. Essa é a tradução para o seguinte vissungo: “[Solo] Oenda auê, a a!/ Ucumbí oenda, auê, a.../ Oenda auê, a
a!/ Ucumbí oenda, auê, no calunga// [Coro lo] Ucumbí oenda, ondoró onjó/ Ucumbí oenda ondoró onjó
(bis)// [Coro 2o] lô vou oendá, pu curima auê/ Iô vou oenda pu curima auê (bis) (Machado Filho, 1943: 81-
2).
33. ESCHWEGE. Wilhelm L. von. Pluto brasiliensis. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1979, v.
1, p. 175.
34. SP1X, Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1981,
p. 207.
175
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
35. Embora eu tenha interpretado distintamente os acontecimentos, o relato baseia-se na narrativa dos conflitos
apresentada por AGUIAR, Marcos Magalhães de. Negras Minas Gerais: uma história da diáspora africana no
Brasil colonial. São Paulo: Universidade de São Paulo/FFLCH, Tese de Doutorado,
1999, pp. 91-3. Cf. Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (doravante AHMI), I o ofício, devassa,
códice 449/ auto 9463; AHMI, Querelas, códice 1739-1789, f. 117v-l 19.
V IVER À G ANDAIA
ATÍTULO DE CONCLUSÃO
Quando as primeiras vilas das Minas do ouro foram fundadas, em 1711, o estilo dos
faiscadores negros era usual. Durante o século XVIII, os camaristas das vilas reagiram a
essa autonomia escrava e livre pobre baseada numa sociabilidade própria, e, afetados por
isso, acusaram sistematicamente os moradores dos morros de praticarem toda a sorte de
imoralidades e crimes, inclusive de municiar quilombos e esconder escravos fugidos. No
entanto, essa história não se faz simples assim. Pois ali mesmo onde os historiadores e os
agentes luso-brasileiros vêem crimes e desvios morais, núcleos ou casas de quilombos, há o
traçado de uma autonomia construída cotidianamente, e a negação do enquadramento
efetuado pelos poderes coloniais (governos civil e eclesiástico).
A gandaia dos negros e mestiços, cativos e forros, era constituída no silêncio
- ensina o pai, em uma cantiga de trabalho, ao filho que grita o achado de um diamante:
“silêncio!”. Por outro lado, havia o intenso rumor dos batuques e das vozes quilombolas.
No que se refere às Minas, a conduta ruidosa (ou criminosa), “plantada” pelos agentes
desses poderes na dissimulação do trabalho dos negros (cativos ou livres) serviria para
atingir ou reprimir a autonomia e qualquer reação política.
De qualquer maneira, os diversos morros da capitania de Minas, com certo amparo
no poder régio, viraram refúgios desses negros, tomando-se um espaço vivido com mais
liberdade do que embaixo, nos vales ou nos largos das vilas. Sobretudo em sertões, como
olha Guimarães Rosa, trilhados por faiscadores e jomaleiros, formaram- se uns povoados
negros.
36. Sobre o direito dos rústicos e seu confronto com o direito erudito (direito comum e direito régio), ver:
HESPANHA, Antônio Manuel. Savants et rustiques. La violence douce de la raison juridique. IUS commune,
n. 10, 1983, pp. 1-48.
177
TRÂNSITO EXTERNO E O MALOGRO DA
INTERIORIZAÇÃO HOLANDESA NO BRASIL
Estas são as primeiras palavras da narrativa de Pierre Moreau, escrita entre os anos
de 1646 e 1648, acerca do mundo em que vive - uma cidade - e sobre o sentimento que o
impele a deslocar-se para um espaço inusitado e sem fronteiras - a curiosidade.
O sentimento instigante que impele Moreau ao conhecimento pleno para além
daquele expresso em livros é o mesmo que o permite conceber o mundo como uma grande
pólis, conectada por tênues fronteiras, agregando identidades múltiplas que interligam seus
habitantes. A gigantesca urbe pensada por Moreau associa os mesmos caracteres do mundo
ibérico iluminado pelas coroas planetárias: um espaço mundializado que reúne frágeis e
resistentes fronteiras culturais num universo multifacetado em diversas línguas, crenças,
saberes e valores.
3. FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação dafamília brasileira sob o regime da economia patriarcal.
16a ed.. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973, p. 9, grifo nosso.
4. ARES QUEIJA, Berta & GRUZINSKI, Serge (coords.). “Presentación”, in __________________ . Entre dos
mundos: fronteras culturales y agentes mediadores. Sevilha, 1997, p. 10 (I Congresso Internacional sobre
Mediadores Culturais, realizado em 1995); PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria
Junho (orgs.). “Introdução”, in _____________ . O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de
viver (séculos XVI a XIX). São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGH-UFMQ 2002, p. 9.
180
T RÂNSITO E XT ERNO E O M A LOGR O DA I NTERIORIZAÇÃ O H O LANDESA NO B RASIL
5. GRUZINSKI, Serge. Les quatreparties du monde; hisíoire d 'une mondialisaíion. Paris: Éditions de la
Martinière, 2004, p. 39.
181
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
6. O termo lançados ou tangomaus (porfiti^üèíses lançados na Guiné) pode derivar do verbo lançar, jogar
fora, degredar, explicando, assim, o estatuto social desses agentes. Cf. ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O
trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sid. São Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 48. 1
7. VENÂNCIO, José Carlos. “Mestiços em ^frica: mediadores culturais naturais”, in LOUREIRO, Rui
Manoel & GRUZINSKI, Serge (coords.). Passar as fronteiras. Lagos, 1999, p. 184 (Atas do “II Colóquio
Internacional sobre Mediadores Culturais, séculos XV a XVM”, realizado em 1997).
8. Para Janaína Amado, a historiografia não tem dúvida da existência deste personagem, mas também
não a comprova com veemência, apesar de Gabriel Soares de Sousa ter escrito sobre um náufrago
encontrado nas costas da Bahia em companhia do donatário Francisco Coutinho. Registra a autora que, a
partir dos Poemas épicos de Santa Rita Durão e os relatos do Padre Simão de Vasconcelos, o registro de
Caramuru perpetuou-se em obras posteriores. Cf. AMADO, Janaína. Diogo Álvares, o Caramuru, e a fundação
do Brasil. Cascais, 1998, pp. 175-209, (Actas dos IV Cursos Internacionais de Verão de Cascais - Mito e
Símbolo na História de Portugal e do Brasil).
182
T RÂNSITO E XT ERNO E O M A LOGR O DA I NTERIORIZAÇÂ O H O LANDESA NO B RASIL
9. GRUZINSKJ, Serge. A passagem do século: 1480-1520. As origens da globalização. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999, pp. 108-9.
10. REBOLLO, Beatriz Moncó. “Misioneros em China. Matteo Ricci como mediador cultural”, in Ares Queija
& Gruzinski (1997: 329-49); REBOLLO, Beatriz Moncó. “Mediación cultural y fronteras ideológicas”, in
Loureiro & Gruzinski (1999: 339-54).
183
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
11. GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 41.
184
T RÂNSITO E XT ERNO E O M A LOGR O DA I NTERIORIZAÇÃ O H O LANDESA NO B RASIL
12. RUSSELL-WOOD, A. J, R. “Prefácio”, in FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista &
GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 3.
13. LARA, Silvia unold LaraHUHunold. “Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime
na América portuguesa”, in BICALHO, Maria Fernanda & FERLINI, Vera Lúcia Amaral (orgs.). Modos de
governar: idéias e práticas políticas no império português (séculos XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2005, p. 35.
185
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em seu próprio relato. Em 1645 foi nomeado para compor o governo do Brasil holandês,
permanecendo aqui por dois anos.
A narrativa de Moreau, muitas vezes cética e angustiada pelos horrores da guerra que
presenciara entre os anos de 1646 e 1648, revela parcelas do olhar batavo sobre os
acontecimentos em Pernambuco, ao tempo em que denuncia as resistências e aversões que os
holandeses, em terras tropicais, nutriam pelos “brasilianos”. Além de ter pesquisado nos
registros da Companhia das índias Ocidentais (West-Indische Compagne-WIC), Moreau
consultou memórias e foi testemunha ocular e atenta das mazelas da aventura malograda.
O olhar angustiado deste francês sobre o conflito denuncia os sentimentos pouco
nobres presentes nas ações holandesas: “as misérias e calamidades que acompanharam a
sublevação dos portugueses no Brasil e a guerra que se lhe seguiu, a qual teve como causas
principais a avareza, a crueldade, a injustiça e a imprudência dos comandantes” (Moreau &
Baro, 1979:15). De forma talvez involuntária, Moreau descortina o tipo de afeição que ele
próprio alimenta pelos moradores do sertão pernambucano:
Gaspar Barléu,'4 entretanto, parece dar um outro tom às cores e às gentes que
habitavam os trópicos. Ao afastar-se da premissa comum na época de que careciam de fé, de
lei e de rei, reconhece que “os costumes, o caráter, o trajar dos brasileiros ou são comuns a
todas as nações oupeculiares a algumas, conforme a sua diversidade” (1974:22).
Contrariamente a^íoreau, assinala, em seguida, as multiplicidades das representações que
percebe nos moráçlores de Pernambuco: “têm horror aos espíritos malignos (...) prezam os
feiticeiros. Gostam da poligamia e do divórcio. Não tratam mal as esposas, antes as
cortejarrí, menos quando embriagados, o que também é freqüente com os holandeses”
(1974:23).
14. Segundo Mario Guimarães Ferri, o nome Gaspar Barléu é o nome aportuguesado do historiador holandês
Caspar van Baerle. O texto foi .publicado em latim na cidade de Amsterdã, em 1647, onde assinava Caspar
Barlaeus. Barléu era amigo de Nassau, e o propósito de sua obra é louvar as ações de governo e de Estado
empreendidas pelos batavos no Nordeste do Brasil. Cf. FERRI, Mario G “Prefácio”, in BARLÉU, Gaspar.
História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,
1974.
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Barléu relata que a “tomada de S. Salvador, metrópole da capitania, (...) custou pouco
trabalho, e bem assim a dos fortes circunjacentes, fadaram a empresa com felizes auspícios,
divulgando entre os bárbaros a fama do povo ultramarino, já tão firme com os primeiros
sucessos” (1974: 16). Este feito, ocorrido em 1623, teve duração curta, pois a cidade foi
retomada logo em seguida. Barléu, como Moreau, atribuiu a derrota à lascívia batava:
“enquanto se cuidava mais das delícias do que da utilidade, quebrantados na ociosidade e na
intemperança, os ânimos dos chefes e dos soldados, o espanhol recuperou a cidade com um
rápido cerco” (1974:16).
É possível que as Coroas católicas não destinassem tanta preocupação à defesa de sua
colônia, conforme acreditou Barléu. Também para o cronista francês, a ocupação de
Pernambuco foi efetiva e sem muita resistência. O espírito bajulador de Barléu destacou os
bons tratos que os holandeses, após a vitória, dedicaram aos “brasilianos” - os tapuias - que
eram escravizados pelos portugueses. O Conselho de Estado, após a ocupação, decretou a
proibição de capturar, reter e tomar cativo, sob pena de morte, os índios tapuias. No que
concerne aos negros e mestiços, as determinações foram diferenciadas: os negros africanos,
mulatos e mamelucos tomaram-se encarregados do trabalho escravo. Segundo Moreau, a
origem mestiça dos mulatos (português e negra) e dos mamelucos (português e brasiliana),
os faz ingratos e pouco confiáveis “em face deste rico presente de sua liberdade restituída”
(Moreau & Baro, 1979:15).
Ao assumir que foram os holandeses os responsáveis pela libertação dos índios que
viviam em Pernambuco, Moreau mitifica a contradição das premissas calvinistas contrárias à
escravidão, que, no Novo Mundo, não se sustentaram diante dos empreendimentos coloniais
dos batavos. Para Stols, a hipocrisia holandesa sobre
15. STOLS, Eddy. “Flamengos, holandeses e a sua aprendizagem na escravidão (sécs. XVI e XVII)”, in Paiva &
Anastasia (2002: 42-3).
16. STOLS, Eddy. “‘Não há fronteiras ao sul do Equador’ ou ‘os pecados do Brasil’ holandês”, in Loureiro
& Gruzinski (1999: 383).
187
T
contribuindo, de outro modo, para a exploração dura e cruel dos escravos pelos devedores
portugueses. As terras brasileiras não eram totalmente desconhecidas dos holandeses. Os
contatos comerciais datam dos primeiros anos do século XVI: “Foi, porém durante a trégua
de 1609-1621 que o seu tráfico com o Brasil tomara grande impulso, isso a despeito das
explícitas e reiteradas proibições baixadas pela Coroa espanhola no tocante ao comércio dos
estrangeiros com a Colônia”.17
A habilidade da Companhia das índias Ocidentais, no que se refere ao tráfico de
escravos, não se compara aos poucos cuidados destinados à composição dos generais
dirigentes do empreendimento. Os alemães Sigismundt Schkoppe e Arciszewskes,
acompanhados pelo Conde João Maurício de Nassau (Johan Maurits van Nassau-Siegen),
foram os primeiros comandantes encarregados de defender a Holanda do rei da Espanha.
Para Stols (1999:381), a necessidade batava de contratar mercenários estrangeiros,
especialmente alemães, escoceses e franceses protestantes, misturando luteranos, anglicanos
e calvinistas, fomentou discriminações e discórdias constantes.
Neste episódio, Moreau optou por registrar apenas as conquistas que a Holanda
obteve auxiliada por esses homens ricos, abastados e aventureiros: “Conquistaram cerca de
trezentas léguas do país em comprimento, contíguas umas às outras, e todos os fortes e
praças que os tinham em sujeição, para tomá-los além da capitania do Ceará, próximo da
Linha, até a Baía de todos os Santos” (Moreau & Baro, 1979: 26). A posse de riquezas
parece ter sido um dos critérios utilizados para selecionar comandantes para a Companhia
das índias Ocidentais, e também o foi para o recebimento de judeus em Pernambuco. A
elevada arrecadação tributária, obtida com a presença judaica, foi brindada com a construção
de uma sinagoga em Recife e outra na Cidade Maurícia.
Os altos impostos cobrados aos judeus pelas autoridades da Companhia foram
também estendidos aos moradores de Pernambuco e constituíram-se alvo de reclamações
constantes dos portugueses. Cobrava-se dos residentes, após avaliação, a vigésima parte do
valor de stíaspropriedades, e, por diversas vezes, a décima dos aluguéis das casas, além do
pedágio fe^n pontes de madeira que ligavam as principais localidades da capitania. O ilustre
crcfnista não consegue disfarçar sua perplexidade diante dos abusos tributários pratietdos:
17. BOXER, Charles R. Os holandeses no Brasil (1624-1654). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961, p.
27.
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18. HESPANHA, Antônio Manuel. “A constituição do império português. Revisão de alguns de enviesamentos
correntes”, in Fragoso, Bicalho, & Gouvêa (2001: 166).
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19. MELLO, Evaldo Cabral de. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste (1641- 1669). Rio de
Janeiro: Topbooks, 1998, p. 15.
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T RÂNSITO E XT ERNO E O M A LOGR O DA I NTERIORIZAÇÃ O H O LANDESA NO B RASIL
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A observação de Southey talvez não esteja tão provida de veneno, como afirma
Boxer ao transcrever a assertiva do inglês sobre a desumanidade da disciplina da Companhia
das índias Ocidentais: “Os holandeses foram sempre um povo cruel (...) não havendo
nenhuma outra nação cuja história colonial tenha sido tão indesculpável e imperdoavelmente
fatal à natureza humana” (Boxer, 1961: xvii). Além de enfrentar o horror e a disciplina brutal
dos seus superiores, os soldados eram usados para construções das fortalezas, obrigação
respondida com deserção: “Diversos soldados, muito constrangidos pelo trabalho braçal,
desertaram para o lugar onde os portugueses começavam a formar uma tropa” (Moreau &
Baro, 1979:67).
Moreau assinalou que, a cada território conquistado, os fortes portugueses eram
destruídos e substituídos por fortes holandeses. A sobrecarga do trabalho em construções
advinha do levantamento de pontes, castelos e da destruição dos demais monumentos
portugueses. Esforço que, na verdade, não condiz com o urbanismo batavo, considerado por
Stols como bastante tímido no Brasil:
20. O mosquete é uma arma de fogo antiga e muito pesada, precisando ser apoiada em uma forquilha para ser
usada.
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O Tratado de Piso e Marcgraf- Historiae Naturalis Brasilae - com o patrocínio de para dinamizar ou mesmo reativar os engenhos abandonados com a guerra de ocupação:
Nassau, publicado na Holanda em 1648, representa uma das maiores contribuições
científicas sobre a fauna e a flora do Nordeste do Brasil. Os mapas elaborados por Marcgraf e Os engenhos de açúcar arruinados e desprovidos de
Wageners são tidos como bastante precisos na localização dos pequenos núcleos habitados trabalhadores, nossos por direito do fisco, foram vendidos em
do litoral nordestino. Post registrou em desenhos, gravuras e telas, as imagens da conquista: hasta pública, uns por 20.000 florins, outros por 30.000,60.000,
cidades, fortificações e fatos considerados por ele como relevantes da ocupação batava no 70.000 e alguns por 100.000, rendendo à Companhia 2.000.000
Nordeste brasileiro. A obra de Eckhout é considerada como o primeiro registro etnográfico de florins (Barléu, 1974:50).
europeu sobre os nativos do Novo Mundo.
Situação similar é registrada em carta de Nassau ao Príncipe de Orange nos primeiros
O limite da ciência e da arte desses profissionais, em Pernambuco, pode ser
anos da ocupação do Nordeste do Brasil, quando aquele, às margens do rio São Francisco,
explicado, talvez, pela pluralidade dos idiomas presentes na “Torre de Babel” tropical. Os
encantou-se com a riqueza da fauna e da flora locais:
moradores falavam, além do português, flamengo, francês, alemão, inglês, italiano, espanhol
e línguas indígenas. Nem mesmo Nassau fez opção por aprender o português. Para Stols Sou de opinião que se devastem as lavouras e terras de outra
(1999), além das dificuldades impostas por não dominarem de forma satisfatória o português, margem do rio. Mandou-se aos habitantes que, de vontade ou à
a forte inclinação dos holandeses pela bebida alcoólica os distanciava ainda mais dos força, transportassem para a banda de cá famílias, haveres e
moradores pernambucanos e alimentava resistências para laços matrimoniais com os gados afim de não administrarem bastimentos (sic) ao inimigo
portugueses. (Barléu, 1974:45).
As dificuldades de se misturarem aos moradores do lugar, em diversos aspectos,
impediram os holandeses de mesclar o mundo colonial com os seus valores culturais, A opção de Nassau em “devastar” as lavouras substituiu a iniciativa mais sensata de
costumes, idioma e mesmo no que se refere ao modo de governar. Iniciativas que, também povoar para dinamizar a produção local, apesar de, logo em seguida, registrar ao seu
para Moreau, teriam evitado a desgraça holandesa: soberano sugestão mais plausível diante de tanta riqueza que presenciara:
Deviam ter ali misturado os seus com os portugueses, assim Aqui e ali vagueiam animais, que pastam em manadas de 1.500,
como acertadamente fizeram os reis de Portugal para povoá- lo, 5.000,7.000 cabeças. Pasmei e não acreditaria nestas
de modo que são os netos dos primeiros habitantes que ocupam maravilhas, se não as contemplasse com estes olhos. Só de
o país e estão tão bem naturalizados e acostumados a prover-se habitadores carece a terra, e pede colonos para povoar e
somente com os frutos que a terra lhes dá, o que os holandeses cultivar os seus desertos (Barléu, 1974:45).
não podem fazer, que raramente comem pão da Europa, apesar
dejà^erem deles tanta questão que o cobrem de açúcar quando Nessa correspondência, Nassau informou ao Príncipe de Orange que escreveu ao
o encontram (Moreau & Baro, 1979: 88). Conselho dos Dezenove, solicitando que enviasse para o Brasil os refugiados alemães que se
encontravam desterrados na Holanda, e que, caso isso não fosse possível, se
O malogro da interiorização batava numa das regiões mais ricas da colônia lusitana
expôs a inabilidade e a insensibilidade holandesa em relação à economia local, tão lucrativa abrissem as prisões de Amsterdam e se mandassem para cá os
para os cofres lusos. Este aspecto, completamente ausente no relato de Moreau, ilustra, galés, para que, revolvendo a terra com a enxada, corrijam as
talvez, o mesmo descaso batavo para com este importante elemento de conquista e posse. suas improbidades, lavem com o suor honesto a anterior
Para Stols (1999: 375), houve incapacidade de reativar a economia açucareira e também infâmia e não se tomem molestos à República, mas úteis
indiferença diante das outras riquezas brasileiras, como o algodão e o fumo. (Barléu, 1974:
Barléu, mais preocupado com as questões econômicas que Moreau, relatou um 45-6).
episódio bastante curioso e que, de fato, demonstra a pouca astúcia holandesa
195
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Matas Plurais, Imoralidades Matrimoniais: O Despique
entre Negros e Índios Cabanos de Jacuípe (AL-PE,
1835-1850)
1. Doutoranda em História Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora assistente de História
do Brasil na Universidade Estadual de Alagoas e coordenadora do Núcleo de Estudos Argonautas - Pesquisa
em História de Alagoas.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Em 1832 eclodiu nas matas do sul de Pernambuco e norte de Alagoas uma rebelião
rural intitulada Cabanada devido a participação de segmentos populares que residiam de
forma precária em palhoças de terra batida. A documentação oficial do governo provincial
pemambucanorelatava às autoridades centrais:
3. GOMES, Ângela de Castro. “História, historiografia e cultura política no Brasil: algumas reflexões”, in
SOIHET, Rachel; BICALHO, Maria Fernanda Baptista & GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs.). Culturas
políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 30.
198
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS
Esse movimento social provinha das tensões entre os grupos políticos regionais
compostos por liberais (exaltados e moderados) e restauradores. Com a elevação do governo
moderado à Regência, muitos senhores locais haviam perdido posições importantes que
ocuparam até a abdicação de D. Pedro I, a exemplo de Torres Galindo,
0 ex- capitão mor da vila de Santo Antão e responsável pela condução dos primeiros
conflitos que desencadearam a guerra no interior das duas províncias do norte do país. 4
Outros chefes locais restauracionaistas, como João Batista de Araújo, proprietário de
terras em Barra Grande (Alagoas), empenharam-se na sublevação da população rural, que
contava com a participação de pequenos proprietários, posseiros, libertos e escravos
acompanhados por seus senhores.
Após um incidente relacionado ao recrutamento forçado e apropriação de terras
indígenas, durante o qual o cacique Hipólito Nunes Bacelar foi assassinado quando de sua
prisão por tropas do governo, os índios do aldeamento localizado às margens do rio Jacuípe
aderiram ao movimento cabano.
A participação de pobres no movimento cabano defendendo o retomo de Pedro
1 ao trono brasileiro contrastava-se com outros movimentos sociais do período, como a
Cabanagem (PA) ou a Balaida (MA), nos quais os segmentos populares engajavam- se em
torno de grupos liberais exaltados que defendiam propostas republicanas. Por isso a
cabanada permaneceu durante muito tempo obscura na historiografia brasileira, que apenas
ressaltava seu caráter reacionário sem perceber as complexidades em jogo.
A guerra cabana eclodiu num momento em que as tendências liberais em divergência
não trouxeram melhorias significativas à vida dos homens e mulheres simples do campo.
Logo, suas idéias eram vistas com desconfiança, enquanto a imagem do príncipe, “deposto
arbitrariamente” em sua concepção, se fortalecia na tradição do “pai protetor”. Concepção
percebida nas palavras do líder cabano Vicente Ferreira de Paula:
3. Ofício do govemo de Pernambuco ao ministro do Império Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, lo nov 1832.
A citação faz parte das transcrições que compõem o acervo documental do pesquisador Manuel Correia de
Andrade, compreendendo sua pesquisa na seção de manuscritos do Arquivo Público Jordão Emerenciano
(PE). O referido material gentilmente cedido pelo autor encontra-se sob minha guarda pessoal. Optou-se pela
manutenção do linguajar original em todas as transcrições.
4. ANDRADE, Manuel Correia de. A guerra dos cabanos. Recife: UFPE, 2005, pp. 49-51.
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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
5. Carta, 20 dez 1834, publicada pelo Diário da Administração Pública, 5 jan 1835, alocado no setor de
documentação microfilmada da Fundação Joaquim Nabuco.
6. THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia
das Letras, 2005, p. 19.
200
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS
Assim, para além do marxismo clássico que incide na definição de classes ajustadas a
sua localização na estrutura econômica em relação aos meios de produção, os estudos de
Thompson abriram um novo espaço para uma concepção mais plural que percebe as relações
inter e intragrupais.
Alicerçado por esse viés interpretativo, o estudo da Cabanada opera uma nova
dimensão, que implica na observância de valores cotidianos, usos e negociações possíveis.
A documentação relativa às Diretorias dos índios, localizadas no Arquivo Público de
Alagoas (Sessão de Manuscritos), refere-se à organização de aldeamentos mistos por ordens
religiosas no sertão. Além de abrigar comunidades indígenas de origens diferenciadas e
muitas vezes hostis entre si, como os tapuia-tupi, também cediam espaço para negros,
conformando assim uma miscigenação que resultava em “índios escuros”, como eram
descritos pela população de Camaragibe (AL).
Contudo, os relatos sobre a prática conhecida como “despique” foram elaborados
pelo frei José Plácido de Messina em 1841. Tratava-se do exercício da troca provisória de
mulheres em ambientes rurais. De acordo com Dirceu Lindoso:
Ou seja, mesmo durante o conflito cabano essa prática, que não possuía uma
estabilidade de cônjuges, já era usual nos arraiais cabanos nos confins das matas. Entre um
ataque e outro às forças legalistas, era necessário cuidar da reprodução cabana, isolada nas
matas por conta da situação aguerrida.
No período pós-guerra, o despique adquiriu um formato diferenciado, pois se
dedicava à troca das viúvas dos combatentes cabanos, criando uma rede de integração e de
laços de solidariedade que se apoiava no uso sexual e no auxílio entre terceiros.
7. LINDOSO, Dirceu. Formação de Alagoas boreal. Maceió/São Paulo: Catavento, 2000, p. 159.
201
i
r
No modelo cabano-jacuipense, a troca de uma mulher casada era feita por outra nas
mesmas condições. Seguia, portanto, uma sucessão dual. Dessa forma, essa reciprocidade
anulava ressentimentos relacionados à idéia de traição, pois, se ela ocorria, era mútua e com
anuência dos dois casais envolvidos nesse sistema, diferentemente do modelo do pós-guerra,
no qual se estabeleceu uma rotatividade plural na oferta de mulheres viúvas.
Contudo, não se pode entender esse sistema como uma abertura à promiscuidade, uma
vez que o mesmo servia para controlar a liberdade sexual ao fazer com que cada poligino
cuidasse de uma mulher por vez. Esta, além do serviço sexual, lhe oferecia também o
trabalho doméstico. A legitimação desse matrimônio poligâmico consensual estabelecia-se
sob regras de conduta evitando o incesto e demarcando os espaços na divisão de bens
agrícolas.
É possível ter uma visualização mais clara desse sistema a partir da compreensão do
organograma abaixo.
COMUNIDADE DE FILHOS
202
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS
Para além de simples arranjos biológicos, o que se deve depreender desse sistema
eram os significados culturais das associações familiares. Na relação entre desiguais (índios e
negros) socializavam-se modos de convivência. O costume do despique potencializava a
sobrevivência econômica comunitária, provendo ainda recursos (sociais e culturais) em meio
a um ambiente de indigência e desigualdade frente aos núcleos familiares dos grandes
latifúndios.
Esse modelo de enlaces reprodutivos possui uma vivência anterior à época dos Terços
Paulistas no período colonial (1674), formado por índios aldeados comandados por militares
com o objetivo de destruir os mocambos de negros fugidos situados entre o vale do rio
Mundaú e os campos dos palmares de Quipapá.
O uso do despique era parte importante para a manutenção das comunidades
indígenas que lutavam contra as doenças e violência ocasionadas pelos brancos. Isolados em
locais do sertão, usavam a rotatividade de relacionamentos como forma de garantir a prole
que daria continuidade a suas tradições. Em muitas regiões, povos hostis encontravam nesse
sistema uma forma de contornar as rivalidades e constituírem a pacificação, além de
solucionarem problemas relativos a escassez de parceiros(as) no mesmo grupo.
Os Terços, ao recrutarem índios soldados, não conseguiram desarticular de todo essa
prática, que na maioria dos casos é aceita por seus comandantes com a finalidade de se
manter a reprodução nas aldeias e assim garantir a continuidade do contingente necessário
aos serviços de exploração das matas.
A experiência coletiva dos indígenas como circunscritos nesses Terços criou um
modelo de religiosidade sincrética, que aliava elementos do catolicismo a crenças tapuia-
kariri (danças ritualísticas, ervas curativas, etc.). Não havia de fato uma preocupação dos
capitães desse agrupamento na conversão total dos índios sob a sua guarda. Esse papel era
destinado aos párocos que, em razão da mobilidade dos Terços, perdiam o contato regular
com seus fiéis, abrindo brechas para a reelaboração dos ensinamentos religiosos oficiais.
Além das hostilidades entre etnias indígenas diferenciadas, a desarticulação desses Terços
promoveu sua sedentarização em terras concedidas como sesmarias a
203
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
capitães que haviam comandado os ataques aos mocambos. Dessa forma, tanto o lugar-
tenente Cristóvão de Mendonça Arrais, como seus sucessores, mantiveram a posse dos
grupos indígenas com a criação das Companhias de índios chefiadas por grandes
proprietários da região. Segundo DirceuLindoso:
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204
Matas Plurais, Imoralidade Matrimoniais Figura 1.
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Fonte: LINDOSO, Dirceu. A utopia armada: rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real (1832-1850). Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1983, pp. 436-7.
205
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
O trabalho como lavrador permitia ao pobre livre um mínimo acesso a terra, e para
isso a estabilidade da constituição de uma família e os laços de socialização na região eram
fundamentais. Assim, mesmo sendo negro ou mestiço, seu tratamento seria sempre
diferenciado do escravo, pois possuía a capacidade de, na medida do consentido, “viver para
si” e não a de obrigatoriamente “viver para outrem”.
Essa situação de distinção normalmente acompanhava a proteção de um “padrinho”,
ocasionando laços de fidelidade, por isso a mobilização desses pobres livres pelos senhores
de engenho no momento de combate com as forças do governo.
Antonio Timóteo de Andrade liderou o ataque a Panelas do Miranda, localidade
fronteiriça do agreste na qual se intensificara o avanço territorial dos grandes proprietários
sobre as terras “sem dono”, cercando-as e expulsando os pequenos posseiros dessa região. O
próprio líder dessa fase popular do movimento cabano havia sido expulso das terras há muito
ocupadas por sua família.
A economia exportadora dos grandes engenhos canavieiros, baseada na exploração da
mão-de-obra de négròs, lavradores e índios, implicava na caracterização dos fazendeiros
como “senhores possuidores de terras”, expressão utilizada por Márcia Motta ao
compreender que:
>
Para os fazendeiros, a questão não se colocava em termos do
acesso à terra, mas sim na dimensão do poder que eles viriam a
exercer sobre quem não a detinha. A existência de matas
8. CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista (Brasil,
século XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 50.
206
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS
Entre 1834 e 1835, os negros papa-méis (termo regional que definia os escravos
fugitivos que se alimentavam de mel silvestre nas matas) tomam-se a quase totalidade da
revolta cabana sob a liderança do mulato Vicente Ferreira de Paula. A rígida disciplina
militar com a qual conduzia as forças cabanas e o aldeamento do Riacho do Mato Frio era
proveniente do período em que fora soldado. Procurava ser reconhecido como Comandante-
Geral da Força Restauradora, General das Forças Realistas, ou Capitão de Todas as Matas. 10
Dessa forma, a representação que ele criava de si mesmo era alicerçada pela defesa
dos postulados absolutistas, pregando fidelidade ao ex-imperador do Brasil e professando a fé
católica. Era ele aquele que à frente dos cabanos restauraria o trono ao seu “legítimo” dono:
Pedro I. Seus pontos de vista foram colocados em uma carta de 1834, na qual afirmava: “Eu
trabalho na riligião sancta edefendo ao sr. Dom Pedro primeiro ou quem suas vezes fizer
vindo assignado pelo mesmo Sr. Que Deos o Guarde”.11
Sua ligação com a religiosidade oficial nas matas era transformada e ressignificada
com a partilha de experiências negras, indígenas e mestiças. Dessa forma, embora os cabanos
mantenham práticas como a reza regular do terço nos acampamentos e o silêncio respeitoso
após a mesma, frei Messina, assim como outros sacerdotes locais, reclamava de uma “vida
desregrada” sem batismos, casamentos ou missas que difundia uma “imoralidade
degenerativa” da alma. Essa vida “sem lei” aliada à sua atitude, derramando o sangue das
forças do governo, conduziria os cabanos à perda da redenção e conseqüentemente do
paraíso.
9. MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflito e direito à terra no Brasil do século XIX. Rio
de Janeiro: Vício de Leitura/Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998, p. 39.
10. ALMEIDA, Luis Sávio de. Memorial biographico do Capitão de Todas as Matas. Recife: UFPE, Tese de
Doutorado, 1995.
11. Carta, 20 dez 1834, publicada pelo Diário da Administração Pública, 5 jan 1835, no setor de documentação
microfilmada da Fundação Joaquim Nabuco.
207
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12. Proclamação do bispo de Pernambuco aos cabanos, publicada no Diário da Administração Pública de
Pernambuco, n. 56, 16 fev 1835, alocado no setor de documentação microfilmada da Fundação Joaquim
Nabuco.
13. REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo:
Cia das Letras, 2005, p. 74.
208
M ATAS P LURAIS , I M ORALIDADE M ATRIM ONIAIS
14. PAIVA, Eduardo França. Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias de resistência através
dos testamentos. São Paulo: Annablume, 2000, p. 196.
209
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
de incorporação dos modos de vida brancos (em muitos casos, muito mais uma teatralização
do que sua real aceitação), mas, sobretudo compreendendo uma reelaboração desses valores a
partir da experiência de negros e mestiços.
Essas ressignificações culturais não se limitavam ao círculo das camadas populares,
mas sim transmigravam para as classes abastadas como artifício de interação que não se
restringia a uma simples relação de forças entre dominantes e subordinados. Até porque havia
uma rede de relações sociais muito mais plural, cuja plasticidade de interpretações e vivência
tomava possível uma intermediação entre mundos desiguais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
210
SABERES, PETRECHOS E ESCRAVOS: OFICIAIS MECÂNICOS E SENHORES NO
CORPO SOCIAL DAS MINAS SETECENTISTAS
212
S ABERES , P ETR ECHOS E E SCRAVOS
3. BD-CRV (07)12, Inv. 195. O ferreiro morre aos 40 anos, em 1800, em seu local de domicílio.
213
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Na Vila, Arcângelo tem amante, uma preta forra, de nome Maria Ribeiro, sua ex-
escrava, que lhe deu e cuida de três filhos e três filhas, mulatos. Ela será sua inventariante e o
trata de “meu senhor”. Dos seus escravos (seis) sabemos o nome apenas de um: é João, negro
angola, de 29 anos, avaliado em 200$000 (duzentos mil réis) e que tem “princípios de
ferreiro” e é, provavelmente, seu auxiliar/aprendiz de utilidade vital em sua ocupação.
Manoel de Mello Pimentel é carapina e vive no Arraial de Roça Grande, bem perto da
Vila.4 Mora em uma casa de vivenda, no arraial, onde trabalha em sua oficina e possui umas
terras minerais no veio d’água do aglomerado. Sua oficina é razoavelmente equipada com
serra braçal nova, serra velha e um grande caixão de ferramentas com machados (dois), enxó,
juntoura, plaina, formões (seis), goivas, martelos e compasso. Tem um cavalo (“ruço”) velho
e manso, que lhe serve de montaria, e os arreios usados no animal. Para ajudar na lida da
oficina e da família (esposa e nove filhos) ele possui onze escravos (um casal e seus quatro
filhos, uma escrava com três filhos e uma outra escrava). Sua inventariante não nos fornece a
ocupação dos escravos. Provavelmente, pela ausência da referência e pelos valores da
avaliação, não possuem luzes de ofício algum.5
Próximo a Roça Grande, no mesmo Termo da Vila de Sabará, na barra do riacho
D’Anta, vive o sapateiro Antônio de Matos Prestes. 6 Casado com Anna de São Joaquim Leal,
tem quatro filhos pequenos e onze escravos que lhe ajudam na oficina e cuidam de sua roça,
onde possui um cavalo e dezesseis cabeças bovinas. Os bens profissionais de sua oficina são
petrechos próprios de um sapateiro: ferramentas e materiais (solas e peles de veado) para a
confecção das peças que ele manufatura e vende. Da atividade mista de oficial mecânico e de
agricultor sustenta a família e a vida rústica.
Ferreiro, carapina e sapateiro são homens simples que laboram na Vila de Sabará e
têm escravos para o trabalho de suas próprias ocupações ou para suprirem as necessidades de
serviços nas atividades econômicas que a ocupação principal permitiu investimentos. Usando
ou nãodéescravos para exercer o próprio ofício ao seu lado, possuíram considerável número
de cativos.
Em Santa Luzia, em seu sítio Chamado Amorim, vive e labuta o oficial de carapina
Luiz Ferreira Souto, com>ua esposa Izabel e seus cinco filhos menores de 12 anos. 7 Sua
fazenda tem “casas, senzalas, tudo coberto de capim” e mais “terras de
214
S ABERES , P ETR ECHOS E E SCRAVOS
plantas, matos virgens, capoeiras, campos e terras minerais com lavras e com hortas e um
rego d’água que cobre as terras minerais”. Sua oficina, além das ferramentas usuais de seu
ofício, possui uma balança de meia libra, dezenove almocrafes usados, quinze enxadas “já
com seu uso”, oito alavancas em bom estado e uma foice. Para aproveitar as posses e os
saberes ele possui, 31 escravos, entre homens e mulheres, jovens e velhos. Alguns ajudam
com seus jornais e outros trabalham em suas terras e na oficina. O escravo José, preto mina,
de 35 anos, trabalha no ofício de barbeiro “como se livre fosse” e lhe atende com o jornal
combinado. Como o seu dono, é artesão de ofício, o que lhe possibilita ganhar a vida,
sustentar o senhor e assegurar um dia a sua liberdade.8
Nem mais, nem menos, esses são típicos homens livres, oficiais mecânicos por
atividade usual, senhores comuns de escravos em uma sociedade escravista na qual a posse
de negros é utilidade e distinção. Não são portugueses da elite, são todos nascidos nas barras
do Rio das Velhas, e nas suas beiras manufaturam artes e prestam serviços que lhes
competem pelos seus saberes e lhes são permitidos pelas demandas sociais. Diversificaram
suas atividades e buscaram na terra objeto além da matéria- prima para o próprio ofício.
Senhores em um mundo de senhores, na simplicidade de suas vivências, identificaram-se
com a condição de proprietários de escravos e amalgamaram formas de viver, produzir e
comercializar produtos no mercado do banal.
Distante dali, ao norte, na Comarca do Serro Frio, há um arraial populoso e
fervilhante em economias variadas e em diamantes que lhe brotam dos vales. Mais populoso
que a própria sede da comarca - a Vila do Príncipe - a sede do Distrito Diamantino, o Tejuco,
agasalha uma vida urbana que exige cuidados de segurança e serviços variados de tantos
oficiais mecânicos quantos os que conseguem se estabelecer no local. O olhar vigilante da
Câmara está na Vila do Príncipe, longe de seus moradores, mas, nem por isso, suas
determinações deixam de regrar suas ações. A estrutura administrativa ali é rígida e atenta, e
o trabalho mecânico será, como na Vila, alvo dos tentáculos funcionais do rei.
O sapateiro Bernardo Antônio da Rocha, homem solteiro e livre, mas avô de uma
neta, filha de sua filha natural que morreu e a deixou só no mundo, exerce sua atividade com
comodidades que a vida lhe oferta.9 Possui as ferramentas e demais petrechos de um
sapateiro (couros, solas, meadas de fios), mas o que tem maior
8. Alguns outros exemplos semelhantes a esses deixam aqui de ser mencionados por economia de espaço e de
paciência dos leitores. Dentre outros, o do mestre de ferreiro que morre “demente, louco, desajuizado do
juízo”, Antônio Gonçalves Ferreira. BD-CRV - (20) 3, Inv. 180.
9. BAT/Inv. 045, CSO. Abertura em 1810.
215
TT
valor no rol de bens materiais inventariados de sua loja é “um chapéu de sol usado” (2$000
réis). No entanto, seu capital mais evidente está no grupo de homens escravos que aluga para
a Real Extração dos Diamantes, em alguns outros cativos que lhe pagam jornal, e em outros
que trabalham com ele. Se castiga com palmatória a esses últimos, como na gravura de
Debret, não se pode saber: este instrumento não está arrolado em seus bens, mas,
provavelmente, não estaria, mesmo se ele o tivesse, já que não era comum enumerar e avaliar
bens de madeira de tão pouca monta.
São sete os escravos do sapateiro Bernardo: seis homens e uma mulher, todos muito
jovens e valorizados, que lhe facultam uma vida farta e sem preocupações. Deixa os bens
para sua herdeira, a neta, e, arrolados são, sobretudo, vários créditos a receber, além de
animais e casa de vivenda.
Escravos de ganho, alugados à Real Extração ou no exercício do ofício que pratica,
não estão quantificados em seu inventário post mortem. Em vida, entretanto, o sapateiro tirou
deles a força que moveu sua economia e que deixou de herança à neta.
José Pedro de Azevedo é caso similar.10 Oficial de latoeiro, seus serviços são
demandas constantes e corriqueiras para aparelhar as casas com vasilhames e as construções
com calhas e proteções de folhas. Natural de Manga, “do Bispado da Bahia”, migrou para o
Tejuco atraído pelo mercado que lhe sustenta. Morre sem ter conseguido ter bens imóveis,
mas deixa para sua esposa e sua mãe, que viviam com ele, a sua “tenda de latoeiro”, “um par
de caixas de madeira com as ferramentas de seu ofício”, roupas de uso, louças, talheres,
armas e três valiosos escravos benguelas com luzes do seu ofício que poderiam sustentá-las
como oficiais em oficina produtiva.
O minhoto, Martinho Alves Chaves, tem atividade diversificada. 11 Tudo leva a crer
que, a partir de sua atividade básica de ferreiro, construiu cabedal que propiciou a ele chances
comuns de ampliação da atividade econômica. Tem duas moradas de casas no Arraial do
Tejuco, uma maior e mais valiosa e outra simples, além de duas lavras minerais próximas à
cachoeira dos Cristais e à cachoeira da Sentinela, nos arredores do arraial. Tem, aind^Tuhi
“capão de mato” em outra localidade que seu inventário não identifica. Possui 23 esfcravos.
A maioria vive e minera nas lavras, onde o senhor tem vivendas e senzalas. O escravo Paulo
“com luzes do ofício de ferreiro” e bastante idoso (80 anos) comandai trabalho de outros
escravos na tenda de ferreiro bem equipada e com matéria-prima abundante (39 chapas de
ferro) que fica no Tejuco. O rol de bens domésticos dá-nos a idéia de uma vida confortável na
morada do
216
S ABERES , P ETR ECHOS E E SCRAVOS
arraial, bem situada à Rua da Quitanda, “com duas frentes, ambas de sobrado” e vizinhança
com as “casas das Recolhidas de Macaúbas”: móveis simples, mas em abundância,
vasilhames fartos, imagens de santos em madeira, barro e latão, colchões, mantas e lençóis,
além de indumentária numerosa. A relação de dívidas junto ao comércio de Francisco
Martins Pena denota compras de alimentos básicos (farinhas, feijão, milho, rapaduras),
tecidos, aviamentos e ferramentas.
Martinho confecciona em sua tenda, alavancas, marrões, machados, enxadas, foices e
almocrafes para uso próprio e para o comércio. É português e senhor de escravos, o que lhe
facultava, com certeza, inserção social cimentada nos valores de sua origem e cabedal.
A situação desses oficiais mecânicos que se transformam em senhores de escravos é,
no mínimo, contraditória: se o trabalho braçal é para a sociedade portuguesa escravista ato de
escravo, e se o senhor de escravo normalmente não utiliza as mãos para o trabalho, como
seria a relação desse senhor de escravo que trabalha como oficial mecânico? E que estatuto
teria, nessa relação, o escravo artesão semi- especializado, ou mesmo, especializado? Essa
reflexão merece, com certeza, espaço ampliado na pesquisa historiográfica e não é objetivo
desse estudo fazê-lo neste momento. Supõe-se, de forma preliminar, que a relação entre esses
homens, artesãos de mesmo ofício ou de ofícios distintos, localizados em estratos sociais que
tendiam a opor-se um ao outro, e, por fim, unidos por laços da relação escravista, era menos
desnivelada e mais solidária quando comparada a de outros senhores e escravos sem
especialização.12
A situação do escravo perito em alguma arte era destacada em seu meio. Trabalhando
para seu dono, às vezes exercendo a mesma atividade dele - com quem pode ter tido a chance
de aprender o ofício ou desenvolvendo o artesanato como escravo de ganho, o cativo artesão
tinha valor acrescido pela especialização e pela qualidade de seu desempenho no labor
manual. Como escravos de ganho, sujeitavam- se aos exames e correições normais e, neste
caso, viviam o paradoxo de serem tratados, momentaneamente, como homens livres, em
busca de legalidade para o exercício laborai.
É o caso, por exemplo, de Paulo Mina, escravo de Antônio Pinto Carneiro, de Ouro
Branco, examinado e autorizado pela “carta de confirmação” a exercer o ofício de ferrador,
como descreve o registro abaixo:
12. Mary Karasch insinua um exercício de verificação dessa situação para o Rio de Janeiro, na primeira metade
do século XIX, sem, no entanto, se dedicar plenamente à essa questão. Ver: KARASCH, Mary C. A vida dos
escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; especialmente no capítulo 7,
“Carregadores e propriedade: as funções dos escravos no Rio de Janeiro”.
217
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Paulo Mina, provavelmente um escravo de ganho de grande valor pela demanda por
seu serviço especializado e valorizado, sujeita-se ao exame para exercer seu ofício e usa seus
saberes para garantir uma condição distinta no contexto de sua condição de cativo. É homem
escravo que se estabelece como ferrador e alveitar para ganho de seu senhor e, como oficial
mecânico, está sob a lei como se livre fosse.
Para um oficial mecânico livre, o fato de ter escravo apto em atividade no ramo do
labor artesanal especiaüzado abria chances de aumentar o lucro por sua atividade,
diversificando seu atendimento e estendendo-o a possibilidades de demandas díspares. Para o
escravo especializado em ofício artesanal vigorava a mesma labuta dos escravos do eito, a
mesma condição de trabalhador compulsório, mas, provavelmente, uma diferenciada relação
com o senhor e uma maior possibilidade de adquirir recursos para sua liberdade futura, muito
embora seu valor fosse acrescido pela condição de ter luzes de tíácío ou de possuir saberes
especiais demandados socialmente. V
Faiscando outros serviços, esses homens das Minas retiraram de aluviões díspares o
substrato de suas vidas e-€fe suas sobrevivências. À luz de saberes, usaram as mãos que
forjaram, teceram e construíram instrumentos de outros trabalhos, edificações civis e
eclesiásticas, tecidos de necessidades para alguns, petrechos de utilidade para todos.
Estatutariamente se estabeleceram em seus aglomerados humanos e teatralizaram suas
condições de viver e de aparecer. Viveram nas Minas de Portugal
218
S ABERES , P ETR ECHOS E E SCRAVOS
da América e foram mais que mineradores ou mineiros. Foram peças fundamentais de uma
construção socioeconômica e cultural. Elaboraram mais que produtos artesanais: foijaram
identidades que compuseram um rico amálgama de vivências e sobrevivências em formas
diversificadas de fazeres e em buscas variadas de distinção.
Nessa busca, o trabalho escravo compôs, como trama, o tecido social que envolvia
súditos da Coroa portuguesa em busca de sobrevivência, riqueza, privilégios e estatura
social. Trabalhadores manuais e escravos fizeram parte de teias de relações complexas,
difíceis de cozer e impossíveis de desfazer. Sobretudo, foram capazes de construir relações,
produtos e serviços em sistema que os integrava a um espaço histórico sui generis, mas
perfeitamente integrado ao processo colonial. Senhores uns, escravos outros, foram seres de
uma construção histórica na qual um e outro, com seus saberes e petrechos, além de suas
vontades e possibilidades, se impuseram como fios fundamentais para o tecido social das
Minas.
219
\
O ABOLICIONISMO DAS MINAS: UM BREVE ESTUDO COMPARADO DO
MOVIMENTO ABOLICIONISTA NAS CIDADES DE OURO PRETO E JUIZ DE FORA
NOS ÚLTIMOS ANOS DA ESCRAVIDÃO
1. Bacharel em História pela Universidade Federal de Ouro Preto e aluno do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Juiz de Fora.
2. Figuras como José Bonifácio de Andrada e Silva, João Severiano Maciel da Costa, José Eloy Pessoa da Silva e
Frederico César Burlamaque desenvolveram argumentos favoráveis à emancipação cativa de forma gradual
ainda no contexto do pós-Independência. Ver: CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil.
RiodeJaneiro: Civilização Brasileira, 1978. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. José Bonifácio de
Andrada e Silva. Organização e introdução de Jorge Caldeira. São Paulo: Ed. 34, 2002.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Maria Helena Machado rompe com a tese de que o abolicionismo teria se limitado
apenas à ação legal e ordeira, condenando as atitudes tidas como “inconseqüentes”.
Matizando a ação abolicionista em São Paulo nos anos finais do regime escravista, a autora
percebeu como a “arraia miúda” e vários grupos abolicionistas interagiam mesclando idéias
de natureza bem diversa. Em vários pontos
3. Para saber mais sobre os vários projetos quéNenvolviam a extinção da escravidão no Brasil do século XIX,
ver: AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites (século XIX).
Rio de Janeiro: Paz^Terra, 1987.
4. Refiro-me principalmente à chamada “Escola Paulista”, cujos integrantes defenderam a tese de que a única
preocupação dos abolicionistas era assegurar a passagem ao capitalismo sem quebrar a hierarquia social
vigente no país, aproveitando-se da inércia dos cativos que não teriam a capacidade de se organizarem na luta
pela abolição. Ver: LANNI, Otávio. As metamoifoses do escravo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962;
CARDOSO, Femando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1976; FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 3a ed., São Paulo: Ática, 1978, 2
vols.
5. MACHADO, Maria Helena P. O plano e o pânico: os movimentos sociais na década da abolição. Rio de Janeiro:
Editora da UFRJ/Edusp, 1994, p. 146.
222
O A BO LICIONISMO DAS M INAS
6. Preferimos utilizar o conceito de “racialismo” elaborado por Tzvetan Todorov, ao invés de “racismo
científico”, como têm feito vários autores. Todorov faz uma distinção clara entre racismo e racialismo, sendo
o primeiro caracterizado por um comportamento revestido de ódio e desprezo para com indivíduos de
características físicas diferentes. Já o racialismo seria uma ideologia, uma doutrina referente às raças humanas
foijada na Europa ocidental em um período amplo que vai do século XVIII a meados do XX. Ver:
TODOROV, Tzvetan. Nós o os outros: a reflexão francesa sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1993.
223
r
movimento, mas a sua complexa prática. O ponto de produção e distribuição das “flores da
liberdade” era nada mais nada menos que um quilombo situado no que é hoje o bairro do
Leblon no Rio de Janeiro. Este, por sua vez, representava um novo tipo de resistência ao
sistema escravista.7
Diferentemente do que ficou conhecido como “quilombo-rompimento”, caracterizado
pela negação da ordem escravista e de relativa autonomia em relação à “sociedade branca”, o
quilombo do Leblon era apoiado ou mesmo patrocinado por abolicionistas, constituindo-se
como um ponto de encontro entre estes e os escravos fugidos (além de ser um símbolo de
resistência e difusão dos ideais do movimento). A existência do “quilombo-abolicionista”
reforça a complexidade da atuação antiescravista, já que representa a interação entre o
movimento e os maiores interessados na abolição, os escravos (Silva, 2003).
Ao lado do quilombo do Jabaquara, em Santos, o quilombo do Leblon servia como
uma espécie de “instância de intermediação” entre os fugitivos e a sociedade. Ao contrário
do “modelo clássico” de quilombo, os laços entre a comunidade escrava e a sociedade - ou
melhor, entre os fugidos e o círculo político da Corte - eram muito nítidos. Entre seus líderes
estavam cidadãos bem conhecidos da sociedade da capital do Império, muitos deles membros
da Confederação Abolicionista (Silva, 2003:13).
O comerciante português José de Seixas Magalhães, idealizador e proprietário das
terras do quilombo, fez com que as belas flores cultivadas em parceria com os fugidos
chegassem até a mesa da família imperial. As camélias do Leblon enfeitavam a mesa de
trabalho da princesa regente no Palácio das Laranjeiras, uma mostra da cumplicidade das
autoridades imperiais, ou melhor, da realeza, com o quilombo abolicionista (Silva, 2003:15).
Essa visibilidade do mocambo para a sociedade em volta fez com que ele se tomasse
um dos símbolos do abolicionismo ao lado das flores nele cultivadas. Nas barbas da polícia e
demais autoridades, abolicionistas e escravos promoviam belas e animadas festas, inclusive
com uma boa batucada (Silva, 2003: 15). Um batuque desafiador que marcava o ritmíído
clamor pela liberdade.
O objetivo deste texto é exatar^nte tentar colaborar para a compreensão deste
complicado processo na província dè Minas Gerais, para ser mais específico, em duas de suas
importantes cidades^a capital Ouro Preto e a próspera Juiz de Fora. Acreditamos que através
da análise das reações da sociedade nas referidas cidades (centros citadinos localizados em
regiões com dinâmicas sociais e econômicas bem distintas) poderemos perceber de forma
mais ampla como a província reagiu ao processo de derrubada da instituição escravista.
7. SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
O A BO LICIONISMO DAS M INAS
8. LIBBY, Douglas Cole. A transformação e trabalho em uma economia escravista. Minas Gerais no século XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1988.
9. SLENES, Robert W. Os múltiplos porcos e diamantes: a economia escrava de Minas Gerais no século
XIX. Estudos Econômicos. São Paulo, v.18, n. 3, 1988, p. 465.
10. Relatório apresentado pelo I o vice-presidente da província, Antônio Teixeira de Souza Magalhães, ao
Desembargador Francisco de Faria Lemos, 01 jun 1887. Disponível no site da Chicago Universit:
www.crl.edu/content/brazil/mina.html
11. Sobre o desenvolvimento urbano e industrial de Juiz de Fora, ver: GIROLETTI, Domingos. Industrialização
em Juiz de Fora (1850-1930). Juiz de Fora: Universidade Federal de Juiz de Fora, 1988; e PIRES, Anderson.
Capital agrário, investimentos e crise na cafeicultura de Juiz de Fora (187001930). Niterói: UFF, Dissertação de
Mestrado, 1993.
225
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
região concentrava cerca de 35% da escravaria mineira. 12 A maior parte dessa mão- de-obra
encontrava-se concentrada nas mãos de grandes fazendeiros de café do município de Juiz de
Fora.
Rômulo Garcia Andrade constatou, através do estudo de inventários post-mortem e de
editais de leilões publicados nos jornais de Juiz de Fora, analisados no período entre de 1870
e 1880, que o tamanho médio das propriedades do município era de 236 alqueires, com
plantéis compostos entre sessenta a 198 escravos e 237.714 pés de café. 13 Segundo Andrade,
os grandes proprietários (possuidores de mais de cinqüenta escravos) concentravam 85% dos
cativos, 88% da produção de café e 84% das terras. Os médios proprietários (entre dez a
dezenove escravos) detinham 12% dos escravos, 10% do café e 14% das terras, enquanto que
os pequenos proprietários concentravam apenas 3% dos escravos, 2% das terras e do café
(Andrade, 1991: 111).
Diante de diferenças tão marcantes, pretendemos constatar qual teria sido a influência
destas mesmas diferenças sobre o surgimento do movimento abolicionista nos referidos
centros citadinos.
Começando pelas informações conferidas pela escassa historiografia sobre a abolição
em Minas, Oiliam José afirma que o tímido movimento abolicionista mineiro teria entre seus
principais centros justamente as cidades de Ouro Preto e Juiz de Fora. Para o autor, a
exemplo do que teria ocorrido com a propaganda republicana na província, a campanha
abolicionista seria “nada aparatosa e circunscrita ao meio estudantil ou ao pequeno grupo de
profissionais liberais que atuavam nas localidades mineiras”.14 Nesse ponto, ao destacar a
importância dos profissionais liberais e estudantes dentro do movimento abolicionista, o
autor entra em sintonia com parte da historiografia brasileira que aponta esses grupos como a
base do abolicionismo.
Para Emília Viotti, o crescimento das cidades e das profissões liberais foi um fator
decisivo para que o abolicionismo despontasse na década de 1880.15 Segundo a autora:
12. Slenes (1988:458 e 465); e MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à
escravidão numa economia não-exportadora. Estudos Econômicos. São Paulo, Instituto de Pesquisas
Econômicas, v. 13, n. 1, jan-abr, 1983_
13. ANDRADE, Rômulo Garcia. Escravidão e cafeicultura em Minas Gerais: o caso da Zona da Mata. Revista
Brasileira de História. São Paulo, v. 11, n. 22, maio-ago, 1991, pp. 95-125.
14. JOSÉ, Oiliam. A Abolição em Minas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962, p. 9.
15. COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à Colônia. 3a ed., São Paulo: Brasiliense, 1989.
226
O A BO LICIONISMO DAS M INAS
16. GRAHAM, Richard. Escravidão, Reforma e imperialismo. São Paulo: Perspectiva, 1979.
227
I
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Ao analisar os jornais mineiros entre 1850 e 1888, Liana Maria Reis constatou um
amplo debate acerca da possibilidade da extinção do elemento servil no Império, com
manifestações tanto a favor como contra a abolição. Com base na análise da documentação
oficial e da imprensa, a autora constatou que o movimento abolicionista ocorreu em Minas
Gerais acompanhando os debates em tomo da questão servil que ocorria em âmbito
nacional.17
Com relação à cidade de Ouro Preto, Liana Reis também notou a existência de mais
três sociedades abolicionistas, além da já citada Sociedade Abolicionista Ouropretana. Foram
anunciadas as fundações do Clube Abolicionista Mineiro Visconde do Rio Branco (1883), da
Sociedade Libertadora Mineira e do Clube de Libertos Viscondessa do Rio Novo (ambas
fundadas em 1884) (Reis, 1993: 111).
Ao analisar os jornais ouropretanos editados no período tratado, Liana Reis constatou
ainda que as atividades da Sociedade Abolicionista Ouropretana eram bem anteriores à data
apontada por Oiliam José (1882) (Reis, 1993:109). De acordo com um anúncio publicado no
jornal A Província de Minas, no dia 05 de junho de 1881, a entidade já estava organizada e
inclusive distribuía suas primeiras alforrias. Dois cativos foram beneficiados pela caridade
dos membros. Os “pobres” Leopoldina e Fellipe “puderam já entrar no pleno gozo de sua
liberdade”.18 Entretanto, ao contrário do que acreditou Liana Reis, a organização da
Sociedade era ainda anterior a junho de 1881.
Uma nota publicada no mesmo periódico do mês em fevereiro daquele ano noticiava a
fundação da Sociedade Abolicionista Ouropretana:
7
Sociedade Emancipadóra. No Domingo ultimo, realizou-se no
theatro desta cidade uma numerosa reunião para o fim de ser
instalada nesta capital uma associação destinada à promover
meios para a libertação de escravos.
17. REIS, Liana Maria. Escravos e abolicionismo na imprensa mineira (1850-1888). Belo Horizonte: Universidade
Federal de Minas Gerais/Departamento de História, Dissertação de Mestrado, 1993.
18. A Província de Minas. Ouro Preto, 05 jun 1881.
228
O A BO LICIONISMO DAS M INAS
Todas essas entidades manifestaram suas ações através dos jornais da capital,
anunciando a aprovação de seus estatutos, suas reuniões, além, é claro, das libertações de
escravos. Contudo, ao contrário do que afirmou Liana Reis, para quem não teriam existido
em Minas Gerais jornais que se intitulassem declaradamente abolicionistas, cabendo apenas
aos periódicos republicanos “posturas mais agressivas, propondo reformas políticas,
criticando o governo e defendendo o fim da escravidão” (Reis, 1993: 53), Ouro Preto assistiu
a criação de pelo menos três jornais dedicados à causa da abolição.
Foram encontradas referências sobre a circulação de três jornais abolicionistas em
Ouro Preto: O Trabalho:periódico litterario, instructivo e abolicionista (1883), A Vela do
Jangadeiro - periódico abolicionista (1884) e Ordem e Progresso - órgão do Club Abolicionista
Mineiro Visconde do Rio Branco (1884).
Dos três jornais foram encontradas apenas algumas edições d’0 Trabalho e do A Vela
do Jangadeiro. Do primeiro periódico restou apenas uma edição, datada de 23 de fevereiro de
1883, localizada na Biblioteca Nacional. Já do A Vela do Jangadeiro foram encontradas duas
edições depositadas na Hemeroteca do Estado de Minas Gerais (07 de setembro e 21 de
dezembro de 1884) e outras duas na Biblioteca Nacional (13 de julho e 24 de agosto de
1884). A comprovação da existência desses periódicos, mesmo que através de notas
publicadas nos demais jornais da capital, é uma boa amostra da organização e do
compromisso dos abolicionistas ouropretanos.
O conservador José Pedro Xavier da Veiga, redator e proprietário do A Província de
Minas, chamava a atenção de seus leitores para a fundação do primeiro jornal abolicionista da
capital:
229
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
O Trabalho
Com este título, começou ante-hontem sua publicação nesta
cidade em “periodico litterario, instructivo e abolicionista”,
redigido pelos Sr.s José Pedro Furst e Manoel Martiniano
Ferreira Ozzori, moços que louvavelmente consagrão ao estudo
o tempo que lhes sobeja dos trabalhos quotidianos.
Neste numero-estréa, o Trabalho já revela a intelligencia e bons
sentimentos de seus jovens redactores, que mostrão-se adhesos
ás boas ideas que o amor das letras e da liberdade desperta, e
que o espirito religioso sôe gerar illuminando nobres tentativas,
que a experiencia e o estudo saberão dirigir por bom caminho.
Não temos senão palavras de sympathia e de animação para o
novo periodico ouro-pretano, ao qual desejamos sinceramente
toda a sorte de prosperidades.
“Quem trabalha reza”, diz um provérbio oriental, que não faz
mais do que synthetizar n’uma phare magnífica a grande e
fecunda lei imposta á humanidade pelo Supremo Legislador.
Seja, pois, o - Trabalho - não só o título mas também a divisa
effectiva dos moços que hasteão modestamente esse labaro
promissor nas officinas da imprensa.20
A ação das sociedades abolicionistas na antiga capital também foi mencionada pelo
mesmo José Pedro Xavier da Veiga em suas Efemérides mineiras?1 Veiga menciona as
“esplêndidas festas populares” realizadas no dia 25 de março de 1884, em Ouro Preto, em
comemoração à abolição na província do Ceará “promovidas pelas beneméritas associações
abolicionistas Visconde do Rio Branco e Libertadora Mineira”. Veiga descreve com detalhe
osjestejos:
22. PIRES, Aurélio. Homens e factos de meu tempo: 1862-1937. São Paulo, 1939.
231
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Pouco antes da Abolição, ámâa ocorreram outros fatos que mereceram a atenção de
Aurélio. No dia 30 de novembro dç 1887, por ocasião do jubileu sacerdotal do Cônego
Joaquim José de Sant’Arma, vigário de Ouro Preto, líder do Partido Liberal da cidade e
membro da Sociedade Abolicionista Ouropretana, teriam sido distribuídas pelo religioso
centenas de cartas de alforria em plena Praça da Independência (hoje Praça Tiradentes),
oferecidas por senhores de escravos em homenagem ao sacerdote.
23. Relatório apresentado pelo ex-governador Antônio Augusto de Lima ao Presidente do Estado de Minas
Gerais José Cesário de Faria Alvim, 15 jun 1891. Documento digitalizado, disponível no site da Chicago
University: www.crl.edu/content/brazil/mina.htm
232
O A BO LICIONISMO DAS M INAS
Tais manifestações públicas contra o regime escravista (mesmo revestidas de uma capa
elitista e ordeira, representada pela comportada “cúpula” abolicionista que assistia e
participava educadamente dos concertos musicais e quermesses anunciadas nos jornais da
cidade) provocaram reação oposta de alguns de seus companheiros mais afoitos e dos
principais interessados no fim do jugo escravista, os escravos.
De acordo com Pires, adentrando o ano de 1888, a “velha capital se transformou em
asilo de numerosos fugidos que desertavam das fazendas em busca de liberdade que lhes era
assegurada pelos irmãos brancos” (1939: 84). Ouro Preto teria se transformado no principal
destino dos cativos que fugiam do domínio de seus senhores. Chegando à capital, eram
acolhidos e ocultados pelos abolicionistas radicais, que dessa forma rompiam com a imagem
bem comportada das quermesses e desafiavam autoridades e escravocratas.
Um relato em um livro de tombo de uma freguesia da vizinha Mariana confirma o
fato de abolicionistas ouropretanos receberem escravos fugidos e, inclusive, em alguns casos,
terem negociado sua liberdade com os respectivos senhores. 24 O professor que produziu e
que, infelizmente, não assinou seus textos, relata as reações de cativos e senhores após várias
pessoas da freguesia terem libertado seus escravos em janeiro de 1888, por influência da
pastoral do então bispo diocesano Dom Antônio Maria Correa de Sá e Benevides, produzida
no fim do ano anterior. Na pastoral, Benevides pedia aos sacerdotes e fiéis que libertassem,
como ato de caridade e humanitarismo (além de representar um presente em honra ao jubileu
sacerdotal do Papa Leão XIII), ao menos parte dos cativos que ainda possuíssem.25
Convencidos pelas doces e humanitárias palavras do prelado, vários senhores da freguesia de
Furquim decidiram libertar todos seus escravos no dia do padroeiro da localidade, primeiro
de janeiro.26
Em meio à bela festa organizada, muitos dos convivas não foram agraciados com a
preciosa e tão sonhada liberdade. De acordo com o relato, a festa de entrega das cartas de
liberdade foi assistida por escravos de várias fazendas “de perto e de longe”. Seus senhores,
ausências notadas pelo relator, discordavam totalmente do ato e ainda temiam a possibilidade
de ocorrer um levante por parte dos cativos, já que a leitura da pastoral e a notícia da
libertação, que de fato ocorreu no dia do padroeiro, despertaram profunda ansiedade entre os
escravos. Indiferentes à ausência dos
24. Livro do Tombo, Furquim (1884-1901). Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana. Folha 19, verso.
25. BENEVIDES, Antônio Maria Corrêa de Sá e. Pastoral do Excelentíssimo e Reverendíssimo Sr. Dom Antônio
Maria Corrêa de Sá e Benevides, bispo de Mariana, sobre a extinção do elemento servil. Mariana: Joaquim Alves
(antigo Bom Ladrão), 1887.
26. Livro do Tombo, Furquim (1884-1901). Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana.
233
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
27. Liberal Mineiro, Ouro Preto, 03 mar 1888. Hemeroteca Pública do Estado de Minas Gerais.
235
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Assim como Oiliam José, Thiago Bueno Pereira também atribui a Juiz de Fora o
título de “palco privilegiado de muitos dos embates relativos à ‘questão servil”’. 28 O autor se
vale do fato da cidade ter sido um grande centro econômico para afirmar (corroborando a
idéia de Viotti) que para ali teriam convergido um grande fluxo de idéias abolicionistas
(Pereira, 2005: 5). Entretanto, o autor esbarra na falta de comprovação empírica para tal
afirmação. Assim como em outros pontos do Império, os jornais juizforanos de fato
estamparam artigos sobre a questão servil; contudo, não noticiaram nenhum tipo de atividade
abolicionista na cidade.
Diante deste quadro desafiador, muitos fazendeiros batiam na tecla de que a melhor
solução seria “manter o princípio geral da lei de 28 de setembro de 1871”,31 justamente
\
aquela que limitaria a escjgvidão ao século XIX. Segundo Ana Lúcia Duarte Lanna, enquanto
os cafeicultoresMe São Paulo, notadamente os do Oeste paulista,
28. PEREIRA, Thiago Bueno. Abolicionismo oá\ Juiz de Fora (MG, 1870/1888). Anais do XXIIISimpósio
Nacional de História. ANPUH. Londrina: Editorial Mídia, 2005. (Disponível em http://
www.anpuh.uepg.br/xxiii-simposio/anais/textos/THIAGO%20BUENO%20PEREIRA.pdf).
29. A Propaganda, 16jun 1887. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/ MQ
apud Pereira (2005: 5).
30. O Pharol, 17 nov 1886. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/MQ apud
Pereira (2005: 7).
31. Primeira consideração feita pelos fazendeiros quando da fundação do Clube da Lavoura da cidade de Juiz de
Fora. O Pharol, 12 jan 1881. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/MG
236
.
O A BO LICIONISMO DAS M INAS
Esses interesses, garantidos pela lei, são tão importantes, que não afetam somente os
lavradores, mas compreendem em vasta esfera quase toda a fortuna pública e particular. 34
32. LANNA, Ana Lúcia Duarte. A transformação do trabalho: a passagem para o trabalho livre na Zona da Mata
mineira (1870-1920). Campinas: Editora da Unicamp, 1988, pp. 54-6.
33. SARAIVA, Luiz Fernando. Estrutura de terras e transição do trabalho em um grande centro cafeeiro (Juiz de
Fora, 1870-1900). X Seminário sobre a Economia Mineira. Diamantina, 2002, p. 6. Disponível em
http://www.cedeplar.ufrng.br/seminarios/diamantina_2002.php.
34. OPharol, 13 jan 1881. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/MG
237
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
35. Rômulo Andrade (1991: 111) identificou a presença dos grandes proprietários entre os cidadãos votados nas
eleições da Câmara Municipal de Juiz de Fora em 1860. Ao adentrarem a vida pública, os cafeicultores
escravocratas garantiam uma ampla base de sustentação ao escravismo e às suas atividades econômicas.
36. O Pharol, 08 maio 1884. Setor de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes, Juiz de Fora/ MG
238
O A BO LICIONISMO DAS M INAS
Levando em conta que a região de Juiz de Fora foi a que mais recebeu mão-de- obra
escrava nas décadas de 1870 e 1880 em Minas, ou seja, seus plantéis eram relativamente
novos, qualquer agitação nas senzalas poderia levar aqueles escravos a organizarem fugas ou
mesmo violentos motins.37 Além disso, os exemplos abundavam em outras regiões, muitas
vezes com participação abolicionista, como no interior paulista, o que certamente aumentava
a tensão entre os fazendeiros.
Muito longe de ser um quadro pronto e bem acabado, este texto representa apenas um
esboço do que o aprofundamento das pesquisas sobre a Abolição em terras mineiras ainda
poderão revelar. No entanto, este pequeno esboço nos apresenta pistas para que possamos
entender melhor um período tão importante da história e como as diferentes realidades
regionais construíram processos históricos igualmente diversos, longe das generalizações
muitas vezes apresentadas pela historiografia.
Com uma economia menos dependente da mão-de-obra cativa e sendo ainda o
principal palco da política provincial, Ouro Preto assistiu à livre organização do movimento
abolicionista na década de 1880. Movimento que, na reta final em direção à Abolição, parece
ter visto várias de suas alas abandonarem os bem comportados salões e migrarem para o
contato direto com os cativos. Esta mudança, que somente o aprofundamento das pesquisas
poderá detalhar, parece ter sido fundamental para que a antiga capital se transformasse em
um refugio para os escravos fugidos da região.
Já aquela que viria a ser chamada de “Manchester Mineira”, uma alusão a seu
desenvolvimento industrial na virada do século XIX para o XX, Juiz de Fora assistiu à
organização dos grandes fazendeiros escravistas que temiam a ação abolicionista.
Contrariando algumas afirmações feitas por parte da historiografia de que os centros urbanos
mais desenvolvidos propiciariam as condições ideais para o florescimento do movimento
abolicionista, em Juiz de Fora a organização defensiva dos escravocratas parece ter
conseguido fazer com que os apelos abolicionistas locais silenciassem, pelo menos nos
veículos de imprensa da cidade. O temor da invasão de uma “onda branca” que trouxesse
consigo outra “negra”, tirou o sono dos fazendeiros escravistas. Estes tentaram
obstinadamente construir obstáculos para os “irresponsáveis” que se espalhavam pelo
Império naquela época e queriam o fim imediato da escravidão. Como já sabemos, eles não
conseguiram.
37. Sobre tráfico de escravos para Juiz de Fora, ver: MACHADO, Cláudio Heleno. Tráfico interno e
concentração de população escrava no principal município cafeeiro da Zona da Mata de Minas Gerais (Juiz
de Fora, segunda metade do século XDC). X Seminário sobre a Economia Mineira. Diamantina, 2002.
http://www.cedeplar.ufing.br/seminarios/diamantina_2002.php
239
SERVIR “DE PORTAS A DENTRO”: PENSANDO
RECIFE E SALVADOR NA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX
1808 é um ano axial quando o tema é a dinâmica urbana das cidades portuárias
brasileiras. A Abertura dos Portos, com a conseqüente integração do Brasil nas correntes
internacionais de comércio, favoreceu a expansão urbana de Recife e Salvador. Cidades
mercantis, elas saberão se beneficiar da hegemonia regional que exerciam, mantendo
1. Centro Federal de Educação Tecnológica de Pernambuco (Cefetpe). Mestre em História pela UFPE.
Pesquisador do Grupo de Estudos História Sociocultural da América Latina (Gehscal).
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
2. Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte agrário e o Império (1871-1889). 2a ed., Rio de Janeiro: Topbooks,
1999, pp. 220-1.
3. Cf. Mello (1999). Ver ainda: MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: a cidade de Salvador e seu mercado no
século XIX. São Paulo/Salvador: Hucitec/Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978.
4. Cf. Mattoso (1978:58-9). Para o encarecimento dos gêneros básicos em Pernambuco, ver: EISENBERG, Peter
L. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco (1840-1910). Rio de Janeiro/Campinas: Paz
e Terra/Editora da Unicamp, 1977, p. 176.
242
-
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”
5. Para essa rápida descrição do quadro socioprofissional do Recife, ver: CARVALHO, Marcus J. M. de.
Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife (1822-1850). Recife: Editora da UFPE, 1998, especialmente
a parte 1; e SILVA, Maciel Henrique. Pretas de honra: trabalho, cotidiano e representações de vendeiras e criadas
no Recife do século XIX (1840-1870). Recife: UFPE/Programa de Pós-Graduação em História, Dissertação de
Mestrado, 2004.
6. Os dados estão em Mattoso (1978: 138-41) e Silva (2004: 51-6). Um paralelo entre as duas cidades fica mais
coerente quando se soma a população das chamadas “freguesias da cidade” com as “freguesias do termo”,
zonas mais afastadas da região mais urbanizada, mas nem por isso pouco povoada.
243
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
centrais (Recife ou São Frei Pedro Gonçalves, Santo Antônio, São José e Boa Vista), os
cativos somavam quase sempre algo em tomo de sete a oito mil. Ao menos as contagens de
1828 e 1856, bem como os dados publicados no Diário de Pernambuco, em 1873, ficam
nessa margem.7 A composição racial recifense carece de dados mais específicos.
Infelizmente poucos pernambucanos foram tão precisos e detalhistas quanto Figueira de
Mello que, em 1852, escreveu o Ensaio sobre a estatística civil e política da província de
Pernatnbuco, mas ainda assim seus dados sobre cor são gerais para toda a província. 8 De
todo modo, é razoável supor, pelas reações dos cronistas que visitaram Pernambuco, que o
número de negros e mestiços em geral fosse relativamente grande. Tollenare, em 1817,
chegou a dizer que “o número dos negros livres e dos mulatos é aqui muito considerável”;
todavia, quando esteve em Salvador e adentrou a igreja que se situava em frente a sua
residência, estimou que nela estivessem “dez ou doze pessoas negras para cada branca”.9
Dados qualitativos, mas significativos da superioridade numérica de negros e pardos frente
aos brancos na capital baiana. Bert Barickman, em grande estudo sobre a economia do
Recôncavo, aponta que nos séculos XVIII e XIX apenas uma minoria da população era
branca, enquanto a grande maioria da população “era formada por africanos, pretos nascidos
no Brasil e ‘pardos’, ‘mulatos’ e ‘cabras’”.10
Quanto à estrutura social, Salvador e Recife oitocentistas já estão bem distantes da
dicotômica divisão senhor/escravo, normalmente associada às regiões deplantations
escravistas produtoras de gêneros para exportação. Apesar da aparente imobilidade e
ausência de hierarquias no meio rural, essa estrutura social é mais complexa do que a binária
relação senhor/escravo, e uma vasta bibliografia já provou isso. A questão nodal suscitada
por Kátia Mattoso, e que pode ser pensada para o Recife, é: esse modelo de estratificação
social rural influenciou as relações sociais no meio urbano, ou a sociedade constituída no
meio urbano é autônoma e de características peculiares? O esforço a ser empregado para
oferecer uma resposta satisfatória ultrapassa os limites desse texto, mas se pode pensar como
Kátia Mattoso, que sugeriu uma hipótese plausível: o Brasil escravocrata érüral transfere para
a cidade “o esquema de relações sociais de tipo subordinativo”, particíüarmente o das
“relações do tipo patriarcal”;
244
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”
todavia, a cidade brasileira oitocentista vê emergir uma sociedade “mais aberta”, com uma
variada gama de categorias sociais intermediárias, em grande parte compostas por pessoas
mestiças (Mattoso, 1978: 151-69).
Levando-se essa idéia adiante, pode-se sugerir que os diferentes grupos sociais das
cidades aqui consideradas ainda se pautavam no Oitocentos por valores inter- relacionados
como família, honra, diferenças raciais e de gênero, e, obviamente, a escravidão. Valores
esses temperados por uma dinâmica social própria do meio urbano oitocentista: novos tipos
de sociabilidades, profissões, maior autonomia espacial, acesso menos restrito à moeda,
maior contato entre os grupos sociais, etc.
Soteropolitanos e recifenses oitocentistas de variada condição social, como
funcionários públicos de diversos escalões, profissionais liberais (médicos, professores),
grandes proprietários de terra, ricos comerciantes de grosso trato, militares, membros do
clero secular e regular, médios proprietários urbanos (donos de casas de pasto, tabernas,
lojas), homens e mulheres de profissões não definidas continuam a utilizar a mão-de-obra
escrava, seja para sobrevivência econômica (alugando-os ou pondo-os a ganho) ou para
executar a inúmera gama de serviços pessoais: dar recados, fazer compras nos mercados
públicos, cozinhar, lavar roupas e demais atividades domésticas. Para as famílias ricas, uma
criadagem numerosa serve como sinal de elevado status; para as famílias menos abonadas,
uma ou duas criadas no máximo livravam seus senhores e patrões de todo o trabalho manual.
Tollenare, que habitou Recife e Salvador na segunda década do século XIX, foi enfático:
“uma casa decente” precisava de dez ou doze cativos para os serviços domésticos (Carvalho,
1998: 63; Tollenare, 1978: 201). Não havia, seja na Bahia ou em Pernambuco, tantas famílias
abastadas a esse ponto. E o que as mulheres cativas, pardas, negras livres, brancas pobres,
que serviam nesse cenário social, pensavam acerca de seu trabalho? Abaixo, segue a
discussão.
245
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
na fidelidade, nos bons costumes, na honra e na capacidade de exercer o ofício (força física e
habilidades). As mulheres relativamente idosas, para recifenses e soteropolitanos, eram
preferíveis às criadas jovens. Ainda na década de 1930, os baianos esposavam nítida
preferência por “senhoras de meia idade”. Segundo Alberto Heráclito Ferreira Filho, além da
experiência comprovada, essas mulheres já estariam “aquietadas das extravagâncias
mundanas”, evitando assim eventuais dissabores como uma gravidez indesejada.11
Também no Recife do século XIX, o padrão se repete: normalmente, na busca de
criadas honestas, os anunciantes acrescentavam que elas deveriam ser de meia idade, ou de
“maior idade”, pois se supunha que estas mulheres cuja vida sexual e reprodutiva já havia
passado, não trariam problemas com “seduções”, namoros ou casos de gravidez. Nota-se
mesmo uma busca efetiva por mulheres idosas para fazer companhia a pessoas solitárias,
companheiras essas que poderiam ser já viúvas, como o próprio solitário. Idade elevada, para
muitos daqueles que buscavam criadas pelos jornais, era sinônimo de maior estabilidade e
segurança, além dos aspectos específicos da experiência no ofício. Era uma “mulher de maior
idade, de honesta conduta” que um funcionário desejava para tratar de crianças e “governar”
uma casa de família. E ela ainda teria de dar “abono a sua conduta”. Esse perfil se mantém,
com menor ou maior ênfase, de 1840 a 1870. 12 Só mais um exemplo: em 1853, um
anunciante precisava de uma ama para o “serviço diário de uma casa de pouca família”, e
dava “preferência a uma de maior idade e assento”.13
Seja no Recife ou em Salvador, os significados dos serviços domésticos para
inúmeras criadas livres e forras estavam associados à falta de outras oportunidades de
trabalho, à necessidade de proteção e segurança, e à busca de “bom tratamento”. Nem sempre
monetarizada, a relação entre patrões e criadas muitas vezes se restringia a permutar proteção
por obediência, como bem apontou Sandra Graham em importante estudo sobre o tema.14
Nos espaços sociais aqui considerados, a miséria, a orfandade, quando associadas à
fragilidadejda adolescência ou da velhice, entre outros fatores, impunham às mulheres livres
e libertas (fossem brancas, negras ou mestiças) a
11. FERREIRA FILHO, Alberto Heráclito. Ouem pariu e bateu, que balance! Mundos femininos, maternidade e
pobreza (Salvador, 1890-1940). Salvador: CEB, 2003, p. 52.
12. Diário de Pernambuco {DP), 27 mar 1860, Laboratório de Pesquisa e Ensino de História da UFPE (LAPEH).
13. DP, 09 mar 1853, LAPEH. Um dos significados da palavra assento é “propósito, prudência, do homem sisudo,
pacato, “homem de assento”, considerado, ponderado, constante no que concorda, e resolve. (...)”. Cf.
MORAES SILVA, Antonio de. Dicionário da língua portuguesa. 4a ed., tomo 1. Lisboa: Impressão Régia,
1831, p. 198. Uma mulher idosa seria, portanto, portadora de maior ponderação, e cumpriria os acordos que
fossem realizados entre as partes.
14. Cf. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910).
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
246
T S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”
A primeira mulher pode mesmo ser considerada idosa para os padrões da época, e
presume-se que seja branca e livre. Entretanto, provavelmente vivendo na solidão e na
pobreza, ela precisa recorrer ao trabalho doméstico: primeiro apela para ensinar prendas
domésticas, ler e escrever, mas depois admite que aceita servir como ama de companhia em
alguma casa de família, tendo apenas o teto, a comida e algum vestuário como pagamento. Já
a segunda, ao contrário, parece ser jovem e, tendo caído na orfandade, precisa de algo que se
assemelhe a um lar: oferece serviços praticamente gratuitos para alguma viúva que a
aceitasse. Esta “senhora solteira”, mesmo estando necessitada, julgava-se digna o suficiente
para recusar dinheiro e roupas. Do antigo status, ela só possuía o vestuário. Desprotegida,
talvez vivendo sozinha, ela precisava da proteção de uma senhora “honesta” que lhe
trouxesse respeitabilidade e inviolabilidade da honra, e uma viúva parecia ser uma boa
opção, pois além do mais não precisaria trabalhar muito. Uma “senhora” jovem, nessas
condições, não cogitaria servir em uma casa de grande família, ou muito menos realizar
serviços chamados “de portas a fora”, como vendedora de aluguel. O ideal seria viver sob a
proteção de alguma pessoa solitária.15
15. Maria Odila da Silva Dias, quando enfatiza o empobrecimento a que estavam sujeitas muitas mulheres na
cidade de São Paulo no século XIX, pode estar bem próxima da verdade. Pelo menos, esse
247
I
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Famílias paupérrimas da Bahia e Pernambuco, que não podiam sustentar uma prole
numerosa, entregavam filhas ainda adolescentes para ficar sob os “cuidados” de famílias dos
extratos baixo, médio e de elite da sociedade, para aprenderem a servir de “portas a dentro”.
Em Salvador, essas meninas se chamavam “Catarinas”, e, como se considerava um favor
retirá-las da casa de seus pais, não recebiam remuneração pecuniária. Entregues assim sob a
tutela de outra família, podiam ser castigadas e deviam permanecer no interior das casas de
seus amos, onde podiam aprender rudimentos de escrita. Mas o aprendizado maior era
mesmo disciplina, obediência e o trabalho manual. Servas agregadas, as Catarinas estavam
abaixo do status da doméstica propriamente dita.16
No Recife, particularmente entre 1840 e 1870, não encontramos referências explícitas
às Catarinas no Diário de Pernambuco e demais registros consultados, mas a prática de
ensinar meninas era imensamente difundida. Uma senhora boa engomadeira e costureira
poderia ensinar esses ofício a escravas, com o acréscimo de ensinar a bordar roupas com
letras {DP, 10 mar 1842); mesmo uma crioula forra poderia se propor “a ensinar a coser a
pequenas pardas e pretas, por módico preço” {DP, 07 mar 1849); uma mulher que não
declarou sua condição recebia em sua casa meninas forras ou escravas para ensinar a ler,
escrever, bordar, marcar de linha e seda, lavarinto e costura {DP, 24 mar 1847).
As sociedades baiana e pernambucana também tinham instituições que socializavam
as meninas desde cedo para cumprirem circunscritos papéis sociais, raciais e de gênero. No
Recife, a Roda dos Enjeitados; na Bahia, a Santa Casa de Misericórdia. Uma e outra
recebiam crianças abandonadas pelos pais, genericamente nomeadas de “expostos”, e
aquelas que sobrevivessem às precárias condições de criação desses estabelecimentos
ficavam à disposição dos empregadores. As mulheres estavam destinados os contratos de
serviços domésticos, e isso se tivessem sorte. Pelo menos no Recife da década de 1840, os
patrões preferiam escravas a contratarem mulheres livres originárias da Casajdos Expostos. 17
Estando a escravidão doméstica
empobrecimento de senhoras brancas se dá também no Recife da mesma época. Cf. DIAS, Maria Odila da
Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX - Ana Gertrudes de Jesus. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.
22. E sobre o “mito da branca ociosa”, ver: NIZZA DA SILVA, Maria Beatriz. Mulheres brancas no fim do
período colonial. Cadernos Pagu, Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp, Campinas, n. 4, 1995, pp. 75-
96.
16. Para as Catarinas em Salvador, ver: Ferreira Filho (2003: 55-6); e ainda SANCHES, Maria Aparecida
Prazeres. Fogões, pratos e panelas: poderest práticas e relações de trabalho doméstico. Salvador (1900-1950).
Salvador: UFBA, Dissertação de Mestrado, 1998, pp. 84-5. Trabalho orientado pela Prof. Dra. Maria Inês
Côrtes de Oliveira.
17. Sobre a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, ver: Sanches (1998: 62-3). Sobre a Casa dos Expostos
instalada no Recife, ver: Silva (2004: 208-9).
248
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”
ainda solidamente assentada na primeira metade do século XIX, as meninas enjeitadas desde
a infância podiam, quando adultas, ser vítima de nova rejeição: eventuais empregadores
ainda preferiam as escravas ou quiçá governantas estrangeiras em seus lares, mas não
admitiam assalariar criadas saídas da Casa, suspeitas de vícios aos olhos das “pessoas de
família”. Em 1842, o presidente da província de Pernambuco se queixava da permanência de
expostos adultos na instituição por não encontrarem colocação no mercado de trabalho:
18. Relatório do Presidente da Província Francisco do Rêgo Barros, ano de 1842. APEJE, Arquivo Público
Estadual Jordão Emerenciano.
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E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Pernambuco, em 02 de março de 1840, que sua criada, também portuguesa, havia fugido de
sua casa “sem ter ajustado contas”, e protestava contra quem a estivesse ocultando. Observe-
se também que a forma de registrar o fato é idêntica ao modo de se anunciar as fugas dos
escravos. É tema a se investigar com mais profundidade, mas a presença portuguesa em
Pernambuco ao longo do século XIX é inconteste, e conta-se aos milhares. Em 1872,
segundo o censo, havia 6.646 portugueses na província (Eisenberg, 1977:220). Muitas
portuguesas pobres tinham suas passagens adiantadas por interessados (muitos eram mesmo
parentes), e ficavam praticamente trabalhando como serva, sem remuneração pecuniária,
pagando a dívida contraída. Ao que parece, tradicionalmente Pernambuco atraía mais
portugueses do que a província baiana.
Para patrões e patroas amedrontados, havia mulheres que se fingiam ser domésticas
com intenções de roubar a casa. O Diário de Notícias da Bahia, em 1905, denunciou uma
“criada gatuna”, que teria sido educada unicamente nos “princípios da gatunagem” (Sanches,
1998: 68). No Recife oitocentista, o quadro de denúncia é riquíssimo e também visa causar
impacto entre os patrões leitores de periódicos. A seguir temos um exemplo emblemático da
preocupação dos patrões e de seus métodos de se apoiarem na intenção de evitar a
contratação de criadas insubmissas:
A intenção de gerar impacto, prtíVenir, alertar aos demais patrões está explícita.
Além de citar o nome de Theodora, o anunciante mencionou ainda o nome da mãe, o que
atingia logo as duas em suas futuras pretensões de trabalho. Seja como for, jamais ficaremos
sabendo a versão da criada para essa história. Afinal, são os patrões que constroem as
histórias de criadas consideradas por eles ingratas, relapsas e mal comportadas, manchando a
imagem delas perante os seus pares. Acusavam-se as criadas também de comportamentos
“desregrados”:
250
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”
Para esse anunciante, a sedução empreendida pela parda que lhe servia de ama
custou-lhe ainda a perda de outro criado, um rapaz de 16 anos. A parda, ao que parece, sabia
que ia ser dispensada, pois provavelmente tinha notado que seus serviços não estavam
agradando, e resolveu convencer o rapaz a sair com ela quando isso ocorresse. As tensões
entre patrões e criadas eram logo percebidas, pois afloravam sem máscaras. O criado, ainda
adolescente, também não devia estar muito satisfeito com a casa em que servia, e só esperou
a oportunidade mais favorável. Aquelas pardas que ofereciam seus serviços pelos “Avisos
Diversos” do Diário de Pernambuco na segunda metade do século XIX realmente tinham de
se esforçar por retirar de si as máculas que lhes eram atribuídas. A década de 1840 tem várias
pardas buscando trabalho nos lares recifenses:
É visível o esforço dessas duas pardas em comprovar sua conduta para seus virtuais
contratantes. Ser viúva e de idade, como era o caso da primeira, poderia lhe ajudar a
encontrar trabalho, já que demonstra que um dia fora casada, algo que era visto pela elite da
época como um sinal de distinção e honra. A segunda, provavelmente com o consentimento
do famoso médico da província, utiüzou o fato de ter permanecido mais de um ano servindo
em sua casa para demonstrar que tinha bom precedente. Para conseguir nova inserção como
doméstica, a parda se utilizou do prestígio de seu ex-patrão, algo que nem todas podiam
contar.
251
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Uma crioula, tentando demonstrar ter experiência como doméstica, e assim convencer
o/a contratante de sua competência, diz que é “afeita a servir até mesmo em casas
estrangeiras, se oferece por preço cômodo para isso” {DP, 02/03/1841). Aparentemente, ela
continua a querer servir em casa estrangeira, pois é “para isso” que se oferece. Embora não
tenhamos quantificado, é visível um grande número de mulheres recifenses que preferem
servir em casas de famílias ou homens estrangeiros. Podemos apenas sugerir algumas razões
para essa preferência: os patrões nacionais podiam freqüentemente confundir as criadas livres
ou forras com as escravas, trátando- as igualmente e sem a devida distinção que as primeiras
gostariam de receber; os patrões estrangeiros podiam oferecer, quem sabe, compensações
maiores ou melhor tratamento. Mas essas afirmações carecem de base empírica, tanto no
Recife quanto em Salvador, e não se pode afirmar com segurança se havia maiores diferenças
entre um patrão nacional ou um estrangeiro no tratamento de suas criadas.
No Rio de Janeiro da belle époque, os jornais também veiculavam charges e músicas
satirizando criadas que supostamente tomavam ares de patroa, mostrando- se com
inapropriados sentimentos de superioridade (Ferreira Filho, 2003: 53-4). Uma anedota
publicada no Diário de Pernambuco diz algo sobre a representação que os patrões e patroas
construíam acerca das criadas:
252
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”
Seja em Salvador ou Recife, as criadas que mais trabalhavam eram aquelas que
serviam a famílias de poucos recursos, pois sozinhas deviam se ocupar de todos os afazeres
da casa (Sanches, 1998:42). Eram as chamadas “criadas de todo o serviço” ou “de portas a
dentro e portas a fora”, expressões comuns nos anúncios de jornais baianos e
pernambucanos. Mulheres que ofereciam seus serviços e patrões que procuravam criadas
pelos jornais tinham de ser explícitos quanto às tarefas a cumprir para uma negociação
equilibrada. Um anunciante que buscava uma escrava “que seja muito boa cozinheira”
avisou, em um primeiro momento, que ela seria “ocupada unicamente nos respectivos
misteres”, e em troca oferecia o sustento, vestuário e 8$ réis mensais (DP, 23 mar 1848).
Uma semana depois, o anunciante, que dizia ter pouca família, muda um pouco sua
estratégia, e menciona apenas que daria 10$ réis mensais, sem falar em sustento ou vestuário.
Todavia, continua a reforçar que a escrava seria ocupada “unicamente nos respectivos
arranjos” (DP, 31 mar 1848).
19. Cf. KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1800-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 436.
253
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Esse anúncio dá a entender, em primeiro lugar, que o locatário não podia dispor dos serviços
de uma escrava para os quais ela não fora contratada. Segundo, pode-se supor que o próprio
locatário ou comprador - pois este não deixou claro se iria comprar ou alugar a escrava - já
reconhecia que as escravas resistiam a realizar tarefas que fugiam de “sua” especialidade.
Nem todas as mulheres domésticas, no contexto da escravidão, desejavam morar o
tempo todo com patrões vigilantes e autoritários. Lavadeiras, costureiras e engomadeiras
estão entre as criadas que, quase sempre, podiam se ocupar de suas atividades sem prestar
fidelidade estrita a uma única casa. Trabalhando de ganho, elas faziam seu horário de acordo
com a demanda de serviços que assumiam. Ao menos em Pernambuco, a partir da década de
1850, muitas pretas e pardas livres e forras passaram a propor horários mais ou menos
favoráveis, e que lhes permitissem dormir em suas moradias. Alguns contratantes também
propunham acordos que resguardavam a autonomia da doméstica a partir das 5 horas da
tarde: uma família buscou alugar uma mulher forra para trabalhar das 6 horas da manhã até
às 5 da tarde (DP, 02 mar 1857). Do mesmo modo, uma moça livre ou forra anunciou que
cozinharia, engomaria e costuraria em casa de uma pequena família, mas “vindo dormir em
sua casa” (DP, 20 jan 1862). As lavadeiras recifenses possuíam mesmo verdadeiros negócios,
recebendo em suas casas roupas de diversos fregueses, e entregando-as lavadas e engomadas:
Algumas criadas baianas também não precisavam viver sob o teto das famílias que
lhes contratavam. Lavadeiras devasta clientela tinham autonomia espacial e faziam sua
própria rotina de trabalho (Ferreii^. Filho, 2003: 58-9). Os lares dos patrões e patroas baianos
e pernambucanos podiain até se reputar honrados, mas nem por isso algumas mulheres livres
e forras queriám habitar neles. Talvez a experiência cotidiana já tivesse ensinado a essas
mulheres a ambígua condição de viver “protegida” e ao mesmo tempo “vigiada”
continuamente pelos rigores do patriarcalismo e escravismo ainda vigentes no longo século
XIX.20
20. Para a idéia de que o século XIX adentra o século XX, ver: FREYRE, Gilberto. Ordem e progresso. 6a ed.,
rev., São Paulo: Global, 2004, p. 48.
254
S ERVIR “D E P ORTAS A D ENTRO ”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
255
Caxambu, Cateretê e Feitiçaria Entre os Escravos do
Rio de Janeiro e Minas Gerais no Século XIX
Marcia Amantino1
As manifestações culturais negras têm sido estudadas nos últimos anos a partir de
variados enfoques e com uma ampla gama de fontes. 2 Tais pesquisas demonstraram que
apesar do sistema escravista ter sido, em sua essência, baseado na violência, posto que era
um sistema de trabalho compulsório e que só era mantido graças ao uso constante de recursos
de imposição da força, os cativos conseguiram desenvolver mecanismos de manutenção e
recriação de valores próprios. Estes foram forjados, portanto, dentro da lógica deste sistema,
e em função disto sofreram limitações que incidiram, em maior ou menor escala, em suas
elaborações culturais.
O que se pretende neste texto é demonstrar como alguns grupos de escravos que
viviam em Minas Gerais e no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX criaram
formas de manifestações culturais próprias, ainda que permeadas por valores cristãos. Para
isto, diferentes tipos de fontes foram usadas a fim de dar um suporte maior para as
inferências. A análise inicia-se no século XVIII, momento em que a sociedade já estava
bastante preocupada com as manifestações públicas dos cativos e via nelas um sinal de que
poderiam perder o controle sobre a escravaria. Um das razões para uma rápida análise deste
momento foi demonstrar que as preocupações senhoriais que serão identificadas na
documentação do século posterior vinham de
outros tempos, e que não foram suficientes para impedir a continuidade das manifestações
culturais negras.
Foram utilizados também processos criminais objetivando-se entender a dinâmica
social das comunidades negras envolvidas em festas, brigas, assassinatos e outros elementos
do cotidiano, bem como materiais recolhidos de jornais, literatura, e da iconografia.
Analisando a composição social dos cativos que viviam no Sudeste brasileiro, mais
precisamente na grande lavoura de Rio de Janeiro e São Paulo e na agropecuária da Zona da
Mata mineira, percebe-se que a maioria era de africanos provenientes da região Centro-
Ocidental da África e tinham suas línguas ligadas ao tronco lingüístico bantu. 3 Entre os que
foram enviados ao Sudeste havia, além de uma certa unidade lingüística, determinados traços
culturais que, em suas essências, eram comuns. De acordo com Slenes, 4 entre estas pessoas a
estruturação familiar baseava-se na organização em forma de linhagens, ou seja, grupos com
ancestrais comuns. Além disto, havia nestas sociedades a crença de que o universo era regido
pelas idéias de ventura e desventura, e que o mesmo em sua forma perfeita produziria a
harmonia, a saúde e o bem-estar. Ao contrário, quando em desequilíbrio, produziria o
infortúnio e as doenças. Para equilibrá-lo novamente, somente recorrendo àqueles que
poderiam fazer a ligação entre as divindades e os humanos, aos objetos sagrados e ou
preparados ritualísticos. Acreditavam também que as doenças eram causadas pela desventura
ou por feitiço, e somente um contra-feitiço ou a proteção de um amuleto poderia livrá-los do
mal. A cura, seria então, a expulsão do mal de dentro do corpo do indivíduo por alguém que
tivesse ligações com o mundo divino.5
Devido a grande distância e desconhecimento que existia entre os variados segmentos
sociais, as diferentes manifestações culturais negras quase sempre foram vistas com receio.
Antonil dedicou partes de sua obra para discutir a importância das práticas culturais negras
para a manutenção do sistema escravista, e advertiu aos senhores que “negar-lhes totalmente
os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro, é querê-los desconsolados e
melancólicos, de pouca vida e saúde”, e que, para evitar isto, deixassem seus escravo^
“criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas honestamente em alguns dias do ano”.
V
3. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia das Letras, 2000, cap. 1
4. SLENES, R. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava (Brasil, Sudeste, século
XIX). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
5. DECRAEMER,Willy; VANSINA, Jan & FOX, Reneé. Religious movements in Central África: a theoretical
study. Comparative studies in society and history, n. 18, 1976, pp. 458-75.
258
LL
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .
6. PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio narrativo do peregrino da América em que se tratam de vários discursos
espirituais e morais e mintas advertências e documentos contra os abusos que se acham introduzidos pela malícia
diabólica no Estado do Brasil. Lisboa: Oficina de Manoel Fernandes da Costa (Impressor do Santo Ofício),
1728.
7. Carta do Padre Antonio Vieira a certo fidalgo. Bahia, 2 jun 1691, apud AZEVEDO, J. L. de. História de
Antonio Vieira. Lisboa, vol. II, p. 372
8. Calundus, de acordo com Câmara Cascudo, no Dicionário do folclore brasileiro, possuía até meados do século
XVni uma significação religiosa com elementos que mais tarde serão encontrados nos candomblés enas
umbandas.
259
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
O senhor ficou tão apavorado com tudo o que o peregrino lhe falava que mandou os
escravos trazerem para o terreiro da fazenda os instrumentos usados na noite anterior. Todos
foram queimados em uma grande fogueira da qual saía, segundo o peregrino
um horrendo fedor (...) com um fumo tão negro, que não havia
quem o suportasse; e estando até então o dia claro, se fechou
logo com uma neblina tão escura, que parecia se avizinhava a
noite. Porém eu, que fiava tudo da Divina Majestade, lhe rezei
o Credo; e imediatamente com uma fresca viração tudo se
desfez (Pereira, 172$)T^
9. Quijilas ou quizilas são interdições religiosas determinadas, em sua maioria, de acordo com os orixás de cada
pessoa. Assim, uma não deve comer melancia, outras, mandioca, outros, azeite de dendê e assim por diante.
Entretanto, há também como quijilas interdições que não passam por estas questões alimentares. Elas também
podem ser impedimentos do uso de determinadas cores nas roupas, de hábitos cotidianos e outros.
260
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .
antes morrerão que deixar de observá-lo; e este consiste em não comerem caça, ou peixe,
marisco e muitas outras coisas” (Pereira, 1728).
O peregrino respondeu que a quijila era
Nos dois momentos discutidos pelo peregrino evidencia-se que os negros dos quais
ele tratava tinham muito claro a concepção de que era necessário realizar determinadas
tarefas e guardar certas interdições para propiciar boas relações com as divindades. A busca
era pela ventura e pelo sucesso em suas empreitadas, mesmo que sob o domínio da
escravidão.
As idéias que estas passagens discutem não eram novas. Na realidade, eram oriundas
de tempos remotos e suas origens podem ser buscadas já nos primeiros contatos entre os
europeus e os africanos. Entretanto, elas permanecerão no imaginário popular durante muito
tempo e as práticas culturais africanas serão, por séculos, vistas como diabólicas ou como
superstições de povos atrasados. E exatamente estas idéias que associavam os africanos a
povos primitivos serão uma das bases para as primeiras justificativas de sua escravização.
Através de práticas cotidianas e de relações pautadas na dominação a população acabaria
tendo contato com estas imagens que criavam, principalmente, a noção de inferioridade dos
negros. Estes eram diferentes, contrários e inferiores aos brancos.
Apesar de os senhores terem estas concepções sobre seus cativos, estes não deixaram
de produzir sua cultura, ainda que bastante misturada com elementos cristãos e mesmo
indígenas. Esta cultura produzida pelos escravos pode ser entendida como uma readaptação
de práticas africanas em uma nova realidade permeada pela escravização e pelos contatos
com grupos variados (Mintz & Price, 2003: cap. 2). Trata-se, portanto, de uma
interpenetração de variadas matrizes culturais. Assim, as festividades e as práticas religiosas
negras são bons indícios para a verificação da circularidade cultural 10 entre culturas distintas.
Ainda que cativos, e com suas
10, BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo: Hucitec, 1987;
GINZBURG C. “O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”, in . A micro-
história e outros ensaios. São Paulo: Difel, 1989.
261
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
AS MANIFESTAÇÕES NEGRAS
262
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .
12. A existência de libações de aguardente pode remeter a algum tipo de oferenda, já que libar significa oferecer
líquidos de origem orgânica a uma divindade. Infelizmente, não há como saber a que divindade foram
feitas as libações pelos escravos da Fazenda do Secretário.
13. Processo Criminal. CDH, Cataguases, CAT 1, CR 203 e 205, cx 10.
14. BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Itatiaia,
1995.
263
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
retomar à fazenda do pai e ficou de tocaia observando o cateretê feito pelos negros. Imaginou
ter visto Claudino, o escravo fugido. Partiu em direção aos negros e então entrou no meio da
roda com seus companheiros. Rapidamente os negros, “como se estivessem prevenidos”, os
atacaram com foices, paus e facas.
A primeira testemunha do processo, Antonio Ferreira Sabino, um dos acompanhantes
de Custódio, afirmou que durante a surra ouvia os escravos incentivando os outros e aos
gritos afirmavam que era para matar porque o senhor deles tinha dinheiro. A terceira
testemunha explicou melhor esta questão do dinheiro. Afirmou não saber com certeza se
entre o pai e o ofendido havia alguma rixa séria, mas que durante a confusão ouviu alguém
gritar: “Mata, tenho dez contos para gastar!”. Além disso, momentos antes, enquanto estavam
de tocaia, ouviram alguns escravos dizerem de dentro da senzala: “Deixa o cubacho vir que
nós prepara elle”.
Custódio afirmou no processo que a surra fora ordenada pelo seu pai e uma negra de
nome Angélica. E que os negros bateram nele como feras.
O processo se desenrolou com acusações mútuas entre pai e filho. E, em novembro do
mesmo ano, o promotor público faz a seguinte acusação contra Custódio e o grupo que o
ajudou:
Para complicar ainda mais a vjda de Custódio, uma das testemunhas usadas por ele foi
Maria Luiza Magdalena, tid^pelo promotor como
264
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .
15 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata
do Rio Grande do Sul. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1962; GORENDER, Jacob. O escravismo
colonial. São Paulo: Ática, 1982; GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990.
16. FLORENTINO, M. & GÓES, R. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico (Rio de Janeiro, 1790-
1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997; Souza (2002); Slenes (1999); Soares (2000); PAIVA,
Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia (Minas Gerais, 1716-1789). Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2001; ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro
(1830-1900). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
17. CASCUDO, Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1976. Verbete “caxambu”.
18. STEIN, Stanley J. Vassouras: um município brasileiro do café (1850-1900). Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990, p. 243.
265
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
da festa. No dia combinado, acendiam uma fogueira no meio do terreiro e a festa então se
iniciava com o chamado de um tambor denominado o “chamador do povo”. Entretanto, este
não era o principal tambor. Os tambores importantes para a festa eram outros dois. O maior
era denominado de “caxambu” e o outro menor era o “candongueiro”. Caxambu é, portanto,
o nome do tambor em forma de cone, de origem africana e denomina a dança. Os
percursionistas marcavam o ritmo com as palmas das mãos enquanto os jongueiros
(versejadores) cantavam os versos. Presidindo a sessão havia o rei e uma rainha, que
recebiam as homenagens dos participantes. O rei, depois de cumprimentar respeitosamente
os tambores, iniciava o caxambu.
A presença do caxambu demonstra a importância de uma tradição africana mantida no
cativeiro. O tambor é, para algumas sociedades africanas, uma peça chave no contato com os
ancestrais e com as divindades. Lumanisa, 19 um filósofo africano, defende a idéia de que a
dança, o canto e o batuque formariam um trio inseparável e poderoso na cultura de seu povo,
uma vez que os três elementos são sagrados porque o som é a palavra de Deus e a forma
deste entrar no corpo do indivíduo é através a dança. Daí a dificuldade ou mesmo a
impossibilidade de separar estes três elementos quando se tenta analisar as performances
negras.
Já o canjerê é, de acordo com Jacques Raimundo: “uma reunião de indivíduos com
práticas feiticistas, para atrair incautos, sob a promessa de livrá-los de moléstias e outros
males”.20 No Rio de Janeiro, o canjerê é associado a macumba, mas em Minas Gerais ele
significa apenas feitiço. Para Câmara Cascudo, o canjerê é uma dança negra de fundo
religioso.21
Pode se perceber no decorrer do processo que o termo utilizado variou conforme a
urgência e a necessidade de incriminar o encontro dos escravos. A única vez que apareceu a
palavra Canjerê, denotando, portanto, um encontro mais perigoso para a sociedade branca,
foi já no final do processo e foi dita pelo próprio Custódio. Antes, ele mesmo referia-se à
festa como cateretê. No momento em que a sua situação já estava se delineando contrária
ao^seus interesses, ele, em novo depoimento, acusou claramente seu pai e a escrava de terem
incentivado os escravos a atacá-lo e usou o termo canjerê, reforçando o perigo que,aqueles
escravos e o senhor que admitia este encontro representavam.
Voltemos à festa do caxambi^dos escravos de Salustiano. A festa em questão ocorreu
no dia 10 de julho, véspera, portanto, do dia de São Bamabé. Era comum que as festividades
negras acontecessem nas noites de sábado e nas anteriores aos dias de
19. LUMANISA, A. Fu-Kiau Kia Bunseki. Le mukongo et le monde Qui l 'entourait: cosmogonie Kongo; recherches
etsynthèses. Kinshasa: Office National de la Recherche et le Développement, 1969.
20. RAIMUNDO, Jacques. O negro brasileiro, apud Cascudo (1976: verbete canjerê).
21. Cascudo (1976: verbete canjerê).
266
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .
santos. Ainda que São Bamabé não fosse um santo de devoção dos negros, pode-se imaginar
que o mesmo fosse o santo do orago da capela da fazenda, ou ainda o santo de devoção do
senhor da mesma. Os escravos estariam aproveitando a data para cultuar seus próprios
valores? Pode ser. A dança, conforme visto anteriormente, estava presente em vários
momentos da vida dos cativos e, qualquer que fosse o motivo da reunião, era uma boa causa
para reafirmar os valores dos antepassados. Tanto nas festividades alegres e profanas como
nas tristes e religiosas ela estava presente marcando uma identidade cultural muito específica.
Um folhetim publicado em um jornal da cidade de Vassouras,22 no Rio de Janeiro em
1883, é interessante para percebermos como estas festividades negras podiam ser usadas de
diferentes formas, em contextos e áreas geográficas díspares. A história mostra a execução de
um cateretê após o batizado de uma criança já morta. A história se passa nos Sertões de
Macabú, região que no século XIX pertencia a Macaé. O texto intitula-se “O baptizado de um
pagão” e seu autor é Nuno Álvares. Devido a beleza e riqueza de informações o texto será
citado na íntegra.
22. O Vassourense. Periódico imparcial, noticioso e literário. Vassouras, 1882-1996, 8 abr 1883, ano 2, n. 14, Casa
da Hera.
267
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
A papai e a mamãe!
Os versos forão repetidos três vezes por todos. Seguiu-se um
grande cateretê que durou até o alvorecer do dia; para solenizar
o baptizado do pagão.
Não assisti o resto da festa. Chegando ao rancho, fiz a minha
leitura de costume, e cahiu-me sob os olhos este versículo da
Bíblia:
“Bem aventurados são os pobres de espírito porque delles é o
reino do céo!”.
Consoladora esperança! Esclamei e adormeci.
23. VAILATI, Luiz Lima. Os funerais de anjinho na literatura de viagem. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 22, n. 44, 2002, pp. 365-92.
24. SOARES, Mareio de Souza. A doença e a cura: saberes médicos e cultura popular na corte imperial. Niterói:
UFF, Dissertação de Mestrado, 1999, p. 212.
269
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
25. REIS, João José. A morte é umafesta: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil, séc. XIX. São Paulo: Cia das
Letras, 1991, pp. 160-1.
26. EWBANK, Thomas. A vida no Brasil ou diário de uma viagem ao País do Cacau e das palmeiras. Belo Horizonte:
Itatiaia, 1976, pp. 188-9.
270
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .
Sem ter entendido nada do que assistiu, e achando que tudo não passava de superstição de
gente atrasada, Nuno Álvares se retirou, e em seu quarto, ao ler a Bíblia, chegou à conclusão
de que ainda haveria esperanças para aquelas criaturas, pois eram “pobres de espíritos” e,
segundo o versículo, seria deles o reino do céu. A imagem a seguir também retrata um
enterramento de uma criança.
pfrrt, À-fuJ-Ayú
Esta cena bem poderia estar ilustrando a história de Nuno Álvares no jornal O
Vassourense. Todavia, ela foi feita a milhares de quilômetros do Sertão de Macabú. Trata-se
de uma imagem feita em Nova Granada por Desiré Roulin. Nela aparece uma criança morta
sendo velada por diversas pessoas. Mas há mais informações além desta. A cena mostra uma
reunião entre grupos étnicos diversos. A criança morta parece ser branca, mas a mulher
sentada ao lado de seu corpo aparenta ser uma mestiça de índio com negro. A cena que se
desenvolve ao lado do corpo da criança morta descreve uma situação de dança e música. Ao
todo aparecem na roda onze pessoas. Destas, cinco podem ser identificadas como negras, três
mulheres são de cores mais claras, sugerindo serem pardas, e quatro são indígenas. Com
exceção de
27. Esta imagem foi gentilmente cedida pelo professor Eduardo França Paiva.
271
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
duas índias e um negro (que está dançando), todos batem palmas, estão vestidos de forma
muito simples e estão descalços. É interessante identificar que há na cena três músicos.
Destes, dois são indígenas e o terceiro é um negro velho. Sua figura é emblemática. É ele
quem segura e toca o tambor, conforme já visto, instrumento sagrado para algumas
sociedades africanas. Pelos gestos dos dois dançarinos negros, pode-se inferir que o ritmo da
música é marcante e a cena lembra algumas reproduções retratando cenas de danças na África
e também entre os escravos no Brasil.
A criança morta está deitada segurando entre as mãos um crucifixo, símbolo da fé
cristã, veste um camisolão e seu corpo está sobre uma mesa forrada com uma toalha branca. 28
Em seus cabelos há uma coroa de flores.
Apesar daquela negra velha feiticeira ser uma criação de Nuno Álvares, a crença na
feitiçaria era algo presente no dia-a-dia das pessoas. Em 1890, Sergio, um homem negro de
mais ou menos 50 anos, foi aparentemente envenenado por Ana, filha de André, com uma
xícara de café. André era um africano que vivia em Laranjal, região próxima a Cataguases, há
apenas cinco meses. Antes de morrer, Sergio deu estas informações e complementou a história
alegando que ele e André não se davam bem porque este último havia, tempos antes, tomado
posse de uma casa que pertencia a ele sem haver pago nada. Além disso, ele queria se casar
com Ana, filha de seu inimigo, e não obteve autorização do pai da moça.29
As testemunhas do processo, ao serem interrogadas sobre se tinham conhecimento se
André costumava administrar beberagem, responderam que ele era “temido pelo povo que o
tinhão como feiticeiro”. Sebastião Molhinet afirmou ainda que “André é malquisto por todos
os vizinhos e temido porque dizem ser elle feiticeiro”.
André foi preso e as vísceras de Sergio foram enviadas para autópsia. No
interrogatório feito ao réu André, o mesmo afirmou que não havia nenhuma rixa entre eles. Ao
ser perguntado sobre o “uso que fazia da fava de Santo Ignácio que foi encontrada em sua
casa”, respondeu que “ministrava a um seu animal quando doente e isto por experiência tendo
visto a outros fazer aplicações em idênticos casos”.
Entretanto, o exame das -tfíscferas nada detectou e André foi solto. Mas o que
significou o encontro da fava de Saníp Inácio na casa de André? Esta planta, cujo nome
científico é Strychnos ignatii, pòssuí em suas sementes estricnina, um forte veneno que, quando
ingerido, atua no sistema nervoso. Se André usava a planta para dar como remédio a um
animal ou se a usava como veneno é difícil sabermos. Todavia, ele e vários outros dominavam
o conhecimento sobre a manipulação da erva e isto era um perigo.
28. O branco era a cor associada aos mortos em grande parte das sociedades africanas.
29. Processo Criminal. CDH. Cataguases. CAT 1, CR 428, cx 20.
272
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .
Esta história de André lembra um romance publicado nas décadas finais do período
escravista, tendo como principal personagem um escravo que vivia em Leopoldina, região
muito próxima a que vivia André, Ana e Sérgio. Trata-se do romance O escravo, de autoria
de João Raymundo Duarte.30 Seu principal personagem é Amâncio, um escravo africano que
possuía uma “índole indomável”. Desde criança sonhava com sua liberdade. Trazia em si
uma incontestável liderança frente aos demais cativos. Não que fosse amado. Não o era. Na
realidade, seus companheiros o temiam. Como símbolo maior de seu poder, afirmava para
todos que era feiticeiro. Dominava os conhecimentos das plantas, das ervas e usava suas
capacidades tóxicas em seu proveito. Seus inimigos desapareciam vítimas de acidentes
estranhos e sua fama estendia-se por toda a região próxima à Leopoldina. Em função de tudo
isto, vivia sendo castigado pelos feitores. Mas não desanimava. Continuava a vida odiando
ser cativo e odiando ainda mais a seus senhores.
Um dia percebeu que era necessário acabar com o seu cativeiro e de seus
companheiros. Planejaram, então, uma insurreição que deveria envolver os escravos da
região e não apenas os de sua fazenda. Entretanto, foram denunciados. A solução encontrada
por muitos foi a fuga para os matos. Formaram assim, o Quilombo da Taquara. Amâncio foi
aprisionado novamente, espancado e depois vendido para um médico que se apiedou de sua
desgraça e passou não só a tratá-lo bem, como lhe deu a alforria e ambos passaram a
trabalhar juntos, atendendo a população. Mas esta é uma outra história. Por ora, o que nos
interessa na vida de Amâncio é o seu conhecimento sobre o poder das ervas.
A concepção de que o escravo era um ser inferior estava tão impregnada na forma de
compreender a sociedade que mesmo os abolicionistas e seus discursos reproduziam esta
crença. Amâncio era um escravo diferente, porque era uma exceção à regra, já que, segundo
o autor, a escravidão dele era incompatível com a sua altivez e inteligência. Para o autor:
“raras vezes [a altivez e a inteligência eram] encontradas nos indivíduos de sua raça”.
Durante o período que Amâncio era cativo, usava seus conhecimentos sobre as
plantas para amedrontar e se livrar de seus inimigos. Daí sua fama de feiticeiro. A partir do
momento em que ele foi tratado como um homem livre e passou a trabalhar ao lado do
médico e seus conhecimentos se voltaram para salvar vidas, ele deixou de ser identificado de
maneira pejorativa. O conhecimento por parte de alguns membros
30. Este romance foi publicado em Campinas, nos números 11, 12, 13 e 14 do jomal Iniciador, em outubro de
1881, e reeditado por João R. Duarte em seu livro Recordações mineiras. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger,
1917.
273
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
da sociedade era algo temido porque, de certa forma, conferia poder. No caso, o poder de
vida e de morte controlado por seres tidos como inferiores, selvagens, vingativos e violentos
por natureza.
Por um lado, havia por parte dos senhores de escravos um medo generalizado não só
dos ataques diretos as suas pessoas ou a de seus familiares, mas também aos ataques mais
sutis feitos através de feitiços que os africanos conheciam profundamente. Entretanto, estas
mesmas idéias e medos eram usados por parte dos abolicionistas para demonstrar o quanto o
escravismo era perigoso para a sociedade branca, porque era um mal que desmoronava a
família a partir de dentro da casa grande. Joaquim Manuel de Macedo, em sua obra
abolicionista As vítimas algozes, também usará deste artifício para mostrar que a escravidão
era uma instituição que estava acabando com a moral da família brasileira, na medida em
que as pessoas ficavam muito próximas e em contatos diretos com seres pouco
desenvolvidos moralmente. Em um de seus contos, Pai Raiol é um feiticeiro terrível que
manipula as pessoas de acordo com seus intentos, e acaba por matar a família de seu senhor
através de uma série de feitiços. Para o autor, o feitiço era africano e para ele:
31. MACEDO, Joaquim Manuel de. As vítimas algozes. Rio de Janeiro: Scipione, 1991, p 76.
C AXAMBU , C ATERETÊ E F EITIÇARIA ENTRE OS E SCRAVOS .
Se André usou realmente o veneno da planta contra seu inimigo é algo que
provavelmente nunca saberemos. Entretanto, o que importa é a possibilidade do ato. A
feitiçaria, era, portanto, uma possibilidade, real ou não, com a qual a sociedade convivia. O
caso de Benjamim e Justina, moradores em um arraial próximo à cidade de Cataguases, é
mais um exemplo disto.
Na noite do dia 3 de janeiro de 1897, Serafim Francisco da Costa e alguns
companheiros invadiram a casa de Benjamim Benguela e sua mulher Justina, ambos
africanos com cerca de 80 anos. Espancaram barbaramente os dois. Como conseqüência, o
casal veio a falecer. Através do processo criminal e dos depoimentos das testemunhas,
tomamos conhecimento de que o motivo de tal atitude por parte de Serafim foi a crença de
que Benjamim era um feiticeiro e que havia colocado um feitiço nele, evidenciado, segundo
sua crença, numa ferida que não cicatrizava.32
Após terem assassinado Benjamim, puxaram Justina para o terreiro e a espancaram
nas “partes genitais” com um pau de enrolar fumo. Tal utensílio de espancamento não foi
aleatório. De acordo com Machado Filho,33 havia algumas formas de se anular o poder dos
feiticeiros e de quebrar seu encanto mágico. O que o grupo tentou fazer ao espancar Justina
foi exatamente isto. Toda a cerimônia de anulamento de poder dos feiticeiros deveria ser
feita numa sexta feira, em tomo de uma fogueira queimando hastes secas de alho, guiné e
fumo de corda. Dever-se-ia aplicar no feiticeiro um defumatório, quebrar em suas costas
ovos chocos e depois dar-lhe uma surra com pau de fumo, ou seja, um pedaço de madeira
onde se enrola fumo de corda. Na realidade, os espancadores cumpriram apenas a última
parte do ritual e com algumas adaptações.
O grupo foi acusado também de ter roubado “dous bahus de folha onde tinhão
guardado dinheiro [105 mil réis] e algumas imagens de santos”.
Alguns que participaram do espancamento disseram no depoimento que não
acreditavam que Benjamim tivesse feito a tal feitiçaria, mas que Serafim acreditava
piamente. Além das doenças sofridas por Serafim, um outro motivo para sua crença nas
práticas de feitiçaria de Benjamim era o fato de que ele “era muito trabalhador e vivia com
fartura”.
275
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Antonio Tormenta, um dos que espancou os dois africanos, afirmou que estava com
medo de se envolver em semelhante caso, mas que Serafim afirmou que não era crime bater
em feiticeiro, e de qualquer forma estariam protegidos por pessoas importantes na região.
Em março de 1899, Serafim Francisco da Costa foi condenado a um total de 29 anos
de prisão. Entretanto, em junho do mesmo ano, foi absolvido. A defesa alegou que ele estaria
cumprindo ordens (não informou de quem), e que estava sem o domínio de suas faculdades
mentais. O promotor pediu o cancelamento do julgamento alegando ser impossível que ele
não tivesse domínio de seus atos. Não conseguiu. Parece que seu protetor tinha, realmente,
algum poder.
Em 19 de agosto de 1910, somente dois dos participantes do espancamento haviam
sido julgados e absolvidos. Os processos dos demais não haviam sido sequer analisados pelo
júri.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
276
A TRAJETÓRIA ECONÔMICA DA COMARCA DO RIO DAS VELHAS:
Um ESTUDO DAS ESTRUTURAS DE POSSE DE ESCRAVOS E AS
RELAÇÕES COM O MERCADO INTERNACIONAL DE ESCRAVOS
(SÉCULO
1 2
Raphael Freitas Santos Carolina Perpétuo Corrêa
A decadência teria acontecido uma vez que a produção do ouro não engendrava
segmentos produtivos in loco. Como se gastava muito na importação de gêneros de
subsistência e quase nada se produzia dentro das Minas, sua economia não teria se
dinamizado e, por isso, não teria condições de se sustentar diante da crise na mineração.4
Na contramão da noção de “decadência” da economia mineira foram produzidos
estudos que apontaram para a dinamicidade dessa região, mesmo após a crise na mineração. 5
Isso porque, como já disse Kenneth Maxwell: “A economia regional, com suas propriedades
rurais horizontais integradas, era particularmente capaz de absorver o choque das
transformações que vieram após a exaustão do ouro aluvial”. 6
Vem sendo demonstrado que, devido à complexidade da formação econômica e
social das Minas ao longo do século XVIII, algumas regiões mineiras foram capazes de
superar a crise na mineração, reorientando as atividades produtivas em tomo da agricultura
mercantil e de subsistência no século XIX.7 A constatação de que cerca de 46% dos 75.778
africanos desembarcados no Rio de Janeiro entre 1822 e 1833 foram destinados ao mercado
mineiro8 consiste em importante argumento contra a noção de uma decadência generalizada.
Isso indica que a economia mineira não só foi capaz de sustentar uma utilização maciça de
mão-de-obra escrava nas atividades agropastoris
4. De acordo com Laura de Mello e Souza a produção do ouro não teria engendrado “segmentos produtivos in
loco, pois importava-se a maior parte dos meios de subsistência e quase não havia produção interna ou
retenção do excedente produzido”. Cf. MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro: a pobreza
mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 28. Por isso, a produção de alimentos passara a ser uma
atividade de grande vulto nas Minas a partir do declínio da exploração aurífera. Segundo Zemella: “Vemos
que, ao declinar o século XVIII, o panorama econômico da capitania de Minas Gerais era bem diferente do
que se descortinava no início da centúria. O desenvolvimento da agricultura, da pecuária e das manufaturas,
conferindo à capitania elemento de auto-suficiência, permitiu- lhes dispensar os fornecimentos externos”. Cf.
ZEMELLA, Mafalda P. [1951]. O abastecimento da capitania de Minas Gerais no século XVIII. 2a ed., São Paulo:
Hucitec/Edusp, p. 258.
5. Ver, por exemplo: GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A Princesa do Oeste: elite mercantil e economia de
subsistência em São Joãb del-Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
6. MAXWELL, Kenneth. A devassa da Devassa: a Inconfidência Mineira (Brasil-Portugal, 1750- 1808). Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 1^2.
7. Nesse sentido destacam-se os trabalhos de: SLENES, Robert. Os múltiplos de porcos e diamantes: a economia
escravista de Minas Gerais no séetíío XIX. Cadernos 1FCH-UN1CAMP, n. 17,1985;LIBBY, Douglas Cole.
Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas Gerais no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988;
LENHARO, Alcir. As Tropas da Moderação: o abastecimento da Corte na formação política do Brasil (1808-1842).
São Paulo: Símbolo, 1979; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho. Alterações nas unidades produtivas mineiras
(Mariana, 1750-1850). Niterói: UFF. Dissertação de Mestrado, 1994; CARRARA, Ângelo Alves. As minas e os
currais; produção rural e mercado interno de Minas Gerais (1674-1807). Rio de Janeiro: Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, 1997.
8. FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p.
177.
278
A T RAJETÓRIA E CONÔMICA DA C OMARCA DO R IO DAS V ELHAS
destinadas ao autoconsumo e aos mercados locais, como foi capaz de ampliar seu contingente
cativo decorrer do século XIX por meio de novas importações.9
Tais números apontam para duas questões importantes: a) que a importação e a posse
de cativos podem ser importantes indicadores do grau de dinamismo da economia
setecentista; b) que não apenas as atividades voltadas para o mercado externo que eram
lucrativas - e que o mercado interno era importante o suficiente para pelo menos ensejar a
aquisição, junto ao mercado internacional, de mão-de-obra escrava africana.
Uma vez que a economia mineira contava com um dinamismo que se sustentava para
além da exploração aurífera- mesmo durante a primeira metade do século XVIII
- foi possível uma “acomodação evolutiva” ao longo do século XIX, contribuindo, assim,
para ampliação do contingente escravo na região.10 Além disso, a capitania era marcada pela
combinação de diversos ritmos de desenvolvimento, altemando-se, no tempo e no espaço, os
de crise e de prosperidade." Dada essa complexidade de realidades econômico-sociais,
variando no tempo e nos espaço, acreditamos que a compreensão das Minas setecentistas só
se dará a partir da proliferação de estudos regionais com preocupações comparativas. Embora
tais diferenças não se encerrassem em divisões artificiais como comarcas e termos, estudos
locais podem oferecer um panorama capaz de revelar algumas nuances, apontando para as
especificidades de cada região mineira.
A Comarca do Rio das Velhas, por exemplo, se localizava no centro da capitania de
Minas Gerais. Era rica em veios auríferos (a região entre Sabará e Caeté) e em terras férteis,
tanto para agricultura quanto para a pecuária. Possuía ainda importantes entrepostos
comerciais, como Santa Luzia, Sabará, Roça Grande e Pitangui. Foi uma região marcada,
portanto, pela diversificação produtiva. No entanto, a atividade mais importante, sem sombra
de dúvidas, foi a produção mineral, e, apesar do impacto da crise da mineração não ter sido
imediatamente sentido, como na Comarca de Ouro Preto, 12 acreditamos que causaria perdas
irreparáveis a médio e longo prazos.
9. De acordo com os dados apresentados por Roberto Martins, a população escrava em Minas Gerais subiu de
170 mil, em 1819, para 380 mil, em 1878. Cf. MARTINS, Roberto Borges. A economia escravista de Minas
Gerais no século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG 1980, p. 1.
10. Sobre a redefinição do conceito de “acumulação evolutiva” desenvolvido por Celso Furtado, ver: Libby
(1988).
11. SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto: Estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808). São
Paulo: Hucitec, 1997, pp. 235-6.
12. MÔNICA, Daniele. A produção social da desigualdade: hierarquização social e estratégias de classe na
formação da sociedade mineira (Mariana, 1701-1750). Mariana: Universidade Federal de Ouro Preto,
Monografia de Bacharelado, 2003, apud SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. “Crédito e circulação
monetária na colônia: o caso fluminense (1650-1750)”, in Anais do I Encontro da Pós- Graduação em História
Econômica. Caxambu: ABPHE, 2003, p. 14.
279
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Já a Comarca do Rio das Mortes abrangia uma extensa área, com relevo
diversificado, que abrigava desde regiões montanhosas e ricas em águas, até terrenos planos
com extensos campos, propícios para a criação de gado. As áreas mais dinâmicas dessa
região eram as vilas de São João e São José del-Rey, Barbacena, Baependi e Queluz.
Contava, portanto, com uma significativa produção mineral, mas se destacou, desde os
primórdios, a produção agrícola pastoril. Tal característica teria sido responsável por uma
realidade diversa das demais comarcas ao final do século XVm. Enquanto em outras
regiões o declínio da extração mineral teria abalado significativamente a economia regional,
no Rio das Mortes, devido à sua vocação agropastoril e sua proximidade com a fronteira do
Rio de Janeiro, se consolidou como uma região escravista, produtora de alimentos e voltada
par o mercado interno (Graça Filho, 2002).
Do contraste entre as comarcas do Rio das Velhas e do Rio das Mortes fica patente a
complexidade da capitania de Minas Gerais. Existiram diferenças enormes entre regiões,
parecendo-nos mais apropriado falar em economias mineiras que em uma “economia
mineira”. Tendo em vista as especificidades regionais, o objetivo do presente trabalho é, a
partir das tendências apontadas sobre as estruturas de posse de escravos na Comarca do Rio
das Velhas, detectar possíveis especificidades da região em foco, reafirmando as nuances
regionais e as idéia de que as Minas são muitas.
Para tanto, utilizamos de dados retirados de inventários post-mortem. Os inventários
post-mortem são documentos judiciais produzidos com o objetivo de fazer uma espécie de
balanço dos bens e dívidas de uma pessoa, após seu falecimento, a fim de legalizar o
processo sucessório. Uma das vantagens desse tipo de fonte é que seu formato variou muito
pouco ao longo do tempo, possibilitando análises seriais. Os inventários caracterizam-se,
portanto, por grande uniformidade de informações, contento, quase sempre, dentre outras
informações, os nomes dos escravos do inventariado, sua avaliação, sua região de origem (na
África ou no Brasil) e, eventualmente, a idade e atuaç ~ )fissional dos cativos. 13
13. Sobre os inventáriospost mortem, ver: MAGALHÃES, Beatriz R. Inventários e seqüestras: fontes para a
História Social. Revista do Departamento de História da UFMG. Belo Horizonte, v. 9,1989, pp. 31 -45.
14. GUTMAN, Herbert G The Black Family in Slavery andFreedom (1750-1925). New York: Pantheon
Books/Random House, 1976.
280
A T RAJETÓRIA E CONÔMICA DA C OMARCA DO R IO DAS V ELHAS
refletem na composição de sua escravaria. Assim, parece plausível pensar, por exemplo, que
um senhor moço, no começo da vida, recorreria com muito mais freqüência ao mercado de
escravos, já que vivia um momento de investimento e montagem de sua unidade produtiva.
Em oposição, um velho fazendeiro, proprietário de longa data, talvez tivesse dentre os seus
bens um plantei escravo já consolidado, que contava com várias famílias e quiçá crescente
por si mesmo. Em outras palavras, os inventários não refletiriam necessariamente o caráter
das posses de escravos como um todo, em um dado momento.
Além disso, é preciso ter em mente que, principalmente quando utilizados como
evidências indiretas do tráfico de escravos, os inventários inevitavelmente trazem dados um
pouco “atrasados” em relação à aquisição de escravos no mercado. Como afirma Graça
Filho: “os inventáriospost-mortem revelam as escravarias no momento do falecimento dos
senhores e (...) suas importações de escravos poderiam ter acontecido bem antes dessa
data”.15
De fato, os inventários nos oferecem apenas uma fotografia de uma unidade
produtiva, ou seja, provisória e referente a um recorte bastante específico no tempo. Isso não
quer dizer, necessariamente, que esse recorte represente o momento de declínio de uma
unidade produtiva. A morte do proprietário não significa, necessariamente, a morte de seus
bens. Ou seja: os inventários dizem muito sobre o passado de uma unidade produtiva, mas
ensinam também sobre o seu presente.
Além disso, com freqüência, os inventários de grandes proprietários estão
desaparecidos. De acordo com Libby: “É bastante plausível sugerir que, de uma forma ou de
outra, as famílias da elite mineira e seus advogados conseguiam ficar de posse de inventários
que deveriam ter permanecido nos cartórios”.16 Isso também faria com que os grandes
plantéis estejam sub-representados em dados extraídos dessa documentação.
Apesar de todas as precauções, nada desautoriza a utilização dos inventários como
fontes de pesquisa, mesmo quando o objeto em foco é a estrutura de posse de escravos. Ao
trabalhar com esses dados, estaremos tentando vislumbrar tendências, sem jamais ter a
pretensão de, através deles, reconstituir a realidade estudada.
15. GRAÇA FILHO. “Famílias escravas em São José do Rio das Mortes (1743-1850)”, in 1 st International
History Workshop on Population and Economy in Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG/Centro de Estudos
Mineiros, 14 e 15 dez 2005, p. 15, texto inédito.
16. LIBBY, Douglas Cole. “Minas na mira dos brasilianistas: reflexões sobre os trabalhos de Higgins e Bergad”,
in BOTELHO, Tarcísio R. (org.). História quantitativa e serial: um balanço. Belo Horizonte: ANPUH-MG
2001, p. 295.
281
E SCRAVID ÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Foram examinados, por meio de uma base de dados, 750 inventários, produzidos
entre 1713 e 1793, dos quais foi possível extrair informações sobre 8.462 escravos descritos
entre os bens dos inventariados.17 Para melhor acompanhar as mudanças processadas na
economia mineira setecentista e nas estruturas de posse de escravos, os dados foram
analisados em períodos de aproximadamente 20 anos, marcados por momentos distintos da
economia regional. São eles: Io) 1713-1733; 2o) 1734-1753; 3o) 1754-1773; 4o) 1774-1793.
A conjuntura econômica de cada um destes períodos pôde ser caracterizada a partir
dos próprios dados, especialmente com base principalmente na média de escravos por
inventariado, importante indicador da dinamicidade de uma economia (tabela 1).
Fonte: Banco de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas, século XVIÜ.
17. As informações quantitativas foram potencializadas por meio da utilização de uma base de dados
informatizada, gentilmente cedida pela professora Beatriz R. Magalhães, coordenadora do Projeto “Banco
de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas, século XVIII”.
18. HOLLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira. A época colonial. 11 a ed., Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, v. 2, p. 261.
282
A Trajetória Econômica da Comarca do Rio das Velhas
alguns autores, como Virgílio Noya Pinto, acreditam que as maiores remessas de ouro foram
enviadas a Portugal entre 1735 a 1760.19
A partir da década de 1750, além da diminuição na arrecadação com a exploração do
ouro, fazia-se sentir, de acordo com os discursos dos memorialistas, um quadro que sugeria a
desagregação da região. Tal discurso foi corroborado, muitas vezes acriticamente, por uma
parte da historiografia, que denominou todo o período correspondente à segunda metade do
século XVIII como uma época de “decadência” da economia mineira.
Embora concordemos com a historiografia revisionista, crítica dessa noção de
decadência, percebemos que no terceiro período (1754-1773) há uma ligeira queda na média
de escravos por inventariado, embora a redução mais significativa vá ocorrer no período
seguinte. Tal queda estaria indicando uma perda de dinamismo econômico, provavelmente
relacionada à desaceleração da atividade mineratória, já a partir da década de 1760.
Seja como for, a se julgar por nossos dados, a conjuntura de desaquecimento da
economia da Comarca do Rio das Velhas se consolidará no período seguinte (1774- 1793),
quando a média de escravos por inventariado sofre uma acentuada queda, passando para 7,6.
As conseqüências desse desaquecimento econômico podem ser percebidas quando analisada
a inserção da região ao mercado negreiro internacional (tabela 2).
19. PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português: uma contribuição aos estudos da
economia atlântica no século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979.
283
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Coloniais Africanos
Fonte: Banco de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas, século XVIII.
20. O tráfico negreiro africano trazia para o Novo Mundo muito mais homens que mulheres, e muito poucas
criancinhas pequenas - nã«J'ím}5ortando se esta situação era desencadeada pela natureza da oferta africana
ou pela demanda americana. A constante chegada de levas de escravos africanos com tais características
resultava, portanto, em aumento da distribuição desigual entre os sexos e, conseqüentemente, vinha a
dificultar ou mesmo inviabilizar o crescimento vegetativo da população escrava. A impossibilidade de
reprodução natural de populações escravas em curto prazo, em uma economia extensiva em expansão,
criava um círculo vicioso, dando continuidade à dependência do tráfico para aumento do contingente cativo.
A incapacidade reprodutiva, todavia, poderia não vigorar em todas as situações no tempo e nos espaço. Um
arrefecimento do tráfico negreiro durante um período razoável de tempo, permitindo um maior equilíbrio
entre os sexos, podia criar condições propícias à reprodução natural, como ocorreu no Sul dos Estados
Unidos, no início do século XIX. Ver: CORREA, Carolina Perpétuo. "Por que sou um chefe de famílias e o
senhor da minha casa proprietários de escravos e famílias cativas em Santa Luzia (Minas Gerais, século XIX). Belo
Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais/Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Dissertação
de Mestrado, 2005, p. 38.
284
A Trajetória Econômica da Comarca do Rio das V elhas
Fonte: Adaptado de ELTIS, David & RICHARDSON, David. Os mercados de escravos africanos recém-chegados às Américas: padrões de preços
(1763-1865). Topai, Re\’ista de História, Rio de Janeiro, n. 6, mar, 2003, p. 10.
285
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
N % N % N
1701-1725 199,6 24,2 122 14,8 825,8
Fonte: ELTIS, David e RICHARDSON, David. Os mercados de escravos africanos recém- chegados às
Américas: padrões de preços, 1763-1865. IN: Topoi, Revista de História, Rio de Janeiro, n. 6, março
2003, p. 16.
21. FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a Africa e o Rio de
Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.; 64-69.
22. SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira/Fundação Biblioteca Nacional, 2002.
23. A origem dos escravos, declarada nos documentos, diz respeito apenas ao local de desembarque dos
cativos, e não ao seu grupo étnico de origem. Ao categorizar a origem dos escravos em Costa Ocidental
e Centro-Ocidental, sabemos que muitas especifícidades de origem étnica estão sendo ignoradas.
286
A T RAJETÓRIA E CONÔMICA DA C OMARCA DO R IO DAS V ELHAS
das Velhas. De fato, nos primeiros anos de ocupação do território mineiro, essa era a
principal rota comercial com o mercado externo, o que explicaria a predominância de
escravos da África Ocidental.
Uma outra explicação plausível para a preponderância de escravos dessa região
específica da África passaria pelos conhecimentos técnicos na extração mineral e em
metalurgia que possuíam esses indivíduos. Em alguma parte dessa região africana, segundo
Del Priori e Venâncio, “a exploração das minas era submetida a um rigoroso controle e
consistia na principal fonte de renda dos soberanos”.24 Ainda de acordo com os autores, “a
extração de ouro [na África Ocidental] atingiu seu apogeu no século XVII” (Priore &
Venâncio, 2003:113).
A valorização dos negros mina estaria relacionada, também, à superstição corrente
entre os mineiros de. que escravos dessa região teriam o dom especial para descobrir novas
minas. Segundo Paiva:
24. PRIORE, Mary dei & VENÂNCIO, Renato Pinto. Ancestrais: uma introdução à história da África atlântica. São
Paulo: Campus, 2003, p. 113.
25. PAIVA, Eduardo França. Bateisas, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo
Mundo. In: PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço:
maneiras de pensar e formas de viver (séculos XVI a XIX). São Paulo: Annablume, 2002, p. 187.
287
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
Mas, como apontam os dados apresentados anteriormente, o final do século XVIII foi
um período de empobrecimento da Comarca do Rio das Velhas. Isso se explicaria,
possivelmente, pela ligação estreita da economia regional com a atividade mineradora. Ao
que parece, após a rarefação do ouro houve uma intensa migração, possivelmente para dentro
dos limites da comarca, o que teria gerado uma mudança econômica importante para a
região.26
Embora os números de entradas de escravos nas Minas durante o Setecentos ainda
seja precária, existem alguns estudos criativos que tentam perceber tendências a partir de
dados indiretos. Um bom exemplo é um trabalho de Libby, que se utilizou de registros
paroquiais de batismos de escravos adultos como indicadores das tendências de compra de
escravos africanos em localidades de Minas Gerais.27
Trabalhando com três bases de dados cedidas por outros pesquisadores, estudou a
Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de São João del-Rei, entre 1736-1854 (embora faltem
registros para os intervalos 1754-60; 1775-8; 1842-7); a localidade de Catas Altas, entre
1715-1753 (com lacunas apenas para o ano de 1720); e, finalmente, a Paróquia de Nossa
Senhora do Pilar do Ouro Preto, no período que se estende de 1712 a 1843 (com uma
lamentável lacuna para o intervalo 1720-35).
Impressiona a consistência das tendências encontradas para cada uma destas
localidades. De modo geral, os números, elevados no começo do século XVIII, começam a
cair por volta da metade do século (décadas de 40 e 50, para São João e Catas Altas, e 50,
para Ouro Preto). A tendência decrescente se mantém até a década de 90 dos Setecentos, com
aumentos esporádicos em São João e Ouro Preto, mas não em Catas Altas. À virada do
século, as cifras atingem seu nível mais baixo, chegando a cessar totalmente em Catas Altas,
em 1809-10, em São João, em 1805- 10, e em Ouro Preto, em 1811.0 século XIX alvorece,
portanto, com as importações de escravos africanos por estas localidades mineiras em seu
ponto mais baixo desde a introdução do escravismo na região.
Essa nova realidade econômica vivida em toda a capitania, em algum momento após
a redução na extração minefal^trouxe mudanças nas condições de aquisição de escravos.
Percebe-se a diminuição nas ônportações de escravos africanos e o aumento dos escravos
coloniais. No entanto, um tiado sobre esse período é bastante peculiar à Comarca do Rio das
Velhas. A regiãó, entre os anos de 1773 e 1793, de acordo com a tabela 6, apresentou uma
mudança peculiar na origem dos escravos importados da África.
26. Será necessário um estudo mais aprofundado com relação a tais mudanças para que se possa efetivamente
caracterizá-las. Por enquanto, ela pode ser simplesmente intuída.
27. LIBBY, Douglas Cole. Notes on the slave trade and natural increase in Minas Gerais in the eighteenth and
nineteenth centuries. November, 2004, draft. Citado com autorização do autor.
288
A T RAJETÓRIA E CONÔMICA DA C OMARCA DO R IO DAS V ELHAS
Origem
Centro-Ocidental 40% 49% 49% 35% 45%
Ocidental 60% 49% 48% 63% 53%
Outras regiões 0% 2% 3% 2% 2%
Fonte: Banco de Dados de Inventários e Testamentos da Comarca do Rio das Velhas, século XVIII
289
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
28. CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São Paulo:
Annablume, 1999, p. 52.
29. SANTOS, Raphael Freitas. Devo que pagarei: sociedade, mercado e práticas creditícias na Comarca do Rio das
Velhas (1713-1773). Belo Horizonte: UFMG/Programa de Pós-Graduação em História, Dissertação de
Mestrado, 2005.
290
A Trajetória Econômica da Comarca do RIO das Velhas
sempre manteve estreitas relações com o porto Rio de Janeiro. Grande parte dos alimentos
que abasteciam a cidade do Rio de Janeiro eram provenientes do sul de Minas, encabeçado
pela vila de São João del-Rei. Essa relação passou a ser cada vez mais estreita. Isso explicaria
o fato de ter permanecido, no final do século XVIII, a predominância de escravos da África
Centro-Ocidental na região do Rio das Mortes, conforme aponta a tabela abaixo.
Fonte: Inventários post-mortem da Vila de São José, 1743-1850, Museu Regional de São João del-Rei, IPHAN, apud
Graça Filho (2005: 15).
291
v
i
y
Na África EU Nasci, No Brasil EU Me Criei: A
Evangelização dos Escravos nas Minas do Ouro1
2
Renato da Silva Dias
INTRODUÇÃO
Segundo a ideologia escravista cristã,3 para transformar os africanos em escravos
“dóceis” e aptos para o trabalho, a condição primeira seria catequizar e batizá-los, primeiro
passo para “incutir-lhes religião”. Assim acreditavam, via de regra, as autoridades
metropolitanas, os eclesiásticos e os agentes da administração colonial
- leitura feita também por parte de nossa historiografia. 4
Todavia, foi grande nas Minas o abismo entre a “construção ideológica” e a história
vista pelos códigos de doutrina, da realidade cotidiana, entre a norma e a prática social. No
planalto das Gerais, a conversão dos africanos ao catolicismo sofreu diversas interferências,
estando longe do desejado. Vários foram os fatores que confluíram e se somaram,
contribuindo ainda mais para impedir aquilo que autoridades seculares e religiosas tanto
esperavam: fazer os africanos aceitarem a condição social imposta no sistema escravista
americano; resumindo: tomá-los escravos submissos. Projeto inalcançável antes mesmo de
ser implantado.
1. Este artigo é parte integrante da tese Para glória de Deus, e do rei? Política, religião e escravidão ms Minas do Ouro
(1693-1745), defendida no Depto. de História da UFMG, em 2004, sob a cuidadosa orientação da Prof. Dr\
Carla Maria Junho Anastasia, a quem dedico este trabalho. Durante a pesquisa usufruí da bolsa de doutorado,
concedida por 20 meses pela Fapemig, pela qual sou grato.
2. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros, Unimontes.
3. Expressão cunhada por Ronaldo Vainfas, em Ideologia e escravidão (Petrópolis: Vozes, 1986).
4. GOULART, José PAvpxo.Dafuga ao suicídio. Rio de Janeiro: Conquista/ INL, 1972, p. 18; MATTOSO, Kátia
M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 114; Vainfas (1986: 34); BOSCHI, Caio
César. Os leigos e o poder: São Paulo: Ática, 1986.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
5. Ordem régia. Lisboa, 29 abr 1719. SC-04, fl. 205-207 [rl. 01, gav. G-3]. Resta assinalar que, no caso de
descumprimento das ordens pelos senhores, os mesmos seriam acometidos “com todo o rigor” a penalidades
prescritas nas Ordenações do Reino. Conferir também: Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, livro I,
título XIV, § 54. Doravante se utilizará a sigla CAB.
6. Sobre este aspecto, cf.: VILAR, Enriqueta Vila. “La evangelización dei esclavo negro y su integración en el
mundo americano”, in ARES QUEIJA, Berta & STELLA, Alessandro (coords.). Negros, mulatos,
294
Na África E U Nasci, No Brasil E U M E Criei
ponto de matriz teológica que passa quase despercebido na leitura do texto: o sacramento do
batismo não pode ser recebido por duas vezes - à exceção dos casos sub-conditione, mas que
também exigiam a averiguação pelos prelados. Portanto, o rebatismo de escravos tomava-se
uma agressão à doutrina.7
Essa era, no entanto, apenas a ponta do iceberg, pois, transportados por mar e terras
aos altiplanos mineiros, o problema da catequese e da instrução religiosa dos africanos tomou
contornos bem mais drásticos. Em uma série de cartas, D. Pedro de Almeida e Portugal,
conde de Assumar, expôs ao monarca as exasperantes desordens “que choravam algumas
pessoas mais católicas de verem o desempenho em que toda a casta de negros se acham neste
governo em tudo o que toca a religião”, isso porque, continua o governador:
As reclamações foram mais além, uma vez que não se encontrava “um só Vigário que
destine (como era obrigado) algum tempo para instruir na Doutrina, nem aos brancos, nem
aos negros” estes ainda faltavam às resoluções dos concílios e decretos dos sumos pontífices:
“em não tratarem do seu rebanho com aquela obrigação que por direito divino lhe é imposta
de apascentarem as suas ovelhas com o pasto espiritual”. A “desgraça maior” para Assumar,
resultava da “ambição e [do] vil interesse radicado ou influído em todos os que entram neste
país lhes faz abusar dos sacramentos
zambaigos: derroteros africanos en los mundo ibéricos. Sevilla: Escuela de Estúdios Hispano-Americanos, 2000,
p. 195; BOWSER, Fréderick. El esclavo africano en el Perú colonial (1524-1650). México, 1970, p. 76; e Mattoso
(1982: 44). Para o mundo colonial, cf.: KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).
São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 342.
7. Sobre o “rebatismo”, cf.: CAB, livro I, título XV, § 58. Segundo Enriqueta Vila Vilar, a questão das normas
sobre a evangelização dos escravos era seguidamente reiterada através de seguidas cédulas reais, e o tema dos
batismos e rebatismos dos escravos gerou verdadeira obsessão na época, e fez produzir ampla correspondência
entre os jesuítas e prelados nos três continentes, África, Europa e América. Cf. Vilar (2000: 190-2).
8. Carta do governador D. Pedro de Almeida e Portugal ao rei. “Minas Gerais”, 22 ago 1719. SC-04, fl. 693-
697. (grifo nosso).
295
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
a troco das oitavas de ouro”. A causa para tamanho disparate não era, como se supunha, a
falta de vigários “colados”, isto é, que recebessem a côngrua régia:
Impotente diante dos fatos, restou a Assumar informar o “deplorável estado em que
viviam neste país quase todos os eclesiásticos”, pois, além da incúria (a falta de batismo e
ensinamento da doutrina, a brancos e negros, destaca-se), e não desejando “ofender os reais
ouvidos” do monarca, nosso narrador “desmanchou no ar” a sólida reputação dos
eclesiásticos construída pela teologia e códigos canônicos, arrematando:
Além disso, faziam contratos de compras e vendas ilícitas, sendo usurários, ou seja,
eram ícones do mau exemplo que inspirava os leigos. 9 Percebe-se, então, o descumprimento
das ordens régias por parte da própria hierarquia eclesiástica (mas também pela população),
uma vez que deveriam instruir os escravos na fé cristã e, a partir desse ponto, já se pode
começai a desconfiar daqueles que supunham que nos tempos coloniais - e destacam-se
afquias Minas setecentistas - a religião teria tomado os escravos submissos. V
Bem, se se parasse nesses relatos e a eles fosse dado crédito, já se constataria que a
vida religiosa dos escravos, sua irftrodução ao catolicismo, andava bem distante das
condições desejáveis. São fartos os documentos informando as péssimas condições na
evangelização: adultos sem batismo e catequese, escravos batizados sem a prévia
catequização, ou seja, se a instrução para os escravos já era sumária, “para gente rude”, aos
“escravos brutos e boçais”, não se exigia um conhecimento doutrinai
296
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B RASIL E U M E C RIEI
muito profundo (na verdade era bastante sumária), 10 mas nem mesmo esta os escravos
estavam recebendo. Além do mais, os desvios dos padres deixavam a evangelização a desejar.
Em setembro de 1719, o governador das Minas remeteu carta aos vigários das varas
de Minas, informando que o rei se achava “lastimado”, pois fora informado, pelos próprios
escravos, que nas Minas “morrem sem batismo, ou por incúria dos pastores espirituais ou por
falta destes os não instruírem e catequizarem nos mistérios de nossa Sagrada Fé para
receberem aquele sacro mandamento”. Para corrigir esses problemas, uma petição foi emitida
ao bispo e ao governador, que encarregou aos vigários das varas de Minas a árdua tarefa de
retificar essa falha. Estes, por sua vez, deveriam encomendar aos párocos de suas jurisdições
que examinassem “os escravos que cada morador da sua freguesia tem para batizar e
catequizar”, enviando as listas com os nomes dos senhores aos ouvidores, que acionariam os
senhores que fossem omissos em suas obrigações.11
Tal informação, que se repete diversas vezes em cartas sobre a incúria dos clérigos -
que não dispensavam tempo maior para catequizar os escravos e que exorbitavam nas taxas
cobradas das desobrigas para enterrar, batizar e celebrar as núpcias entre os africanos e
descentes - por ora é suficiente para questionar o porquê de os africanos estarem reclamando
o “pasto espiritual”, uma vez que suas crenças religiosas se prendiam ao imaginário de suas
terras natais. Não seria essa uma forma de eles mostrarem que estão cientes de seus direitos,
no caso, de receber os sacramentos do batismo, de enterro, de não trabalhar aos domingos, dia
de encontro com seus “parentes”, e que se articulam no jogo colonial? Por enquanto apenas
se fazem as especulações, que serão respondidas no momento adequado.
Tais reclamações não eram, como se poderia argumentar, retrato da improvisação
social vivida durante os primeiros anos da ocupação deste território, ou resultado da escassez
e demora no pagamento das côngruas régias. Vários fatores confluíram para a caracterização
desse fenômeno, que não se circunscreveu à
10. CAB, livro. I, título XIV, § 50. É necessário, entretanto, tomar cuidado com as generalizações, como
afirmações de que o catolicismo era “epidérmico”, “superficial”; preocupado somente com os aspectos
exteriores; fruto do “primarismo espiritual das gentes ignorantes”; fato da “falência do sentimento moral”;
ou que sua aceitação pelos escravos era apenas uma “capa exterior”. Cf., respectivamente: Boschi (1986:36-
7 e 73); HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, p. 111;
CARRATO, José Ferreira. Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais. São Paulo: Cia. Editora Nacional,
1968, pp. 29, 45, 73. MONTENEGRO, João Alfredo de. Evolução do catolicismo no Brasil. Petrópolis: Vozes,
1972, pp. 22, 24 e 32. COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à Colônia. São Paulo: Difusão Européia do
Livro, s/d, pp. 238-9 e 251.
11. Carta do governador D. Pedro de Almeida aos vigários das varas das Minas. Vila do Carmo, 23 set
1719. SC-11, fl. 151.
297
r
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C OMPARADAS
12. Carta do governador Antônio de Albuquerque ao rei. Lisboa, 16 out 1712. SC-05, fl.30.
13. Ordem régia. Lisboa, 11 jul 1714. SC-05, fl. 34.
14. Carta do governador Conde de Assumar ao rei. Minas, 22 ago 1719. SC-04, fl. 695-6.
298
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B RASIL E U M E C RIEI
maus-tratos, abusos de poder senhorial -, mas isso a partir de reclamações individuais. Não se
encontrou nem mesmo uma advertência geral, o que não é de assustar, haja vista que o mais
importante era o “bom andamento da religião”, percebida como instrumento para manter os
escravos sob controle, e o temor de que esses perdessem sua salvação. Fato da mentalidade
religiosa cristã da época do Barroco, bem como do pensamento escravista, a vida no além era
mais importante que a corrupção física do corpo; então, preocupava-se menos com a matéria
que com o espiritual, ou seja, com a alma dos escravos, e, além do mais, não se poderia
colocar o sistema escravista em xeque.
Como exemplo disso, veja-se: na carta régia, de 29 de abril de 1719, ordenou- se o
batismo dos escravos na África, para se evitar o perigo de morrerem na viagem, “com a perda
infalível da sua salvação”. Na carta emitida em 1698, o monarca ordenou ao governador e
capitão geral do Estado do Brasil que repreendesse severamente os oficiais de guerra ou
pessoas poderosas que não permitiam aos escravos receberem a doutrina, isso “para que se
evite este escândalo e prejuízo das almas dos pobres escravos”. Enfim, D. João V escreve
“lastimado das informações que lhe foram presentes dos mesmos escravos”, residentes nas
Minas, sobre a morte dos escravos sem batismo por incúria ou falta de pastores espirituais, o
que levaria à “condenação de tantas almas”.15 Percebe-se, assim, que o discurso salvacionista,
debatido, pisado e repisado desde o século XVI por juristas e teólogos, principalmente
hispânicos,16 mas também por autores residentes no Brasil, como Nuno Marques Pereira e os
padres Antônio Vieira, Jorge Benci e Manoel Ribeiro da Rocha, fincou raízes na sociedade
colonial.17
A desorganização na vida religiosa mineira trazia um grande problema para a
legitimidade do rei, responsável pelo bom andamento da vida religiosa, inclusive dos
escravos. Disso sabiam as autoridades coloniais e até mesmo os escravos. Reclamando ao rei
a “má doutrina dos negros”, que “vivem e morrem como brutos”, Assumar
Í5. Ordem régia. Lisboa, 29 abr 1719. SC-04, fl. 205-207. [rl. 1, gav. G-3]; Ordem régia, Lisboa, 07 fev 1698,
apud BENCI, Jorge S. I. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977, p.
196; Carta de D. Pedro de Almeida “Para os Vigários da Vara de estas Minas”. Vila do Carmo, 23 set 1719.
SC-11, fl. 151.
16. Aqui se faz alusão ao padre Bartolomé de Las Casas, bem como ao filósofo Juan Ginés de Sepúlveda, além
dos clérigos Bemardino de Sahagún, Diego Durán, José de Acosta e o vice-rei do Peru, Francisco de
Toledo. Cf.: TODOROV, Tzvetán. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes,
1999; BRUIT, Hector. “O visível e o invisível na conquista hispânica da América”, in VAINFAS, Ronaldo
(org.). América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, pp. 78- 99; LOBO, Eulália Maria
Lahmeyer. “Bartolomé de Las Casas e a lenda negra”, in Vainfas (1992: 102-15).
17. Sobre este aspecto, conferir o capítulo “Filhos de Canaã: de escravos do demônio a filhos adotivos de
Deus”, em minha tese de doutoramento.
299
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
concluiu que uma das causas, a mais essencial, é “por que vindo a maior parte deles já adultos
de Angola e da Costa da Mina, dificilmente aprendem a falar a Língua Portuguesa”, e por
isso:
18. Carta de Assumar ao rei (sobre a falta de instrução religiosa dos negros). Vila do Carmo, 04 out 1719.
SC-04, fl. 234v. (grifo nosso).
300
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B R ASIL E U M E C RIEI
19. Ordem régia (4o parágrafo do Regimento que levou Dom Manoel que foi Governar o Rio de Janeiro).
Lisboa, 23 set 1699. SC-02, fl. 172/179.
20. Ordem régia (4o parágrafo do Regimento que levou Dom Manoel que foi Governar o Rio de Janeiro).
Lisboa, 23 set 1699. SC-02, fl. 172/179.
21. CAB, livro I, título III, § 8.
22. Digo grande parte porque, não obstante a bibliografia dar indícios de como seria a catequização na África,
ainda não conheço nenhum trabalho específico sobre a evangelização dos africanos em seu continente.
Marina de Melo e Souza afirmou que a cristianização da costa da Guiné já era empreendida no século XVI,
contudo, afirma a autora, apesar dos esforços dos missionários e do empenho da
301
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Mas não é só isso, esse discurso legaliza a escravização, não só dos africanos mas
também dos ameríndios, no caso de “Guerra Justa”, justifícando-a teologicamente, o que se
tomava um consolo para os senhores escravistas, bem como para as autoridades. Ao contrário
do que se pensa, essa ideologia não se restringia às penas dos letrados coloniais, mas era
discutida pelas autoridades e população, isto em pleno século XVIII. Pois veja-se: em 1714,
D. Brás Baltasar da Silveira, e novamente em 1718, D. Pedro de Almeida e Portugal,
governadores das Minas, requisitaram ao rei o direito de formarem aldeias de índios para
combater os quilombolas. Contudo, essa iniciativa não foi impetrada, uma vez que, na
impossibilidade de se usar os aldeados, não se encontrou número suficiente para formar as
ditas aldeias - o que demonstra que as autoridades tinham uma concepção bastante funcional
para a catequese dos ameríndios: forma de “domesticá-los” e utilizá-los para combater um
inimigo mais temido, os africanos.23 Já em 1747, os moradores de Guarapiranga queixaram-
se ao rei sobre o dano causado pelo “gentio bravo” dos sertões, e ainda, “pedindo que me vos
conceda licença para poderem entrar neles com bandeiras, a conquistá-los”, e descobrir ouro,
abundante nas terras dos indígenas. Além dessa licença, solicitaram permissão para que
aqueles capturados fossem cativos. Ou seja: o direito de conquista ou a “Guerra Justa” ainda
era argumento utilizado para a posse das terras dos nativos e sua escravização. 24
Em relação aos negros, em uma passagem do “papel acerca do estabelecimento de
um seguro de escravos...”, documento que propôs, como indica o seu título, a formação de
um seguro para cobrir o valor dos escravos no caso de fugas e para financiar índios
catequizados para a caça e apreensão dos fugitivos, o seu anônimo autor deixa claro que o
argumento de legitimação da escravidão africana era de conhecimento público, pois, como
afirmou, os escravos negros eram “por justa razão cativos, sem que nenhum deva ser forro
por sua má natureza” e, mais adiante, após tentar demonstrar a justeza das medidas sugeridas,
afirmou que estabelecido o dito seguro, sendo o mineiro inteligente, não poderá ser pobre,
porque o que o faz pobre é a “falta de domínio” dos cátivos^ que “por sua rústica natureza
[faltos] do juízo, sem lembrança gentílica do que há jí>puco saíram, antes querem morrer aos
tiros que acomodarem-se com o cativeiro que por justa razão devem ter”.25
política real portuguesa, esta ficou muito aquém das expectativas. Cf. MELO E SOUZA, Marina de. Reis
negros no Brasil escravista. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2000, pp.40-1. Cf. ainda: Bowser (1970: 76);
Vilar (2000: 202); e Mattoso (1982: 44).
23. Carta régia. Lisboa, 04 nov 1714. SC-04, fl. 95-97; Carta do governador Conde de Assumar ao rei, Vila do
Carmo. 13 jul 1718. SC-04, fl. 214-215 [fil 01, gav. E-l].
24. Carta régia ao governador Gomes Freire de Andrada. Lisboa, 06 maio 1747. SC-10, fl. 85.
25. “Papel acerca do estabelecimento de um seguro de escravos e suas muitas utilidades”. Vila Real de Sabará,
1751. CÓDICE COSTA MATOSO. Coleção das noticias dos primeiros descobrimentos das
302
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B R ASIL E U M E C RIEI
Retomando à carta remetida aos vigários da vara por D. Pedro de Almeida, em que o
rei se achava “lastimado " pela morte dos escravos sem batismo, pode-se perceber que a
mesma também revela um dos traços norteadores da construção da identidade política da
monarquia lusitana - a representação do soberano como pai dos seus vassalos e a teoria do
poder divino dos reis. Assim se inicia a missiva:
Sua Majestade que Deus Guarde como Pai de seus vassalos e que
tanto deve atender não só a suas comodidades temporais, mas
com razão mais superior as espirituais sendo-lhe por Deus
encarregada esta incumbência como parte essencial do governo
dos povos que lhe encarregou em suas reais mãos.26
Nas letras coloniais o discurso salvacionista cristão se funde com a teoria do direito
divino dos reis e, desta forma, apesar da peculiaridade do caso português - que tem sua
identidade mística constituída na delegação direta de poder ao rei por Cristo, e no auxílio
sobrenatural conferido nas batalhas contra os muçulmanos e espanhóis (e não na sagração
régia ou no poder taumatúrgico dos reis como no caso dos monarcas ingleses e franceses) 27 -
o soberano passa a ser encarregado por Deus, segundo o narrador, não só das “comodidades
temporais”, mas também das “espirituais”.28
Outro motivo pelo qual os escravos não recebiam a doutrina foi a não- consecução,
por parte dos senhores, das prescrições religiosas. A exemplo do Conde de Assumar, que
proferiu seu mea culpa, ao confessar que tratava da religião “como acessório e não como a
principal couza”, outros agentes administrativos também descuidavam da religião.
Aproveitando-se dessas omissões, muitos dos senhores escravistas, menos crédulos e mais
afoitos em “granjearem as oitavas de ouro”, não catequizavam os escravos e não permitiam
que isso fosse feito, para que, assim, eles produzissem mais. 29
minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral do Ouro Preto, de que tomou
posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro/Centro de Estudos
Históricos e Culturais, 1999, pp. 529-36.
26. Carta de D. Pedro de Almeida e Portugal aos vigários da vara. SC-11, fl. 151. Vila do Carmo, 23 set 1719.
27. HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a construção do sebastianismo em Portugal (séculos XVI e XVII).
São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
28. Carta de D. Pedro de Almeida e Portugal aos vigários da vara. SC-11, fl. 151. Vila do Carmo, 23 set 1719.
29. Carta de Assumar ao Rei (apresenta as razões da falta de instrução religiosa dos negros). Vila do Carmo, 04
set 1719. SC-04, fl. 713-716.
303
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Esses proprietários escravistas foram censurados por não obedecer às exortações dos
padres ou aos mandamentos, que rezam:
7
30. CAB, livro H, títulos XI e XII. Cf. ainda: Benci (1977: 58, 184, 191-97); e PEREIRA, Nuno Marques.
Compêndio narrativo do peregrino da América. Rio de Janeiro: Academia Brasileira, 1939, p. 156.
31. Ordem régia, Lisboa, 07 fev 1698, apud Benci (1977: 196).
304
Na África E U Nasci, No Brasil E U M E Criei
32. Carta do governador D. Pedro de Almeida ao rei. Vila do Carmo, 04 out 1719. SC-04, fl. 234v.
33. Carta da Câmara de Vila Rica, 16 out 1738. Arquivo Histórico Ultramarino, cx. 36, doc.70. 16.
34. Carta do governador D. Pedro de Almeida ao rei. 22 ago 1719. SC-04, p. 695.
35. Carta régia. 09 nov 1709. SC-05, fl. 23.
36. CAB, livro I, título XV, § 61.
37. CAB, livro I, título II, § 6.
305
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
relatório ao Vaticano - substituição da visita ad limina que não pôde realizar por motivos de
saúde - informando ao patriarca da igreja que “o território desta região aurífera, a nenhum
outro inferior na incontável multidão de habitantes e adventícios, sobrepuja as maiores
cidades do Orbe na torpeza diversificada dos vícios”. E os vícios maiores a “arder” naquela
região eram, para o epíscopo, a ambição pelo ouro, as injustiças, a soberba, a arrogância, a
vaidade e a avareza. E desses nem mesmos os eclesiásticos ficaram imunes, uma vez que
“procuram libras, não livros, obedecem às moedas, não às monições, ajudam alguém com
preço, não com prece”. De tudo isto, o que sobejava como único louvor era a “copiosa
liberalidade para com os santos”, os recursos destinados aos templos.38
Talvez os escravos pertencentes aos eclesiásticos, em paróquias onde os havia mais
zelosos, fossem mais bem instruídos no catolicismo. Mas, de modo geral, os negros recebiam
apenas exortações públicas nas missas e sermões. Acredita-se que o montante maior de
mancípios que detinha conhecimento mais aprofundado da nova doutrina pertencessem a
senhores e senhoras diligentes na fé, o que também era problemático. Certamente deveria
haver senhores preocupados com a salvação da alma de seus escravos, haja vista que isso
fazia parte do zelo cristão, sendo uma obrigação religiosa, e a sua falta, um pecado grave.
Contudo, o que se percebe, é que muitos dos proprietários de escravos se opunham - e/ou não
se importavam - à catequese, ao casamento religioso e à participação nos demais
sacramentos.
Em outras regiões da América portuguesa, a tarefa de catequizar os escravos teve o
apoio dos religiosos regulares, mas, nas Minas, as ordens religiosas foram proibidas, e isto foi
sentido na evangelização dos africanos, fazendo com que os governadores Antônio de
Albuquerque e D. Pedro de Almeida e Portugal instassem ao rei que permitisse a vinda desses
religiosos - capuchinhos e jesuítas.
Por meio da prédica,39 usando recursos retóricos, comuns à cultura do Barroco,
mostrando as penas do inferno e os benefícios post-mortem - o paraíso para aquelas boas
ovelhas - os párocos buscavam inculcar o medo, o respeito à religião, informando modelos de
vida, o que repercutiano sentido político, em uma medida para apaziguar a violência
coletiva.40 Resta saber se ds escravos acreditavam nisso, pois o “viver em colônia” mostrava-
se bem mais complexo.
38. “Relatório de D. Frei Manoel da Cruz à Santa Sé”. Mariana, 01 jul 1751, § 6o. Divulgação Monsenhor Flávio
Carneiro Rodrigues. Agradeço à professora Adalgisa Arantes Campos pela cessão do documento.
39. MORÁN, Manuel & ANDRÉS-GALLEGO, José. “El predicador”, in VILLARI, Rosário (org). El hombre
barroco. Madrid: Alianza Editorial, 1992, pp. 169 e 176.
40. Basta para isso, e a título de exemplo, conferir alguns dos preceitos cristãos contidos no decálogo. Pode-se
perceber claramente que os mandamentos contêm prescrições para um bom convívio social, como a
obediência aos pais, o controle da violência, de assassinatos, de adultério, do latrocínio e de falsas acusações.
CAB, livro. III, título XXII, § 558.
306
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B R ASIL E U M E C RIEI
41. Bowser (1970: 303). O mesmo pode ser dito para Cartagena, onde os clérigos ensinavam a doutrina aos
escravos em “língua angola”. Cf.: Vilar (2000: 196).
42. Um esforço nessa direção foi a publicação d’A Arte da língua de Angola, publicada em Lisboa, em
1694. Segundo o historiador Ronaldo Vainfas, esse foi um esforço pioneiro de sistematização da língua
africana, ampliando a ação missionária dos jesuítas. Ainda segundo o autor, a impressa inexistiu por
completo no Brasil entre os séculos XVI e XVII. Cf. Vainfas (1986: 48-9).
43. “Breve Instrução dos mistérios da fé, acomodada ao modo de falar dos escravos do Brasil, para serem
catequizados por ela”. CAB, pp. 219-22.
44. CAB, livro I, título III, § VIII.
45. São fartas na literatura as referências a senhores indiferentes às praticas religiosas de seus escravos. Cf.:
Pereira (1939: 123-6); e ainda: MELO e SOUZA, Laura. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Cia.
das Letras, 1996; MOTT, Luiz. “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu”, in MELO e
SOUZA, Laura de (org.). História da vida privada no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1997; e LONDONO,
Fernando Torres. Público e escandaloso: Igreja e concubinato no Antigo Bispado do Rio de Janeiro. São Paulo:
Universidade de São Paulo, Tese de Doutorado, 1992, pp. 231-2.
307
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
46. Também no mundo colonial hispânico, muitos senhores resistiam a aceitar que seus escravos fossem
catequizados e participassem do culto^divino, sacramentos e ritos, pois os escravos “boçais”, transformados
em “ladinos” pela catequese, aprendiam as artimanhas da sociedade e conheciam os direitos que o
escravismo cristão lhes facultava, por isso eram menos valorizados e ficavam “manhosos” no trabalho. Em
relação aos casados, tomava-se mais difícil a venda de um dos consortes separadamente. Assim, apesar da
relativa proteção da Igreja, muitos senhores ignoravam a lei e separavam as famílias. Contudo, afirmar que. o
aprendizado da língua vernácula diminuiria o valor do cativo é, acredita-se, apenas um argumento retórico
que escondia os fins últimos da escravidão: a extração do maior rendimento possível do trabalho escravo em
um curto prazo de tempo. As informações obtidas pelos estudos demográficos nas Minas setecentistas
também não permitem essa afirmação. Cf.: Vilar (2000); e Bowser (1970: 303).
308
N A Á FRICA E U N ASCI , N O B R ASIL E U M E C RIEI
47. Vilar (2000: 191-2; tradução nossa). Sobre este aspecto, ver também: Boschi (1986: 55, 67 e 155-6).
48. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,!987.
309
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
O que se pode destacar também é o etnocentrismo que subjaz. Não se deveria buscar
entender antes as cosmogonias e cosmologias africanas, ou seja, os quadros de valores que
configuram os modos pelos quais aqueles escravos, em sua pluralidade cultural, percebiam o
mundo e o sagrado? Vila Vilar, como alguns letrados coloniais, fala de “ameaças infernais”
para fazer os africanos obedecerem. Contudo, o paraíso, o inferno e o purgatório não faziam
parte dos imaginários religiosos africanos, e seria difícil pensar que esses abandonariam suas
crenças ancestrais, tomando-se cristãos “puros”. Ameaçar com o inferno podia parecer até
pitoresco, para eles, uma vez que os africanos não acreditavam nisso! 49
O último ponto, que remete mais diretamente à evangelização, é que os escravos
reinterpretavam a religião, filtrando somente o que lhes interessava. As palavras contidas na
Bíblia também podiam ensiná-los a se erguer como indivíduos, filhos do mesmo Deus, e
essas contradições foram exploradas pelos cativos. Deve-se pensar também que, para que
houvesse a “sujeição social”, seria necessário, no mínimo, que a catequização e o
doutrinamento dos escravos ocorressem sem máculas. Mas, como se tem indicado, isso
estava bastante distante do desejável.
Certamente, como já disse Assumar, “em parte aonde a fé anda pegada com custo, e
onde o respeito está pendurado por um fio”, seria difícil que esse controle existisse. Em
relação à doutrinação dos escravos africanos propriamente ditos, o governador mostrou-se
mais ainda escandalizado, afirmando que a doutrina da Igreja mineira é muito diferente da
católica, pois, se desta, a regra é a piedade e a virtude, daquela é a “ambição a avareza, o
interesse”, e, além disso:
Com tudo isso, pensar a Igreja cçmo mecanismo totalizante, capaz de incutir a
sujeição aos escravos evangelizados, de^e ser no mínimo relativizado, senão superado por
meio da observação das práticas^ociais. Somente assim poder-se-á perceber as apropriações
culturais, fruto de concepções religiosas anteriores ao tráfico, adaptadas, evidentemente, aos
limites impostos pelo ambiente colonial. Este é o verdadeiro desafio que se nos coloca a
história.
49. Vilar (2000: 192). Conferir essa discussão no capítulo “Para melhor viver...”, em minha tese de
doutoramento.
50. Carta de Assumar ao bispo do Rio de Janeiro. Vila do Carmo, 13 set 1718. SC-11, fl. 50v-53. [fil 03, gav. G-
3] (grifo nosso).
310
Estrutura de Posse e Demografia Escrava (Porto
Feliz/SP, 1798-1843)
2
Roberto Guedes
INTRODUÇÃO
1. Doutor em História Social pela UFRJ. Professor do Departamento de História e Economia da UFRRJ.
2. MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo:
Companhia das Letras, 1994, pp. 17-98.
3. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Monções. São Paulo: Brasiliense, 1990; GODOY, Silvana Alves de. Itu e
Araritaguaba na rota das monções (1718 a 1838). Campinas: Unicamp, Dissertação de Mestrado, 2002, pp. 120-
61.
4. As vilas do Oeste, no século XVII, eram Itu e Jundiaí, respectivamente fundadas em 1654 e 1655. Como
enfatizo o período até meados do XIX, considero “Oeste paulista” as vilas criadas até 1850, a saber: Itu,
Jundiaí, Mogi Guaçu, Campinas, Capivari, Piracicaba, Franca, Tietê, Batatais, Rio Claro, Limeira. Cf.
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista (1700- 1836). São Paulo: Hucitec,
2000, p. 140.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Ano 1798 1803 1805 1808 1810 1813 1815 j 1818 1820 1824 1829 1836 1843
Escravos 1.443 1.913 2.053 2.290 2.172 2.420 2.782 3.689 3294 3226 4.928 4.171 4.122
Nos anos de 1820, 1824, 1829 e 1843, as listas não incluem a freguesia de Piracicaba.
Fonte para 1836: MULLER, Daniel Pedro. Ensaio d’um quadro estatístico da província de São Paulo. São Paulo: Governo do Estado, Coleção
Paulística, vol. 11, 1978, p. 140
5. PETRONE, Maria Thereza S. A lavoura canavieira em São Paulo: expansão e declínio (1765- 1851). São Paulo:
Difusão Européia do Livro, 1968, pp. 8 e 47.
6. As oscilações de ritmo se devem principalmente a fatores locais. Na fase de montagem dos engenhos, entre
1798 e 1808, o crescimento foi constante, recaindo em 1810. Refluxo que se deve a uma agitação escrava
ocorrida em Porto Feliz e Itu em 1809-1810, colaborando para fazer baixar o contingente cativo. Mais
importante,:1810 também foi um ano em que geou em Porto Feliz, o que sugere uma redução no acesso a
escravos em um ano de má colheita, bem como uma elevação da mortalidade. A tendência de crescúiíentb é
retomada entre 1813 e 1818, e revertida de 1818 para 1820, mas as listas não incluem a freguesia.de
Piracicaba no último ano. Em 1824, esta freguesia foi desmembrada, e dos 3.689 cativos de Portqi Feliz do
ano de 1818, 1.050 (28,4%) estavam nela e apenas um senhor de engenho constava em 1824. Por estes
motivos, a população refluiu entre 1818 e 1824. No geral, a população cresceu dufante a década de 1820.
Relacionando o ano de 1829 ao de 1820, houve um aumento, em números absolutos, de 1.631 escravos,
49,5%. Em 1836, os cativos seriam 4.171, redução derivada do desmembramento de Capivari em 1832. Por
fim, a população escrava praticamente permaneceu estável entre 1836 e 1843, apesar do desmembramento de
Pirapora em 1842.
7. Todos os quadros foram elaborados com base nas Listas Nominativas de Porto Feliz (LNPF) para os anos de
1798, 1803, 1805, 1808, 1810, 1813, 1815, 1818, 1820, 1824, 1829 e 1843, arquivadas no Arquivo do Estado
de São Paulo (AESP). Referências adicionais serão citadas.
8. SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1999, pp. 70-71.
312
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
ritmo de crescimento foi diferente. Entre 1798el818,o crescimento médio anual foi de 4,8%,
quase igual ao de Campinas entre 1801 e 1829.9
Assim, durante a primeira metade do século XIX, a população escrava de Porto Feliz
cresceu muito, absorvendo cativos do tráfico atlântico. 10 Em várias partes do Brasil de
outrora, o tráfico foi a fonte maior de reprodução física da escravidão. Sendo seletivo no que
toca às estruturas sexual e etária dos traficados, quanto mais africanos desembarcavam, mais
acentuados eram os desequilíbrios demográficos. A vila de Porto Feliz, ainda que distante do
porto carioca, era extremamente vinculada a ele, já que grande parte dos escravos que
comprava vinha da Corte do Rio de Janeiro.11 A par de variações, o desenvolver da população
escrava na vila acompanhou a tendência de crescimento de desembarques de africanos no
porto do Rio de Janeiro,12 principalmente a partir de 1810 (gráfico 1).
9. Desagregando os dados, nota-se que o crescimento foi de 9,9% ao ano entre 1815 e 1818 e de 2,7%, entre
1818 e 1829. No período global, entre 1798 e 1843, a população escrava aumentou 2,7% ao ano, em média.
10. Segundo as estimativas de Florentino, entre 1790 e 1808, vigência do período de estabilidade dos
desembarques de cativos africanos no porto carioca, o crescimento médio anual foi de 0,35%. Entre 1809 e
1830, ocorreu um período global de expansão do tráfico, subdividido em dois blocos. Entre 1809 e 1825, o
crescimento médio anual foi de 2,4%, e, entre 1826 e 1830, de 4,5%. Cf. FLORENTINO, Manolo. Em costas
negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (sécs. XVIII e XIX). Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, pp. 51-9. Entre 1831 e 1835, cerca de 57.800 cativos africanos aportaram
no Rio, 11.560 por ano. Finalmente, de 900 a 950 mil cativos chegaram na Corte entre 1800 e 1851. Destes,
285.714 vieram entre 1844 e 1850,40.816 por ano. Cf. KARASCH, Mary. Slave Life in Rio de Janeiro (1808-
1850). Princeton: Princeton University Press, 1987, pp 29-30; ELTIS, David. The nineteenth-century
transatlantic slave trade: an annual series of imports into the Américas brocken down by region. Hispanic
American Historical Review, 1987, v. 67, n. 1, pp. 114-5.
11. FERREIRA, Roberto Guedes. Pardos: trabalho, família, aliança e mobilidade social (Porto Feliz, São Paulo, c.
1798 - c. 1850). Rio de Janeiro: UFRJ, Tese de Doutorado, 2005, cap. I.
12. Evidente que o tráfico cresceu mais. Entre 1798 e 1829, período em que é possível a comparação para o
conjunto da escravaria da vila, o tráfico cresceu em média 6,4% ao ano, enquanto o contingente cativo
cresceu a uma taxa anual de 4%. Porém, comparando o período que vai de 1803 a 1829, pois não há dados
sobre naturalidade em 1798, a taxa de crescimento médio anual dos cativos africanos foi de 5%, um pouco
mais próxima a do tráfico, 6,8%.
313
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Anos
' Desembarques de Africanos —•— Escravos em Porto Feliz — - - Linear (Escravos em Porto Feliz)
---------- Linear (Desembarques de Africanos)
314
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
decorrer do tempo. Nas áreas açucareiras do Oeste paulista, 13 este processo era mais intenso
do que no conjunto da capitania, e os africanos constituiriam 2/3 dos escravos em 1836 (Luna
& Klein, 2003:133-41).
Por seu turno, Maurício Alves reconhece o papel do tráfico de escravos para a
reproduçãada populaç_ão_esciaya, mas destaca a ampla participação de crioulos nà vila de
Taubaté e as possibilidades de crescimento endógeno, sobretudo nas unidades com mais de
dez cativos. Nas três primeiras décadas do século XIX, o contingente de crioulos supera o de
africanos. A entrada destes entre os anos de 1805 e 1829 apenas manteve “a presença de
africanos entre 38 e 45% dos cativos com quinze anos ou mais”. Além disto, as taxas de
fecundidade nas escravarias com mais de dez escravos se aproximam das taxas da população
livre, e tanto maior a escravaria, mais próxima dos livres. A presença de crianças se associa à
elevada proporção de cativos nascidos em Taubaté, indicando uma forte reprodução
endógena. Assim, apesar da alta participação de adultos nos momentos de expansão
econômica, o que significa que a proporção de crianças era incapaz de repor geracionalmente
a escravaria, houve “um crescimento endógeno significativo na reposição da população
cativa”.14
Em Porto Feliz, no período global situado entre 1798 e 1843, a maior presença
africana entre os adultos constata que a população escrava se reproduziu basicamente por
importação de cativos. Porém, ao que tudo indica, a vila ensaiou uma crescimento natural no
início do século XIX, processo interrompido com a atividade açucareira, como afirmaram
Luna e Klein. Por isso, até 1818 a presença de crioulos no município era expressiva, ainda
que não como em Taubaté. Comparando ambas as vilas, nota-se que o crescimento da
população africana segue ritmo similar, isto é, era mais presente no início, sofreu um refluxo
e se recupera em seguida. A diferença é que, em Porto Feliz, a assiduidade de africanos era
mais intensa, atingindo metade da população cativa em 1824, ao passo que Taubaté só o
realizou depois, em 1835, pois, em 1829, cerca de 2/3 dos cativos ainda eram crioulos (Alves,
2001:169 e 181). O diferencial reside na maior absorção de africanos em Porto Feliz devido à
lavoura canavieira. /
Por outro lado, o contingente africano em Porto Feliz está aquém do de Campinas,
talvez a vila com maior proporção de escravos estrangeiros na capitania paulista da primeira
metade do século XIX.15 Nesta vila, ainda em 1801, os africanos
13. As áreas açucareiras da capitania incluem Campinas, Guaratinguetá, Porto Feliz, Itu, Jundiaí, Mogi das
Cruzes, Pindamonhangaba, São Sebastião e Sorocaba. Os municípios analisados do Oeste paulista são
Itu/Capivari, Jundiaí e Mogi Guaçu. Cf. LUNA, Francisco V. & KLEIN, Herbert. Slavery and the
economy ofSão Paulo (1750-1850). Standford: Standford University Press, 2003, pp. 29 e 228.
14. ALVES, Maurício Martins. Formas de viver: formação de laços parentais entre cativos em Taubaté (1680-
1848). Rio de Janeiro: UFRJ, Tese de Doutorado, 2001, pp. 189-94.
15. Campinas parece ter tido a maior população africana no Oeste paulista. Itu só apresentará
predominância de africanos em 1829. Entre os de naturalidade conhecida, 2.009 (55,6%) eram
315
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
eram 70,1% entre os escravos com mais de 15 anos (Slenes, 1999: 71). Em Porto Feliz, os
crioulos eram 42% entre os adultos em 1818, e os africanos só se tomam maioria, na
escravaria como um todo, em 1829 (quadros 5 e 7).
Sintetizando, durante as primeiras décadas do século XIX, Porto Feliz se situa entre
Campinas e Taubaté no que tange à presença de africanos adultos na escravaria e, por
conseguinte, na absorção de cativos vindos de além-mar. Por outra parte, segue a tendência da
capitania paulista como um todo, isto é, um ensaio de crescimento natural interrompido pelo
tráfico.16 Resta saber quem comprava escravos na vila e como isto alterou a demografia
cativa.
africanos e 1.603 (44,4%) crioulos. LUNA, Francisco V. & KLEIN, Herbert. Escravos e senhores no Brasil
no inicio do século XIX: São Paulo em 1829. Estudos Econômicos. São Paulo, FEA/USP,
1990, v. 20, n. 3, p. 355. Em Jundiaí, os africanos também só atingem o índice de 63% do total em 1829
(Luna & Klein, 2003 : 44). Infelizmente, não é possível saber o percentual entre os adultos nestas áreas. Seja
como for, tudo indica que Campinas se antecipou a um processo que se concretiza em outras áreas do Oeste
paulista a partir de meados dos anos 30 do século XIX. Para outros locais da capitania/província, ver:
MOTTA, José Flávio. Corpos escravos, vontades livres: posse de escravos efamília escrava em Bananal. São
Paulo: Annablume/FAPESP, 1999, pp. 133-4; SANTOS, Jonas. Senhores e escravos: a estrutura da posse de
escravos em Mogi das Cruzes no início do século XIX. Estudos de História. Franca: UNESP, 2002, v. 9, n. 2,
p. 242.
16. Sobre reprodução natural em outros locais, cf. GUTIÉRREZ, Horácio. Demografia escrava numa economia
não-exportadorji: Paraná, 1800-1830. Estudos Econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1987, v. 17, n. 2;
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. Marcelino, filho de Inocência crioula, neto de Joana Cabinda:
um estudo sobre as famílias escravas em Paraíba do Sul. Estudos Econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1987, v.
17, n. 2. Minas Gerais é talvez o caso mais debatido. Há os que destacam a reprodução natural. VerJJJNA,
Francisco. V^& CANO,-Wilson. A reprodução natural de escravos em Minas Gerais (século XIX): hipótese.
Cadernos doJCHF. Campinas: Unicamp, n. 8, 1993; LIBBY, Douglas C. Demografia e escravidão. Revista de
História. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto. Depto. de História, 1992; e PAfVATciotilde &
LIBBY, Douglas. Caminhos alternativos: escravidão e reprodução em Minas Gerais do século XIX. Estudos
Econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1995, v. 25, n. 2. Por outro lado, Roberto Martins ressalta que Minas era
importador líquido de escravos no século XIX, portanto, que o trafico foi primordial para a reprodução da
população escrava. Cf. MARTINS, Roberto Borges. Minas Gerais, século XIX: tráfico e apego à escravidão
numa economia não-exportadorai/'és7íroros Econômicos. São Paulo: IPE/USP, 1983, v. 13, n. 1. Laird Bergad
critica a idéia de que Minas Cjerais do século XIX importava quantidade significativa de cativos,
sustentando que a reprodução erà> fundamentalmente natural, invertendo a tendência do século XVIII,
quando a capitania importava escravos. Cf. BERGAD, Laird W. Escravidão e história econômica: demografia
de Minas Gerais (1720-1880). Bauru: Edusc, 2004. Assim, o caso mineiro seria o inverso do paulista, pois esta
última área teria importado escravos no século XIX e se baseado na reprodução natural no século XVIII.
Porém, sem ter o tema da reprodução escrava como objeto, João Fragoso e Roberto Guedes demonstram
que, nas primeiras décadas do século XIX, Minas Gerais era a área do Sudeste que mais importava cativos
africanos que passavam pela Corte do Rio de Janeiro, o que sugere estar correta a tese de Roberto Martins.
Cf. FRAGOSO João & FERREIRA, Roberto Guedes. “Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada. Os
códices 390, 421, 424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Polícia da Corte (1819-
1833)”, in BOTELHO, Tarciso Rodrigues et alii (orgs.). História quantitativa e serial no Brasil: um balanço.
Goiânia: ANPUH-MQ 2001-2002.
316
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
ESTRUTURA DE POSSE
Escravarias
1 a 10 11 a 20 Mais 21
Senhores Escravos Senhores Escravos Senhores Escravos TS TE
Ano # % # % # % # % # % # % # #
1798 147 75,8 552 38,3 31 16,0 439 30,4 16 8,2 452 31,3 194 1443
1803 191 75,8 683 35,7 41 16,3 598 31,3 20 7,9 632 33,0 252 1913
1805 176 72,4 667 32,5 43 17,7 620 30,2 24 9,9 767 37,3 243 2053
1808 192 71,9 706 30,8 43 16.1 613 26T8 32 12,0 971 42,4 267 2290
1810 203 74,9 707 32,6 42 15,5 640 29,5 26 9,6 825 37,9 271 2172
1813 227 76,9 849 35,3 37 12,5 548 22,8 31 10,6 1005 41,9 295 2402
1815 245 74,2 912 32,8 49 14.8 695 25,0 36 11.0 1175 42,2 330 2782
1818 268 70,7 978 26,5 55 14,5 821 22,3 56 14,8 1890 51,2 379 3689
1820 213 67,8 799 24,3 49 15,6 730 22,2 52 16,6 1765 53?5 314 3294
1824 196 67,1 763 23,7 39 13,4 602 18,7 57 19,5 1861 57,6 292 3226
1829 208 59,9 730 14?8 48 13,8 749 15,2 91 26,3 3449 70,0 347 4928
1843 231 68,5 937 22,7 41 12,2 619 15,0 65 19?3 2566 62,3 337 4122
TS = Total de Senhores; TE = Total de Escravos.
17. Sobre estrutura de posse, um bom balanço se encontra em Motta (1999: cap. 2). O autor enfatiza a
pulverização da propriedade escrava e não mais um quadro formado por grandes escravarias. No mesmo
sentido, dentre outros, cf.: SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial
(1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988, cap. 16; e MARCONDES, Renato Leite. A
propriedade escrava no vale do Paraíba Paulista durante a década de 1870. Estados Históricos. Rio de
Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2002, n. 29.
317
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
318
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
319
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
1815 27 28,7 175 9,7 33 35,1 481 26,6 34 36,2 1149 63,7 94 1.805 19,2
1818 49 34?5 275 10.5 41 28,9 622 23,7 52 36,6 1732 65,9 142 2.629 18,5
1820 32 28,3 226 9,6 37 32,7 576 24,6 44 38,9 1541 65,8 113 2.343 20,7
1824 24 21,8 176 7,1 31 28,2 494 19,8 55 50,0 1822 73.1 110 2.492 22,7
1829 16 12,0 90 23 34 25,6 538 14,0 83 62,4 3223 83,7 133 3.851 29,0
1843 10 11,4 61 2,2 18 20,5 291 10,4 61 68,2 2438 87,4 88 2.790 31j7_
TE = Total de Escravos; TS = Total de Senhores; ME = Média de escravos.
Exclui casos ilegíveis e com margem a dúvidas. A partir de 1820, Piracicaba está ausente.
Em suma, considerando todos, produtores e não produtores de cana (quadro 2), nota-
se que a estrutura de posse sofreu mudanças no período 1815-1820, solidificadas a partir de
1824. Ademais, os resultados sublinham que a posse de escravos era centralizada, mas com
significativa participação de pequenos e médios escravistas. Os pequenos senhores jamais
deixaram de ser a maioria, demonstrando que a aquisição de mão-de-obra cativa era, até certo
ponto, facilitada enquanto durou o tráfico atlântico. Neste sentido, a propriedade escrava era
ao mesmo tempo concentrada e disseminada.18 Desconsiderando o ano de 1836, a cujas listas
nominativas, na íntegra, não foi possível ter acesso, nunca menos de 27,2% dos fogos tinham
escravos, sendo que o índice atingiu 37,5% em 1798 (estes números não estão em quadros).
Num período global de expansão das atividades açucar^ir^ e de produção de alimentos,
pequenos, médios e grandes senhores freqüentaram o mercado atlântico de escravos,
principalmente os últimos. \
Apesar deste acesso relativamente facilitado à propriedade escrava, concomitante e
paradoxalmente, ao longo do períodtí ampliou-se a proporção de fogos sem escravos, uma
vez que, em 1843,72,5% estavam nesta situação e 62,5% em 1798, uma redução de 10,0%. A
expansão da atividade econômica, acompanhada da tendência de
18. FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e
elite mercantil no Rio de Janeiro ( C.1790-C.1840). Rio de Janeiro: Diadorim, 1993, pp. 38-48; Schwartz (1988:
cap. 16).
320
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
19. Pesquisa futura analisará se esta redução deriva de imigração e/ou de elevação do preço de escravos.
20. Excluí o ano de 1798 porque não contempla a naturalidade, e o de 1843 porque está em fase de análise.
321
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
\ seguintes do mesmo fogo, usando a palavra dito em sua forma abreviada, d°. A 'impressão
que fica é a de desconhecimento da origem africana e/ou de má vontade
I ém registrá-la. Isto se nota principalmente nas maiores escravarias, o que enviesaria
os dados, mas outros aspectos, como o desequilíbrio sexual em prol dos homens e o alto
percentual de adultos, não deixam dúvidas de que a maioria dos escravos das unidades em
questão era de origem africana, embora não os tenha considerado para efeito de cálculo.
Destarte, a presença africana está subestimada em 1829. Toda esta ressalva é para destacar
que não almejo exatidão nos números, somente perceber tendências.
Passando agora à análise da naturalidade (quadro 5), constata-se que, até 1820,
prevaleceram cativos crioulos na vila, mas com diferenças entre as faixas de posse. Os
pequenos senhores, em geral, tinham as menores taxas de africanos, que só ultrapassaram os
nascidos no Brasil em 1829; entre os médios escravistas, os africanos excedem os crioulos
em 1824 e, entre os grandes, desde 1818. De 1815 a 1820, reduz-se em todas as faixas de
posse a participação de crioulos em relação ao período anterior, mas ainda eram maioria no
total da vila. O ano de 1829 é de ruptura e exacerba a marca africana em todas as posses,
quando, até entre pequenos escravistas, os africanos estavam mais assíduos que crioulos.
322
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
escrava em sua totalidade. Entre 1815 e 1820, os crioulos, ainda majoritários, começaram a
assistir à redução de sua presença, uma vez que, com a expansão do sistema agrário e a
concomitante exacerbação da concentração da propriedade escrava, os senhores,
principalmente os grandes, freqüentaram com mais força o mercado de escravos africanos.
Pelo exposto, o perfil da naturalidade escrava em Porto Feliz até 1815-1818 dependeu
mais dos pequenos e médios senhores do que dos grandes. A segunda metade da década de
1810 assistiu a mudanças, consolidadas em 1824-1829. Como se viu, nestes mesmos
subperíodos também ocorreram as alterações na estrutura de posse. Em função disto, a partir
de agora a análise será feita em anos representativos. Para perceber as tendências, divido o
período global em três anos. O ano de 1805 é o de predomínio de crioulos e de pequenos e
médios senhores; o de 1818 representa a fase de mudança; e o de 1829 é o de consolidação da
concentração da propriedade escrava e da presença africana.
CRIANÇAS,ADULTOS E IDOSOS
21. Stuart Schwartz (1988: 288) caracterizou crianças, adultos e idosos dentre os que estavam entre 0 e 13 anos,
14 e 50 anos e mais de 50 anos, respectivamente. José Flávio Motta adota os mesmos parâmetros. Cf. Motta
(1999: 130,133, 135 e 230). Góes e Florentino reduzem para 41 anos a idade inicial dos idosos. Cf. GÓES,
José Roberto & FLORENTINO, Manolo. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico. Rio de
Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. Sheila Faria situou entre as crianças os que
tinham menos de 13 anos, porque era a partir desta idade que os cativos passavam a ser cobrados no
trabalho. Cf. FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 299 e 352. Adoto aqui a idade de 14 anos como o último ano da infancia,
e de 46 como o primeiro da velhice. Adultos são os situados entre 15 e 45 anos. No entanto, se o
desempenho de uma tarefa puder ser um critério para caracterizar as faixas etárias, note-se que, na Corte do
Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, os cativos entre 41 e 50 anos estavam, em sua maioria,
associados a uma ocupação. Em inventários que informaram ocupação, entre 1801 e 1844, havia 101
cativos nesta faixa etária, dos quais 83% ainda trabalhavam. Dos 149 que estavam acima de 50 anos, 70,4%
trabalhavam. Por outro lado, das 159 crianças entre sete e 14 anos, 56,6% tinham alguma ocupação. Destas,
48,8% eram aprendizes. Mas, ao que parece, a naturalidade influenciava a idade inicial de ingresso na fase
produtiva. Entre 58 africanos de sete a 14 anos, 74,1% trabalhavam, dos quais
323
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Crianças (0 a 14 anos); Adullos (15 a 45 anos); Idosos (46 anos ou mais). Exclui idades
ilegíveis.
Porto Feliz era de ocupação relativamente antiga, constando nas listas nominativas de
Itu, como freguesia de Araritaguaba, desde 1767.22 Daí a marca expressiva de crianças ainda
em 1805, o que foi alterado pelo tráfico. Um exemplo é o plantei de Salvador Martins
Bonilha, que durou de 1798 e 1820 (22 anos). Em 1798, tinha quarenta escravos, sendo oito
crianças. Em 1803,42 e nove, respectivamente; em 1805,47 e doze; em 1808, 52 e oito; em
1810, 50 e oito; em 1813, 36 e oito; em 1815, 39 e dois; em 1818, 32 e quatro; em 1820, 45 e
quatro. Entre os cativos de Salvador, a assiduidade de criap-çS&foi relativamente estável até
1813.23 A partir de
\
32,6% eram aprendizes. Entre os lOl^rioulos na mesma faixa etária, 46,5% tinham ocupação. Entre estes,
63,8% eram aprendizes. Enfim, ainda que africanos e crioulos entrassem no mundo do trabalho na mesma
faixa etária, os primeiros o faziam com mais freqüência. Portanto, os crioulos tinham maiores chances de ter
uma “infância” mais prolongada. Cf. FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal: família e compadrio entre
escravos na freguesia de São José no Rio de Janeiro (1802-1821). Niterói: UFF, Dissertação de Mestrado, 2000.
324
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
1815, começa a decair. As mudanças da faixa de posse e do perfil etário foram feitas com a
incorporação de africanos, predominante entre os adultos. Por outro lado, no início do
processo produtivo as crianças podiam ser até ausentes. Salvador Martins Bonilha -
homônimo do anterior24 - em 1824 tinha dez escravos e nenhuma criança e, em 1829,
respectivamente, 40 e três.
Estes casos demonstram que a montagem e/ou a reprodução dos engenhos alterou a
estrutura etária da vila em seu conjunto. Porto Feliz, uma antiga freguesia de Itu, contou,
inicialmente, com uma proporção maior de crioulos e crianças. A partir de 1815, as mudanças
ocasionadas pelo tráfico modificaram o perfil da escravaria.
Em números absolutos (quadro 6), o acréscimo do contingente de crianças, de 1818
para 1829, também se deve ao tráfico, uma vez que não poucos cativos com até catorze anos
de idade eram africanos, mormente os que tinham mais de dez anos. Em 1829, dos 1.138 com
menos de quinze anos, 137 não têm naturalidade conhecida e, agregando aos crioulos todos
os 77 menores de cinco anos,25 também sem naturalidade descrita, os cativos nascidos no
Brasil são 569 (50%). Os demais 432 (37,9%) vieram da África. Entre os de origem sabida,
os africanos alcançam 43,1%. O acréscimo de crianças, em números absolutos, em 1829, não
deriva da reprodução natural. Estes novos escravos foram absorvidos principalmente pelos
grandes senhores, já que em suas propriedades as crianças crioulas estavam presentes em
índices menores do que nas demais escravarias (quadro 7).
Associando faixa etária e naturalidade, vê-se no quadro 7 que, no geral, os africanos
eram maioria entre idosos e adultos em todos os períodos, mas os índices se elevam
sobremaneira em 1829. Para os idosos, a amplitude de africanos se assemelha à dos adultos,
no sentido de um acirramento em sua assiduidade no último momento. Entre as crianças,
como era de se esperar, a prevalência de crioulos é marcante, embora os africanos mais que
quintuplicam sua marca, em números absolutos, no passar do tempo, devido principalmente
ao contingente de crianças africanas nas grandes escravarias em 1829 (quadro 7).
24. Ano 1824, la Cia., f. 12; 1829, 7a Cia., Capivari, f. 216. LNPF, AESP.
25. Considerando que o tráfico trazia poucas crianças nesta faixa etária.
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Contudo, apesar da africanização das escravarias, até 1818 era considerável o número
de crioulos entre os adultos. Se sua presença nesta faixa etária for um indicador de
reprodução natural da população escrava, os dados sugerem que houve uma ligeira
reprodução natural entre pequenos e médios senhores até 1818 (quadros 6 e 7). Estas
escravarias eram as menos africanizadas, principalmente as pequenas. Foram elas que
basicamente sustentaram a participação de crioulos adultos em tomo de 42%, até 1818. Como
observei antes, a vila de Porto Feliz tinha muitos crioulos, se comparada a Campinas, onde os
africanos eram 70% entre os que tinham mais de 15 anos, em 1801 (Slenes, 1999:71).
Estes números indicam ^^peyssibilidade de reprodução natural, variável por
escravaria. Entre os pequenos senhores, a freqüência de crioulos adultos até aumenta entre
1805 e 1818 e quase se manteve mesma nas médias propriedades. Até 1818, juntas, tinham
mais crioulos adulto^ do que os grandes senhores (quadros 6 e 7). Como concentravam a
maioria dos escravos até 1815, grande parte da preponderância de crioulos no conjunto da
escravaria da vila se deu por causa das pequenas e médias escravarias. Sendo a presença de
crianças também um pouco mais constante nestas duas menores propriedades, a maior
incidência de crioulos adultos deve resultar da reprodução natural.
É evidente que tudo isto não era bastava para manter a população escrava, sequer para
reproduzi-la no ritmo ditado pela expansão das atividades agrárias. Com
326
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
HOMENS E MULHERES
26. Os motivos da predominância de homens no tráfico encontram explicações divergentes^ Para Herbert Klein,
as"mulEeres faziam as mesmas tarefas qüeoThomens nas lavouras americanas, mas elas eram altamente
valorizadas na África e no Oriente, devido ao seu potencial produtivo, reprodutivo e simbólico. Eram utilizadas
como mão-de-obra, além de fundamentais para o estabelecimento de status e de alianças, o que elevou o seu
valor na África e restringiu sua oferta no mercado atlântico, onde os homens eram preferencialmente oferecidos.
Cf. KLEIN, Herbert. “Economic aspects of the eighteenth-century Atlantic slave trade”, inTRACY, James.
TheRiseofMerchcmtEmpires. Cambridge: Cambridge University Press, 1987, pp. 295-7. Vertente distintaé
apresentada por Manolo Florentino, ao argumentar que, se o preço dos cativos fosse^Õndicionado pela oferta
afncãnã, as mulheres seriam mais caras que os homens no mercado brasileiro, o que não ocorreu, já que
africanos eram mais caros que africanas e crioulos mais que crioulas, ou seja, os homens eram mais caros que as
mulheres. Cf. Florentino (1995: 68). Calcado em outras bases, sobretudo na indiferença de preços por gênero no
Brasil, Klein, em co-autoria com Luna, reitera a idéia de que a ofertaJgm primazia sobre ademanda. Em suas
palavras: “Foram as condições da oferta, ao invés da preferência dos senhoreTdêêngenho por si, que
determinaram a dominância de escravos africanos sobre crioulos”.
No original: “It was thus supply conditions, rather than the preferences of the senhores de engenho per se, which
determined the dominance of African over creole slaves”. Cf. Luna & Klein (2003:48; tradução nossa). Evidente
que o crescimento natural da escravaria não atendeu à demanda de mão- s de-obra dos senhores de engenho de
Porto Feliz, mas parece que para Luna e Klein foi o continente africano que fez perdurar não só a estrutura da
demografia cativa, mas a própria escravidão, já que, sem tráfico, a população escrãvãnãõse reproduziria.
27. GOES, José Roberto. Escravos ãã paciência: estudò^sobre a obediência escrava no Rio de Janeiro (1790-1850).
Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 1998Jp. 161.
327
i
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
1!) 05
Escravaria Gra nde Mé dia Peai pena . . Tolâl
Sexo U % # % U u %
Feminino 238 31.4 232 37.5 306 45.9 776 38.0
Masculino 520 68.6 386 62.5 360 54,1 1.266 62.0
Total 758 _____ 100.0 618 _ 666 ....
100,0 2.042 100,0
100,0 .
_____ _ __ 18 18
Escravaria Grande Mé dia Pec! jena Total
Sexo n % # % u % # %
Feminino 583 30.8 257 31.3 415 42,4 1.255 34.0
Masculino 1.307 69.2 564 68.7 563 57.6 2.434 66.0
Total 1.890 100.0 821 100.0 978 100.0 3.689 100.0
1829
Escravaria Grande Mé Jia Peouena Total
Sexo .1 ! % #... . . •/- n1% #1%
Exclui escravos de sexo ilegivel.
328
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
Quadro 9. Sexo dos cativos por faixa etária e escravaria (Porto Feliz, 1805-
1829)
1805
Faixa Etária Crianci Adulto Idoso Total
Sexo F M M F M M F M M M M
Escravaria
Grande
#
K7
#
109
%
55.6
#
123
«
366
%
74.8
ti17 ti
42
%
71,2
#
227 517
# %
69.5
Média 90 93 111 245 68.8 26 46 619 227 384 62.8
Peauena 88 101 53,4 18$ 226 54,9 24 33 57.9 298 360 54.7
Total 265 m 53.3 420 837 66.6 67 17.1 752 1 62.6
1818 7,61
Faixa Etária Crianci Adnlto Idoso Total
Sexo F M M F M M F M M F M M
Escravaria
Grande
#
ti
231
%
52.0
#
332
ti
968
%
74.5
ti
38
Ü
106
% # #
1.30
%
69.1
213 73.6 583
Média 1 01 96 48,2 HO 421 75.0 14 47 77,0 257 5
564 68.7
Peauena 114 139 54,9 268 371 58 1 33 61.6 415 563 57.6
Total 430 466 52.0 740 1.76 70.4 85 206 70, R 1.25 2.41 66.0
0 5 2.
1829
Faixa Etária Zrianc Adulto Idoso Total
Sexo F s M M F M M F M M F M M
Escravaria
Grande
ü
3,51
#
47 |
%
54,5
#
<W
#
1.78
%
73.2
ti
45
#
185
%
80,4
#
1
#
2.19
%
69.5
Média 104 58.8 4
139 7
386 73.5 15 32 68.1 050
227 3
522 69.7
73
Peauena 94 95 50,3 201 ?94 59.4 17 ?9 63.0 312 418 57.3
Total $20 54.5 994 2.46 71.3 V 240 7$,2 1,58 3- 67.7
c
o
7 9 333
M = Masculino; F = Feminino; M% = Percentual masculino.
Exclui escravos com idades ilegíveis.
1805
priane Adulto Idoso Total
Sexo F s M M F M M F M M F M M
Escravaria ti U % # # % ti # % ti % %
Grande 4 30 88.2 39 267 87.3 8 27 77,1 51 324 86.4
Média 4 16 80.0 31 162 83.9 5 33 86,8 40 211 54,1
Peauena 7 9 56.3 54 121 69.1 8 2i 72.4 69 151 68.6
Total 15 55 78.6 124 550 81.6 21 8] 79.4 160 6R6 81.1
1818
Crianç Adulto Idoso Total
Sexo F Ma M F M M F M M F M M
Escravaria ti ti •/„ ti ti % ti ti % # % %
Grande 28 54 65.9 111 565 83.6 1<» 69 81.2 155 81.6
§
5
0
0
329
"
29. Talvez tenha ocorrido o mesmo em Itu, onde as mulheres de naturalidade conhecida somavam 1.360, sendo
801 (58,9%) crioulas e 559 (41,1%) africanas. Cf. Luna & Klein (1990: 55 e 349-79).
330
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
homens, não tanto a das mulheres, que só sentiram decisivamente o impacto do tráfico em
1829. A partir de então, as potenciais mães eram africanas, provavelmente em índices
maiores do que os demonstrados nos quadros 11 e 12. Em 1829, foi tão intenso o efeito do
tráfico que as africanas não deixariam de ser maioria, mesmo agregando às crioulas as
mulheres sem informação sobre naturalidade. Logo, na década de 1830, as mães eram
predominantemente africanas.
1805
Afr canas Cri pulas TNC NI TF
Escravaria # % # % # # #
Grande 39 32.2 82 67.8 121 ? 123
Médias 31 29.2 75 70,8 106 5 m
Pequenas 54 31,6 117 68,4 171 15 186
Total _ 124 31.2 __ 274 . .... 68.8 398 22 420
1818
Afr canas Crio® las TNC m TF
Escravaria # % # % # # #
Grande 111 39.4 171 60,6 282 50 332
Médias 43 35.2 79 64.8 122 18 140
Pequenas 56 26.7 154 73.3 210 58 268
Total 210 34.2 404 65.8 614 126 740
829
Afn canas Criou las TNC NI TF
Escravaria # % # % # # #
Grande 399 77.5 116 22.5 515 139 654
Médias 55 62.5 33 37.5 88 51 139
Pequenas 56 50,5 55 49.5 111 90 201
Total 510 7_U_ .... 204 .. 2.8,6 714 280 994
TNC = Total com naturalidade conhecida TF = Total Feminino NI = Não informa % entre
os de naturalidade conhecida.
30. Fertilidade é o potencial reprodutivo das mulheres e fecundidade é o resultado obtido da fertilidade.
CARVALHO, José Alberto. Introdução a alguns conceitos básicos e medidas em demografia. Belo Horizonte:
ABEP, 1994, p. 23.
331
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
naturalidade, porque quase não há menção à filiação nas listas nominativas. Pode ser que
haja diferenças ocasionadas por fatores de ordem cultural, que se expressavam através do
prolongamento entre as concepções e da abstinência sexual entre as africanas, mas ainda não
disponho de fontes, como registros de batismo ou inventários post-mortem, que aludam à
filiação e que permitam suprir esta lacuna, infelizmente. Pesquisas indicam que as africanas,
no Brasil, diminuíram o intervalo genésico e prolongavam a idade da última concepção
(Góes & Florentino, 1997:133-9).31
O único tópico sobre fecundidade passível de análise é sobre o tamanho das unidades.
Como se sabe, a tendência era a de a fecundidade ser maior nas grandes propriedades (Alves,
2001:188-9; Luna& Klein, 2003:150-1) ePortoFeliznão fugiu à regra, isto é, as unidades com
menos de dez escravos sempre apresentaram a menor taxa de fecundidade, e as das médias
escravarias se assemelhavam às das grandes (quadro 13). Porém, as taxas, que já eram baixas
até 1818, definham ainda mais em 1829.
No entanto, até a fase de mudança, mais importante para a limitada reprodução natural
foi a presença de crioulas nas médias e nas pequenas escravarias, que concentravam a maior
parte dos escravos até 1815. A partir de 1829, a reprodução natural - insuficiente para as
necessidades da lavoura canavieira - se baseou em mães africanas de grandes senhores.
31. Os estudos têm divergido sobre o assunto. Hebert Klein afirma que o tráfico atlântico concorreu para a baixa
taxa de fertilidade entre a população cativa, isto é, além de minoritárias no tráfico, as mulheres, por serem
predominantemente adultas, teriam seu potencial reprodutivo diminuído nas Américas, o que, associado a
maiores espaçamentos entre as concepções, devido à amamentação prolongada, reduziria as taxas de
fecundidade. Cf. Klein (1987:306-7). José Góes e Manolo Florentino relativizam as afirmações de Klein.
Segundo os autores, ainda que apenas 1/4 das cativas africanas chegasse ao Brasil antes dos quinze anos,
cerca de 85% tinham idades variando entre quinze e 29 anos (metade das quais com dezenove anos ou
menos). As escravas desembarcadas no Brasil ainda eram portadoras da maior parte de “suas
potencialidades genésicas”. Pariam pela primeira vez em tomo dos dezenove anos (idade no
limitg^áupferior), isto é, seis anos antes que as mulheres inglesas dos séculos XVII e XVIII, sete antes das
francesas do século XVIII, um ano antes da mulher livre colonial. Dito de outra maneira, seguindo o padrão
afidcano, havia tuna precocidade nas concepções entre as mulheres escravas no Brasil. No que diz respeito
ao período de intervalação genésica, os autores argumentam que, ainda que a precocidade<das concepções
fosse relativamente contrabalançada pelos maiores espaçamentos (que estariam entre dois e três anos e
meio, limites mínimo e máximo, respectivamente, podendo chegar ao padrão africano, oscilante entre três e
quatro anos), as cativas no Brasil tenderam a prolongar a idade da última concepção, se comparadas ao seu
continente de origem. Na África, isto ocorreria por volta dos 31-33 anos, ao passo que, aqui, seria em tomo
dos 37 anos, na fase de estabilidade do tráfico, atingindo os 45 anos nos momentos de maiores
desembarques. Portanto, mesmo aceitando a idéia de intervalos prolongados entre as concepções, a
precocidade da primeira gravidez e o prolongamento da última apontam para a “urgência da procriação
cativa”, tal a necessidade de fazer aliados e, assim, contribuir para o estabelecimento da “paz das senzalas”.
Cf. Góes & Florentino (1997: 133-9).
332
E STRUTURA DE P OSSE E D EMOGR AFIA E SCRAVA
CONCLUSÃO
333
ORIGENS AFRICANAS OU IDENTIFICAÇÕES MINEIRAS? UMA
DISCUSSÃO SOBRE A CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES AFRICANAS
NAS MINAS GERAIS DO SÉCULO XVIII
INTRODUÇÃO
Tenho como objetivo neste artigo demonstrar que as nações atribuídas aos africanos
fazem referência ao universo simbólico não-afiicano. Ou seja: os indivíduos do Continente
Negro recebiam termos que pudessem ser reconhecidos na sociedade em que estavam. Estes
termos explicavam, a meu ver, muito mais a respeito da cultura e da sociedade daqueles que
imputavam terminologias e características aos africanos, do que serviam para mensurar as
qualidades próprias dos africanos. O termo naçãg, enfim, era uma idéia, uma representação
não-africana apropriada pelos africanos. Os africanos, por outro lado, possuíam outras
identidades que ficavam a margem da percepção não-africana. Estas identidades serviam, via
de regra, para sustentar dentre os africanos suas verdadeiras origens étnicas, ou melhor, suas
identidades históricas.3
REPRESENTAÇÕES NÃO-AFRICANAS
Í contexto social. Para mais detalhes sobre este conceito, ver: OLFVEIRA, Roberto Cardoso de.
Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Livraria Pioneira, 1976, pp. 10-2.
4. DEL PRIORE, Mary & VENÂNCIO, Renato Pinto (org.). Ancestrais: uma introdução à história da África
Atlântica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pp. 59-63.
336
.
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?
5. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro
(século XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, pp. 43-51.
6. REIS, Liana Maria. “Colonizadores, africanos e escravidão: representações e identidades nas Minas Gerais do
Século do Ouro”, in COSENTINO, Francisco Carlos & SOUZA, Marco Antônio de. 1500- 2000: trajetórias.
Belo Horizonte: Centro Universitário Newton Paiva, Curso de História, 1999, pp. 69-82.
7. SCISÍNIO, Alaôr Eduardo. Dicionário da escravidão. Rio de Janeiro: Léo Cristiano, 1997, p. 147.
8. Segundo Schwartz, os relatos sobre o Outro funcionam mais como uma autoprojeção do Eu, do que como uma
descrição confiável do Outro. Sobre esta matéria, ver: SCHWARTZ, Stuart B. (Ed). Implicit Understandings:
Observing, Reporting, and Reflecting on the Encounters Between Europeans and Other Peoples in the Early Modem
Era. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p.4.
9. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990, p. 17.
337
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
sociedade assentada em um exato momento, e, por isso, cada período “traz consigo uma certa
definição do homem, simultaneamente descritiva e normativa, ao mesmo tempo [em] que se
dota, a partir dela, de uma determinada idéia de imaginação, daquilo que ela é ou daquilo que
deveria ser”.10 O imaginário, então, expressa a identidade de um grupo, pois este grupo se
coloca em um determinado local no mundo, se diferenciando dos demais grupos, e, por isso,
as referências simbólicas deste grupo indicam os indivíduos que a ele pertencem, mas
também demonstram como e por que outros indivíduos não fazem parte do grupo em
questão. Assim, as representações formam as identidades que, por si mesmas, “supõe[m]
uma distinção clara entre o que representa e o que é representado. E ainda marca[m] (...) uma
presença, [uma] apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa”. 11 Ou seja:
identificam um grupo em relação aos demais.
Assim, as identidades, na verdade,
10. BACZKO, Bronislaw. “Imaginação social”, in Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da
Moeda, 1985, pp. 296-332, v. 5, p. 309.
11. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo: USP, v. 11, n. 5,
1991, pp. 173-91.
12. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade & etnia: construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo:
Brasiliense, 1986, p. 42.
338
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?
Dessa forma, o uso português do termo nação era aplicado a dois tipos de gentes: aos
não-gentios, como, por exemplo, aos indivíduos provenientes dos reinos europeus; e aos
gentios, que é sinonímia de idólatras e pagãos. Em ambos os casos, o termo nação era aposto
aos indivíduos que viviam na mesma região e sob a tutela do mesmo soberano. Ou seja: a
nomenclatura nação de gentios era utilizada pelos portugueses “no sentido de um povo com
uma cultura comum, a mercadores judeus e a africanos escravizados”. 14
Por outro lado, as definições de Bluteau diferenciam o termo nação do termo etnia,
pois este último
Desse modo, pelas definições de Bluteau, o termo nação poderia ser composto de
várias etnias, e, além disso, nem toda nação era formada por gentios, ao passo que toda etnia
era gentílica. A meu ver, este foi o caso dos africanos em Minas Gerais no século XVIII,
pois, embora o substantivo nação projetasse uma origem comum aos sujeitos que fossem
designados por ele, no caso dos africanos, suas procedências eram incertas e comumente
conhecia-se apenas os povos, as localidades e, em alguns casos, os reinos que enviavam
escravos ao Atlântico. Isto teve como corolário a amálgama de indivíduos de origens
distintas e, na maioria das vezes, desconhecidas
13. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário português e latino. Rio de Janeiro: UERJ, 2000, CD-ROM, verbete
“nação”, v. 5, p. 658.
14. KARASCH, Mary C. “Minha nação: identidades escravas no fim do Brasil colonial”, in SILVA, Maria
Beatriz Nizza da (org.). Brasil: colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, cap. 8, pp.
127-41.
339
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
em uma única nação. Em função disso, Karasch ressalta que o termo nação, utilizado para
qualificar e representar os indivíduos da África Negra, na verdade expressava uma
“‘comunidade imaginada’ (...), que tinham de se juntar todos em novas comunidades que já
não estavam baseadas numa etnia específica”.15 Portanto, os africanos eram denominados e
unidos em uma nação imaginada, a partir da atribuição de algumas características comuns ao
grupo, que eram formuladas conforme a visão de mundo da sociedade em que estavam
inseridos.16 Essas comunidades imaginadas eram construídas não apenas pela imposição da
sociedade luso-brasileira, mas também pelos aspectos comuns dos indivíduos que a
compunham. Minas Gerais é emblemática desse viés.
A descoberta do ouro nos sertões da América Lusitana no final do século XVII
possibilitou o azo para a migração de indivíduos dos mais distantes rincões da Colônia e do
Reino para as Gerais. Estes primeiros imigrantes “trouxeram seus signos, seus símbolos e sua
cultura que, uma vez incorporados à mente do colonizado, forjaram parte de sua
identidade”.17 Por conta disso, estes indivíduos oriundos de áreas muitas vezes distintas umas
das outras deram, através de suas próprias histórias, definições díspares para o meio que
estavam construindo. Não obstante estes indivíduos tenham culturas distintas, as adaptações e
as sobreposições culturais entre eles eram inevitáveis. Estes encontros multiculturais
acabaram por resultar “na aproximação entre universos geograficamente afastados, em
hibridismos e em impermeabilidades, em (re)apropriações, em adaptações e em sobreposição
de representações e de práticas culturais”.18 Desse modo, os olhares da população não-
africana existentes em Minas eram mutáveis e instáveis, variavam constantemente,
produzindo imagens diversas sobre os africanos.
15. KARASCH, Mary C. Slave life in Rio de Janeiro (1808-1850). Princeton: Princeton University Press, 1987, p.
39.
16. Muitas vezes isso ocorria no interior da África. Law cita o caso do escravo Baquaqua, originário de
Tchamba, cidade localizada ao norte do atual Benin, fora dos limites do antigo Daomé. Baquaqua, depois de
ter sido vendido por pelo menos duas vezes, foi comprado por uma mulher em Abomey, capital do Daomé.
Esta mulher lhe atribuiu a identidade de “(...) ‘Efau’, isto é, Fom, referindo aparentemente a uma cidade ao
norte do Daomé; lá [em Abomey] ele foi vendido novamente para um homem ‘muito rico’ que vivia no
local, e foi presumivelmente este homem que subseqüentemente levou-o do sul de Abomey para Ajudá,
onde ‘eles me levaram para a casa de um homem branco’, que o vendeu novamente”. Cf. LAW, Robin.
Ouidah: The Social History of a WestAjrican Slaving Port (1727-1892). Ohio: Ohio University Press, 2004, pp.
138-9.
17. FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorização da Metrópole e do comércio nas Minas
setecentistas. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 24.
18. PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na Colônia (Minas Gerais, 1716-1789). Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2001, p. 27.
340
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?
Estas passagens acima citadas nos permitem observar a grande fluidez das
representações propaladas aos africanos. Tomando como exemplo os indivíduos das nações
mina e angola, poderemos apreender como eram fluídas as imagens dadas aos africanos.
Antes de tudo, deve-se ressaltar que estas nações eram usadas como termos
341
r
genéricos em Minas, isto é, minas e angolas eram terminologias aplicadas aos indivíduos
provenientes, respectivamente, da África Ocidental e da África Centro-Ocidental.21 Prova
disto nos é oferecida pela carta de D. João V, rei de Portugal, em 18 de junho de 1725, a qual
explicita a D. Lourenço de Almeida, governador de Minas, os motivos pelos quais não
aconteceu o levante escravo nas Gerais na década de 1720. Nesta carta, D. João V explica
que
21. Sobre o estudo da nação mina enquanto um termo genérico, ver: FURTADO apud LIBBY, Douglas Cole.
“O tráfico negreiro e as populações escravas das Minas Gerais (c. 1720-c. 1850)”, inI Workshop do Centro de
Estudos Mineiros. Belo Horizonte: UFMQ 2005.
22. Carta do rei de Portugal, D. João V, ao governador das Minas, D. Lourenço de Almeida, 18 jun 1725. APM,
Seção Colonial, Códice SC 23, fl. 47.
342
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?
O uso e o temor da população mineira aos escravos vindos da Costa da Mina era tal
que em Vila Rica, em 19 de julho de 1753, o governador de Minas, Gomes Freire de
Andrade, escreve ao comandante dos diamantes sugerindo a este que forme uma tropa de
pedestres composta por quinze negros minas com mais dez dragões para acabar com os
levantes de negros que estavam sucessivamente ocorrendo no Distrito Diamantino. 24 Em
outros momentos, os próprios não-africanos se apropriavam das representações atribuídas aos
africanos. Na disputa ocorrida entre o Conde de Assumar, governador das Gerais, e Manuel
Nunes Viana, este último
Neste caso, Manuel Nunes Viana não apenas possuía uma tropa de mandingas, que
eram vistos como feiticeiros, mas Viana também alegava ter os mesmos poderes mágicos dos
mandingas.
Além da utilização desses escravos da África Ocidental em tropas e batalhões, os
chamados minas eram representados como exímios mineradores. 26 Em 1726, por exemplo, o
governador do Rio de Janeiro, Luís Vaia Monteiro, observava que é “pella
23. LARA, Silvia Hunold. “Os minas em Minas: linguagem, domínio senhorial e etnicidade”, in XX Simpósio
Nacional da Associação Nacional de História. Florianópolis/São Paulo: História/Fronteiras/ Humanitas/
FFLCH/USP/ANPUH, 1999, v. 3. pp. 681-8.
24. Carta do governador de Minas Gerais, Gomes Freire de Andrade, ao comandante dos diamantes, 19 jul 1753.
APM, Seção Colonial, Códice SC 107, fl. 40v-l, fil. 23, G3.
25. PAIVA, Eduardo França. “Milícias negras e culturas afro-brasileiras (Minas Gerais, Brasil, século XVm)”,
in Anais do XIVEncontro Regional de História daANPUH-MG. Juiz de Fora: ANPUH - MG jul, 2004, p. 5.
26. Sobre esta representação, ver, entre outros: BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário da terra e gente de
Minas. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, Série Publicações do Arquivo Público Mineiro, n. 5, 1985, p. 126.
343
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
mesma cauza não há mineyro que poça viver sem hua Negra Mina, dizendo que só com ellas
tem fortuna”.27 Neste caso, a preferência dada aos minas estava em sua qualidade técnica na
mineração.
Entretanto, em outro testemunho de época, Tomás Francisco Xavier Hares,
preocupado com o aumento das dívidas dos mineradores na aquisição de escravos minas que
vinham da Bahia, recomenda ao rei de Portugal a substituição dos escravos da Costa da
Mina, mais caros, pelos da África Oriental. E, assim, explica Hares, que mesmo sendo os
moçambiques inferiores aos minas nos trabalhos praticados em Minas
27. PAIVA, Eduardo França. “Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo
Mundo”, in PAIVA, Eduardo França & ANASTÁSIA, Carla Maria Junho (orgs.). O trabalho mestiço:
maneiras de pensar e formas de viver (séculos XVI a XIX). São Paulo: Annablume/PPGH/UFMG, 2002, pp. 187-
207.
28. AHU. Cx.60, doc.76.
344
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?
fundamenta sua preocupação dizendo que “é a má qualidade de que elas se vão enchendo”
que o preocupa, e acrescenta ao rei: “Será esta gente a mais perniciosa que pode haver nestes
povos que pela distância e largueza destes sertões, se faz muito dificultoso o poder Vossa
Majestade conservar nelas as tropas que bastem para dominar tão má casta de gente”. Mais
adiante, completa o governador: “A razão porque nestas Minas há e vai havendo tanta
quantidade de mulatos, é porque nelas não há outra casta de mulheres senão negras”. 29 Além
de utilizar a terminologia negra para se referir às crioulas e as africanas indistintamente, D.
Lourenço de Almeida faz, de forma quase latente, referência ao seu próprio universo
simbólico. Ao denominar crioulos, africanos e mulatos como castas de gentes, o governador
está, implicitamente, demonstrando como ele percebia a população de cor mineira. Segundo
Souza, D. Lourenço de Almeida, antes de se tornar governador em Minas, residiu em Goa,30
e, por isso, ele se apropriou dos símbolos utilizados na índia para se referir aos homens de
cor em Minas Gerais.
Desse modo, percebermos que as nações africanas foram inventadas, imaginadas, ou
mesmo, descobertas em Minas Gerais. Os não-africanos imputavam origens e representações
aos africanos. Estas terminologias eram formas de traduzir, explicar e reduzir o outro,
“enquanto realidade viva, ao poder da realidade eficaz dos símbolos e valores de quem pode
dizer quem são as pessoas e o que valem, umas diante das outras, umas através das outras”
(Brandão, 1986:7). Em outras palavras, as nações e as representações atribuídas aos africanos
não significavam uma identidade étnica em si, mas sim a construção de uma comunidade
imaginada em Minas. Segundo Barth, os grupos étnicos são categorias de organização social
e de auto-identificação dos indivíduos que os compõem. Esta auto-identificação é fomentada
pela escolha individual do sujeito.31 No caso dos africanos das Gerais do século XVIII, suas
nações de origens eram atribuídas, imputadas, ou seja, eram impostas através do outro - o
não-africano. A meu ver, nações africanas não são etnias, mas sim minorias sociais criadas
em uma sociedade estranha aos africanos. Oliveira observa que o termo
29. Carta do governador de Minas Gerais, D. Lourenço de Almeida, ao rei de Portugal, D. João V, 20 abr 1722.
Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte: APM, 1980, p. 86.
30. MELLO E SOUZA, Laura de. Norma e conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte:
UFMQ 1999, pp. 175-99.
31. BARTH, Fredrik. “Grupos étnicos e suas fronteiras”, in POUTIGNAT, Philippe & STREEFF-FENART,
Jocelyne (orgs.). Teorias da etnicidade. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997, pp. 185-227. Diego Villar critica a
posição de Barth no que concerne à escolha individual na escolha de sua identidade étnica. Segundo Villar,
a mudança para uma nova identidade étnica pressupõe um recomeço, uma transformação e uma adaptação.
Estes obstáculos poderiam fazer com que os indivíduos, ou não se esquecessem de suas identidades étnicas
originais, ou, até mesmo, que eles não alterassem suas identidades étnicas. Para mais detalhes, ver:
VILLAR, Diego. Uma abordagem crítica do conceito de “etnicidade” na obra de Fredrik Barth. Revista
Mana. Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, abr, 2004.
345
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
AS IDENTIDADES ÉTNICAS
346
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?
também poderiam ter jejes e minas em sua composição. Assim como as nações dos minas e
dos jejes poderiam ter iorubas compondo suas nações. 32 Ou seja: pode ser que em uma única
nação africana em Minas houvesse várias etnias.
As diferenças culturais entre as várias nações e as interpretações autônomas dos
africanos dos signos existentes na sociedade mineira do Setecentos, em grande medida
conservaram-se intocadas pelos não-africanos. Não obstante muitas das práticas culturais
africanas tenham sido restringidas e a norma social fosse, em muitos casos, imposta aos
africanos, havia espaço para a construção de uma visão de mundo própria destes indivíduos.
Estas visões de mundo próprias dos africanos ensejam a possibilidade de analisarmos suas
identidades étnicas.
Emblemático deste viés é a advertência que o governador interino das Minas,
Martinho de Mendonça, fez aos oficias da Câmara da Vila Real de Sabará no ano de 1735.
Segundo o governador interino, ao discordar sobre o ato de marcar os escravos que fugissem,
avisa:
As marcas e os calos dos quais o governador interino se refere nada mais são do que
as escarificações que, entre várias nações africanas, desempenhavam uma função social,
ritualística e, comumente, identitária. Não apenas as escarificações, mas também todo o
universo simbólico do passado dos africanos era usado como instrumento de identidade
coletiva e de transformação social. Por conta disso, muitos dos africanos em Minas
reinventavam suas identidades a partir não apenas das representações que lhes eram
atribuídas, mas também por suas heranças culturais. Neste caso, a escarificação significou
“um tipo de insígnia, um emblema nacional, uniforme para todos indivíduos do mesmo
grupo e diferente de um povo para outro, de maneira a dar a cada um uma característica
distinta”.34 Em outras palavras, essas marcas alicerçavam as identidades étnicas e autônomas
dos africanos em Minas, identidades estas que os não-africanos desconheciam.
32. OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. Retrouver une identité: jeux sociaux des africains de Bahia (vers 1750-vers
1890). Paris: Paris-Sorbonne (Paris IV), Tese de Doutorado, 1992, p. 274, nota 2.
33. CÓDICE COSTA MATOSO, pp. 535-6; fl.264.
34. REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês em 1835. Edição rev. e ampl. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 312.
347
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
A fuga em si não expressaria uma marca coletiva de um grupo, mas o ato de buscar
na morte uma forma de liberdade sim. Miller observa que entre os africanos da Costa Centro-
Ocidental a morte estava associada ao regresso à terra natal. Esta prática “pode ter (...)
[restaurado], na morte, identidades pessoais perdidas em vida”. 36 Além disso, o suicídio
favoreceu a construção de identidades a priori desconhecidas pelos não-africanos. Assim,
muitos dos valores e das características atribuídas a uma nação da África Centro-Ocidental,
na verdade, eram compactuados por muitos dos indivíduos desta origem e não apenas por
uma única nação. Ainda segundo Miller, os indivíduos da África Centro-Ocidental na
América lusitana mantinham um entendimento comum de comunidade, independente das
nações que lhes eram atribuídas, pois suas heranças culturais eram similares. 37
A língua era uma das identidades étnicas que mais habitualmente foi usada na
construção das identidades autônomas dos africanos. As nações africanas, mesmo aquelas
provenientes de regiões em efueéxistiam diferentes idiomas, formulavam dialetos próprios
para desenvolver a comunicação entre o grupo. Estes dialetos eram, não raramente,
incompreendidos pelos não-africanos. Neste caso, Castro demonstra que
y-
348
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?
os africanos da nação mina fomentaram nas Minas Gerais, da primeira metade do século
XVIII, uma língua geral mina que “retratava um processo inicial de crioulização por
absorção de traços lexicais e gramaticais de outras línguas do grupo gbe, tendo o fon como
língua lexicalizadora”.38
Estas e outras características entre os africanos foram comuns em Minas Gerais. Tais
valores e códigos culturais permaneceram impermeáveis aos não- africanos. Os africanos
podem ter repudiado determinados valores locais por motivos de preservação cultural, ou
ainda por considerarem esta impermeabilidade cultural como um fator de sobrevivência em
um habitat a priori estranho. O fato é que esta resistência cultural desenvolveu uma
percepção própria de cada grupo sobre as representações que eles recebiam. Assim, cada
nação africana atribuiu símbolos próprios às suas representações e criaram identidades
autônomas àquelas imaginadas pelo restante da população mineira. Ou seja: criaram suas
próprias identidades étnicas.
Prova disto nos é oferecido por Roza Moreira de Carvalho, moradora da vila de São
José dei Rei, que no ano de 1796 declarou em seu testamento que era “natural da Costa da
Mina do Estado da Guiné”.39 Recorrendo ao dicionário de Bluteau descobrimos que a palavra
Estado, no Setecentos, aludia aos negócios, ao modo de viver, à estratifícação social, a
prontidão, à saúde, a família e ao “Reino. Império. As terras do Senhorio, ou domínio de
algum Princepe”, ou ainda, se refere as terras eclesiásticas (Bluteau, 2000: v. 3, pp 301-4,
verbete “Estado”). Assim como no caso de Joana Machado, descrito na introdução, Roza
Moreira fez questão de deixar em seu testamento sua origem gentílica. Em outras palavras,
Roza não apenas revelou sua origem, mas também sua identidade. Para tanto, a testamenteira
articulou as terminologias da sociedade em que estava, Estado e Guiné, para representar sua
verdadeira identidade.
Em um inventário, Quitéria da Silva, moradora de São João del-Rei, declarava, em
1794, que era “natural do gentilismo da Costa da Mina”.40 Neste caso, Quitéria da
38. YAI apud CASTRO, Yeda Pessoa de. A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século
XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Secretaria de Estado da Cultura, Col. Mineriana, Série
Clássicos, 2002, p. 59. Ver também sobre este assunto: YAI, Olabiyi. “Texts of enslavement: fon and
yoruba vocabularies from eighteenth and nineteenth century, Brazil”, in LOVEJOY, Paul E. (ed.). Identity in
the Shadow of Slavery. Londres: Continuum, 2000, cap. 6, pp. 102 -12 .
39. LIBBY, Douglas Cole & GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. Reconstruindo a liberdade: alforrias e
forros na freguesia de São José do Rio das Mortes (1750-1850). Revista Varia História. Belo Horizonte:
FAFICH/UFMQ n. 30, jun, 2003, pp. 112-51.
40. FARIA, Sheila de Castro. “Sinhás pretas: acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras
no sudeste escravista (sec. XVIII-XIX)”, in SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MATTOS, Hebe Maria
& FRAGOSO, João L. (orgs.). Escritos sobre história e educação: homenagem à Maria Yedda Leite Linhares.
Rio de Janeiro: Mauad/FAPERJ, 2001, pp. 289-329.
349
E SCRAVIDÃO , M ESTIÇAGEM E H ISTÓRIAS C O MPARADAS
Silva fez questão de assumir sua origem gentílica, isto é, sua identidade étnica, ou sua
identidade histórica Contudo, nem sempre estas identidades históricas foram preservadas, ou,
até mesmo, muitos fizeram questão de esquecer suas origens gentílicas originais. Este foi o
caso, por exemplo, de Maria do Rosário, também moradora de São João del- Rei, que em seu
testamento, datado em 1771, declarou que era
350
O RIGENS A FRICANAS OU I DENTIFICAÇÕ E S M INEIRAS ?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
351
y
Coleção
OLHARES
TÍTULOS PUBLICADOS
354
\
^ Linear B
gráfico
MATAS P LURAIS. IMORALIDADES MATRIMONIAIS : O
DESPIQUE ENTRE NEGROS E ÍNDIOS CABANOS DE
JACUÍPE (AL-PE,1835-1850)
• Janaina Cardoso de Mello
S ABERES, P ETRECHOS E ESCRAVOS: OFICIAIS
MECÂNICOS E S ENHORES NO CORPO S OCIAL DAS
MINAS S ETECENTISTAS
• José Newton Coelho Meneses
O ABOLICIONISMO DAS MINAS: UM BREVE ESTUDO
COMPARADO DO MOVIMENTO ABOLICIONISTA NAS
CIDADES DE OURO P RETO E JUIZ DE F ORA NOS
ÚLTIMOS ANOS DA ESCRAVIDÃO
• Luiz Gustavo Santos Cota
S ERVIR “DEP ORTAS A DENTRO”: P ENSANDO
RECIFE E S ALVADOR NA S EGUNDA METADE
XIX
DO S ÉCULO