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Como A Europa Subdesenvolveu A África
Como A Europa Subdesenvolveu A África
Como A Europa Subdesenvolveu A África
172
dependeu, preponderantemente, segundo Williams, da posição
hegemônica da de Inglaterra no comércio triangular de escravizados
africanos e da expropriação interna de seus próprios camponeses. O
Continente Africano inteiro, como demonstrará Rodney, pagou
com sangue essa evolução.
173
levou ao fim e ao cabo a evolução das formas mais baixas
a formas mais altas de organização social; e, ao observar
as formas mais avançadas, estimar as potencialidades do
continente em seu conjunto e a direção em que se pro-
jetava a mudança (RODNEY, 1982, p. 45).
174
sem sombra de dúvidas, a dependência existente entre eles tanto para
o estabelecimento como para o desenvolvimento do capitalismo.
As interpretações que comparam as civilizações européias e as
civilizações africanas antes da chegada dos europeus podem ser ques-
tionadas diante das barbáries cometidas por europeus e norte-ame-
ricanos que, por fim, macularam o desenvolvimento orgânico das
civilizações africanas. Para compreender as diferenças existentes en-
tre o modelo africano e o europeu, é necessário pontuar as singula-
ridades culturais destes povos, pois é a cultura que orienta o mode-
lo de organização social. Rodney sugere que o termo “culturas” se-
ria mais compatível com oo atual
atual“estágio”
estágio de
de desenvolvimento destas
sociedades; e observa, “uma cultura é uma forma integral de vida”
(Idem, ibidem, p. 45).
175
desenvolvimento de uma sociedade calcada em bruscas mudanças
tecnológicas, porém só se constitui um freio quando a sociedade
que a produz se assenta nos laços de reciprocidade e nas relações
harmônicas.
Sobre isso, Rodney ressalta:
176
sendo os que a usufruem meros guardiões temporários. Conforme
Rodney explica:
177
ESPECIFICIDADES DA ORGANIZAÇÃO PRODUTIVA
De pronto, a pertinência do conceito marxista de “modo
de produção” para designar uma heterogeneidade de regimes de
produção existentes na África pré-colonial é questionada por
Rodney. Essas concepções centradas nos modos europeus confi-
nam à inferioridade o esquema de produção africano. Contudo,
o que é visto como inferioridade é fruto de, pelo menos, duas
importantes dinâmicas internas das sociedades africanas: de um
lado, a quantidade e uso da terra; de outro lado, a escala de pro-
dução. A abundância de terras, assim como as poucas pressões
sociais para seu uso – em face do sistema de parentesco –, soma-
das a parcos incentivos à mudança das técnicas de produção, aca-
baram por não implicar a revolução das técnicas, até então, utili-
zadas pelos africanos com pertinência.
Segundo Rodney, na Ásia, a propriedade era comunal, porém
existiram avanços significativos em razão da presença do Estado, di-
ferentemente dos Estados africanos mais avançados, que não promo-
veram e nem supervisionaram o desenvolvimento agrícola. Isto pode
ter se dado por falta de pressão demográfica ou pelo fato de esses
Estados se concentrarem em torno de produtos não agrícolas. Mas é
incontestável que “as sociedades africanas estabeleceram laços sobre as
bases de comércio com outros sistemas sociais fora do continente,
mas prestaram pouca atenção à agricultura” (Idem, ibidem, p. 54).
A inferioridade produtiva africana em relação à eficácia euro-
péia daquela época reside, explicou Rodney, na escala de produção.
Na África, o algodão era produzido de maneira artesanal, assim
como o ferro e a cerâmica. (Idem, ibidem, p. 55). As sociedades
africanas, ressalta, satisfizeram suas necessidades com uma gama
própria de artigos de uso doméstico, ferramentas e armas. E apesar
de artesanal, a manufatura africana primava pela qualidade, princi-
palmente dos objetos em couro.
Ainda em contraposição à concepção hegemônica acerca da
economia africana, tida como de subsistência, Rodney ressalta o
178
fato de a África ter sido um continente de inúmeras rotas comer-
ciais, onde “predominavam fundamentalmente o comércio entre
vizinhos ou entre comunidades não tão distantes” (Idem, ibidem,
p. 56). A base para esse intercâmbio foi o florescimento da indús-
tria do sal e do ferro, assim como o pescado seco nas regiões cos-
teiras e ribeirinhas, enquanto em outras localidades cresciam em
abundância o inhame e o milho: “Esta forma de mercado que
podia ser facilmente encontrada em qualquer parte do conti-
nente entre os séculos X e XV foi um excelente indicador do
grau de expansão econômica e de outras formas de desenvolvi-
mento que acompanharam um domínio em constante avanço”
(Idem, ibidem, p. 57).
Ao contrário da África, as rápidas mudanças tecnológicas na
Europa conduziram, inevitavelmente, ao crescimento industrial. Para
isso, era necessário reunir simultaneamente alguns elementos, sem
os quais não se conseguiria maior crescimento, a saber: a introdu-
ção do ferro, da força econômica e da força militar. Rodney ressalta
que “os que estavam em condições de consegui-lo e manufaturá-lo”
(Idem, ibidem, p. 57-58) poderiam impulsionar a ascensão do sis-
tema econômico capitalista. A Inglaterra conseguiu a sua primazia
por reunir tais meios.
Na África pré-colonial, a tecnologia do ferro teve uma ex-
pansão totalmente controlada pela superestrutura da sociedade. Na
maioria dos casos, especialmente na África Ocidental, os trabalha-
dores que dominavam o ferro formaram castas, verdadeiras
corporações socioprofissionais hereditárias. Para Rodney, esse con-
trole sobre a tecnologia do ferro fez com que os Estados permane-
cessem por muito tempo frágeis e imaturos (Idem, ibidem, p. 61).
Mesmo assim, o autor assinala que, após a chegada dos europeus,
os africanos ainda concorriam diretamente com eles no plano da
manufatura metalúrgica. Como exemplo, cita o cobre produzido
em Katanga e Zâmbia, que, com efeito, era preferível ao importa-
do, o mesmo ocorrendo no caso do ferro de Serra Leoa.
179
ESPECIFICIDADES DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
A existência ou não de Estado foi utilizada por muitos acadê-
micos para qualificar as sociedades africanas. No entanto, Rodney
afirma que tal classificação está atrelada a uma concepção de Estado
que se identifica com a presença de um aparato coercitivo, de uma
estratificação de classes e, portanto, de hierarquias sociais bem pro-
nunciadas. Na ausência desses elementos, certos teóricos concluiriam
que não haveria Estado. “Em termos gerais, podem ser classificadas
sociedades sem Estado as formas mais antigas de organização
sociopolítica na África, já que os grandes Estados representavam uma
evolução do comunalismo ao feudalismo” (Idem, ibidem, p. 62).
A África manteve uma multiplicidade de formações sociais
antes de qualquer interferência européia. Naquele continente, exis-
tiam bandos de caçadores, comunalismo, feudalismo e muitos es-
tados intermediários. A experiência do Magreb ilustra a transição
de um “modo de produção” a outro, bem como a incidência de
formas distintas de organização da sociedade em convívio e man-
tendo contatos. Vale ressaltar que, apesar dessa mudança, durante
todo esse período, a propriedade da terra continuou comunal e o
trabalho sendo desenvolvido pela família.
Nesse período histórico, o Continente Africano testemunhou
a ascensão de Estados mercadores. No Sudão Ocidental, destaca-
ram-se o Império de Gana, originado no século V, com auge entre
os séculos IX e XI; o Império do Mali, entre os séculos XII e XIV;
e, nos séculos seguintes, o Império Songai. Todos eles estavam situ-
ados no mesmo espaço, mas com origens étnicas e classes distintas.
Esses Estados centravam suas atividades na agricultura, que propi-
ciou o desenvolvimento do comércio antes da chegada dos portu-
gueses. Mais tarde, a destreza do núcleo de mercadores profissio-
nais, como os “mandinga” e os “dioulas”, surpreenderia mesmo os
europeus. Os dioulas, explicou Rodney, “manejavam uma extensa
lista de produtos africanos, que incluía, entre outros, o sal da costa
atlântica e do Saara, o ouro do país de Akan em Gana, o pescado
180
seco da costa, o algodão de muitas províncias e especialmente de
regiões centrais do Sudão Ocidental e uma variedade de outros pro-
dutos” (Idem, ibidem, p.75-76). Isso demonstrava a existência in-
contestável de uma rede comercial bem estruturada e regulada que
compreendia o Mediterrâneo e o Oceano Atlântico.
O comércio de longa distância também foi de suma impor-
tância para o crescimento das cidades e para o fortalecimento de
certas linhagens. Porém, Rodney alerta para o fato de que este co-
mércio não foi responsável pela construção dos impérios sudânicos,
como Gana, Mali e Songai, que se desenvolveram com seus pró-
prios meios, por via do esforço de sua população. Além do mais,
apenas quando alcançaram certo nível de desenvolvimento, suas
classes governantes mostraram interesse pelo comércio de grandes
distâncias (Idem, ibidem, p. 76).
As relações comerciais com os impérios do norte da África
eram desiguais – sempre a favor desses. O comércio de ouro ainda
estimulou o desenvolvimento das forças produtivas, diferentemente
do tráfico de escravizados que não trouxe benefícios. Os três Esta-
dos (Gana, Mali e Songai) exportavam pequenas quantidades de
escravizados. Da mesma forma, o Estado do Kanem-Bornú em-
pregou o seu poder militar para atacar as regiões do sul em busca de
prisioneiros. Isso gerou implicações negativas quando, nos séculos
seguintes, foi instaurado um tráfico de escravizados estável e redu-
zido, proveniente da África Ocidental através do Saara. Este tráfi-
co, conduzidos pelos europeus, agregou-se ao fluxo massivo dos
povos do continente (Idem, ibidem, p. 77).
Ainda que o surgimento de diferenças de classes tenha con-
tribuído para a decadência das relações comunalistas, essas ainda
persistiram até o século XV e se constituíram num freio para o
desenvolvimento do Sudão Ocidental. Nesse sentido, essas socie-
dades, que se mantiveram comunais, e o trabalho sendo desenvol-
vido pela família
família, não
não poderiam converter-se em capitalistas como
conhecemos. Rodney ressalta:
181
Em nenhuma das sociedades africanas até agora exami-
nadas pode-se dizer que se desenvolveram formas capi-
talistas ao ponto de converter a acumulação de capital
na principal força de motivação. No entanto, todas elas
tiveram setores comerciais florescentes e sólidas indús-
trias artesanais, que foram os fatores que finalmente de-
ram conta do nascimento do capitalismo moderno atra-
vés da evolução e da revolução (Idem, ibidem, p. 72).
182
escravizados, posteriormente incorporavam-se à socie-
dade como membros ordinários, porque não existia a
perspectiva de perpetuar a exploração do homem pelo
homem em um contexto que não era nem feudal nem
capitalista (Idem, ibidem, p. 50).
183
foi um fator decisivo a este respeito. O ouro da África
ajudou os portugueses a financiar mais navegações ao re-
dor do Cabo da Boa Esperança e aos países da Ásia a par-
tir do século XV. O ouro africano foi também a principal
fonte de moeda de ouro da Holanda no século XVII e fez
possível que Amsterdã se convertesse na capital financeira
da Europa neste período (Idem, ibidem, p. 102).
184
estabelecendo relações comerciais em um momento em que a dife-
rença – uma incipiente sociedade capitalista (e agressiva) e uma so-
ciedade que emergia do comunalismo (integralizadora) – determi-
nou posições dispares (Idem, ibidem, p. 89). O subdesenvolvimen-
to e o desenvolvimento mantêm entre si uma relação dialética, afir-
mou Rodney: “Europa Ocidental e África mantiveram uma rela-
ção que garantiu a transferência da riqueza da África para a Europa”
(Idem, ibidem, p. 91). Sobre essas bases, a Europa operou um pro-
cesso de saque, produzindo, cada vez mais, o subdesenvolvimento
do Continente Africano.
185
da experiência comercial e do uso da força bélica. Na África Oriental,
por exemplo, os portugueses usaram a violência para controlar o co-
mércio entre os árabes e os swahilis. O mesmo se verificou entre o
comércio africano da Costa do Marfim e da Costa do Ouro. Assim
também fizeram os holandeses por intermédio da Companhia Ho-
landesa das Índias Ocidentais com o objetivo de converter o comér-
cio exclusivamente interafricano em euro-africano.
Seja qual for a nacionalidade dos atores externos ou das cir-
cunstâncias nas quais seus empreendimentos foram favorecidos (cum-
plicidades das elites africanas, entre outras), o historiador destaca o
papel deformador exercido pelas forças externas (tráfico, comércio
de marfim e ouro). Nessa ótica, Rodney aponta alguns desses fatores
como globalmente negativos para as sociedades africanas:
a) o impacto externo, sobretudo europeu, até 1885, ocorreu
de forma desigual geograficamente, sendo as costas do continente
mais afetadas;
b) o comércio europeu afetou distintamente diversos aspectos
da vida africana em graus variados. Contudo, conservaram-se prati-
camente intactos os aspectos políticos, militares e ideológicos; e
c) as características mais dinâmicas da evolução africana inde-
pendente continuaram vigentes depois dos anos de 1500. Com
raras exceções, as áreas avançadas antes do século XV mantiveram o
desenvolvimento (Idem, ibidem, p. 159).
O tráfico de escravizados, salientou Rodney, provocou uma
estagnação no crescimento demográfico da população, afetando a
atividade econômica do Continente Africano, tanto direta quanto
indiretamente. Por exemplo, quando o número de habitantes de uma
determinada região ficava abaixo de uma certa cifra, o restante da
população tinha de abandonar a área. Como efeito, a agressão escravista
estava desarmando as populações em sua luta para enfrentar e domi-
nar a natureza, que é um primeiro requisito de desenvolvimento.
A violência gerou insegurança. A oferta de oportunidades
forjadas pela presença dos mercadores europeus de escravos chegou
186
a constituir o motivo principal (não o único) dos enfrentamentos
que, em escala considerável, tiveram lugar nas comunidades africa-
nas, internamente ou nas relações entre elas (Idem, ibidem, p. 115).
Mesmo as regiões que não se envolveram diretamente no tráfico
sofreram seus impactos. “Teve tanto efeito, porque uma compe-
tência indiscriminada foi produzida, além de ter orientado as ativi-
dades de extensas zonas da África à exportação de carregamentos
humanos” (Idem, ibidem, p. 118).
Rodney descarta, logo de início, um dos argumentos predi-
letos dos acadêmicos europeus e americanos no sentido de que o
comércio de mercadorias européias e cativos resultou em riquezas
para os governantes africanos e outros indivíduos. Assinalam que o
comércio de escravizados, fenômeno condenável moralmente, foi
economicamente favorável para a África. Ele escreveu:
189
A TESE DE JOHN THORNTON
O africanista John Thornton é o mais eloqüente opositor da
tese de que foi a Europa que subdesenvolveu a África. Tal como
expresso em A África e os africanos na formação do mundo atlântico,
1400-1800 (2004), defende o encontro entre o Ocidente e o Con-
tinente Africano como amplamente benéfico para o segundo. As-
sim, esse historiador não somente se coloca como um anti-Rodney,
como também um defensor ferrenho da idéia do caráter positivo e
igualitário das relações euro-africanas a partir do século XVI. Suas
teses merecem ser examinadas detidamente por tratar-se de um es-
pecialista de enorme influência nas discussões sobre a história da
África e também por ele se colocar, de fato, à frente de toda uma
escola moderna de africanistas revisionistas, cujas idéias e propostas
estão efetivamente redirecionando ideologicamente os estudos so-
bre o Continente Africano.
Apoiando-se numa farta documentação formal, Thornton
coloca as boas questões; são suas respostas a essas questões que me-
recem o escrutínio, pois não estão isentas de dubiedade e, até mes-
mo, de apreciações francamente ideológicas. Sua tese central é de
que a escravização dos africanos, a constituição do império da es-
cravatura moderna, foi pura questão de oferta e demanda, na me-
lhor lógica do capitalismo. Teriam sido “os africanos” quem toma-
ram a iniciativa dos tráficos negreiros, com a Europa simplesmente
respondendo a essa singular “oferta” com uma crescente “demanda”
guiada por razões puramente mercantis. Segundo ele, “a evidência
mostra que foram as decisões dos Estados africanos que determina-
ram a participação nesse específico tipo de comércio, e nem tanto a
pressão da Europa” (Idem, ibidem, p. 169-170). Assim, assevera:
190
comércio permaneceu competitivo, provavelmente não
favorecendo nenhum ator nacional ou regional em especial
– e com certeza não os europeus à custa dos africanos (Idem,
ibidem, p. 121).
191
Thornton pensa que os “tráficos negreiros” teriam sido o pro-
duto da extroversão das estruturas escravistas da própria África:
192
Thornton completa:
Em conclusão:
193
O historiador alega que foram as condições internas da Áfri-
ca, e não pressões do exterior, que determinaram o curso dos acon-
tecimentos trágicos do Continente Africano. De certa maneira, a
África teria se “suicidado”, com suas próprias mãos, para satisfazer
interesses puramente locais:
194
séculos. Não se trata unicamente de uma abordagem historiográfica,
mas também de uma questão de interesses e responsabilidades dos
diferentes atores envolvidos.
Ao longo de milênios, desde a época egípcio-kushita até o
alvorecer do século XIX, as sociedades africanas rejeitaram tenaz-
mente o conceito e a prática de propriedade privada sobre o solo.
Como, pois, conciliar a existência de uma escravatura de natureza
privada nesse contexto de repúdio à propriedade privada sobre o
principal meio de produção?
Alguns especialistas aduzem que é precisamente por essa ra-
zão que a escravidão africana teria tido tendência a se estender. Se-
gundo esse argumento, os africanos, não tendo possibilidades de
converter-se em grandes proprietários fundiários, podendo assim
proceder a uma acumulação primitiva sobre a base da posse da ter-
ra, teriam encontrado outra via: desenvolver a propriedade privada
sobre os seres humanos.
O problema está no fato de que muitas das “evidências” apre-
sentadas como tal pelo historiador Thornton terminam sendo afir-
mações descontextualizadas, e muitas vezes até carentes de docu-
mentação, mas feitas com tal contundência retórica que terminam
assumindo um caráter de veracidade comprovada. O edifício
conceitual levantado por esse historiador para explicar o porquê
dos “tráficos negreiros”, que neste caso ele restringe ao tráfico do
Atlântico, dominado pelos europeus, se resume em cinco grandes
considerações:
195
menos na agricultura. Em razão da sua característica le-
gal, a escravidão era de muitas maneiras o equivalente
funcional do relacionamento do proprietário da terra
com seu arrendatário na Europa e talvez igualmente dis-
seminada. Nesse sentido, foi a ausência de propriedade
privada de terras – ou para ser mais preciso, foi a propri-
edade corporativa da terra – que levou a escravidão a ser
tão difundida na sociedade africana (THORNTON,
2004, p. 125).
Em outras palavras:
E, ainda, comenta:
196
crescimento do capitalismo e, por fim, o progresso na
África (Idem, ibidem, p. 138).
197
Continente Africano, a saber, a propriedade coletiva da terra, prin-
cipal meio de produção, em uma situação de existência da escrava-
tura. O fato de o solo ser propriedade coletiva teria facilitado, se-
gundo Thornton, a emergência dos “tráficos negreiros”. Qual o
mérito desse argumento se considerarmos que a África comparti-
lhou esse “pecado” com outras regiões do mundo, como a China e
a Índia pré-coloniais?
Em primeiro lugar, é necessário sublinhar que a ausência de
propriedade privada sobre o solo é a característica dominante de
praticamente todas as sociedades, com exceção daquelas surgidas a
partir do primeiro milênio ante
antesde
de Cristo,
Cristo na Europa Ocidental e
no Oriente Médio. A propriedade privada sobre o solo aparece
como atípica na experiência da Humanidade, contrariamente ao
que Thornton induz a pensar. Nem a China, nem a Índia, nem as
sociedades pré-colombianas americanas conheciam a propriedade
privada sobre a terra.
Como afirma esse historiador, se a escravidão na África esta-
va condenada a crescer e a constituir-se na forma principal do exer-
cício da propriedade privada, por causa da propriedade coletiva do
solo, semelhante processo deveria também ter afetado as regiões
que apresentassem características de propriedade semelhantes às do
Continente Africano (Suméria, Irã Elamita, Índia pré e pós-
dravidiana, China Imperial, as sociedades pré-colombianas Olmeca,
Maia, Asteca, Inca). Não sendo assim, a premissa de John Thornton
perde credibilidade.
198
principais destinos o Oriente Médio e a Ásia Meridional, e que se
desenvolveram pelo Oceano Índico, através do Saara, da Líbia, do
Egito, do Sudão e do Mar Vermelho. Outro destino do tráfico
negreiro transaariano foi a África Setentrional ocupada pelos árabes
e, posteriormente, a Península Ibérica, também sob ocupação ára-
be. Porém, até agora, tem-se enfatizado, principalmente, o tráfico
negreiro através do Oceano Atlântico com destino às Américas,
organizado pela Europa Ocidental, omitindo os tráficos negreiros
anteriores. Esta omissão deve ser corrigida.
Elikia M’Bokolo, pertinentemente, assinalou a anteriorida-
de absoluta dos tráficos negreiros do Oriente Médio protagonizados
pelos Estados escravagistas importadores dessa região. “Muito an-
tes do tráfico europeu, os africanos tinham sido objeto de um co-
mércio regular em duas vias de acesso – o Saara e o Oceano Índico
– que os punham em contato com o mundo exterior” (2003, p.
208). Embora o volume desses tráficos empreendidos pelas socie-
dades importadoras do Oriente Médio continue sendo objeto de
avaliações divergentes, não se pode continuar ignorando o fato de
que foram eles que abriram o caminho para os demais tráficos:
199
As longas relações da Arábia com a África, pelo mar
Vermelho e pelo Oceano Índico, explicam que os ára-
bes se encontrem em tão bom lugar na vasta galeria
dos negreiros. Este comércio, começado em pequena
escala e certamente nos dois sentidos antes do Islã,
conheceu uma brusca mudança de escala após a prega-
ção do profeta Muhammad e a expansão árabe na Áfri-
ca do Norte.
Se a existência de correntes de tráfico entre a África
Negra e a Arábia não permite a menor dúvida, as carac-
terísticas originais deste primeiro comércio negreiro con-
tinuam a suscitar problemas: os nossos conhecimentos
são demasiado fracos em tudo que se relaciona tanto
com o seu desenvolvimento e à sua evolução no tempo,
quanto com as suas zonas de abastecimento ou ainda o
volume do tráfico. Faltam, com efeito, quase totalmente
as fontes entre o fim do século I, época durante a qual
foi redigido o Périplo do Mar Eritreu, e o século VII,
época durante a qual se começou a dispor de fontes ára-
bes. É, contudo, possível reconstruir alguns grandes tra-
ços das relações entre África Negra e as regiões vizinhas.
Estas relações decorreram principalmente utilizando o
oceano Índico e o Saara.
Uma primeira corrente do tráfico, provavelmente a
mais importante, ligava a costa oriental da África com a
Arábia. Os escravos apareciam aí como uma das merca-
dorias, contando entre as mais procuradas, sendo as
outras o marfim, o ouro e até a madeira. A parte respec-
tiva destas diferentes mercadorias continua a ser desco-
nhecida (Idem, ibidem, p. 208-209).
200
Península Arábica, sul da Arábia e o Iêmen.34 Axum vivia em esta-
do de guerra quase permanente com seus vizinhos do sul da Arábia
(KETE ASANTE, 2007, p. 94-106), os quais conquistara e gover-
nara durante meio século (528-575 d.C.). Assim, segundo os re-
sultados da situação militar, os mercadores abissínio-axumitas im-
portavam escravos árabes prisioneiros de guerra, ou exportavam
escravos africanos provindos das campanhas contra seus vizinhos
do Sudão:
34
Ver: SCHIPPMANN, 2001.
201
eram formados por brancos, originários da Pérsia ou dos
países da Europa (Idem, ibidem).
202
poeta Al-Mutanabbi, cuja pluma muito frequentemente se
revela particularmente atroz. É ele que descreve, entre o
mais, que “a moral do escravo negro se encontra inteirinha
nos seus testículos mal cheirosos e nos seus dentes”. (...)
O racismo é pelo contrário mais franco e solidamente
assente em Al-Masudi (896-956) que, em virtude da
sua insaciável curiosidade e da sua gigantesca cultura,
representa de certa maneira a síntese dos argumentos e
das opiniões hostis aos negros. É ele que nas Pradarias
de Ouro, constitui os africanos como categoria particu-
lar, a mais degradada entre os negros. A substância dos
seus argumentos, retomados por outros árabes, não devia
conhecer mudança alguma mais tarde (Idem, ibidem, p.
212-213, 233).
35
Ver: SEGAL, 2002; GORDON, 1989; LAFFIN, 1982; LEWIS, 1992.
203
O ESTADO “RAPTOR-EXPORTADOR”
O papel desempenhado, nas diferentes épocas, pelas elites
dominantes africanas que se associaram ao tráfico de escravos pro-
movidos pelas sociedades escravistas do Oriente Médio (árabes,
turcos, iranianos) e, mais tarde, da Europa Ocidental, é um aspecto
importante nos estudos sobre a África. Qual foi a importância para
o comércio exterior desses Estados burocráticos africanos da expor-
tação de mão de obra servil para os mercados extra-africanos, parti-
cularmente entre os séculos VIII e XVI (quase um milênio), ou em
direção das Américas entre os séculos XVI e XIX?
Uma tendência crescente por parte de alguns africanistas36 con-
siste em colocar o Estado raptor-exportador no centro da problemáti-
ca negreira, fazendo recair sobre ele todo o peso da responsabilidade
histórica desses tráficos, do qual ele seria o vigoroso pioneiro e
impulsionador. Assim, as sociedades escravistas extra-africanas teri-
am sido meros recipientes comerciais de um superabundante estoque
de carnehumano
estoque humanaoferecido
oferecida pelos “sátrapas africanos”,, ao qual
qual os
oseuro-
euro-
peus simplesmente souberam comercializar eficientemente, para pro-
mover seu próprio desenvolvimento econômico e político.
Historiadores como Phillip D. Curtin, James A. Webb, Roger
Anstey e John Thornton têm elaborado novas interpretações em
torno da destruição e do subdesenvolvimento do Continente Afri-
cano, dos tráficos negreiros e em relação à escravidão propriamente
racial imposta no Continente Americano. Para esses africanistas,
trata-se de uma questão de pura oferta e demanda; uma mera ope-
ração “comercial afro-européia” entre duas partes, em pé de igual-
dade e com benefícios iguais, na qual as noções de cultura, ética ou
moral são subsidiárias. No afã de colocar as elites mercadoras-raptoras
36
Essa tendência é parte das novas correntes revisionistas e negacionistas cujo
objetivo, sob o disfarce da investigação científica, é o de minimizar e de banalizar o
grande crime contra a Humanidade que constituíram a escravidão racial e, parale-
lamente, os tráficos negreiros transoceânicos.
204
africanas em pé de igualdade com os interesses imperiais externos
dos quais eram meros executantes locais, esses pesquisadores esti-
cam os “fatos” além do que é possível demonstrar com dados
verificáveis, transformando hipóteses em asseverações.
Os Estados africanos, principalmente litorâneos, envolveram-
se, efetivamente, nos tráficos negreiros, contribuindo assim para o
enfraquecimento de suas civilizações e para a subseqüente destrui-
ção do próprio Continente Africano. Esse fato merece uma nova
análise, bem distinta do enfoque marcadamente ideológico dos
revisionistas, que consiste em enquadrar as sociedades africanas em
blocos monolíticos, desconhecedoras das lógicas de classes sociais,
ao tempo que se busca “desculpar” as sociedades escravistas do Ori-
ente Médio e da Europa. Thornton, por exemplo, afirma que “(...)
a evidência mostra que foram as decisões dos Estados africanos que
determinaram a participação nesse específico tipo de comércio, e
nem tanto a pressão da Europa” (2004, p. 169-170). Sem aduzir
verdadeiros dados que pudessem, incontestavelmente, sustentar a
sua afirmação, argumenta:
E, seguidamente, afirma:
205
nas sociedades e sistemas legais africanos. A instituição da
escravatura era disseminada na África e aceita em todas
as regiões exportadoras, e a captura, a compra, o trans-
porte e a venda de escravos eram circunstâncias normais na
sociedade africana. A organização social preexistente foi,
assim, muito mais responsável do que qualquer força exter-
na para o desenvolvimento do comércio atlântico de es-
cravos (Idem, ibidem, p. 152, grifo nosso).
206
DESVINCULANDO IDEOLOGIA E REALIDADES HISTÓRICAS
Uma análise ancorada em uma perspectiva histórica neutra
fará ressurgir o fato de que, desde os alvores do século VII até a
grande hecatombe do tráfico pelo Atlântico, o Estado raptor-ex-
portador sempre foi uma conseqüência, assim como uma condição
sine qua non, da escravidão racial do Oriente Médio e da Europa
Ocidental. Foram os empreendimentos negreiros dessas sociedades
escravistas que suscitaram, por meios violentos,37 e alimentaram,
por meios comerciais, a aparição dessa monstruosidade histórica
contida na existência de Estados voltados para a caça de seres huma-
nos com fins de exportação.
Isto também equivale a dizer que as elites do Estado raptor-
exportador foram incapazes de interpretar o mundo ideológico de
seus parceiros extra-africanos, dominado totalmente pelo racismo,
ou de calcular as conseqüências ulteriores de suas práticas pouco
comuns. Isso explicaria o fato de que as classes abastadas que gover-
navam essas sociedades economicamente periferizadas ajudassem,
na realidade, a armar a tragédia africana; fizeram-no, simplesmente,
porque representavam interesses setoriais suficientemente retrógra-
dos e baseados no afã de lucro e de ostentação, como para aceitar e
promover a destruição de suas próprias sociedades.
Ilustração prototípica dessa situação se encontra nos casos do
Kanem-Bornu, Império Subsaariano surgido no século X (900-
1800 d.C.), do próprio Império de Axum (500 a.C.-900 d.C.) ou,
posteriormente, do Império Songai (1400-1500 d.C.). A partir de
meados do período neoclássico (200-1500 d.C.), a lógica raptora-
exportadora se converteu numa dinâmica essencial de comércio
exterior para os Estados do continente que mantinham um conta-
to regular com o mundo extra-africano. Não obstante, a prolifera-
37
Os árabes impunham um imposto a seus clientes africanos, o bakt, segundo o
qual estes últimos deveriam entregar um número anual de pessoas escravizadas para
não ser militarmente atacados e destruídos.
207
ção do Estado raptor-exportador protótipo, voltado prioritariamente
para a caça de seres humanos com a finalidade do tráfico, foi um
fenômeno relativamente tardio, implicando estruturas e dinâmicas
próprias ao período Ressurgente.
A maioria das entidades políticas raptoras – tais como o Es-
tado do Maniema, sob Tippu-Tip (Hamed bin Mohamed); o Im-
pério Lunda de Katanga, sob Mwena Msiri; ou o Reino de Daomé,
sob Adandozan – eclodiu em pleno período Ressurgente. Sabemos
que esse período foi marcado pela grande violência que se seguiu às
agressões expansionistas das elites dominantes, empenhadas em res-
suscitar as lógicas dos extensos Estados-Impérios multinacionais
cosmopolitas que corresponderam aos períodos clássico e
neoclássico: Egito, Kerma, Kush, Meroé, Axum, Mwenemotapa,
Gana, Mali, Songai... (SHINNIE, 1974).
Essa dinâmica ressurgentista deu lugar às chamadas “revolu-
ções islâmicas” entre os séculos XVIII e XIX na África Ocidental; à
expansão violenta e desagregadora, no Sudão Ocidental, do impe-
rialismo tukulor, sob El Hajj Omar; ao imperialismo haussá, sob
Ousman Dan Fôdio, na Nigéria atual; e ao imperialismo zulu, sob
U Chaka, na África Austral. Infelizmente, o período ressurgentista
coincidiu com a extensão devastadora da influência militar, política
e comercial européia para o Continente Africano e para o resto do
mundo. Muitas das elites burocráticas africanas, dessa época, passa-
ram a desempenhar o papel ativo de “associados” e “coadjuvantes”
no holocausto negreiro que devastou o Continente Africano.
Esse conflito introduz uma problemática maior, ainda não
estudada com o cuidado e o rigor necessários. Trata-se de uma ques-
tão tão importante quanto o ainda não resolvido problema do por-
quê a África se haver convertido no terreno exclusivo da caça de
mão-de-obra escrava, atendendo, primeiro, às demandas do Orien-
te Médio e, depois, às da Europa Ocidental.
Assim, doravante, as pesquisas deverão se centrar, cada vez
mais, no problema da análise das próprias estruturas africanas, com
o fim de identificar que razões orgânicas podem contribuir para a
208
explicação do crescente desequilíbrio, à custa dos africanos, que surgiu
entre a África e o Oriente Médio, e, depois, a Europa Ocidental.
209
É nesse contexto de crescente subalternização que devemos
inserir as conversões ao islamismo das elites aristocráticas da África,
assim como as ostentosas e extravagantes peregrinações38 ao Orien-
te Médio desses soberanos africanos (pelo menos dezesseis), fenô-
meno que, sobretudo, teve como conseqüência esvaziar os cofres
públicos:
38
No século XIV, o soberano Kankan (ou Mansa) Musa, imperador do Mali,
realizou sua célebre peregrinação a Meca (1324-5). De volta ao Mali, esse sobera-
no, assim como seus sucessores se dedicaram de corpo e alma a submeter, militar-
mente, seus vizinhos ao Islã. Com as dinastias dos Askias, do Império Songai suces-
sor, a fúria islamizadora cobrou dimensões inusitadas.
210
nunca ocorreu39. Na realidade, esses fatos foram emblemáticos
da “troca desigual” descrita por Emmanuel Arghiri (1969), na qual
mercadorias de luxo e supérfluos provindos do exterior eram tro-
cados por matérias-primas (ouro, sal, marfim, madeiras) e pela
mão-de-obra escravizada (escravos). Essa é a lógica por trás da
islamização e da cristianização voluntárias das elites dominantes
africanas, tanto do período Neoclássico quanto do Ressurgente:
abandono imediato de nomes matronímicos africanos em favor
de nomes masculinos árabes e/ou europeus; abandono das religi-
ões africanas, dos costumes e dos usos ancestrais, em favor das
religiões e usos importados do Oriente Médio e da Europa.40
O caso da conversão da realeza ressurgentista do reino do Congo
é emblemático, não somente por ter se repetido em todas as partes da
África de modo igual, seja em beneficio do islamismo ou do cristia-
nismo, desde o reino de Axum até o reino de Tekrur, mas por ser
ilustrativo de um dilema comum aos períodos Neoclássico e
Ressurgente. Balandier descreveu como a realeza congolesa ficou des-
lumbrada nos primeiros encontros com os enviados do rei de Portu-
gal, mostrando-se prontos para a conversão ao cristianismo:
39
Ver neste sentido, as interessantes comparações feitas pelo viajante árabe, Abu
Abdallah ibn Battuta, após haver visitado o reino de Gana (HAMDUN &
KING, 2003).
40
As dinastias dominantes do Império Songai, verdadeiros vassalos econômicos e
ideológicos do mundo árabe, cultivaram o mimetismo cultural e o imperialismo
agressivo até atingir ápices de fanatismo: guerras de extermínio contra seus vizinhos
com a finalidade de impor o Islã; ferozes guerras de rapina à procura de escravos
para a exportação para o mundo árabe e para a exploração doméstica; importação
do sistema de harém; importação da prática de castração industrial para a produção
de eunucos; repressão do mundo feminino; abolição da sucessão matrilinear e
imposição de estruturas patrilineares retrógradas; destruição das religiões africanas
autóctones; mudança dos nomes patronímicos para nomes árabes; etc.
211
de cetim e seda, panos da Holanda, vestimentas suntuo-
sas, crinas de cavalo decoradas em prata, diversas campa-
inhas... e pombos vermelhos. O rei, Nzinga a Nkuwu,
pediu para tornar-se cristão juntamente com alguns no-
táveis. Para dar mais solenidade e fausto ao acontecimen-
to, os portugueses quiseram esperar que fosse construída
a primeira igreja (a primeira construção em pedra) da
capital. O rei não tinha muita paciência, pois seu “de-
pendente”, o mani Soyo, já havia recebido o batismo (...).
Ele foi, ao que parece, batizado a 3 de maio de 1491 e
adotou o nome de João I, em deferência ao soberano português.
No mesmo dia, alguns “príncipes” do Kongo foram tam-
bém batizados, entre eles o chefe da província de Mbata;
eles não deixaram, a partir de então, de lembrar esta ante-
cedência nas fórmulas honoríficas de cada uma de suas di-
visas. Quanto à rainha, ou nem banda, esta teve que esperar
que o “governador” da província de Nsundi e futuro her-
deiro do reino, Nzinga Mbemba, voltasse à capital antes
de receber o batismo. A cerimônia parece que teve lugar a
4 de junho de 1491; a soberana adotou o nome da rainha de
Portugal, Eleonor, e o chefe de Nsundi, o nome de Afonso,
que ele devia tornar glorioso (BALANDIER, 1965, p. 32).
212
aos imperativos da verdade histórica. Imperativos possíveis se sepa-
Se separarmos
rarmos as razões transparentemente ideológicas que estão por trás
de muitas das distorções, nós nos defrontamos com outro tipo de
realidade, problemática e complexa, porém muito mais rica anali-
ticamente que qualquer asseveração simplória. A emergência desses
execráveis Estados, cuja função principal se converteu na organiza-
ção sistemática da caça de seres humanos e nas guerras de rapina,
ilustra perfeitamente a realidade de que se está na presença de um
processo de decomposição interna e de satelitização das sociedades
africanas como conseqüência de uma troca desigual originada no
contato cada vez mais extenso entre elas e as formações sociais
mercantilistas do Oriente Médio, primeiro, e da Europa Ociden-
tal, depois.
213
Songai...) que entraram em contato com as sociedades escravagistas
importadoras do Oriente e do Ocidente se viram afetados
grandemente pela forte demanda da “mercadoria” humana, che-
gando esta a converter-se, rapidamente, num eixo central das rela-
ções árabe-africanas e, depois, euro-africanas. Com a finalidade de
“reequilibrar” suas relações com o Ocidente e com o Oriente, os
governantes africanos fizeram tentativas de apreender e utilizar as
técnicas européias, de modo semelhante ao que fizera o Japão.
Entretanto, como explicara Rodney, os africanos nunca rece-
beram um aval dos europeus para o repasse dessas técnicas. Vale a
pena, a esta altura, interrogar-se sobre o porquê dessa altiva decisão
européia para com seus “parceiros” comerciais africanos (muitos dos
quais terminaram suas carreiras nos porões dos próprios veleiros
negreiros que eles tinham assiduamente ajudado a carregar com es-
cravizados aprisionados). Ignacy Sachs talvez tenha proporcionado
o início de uma explicação quando argumentou que, durante todo
o período medieval, bem antes do contato direto com o “continen-
te negro”, os europeus haviam desenvolvido uma visão global, alta-
mente depreciativa da África e dos africanos. Conforme explicou o
autor:
214
ainda viva sobre o negro como símbolo de trevas é
reativada, e certos estereótipos sobre a afetividade e a
sexualidade dos negros, por oposição à cerebralidade dos
europeus, iniciam uma longa e tenaz carreira, cujo fim,
infelizmente, ainda não vislumbramos (SACHS, 2004,
p. 686-689).
215
feminino imprimiu indelevelmente sua marca de coletivismo
distributivo, tenha evoluído em um sentido estritamente contrário
à lógica societária que, finalmente, chegaria mediante a conquista
militar a se estender pelo resto do mundo?
O mundo moderno, o capitalismo e a indústria são incom-
preensíveis, e inexplicáveis, sem os três fatos fundantes da
Modernidade: a) a brutal investida da Europa Ocidental no Conti-
nente Africano; b) o empreendimento de um tráfico negreiro
transoceânico e de grande porte que envolveu dezenas de milhões
de seres humanos; e c) a imposição aos africanos de raça negra, nas
Américas, e por mais de três séculos, de um sistema de escravidão
racial, que gerou as fabulosas riquezas para o mundo Ocidental,
dando origem ao capitalismo industrial.
Ora, a escravidão das Américas se distingue, fundamental-
mente, de todas as formas de escravidão que a precederam na histó-
ria. Trata-se da primeira experiência na história em que uma raça
inteira foi especificamente almejada para a escravização. Esse dife-
rencial merece um novo enfoque metodológico e teórico da natu-
reza das estruturas inerentes às plantation das Américas. Sem elas,
como o demonstrou Eric Williams (1975), o capitalismo não teria
surgido, pelo menos na versão que hoje conhecemos.
Assim, o racismo – fenômeno livremente surgido da consci-
ência do homem, portanto oriundo das instâncias que denomina-
mos de culturais – teria desempenhado um papel determinante na
elaboração da trama específica que desembocou no choque brutal
entre o Ocidente e o resto do planeta. Sabemos que foi deste cho-
que que surgiram as condições condizentes à Modernidade propri-
amente capitalista, por meio da Revolução Industrial na Inglaterra
protestante.
Em todo caso, é sabido que, com a queda final do continen-
te africano, há cinco séculos, o mundo despencou na barbárie pla-
netária (DIOP, 1991), marcada pelos genocídios americanos, o gi-
gantesco tráfico negreiro Atlântico, a imposição da escravidão racial
nas Américas, a extensão imperialista da Europa sobre o resto do
216
mundo, e, naturalmente, o surgimento da atual ordem capitalista
mundial. Esses acontecimentos constituíram-se nas bases para a
conseguinte planetarização do racismo.
São esses os elementos que, de modo algum, podem, ou de-
vem, continuar a ser esvaziados de sentido – negados ou esquecidos
– ao se tratar da compreensão do mundo moderno, do porquê do
surgimento do sistema mundial atual e da planetarização do racis-
mo. Sem estes elementos, a inteligibilidade da história humana se
vê comprometida e desvanece a possibilidade de se chegar a uma
solução de um dos problemas mas espinhosos que emperram a
evolução da humanidade: o problema racial.
217