Science">
Nothing Special   »   [go: up one dir, main page]

Artigo - Lotman e Semiótica Da Cultura - Kirchof

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 11

Revista Prâksis

ISSN: 1807-1112
revistapraksis@feevale.br
Centro Universitário Feevale
Brasil

Kirchof, Edgar Roberto


YURI LOTMAN E SEMIÓTICA DA CULTURA
Revista Prâksis, vol. 2, julio-diciembre, 2010, pp. 63-72
Centro Universitário Feevale
Novo Hamburgo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=525552623010

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Prâksis - Revista do ICHLA

YURI LOTMAN E SEMIÓTICA DA CULTURA

Edgar Roberto Kirchof1

RESUMO
O presente artigo aborda alguns dos principais conceitos teóricos desenvolvidos por Yuri Lotman e a assim
chamanda Escola de Tartu, também conhecida como Semiótica da Cultura. Inicialmente, é introduzido
um breve panorama histórico quanto às reflexões desenvolvidas no âmbito da Escola de Tartu, além de
serem apresentados seus principais representantes. Em seguida, o artigo apresenta o conceito de sistema
modalizador como uma das principais e mais profícuas contribuições dessa escola para os estudos de
semiótica e de cultura até os dias atuais. Por fim, são abordadas as reflexões tardias realizadas por Yuri
Lotman, a partir da década de 80 do século XX, quando o semioticista russo deslocou suas discussões na
direção dos conceitos da biosfera e da semiosfera.

ABSTRACT
The present article approaches some of the main theoretical concepts that were proposed by Yuri Lotman
and the so called Tartu Semiotics School , also known as Semiotics of Culture. It begins by presenting a brief
historical overview about the ideas developed within the Tartu School as well as their main members. Then
the article introduces the concept of “modelling systems” since it is one of the most important contributions
of that school to the field of semiotics as well as to cultural analysis as of today. Finally the article addresses
the latest epistemological period of Yuri Lotman, from the 80s of the twentieth centurny onwards, when the
Russian semiotician focused his analysis on the concepts of biosphere and semiosphere.

A ESCOLA DE TARTU
Yury Lotman nasceu a 28 de fevereiro, em Petrogrado, na Rússia, e viveu até 1993. Após atingir o grau
de doutor em filologia, tornou-se professor na Universidade de Tartu, na Estônia. A partir de 1964, tornou-
se o editor da revista publicada pela Universidade de Tartu, Estudos de sistemas do signo (KRISTEVA:
1994). Além disso, como ressalta Sebeok (1998), por ocasião da fundação da Associação Internacional de
Estudos Semióticos, em Paris, a 21 de janeiro de 1969, Lotman foi eleito, in absentia, como um dos quatro
vice-presidentes dessa associação.
Devido à sua influência na Universidade de Tartu, de um lado, e devido ao fato de o regime stalinista,
na Rússia, ter dificultado os estudos de vários semioticistas russos, com o tempo, ocorreu a transferência

1
Possui pós-doutorado na área da Biossemiótica na Universidade de Kassel, Alemanha. Atualmente, é coordenador
do curso de Letras e professor adjunto da Universidade Luterana do Brasil, atuando como docente e pesquisador no
Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) e, como docente, no curso de Letras. E-mail: ekirchof@hotmail.
com.

63
Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes

da semiótica russa para a Estônia, o que possibilitou de Tartu não procuravam estudar o signo isolado
não somente a publicação de vários textos sobre em sua relação com o processo da semiose (o que
semiótica a partir de Tartu, como também a formação caracterizaria as escolas de Peirce e de Morris,
de um grupo de estudiosos da área, a partir da na concepção de Lotman), mas sim, a linguagem
década de 1960, que ficou conhecido como a Escola como um sistema semiótico (o que caracterizaria,
de Tartu e, em alguns contextos, como o grupo segundo Lotman, a tradição da escola saussuriana).
representante da Semiótica da cultura, pelo fato de Devido a tal predileção pela concepção estrutural
priorizar o estudo de vários âmbitos da cultura a da linguagem, Kristeva (1994) afirma que Lotman
partir da semiótica. Dentre os seus representantes, foi considerado o primeiro estruturalista soviético,
destacam-se Vyacheslav Ivanov, T. V. Civ’jan, B. F. já com a publicação de seu livro A delimitação dos
Egorov, T. J. Elizarenkova, B. M. Gasparov, M. B. conceitos lingüísticos e filológicos da estrutura, em
Mejlax, A. M. Piatigorsky, B. Ogibenin, I. I. Revzin, 1963.
O. G. Revzina, V. N. Toporov, Boris. A. Uspenskij Sanchez subdivide essa segunda fase da
(SEBEOK, 1988) e outros. Alguns textos desses produção de Lotman em dois períodos: o período
teóricos podem ser lidos, em português, na edição de 1964 a 1970 foi especialmente produtivo
organizada por Bóris Schneiderman, Semiótica quanto ao estudo da literatura. Nessa época, as
russa (1979). suas pesquisas se orientaram principalmente pela
Como esclarece Nöth (2000, p. 97), a Escola busca de analogias entre a língua natural e outros
de Tartu não desenvolveu uma teoria semiótica sistemas de signo, como o mito e a própria arte,
unificada, pois seus fundamentos teóricos são em sentido amplo. De 1970 em diante, houve um
bastante pluralistas, e os temas abordados, muito interesse mais profundo pela tipologia da cultura,
variados, apesar de a maior parte de suas pesquisas concebida como sistema de sistemas. As pesquisas
estar ligada à semiótica aplicada. Segundo desse período concentraram-se, principalmente,
Cáceres (apud SANCHEZ, 1989, p. 259), algumas no modo como cada sociedade concebe o que é
das principais características dessa escola são ‘próprio’ e o que é ‘estranho’, a partir de seus mitos,
a interdisciplinaridade, a aproximação entre as ritos, literatura, arte, e assim por diante.
ciências exatas e as ciências humanas, o estudo A partir dos anos 80, aprofundando os estudos
da literatura no marco da história do pensamento realizados na fase anterior, Lotman desenvolve
social, o estabelecimento do conceito sistema um conceito inovador para tratar da cultura como
modalizador, o interesse pela história da Rússia, por sistema de sistemas: a semiosfera. Em poucos
todas as formas de comunicação humana, a ênfase termos, pode-se dizer que a semiosfera é o oposto
no estudo do surgimento, do desenvolvimento e da da biosfera. Ao passo que a segunda compreende
tipologia das culturas e, talvez o mais importante: o o mundo da natureza ainda não organizada a
tratamento de todas essas formas de comunicação partir de qualquer código ou sistema semiótico, a
como linguagem ou sistemas de signos. primeira corresponde ao mundo da semiose, em
Iury Lotman foi o principal representante da que funcionam os sistemas semióticos, responsáveis
Escola de Tartu. De fato, devido à forte influência pela comunicação. A cultura, sendo o lugar da
de Lotman sobre esse grupo, houve quem afirmasse semiosfera, subdivide-se em diferentes linguagens,
que Iury Lotman é a Escola de Tartu (SANCHEZ, criando-se, dessa forma, ‘subsemiosferas’, que
1996, p. 256). Sanchez (1996, p. 253) divide a sua adquirem uma identidade própria a partir da
produção a partir de três fases. De 1950 a 1964, maneira específica como organizam a informação.
Iury Lotman dedica-se principalmente ao estudo No entanto, ao contrário do que se poderia, talvez,
da história da literatura russa, especialmente os supor, Lotman não acredita que tais sistemas devam
séculos XVIII, XIX e XX. De 1964 a 1974, ocorre ser estudados de forma abstrata, fora do tempo e
a transferência das investigações semióticas de do espaço em que surgem e são atuantes, pois todo
Moscou para Tartu, surgindo, dessa forma, a Escola sistema é dinâmico e pode variar de contexto para
Semiótica de Tartu propriamente dita. A partir da contexto. O mito, a arte, a religião, o rito, enfim,
década de 80, Lotman introduz os conceitos biosfera todos os sistemas culturais, na medida em que
e semiosfera no âmago de suas principais reflexões. modalizam o real, criam mundos culturais paralelos
No que tange à semiótica, os semioticistas (SANCHEZ, 1989, p. 260).

64
Prâksis - Revista do ICHLA

A SEMIÓTICA DA CULTURA seguintes objetivos:


O grupo da Escola de Tartu, com base no a) descrever os principais tipos de códigos
legado dos formalistas russos, mas também a partir culturais, responsáveis pela formação das
do estruturalismo saussuriano e hjelmsleviano, da ‘línguas’ ou ‘culturas isoladas’;
teoria da informação, da psicologia cognitiva e outras b) descrever suas características comparativas;
áreas, priorizou a abordagem semiótica de vários c) determinar os universais das culturas
âmbitos da cultura, como a literatura, o cinema, humanas;
o folclore, a religião, a estética, a psicologia da d) construir um único sistema das características
percepção, a semiótica do jogo de xadrez e de cartas, tipológicas dos principais códigos culturais e
das regras das boas maneiras, da comunicação, da das propriedades universais da estrutura geral
narrativa, da mitologia e da história, da metáfora e da ‘cultura da humanidade’.
da tipologia da cultura (NÖTH, 2000, p. 97). Apesar Por outro lado, Lotman adverte que não se
de não terem desenvolvido uma teoria semiótica deve considerar um texto/fala/mensagem cultural
unificada, os teóricos de Tartu são considerados os simplesmente como a manifestação de um único
“atuais semioticistas soviéticos” (SCHNAIDERMAN, sistema/código/língua, visto que “nenhum código,
1979). por mais hierarquicamente complexo que tenha sido
Lotman via como possível o estudo semiótico ele construído, pode decifrar, de modo adequado,
de toda a cultura, desde que fosse considerada tudo o que foi realmente dado no nível da fala do
como ‘informação’: “A compreensão da cultura texto cultural. Deste modo, o código da época não
como informação determina alguns métodos de é a cifra única, mas a predominante” (LOTMAN,
pesquisa. Ela permite examinar tanto etapas isoladas 1979a, p. 35).
da cultura como todo o conjunto de fatos histórico- Uma das especificidades da escola de Tartu,
culturais na qualidade de uma espécie de texto portanto, é a abordagem das manifestações culturais
aberto, e aplicar em seu estudo métodos gerais da em analogia com fenômenos linguísticos: “A cultura
Semiótica e da Lingüística estrutural” (LOTMAN, edifica-se sobre a língua natural e sua relação com
1979a, p. 32). ela constitui um de seus parâmetros essenciais”
Percebe-se, já a partir da citação acima, a (LOTMAN, 1978a, p. 37). A consequência mais
influência clara dos conceitos saussurianos sincronia imediata dessa tese é que todos os âmbitos
(etapas isoladas da cultura) e diacronia (o conjunto culturais (religião, artes, ciências, folclore etc.)
de fatos histórico-culturais), com a ressalva de que, são considerados sistemas secundários em relação
contrariando Saussure, Lotman sugere também ao sistema da língua natural, este sim, o sistema
o estudo diacrônico e o estudo de elementos primário. Em outros termos, de forma geral, os
extratextuais. Lotman (1979a, p. 33) também propõe semioticistas de Tartu acreditam que, em última
que a abordagem semiótica da cultura se divida a análise, a consciência humana é linguística e/ou
partir de dois outros conceitos saussurianos: a fala e a semiótica e que, consequentemente, “todos os
língua [ou seus respectivos equivalentes mensagem aspectos dos modelos sobrepostos à consciência [...]
e código, na terminologia de Jakobson]: a realidade podem ser definidos como sistemas modalizadores
empírica de uma dada cultura (um texto cultural secundários” (LOTMAN, 1978b, p. 37).
específico) corresponde, nessa perspectiva, ao nível Assim sendo, as várias manifestações da cultura,
da fala/mensagem, ao passo que o sistema de uma pelo fato de possuírem uma espécie de essência
cultura, teoricamente reconstruído, corresponde ao linguística, podem ser compreendidas como
nível da língua/código. Lotman tende a equiparar o sistemas de comunicação, cuja especificidade é a
nível da língua àquilo que denomina de estruturas capacidade de veicular mensagens ou informações.
extratextuais. Para o especialista em tipologia da O aparato semiótico, nesse sentido, viabiliza
cultura, é o segundo aspecto que mais importa, a decifração ou decodificação das mensagens
pois permitirá chegar a uma ‘hierarquia de códigos emitidas por sistemas como o mito, a religião, o
historicamente formada’, elucidando problemas folclore, as artes, entre outros.
relativos à autoconsciência social, à organização Por outro lado, contudo, os sistemas da cultura
das coletividades e à auto-organização da não veiculam informações de forma neutra: ao
personalidade. Logo, a tipologia da cultura tem os transmitirem suas mensagens, transmitem, a partir

65
Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes

do próprio código pelo qual são formados, um informação veiculada pelo código da matemática
determinado modelo ou recorte da realidade, o se apresentará de forma extremamente abstrata, ao
que levou os semioticistas de Tartu a formular o passo que, pela religião, a informação será veiculada
conceito de sistema modalizador (ou modelizante) de forma mais concreta. O código matemático
secundário para definir os diferentes códigos institui uma semântica monossêmica: apenas um
culturais. Nas palavras de Zalizniak, Ivanov significado deve ser apreendido pelo receptor como
e Toporov (1979, p. 81), “estudando todo o correto; o código religioso, por sua vez, institui
conjunto dos sistemas de signos que constituem uma semântica pluriestratificada, possibilitando a
o objeto da Semiótica, é possível estabelecer que veiculação de mais do que um significado, embora
os vários sistemas de signos modalizam o mundo exija que o receptor iniciado saiba escolher, dentre
de diferentes maneiras”. A semiótica da cultura, as várias possibilidades interpretativas, apenas uma
portanto, procura estudar, a partir de conceitos (LOTMAN, 1978b, p. 127).
provindos da semiótica (e de outras áreas afins), os Lotman faz distinção entre dois tipos de sistemas
seguintes elementos: de modalização: sistemas modalizantes primários e
a) a estrutura a partir da qual os vários âmbitos sistemas modalizantes secundários. Os primeiros
da cultura (as línguas naturais, o mito, a religião, correspondem às línguas naturais e, geralmente,
a arte, a ciência etc.) produzem e transmitem demandam apenas uma estrutura de significação
informações; para existirem, ou seja, um único cruzamento
b) a maneira específica como cada um desses entre expressão e conteúdo; os segundos (como
âmbitos, na medida em que serve à função as artes, a religião etc.), por sua vez, a) possuem
comunicativa, também é capaz de modalizar o sistema primário (a língua natural) como base,
a realidade. mas b) recebem, posteriormente, “uma estrutura
No presente estudo, por uma questão de complementar, secundária, de tipo ideológico,
delimitação, será fornecido apenas um resumo ético, artístico ou de qualquer outro tipo” (LOTMAN,
simplificado acerca do modus operandi da 1978b, p. 79).
modalização e, por fim, à guisa de conclusão, serão Por outro lado, é necessário esclarecer que a
apresentadas as discussões tardias de Lotman a modalização já ocorre na própria língua natural (o
respeito dos limites entre a biosfera e a semiosfera. sistema primário), embora em menor grau. Lotman
exemplifica o fenômeno através da língua russa: ao
A MODALIZAÇÃO passo que, no russo arcaico, as palavras honra e
Os pesquisadores de Tartu acreditam que a glória eram antônimos, no russo moderno, são tidas
linguagem não deve ser vista apenas como sistema por sinônimos. Esse fenômeno pode ser facilmente
de comunicação, mas também como sistema exemplificado através da evolução de qualquer
modalizador: ao mesmo tempo em que transmite idioma.
mensagens/informações, também cria os códigos/
ARTE/RELIGIÃO/MITO/FOLCLORE/etc. – sistemas secundários
modelos a partir dos quais o receptor deve decifrar
LÍNGUA NATURAL – sistema primário
tais informações. Assim, para Lotman (1978b, p.
37), cada código específico cumpre duas funções
Segundo Lotman, em última análise, “o
simultâneas, que estão ligadas indissoluvelmente:
objetivo da atividade semiótica é a transmissão de
um determinado conteúdo” (LOTMAN, 1978b, p.
a) a função de comunicação: transmitir
informações ou mensagens; 74). Para tanto, é necessário que se estabeleçam
b) a função de modalização: fornecer um ‘equivalências’ entre, pelo menos, duas ‘cadeias-
modelo determinado do mundo nos seus estruturas’ diferentes (ou entre dois determinados
contornos mais gerais. pares de elementos, diferentes por sua natureza),
denominadas, por Lotman, em linguagem
A modalização consiste, de forma resumida, no hjelmsleviana, de plano da expressão (o significante)
processo de conferir, à informação, um caráter, uma e plano do conteúdo (o significado).
forma ou um modelo específico, derivado do código a) Conteúdo extralinguístico determinado
através do qual é veiculada. Por exemplo, uma (derivado da semântica do signo).

66
Prâksis - Revista do ICHLA

b) Conteúdo formal imanente (derivado da complementares, secundárias, que podem ser de


sintaxe do signo). tipo ideológico, ético, artístico, religioso, lúdico etc.
Em última análise, o ‘signo’ corresponde Por exemplo, para a cibernética, o mundo se
ao cruzamento de, pelo menos, duas cadeias de transforma em uma espécie de “memória passiva da
estruturas num único ponto comum: a estrutura máquina”; para a matemática, o mundo se apresenta
de uma expressão e a estrutura de um conteúdo, de forma extremamente abstrata, ao passo que, pela
seja este extralinguístico ou puramente formal. religião, apresenta um nível mínimo de abstração
O processo da significação, em que surge o e, por isso mesmo, uma capacidade máxima de
significado, é chamado de transcodificação. Além modalização. Já as línguas naturais possuem uma
disso, a segunda das cadeias será o conteúdo, e a posição intermediária entre a matemática e a religião
primeira, a expressão. Geralmente, a ligação entre (ZALIZNIAK; IVANOV; TOPOROV, 1979, p. 81).
os dois planos é de ordem convencional, embora Lotman (1978b, p. 127) afirma que também
Lotman admita que alguns signos mantêm relação o texto científico fornece, como modelo, a
de semelhança ou icônica entre a expressão e o interpretação de uma lei geral, criando, como a
conteúdo. matemática, ideias abstratas. Por isso, é sempre
monossêmico ou monoplanar (pretende veicular
SIGNO apenas um significado por vez), sendo justamente
essa a qualidade que lhe confere valor. Já o texto
Primeira cadeia Segunda cadeia religioso, como se viu, é oposto ao texto científico
e possui uma “semântica pluriestratificada”,
Expressão Conteúdo pretendendo veicular vários significados de uma só
vez. Contudo, alguns de seus significados devem
Apesar de a modalização ocorrer de forma mais permanecer ocultos para receptores não iniciados,
intensa nos sistemas secundários, a própria língua revelando-se apenas para aqueles que já atingiram
natural também modaliza o conteúdo que transmite. certo grau em relação ao seu nível de santidade,
Nesse sentido, pode-se dizer que a natureza de uma de iniciação ou de conhecimento livresco. O texto
informação transmitida em russo, em alemão ou em artístico possui, em comum com o texto religioso, o
português está sujeita a particularidades semânticas fato de também ser polissêmico. Contudo, ao passo
provenientes de cada um desses idiomas. É que, no discurso religioso, os vários sentidos devem
por essa razão que uma tradução nunca capta ser percebidos de forma excludente, no discurso
absolutamente todos os sentidos inerentes ao texto artístico, ocorre a “recepção simultânea com mais
original. Além disso, dentro de um mesmo idioma, de uma significação” (p. 128).
pode-se codificar a informação na forma oral ou na Outro sistema modalizante muito estudado
forma escrita, o que também implica diferenças de pelos semioticistas de Tartu é o jogo, cuja estrutura é
modalização. extremamente semelhante à estrutura da arte. Assim
Outro aspecto a ser sublinhado é que, na como a obra artística, o jogo também se baseia
visão de Lotman (p. 37), o sistema primário da numa postura lúdica, opondo-se à seriedade da
língua natural não é apenas “um dos sistemas mais modelização imposta pela ciência. Além disso, as
precoces, mas também o mais poderoso sistema situações que impõe são convencionais, diferentes
de comunicação na coletividade humana. Pela das situações da vida real, que não são convencionais.
sua própria estrutura, ela exerce uma poderosa O jogo possui uma característica pedagógica, na
influência sobre o psiquismo dos indivíduos e em medida em que, pela convencionalidade que impõe,
muitos aspectos da vida social”. Os semioticistas permite a aprendizagem de um tipo específico de
de Tartu acreditam, portanto, que a consciência conduta, e uma característica psicológica, na medida
humana é semiótica em sua essência, o que os leva em que permite a possibilidade de uma vitória
a estudar todos os demais sistemas culturais criados convencional sobre adversidades invencíveis (como
pela humanidade como sistemas modalizantes a morte) ou sobre adversários muito poderosos.
secundários. Estes, por sua vez, equivalem às A arte aproxima-se do jogo principalmente no
estruturas em cuja base se encontra a língua natural. que diz respeito às suas características lúdicas;
Tais sistemas recebem uma ou mais estruturas mas dele também se distancia, pois a arte possui

67
Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes

interesse também na aquisição de conhecimentos para Lotman (p. 133), a modalização realizada
e não apenas na aquisição de habilidades; nesse pela obra de arte é uma espécie de síntese entre a
aspecto, a linguagem artística aproxima-se mais seriedade (monoplanearidade) da ciência e a alegria
da ciência do que do jogo. Em última análise, (biplanearidade) do jogo.

CÓDIGO CIBERNÉTICO A informação apresenta-se como memória passiva da máquina.

A informação apresenta-se de forma extremamente abstrata.


CÓDIGO CIENTÍFICO
O conteúdo é monossêmico.

A informação apresenta-se de forma pouco abstrata.


CÓDIGO RELIGIOSO O conteúdo é polissêmico.
Cabe, ao receptor iniciado, encontrar o conteúdo verdadeiro.

Não conserva informações e não elabora novos conhecimentos.


CÓDIGO DO JOGO
Possui, como fim, a aquisição de uma habilidade.

A informação apresenta-se de forma pouco abstrata.


CÓDIGO ARTÍSTICO O conteúdo é polissêmico.
O receptor não precisa optar por apenas um dos conteúdos possíveis.

Apesar de suas diferenças, todos os sistemas esse procedimento, que isola um conceito como
modelizantes secundários possuem, em comum, fundamento de toda a teoria, tem gerado uma visão
o fato de estarem sobrepostos ao sistema da língua atomizada da semiótica, segundo a qual “o objeto
natural, considerado como seu sistema primário. complexo se reduz a uma soma de objetos simples”
No entanto, Lotman (p. 79) admite que os sistemas (1996, p. 22).
secundários, de um lado, podem organizar seus A fim de superar aquilo que considera um
conteúdos segundo os meios comuns à língua atomismo em ambos os paradigmas semióticos,
natural, mas, de outro lado, podem fazê-lo também Lotman propõe que a semiótica não seja vista a
segundo meios provenientes de outros sistemas partir de sistemas isolados, mas sim a partir de um
semióticos. conjunto heteróclito de “formações semióticas de
diversos tipos e que se encontram em diversos níveis
A SEMIOSFERA de organização” (1996, p. 22). Lotman caracteriza
A partir dos anos 80 do século XX, Lotman esse conjunto de sistemas que se entrecruzam como
passa a situar a discussão sobre a modalização um “continuum semiótico”, que deve ser chamado
realizada pelos códigos da cultura sob o prisma de de semiosfera, em analogia com o conceito
um novo conceito, a semiosfera. O autor cria esse biosfera, conforme postulado por V. I. Vernadski. A
conceito com o intuito de rediscutir os fundamentos principal diferença entre ambos é que a biosfera se
epistemológicos das duas principais tradições caracteriza como um espaço formado unicamente
semióticas: a escola de Peirce e Morris, de um lado, pela matéria viva, ao passo que a semiosfera abarca
e a escola estruturalista, de Saussure ao Círculo de o universo da semiose, portanto, da linguagem e da
Praga, de outro. Para Lotman (1996, p. 21), ambas comunicação.
cometem o mesmo erro: tomam, como ponto de Como observa Nöth (2002, p. 10), essa
partida, um fenômeno isolado, considerando-o concepção corre o risco de reavivar o dualismo
o mais simples e, a partir dele, desenvolvem entre natureza (biosfera) e cultura (semiosfera),
conceitos mais amplos. No caso de Peirce e Morris, que separa como entidades autônomas o mundo
o elemento mais simples seria o signo. No caso do biológico e a vida cultural. Por outro lado, Lotman
estruturalismo, o ato da comunicação – derivado a acredita que há uma interação possível entre o
partir da dicotomia entre língua e fala. Para Lotman, mundo externo (ou alosemiótico) e a biosfera,

68
Prâksis - Revista do ICHLA

mas apenas na medida em que o elemento interação. De um lado, esse conjunto é uno,
extrassemiótico seja traduzido em informação íntegro, regular, homogêneo. Seus diferentes textos
semiotizada (modalizada), o que ocorre quando um e linguagens são como os “diferentes órgãos de um
elemento externo à cultura é absorvido através de organismo” (p. 31), pois, apesar de serem diferentes
seus mecanismos de tradução. Além disso, Lotman uns em relação aos outros, pertencem a um mesmo
parece acreditar que há um mesmo e único princípio sistema e mantêm, portanto, com o todo e com as
regendo a dinâmica de ambos os universos, a saber, partes, relações distintas e variáveis.
o enantiomorfismo – ou o princípio especular (p. De outro lado, no entanto, observando-se
40) –, que será explicado adiante. a diversidade dos vários textos e sistemas que
A biosfera abarca o universo de toda a compõem a semiosfera, deve-se dizer que é
matéria dotada de energia, desde as formas mais irregular, assimétrica, heterogênea, fundamentada
elementares de vida até as mais elaboradas: “a na diferença. Nesse aspecto, a semiosfera é análoga
biosfera transforma a energia radiante do sol em ao “diálogo”, compreendido como a possibilidade
energia química e física, dirigida, por sua vez, à de intercâmbio entre textos e mensagens. Da mesma
transformação da matéria “conservadora” e inerte maneira como o diálogo precede e gera a linguagem
de nosso planeta” (p. 22). A semiosfera, por sua como fenômeno particular, a semiosfera precede e
vez, está compreendida dentro da biosfera, mas gera as formações semióticas isoladas. Em última
encerra apenas o universo semiótico ou cultural. análise, não existe significado sem intercâmbio de
Como já se afirmou, ao propor uma oposição entre mensagens, assim como não existe comunicação
a semiosfera e a biosfera, Lotman representa uma real sem a possibilidade do diálogo. E a informação
concepção epistemológica dualista quanto à relação deve ser compreendida como “entidade discreta”,
entre a natureza e a cultura, pois não acredita que que transita de um polo a outro, na relação dialógica.
haja processos semióticos em sistemas não culturais Para definir com mais precisão esses vários traços da
(NÖTH, 2000, entre outros). semiosfera, Lotman lhe confere duas características
Por outro lado, Lotman se esforça para que esse essenciais, aparentemente contraditórias: um caráter
universo semiotizado não seja compreendido como delimitado, por um lado, e um caráter irregular, por
um conjunto fechado de textos e de linguagens, outro.
isolados uns em relação aos outros: eles mantêm, O caráter delimitado pretende explicar a
entre si, complexas relações, quase paradoxais, homogeneidade da semiosfera. Para que exista
visto pressuporem a assimetria dentro da simetria, sistema homogêneo, é essencial definir seus limites
ou a heterogeneidade dentro da homogeneidade, ou fronteiras; aqui, trata-se especificamente da
fenômeno denominado de “enantiomorfismo” ou fronteira entre o mundo extrassemiótico/alosemiótico
“princípio especular”. Por vezes, Lotman chega e o mundo semiotizado. Lotman acredita que, no
quase a negar a existência de um verdadeiro limite limiar dos sistemas semióticos, existem “filtros”
entre o mundo biológico e o cultural, pois afirma que encarregados de traduzir um sistema externo para
o princípio especular (que forma as oposições entre dentro de uma certa cultura. Em poucos termos, os
o simétrico e o assimétrico) “está tão amplamente filtros que estão na fronteira dos sistemas semióticos
difundido em todos os mecanismos geradores são responsáveis pela transformação do outro no
de sentido que podemos dizer que é universal, mesmo. Trata-se de “mecanismos de tradução”,
abarcando o nível molecular e das estruturas gerais utilizados pela cultura, para absorver aquilo que
do universo, de um lado, e as criações globais do lhe é estranho. Lotman chega a afirmar que, através
espírito humano, de outro” (p. 40). No entanto, do mecanismo da fronteira, “a cultura cria não só
de forma predominante, Lotman parece acreditar sua própria organização interna como também seu
que o resultado enantiomórfico só adquire status próprio tipo de desorganização externa” (p. 29.) Um
semiótico na medida em que é transformado em dos exemplos citados para ilustrar o fenômeno são
informação dentro de um universo cultural dado, aqueles momentos históricos em que os grandes
ou seja, dentro da semiosfera. impérios sofrem ameaças de tribos nômades ou de
Assim sendo, a semiosfera acaba se definindo povos que consideram bárbaros: a estratégia para
como um conjunto heteróclito de variações lidar com o outro/estranho, nesses casos, é contratar
semióticas, cujos componentes estão em constante indivíduos desses mesmos grupos para defender

69
Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes

as fronteiras; tais colônias acabavam formando tendem a tornar os sistemas periféricos menos
uma “zona de bilinguismo cultural que garantia dinâmicos e mais rígidos. No entanto, novamente
os contatos semióticos entre os dois mundos” (p. é necessário lembrar que a própria noção do que é
27), o que acabava criando, de certa forma, uma periférico e do que é nuclear depende do ponto de
identidade mais forte dos próprios impérios: “a vista de quem descreve o sistema.
civilização antiga só foi capaz de tomar consciência No nível da descrição, que produz a
de si mesma como um todo cultural depois de regularidade, a semiosfera se organiza a partir da
construir esse, por assim dizer, mundo “bárbaro” divisão entre o núcleo e a periferia, como se viu. Ao
único, cujo traço distintivo fundamental era a passo que os setores periféricos são mais flexíveis,
ausência de uma linguagem comum com a cultura dinâmicos, “deslizantes”, o núcleo tende a reunir os
antiga” (p. 29). elementos semióticos dominantes, que possuem o
Se a noção de fronteira permite a Lotman poder de determinar a conduta dos indivíduos. Na
delimitar com clareza a diferença entre o mundo medida em que um elemento periférico entra em
semiotizado e o mundo não semiotizado, por outro contato com o centro, forma novos sentidos, mas
lado, no entanto, essa delimitação não possui um também reconstrói todo o sistema. Lotman acredita
caráter absoluto, pois aquilo que é periférico em um que existe uma relação de isomorfismo entre as
determinado contexto pode não sê-lo em outro; o partes e o todo: “no mecanismo semiótico total, o
que é sistema para um determinado grupo pode ser texto isolado é isomorfo a partir de determinados
o caos para outro. Em poucos termos, a delimitação pontos de vista, a todo o mundo textual, e existe um
da fronteira depende sempre do ponto de vista do claro paralelismo entre a consciência individual, o
observador, o que cria grande relatividade quanto texto e a cultura em seu conjunto” (p. 32). O que
ao caráter do próprio limite. Além disso, a interação está por trás dessa ideia é a capacidade que os vários
entre os vários sistemas não ocorre de forma sistemas possuem de intercambiar informações,
homogênea, tampouco na mesma velocidade: mesmo que em ritmos e níveis diferentes. A essa
as línguas naturais, por exemplo, desenvolvem- capacidade, Lotman denomina de diálogo. O
se de forma muito mais lenta do que as estruturas diálogo, assim, é a condição real a partir da qual as
ideológicas. A influência de uma cultura sobre linguagens específicas são formadas.
outra, como ocorre na relação Ocidente e Oriente, Por fim, resta explicar o aparente paradoxo
por exemplo, tampouco segue uma sincronia criado pela contradição entre o regular e o irregular.
claramente previsível; mesmo dentro de uma mesma Essa contradição emerge porque Lotman escolhe
cultura, não se pode estabelecer com precisão a o diálogo como conceito fundador da semiosfera.
regularidade com que a periferia influencia o centro Para existir, o diálogo pressupõe a diversidade
e vice-versa. O exemplo mais discutido por Lotman de sistemas e, ao mesmo tempo, um certo nível
provém das artes: a influência de movimentos de identidade entre eles; caso contrário, não há
como o Romantismo ou o Classicismo sobre os comunicação, mas pura entropia. Devido a esse
vários níveis da cultura é considerada como certa dinamismo que lhe é inerente, o diálogo tende
pelos estudiosos de teorias culturais; no entanto, a aumentar a variedade interna dos sistemas. E
Lotman esclarece que, frequentemente, ocorre esse aumento só não provoca a sua desintegração
uma assimetria entre o movimento dominante e porque é regido por um “princípio especular”,
os destinatários desse movimento, que ainda se denominado de enantiomorfismo (enantíos:
encontram no movimento precedente. contrário). Logo, na base da semiosfera (e mesmo da
Por isso, Lotman afirma que há uma diferença biosfera, como se depreende em alguns excertos),
entre o espaço semiótico real – que é sempre encontra-se este princípio invariável: a combinação
irregular e, por vezes, fragmentado – e o espaço simetria-assimetria, análoga à dicotomia saussuriana
semiótico ideal, aquele construído no nível semelhança-diferença: “A simetria-assimetria pode
metalinguístico ou descritivo – que é regular. ser considerada como a divisão de certa unidade por
Em última análise, a unidade ou regularidade um plano de simetria, cujo resultado é o surgimento
do sistema é obtida apenas no nível teórico da de estruturas refletidas especularmente – base do
descrição metalinguística. É interessante notar que ulterior aumento da variedade e da especificação
as autodescrições metaestruturais (as gramáticas) funcional. E seu movimento cíclico, por sua vez,

70
Prâksis - Revista do ICHLA

está baseado em um movimento giratório em torno reduzido da cultura”, uma espécie de atividade
do eixo da simetria” (p. 36). O exemplo escolhido complexa e interativa capaz de criar significados
para ilustrar esse fenômeno é o palíndromo (palavra determinados pelos próprios códigos a partir dos
ou grupo de palavras que podem ser lidas tanto quais são veiculados. Em suma, trata-se de todos os
numa direção quanto noutra). Tomado como uma estudos realizados em torno do conceito do “sistema
unidade, o palíndromo ativa o princípio especular modalizador”. Conforme esclarece Kristeva (1994),
porque pode ser lido tanto da direita para a esquerda essa concepção deslocou vários conceitos do
quanto da esquerda para a direita. estruturalismo mais ortodoxo e dogmático, que via o
É exatamente esse mesmo princípio que se texto como nada mais do que um jogo de elementos
encontra na base da formação de sentido em qualquer linguísticos dentro de uma estrutura fechada.
outro sistema, segundo Lotman. Para que haja Dessa forma, Lotman desloca o eixo textual em
sentido, é necessário que as unidades que compõem direção à sua periferia, na medida em que, além
o diálogo sofram “divisões enantiomórficas”, o de considerar as relações internas da estrutura,
que gera correlação estrutural entre as partes: “a analisadas sob o nível sintagmático, também
simetria especular cria as necessárias relações de preconiza relações paradigmáticas e, mesmo,
diversidade estrutural e semelhança estrutural que extratextuais, provindas da história, do tecido social
permitem construir relações dialógicas” (p. 37). e, mais tardiamente, de algumas relações com a
Assim sendo, o princípio do contrário ou do espelho biosfera.
garante o equilíbrio gerado pela diversidade dentro A estrutura sincrônica do texto, para Lotamn, é
da similaridade, pois a diferença, concebida dessa resultado de uma confrontação com outros textos,
maneira, não passa da imagem do mesmo, refletida oriundos de várias instâncias da sociedade, cada
às avessas. Portanto, Lotman não acredita que haja um deles construído a partir de outras linguagens
sentido quando a diferença não for capaz de se e códigos. Conforme ressalta Kristeva, a concepção
apresentar como o contrário de uma igualdade. de Lotman reforça a ideia já apregoada por Bakhtin
O princípio que rege esse processo, como se viu – e ratificada também pela própria autora através
anteriormente, é o limite ou a fronteira do próprio do conceito da intertextualidade – de que o texto
sistema, que possui mecanismos de tradução gera o seu sentido apenas à medida que se insere no
encarregados de reduzir o outro a um “mesmo às diálogo cultural. Consequentemente, Lotman acaba
avessas”. rejeitando o uso exclusivo da teoria estruturalista,
É notável, nesse sentido, a semelhança da que procurava compreender o texto unicamente a
concepção de Lotman com a visão postulada por partir de modelos linguísticos, ao mesmo tempo em
Platão, no diálogo Meno, em que Sócrates afirma que amplia sua abrangência em direção a aspectos
que tudo o que é nasce do seu contrário (enantíos), pragmáticos da comunicação.
ou mesmo com Aristóteles, que desenvolve, por Nas reflexões que realizou a partir da década
exemplo, no livro X da Metafísica, a ideia de que de 80 do século XX, por sua vez, Lotman desloca
o real é produzido a partir de oposições entre suas discussões para a questão das fronteiras a partir
contrários, sendo que Aristóteles refuta a contradição das quais o significado é gerado. Um dos aspectos
como geradora de substâncias. mais intrigantes de suas conclusões, nesse contexto,
diz respeito ao caráter especular adquirido pelos
À GUISA DE CONCLUSÃO sistemas: o mesmo sempre se define em oposição
Para concluir, é importante ressaltar que a obra ao outro. Em outros termos, ao mesmo tempo em
de Lotman, juntamente com os demais estudos da que a fronteira une esferas diferentes de semiose,
Semiótica da Cultura, forma um paradigma próprio ela também é responsável pela sua separação, o
dentro das tradições da semiótica e continua, até os que equivale a dizer que somente quando a cultura
dias de hoje, a inspirar estudos nos mais variados reconhece elementos externos a si própria é que
âmbitos da linguagem e da cultura, em diversas passa a construir sua identidade individual.
áreas e campos do saber. Em suma, como afirma Kristeva (1994),
Um dos conceitos mais utilizados, nesse Lotman se tornou um ícone popular para o mundo
contexto, é a noção de texto como “modelo ocidental, principalmente a partir da década de

71
Instituto de Ciências Humanas, Letras e Artes

1960, especialmente para os samurais da geração LOTMAN, Iuri. Acerca de la semiosfera. In: ___ .
estruturalista e pós-estruturalista. Sua teoria foi La semiosfera I. Semiótica de la cultura y del texto.
bem-acolhida tanto pelos primeiros quanto pelos Madrid: Cátedra, 1996, p. 21-42.
últimos. Ao passo que os estruturalistas souberam
apreciar as contribuições que Lotman forneceu para ______. Estética e semiótica do cinema. Lisboa:
o estudo dos princípios intrassistêmicos do texto, Estampa, 1978a.
os pós-estruturalistas aprovaram especialmente o
fato de Lotman não restringir o estudo semiótico ______. A estrutura do texto artístico. Lisboa:
aos elementos internos e imanentes das estruturas Estampa, 1978b.
semióticas, procurando compreender o significado
sempre a partir de uma correlação entre diferentes ______. Sobre o problema da tipologia da cultura.
sistemas. In: SCHNAIDERMAN, Bóris. Semiótica russa. São
Paulo: Perspectiva, 1979a, p. 31-41.
REFERÊNCIAS
______. Sobre algumas dificuldades de princípio
CÁCERES, Manuel. Iuri Mijáilovich Lotman (1922-
na descrição estrutural de um texto. In:
1993): una biografía intelectual. In: La semiosfera
SCHNAIDERMAN, Bóris. Semiótica russa. São
I. Semiótica de la cultura y del texto. Madrid:
Paulo: Perspectiva, 1979b, p. 131-39.
Cátedra, 1996, p. 249-263.
NÖTH, Winfried. Handbuch der Semiotik: zweite
KRISTEVA, Julia. On Yury Lotman. In: Publications
vollständige neu bearbeitete und erweiterte
of the Modern Language Association (PMLA)
Auflage. Stuttgart & Weimar: Metzler, 2000.
109(3), 375-376 (1994).
______. Paradigmen des Dualismus “Kultur vs.
SEBEOK, Thomas A. The Estonian connection. In:
Natur” und Ansätze zu dessen Deskontruktion.
Sign sistems studies (26), 1998 (p. 20-41). Tartu:
Kultur und ihre Wissenschaft, U. Helduser & T.
University Press.
Schwietring (eds.) Kontanz: UVK, 2002, p. 49-68.
SCHNAIDERMAN, Bóris. Semiótica russa. São
ZALIZNIAK, A. A.; IVANOV, V.V.; TOPOROV,
Paulo: Perspectiva, 1979.
V. N. Sobre a possibilidade de um estudo
tipológico-estrutural de alguns sistemas semióticos
YLLERA, Alicia. Estilística, poética e semiótica
modelizantes. In: SCHNAIDERMAN, Bóris.
literária. Coimbra: Almedina, 1979.
Semiótica russa. São Paulo: Perspectiva, 1979, p.
81-97.

72

Você também pode gostar