Cass R. Sunstein - Stephen Holmes - O Custo Dos Direitos (2019)
Cass R. Sunstein - Stephen Holmes - O Custo Dos Direitos (2019)
Cass R. Sunstein - Stephen Holmes - O Custo Dos Direitos (2019)
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do editor.
Tradução
Marcelo Brandão Cipolla
Acompanhamento editorial
Richard Sanches
Revisões
Beatriz de Freitas Moreira
Tomoe Moroizumi
Edição de arte
Katia Harumi Terasaka
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação
Moacir Katsumi Matsusaki
Agradecimentos
Introdução Bom senso em matéria de direitos
PARTE I
Por que um Estado sem dinheiro não pode proteger direitos
PARTE II
Por que os direitos não podem ser absolutos
PARTE III
Por que os direitos acarretam responsabilidades
PARTE IV
Os direitos entendidos como acordos
DEFINIÇÃO DE DIREITOS
O termo “direitos” tem muitos referentes e nuances de
significado. De maneira geral, há duas maneiras de abordar o tema:
a moral e a descritiva. A primeira associa os direitos a princípios ou
ideais morais. Não os identifica pela consulta às leis e à
jurisprudência dos tribunais, mas pela indagação acerca de quais
são aquelas coisas a que o ser humano tem direito como sujeito
moral. Embora não exista uma única teoria desses direitos morais
com que todos concordem, algumas das obras filosóficas mais
interessantes sobre a questão dos direitos envolvem esse tipo de
investigação ética de natureza avaliativa. A filosofia moral concebe
os direitos não jurídicos como exigências morais as mais fortes
possíveis, de que gozamos, talvez, em razão de nossa condição ou
capacidade de sermos agentes morais, e não por participarmos de
uma determinada sociedade política ou mantermos com ela uma
relação jurídica. A teoria moral dos direitos procura identificar
aqueles interesses humanos que, perante o tribunal da consciência,
não podem jamais ser negligenciados ou violados sem uma
justificativa especial.
A segunda maneira de abordar os direitos – cujas raízes se
lançam nos escritos do filósofo britânico Jeremy Bentham, do juiz
norte-americano Oliver Wendell Holmes e dos jusfilósofos Hans
Kelsen e H. L. A. Hart – é mais descritiva e menos avaliativa. É mais
interessante para explicar como os sistemas jurídicos efetivamente
funcionam e menos orientada para a justificação. Não é uma teoria
moral4. Não se pronuncia sobre quais seriam, do ponto de vista
filosófico, os interesses humanos mais importantes e valiosos. Não
afirma nem nega o ceticismo ético e o relativismo moral. É, ao
contrário, uma investigação empírica acerca dos tipos de interesses
que uma determinada sociedade politicamente organizada protege
na prática. Dentro desse quadro, um interesse é considerado um
direito quando um sistema jurídico eficaz o trata como tal, usando
recursos públicos para defendê-lo. Na qualidade de instrumento
criado e mantido pelo Estado para restringir ou reparar danos, o
direito no sentido jurídico é, por definição, um “filho da lei”.
Os direitos no sentido jurídico têm “eficácia”. Portanto, de
maneira alguma são inofensivos ou inocentes. De acordo com o
sistema jurídico norte-americano, os direitos são poderes
concedidos pela comunidade política. E, como qualquer outra
pessoa que exerça um poder, o titular de um direito pode se sentir
tentado a usá-lo para o mal. O direito de um indivíduo de mover
ação judicial contra outro é um exemplo clássico. Pelo fato de um
direito implicar um poder que pode ser exercido para o bem ou para
o mal sobre outras pessoas, esse direito deve ser restrito e devem-
se colocar obstáculos ao seu exercício, mesmo que ele seja, ao
mesmo tempo, escrupulosamente protegido. A própria liberdade de
expressão deve ser restringida quando seu mau uso (gritar “Fogo!”
num cinema lotado, por exemplo) põe em risco a segurança pública.
Um regime político baseado nos direitos se dissolveria num caos
suicida e de destruição mútua, a menos que conte com proteções
cuidadosamente planejadas e garantidas contra o mau uso dos
direitos básicos.
Por outro lado, quando não são respaldados pela força jurídica,
os direitos morais são, por definição, ineficazes. Os direitos morais
não garantidos são aspirações que vinculam a consciência, não
poderes que vinculam autoridades públicas. Impõem dívidas morais
a toda a humanidade, não obrigações jurídicas aos habitantes de
um Estado nacional delimitado por fronteiras territoriais. Pelo fato de
não serem maculados pelo poder, os direitos morais não
reconhecidos pelo sistema jurídico podem ser livremente defendidos
sem muita preocupação com o mau uso, os incentivos perversos e
os efeitos colaterais inadvertidos. Já os direitos jurídicos suscitam
inevitavelmente essas preocupações.
Sob a maior parte dos aspectos, a teoria moral e a teoria positiva
dos direitos não contradizem uma à outra. As pessoas que
defendem os direitos morais e as que descrevem os direitos
jurídicos simplesmente têm objetivos diferentes. O teórico moral
pode afirmar, sem fugir à sensatez, que, abstratamente, o “direito de
poluir” não existe. Mas o positivista sabe que, nas jurisdições norte-
americanas, um proprietário de terras a montante de um rio pode
adquirir de um proprietário a jusante o direito de poluir o rio. As duas
coisas não se contradizem, mas simplesmente se justapõem; não
têm relação entre si. Os teóricos morais e os positivistas fazem
perguntas diferentes e dão-lhes respostas diferentes. Ou seja, não
há querela entre os estudiosos dos direitos que podem ser
garantidos coletivamente e os autores que apresentam argumentos
morais em favor de um ou outro direito ou de uma certa maneira de
compreender os direitos. Os que visam instituir reformas jurídicas
devem, como é óbvio, esforçar-se para fazer com que os direitos
garantidos politicamente se coadunem com aqueles que lhes
parecem moralmente corretos; e os encarregados de fazer valer os
direitos jurídicos devem procurar convencer o público de que esses
direitos têm um fundamento moral sólido.
O custo dos direitos, entretanto, é antes de tudo um tema
descritivo, e não moral. Os direitos morais só terão um custo
orçamentário se sua natureza e seu âmbito foram estipulados e
interpretados politicamente – ou seja, somente se forem
reconhecíveis dentro do sistema jurídico. É verdade que o custo dos
direitos pode ter um aspecto moral, pois uma teoria dos direitos que
jamais desça das alturas da moral para um mundo onde os recursos
são escassos será dolorosamente incompleta, mesmo do ponto de
vista moral. Uma vez que “se deve poder fazer tudo o que se deve
fazer”, mas a falta de recursos impede que certas coisas sejam
feitas, os teóricos morais talvez devam prestar mais atenção à
tributação e aos gastos públicos do que o fazem habitualmente. E
não poderão explorar plenamente as dimensões morais da proteção
dos direitos caso não levem em conta a questão da justiça
distributiva. Afinal de contas, é muito comum que os recursos
proporcionados pela coletividade sejam, sem nenhuma razão sólida,
direcionados para garantir os direitos de alguns cidadãos em
detrimento dos direitos de outros.
Em regra, os direitos jurídicos são garantidos por meio de um
sistema judiciário operante e dotado de recursos financeiros
suficientes. Não se incluem entre os direitos discutidos neste livro,
portanto, direitos como os das mulheres estupradas nas zonas de
guerra da Bósnia ou de Ruanda. As autoridades políticas, na
prática, deram as costas às terríveis e brutais injustiças perpetradas
nesses contextos, afirmando que tais crimes não são de sua
competência. É exatamente pelo fato de serem redondamente
ignorados pelas autoridades que poderiam remediá-los que esses
“direitos” esquecidos não têm nenhum custo orçamentário direto. Na
ausência de uma autoridade política capaz de intervir e disposta a
fazê-lo, os direitos nunca deixam de ser meras promessas vazias.
No momento atual, esses direitos não acarretam nenhum ônus a
nenhum tesouro público.
Nem mesmo os direitos aparentemente jurídicos afirmados pelas
declarações e pactos internacionais de direitos humanos serão
discutidos aqui, exceto nos casos em que os Estados nacionais que
assinaram tais declarações e pactos – Estados capazes de tributar e
gastar dinheiro – apoiem regularmente tribunais internacionais como
os de Estrasburgo e Haia, nos quais se possa buscar uma
reparação eficaz quando tais direitos são violados. Na prática, os
direitos só deixam de ser meras declarações quando estas
conferem poder a organismos cujas decisões sejam juridicamente
vinculantes (não sendo esse o caso da Declaração de Direitos
Humanos da ONU, de 1948, por exemplo). Como regra geral, os
infelizes indivíduos que não estão sujeitos a um governo capaz de
tributar e proporcionar um remédio eficaz5 não têm direitos jurídicos.
A apatridia é sinônimo de ausência de direitos. Na realidade, um
direito jurídico só existe se e quando tem um custo orçamentário.
Pelo fato de este livro tratar somente de direitos que possam ser
garantidos por comunidades politicamente organizadas, não dará
atenção a muitas reivindicações morais dotadas de grande
importância na tradição progressista. Essa lamentável estreiteza de
âmbito se justifica em vista da clareza do foco. Mesmo que
deixemos de lado os direitos que não podem ser exigidos
juridicamente, resta ainda um número suficiente de problemas
difíceis para ocupar nossa atenção.
Os filósofos também fazem uma distinção entre a liberdade e o
valor da liberdade. A liberdade tem pouco valor quando aqueles que
aparentemente a possuem não dispõem dos recursos necessários
para dar eficácia a seus direitos. A sua liberdade de contratar um
advogado nada significa quando todos os advogados cobram
honorários, você não tem dinheiro e o Estado não o ajuda. O direito
à propriedade privada, que é um elemento importante da liberdade,
nada significa quando você não dispõe de recursos para proteger o
que é seu e a polícia não existe. Somente as liberdades dotadas de
valor prático dão legitimidade a uma ordem política progressista.
Este livro, portanto, não trata exclusivamente do custo orçamentário
dos direitos exigíveis em juízo, mas também do custo orçamentário
necessário para que tais direitos possam ser exercitados ou tenham
utilidade na vida cotidiana. O custo público da polícia e dos
bombeiros dá uma contribuição essencial ao “perímetro de
proteção” que torna possível o gozo e o exercício de nossos direitos
constitucionais básicos e de outros direitos6.
DEFINIÇÃO DE CUSTO
O direito norte-americano faz uma importante distinção entre o
“tributo” (tax) e a “taxa” (fee). Os tributos são recolhidos junto à
comunidade como um todo, independentemente de quem receba os
benefícios dos serviços públicos assim financiados. As taxas, por
sua vez, são cobradas de beneficiários específicos na proporção
exata dos serviços que recebem pessoalmente. Os direitos
individuais dos norte-americanos, entre os quais o direito à
propriedade privada, são, em geral, custeados por meio de tributos
e não de taxas7. Essa fórmula de financiamento, cuja importância é
extraordinária, dá a entender que, no sistema jurídico norte-
americano, os direitos individuais são bens públicos, não bens
privados.
É fato que a qualidade e a extensão da proteção dos direitos
depende também de gastos privados e não somente do dinheiro
público. Uma vez que os direitos impõem custos não somente ao
orçamento público, mas também aos particulares, conclui-se
necessariamente que valem mais para certas pessoas do que para
outras. O direito de escolher o próprio advogado de defesa vale
mais para um indivíduo rico do que para um pobre, por exemplo. A
liberdade de imprensa vale mais para quem pode comprar dezenas
de organizações noticiosas do que para o sem-teto que se cobre
com um jornal para dormir. Os que têm dinheiro para brigar na
justiça obtêm, com seus direitos, mais valor do que aqueles que não
têm.
Mas o fato de a proteção aos direitos depender de recursos
privados é bem compreendido. Tradicionalmente, atrai mais atenção
que o fato de a proteção aos direitos depender de recursos públicos.
Os advogados que trabalham para a União Norte-Americana para
as Liberdades Civis (American Civil Liberties Union – ACLU)
aceitam voluntariamente uma diminuição de sua renda pessoal a fim
de defender direitos que lhes parecem fundamentais. Trata-se de
um custo privado. No entanto, a ACLU também é uma associação
isenta de pagar tributos, o que significa que suas atividades são
parcialmente financiadas pelo público8. E esta, como veremos, é
apenas a maneira mais comum e trivial pela qual a proteção dos
direitos pode ser financiada pelo contribuinte.
Os direitos não têm somente um custo orçamentário, mas
também um custo social. Os danos infligidos a indivíduos
particulares por pessoas suspeitas de cometer um crime e libertadas
sob fiança, por exemplo, podem ser contabilizados sob os custos
sociais de um sistema que se esforça para proteger os direitos dos
acusados. Um estudo abrangente do custo dos direitos, portanto,
necessariamente dedicaria uma atenção considerável a esses
custos não monetários. O custo orçamentário dos direitos, no
entanto, estudado isoladamente dos custos sociais e custos
privados, constitui um domínio amplo e importante de exploração e
análise. A concentração exclusiva no orçamento também é a
maneira mais simples de chamar a atenção para o quanto as
liberdades individuais dependem de contribuições coletivas
administradas por autoridades públicas.
Ao contrário dos custos sociais, os “custos líquidos” (e os
benefícios) não podem ser temporariamente ignorados. Alguns
direitos, embora sejam manifestamente custosos, aumentam a tal
ponto a riqueza social tributável que se pode considerar que
financiam a si mesmos. O direito à propriedade privada é um
exemplo óbvio; o direito à educação é outro. Até a proteção das
mulheres contra a violência doméstica pode ser vista dessa forma,
na medida em que ajuda esposas maltratadas a voltar para o
mercado de trabalho produtivo. O investimento público na proteção
desses direitos ajuda a aumentar a base tributária da qual depende
também a proteção ativa de direitos em outras áreas. É óbvio que o
valor de um direito não pode ser avaliado levando-se em conta
somente sua contribuição positiva para o produto nacional bruto
(PNB). (Ao passo que o direito dos encarcerados a cuidados
médicos mínimos não se autofinancia, ele não é menos obrigatório
que a liberdade contratual.) Porém, não se pode excluir do quadro
geral o impacto orçamentário, em longo prazo, dos gastos com
direitos.
Além disso, deve-se assinalar que os direitos podem impor ao
tesouro público um ônus que vai além de seu custo direto. Algo que
aconteceu em outro país pode ajudar a esclarecer este ponto. A
liberdade de movimento foi criada na África do Sul pela abolição da
infame “lei do passe”. Porém, o custo público da construção de
infraestrutura urbana – abastecimento de água, sistemas de
saneamento, escolas, hospitais e por aí afora – para milhões de
pessoas que afluíram às cidades usando sua recém-adquirida
liberdade de movimento é astronomicamente alto. (Visto que a
abolição da lei do passe sul-africana foi um dos atos mais
indiscutivelmente justos da história recente, não é necessário
perder-se em evasivas acerca dos seus custos financeiros
indiretos.) Numa escala mais modesta, aqui nos Estados Unidos, a
garantia da Terceira Emenda contra o aquartelamento de tropas em
casas de particulares exige que os contribuintes financiem a
construção e a manutenção de quartéis militares. Do mesmo modo,
um sistema que proteja escrupulosamente os direitos de pessoas
suspeitas de cometer crime tornará mais custosas a apreensão de
criminosos e a prevenção da criminalidade. E assim por diante.
Esses custos indiretos ou gastos compensatórios, que envolvem
despesas orçamentárias diretas, estão inclusos no “custo dos
direitos” do qual este livro dá uma definição estrita. São
especialmente importantes porque, em alguns casos, determinaram
uma restrição dos direitos gozados pelos norte-americanos. O
Congresso, por exemplo, instruiu o ministro dos Transportes a
restringir o repasse de verbas federais àqueles estados que ainda
não aboliram o direito de andar de motocicleta sem capacete. Essa
decisão se baseou, em parte, num estudo feito a pedido do
Congresso acerca dos custos médicos associados a acidentes de
moto, incluindo a medida em que os seguros pessoais contra
acidentes não cobrem os custos reais. Se a preocupação com os
custos públicos indiretos desempenha papel tão importante na
restrição legislativa de certos atos que alguns contam entre as
liberdades de que gozamos, é evidente que a teoria dos direitos não
pode deixar de fora esses custos.
Por fim, este livro trata da natureza dos direitos jurídicos; não é
um estudo detalhado sobre as finanças públicas. Seu tema é o que
podemos aprender sobre os direitos mediante a reflexão acerca de
seus custos orçamentários. Por isso, as quantias aproximadas aqui
mencionadas, medidas em dólares norte-americanos, são tão
somente ilustrativas. Certamente não resultam de uma investigação
exaustiva e precisa acerca dos custos orçamentários de diversos
direitos. O cálculo preciso do custo da proteção de qualquer direito é
imensamente complicado, e sempre por razões contábeis. Em 1992,
os serviços judiciais e jurídicos nos Estados Unidos custaram cerca
de US$ 21 bilhões ao contribuinte9. Porém, os custos conjuntos e a
existência de locais onde várias atividades de diversos tipos se
realizam ao mesmo tempo dificultam a especificação de qual porção
desses US$ 21 bilhões foi gasta na proteção de direitos. Do mesmo
modo, presume-se que o treinamento dos policiais contribui para
que os suspeitos e detentos sejam tratados de maneira digna. No
entanto, embora colabore para a proteção desses direitos, o objetivo
primário do treinamento é aumentar a capacidade dos policiais de
proteger os direitos dos cidadãos que obedecem às leis. Como
calcular, assim, a porcentagem exata do orçamento destinado ao
treinamento da polícia que se deve atribuir à proteção dos direitos
de suspeitos e detentos?
É desejável que se façam pesquisas empíricas nessa linha, mas,
antes que tais pesquisas possam ser efetuadas, é preciso lançar
certos fundamentos conceituais. Lançar esses fundamentos é um
dos objetivos principais deste livro. Uma vez que o custo dos direitos
se estabeleça como tema de pesquisa, os estudiosos das finanças
públicas terão mais incentivo para elaborar um quadro mais exato
da quantidade de dólares dedicada à proteção de nossas liberdades
básicas.
A FUTILIDADE DA DICOTOMIA
A oposição entre duas pretensões de tipo fundamentalmente
diferente – entre os “direitos negativos”, como os afirmados em Roe,
e os “direitos positivos”, como os negados em Maher – é bastante
conhecida3. No entanto, não é evidente por si de maneira alguma.
Para começar, está absolutamente ausente da Constituição. Era
completamente desconhecida pelos que a redigiram. De onde
surgiu? Exerceu uma influência profunda sobre a paisagem jurídica
dos Estados Unidos, mas acaso constitui ou proporciona uma
classificação cogente dos diferentes tipos de direitos? Acaso faz
sentido?
Sem algum tipo de esquema que os simplifique, é difícil
conceber de maneira ordenada a pletora de direitos que constam da
legislação e do direito norte-americano em geral. Os cidadãos norte-
americanos dispõem de uma gama tão grande de direitos tão
diferentes entre si que às vezes parece impossível fazer qualquer
generalização a respeito deles. Como pensar sistematicamente
sobre direitos tão distintos quanto os direitos à greve, à liberdade de
consciência, a processar um jornalista por difamação ou calúnia e a
não ser sujeito a buscas e apreensões irrazoáveis? E qual ponto de
contato pode haver entre o direito ao voto e o direito a legar os
próprios bens, ou entre o direito à autodefesa e a liberdade de
imprensa? O que esses direitos tão diferentes têm em comum? E
como classificar e subdividir de maneira racional os direitos
atualmente protegidos e garantidos nos Estados Unidos da
América?
Mesmo uma lista seletiva dos direitos de que os cidadãos
comuns dos Estados Unidos gozam no dia a dia bastará para deixar
claro o quanto eles são abundantes. Não é fácil catalogar em
categorias úteis pretensões tão diversas quanto o direito a fazer um
aborto, o direito de praticar a própria profissão, o direito de rescindir
um contrato, o direito de ter avaliado um pedido de liberdade
condicional, os direitos do consumidor, os direitos dos pais, o direito
de apresentar provas perante um conselho de avaliação, o direito de
testemunhar em juízo e o direito de não incriminar a si mesmo. Sob
quais rubricas básicas seriam classificados o direito a mudar o
próprio nome, o direito de guardas de segurança privada a efetuar
detenções, o direito exclusivo de decidir quem pode publicar algo
(copyrights), os direitos de compra de ações, o direito de receber
indenização em dinheiro depois de ser difamado, os direitos de
locadores e locatários, o direito a fumar as folhas secas de certas
plantas (mas não de qualquer planta) e o direito ao controle judicial
de constitucionalidade dos atos de agências administrativas? Há
alguma justificativa para que se agrupem em duas categorias
básicas – a positiva e a negativa, por exemplo – o direito à iniciativa
legislativa, o direito a não ser desconsiderado para uma vaga de
emprego em razão de preferência sexual, o direito de voltar ao
emprego depois de uma licença-maternidade não remunerada, o
direito a viajar de um estado a outro, a liberdade de testamento e o
direito de informar as autoridades acerca de uma violação das leis?
Que dizer, ainda, dos direitos de caça e pesca, do direito de ter e
portar armas, do direito do proprietário de terras de coibir atos
indevidos cometidos por terceiros em sua propriedade, dos direitos
de mineração, do direito de prestar testemunho acerca da vítima de
um crime para influenciar a definição da sentença do perpetrador do
crime, dos direitos de pensão, do direito de doar dinheiro a uma
instituição de caridade sem pagar impostos de doação, do direito de
cobrar uma dívida, do direito de concorrer a um cargo público, do
direito de empregar métodos extrajudiciais de arbitragem e do direito
de ver publicações obscenas dentro da própria casa? Como
classificar o direito a ser visitado na prisão, o direito de fazer o que
bem entender com os próprios bens, o direito de um aluno expulso
da escola a uma audiência, os direitos de casar-se e divorciar-se, o
direito de precedência na compra de um bem, o direito de ser
reembolsado após efetuar pagamento em duplicidade, o direito à
presença e à assistência de um advogado antes de ser interrogado
por autoridades policiais, o direito de emigrar, o direito de receber
aconselhamento sobre controle de natalidade e o direito ao uso de
contraceptivos?
Essa lista improvisada de apenas alguns direitos de que os
norte-americanos comuns gozam no dia a dia indica o tamanho do
desafio a ser enfrentado por quem quer que pretenda mapear o
imenso território das nossas liberdades individuais. Mesmo deixando
de lado anomalias de sabor arcaico, como o “direito à rebelião”, será
dificílimo organizar em dois grupos mutuamente exclusivos e
conjuntamente exaustivos o enxame de pretensões e
contrapretensões que ajudam a estruturar as expectativas comuns e
o comportamento cotidiano dos cidadãos norte-americanos hoje.
OS ATRATIVOS DA DICOTOMIA
É verdade que não se pode proibir que se façam esforços de
simplificação. Além disso, a simplificação pode ser útil para alguns
fins; a questão é saber se uma determinada simplificação ajuda a
esclarecer a realidade4. Entre as tentativas recentes de impor uma
ordem facilmente compreensível à multiplicidade de direitos básicos
invocados e garantidos neste país, aquela a que a Suprema Corte –
para o bem ou para o mal – emprestou o peso de sua autoridade foi
de longe a mais influente. Nas salas de aula e nas páginas de
editorial, nos votos judiciais e nos comitês do Congresso, traça-se
rotineiramente a distinção entre direitos negativos e direitos
positivos, ou entre liberdades e subsídios (classificação que muitas
vezes se supõe ser idêntica à anterior). Talvez essa distinção derive
sua plausibilidade inicial do fato de parecer refletir um contraste
político mais conhecido: aquele entre o Estado pequeno e o Estado
grande.
Essa dicotomia lançou profundas raízes no pensamento e na
expressão comuns. Segundo se diz, os norte-americanos que
preferem ser deixados em paz apreciam estar imunes à intromissão
do poder público, ao passo que aqueles que gostariam de ser
cuidados e protegidos buscam o direito à ajuda pública. Os direitos
negativos excluem e afastam o Estado; os positivos o incluem e o
exigem. Para que existam os primeiros, as autoridades públicas
devem se abster de agir; para que existam os segundos, devem
intervir ativamente. Os direitos negativos, em regra, protegem a
liberdade; os positivos promovem a igualdade. Os primeiros
protegem a esfera privada, ao passo que os segundos redistribuem
os dólares dos contribuintes. Os primeiros são privativos ou
obstrutivos, ao passo que os segundos são caritativos e
contributivos. Se os direitos negativos nos protegem do Estado, os
positivos nos concedem serviços do Estado. Entre os primeiros
incluem-se o direito à propriedade privada, a liberdade contratual e,
como é óbvio, o direito de não ser torturado pela polícia; os
segundos englobam os vales-alimentação concedidos pelo Estado,
os subsídios habitacionais e os programas de renda mínima.
Essa distinção ideal entre imunidades e direitos positivos se
tornou tão influente e, de certo modo, tão revestida de autoridade
que a Suprema Corte foi capaz de pressupor sua validade sem
examiná-la a sério nem apresentar argumentos que a
comprovassem. Nem o fato de ter surgido em época relativamente
tardia na história nem sua palpável insuficiência bastaram para
suavizar sua influência sobre as análises acadêmicas e a
imaginação do público. Mas onde reside seu apelo aparentemente
irresistível?
O atrativo desse tipo de categorização decorre, em parte, do
alerta moral ou da promessa moral que ela, segundo se crê,
transmite. Os devotos conservadores da distinção entre direitos
positivos e negativos estão acostumados a afirmar, por exemplo,
que os direitos de bem-estar são potencialmente infantilizadores e
só podem ser exercidos com base em recursos distribuídos
gratuitamente pelo governo. Acrescentam que os direitos liberais
clássicos, em contraposição, são exercidos de forma autônoma e à
melhor maneira norte-americana por indivíduos fortes e
autossuficientes que desprezam o paternalismo e as esmolas do
governo.
Os críticos do Estado de bem-estar e de sua ação reguladora
também interpretam a dicotomia entre imunidades e direitos à luz de
uma narrativa simplificada que postula uma traição ou uma
decadência históricas. Dizem que os direitos negativos foram as
primeiras liberdades a ser estabelecidas na sociedade civil, tendo
sido institucionalizadas com sabedoria quando da fundação dos
Estados Unidos, se não antes, ao passo que os direitos positivos
foram acrescentados depois, no século XX, e representaram um
desvio em relação ao entendimento original dos direitos. Quando os
Estados Unidos foram criados, a proteção e a garantia dos direitos
básicos tinham por alvo unicamente a proteção contra um governo
tirânico e corrupto. Foi só muito depois – com o New Deal, a Great
Society e a presidência do juiz Warren na Suprema Corte – que
foram introduzidos os direitos super-rogatórios à assistência
governamental. A narrativa conservadora prossegue afirmando que,
em vez de nos proteger contra o governo, os direitos de bem-estar
social tornam as pessoas cada vez mais dependentes do governo,
erodindo assim de duas maneiras a “verdadeira liberdade”:
confiscando injustamente os bens privados dos ricos e
enfraquecendo imprudentemente a autossuficiência dos pobres.
Acrescentando um abundante rol de direitos positivos aos antigos
direitos negativos, progressistas modernos como Franklin Delano
Roosevelt e Lyndon Johnson não somente traíram a concepção de
liberdade dos Patriarcas como também trouxeram à existência todo
um rebanho de cidadãos pobres e dependentes que, infelizmente,
devem agora ser dispersados da fila do panelão de sopa do
governo.
Essa narrativa de declínio histórico é relatada com verve pelos
conservadores, mas os progressistas norte-americanos discordam
dela frontalmente. Por outro lado, também eles muitas vezes
presumem a existência de dois tipos básicos de direitos, os positivos
e os negativos. Simplesmente apresentam uma descrição
alternativa da transição que conduziu das imunidades aos direitos,
retratando-a como uma narrativa de aperfeiçoamento, evolução e
crescimento moral5. Ao passo que os conservadores deploram o
surgimento da previdência social subsidiada pelo contribuinte, os
progressistas aplaudem o aparecimento de garantias positivas,
interpretando-o como sinal de aprendizagem política e melhor
compreensão das exigências da Justiça. Os impulsos caritativos
foram enfim levados em conta e codificados em forma de lei. O New
Deal e a Great Society romperam com os princípios mesquinhos
que serviam aos interesses dos ricos e das grandes empresas em
detrimento da maioria. Em retrospectiva, os direitos negativos eram
insuficientes, talvez até cruéis. A ascensão dos direitos positivos
assinalou uma nova apreciação da necessidade de suplementar a
não intromissão com o fornecimento de serviços públicos.
Na prática, a mesma distinção serve a dois propósitos contrários.
Ao passo que os progressistas norte-americanos geralmente
associam o direito de propriedade e a liberdade de contrato a um
egoísmo imoral, os conservadores vinculam as liberdades privadas
à autonomia moral. Os progressistas situam numa generosa
solidariedade a origem dos direitos positivos, ao passo que os
conservadores libertários relacionam com uma dependência doentia
as benesses da previdência social. As avaliações são opostas, mas
o esqueleto conceitual é o mesmo. Embora não seja, portanto,
apanágio de nenhuma corrente política, a dicotomia entre direitos
negativos e direitos positivos não é, de maneira alguma, uma
presença santa e inocente no campo da política, pois influencia
alguns de nossos debates mais importantes. Proporciona a base
teórica tanto dos ataques ao Estado de bem-estar e à sua ação
reguladora quanto da defesa dos mesmos. Podemos até afirmar que
a polaridade entre direitos negativos e positivos fornece uma
linguagem comum por meio da qual os progressistas que defendem
o Estado de bem-estar e os conservadores libertários conseguem
entender uns aos outros e trocar farpas.
Mas quem tem razão? Acaso os direitos de propriedade são
instrumentos do egoísmo ou fontes da autonomia pessoal? Os
direitos de bem-estar (entre os quais o direito à assistência médica e
o direito ao treinamento para um emprego) são expressões de
solidariedade e fraternidade ou arruínam a iniciativa e inculcam a
dependência? Os indivíduos devem somente ser protegidos contra o
Estado ou também devem ser protegidos pelo Estado? Essas
questões resumem boa parte do debate atual sobre direitos nos
Estados Unidos. Naturalmente, qualquer dicotomia que apele tanto
à Direita quanto à Esquerda será difícil de criticar e dificílima de
derrubar. O fato de ser considerada natural, entretanto, não significa
que tal dicotomia seja justificável quer do ponto de vista descritivo,
quer do normativo. Quando o examinamos, o contraste entre dois
tipos fundamentais de direitos é menos sólido do que esperávamos
e muito menos claro e simples do que a Suprema Corte supôs que
fosse. Baseia-se, na verdade, em confusões fundamentais, tanto
teóricas quanto empíricas. Se a própria distinção é falha, é possível
que nenhum dos dois lados do debate norte-americano esteja
posicionado sobre terreno sólido.
O CUSTO DOS REMÉDIOS JURÍDICOS
Uma máxima clássica da ciência jurídica diz que “Não há direito
sem o remédio jurídico correspondente”. Os indivíduos só gozam de
direitos no sentido jurídico, e não apenas no sentido moral, quando
as injustiças de que são objeto são reparadas pelo Estado de
maneira justa e previsível. Essa realidade simples já revela o quanto
é insuficiente a distinção entre direitos negativos e positivos. O que
ela demonstra é que todos os direitos passíveis de imposição
jurídica são necessariamente positivos.
Os direitos têm um custo alto porque o custo dos remédios é
alto. Garantir os direitos sai caro, especialmente quando essa
garantia é justa e uniforme; e os direitos jurídicos não têm
significado algum quando não são garantidos coercitivamente. Para
dizê-lo de outra maneira, quase todos os direitos implicam deveres
correlativos, e os deveres só são levados a sério quando seu
descumprimento é punido pelo poder público mediante recurso à
fazenda pública. Na ausência de deveres legalmente imponíveis não
há direitos legalmente exigíveis, e é por isso que um sistema jurídico
só pode ser permissivo, ou seja, só pode permitir liberdades aos
indivíduos, na medida em que é simultaneamente coercitivo. Isto é,
a liberdade pessoal não pode ser assegurada pela mera limitação
da ingerência do Estado mediante as liberdades de ação e
associação. Não há direito algum que se resuma ao direito de ser
deixado em paz pelos agentes públicos; todos os direitos implicam
uma pretensão a uma resposta afirmativa por parte do Estado. Do
ponto de vista descritivo, os direitos se reduzem a pretensões
definidas e salvaguardadas pela lei. Um mandado de cease-and-
desist* emitido por um juiz cujas ordens são regularmente
obedecidas é um bom exemplo de “intromissão” do Estado visando
à preservação da liberdade. Porém, o Estado se envolve num nível
ainda mais fundamental quando os órgãos legislativos e os tribunais
definem quais serão os direitos protegidos pelos juízes. Toda lei
proibitiva, sejam quem forem os seus destinatários, implica tanto a
concessão afirmativa de um direito pelo Estado quanto a pretensão
legítima à solicitação da assistência do mesmo Estado, caso a lei
seja desobedecida.
Se os direitos fossem meras imunidades à intromissão do poder
público, a maior virtude do governo (pelo menos no que diz respeito
ao exercício dos direitos) seria a paralisia ou a debilidade. Um
Estado débil, no entanto, é incapaz de proteger as liberdades
pessoais, mesmo aquelas que parecem completamente “negativas”,
como o direito de não ser torturado por policiais e carcereiros. O
Estado incapaz de organizar visitas de inspeção a prisões públicas
por parte de médicos pagos com o dinheiro do contribuinte e
dispostos a apresentar provas críveis como testemunhas numa
audiência judicial é também incapaz de proteger eficazmente os
presidiários contra a tortura e o espancamento. Todos os direitos
custam caro porque todos eles pressupõem que o contribuinte
financie um mecanismo eficiente de supervisão, que monitore o
exercício dos direitos e o imponha quando necessário.
No quadro do Estado, as instituições mais conhecidas que
monitoram as injustiças e garantem os direitos são os próprios
tribunais. Com efeito, a noção de que os direitos são basicamente
“muralhas contra o Estado” muitas vezes se apoia na ideia
equivocada de que o Judiciário não é um dos poderes do Estado e
que os juízes (cuja jurisdição se exerce sobre os policiais, os
membros dos poderes executivo e legislativo e os outros juízes) não
são funcionários públicos que vivem de um salário pago pelo
governo. No entanto, os tribunais norte-americanos são “ordenados
e estabelecidos” pelo governo; constituem um dos elementos
essenciais do Estado. A acessibilidade do Judiciário e a
possibilidade de recurso são realizações triunfantes do Estado
liberal. Suas despesas operativas são pagas com dinheiro do fisco,
canalizado para os tribunais e seus funcionários; o Judiciário, em si
e por si, é incapaz de coletar essa renda. Nos Estados Unidos, os
juízes federais têm cargo vitalício e não estão sujeitos à autoridade
supervisora da promotoria pública. No entanto, nenhum poder
judiciário que funcione bem é financeiramente independente.
Nenhum sistema jurisdicional é capaz de operar num vácuo
orçamentário. Nenhum juízo pode funcionar sem receber injeções
regulares de dólares dos contribuintes a fim de financiar seus
esforços no sentido de disciplinar aqueles que violam os direitos,
sejam eles agentes particulares ou públicos; quando esses dólares
não existem, os direitos não podem ser defendidos. Na mesma
medida em que a garantia dos direitos depende da vigilância
judicial, os direitos custam no mínimo o montante necessário para
recrutar, treinar, fornecer, pagar e (como não?) monitorar os órgãos
judiciais que guardam nossos direitos básicos.
Quando o detentor de um direito legal sofre lesão nesse direito, o
mais comum é que possa peticionar, em busca de um remédio, um
juiz cujo salário é pago pelos contribuintes. Para obter o remédio
judicial, que é uma forma de ação do governo, a parte lesada exerce
seu direito de usar o sistema litigioso financiado pelo público,
sistema esse que, para esse fim, tem de estar sempre pronto e à
disposição. Como já se disse, o detentor de um direito é sempre o
autor potencial de uma ação judicial ou de um recurso6. Em
consequência disso, quando é mais difícil para o queixoso buscar
proteção junto ao juiz, os direitos sofrem. Um dos modos pelos
quais isso se dá consiste em privar os tribunais do dinheiro de que
precisam para funcionar. Reivindicar um direito de modo eficaz, em
contraposição, equivale a pôr em movimento o mecanismo
coercitivo e corretivo da autoridade pública. Esse mecanismo tem
uma operação dispendiosa, e quem paga por ela é necessariamente
o contribuinte. Esse é um dos sentidos em que até os direitos
aparentemente negativos são, na realidade, benefícios fornecidos
pelo Estado.
Para proteger os direitos, os juízes exigem obediência. Os juízos
emitem mandados que restringem a violação de patentes ou
obrigam empresas do ramo imobiliário a alugar casas para afro-
americanos, em obediência à Lei da Justiça na Habitação de 1968.
Para garantir a liberdade de informação, os juízos mandam que
órgãos do poder executivo federal forneçam informações
requisitadas pelo público. Nesses casos, a liberdade depende da
autoridade. Quando a supervisão judicial relaxa, os direitos se
tornam, na mesma proporção, frágeis ou fugidios. As autoridades
dos serviços de imigração norte-americanos rotineiramente
discriminam os recém-chegados de acordo com suas características
físicas, opiniões políticas e origens nacionais. Assinalar que os
estrangeiros que tentam entrar nos Estados Unidos têm poucos
direitos é o mesmo que observar que, no sistema jurídico norte-
americano, eles têm pouco acesso a remédios judiciais financiados
pelo público.
No entanto, os tribunais e demais órgãos judiciais não são os
únicos órgãos estatais financiados pelo dinheiro público e capazes
de fornecer remédios jurídicos contra a lesão a direitos. Em vários
estados norte-americanos, por exemplo, os centros de proteção ao
consumidor recebem queixas e atuam para proteger os direitos dos
consumidores, penalizando as práticas injustas e enganosas dos
fornecedores de produtos e serviços a varejo. Em nível federal, a
Comissão de Segurança dos Produtos de Consumo (Consumer
Product Safety Commission – CPSC) gastou US$ 41 milhões em
1996 para identificar e analisar produtos perigosos e impor aos
fabricantes a obediência aos padrões federais7. Muitos outros
órgãos do governo cumprem funções semelhantes, de garantia de
direitos. O próprio Ministério da Justiça gastou US$ 64 milhões em
“assuntos de direitos civis” em 1996. O Conselho Nacional de
Relações de Trabalho (National Labor Relations Board – NLRB),
que custou US$ 170 milhões ao contribuinte em 1996, protege os
direitos dos trabalhadores e impõe obrigações aos empregadores. A
Administração de Segurança e Saúde no Trabalho (Occupational
Safety and Health Administration – OSHA) – que gastou US$ 306
milhões em 1996 – defende os direitos dos trabalhadores, obrigando
os empregadores a proporcionar-lhes um ambiente de trabalho
saudável e seguro. A Comissão de Oportunidades Iguais de
Emprego (Equal Employment Opportunity Commission – EEOC),
cujo orçamento foi de US$ 233 milhões em 1996, salvaguarda os
direitos dos funcionários e daqueles que procuram emprego,
procurando garantir que os empregadores não os discriminem
quando das contratações, demissões, promoções e transferências8.
Em cada um desses casos, o custo da imposição coercitiva dos
direitos pode ser igualado ao custo da imposição coercitiva dos
deveres correspondentes.
Certamente é possível assinalar que alguns desses órgãos, ou
todos eles, são demasiado caros ou desperdiçam o dinheiro público,
ou mesmo que alguns devem ser abolidos. Porém, embora não haja
um único conjunto ideal de instituições, é preciso que reste algum
mecanismo estatal de garantia dos remédios jurídicos, pois os
direitos nada têm a ver com a autonomia em relação à autoridade
pública. Uma vez que o indivíduo totalmente particular e
autossuficiente não tem direito algum, é impossível ser “a favor dos
direitos” e “contra o Estado”.
Alguns outros exemplos ajudarão a esclarecer este ponto. O
direito de legar os próprios bens a herdeiros escolhidos pelo próprio
testador – o “direito à liberdade de expressão depois da morte” – é,
evidentemente, um poder que nenhum testador pode exercer
autonomamente, sem a assistência ativa de órgãos do Estado. (Os
processos de interpretação e declaração da validade dos
testamentos, bem como de arbitragem das disputas a que eles às
vezes dão ocasião, correm nos Estados Unidos perante os probate
courts ou juízos de sucessões, que não são financiados somente
pelas taxas cobradas dos usuários, mas por todos os contribuintes.)
E o direito de elaborar um testamento válido e vinculante é
perfeitamente típico, pois nenhum detentor de direitos é autônomo.
O que o direito a contrair matrimônio significaria sem as instituições
públicas que gastam o dinheiro dos contribuintes para definir e criar
a instituição do matrimônio? O que o direito dos filhos menores a
alimentos significaria na prática se os órgãos estatais não pudessem
atender às solicitações de localização de pais ausentes ou deduzir
os alimentos não pagos das restituições de impostos federais e
estaduais? O que os direitos autorais das empresas de
entretenimento norte-americanas significariam na China (por
exemplo) se o governo norte-americano não fizesse questão de
garantir que os mesmos sejam respeitados?
Coisa semelhante se pode dizer acerca do direito à propriedade
privada. Para proteger os direitos de propriedade dos proprietários
de terras, o sistema jurídico norte-americano não se limita a deixar-
lhes em paz, mas exclui coercitivamente os não proprietários (os
sem-teto, por exemplo) que, na ausência dessa exclusão coercitiva,
sofreriam talvez a forte tentação de entrar na propriedade que não
lhes pertence. Todo credor tem o direito de exigir que o devedor lhe
pague o que deve; na prática, isso significa que o credor pode
instituir contra um devedor inadimplente um processo judicial, no
decorrer do qual o delito de inadimplência será declarado e uma
sanção será imposta. Poderá também contar com o oficial de justiça
para confiscar bens pessoais do devedor e vendê-los para pagar a
dívida com os proventos da venda. Os direitos de propriedades dos
credores, como os dos proprietários de terra, seriam palavras vazias
sem as ações positivas de autoridades cujo salário é pago com o
dinheiro público.
O financiamento de direitos básicos por meio da renda tributária
nos ajuda a ver claramente que os direitos são bens públicos:
serviços sociais pagos pelo contribuinte e administrados pelo
governo, cujo objetivo é aperfeiçoar o bem-estar coletivo e
individual. Todos os direitos são positivos.
DIREITOS E PODERES
Os direitos implicam invariavelmente um confronto entre dois
poderes. Na responsabilidade civil, os direitos valem-se do poder do
Estado para extorquir indenizações compensatórias ou punitivas de
pessoas que cometeram injustiças no âmbito privado. No direito
constitucional, os direitos empregam o poder de um dos ramos do
Estado contra os malfeitores pertencentes a outros órgãos do
mesmo Estado. No final da década de 1960, por exemplo, a
Suprema Corte protegeu o direito dos estudantes de ir à escola
usando tarjas pretas no braço a fim de protestar contra a Guerra do
Vietnã, e para tanto contrapôs-se às autoridades que dirigiam as
escolas públicas2. Portanto, a proteção “contra” o governo é
impensável sem a proteção oferecida “pelo” governo. É exatamente
isso que Montesquieu tinha em mente quando afirmou que a
liberdade só pode ser protegida mediante um sistema de freios e
contrapesos entre os diversos poderes do Estado3. Nenhum sistema
jurídico é capaz de defender o povo contra as autoridades sem
defendê-lo por meio de outras autoridades.
Além disso, quando se garante um direito, uma pessoa ganha e
outra perde. A imposição de um direito (seja ele um direito contra a
discriminação racial ou um direito de receber uma indenização
compensatória) é “aceita” pela parte perdedora porque ela não tem
escolha, ou seja, porque o poder do Estado se exerce do lado do
detentor do direito e, logo, contra a parte perdedora. Por outro lado,
para limitar o alcance de um direito, muitas vezes basta limitar o
poder do órgão do governo que o faz valer. Se um grupo político
qualquer quiser diminuir os direitos dos trabalhadores norte-
americanos, por exemplo, procurará diminuir a autoridade da OSHA,
da EEOC e do NLRB. Isso é um sinal claro de que os direitos
dependem essencialmente do poder.
A dependência da liberdade em relação à autoridade deveria ser
especialmente óbvia nos Estados Unidos, onde os direitos contra os
abusos de autoridades estaduais e locais são garantidos há muito
tempo por autoridades federais. A “doutrina da incorporação”, que
aplica aos estados a maior parte da Declaração de Direitos, protege
as liberdades individuais; não o faz, porém, tirando o governo de
cena, mas, sim, dando às autoridades federais o poder de sobrepor-
se às estaduais. A Décima Quarta Emenda proíbe os estados de
negar a qualquer pessoa a igual proteção das leis ou de privá-las da
vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal. Essa
proibição nada significaria se o governo federal não tivesse poder
coativo sobre os estados recalcitrantes.
“O Congresso terá o poder de fazer valer este artigo mediante a
legislação apropriada.”* As três emendas posteriores à Guerra Civil
trazem este dispositivo. Isso significa que a Constituição emendada
investe explicitamente o governo federal da capacidade de realizar
na prática os direitos individuais que ela proclama em princípio. Sem
essa capacidade, os direitos não teriam força alguma. Para proteger
os direitos dos negros no Sul dos Estados Unidos, o governo federal
foi obrigado em várias ocasiões a mobilizar tropas federais. Sem
essa demonstração de força, os direitos individuais de um grande
grupo de norte-americanos não passariam de uma farsa cruel. Para
impedir a segregação racial na educação foi necessário o
envolvimento federal, incluindo às vezes a ameaça de enfrentar a
violência com violência. De qualquer modo, os distritos escolares do
Sul simplesmente ignoraram os mandados de dessegregação da
Suprema Corte até o momento em que o antigo Ministério da
Saúde, Educação e Bem-Estar aplicou-lhes uma pressão financeira
irresistível. Quando o governo de um estado faz discriminação, o
direito de não sofrer discriminação racial, como o direito à
propriedade privada, exige uma assistência afirmativa do governo –
neste caso, do governo do país.
O mesmo padrão se evidenciou no que se refere ao direito ao
voto. A Lei do Direito ao Voto de 1964 – criada para fazer valer os
direitos constitucionais – pedia um envolvimento maior, e não
menor, do governo nacional. Até o Congresso proibir por lei os
testes de alfabetização, os estados tramavam para negar aos
negros o direito ao voto. Isso é apenas mais um exemplo particular
de uma verdade geral: os direitos individuais são, sempre e em
todos os casos, expressões do poder e da autoridade do Estado.
A Declaração de Direitos não fazia parte da Constituição original,
mas foi-lhe acrescentada dois anos depois da ratificação desta, em
parte para apaziguar os que desejavam um governo federal mais
fraco e de poderes mais limitados. Não era esse, porém, o seu único
objetivo, nem foi esse o efeito que teve na prática. Ampliando o
alcance da Declaração de Direitos, a Suprema Corte – uma
instituição federal – pôs as prerrogativas estaduais sob ataque
progressivo. A autonomia estadual foi diminuída e o poder federal foi
correlativamente aumentado em vista da preservação dos direitos
individuais. (É verdade que o oposto também aconteceu.) Com
efeito, uma das consequências desse aumento do poder federal foi
a aplicação aos estados da proibição de confiscarem bens
particulares sem indenização – exigindo dos governos estaduais,
assim, que indenizassem o povo (por uma questão de direito
constitucional federal) quando as leis estaduais tivessem o efeito de
reduzir a zero o valor de propriedades situadas à beira-mar, por
exemplo.
Não existe conexão lógica entre a descentralização do governo e
a limitação dos avanços indevidos do governo junto à sociedade
civil. Boa parte dos limites originais aplicados à autoridade do
Congresso não tinha o objetivo de preservar a imunidade em
relação ao governo federal, mas simplesmente o de abrir um espaço
para que os estados criassem suas próprias normas para regular a
conduta econômica dos particulares. Mas o governo federal, para
criar um mercado nacional contrário aos impulsos protecionistas das
autoridades locais, não teve outra opção senão a de erodir
progressivamente a autonomia regulatória dos estados. E isso é
perfeitamente normal: uma autoridade inferior recua quando uma
autoridade superior avança.
Os redatores da Constituição dos Estados Unidos quiseram criar
um Estado forte e eficaz, dotado de capacidades que faltavam ao
Estado anêmico criado pelos Artigos da Confederação. Uma
Constituição que não organize um governo eficaz e dotado de apoio
público, capaz de tributar e gastar, necessariamente deixará a
desejar na proteção prática dos direitos. Demorou para que
aprendêssemos essa lição, e não nos referimos aqui somente aos
libertários e aos economistas que defendem o livre mercado, mas
também a certos defensores dos direitos humanos que, sem
nenhum egoísmo, dedicaram suas carreiras a uma campanha
militante contra Estados brutais e prepotentes. Os adversários
incondicionais do poder estatal não podem defender com coerência
os direitos individuais, pois os direitos constituem uma uniformidade
cogente imposta pelo Estado e custeada pelo público. A igualdade
de tratamento perante a lei não pode ser assegurada num vasto
território sem órgãos burocráticos centralizados relativamente
eficazes e honestos, capazes de criar e fazer valer direitos.
1 Bentham dizia que esse poder legal não é um direito negativo, mas um
direito a um “serviço negativo”. Ver H. L. A. Hart, “Bentham and Legal Rights”,
em Oxford Essays in Jurisprudence, Second Series, org. A. W. B. Simpson
(Oxford: Oxford University Press, 1973), pp. 171-201.
2 Tinker vs. Des Moines School Dist., 393 U.S. 503 (1969).
3 Baron de la Bréde et de Montesquieu, The Spirit of the Laws, trad. para o
inglês de Thomas Nugent (Nova York: Hafner, 1949), vol. I (Livro XI, cap. 4), p.
150.
* “Congress shall have power to enforce this article by appropriate legislation”
– dispositivo constante de várias emendas à Constituição dos Estados
Unidos. (N. do T.)
Capítulo 3
RETÓRICA E REALIDADE
Diz-se habitualmente que os direitos são invioláveis, conclusivos
e têm caráter preventivo, mas essas palavras são meros floreios
retóricos. Nada que custa dinheiro pode ser absoluto. Nenhum
direito cuja garantia pressuponha um gasto seletivo do dinheiro dos
contribuintes poderá, no fim das contas, ser protegido
unilateralmente pelo poder judiciário sem levar em consideração as
consequências orçamentárias pelas quais os outros poderes do
Estado são, em última análise, responsáveis. Uma vez que a
proteção contra a violência cometida por particulares não é barata e
necessariamente utilizará recursos escassos, o direito a uma tal
proteção, supondo-se que de fato exista, não pode ser completo ou
absoluto. O mesmo vale para os direitos individuais à proteção
contra os abusos do Estado, direitos esses que são mais
conhecidos. Meu direito a uma indenização caso o Estado
desaproprie meu bem imóvel de nada valerá, por exemplo, se o
Tesouro estiver vazio. Se todo direito tem um custo, a imposição dos
direitos sempre será influenciada pelo interesse do contribuinte em
economizar seu dinheiro. Os direitos diminuirão quando os recursos
diminuírem e poderão se expandir à medida que se expandam os
recursos públicos.
Os direitos não são pretensões absolutas, mas relativas. A
atenção ao custo é apenas mais um caminho, paralelo a outros
trilhados de modo mais habitual, rumo a uma compreensão melhor
da natureza qualificada de todos os direitos, os constitucionais
inclusive. Pode suplementar de modo bastante útil outras
abordagens mais conhecidas, sobretudo porque a teoria
convencional dos direitos, que não leva em conta os custos,
reforçou uma compreensão errônea de sua função ou objetivo
social, compreensão essa que acabou por se difundir bastante. A
atenção ao custo dos direitos revela em que medida a imposição ou
garantia desses direitos, tal como se realiza na prática nos Estados
Unidos e em outros países, se faz sempre através de concessões e
soluções de meio-termo, inclusive do ponto de vista monetário. Isso
não significa que as decisões devam ser tomadas por contadores,
mas que as autoridades e os cidadãos das democracias devem
levar em consideração os custos orçamentários.
As finanças públicas constituem uma ciência ética, pois nos
obrigam a prestar contas em público daqueles sacrifícios que nós,
enquanto comunidade, decidimos fazer; nos obrigam a explicar a
que estamos dispostos a renunciar, a fim de buscar objetivos mais
importantes. Para que a teoria dos direitos tenha a esperança de
entender o modo pelo qual um determinado regime de direitos
estrutura e governa o comportamento das pessoas na prática, ela
tem de levar em conta essa realidade. Os órgãos judiciais que
decidem acerca da imposição de direitos em situações específicas
também serão capazes de raciocinar de modo mais inteligente e
transparente caso reconheçam com franqueza o modo pelo qual o
custo afeta a extensão, a intensidade e a regularidade dessa
imposição. A teoria jurídica, por fim, será mais realista caso examine
com toda a clareza a competição por recursos escassos que
necessariamente ocorre entre os direitos básicos, e também entre
estes e outros valores sociais.
1 DeShaney vs. Winnebago County Department of Social Services, 489 U.S.
189 (1989).
2 À primeira vista, esse modo de pensar tem muito em seu favor. Muitos
comentadores afirmam que a Constituição se dirige “contra” as intromissões
do Estado e que não obriga o Estado a intervir, mesmo que essa intervenção
possa levar o nome de proteção. É claro que a Primeira Emenda impede que
os governos federal e estaduais censurem a liberdade de expressão.
Somente por normas infraconstitucionais é que instituições privadas são
proibidas de fazer o mesmo. O mesmo vale para a proibição da discriminação
racial. A exigência de igual proteção das leis, feita pela Décima Quarta
Emenda, não se aplica a instituições privadas, nem mesmo a grandes
empresas. É a legislação infraconstitucional, e não a Constituição em si, que
exige que tais organizações não ajam de forma discriminatória.
3 Algumas questões aqui discutidas são tratadas de modo mais detalhado em
Cass R. Sunstein, The Partial Constitution (Cambridge, Mass.: Harvard
University Press, 1993).
4 Shelley vs. Kraemer, 334 U.S. 1 (1948).
5 Edmonson vs. Leesville Concrete Co., 500 U.S. 614 (1991).
6 Smith vs. Allwright, 321 U.S. 649 (1944); Terry vs. Adams, 345 U.S. 461
(1953).
7 Lebron vs. National Railroad Passenger Corp., 115 S.Ct. 961 (1995).
8 Burton vs. Wilmington Parking Authority, 365 U.S. 715 (1961).
9 Dee Farmer vs. Brennan, 511 U.S. 825 (1994).
10 Budget of the United States Government, Fiscal Year 1998, Apêndice, p.
670.
11 Isto é afirmado por Richard A. Posner, Overcoming Law (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 1996), embora ele não tenha dito o mesmo
em seu voto na decisão de segunda instância do caso DeShaney. Esse voto
se baseou na distinção entre direitos negativos e positivos.
Capítulo 6
O DISCURSO DA RESPONSABILIDADE
Devemos pensar de maneira mais responsável sobre a
responsabilidade. Será que o aumento do crime resultou da
imposição dos direitos ou, digamos, de mudanças demográficas,
tecnológicas, econômicas, educacionais e culturais que, em grande
medida, são independentes dos direitos? Mesmo que certos direitos
tenham, no cômputo geral, intensificado o comportamento
irresponsável em certos domínios, as generalizações causais
universalizantes são sempre dúbias. O “comportamento
responsável” pode ser definido como uma conduta que reduz os
danos que a pessoa inflige a si mesma e aos outros. Será plausível
afirmar que a sociedade norte-americana em geral se reorientou das
responsabilidades (entendidas dessa maneira) para os direitos?
Hoje em dia, em muitas esferas da vida social, as pessoas
descumprem seus deveres, agem sem levar os outros em
consideração, ignoram os problemas graves de outras pessoas e
deveriam, em geral, se comportar de maneira mais responsável.
Mas isso não começou a acontecer nos últimos trinta anos; de uma
forma ou de outra, sempre aconteceu. Acontece hoje até em países
onde os direitos individuais são universalmente desrespeitados ou
totalmente desconhecidos. De que modo, portanto, a cultura dos
direitos aumentou a antiga tendência da humanidade à imprudência,
à insensibilidade e ao imediatismo?
Duas possibilidades já foram amplamente discutidas. Quando
interpretados quer como imunidades negativas à influência do
Estado, quer como pretensões inegociáveis, os direitos podem, sim,
tornar-se fórmulas de irresponsabilidade. Se os donos de bens
imóveis se convencerem de que seus direitos de propriedade
estarão perfeitamente assegurados se o Estado simplesmente sair
de cena, poderão subestimar o quanto suas liberdades individuais
dependem de contribuições comunitárias. Quando os defensores
das liberdades civis qualificam um pequeno número de direitos
como pretensões absolutas, podem negligenciar as consequências
distributivas de gastarem-se recursos escassos com um conjunto
limitado de interesses sociais que eles próprios identificaram como
os mais urgentes do momento. Os que creem que têm o direito de
se dedicar a determinada conduta talvez não compreendam que
nem sempre é correto fazer o que temos o direito de fazer. Então, a
resposta é “sim”: quando os direitos não são adequadamente
compreendidos, podem encorajar uma conduta irresponsável.
Não obstante, direitos e responsabilidades não podem ser
separados; são correlativos. A interdependência dos direitos e
responsabilidades, o fato de serem essencialmente inextricáveis uns
dos outros, torna implausível a ideia de que as responsabilidades
estão sendo “ignoradas” pelo fato de os direitos terem ido “longe
demais”. Acrescente-se a esse dado o fato de que os direitos são
imensamente heterogêneos. Será que o direito de fazer
negociações trabalhistas coletivas, no conjunto, promove a
irresponsabilidade? E o direito de habeas corpus? O direito a um
julgamento justo? O direito à legítima defesa? O direito ao voto? Os
direitos ao devido processo legal e à igualdade de tratamento não
passam, pelo menos às autoridades do Estado, a ideia de que “vale-
tudo”.
O direito dos contratos proíbe os tribunais norte-americanos de
determinar o pagamento de dívidas irresponsáveis, por exemplo,
aquelas contraídas entre pessoas que jogam por dinheiro. Essas
interdições são naturais, pois o direito dos contratos é, em seu
conjunto, um sistema de imposição das responsabilidades sociais. O
direito do promissário de mover ação judicial contra um promitente
por descumprimento de promessa é a ilustração clássica da tese de
que direitos e deveres são correlativos3. E esse é o padrão geral. Se
Smith tem direito à sua propriedade, Jones tem o dever de não
invadi-la. Se Jones tem o direito a uma porcentagem das vendas de
seu best-seller, a editora tem o dever de lhe entregar o montante
devido. Para proteger os direitos de Smith, que não fuma, o governo
precisa aumentar as responsabilidades do fumante Jones. Se a
liberdade de religião de Jones goza de proteção constitucional, as
autoridades públicas têm para com ele um dever de tolerância. Se
Smith tem o direito de não ser submetido a discriminação racial no
ambiente de trabalho, seus empregadores têm o dever de ignorar a
cor de sua pele. Se Jones, réu num processo penal, tem o direito de
excluir as provas obtidas ilegalmente contra si, a polícia tem o dever
de obter um mandado válido antes de revistar sua casa. Se Smith
tem o direito de mover ação judicial contra um jornal por calúnia, o
jornal tem o dever de conferir a veracidade dos fatos apurados.
Houve uma época em que os Estados Unidos negavam aos afro-
americanos escravizados os direitos de ser proprietários, de
celebrar contratos, de cuidar dos próprios filhos e de votar. A
negação de todos esses direitos nunca serviu para incutir o hábito
da responsabilidade. As sociedades onde os direitos liberais não
são impostos com vigor – ou seja, onde abundam condutas
predatórias entre pessoas que não se conhecem – não se
caracterizam por um florescimento da responsabilidade social. Os
dados históricos dão a entender, ao contrário, que a ausência de
direitos é o solo mais fértil para a irresponsabilidade individual e
social. Também nesse sentido mais sociológico, os direitos e as
responsabilidades estão longe de ser opostos.
Ao contrário da crítica daqueles que exigem maior
responsabilidade, o sistema jurídico norte-americano atual, longe de
refletir o princípio anarco-libertário do “vale-tudo”, formula
publicamente e impõe coercitivamente um sem-número de
proibições legais. E muitas dessas restrições coercitivas foram
criadas no período supostamente antirresponsável das décadas de
1960 e 1970 – normas contra a degradação ambiental, o excesso de
risco nos ambientes de trabalho e o assédio sexual a mulheres
trabalhadoras. Algumas restrições importantes são muito mais
antigas, como as normas que impedem amadores não licenciados
de abrirem um consultório particular na qualidade de cirurgiões dos
olhos. Hoje, o governo federal limita o direito das fábricas de cigarro
de fazerem propaganda de seus produtos com a justificativa de que
esse tipo de expressão comercial, que em princípio seria protegida,
favorece uma conduta irresponsável entre os jovens. (A
dependência significa exatamente isso: o indivíduo dependente não
pode simplesmente “optar” por não fumar; em consequência,
quando estão em jogo substâncias que causam dependência, o
Estado não pode favorecer a liberdade individual assumindo uma
postura de laissez-faire.) O direito norte-americano está longe,
portanto, de negligenciar a responsabilidade social. Embora
respaldada por um sem-número de historietas curiosas, a tese de
um declínio geral da responsabilidade social dos norte-americanos a
partir da década de 1960 carece de corroboração por provas
confiáveis.
Os direitos e responsabilidades se reconfiguram com o passar
do tempo, e isso é normal; os indivíduos hoje agem com
responsabilidade em domínios em que outrora eram irresponsáveis,
e vice-versa. Pelo menos em alguns casos, abriram mão de direitos
de que antes gozavam. Eis alguns exemplos:
A MORAL NO DIREITO
Admitimos que o sistema jurídico norte-americano atribui aos
indivíduos o direito de fazer certas coisas que a maioria das
pessoas considera moralmente erradas. Essa é uma característica
essencial (e não acidental) de qualquer regime liberal e, com efeito,
de qualquer país livre. Os norte-americanos têm o direito legal de
praticar atos que pessoas responsáveis, ou apenas moderadamente
sãs, evitariam com todo o escrúpulo. Por isso, embora o sistema
jurídico norte-americano tenha fontes morais, ele não coincide
inteiramente com a sensibilidade moral da comunidade.
No entanto, não se deve exagerar a indiferença do direito à
moral. É fato que os códigos morais que influenciam o direito têm se
modificado, mas eles não desapareceram; com efeito, no geral, não
se pode sequer afirmar que se reduziram. As normas jurídicas norte-
americanas de responsabilidade civil, por exemplo, continuam
repletas de categorias dotadas de um sentido moral, como
“negligência” e “imprudência”, e essas categorias rotineiramente
orientam o uso do poder do Estado. Nas últimas décadas, em áreas
como a responsabilidade do fabricante e a defesa do consumidor,
aumentaram os limites legais que coíbem condutas abusivas com
base em ideais morais. No direito penal, a percepção de que o
acusado agiu com “coração depravado e cheio de malícia”* ou com
“dolo” continua a influenciar as decisões tanto de promotores quanto
de juízes. E nos Estados Unidos, ao contrário do que ocorre em
outros países do Ocidente, qualquer pessoa que cause uma morte,
mesmo por acidente, enquanto comete um crime menor, pode ser
acusada de homicídio – uma tentativa talvez um tanto fútil de fazer
com que os delinquentes se comportem com mais responsabilidade
enquanto cometem seus crimes menos graves.
Na mesma veia, a lista de crimes contra a moral que ainda são
punidos nos Estados Unidos é bastante extensa: estupro presumido,
incesto, exibicionismo, prostituição, pornografia infantil e conduta
obscena e lasciva4. A embriaguez habitual é motivo de divórcio na
maioria dos códigos penais dos estados. O adultério continua sendo
ilegal em muitos estados e também no direito militar norte-
americano. Além disso, o sistema jurídico norte-americano
reconhece a moral num outro sentido: escrever ou dizer que alguém
é imoral – que é mulherengo, ou assiste a filmes pornográficos, ou é
avarento, ou cometeria um crime se não tivesse medo de ser
apanhado – é, em alguns estados, causa reconhecida para uma
ação judicial de difamação, de tal modo que o autor não precisa
provar que foi efetivamente lesado pelo ato. Em outras palavras, a
moral não desapareceu de modo algum nem das ruas nem dos
tribunais nos Estados Unidos.
A responsabilidade, além disso, é muitas vezes um produto do
sistema jurídico. O direito de dirigir um automóvel não inclui o direito
de dirigi-lo de forma irresponsável. Aliás, de 1960 para cá, o sistema
jurídico vem impondo cada vez mais restrições aos fabricantes e
condutores de automóveis, restrições essas que têm a função de
aumentar a segurança. Os cônjuges ainda são solidariamente
responsáveis pelas dívidas um do outro. Na maioria dos estados,
ainda é dificílimo negar herança a um cônjuge. Os norte-americanos
também se destacam por obedecer às leis tributárias (mais de
noventa por cento do público lhes obedece à risca); com efeito, são
muito mais obedientes nesse sentido do que os cidadãos de alguns
países onde o individualismo e os direitos individuais têm papel
menos importante na autoimagem social da nação. Na Rússia, por
exemplo, a atual epidemia de sonegação de impostos não decorre
de um apego ancestral aos direitos individuais. Não obstante, nem
sempre um aumento evidente da responsabilidade decorre apenas
do medo de sanções civis e penais: sem algum elemento de “virtude
cívica” – alimentado, sem dúvida, pela percepção pública de que o
governo gasta a receita tributária de maneira mais ou menos
responsável, de que a maior parte das pessoas contribui com uma
porção justa de seus rendimentos e de que os norte-americanos
ricos, em particular, não são totalmente isentos da tributação –, os
custos operacionais da Receita Federal seriam muito maiores.
A QUESTÃO DO EGOÍSMO
A professora Mary Ann Glendon, crítica dos direitos, é uma figura
conhecida e especialmente imparcial. As palavras dela ecoam
preocupações generalizadas com o modo pelo qual os direitos
minam as responsabilidades e a cultura política em geral. “O
‘discurso dos direitos’ que atualmente se ouve nos Estados Unidos”,
diz ela, se caracteriza “pela prodigalidade com que apõe a tantas
coisas o rótulo de ‘direitos’, por seu caráter legalista, seu
absolutismo exagerado, seu hiperindividualismo, sua insularidade e
seu silêncio com relação às responsabilidades pessoais, cívicas e
coletivas.”6 Tendo em mente esse suposto desequilíbrio da nossa
cultura jurídica, Glendon dedica uma atenção considerável ao “dever
de resgatar”, que não é reconhecido pelo sistema jurídico norte-
americano. Caso um transeunte simplesmente ignore uma pessoa
que está se afogando, ele não será responsabilizado, mesmo que
pudesse ter feito o resgate com pouquíssimo esforço. Glendon
deplora esse fato e pede que a lei pelo menos declare a existência
de um tal dever. De início, esse dever talvez pareça muito distante
do mundo legalista dos direitos individuais, mas as aparências às
vezes enganam. Implicitamente, o argumento de Glendon em favor
de um novo dever é um apelo à criação de um novo direito: um
direito à ajuda, a ser concedido a pessoas vulneráveis e a ser
invocado por elas contra outros indivíduos e contra o Estado.
Usando a mesma lógica, os ativistas contrários ao aborto visam
desestimular um comportamento que lhes parece imoral e
irresponsável criando um direito constitucional à vida e atribuindo-o
ao feto. Não somente os direitos criam responsabilidades como
também a imposição de um dever muitas vezes acaba criando um
direito.
A cultura dos direitos é ao mesmo tempo uma cultura de
responsabilização e, portanto, de responsabilidades. Se é assim,
por que os direitos em geral são acusados de promover o egoísmo?
O direito ao voto dá às autoridades públicas um incentivo para
deixarem de lado seu interesse próprio ou, antes, para identificar
seu interesse próprio (o interesse pela reeleição) com o interesse do
público pelo bom governo. Os direitos à igual proteção e a uma
audiência justa não parecem especialmente amorais ou antissociais.
Os direitos protegidos pela Décima Quarta Emenda à Constituição
dos Estados Unidos visam eliminar os efeitos imorais e antissociais
da discriminação racial operada por autoridades públicas dentro dos
estados. Longe de serem antissociais, esses direitos promovem a
decência em nível comunitário e protegem grupos subordinados
contra a exclusão social. Muitos direitos refletem algum grau de
altruísmo por parte dos cidadãos comuns; a maioria deles, quando
são garantidos de modo mais ou menos confiável, podem ajudar a
promover o altruísmo e os hábitos responsáveis.
Alguns dos principais direitos liberais – como a liberdade de
expressão e a liberdade de associação – foram criados para
estimular a deliberação e a interação comunitária, práticas que os
críticos do “discurso dos direitos” parecem, no mais, favorecer. É
claríssimo que a liberdade de associação protege a ação coletiva; o
mesmo se pode dizer do direito de pregar ou de publicar um jornal.
Essas liberdades têm a finalidade de estimular a comunicação
social, não de proteger indivíduos isolados numa ordem pré-social
ou promover o isolamento ou o egocentrismo hedonista. Embora o
direito à liberdade de expressão possa ser reclamado e usado por
indivíduos, ele também é precondição para um processo
eminentemente social – a saber, o da deliberação democrática. A
liberdade de expressão promove a socialidade liberal e dá
oportunidade para que as pessoas se comuniquem, discordem entre
si e negociem livremente umas com as outras num fórum público. A
liberdade de imprensa, que abre canais de comunicação pública,
tem um caráter inequivocamente comunitário. Em tese, com efeito,
todo detentor de um direito à liberdade de expressão pode, na
medida em que o usa, contribuir para com a coletividade e seus
objetivos. É por isso que o governo não pode “comprar” o direito à
expressão, mesmo que o cidadão, em sua qualidade de particular,
queira vendê-lo.
O direito de ser julgado pelo júri e o direito de fazer parte do júri
(independentemente de raça) são mais duas liberdades norte-
americanas consagradas pelo tempo, e estão longe de estimular o
atomismo social. Nesses casos, a comunidade adquire um direito
que garante um papel importante para os cidadãos comuns nos
procedimentos judiciais. Dizer que os norte-americanos vivem numa
“república procedimental” é reconhecer que nenhum indivíduo é juiz
de sua própria causa e que os cidadãos criam e conservam
instituições públicas (entre outras coisas) mediante as quais podem
resolver alguns de seus problemas comuns. Um dos objetivos do
“julgamento justo” é assegurar que cidadãos diferentes possam
trabalhar juntos para decidir com precisão acerca da culpa ou
inocência de outro cidadão. O direito constitucional ao devido
processo legal – como o direito privado de mover ação judicial em
matéria contratual ou de responsabilidade civil – pressupõe que o
Estado, custeado pelo contribuinte, disponibilize instituições de
inquérito às pessoas cujos interesses estão em jogo. O direito a um
julgamento justo é eminentemente social e proporciona um
importante mecanismo para o autogoverno comunitário.
Como já se disse, os direitos criados no campo dos contratos ou
da responsabilidade civil podem ser descritos com bastante precisão
como poderes ou faculdades jurídicas. O direito de mover ação
judicial por negligência ou rompimento de contrato implica o poder
de impor a outro ser humano um fardo financeiro severo ou até
debilitante. Uma vez que nosso sistema jurídico cria e mantém
instrumentos tão perigosos, que podem às vezes ser usados com
vistas a vantagens pessoais, ele também deve fazer um esforço
para que sejam empregados de maneira responsável. Deve prever
compensações para os casos em que uma responsabilidade foi
determinada erroneamente ou um objeto foi entregue a uma pessoa
que não tinha direito ao mesmo. E ele efetivamente o faz, embora
de modo imperfeito. Não há dúvida de que ações judiciais
irresponsáveis e frívolas constituem um problema grave, mas o
sistema jurídico norte-americano empenha uma quantidade
considerável de recursos na tentativa de desestimular o mal uso de
direitos protegidos, entre eles o direito de mover ação judicial.
Blackstone defende da seguinte maneira a “república
procedimental”: “Se os indivíduos tivessem permissão para usar sua
força particular para remediar danos particulares, a justiça social
deixaria completamente de existir; os fortes imporiam sua lei aos
mais fracos e todo homem voltaria ao estado de natureza”7. A
cultura dos direitos encoraja as pessoas a resolver suas diferenças
juridicamente e a buscar por meios legais a compensação por danos
sofridos, sem recorrer à violência e à ameaça de violência. Assim, a
contribuição que ela dá à coexistência social pacífica e à
cooperação social não é pequena de modo algum.
OS DIREITOS ENTENDIDOS
COMO ACORDOS
Capítulo 12
OS DETENTORES DE DIREITOS
COMO DETENTORES DE INTERESSES
NEGOCIAÇÃO E IGUALDADE
A concepção dos direitos como benefícios concedidos aos
cidadãos em troca de apoio político pode dar a impressão de violar
o princípio de que os direitos devem ser garantidos de forma
imparcial. Não é verdade que todos os cidadãos norte-americanos,
inclusive aqueles que pouco têm a oferecer numa troca política, têm
os mesmos direitos? Afinal de contas, não reservamos o direito a
um julgamento justo àqueles que fazem contribuições sociais
tangíveis – às pessoas saudáveis, por exemplo, em contraposição
às portadoras de doenças crônicas. E o direito ao voto não é restrito
às pessoas que mais têm interesses materiais em jogo no país,
como os donos de bens imóveis ou os que pagam impostos
polpudos.
Admitimos que a metáfora da negociação ou acordo pode dar a
impressão de conflitar com a promessa moral da igualdade humana.
A ocorrência de um processo de negociação dá a entender que
nossas autoridades se mostrarão mais dispostas a garantir direitos
àqueles que são capazes de prestar ao Estado (ou aos
representantes deste) um serviço de que este(s) necessite(m). A
concepção dos direitos como acordos impostos pela Justiça implica
que os ricos e poderosos – sem nenhuma razão moral que o
justifique – tendem a obter mais benefícios com um determinado
conjunto de direitos em vigor do que os pobres e impotentes.
Conceber os direitos como acordos é ter por certo que os detentores
de maiores interesses colherão, na verdade, dividendos maiores. Se
os benefícios de bem-estar social são uma moeda de troca, por
exemplo, os cortes nos benefícios atingirão com maior força aqueles
que têm pouco poder político. Numa época de austeridade fiscal, se
os direitos são frutos de negociações, os que não votam nem dão
contribuições aos candidatos (os que recebem vales-alimentação do
governo, por exemplo) sofrerão maior perda de direitos que os
beneficiários dos sistemas Social Security e Medicare, por exemplo.
Embora essa imagem não tenha muito apelo moral, tem grande
poder descritivo e certamente não está muito distante do que ocorre
hoje. Em sociedades como a norte-americana, consideradas em
geral (e com razão) sociedades livres, os ricos e poderosos gozam
de muitas vantagens de que os pobres e impotentes não partilham,
entre elas certas vantagens associadas ao modo como seus direitos
são garantidos. Embora os ricos usem sua riqueza particular para
comprar objetos de luxo (de bom ou de mau gosto), também a usam
para obter, a partir de suas liberdades civis e direitos básicos, mais
benefícios do que os pobres podem ter a esperança de conseguir.
Podem contratar guardas particulares para proteger melhor a si
mesmos e a seus bens. Podem exercer seu direito constitucional de
fazer aborto sem ter de recorrer à assistência do governo. Podem
matricular seus filhos em escolas religiosas, coisa que os pobres
nem sempre conseguem, embora sua liberdade de consciência
religiosa seja, em tese, igualmente garantida pela Constituição. Para
exercer sua liberdade de expressão, os cidadãos mais ricos podem
comprar acesso à grande mídia. Para exercer sua liberdade de
escolher as autoridades que os governarão, podem fazer grandes
contribuições a este ou aquele candidato. E sabe-se muito bem que
os abastados podem contratar os advogados mais espertos e,
assim, aproveitar ao máximo os direitos que a Constituição garante
a todos, direitos que os cidadãos menos bem situados não
conseguem usar com tanto proveito.
A imposição de custos privados – na forma de taxas pagas pelo
usuário, por exemplo – é um dos meios convencionais de
conservação de recursos escassos, como é o caso do acesso a
uma instituição de resolução de conflitos. Mas essas técnicas de
triagem só impedem os pobres de mover ações judiciais pouco
importantes – os ricos podem continuar fazendo isso. É verdade que
o sistema de “honorários de êxito” (pelo qual o advogado concorda
em só receber seus honorários caso o pedido de indenização seja
aceito) é admitido em alguns tipos de ação, e também ele permite
que os pobres tenham acesso aos tribunais. Há também juízes que
ajudam os litigantes pobres, arbitrando o pagamento de honorários
de sucumbência. Não obstante, de maneira geral é verdade que os
ricos tiram muito mais proveito dos direitos supostamente iguais
para todos. Não seria plausível afirmar que a disponibilização de
assistência jurídica aos pobres compensa o desequilíbrio de
recursos entre os réus pobres e ricos.
O modo como direitos supostamente imparciais acabam
favorecendo (pelas mais diversas razões) as pessoas mais dotadas
de recursos particulares é inquietante. É certo que muitas medidas
podem e devem ser tomadas para melhorar a situação, entre elas
leis mais justas de financiamento de campanha eleitoral, um
monitoramento aperfeiçoado dos maus-tratos cometidos por
policiais e a melhoria dos serviços jurídicos oferecidos aos cidadãos
de baixa renda. Mas uma sociedade em que a riqueza privada não
pudesse ser usada para aumentar o valor de uso dos “direitos
iguais” não seria uma sociedade livre no sentido que os norte-
americanos dão a esse termo. Para que todos os réus penais
tivessem acesso a uma defesa mais ou menos da mesma qualidade
independentemente de sua riqueza pessoal, por exemplo, seria
necessário um grau inaceitável de supervisão e controle coercitivo
discricionário por parte do Estado. Um Estado capaz de neutralizar
completamente a influência dos recursos privados sobre o valor dos
direitos individuais teria de ser tão poderoso que até seus casos
mais discretos de abuso de poder provavelmente seriam piores para
a maioria dos cidadãos (os pobres inclusive) que as desigualdades
que tal Estado teria a função de abolir.
O contrato social norte-americano é um embuste na medida em
que não estabelece um piso decente para a pobreza. Porém, a
ajuda aos pobres não acarreta a abolição de toda desigualdade.
Afinal de contas, o que os pobres mais querem não é igualdade,
mas ajuda, e isso eles às vezes podem receber e de fato recebem
(continuamos a discutir sobre o quanto e de que forma) por meio de
vários programas de bem-estar social, educação e emprego. O
esforço para combater condições de subsistência desesperadoras e
garantir que todos tenham uma perspectiva de vida minimamente
decente não deve ser confundido com o igualitarismo como crença
política.
A desigualdade de resultados será inescapável enquanto os
direitos continuarem impondo custos não somente ao erário público,
mas também aos particulares. Todo cidadão norte-americano tem o
direito de processar a polícia numa ação civil pedindo indenização
por maus-tratos, mas somente quem dispõe de recursos privados
substanciais terá a possibilidade de fazê-lo com êxito. As pessoas
que mais tendem a sofrer maus-tratos por parte dos policiais
normalmente não dispõem de tais recursos e por isso, na prática,
não gozam desse direito. A liberdade de expressão e de imprensa, o
direito a um advogado, o direito de escolher as autoridades públicas
e até a liberdade de consciência – todos esses direitos se tornam
mais expressivos quando aos recursos públicos vêm se somar os
privados. E não é necessário fazer extensos comentários para
demonstrar que também o igual direito de adquirir bens particulares
é mais aproveitado por certos indivíduos do que por outros.
Porém, o poder aquisitivo pessoal não é a única fonte de
desigualdade na distribuição dos direitos constitucionais e demais
direitos nos Estados Unidos. Serviços públicos essenciais são
distribuídos de maneira desigual porque os fracos e os pobres,
relativamente desorganizados, não têm peso político suficiente para
obter a parte que lhes cabe dos recursos públicos. De modo infeliz
mas inevitável, o poder sempre terá alguma influência para
determinar quem perde e quem ganha com uma certa distribuição
de dinheiro. Os gastos que os políticos se recusam a cortar são, em
geral, aqueles que proporcionam benefícios especiais a grupos
sociais bem organizados. Os direitos, sendo também serviços
administrados pelo governo, têm tão pouca probabilidade de serem
igualmente distribuídos entre os cidadãos quanto as obras públicas
têm pouca probabilidade de serem equitativamente distribuídas por
todos os locais do país, inclusive aqueles cujo poder de pressão
política é pequeno. Com essa observação, não temos a intenção de
parecermos cínicos, complacentes ou resignados. Reconhecer a
dependência dos direitos em relação ao poder não é cinismo, pois o
próprio poder tem diversas fontes. Não advém somente do dinheiro,
da autoridade política ou do status social; também deriva de ideias
morais capazes de mobilizar um apoio social organizado. Os
ativistas dos direitos civis trabalharam duro para conseguir apoio
para suas ideias porque reconheciam, sem se queixar, que os
direitos dependem da organização social e do poder político. Além
disso, a contribuição inquestionável que o movimento pelos direitos
civis deu à causa da proteção dos direitos dos afro-americanos
corrobora a tese de que os direitos refletem não somente os ditames
da consciência moral, mas também a prática política.
Sob um regime liberal, a “igual proteção” – ou pelo menos a
obrigação moral de proteger os direitos dos fracos – pode ter um
significado sério e concreto. Porém, esse significado não será nem
descoberto nem esclarecido, caso nos recusemos a reconhecer as
poderosas desigualdades de influência que existem em todas as
sociedades, até nas liberais.
1 Richard Posner, Economic Analysis of Law, 4ª. ed. (Boston: Little, Brown,
1992), pp. 463-4.
2 Norman Frohlich e Joe Oppenheimer, em Choosing Justice (Berkeley:
University of California Press, 1993), documentam de forma empírica as
surpreendentes opiniões de várias pessoas nesse sentido.
3 John Stuart Mill, “Principles of Political Economy”, em Collected Works, org.
J. M. Robson, vol. 3 (Toronto: University of Toronto Press, 1965), p. 962.
4 Theda Skocpol, Protecting Soldiers and Mothers: The Political Origins of
Social Policy in the United States (Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 1992).
Capítulo 14
DIREITOS DE BEM-ESTAR
E POLÍTICAS DE INCLUSÃO
REDISTRIBUIÇÃO
Mal tocamos na questão do uso do poder do Estado para ajudar
os desprivilegiados; por isso, este livro não pode apresentar, à guisa
de conclusão, um projeto para a reforma do Estado de bem-estar
norte-americano. Juízos particulares dependem de fatos
particulares. Como outras iniciativas políticas, os esforços para
ajudar os desprivilegiados às vezes têm um efeito oposto ao
pretendido; mas a condenação geral da própria ideia de
redistribuição não tem sentido. A redistribuição está por toda parte;
não ocorre somente quando o Estado recolhe o dinheiro dos
contribuintes e o entrega aos necessitados. Também ocorre, por
exemplo, quando a força pública é disponibilizada – às custas dos
contribuintes em geral – para proteger indivíduos ricos contra a
violência privada e as ameaças de violência. Até o chamado “Estado
mínimo” exige que a renda dos particulares seja arrecadada para
finalidades públicas. O exemplo mais drástico dessa tributação
regressiva ocorre quando os pobres são convocados para o serviço
militar em tempo de guerra para defender, entre outras coisas, os
bens dos ricos contra predadores externos. Até o Estado mais
mínimo redistribui os recursos dos que têm “capacidade
contributiva” a fim de proteger os vulneráveis. Em alguns casos, os
protegidos (como os proprietários de casas em Westhampton,
ameaçadas por um incêndio) são mais ricos que aqueles que arcam
com a maior parte do ônus de proteção.
A força e a fraqueza não são nem situações físicas nem fatos
brutos. A força relativa dos agentes sociais depende menos dos
músculos e do cérebro do que de instituições e direitos jurídicos e
da capacidade de organização e coordenação social. No final do
século XX, os donos de bens imóveis só são relativamente fortes
em razão do apoio do governo, ou seja, de leis cuidadosamente
redigidas e impostas às custas do público, que lhes permitem
adquirir e manter aquilo que é “seu”. Portanto, é impossível definir
quem é forte e quem é fraco na sociedade sem saber ao lado de
quem estará a autoridade política – ou seja, sem levar em conta
decisões anteriores sobre a distribuição política de recursos públicos
sociais escassos. Os ricos são fortes porque são protegidos por
sistemas de direitos de propriedade e de justiça penal criados por lei
e exigíveis judicialmente.
Assim, resta-nos voltar àquelas questões perturbadoras: os
atuais investimentos públicos na proteção e garantia dos direitos
são sensatos ou insensatos? São equitativos ou parciais? Presume-
se que, numa democracia, os investimentos públicos sejam feitos
pelos cidadãos contribuintes na esperança de que deem um bom
retorno social, entendido este de maneira muito ampla. Nesse caso,
os retornos de nossos investimentos estão sendo bons, ou pelo
menos aceitáveis? Os direitos de propriedade, por exemplo, valem
tudo o que nós, enquanto nação, gastamos para protegê-los?
Essas perguntas não podem ser respondidas abstratamente,
sem sabermos, por exemplo, de que outro modo os recursos
públicos escassos poderiam ser empregados. Mas uma coisa é
certa: a dependência dos direitos de propriedade (claramente
definidos e vigorosamente protegidos) em relação ao sistema
jurídico, ao Estado e aos recursos públicos não diminui em nada o
seu valor. O direito à propriedade privada alimenta o crescimento
econômico. Também amplia os horizontes de tempo e aumenta a
segurança psicológica dos cidadãos individuais, assegurando-lhes,
por exemplo, que suas expressões de descontentamento político
não colocarão seus bens em risco. Embora a proteção do direito de
propriedade seja incialmente custosa, é também um investimento
inteligente, que acaba por financiar a si próprio. (É claro que há
diferentes sistemas de propriedade privada e que mesmo pessoas
razoáveis podem discordar acerca das vantagens e desvantagens
de cada um. Mas alguma forma de propriedade privada é uma parte
indispensável de qualquer sociedade moderna que funcione como
deve.)
O direito à educação pública pode ser justificado da mesma
maneira; a boa educação é uma precondição para muitas outras
coisas e tem tanto um valor intrínseco quanto um valor instrumental.
Especialmente para as crianças, o direito à assistência médica faz
muito sentido; a saúde é valiosa em si e torna possíveis muitas
outras coisas. Assim, dispêndios públicos substanciais em ambas as
áreas se justificam exatamente da mesma maneira que os
dispêndios associados à proteção da propriedade privada. Todos
esses direitos criam e estabilizam condições propícias ao
autodesenvolvimento individual e à coexistência e cooperação
coletivas.
Dizer que a imposição dos direitos pressupõe a distribuição
estratégica de recursos públicos equivale, acima de tudo, a lembrar
de como as partes se encaixam no todo, como o individualismo
liberal – na medida em que se opõe à anarquia irrefreável do estado
de natureza – pressupõe uma comunidade politicamente bem
organizada. A liberdade individual é constituída e promovida por
contribuições coletivas. Dentre essas contribuições, o custo dos
direitos é apenas a mais fácil de documentar. A atenção à questão
do custo, portanto, nos obriga a repensar e abrandar a oposição
entre indivíduo e sociedade, muito conhecida mas também muito
exagerada.
Os cidadãos norte-americanos conseguem se proteger contra a
intromissão indesejada da sociedade em seus assuntos particulares,
mas só o fazem com o apoio regular e constante da própria
sociedade. Isso vale até para os mais autoconfiantes e
individualistas entre os detentores de direitos. A liberdade dos
indivíduos não pode ser protegida a menos que a comunidade reúna
seus recursos e os aplique de maneira inteligente para prevenir e
remediar violações de direitos individuais. Os direitos pressupõem
um Estado eficaz, porque é somente por meio do Estado que uma
complexa sociedade moderna é capaz de alcançar o grau de
cooperação social necessário para transformar o papel e a tinta das
declarações em liberdades efetivamente exigíveis. Com efeito, os
direitos só podem ser pintados como muralhas construídas para
defender o indivíduo contra o Estado se a indispensável contribuição
da autoridade pública para a construção e manutenção dessas
muralhas for injustificadamente ignorada. O Estado ainda é o mais
eficaz instrumento disponível pelo qual uma sociedade politicamente
organizada é capaz de buscar seus objetivos comuns, entre os
quais o de assegurar a proteção dos direitos jurídicos de todos.
Apêndice
ALGUNS DADOS SOBRE OS DIREITOS E SEU CUSTO
DÓLARES (EM
ATIVIDADE OU INSTITUIÇÃO
MILHÕES)
1. Funcionamento do sistema judiciário
Tribunal Recursal dos Estados Unidos 303
Tribunal Tributário dos Estados Unidos 33
Tribunais Distritais 1.183
Comissão de Sentenciamento dos Estados
9
Unidos
Suprema Corte dos Estados Unidos 26
Atividades jurídicas do Ministério da Justiça 537
Corporação de Serviços Jurídicos 278
Programa de redução de crimes violentos 30
Despesas com presidiários federais 351
Tribunal Recursal dos Veteranos 9
Sistema prisional federal 2.465
2. Monitoramento do governo
Secretaria de Ética do Governo 8
Contadoria Geral 362
Comissão Eleitoral Federal 26
3. Facilitação dos arranjos de mercado
Comissão de Valores Mobiliários 103
Comissão Federal de Comércio 35
Inspeção de plantas e animais 516
Segurança e inspeção alimentar 545
Comissão de Segurança dos Bens de
41
Consumo
4. Proteção dos direitos de propriedade
Proteção de patentes e marcas registradas 82
Socorro e seguro contra calamidades 1.160
Gestão federal de emergências 3.614
Empréstimos após calamidades comunitárias 112
Gestão e proteção de florestas 1.283
Atividades imobiliárias 68
Fundo para a América rural (apoio à
100
agricultura)
Gestão de registros ligados à propriedade 203
5. Defesa nacional
Salários e ajudas de custo dos oficiais do
5.808
Exército
Salário e ajudas de custo do pessoal alistado 12.457
Salário e ajudas de custo dos cadetes 35
Benefícios e serviços dos veteranos 3.830
Subsistência do pessoal alistado 769
Total de obrigações militares do Ministério da
20.497
Defesa
6. Educação
Gastos educacionais, p. ex. educação
530
estadual e municipal
Educação básica, secundária e vocacional 1.369
Comissão de Iguais Oportunidades de
233
Emprego
7. Distribuição de renda
Administração do programa de vales-
108
alimentação
Assistência alimentar e nutricional 4.200
Administração da Seguridade Social 6.148
8. Proteção ambiental
Agência de Proteção Ambiental 41
Lei do Ar Limpo 217
Resíduos tóxicos 159
Pesticidas 64
Conservação de recursos naturais 644
Qualidade da água 244
9. Outros
Impressão de publicações do governo 84
Serviço postal 85
Administração dos Arquivos e Registros
224
Nacionais
Conselho Nacional de Relações de Trabalho 170
Comissão de Revisão de Segurança e Saúde
8
Ocupacional
Secretaria do Censo 144
Doutor Proktor - O Pó de Soltar Pum
Nesbø, Jo
9788578279318
109 páginas