Economics">
Osório Desigualdade Racial e Mobilidade Social
Osório Desigualdade Racial e Mobilidade Social
Osório Desigualdade Racial e Mobilidade Social
e a desigualdade racial
no Brasil 120 anos
após a abolição
Mário Theodoro (org.)
Luciana Jaccoud Rafael Guerreiro Osório Sergei Soares
1a edição
Novembro de 2008
As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil : 120 anos
após a abolição / Mário Theodoro (org.),
Luciana Jaccoud, Rafael Osório, Sergei Soares . –
Brasília : Ipea, 2008.
176 p. : gráfs., tabs.
Inclui bibliografia.
ISBN
CDD 305.800981
CAPÍTULO
INTRODUÇÃO
O
problema da persistência da desigualdade entre grupos raciais na socie-
dade brasileira tem sido um objeto central na agenda de pesquisa das
ciências sociais brasileiras. A partir da segunda metade do século XX,
um número crescente de teses e estudos diversos procurou responder como é
possível a persistência dessa desigualdade num mundo onde as pessoas parecem
estar cada vez mais convencidas da, parafraseando Montagu (1998), falácia da
raça? Num tempo em que tantos se prontificam a afirmar a unidade da espécie
humana, que “raça não existe”, em que comportamentos abertamente racistas
não são mais tolerados como no passado, e em um país que transformou o pre-
conceito em crime? Quais são os mecanismos de reprodução social que mantêm
os negros brasileiros concentrados na base da pirâmide social, mesmo passado
mais de um século da abolição, e a despeito das profundas mudanças estruturais
que ocorreram, e ocorrem, no Brasil?
A tradição sociológica de estudos das questões raciais no Brasil, que sempre
deu ênfase às desigualdades socioeconômicas, tem explicado a desigualdade ra-
cial em termos das relações entre classe e raça, tendo como pano de fundo o que
66 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO
se pode chamar de “condição inicial”. Essa condição inicial é dada pelo inescapá-
vel fato histórico de o que hoje é o Brasil ter sido outrora um território invadido
e colonizado pelos portugueses, os quais, por meio da força, escravizaram pri-
meiro os habitantes nativos e, depois, enormes contingentes de africanos. Inde-
pendentemente das questões sobre a especificidade das relações entre senhores
e escravos no Brasil Colônia, e do “branqueamento” demográfico causado pela
volumosa imigração européia na virada do século XX, esse passado legou ao
Brasil uma composição racial específica da população que estava – e ainda está –
associada à estratificação socioeconômica.
No momento da abolição, foram suprimidas as barreiras formais que a escra-
vidão oferecia à competição dos negros com os brancos pelas posições sociais.
Mas quando os portões são abertos e se faculta aos negros o ingresso na corrida,
os brancos já estão quilômetros adiante. Essa é a condição inicial. Para que os
negros superem a desvantagem imposta por ela, é preciso que, a cada geração,
percorram uma distância maior do que a percorrida pelos brancos. Se não con-
seguem fazê-lo, a desigualdade racial existente no momento da abertura dos
portões persiste.
O elo entre condição inicial, raça e classe, na tradição sociológica de explica-
ção das desigualdades raciais foi sempre a mobilidade social. Neste capítulo são
abordadas as teorias que foram aventadas para explicar o problema. Ressalvas
feitas ao eterno dilema de toda categorização envolver algum grau de simplifica-
ção e de supressão das idiossincrasias das explicações proporcionadas por cada
um dos estudiosos do tema, considera-se que podem ser identificadas três ondas
teóricas, as quais serão analisadas no que dizem a respeito à reprodução da desi-
gualdade socioeconômica entre os grupos raciais.
Não se pretende revisitar aqui o pensamento social do Brasil Colônia, Império ou
República, a recepção do racismo científico pela intelectualidade brasileira na virada
do século XX, estudar a identidade, a cultura ou os movimentos sociais negros, a par-
ticipação política, tampouco teorias contemporâneas sobre negritude ou etnicidade.
Tais temas têm sido abordados de forma competente e exaustiva por vários autores,
dentre os quais faço questão de citar alguns trabalhos: os de D’Adesky (2001), Han-
chard (2001), Guimarães (2002, 2004), Costa (2006) e Hofbauer (2006).
Existe mesmo um descompasso muito grande entre a produção dedicada
a esses temas, que é volumosa e variada, e a produção que busca entender os
CAPÍTULO 3 – DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UM BALANÇO DAS TEORIAS 67
onda implica fluidez, continuidade e diferença. Numa enseada, uma mesma onda
chega às areias em momentos distintos. Em alguns pontos da enseada a onda que
a sucede demora a chegar; em outros, ambas estouram quase simultaneamente,
ao ponto de ser difícil distingui-las. É o caso dos movimentos teóricos a serem
discutidos. Para alguns autores, há momentos da obra em uma onda e momentos
em outra. Há idéias que são comuns às três ondas: elas são como o refluxo de
uma onda já estourada que, ao retornar ao mar, incorpora-se à onda seguinte,
dando-lhe maior volume. É nesse sentido que se usa aqui a noção de onda te-
órica, sem a pretensão de fixar com rigidez diferenças entre períodos ou entre
autores, mas com foco nas principais idéias que distinguem cada onda.
O negro de cor mais escura parece ser o que emergiu mais recentemente da es-
cravidão e por isso ocupa ainda os degraus mais baixos da vida econômica e social,
sofrendo com mais intensidade o preconceito de classe.
Arthur Ramos (apud PIERSON, 1945, p. 24)
Não existem castas baseadas na raça; existem somente classes. Isto não quer dizer
que não existe algo que se possa chamar propriamente de “preconceito”, mas sim
que o preconceito existente é um preconceito de classe e não de raça.
Donald Pierson (1945, p. 402)
[...] as pessoas de cor têm seu status condicionado por suas qualidades e aptidões
individuais, competindo em igualdade de condições com o branco.
Thales de Azevedo (1996, p. 164)
condescendiam em dar algum status aos filhos nascidos de suas aventuras com
as suas escravas negras. Além disso, descreve uma colonização que se dera sob
o signo da ausência de mulheres brancas, mas com a presença de mulheres afri-
canas e indígenas não tolhidas pelos códigos que regiam a sexualidade européia,
ou simplesmente presas fáceis da violência sexual. Nesse paraíso, os sexualmente
ecléticos aventureiros portugueses espalhavam a sífilis e numerosos descenden-
tes mestiços.
Para os representantes da primeira onda, uma das provas de que o racismo
não existia ou era de pouca monta na sociedade brasileira, seria a mobilidade as-
cendente dos mulatos. O fato de que havia mestiços entre as elites econômicas e
políticas, ou desempenhando – com reconhecimento social – ocupações prestigio-
sas, era tido como sinal da ausência de preconceito racial. Esses mestiços teriam
obtido sucesso por estar há tempos afastados da escravidão, por seus ancestrais
terem sido libertos antes da abolição. Negros no extremo escuro da escala de cor
não estariam tão integrados à sociedade livre – eles ou seus parentes ascendentes
teriam experimentado uma escravidão mais recente, e esta seria a razão de sua
condição social mais baixa. Com o tempo e o desenvolvimento econômico, toda-
via, oportunidades criar-se-iam para todos e a situação reverter-se-ia.
Subjacente a essa idéia está uma tese de miscigenação branqueadora. Ro-
mero (1949), por exemplo, ainda um autor racista do ponto de vista da hierar-
quização de negros e de brancos, considerava que, ao longo do processo de
contato racial e de miscigenação, os elementos étnicos mais fracos, negros e
índios, sucumbiriam ante ao mais forte, o europeu. Todavia, o tipo resultante,
genuinamente brasileiro, não seria inferior, pois reuniria as características dos
indivíduos de maior eugenia nas três raças. Esse tipo étnico não seria branco, mas
também não seria mulato – seria moreno. Pierson (1945), que vê nas declarações
de seus informantes a valorização do tipo moreno como ideal de beleza brasi-
leiro, desenvolve uma argumentação semelhante. Considera que o aumento da
proporção de mestiços se dá a expensas do desaparecimento dos negros, e não
dos brancos europeus, e que a progressiva miscigenação levaria a uma espécie de
absorção total dos próprios mestiços pelos brancos.
Em Negroes in Brazil, publicado em 1942 e considerado um dos principais ca-
talisadores da imagem internacional do Brasil como paraíso das relações raciais,
Donald Pierson (1945) considerava que não havia visto em Salvador, Bahia, onde
CAPÍTULO 3 – DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UM BALANÇO DAS TEORIAS 71
conduzira sua pesquisa, o tipo de preconceito racial então vigente nos Estados
Unidos. Admitia a existência de preconceito contra os negros, só que não racial,
mas de classe, pois, no Brasil, negros e brancos não estavam separados em castas,
como em sua terra natal. Todavia, como outros representantes da primeira onda,
ponderava que talvez a ausência de preconceito racial pudesse ser decorrente de
os negros não terem, até então, entrado em competição efetiva com os brancos.
Arthur Ramos, por sua vez, na introdução escrita à edição brasileira do livro
de Pierson (1945), endossava as idéias do autor e as esclarecia: os negros de cor
mais escura haviam sido escravos por mais tempo, e estando nas posições sociais
inferiores sofriam mais com o preconceito de classe que os mulatos, que já con-
tavam com representantes que haviam ascendido socialmente.
Seguindo a trilha aberta por Donald Pierson (1945), Thales de Azevedo
(1996) empreendeu um estudo dedicado à mobilidade e à estratificação social
em Salvador, publicado em 1953, como parte do Projeto UNESCO. Apesar de
reconhecer a existência de preconceito racial, Azevedo reduz sua importância,
considerando-o muito brando ante o de classe. Além disso, argumentava que
somente negros e mestiços não “socialmente brancos” sustentavam a existência
de racismo.
Sobre a mobilidade social, Azevedo (1996) descreveu a cidade de Salvador da
década de 1940 como uma sociedade multirracial de classes, na qual os negros e
os brancos competiam em condições de igualdade, diferenciados apenas por suas
habilidades e por outros atributos pessoais. Negros e brancos teriam, portanto,
chances equivalentes de ascensão social. Todavia, em estudo posterior, sem con-
tradizer essas assertivas, Azevedo (1966) ponderou que a ascensão social não
implicava mudança completa de status, pois galgar postos rumo a ocupações mais
valorizadas não representaria necessariamente ascensão em outras esferas da
vida social: o negro e o mestiço poderiam, por exemplo, vir a serem advogados
ou engenheiros, mas dificilmente pertenceriam aos clubes ou seriam introduzi-
dos nos círculos familiares dos brancos nessas profissões.
Outra frente de pesquisa do Projeto UNESCO foi liderada por Charles Wa-
gley (1952a) e dedicou-se às relações entre raça e classe no Brasil rural. O volume
resultante foi publicado em 1952 com trabalhos de Wagley (1952b), que estudou
uma pequena comunidade rural amazônica, e de Harry Hutchinson (1952), Marvin
Harris (1952) e Ben Zimmerman (1952), que estudaram comunidades rurais de
72 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO
características distintas no interior da Bahia. O livro conta com um texto final que
resume e integra os principais achados das quatro pesquisas (WAGLEY, 1952a).
A presença de pretos e pardos entre as elites dos locais é vista por Wagley e seus
colegas como um claro signo da passagem de uma sociedade de castas, a dos
períodos colonial e imperial, a uma sociedade de classes, embora em algumas das
comunidades estudadas ainda houvesse vestígios de uma casta branca aristocrata
cujo acesso estava fechado aos negros.
Os quatro autores supracitados estavam bem familiarizados com o trabalho
de Pierson (1945) e, a despeito das diferenças históricas e estruturais das co-
munidades estudadas, chegaram à conclusão de que as assertivas daquele autor
acerca das relações entre hierarquias de classe e de raça em Salvador poderiam
ser generalizadas para o Brasil rural. Em especial, consideravam generalizável
a tese de que o preconceito de classe teria preponderância sobre o de raça,
existente, mas de tão pouca intensidade que se poderia considerar o Brasil uma
nação sem problemas raciais.
Assim, na primeira onda teórica, a proximidade histórica da escravidão é
indicada como explicação para a sobre-representação dos negros nos estratos
sociais inferiores e para sua sub-representação nos superiores. Todavia, o rápi-
do desenvolvimento econômico do país teria o condão de propiciar numerosas
oportunidades para a melhoria do status socioeconômico dos brasileiros de to-
das as cores, e os negros dos baixos escalões teriam condições de ascender às ca-
madas médias, fazendo desaparecer a correspondência entre cor e estratificação
social. Isso no cenário otimista no qual o preconceito de classe seria ameno ou
mesmo inexistente, com a miscigenação e a “morenidade” do brasileiro valoriza-
das. Mas nenhum dos principais representantes da primeira onda deixou de notar
que a competição efetiva dos negros com os brancos poderia gerar preconceito
e discriminação.
[...] as tensões raciais que aqui se desenrolam são [...] manifestações históricas espe-
cíficas, [...] é inteiramente arbitrário [...] tomar-se a situação de opressão racial noutro
país – geralmente se escolhem os Estados Unidos [...] – transformá-la em modelo e ir
CAPÍTULO 3 – DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UM BALANÇO DAS TEORIAS 73
julgar todas as demais situações concretas de relações de raça que existem no mundo
[...]. Esta prática [...] consiste em levar qualquer pesquisa sobre relações de raças a
desembocar na conclusão de que tudo vai bem porque não está tão ruim quanto no
Deep South.
Luiz de Aguiar Costa Pinto (1998, p. 273)
[...] qualquer indivíduo de cor poderá citar exemplos sucessivos, [...] os quais mos-
tram como a situação de fato não coincide com a situação idealizada, enfim, como a
sociedade nacional restringe a mobilidade social de negros e mulatos e lhes reserva
humilhações e dissabores de que os brancos, em igualdade de condições, estão isen-
tos.
Oracy Nogueira (1998, p. 196)
[...] quanto mais elevada a classe a que pertence o branco, mais preconceituoso ele pa-
rece ser. Exatamente o oposto do que afirmam os mulatos e negros que sobem [...].
Octavio Ianni (1987, p. 62-63)
[...] a sociedade local não proporcionou muitas oportunidades de ascensão social aos
negros, que continuaram a desempenhar como antes, os serviços para os quais eles
eram naturalmente aptos: o trabalho braçal econômica e socialmente desqualificado.
Numa situação social como essa existem, obviamente, muitos estímulos para a pre-
servação da antiga ideologia racial dos brancos
Fernando Henrique Cardoso (2000, p. 200)
questionar seriamente a idéia de uma democracia racial brasileira, um mito que tem
provado ter uma extraordinária resiliência.
Nelson do Valle Silva (1978, p. 287, 291)
Pode-se dizer que da terceira onda teórica provém a explicação, hoje hegemô-
nica, sobre a persistência da desigualdade racial no Brasil. É com ela que dialogam
os estudos empíricos realizados a partir da década de 1980. Uma característica
interessante dessa terceira onda é sua relativa homogeneidade. Seus dois expoen-
tes, Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva dedicaram suas teses de doutorado,
ambas defendidas em 1978, nos Estados Unidos, ao tema das desigualdades raciais
no Brasil dos anos 1960/70. São duas teses distintas, mas ambas fizeram uso de
técnicas de análise quantitativa modernas. Os dois autores, produzindo na mesma
época sobre o mesmo tema, com enfoques semelhantes, ambos radicados no Rio
de Janeiro, após voltarem dos EUA, acabaram por se aproximar. E já em 1981, Sil-
va (1988) acusava o nascimento da terceira onda, marcando o início dessa parceria
intelectual com Hasenbalg e reivindicando a eles a paternidade de uma nova linha
de pesquisas sobre a desigualdade racial no Brasil.
Na parceria intelectual, coube a Hasenbalg a primazia no trato com as ques-
tões de ordem teórica, e a Silva, a primazia no trato das questões metodológicas
e técnicas. Essa divisão emerge das próprias teses de doutorado de cada um. A
de Hasenbalg (2005), voltando ao período antes da abolição para tratar da persis-
tência da desigualdade racial no Brasil industrializado, assemelhava-se a trabalhos
da segunda onda, mas tentando se distinguir dela, e em particular de Fernandes
(1965, 2007). Uma das características que conferiam distinção à tese de Hasen-
balg (2005) era o emprego de métodos quantitativos que envolviam modelos
estatísticos, em contraposição às estatísticas meramente descritivas empregadas
pelos representantes da segunda onda.
Já a tese de Silva (1978) não continha grandes elucubrações teóricas ou con-
siderações sobre o passado histórico escravista e seu legado, era eminentemente
empírica. Um verdadeiro tour de force técnico na análise do processo de realiza-
ção socioeconômica, quantificando o peso da discriminação racial nos resultados.
A tese impressiona pelo uso de técnicas então recentemente desenvolvidas, hoje
amplamente empregadas, como a decomposição de Oaxaca-Blinder para a in-
vestigação da desigualdade salarial entre negros e brancos.
82 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO
novas e mais detalhadas evidências, trabalhadas com técnicas cada vez mais so-
fisticadas. Contudo, não revelam fatos novos, apenas reforçam a interpretação
original da teoria das desvantagens cumulativas. Isso pode ser percebido a partir
de produções mais recentes desses autores (HASENBALG, 2006; SILVA, 2000).
Do ponto de vista do tema aqui abordado, ante a persistência da desigualda-
de socioeconômica entre grupos raciais produzida por interações entre classe e
raça nos processos de mobilidade social, não se pode considerar a existência de
uma quarta onda teórica. Embora a produção sobre a desigualdade tenha aumen-
tado exponencialmente, principalmente a partir da segunda metade da década de
1990, não há novas contribuições teóricas relevantes.
Em termos de reflexões teóricas sobre os mecanismos de reprodução da
desigualdade racial (e não se raça é ou não importante para a identidade nacional
e outras reflexões congêneres de cunho antropológico-filosófico), o que pode-
ria parecer uma nova onda teórica seria o trabalho de Edward Telles (2003),
apresentado como “uma nova perspectiva sociológica”. Todavia, no que toca
ao tema aqui tratado, não há nada inovador. Capítulo a capítulo, todos os temas
que foram objeto de investigação empírica por Telles (2003) foram tratados
pelos principais expoentes da segunda e da terceira onda. Existe, porém, uma
discordância em relação ao tratamento dado a pardos e pretos. Telles considera
que são grupos distintos em características socioeconômicas, em oposição a
Silva (1978), que os considerou como um só grupo, homogêneo. Telles também
traz reflexões sobre o debate acerca da adoção de políticas afirmativas no Brasil
na década de 1990. Mas, analisando friamente, do ponto de vista dos mecanis-
mos de reprodução da desigualdade racial, Telles se insere perfeitamente no
contexto da terceira onda.
Ainda dentro do paradigma da teoria das desvantagens cumulativas que
emerge da terceira onda, alguns estudos recentes têm contribuído chamando
a atenção para dois pontos. O primeiro ponto é o de que a origem social e a
discriminação racial não são fatores independentes nos processos de mobili-
dade social, mas interagem. Dependendo da origem social dos negros, eles
podem sofrer de forma mais intensa os efeitos da discriminação (OSORIO,
2003, 2008; RIBEIRO, 2006). Embora esse aspecto possa ser apreendido a
partir dos resultados apresentados por Hasenbalg e Silva, a interpretação he-
gemônica da teoria das desvantagens cumulativas tem sido a de que o efeito
CAPÍTULO 3 – DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UM BALANÇO DAS TEORIAS 87
3.4 CONCLUSÕES
pela origem social do que propriamente pela raça. A saída é considerar que a
raça influencia a origem social – o problema é que isso acaba por levar à condição
inicial, a herança da escravidão, aspecto que se deseja “desenfatizar”.
Além disso, embora as técnicas quantitativas usadas nos estudos que se
inspiram a terceira onda sejam indubitavelmente mais sofisticadas que as dos
seus antecessores, há problemas no que toca à mensuração da discriminação.
Para medir a discriminação por resíduo, o conceito subjacente é o de que a
discriminação deve ser vista como um tratamento/resultado desigual para
pessoas que são o menos distintas possíveis, diferenciadas apenas pela raça.
Todavia, os controles empregados em alguns estudos para garantir que os in-
divíduos racialmente diferentes sob comparação sejam tão parecidos quanto
possível em todas as outras dimensões relevantes, freqüentemente deixam
muito a desejar. Isso faz com que a discriminação racial seja sobreestimada
nessas análises.
Um terceiro aspecto a ser considerado diz respeito à crença no volume de
mobilidade introduzido pela transição acelerada de uma sociedade de castas para
uma sociedade de classes. Com a notável exceção de Oracy Nogueira, os repre-
sentantes das três ondas teóricas subscrevem essa suposição. Trabalhos específi-
cos sobre a mobilidade social no Brasil, mesmo aqueles que não se preocuparam
com a questão racial, apontaram a existência de um volume alto de mobilidade,
porém de curta distância, com alto grau de persistência intergeracional.
Contudo, o uso de esquemas de classe típicos dos estudos de mobilidade so-
cial pode levar à confusão da mobilidade gerada pelo aumento das oportunidades
com as mudanças na estrutura ocupacional. Embora seja razoável supor que uma
sociedade de classes possui mais mobilidade do que uma de castas, não há por
que supor que seu grau seja muito mais elevado. Tanto os estudos de mobilidade
intergeracional de renda quanto de classe no Brasil têm apontado uma sociedade
extremamente rígida, onde o que as pessoas são é em larga escala determinado
pelo que foram seus pais.
Embora a terceira onda tenha buscado desvincular a persistência da desigual-
dade da herança do passado escravocrata, essa assertiva deve ser entendida como
se referindo ao aspecto funcional do racismo e do preconceito. Não é possível
desvincular a persistência da desigualdade da condição inicial: considerar o fato de
que, no momento da abolição, os negros estão concentrados na base da pirâmide
CAPÍTULO 3 – DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UM BALANÇO DAS TEORIAS 91
social é condição para entender como a interação classe e raça nos processos de
mobilidade produz tal persistência. E sendo a persistência intergeracional muito
elevada no Brasil, de renda, de classe, ou de status socioeconômico, a tendência
de perpetuação da desigualdade racial legada pela escravidão se manteria mesmo
na ausência de discriminação racial.
O fato de que a origem social é o principal determinante da reprodução da
desigualdade social, todavia, não deve colocar em segundo plano a importância
da discriminação racial. A rigidez do regime brasileiro de mobilidade, na ausência
de discriminação, por si faria com que a desigualdade racial perdurasse por muito
tempo. Mas ela se reduziria progressivamente e, se isso não ocorre, é por que a
discriminação provoca a estagnação e a estabilidade.
Longe de tornar desaconselháveis as políticas de combate às desigualdades
raciais, o fato de que a origem social é o principal determinante dessas desigual-
dades torna ainda mais premente a necessidade dessas políticas.
Como dito no início, a equalização racial exige que os negros avancem rela-
tivamente mais do que os brancos, a cada geração. Acabar com a discriminação
racial nos processos de mobilidade é condição necessária, mas não suficiente
para a equalização. Sem a discriminação, os negros correrão à mesma velocidade
média que os brancos, alguns mais rápidos, outros mais devagar, o que levará
inexoravelmente à equalização. Todavia, dada a elevada persistência intergeracio-
nal – em outras palavras, grande desigualdade de oportunidades – a equalização
racial demoraria muito tempo para acontecer no Brasil, mesmo sem discrimina-
ção. Muito mais tempo, com certeza, do que os negros brasileiros devem estar
dispostos a esperar.
A discriminação racial funciona para os brancos como calçados que usam para
correr contra negros descalços. Torna a corrida tranqüila para os primeiros e ex-
tenuante para os últimos. Para que a equalização racial ocorra no Brasil, em um
horizonte de tempo aceitável, é preciso, primeiro, tirar os calçados dos brancos.
Depois, deixá-los correrem descalços por algum tempo e calçar os negros para
que os alcancem. No Brasil, faltam ainda políticas mais eficientes de combate
à desigualdade racial, baseadas em evidências, que aproveitem os conhecimen-
tos existentes sobre a reprodução da desigualdade racial, dotadas de orçamento
adequado e com ampla cobertura. Essas políticas são os calçados que os negros
brasileiros merecem receber.
92 AS POLÍTICAS PÚBLICAS E A DESIGUALDADE RACIAL NO BRASIL – 120 ANOS APÓS A ABOLIÇÃO
REFERÊNCIAS
MONTAGU, A. Man’s Most Dangerous Myth: the Fallacy of Race. New York: Al-
tamira, 1998.
NOGUEIRA, O. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo:
T.A. Queiroz, 1985.
NOGUEIRA, O. Preconceito de marca: as relações raciais em Itapetininga. São
Paulo: Edusp, 1998.
OSÓRIO, R. G. Mobilidade social sob a perspectiva da distribuição de renda. 2003.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Departamento de Sociologia, Universi-
dade de Brasília, Brasília, 2003.
OSÓRIO, R. G. Is all Socioeconomic Inequality Among Racial Groups in Brazil Caused
by Racial Discrimination? Brasília: International Poverty Centre, 2008.
PARSONS, T. O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira, 1974.
PASTORE, J. Desigualdade e mobilidade social no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz,
1979.
PASTORE, J.; SILVA, N. D. V. Mobilidade social no Brasil. São Paulo: Makron,
2000.
PIERSON, D. Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1945.
PINTO, L. D. A. C. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade
em mudanças. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.
RIBEIRO, C. A. C. Classe, raça e mobilidade social no Brasil. Dados, Rio de Janei-
ro, v. 49, n. 4, 2006, p. 833-873.
RIBEIRO, C. A. C.; SCALON, M. C. Mobilidade de classe no Brasil em perspecti-
va comparada. Dados, Rio de Janeiro, v. 44, n. 1, 2001, p. 53-96.
ROMERO, S. História da literatura brasileira. v. 1. Rio de Janeiro: José Olympio,
1949.
SCALON, M. C. Mobilidade social no Brasil: padrões e tendências. Rio de Janeiro:
Revan, 1999.
SILVA, N. D. V. Black-white Income Differentials: Brazil, 1960. Michigan: Ann Ar-
bor, 1978.
SILVA, N. D. V. As duas faces da mobilidade. Dados, Rio de Janeiro, n. 21, 1979,
p. 49-67.
SILVA, N. D. V. O preço da cor: diferenciais raciais na distribuição de renda no
Brasil. Pesquisa e planejamento econômico, v. 10, n. 1, 1980, p. 21-44.
CAPÍTULO 3 – DESIGUALDADE RACIAL E MOBILIDADE SOCIAL NO BRASIL: UM BALANÇO DAS TEORIAS 95