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Acesso À Justiça No Brasil - Reflexões Sobre Escolhas Políticas e A Necessidade de Construção de Uma Nova Agenda de Pesquisa
Acesso À Justiça No Brasil - Reflexões Sobre Escolhas Políticas e A Necessidade de Construção de Uma Nova Agenda de Pesquisa
Acesso À Justiça No Brasil - Reflexões Sobre Escolhas Políticas e A Necessidade de Construção de Uma Nova Agenda de Pesquisa
RESUMO: Este artigo, inspirado nas reflexões de Marc ABSTRACT: This article, inspired by Marc Galanter 's
Galanter sobre a distributividade do acesso à justiça, tem reflections on the distribution of access to justice, aims at
por objeto a análise e problematização das escolhas analyzing and problematizing the political choices
políticas sobre acesso à justiça contidas em marcos concerning access to justice contained in the normative
normativos de direito processual civil no Brasil, frameworks of civil procedural law in Brazil, especially the
especialmente os juizados especiais, as ações coletivas, a small claim courts, collective actions, the Judicial Reform
Reforma do Judiciário e o Código de Processo Civil de 2015. and the Civil Procedure Code of 2015. In a chronological
Em um percurso cronológico dessas mudanças legislativas, course that followed such legislative changes, it studies
foram estudados os principais discursos vencedores e the main discourses on the access to justice agenda, as
vencidos acerca da pauta de acesso à justiça e sua relação well as the relation between them and the litigation
com o cenário de litigiosidade no Brasil para verificar como scenario in Brazil, to verify how they influenced the
influíram nas escolhas políticas que marcaram o Judiciário e political choices that marked the Judiciary and civil
o direito processual civil nas últimas décadas. Ao final, procedural law in the last decades. In the end, the
confirmou-se a hipótese de que a pauta redistributiva de hypothesis was confirmed that the redistributive meaning
acesso à justiça, ou seja, de facilitação do acesso à justiça of access to justice, that is, the search for facilitating
para os indivíduos, grupos e conflitos à margem do sistema, access to justice for individuals, groups and conflicts
deixou de estar presente nas escolhas político-legislativas outside the system, was no longer present in the political-
das reformas processuais ao longo da década de 1990 até a legislative choices of the procedural reforms throughout
promulgação da nova lei processual, quando então o the 1990s until the enactment of the new procedural law,
acesso à justiça saiu definitivamente do epicentro dos in which access to justice was definitively removed from
debates legislativos para se transformar em uma “não the epicenter of legislative debates to become a "non-
questão”, o que revela a necessidade a construção de nova issue", what reflects the necessity to build a new research
agenda de pesquisa sobre o tema. agenda on this matter.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Debates legislativos. Keywords: Access to justice. Legislative debates. Litigation.
Litigiosidade. Nova agenda de pesquisa. New research agenda.
1
Escola de Direito de São Paulo da FGV. Mestre e doutora pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da
graduação e pós graduação da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV), nas áreas de
Mediação, Arbitragem e Processo Civil. Foi visiting fellow na Universidade de Yale (EUA) e na London School of
Economics and Political Science (UK).
2
Professora doutora da Faculdade de Direito da USP e da FGV Direito SP (GVlaw). Mestre e doutora em Direito
Processual pela Faculdade de Direito da USP. Pós-doutora pela Madison Law School (University of Wisconsin).
Promotora de Justiça do Estado de São Paulo.
3
Professora da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV DIREITO SP). Mestre e doutora em
Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP.
152
Daniela Monteiro Gabbay, Susana Henriques da Costa e Maria Cecília Araujo Asperti
■■■
1 INTRODUÇÃO
Este artigo, inspirado nas reflexões de Marc Galanter (1974, p. 95-160; 2010, p. 115-
128) sobre a necessidade de redistribuir o acesso à justiça ante o desequilíbrio de poder
entre os litigantes, tem por objetivo analisar a agenda de acesso à justiça no Brasil a partir
de um olhar sobre as escolhas políticas que motivaram recentes marcos normativos com
particular relevância nessa temática, especificamente a criação dos juizados especiais, as
ações coletivas, a reforma do Judiciário e a promulgação de um novo Código de Processo
Civil.
Segundo Galanter (2010, p. 115-128), a premissa central do acesso à justiça é a de
que a sua distribuição parte de escolhas políticas distributivas, necessárias diante do
constante reconhecimento de novas injustiças e da dinamicidade das fronteiras entre
justiça e injustiça. É necessário compreender, portanto, quais foram os discursos que
fundamentaram essas escolhas políticas e as suas repercussões em termos de “quem” e
“como” se acessa a justiça no Brasil, partindo da premissa de que o acesso à justiça
também é um direito social que demanda prestações positivas por parte do Estado
(SALLES, 2006, p. 781-782); ou seja, que o “cobertor é curto” e o acesso à justiça para
todos é inviável.
Assim, adotando-se essas premissas, e reconhecendo-se que as reformas judiciárias
e processuais partem de escolhas políticas, abandonou-se neste artigo o paradigma da
neutralidade do direito processual civil para se analisar, além do texto normativo, os
debates legislativos, as exposições de motivos, os anteprojetos e projetos de lei (que
muitas vezes contém versões antagônicas), além de notícias divulgadas na mídia e análises
acadêmicas acerca de quatro marcos legais acima mencionados: (i) os Juizados Especiais
(Capítulo 3); (ii) a regulamentação da Ação Civil Pública (Capítulo 3); a Emenda
Constitucional 45/2004 sobre a Reforma do Judiciário (Capítulo 4) e Código de Processo
Civil de 2015 (Capítulo 5). Trata-se, portanto, de uma análise eminentemente documental,
com referências bibliográficas e dados secundários, que adota como referência a noção de
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O capítulo 5, por fim, traz o debate legislativo em torno do Código de Processo Civil
de 2015, no qual fica clara a invisibilidade da pauta redistributiva do acesso à justiça diante
da busca por uma redução do número de processos, favorecendo os interesses dos
grandes litigantes e suas vantagens estratégicas.
Ao final, tendo sido desenvolvida a análise crítica e contextualizada acerca do
desenvolvimento da legislação processual e de como o acesso à justiça vem sendo
utilizado no Brasil para legitimar discursos contrastantes sobre as reformas institucionais e
processuais do sistema de justiça, confirmou-se a hipótese levantada de que a
redistribuição do acesso à justiça deixou de estar presente nos marcos legais das reformas
processuais analisadas neste artigo, tendo a pauta redistributiva do direito social ao acesso
à justiça se transformado em uma “não-questão, finalizando-se esse artigo com a proposta
de construção de uma nova agenda de pesquisa sobre acesso à justiça.
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4
Para mais informações sobre pesquisas empíricas já realizadas sobre o sistema de Justiça brasileiro e que deram
origem tanto a estatísticas quanto a publicações acadêmicas, vide o livro “Justiça em foco: estudos empíricos”, que é
resultado de uma parceria entre a FGV Direito Rio e a Fundação Ford, no qual foi realizado um mapeamento de
pesquisas empíricas já realizadas sobre acesso à justiça, com interpretações e estudos empíricos sobre a Justiça de
1990 a 2010 (SADEK; OLIVEIRA, 2012).
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5
Também a esse respeito, vide Asperti (2018).
6
Sobre o volume de litígios e temas e litigantes mais frequentes no Judiciário Brasileiro, vide dados do Relatório
Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Disponível em: http://www.cnj.jus.br/programas-e-
acoes/pj-justica-em-numeros. Acesso em: 17 fev. 2019.
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7
A hipótese da autora ganha força quando se constata, como já visto acima, que o Brasil não participou do relatório
do Projeto Florença, embora a elite acadêmica jurídica brasileira transitasse pelos mesmos círculos de Mauro
Cappelletti, e que o resumo do relatório só tenha sido traduzido para português em 1988, a partir de quando passou a
ser reiteradamente citado na produção acadêmica jurídica.
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A pauta de acesso dessa legislação, como se vê, buscava priorizar e dar acesso a
quem era alijado do Poder Judiciário por obstáculos formais e financeiros; ou seja, buscava
dar acesso aos marginalizados em relação aos mecanismos oficiais de solução de conflitos,
àqueles não tinham acesso à justiça. A parte final da exposição de motivos acima
mencionada deixa ainda mais clara esta escolha:
Impõe-se, portanto, facilitar ao cidadão comum o acesso à justiça, removendo
todos os obstáculos que a isso se antepõem, o alto custo da demanda, a
lentidão e a quase certeza da inviabilidade ou inutilidade do ingresso em Juízo
são fatores restritivos, cuja eliminação constitui a base fundamental da criação de
novo procedimento judicial e do próprio órgão encarregado de sua aplicação, qual
seja o Juizado Especial de Pequenas Causas (sem destaque no original)8.
8
Nesse sentido, destacava Kazuo Watanabe (1985, p. 3): “Os juizados de pequenas causas têm por objetivo reverter a
mentalidade segundo a qual a Justiça é lenta, cara e complicada (...) resgatando ao Judiciário a credibilidade popular
de que é ele merecedor e fazendo renascer no povo, principalmente nas camadas média e pobre, vale dizer, do
cidadão comum, a confiança no Justiça e o sentimento de que o direito, qualquer que seja ele, de pequena ou grande
expressão, sempre deve ser defendido”.
9
Vide, a partir de uma abordagem sociológica, Falcão (1984, p. 79-101). No mesmo sentido, embora com abordagem
mais tendente à dogmática processual, vide Grinover (1979, p. 25-44; 1986a, p. 19-30; 1986b, p. 113-128), Bastos
(1981, p. 36-44), Barbosa Moreira (1985, p. 55-77; 1982, p. 7-19), Nery Jr. (1983, p. 224-232) e Watanabe (1984, p.
197-206).
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Brasil, à semelhança das class actions norte-americanas. Nas exposições de motivos dos
principais projetos de leis que tramitaram no Congresso Nacional sobre o tema (Projeto de
Lei n. 3034/1984 e n. 7347/1985), porém, não é possível identificar tão claramente a pauta
de acesso à justiça. A principal divergência entre as duas versões dos projetos girava em
torno de saber quem seriam os legitimados para representar judicialmente os interesses
da coletividade. Ao final, prevaleceu o Projeto de Le n. 7347/85, que deu origem a até hoje
vigente Lei de Ação Civil Pública e traz uma legitimidade híbrida, porém institucional,
composta tanto por representantes públicos (Ministério Público e Defensoria Pública,
dentre outros), quanto por representantes privados (associações) 10.
A negativa legal de legitimidade à pessoa física para a propositura de demandas
coletivas, que se fundou na desconfiança sobre o mau uso do instrumento (BURLE FILHO,
2002, p. 407-408), pode ser apontada como uma primeira derrota da pauta de acesso à
justiça. Por outro lado, a previsão de que as associações civis poderiam ser autoras de
demandas representativas de interesses sociais e de classes pode ser vista como um
incentivo para que a sociedade civil, em processo de abertura política, se organizasse para
a defesa de seus interesses11.
De acordo com dados atuais do Conselho Nacional de Justiça, a maioria significativa
de demandas coletivas no Brasil é proposta pelo Ministério Público (BRASIL, 2017). A
sociedade civil só muito recentemente começa a se organizar no Brasil para a prática de
litígios estratégicos em demandas coletivas. Os motivos para a dificuldade da sociedade
civil para a articulação voltada à solução adjudicatória de conflitos coletivos, porém, é
complexo e foge aos limites deste estudo.
Assim, para os fins deste artigo, é necessário frisar que na década de 80 houve a
construção por lei de um instrumento processual que permitiu o acesso à justiça de
direitos coletivos sociais ao Judiciário, ainda que esta construção se desse em meio a uma
luta corporativista sobre quem deveria ser o representante adequado dos interesses da
10
Para uma análise comparativa da representatividade adequada nos sistemas processuais do Brasil e EUA, vide Costa
(2009, p. 953-978).
11
Nesse sentido, Kazuo Watanabe (2001, p. 759) sustentava que “é necessário que a própria sociedade civil se
estruture melhor e participe ativamente da defesa dos interesses de seus membros, fazendo com que a mentalidade
que disso resulte, pela formação de uma sociedade mais solidária (art. 3º, I, CF), seja a grande protetora de todos os
consumidores”.
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Nesse sentido, sobre a relação entre demandas individuais e coletivas no contexto empírico da litigiosidade
bancária, vide Guimarães (2018).
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juizados especiais (art. 98). A pauta redistributiva de acesso à justiça, nesse sentido,
permeou todo o debate constitucional.
A título exemplificativo, vale transcrever algumas falas dos Anais da Constituinte. Na
discussão sobre a estruturação da Defensoria Pública brasileira, a fala sobre o acesso da
população marginalizada à justiça foi muito recorrente. A Defensora Pública Suely Pletz
Neder (1987, p. 73), por exemplo, ressaltou:
O acesso à Justiça é instrumento indispensável para assegurar as conquistas que a
sociedade pretender ver insertas na Carta Constitucional. Se não estabelecermos
o instrumental de acesso de 80% do povo brasileiro ao Poder que decide os
litígios, à tutela jurisdicional, tudo que se fizer hoje na Assembleia nacional
Constituinte irá, na melhor das hipóteses, beneficiar apenas 20% do povo
brasileiro13.
13
Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/3c%20-%20SUBCOMISS%C3%83O%
20DO%20PODER%20JUDICI%C3%81RIO.pdf.
14
Disponível em: http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/constituinte/3c%20-%20SUBCOMISS%C3%83O%20DO
%20PODER%20JUDICI%C3%81RIO.pdf.
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lugar a uma outra pauta eficientista e gerencial que deixou de olhar para os que não tem
acesso à justiça no Brasil.
15
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC 96/1992), de autoria do deputado federal Hélio Bicudo, foi objeto de
diversas alterações na Câmara dos Deputados e no Senado, com propostas de substitutivos e destaques após
inúmeros embates políticos, tendo sido promulgada a versão final em 30/12/2004. A proposição originária e a
exposição de motivos podem ser acessadas em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2004/
emendaconstitucional-45-8-dezembro-2004-535274-exposicaodemotivos-149264-pl.html. Acesso em: 17 fev. 2019.
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16
Trechos extraídos da notícia “Congresso aprova reforma do Judiciário após 13 anos” publicada no Jornal “A Folha de
São Paulo” em 18/11/2004. Disponível em: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/2004/11/18/2. Acesso em: 17 fev.
2019.
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17
A título de exemplo, vide Bacha (2004) e Pinheiro (1998).
18
A nota técnica foi elaborada por Pedro Fachada, Luiz Fernando Figueiredo e Eduardo Lundberg e teve por objeto a
relação entre o mercado de crédito e o sistema judicial brasileiro, sustentando que o custo do crédito ao tomador é
associado à elevada taxa de inadimplência bancária, à má qualidade das garantias contratuais à morosidade e ao custo
alto da recuperação por meios judiciais. A incapacidade do sistema judicial em assegurar a recuperação rápida e
integral dos empréstimos inadimplidos faria então que a sociedade arcasse com um aumento de risco embutido no
spread e com uma menor oferta de recursos. O teor integral da nota técnica n. 35 está disponível em
https://www.bcb.gov.br/pec/notastecnicas/port/2003nt35sistemajudicialmercadocredbrasilp.pdf. Acesso em: 17 fev.
2019.
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19
Acerca do estudo sobre Judiciário e Economia, vide a reportagem do CONJUR em http://www.conjur.com.br/2005-
dez-02/estudo_mostra_impacto_acao_judiciario_economia.
20
Estudo mostra impacto da ação do Judiciário na economia. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2005-dez-
02/estudo_mostra_impacto_acao_judiciario_economia. Acesso em: 17 fev. 2019.
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21
Nesse sentido, afirma Ludmila Ribeiro (2008, p. 471): "a questão do acesso à justiça, como possibilidade de os
cidadãos terem os seus conflitos resolvidos institucionalmente no âmbito do judiciário de forma célere e sem
quaisquer distinções, liga-se à própria ideia de regras e instituições da cidadania civil. Em sendo dessa forma, para que
os cidadãos possam exercer os seus direitos civis faz-se indispensável a existência de um judiciário
amplamente permeável às questões que são levadas ao seu conhecimento”.
22
Subsistiu no Brasil, entre 1603 até 1850, as disposições constantes das chamadas Ordenações Filipinas, promulgadas
por Felipe II de Portugal (Felipe III da Espanha), até 1850, quando então o Regulamento 737 passou a regular o
processo comercial, adotado progressivamente para o âmbito civil. Foi em 1939 que se viu a promulgação do primeiro
Código de Processo Civil, o qual foi revogado pelo texto público em 1973 (NUNES; PICARDI, 2011, p. 93-97).
170
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23
“Sendo ineficiente o sistema processual, todo o ordenamento jurídico passa a carecer de real efetividade. De fato,
as normas de direito material se transformam em pura ilusão, sem a garantia de sua correlata realização no mundo
empírico, por meio do processo” (BRASIL, 2010, p. 11) .
24
“Por outro lado, haver, indefinidamente, posicionamentos diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da
mesma norma jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas, tenham de submeter-se a
171
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de carga” do Poder Judiciário são trazidos como argumentos para justificar a adoção de
instrumentos para julgamento conjunto de demandas consideradas “idênticas” 25 ,
intensificando e ampliando as lógicas já introduzidas quando da Reforma do Judiciário por
meio da Súmula Vinculante, da Repercussão Geral, e do julgamento de Recurso Especial
Repetitivo26.
O texto do Anteprojeto foi aprovado pelo Senado Federal (PLS n. 166/2010) em 1º
de dezembro de 2010 e encaminhado para a Câmara dos Deputados (Projeto de Lei n.
8.046/2010). Após um período de abertura para consulta pública, foram instituídas uma
comissão especial e uma nova comissão de juristas, que foi posteriormente ampliada, até a
aprovação do texto em 26 de março de 2014, remetendo-se novamente para o Senado
Federal.
Do Relatório elaborado pela comissão de juristas da Câmara dos Deputados, extrai-
se a tentativa de aplicação da participação dos debates legislativos, tanto via internet,
quanto em audiências públicas, além de um vasto número de emendas apresentadas pelos
deputados (foram 900) durante a tramitação.
Assim como no Anteprojeto, é trazida também a preocupação com a “massificação
dos conflitos”, que seria decorrente da facilitação do acesso à justiça, do progresso
econômico e ampliação da “massa de consumidores”, o que teria repercutido
“diretamente no exercício da função jurisdicional, com um aumento exponencial do
regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos. Esse fenômeno
fragmenta o sistema, gera intranquilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade” (BRASIL, 2010, p. 17).
25
“Por enquanto, é oportuno ressaltar que levam a um processo mais célere as medidas cujo objetivo seja o
julgamento conjunto de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito, por dois ângulos: a) o
relativo àqueles processos, em si mesmos considerados, que, serão decididos conjuntamente; b) no que concerne à
atenuação do excesso de carga de trabalho do Poder Judiciário – já que o tempo usado para decidir aqueles processos
poderá ser mais eficazmente aproveitado em todos os outros, em cujo trâmite serão evidentemente menores os ditos
“tempos mortos” (= períodos em que nada acontece no processo)” (BRASIL, 2010, p. 16).
26
Prestigiou-se, seguindo-se direção já abertamente seguida pelo ordenamento jurídico brasileiro, expressado na
criação da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal (STF) e do regime de julgamento conjunto de recursos
especiais e extraordinários repetitivos (que foi mantido e aperfeiçoado), a tendência a criar estímulos para que a
jurisprudência se uniformize, à luz do que venham a decidir tribunais superiores e até de segundo grau, e se estabilize.
Essa é a função é a razão de ser dos tribunais superiores: proferir decisões que moldem o ordenamento jurídico,
objetivamente considerado. A resposta à litigiosidade repetitiva é dada pela via legislativa, sem que haja uma reflexão
clara e embasada sobre as razões que acarretam a proliferação de casos similares, o que demandaria a incursão do
estudo do processo civil em uma seara menos dogmática e mais empírica. É de se questionar se essas mudanças
processuais realmente contribuirão para as mudanças de conduta – em especial dos litigantes repetitivos – que se
traduziriam na almejada redução da litigiosidade e da morosidade do Judiciário.
172
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número de processos em tramitação” (BRASIL, 2012, p. 10-11). Esse fenômeno não poderia
ser ignorado na reforma processual, tendo como uma de suas principais inovações os
mecanismos de julgamento por amostragem. Novamente, busca-se legitimação a partir da
afirmação de que as inovações foram todas “pautadas em reivindicações da comunidade
jurídica em geral e norteadas pela necessidade de deixar de lado o exagerado culto às
formalidades em prol de uma prestação jurisdicional rápida e eficaz, capaz de concretizar o
ideal de pleno acesso à Justiça” (BRASIL, 2012, p. 51).
Como se percebe, é nítida a preocupação com a litigiosidade repetitiva, traduzida
em um fortalecimento da força vinculante dos precedentes – que até a previsão da Súmula
Vinculante possuíam função apenas argumentativa – e ampliação dos mecanismos de
julgamento de casos repetitivos, como os recursos repetitivos (fruto dos debates da
Reforma do Judiciário) e o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR).
Resguardadas as particularidades procedimentais desses institutos, ambos visam a
consolidação de teses jurídicas acerca de questões de direito que sejam reiteradamente
veiculadas em grandes contingentes de casos, as quais deverão ser aplicadas aos processos
pendentes e futuros que versem sobre a mesma matéria27.
Se nas reformas anteriores essa sistemática estava reservada ao julgamento de
recursos pelos Tribunais Superiores (STJ e STF), o novo Código de Processo Civil prevê o
uso dessas técnicas de julgamento de casos repetitivos já em segunda instância, com
suspensão de processos em primeiro grau e até mesmo processos futuros, estendendo-se,
inclusive, aos casos em trâmite perante os juizados especiais.
Não há, contudo, uma preocupação efetiva com a participação daqueles que serão
atingidos pela aplicação da tese jurídica, o que poderá ocorrer apenas indiretamente e
pontualmente mediante a atuação de amici curiae e de entidades representativas em
audiências públicas a serem realizadas a critério dos tribunais (ASPERTI, 2018, p. 136-157).
Isso é particularmente problemático se considerarmos que tais julgamentos lidam com
questões de grandes repercussões socioeconômicas e podem versar sobre direitos
potencialmente coletivizáveis. Ainda que as vias de participação sejam limitadas, a tese é
27
Sobre o funcionamento dessas técnicas e para uma crítica sobre sua aplicação, do ponto de vista do acesso à justiça
e participação no processo, vide Asperti (2018).
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justiça) vinham, até então, dando ganho de causa aos consumidores, acolhendo seus
argumentos. Contudo, quando o caso foi remetido ao STJ para julgamento sob a lógica de
Recurso Repetitivo (ou seja, escolhendo-se alguns casos para julgamento e aplicando-se o
entendimento a todos os demais), houve uma nítida reviravolta jurisprudencial, decidindo-
se pelo cabimento da cobrança e pelo prazo prescricional de apenas três anos para
ajuizamento de qualquer pleito discutindo os valores de corretagem 28.
Nesses julgamentos de casos repetitivos pelos tribunais superiores, é de se esperar
que as instâncias pensadas para ampliação da participação da sociedade, como amicus
curiae e a audiência pública29, também ampliem as vantagens estratégias dos grandes
litigantes, que conseguem empreender maiores esforços e recursos para fornecer
informações jurídicas e econômicas aos julgadores. Enquanto grandes empresas e entes
públicos conseguem acesso muito mais facilitado aos julgadores e a informações que
podem ser decisivas na formação da convicção do órgão julgador, os litigantes ocasionais
acabam representando uma coletividade de ausentes - ou “litigantes-sombra”, como fez
referência o Ministro Herman Benjamin em seu voto vencido no julgamento referente à
cobrança de tarifa de telefonia30.
Essas vantagens estratégicas dos grandes litigantes e a reduzida possibilidade de
exercício do contraditório por aqueles que poderão ser futuramente afetados pela tese
jurídica firmada são fatores que ainda precisam ser estudados (inclusive empiricamente)
em maior profundidade, mas que certamente demonstram uma tendência diversa da
preocupação com a participação democrática na Justiça expressada pelas reformas
processuais pós-constituição de 1988.
28
Recursos Especiais n. 1.551.951, 1.551.956, 1.551.968 e 1.599.511, julgados em 24 de agosto de 2016 pelo STJ, com
relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
29
Sobre audiências públicas em casos repetitivos, vide Souza (2018).
30
Recurso Especial n. 911.802, julgado 25 de agosto de 2010 pelo STJ, com relatoria do Ministro Luiz Fux.
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Há, no entanto, saídas possíveis para este cenário, e que devem partir da
constatação da escassez (e não do excesso) do acesso à justiça no Brasil31. Insistir na ideia
de acesso universal à justiça é mascarar a realidade e dar margem à apropriação do acesso
ao Poder Judiciário pelos grandes litigantes, o que se viu acontecer nas últimas décadas. É
necessário pensar em uma concepção de acesso à justiça redistributiva, que amplie acesso
dos “que não tem”, pelo reconhecimento de direitos e a implementação de políticas
públicas voltadas a ultrapassar óbices financeiros e institucionais, mas com a consciência
de que essas políticas devem vir em detrimento dos que já tem e concentram o acesso à
justiça.
Nesse sentido, seria possível pensar no aprimoramento de canais de escuta da
busca reprimida daqueles que têm ciência de seus direitos, mas se sentem impotentes
para buscá-los em um Judiciário burocrático, ritualístico e entrópico (SANTOS, 2011, p. 38).
Um bom exemplo é a litigância estratégica de interesse público, que no Brasil tem sido
responsável pelo avanço, via Poder Judiciário, de algumas pautas voltadas à
implementação de direitos sociais e de direitos de minorias. Outra via possível está no
âmbito de iniciativas legislativas ou mesmo interpretações jurisprudenciais voltadas a
fortalecer a ação coletiva, modelo mais apto a resolver macrolitígios de forma
participativa, garantindo o mínimo de representatividade e paridade de armas para a
legitimidade política da solução judicial. Por fim, a adoção de técnicas voltadas a
desjudicializar demandas de cobranças em massa e a desestimular condutas ilícitas pelos
grandes litigantes, como os danos punitivos, poderiam ser alternativas para desestabilizar
a gestão estratégica de demandas “pelos que tem”.
Essas medidas devem partir da desconstrução dos discursos dominantes sobre
acesso à justiça, de modo a revelar a forma que o acesso à justiça vem sendo utilizado no
Brasil. Este é um passo importante para a ressignificação da agenda de acesso à justiça a
partir de uma perspectiva ao mesmo tempo crítica e propositiva, que reconecte o debate
normativo ao empírico, o jurídico ao sociológico, transitando da banalização para a
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Sobre como o acesso à justiça pode refletir e afetar a desigualdade de gênero, raça e classe social, propondo
futuras direções de pesquisas sobre essa pauta, vide Sandefur (2008, p. 346-352).
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