Subverso Final
Subverso Final
Subverso Final
(barulho
escuro
dos
corpos)
Jefferson Vasques
índice
Apresentação-Contato...........................1
Corpo-fátuo
Que sou ..........................................7
silêncio nos olhos..............................8
Bile...............................................
Corpo-fátuo: manhã .......................... 3
Primavera....................................... 4
Poesia incidental ........................... 15
16
Verão............................................17
Corpo-Fátuo: tarde ..........................
Tempo ao tempo.............................. 9
Poesia Incidental II .........................20
Outono............................................21
Bissextos........................................
Corpo-Fátuo: noite..........................
Presentinho ....................................
Inverno...........................................
hoje acordei com minha mãe nos olhos..........
Retoolhar.......................................
Nosreffej ....................................
Versos que me acordaram.................
Corpo-facho
Subverso........................................
Adestramento .................................
Por
fazer.................................................
Eu passarin......................................
Na voragem do quase........................
Línguas literais ...............................
catártis ........................................
Poema didático .............................
Diadia...........................................
Poética.........................................
Aceitação da noite.........................
Interpretação/Interpenetração............
arapuca.........................................
Negação da noite.............................
Quadrilha revisitada...........................
Prova dos nove................................
Espelhando......................................
Segurando o facho..........................
Às vias do fato...............................
Corpo-fato
Poema datado................................
Meu melhor verso ...........................
A vida em família...........................
Maios do mesmo? ............................
Prometeu envergonhado ....................
Relendo os clássicos I ....................
Solarium/Salarium ..........................
Pomba Negra ...............................
A Crise - Primeiro ato ...................
O Muro .........................................
Relendo os clássicos II ...................
Modelo de poema .........................
Realização ...................................
O que o sr. deseja? .........................
Contraditórios ...............................
ACrise – segundo ato........................
Questão de Ordem...........................
In farto.......................................
Relendo os clássicos III ..................
Perguntas à Senhora ........................
Daqui............................................
A crise - intervalo.........................
Introdução
“En la lucha de classes
todas las armas son buenas
Piedras noches poemas” leminski
Há uma cultura ainda muito presente em meio aos militantes de esquerda que
renega o corpo e as expressões da subjetividade. Cultura calcificada pela
urgência e dureza da luta, pela precisão e objetividade com que devem ser
planejadas as ações. Levada a ferro-e-fogo, essa postura rompe a dialética
entre razão e sentimento deixando um amplo flanco aberto ao inimigo (inimigo
esse que é, também, íntimo). É justamente nesses recônditos de sentidos-e-
emoções-recalcadas onde somos colonizados, sem que percebamos, por valores,
padrões de comportamento e desejos conservadores.
Por isso mesmo, é preciso fechar o punho, mas abrir o corpo: botar pra fora o
que querem que apodreça aqui dentro como amargura, como ânsia e medo, como vão
heroísmo ou culpa católica. Por isso, é preciso dançar outros corpos - que não os
das propagandas –, entoar outras canções – que não as do esquecimento –, escrever
nossa história. Precisamos criar juntos sentidos ao mundo. E isso passa, a meu
ver, pela tomada do poder em nossas mãos e pela superação do capitalismo. Mas,
também passa pela necessidade de construirmos, desde já, outras relações, valores
e formas de sentir e expressar. É preciso impedir que a negação da ordem
decalque em nossas faces as marcas de sua monstruosa máscara. Por isso é
preciso afirmar as sementes do novo para se superar o velho.
1
Artista? Poeta?
Durante muitos anos, não me interessei em publicar ora porque não enxergava
valor social no que escrevia ora porque temia alimentar a idéia romântica do
“artista”, esse ser visto como único-capaz de acessar certas chaves do
entendimento.
Mas aos poucos percebi que as poesias são parte de minha luta cotidiana, social e
íntima e, justamente por isso, é preciso socializá-las, abri-las ao confronto
saudável com outros olhos. É buscando desfazer o mito de artista que me exponho
e exponho os poemas que se seguem. É através dos avanços e retrocessos da obra -
reflexos de minha luta concreta -, é através da humanidade comum e singular de
minha experiência, suja e cristalina, que espero possam os leitores se
identificar (ou não) a ponto de se sentirem motivados a entoar sua vida na
garganta do futuro.
Tendo convivido com a morte desde cedo, lancei mão de mundos fantásticos para
agüentar o tranco. Escrever era praticar meu ascetismo; a forma que encontrei
para me encapsular numa concha, fugir do absurdo que a vida semelhava, fugir
do cheiro da morte que rondava a mesa da cozinha.
2
mais um amuleto macabro de salvação e mistificação, mas algo muito mais
próximo e concreto: era meu corpo, meu brinquedo perpétuo.
Alertas
Este livro é uma coletânea de poemas produzidos de forma esparsa ao longo de
vários anos e que, artificialmente, agrupei em três fases: corpo-fátuo; corpo-
facho; corpo-fato. São todos poemas da minha luta contra a ordem, seja a ordem
"natural" da vida, a ordem moral sobre o corpo, ou a ordem social do capital. São
poemas de um rapaz originário da classe média que vive dentro de um horizonte
de possibilidades que abarcam apenas 30% da sociedade brasileira. Me abro,
também com estes poemas, às contradições da minha posição social na intenção de
superá-las.
Apesar de construir o livro buscando seguir a ordem em que esses corpos (fátuo-
facho-fato) atingiram seu máximo desenvolvimento na minha vida, todos esses
corpos e momentos continuam, ainda hoje, se cruzando em meu peito. Não há,
portanto, uma ordem de leitura que deva ser seguida.
Este obra é parte de mim que afasto como que a fechar um ciclo, preparando-me
para outros desafios. É um primeiro livro, marco e compartilhamento, literatura
feita durante as anti-horas, ainda não desgrudada da dicção de poetas maiores.
Mas pulsa: sinal de que algo em mim teima e segue revirando a terra ruim que
lançaram cá dentro, segue plantando pombas e aguardando as asas da viragem.
Imprimo este livro buscando essa leitura compartilhada da vida que vai
iluminando nossas trincheiras. Por isso mesmo, sem teu retorno este livro será
fátuo: é no diálogo direto, facho, que a poesia pode se materializar em fato.
“Não há letras que sejam expressão enquanto não houver essência que
expressar nelas. Nem haverá Literatura Hispano-Americana
enquanto não houver Hispano-América.“ José Martí
5
6
O que sou senão
esta pergunta
me fazendo?
7
Silêncio nos olhos
Sim, eu sei
o tempo e a vida
me deram esta cara de 30.
Mas já deu.
Não quero mais enganar ninguém:
sou criança.
Sim, sim,
tive que me virar
e me fazer passar
por esse
28.705.946-7
que fui até agora.
Sabe como é
meus pais, um dia,
simplesmente desapareceram...
vapt vupt se foram.
“Subiram por uma enorme escada até o céu”, foi o que me disseram
(mas eu achava mesmo que tinham ido com o papai-noel
– esse canalha).
E sobrei ali, no quintal, com a bola na mão
sem entender direito aquele
“mãe?”
silêncio
8
E foi na marra
que aprendi algumas coisas que me exigiram
(o tempo e a vida):
aprendi a fazer a barba e a minha própria comida
aprendi a escrever poesias
a declarar amor e imposto de renda
aprendi a mentir de verdade (e não como crianças fazem).
aprendi a ter medo de olhar nos olhos (e isso é uma crueldade pra
uma criança de minha idade)
aprendi todos os requisitos básicos de higiene
e, finalmente,
aprendi a não abraçar quemgosto
tão forte
que não pudesse soltá-la
caso fugisse
- por aquela escada
(enorme) -
a qualquer momento.
E desde então
não pude ser omisso diante do que via
porque
me fazer adulto a esse ponto
seria matar lentamente a criança que sou.
Fora isso,
9
confesso,
tenho passado por um adulto razoável
e
com a ajuda de alguma teatralidade nata
própria de minha infantilidade secreta
quase me orgulho de ser
um cidadão comum, conseqüente, medíocre até.
Criança! É isso.
De agora em diante
não esconderei mais nada.
Tenho 8,
vontade de enfiar graveto em nariz de cachorro,
vontade de abraçar a todos (té você, viu, seu bobo!),
vontade de chorar num colo gostoso
por pura manha por pura manhã e
vontade de arranjar uma moça bem bonita pra casar.
10
Bile
é preciso mesmo
desenterrar os mortos
um a um
corpo a corpo
pai, mãe, avó, avô, tios
tirar, cuidadoso,
a terra do que lhes resta
dos olhos
e aprumá-los à mesa da cozinha.
e, logo,
servir o almoço
tão cheiroso
que eu mesmo
- homem adulto -
fiz:
carne de panela ao molho
(verde)
(a receita do molho
vem de gerações,
minha mãe diz)
Sentados então
domingo em família
dizer a cada um
quão importantes foram
pra que me tornasse
hoje
esse quem sou:
assim.
e olhar com carinho
cada um dos corpos
envoltos
num silêncio constrangedor
(nunca soubemos lidar
com demonstrações de amor).
e de repente gritar
- felicitoso -
um brinde à minha própria vida!
E todos
- cabeças pensas -
não brindariam.
Corpo-Fátuo: manhã
Primavera
Um discreto perfume
de raro bálsamo
exala o algodão
que tapa um
nariz.
Poesia incidental I
Um único
fino fim
desata-se
de seus vis motivos.
E qual mágica
- ou intenso sonho -
corpos
flutuam
no vazio.
Em seu andar
- impaciente -
o poeta aguarda
um elevador
(ou um poema)
Pessoa
(para os heterônimos)
Sei,
devo estar
em algum lugar
escondido
Amanhã,
talvez,
ganhe um resfriado
e um pouco mais
de existência.
Outras Estações
Verão
Mormaço
de moscas
no céu
aberto
duma
bo
ca.
Corpo-fátuo: tarde
se saio para o mundo das gentes é por necessidade. e aí cumpro ser
penosamente. poucos percebem que os olho como uma roupa velha do armário a
cada vez que me abrem a porta do armário. no ônibus sou outrem e isso é
adorável. como quando o ônibus percorre ruas estreitas, quase como se
entrássemos nas casas alheias. assim coleciono intimidades. o cheiro das
comidas o barulho da pressão nas panelas entrevejo uma briga um casal
namorando alguém que canta alto sua música predileta. tantos brinquedos
perdidos nos telhados. queria amar assim da janela como um ônibus que
percorresse todos os cômodos das casas. adoro as abelhas que por engano
atravessam a janela e se perdem presas entre os bairros para nunca mais
voltarem. tão ingênuas na sua triste luta contra as transparências. queria
amar como as abelhas que sobem nas roupas das pessoas sem que percebam.
são tão belos e meigos os insetos que sobem nas pessoas. queria tê-los às
centenas em meu corpo mas sem percebê-los. na multidão dos centros me
esqueço. queria amar na multidão como quem esbarra e depois pede desculpa.
como quando frente a frente desvio para o mesmo lado uma duas três vezes.
amar encabulado nessa impossibilidade de nos tocarmos. amar como quem sai
de relógio só para ver se lhe perguntam as horas. amar como quem não olha
nos olhos. a não ser quando os olhos fogem prum outro lugar e eu sei bem
reconhecer quando os olhos fogem pra outros lugares pois os habito. finjo
pequenos ridículos para alegrar os transeuntes. acho tão linda essa palavra,
tão burocrática, tão fria, e, ao mesmo tempo, tão untada de pornografias
amorosas. transeuntes. finjo, com os fones, que a música me empolga e
requebro a cabeça, mexo um ou outro ombro e fecho olhos. finjo uma alegria
incontida, um sorriso besta que não se contém e diz um "olá" tão cheio de
nada transparente para quem tem olhos de ver. mas ninguém enxerga. finjo
falar sozinho, como se dialogasse ora com a mãe com quem brigo ora com
filhos a quem ensino ora comigo. gosto de provocar pequenos risos. não os
grandes. gosto do suave arquear das pontas dos lábios os olhos que se
deslocam do cinza diário e acendem um fósforo no vário pra logo depois
mergulharem no mais-que-esquisito seguir do tempo das cidades. amo assim
pelos meus pequenos fracassos e tropeços fingidos com arte. sem saber me
amam assim na alegria de aceitar que o erro, tão lindo, ainda vive mesmo
que no ponto cego do coração. lá onde mora a beleza da palavra
"transeunte". quero amar como mendigos que olham a ausência passar. sou
capaz de tecer complexíssimas filosofias apenas de ver o nada-olhar de
velhos mendigos. adoro como os ventos de antes das chuvas balançam os fios
e as copas e as saias e arrasta o pó e as sujeiras e as certezas. antes da
chuva é como se tudo fosse ser a última vez. isso dá uma sensação
libertadora de que a gente é pouco muito pouco. e as gentes parecem que vão
morrer. mas eu não. eu sento e sinto. chuva me estabelece. me devolve à
pele. quando chove os seres se retraem e dão espaço pro dizer das coisas em
si. no mundo poucos são os seres. muitas são as coisas. quando chove elas
vem à tona. e eu as ajudo. trago sacos plásticos pra soltá-los no vento de
antes da chuva. e esse é o amor que sinto de vê-los voar sem rumo e
reencontrá-los dias depois por acaso voando em minha direção.
tempo ao tempo
sigo virando
esta areia fi
na sobre
teu no
me
a
é
que
setor
neapen
asesómen
teapenasnome
Poesia incidental II
Um pneu solitário
sai da estrada
grogue.
(assim é morrer?)
um quase olho
fechado
sonha.
Do alto,
corvos espreitam
o inevitável.
Outras Estações
Outono
A última
folha
livra-se ao
vento e es
vai-se ao acaso
dum po
ço
negro
evola em
es
pirais
e ao fim dis
man
cha
a lua
o n d u l a a n t e
u m a í r i s
h u m a n a
Bissextos
I.
tô tentanto, agora mesmo,
explicar pro meu peito
que o ano acabou
me olho no espelho
que reflete meu rosto
do mesmíssimo jeito
feito
nos dez minutos anteriores
Desarmo o sorriso.
(me sinto melhor assim
e mais charmoso,
assim como
um homem manco
é mais charmoso)
Nada mudou
e pronto.
Mas,
lá fora
e acima
e adentro
os rojões explodem
meus argumentos.
Posso ouvir
a algazarra dos vizinhos
e sua alegria sinceramente desmedida
desmedidamente sincera.
Sou, talvez,
a primeira indiferença
ranzinza
do bairro (da cidade? da estratosfera?)
em 2008.
Agora
às 2h36
de 01 de janeiro de 2008
o silêncio vindo das ruas
(e de dentro dos olhos górdos de peru)
já é o mesmo
das 22h45 do dia
31 de dezembro
do ano que se passou.
Tão novo
é o ano
quanto mais
nos esquecemos
do que fomos,
e, principalmente,
do que não fomos.
Isso.
Bebe champanhes, minha gente.
Bebe champanhes!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão
beber champanhes cidra cerezer.
III.
Volto ao espelho,
esse insensível.
Tento, em vão,
me esquecer de algo pra ver se viro
o ano, se lhe passo uma rasteira,
se num lance mandinguento
deixo pra trás
definitivamente
o peso dos sóis e a abrasão das luas sobre meu dorso.
Mas resiste
em mim todos os anos
- numa siderurgia cirúrgica -
desde milnovecentos e tantos
nada trago
de novo
de novo
nada trago
IV.
Raia
no canto esquerdo da boca
desse que me olha do espelho
um risinho
qual uma esperança verde-musgo.
Talvez,
porque lhe tenha agradado
essa infame metáfora
do 29 de fevereiro...
Talvez,
porque ache
que este novo ano
- o de 2008 -
é bissexto.
Eu,
que vivo deste outro lado do espelho,
faria as contas,
para ter certeza,
primeiro...
Corpo-Fátuo: noite
à noite gosto de me perder pelas ruas pardas. olho casa por
casa. a garagem pálida o cachorro gordo e triste o macabro
tilintar dos talheres nos pratos o olhar vazio dos anões de
jardim os vultos nos vitrôs dos andares de cima a disposição das
grades das lanças dos cacos. o aconchego e a hostilidade próprios
de cada família. gosto quando do escuro cavernoso de um cômodo
por entre cortinas cintilam rostos empalhados numa luz azulada
que emana e pisca. pressinto o calor da sala o odor da rotina.
e amo assim todas essas coisas isoladas em suas salas. casa por
casa. separadas por finíssimas camadas de tijolos e tinta. eu
os amo como um vulto estranho que passa. como um barulho lá
fora. mais nada. chegado em casa deito e fecho os olhos que
parecem realmente nunca fechar. passeio pela casa visitando as
coisas por baixo observando a vida que só floresce no escuro no
sem-olhos a nutrir o silêncio duma densidade púrpura. os ruídos
da noite são meu canto terrível de ninar. tecer relações entre os
barulhos do incognoscível é tecer o próprio sono. restos de
gemidos murmurar de sons mímicos bater de portas roncos roucos
que as paredes ruminam. colo ouvidos e encolhido imagino como se
milhares de corpos flutuassem num mar fosforescente trás ali
sessenta centímetros. vejo como de suas peles florescem
translúcidas anêmonas verdes. queria amar como meu imaginar
noturno alimenta na boca o invisível. amar como essa sensação
de alguém a nos olhar no escuro. amar como um susto que não
acontece. sinto como a noite mais densa embaixo-da-cama se
conecta com o negror fundo dos bueiros. vejo tudo com olhos na
nuca. vejo uma única folha dentre as inúmeras dessa imensa
árvore iluminada pela lua que deve estar lá fora sem olhos na
rua. folha tão velha tão amarelada que só lhe botar olhos
fechados já lhe desprega o cansaço e se solta e segue sua
trajetória longa e leve e aleatória até acalmar-se num canto
qualquer de guia. imagino como amanhã ninguém a notará ali
folhinha. Imagino seus caminhos arrastados de asfalto as ruas
percorridas as enxurradas até que encontre enfim um canto ou
buraco ou um lago definitivo onde possa livremente decompor-se.
queria amar como coisa que apodrece de chuva e de tempo e mais
nada. queria te amar assim apodrecendo e me toco ali onde os
poros germinam o morno até que gozo esse amar morto que vem me
desfazendo. queria amar como mãe masturbando filho.
Presentinho
“ (...) porque com seu canto melodioso, elas o fascinam,
sentadas na campina, em meio a montões de ossos de corpos
em decomposição, cobertos de peles amarfanhadas”
Odisséia de Homero
agora sei
que você não é a beleza, nem o amor, muito menos uma linda flor que
se cheire
nem seu olhar é o barulho duma gota d'água no meu ouvido
nem seu corpo é a lua derretida com chocolate branco sobre frutas
frescas
queria te dar
a beleza que você
não é
queria te dar
o cu do medo entreabrindo-se
como uma flor
sensível
ao dedo
e assustado
- como um menino diante da primeira morte -
te dou este ainda fresco
pequeno e
remexidamente vivo
rabo de lagartixa.
Outras Estações
Inverno
Eu preciso ir agora!
Você entendeu?
Você entendeu, mãe?
Me escuta: me deixa!
E se deixa!
se deixa ir... indo.
Deixa
de morrer
de vagar.
embora. vai.
se molha.
vá-te embora
e não me olha pra trás
vai e não acorda mais
em mim.
jefferson.
versos que me acordaram
É preciso buscar
qualquer coisa
de fogo
fátuo.
Corpo
-facho
Subverso
em algum lugar
dentro
te espero
fecho olhos
(e novamente os fecho (por dentro))
aguardo
humilde
(sob a chuva que te incandesce)
teu cheiro incerto
de cascas,
folhas,
restos
Mas, agora,
ajoelhado sobre o que me resta
aguardo
sereno
circunflexo
e me ofereço
corpo
a tua desordem
e me ofertando
num véu branco
de vento e silêncio
solitário,
sim,
solitário e inteiro,
sei que surgirás
veludo clandestino em meu peito
(aguardo
- sozinho -
a fera
que dela
se alimenta)
(ensino
- tremendo -
a morte
a comer
na minha mão.)
por fazer
de início
não acreditava
coisa da minha cabeça
mera coincidência
coisa e tal
mas agora
estou me convencendo
- diante do espelho -
desta realidade
mais preta
mais dura
mais cheia
eu sei eu sei
isso é algo totalmente banal
- hormonal, provavelmente-
e nem deveria virar um poema
(misterioso silêncio
entre os olhos e a barba)
Acordei
com 257 baratas
assustadas
entre meu peito
e meu estomago
abri a porta
e explodiram asas pios vôos:
dois passarinhos voavam voavam
assustados
(como naquele filme do Hitchcock, Corvos)
corri e abri
uma a uma
todas as janelas da casa
mas os passarinhos
simplesmente pousaram
sobre a geladeira
como se não entendessem nada
ou como se percebessem todas as minhas 257 baratas
e me olhavam assim
com seus olhinhos pretos
de uma ternura preta
bem pretinha e
me olhavam e
inclinavam as cabecinhas
com um olhar virgem
sem horizontes
céu aberto dentro deles
e entendi.
I.
nasceu mirrado
talvez
quem-sabe
nem isso-mesmo
nem deixa-disso
meio sei-lá
com um quê-de-quase
meio um misto
de eu-nem-ligo
cum gemido
noutra metade
e respirava algo
ao teu ouvido
uma palavra
nem isso
como se minha boca
é que auscultasse
(tão perto e quase)
seu ouvido
e era
o olho traindo a mão atraindo o
peito traindo a boca atraindo
um jeito
de como quem vai
quando veio
de como quem nem
quando ai
como se
dissesse-que-não-me-disse
como quem nada
quisse
e assim chegando
mansinmanso...
roíamos o osso
do tesão
como
se o quase
fosse
o quando
como pó
de algo
tão pouco
em si
nu
ar
tanto?
II.
e foi mesmo
mais ou menos assim
(mais rápido ou lento)
que tudo foi
se precipitando
pé
ante
pe
les
e um triz
entre
Éramos o oco
buscando o dentro
desnudos de mundo
pelados de tempo
latentes e tantos
em apenas dois!
e todos sabemos
que nessa hora em que os ventos
páram e o tempo
jorra
qualquer cílio contra cílio
basta
qualquer lábio entreaberto
basta
qualquer qualquer-coisa que arda
(té meia palavra)
basta
se teus olhos
lêem
ar
do
ro
sa
men
te
meus lábios
Falo.
III.
perdidos e envoltos
na voragem
dos quases
um impulso
mesmo-antes-que
age (não age)
H
mas não H de homens maiúsculos
que nessa hora em que tudo range,
quando a selva das gentes devora
e os contornos dos corpos gemem
é nessa hora
que não mais se sabe
o que finca ou o que fende
onde começa a fome
onde termina a sede
onde começa
o macho
e onde finda a
fêmea
é quando omem
é mais que omem
menos que homem
dia
entrevando-se
nas bocas e pernas da noite
aurora boreal dos corpos
silêncio cheio
desse cheiro
que sobe
de um útero
primeiro
e que move
mulher e homem
(essa coisa pouca
que juntada a outra
- tão pouca quanto -
inventa terra
inventa céu
inventa estrelas
e inventa um outro -
novo cometa)
suores e cheiros
tensão de eras
na química feroz
dos ferormônios
furor obscuro das moléculas
sob nossos olhos
sob nossos genes
e sobre nossas melhores intenções
odores
que se amam e se destroem
antes mesmo
de nós
silêncio extremo
sem espaço pra piscar
como janela suspensa de beijo
que se abre
imprevisível
justo quando
o entre
nasce
(e se enter
nesce)
IV.
e esse silêncio (de beijar-ou-não)
tem seu próprio
e impossível tempo
e qualquer coisa pode
te fazer
perdê-lo
porque entre um corpo
e outro
pode pousar um cisco
pode passar uma nuvem
pode um trem
descarrilar
é preciso
ser inteiro
no instante do “quase”:
um sim brilhante!
quasar!
mas não!
nos perdemos
afoitos-ingênuos-trêmulos
e um mínimo
descompasso (íntimo)
foi capaz de abrir,
(sim, senhoras e senhores...)
é capaz de abrir
a distância de uma vida
entre duas bocas
(...essa é a trágica mecânica dos corpos)
E assim
o silêncio
(balão até então inflado de desejo)
murcha
emsimesmando-se
em seu eixo
que não é outra coisa
senão
medo
(sim... porque é o medo, e bem sabes disso,
seu poeta de merda, que é o medo que não
aceita o peso (e o brilho!) dessa cachoeira
jorrando em teu peito, é o medo - essa pedra
no meio - onde tropeçastes e perdestes o corpo,
a boca, o vôo e esse veludo respirado no
peito...)
esse pequeno medo de perder-se
- farol negro do achar-se -
te envolveu e te enganou
o instante apenas de
e o que restávamos
nessa hora cheia de ponteiros
já nos corava
e o silêncio
jazia
estirado na esquina
onde um carro buzinava
silêncio a paisana
pescoço estralado
estômago roncando
latidos
da cachorra da vizinha
e assim
de volta ao mundo das coisas-que-são
(perdidos que estávamos entre as coisas-que-quase)
só me restava
falar sobre o clima
ou sobre a cachorra
da vizinha...
assim mesmo, frase ambígüa,
pra que um riso
aliviasse
o vexame de tanta
coisa caída
sobre nossos colos,
entre nossos pés,
sobre o tapete...
V.
Meu primeiro beijo
foi quase
só o segundo teve
gosto-esôfago-dentes-língua-lábios-salivas-entre
Beijo Primeiro
- que ainda persigo
pelos desvãos da carne -
impossível beijo
anterior ao próprio beijo
e que me ensinou
a entranhar
o susto primevo
desse desejo-maior-que-o-peito-maior-que-o-corpo-maior-que-o-dentro
beijo
Línguas literais
bunda.
Catártis
(ou estoiras de contar às safadinhas antes do bom soninho)
breu.
Poema didático sobre como ler um poema
I.
Vai, senhor leitor,
vai lendo o que tá aqui escrito
que
quando eu for gozar
eu aviso.
II.
Não me olhe assim
com essa cara.
É isso mesmo.
III.
Aqui,
bem aqui
isso
agora
mais aqui
assim
aí
vem
vem
desce
pra cá
assim e
continua
vai se enredando
se comprometendo
se enfiando em tudo
que é frincha, friso, risco
aí,
isso!
Só você largaria
tudo
por isto
E nunca se satisfaz
e quer ir sempte
além
entre
atrás
num vaievem
que fende-se
cada vez mais
intenso e profundo...
Bom menino!
Vem,
faz mais um favor pra este bom velhinho,
move teus lábios
em silêncio
bem, mas bem
di-va-ga-ri-nho
ah!
assim!
isso!
sente
o verso
desta língua
- ainda fresca -
roçando tua própria língua
e se entrega
ao que lhe dita
até
que sejam
tua boca teus lábios
– oh, virgem leitor -
o orifíssil
em que
- sem palavras -
enfim o falo:
(orgasmo)
diadia
a guarda.
um guarda.
Aceitação da noite
I.
Esta outra noite
- mais funda -
que se acumula nos olhos
como poço antigo
e repleto
de luas.
II.
Não resuma
a noite
à ânsia de se
colher
um cometa
não resuma
noite
a qualquer
estrela
efêmera
deixa
aceita
afinal
que teu corpo seja
nesta noite
- mais que brilho -
breu
III.
só
assim
noite
após
colhe
a manhã
o horizonte
Interpretação
Interpenetração
bem aqui
rente
mora o perigo.
sente?
sente o risco?
chegue mais
assim
isso
bem aqui
entre
a língua
e o olvido?
sente?
sente o visco
entre
o que houve
e o que eu digo?
aí
bem aí
isso
sente?
sente
ali onde
outros sentidos
se metem
entre?
Pois bem
é bem aqui
rente
(entre meu corpo
e teu corpo)
onde mora
o risco
que corro.
Arapuca
A
Um
Páss
ar
o
da
poesia
a a
s s
pra
tudo
que
é
dia.
Negação da noite
quando candente e suada de peles
ela (a fera a lua a estrela)
se arremessa em meu
gélidofosso de algas noites e luzis
um frio de trezentas mortes
me lambe a espinha
num fogo de fomes
me abrindo vulvas
na pele línguas
na nuca
como se sugássemos
o breu dos corpos
pela bocas
logo quando
entre horizontes coxas
raia
sêmen-lúmen
findo o eclipse
afundo no turvo turvo
de águas paradas
e como estranha pedra escura
lisa espessa e pesada
(como corpo de mãe que se amarra)
me afundo
fosco
e me faço
friamente
minério
Ela
– já menos fera, menos lua, menos estrela -
cansada e nua
cansada
cansada
e menos e menos nua
pelada
reflexo de brumas
se desata
vento de vozes
véu de asas
já é outra a claridade
de um sol sempiterno
fundindo os últimos mistérios
a fogo e ferro:
astro-lábios
resto apenas
como um campo fervente
de girassóis amarelos
sobre trezentos frios
corpos maternos
...noves fora
zero?
espelhando
olho no olho
a
f
a
r
s
a
faz-se à face
Segurando o facho
(entre o dito e o não-dito)
é fátuo
mas é fogo:
o mar
não tá pra cachorro
e nem tente
caçar com gato
que é lebre
(e já subiu no telhado!)
Não corra!
Que se correr... o bicho tá pegando.
Não fique!
Que se ficar... a coisa anda comendo
e solta!
arranque os anéis
mas não entregue o ouro
o verão no bolso vale mais
que uma andorinha voando
não dê na cara
nem ofereça a outra
não dê um tapa
fique de boa
que pra te fazerem a cabeça
tem hora
pega leve
mas não largue os ossos
que os ofícios todos
já se foram
é fogo
mas é fato...
deste mato
eu não saio...
Às vias do fato
acordo assustado
embrulhado na noite
qual
não sei
lembro de vários
e rápido
me conecto a todos os momentos
em que acordei assustado
num quarto escuro
como este
há quarto
e uma fraca autoconsciência
se retomando
(sinto a barba: não sou mais criança
mas a pele ainda tem algum viço)
o horror que estrebucha um trem descarrilando
é a geladeira em seus perversos mecanismos
notívagos
(sabem seus inventores a terrível ação sobrenatural dessas
máquinas?)
acordo suado
mergulhado até o peito
de madrugada fria
enquanto a casa
vazia
estala um silêncio
sem séculos
pesado e perplexo
e ainda carregando a inconsciência dos órgãos internos
saio à varanda
onde a lua
delicadamente
limpa a roseira
pétala por pétala
deito na rede
da varanda
que balança e range
e - inevitavelmente -
balança e range consigo
toda a minha vida
pra lá e pra cá
pra lá e pra cá
pra lá e pra cá
neste quintal
não há Rocinante
não há moinhos
e o muro do vizinho
a 2 metros
me lembra o estado avançado do capitalismo
em que nos encontramos
dura pouco
isso tudo
é tão triste
a liberdade
(a rede pára
de balançar)
não sou
senhor de mim
e nunca quis ser
apenas aguardo
desde criança
um sinal
o sinal
(ainda me assusto
com o tamanho
de minhas mãos)
volto
fecho a porta com duas voltas de chave
(não quero que a manhã invada a casa tão cedo)
e já no quarto
vou reentrando às margens pardacentas
no sono
que deixei remexido
afundo devagar
afundo devagar
nem melhor nem pior
(há, não nego, uma leve sensação de dever cumprido)
já sinto
o sono morno
entupindo meus ouvidos
e nesse calmo afogar
decido
deixar pra mais tarde
saber
em que novo quarto,
em que nova casa,
com que nova idade,
e sob qual lua alta
e pálida de esquecimento
acordarei
sozinho
(ou não).
corpo
-fato
Poema datado
Às 12h
do dia 18 de maio de 2007
a AOL, a Siemens e a IBM,
a Nokia, a Toyota e a Sony Corporation,
assim como
a Daimler Chrysler e a Matsushita Electric,
a Exxonmobil e a Royal Dutsch/Shell
todas vão muito bem.
(a Wal-Mart,
cujo volume de vendas
é maior do que o produto interno bruto
da Arábia Saudita e Áustria,
é, agora, a vigésima economia do planeta)
(A eternidade
não é mais
que uma rima boba e fácil
depois de Hiroshima.)
Vejamos, pois,
as últimas notícias on-line:
Pronto.
O poema apodrece
velozmente
exatamente
às 13h33 desta sexta.
E te digo mais,
não é só ele.
“As mais importantes instituições financeiras do mundo, Citigroup e Merrill Lynch, nos
Estados Unidos; Northern Rock, no Reino Unido; Swiss Re e UBS, na Suíça; Société
Générale, na França declararam ter tido perdas colossais em seus balanços, o que
agravou ainda mais o clima de desconfiança, que se generalizou. No Brasil, as empresas
Sadia, Aracruz Celulose e Votorantim anunciaram perdas bilionárias.” Folha de São
Paulo – 20/4/2009
Meu melhor verso
(em memória do poeta revolucionário Maiakovski)
Mas
em vossa sociedade
a propriedade
privada
já está abolida
para nove décimos
de seus membros.
Nós assistíamos a
vídeos de aventura
enquanto
Elisabeth
cozinhava nosso
prato favorito.
Então,
nós sentávamos
todos
em volta da mesa e
comíamos
juntos."
Meus professores
sempre falaram
com fogo nos olhos
de 68.
E agora falam
com fogo no rabo
deste maio de 2007.
(Abaixo-assinado de professores das univ. públicas paulistas maio de 2007, São Paulo - Brasil)
Prometeu envergonhado
"Qualquer ato, inspirado por posições políticas, destinado
a incitar indivíduos ou grupos extremistas a prejudicar o
revezamento da tocha olímpica será feito em detrimento,
não apenas dos Jogos Olímpicos, como também do espírito
olímpico que representa os ideais mais nobres da humanidade".
Enquanto
em Nagano, Japão,
mais de 3000 policias são necessários
para que uma chama
deixe claro
quem a mantém
acesa
(querem até mesmo atravessar Lhasa
para que os mortos bem compreendam)
o fogo
(em sua forma mais fria e compacta)
se abre
contra a cara
contra a nuca
contra qualquer
parte em que se
mate
a vontade de monges lutarem por sua independência.
a China
terceiro Olimpo comercial deste mundo
e dona duma combustão
doirada
que faz girar o planeta
senhora de Yuan,
um dos mais inflamáveis
elementos da natureza
(financeira).
A China
essa enorme potência de pólvoras
não nota
como uma singela tocha,
- a olímpica -
pode bem lhe servir
de faísca.
E é um incêndio titânico
que se prepara,
não porque arderá toda a China
em poucos dias
mas porque
não se apaga:
fogo invertido
que se alastra
na escuridão incandescente dos peitos
de homens e mulheres,
velhos e crianças:
tochas vivas.
E é um incêndio titânico
que se prepara
não porque fará cinzas
da China
em poucos dias
mas porque seus dias
já encontraram
quem os vão contar.
I.
sem mais
nem menos
caía
vestido de negro
e de vento
caía
silencioso
como um
silêncio
caindo
quase
como qualquer
coisa
caindo
sem mais
nem menos
II.
que medo?
que angústia cotidiana e clandestina?
que impossibilidade de ser ver nos espelhos?
que incondicional incapacidade para a mentira?
Se lançou
de sua
morte-em-vida
para a outra
vida-em-morte
volta
sem
ida
corte
(((e que vertigem era
essa que em mim se abria?
que partes de mim
não caíram nesse dia?
também não gritava eu
“Vida!”
em algum canto extremo
enquanto caías?)))
III.
não tinha amigos?
não tinha mais desejos?
vontade de encher a cara?
tomar um milkshake de morango?
assistir tv?
IV.
pomba negra
e rasgou
o silêncio mórbido
do meio-dia
com o silêncio humano
de sua descida
silêncio intenso
como grito
que mal tem tempo
de se formar
ainda...
(e esse silêncio
se acumulou em minha vida
encheu meus ouvidos
meu coração meu peito
meu estômago e retina
e como um
animal selvagem
que me habitasse o dentro
foi e vem me devorando
ao meio
ainda)
chão
contra qual
seu corpo todo
gritava
“MENTIRA!!!”
e a velocidade (ab)surda
em que se imobilizara
me abriu a vertigem
do dia
ao meio
como se abre uma fruta
de uma só tacada
como se separa
com uma finíssima navalha
a metade podre
da sadia
(3 segundos
foram suficientes
pra cortar o mundo
ao meio)
e o dia não mais era
céu azul e pássaros
e frescor verde
em brisa...
a vida...
não era ainda...
e eu
sem qualquer coisa
fixa
em que pisar.
V.
a vida é dura
a vida é barra
essa vida vendida em troca de mais vida
essa vida capital-variável-na-contabilidade-capitalista
(e que debitado os impostos
faz a minha equivaler a
567 dinheiros mensais
de alguma roupa, pouca comida, um teto e qualquer coisa de alegria nos olhos
de uma mulher)
essa vida, produzida pra exportação, é louca varrida
como uma infinidade de mercadorias coloridas
dispostas em série sobre as prateleiras,
sob nossos olhos
e sobre nossos corações...
como uma infinidade de trabalhadores
cinzas
dispostos em linha
na sem-sentido tarefa de ganhar a vida
em bocados ao final do mês
como a incessante busca por mais
e mais
e mais e mais e mais-
-valia
como a incapacidade de
sofrermos e amarmos juntos
ainda...
a vida
a fazemos sem sentido
no início do século XXI
e especialmente na américa-latina
a vida
é só o que temos (e não temos)
a vida
(essa em que entramos quando nascemos)
não é a mesma em que crescemos
e precisamos roubá-la
das mãos dos donos do mundo,
das mãos dos poucos
que a mantém em cativeiro...
é preciso retomá-la da solidão
em que somos feitos,
das engrenagens dessa máquina
que empilha tudo
que cheire
a gente...
e mesmo
quem sai de dentro dela
num salto negro e sideral
a perde
por não mais achá-la
a perde
para
reencontrá-la
VI.
Você
garoto que mal conheci
e que saltou
numa segunda
do alto de sua
(e mal sabia nossa)
angústia
enquanto eu passava-passava-só-passava
e que desde então
cai ainda em minha vida...
você
de quem sinto a falta
como algo de mim
que também se foi
e não sei ao certo
o quê...
você,
talvez mais lúcido
que a grande maioria...
mais humano
que a pequena minoria
que alimenta essa máquina
que a tudo devora e nos isola
no alto de pilhas individuais de cobre e estanho
( de onde você se negou a continuar se equilibrando...)
você, rapaz,
(de quem não sei o nome e assim me dói menos)
que cortou nossas vidas
como uma rajada
como um raio
um cometa
ardente de sentido
neste céu
sub
des
indi
vid
es
qui
zhi
po
cri
na
ti
mor
t
você rapaz
(que não chegou a conhecer seus algozes secretos)
você
(rapaz que talvez fui um dia)
não tema!
Não!
E já sinto brotar
em meu peito
essa raiva maior que o mundo
como se um vento
me ardesse a cara
como se um grito
imenso
se armasse
dentro
crescido no silêncio
que tua boca instalara
(raiva fervida no tempo)
e que e vai ardendo
coração peito estômago retina
e assim devolvendo
vida
onde antes era medo (esse silêncio!)
E a qualquer
momento
esse grito - essa força - essa virulência toda
pode estourar
na minha boca, no meu gesto,
na praça, no ministério
e como animal selvagem que se propaga
à mesma velocidade
em que um corpo
cai
pode contaminar
outras tantas bocas e corações
e se fazer multidão
e rasgar o silêncio geral
e rasgar esse céu azul
VII.
e então
seremos muitos
e juntos
nos lançaremos
do ponto mais alto
de nossa revolta
Nossa queda
(inevitável como a gravidade)
destruirá
o chão
(oco)
deste mundo.
A crise - Primeiro ato - 10/03/08 – “o canto da ema”
“Você bem sabe que a ema quando canta
vem trazendo no seu canto um bocado de azar.”
[cena 2 - simbolista]
[a câmera abre]
Um corvo adentra o palco
andando vagarosamente.
Pára, olhando o Mercado.
O mesmo acontece mais
7 vezes.
Ao todo são oito corvos que olham atentamente
a cena, ao redor de Mercado e EUA.
Quando o público já estiver com os olhos acostumados à cena
abrem, de uma só vez, suas enormes asas negras.
[o canto de uma ema estoura,
no exato abrir de suas asas,
numa rotação mais
lenta
como uma sirena
ao contrário -
que persistirá até o final
do terceiro ato]
[cena 3 - expressionista]
Um operador da bolsa
surge do teto
pregado a uma cruz
(celulares pregados às mãos, aos pés e às orelhas).
É içado
sobre a platéia e
conduzido ritualisticamente
por todo o teatro
[é importante
que seu sangue respingue
nos rostos abismados do público -
o sacrifício tem que
ser o mais real
possível]
[cena 4 - backstage]
[um sinal de luz
discreto
no canto mais escuro do teatro
acende
indicando a porta
de emergência]
[TO BE CONTINUED...]
"Na sexta-feira, o mercado foi surpreendido pela notícia de que os EUA tiveram
a pior destruição de postos de trabalho desde 2003 (...) marcando o vigésimo!
mês consecutivo de queda. Para muitos economistas, foi a confirmação de que o
país mais rico do planeta está em recessão. "Não é possível dizer isso ainda,
mas com certeza o termo [recessão] ficou muito mais recorrente no mercado",
acrescenta Campos Neto."
O muro
(em memória do poeta e lutador Bertolt Brecht)
"Adeus! Adeus!
Adeus! Adeus!"
"Adeus, Karl! Adeus, Lênin!"
"Adeus, Karl! Adeus, Lênin!"
(E como Karl sempre dizia,
pela velha e boa dialética,
quando se chega ao ponto mais alto
é justo quando começa a queda.)
Quando, agora,
senhores de Wall Street,
vosso Muro
range e estala
e um fantasma ronda a Europa,
as Américas, a África e a Ásia...
Agora,
senhores de Wall Street,
de nada adianta
entoar cantigas.
Relendo clássicos II
Queria escrever
como se contasse apenas
com aquela única
caneta-lápis-borracha.
Mas ainda escrevo
como quem acha
esferográficas no saguão da universidade.
A Crise - Segundo ato - 17/03/09 - "é de metal, mas FED"
[cena 1]
um feixe de luz desce
iluminando a mão, suplicante, dos EUA.
uma pomba
- mais que branca -
vinda do além-palco
plana
até a palma
de sua mão
o olhar da pomba
é meigo
e negro.
Abre o bico
e regurgita
uma moeda
dourada
brilhante.
A pomba regurgita
uma outra moeda,
e outra, e mais uma,
e outra
e todas tilintam ao cair
no chão do palco.
seu bico,
não contendo o jorro
de verve
se abre
mera quantidade
e rasga-se
em ouro
- e lá vão seus olhos -
e a pomba vaza
por todos os poros
papel moeda
[um cheiro
se espalha no teatro
como carne humana
sendo queimada]
EUA chora
emocionado.
Mercado, assustado,
tenta puxar sua perna
que é fonte e tesão
do abraço emocionado
dos EUA.
O operador crucificado
de face para os céus
está iluminado
enternecido pela benção
[as letras na cruz
se transmutam de INRI
para FED]
EUA gargalha
quando o jorro
de prata
estoura os limites
brancos e mais-que-brancos
da pomba.
[cena 2 ]
Os oito corvos
- até agora imóveis ao redor da cena -
fecham suas asas e à beira do palco
se jogam levantando vôo.
Lentamente arrevoam
todo o teatro farejando
a origem do que
não cheira bem
[os corvos apenas
poderão pousar
- para se alimentar -
depois do último ato]
[cena 3]
Sentido-se enojado
pelo cheiro que se alastra
Mercado vomita
- longa e esplendnarizbocazedorasemente -
sobre a cabeça
de EUA.
[cena 4]
Senhores engravatados
surgem do fundo da platéia
distribuindo
lenços perfumados.
"O temor que atinge os mercados em todo o mundo --inclusive por aqui-- é causado por
uma nova ação do Fed (Federal Reserve, o BC americano) para evitar novos problemas
com as instituições financeiras. O Fed cortou, em um raro encontro em um fim de
semana, sua taxa de redesconto para 3,25%, além de aprovar uma ajuda para empresas
financeiras e o financiamento da compra do Bear Stearns.
Segundo o diário americano "The New York Times", a ação do Fed foi vista como
forma de evitar o "derretimento" (a quebra) do sistema financeiro americano --o que
agiria como uma espécie de "buraco negro" na economia global, arrastando outros
países para níveis mais agudos da crise e causando um colapso mundial. "
Questão de Ordem
(em memória do poeta revolucionário Roque Dalton)
agora deu
quero me nutrir
da coisa in natura
me entregar
a bruta
contradição diária
tô farto de gula
agora quero fome
e entorne
Relendo clássicos III
I.
Quando
- mais que uma rima -
a revolução chegar
à todas as vias
(de fato)...
II.
Quando for chegada a hora...
Quando a palavra for lâmina
na boca da maioria
e se fizer
vermelha e viva
em cada muro rua esquina...
ou correrá o máximo
que teus pulmões agüentarem?
III.
Quando for chegada a decisiva hora
e a luta histórica bater a tua porta...
Tu, oh musa de merda,
- senhoura esnobe e farta -
deixarás toda sua classe de lado?
Escrevo
num tom grandiloquente,
típico dos poetas
pequeno-burgueses
do Brasil deste século.
Observo,
pela janela,
a cidade lá embaixo.
Burgo feroz
e do qual tão pouco,
ou nada,
sei...
Enfim,
este poema teria tudo para ser um típico poema burguês
não fosse este nojo
esta ânsia que sinto
pelo que escrevo
e por tudo a minha volta.
(Não que me agrade a vida lá embaixo,
mas é que esta aqui
- conectada a todos os segundos andares de outras casas igualmente grandes -
não fede nem cheira
tão intensa
quanto o branco dos dentes num programa de auditório
tão profunda
quanto mais numerosos os canais de TV.
II.
E a poesia,
essa banha-restada-das-lipoaspirações-das-senhoras-excessivas-e-usada-pra-
enfeitar-
um-rei-apenas-ossos-de-tão-nu
essa masturbação-contínua-e-já-exaurida-que-goza-mas-nada-ejacula
essa borra-de-tédio-e-culpa-no-fundo-das-xícaras
essa poesia,
que vai bem com a cor do sofá e com o brilho das pratarias,
essa poesia, Senhoras, Senhores e Vossa Santíssima,
Já era!
Desce às ruas
e ali
se enche de medo
e desculpas
chora convulsivamente
a aspereza do verbo a dureza dos sentidos
parece se importar
e até usa
suas rimas mais pobres,
mas não...não pode esconder
esse cheiro raro
que exalam
suas finas
letras
e antes que brilhe no céu a primeira estrela
voltará para casa onde,
devidamente,
sofrerá insônia
e chá com bolachas.
III.
A poesia
não está acima,
além ou aquém,
nem mesmo
à esquerda ou à direita.
A poesia está dentro
da banca mais próxima nas livrarias shoppings megastores
e carrega uma etiqueta,
discreta,
no canto,
indicando seu preço.
A poesia,
com o perdão da palavra,
é uma mercadoria
como outra qualquer
e à noite paga boquete
às suas musas modernas:
Philco,
Coke,
Philips,
Wolks...
Já sinto subindo
seu frenesi convulso
Re-verso do que sorvo
- anti-lira -
jorro de verve
dis-gerida
no qual exponho
avesso
o que fiz de mim nas mesas fartas desta classe.
E é neste movimento
(dialético e peristáltico)
que aprendo
como o doce aparente
é em essência azedo
e como, por dentro,
somos quase todos
o mesmo:
esse líquido quente de cheiro
IV.
Lá embaixo,
distante de mim,
a vida - reverso vomitado e escorrido desta outra -
cheira mal e odiosamente
persiste.
Burguês,
me refugio na poesia.
Mas não por muito
tempo!
A Crise – intervalo antes do Terceiro ato (julho de 2009)
[soa uma campainha]
A platéia pula em suas cadeiras, assustada. Uma voz sensual e feminina
informa: “Senhoras e senhores, faremos um pequeno intervalo agora.
Pedimos desculpas, mas é terminantemente proibida a saída do recinto
antes do término do 3º ato. Que Deus esteja com todos nós.” Alguns
textos e imagens são projetadas num telão durante o intervalo.