Artigo Sobre ESCOLA SEM PARTIDO - Rubens Camargo e Cesar Minto
Artigo Sobre ESCOLA SEM PARTIDO - Rubens Camargo e Cesar Minto
Artigo Sobre ESCOLA SEM PARTIDO - Rubens Camargo e Cesar Minto
Resumo: Este artigo traz uma contribuição para o debate público de algumas dimensões do Projeto
de Lei da “Escola Sem Partido” (PL da ESP). Aborda, brevemente, as ações que lhe deram origem,
em um esforço de entendimento do contexto político subjacente e trata de suas possíveis conse-
quências, caso o PL venha a ser aprovado, sobretudo do ponto de vista do financiamento da educa-
ção escolar pública ou de sua eventual ausência ou insuficiência. Compara também os princípios
da educação nacional e outros aspectos que regem a educação escolar, presentes no Artigo 206
da Constituição Federal de 1988 (CF/88); no Artigo 3° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei 9.394/96 (LDB); e no referido PL. Conclui que sua aprovação será bastante nociva para
a maioria da sociedade e, espera-se, que esta última constate a inadequação do PL da ESP e se
disponha a reagir, deixando de tolerar mais retrocessos sociais.
Introdução
Este artigo não recoloca em debate as questões de educacionais. Contudo, apesar desse vasto conjunto
gênero, de discriminação étnico-racial, de crítica aos de contribuições, a nosso ver, faltava algo mais espe-
pressupostos fundamentalistas e religiosos do pro- cífico sobre as eventuais decorrências para a educa-
grama, entre muitas outras questões, pelo fato de que ção escolar pública, caso o PL da ESP seja aprovado
elas já foram bem abordadas por diferentes autores no Congresso Nacional.
em artigos acadêmicos, em publicações na chamada A apresentação simultânea de projetos de teor
grande imprensa e na mídia voltada para temáticas igual ou semelhante ao do ESP em várias casas de
“liberdade de consciência e de crença”, o que é dis- expressão “direitos compreendidos em sua liberdade
pensável, pois seu conteúdo já está previsto na CF/88 de consciência e de crença” aparentemente restringe
de modo mais amplo no seu Art. 5º, VI, por meio da a “liberdade de consciência e crença” ao acervo já
expressão “é inviolável a liberdade de consciência e consolidado nas pessoas, ignorando que tais aspectos
de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cul- são mutáveis, pois “consciência e crença” são caracte-
tos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção rísticas peculiares a todos os seres humanos, que são
aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL, 1988). salutarmente volúveis quando expostos a novas argu-
Outra introdução feita no PL da ESP foi o inciso mentações substanciais, porque devidamente funda-
V do Art. 2º, que propõe o “reconhecimento da vul- mentadas. Essa interação educando-objeto-educador
nerabilidade do educando como parte mais fraca na é essencial.
relação de aprendizado”. Ora, o conteúdo em questão Também introduzido pelo PL da ESP, o inciso VII
pressupõe a/o estudante apenas como objeto subor- do Art. 2º prevê o “direito dos pais a que seus filhos
dinado à ação docente, não o concebendo também recebam a educação religiosa e moral que esteja de
como sujeito de sua própria construção intelectual e acordo com as suas próprias convicções”, que, além
de vida nas relações que ocorrem na escola. Ao con- de contraditório com o inciso I, atribui à escola a
trário disto, pressupõe que, nos processos de ensino e responsabilidade pela manutenção da concepção
de aprendizagem, estariam em confronto uma “parte religiosa e moral dos pais. Ou seja, ignora-se que a
fraca” e uma “parte forte”, como polos opostos, reve- escola tem alcance e responsabilidade civilizatória
lando desconhecimento da relação pedagógica entre muito mais ampla que a da família e a de pais ou res-
educando e educador, frente à observação de objetos ponsáveis, talvez por pressupor como “naturais, de-
e fenômenos e face à reflexão e análise dela decorren- terminadas e únicas” a religião e a moral dos proge-
te, que deve ser, necessariamente interativa, dialógi- nitores. Assim, questiona-se como este aspecto seria
ca, para ser educativa8. tratado, do ponto de vista religioso, numa classe que
tenha filhos de famílias ateias ou umbandistas, islâ-
micas, judaicas, budistas, pentecostais, católicas etc.,
Outra introdução feita no PL da ESP foi o inciso V do Art. e, do ponto de vista moral e de costumes, numa sala
2º, que propõe o “reconhecimento da vulnerabilidade de aula que tenha pessoas com pais separados, pais/
do educando como parte mais fraca na relação de
mães de mesmo sexo, com orientações sexuais di-
aprendizado”. Ora, o conteúdo em questão pressupõe
versas etc.? Nessas condições, estudantes teriam seus
a/o estudante apenas como objeto subordinado à ação
direitos respeitados nas escolas públicas ou privadas?
docente, não o concebendo também como sujeito de sua
própria construção intelectual e de vida nas relações que
ocorrem na escola.
Modificações ou ausências no PL da
ESP em relação à CF/88 e à LDB
O inciso VI do Art. 2º – “educação e informação
do estudante quanto aos direitos compreendidos em O inciso II do Art. 2º do PL da ESP omite a ex-
sua liberdade de consciência e de crença” – é introdu- pressão “pesquisar e divulgar a cultura, o pensamen-
zido como se a escola apenas e tão somente transmi- to, a arte e o saber”. Isto dificultaria ou impediria
tisse informações às/aos estudantes, o que não condiz as práticas de ensino que realizam estas atividades
com a realidade, pois tal visão desconsidera a contri- essenciais? Se positivo, tal postura negligenciaria a
buição escolar para o desenvolvimento de um instru- própria essência do trabalho pedagógico, que é per-
mental complexo, que torna as pessoas mais capazes meado por novos conhecimentos e contribui para a
de colaborar na produção de novos saberes, tendo compreensão do mundo, além de confrontar aspec-
como base a observação de fatos e fenômenos e a tos inerentes à prática científica. Considerando que
elaboração de hipóteses e “checagens” que permitam isto poderia afetar também as instituições de ensino
notas
permeadas por concepções políticas que resultam de
sua formação, tanto como ser humano quanto como
profissional, e é natural que assim seja.
Do ponto de vista do financiamento da educação
escolar pública, considerado o teor privatista do PL
da ESP – que subtrai da LDB a “igualdade de condi-
1. Para facilitar o entendimento, usamos “ESP” para
ções para acesso e permanência na escola”, acaba com designar o Movimento ou Programa Escola Sem
a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos Partido e “PL da ESP” para designar o Projeto de Lei
oficiais”, retira a “garantia do padrão de qualidade” do da Escola Sem Partido.
ensino, não reafirma a “valorização dos profissionais 2. Advogado e proprietário da Escola Sem Partido
da educação escolar”, como destacamos neste texto Treinamento e Aperfeiçoamento Eireli - ME
– é muito provável que a disputa público x privado (Treinamento em desenvolvimento profissional
e gerencial) e da Associação Escola Sem Partido
seja acirrada, com aumento das distorções que têm (Atividades de associações de defesa de direitos
permeado a composição e a destinação do fundo sociais).
público, com vistas a estabelecer um padrão de “des-
3. “A partir de 2014, o ESP passou a influenciar
financiamento”, que pode provocar o caos na edu- projetos de lei (PL) em âmbito municipal, estadual
cação pública do país. Este conjunto de pretensões e federal, tendo atualmente 11 PLs em tramitação
antissociais dá continuidade às políticas implantadas nos estados. Na Câmara dos Deputados tramita o PL
867/2015, apensado ao PL 7180/2014, de autoria do
mais recentemente (ampla terceirização, reforma tra- deputado Erivelton Santana (PSC/BA), ao passo que,
balhista e Emenda Constitucional n° 95/2016, entre no Senado, está em tramitação o PLS nº 193/2016”.
outras), visando à materialização de um Estado cada Disponível em: https://marxismo21.org/escola-sem-
partido/. Acesso em: 10 mar. 2019.
vez mais submisso ao mercado financeiro nacional
e internacional. Assim, é necessário resistir a toda e 4. Acessível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/
qualquer tentativa de “flexibilizar” a legislação que noticias-pgr/pl-que-institui-escola-sem-partido-e-
inconstitucional-defende-pfdc. Acesso em: 10 mar.
trate das dimensões do fundo público (composição e 2019.
destinação), como está subjacente ao PL da ESP.
O PL da ESP coloca foco, aparentemente de pro- 5. Não desconhecemos que o fato de determinada
previsão não constar do PL da ESP não significa que
pósito, em questões polêmicas como gênero, religião, ela deixe de existir, caso já esteja contemplada em
moral etc., trazendo à tona conflitos disfuncionais outro dispositivo legal, mas a iniciativa de repetir
que resultam de visões de mundo polarizadas e con- algumas expressões e não outras já contidas na
legislação vigente denotam uma seletividade que nos
figurando-se como uma “cruzada” entre o bem e o instiga a realizar uma análise mais acurada acerca de
mal, mas ignora questões essenciais para a educação eventuais intenções não explicitadas no citado PL.
nacional, como as elencadas neste artigo. O referido
notas
6. Vários dispositivos legais na área da educação
utilizam “educação” e “ensino” como expressões
outros – e de controle externo realizado pelo Tribunal
de Contas da União (TCU), órgão auxiliar do poder
legislativo, além de outros fiscalizadores externos,
como o Ministério Público (MP), sendo que também
há órgãos incumbidos dessas funções nos estados,
Distrito Federal e municípios. Ademais, é essencial que
sinônimas, mas ponderamos que é necessário passar a população também exerça controle, participando
a considerar os diferentes conceitos que ambas de conselhos sociais e, por meio de suas entidades
expressam, como forma de precisar melhor do que representativas, durante a elaboração e a tramitação
se fala; neste caso, trata-se de diferentes amplitudes das principais peças de planejamento orçamentário
conceituais, pois a escola trabalha com o ensino ou do Estado: Plano Plurianual (quadrienal), Lei de
a educação escolar, que é muito importante, mas é Diretrizes Orçamentárias (LDO, anual, 1° semestre) e
apenas uma parte da educação mais ampla. Para maior a Lei Orçamentária Anual (LOA, 2° semestre), assim
detalhamento, ver FÉTIZON e MINTO, 2007. como também da execução destas peças.
7. Se admitir a “neutralidade ideológica e religiosa” 13. Até pouco tempo, os governantes admitiam em
do Estado já é questionável, atingir sua “neutralidade entrevistas públicas que “para cada real arrecadado, um
política” não nos parece viável, nem desejável. é sonegado”, talvez fruto de impunidade. A sociedade
Inclusive, atente-se para a “dificuldade” de sucessivos permitirá que isto continue acontecendo no país?
governos reconhecerem que seus posicionamentos não
são neutros. Como exemplo atual, observe-se a postura 14. A propósito, os constituintes e depois os
dos anteriores e do atual governo frente à situação da legisladores foram instados a vincular recursos para a
Venezuela. Seja como for, não estamos confundindo educação (CF/88, Art. 212) e a saúde (Art. 198, § 2°,
Estado com Governo, mas sabemos que, na prática, pela EC n° 29/2000), respectivamente. Atualmente, é
muitas vezes é isto o que se insinua. preciso muita atenção, pois a depender do Ministro da
Economia, Paulo Guedes, tais vinculações devem ser
8. A respeito, Cristóvão Tezza pondera: “A sala de aula extintas (O Estado de S. Paulo, 10/3/2019). A sociedade
é o espaço de encontro e choque dos valores que fazem brasileira permitirá que isto ocorra?
a civilização respirar. É uma fronteira social onde o
indivíduo encontra os outros; onde os limites do casulo 15. Os aspectos citados neste e no parágrafo anterior
familiar, qualquer que seja, se abrem ao mundo; é uma não são propriamente objetos de discussão neste texto,
passagem, não isenta de tensões, para a autonomia e a mas o registro aqui feito nos pareceu importante
independência; é uma chave do processo civilizatório” porque tais aspectos são essenciais para a garantia
(Folha de S. Paulo, 24/2/2019). dos direitos sociais da população, cuja materialização
depende fundamentalmente do fundo público.
9. Este aspecto é relevante pela necessidade de definir
quem são os sujeitos e seus direitos e deveres, mas cabe 16. Também o inciso I do Art. 206 da CF/88, mas ela é
registrar que a Lei 9.394/96 - LDB também não repete imutável via legislação ordinária.
o parágrafo único existente na CF/88.
17. Em 2016, somados, os gastos com o ProUni e o
10. CF/88, Art. 3°, inciso IV - “promover o bem de Fies representaram 16% do “Gasto Federal Total em
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, Educação” (ver Cadernos ANDES 28, 2018, p. 101).
idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Ademais, a expressão “identidade biológica de sexo” 18. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
pode induzir o/a leitor/a a pensar que tal referencial se Educação Básica e de Valorização dos Profissionais
restringe à configuração do fenótipo do ser humano. da Educação (Fundeb) define gastos obrigatórios com
manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) e
11. CF/88, Art. 6º - “São direitos sociais a educação, deve ser mantido (www.fnde.gov.br/financiamento/
a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o fundeb). No sistema de vouchers, a família recebe um
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, montante de recursos definidos pelo poder Público
a proteção à maternidade e à infância, a assistência para colocar seus filhos em escolas privadas. A cessão
aos desamparados, na forma desta Constituição”. A da gestão da escola a Organizações da Sociedade Civil
materialização desses direitos é custeada por tributos de Interesse Público (OSCIP) nada mais significa do
que a população paga; ou seja, a rigor, tais direitos não que a terceirização da gestão das escolas públicas para
são gratuitos. a iniciativa privada.
12. No âmbito mais amplo, além dos órgãos internos 19. Sugerimos que conheçam a sequência de slides
de controle – Controladoria Geral da União (CGU), apresentada por Jair Bolsonaro ao Tribunal Superior
Departamento de Polícia Federal (DPF) e Conselho Eleitoral (TSE) como “Proposta de Plano de Governo”.
de Controle de Atividades Financeiras (COAF), entre Disponível em: www.tse.jus.br/eleicoes. Acesso em: 10
mar. 2019.
referências
TEZZA, Cristóvão. Professores. Folha de S. Paulo, São Paulo, ano 99, nº 32.834, 24 fev. 2019.
Ilustrada, p. C6.