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Artigo Sobre ESCOLA SEM PARTIDO - Rubens Camargo e Cesar Minto

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Debates

“Escola Sem Partido”?


Uma análise com base na legislação
e sob a ótica do financiamento
Rubens Barbosa de Camargo
Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)
E-mail: rubensbc@usp.br

César Augusto Minto


Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP)
E-mail: caminto@usp.br

Resumo: Este artigo traz uma contribuição para o debate público de algumas dimensões do Projeto
de Lei da “Escola Sem Partido” (PL da ESP). Aborda, brevemente, as ações que lhe deram origem,
em um esforço de entendimento do contexto político subjacente e trata de suas possíveis conse-
quências, caso o PL venha a ser aprovado, sobretudo do ponto de vista do financiamento da educa-
ção escolar pública ou de sua eventual ausência ou insuficiência. Compara também os princípios
da educação nacional e outros aspectos que regem a educação escolar, presentes no Artigo 206
da Constituição Federal de 1988 (CF/88); no Artigo 3° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, Lei 9.394/96 (LDB); e no referido PL. Conclui que sua aprovação será bastante nociva para
a maioria da sociedade e, espera-se, que esta última constate a inadequação do PL da ESP e se
disponha a reagir, deixando de tolerar mais retrocessos sociais.

Palavras-chave: Escola Sem Partido. Financiamento da Educação. Fundo Público.


Políticas Educacionais. Legislação Educacional.

Introdução

Este artigo não recoloca em debate as questões de educacionais. Contudo, apesar desse vasto conjunto
gênero, de discriminação étnico-racial, de crítica aos de contribuições, a nosso ver, faltava algo mais espe-
pressupostos fundamentalistas e religiosos do pro- cífico sobre as eventuais decorrências para a educa-
grama, entre muitas outras questões, pelo fato de que ção escolar pública, caso o PL da ESP seja aprovado
elas já foram bem abordadas por diferentes autores no Congresso Nacional.
em artigos acadêmicos, em publicações na chamada A apresentação simultânea de projetos de teor
grande imprensa e na mídia voltada para temáticas igual ou semelhante ao do ESP em várias casas de

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leis (Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e do espaço público por pessoas isoladas e, até então,
Congresso Nacional) revela que trata-se de uma ação pequenos grupos de direita, sendo que o Projeto de
deliberada de setores sociais conservadores (do pon- Lei da Escola Sem Partido (PL da ESP) talvez tenha
to de vista cultural/costumes) e ultraliberais (do pon- cumprido um papel importante no sentido da agluti-
to de vista econômico), que até pouco tempo agiam nação e organização deste setor social de modo mais
de forma mais discreta e talvez menos organizada, sistemático1.
ainda com menor capacidade de ocupar espaços de Contudo, inúmeras contribuições já se encarre-
destaque. Atualmente, esses setores sociais têm exer- garam de apresentar argumentos contundentes em
cido um maior protagonismo em defesa de seus pro- contraposição a essa perspectiva, como registra,
jetos políticos. por exemplo, Vera Masagão Ribeiro, ao apresentar
É razoável supor que, a partir de 2010, a constru- a coletânea “A ideologia do movimento Escola Sem
ção de planos educacionais nas diferentes instâncias Partido: 20 autores desmontam o discurso” (AÇÃO
federativas (nacional, estaduais e municipais), as ma- EDUCATIVA, 2016):
nifestações públicas de junho de 2013, o processo de
Felizmente, as vozes contrárias às propostas
impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) em
do [projeto/programa] ESP são numerosas
2015 e 2016, mas não do vice Michel Temer (PMDB, entre educadores, intelectuais, jornalistas,
atual MDB), ambos legitimamente eleitos em 2014, e, parlamentares, ativistas de movimentos sociais,
em seguida, a proliferação de manifestações “verde- cidadãos e cidadãs identificados com valores
democráticos, com os direitos das populações
-amarelas” e “bate-panelas”, entre outros episódios
discriminadas historicamente, com o papel
contestatórios da ordem vigente, criaram as condi- central da escola na formação de sujeitos críticos
ções para a eclosão de diversos movimentos que co- e com o princípio da igualdade (p. 06).
meçaram a articular às claras elementos de ocupação

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Outro exemplo de contribuições sobre o tema Algumas considerações
Debates

encontra-se no site “Marxismo 21 - divulgando preliminares


a produção marxista no Brasil contemporâneo”,
que disponibiliza um dossiê elaborado a partir Devido ao seu teor polêmico, o ESP passou a ser
de uma seleção de fontes disponíveis livremente denominado de várias outras formas, entre elas: “Lei
na Internet: do Partido Único”, “Escola da Mordaça”, “Escola com
Censura”, dependendo da análise que dele se faz, e,
São artigos acadêmicos ou não, entrevistas, do ponto de vista histórico, foi trazido para o deba-
matérias da imprensa alternativa, textos
te educacional brasileiro em 2004, pelo procurador
publicados em blogs, manifestos e moções de
entidades e organizações, tendo em comum o Miguel Nagib2, mas efetivamente passou a se tornar
fato de que todos, sem exceção, têm tido posições mais amplamente público a partir de 2014, em face
veementes contra o intitulado projeto “Escola de ações judiciais e parlamentares realizadas por de-
sem Partido”. E como em todo levantamento que
fensores do ESP3.
envolve escolhas, pode deixar muitas lacunas
Segundo as pessoas que defendem o ESP, a edu-
e, também, abrir caminhos. Num contexto
de forte conservadorismo, nossa expectativa cação escolar estaria sendo impregnada por supostos
é que o dossiê favoreça essa segunda opção, “marxismo cultural” e “globalismo gramsciano”, em
fortalecendo as lutas pela educação pública. especial sob os auspícios de docentes “comunistas”
Disponível em: https://marxismo21.org/escola-
que estariam se valendo do papel que ocupam nos
sem-partido/. Acesso em: 10 mar. 2019.
processos de ensino e de aprendizagem para dou-
Ainda um outro exemplo de contribuições a este trinar estudantes, tidos como a “parte fraca”, o “elo
debate pode ser encontrado na coletânea “Escola frágil” nestes processos. Assim, elencamos eventuais
‘sem’ partido: esfinge que ameaça a educação e a so- decorrências de tal visão distorcida.
ciedade brasileira” (UERJ, LPP, 2017), em cuja apre- Em termos supostamente pedagógicos, setores
sentação Maria Ciavatta (UFF) argumenta: sociais referenciados no senso comum para analisar
ações docentes realizadas nas escolas (públicas ou
Os artigos que compõem a coletânea indicam privadas) ostentam concepções de educação e de es-
que precisamos: insistir na organização política
cola bastante limitadas, sendo que a educação escolar
para resistir à conjuntura do golpe parlamentar,
midiático e jurídico ainda em curso, em toda sua seria predominantemente vulnerável à doutrinação e
virulência; e entender a base econômica nacional a escola seria apenas “transmissora” de saberes téc-
e internacional que motivou todo o processo, nicos, uma instituição sem conflitos e contradições,
a ideologização dos falsos argumentos que
pretensamente neutra em relação ao mundo e, ade-
romperam a ordem democrática e sua expressão
mais, a/o estudante seria mera “tabula rasa”, manipu-
na educação e a ideologia do Escola sem Partido
e de outros movimentos semelhantes (p. 07). lável por docentes. Trata-se de concepções, no míni-
mo, equivocadas.
Este artigo aborda, brevemente, o surgimento de Em termos políticos, as pessoas defensoras do ESP
ações que deram origem ao PL da ESP e trata de suas forjaram um movimento homônimo, “Movimento
eventuais decorrências, caso aprovado, sobretudo do Escola sem Partido”, em especial a partir dos deba-
ponto de vista mais próximo da área do financiamen- tes sobre o Plano Nacional de Educação (PNE) em
to da educação, por meio da consideração de princí- 2010 e, em seguida, sobre os planos estaduais (PEE) e
pios e outros aspectos que regem a educação escolar, municipais de educação (PME) dele decorrentes, nas
comparando: 1) o Artigo 206 da Constituição Federal duas outras esferas da federação. Esta iniciativa de
de 1988 (CF/88); 2) o Artigo 3° da Lei de Diretrizes forte cunho conservador ganhou mais notoriedade e
e Bases da Educação Nacional, Lei 9.394/96 (LDB); e presença no cenário atual por questionar expressões
3) o referido PL, disponível em www.programaesco- referentes a temas relativos a questões de gênero, de
lasempartido.org e submetido a várias casas legisla- opções religiosas e de concepções pedagógicas, en-
tivas do país. tre outras. Segundo este movimento, tais questões

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não caberiam constar dessas peças de planejamento condições de atendimento (referimo-nos à existência

“Escola Sem Partido”?


educacional, que, por sua vez, deveriam ser apenas efetiva de bibliotecas, laboratórios, espaços culturais
técnicas, como se tal pretensão fosse possível, em se e esportivos equipados e em funcionamento), bai-
tratando de temáticas importantes, que envolvem xos salários de servidores (docentes e funcionários
essencialmente distintas visões de mundo, legítimas, técnico-administrativos), relações numéricas exacer-
mas não raro antagônicas. badas entre estudantes/docente e estudantes/técni-
Ou seja, o debate em questão implica aspectos ide- co-administrativo, uso indiscriminado do Ensino a
ológicos, políticos, culturais, morais, religiosos e até Distância (EaD), terceirizações generalizadas, mero
financeiros, por envolver posicionamentos relativos recurso a modismos fugazes, entre vários outros
a distintas concepções de mundo, sendo que as pes- problemas passíveis de solução com políticas públi-
soas defensoras do ESP têm ostentado sempre uma cas adequadas.
postura provocativa nas discussões públicas sobre a A seguir, o Quadro 1 apresenta excertos do Artigo
educação. Ao mesmo tempo, suas iniciativas passa- 206 da CF/88, do Artigo 3º da Lei 9.394/96 (LDB) e
ram a cumprir um papel de arregimentar e organizar do Artigo 2º do PL da ESP, para que se possa compa-
quadros conservadores até então quase totalmente rá-los e verificar as eventuais mudanças provocadas,
isolados, provocando várias manifestações (a favor e caso este PL seja aprovado na Câmara dos Deputa-
contra) em diferentes instâncias da sociedade. Este dos e no Senado Federal, as casas que constituem o
debate tem adquirido ares de cruzada entre o bem e o Congresso Nacional, tão logo o governo Bolsonaro-
mal e, não raro, tem produzido mais calor do que luz, -Mourão retome aquela que tem sido chamada de
o que não contribui para de fato embasar posiciona- “pauta relativa a costumes”. Mas, antes, cabe lembrar
mentos dos vários setores da sociedade. que, conforme argumenta Jorge Coli, “Para o analis-
Após a circulação de minutas nas esferas adminis- ta, há uma ética na obra [neste caso, no referido PL]
trativas, nacional, estaduais e municipais (disponí- que impõe parâmetros a serem interpretados” (Fo-
veis no site da “organização”, já citado anteriormen- lha de S. Paulo, 24/2/2019). E é exatamente isto que
te), as pessoas que defendem o ESP o apresentaram e buscamos fazer na análise que apresentamos para a
o formalizaram como PL em vários estados (AL, AM, discussão do tema.
CE, DF, ES, GO, PR, PE, RJ, RS e SP) e municípios
(São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Picuí-PB e Foz
do Iguaçu, entre outros), a partir de 2014, via parla-
Vale ressaltar que as pessoas defensoras do ESP apre-
mentares de diversos partidos (PMDB, PSDB, PRN,
sentam soluções bastante limitadas e até aparentemente
PSD, DEM, PSC, PTN, PP e PR).
ingênuas para a educação escolar em todas as esferas fe-
Em alguns estados e municípios, essas iniciativas
derativas, na medida em que desconsideram os principais
obtiveram sucesso, fato que provocou alguns vetos problemas da educação nacional.
de governantes, até que a Procuradoria Geral da
República (PGR) manifestou-se em nota técnica ao
Congresso Nacional pela inconstitucionalidade des-
ses PL4. Isto explica porque tais iniciativas parecem A metodologia aqui adotada foca, sobretudo, o
ter sido arrefecidas, mas não significa que o debate item “princípios”, nas opções expressas por meio do
tenha se encerrado; tudo indica que ele será retoma- recurso a permanências, modificações e ausências
do com vigor. de expressões no PL da ESP (3ª coluna) em relação
Vale ressaltar que as pessoas defensoras do ESP à CF/88 (1ª coluna) e à LDB (2ª coluna), tendo como
apresentam soluções bastante limitadas e até apa- pano de fundo, sobretudo, as implicações para o fi-
rentemente ingênuas para a educação escolar em nanciamento do ensino público, caso o referido PL
todas as esferas federativas, na medida em que des- seja aprovado. Vale dizer que tais opções embutem
consideram os principais problemas da educação posicionamentos relativos a visões de mundo, não
nacional: ausência/insuficiência de verbas, falta de raro só detectáveis via leitura de entrelinhas.

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Debates
Quadro 1 - Comparação entre a legislação vigente e o Art. 2º do PL da ESP
CF/88 Lei 9.394/96, LDB PL da ESP
Art. 206 O ensino será ministrado com Art. 3º O ensino será ministrado com base Art. 2º A educação nacional atenderá aos
base nos seguintes princípios: nos seguintes princípios: seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso I - igualdade de condições para o acesso e
e permanência na escola; permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, II - liberdade de aprender, ensinar, pesqui- III - liberdade de aprender e de ensinar;
pesquisar e divulgar o pensamento, a sar e divulgar a cultura, o pensamento, a IV - liberdade de consciência e de crença;
arte e o saber; arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concep- III - pluralismo de ideias e de concepções II - pluralismo de ideias no ambiente
ções pedagógicas e coexistência de pedagógicas; acadêmico;
instituições públicas e privadas de V - coexistência de instituições públicas e
ensino; privadas de ensino;
IV - gratuidade do ensino público em VI - gratuidade do ensino público em
estabelecimentos oficiais; estabelecimentos oficiais;
V - valorização dos profissionais da VII - valorização do profissional da educa-
educação escolar, garantidos, na forma ção escolar;
da lei, planos de carreira, com ingresso
exclusivamente por concurso público de
provas e títulos, aos das redes públicas
(redação dada pela Emenda Constitucio-
nal nº 53, de 2006);
VI - gestão democrática do ensino VIII - gestão democrática do ensino público,
público, na forma da Lei; na forma desta Lei e da legislação dos
sistemas de ensino;
VII - garantia de padrão de qualidade; IX - garantia de padrão de qualidade;
VIII - piso salarial profissional nacional
para os profissionais da educação es-
colar pública, nos termos de lei federal
(incluído pela Emenda Constitucional nº
53, de 2006);
Parágrafo único. A lei disporá sobre as Parágrafo único. O Poder Público não se
categorias de trabalhadores consi- imiscuirá na opção sexual dos alunos
derados profissionais da educação nem permitirá qualquer prática capaz de
básica e sobre a fixação de prazo para comprometer, precipitar ou direcionar o
a elaboração ou adequação de seus natural amadurecimento e desenvolvimen-
planos de carreira, no âmbito da União, to de sua personalidade, em harmonia com
dos estados, do Distrito Federal e dos a respectiva identidade biológica de sexo,
municípios. (incluído pela Emenda sendo vedada, especialmente, a aplicação
Constitucional nº 53, de 2006). dos postulados da teoria ou ideologia de
gênero;
IV - respeito à liberdade e apreço à VI - educação e informação do estudante
tolerância; quanto aos direitos compreendidos em sua
liberdade de consciência e de crença;
X - valorização da experiência extraescolar;
XI - vinculação entre a educação escolar, o
trabalho e as práticas sociais;
XII - consideração com a diversidade
étnico-racial (incluído pela Lei nº 12.796,
de 2013).
I - neutralidade política, ideológica e
religiosa do Estado;
V - reconhecimento da vulnerabilidade
do educando como parte mais fraca na
relação de aprendizado;
VII - direito dos pais a que seus filhos
recebam a educação religiosa e moral que
esteja de acordo com as suas próprias
convicções.
Fonte: Autores, com base em artigos da CF/88, da LDB e do PL da ESP.

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possível modificar a CF/88 por meio de lei ordinária,

“Escola Sem Partido”?


Ademais, segundo o § 1º do Art. 4º do PL da ESP,
mas o mesmo não se pode dizer da LDB, que é lei
as instituições de educação básica afixarão nas ordinária. Independente disso, cabe questionar: qual
salas de aula e nas salas dos professores cartazes
seria a real intenção das pessoas que propõem e de-
com o conteúdo previsto no anexo desta Lei,
com, no mínimo, 90 centímetros de altura por
fendem o ESP?
70 centímetros de largura, e fonte com tamanho Logo no caput do Art. 2º do PL, observam-se ter-
compatível com as dimensões adotadas. mos relativos a princípios que devem orientar a edu-
cação nacional, onde há uma expressão que não se
ANEXO ao PL da ESP coaduna com as dos outros dois caput: “a educação
DEVERES DO PROFESSOR nacional atenderá os seguintes princípios”, enquan-
to a CF/88 e a LDB registram a expressão “o ensino
I - O Professor não se aproveitará da audiência cativa
dos alunos para promover os seus próprios interesses, será ministrado com base nos seguintes princípios”
opiniões, concepções ou preferências ideológicas, (destaques nossos). Como se sabe, tais princípios de-
religiosas, morais, políticas e partidárias.
vem reger o ensino ou a educação escolar; vale dizer
II - O Professor não favorecerá nem prejudicará ou aquela ação educacional realizada em instituições es-
constrangerá os alunos em razão de suas convicções
pecíficas (escolas e instituições de ensino superior)
políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta
delas. em seus dois níveis (educação básica e educação su-
perior). Será que com a eventual aprovação do PL
III - O Professor não fará propaganda político-partidária
em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de da ESP, conforme proposto, pretende-se estabelecer
manifestações, atos públicos e passeatas. regras para a educação – conceito muito mais am-
plo e abrangente do que o conceito de ensino ou de
IV - Ao tratar de questões políticas, socioculturais e eco-
nômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma educação escolar –, incluindo atividades do dia a dia,
justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade para além da instituição escola6?
–, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas
concorrentes a respeito da matéria.

V - O Professor respeitará o direito dos pais dos alunos


a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral
Aspectos introduzidos no PL
que esteja de acordo com suas próprias convicções. da ESP em relação à CF/88 e à LDB
VI - O Professor não permitirá que os direitos assegu-
rados nos itens anteriores sejam violados pela ação de O inciso I do Art. 2º do PL da ESP foi um dos as-
estudantes ou terceiros dentro da sala de aula. pectos introduzidos, pretendendo estabelecer como
princípio da educação nacional a: “I - neutralidade
É oportuno lembrar: primeiro, que as definições política, ideológica e religiosa do Estado”. De certa
dos conteúdos da CF/88 e da LDB são frutos de pro- forma, tal previsão já está presente na própria CF/88
cessos históricos, políticos e sociais, que envolvem e na LDB em diferentes artigos, porém sem o uso de
várias questões ideológicas, econômicas e culturais, “neutralidade”, termo este que ensejaria um signifi-
em particular para a área da educação; e segundo, cado oposto ao de “pluralidade” nas ações do Estado
que os conteúdos desses dois dispositivos foram de- face a questões políticas, ideológicas e religiosas típi-
batidos, “disputados”, acordados e votados em proce- cas das sociedades democráticas. Ou seja, os dois ter-
dimentos participativos intensos, por longo tempo e mos expressam diferentes significados e acreditamos
não pensados para a mera implantação de um “pro- que tanto os constituintes como os parlamentares
jeto ou programa”, conforme proposto no PL da ESP. que definiram a LDB não usaram o termo “neutra-
Com um breve olhar sobre o Quadro 1, pode-se lidade” porque compreenderam que deve ser natu-
constatar muito mais “ausências” do que “presenças” ral e desejável e que sempre haverá diversidade nas
na terceira coluna (PL da ESP), quando comparada sociedades e, portanto, também nas suas várias ins-
com as outras duas colunas, seja a da CF/88 (1ª co- tituições, sobretudo nas escolas e nas universidades,
luna) ou a da LDB (2ª coluna)5. Sabe-se que não é espaços essencialmente críticos7.

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O inciso IV do Art. 2º do ESP insere a expressão explicá-los, mesmo que provisoriamente. Ademais, a
Debates

“liberdade de consciência e de crença”, o que é dis- expressão “direitos compreendidos em sua liberdade
pensável, pois seu conteúdo já está previsto na CF/88 de consciência e de crença” aparentemente restringe
de modo mais amplo no seu Art. 5º, VI, por meio da a “liberdade de consciência e crença” ao acervo já
expressão “é inviolável a liberdade de consciência e consolidado nas pessoas, ignorando que tais aspectos
de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cul- são mutáveis, pois “consciência e crença” são caracte-
tos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção rísticas peculiares a todos os seres humanos, que são
aos locais de culto e a suas liturgias” (BRASIL, 1988). salutarmente volúveis quando expostos a novas argu-
Outra introdução feita no PL da ESP foi o inciso mentações substanciais, porque devidamente funda-
V do Art. 2º, que propõe o “reconhecimento da vul- mentadas. Essa interação educando-objeto-educador
nerabilidade do educando como parte mais fraca na é essencial.
relação de aprendizado”. Ora, o conteúdo em questão Também introduzido pelo PL da ESP, o inciso VII
pressupõe a/o estudante apenas como objeto subor- do Art. 2º prevê o “direito dos pais a que seus filhos
dinado à ação docente, não o concebendo também recebam a educação religiosa e moral que esteja de
como sujeito de sua própria construção intelectual e acordo com as suas próprias convicções”, que, além
de vida nas relações que ocorrem na escola. Ao con- de contraditório com o inciso I, atribui à escola a
trário disto, pressupõe que, nos processos de ensino e responsabilidade pela manutenção da concepção
de aprendizagem, estariam em confronto uma “parte religiosa e moral dos pais. Ou seja, ignora-se que a
fraca” e uma “parte forte”, como polos opostos, reve- escola tem alcance e responsabilidade civilizatória
lando desconhecimento da relação pedagógica entre muito mais ampla que a da família e a de pais ou res-
educando e educador, frente à observação de objetos ponsáveis, talvez por pressupor como “naturais, de-
e fenômenos e face à reflexão e análise dela decorren- terminadas e únicas” a religião e a moral dos proge-
te, que deve ser, necessariamente interativa, dialógi- nitores. Assim, questiona-se como este aspecto seria
ca, para ser educativa8. tratado, do ponto de vista religioso, numa classe que
tenha filhos de famílias ateias ou umbandistas, islâ-
micas, judaicas, budistas, pentecostais, católicas etc.,
Outra introdução feita no PL da ESP foi o inciso V do Art. e, do ponto de vista moral e de costumes, numa sala
2º, que propõe o “reconhecimento da vulnerabilidade de aula que tenha pessoas com pais separados, pais/
do educando como parte mais fraca na relação de
mães de mesmo sexo, com orientações sexuais di-
aprendizado”. Ora, o conteúdo em questão pressupõe
versas etc.? Nessas condições, estudantes teriam seus
a/o estudante apenas como objeto subordinado à ação
direitos respeitados nas escolas públicas ou privadas?
docente, não o concebendo também como sujeito de sua
própria construção intelectual e de vida nas relações que
ocorrem na escola.
Modificações ou ausências no PL da
ESP em relação à CF/88 e à LDB
O inciso VI do Art. 2º – “educação e informação
do estudante quanto aos direitos compreendidos em O inciso II do Art. 2º do PL da ESP omite a ex-
sua liberdade de consciência e de crença” – é introdu- pressão “pesquisar e divulgar a cultura, o pensamen-
zido como se a escola apenas e tão somente transmi- to, a arte e o saber”. Isto dificultaria ou impediria
tisse informações às/aos estudantes, o que não condiz as práticas de ensino que realizam estas atividades
com a realidade, pois tal visão desconsidera a contri- essenciais? Se positivo, tal postura negligenciaria a
buição escolar para o desenvolvimento de um instru- própria essência do trabalho pedagógico, que é per-
mental complexo, que torna as pessoas mais capazes meado por novos conhecimentos e contribui para a
de colaborar na produção de novos saberes, tendo compreensão do mundo, além de confrontar aspec-
como base a observação de fatos e fenômenos e a tos inerentes à prática científica. Considerando que
elaboração de hipóteses e “checagens” que permitam isto poderia afetar também as instituições de ensino

82 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #64


superior (IES), entende-se que restringiria muito este de gênero e de diversidade sexual, postulando como

“Escola Sem Partido”?


ensino. E não só o ensino superior, pois sabe-se que determinante apenas a “identidade biológica de sexo”
a pesquisa básica no país ocorre quase que exclusiva- como o processo de “natural amadurecimento e de-
mente nas IES públicas e nos institutos públicos de senvolvimento de sua personalidade”. Como enten-
pesquisa. Portanto, a cultura, o pensamento, a arte e der o fato de que setores sociais não respeitem e se
o saber estariam, no mínimo, delegados a um segun- incomodem com a definição de vida saudável e feliz
do plano, sendo que, no limite, tal negligência colo- de tantas outras pessoas com iguais direitos? O Poder
caria em risco o próprio desenvolvimento científico Público tem sim o dever de garantir o bem estar de
e tecnológico e a soberania do país. E não se trata toda a sociedade, conforme previsto na CF/8810.
de visão catastrófica, pois tais atividades precisam ser Entre os incisos que foram “extirpados” no Art. 2º
cultivadas, como ocorre em países que buscam níveis do PL da ESP em relação à LDB estão o IV – “respeito
sociais e civilizatórios crescentes. à liberdade e apreço à tolerância”, cuja ausência po-
O inciso III do Art. 2º do PL da ESP retira a ex- deria ensejar o entendimento do ódio como ocorrên-
pressão “concepções pedagógicas”, estabelecida tanto cia natural; o VIII – “gestão democrática do ensino
na CF/88 como na LDB, ainda que preveja “o plu- público, na forma desta Lei e da legislação dos siste-
ralismo de ideias no ambiente acadêmico” (inciso II mas de ensino”, cuja omissão dá a entender que po-
do PL), o que poderia atentar contra a liberdade de deriam ocorrer práticas autoritárias, sem considerar
cátedra, se o pressuposto é que exista uma só concep- a previsão de processos participativos e as diferentes
ção, em detrimento de múltiplas concepções possí- opiniões existentes nas escolas; o inciso X – “valori-
veis, cabendo ainda questionar qual seria esta única
concepção? Além de inconstitucional, no mínimo, a
pretensão traria como consequências o empobreci-
mento do processo de ensino e a restrição do proces-
so de aprendizagem. Recuperemos então a visão de
conjunto expressa no referido PL: ensino restrito à
transmissão, estudantes não pensam, não têm opini-
ões nem juízos próprios, são ingênuos, não sabem se
defender, entre outros aspectos, e, ademais, sem con-
siderar a influência da família, das mídias, das redes
sociais, da rua etc. Que dizer disso tudo?
O parágrafo único do Art. 2º do PL da ESP não
tem sintonia com o parágrafo único do Art. 206 da
CF/88, onde aparece a previsão correta de que a Lei
definirá quem serão os profissionais da educação9.
Mas estabelece que

O Poder Público não se imiscuirá na opção


sexual dos alunos nem permitirá qualquer
prática capaz de comprometer, precipitar
ou direcionar o natural amadurecimento e
desenvolvimento de sua personalidade, em
harmonia com a respectiva identidade biológica
de sexo, sendo vedada, especialmente, a
aplicação dos postulados da teoria ou ideologia
de gênero.

Tal previsão afronta qualquer concepção humana


mais respeitosa e atual no que se refere às questões

ANDES-SN n julho de 2019 83


Debates zação da experiência extraescolar”, cuja falta poderia meras distorções, tanto na composição como na
definir a escola como referência única, o que não é destinação do fundo público. Quanto à composição,
pedagogicamente recomendável; a supressão do inci- destaca-se, em especial, a sonegação de impostos13,
so XI – “vinculação entre a educação escolar, o traba- sobretudo por setores mais ricos da população, pois
lho e as práticas sociais” desconsidera a vida real das as pessoas assalariadas são descontadas em folha e as
pessoas e suas experiências concretas; e o apagamen- mais pobres e em trabalho informal têm dificuldades
to do inciso XII – “consideração com a diversidade até para garantir a própria subsistência, mas são as
étnico-racial”, nos faz ponderar que, se na Lei, o uso que proporcionalmente mais contribuem por con-
de “consideração” já revela fragilidade, ao sumir com ta do sistema tributário regressivo, que privilegia a
o inciso todo, pode-se ensejar a eventual naturaliza- incidência sobre o consumo. Destacam-se, ainda, os
ção do racismo, o que é absolutamente inaceitável. mecanismos de isenção ou de renúncia fiscal adota-
dos pelos governos, que têm sido tão frequentes que
refinanciamentos de dívidas (os “refis”) e iniciativas
Exclusões do PL da ESP quanto congêneres passaram a “incentivar” o não pagamento
ao teor e à abrangência do regular de tributos e, por decorrência, o seu não di-
financiamento recionamento à materialização dos direitos sociais14.
Quanto à destinação do fundo público, destaca-se
Inicialmente, registre-se que a garantia, pelo Esta- em especial o favorecimento de empresas privadas
do, dos direitos sociais previstos na CF/88 depende por meio de várias ocorrências: superfaturamento
do fundo público, que é provido pela sociedade por de serviços, obras e materiais; burla de licitações pú-
meio do pagamento de tributos – impostos, taxas e blicas; aquisição de “insumos educacionais” que dis-
contribuições11. Os governos não possuem recursos torcem o sentido do direito à educação (programas,
e não são proprietários dos montantes que arreca- apostilas, livros etc.); e recurso a assessorias, consul-
dam da população; assim sendo, o que pode garan- torias e processos de aferição de desempenho de ins-
tir a saúde e a educação, entre outros direitos, são, tituições e estudantes, por exemplo, os exames ditos
de “avaliação” em larga escala, sem falar no uso que é
feito de seus resultados. Ou seja, no limite, todas essas
Assim, a disputa público x privado, que permeia a práticas de cunho privatista têm sido determinantes
composição e a destinação do fundo público, provoca de boa parte das políticas educacionais no país.
uma deliberada ciranda antissocial, cujos envolvidos Assim, a disputa público x privado, que permeia a
estariam sujeitos à cadeia em países civilizados, tanto os composição e a destinação do fundo público, provoca
sonegadores quanto os governantes que a promovem ou
uma deliberada ciranda antissocial, cujos envolvidos
permitem que ela aconteça.
estariam sujeitos à cadeia em países civilizados, tanto
os sonegadores quanto os governantes que a promo-
em especial, os impostos recolhidos pelos governos. vem ou permitem que ela aconteça. E é sempre opor-
Contudo, cabe lembrar que este assunto implica a tuno acompanhar qualquer tentativa de “flexibilizar”
consideração de duas dimensões: 1) a composição a legislação que trate dessas duas dimensões do fun-
das receitas e 2) sua destinação, ambas sistematica- do público, pois elas podem ou não contribuir para a
mente permeadas por disputas classistas pelo fundo permanência das distorções citadas.
público. Portanto, o controle do que se arrecada e do Registre-se ainda que, do ponto de vista estrutural,
que se gasta é fundamental e é prerrogativa do Poder o país tem um sistema tributário altamente regressi-
Público, cujas atividades precisam ser transparentes e vo; vale dizer, a população mais pobre paga propor-
devidamente fiscalizadas, tanto pelos órgãos formal- cionalmente mais tributos, pois, segundo o modelo
mente competentes como pela população em geral12. vigente, “somos todos iguais”, mas não em vários ou-
É oportuno lembrar que o país tem sido subme- tros quesitos que não sejam basicamente o da taxa-
tido a práticas socialmente deletérias, devido a inú- ção sobre o consumo. Ou seja, o financiamento dos

84 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #64


direitos sociais, entre eles o da educação escolar, de- xas e mensalidades nas escolas públicas de educação

“Escola Sem Partido”?


pende também de uma efetiva reforma tributária, de básica e de educação superior – velho sonho do setor
modo a atingir mais as pessoas (físicas ou jurídicas) empresarial. Tal prerrogativa seria fatal, em especial
que ganham mais ou que têm maior patrimônio e, para os segmentos subalternizados da população, a
assim, melhor distribuir as riquezas produzidas no maioria da sociedade. O país tem sido submetido à
país. Como explicar, por exemplo, que sucessivos coexistência de escolas públicas e privadas e já está
governos não tenham instituído o imposto sobre as sujeito a alguma forma de repartição do fundo pú-
grandes fortunas previsto na CF/88 (Art. 153, VII)? blico, por exemplo, via mecanismos de bolsas, con-
Tal tributação é sistemática, inclusive nos países ca- vênios privados por descumprimento de responsabi-
pitalistas centrais .
15
lidades educacionais pelo Poder Público, da adoção
Isso posto, o que permite constatar uma correla- do Programa Universidade para Todos (ProUni) e
ção maior entre o PL da ESP e o financiamento da do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), no
educação pública se manifesta quando o referido PL caso da educação superior, entre outras iniciativas
propõe retirar o inciso I do Art. 3º da LDB – “igual- oficiais17.
dade de acesso e permanência na escola”16. A inicia- Ainda, excluir a “gratuidade do ensino público em
tiva pressupõe uma inconcebível “exclusão natural” estabelecimentos oficiais” (Art. 3º, IV, da LDB), no
e o tratamento não igualitário de crianças, adoles- caso da educação básica, implicaria a possibilidade
centes, jovens e adultos das escolas e IES (públicas de cobrança de matrículas e mensalidades em cre-
e privadas). Além disso, ao negligenciar o acesso e ches, mesmo nas conveniadas (privadas), no ensino
a permanência de estudantes, por óbvio, isenta tam- fundamental e no ensino médio. Quantas famílias
bém os governantes da obrigatoriedade de garantir poderiam arcar com tais despesas? E, se imaginar-
recursos para a expansão das redes de ensino e para mos que: 1) acabem com o Fundeb, que prevê gastos
afiançar a permanência de estudantes, com sucesso,
até a conclusão de seus estudos, o que implica não
só discriminação como pode demandar mais gas-
O país tem sido submetido à coexistência de escolas
públicas e privadas e já está sujeito a alguma forma de
tos futuros para corrigir distorções de escolaridade.
repartição do fundo público, por exemplo, via mecanismos
Tal “omissão” é tão descabida que cabe questionar: a
de bolsas, convênios privados por descumprimento de
quem interessa e o que justificaria o tratamento desi-
responsabilidades educacionais pelo Poder Público, da
gual de estudantes?
adoção do Programa Universidade para Todos (ProUni) e
Ainda, ao retirar o inciso V do Art. 3º da LDB – do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), no caso da
“coexistência de instituições públicas e privadas de educação superior, entre outras iniciativas oficiais.
ensino”, deixa aparentemente livres, sem regulação,
as instituições particulares, fato este que tem sido
sempre de muito interesse do setor empresarial da obrigatórios com MDE; 2) implantem uma política
educação, em especial de seu contingente que tem o de vouchers; e 3) deleguem a gestão das escolas a Or-
lucro como objetivo primordial. A legislação do país ganizações da Sociedade Civil de Interesse Público
prevê a existência do ensino privado apenas como (OSCIP), entre outras políticas de teor privatista, o
concessão do Poder Público, mas não é lícito ignorar setor empresarial veria multiplicadas suas possibili-
que o setor empresarial tem exercido forte lobby so- dades de negócios “educacionais” lucrativos18! Enfim,
bre sucessivos executivos e legislativos para garantir o fato é que, se aprovado o PL da ESP, no limite, o país
a manutenção de seus interesses. Aliás, esta disputa correria o risco de ser submetido a um novo padrão
público x privado tem sido constante na história da de financiamento da educação pública, que poderá
educação no país. aprofundar ainda mais a disputa pelo fundo público,
Ao retirar o inciso VI do Art. 3º da LDB – “gratui- com maior probabilidade de danos para a população.
dade do ensino público em estabelecimentos oficiais”, Quando retira o inciso VII do Art. 3º da LDB
o PL da ESP abre a possibilidade da cobrança de ta- (também inciso VII do Art. 206 da CF/88) – “valo-

ANDES-SN n julho de 2019 85


rização do profissional da educação escolar”, o PL da Considerações finais
Debates

ESP negligencia o fato de que as/os docentes das redes


públicas e privadas precisam da previsão de garantias O PL da ESP foi urdido com base em ideias per-
de valorização profissional, formação substantiva, secutórias e de senso comum – suposto avanço do
oportunidades de atualização e aperfeiçoamento, con- “marxismo cultural” e do “globalismo gramsciano”,
dições efetivas de atendimento pedagógico, salários sob os auspícios de docentes “comunistas”, doutri-
dignos, jornadas de trabalho não exaustivas, relação nadores por excelência – e introduz disputas ideoló-
adequada de estudantes por classe etc., necessidades gicas, judiciais e legislativas, em um momento assaz
estas já comprovadas em pesquisas nacionais e inter- complexo, pois, desde 2013, o país parece envolto
nacionais e que se constituem como um dos principais em espessa névoa, talvez decorrente de muita insa-
itens de despesas para financiamento no setor da edu- tisfação política represada; do golpe midiático-jurí-
cação. E nunca é demais lembrar que gastos com ensi- dico-parlamentar que derrubou Dilma Rousseff, mas
no/educação escolar são, sobretudo, investimentos em manteve o vice Michel Temer na presidência; e de tá-
educação que, por sua vez, são investimentos sociais. ticas inescrupulosas usadas nas eleições de 2018, re-
Por fim, ao retirar o inciso IX do Art. 3º da LDB sultando na aprovação da chapa Bolsonaro-Mourão,
(também inciso VII do Art. 206 da CF/88) – “garan- que sequer apresentou um real programa de governo
tia de padrão de qualidade”, o PL da ESP tenta apagar à sociedade, pois o que foi acompanhado pelo lema
da legislação um dos poucos locais nos quais aparece “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” efetiva-
tal previsão essencial. A iniciativa tem um significa- mente não se caracteriza como tal19.
do antissocial, factual e simbólico muito importante. É também oportuno observar que o atual momen-
Se aprovada, no mínimo, ela enseja desdém para com to histórico tem provocado recuo significativo dos
a perspectiva de implementação nacional do Custo movimentos sociais e sindicais e forte retração das
Aluno Qualidade (CAQ) e do Custo Aluno Qualidade políticas públicas, entre elas as educacionais, servin-
Inicial (CAQi), que estabeleceram no Plano Nacional do como meio de cultura para arregimentação e or-
de Educação (PNE) os parâmetros de necessidade de ganização dos setores sociais mais conservadores em
pessoal e de insumos estruturais, físicos e pedagógi- termos políticos, ideológicos e de costumes. Grande
cos, a serem observados no país. Ou seja, o PL da ESP parte da população se mostra “anestesiada” e tudo
negligencia aspectos essenciais que os setores organi- leva a crer que precisará mais tempo para, eventu-
zados da sociedade civil conseguiram a duras penas almente, constatar que a “revolução ética” a ela pro-
inscrever no PNE – a adoção de medidas progressivas metida no pleito de 2018 pode se constituir em mero
no sentido de garantir uma educação escolar de boa estelionato eleitoral e, se isto ocorrer, quiçá comece a
qualidade, o que já ocorre em inúmeros países. Assim, se organizar para resistir às iniciativas governamen-
comprova-se, uma vez mais, o teor antissocial do re- tais que julgar inadequadas. Se, de um lado, talvez seja
ferido PL. precipitado afirmar que isto ocorrerá, de outro, é hora
Tudo leva a crer que, se aprovado, além de prover a de atenção e cautela frente a “projetos ou programas”
“escola da sua ideologia, do seu partido”, o PL da ESP, oportunistas, como parece ser o PL da ESP, que não
em sintonia com as políticas implantadas pelo gover- contribui para o avanço social e civilizatório do país.
no Temer (ampla terceirização, reforma trabalhista Do ponto de vista pedagógico, o PL da ESP pres-
etc.), poderia, inclusive, ser lido como complemento supõe uma “escola única”, ideologicamente homogê-
oportuno para a viabilização dos cortes sociais deter- nea e sem contato com a realidade objetiva. Além de
minados pela Emenda Constitucional n° 95/2016, que altamente idealizada e de provocar cizânias na socie-
impôs um “novo regime fiscal” com vigência previs- dade, tal visão contribui para a manutenção do sta-
ta para vinte anos. Como se tudo isso fosse pouco, é tus quo, contrariando aquilo que foi propagandeado
também pretensão do governo Bolsonaro-Mourão a como pretensamente “positivo” – imprimir à escola
desvinculação constitucional das verbas da educação um caráter técnico, asséptico de ideologias, eminen-
e da saúde. temente neutro –, como se tudo isto fosse possível

86 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #64


em uma sociedade pluralista! A educação escolar PL propõe o enquadramento de vozes discordantes

“Escola Sem Partido”?


é política, sim, pois a definição do currículo, bem sobre vários assuntos nas escolas e diferentes aspec-
como das formas como as escolas estão organizadas tos da realidade, colocando em risco não só a edu-
e funcionam são influenciadas por políticas implan- cação nacional como a própria e ainda insuficiente
tadas por governos e pela ação ou influência de agen- democracia no país.
tes no cotidiano escolar (diretores, coordenadores, Diante das dimensões e aspectos aqui tratados, a
professores, funcionários técnico-administrativos, perspectiva colocada é a de que a sociedade, em par-
estudantes, famílias, sindicatos, movimentos etc.). ticular os setores que defendem a igualdade e a justiça
Isto é, os sistemas educacionais, as redes de ensino social – partidos políticos, movimentos sociais, sindi-
e as escolas estarão sujeitos a decorrências das polí- catos, universidades e comunidades escolares, entre
ticas adotadas pelos governantes em exercício e das outras instâncias progressistas –, constatem a inade-
formas de resistências adotadas ou não pelos agentes quação do PL da ESP e se disponham a reagir, deixan-
citados. Ademais, as ações docentes estarão sempre do de tolerar ainda mais retrocessos sociais.

notas
permeadas por concepções políticas que resultam de
sua formação, tanto como ser humano quanto como
profissional, e é natural que assim seja.
Do ponto de vista do financiamento da educação
escolar pública, considerado o teor privatista do PL
da ESP – que subtrai da LDB a “igualdade de condi-
1. Para facilitar o entendimento, usamos “ESP” para
ções para acesso e permanência na escola”, acaba com designar o Movimento ou Programa Escola Sem
a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos Partido e “PL da ESP” para designar o Projeto de Lei
oficiais”, retira a “garantia do padrão de qualidade” do da Escola Sem Partido.

ensino, não reafirma a “valorização dos profissionais 2. Advogado e proprietário da Escola Sem Partido
da educação escolar”, como destacamos neste texto Treinamento e Aperfeiçoamento Eireli - ME
– é muito provável que a disputa público x privado (Treinamento em desenvolvimento profissional
e gerencial) e da Associação Escola Sem Partido
seja acirrada, com aumento das distorções que têm (Atividades de associações de defesa de direitos
permeado a composição e a destinação do fundo sociais).
público, com vistas a estabelecer um padrão de “des-
3. “A partir de 2014, o ESP passou a influenciar
financiamento”, que pode provocar o caos na edu- projetos de lei (PL) em âmbito municipal, estadual
cação pública do país. Este conjunto de pretensões e federal, tendo atualmente 11 PLs em tramitação
antissociais dá continuidade às políticas implantadas nos estados. Na Câmara dos Deputados tramita o PL
867/2015, apensado ao PL 7180/2014, de autoria do
mais recentemente (ampla terceirização, reforma tra- deputado Erivelton Santana (PSC/BA), ao passo que,
balhista e Emenda Constitucional n° 95/2016, entre no Senado, está em tramitação o PLS nº 193/2016”.
outras), visando à materialização de um Estado cada Disponível em: https://marxismo21.org/escola-sem-
partido/. Acesso em: 10 mar. 2019.
vez mais submisso ao mercado financeiro nacional
e internacional. Assim, é necessário resistir a toda e 4. Acessível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/
qualquer tentativa de “flexibilizar” a legislação que noticias-pgr/pl-que-institui-escola-sem-partido-e-
inconstitucional-defende-pfdc. Acesso em: 10 mar.
trate das dimensões do fundo público (composição e 2019.
destinação), como está subjacente ao PL da ESP.
O PL da ESP coloca foco, aparentemente de pro- 5. Não desconhecemos que o fato de determinada
previsão não constar do PL da ESP não significa que
pósito, em questões polêmicas como gênero, religião, ela deixe de existir, caso já esteja contemplada em
moral etc., trazendo à tona conflitos disfuncionais outro dispositivo legal, mas a iniciativa de repetir
que resultam de visões de mundo polarizadas e con- algumas expressões e não outras já contidas na
legislação vigente denotam uma seletividade que nos
figurando-se como uma “cruzada” entre o bem e o instiga a realizar uma análise mais acurada acerca de
mal, mas ignora questões essenciais para a educação eventuais intenções não explicitadas no citado PL.
nacional, como as elencadas neste artigo. O referido

ANDES-SN n julho de 2019 87


Debates

notas
6. Vários dispositivos legais na área da educação
utilizam “educação” e “ensino” como expressões
outros – e de controle externo realizado pelo Tribunal
de Contas da União (TCU), órgão auxiliar do poder
legislativo, além de outros fiscalizadores externos,
como o Ministério Público (MP), sendo que também
há órgãos incumbidos dessas funções nos estados,
Distrito Federal e municípios. Ademais, é essencial que
sinônimas, mas ponderamos que é necessário passar a população também exerça controle, participando
a considerar os diferentes conceitos que ambas de conselhos sociais e, por meio de suas entidades
expressam, como forma de precisar melhor do que representativas, durante a elaboração e a tramitação
se fala; neste caso, trata-se de diferentes amplitudes das principais peças de planejamento orçamentário
conceituais, pois a escola trabalha com o ensino ou do Estado: Plano Plurianual (quadrienal), Lei de
a educação escolar, que é muito importante, mas é Diretrizes Orçamentárias (LDO, anual, 1° semestre) e
apenas uma parte da educação mais ampla. Para maior a Lei Orçamentária Anual (LOA, 2° semestre), assim
detalhamento, ver FÉTIZON e MINTO, 2007. como também da execução destas peças.

7. Se admitir a “neutralidade ideológica e religiosa” 13. Até pouco tempo, os governantes admitiam em
do Estado já é questionável, atingir sua “neutralidade entrevistas públicas que “para cada real arrecadado, um
política” não nos parece viável, nem desejável. é sonegado”, talvez fruto de impunidade. A sociedade
Inclusive, atente-se para a “dificuldade” de sucessivos permitirá que isto continue acontecendo no país?
governos reconhecerem que seus posicionamentos não
são neutros. Como exemplo atual, observe-se a postura 14. A propósito, os constituintes e depois os
dos anteriores e do atual governo frente à situação da legisladores foram instados a vincular recursos para a
Venezuela. Seja como for, não estamos confundindo educação (CF/88, Art. 212) e a saúde (Art. 198, § 2°,
Estado com Governo, mas sabemos que, na prática, pela EC n° 29/2000), respectivamente. Atualmente, é
muitas vezes é isto o que se insinua. preciso muita atenção, pois a depender do Ministro da
Economia, Paulo Guedes, tais vinculações devem ser
8. A respeito, Cristóvão Tezza pondera: “A sala de aula extintas (O Estado de S. Paulo, 10/3/2019). A sociedade
é o espaço de encontro e choque dos valores que fazem brasileira permitirá que isto ocorra?
a civilização respirar. É uma fronteira social onde o
indivíduo encontra os outros; onde os limites do casulo 15. Os aspectos citados neste e no parágrafo anterior
familiar, qualquer que seja, se abrem ao mundo; é uma não são propriamente objetos de discussão neste texto,
passagem, não isenta de tensões, para a autonomia e a mas o registro aqui feito nos pareceu importante
independência; é uma chave do processo civilizatório” porque tais aspectos são essenciais para a garantia
(Folha de S. Paulo, 24/2/2019). dos direitos sociais da população, cuja materialização
depende fundamentalmente do fundo público.
9. Este aspecto é relevante pela necessidade de definir
quem são os sujeitos e seus direitos e deveres, mas cabe 16. Também o inciso I do Art. 206 da CF/88, mas ela é
registrar que a Lei 9.394/96 - LDB também não repete imutável via legislação ordinária.
o parágrafo único existente na CF/88.
17. Em 2016, somados, os gastos com o ProUni e o
10. CF/88, Art. 3°, inciso IV - “promover o bem de Fies representaram 16% do “Gasto Federal Total em
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, Educação” (ver Cadernos ANDES 28, 2018, p. 101).
idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Ademais, a expressão “identidade biológica de sexo” 18. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da
pode induzir o/a leitor/a a pensar que tal referencial se Educação Básica e de Valorização dos Profissionais
restringe à configuração do fenótipo do ser humano. da Educação (Fundeb) define gastos obrigatórios com
manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE) e
11. CF/88, Art. 6º - “São direitos sociais a educação, deve ser mantido (www.fnde.gov.br/financiamento/
a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o fundeb). No sistema de vouchers, a família recebe um
transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, montante de recursos definidos pelo poder Público
a proteção à maternidade e à infância, a assistência para colocar seus filhos em escolas privadas. A cessão
aos desamparados, na forma desta Constituição”. A da gestão da escola a Organizações da Sociedade Civil
materialização desses direitos é custeada por tributos de Interesse Público (OSCIP) nada mais significa do
que a população paga; ou seja, a rigor, tais direitos não que a terceirização da gestão das escolas públicas para
são gratuitos. a iniciativa privada.

12. No âmbito mais amplo, além dos órgãos internos 19. Sugerimos que conheçam a sequência de slides
de controle – Controladoria Geral da União (CGU), apresentada por Jair Bolsonaro ao Tribunal Superior
Departamento de Polícia Federal (DPF) e Conselho Eleitoral (TSE) como “Proposta de Plano de Governo”.
de Controle de Atividades Financeiras (COAF), entre Disponível em: www.tse.jus.br/eleicoes. Acesso em: 10
mar. 2019.

88 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #64


“Escola Sem Partido”?
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referências
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ANDES-SN n julho de 2019 89

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