O Narratário Como Confidente
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Fabiana Piccinin
Doutora em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Professora e Pesquisadora do Programa de Mestrado em Letras da Universidade de Santa Cruz do Sul
E-mail: fabi@unisc.br
Gabriel Steindorff
Mestre em Letras pela Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Professor e Pesquisador da Universidade Católica do Rio Grande do Sul
E-mail: gabriels@unisc.br
RESUMO
ABSTRACT
Applying the narrative theory, the essay focuses on the change in the relation between the
intradiegetic narrator and his ideal spectator, the narratee. This reflection is proposed through the
idea of a broken fourth wall, which creates a new narrative level through the rupture with a
classical narrative framework originally from theater and adapted to cinema and television. In
this level, the intradiegesis narrator delivers exclusive information to the narratee, here
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understood as the ideal spectator, providing a duplication of the fiction by the making of
metafictional narrative levels and, further, strengthening the meaning of the complicity with the
public. Through the empirical view, the analysis of the broken fourth wall is done through the
study of the miniseries House of Cards, characterized by the narrative structure in which the
narrator dialogs, in a level with diegetic characters and, in another level, with the narratee, telling
him exclusive information.
1 A HERANÇA DO TEATRO
Metz (1985) traz esta discussão para o âmbito do cinema e compara esta separação de
dois mundos, como se os atores estivessem em um aquário, e não diante de uma parede invisível.
Para o autor, para que haja esta dualidade é necessário que o ator finja que não está sendo visto,
fingindo também que seu personagem existe para além da narrativa. Assim, fingiria manter suas
ocupações rotineiras e sua existência seria anterior à história narrada. O autor explica que o mais
provável, ao ignorar que uma das paredes trata-se de retângulo de vidro, “é que vive numa
espécie de aquário um pouco mais avaro dos seus dias que os aquários verdadeiros (esta retenção
faz ela mesma parte do jogo escópico).” [grifos do autor] (METZ, 1985, p.122)
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Em razão disso, segundo Xavier (2003), a ficção fica aprisionada no seu mundo paralelo
e protegida da realidade. O autor esclarece que o poder de aprisionamento do cinema é maior que
o do teatro, “pois o espaço imaginário se projeta na pura superfície (a luz da tela); não há atores
no espaço da sala, o que auxilia na produção do efeito de autonomia da ficção.” (XAVIER, 2003,
p.18)
Esse aprisionamento da ficção que promove a criação de um mundo paralelo para a
representação cênica é em muito tributária ao efeito de real que o teatro, e posteriormente o
cinema, pretendiam criar. Uma realidade em que o espectador crê, por alguns momentos, fazer
parte. No caso do cinema, Bernardet (2001) compara a impressão de realidade da tela grande
com a impressão de realidade que o indivíduo experimenta ao sonhar e que só apercebe-se que
está sonhando quando acorda, já que enquanto ainda está dormindo, o indivíduo acredita que está
vivendo a realidade.
O cinema dá a impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeiras,
amores verdadeiros. Mesmo quando se trata de algo que sabemos não ser verdade, como
o Pica-pau Amarelo ou O Mágico de Oz, ou um filme de ficção científica como 2001 ou
Contatos Imediatos do Terceiro Grau, a imagem cinematográfica permite-nos assistir a
essas fantasias como se fossem verdadeiras; ela confere realidade a essas fantasias.
[grifos do autor] (BERNARDET, 2001, p.12)
Por outras palavras, é dizer que, quando está no cinema, o espectador “esquece” que
está sentado numa poltrona e tem a impressão que está vivenciando as situações mostradas no
filme. Metz (1985) explica que a eficácia do discurso cinematográfico se dá pela habilidade deste
em esconder as marcas de sua enunciação. Ou como diz Bernardet (2001), a impressão de
realidade só se mantém se o aparato do cinematográfico ficar oculto.
Balázs (2003) também aponta para o efeito de realidade promovido através da
identificação do espectador com os personagens do filme, quando este é “carregado” – de forma
imaginária – pela câmera para dentro do filme, e assim, não precisa ser informado dos
sentimentos do personagem posto que vê o que o personagem vê, e assim é induzido a sentir o
que o personagem sente.
Embora nos encontremos sentados nas poltronas pelas quais pagamos, não é de lá que
vemos Romeu e Julieta. Nós olhamos para cima, para o balcão de Julieta com os olhos
de Romeu e, para baixo, para Romeu, com os olhos de Julieta. Nosso olho, e com ele
nossa consciência, identifica-se com os personagens no filme; olhamos para o mundo
com os olhos deles e, por isso, não temos nenhum ângulo de visão próprio. Andamos
pelo meio de multidões, galopamos, voamos ou caímos com o herói, se um personagem
olha o outro nos olhos, ele olha da tela pra nós. Nossos olhos estão na câmera e tornam-
se idênticos aos olhares dos personagens. Os personagens veem com os nossos olhos. É
neste fato que consiste o ato psicológico de identificação. (BALÁZS, 2003, p.85)
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Em razão disso, o procedimento de identificação com o personagem gera uma espécie
de internalização da origem da informação. O espectador, segundo Browne (2005), tem a
sensação de que quem conta a história são os personagens e não todo o aparato audiovisual em
conjunto. E crê que o efeito de real proporcionado pelo cinema seja, portanto, tributário à
manutenção da quarta parede, porque é esta que permite o jogo da simulação a partir do qual se
frui a “história real”, valendo-se da suspensão da descrença necessária para tal.
Para explicar o rompimento da quarta parede como contrato narrativo, Hutcheon (1984)
vale-se do conceito de metaficção, que segundo a autora, pode ser entendida, neste caso, como
metaficção do tipo narcisista porque é basicamente uma ficção que tem em si mesma seu
referente, que fala sobre si mesma e se reflete em si mesma. Neste sentido, a autora faz relação
com o mito grego, em que Narciso passava seus dias diante do lago vendo seu próprio reflexo e,
assim, teria se apaixonado por si mesmo.
Do ponto de vista da narrativa, portanto, o termo narcisista é atribuído às histórias
marcadas pela introspecção, introversão e autorreferência. É dizer que, nessa perspectiva de
metaficção, o foco de atenção do romance se desloca para seus processos internos, fazendo
referência ao imaginário ou às condições e situações psicológicas dos personagens. Assim, há
possibilidade, por exemplo, de conceber romances que tratam de um leitor de romances, ou de
filmes que tratam de personagens de cinema de modo a evidenciar que o foco está na própria
obra, refletindo-se e se autorreferenciando.
Já quanto ao papel do leitor ou da audiência, este altera-se fundamentalente posto que
não se encontra mais numa posição confortável, puramente de espectador da narrativa. A partir
da metaficção, sua participação é exigida de maneira mais explícita e convocatória para que dê
conta das funções de controle, organização e interpretação deste texto, passando a usufruir de
informações exclusivas na relação com a diegese. Deste modo, ao contrário do que a ficção
realista propõe originalmente, os acontecimentos da história são direcionados ao leitor ideal
como segunda pessoa, como uma entidade a quem o narrador se dirige diretamente. Ou como o
narratário na obra metaficcional.
Para Hutcheon (1984) há diferença das sensações proporcionadas ao leitor/espectador
da metaficção em relação ao romance realista. Para a autora, a narrativa realista traz a sensação
de completude, ou seja, a sensação de que só a arte poderia completar o ser humano e dar sentido
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à sua existência. Já na metaficção, a ambiguidade e a inexistência de um final fechado,
permitindo a interpretação ativa do leitor, sugeririam insegurança ou um conflito entre a
necessidade de ordem e a situação do homem no mundo real e caótico, complexificando esta
relação.
Assim, a metaficção se constituiria como uma “ficção verdadeira” e não dissimulada ao
contrário da ficção realista, já que esta última se disfarça de uma realidade possível. Para
compreendê-la, neste sentido, a autora propõe uma mudança no paradigma de interpretação da
história, como por exemplo, a concepção de cenários que seriam pouco verossímeis à ficção
realista. E o próprio genero metaficcional se mostraria exposto ao leitor, transgredindo a
característica realista de ocultar sua estrutura ficcional.
Hutcheon (1984) divide a exposição da metanarrativa ficcional de duas formas. Ao
grupo da metaficção implícita considera-se todo o tipo de autorreferência textual internalizado
no texto em situações sutis em que o leitor/audiência pode não estar ciente que está diante de
uma narrativa metaficcional. Como exemplos dessa modalidade, pode-se citar os gêneros
textuais como as histórias de detetive e os trocadilhos em que os textos tem uma relação de
estrutura com outros textos ou um sentido diferente do que está escrito. Nestes casos, a história
de detetive tem uma estrutura previsível, em que o leitor/espectador reconhece de outras
histórias. Assim como nos trocadilhos em que o leitor/espectador, através de um contexto
específico, consegue dar sentido à informação recebida.
Já o grupo das modalidades metaficionais explícitas apresenta a autoconsciência de
forma bastante evidente e integrada à narrativa. Assim a metaficção explícita pode aparecer por
meio de alegoria no enredo, nas metáforas ou até mesmo nos comentários. Hutcheon (1984)
salienta que várias técnicas podem ser utilizadas para gerar este efeito, tais como a perspectiva
em abismo (mise en abyme1) ou até mesmo a criação de um pequeno mundo paralelo com o
objetivo de mudar o foco da ficção para a narração. Nesta última possibilidade, o mundo paralelo
pode ser criado pelo narrador intradiegético2, ao dirigir-se ao leitor/espectador ideal, ignorando a
presença dos outros personagens. E, assim, destitui a narrativa principal, ou seja, a narrativa de
onde o personagem-narrador parte originalmente, de uma realidade proposta para uma ficção
declarada, dando mais credibilidade ao mundo paralelo compartilhado por narrador e narratário.
Quando constituído este “mundo paralelo”, o leitor não tem mais a impressão, como na ficção
realista, de que os acontecimentos se desenvolvem diante dos seus olhos, mas tem a impressão
de que participa da ação nem que seja como confidente do personagem, reforçando os laços de
relacionamento entre narrador e narratário.
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Genette (1972) alerta que, nestes casos, a narrativa é contada de fora da história. Um
autor de um livro está no mesmo nível narrativo de seus leitores, de forma que o autor, pessoa
real, é o narrador extradiegético que narra sua história de fora do mundo fictício. E assim, dentro
da narração, pode haver outro narrador, este intradiegético, encarregado de narrar uma história
que terá alguma relevância para a primeira. E este por sua vez narra para o narratário/ leitor ou
espectador ideal.
Segundo Reis e Lopes (1988), o narratário é uma entidade textual que compõe com o
narrador uma relação de comunicação semelhante a do autor com o leitor. O narratário é o que
Eco (1995) chama de leitor ideal, ou seja, o leitor pra quem o narrador imagina que se dirige, o
leitor que o narrador imagina que tenha determinadas informações não contidas na narrativa e
que vão beneficiar sua compreensão dela.
Pode-se observar tanto em Genette (1972) quanto em Hutcheon (1984) certa
concordância exatamente no ponto em que entendem que a narrativa metaficcional se difere da
narrativa tradicional. Na modalidade diegética explícita de Hutcheon (1984) percebe-se a
alteração do lugar do leitor ideal/narratário, ao qual o narrador se dirige de forma direta. Ou seja,
ao se dirigir de forma direta ao espectador ideal, o narrador rompe com a tradição de ignorar que
está sendo “observado” por olhos curiosos. Desta maneira a quarta parede se rompe e a estética
da metaficção se consolida. Esta estética, que já foi chamada de antirromance, subverte o que a
narrativa realista põe como primordial e desta maneira traz um diferencial para a apreciação
estética das obras artísticas.
House of Cards é uma série norte-americana baseada num livro homônimo, do escritor
e político britânico Michael Dobbs. A série já havia sido adaptada para a televisão em 1990 pela
BBC de Londres, no entanto nesta oportunidade teve apenas uma temporada. Tanto o livro
quanto a série britânica contam a história de Francis Urquhart, um político sem escrúpulos que,
de forma ilegal, cumpre uma escalada até se tornar o Primeiro Ministro Britânico.
A versão americana da série teve algumas alterações. Em vez de se passar na Inglaterra,
se passa nos Estados Unidos. Em decorrência deste fato, o cargo a ser galgado por Francis é o de
presidente, já que o país desta versão não possui o mesmo sistema de governo do cenário
original, e por consequência, não tem Primeiro Ministro. Outra adaptação foi o sobrenome do
protagonista que foi alterado para Underwood, além de ser frequentemente utilizado o apelido de
Francis, Frank, para referir-se a ele.
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Nesta versão, após perder a vaga de secretário de estado que esperava no novo governo,
Frank resolve tomar o poder por seus próprios meios ilícitos. O personagem possui uma grande
rede de colaboradores que estão dispostos a ajudá-lo em seus planos mediante recompensas, às
vezes financeiras e às vezes sob a forma de influência. Quando possível se utiliza parceiros
eventuais que são captados através de extorsão e chantagem e quando não sevem mais, são
descartados.
Para proceder à análise da quebra da quarta parede na série, trazendo a teoria da
narrativa para o estudo do audiovosual, selecionou-se 9 trechos relacionados episódios de House
of Cards3 (Steindorff :2015), em que se observa a presença de um narrador intradiegético que
entrega ao seu espectador ideal uma quantidade maior de informação que ao público interno da
série. Desta maneira, o narrador desloca a posição do espectador ideal/narratário para dentro da
narrativa, interrompendo com frequência o andamento da história, mesmo diante de outros
personagens, para falar com seu espectador ideal e, muitas vezes, dizendo o que pensa sobre o
personagem com quem está contracenando.
No campo da metaficção, apoiado principalmente na categoria metaficcional diegética
explícita de Hutcheon (1984), são analisadas todas as interações promovidas de parte do narrador
para com o leitor, ou no caso o espectador, esperando deste um lugar ativo na construção de
sentido da narrativa. Ou seja, ao se deparar com determinada fala do narrador, o
espectador/narratário perceberá que este se dirige a ele com exclusividade, rompendo para tanto
com a quarta parede.
Em House of Cards, essas interações podem se dar de ter três formas: diegética,
confessional e gestual. A categoria diegética trata-se, segundo Steindorff (2015), de antecipações
e lembranças de acontecimentos da diegese. Já a categoria confessional trata de emoções,
segredos e juízos do narrador que são revelados somente ao espectador/ narratário. A categoria
gestual, é aquela em que o narrador intradiegético utiliza apenas expressões faciais e gestos para
comunicar alguma coisa ao espectador/narratário.
As três formas distintas de promover a quebra da quarta parede rompem assim com a
simulação do “aquário” e da inexistência do público. O narrador passa a construir uma efetiva
aproximação com o narratário, buscando o vincular à diegese pela cumplicidade ao antecipar ou
lembrar acontecimentos, atribuir valores a outros personagens ou apenas gesticular para o
espectador com a certeza de que ele entenderá a mensagem. Desta forma, o narrador cria com o
narratário a sensação de cumplicidade capaz, segundo Hutcheon (1984), de exigir, de forma mais
enfática, a presença do espectador/narratário diante da obra e criar um mundo paralelo que
somente narrador e narratário compartilham.
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3.1 CATEGORIA METAFICIONAL DIEGÉTICA
Presidente eleito Garrett Walker. Eu gosto dele? Não. Acredito nele? Pouco importa. Qualquer político que
consiga 70 milhões de votos adquiriu acesso a algo maior que ele próprio, até maior que eu, embora odeie admitir.
Veja só o sorriso vencedor, os olhos confiáveis. Aliei-me a ele mais cedo e me fiz vital para ele. Após 22 anos no
Congresso, sei identificar para que lado o vento sopra. Jim Matthews, o muito honorável vice-presidente, ex-
governador da Pensilvânia, cumpriu seu dever conquistando os votos do seu estado – que Deus o abençoe – e,
agora, vão fazê-lo se aposentar. Porém, ele parece feliz, não parece? Para alguns só importa o tamanho da cadeira.
Linda Vasquez, chefe de gabinete do Walker. Eu a contratei. Ela é mulher, confere. É latina, confere. Porém, o
mais importante de tudo: é tão dura quanto carne de segunda. Confere, confere, confere. Quando se trata da Casa
Branca, você precisa ter não só as chaves na mão, mas também seu guardião. Quanto a mim, sou o humilde
corregedor da Câmara. Mantenho as coisas andando num congresso cheio de mesquinharia e lassidão. Minha
função é desentupir os canos e fazer o lodo fluir, mas não terei de ser encanador por muito mais tempo. Cumpri
minha pena. Apoiei o homem certo... Assim, posso dizer: Bem-vindos à Washington!
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preocupado com as pessoas à sua volta, agindo além delas e instituindo assim um nível narrativo
outro, distinto do principal. Anda pelo salão ignorando-as e valorizando a conversa com o seu
destinatário. Sua fala pode ser interpretada como a apresentação do mundo que o espectador está
prestes a inserir-se, e para manter este seu “cúmplice” informado, Frank relata o que aconteceu
de relevante até aquele momento.
Ou seja, nota-se um narrador explícito, característico do que Hutcheon (1984) chama de
metaficção diegética explícita. E que é colocado como Genette (1972) explicou, em outro nível
narrativo que não está no nível dos personagens. Como o autor alerta, o narrador está em um
nível diegético imediatamente superior à história que conta. Frank utiliza este nível narrativo
superior para dirigir-se ao espectador e fazer comentários sobre a história que está sendo contada
na metadiegese.
Através da fala que Frank direciona ao espectador, este pode identificar determinadas
informações relevantes da narrativa que ainda serão apresentadas no decorrer da história. Garret
Walker é o presidente dos Estados Unidos. Ele fez 70 milhões de votos nas eleições. Jim
Matthews é seu vice-presidente, ex-governador da Pensilvânia. Linda Vasques é a chefe de
gabinete do presidente. Frank a contratou e é o corregedor da câmara, além de ter se alidado a
Walker no início da campanha eleitoral.
Assim o espectador recebe de forma privilegiada informações da história que irá se
desenvolver e pode perceber que se desenvolverá, por exemplo, em torno da temática política
americana, oportunizando a interação do narrador em momentos chave da narrativa. A categoria
metaficcional diegética ainda pode também trazer ao espectador acontecimentos anteriores ao
presente da diegese, justificando atitudes do narrador ou seu juízo sobre determinado
personagem. Estas informações poderiam ser obtidas no decorrer da série, entretanto, Frank
prefere criar um mundo paralelo para ele e seu espectador idealizado, deixado clara a intenção
do narrador de criar no narratário/espectador real a impressão de aproximação com a narrativa,
ou seja de ser transportado imaginariamente para dentro da diegese na medida em que passar a
ser o “único” a compartilhar como ele informações privilegiadas (BALÁZS, 2003).
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desenvolvendo e que não seriam bem vistas se contasse a alguém. Esta categoria agrupa as
interações que dizem respeito à personalidade do narrador, sua ética ou falta dela, suas
confissões a respeito de coisas bastante privadas de sua vida ficcional.
Percebe-se este tipo de ocorrência, por exemplo, no décimo terceiro episódio de House
of Cards, quando Frank está prestes a se tornar vice-presidente dos Estados Unidos, mas ainda
enfrenta uma guerra com o empresário Raymond Tusk, conselheiro do presidente. Para diminuir
a influência de Tusk junto ao presidente, Frank recorre a SanCorp, uma importante empresa
americana que tem como lobista um ex-assessor seu, Remy Danton. (FIG.2)
[Na igreja, olha para a câmera posicionada acima de sua cabeça] Sempre falei com o Senhor, o Senhor nunca
respondeu. Considerando nosso desdém mútuo, não posso culpá-lo pelo silêncio. [olha para a câmera à sua frente]
Talvez eu esteja falando com a pessoa errada. [Olha para a câmera posicionada próximo ao chão] Você consegue me
ouvir? Você é capaz de linguagem ou só entende depravação? [ouve um barulho na igreja] Peter, é você? Pare de se
esconder em meus pensamentos. Venha cá. Tenha, na morte, a coragem que nunca teve enquanto vivo. Venha cá.
Olhe-me no olho e diga o que precisa dizer. [olha para a câmera e se ajoelha] Não há nenhum conforto, nem em
cima nem abaixo... apenas nós... pequenos, solitários, lutando, brigando uns com os outros. Eu rezo para mim e por
mim mesmo.
Deste modo, é como se o narrador na igreja, voltasse-se para o espectador e dissesse que
somente ele tem poder sobre a narrativa que conta. A cena também é uma crítica à relação
narrador/narratário em metaficções, de forma que ao olhar para cima e dizer Eu sempre falei com
o Senhor, o Senhor nunca respondeu Frank solicitasse, como se fosse possível, uma contraparte
do espectador.
No segundo momento em que Frank olha para a câmera em sua frente e diz: Talvez eu
esteja falando com a pessoa errada, é como se o narrador se colocasse no mesmo nível de poder
do espectador/narratário, insinuando que ambos estão da mesma forma à deriva, nas mãos do
destino da narrativa. No terceiro momento, em que Frank olha para a câmera próxima ao chão,
em posição de superioridade em relação ao espectador, e pergunta: Você consegue me ouvir?
Você é capaz de linguagem ou só entende depravação?. Observa-se uma situação dialogal que
pode ser interpretada como a de o narrador dizendo que o espectador só pode assistir o
desenrolar da história e ouvi-lo, mas é ele, que está dentro da diegese que pode agir e falar.
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3.3 CATEGORIA METAFICCIONAL GESTUAL
Frank olha pra câmera durante uma reunião com Linda Vasquez, reafirmando as informações que passou ao
espectador sobre a reforma educacional
Figura 3: Gestual
Fonte: House of Cards, episódio 1
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Percebe-se que a interação metaficcional confessional, que antecede a interação
metaficcional gestual, tem importância fundamental para a compreensão do gesto utilizado. Esse
novo lugar distintivo concedido ao narratário também exige, por outro lado, sua maior
participação interpretativa (HUTCHEON, 1984), por meio da qual se estabelecem identificações
(BALÁZS, 2003) com a posição de segunda pessoa do relato, e não com um personagem
específico.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
NOTAS
1 Para Prince (1989) o a expressão mise em abyme significa uma duplicação da obra dentro da própria
obra. Segundo o autor este termo tem origem na heráldica, ciência que estuda os brasões. Diz-se que a
figura no brasão está em abyme, quando ela representa uma duplicação do brasão em miniatura, no
próprio brasão. No caso do audiovisual seria como utilizar uma câmera apontada para um televisor. Se
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o sinal da câmera fosse colocado no mesmo televisor que está sendo utilizado de modelo, seria
possível perceber vários televisores, um representado dentro do outro.
2 Segundo Genette (1972), o narrador intradiegético é aquele que é percebido dentro do mundo ficctício,
mundo também chamado de diegese. Este narrador é subordinado ao narrador extradiegético, mas
também pode ter outro narrador intradiegético, subordinado a ele, em outra metadiegese.
3 A metodologia de análise apresentada neste artigo está embasada na dissertação de mestrado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – UNISC, sob o título Além de um castelo de
cartas – a metaficção na série House of Cards. O estudo buscou mostrar a estética metaficcional
utilizada quando o narrador/personagem dirigia-se diretamente ao espectador. Disponível em
http://btd.unisc.br/Dissertacoes/GabrielSteindorff.pdf.
REFERÊNCIAS
BALÁZS, Béla. O homem invisível. In.: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema:
antologia. 3. ed., rev. e aum. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
______. Nós estamos no filme. In.: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema:
antologia. 3. ed., rev. e aum. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
BROWNE, Nick. O espectador-no-texto: a retórica de “No tempo das diligências”. In.: RAMOS,
Fernão (Org.). Teoria contemporânea do cinema. São Paulo: SENAC-SP, 2005. Volume II.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. 327
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XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues.
São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
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