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Resenha - Roteiro Pra Aïnouz, Vol 3

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Aluno: Gabriel Soares Rebello

Professora: Ana Paula El-Jaick

Curso: Prática de gêneros acadêmicos

19 de junho de 2019

Faculdade de Letras – UFJF

Don L é, com certeza, um dos maiores nomes que integram hoje o cenário do rap
nacional. Contudo, sua música por vezes não ultrapassa um circuito dito underground do
gênero. Isto é, sua arte acaba por ficar localizada em um nicho de apreciadores da cultura hip-
hop – talvez por sua origem, Fortaleza, estar à margem do eixo comercial do rap brasileiro:
Rio de Janeiro e São Paulo. Somado à habilidade do poeta em imprimir personalidade e
técnica em seus versos, isso faz de Don L, como ele mesmo se intitula, o rapper favorito do
seu rapper favorito. Sendo assim, é conhecido apenas por aqueles que reconhecem o bom
fazer artístico, mesmo que longe dos olhos e ouvidos do grande público.

E é sobre isso que se trata o álbum Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3: uma ode à figura do
artista do século XXI e sua vivência nas ruas, usando como plano de fundo a própria vida do
autor do disco. O CD foi lançado em 2017, de forma independente. É o primeiro grande
trabalho do artista, o qual já tinha uma trajetória construída por sua participação no grupo
Costa a Costa, além de uma mix tape e de singles lançados em carreira solo. Com a produção
de Don L e de Deryck Cabrera e mixagem e masterização por Luiz Café, a obra não deixa a
desejar em qualidade de som. Os instrumentais e vocais são muito bem tratados para permitir
que o ouvinte aproveite da forma mais imersiva possível a experiência do disco como um
todo. A obra está disponível no Youtube, além das plataformas digitais de streaming de
música.

O álbum é organizado em oito faixas compostas por letra e batida, divididas em duas
partes iguais por um interlúdio instrumental. Essas nove faixas somam 35 minutos de
duração. Além de Don L, Deryck Cabrera e Luiz Café o disco também conta com batidas por
Dj Caique, Goss, Sants e Leo Justi. Em sintonia com toda a temática do CD, o instrumental
constrói com sucesso o clima das noites nos grandes centros urbanos. A atmosfera musical
oscila entre um clima agressivo – convergente ao próprio estilo incisivo e sarcástico das
críticas do autor – e um lado introspectivo, no qual o poeta deixa transparecer suas questões
mais subjetivas. As batidas funcionam como um palco ideal para o verdadeiro espetáculo da
obra: a poesia de Don L.

O autor já comentou sobre o nome do álbum em entrevista: ao se deparar com uma


obra tão real quanto sua própria vida, o artista entendeu que produções artísticas
estadunidenses não seriam capazes de contar sua história. Dessa forma, ele recorre ao cineasta
Karim Aïnouz, também natural da capital cearense, como o único que seria capaz de fazer um
bom proveito desse “roteiro”. A escolha do título já marca de forma sutil e profunda a posição
que Don L toma em todo o disco: a defesa de uma arte que seja reflexo da experiência do
artista e motivo de identificação para o público.

Com as participações irretocáveis de Diomedes Chinaski, Terra Preta, Nego Gallo e


Lay o álbum é constante no que diz respeito à qualidade de escrita das letras. Quanto à forma
e os aspectos estéticos das músicas, Don L e os demais participantes demonstram um cuidado
para que suas composições estejam em harmonia com a parte instrumental da obra. Desde a
preocupação com a organização dos refrãos e pontes até o uso de vozes adicionais ao fundo:
tudo é pensado para dar ao disco a complexidade que os temas abordados merecem, na visão
do autor. Além disso, os chamados MC’s esbanjam habilidade no uso de figuras de linguagem
e outros tipos de ferramentas da língua para se expressar.

Seja tecendo críticas ao cenário do rap brasileiro, refletindo sobre sua história de vida
ou tratando sobre sexo, tudo passa pelas ideias centrais da obra: o fazer artístico como
afirmação da experiência. Na música Mexe pra Cam, por exemplo, Don L trata de sua relação
casual com uma mulher e, ao contrário da postura frequentemente tomada por rappers ao
objetificar o corpo feminino e tratar suas parceiras como mero instrumento de prazer sexual, o
artista aborda o tema de forma a colocar os pares em posição de equivalência. É retratada uma
relação horizontal, na qual há a troca entre duas pessoas que constroem juntas uma
experiência que inspira para a criação artística: não só na forma da própria música, mas
também de um filme amador. No refrão, Don L ainda critica o frequente comportamento
masculino de exposição de imagens íntimas de ex-parceiras, chamado de revenge porn:
“Ninguém deve nada / porque revenge porn é pra otário, né?”.

Todos os temas abordados pelo artista receberam esse nível de atenção e nada no
disco está lá por acaso, até das menores partes é possível extrair informações essenciais para a
peça final. Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3 é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores obras dessa
década no cenário do rap nacional. Com certeza vai influenciar toda uma geração de rappers –
os atuais e os que ainda estão por vir. Superando a própria qualidade a cada novo trabalho,
Don L deve continuar por anos sendo cada vez mais o favorito do seu favorito.

REFERÊNCIAS

DON L. Roteiro pra Aïnouz, Vol. 3. Don L, 2017. 1 áudio (35 min.). Disponível em:
https://open.spotify.com/album/5iiKMkLQJGn7DpgGWRurYc?si=qjW1YsSfQiykPlO2KXp
OBA. Acesso em: 18 jun. 2019.

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