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SILVA, Marcio Both Da - Terra e Poder PDF

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MARCIO ANTÔNIO BOTH DA SILVA

PAULO JOSÉ KOLING


(O RGANIZADORES )

Mulher semeando, homem arando (60), Hassis, acervo Fundação Hassis

TERRA E PODER:
ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Coleção Tempos Históricos


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM HISTÓRIA DA UNIOESTE

1
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Conselho Editorial
Coleção Brasil República

In Memoriam:
Ciro Flamarion Cardoso
Edmundo Fernando Dias
Octávio Ianni
René Armand Dreifuss

Coordenadores:
Secretário: Dr. Mário Maestri, PPGH da UPF
Dr. David Maciel, UFG, Goiânia
Dr. Gilberto Grassi Calil, UNIOESTE

Dr. Antonio de Pádua Bosi, UNIOESTE/PR


Drª. Ana Luíza Reckziegel, UPF/RS
Drª. Carla Luciana Silva, UNIOESTE/PR
Dr. Carlos Zacarias de Sena Júnior, UFBA/BA
Dr. Claudio Lopes Maia, UFG/GO
Dr. David Maciel, UFG/GO
Dr. Diorge Konrad, UFSM/RS
Dr. Enrique Padrós UFRGS/RS
Dr. Eurelino Coelho, UEFS/BA
Dr. Gelsom Rozentino de Almeida, UERJ/RJ
Dr. João Alberto da Costa Pinto, UFG/GO
Dr. Manuel Loff, Universidade do Porto, Portugal
Dr. Marcio Antônio Both da Silva, UNIOESTE/PR
Drª. Mônica Piccolo, UEMA/MA
Dr. Paulo Pinheiro Machado, UFSC/SC
Dr. Paulo Afonso Zarth, UNIJUÍ/RS
Dr. Renato Lemos, UFRJ/RJ
Dr. Romulo Mattos, PUC-RJ
Dr. Sonia Regina de Mendonça, UFF/RJ
Dr. Tiago Bernardom, UFPB/PB
Drª. Vera Barroso, FAPA/RS
Drª. Virgínia Fontes, UFF/FIOCRUZ/RJ
Dr. Walmir Barbosa, IFG/GO

2
MARCIO ANTÔNIO BOTH DA SILVA
PAULO JOSÉ KOLING
(O RGANIZADORES )

TERRA E PODER:
Abordagens em História Agrária

Coleção Tempos Históricos

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM HISTÓRIA DA UNIOESTE

3
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

TERRA E PODER:
Abordagens em História Agrária

Organizadores
Marcio Antônio Both da Silva
Paulo José Koling

Capa - projeto gráfico:


Vitor Hugo Junior

Capa, imagem:
Cont est ad o ( 15) , Has si s, acerv o Fundação Ha ss is
(h t t p: //www. f und aca oh a s si s . or g. b r )

Diagramação e Projeto Gráfico:


Antonio da Silva Junior

FICHA CATALOGR ÁFICA

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


(Biblioteca da UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon – PR., Brasil)

Terra e poder: abordagens em história agrária / organizado por Marcio

T323t Antônio Both da Silva e Paulo José Koling – Porto Alegre: FCM Editora, 2015.

222 p. (Coleção Tempos Históricos)

ISBN 978-85-67542-11-9

1. Reforma agrária. 2. Agricultura e Estado. 3. Posse da terra - Brasil.


I. Silva, Marcio Antônio Both da, org. II. Koling, Paulo José, org. III. Título

CDD 21.ed. 333.3181

981

CIP-NBR 12899

Coleção Tempos Históricos


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
2015
EM HISTÓRIA DA UNIOESTE

CAIXA POSTAL 1525 – CAMPUS UNIVERSITÁRIO – 91.501-970 –


PORTO ALEGRE/RS – TEL. (51) 3336-3475
4
Sumário

Apresentação ..................................................................................... 7
Marcio Antônio Both da Silva e Paulo José Koling

CAPITALISMO, TECNOLOGIA E REFORMA AGRÁRIA ......................... 11

CAPÍTULO 1: Ruralistas, técnicos e tecnologia agropecuária:


a antirreforma agrária no Brasil contemporâneo .............................. 13
Sônia Regina de Mendonça

CAPÍTULO 2: O Banco Mundial e a reforma agrária assistida


pelo mercado: agenda política, instrumentos e resultados
(1990-2013) ...................................................................................... 33
João Márcio Mendes Pereira

TERRA, TERITORIALIDADE E COSTUMES ........................................... 55

CAPÍTULO 3: Terras de uso comum nos ervais do Rio Grande do Sul . 57


Paulo Afonso Zarth

CAPÍTULO 4: Notas metodológicas para uma escrita da história que


considere os usos sociais do espaço. A Buenos Aires negra de
1776-1810 ........................................................................................ 73
Maria Verónica Secreto

TERRA E PODER: ABORDAGENS SOBRE A REGIÃO OESTE


E NORTE DO PARANÁ ....................................................................... 93

CAPÍTULO 5: Igreja e reforma agrária no período da ditadura civil-militar


(1964-1985): a Comissão Pastoral da Terra e sua atuação
junto aos movimentos dos trabalhadores rurais ............................... 95
Maria José Castelano

CAPÍUTLO 6: POEIRA: a expressão dos atingidos de Itaipu .................. 121


Milena Costa Mascarenhas

CAPÍTULO 7: Terra e poder no Oeste do Paraná .................................. 141


Irene Spies Adamy

5
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

CAPÍTULO 8: Associação Rural de Londrina: embates e conflitos no Norte


do Paraná .......................................................................................... 163
Juliana Valentini

CAPÍTULO 9: A (re)ocupação recente do município de Marechal Cândido


Rondon: uma análise do processo de especulação da terra ............ 183
Cristiane Bade Favreto

6
Apresentação

Os processos sociais que são objeto das análises dos capítulos que
compõem este livro, embora carregados de particularidades próprias, uma
vez que tratam de diferentes contextos sócio espaciais e temporais, são
atravessados por algumas similitudes e pontos em comum. Nestes termos,
o livro busca ser uma contribuição na perspectiva da constituição de saberes
e reflexões sobre o universo rural em suas diferentes facetas. Contudo, não
descarta o fato de que as particularidades próprias das situações específicas
analisadas são expressões de processos altamente complexos e, assim, só
é possível compreendê-los e explica-los fazendo-os dialogarem entre si.
Em outros termos, não há um universo micro isolado e muito menos um
macro que a tudo e a todos domina. Pelo contrário, a relação entre estes
âmbitos é dialética em sua concretude real e não é autoexplicativa, portanto,
precisa ser explicada.
Como indica o título do livro, apresentamos diferentes estudos sobre
o rural, mas que têm como ponto comum a reflexão e o debate sobre a
terra e o poder. Relação profundamente dinâmica e de difícil explicação,
pois, como nos lembra Éric Wolf, “há diferentes modos de poder, cada um
deles concernente a um nível distinto de relações sociais”.1 Outrossim,
também é importante se ter em conta que “o poder não serve somente para
reprimir, mas também para organizar a trama social mediante o uso de
saberes, o que é de grande relevância, já que o poder não é atributo de
alguém que o exerce, mas sim uma relação”2 e, como os leitores perceberão,
os capítulos deste livro mantêm um diálogo proficiente e profundo com a
ideia/noção de que o poder é uma relação social.
O livro está dividido em três partes que se complementam e que
foram construídas na perspectiva de orientar certa trajetória de leitura. Assim,
a primeira delas – Capitalismo, tecnologia e reforma agrária – aborda situações
mais amplas que têm como foco a discussão de aspectos relacionados ao
capitalismo, suas agências e os processos de organização das classes
dominantes rurais. O primeiro capítulo é de autoria de Sônia Regina
Mendonça e trata de analisar “a relação entre as Classes Dominantes
Agrárias, a Tecnologia e a ‘Burocracia’ no Brasil, tomando como referência
o caso das políticas de pesquisa agropecuária”. Além de cumprir este
objetivo a autora constrói uma importante reflexão teórica sobre o Estado,
1
WOLF, Éric. Encarando o poder: velhos insights, novas questões, p. 325. In: BIANCO-
FELDAMN, Bela; RIBIEIRO, Gustavo Lins. Antropologia e Poder: contribuições de Eric R.
Wolff. Brasília: UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; São Paulo:
UNICANP, 2003, p. 325-344.
2
CARDOSO, Ciro Flamarion. História e Poder: uma nova história política, p. 41. In: ___;
VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p.
37-54.

7
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

a tecnologia e a “burocracia”, bem como uma relevante discussão sobre a


expansão do capitalismo mundial no imediato pós II Guerra Mundial.
João Márcio Mendes Pereira é autor do capítulo seguinte. Pereira
analisa a “reforma agrária assistida pelo mercado” (RAAM), projeto que foi
concebido e impulsionado pelo Banco Mundial (BM) em diversos países
do mundo nos anos 1990 e 2000. No capítulo o autor aborda a agenda
política na qual a RAAM se inseriu, seus instrumentos de ação e os resultados
de sua implantação em três países latino-americanos: Colômbia, Brasil e
Guatemala. Para dar conta disso, desenvolve análises sobre o programa
político neoliberal operado pelo BM, do qual a RAAM fez parte, os motivos
que levaram o Banco a reconstruir sua agenda agrária a partir do fim da
guerra fria, os pressupostos teóricos, a racionalidade política da RAAM e a
sua implementação nos três países mencionados.
Na segunda parte do livro – Terra, territorialidade e costumes –
diferentemente da primeira, cujo objetivo é discutir questões mais centrais
vinculadas ao capitalismo, seu desenvolvimento, práticas e táticas, a reflexão
gira em torno da questão das formas como os grupos sociais subalternos e
subalternizados lidam com os processos que são mais amplos e que afetam
direta e indiretamente sua vida e seus modos de vida. Dessa maneira, a
atenção dos autores está direcionada a tratar dos poderes mobilizados por
esses grupos, dando conta de realizar na análise dos processos sociais a
noção de que o poder é uma relação e que a dominação não é absoluta,
mas alvo de resistências, baseadas em diferentes saberes e critérios. Nesta
perspectiva, Paulo Zarth desenvolve um estudo sobre as terras de uso comum
do Sul do Brasil, mais precisamente sobre os espaços de extrativismo de
erva-mate existentes e muito importantes economicamente nas províncias
do Sul ao longo do século XIX e início do XX. Neste capítulo, aspectos
relativos aos processos de privatização das terras de uso coletivo, as
resistências impressas e o protagonismo exercido pelos grupos ervateiros
que viviam em tais espaços é o objeto central da análise de Zarth.
O quarto capítulo é de autoria de Maria Verónica Secreto. A autora
discute a constituição de territorialidades negras na Buenos Aires do final
do século XVIII e início do XIX. O seu objetivo é reconstruir uma
territorialidade vivenciada pelas populações negras que, na época,
compunham cerca de 30% dos habitantes de Buenos Aires. Ao realizar esta
tarefa a autora destaca o quanto os espaços são construídos socialmente e
que esta construção envolve práticas e disputas cotidianas que alcançam
os mais diferentes aspectos da vida social. Da mesma forma, demonstra
que participar subalternamente de determinadas relações de poder não
significa que os participantes sejam totalmente desprovidos de força ou
que aceitem pacificamente sua situação.
A terceira parte do livro – Terra e poder: abordagens sobre a região
Oeste e Norte do Paraná – tem como foco apresentar algumas das pesquisas
que vem sendo realizadas por alunos e professores membros do Grupo de
Pesquisa História e Poder e da Linha de Pesquisa Estado e Poder, do

8
MARCIO A NTÔNIO BOTH DA SILVA - P AULO JOSÉ KOLING (ORGANIZADORES)

Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Estadual do Oeste


do Paraná (UNIOESTE), Campus Marechal Cândido Rondon. Trata-se de
textos que são resultado de dissertações de mestrado defendidas no âmbito
do PPGH ou de pesquisas que vem sendo desenvolvidas por alguns dos
integrantes do grupo e da linha de pesquisa.
A característica principal desta parte do livro é trazer para discussão
temas locais referentes aos processos que marcaram o estado do Paraná
nas últimas décadas do século XX e início do XXI. Nestes termos, embora
centrados na análise de questões regionais, os capítulos não deixam de
manter um diálogo produtivo e importante com os aspectos mais gerais
presentes na primeira, bem como com os temas da resistência, do território
e do costume, presentes na segunda parte do livro. Isto é, o capitalismo, a
dominação, a organização da classe e das frações de classe, os projetos de
modernização da agricultura, as propostas de reforma agrária, as políticas
neoliberais referentes a agricultura e os processos de resistência efetivados
pelos grupos subalternos não saem do foco, antes são analisados mais
particularmente a partir de situações específicas.
Neste sentido, no quinto capítulo Maria José Castelano busca discutir
a relação entre a Igreja e a questão agrária entre as décadas de 1960 e
1980. O eixo da análise é produzir uma “reflexão sobre o contexto em que
se inicia a organização da Comissão Pastoral da Tetra (CPT) e a crítica
realizada por seus integrantes aos problemas agrários”. No capítulo seguinte,
Milena Mascarenhas aborda os processos relacionados à construção da
Usina Hidroelétrica Binacional de Itaipu e as mobilizações que foram
realizadas pelos camponeses que foram expulsos das suas terras a partir da
constituição do lago que deu vida hidráulica à usina. Para tanto, toma
como ponto de partida o Boletim Poeira, informativo organizado pela CPT e
que tinha como objetivo informar os camponeses sobre os processos nos
quais estavam envolvidos, conscientizá-los e mobilizá-los nas ações de
resistência e enfrentamento contra a Itaipu.
O sétimo e oitavo capítulos têm como objeto de análise a classes
dominantes rurais e suas organizações/associações no Paraná. Irene Spies
Adamy analisa a formação da fração agrário-pecuarista da classe dominante
na região Oeste do Paraná, mais especificamente no município de Cascavel.
Demonstra a existência de momentos distintos que estão vinculados à
organização desse grupo, os quais envolvem a “privatização legal e ilegal
das terras devolutas e a colonização ocorrida a partir do início da segunda
metade do século XX, cujo modelo contribuiu para a formação de uma
estrutura fundiária marcada por grandes propriedades rurais”. Além disso,
demonstra o quanto o modelo de modernização conservadora da
agricultura, desencadeado a partir do final da década de 1960, dispensou
meeiros, arrendatários e assalariados, acelerou o processo de expropriação
de pequenos proprietários de terras, contribuindo para o aumento da
concentração fundiária na região.
Em perspectiva não muito diversa, mas tratando de outra região – o

9
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Norte do Paraná – Juliana Valentini, no oitavo capítulo, busca compreender


a organização da fração agrária da classe dominante na região de Londrina,
sua capacidade mobilizadora na defesa dos seus projetos de classe e suas
estratégias para preservar/afirmar sua hegemonia no campo. Além de discutir
a organização do patronato rural do Norte do Paraná, Valentini mostra a
sua estreita vinculação com a ocorrência do conflito de Porecatu nas décadas
de 1940 e 1950. Revolta que envolveu camponeses posseiros, grileiros e
teve a participação de militantes e dirigentes do Partido Comunista Brasileiro
(PCB), os quais mobilizaram apoio aos posseiros e colaboraram na
organização e resistência armada. A revolta foi violentamente reprimida
em 1951, pelas forças policiais do estado do Paraná e de São Paulo.
O nono e último capítulo é de autoria de Cristiane Bade, seu objetivo
é discutir questões referentes à (re)ocupação recente do município de
Marechal Cândido Rondon/PR, destacando a comercialização da terra e o
envolvimento dos sujeitos sociais (colonizadora, colonos, trabalhadores,
etc.) nesse processo. Bade, se preocupa em investigar, a partir da década
de 1940, a formação do espaço urbano do município, tendo como enfoque
a prática da especulação imobiliária, o envolvimento e as inter-relações
entre agentes imobiliários, empresários e governantes.
Feita esta apresentação geral do livro, seus objetivos e caminhos
trilhados, cabe-nos, por fim, agradecer aos pesquisadores que se envolveram
na sua produção contribuindo com seus capítulos. Da mesma forma,
agradecemos ao Programa de Pós-Graduação em História da Unioeste por
possibilitar a sua publicação.
Uma profícua leitura a todos.

Marcio Antônio Both da Silva3


Paulo José Koling4
Organizadores

3
Professor do PPGH e do Curso de Graduação em História da Unioeste. Bolsista
Produtividade Fundação Araucária. E-mail: marcioboth@gmail.com
4
Professor do PPGH e do Curso de Graduação em História da Unioeste. E-mail:
pkoling@gmail.com

10
1. R UR AL IS TAS , TÉ CN IC OS E
TECNOLOGIA AGROPECUÁRIA:
a antirreforma agrária no Brasil
contemporâneo
Sônia Regina de Mendonça

2. O B ANC O MU NDI AL E A
REFORMA AGRÁRIA ASSISTIDA
PELO MERCADO: agenda política
Homem no Ara do, Hassis, e resultados (1990-2013)
acervo Fundação Hassis
João Márcio Mendes Pereira

PARTE I
Capitalismo,
Tecnologia e
Reforma
Agrária

11
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

12
RURALISTAS, TÉCNICOS E TECNOLOGIA
AGROPECUÁRIA: A ANTIRREFORMA AGRÁRIA
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO1

2
Sonia Regina de Mendonça

Capitalismo, tecnologia e “burocracia”: considerações teóricas

Partindo do suposto de que o Estado capitalista foi aquele que melhor


encarnou a reorganização da divisão social do trabalho, aprofundando,
com isso, a segmentação existente entre Trabalho Manual e Trabalho
Intelectual, creio pertinente tecer algumas considerações de cunho teórico
sobre essa separação vigente no capitalismo contemporâneo. Dentre elas
destaco a sólida distinção estabelecida entre Ciência e Trabalho Manual,
tendo-se transformado a primeira em força produtiva direta. Isso se verifica
porque, na medida em que o Estado moderno, marcado por uma autonomia
relativa entre o Político e o Econômico, reorganiza todos os seus espaços e
campos, ampliando consideravelmente a espoliação do trabalhador direto
nas relações de produção.3 E na medida em que são justamente essas
relações que dão o suporte fundamental à prodigiosa reorganização da
divisão social do trabalho da qual elas são instituintes, é possível distinguir-
se, mais do que nunca, a mais-valia relativa e a reprodução ampliada do
capital, diferentemente do que ocorria nos estágios do “maquinismo” e da
“grande indústria”.
Essa ruptura operada com relação aos tipos pré-capitalistas de Estado
é responsável pela especificidade do Estado Capitalista moderno, que pode
ser ilustrada pelo aprofundamento da segmentação entre Trabalho Manual
e Trabalho Intelectual. Por certo tal cisão não deve – nem pode – ser
concebida de forma “naturalizada”, separando-se os que “trabalham com
as mãos” e os que “trabalham com a mente”. Na verdade, ela remete às
relações políticas e ideológicas tal como ocorrem junto a relações de
produção específicas. Daí a peculiaridade desta divisão sob o capitalismo
contemporâneo, onde a Ciência – apartada do Trabalho Manual – é colocada

1
Este texto é a versão ampliada do trabalho apresentado junto ao I Encontro Sul-americano de Estudos Agrários, realizado na
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em setembro de 2012, intitulado “Ruralistas e Burocratas: Modernização
e Antirreforma Agrária na América Latina”.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. E-mail:
srmendonca@uol.com.br.
3
A este respeito, ver: POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder e o Socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 61.

13
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

“a serviço do capital”. Nesse sentido, igualmente se estabelecem relações


peculiares entre Ciência, Saber e Ideologia, tanto no sentido de passar a
existir um Saber “mais ideologizado”, quanto no sentido de tornar-se a
Ciência elemento de legitimação do Poder instituído, amparando-se este
último em “práticas científicas” tidas como “racionais”. Assim, sob o
Capitalismo moderno, as relações entre Trabalho Intelectual e Política
imbricaram, mais do que nunca, o Saber e o Poder.
Todavia, se a separação capitalista entre Trabalho Manual e Trabalho
Intelectual é apenas um aspecto da divisão social do trabalho, ela se torna
decisiva no âmbito específico do Estado, aqui concebido gramscianamente
como Sociedade Política,4 uma vez que este encarna, no conjunto de seus
organismos, o Trabalho Intelectual como apartado do Manual, além do
fato de ser nele que a relação orgânica entre Trabalho Intelectual e
Dominação Política, se efetiva de forma mais acabada, em face de seu
próprio distanciamento relativo das relações de produção.
Os órgãos de Estado, através de seus funcionários, efetivam um Sa-
ber e um discurso do qual as massas populares acham-se excluídas, apesar
de encontrarem-se, indiretamente, a ele subjugadas. Logo, no Capitalismo,
as funções de organização e direção exercidas pelo Estado restrito são
asseguradas pelo permanente monopólio de um Saber detido por um grupo
especializado de “funcionários-intelectuais” – ou, segundo alguns,
“Burocratas” – como já o havia pressentido Antonio Gramsci quando incluiu
os agentes dos órgãos estatais na categoria de intelectuais orgânicos, em
seu sentido amplo.5
Dessa forma, a relação entre Saber e Poder no âmbito do Estado
traduz-se em técnicas peculiares de intervenção junto à realidade social,
as quais são divulgadas e percebidas por seus “receptores” como dotadas
de um Conhecimento e uma Racionalidade imanentes, uma vez respaldadas
pela Ciência. Esta, por sua vez, tornada “estatal”, vê-se atravessada pelas
mesmas contradições e redes de poder instituintes do próprio Estado
restrito, em seus mais distintos níveis. Como o aponta Poulantzas “o Estado
capitalista arregimenta a produção da ciência que se torna, assim, uma
ciência de Estado imbricada, em sua textura intrínseca, aos mecanismos de
Poder”.6
Logo, se a relação Saber - Poder não responde somente pela
legitimação, é porque o discurso do Estado cristaliza, nele mesmo, essa
relação, distinguindo-se do discurso formulado a partir dos Estados pré-
capitalistas, que se baseava na “revelação” da palavra do Soberano. O
discurso estatal, agora, é um discurso “da ação”, que assegura tanto seu
vínculo aos projetos dos grupos dominantes, quanto seu papel organizativo
desses mesmos grupos, além de seu sentido regulatório da formação so-
cial como um todo. Em suma, a relação Saber - Poder fundada sobre o

5
A este respeito, ver: POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder e o Socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 61.
6
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, vol. 3.

14
SONIA REGINA DE MENDONÇA

Trabalho Intelectual é cristalizada pelo próprio Estado, que o segmenta do


Trabalho Manual, inscrevendo-o em sua ossatura material.
Tudo isso adquire maior visibilidade quando nos referimos ao que
alguns autores denominam de “pessoal de Estado”, para evitar o termo
marcadamente weberiano de “Burocracia”. 7 A análise de Poulantzas
desnuda o Estado como uma condensação de forças atravessada pelas lutas
de classe que o instituem, inscrevendo-se em sua própria materialidade,
como no caso das divisões e/ou tensões internas vigentes no seio de seu
próprio “pessoal”, configurando hierarquias de funcionários, embora muitos
autores a eles se refiram a partir de uma suposta “homogeneidade” ou
ainda à “autonomia” de seus interesses próprios.
O que pretendo frisar é que a “burocracia” – ou pessoal de Estado –
conta também com um lugar de classe, não se encontrando nem acima,
nem à parte delas. E esse lugar não deriva tão somente da origem social
desses funcionários-intelectuais, referindo-se igualmente a sua situação na
divisão social do trabalho, materializada na ossatura do Estado restrito.
Esses lugares assumem formas específicas de reprodução da divisão existente
entre “Trabalho Intelectual” e “Trabalho Manual” no próprio âmbito do
trabalho Intelectual concentrado no Estado: o lugar das classes burguesas
para o alto funcionalismo; o da pequena burguesia para os escalões
intermediários e o dos subalternos nos órgãos estatais menos expressivos.
E, na medida em que boa parte do recrutamento do “pessoal de
Estado” se dá junto à pequena burguesia, as lutas populares necessariamente
o afetam, desdobrando-se em fissuras internas ao funcionalismo e às
agencias estatais. Isso significa que as contradições entre classes dominantes
e dominadas refletem-se junto aos agentes do Estado de forma complexa,
porém real, implicando em afirmar que a luta de classes também se verifica
no próprio seio dos órgãos estatais, conquanto expressadas à distância,
como no caso dos embates das classes populares que atravessam o Estado,
por seu vínculo com as posições de funcionários oriundos da pequena
burguesia em relação às classes dominantes, resultando quer em conflitos,
quer em alianças.
Dessa forma, o projeto hegemônico reproduzido e disseminado pelo
Estado restrito, não visa apenas controlar as classes subalternas, mas
também cimentar, internamente, a unidade de seu “pessoal” e de suas
agencias. O cerne desse projeto no plano ideológico é a representação do
Estado “neutro” e “acima das classes”, respaldada pela Ciência e pela
Racionalidade. Nesse sentido, muito embora certos setores do
funcionalismo estatal se inclinem para as classes populares – colocando-
se contra as classes dominantes presentes nas instâncias superiores do
Estado restrito – eles não questionam a divisão social do trabalho vigente,
nem tampouco destacam a cisão política existente entre funcionários
dirigentes e dirigidos, dentro da própria ossatura material do Estado.

7
GRAMSCI, Antonio Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, vol. 2.

15
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Contextualização

Retomando a contextualização histórica, importa destacar que a


conjuntura específica de expansão do capitalismo mundial no imediato
pós II Guerra Mundial implicou numa reformulação das políticas
internacionais de cooperação norte-americanas, baseadas na criação de
agências incumbidas de gerir projetos “caso a caso”, sobretudo a partir da
década de 1950. Neste momento, segundo alguns autores, 8 teria sido
“inventado” o conceito de desenvolvimento e, em função dele, toda uma
nova visão acerca das atividades até então definidas como de Ensino e
Pesquisa Agrícolas passou a girar em torno de práticas eminentemente
produtivistas – quando não, assistenciais – destinadas a “qualificar” a mão-
de-obra do campo e organizá-la em comunidades rurais, aptas a consumirem
a tecnologia inicialmente estadunidense.
Semelhante mudança multiplicou os tipos de organismos e iniciativas
conjuntas latinas e norte-americanas voltadas à Agricultura, marcando a
vitória de certos grupos agroindustriais defensores da adoção de Tecnologia
Agropecuária mediante a atuação, bem menos dispendiosa, de
“funcionários-técnicos” de novo tipo – os Extensionistas Rurais. Estes
atuariam quer como pontas de lança da penetração do capitalismo no campo,
quer como instrumentos de disciplinamento dos trabalhadores rurais,
dificultando sua organização política autônoma.
Para compreender essa nova configuração do trinômio Tecnologia –
“Burocracia” – Agricultura na América Latina e no Brasil desse período é
preciso remeter à discussão sobre a origem e consolidação do conceito
que se tornou axial a qualquer iniciativa na área: o desenvolvimento. Vale
lembrar que a doutrina Truman, emergente em plena Guerra Fria, deu início
a uma “nova era” no gerenciamento dos assuntos mundiais, sobretudo
aqueles ligados aos países economicamente “menos contemplados”. Seu
ambicioso objetivo era propiciar condições para reproduzir, em todo o
mundo capitalista, as características das sociedades “avançadas” de então,
tais como os altos níveis de industrialização e urbanização, a intensa
tecnologização da agricultura, o rápido crescimento da produção, bem
como a adoção de valores ditos “modernos”. Na visão dos setores
representados por Truman, Capital, Ciência e Tecnologia seriam os agentes
dessa transformação, capazes de fazer com que o sonho americano de paz
e abundância abarcasse o planeta. Por certo este sonho não foi criação
exclusiva dos dirigentes norte-americanos, mas sim fruto de um contexto
histórico que, em poucos anos, seria abraçado por todos aqueles no poder
em seus respectivos países. Os obstáculos à realização de tal “sonho” eram
percebidos pelos atores envolvidos como uma “missão”.9

8
POULANTZAS. Idem, op. cit., p. 64.
9
Idem, p. 177.

16
SONIA REGINA DE MENDONÇA

Das teorias de desenvolvimento econômico dos anos 50, àquelas


centradas nas necessidades humanas da década de 1970 – que enfatizavam
não só o crescimento econômico, mas a distribuição de seus benefícios –
a principal preocupação de pensadores, políticos e técnicos residiu nos
tipos de desenvolvimento a serem implementados como solução para os
problemas dos países então chamados de “subdesenvolvidos”. Assim, a
realidade histórica do pós-guerra foi “colonizada” pelo discurso do
desenvolvimento como uma representação que, não só moldou os caminhos
pelos quais a realidade era imaginada, como também atuou fortemente
junto a ela.
Investigar o desenvolvimento como um discurso historicamente
produzido implica em examinar o porquê de tantos países terem começado
a se auto representarem como subdesenvolvidos justamente neste momento,
quando o “como desenvolver-se” tornou-se questão vital, a ponto de grupos
dirigentes latinos em geral abraçarem a tarefa de “não subdesenvolverem-
se a si mesmos”, mesmo que às custas de crescentes intervenções externas
em seus países. Por tais razões o discurso do desenvolvimento originou
um eficiente aparato institucional voltado para a produção de conhecimento
e o exercício do poder junto ao Terceiro Mundo, aparato este integrado por
uma rede de agências e agentes implantada entre 1945-1955 e que não
cessaria de ampliar-se e de produzir novos arranjos entre Saber e Poder
disponibilizando, com sucesso, uma forma de gerir o Terceiro Mundo,
assegurando o controle sobre seus “povos submetidos”.10
O desenvolvimento como experiência histórica singular remete a todo
um domínio de pensamento e de ação analisável a partir de três eixos: a)
as formas de conhecimento que a ele deram materialidade através de
projetos, conceitos e teorias; b) o sistema de poder que passou a regular
suas práticas e c) as formas de subjetividade coletivas por ele forjadas, que
fizeram com que as pessoas passassem a se reconhecer como desenvolvidas
ou não. Logo, o desenvolvimento foi tanto uma formação discursiva, quanto
um conjunto de instituições incumbido de gerar conhecimentos e técnicas
materializadas em ações que produziram o Terceiro Mundo. E rapidamente
a hegemonia norte-americana sobre o Ocidente faria com que a “guerra
contra a pobreza” terceiro-mundista ocupasse lugar proeminente,
incentivada, de um lado, pelo reconhecimento de suas condições crônicas
de miséria e, por outro, pelo papel imputado aos dirigentes dos países
desenvolvidos no sentido de tomarem alguma iniciativa, sob pena dos níveis
de instabilidade sócio-política mundiais se tornarem intoleráveis.
E para tratar da pobreza, os líderes das sociedades desenvolvidas
construíram novos domínios de Saber-Poder. Além da indústria e da
tecnologia, a reordenação do capitalismo referenciou-se, discursivamente,

10
ESCOBAR, A. Encountering Development – the Making and Unmaking of the Third World. New Jersey: Princeton
University Press, 1995. Ver também, LEAVITT, H U. S. Technical Assistance to Latin American Education. Phi Delta
Kappa. Gilman: vol. 45, pp. 220-25, 1964.

17
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

a políticas de combate à pobreza cujo objetivo era criar novos


consumidores e transformar as sociedades, transformando os próprios
pobres em objetos de conhecimento e intervenção, originando um sem-
número de ações em áreas como Educação, Saúde, Higiene, Moralidade e
Emprego, responsáveis pela emergência de um novo campo, denominado
pelos pesquisadores de “o social”. Com base nesses pressupostos, Missão
Econômica organizada pelo International Bank for Reconstruction and De-
velopment visitou a Colômbia, em 1949, para formular um programa de
desenvolvimento transformado na primeira experiência do tipo patrocinada
pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD)
em um país subdesenvolvido. O sentimento messiânico explicitamente
expresso na noção de “salvação” resumia a convicção de que existia somente
uma forma “correta” para sanar tais problemas: o desenvolvimento.11 Foi aí
também que a Fundação Rockfeller tornou-se ativa no continente latino.
Para os Estados Unidos, em princípio, a questão prioritária era a
reconstrução da Europa, configurando um padrão de acumulação que
Oliveira chama de policêntrico.12 Enquanto a Europa beneficiou-se do Plano
Marshall, o Terceiro Mundo não mereceu igual tratamento: considerando
os US$ 19 bilhões investidos na primeira, menos de 2% desse total
reverteram em ajuda norte-americana para a América Latina.13 Mesmo assim,
os rearranjos políticos do pós-guerra, fizeram com que a luta entre Leste e
Oeste se deslocasse para o Terceiro Mundo.
Neste quadro a Ciência e a Tecnologia se recolocaram com mais
força. O Programa Ponto IV do Presidente Truman envolvia a aplicação, nas
áreas pobres do mundo, das forças vitais da civilização ocidental: Tecnologia
e Capital, apesar do Programa ter repousado muito mais em assistência
técnica, do que em investimentos. Em outubro de 1945 foi criada, dentro
do Departamento de Estado estadunidense, a Technical Cooperation Ad-
ministration (TCA) encarregada de implementar as políticas do Ponto IV. Em
1952 a agência conduzia operações em quase todos os países latinos, pois
a Tecnologia, acreditava-se, além de ampliar o progresso material, a ele
conferia um sentido de direção em escala planetária, disseminando os ideais
“modernos”. O interesse pela América Latina – e pelo Brasil em particular –
impulsionou a busca de conhecimentos detalhados sobre sua economia,
sociedade, geografia e política, integrando um sistema transnacional de
pesquisas que gerou inúmeras capacitações de conhecimento, lado a lado
à perda da autonomia de modos de conhecimento nacionalmente
construídos, sobretudo no tocante à Pesquisa Agropecuária – que mais de
perto me interessa.

11
A este respeito ver PLANK, D N. The Means of Our Salvation. Colorado: Westview Press, 1996; ESCOBAR. Idem, op.
cit., p. 26 e PLANK. Idem, op. cit, capítulo V.
12
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à Razão Dualista e o Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
13
Cf. M. LATTA. Idem, op. cit., p. 278

18
SONIA REGINA DE MENDONÇA

As chamadas “velhas maneiras” de pensar sucumbiram ao desejo de


crescimento econômico ligado à Fé, revitalizada pela Ciência e a Tecnologia,
redentoras da pobreza. À sombra deste viés humanitário, novas formas de
poder e controle, sutis e refinadas, seriam praticadas e, em contrapartida, a
habilidade dos “povos pobres” de definirem sua própria história seria
bastante erodida, sendo seus saberes próprios totalmente desqualificados,
transformando-os, eles próprios, em públicos-alvo de programas
sofisticados.

Tecnologia, funcionários e pesquisa agropecuária no Brasil

Partindo das considerações teóricas até aqui tecidas, passo a discutir


a relação entre Classes Dominantes Agrárias, Tecnologia e “Burocracia” no
Brasil, tomando como referência o caso das políticas de Pesquisa
Agropecuária. A historiografia sobre o tema costuma focalizá-lo a partir de
três vertentes: 1) estudos que o tomam como prática lastreada na suposta
imparcialidade da Ciência, dela eliminando a “politicalha”;14 2) estudos
que tomam a produção de Tecnologia Agropecuária como fruto de projetos
vinculados a grupos dominantes – sobretudo multinacionais – em afirmação
hegemônica nos países latinos, visando integrá-los aos novos ditames da
acumulação capitalista15 e 3) estudos que o consideram de uma perspectiva
eminentemente produtivista,16 centrada na análise da Tecnologia. As três
vertentes, por caminhos distintos, compartem de um reducionismo analítico
empobrecedor do estudo da problemática, consagrando clichês sobre a
Pesquisa Agropecuária decorrentes tanto de estudos de cunho “oficialista”
– produzidos por funcionários (burocratas) dos órgãos encarregados dessa
atividade17 –, quanto daqueles baseados em referenciais teóricos marxistas.18
No primeiro grupo, destacam-se trabalhos produzidos por técnicos
ou diretores dos organismos estatais incumbidos da Pesquisa Agropecuária
que, ao sabor de datas comemorativas, resgataram a “memória de uma
saga” ou “o lado de sonhos” que impregnou os técnicos envolvidos. No

14
CABRAL, José Irineu. Sol da manhã: memória da EMBRAPA. Brasília: Unesco, 2005, p. 57.
15
AGUIAR, Ronaldo Conde. Abrindo o Pacote Tecnológico: Estado e pesquisa agropecuária. São Paulo: Polis; Brasília: CNPq,
1986; FONSECA, Maria Tereza da. A Extensão Rural, um Projeto Educativo para o Capital. São Paulo: Loyola, 1985;
PINSKY, Jaime (org.) Capital e Trabalho no Campo. São Paulo: Hucitec, 1977; dentre outros.
16
PICCIOTTO, Robert. Pesquisa agrícola: um exame da viabilidade dos programas de pesquisa agrícola dos países em
desenvolvimento. Finanças e Desenvolvimento. Washington, D.C: 5(2): 45-8, jun. 1985; SOUZA, I. S de & STAGNO, H.
Organismos de investigação agropecuária nos países do cone sul. Montevidéu: IICA, 1991; SCHNEIDER, J. E & TOURINHO,
M. M. Pesquisa para o desenvolvimento. Brasília: EMBRAPA, 1992; PASTORE, J (org.) Agricultura e desenvolvimento. Rio de
Janeiro: APEC, 1973, dentre outros.
17
CABRAL, op. cit.; FURTADO FILHO et all. Gotas de suor: uma trajetória de 40 anos. Florianópolis: EPAGRI, 1996;
SILVA FILHO, Manoel M. da. A Extensão Rural em Meio Século. Natal: EMATER-RN, 2005.
18
SILVA, José Graziano da. A modernização dolorosa. Rio de Janeiro: Zahar, 1976; FONSECA, M. S. da. Produtividade agrícola,
pesquisa e extensão rural. São Paulo: IE-USP, 1984; RODRIGUES, Cyro M. A pesquisa agropecuária no período do pós-
guerra. Caderno de Difusão Tecnológica. Brasília: 4 (3), 205-254, set/dez, 1987, dentre outros.

19
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

caso brasileiro é paradigmático o livro de José Irineu Cabral – primeiro


diretor-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)
– prefaciado pelo então Ministro da Agricultura e financiado pela UNESCO,
pela Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB)19 e pela Confederação
Nacional da Agricultura (CNA), órgão máximo de representação do
agroempresariado. Não é demais pontuar que a nata do grande capital
agropecuário e financeiro encontrou-se umbilicalmente ligada à fundação
da Empresa, em 1973. Estes estudos, importantes pontos de partida para a
reflexão sobre a história das relações entre Estado/Classes Dominantes/
”Burocracia”/Pesquisa Agropecuária no Brasil, partem do suposto de que
Ciência e Tecnologia são o passaporte para a “imparcialidade” das
instituições e das políticas de pesquisa, bem como das análises a seu
respeito, gozando seus autores da imunidade contra “as interferências
nocivas da política”. Os autores “oficialistas”, todavia, não puderam deixar
de sinalizar a “maior influência dos políticos na escolha dos dirigentes,
superando os critérios técnicos”20 na própria Embrapa, fazendo com que
qualquer negatividade na atuação das agências de Pesquisa Agropecuária
fosse sempre atribuída a fatores externos a ela e não a conflitos endógenos,
inerentes à origem de classe/trajetória de seus dirigentes e funcionários. A
negação dos conflitos próprios ao permanente processo de redefinição do
Estado restrito e seus órgãos implica num sério desdobramento: a recusa
da história-processo e a afirmação de uma perspectiva naturalizada sobre
a origem da Pesquisa Agropecuária no país, como se as políticas a ela
antes destinadas simplesmente não tivessem existido.
Já os autores da segunda vertente que analisam as relações entre
Estado e Pesquisa Agropecuária como produto das redefinições verificadas
na acumulação capitalista mundial – em boa parte filiados ao marxismo –
promovem uma leitura crítica e processual da temática. Entretanto, incorrem
num vício contumaz, pois, mesmo entendendo a “modernização da
agricultura” sob dupla ótica – como processo de inserção da agricultura no
capitalismo mundial e como ideologia que reflete objetivos políticos da
intervenção estatal no setor – partem de uma hipótese equivocada, segundo
a qual “o impulso da modernização teve origem, de fato, num exterior, o
Estado”.21 Ora, definir o Estado como “exterior” à atividade é bastante
questionável, sobretudo quando se opera com o conceito de Estado Ampliado
elaborado por Gramsci, que implica na permanente interelação entre
Sociedade Civil e Sociedade Política (ou Estado restrito). A primeira é
portadora dos aparelhos de hegemonia que organizam as “vontades

19
A OCB, criada em 1969, foi responsável, em 1993, pela criação da todo poderosa ABAG, representante dos interesses
do agronegócio no Brasil e concebida por Roberto Rodrigues, ex-ministro da Agricultura do governo Lula e à época,
presidente da OCB. Cf. MENDONÇA, Sonia Regina de. O Patronato Rural no Brasil Recente. Rio de Janeiro: EdUFRJ,
2010.
20
J. I. CABRAL. Idem, op, cit, p. 57.
21
R. C. AGUIAR. Idem, op. cit, p.1. Grifos meus

20
SONIA REGINA DE MENDONÇA

coletivas”, gerando o consenso em torno a um projeto hegemônico,


enquanto a segunda é integrada por um conjunto de organismos que
asseguram, quer pela coerção, quer pela difusão do consenso, a hegemonia
de um projeto. Reduzir o papel do Estado nas sociedades capitalistas ao
estatuto de exterior à sociedade recoloca a velha diatribe teórica calcada
no embate entre as matrizes Liberal e Marxista de Estado, onde “duelavam”
o Estado Sujeito (entidade “acima” da sociedade) e o Estado Objeto dos
marxistas ortodoxos (entendido como “marionete” da burguesia).22 Ambas
as perspectivas recusam a visão do Estado como condensação de relações
sociais, o que permite ver que nem o Estado é “exterior”/”superior” à
Sociedade, nem esta é “inferior”/”mais frágil” que o Estado. Outro
reducionismo comum nessas análises é a associação mecânica estabelecida
entre a criação de agencias estatais de Pesquisa Agropecuária e o processo
de subordinação da agricultura à lógica do capital internacional. Sem
discordar do óbvio considero que analisar tais políticas sem enunciar os
grupos de interesse patronais junto a elas imbricados, sobretudo os
chamados ruralistas, resulta numa história com classes, porém sem atores
sociais concretos.
A terceira vertente mencionada, integrada por análises destinadas a
avaliar basicamente a eficácia das inovações tecnológicas geradas pelos
órgãos estatais de Pesquisa Agropecuária é composta, em grande parte,
por autores com inserção acadêmica. O perfil de seus estudos baseia-se na
quantificação das taxas de retorno dos investimentos realizados na produção
de Tecnologia Agropecuária, verificando sua relação com o aumento da
produtividade agrícola 23 e com o grau de inserção do país à ordem
internacional, privilegiando a investigação sobre commodities, em detrimento
da Tecnologia voltada para a produção destinada ao abastecimento interno.
Esse conjunto de trabalhos, a despeito de sua contribuição, compartilha de
uma visão sobre as relações entre Estado e Tecnologia Agropecuária de
cunho produtivista e instrumental, elegendo como eixo da reflexão o impacto
da Tecnologia na maximização da produtividade dos fatores terra e trabalho.
Por certo não se trata de uma abordagem equivocada, porém restrita, sem
enfatizar os desdobramentos políticos de tais processos. Afinal, muitas
pesquisas estatais derivaram do maior ou menor poder de pressão de
entidades patronais agropecuárias e industriais ou ainda da diferenciação sócio-
política dos interesses atendidos pela geração de técnicas agrícolas, priorizando
ora ao grande, ora ao pequeno produtor, em função de conjunturas históricas
específicas. Assim, uma lacuna permanece em aberto: aquela relativa à
pluralidade de grupos de interesse organizados na sociedade civil que, direta

22
Para a discussão sobre Estado Sujeito e Estado Objeto, remeto a BOBBIO, N. & BOVERO, M. Sociedade e Estado na
Filosofia Política Moderna. São Paulo: Brasiliense, 1997.
23
DELGADO, G C. Mudança técnica na agricultura, constituição do complexo agroindustrial e política tecnológica
recente. Caderno de Difusão Tecnológica. Brasília: 2 (1): 79-97, jan./abr, 1985; PAIVA, R M; Modernização e dualismo tecnológico
na agricultura. Rio de Janeiro: ABCAR, s/d; ICHIKAWA, E Y. O Estado no apoio à pesquisa agrícola: uma visão
histórica. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro: 34 (3): 89-101, maio/jun. 2000.

21
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

ou indiretamente inseridos nas agências do Estado, interferiram nos rumos


das políticas de Pesquisa Agropecuária realizadas pela Embrapa no Brasil.
Penso que a abordagem aqui sugerida pode dar conta do grande
número de ações conjuntas realizadas pelo Estado e agências estrangeiras,
mormente estadunidenses, presentes no país desde a década de 1940
quando da fundação do Escritório para a Coordenação das Relações
Comerciais e Culturais entre as Repúblicas Americanas, dirigido por
Rockfeller. Transformado em 1945 no Institute of Inter-American Affairs (IIAA),
ele visava “promover o desenvolvimento das relações comerciais e culturais
entre as repúblicas americanas de modo a incentivar a solidariedade e
aprofundar o espírito de cooperação entre as Américas no interesse da
defesa do hemisfério”. Neste sentido, a relação entre Tecnologia, Ruralistas,
“Burocracia” e Agricultura no Brasil foi fortemente marcada pela participação
estadunidense, fomentada por inúmeros Acordos Bilaterais firmados entre
ambos os países e que subordinaram a Pesquisa Agropecuária ao paradigma
norte-americano, através de três mecanismos: 1) a preparação, nos EUA,
do “pessoal de Estado” especializado em Pesquisa e Extensão Rural; 2) o
fomento à fundação/remodelação de órgãos estatais de Pesquisa
Agropecuária e 3) a íntima imbricação entre Tecnologia, “Burocracia” e
Grupos Agroempresariais inseridos nos organismos de Pesquisa em par-
ticular.
Em nome da superação do subdesenvolvimento, equipes de técnicos
norte-americanos atuaram no Brasil através de dois procedimentos centrais:
1) treinando “funcionários-técnicos” do Estado (muitos deles enviados a
universidades nos Estados Unidos), donde resultaram “burocracias
nacionais” imbuídas do paradigma tecnológico agropecuário
estadunidense; 2) difundindo junto aos funcionários-intelectuais brasileiros
a crença na necessidade imperiosa de consumirem-se novas tecnologias
agrícolas e de aprimorarem a Pesquisa Agropecuária estatal. Este processo
assegurou a expansão do capitalismo estadunidense não só pela ampliação
das exportações de suas máquinas e insumos agropecuários, como também
pela intensificação de investimentos no fomento a órgãos públicos
incumbidos da geração de Tecnologia para o agro brasileiro, cristalizando
a Ciência como instrumento de Estado e as Técnicas como elementos de
exclusão/subordinação social.
Neste sentido, durante a segunda metade do século XX, o
imperialismo norte-americano fomentou o capitalismo no campo brasileiro
incentivando tanto sua industrialização – mas uma industrialização voltada
para a agropecuária – quanto estimulando a financeirização da agricultura.
Nesse processo o grande capital ganhou duplamente nas décadas de 1960
e 1970. De um lado, ele teve como parceiros agroempresários nacionais
inseridos diretamente na direção das instituições públicas de Pesquisa
Agropecuária que passaram a subcontratar serviços das próprias empresas
privadas que deles se beneficiariam, acabando por privatizar a Embrapa e
o próprio Estado (Cf. Quadros I e II adiante). De outro, o grande capital

22
SONIA REGINA DE MENDONÇA

fortaleceu sua hegemonia através da crescente especialização da


“burocracia” encarregada da Pesquisa e da Extensão rural, cuja
hierarquização gerou uma tensão “intraestatal” que polarizou
“pesquisadores” versus “extensionistas”. Os desdobramentos de ambos os
processos beneficiaram os grandes empresários agroindustriais ao ampliar
seu poder produzindo, simultaneamente, uma relativa desmobilização política
de trabalhadores rurais e camponeses que, em contato com o Saber portado
pelos técnicos, acabavam muitas vezes por introjetar um Conhecimento
que os induzia a consumir os frutos da Ciência estatal. Por tal via acabavam
perdendo suas pequenas propriedades, face às dívidas contraídas para a
aquisição das novas tecnologias propagandeadas.
Os organismos de Crédito Supervisionado então criados, igualmente
eram geridos a partir dos parâmetros ditados pela AIA de Rockfeller, que
estabelecia rígidos critérios para a concessão de empréstimos a pequenos
agricultores, via bancos estatais. Lembrando que na Extensão Rural os
técnicos são elos de uma cadeia que conecta Escritórios de Pesquisa/
Laboratórios e “população rural-alvo”24 é simples perceber o modus oper-
andi desse “sistema”: através dos extensionistas, técnica e crédito chegavam
ao pequeno produtor que, em contrapartida, via-se obrigado a consumir
tecnologias agrícolas compatíveis ao estatuto da modernidade. Assim, se a
AIA encorajava o uso de sementes mais produtivas, a International Basic
Economics Corporation (IBEC), outra empresa de Rockfeller, vendia sementes
híbridas. Se a AIA pregasse o uso de pesticidas e herbicidas, a IBEC montava
uma empresa de fumigação.25 Logo, a partir dos anos 1960/70, configurou-
se um novo padrão de desenvolvimento rural marcado pela precoce
constituição daquilo que mais tarde seria chamado de Complexos
Agroindustriais (CAIs).26
Vale ainda lembrar que o regime militar no Brasil propiciou solo
fértil para o florescimento da atividade/ideologia do planejamento que
norteou os sistemas de Pesquisa Agropecuária. A criação de Centros
Nacionais por Produtos, altamente centralizados na década de 1970, por
exemplo, seria uma tentativa de reproduzir internamente as funções
desempenhadas pelos grandes centros internacionais de pesquisa como o
CIMMYT (sigla espanhola do Centro Internacional de Melhoramento de
Milho e Trigo, do México) e o IRI, ambos mantidos pela Fundação Rockfeller.
O caso da Embrapa, por exemplo, é emblemático de todas as
considerações até aqui tecidas. Sua fundação deveu-se a uma disputa
acirrada entre funcionários de carreira do alto escalão do Ministério da
Agricultura – todos eles dirigentes da Sociedade Nacional de Agricultura
(SNA) – e os “novos ruralistas”, oriundos da entidade patronal
agroempresarial hegemônica no país desde os anos 1980, a Organização

24
BRUNNER, Edmund; SANDERS, Irwin & ENSMINGER, Douglas. Farmers of the world – the development of
Agricultural Extension. New York: Columbia University Press, 1961, p. 3.
25
COLBY & DENNET. Idem, op. cit., p. 252.
26
MENDONÇA, S. R. de. A Classe Dominante Agrária: Natureza e comportamento (1964 – 1990). São Paulo: Expressão
Popular, 2006 e também ___. Estado, Educação Rural e Influencia Norte-Americana no Brasil (1930-1961). Niterói: EdUFF, 2010.

23
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

das Cooperativas Brasileiras (OCB). Esta, por sua vez, foi responsável pela
fundação, em 1993, da Associação Brasileira de Agribusiness (ABAG), o
coroamento deste projeto hegemônico “transnacionalizado”.27 A guisa de
ilustração, apreciemos os quadros dirigentes da Embrapa no período
compreendido entre 1993 e 2007, que corroboram e dão suporte a esta
análise, sobretudo se levarmos em conta que o ano inicial da série foi
justamente aquele em que se fundou a entidade patronal agroindustrial e
financeira hegemônica até os dias de hoje, no país: a ABAG. Vale lembrar
que dentre as iniciativas destinadas a produzir o consenso em torno da
imprescindibilidade do agronegócio para o país, esteve a fundação, pela
própria ABAG, do PENSA (Programa de Estudos dos Negócios do Sistema
Agroindustrial), sediado na Faculdade de Economia e Administração da
USP e até hoje atuante.

QUADRO I – Diretores-Presidentes da Embrapa (1993 – 2007)


DIRETOR PERÍODO DADOS DE TRAJETÓRIA
PRESIDENTE
Murilo Xavier 1991-1994 Agrônomo e Mestre em Economia Rural (1984). Secretário-executivo
Flores do Conselho do Pronaf (1996 a 1999); Diretor da Empresa de Pesquisa
Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina S.A.
Alberto Duque 1995-2001 Agrônomo e Dr. em Sistemas Agrícolas pela University of Reading
Portugal (1982); diretor da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais
(1978–1987); chefe-geral da Embrapa-Gado de Leite. Foi Diretor da
Associação Brasileira de Sementes e Mudas, sócia da Associação
Brasileira de Agribusiness (ABAG)
Clayton 2003-2005 Agrônomo; Mestre em Energia Nuclear na Agricultura e Dr em
Campanhola Entomologia pela Texas University. Diretor da Associação Brasileira
de Desenvolvimento Industrial e da Fundação Centro de Estudos de
Comercio Exterior (FUNCEX), ambas associadas à ABAG.
Silvio Crestana 2005-2009 Físico, mestre em Física Básica (1983), Dr. em Ciências e Pós-doutor
em Ciências do Solo e Ambientais pela Universidade da Califórnia
(1989). Professor da Pós-graduação em Engenharia Ambiental e
Agronegocio na USP. Foi professor do PENSA. É Conselheiro de
Agronegócio da FIESP, sócia da ABAG

FONTES: Memória Embrapa (www.embrapa.com.br); sites da Internet; Mendonça, op. cit., 2010.

QUADRO II – Diretores Executivos da Embrapa (1993 – 2007)


DIRETOR PERÍODO DADOS DE TRAJETÓRIA
EXECUTIVO
Eduardo Paulo 1991-1994 Economista e Mestre em Administração de Empresas; Diretor
de Moraes
Sarmento Superintendente da CERES (Fundação de Seguridade Social dos
Sistemas Embrapa e Embrater) entre 1995–1999.
Fuad Gattaz 1991-1994 Paulista, Mestre em Ciência da Computação pela PUC-RJ e PhD em
Sobrinho
Ciência da Computação (University of Maryland - 1984). Inventor de
nove tecnologias de software patenteadas e adotadas por mais de
300 multinacionais no Brasil; Assessor da ABAG.
Manoel 1991-1994 t t tt t t
27
Sobre o tema consultar PINTO, Raphaela Giffoni. O novo empresariado rural no Brasil: uma análise das origens, projetos e atuação
da Associação Brasileira de Agribusiness (1990-2002). Niterói: Programa de Pós-Graduação em História da UFF, 2010.
(Dissertação de Mestrado).

24
SONIA REGINA DE MENDONÇA

Manoel Malheiros 1991-1994 Mes tre em Recursos Na turais pelo Ins tit uto Int eramericano de
Tourinho
Ciências Agrícolas (1970) e PhD. em Sociologia Rural (Universit y of
Wisconsin, 1982); vice-presidente da Associação das Universidades da
Amazônia);
Ivan Sérgio Freire 1991-1994 Mes tre em Sociologia, Dr pelo Ohio St ate Universit y (1980) e Pós-
de Souza
doutor pela Michigan S t ate Universi ty (1996); membro da Secretaria
de Administração Estratégica da Embrapa.
Elza Battaggia Brito 1991-1994 Bacharel em Direi to, Chefe da Secret aria de Propriedade Intelect ual
da Cunha da Embrapa (2001 – 2003) e responsável pelas negociações da
Embrapa com parceiros privados; Ex-aluna do PENSA.
Alberto Duque 1991-1994 Agrônomo e Doutor em Sistemas Agrícolas pela University of Reading
Portugal (1982); diretor da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais
(1978–1987). Foi Diretor da Associação Brasileira de Sementes e
Mudas (ABRASEM), empresa membro da ABAG.
Márcio de Miranda 1991-1994 Mes tre em Genética de Plant as; Dr. em Genét ica Bioquímica pela USP
Santos
(1991) e pós-dout or pela Harvard Universit y (1997) e Consultor da
FUNCEX, associada à ABAG.
José Roberto 1991-1994 Agrônomo e Mes tre em Ciência do Solo pela Universidade Federal do
Rodrigues Peres Rio Grande do Sul (1979).
Elza Battaggia Brito 1995-2002 Bacharel em Direi to, Chefe da Secret aria de Propriedade Intelect ual
da Cunha da Embrapa (2001 – 2003) e responsável pelas negociações da
Embrapa com parceiros privados; Ex-aluna do PENSA.
José Roberto 1995-2002 Agrônomo e Mes tre em Ciência do Solo pela Universidade Federal do
Rodrigues Peres Rio Grande do Sul (1979).
Dante Giacomelli 1995-2002 Agrônomo, PhD em Economia do Agronegócio pela Universidade de
Scolar Wisconsin; Assessor Técnico da Presidência da Comissão de
Agricultura da Câmara dos Deputados; Vice-presidente da
Associação Brasileira das Instituições de Pesquisa Tecnológica
(1998-2003), vinculada à ABAG.
Bonifácio Hideyuki 1995-2002 Mestre em Horticultura Fruticultura (Rutgers State University) e Dr em
Nakasu Melhoramento Genético de Plantas pela mesma universidade (1977);
diretor técnico da Fundação de Apoio à Pesquisa Agropecuária
“Edmundo Gastal” (RS), vinculada à ABAG
Mariza Marilena T. 2003-2005 Economista Domestica, Mestre e Dra. pela Universidade Federal de
Luz Barbosa Viçosa, Coordenadora técnica da Secretaria de Cooperação
Internacional da Embrapa (1991-1993); Assessora para assuntos
internacionais do Ministério da Agricultura (1993-1995); ex-aluna do
PENSA
Gustavo Kauark 2003-2005 Dr. em Economia e Sociologia pela Université Sorbonne Nouvelle;
Chianca
Presidente da Empresa de Pesquisa Agropecuária do Es tado do Rio
de Janeiro (2002-2003), associada à ABAG.
Herbert Cavalcante 2003-2005 Agrônomo (1987), Mestre em Ciência de Alimentos pelo Instituto
de Lima Nacional de Pesquisas da Amazônia (1992), Dr. em Ciência de
Alimentos pela Universidade Federal de Lavras (2002).
Tatiana Deane de 2005-2009 Agrônoma (1971), Especialista em Agrometeorologia pelo International
Abreu Sá Institute of Tropical Agriculture (1981), especialista em
Agrometeorologia pelo Instituto de Pesquisa e Experimentação
Agropecuária do Norte; Ex-aluna do PENSA.

FONTES: Memória Embrapa (www.embrapa.com.br); sites da Internet; Mendonça, op. cit., 2010.

Como se depreende dos Quadros, boa parte dos dirigentes da


Embrapa no período recortado originou-se, direta ou indiretamente da Abag
ou suas “subsidiárias”, sobretudo o já citado Pensa. No Quadro I, por
exemplo, dos quatro presidentes elencados, três pertenciam à Abag (75%),
enquanto no Quadro II vemos que, de um total de treze nomes, 10
mantinham vínculos com o binômio Abag-Pensa, representando 77% dos
diretores executivos da Embrapa. Todavia, a maior evidencia da hegemonia

25
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

dos dirigentes da Abag junto à Empresa, reside no fato de ser a própria


Embrapa associada da ABAG, o que nos permite concluir que, direta ou
indiretamente, os interesses da Abag são os interesses da Embrapa e vice-
versa.28 Outro indício da subalternização da Embrapa à Abag depreende-se
do III Plano Diretor da Embrapa (1998), onde se nomeia como “ONGs” os
parceiros contratados pela Empresa para desenvolver projetos, tais como a
AGco, a Bunge, a Monsanto, a Empresa Brasileira de Sementes Ltda (EBSL),
a MITLA Pesquisa Agrícola Ltda (Agrevo) – todas elas, obviamente, empresas
transnacionais e sócias da agremiação.
Logo, o III Plano Diretor da Embrapa, a despeito de veicular discurso
favorável aos pequenos produtores, na realidade aprofundou, mais que
nunca, seus vínculos com o agronegócio, terceirizando projetos com as
próprias empresas a serem por eles beneficiadas. Como exemplos podemos
citar alguns convênios terceirizados: 1) aquele entre a Embrapa e Monsanto
para o desenvolvimento de soja tolerante a herbicida (25/11/1997) – visando
reduzir custos de produção;29 2) aquele entre a Embrapa e a Bunge visando
estreitar relacionamento nas áreas estratégicas e definir oportunidades de
colaboração em projetos de pesquisa (29/09/2005); 30 3) outro entre a
Embrapa e a Monsanto assinando termo de cooperação técnica em prol da
agricultura nacional, destinando R$ 800 mil ao Fundo de Pesquisa da
Embrapa (09/11/2006),31 4) aquele entre o Grupo Parmalat e a Embrapa -

28
Em 2008, segundo publicação comemorativa dos 15 anos de existência da ABAG, a entidade contava com 62 sócios,
na saber: ADM do Brasil Ltda; AGCO do Brasil; Agência Estado; Agroceres Nutrição Animal Ltda; Agropalma S.A;
Algar S.A. Empreendimentos e Participações; Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (ABIA); Associação
Brasileira dos Criadores de Zebu – ABCZ; Associação da Indústria de Açúcar e Álcool – AIAA; Associação Nacional
de Defesa Vegetal – ANDEF; Banco Cooperativo Sicredi S.A. – BANSICREDI; Banco do Brasil S.A; Banco do
Estado de São Paulo S.A. – BANESPA; Banco Itaú BBA S/A; Basf S.A; Bayer S.A; Bolsa de Mercadorias e Futuros
– BM&F; Bunge Alimentos S.A; Bunge Fertilizantes S.A; Caramuru Alimentos S.A; Cargill Agrícola S.A; Ceres
Consultoria S/C Ltda; CNH Latin América Ltda; Cocamar Cooperativa Agroindustrial; Companhia de Tecidos
Norte de Minas – COTEMINAS; Companhia Vale do Rio Doce; Coopavel Cooperativa Agroindustrial; Cooperativa
Agroindustrial dos Produtores Rurais do Sudoeste Goiano Ltda. – COMIGO; Cooperativa Agropecuária de Araxá
– CAPAL; Cooperativa Regional dos Cafeicultores de Guaxupé; Ltda. – COOXUPÉ; Du Pont do Brasil S.A;
Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA; Evonik Degussa Brasil Ltda; Federação das Cooperativas do
Estado do Rio Grande do Sul – Fecoagro/Fecotrigo; FMC Química do Brasil Ltda; Fundação de Estudos Agrários
Luiz de Queiroz – FEALQ; Globo Comunicação e Participações S.A; Goodyear do Brasil Produtos de Borracha
Ltda; IP Desenvolvimento Empresarial e Institucional; John Deere Brasil S.A; Maeda S. A. – Agroindustrial; Malteria
do Vale S.A; Máquinas Agrícolas Jacto S.A; Marchesan Implementos e Máquinas Agrícolas Tatu S.A; Monsanto do
Brasil Ltda.; MRS Logística S.A; Petrobras; Pirelli Pneus Ltda; PricewaterhouseCoopers; Sadia S.A; S afras &
Mercado; Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Agrícola (SINDAG); Sindicato Nacional da
Indústria de Produtos para Saúde Animal (SINDAN); Syngenta Seeds Ltda; Syngenta Produção de Cultivos Ltda;
Trademaq – Eventos e Publicações Ltda; União da Indústria de Cana-de-Açúcar (ÚNICA); União dos Produtores
de Bioenergia; Usina Alto Alegre S/A. www.abag.org.br (acessado em outubro de 2008).
29
http://www.embrapa.br/imprensa/noticias/1997/abril/bn.2004-11-25.8434017366/, capturado em 10/06/2012.
30
“A Bunge, por ser uma rede mundial de negócios e transferência de tecnologia, ter a expertise em gestão da inovação
e facilidade em mobilizar e gerir recursos; e a Embrapa, por reunir grande parte da massa crítica em P&D do Brasil,
uma rede de laboratórios e ter capilaridade nacional e tecnologia tropical”. http://www.embrapa.br/imprensa/
noticias/2005/setembro/foldernoticia.2005-09-26.8798480371/ notícia.2005-09-29.2173002635, capturado em 01/
05/2012.
31
Tal verba seria oriunda do compartilhamento dos direitos de propriedade intelectual, a título de royalties, sobre a
comercialização de variedades de soja da Embrapa com a tecnologia Roundup Ready, na safra 2005/06. http://

26
SONIA REGINA DE MENDONÇA

interessado nas pesquisas por esta desenvolvidas com pecuária de corte e


etanol (05/09/2007),32 dentre centenas de outras, divulgadas quer no site
da Abag, quer no da Embrapa.
Diante do exposto fica patente o compromisso da Embrapa em
promover a competitividade externa dos produtos brasileiros, sem considerar
aspectos como a geração de empregos produtivos no meio rural ou mesmo
a diminuição das disparidades regionais. Nessas circunstâncias, a Empresa
passou a sofrer uma série de pressões endógenas e exógenas, no sentido de
promover mudanças em suas políticas, das quais se destacou a criação da
Secretaria de Administração Estratégica, iniciativa do presidente do órgão,
Clayton Campanhola, nomeado pelo Ministro de Segurança Alimentar, José
Graziano da Silva. Em seu discurso de posse Campanhola desagradou a
muitos “usuários” da Empresa, ao afirmar que passaria a dar ênfase à
produção familiar em detrimento do agronegócio. Assim se esboçou o Macro
Programa Nº 6, a ser instituído em fins de 2004.
A reação da Abag e associadas não se fez esperar. Através do Ministro
da Agricultura Roberto Rodrigues, fundador e ex-presidente da própria Abag,
o presidente da Empresa e toda a sua equipe foram sumariamente demitidos
em janeiro de 2005. O jornal Folha de São Paulo afirmaria que, depois de
dois anos de divergências nos bastidores:

A intenção agora é priorizar projetos ligados ao agronegócio, em


detrimento da agricultura familiar, segundo a Folha apurou. Cada
vez mais fortalecido no governo, Rodrigues avaliava que a diretoria da
E m b r a p a er a m ui t o p et i s t a e conv e nceu o p r es i d ent e L ui z
Inácio Lula da Silva a deixá-lo indicar nomes de sua confiança .
Foi demitido o presidente da instituição, Clayton Campanhola - um
quadro petista. No seu lugar, assume Silvio Crestana, físico e funcionário
da Embrapa desde 1984.33

A politização interna da Embrapa ocupou espaço na mídia que


denunciava tanto que a “política contamina pesquisas na Embrapa”,34 quanto
as constantes interferências diretas do Ministro da Agricultura ao nomear e
alterar diretrizes da Pesquisa Agropecuária desenvolvida pelo órgão. Visando
superar o mal-estar político gerado por tal conjuntura, novo Diretor-
presidente seria nomeado para a Empresa: o físico Silvio Crestana que,
numa demonstração de “boa vontade”, passou a reunir-se, desde 2007,
com os Secretários do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).

www.embrapa.br / imprensa /noticias/2006/novembro/foldernoticia.2006-11-03.7341198208/noticia.2006-11-


09.2979729959, acessado em 01/05/2012.
32
http://www.embrapa.br/imprensa/noticias/2007/setembro-1/1a-semana/grupos-damha-e-parmalat-estabelecem-
parceria-com-a-embrapa, acesso em 01/05/2012.
33
Folha de São Paulo, 21/01/2005: p. 7, grifos no original.
34
O Globo, 17/03/2005: p. 9.

27
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Comentários finais

Por certo, toda modernização traz consigo a marca da desigualdade


técnica e regional. Como exemplo, cito o crescimento da tratorização rural
no Brasil na década de 1970, que foi da ordem de 6.500%, apesar de 52%
dos tratores concentrarem-se em apenas 2,6% dos estabelecimentos rurais,
todos com mais de 100 hectares.35 A intervenção do Estado junto a certos
setores produtivos foi o canal pelo qual fluíram as condições da
internacionalização da agricultura brasileira, orientada para atender aos
interesses do grande capital. A própria oferta de crédito, altamente seletiva,
era concentradora e especializadora, não produzindo respostas adequadas
à pequena produção, conquanto se ampliasse para culturas exportáveis
como as da soja, café, cana, algodão e trigo, marginalizando os pequenos
produtores voltados para o mercado interno. A partir dos anos 1980 a
Pesquisa Agropecuária ajustaria sucessivamente seu “modelo” face às
repercussões da crise econômica de inícios da década, somente
recuperando-se a partir do apoio de agências internacionais e da
privatização de alguns de seus órgãos – públicos – aprofundando ainda
mais a participação do capital privado nas várias etapas da geração e
transferência de Tecnologia. Daí decorreu que a validação da Tecnologia
deixou de ser feita com a participação dos produtores em seus
estabelecimentos, eximindo pesquisadores e extensionistas de conhecer seu
público-alvo, afastando-os do trabalho de campo. As prioridades da Pesquisa
passaram a ser definidas em encontros de especialistas, segmentando
brutalmente Trabalho Intelectual e Trabalho Manual e condenando este
último a condições de mobilização política bastante complicadas.
A relação entre “Burocracia”, Tecnologia e Agricultura no Brasil não
apenas facilitou a penetração do capitalismo no campo, como o fez sem a
necessidade de reformas agrárias de fato redistributivistas. Daí podermos
falar das políticas de pesquisa agropecuária como instrumentos de uma
“antirreforma agrária”. Ao assim proceder ratificava-se a subalternidade do
trabalhador rural, “boquiaberto” diante de um Saber sofisticado, cujos
instrumentos de viabilidade acentuavam seu suposto atraso e consagravam
as hierarquias sociais vigentes no campo, em nome de uma agricultura
dita moderna.
Por fim cabe ressaltar que a modernização tecnológica foi, em si
mesma, um poderoso instrumento de concentração fundiária, pois a
propriedade da terra era a virtual condição para se obter créditos
subsidiados. Durante as décadas de 1970-80 as expulsões violentas e a
minifundização sob intervenção estatal priorizaram a modernização das
grandes propriedades/agroempresas, reforçando a monetarização da força
de trabalho e o encolhimento da pequena produção, reproduzindo as
desigualdades que julgavam combater, sobretudo aquelas entre produtores
e regiões de perfis distintos.

35
R. C. AGUIAR. Idem, op. cit., p. 52.

28
SONIA REGINA DE MENDONÇA

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em 10/06/2012).
www.embrapa.br/imprensa/noticias/2005/setembro/foldernoticia.2005-09-

30
SONIA REGINA DE MENDONÇA

26.8798480371/ notícia.2005-09-29.2173002635 (capturado em 01/05/2012).


www.embrapa.br/imprensa/noticias/2006/novembro/foldernoticia.2006-11-
03.7341198208/noticia.2006-11-09.2979729959 (acessado em 01/05/2012).

31
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

32
O BANCO MUNDIAL E A REFORMA AGRÁRIA
ASSISTIDA PELO MERCADO: AGENDA POLÍTICA,
INSTRUMENTOS E RESULTADOS (1990-2013)
1
João Márcio Mendes Pereira

Este artigo analisa a “reforma agrária assistida pelo mercado” (RAAM),


concebida e impulsionada pelo Banco Mundial (BM) em diversos países
do mundo nos anos 1990 e 2000. O trabalho aborda a agenda política na
qual a RAAM se inseriu, os instrumentos de ação dessa agenda e da própria
RAAM e os resultados a que sua implementação chegou nos três países
latino-americanos que mais se destacaram nessa matéria ¯ Colômbia, Brasil
e Guatemala. O tema foi objeto de debates e embates políticos intensos
travados a nível internacional em torno da sua experimentação. Tomá-lo
como objeto de investigação põe em evidência muitos dos argumentos e
tomadas de posição que nos últimos anos cercaram o tema da reforma
agrária, dentro e fora do Brasil.
De início, o artigo esboça os contornos gerais do processo de
ampliação e reciclagem do programa político neoliberal operado pelo BM
em meados da década de 1990, do qual a RAAM fez parte. A seguir, discute
as razões que levaram a instituição a reconstruir sua política agrária após o
fim da guerra fria. Na seqüência, resume em que consiste a agenda agrária
vigente do BM. Depois, analisa os pressupostos teóricos e a racionalidade
política de um componente específico dessa agenda: a RAAM. A seguir,
avalia o desempenho desse modelo nos três países latino-americanos que
mais se destacaram na sua implementação. Por fim, uma breve conclusão.

Reciclagem e extensão do neoliberalismo como programa político

No início dos anos 1980, com os governos Thatcher e Reagan, o


ambiente político mundial sofreu uma guinada liberal-neoconservadora
aguda, expressa, entre outras dimensões, na pressão que seria exercida
pelo eixo anglo-americano pela liberalização das economias nacionais.
No caso da América Latina, essa pressão seria reforçada após a eclosão da
crise da dívida externa em 1982. Era o ponto culminante de um processo
de endividamento, sobretudo com bancos privados americanos, praticado
com a conivência do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do BM. A

1
Doutor em História pela UFF, professor adjunto de História da América Contemporânea da UFRRJ, professor do
Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em
Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe da UNESP. E-mail: joao_marcio1917@yahoo.com.br.

33
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

dívida rapidamente se converteu em instrumento para disciplinar em série


as políticas econômicas dos países devedores, conforme o credo neoliberal
emergente.
A expressão “ajustamento estrutural” se tornou lugar comum nos anos
seguintes na maioria dos países da América Latina, da África e em parte da
Ásia. O escopo e a abrangência das condicionalidades exigidas pelo BM se
ampliaram gradativamente. Entre 1982 e 1985, o objetivo dos programas
de ajuste consistia na estabilização macroeconômica de curto prazo, a
partir da contenção do consumo interno, do arrocho salarial, do corte de
gastos sociais e da redução do investimento público. Depois de 1985, a
privatização do setor produtivo estatal entrou na agenda, e logo na
seqüência foi a vez da liberalização financeira.
Em 1989, as principais forças que impulsionavam a liberalização
realizaram em Washington uma reunião de avaliação de resultados.
Registrou-se entre eles o acordo amplo sobre as reformas de política
econômica em curso na América Latina, assim como a necessidade de
acelerar a sua execução dentro e fora da região. O decálogo de prescrições
ficou conhecido como “Consenso de Washington”. 2 Erguido sobre os
escombros do muro de Berlim, tal decálogo expressava a convergência
entre o mainstream do pensamento econômico, o governo republicano dos
EUA e os interesses financeiros simbolizados por Wall Street.3
Na América Latina, mais do que em qualquer outra região, rapidamente
a nova plataforma política se internalizou, na medida em que grande parte
das principais forças políticas latino-americanas, de praticamente todos os
matizes ideológicos e partidos, alinhou-se à idéia de que só havia então
um único objetivo a perseguir: a construção de uma “economia de mercado
globalizada”. E tal objetivo, por sua vez, só poderia ser alcançado por um
único caminho: a destruição da soberania nacional em matéria de política
econômica e o aniquilamento de todo e qualquer “custo” social e trabalhista
que onerasse a rentabilidade do capital. Nos principais países da região,
novas coalizões de poder comprometidas com o programa político
neoliberal passaram a ganhar, em série, eleições presidenciais. No mesmo
período, a negociação com os credores internacionais chegou ao fim e as
portas do sistema financeiro internacional, fechadas desde 1982, abriram-
se novamente, mas agora pela via da globalização financeira. Por outro
lado, os planos de integração econômica subordinada da região à economia
americana caminhavam a passos acelerados, a começar pelo Tratado Norte-
Americano de Livre Comércio (NAFTA), iniciado em janeiro de 1994. Tudo
parecia corroborar o discurso da estandartização do mundo e do “fim da
história”.

2
Cf. WILLIAMSON, John. “What Washington means by policy reform”, in. ___ (ed.) Latin American Adjustment: How
Much Has Happened. Washington, DC: IIE, pp. 5-20, 1990.
3
GUILHOT, Nicolas. The Democracy Makers: Human Rights and the Politics of Global Order. New York: Columbia
University Press, 2005, p. 197.

34
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

Contudo, o impacto político provocado pela insurreição neozapatista


em janeiro de 1994 e, sobretudo, a crise financeira no final do mesmo ano
arranharam a confiança do establishment capitalista. Até aquele momento,
o México havia sido a economia estrela das instituições gêmeas de Bretton
Woods (FMI e BM) e da banca privada internacional. Ao mesmo tempo,
em vários países, os efeitos socialmente regressivos das políticas em curso
começaram a se avolumar e tensões políticas e sociais ganharam visibilidade.
Alguns governos da região passaram a sofrer uma queda rápida e acentuada
de popularidade e as críticas ao neoliberalismo ganharam mais projeção.
Por outro lado, os países que haviam adotado as receitas dominantes
padeciam de baixo crescimento, quando não de estagnação ou recessão,
enquanto os que trilhavam rotas capitalistas alternativas, como os países
do sudeste da Ásia, ostentavam taxas elevadas de crescimento industrial e
estabilidade dos indicadores macroeconômicos % até a crise financeira no
final de 1997 e 1998 varrer também o “milagre asiático”.4 De todo modo,
entre 1995 e 1997, alguns atores de ponta da ordem internacional passaram
seriamente a reavaliar não o mérito, mas o escopo e a forma de
implementação da agenda neoliberal.
Parte da rede de poder global dos Estados Unidos, 5 o BM, em
consonância com outros organismos multilaterais e think tanks
internacionais, passou a advogar a realização de um “segundo estágio” de
reformas estruturais, a fim de consolidar os cânones macroeconômicos
impostos no estágio anterior, manter a orientação econômica ao exterior,
corrigir eventuais desvios de rota e aprofundar os processos de liberalização
e privatização em curso, estendendo-o, inclusive, para novas áreas
estratégicas.
Para legitimar essa reciclagem e extensão do programa neoliberal, o
BM adotou o discurso da mudança, passando a defender uma agenda de
reformas que fosse “além” do Consenso de Washington.6 Quatro consignas
foram estabelecidas e repetidas como a ponta da nova agenda: a
“complementariedade entre Estado e mercado”, o abandono da idéia de
Estado “mínimo” em favor de um Estado “eficaz”, a centralidade das
“instituições” e o “combate à pobreza”.7 Elaborada entre os anos de 1995
a 1998, tal reciclagem estabeleceu como prioridade a implementação de
três ações estratégicas para a América Latina e o Caribe.8

1
Cf. WADE, Robert e VENEROSO, Frank. “The Asian crisis: the high debt model versus the Wall Street-Treasury-
IMF complex”, New Left Review, 228, March-April, pp. 3-23, 1998.
2
Cf. PEREIRA, João Márcio Mendes. O Banco Mundial como ator político, intelectual e financeiro (1944-2008). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010.
1
Cf. BURKI, Shahid J. e PERRY, Guillermo. Más allá del Consenso de Washington: la hora de la reforma institucional.
Washington, DC: World Bank, 1998.
2
BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, DC: 1997a.
3
Cf. BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, DC: 1997a; ___. ¿Qué significa para el Banco
Mundial la reforma del Estado? Washington, DC: 1996a; BURKI, Shahid J. e PERRY, Guillermo. Más allá del Consenso de
Washington: la hora de la reforma institucional. Washington, DC: World Bank, 1998; ___. The Long March: a Reform Agenda
for Latin America and the Caribbean in the Next Decade. Washington, DC: World Bank, 1997.

35
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

A primeira era a “reforma do Estado”, entendida, em linhas gerais,


como a combinação de onze medidas: a) blindagem (insulation) das
agências estatais responsáveis pela condução da política econômica con-
tra “pressões particularistas” decorrentes da atuação parlamentar, da luta
popular ou mesmo de demandas de frações dominadas das classes
dominantes (p.ex., setores industriais ligados ao mercado interno); b)
ofensiva contra direitos dos trabalhadores do setor público; c) redução e
reforma gerencial de todo funcionalismo público, por meio da adoção de
novas tecnologias e formas de controle e concorrência do processo de
trabalho já utilizadas no setor privado; d) implementação acelerada da
descentralização administrativa (na prática, muito mais uma
desconcentração seletiva de funções do Executivo federal); e) expansão
arranjos “público-privados” na definição e na gestão de políticas públicas,
outorgando maior poder a grupos empresariais e fundações privadas no
manejo direto da administração pública; f) extensão da aplicação do
princípio da “recuperação de custos”, isto é, da cobrança de taxas aos
“consumidores” pela prestação de serviços públicos essenciais; g)
reorganização do sistema escolar e do poder judiciário, mediante
descentralização administrativa, adoção de padrões de remuneração por
produtividade e de formas de concorrência para captação de recursos
públicos e privados; h) conclusão do ciclo de privatizações de empresas e
bancos públicos; i) reestruturação da seguridade social, aumentando o
tempo de contribuição para a aposentadoria e achatando o valor recebido;
j) aperfeiçoamento do instrumental jurídico voltado à segurança dos direitos
de propriedade; l) criação de marcos institucionais que garantissem a
segurança e a alta rentabilidade dos fluxos de capital financeiro.
A segunda ação estratégica era o “combate à pobreza”. Contra a noção
de direitos universais de cidadania, a agenda prescrita pelo BM consistia
na criação de programas e projetos de alívio paliativo e focalizado da
pobreza, preferencialmente onde as tensões sociais pudessem alimentar a
oposição política ou de algum modo fugir do controle político e repressivo
do Estado. Para tal, o BM passou a estimular o redesenho da política social
na direção de um novo tipo de filantropia, baseada na mobilização e
articulação de empresas, organizações não-governamentais (ONGs), esferas
subnacionais de governo e associações locais ou comunitárias. Termos como
sociedade civil, participação, voluntariado, capital social, descentralização
e empoderamento foram criados ou reformulados e difundidos para legitimar
a neoliberalização das políticas sociais. O imediatismo e a urgência do
“combate à pobreza” deram o tom da nova questão social, entendida como
administração eficiente de recursos escassos. Recomendou-se explicitamente
a realização de um trabalho ideológico intenso no âmbito da sociedade
civil para “dar aos pobres condições para que se tornem advogados mais
efetivos dos seus próprios interesses”.9 ONGs e associações voluntárias

1
BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, DC: 1997a, p. 63.

36
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

cumpririam um papel fundamental nessa direção, com o propósito de


legitimar a redução da democracia na política econômica pelo aumento
da participação em esferas institucionais seguramente limitadas.
A terceira ação estratégica consistia em fazer avançar a liberalização
dos mercados de trabalho, terra e crédito – até então considerados pouco
ou nada atingidos pela “primeira geração” de reformas –, por meio de
mudanças na legislação vigente e no aparelho de Estado.
Para esse segundo estágio, não apenas o conteúdo, mas a forma de
execução das reformas assumiu importância central, uma vez que, na
avaliação do BM, salvo no caso das ações para o “aliviamento da pobreza”,
a natureza da matéria em disputa tornava o processo necessariamente mais
lento e complexo, com resultados perceptíveis apenas a médio e longo
prazos e sujeito a retrocessos. Prevendo resistência de segmentos
organizados (sobretudo da administração pública e do magistério) com
relativo poder de vocalização, o BM sugeria diversas medidas específicas
para dividi-los e cooptá-los. 10 Porém, a principal diretriz consistia na
construção prévia de um apoio político interno mais amplo às reformas.
Para isso, além de criarem espaços para o “diálogo” e a “concertação” de
interesses, os operadores locais deveriam dosar de maneira adequada a
velocidade e o seqüenciamento tático de execução das reformas, a fim de
ajustá-las às “especificidades nacionais”.
Para amarrar ainda mais os governos da região à execução desse
receituário, o BM, além de chancelar as políticas do FMI e as decisões da
Organização Mundial do Comércio (OMC), propôs a realização de acordos
internacionais pró-liberalização. Num período de ascensão da crítica ao
neoliberalismo, esse tipo de instrumento serviria para elevar os custos
políticos a serem enfrentados por governos que decidissem – ou fossem
levados a – trilhar rotas soberanas e alternativas de desenvolvimento.

A retomada da política agrária pelo Banco Mundial

Um dos itens das reformas de “segunda geração” era a liberalização


dos mercados de terra. Com efeito, ao longo dos anos 1990, o BM retomou
e atualizou a sua agenda agrária, posta de lado durante a década anterior
em função da prioridade dada aos programas de ajustamento
macroeconômico e à renegociação da dívida externa dos países latino-
americanos. Com esse novo movimento, o BM pretendia adequá-la à
neoliberalização em curso.
Nesse âmbito, a ação do BM se concentrou em dois eixos
complementares.11 Por um lado, viabilizar a mercantilização total do acesso

10
Cf. BURKI, Shahid J. e PERRY, Guillermo. Más allá del Consenso de Washington: la hora de la reforma institucional.
Washington, DC: World Bank, 1998.
11
Cf. BANCO MUNDIAL. Llegando a los pobres de las zonas rurales. Estrategia de desarrollo rural para América Latina y el
Caribe. Washington, DC: julio, 2002; ___. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, DC: 2002a; ___. Rural
Development: From Vision to Action – A Sector Strategy. Washington, DC: 1997.

37
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

à terra rural por meio de mudanças institucionais e legais, a fim de elevar


a produtividade da terra, favorecer o livre fluxo de força de trabalho no
campo, atrair capital privado para a economia rural e potencializar a
integração subordinada de parcelas do campesinato pobre aos processos
produtivos comandados por empresas agroindustriais. Por outro lado,
promover a implantação de um conjunto de programas focalizados voltados
ao aliviamento da pobreza rural, especialmente em países ou regiões onde
as tensões no campo pudessem alimentar a oposição política à agenda
dominante.
A partir da segunda metade dos anos noventa, os empréstimos do
BM em matéria agrária aumentaram sensivelmente.12 Além do crédito, o
BM publicou diversos relatórios que almejam estabelecer uma base teórica
supostamente universal para a formulação de políticas agrárias,13 articulou
o apoio político e financeiro de agências bilaterais e outros organismos
internacionais à sua agenda rural14 e também promoveu em diversos países
(no Brasil, na Guatemala e na Colômbia, p.ex.) seminários e oficinas para
grupos selecionados de pesquisadores, lideranças sindicais, quadros de
governo e diretores de ONGs, com o objetivo de pautar a definição e a
gestão da política agrária dos Estados nacionais.
O que levou o BM a assumir uma posição de liderança, frente às
demais organizações internacionais, na elaboração e difusão de uma agenda
de políticas agrárias ao longo da década de 1990? E por que o Banco
passou a enfatizar a necessidade de desconcentração da propriedade da
terra, num contexto em que o tema “reforma agrária” parecia coisa do
passado? Como mostram diversos documentos, o BM procurou responder
a um cenário específico de oportunidades e necessidades.
Em primeiro lugar, a oportunidade aberta pelo fim da guerra fria de
tratar de maneira supostamente “desideologizada” os problemas associados
à concentração fundiária.15 Segundo essa formulação, diferentemente dos
anos 1960 ou 1970, quando a disputa pela realização de reformas agrárias
estava associado a algum ideal “revolucionário”, a derrocada do bloco
soviético teria inaugurado uma nova fase, na qual essas questões poderiam
ser tratadas de modo “pragmático” e “inovador” tanto por agências
multilaterais como por governos nacionais. Ou seja, o impacto ideológico
da derrocada dos regimes socialistas teria desarticulado a ligação entre a
bandeira da reforma agrária e referências abrangentes e incômodas, de tal
maneira que uma “nova era de políticas de reforma agrária” estaria se

12
Cf. SUÁREZ, Sofia M. Política de tierras y desarrollo rural del BIRD. Heidelberg: FIAN Internacional, 2005.
13
Cf. BANCO MUNDIAL. Colombia: Land Policy in Transition. Washington, DC: Report nº 27942-CO, 2004; ___.
Land Policies for Growth and Poverty Reduction. Washington, DC: 2003; DE FERRANTI, David et al. Beyond the City: the Rural
Contribution to Development. Washington, DC: World Bank, 2005.
14
Cf. BANCO MUNDIAL. Implementing Reaching the Rural Poor. A Progress Report on Rural Strategy Implementation for
the Word Bank Board of Executive Directors. Washington, DC: May 6, 2004a.
15
DEININGER, Klaus e BINSWANGER, Hans. “The evolution of the World Bank’s land policy: principles,
experience and future challenges”, The World Bank Research Observer, vol. 14 (2), 1999, p. 248.

38
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

iniciando.16 Caberia ao BM, então, aproveitar essa oportunidade, tratando


de maneira “técnica” as tensões sociais no meio rural provocadas ou
agravadas pela liberalização econômica.
O próprio processo de liberalização parecia criar novas oportunidades
para uma ação mais proeminente do BM no meio rural. De acordo com os
seus economistas, a combinação de estabilidade macroeconômica, abertura
comercial, desregulamentação das economias domésticas e, de maneira
geral, o desmonte de políticas nacional-desenvolvimentistas (protecionismo,
crédito subsidiado, isenções fiscais, etc.) estariam eliminando o uso da
propriedade da terra como reserva de valor. Nesse novo ambiente econômico
– “aberto” e “orientado para fora” –, seria possível romper com a experiência
passada e implementar uma reforma agrária que não distorcesse preços,
nem criasse regulações que impedissem a livre transação mercantil de terras.
Enfim, uma reforma agrária “menos prejudicial ao funcionamento dos
mercados”.17
Em segundo lugar, havia a necessidade de estimular a criação de
mecanismos capazes de prevenir ou dirimir rapidamente conflitos agrários,
cuja escalada carrega um potencial disruptivo que, na avaliação do BM,
precisa ser neutralizado.18 Em um importante relatório setorial sobre o tema,
o BM deu atenção especial à construção de mecanismos voltados para
evitar ou reduzir o impacto das disputas sobre a posse e a propriedade da
terra rural, mostrando não apenas que muitos dos embates políticos mais
importantes vividos por diversas sociedades tiveram raízes em lutas por
terra (p.ex., Guatemala, Colômbia, El Salvador), como também que a
resolução de conflitos agrários foi fundamental para viabilizar os acordos
de paz que puseram fim a longas guerras civis (p.ex., Moçambique, Etiópia,
Camboja, Nicarágua). O relatório recomendou que os governos dos Estados
clientes evitassem o acúmulo de conflitos de “baixa intensidade”, pois isso
não apenas poderia comprometer a acumulação de capital pelo sucessivo
desinvestimento provocado pela “sensação de insegurança”, como também
a escalada potencial de tensões poderia levar à quebra de legitimidade da
ordem política vigente.19
Em terceiro lugar, o BM, por sua própria inserção política, intelectual
e financeira, foi compelido a estabelecer os termos legítimos de como lidar
com a pobreza rural nos países periféricos, agravada pela implementação
dos programas de ajustamento estrutural postos em prática desde o início
dos anos 1980.20 Nos anos 1990, um conjunto de organismos internacionais
16
DE JANVRY, Alain e SADOULET, Elisabeth. Access to Land and Land Policy Reforms. Texto preparado para o projeto de
pesquisa Distribuição de Terra, Reforma Agrária e Crescimento Econômico do Institute for Development Economics
Research (WIDER/ONU), p. 21-22.
17
DEININGER, Klaus e BINSWANGER, Hans. Op., cit., p. 267.
18
BINSWANGER, Hans e DEININGER, Klaus. “South African land policy: the legacy of history and current
options”. In: VAN ZYL, Johan, KIRSTEN, Johann e BINSWANGER, Hans (eds) Policies, Markets and Mechanisms for
Agricultural Land Reform in South Africa. Washington, DC: Draft Manuscript, 1995, p. 48.
19
BANCO MUNDIAL. Land Policies for Growth and Poverty Reduction. Washington, DC: 2003, p. 157-164.
20
Cf. SAPRIN. Las políticas de ajuste estructural en las raices de la crisis económica y la pobreza: una evaluación participativa multinacional
del ajuste estructural. Washington, DC: abril, 2002.

39
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

passou a enfatizar o “combate à pobreza” como questão social central,


inclusive mudando do enfoque centrado da transferência de renda para
outro, centrado na geração de renda e na mudança de posição na esfera
produtiva. O BM acompanhou e influiu decisivamente nesse movimiento,21
passando a reconhecer a necessidade de criação de mecanismos de acesso
à terra como forma de reduzir a “vulnerabilidade” dos “pobres rurais” e
aumentar suas “oportunidades”. Assim, a distribuição de “ativos” (terra,
por exemplo) – e a consequente inserção mercantil dos indivíduos – passou
a ser defendida como um instrumento de “aliviamento da pobreza” mais
barato, eficiente e adecuado a políticas pró-mercado.
Em quarto lugar, o BM também foi compelido pelos seus membros
mais poderosos a atuar na linha de frente da transição das sociedades do
antigo bloco soviético ao capitalismo neoliberal. Como revelam diversos
documentos, 22 a descoletivização e a desestatização da matriz de
propriedade da terra ocuparam lugar central na estratégia empregada pelo
BM para aqueles países ao longo dos anos 1990, inclusive figurando como
condicionalidades em empréstimos de “ajustamento estrutural” concedidos
em conjunto com o FMI.
Por fim, o BM foi compelido a melhorar a “performance” dos projetos
ligados ao desenvolvimento rural, depois do fracasso – reconhecido pelo
próprio BM23 – da grande maioria das iniciativas feitas nessa área entre os
anos 1970 e 1980, normalmente em oposição a propostas de reforma
agrária. De certo modo, tal fracasso desorientou o cerne da formulação do
BM para o setor rural, razão pela qual ele vinha executando desde meados
dos anos 1980 apenas ações pontuais, desarticuladas de qualquer enfoque
mais abrangente, como havia nos anos 1970.24 A construção de um enfoque
mais abrangente seria efetuada com base no neoinstitucionalismo
neoclássico, configurando uma abordagem centrada na promoção de
mercados de terras.

Objetivos, diretrizes e linhas de ação da política agrária do Banco


M un d ia l

Subordinada à promoção da agenda mais ampla de reformas de


“segunda geração”, a política agrária do BM teve como objetivos estimular

21
Cf. BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000-2001. Washington, DC: 2001; ___. World Development
Report. Washington, DC: 1990.
22
Cf. BANCO MUNDIAL. Rural Development: From Vision to Action – A Sector Strategy. Washington, DC: 1997; ___.
Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, DC: 1996.
23
Cf. BANCO MUNDIAL. Rural Development: From Vision to Action – A Sector Strategy. Washington, DC: 1997; ___.
Effective Implementation: Key to Development Impact – Report of the World Bank´s Portfolio Management Task Force.
Washington, DC: 1992.
24
Cf. BINSWANGER, Hans. “Rural development and poverty reduction”. In: VAN ZYL, Johan, KIRSTEN, Johann
e BINSWANGER, Hans (eds) Policies, Markets and Mechanisms for Agricultural Land Reform in South Africa. Washington, DC:
Draft Manuscript, 1995, pp. 88-94.

40
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

relações de arrendamento e de compra e venda de terras, incidindo


particularmente na privatização de terras coletivas, públicas e comunais.
Segundo o BM,25 tudo isso dinamizaria de tal maneira os mercados
fundiários que o livre fluxo de transações comerciais permitiria a substituição
rápida de produtores “menos eficientes” por “mais eficientes”, favorecendo
uma distribuição mais equilibrada da propriedade da terra. Por sua vez,
isso contribuiria para atrair capital privado para a economia rural,
possibilitando a emergência ou o fortalecimento de mercados financeiros
rurais, dada a maior formalização da propriedade.
Para viabilizar tais objetivos, o BM deslanchou duas iniciativas: por
um lado, a promoção de novos arranjos institucionais de gestão fundiária
ou administração de terras; por outro, a implementação de um modelo de
acesso à terra alternativo à reforma agrária.
A primeira iniciativa buscou traduzir a agenda mais ampla de “reforma
do Estado” para o âmbito da gestão fundiária. Aclamada como “novo
paradigma”, a administração de terras consiste na municipalização dos
instrumentos de política agrária e na criação de toda sorte de mecanismos
de gestão “público-privados” locais. Na prática, isto exige mudanças
simultâneas nos âmbitos político-administrativo, jurídico e tributário.26
No plano político-administrativo, o BM advoga a montagem de uma
“estrutura institucional” capaz de: a) garantir a segurança dos direitos de
propriedade e uso da terra, a fim de preservar e estimular o fluxo de capital
privado – doméstico e estrangeiro – para a economia rural; b) formalizar
os mercados fundiários, por meio, sobretudo, de programas de titulação
privada; c) unificar informações relativas à distribuição e à situação legal
dos estabelecimentos rurais; d) prover, de maneira rápida, informações
necessárias às transações no mercado fundiário (preços, qualidade da terra,
oferta e demanda, etc.); e) baixar “custos de transação”, a partir da
informatização e da simplificação burocrática do registro e do cadastro de
terras; f) dirimir ou controlar rapidamente tensões no campo, por meio de
instâncias e órgãos locais, impedindo que o acúmulo de conflitos de “baixa
intensidade” se amplie e possa provocar efeitos politicamente disruptivos.
Em tal estrutura, as funções de formulação, decisão e coordenação ficariam
sob estrito controle federal, mas sua execução seria descentralizada e
articulada em arranjos “público-privados” entre agências estatais,
associações voluntárias, ONGs e “setor privado” em geral.
No âmbito jurídico, o BM preconiza a revisão imediata da legislação
agrária vigente, especialmente naqueles países que experimentaram
processos de reforma agrária, uma vez que tal quadro legal, ao impedir ou
dificultar o arrendamento e a compra/venda de terras, obstaculizaria o
25
Cf. BANCO MUNDIAL. Colombia: Land Policy in Transition. Washington, DC: Report nº 27942-CO, 2004; ___.
Land policies for growth and poverty reduction. Washington, DC: 2003; ___. Llegando a los pobres de las zonas rurales – Estrategia de
desarrollo rural para América Latina y el Caribe. Washington, DC: julio, 2002; ___. Rural Development: From Vision to Action
– A Sector Strategy. Washington, DC: 1997.
26
Cf. BANCO MUNDIAL. Land Policies for Growth and Poverty Reduction. Washington, DC: 2003.

41
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

funcionamento “eficiente” do mercado fundiário. O chamado “setor


reformado” (por reformas agrárias do passado) seria o primeiro território
cujas terras deveriam ser transacionadas em mercados formais de
arrendamento e compra/venda.
No âmbito tributário, o BM defende a municipalização da tributação
sobre a terra rural, com o objetivo de financiar a montagem de um aparato
local de administração de terras, aumentar as finanças locais – e, com isso,
contribuir para o movimento mais amplo de descentralização do Estado –
e aumentar a produtividade agrícola. Por outro lado, embora insista que
propostas de tributação progressiva têm pouca ou nenhuma viabilidade
política,27 faz questão de ressaltar que elas podem configurar uma espécie
de “expropriação indireta”, o que, na sua visão, não seria recomendável.28
As mudanças nos três âmbitos acima mencionados conformariam
um novo aparato institucional capaz, segundo os documentos do BM, de
expandir e acelerar as relações de arrendamento e compra/venda de terras
rurais.
A segunda grande iniciativa posta em prática pelo BM foi a reforma
agrária assistida pelo mercado, objeto da discussão daqui em diante.

A “reforma agrária assistida pelo mercado”: pressupostos teóricos


e racionalidade política

A proposta de “reforma agrária assistida pelo mercado” (market-as-


sisted land reform) foi elaborada com o objetivo de substituir a reforma
agrária redistributiva, baseada no instrumento da desapropriação de
propriedades rurais que não cumprem a sua função social (definida em
lei), por relações de compra e venda de terras. Posto em prática sob diferentes
formatos, teve início em 1994 na Colômbia e, em três anos, já operava na
África do Sul, no Brasil e na Guatemala. Uma década depois da sua estréia,
países tão distintos como Honduras, México, Maláui, El Salvador e Filipinas
já punham em prática experiências de algum modo a ela associadas. Em
poucos anos, uma onda de políticas de acesso à terra de novo tipo havia se
estabelecido internacionalmente.
Para legitimá-la, o BM realizou uma dupla operação. De um lado,
criticou radicalmente o que ele mesmo denominou de reforma agrária
“conduzida pelo Estado” (state-led land reform), baseada no instrumento
da desapropriação. De outro, trabalhou para que a RAAM fosse aceita política
e conceitualmente como uma nova modalidade de reforma agrária
redistributiva, depurada de todos os supostos “defeitos” das experiências

27
Cf. DEININGER, Klaus e FEDER, Gershon. Instituciones y política de tierras: mesajes fundamentales del Informe de la Investigación
sobre política. Pachuca: texto apresentado no Taller regional sobre asuntos de tierras en Latinoamérica y el Caribe, 2002,
p. 34.
28
BANCO MUNDIAL. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, DC: 2005, p. 104.

42
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

do passado e coerente com os imperativos do livre mercado. Com esse


duplo movimento, o BM ao mesmo tempo continuou a reconhecer a
necessidade da reforma agrária para desconcentrar a propriedade da terra
em sociedades altamente desiguais, mas passou a negar a atualidade da
ação desapropriacionista e redistributiva do Estado. Dessa maneira, a RAAM
foi entronizada como o modelo de ação fundiária mais adequado aos países
periféricos marcados por altos índices de concentração da propriedade da
terra, pobreza rural e tensões sociais no campo, em parte agudizados pelas
próprias políticas neoliberais patrocinadas pelo BM.
O pressuposto da RAAM é a falência histórica do que os economistas
do BM denominaram de reforma agrária “conduzida pelo Estado”, modelo
“desapropriacionista” ou “tradicional” de reforma agrária. Ou seja, a RAAM
foi criada para substituir algo que teria deixado de ser viável na atual fase
do capitalismo, porque: a) é politicamente conflituoso e as condições para
a sua execução não são replicáveis em condições democráticas “normais”,
uma vez que ela contém uma dimensão confiscatória (quando a indenização
aos proprietários inexiste ou é fixada abaixo dos preços de mercado) con-
tra a qual, inevitavelmente, insurgem-se os grandes proprietários de terra;
b) é insustentável financeiramente, quando compensa os antigos
proprietários a preços de mercado, que são distorcidos por políticas
econômicas e setoriais que elevam o preço da terra acima da rentabilidade
gerada pela atividade agrícola; c) é orientado para “substituir os mercados”,
e não para dinamizá-los, resultando num complexo de restrições legais
que teriam solapado o funcionamento dos mercados de arrendamento e
de compra e venda de terras, dificultado o acesso à terra por potenciais
demandantes mais eficientes e alimentado burocracias centrais
encapsuladas em busca de sua auto-reprodução e, frequentemente,
corruptas; d) por ser baseado na desapropriação, carrega um componente
coercitivo que enseja contestações judiciais que não apenas elevam a
indenização dos antigos proprietários acima dos preços praticados no
mercado, mas também retardam o processo de assentamento e reforma,
prejudicando os potenciais beneficiários; e) em muitos casos constitui uma
doação do Estado, quando os beneficiários não pagam pela terra recebida;
f) é pautado pela lógica do conflito, uma vez que só são desapropriadas
propriedades rurais objeto de ocupações de terra ou tensões sociais; g)
quando isto não ocorre, funciona como um modelo dirigido pela oferta,
cabendo ao Estado selecionar a terra ou os beneficiários independentemente
da demanda real; historicamente, esse processo de seleção não foi
comandado por critérios técnicos ou de necessidade, mas sim por
ingerências políticas, o que gerou ineficiência econômica, baixa
competitividade e não necessariamente focalizou a parcela mais pobre do
campesinato; h) não resolveu o problema da falta de acesso à terra para
um amplo contingente de trabalhadores rurais, situação que estaria na
origem de ocupações de terra, dos conflitos agrários e da violência rural; i)
estabelece a aquisição da terra sem um planejamento prévio das atividades

43
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

produtivas a serem realizadas posteriormente; j) é um modelo centralizado,


estatista e burocrático, que desestimula a participação social, a transparência
e o “empoderamento” dos beneficiários, e não cria as condições adequadas
para as necessárias sinergias entre os setores público e privado; também
não permite a fluidez dos mercados e das informações necessária à
orientação dos agentes econômicos, nem contempla a heterogeneidade
sócio-econômica e cultural do universo rural; l) de modo geral, restringiu-
se tão-somente à distribuição de terra, dando pouca ênfase ao
desenvolvimento produtivo dos assentados ou do setor reformado; m) não
oferece “opções de saída” para os produtores agrícolas ineficientes, seja
porque sua implementação foi acompanhada por medidas restritivas ao
funcionamento dos mercados de arrendamento e compra e venda, seja
porque não incorporou a questão do trabalho não-agrícola; n) é
indissociável do modelo nacional-desenvolvimentista, que penaliza os
pequenos agricultores e o setor agrícola, protege segmentos
economicamente ineficientes e não responde aos imperativos da
liberalização comercial; o) não reduziu ou eliminou a pobreza rural, nem
promoveu o desenvolvimento rural.
A RAAM é, portanto, uma construção inteiramente baseada na crítica
e na desqualificação de outro tipo de ação fundiária, considerada inviável
e anacrônica no capitalismo contemporâneo. Segundo os economistas do
BM, a principal diferença entre ambos reside na sua natureza: enquanto o
modelo “tradicional” é visto como “coercitivo” e “discricionário”, posto
que baseado na desapropriação, o modelo de mercado é exaltado como
“voluntário” e “negociado”.29
Na prática, a RAAM nada mais é do que uma mera relação de compra
e venda de terras entre agentes privados financiada pelo Estado, que fornece
um subsídio variável para investimentos em infraestrutura socioprodutiva
e contratação de serviços privados de assistência técnica. Quanto menor
for o preço pago pela terra (empréstimo), maior será a quantia a fundo
perdido disponível para investimento, e vice-versa. Os vendedores são pagos
previamente em dinheiro a preço de mercado, enquanto os compradores
assumem integralmente (ou na sua maior parte) os custos da aquisição da
terra e os custos de transação. Os compradores podem pleitear o acesso ao
financiamento individualmente e/ou via associações comunitárias,
dependendo do formato dos programas.
De acordo com os economistas do BM, a RAAM seria superior à
chamada reforma agrária “conduzida pelo Estado” porque: a) custa menos,
uma vez que a terra é adquirida por barganha mercantil entre compradores
e vendedores voluntários, sobre a qual não cabem disputas judiciais; b)
viabiliza o acesso à terra por meio de uma operação de mercado entre
agentes privados, pela qual o agente financeiro é ressarcido pelo
empréstimo concedido; c) tem caráter voluntário, descentralizado e “dirigido
1
BURKI, Shahid J. e PERRY, Guillermo. The Long March: A Reform Agenda for Latin America and the Caribbean in the
Next Decade. Washington, DC: World Bank, 1997, p. 95.

44
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

pela demanda”, o que favorece a participação e a autonomia dos


beneficiários, estimula ações criativas para a superação de dificuldades e
responde melhor às necessidades locais; d) é viável politicamente, pois
transações mercantis voluntárias não penalizam os proprietários de terra;
e) estimula a cooperação, na medida em que a aquisição de terras ocorre
através de associações comunitárias; f) incentiva o desenvolvimento
produtivo dos camponeses, porque pressupõe o planejamento das
atividades antes da aquisição da terra, fornece recursos a fundo perdido
para tal fim e estimula o associativismo; g) estimula a criação e/ou
dinamização dos mercados de terra, requisito básico para a melhoria da
eficiência econômica; h) contribui para a formalização dos direitos de
propriedade, na medida em que, por um lado, só transaciona imóveis
legalmente titulados e, por outro, dá origem a novos segmentos de
proprietários; i) estimula o desenvolvimento dos mercados financeiros
rurais, na medida em que os novos proprietários, com títulos seguros,
passam a transacionar nos mercados de terra e a demandar crédito; j) oferece
opções de saída para os agricultores menos eficientes, permitindo que outros
(mais eficientes) possam ter acesso à terra; l) permite a realização simultânea
de atividades agrícolas e não-agrícolas, uma vez que são os próprios
agricultores que decidem que tipo de investimento e atividade querem
desenvolver; m) é descentralizado e pouco burocrático, o que lhe acelera
o trâmite administrativo e reduz as condições para a corrupção praticada
pela burocracia pública; o) é coerente com a liberalização das economias
nacionais, que pressupõe a “fluidez” das relações mercantis em todos os
setores; p) vincula-se às reformas de “segunda geração”, direcionadas a
consolidar as políticas de ajustamento por meio de mudanças institucionais.
Para os economistas do BM, a implementação da RAAM pressupõe o
aumento da oferta mercantil de terras, o que, por sua vez, dependeria de
uma série de precondições e ações complementares. Seis delas são
consideradas indispensáveis: a) a constituição de um “campo de jogo
nivelado” (level playing field), i.e., a eliminação de subsídios, isenções fiscais
e tarifas de proteção que privilegiam o segmento de grandes proprietários,
os quais, junto com a inflação, contribuem para elevar o preço da terra
acima da sua rentabilidade agrícola; b) o fim das restrições legais que
impedem o “livre funcionamento” dos mercados de compra/venda e
arrendamento; c) algum tipo de tributação (não necessariamente
progressiva) sobre a terra, a fim de desestimular a sua subutilização e a
especulação fundiária; d) a clareza legal dos direitos de propriedade e uso
da terra, sobretudo por meio de sua formalização e individualização
(titulação privada); e) a criação ou a melhoria dos sistemas de informação
de mercado, a fim de orientar os agentes econômicos sobre preços e
características dos imóveis; f) a redução dos custos de transação, por meio
de medidas de simplificação administrativa e jurídica. Seguindo-se todos
esses passos, estaria aberta a oportunidade histórica para implementar uma
reforma agrária “amistosa com o mercado”.
Articulado à realização das reformas de “segunda geração”, esse
conjunto de ações criaria um novo ambiente econômico – “aberto” e
45
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

“orientado para fora” –, no qual diminuiriam as “distorções” que elevam o


preço da terra acima da rentabilidade agrícola e restringem a sua oferta
mercantil.
Tal como exposta, esta versão da RAAM jamais se materializou. Sem
dúvida, há uma distância entre as propostas do BM e o que os governos
podem executar, condicionada pela estrutura econômica, pela correlação
de forças políticas interna e externa e por contingências históricas. Mas,
neste caso específico, deve-se notar o caráter altamente idealizado da
proposta o BM, baseada em pelo menos dois pressupostos equivocados: a
crença de que os agentes sociais orientam suas ações por razões “puramente
econômicas” e a crença de que, nos países de capitalismo dependente, a
especulação fundiária é conjuntural, produto de “distorções políticas” e
“falhas de mercado”, e não estrutural. Assim, acreditou-se que haveria um
aumento substancial da oferta mercantil de terras como resposta imediata
à convergência entre queda relativa da inflação, abertura comercial e
redução de subsídios e isenções fiscais a grandes proprietários “ineficientes”.
Não se levou devidamente em conta o que a propriedade da terra rural
significa em termos de ganhos financeiros e vantagens econômicas de todo
tipo, nem o seu peso na configuração das relações de poder entre classes e
grupos sociais, sobretudo em sociedades altamente desiguais.
Ao longo da segunda metade dos anos 1990, a versão original foi
dando lugar a outra, restrita ao tema do aliviamento da pobreza e das
políticas agrárias, no bojo das quais a RAAM seria apenas mais uma opção,
e não a ação principal.30 Mesmo com esse “rebaixamento”, a ação política
e intelectual do BM não cessou de insistir em cinco aspectos cruciais: a) a
centralidade da liberalização dos mercados de compra/venda e
arrendamento como forma de distribuição de terras dos produtores menos
eficientes para os mais eficientes; b) a crítica sistemática à reforma agrária
“desapropriacionista”, considerada inviável, indesejável e anacrônica; c) a
equivalência da RAAM à reforma agrária redistributiva, como se fossem
sinônimas; d) a ênfase na necessidade de avanço e aprofundamento das
reformas estruturais de “segunda geração”; e) a centralidade absoluta do
conceito de compradores e vendedores voluntários/interessados (willing
sellers/willing buyers), que dá à RAAM a característica ineludível de mera
transação patrimonial.
A forma de implementação dos programas orientados pelo modelo
do Banco variou segundo as especificidades nacionais (base institucional-
legal, correlação de forças, momento político, etc.), discutidas amplamente
em outro espaço.31 Contudo, vale destacar que em nenhum caso se adotou
a tributação progressiva nem a titulação sistemática; tampouco foi criado
um aparato descentralizado de informações de mercado e registro de terras.

1
Cf. BURKI, Shahid J. e PERRY, Guillermo. The Long March: A Reform Agenda for Latin America and the Caribbean
in the Next Decade. Washington, DC: World Bank, 1997.
2
Cf. PEREIRA, João Márcio Mendes. A política de reforma agrária de mercado do Banco Mundial: fundamentos, objetivos,
contradições e perspectivas. São Paulo: Hucitec, 2010a.

46
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

Ou seja, a implementação dos mecanismos de apoio considerados


necessários para o aumento da oferta de terras, a segurança institucional
dos direitos de propriedade e, consequentemente, a clareza legal dos bens
a serem transacionados no mercado, ficaram, basicamente, no nível das
“recomendações”. Por fim, também em nenhum país a RAAM foi inserida
numa estratégia “ampla e efetiva” de redução da pobreza rural.

Resultados da RAAM

Com base em diversas pesquisas realizadas sobre os casos do Brasil,


da Colômbia e da Guatemala,32 pode-se afirmar que o desempenho dos
programas associados à RAAM contradiz suas supostas vantagens e as
expectativas inicialmente atribuídas a ela pelos seus proponentes e
operadores locais, uma vez que: a) os preços pagos pela terra não foram
tão baratos como havia se pensado, apesar do pagamento à vista, e a má
qualidade das terras adquiridas em parcela significativa dos casos só vem
a ressaltar esse fato, de modo que é correto afirmar que os programas
premiaram proprietários que, por meio deles, venderam imóveis
abandonados, falidos e mal localizados; b) em nenhum dos três países foi
ofertada no mercado uma quantidade substancial de terras por parte de
grandes proprietários endividados, apesar de períodos de queda relativa
do preço da terra, de maneira que o perfil predominante dos vendedores
parece ser de médios e até pequenos produtores arruinados pela abertura
comercial e pelas políticas neoliberais; c) há evidências de que a execução
dos programas provocou o aumento do preço da terra em muitas localidades,
ainda que tal efeito não tenha sido homogêneo nem constante no tempo;
d) majoritariamente, os projetos produtivos são dominados pela agricultura
de subsistência, e não por uma agricultura comercial de alta rentabilidade;
e) nos casos considerados positivos pelo Banco, houve a reprodução da
dependência à monocultura e ao modelo tecnológico tradicional, inviável
economicamente para os agricultores pobres e ecologicamente
insustentável; f) a quantia concedida a fundo perdido se revelou insuficiente
para alavancar a produção agrícola, razão pela qual os agricultores
permanecem dependentes de uma política pública substantiva de crédito
rural; g) os mercados formais de crédito privado permaneceram inacessíveis
aos que ingressaram nos programas orientados para RAAM; h) ocorreu

69
Cf. GAROZ, Byron et al. Balance de la aplicación de la política agraria del Banco Mundial en Guatemala (1996-2005).
Guatemala: CONGCOOP, octubre, 2005; MONDRAGÓN, Hector. “Colombia: o mercado de tierras o reforma
agraria”. In: BARROS, Flávia et al. (orgs.) Os impactos negativos da política de reforma agrária de mercado do Banco Mundial. Brasília:
Rede Brasil/MST/Via Campesina/FIAN/Environmental Defense/CPT, pp. 137-68, 2003; SUHNER, Stephan.
“Colombian countryside between privileges of Latifundistas, modernizing authoritarianism and peasant repression”.
In: GUIMIRE, K. (ed.) Civil Society and the Market Question: Dynamics of Rural Development and Popular Mobilization. New York:
Palgrave Macmillan/UNRISD, pp. 68-99, 2005; PEREIRA, João Márcio Mendes. A política de reforma agrária de mercado
do Banco Mundial: fundamentos, objetivos, contradições e perspectivas. São Paulo: Hucitec, 2010.

47
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

enorme déficit de participação social em diversos – em alguns casos, em


todos – componentes e fases dos programas implementados; i) os mutuários
tiveram poder desigual na negociação com os proprietários de terra, fato
que, por si só, demonstra que a formulação da RAAM não leva em conta as
relações realmente existentes de exploração econômica, dominação política
e prestígio social inscritas no monopólio da propriedade da terra em países
altamente desiguais; j) ficou evidenciado que são os agentes do Estado que
efetivamente protagonizam todo o processo de compra e venda de terras, e
não “compradores e vendedores voluntários e racionais”, como pressupõe
a RAAM; l) não ocorreu nas associações comunitárias processo algum de
“auto-seleção” dos mutuários, pois, de diferentes maneiras, houve influência
ou tutela de forças externas, como agentes governamentais, proprietários,
políticos locais, ONGs, etc.) na prática, a elaboração de projetos produtivos
viáveis não se deu antes da aquisição da terra, como estabelece a RAAM,
de modo que não serviu como precondição para as transações imobiliárias;
n) quando existiu, a assistência técnica foi precária e irregular, dificultando
sobremaneira o desempenho produtivo das famílias financiadas; o) não
houve transparência na execução dos programas nem prestação de contas
dos seus resultados à sociedade, o que realça ainda mais a total falta de
controle social e participação efetiva dos trabalhadores sem terra; p) houve
inúmeras denúncias de corrupção e favorecimento ilegal a grandes e médios
proprietários; q) em nenhum caso foram oferecidas condições para os
camponeses construírem e gerirem suas próprias agroindústrias; r) tais
programas operaram de maneira seletiva e pontual, freqüentemente para
aliviar tensões sociais no campo ou atender aos interesses dos proprietários
ou de políticos locais, sem qualquer articulação com estratégias de
desenvolvimento rural e de redução da pobreza; s) em nenhum país o
“setor privado” se dispôs a financiar a compra de terras, ou qualquer outro
componente dos programas, de tal maneira que todo o ônus recaiu sobre o
Estado; t) em maior ou menor grau, era significativo contingente de
trabalhadores endividados.
Além disso, como já foi mencionado, não foram implementadas as
ações de apoio à RAAM necessárias, segundo os economistas do BM, ao
incremento da oferta mercantil de terras e à diminuição dos “custos de
transação”, como a tributação sobre a propriedade rural, a titulação privada
e a modernização dos sistemas de registro e cadastro de terras.
Igualmente, em lugar algum ocorreu o tão reclamado “campo de
jogo nivelado”, como crêem os economistas neoclássicos. Em vez da
eliminação dos “privilégios” concedidos pelo Estado a grandes proprietários
de terra e produtores rurais que “distorceriam” os mercados, houve
mudanças mais ou menos significativas na articulação entre Estado, frações
do empresariado rural e capital financeiro, impulsionadas em parte pelas
oportunidades abertas pelas políticas de liberalização econômica, em parte
pelas estratégias de negócio das grandes corporações agroindustriais. Nessas
novas condições, o monopólio de classe sobre a terra rural nem de longe

48
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

foi questionado – ao contrário.


Por fim, em nenhum país os programas foram inseridos numa
estratégia ampla de redução da pobreza rural e das desigualdades sociais.
Na prática, foram programas mais ou menos pontuais, com orçamentos
minguados, executados sem qualquer conexão com políticas públicas de
caráter estrutural.
Tais resultados demonstram que a teoria da RAAM não se sustenta.
Os seus pressupostos básicos não se materializaram nos programas
implementados e suas supostas vantagens não se concretizaram.
É possível concluir, então, que os programas orientados pela RAAM
não contribuíram para democratizar a estrutura agrária, nem era esse o seu
objetivo, pois foram criados para tão-somente aliviar de maneira paliativa
e focalizada os efeitos sociais negativos provocados ou agravados pelas
políticas neoliberais. Além disso, não tiveram condições de minimamente
atender à “demanda” por terra existente, porque eram desprovidos da
capacidade de ganhar escala social devido ao pagamento em dinheiro a
preços de mercado. Aliás, pela mesma razão, eram caros, o que os condenou
a serem programas completamente incapazes de fazer frente à magnitude
do problema agrário “realmente existente”. Seguiram o objetivo de esvaziar
a pressão social pró-reforma agrária, oferecendo uma forma de acesso à
terra que concorria com as ocupações organizadas por movimentos sociais.
Por fim, em todos os três casos, a implementação de tais programas requereu
a introdução de mudanças no aparato estatal, sempre com o mesmo sentido:
deslegitimar o exercício do poder redistributivo do Estado.
Por outro lado, no plano político, a implementação da RAAM de fato
competiu diretamente com os programas oficiais de “reforma agrária” em
curso no Brasil e na Colômbia, já precariamente executados, sobretudo
nesta. No caso guatemalteco, a RAAM se converteu na única política pública
de acesso à terra, associada, posteriormente, a um programa de fomento a
relações de arrendamento. Ademais, nos três países, em maior ou menor
grau, houve uma relação direta entre a adesão a tais programas e a repressão
às ocupações de terra organizadas por movimentos sociais rurais.
Entretanto, embora tenham cumprido bem a sua função principal –
sintonizar a política agrária à agenda neoliberal e desviar a luta popular
pela democratização do acesso à terra em sociedades altamente desiguais
–, os programas de RAAM perderam força a nível internacional. Diversos
fatores contribuíram para isso, em especial as suas próprias contradições e
inconsistências internas, as margens de ação permitidas pelo quadro legal
existente, a debilidade do arranjo institucional montado para geri-los, as
mudanças de prioridade dos governos nacionais, a sua incapacidade de
resolver os problemas reais dos trabalhadores sem terra e a oposição que
sofreram de certos movimentos sociais – neste aspecto, a oposição brasileira
e a campanha internacional em torno dela foram decisivas. Economistas
do BM chegaram a criticar o fato de os programas implementados na
Colômbia, no Brasil e na Guatemala terem ficado presos à dinâmica dos

49
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

conflitos sociais e operado sem o propósito de reduzir de fato a pobreza


rural.33 Ou seja, o que antes era alardeado como panacéia em meados dos
anos 1990, uma década depois começou a ser criticado abertamente por
expoentes notórios do próprio BM.
Dos casos aqui examinados, a experiência brasileira foi a mais
abrangente, não apenas porque atravessou praticamente todo o governo
Cardoso (1997-2002), mas também porque foi continuada, adaptada e
ampliada pelos governos Lula (2003-2010) e Dilma (2010-2014), sob o
nome de Programa Nacional de Crédito Fundiário.34

Concl usão

Posta em prática, a RAAM ficou muito aquém das expectativas dos


seus principais proponentes, tanto assim que os pronunciamentos mais
recentes do próprio BM deixaram-na de lado.35 Não há mais a euforia dos
anos noventa, nem a RAAM é alardeada como o modelo de ação fundiária
mais eficaz e barato para reduzir a pobreza rural e aumentar a eficiência
produtiva. Para isso, a capacidade de ação política de movimentos sociais
a nível nacional e a campanha internacional em torno dessa questão liderada
pela Via Campesina foram fundamentais para contestar o modelo de
“reforma agrária” do BM.
Apesar de enfraquecida, a RAAM continua disponível no rol de
programas de alívio da pobreza rural do BM a serem “ofertados” a Estados
“clientes”, e nada impede que esse modelo possa ganhar novo alento a
partir de eventuais mudanças de governo. Por outro lado, mesmo que os
programas inspirados na RAAM sejam aperfeiçoados tecnicamente % e
sempre há alguma margem para isso %, os fins a que servem permanecem
os mesmos. Esse modelo é indissociável da agenda macropolítica do BM,
razão pela qual segue a mesma lógica neoliberal que a orienta.
Para concluir, a política agrária do BM para a América Latina e o
Caribe iniciada nos anos 1990 não pretendeu nem pretende enfrentar as
causas dos processos de pauperização, dominação e exploração que afligem
a maior parte dos trabalhadores rurais e do campesinato, pois essa mesma
política é subordinada a uma estratégia de reestruturação e reorientação

33
DE FERRANTI, David et al. Beyond the City: the Rural Contribution to Development. Washington, DC: World Bank,
2005, p. 183.
34
Cf. PEREIRA, João Márcio Mendes. “Avaliação do projeto Cédula da Terra (1997-2002)”, Estudos Avançados (USP),
v. 26, pp. 111-136, 2012; ___. A política de reforma agrária de mercado do Banco Mundial: fundamentos, objetivos, contradições
e perspectivas. São Paulo: Hucitec, 2010a; ___. “The World Bank’s ‘market-assisted land reform’ as political issue:
evidence from Brazil (1997-2006)”, European Review of Latin American and Caribbean Studies, vol. 82, April, pp. 21-49, 2007;
___ e SAUER, Sérgio. “A reforma agrária assistida pelo mercado do Banco Mundial no Brasil: dimensões políticas,
implantação e resultados”, Sociedade e Estado, v. 26, pp. 587-612, 2011; MEDEIROS, Leonilde Sérvolo de. “Social
movements and the experience of market-led agrarian reform in Brazil”, Third World Quarterly, vol. 28, n. 8 (Special
Issue), pp. 1501-1518, 2007.
35
Cf. BANCO MUNDIAL. Informe sobre el Desarrollo Mundial. Washington, DC: 2008, p. 123.

50
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

do setor agropecuário que reforça o modelo agrário e agrícola dominante,


baseado na concentração e cada vez mais na estrangeirização da
propriedade da terra e comandado por grandes empresas multinacionais
agroindustriais. Além de ser prejudicial à saúde humana e ecologicamente
insustentável, esse modelo desemprega trabalhadores, precariza as relações
de trabalho, reforça a monopolização privada da terra e tem custos
econômicos diretos e indiretos elevados para os cofres públicos.36
Em resposta à deterioração das condições de vida e de trabalho no
meio rural impulsionada pelas políticas neoliberais e à crescente
concentração de poder no sistema agroalimentar mundial, a ação
persistente de diversas organizações sociais, em particular daquelas
organizadas na Via Campesina, tem alimentado o debate internacional sobre
a necessidade da reforma agrária em países do Sul como condição para a
obtenção de um padrão de vida digno e sustentável para o campesinato e
o conjunto dos trabalhadores rurais, os instrumentos para realizá-la e os
múltiplos desafios que ela precisa enfrentar na fase atual do capitalismo.
Nessa ponta, a reforma agrária aparece estreitamente vinculada a um de-
bate mais amplo, ainda que incipiente, sobre os contornos de um modelo
de desenvolvimento social e ambientalmente mais justo e equilibrado. Do
outro lado, na ponta da reação liberal-conservadora, está o BM, buscando
definir os termos legítimos do debate teórico e influenciar a formulação de
políticas para o campo no Sul global.

Fontes e Referências Bibliográficas

BANCO Mundial. Informe sobre el Desarrollo Mundial. Washington, DC: 2008.


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May 6, 2004a.
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___ Llegando a los pobres de las zonas rurales – Estrategia de desarrollo rural para
América Latina y el Caribe. Washington, DC: julio, 2002.
___ Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, DC: 2002a.

36
Cf. WEIS, Tony. The Global Food Economy: the Battle for the Future of Farming. New York: Zed Books, 2007; FRIEDMANN,
Harriet. “Feeding the Empire: the pathologies of globalized agriculture”. In: PANITCH, Leo e LEYS, Colin (eds.)
The Empire Reload. Socialist Register. New York: Monthly Review Press, pp. 124-143, 2004; DELGADO, Guilherme. Do
capital financeiro na agricultura à economia do agronegócio. Porto Alegre: EDUFRGS, 2012.

51
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

___ Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2000-2001. Washington, DC: 2001.


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DC: 1997.
___ Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Washington, DC: 1997a.
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___ ¿Qué significa para el Banco Mundial la reforma del Estado? Washington, DC:
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Bank´s Portfolio Management Task Force. Washington, DC: 1992.
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BINSWANGER, Hans. “Rural development and poverty reduction”. In: VAN ZYL,
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of history and current options”. In: VAN ZYL, Johan, KIRSTEN, Johann e
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DEININGER, Klaus e BINSWANGER, Hans. “The evolution of the World Bank’s
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DEININGER, Klaus e FEDER, Gershon. Instituciones y política de tierras: mesajes
fundamentales del Informe de la Investigación sobre política. Pachuca: texto
apresentado no Taller regional sobre asuntos de tierras en Latinoamérica y el Caribe,
2002.
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agronegócio. Porto Alegre: EDUFRGS, 2012.
DE JANVRY, Alain e SADOULET. Access to Land and Land Policy Reforms. Texto
preparado para o projeto de pesquisa Distribuição de Terra, Reforma Agrária e
Crescimento Econômico do Institute for Development Economics Research (WIDER/
ONU), 2001 [http://www.wider.unu.edu/publications/policy-briefs/en_GB/pb3/].
Acesso em 20.11.2013.
FRIEDMANN, Harriet. “Feeding the Empire: the pathologies of globalized

52
JOÃO MÁRCIO MENDES PEREIRA

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BARROS, Flávia et al. (orgs.) Os impactos negativos da política de reforma agrária de
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pobreza: una evaluación participativa multinacional del ajuste estructural. Washington,
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the Wall Street-Treasury-IMF complex”, New Left Review, 228, March-April, pp. 3-
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WEIS, Tony. The Global Food Economy: the Battle for the Future of Farming. New
York: Zed Books, 2007.

53
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

54
3. TERRAS DE USO COMUM NOS
ERVAIS DO RIO GRANDE DO
S UL
Paulo Afonso Zarth

2. NOTAS METODOLÓGICAS PARA


UM A ES CRITA DA HI S TÓR IA
QUE SE CONSIDERE OS USOS
SOCIAIS DO ESPAÇO: A Buenos
Contestado 1, Hassis, acervo Aires negra de 1776-1810
Fundação Hassis
Maria Verónica Secreto

PARTE II
Terra,
Territorialidade
e Costumes

55
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

56
TERRAS DE USO COMUM NOS ERVAIS DO
RIO GRANDE DO SUL
1
Paulo A. Zarth

Introdução

Este texto é uma contribuição para o estudo da história das terras de


uso comum no Sul do Brasil e está baseado em pesquisas anteriores
publicadas,2 nas quais tratei do tema como parte de estudos mais amplos
relativos à história agrária do Rio Grande do Sul. Estudos recentes3 reafirmam
que práticas de uso coletivo da terra e recursos naturais foram importantes
naquela região de extrativismo de erva-mate nos anos mil e oitocentos
com repercussões sociais até as primeiras décadas do século XX. Por
conseguinte, acredito ser oportuno revisitar o tema de forma específica
neste livro coletivo, ainda que seja inevitável recorrer à documentos e textos
já utilizados anteriormente.
A erva-mate foi um dos mais importantes produtos da economia rio-
grandense no século XIX, atrás apenas da tradicional pecuária, e durante
algumas décadas ocupou o segundo lugar na pauta de exportações da
província. É relevante acrescentar que os tributos relativos a sua produção
eram arrecadados pelos municípios e, por isso, adquiria uma grande
importância nas receitas locais da região produtora. Embora seja de amplo
conhecimento, não custa informar que o consumo da erva-mate tem uma
longa tradição com origem nos povos indígenas, principalmente os Gua-
rani, e foi incorporado na dieta alimentar pelos colonizadores europeus
como bebida estimulante. Os sacerdotes jesuítas no comando dos povoados
missioneiros também se dedicaram ao extrativismo, desenvolveram técnicas
de cultivo e comercializaram o produto nos mercados da bacia do rio da
Prata.4 Após a guerra guaranítica e a desarticulação das Missões no território

1
Doutor em História pelo PPG da Universidade Federal Fluminense. Foi professor visitante CAPES na Universidade
Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: p.zarth@uol.com.br.
2
ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho 1850 - 1920. Ijuí: Unijui editora, 1997; ___. Do arcaico ao moderno.
Ijuí: Unijui editora, 2002. Citarei diretamente as fontes usadas nestas obras.
3
CHRISTILINO, Cristiano Luís. Litígios ao Sul do império. A lei de terras e a consolidação da Coroa. Niterói. Universidade
Federal fluminense. 2010. (Tese de doutorado); GERHARDT, Marcos. História ambiental da erva-mate. Florianópolis.
Universidade Federal de Santa Catarina. 2013. (Tese de doutorado); ECKERT, José Paulo. O povo dos hervaes: entre o
extrativismo e a colonização (Santa Cruz, 1850-1900). São Leopoldo. Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2011.
(Dissertação de Mestrado em História); NASCIMENTO, José Antônio Moraes do. Terra de servidão coletiva no
Alto Uruguai, da Província do Rio Grande do Sul. In: História: debates e tendências. Revista do PPGH da UPF. Vol.9, N.
1 Passo Fundo, editora da UPF, jan. /jun. 2009.
4
GARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado interno y economia colonial: tres siglos de historia de la yerba mate. 2. ed. Rosario: Prohistoria
Ediciones, 2008. A erva-mate consumida foi classificada como Ilex-paraguariensis pelo naturalista francês SAINT-
HILAIRE, Auguste de. Aperçu d’un voyage dans l’intérieur du Brésil. La province cisplatine et les missions dites du Paraguay.
Paris: imprimerie de A. Belin, l823.
57
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

rio-grandense, o extrativismo foi tocado por pequenos agricultores que


penetravam nas florestas, localizavam os ervais e recolhiam o mate.
Garavaglia, no clássico Mercado Interno y Economia colonial: três siglos de
historia de La yerba mate, diria que “la yerba es uma planta silvestre y pocas
veces em la historia moderna del hombre, uma planta salvaje – y que
mantuvo esta condicion durante varios siglos – pudo tejer a su redor uma
historia tan rica y compleja.”5
Ao longo do período tratado aqui a produção esteve basicamente a
cargo de camponeses descendentes de indígenas, europeus e africanos, os
quais se instalaram gradativamente nas áreas anteriormente controladas
pelos povos indígenas. Ao longo do século XIX uma série de acordos de
paz, nitidamente desfavoráveis aos povos indígenas, limitou drasticamente
seus espaços e possibilitou o avanço dos colonizadores. Os camponeses
ervateiros que se dedicavam ao extrativismo e ao mesmo tempo ao cultivo
de roças de subsistência nos arredores, ou no interior dos ervais, utilizaram
os conhecimentos indígenas para colher e preparar a erva-mate. Mas uma
das mais importantes características da produção de erva-mate é o caráter
público das áreas produtoras, reconhecidas como espaços sociais de uso
comum. Existiram paralelamente ervais privados, palco frequente de
conflitos entre camponeses baseados na tradição de livre acesso e
proprietários que advogavam a propriedade privada da terra.
Os documentos analisados revelam que um dos principais temas
debatidos ao longo do século XIX se refere justamente ao confronto entre
concepção pública e privada dos ervais. Tal debate está também inserido
na política de colonização e privatização das terras públicas da região
através da imigração de camponeses europeus. Entre os textos favoráveis à
privatização, encontramos ideias precursoras do clássico argumento que o
uso comum dos recursos naturais seria incompatível com a conservação
ambiental 6. No caso dos ervais, a conservação seria supostamente
incompatível com o uso comum. Dessa forma, questões ambientais somam-
se ao debate sobre a propriedade privada da terra.

Terra de uso comum

Existe uma grande variedade de formas de uso coletivo da terra, em


diferentes espaços e tempos da história brasileira e portuguesa, as quais
constam nas legislação agrárias de ambos os países. 7 Em linhas gerais

5
Juan Carlos Caravaglia. Idem, op. cit., p. 244.
6
HARDIN, Garrett. The Tragedy of the Commons. Science, Vol. 162 13 december 1968 p. 1243-1248. Disponível em http:/
/www.sciencemag.org/content/162/3859/1243.full.pdf. acesso em 28set2011. Para uma crítica a essa visão, ver:
FEENY, David et alii. A tragédia dos comuns: vinte e dois anos depois. In: DIEGUES, Antonio Carlos &
MOREIRA, André de Castro C. (Orgs.) Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: NUPAUB – USP. 2001.
7
Ver o detalhado estudo de CAMPOS, Nazareno José de. Terras de uso comum no Brasil. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011.

58
PAULO AFONSO ZARTH

podemos adotar a ideia de Almeida, para quem terra de uso comum significa
“liberdade ou espaços sociais livres das restrições e exigências impostas
pelos atos de compra e venda, que concretizam a transformação da terra
em mercadoria”.8 Os ervais nativos do Rio Grande do Sul podem ser
enquadrados como uma forma específica de uso comum da terra e
particularmente dos recursos naturais. É uma forma singular de terras de
uso comum, pois não se trata de terra comunal e também não podem ser
enquadradas plenamente como de livre acesso, considerando que os
usuários estavam sujeitos às regras dos regulamentos municipais. Os termos
correntes na documentação são: “servidão pública”, “ervais públicos”,
“colher mate em comum”, “concedidas em comum”, “comunismo”,
“propriedade comum”, “colher livremente”. Por outro lado, embora o foco
das atenções fosse um recurso silvestre, os camponeses também faziam
uso das terras contíguas aos ervais para roças de subsistência.
A lei nº 601 de 18 de Setembro de 1850 reconhece terras de uso
comum de acordo com “a pratica atual”, ou seja, de acordo com o cos-
tume: “Os campos de uso commum dos moradores de huma ou mais
Freguesias, Municípios ou Comarcas serão conservados em toda a extensão
de suas divisas, e continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a pratica
actual, em quanto por Lei não se dispuser o contrario.” Os ervais não são
mencionados especificamente na Lei de Terras como áreas de uso comum
e a partir da regulamentação da Lei, em 1854, foram alvo de processos de
privatização, gerando longas disputas jurídicas e conflitos sociais. Pressões
para privatizar terras de uso coletivo foram constantes em todos os lugares
do país e o caso das áreas de erva-mate é particularmente singular, pois
estavam em jogo a lei imperial, a legislação municipal – através do código
de posturas – e os costumes dos camponeses extrativistas.
O expressivo valor econômico da erva-mate e o elevado número de
camponeses dedicado ao extrativismo levaram as câmaras municipais a
regulamentar a atividade, tomando por base o costume dos extrativistas
em relação ao acesso aos ervais. As regras foram impostas através do código
de posturas municipal, sendo, portanto, um instrumento regulatório de
caráter local. Provavelmente o mais antigo regulamento sobre o extrativismo
da erva-mate foi instituído pela câmara municipal de Cruz Alta em 1835:
“todos os ervais encravados nas serras a câmara os tem considerados
públicos desde sua instalação em 1835, por meio de suas posturas”. Este
regulamento, que serviu de base para outros municípios, de certa forma
institucionalizava as práticas costumeiras dos ervateiros baseada no livre
acesso “não consentindo que os particulares se apossem deles como
propriedade permitindo, porém a todos o fabrico da erva”. Os objetivos
visavam disciplinar a coleta, no sentido da conservação dos ervais; zelar
pela qualidade do produto e controlar a arrecadação dos impostos – “a

81
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Prefácio. In: José Nazareno de Campos. Idem, p. 16.

59
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

principal parte de suas rendas e impostos de 40 reis em arroba que pagam


os exportadores”.9
Estabelecido em 1834, o município ocupava grande parte do planalto
rio-grandense em cujo território os ervais nativos eram abundantes. O
tributo sobre a produção e comercialização da erva-mate representou a
principal renda da câmara municipal por longo tempo e por isso as
autoridades municipais davam especial atenção ao controle e manejo dos
ervais.
Ao que tudo indica, quando os municípios da antiga região
missioneira foram criados as autoridades encontraram o extrativismo de
erva-mate já estabelecido com base em costumes tradicionais, seguindo
em boa medida a tradição indígena. Demersay observou nos anos 1860,
em seu estudo sobre o mate do Paraguay, que os jesuítas desenvolveram
técnicas de cultivo da planta, mas utilizaram o método dos Guarani para
colheita e preparação das folhas. No Brasil, segundo o autor, os métodos
de preparação seriam quase idênticos.10 Deixando de lado o preconceito é
útil a informação do cronista Evaristo Affonso de Castro sobre os ervateiros
do planalto rio-grandense: “o ervateiro, que vive unicamente do fabrico de
erva mate pelo sistema primitivo transmitido pelos guaranis, é um homem
sem nenhuma instrução; na generalidade indolente, cultivando algum milho
e feijão”.11
O uso dos ervais de forma coletiva, ainda que regulamentada pelas
câmaras municipais tem relação com o direito consuetudinário, com os
costumes da população. Qualquer ervateiro, muitos deles descendentes
de indígenas, deveria ter na memória que o extrativismo sempre fora
realizado na forma de acesso livre. O direito baseado no costume aparece
em diversos momentos como argumento dos ervateiros contra os processos
de privatização. O regulamento municipal disciplinou a colheita e
comercialização transformando o costume em norma escrita, mas
acrescentou alguns elementos novos: tributos, autorizações e fiscalização.
As novas regras introduzidas pelos governos municipais nem sempre eram
acatadas, gerando inúmeros conflitos. Os relatos dos governantes locais
queixam-se o tempo todo que ervateiros criaram diversas estratégias para
burlar a fiscalização. O engenheiro Francisco Miranda produziu um raro e
detalhado relatório sobre os ervais do Noroeste do Rio Grande na década
de 1850 e nele queixa-se que sistema de fiscalização seria ineficaz, pois
“para que o emprego de fiscais pudesse ser profícuo seria preciso que o
seu número fosse muito grande”,12 uma opção inviável economicamente.

9
Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da província. 10 de agosto de 1852. AHRS.
10
DEMERSAY, Alfred. Étude économique sur le Mate ou Thé du Paraguay. Paris: Impremerie et librairie d’ agriculture et
d’horticulture de Mme. Ve. Bouchard-Huzard. 1867. P. 15
11
CASTRO, Evaristo Afonso de. Notícia Descriptiva da Região Missioneira. Ijuí: Unijuí, 2009. (reedição da publicação da
Typographia do Commercial. Cruz Alta.1887), p. 228.
12
Relatório do Engenheiro Francisco Nunes de Miranda. Cruz Alta, 4 de Outubro de 1859. Acervo do Arquivo Histórico do
Rio Grande do Sul – AHRS. (Manuscrito).

60
PAULO AFONSO ZARTH

O artigo 41 do código de posturas de Santo Antonio da Palmeira,


copiado do original de Cruz Alta, era claro em relação ao caráter público
dos ervais: “São considerados como públicos todos os ervais deste
município que estiverem descobertos ou possam a se descobrir em terrenos
devolutos, onde se poderá colher erva-mate em comum”.13 Fica evidente
que o caráter público dos ervais estava sob controle da municipalidade e
essa é uma característica particular deste caso de uso comum dos recursos
naturais. O controle implicava ao ervateiro solicitar licença para extração
além de pagar os devidos tributos e submeter-se a fiscalização em relação
as regras do extrativismo.

ART.42 Ninguém poderá colher nem fabricar erva-mate sem ter obtido
licença da câmara que lhe será concedida por intermédio do procurador
e seus fiscais nos distritos onde estiver o erval, a qual terá vigor durante
o ano que foi concedida. Esta licença será fornecida em talões assinados
pelo procurador da câmara. O contraventor incorrerá em multa de 10$000
e pena de oito dias de cadeia.14

O controle do extrativismo por parte das autoridades municipais


sugere um questionamento sobre a condição de terras de uso comum. No
entanto não há duvida de que tais áreas não eram, ainda, terras privatizadas,
transformadas em objeto de compra e venda como se fosse uma mercadoria
que caracteriza a propriedade do mundo capitalista. De qualquer forma o
custo da licença em meados do século XIX era baixo (2$000 rs), equivalente
a uma arroba do produto, em média, e não era um problema significativo,
mas servia como uma forma de cadastro e de controle dos ervateiros em
atividade. Um documento da câmara municipal de Cruz Alta informa que
muitos engenhos de erva-mate também operavam sob licença municipal.
O cidadão Carlos Christiano Rile requereu licença para construir um
engenho num erval de “serventia pública”, a qual foi concedida pela câmara
como “tem feito a muitos outros cidadãos nos demais hervaes”.15
Por outro lado, os camponeses extrativistas estavam submetidos ao
controle econômico dos proprietários de engenho de mate, que finalizavam
o processo de elaboração do produto e o enviavam para o mercado. Era
comum os donos de engenho de mate terem casa comercial através das
quais exploravam os camponeses através de mecanismos de troca. O
engenheiro Miranda observou em 1859 que “a erva figura muitas vezes
nas permutas dos erveiros como meio circulante e eles compram os outros
gêneros de que necessitam a troca de erva que hão de fabricar”.16 Um
cronista descreve o árduo trabalho dos ervateiros e comenta indignado

13
Código de Posturas de Santo Antônio da Palmeira – 1875. (Este código é cópia do Código de Cruz Alta, que
regulamentava estes ervais antes da criação do município da Palmeira) Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
14
Código de Posturas de Santo Antônio da Palmeira 11.875. AHRS.
15
Correspondência da Câmara de Cruz Alta. 16 de março de 1865. AHRS.
16
Francisco Nunes de Miranda. Idem, op. cit.

61
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

que “tudo vai ser miseravelmente sacrificado nas mãos do proprietário do


engenho ou de algum negociante (onde os há bem usuários)”.17

Ervais e roças

Um ponto importante na perspectiva do uso comum dos ervais se


refere a possibilidade dos camponeses utilizarem terras para roças de
subsistência. A formação de pequenas lavouras era estimulada pelas
autoridades nas proximidades dos ervais com a condição que o camponês
observasse as regras de conservação do erval, sujeito a incêndios e destruição
por manejo inadequado. Como forma de estímulo aos ervateiros, o artigo
50 dava preferência de utilização do erval para quem observasse
plenamente o regulamento: “Toda pessoa que tiver e possa conservar limpo
ervais nos matos devolutos tem especial preferência no fabrico da erva-
mate, de conformidade com o disposto nos artigos 42, 43, 44, 45 e seus
parágrafos do presente código.” Considerando que a tradicional agricultura
de coivara era corrente na região, os riscos de incêndios eram frequentes.
Para evitar esse problema, os lavradores deveriam isolar a roça do erval
através de uma área limpa (aceiro), impedindo a propagação do fogo: “É
proibido fazer roças contíguas a ervais, ou em matos onde tenha erva e
queimá-las sem ter feito um aceiro pelo menos de sete metros bem limpos
para impedir incendiar-se o erval. Entende-se por lugar contíguo ao erval,
distante da roça ao menos quinhentos metros”.18
É importante perceber no regulamento que ele revela que o ervateiro
é, sobretudo, um camponês, considerando sua vida estreitamente ligada a
produção de subsistência da família. Castro, mencionado anteriormente,
observou que “depois que os ervateiros concluem a safra de erva, que
comumente é pela entrada do verão, vão então preparar terras para a cultura
de cereais”.19
Existem indícios de assalariamento no extrativismo nos ervais
públicos. Proprietários de engenho de erva-mate contratavam trabalhadores
para a colheita do produto tanto em ervais privados como em públicos.
Eventualmente escravos também foram utilizados. Apesar dessas ressalvas,
o extrativismo foi uma atividade tipicamente camponesa ao longo dos anos
oitocentos.
As experiências de coletividade na formação das roças familiares
podem ser destacadas como um traço importante da cultura camponesa
local. Era comum entre esses camponeses a prática do tradicional mutirão
para o preparo das roças. Um cronista local, escrevendo em 1887 sobre o

17
SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios. Porto Alegre: Typographia da Livraria
Universal, 1909, p. 399.
18
Código de Posturas de Santo Antonio da Palmeira, 1875. AHRS.
19
Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit, p. 229.

62
PAULO AFONSO ZARTH

assunto, afirma que após concluir um puxirão que sempre termina com
uma festa “outro agricultor das circunvizinhanças, logo que pode, também
trata de organizar o seu e assim se vão sucedendo até que finde o tempo de
plantações”.20 Esta forma de trabalho coletivo segundo o autor é de origem
guarani.

Os conflitos pelo controle dos ervais

O regulamento das câmaras municipais não foi suficiente para


assegurar o uso comum dos ervais. Entre os documentos do judiciário da
região produtora de erva-mate é fácil encontrar processos relativos aos
conflitos entre ervateiros defensores do uso comum e os privatistas. De um
lado a legislação municipal e, de outro, a imperial. Em 1862, como um
exemplo entre tantos outros, um grupo de ervateiros faz queixa a câmara
municipal de Cruz Alta denunciando o juiz comissário de estar medindo
irregularmente as terras do erval do Faxinal.

Foi apresentada nesta câmara a petição que a V. Exa. designarão os


moradores do erval do Faxinal representando contra o juiz-comissário
desse município, o capitão Francisco José Alves Monteiro por ter
procedido irregularmente na medição dos campos de Monte Alvão,
incluindo nessa medição esse erval sem respeito as pessoas nela
estabelecidas, e tendo esta câmara em data de 4 do corrente oficiado ao
mesmo juiz pedindo-lhe esclarecimentos, esse nem uma atenção prestou
ao pedido (...) não sendo a primeira irregularidade cometida por esse
juiz...”21

A autoridade estava se amparando na Lei de Terras enquanto os


ervateiros defendiam o uso comum dos ervais, seguindo o costume
estabelecido, regulamentado pela câmara municipal. O conflito entre a
tradição de uso comum e a lei de terras de 1850, pautaram os conflitos daí
em diante. O juiz se negou a responder à câmara pois se julgava num
plano legal superior, a lei do Império. A lei Lei nº 601 de 18 de setembro de
1850 era maior, portanto, que o código de posturas locais, que
regulamentava o extrativismo do mate. O juiz, nesse caso, estava se
utilizando do 1º parágrafo do artigo 5.º da Lei que garantia “cada terra em
posse de cultura ou em campos de criação compreenderá: além do terreno
aproveitado ou do necessário para pastagens dos animais que tiver o
posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver contínuo.”22

17
SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios. Porto Alegre: Typographia da Livraria
Universal, 1909, p. 399.
18
Código de Posturas de Santo Antonio da Palmeira, 1875. AHRS.
19
Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit, p. 229.
20
Idem, p. 230.
21
Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da província. 11 agosto de 1862. AHRS. Cx. 159
22
Lei 601 de 18 de Setembro de 1850..

63
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Em outra contestação de privatização, o mesmo juiz comissário


expressa claramente o conflito entre a legislação imperial e a municipal.
Segundo a autoridade a câmara municipal estava equivocada ao querer
considerar todos os ervais “como servidão pública de seus munícipes” e
por ter criado uma comissão para combater a legitimação de terras com
erva-mate. No seu entendimento, as áreas contíguas aos campos eram
circundadas por erva-mate, mas seriam legítimas e se enquadravam na Lei
de Terras:

é mister que essa porção que se tem de dar seja contígua aos mesmos
terrenos, e nem mesmo pode ser de outra forma, porque então os terrenos
medidos ficaram sem a menor garantia a seus proprietários, visto que
serão invadidos por todos que quiserem, e seus terrenos desrespeitados
dos direitos de proprietários.23

Os reclamantes poderiam ter se apresentado como posseiros na


disputa das terras em questão e reivindicar a legitimação em seus nomes.
No entanto, diante das práticas de uso comum dos ervais, não tomaram a
iniciativa de reivindicá-los como propriedade privada. Por outro lado, a
reclamação dos ervateiros revela a reação contra a autoridade constituída
e contra o poder dos grandes proprietários de terra da região.
Outro conflito pela posse das terras onde se localizava o grande erval
do Campo Novo revela que o problema foi parar na capital do Império. De
acordo com um abaixo-assinado enviado ao Imperador em 1879, os
ervateiros locais se defenderam de um processo de privatizaçã o
argumentando o governo imperial teria lhes concedido o erval para uso
comum:

Nas terras por V.M.I. concedida em comum aos fabricantes de erva-


mate, então se verá os pobres súbditos da suma necessidade de mendigar
o pão para suas famílias no país estranho a pátria que os viu nascer por
que único terreno que na valorosa província de São Pedro do Rio Grande
do Sul foi concedido para habitação do pobre povo empregados no
fabrico da erva-mate, esses mesmos são tomados. 24

Além dos ervais claramente regulamentados pelas câmaras municipais


como áreas de uso comum, uma área de campo nativo próximo aos ervais
também foi alvo de conflito. Em 1877 a câmara de Santo Antônio da Palmeira
entrou em conflito com o juiz comissário Acauã pela posse do referido

23
Ofício do Juiz Comissário de Cruz Alta, Francisco José Alves Monteiro, ao Presidente da Província. 10/05/1865.
AHRGS. Imigração, Terras e Colonização - Correspondências - Terras Públicas. 1865. Maço 43 Caixa 23. Citado por
NASCIMENTO, José A. Derrubando florestas, plantando povoados: A intervenção do poder público no processo de
apropriação da terra no norte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. 2007, p. 55
24
Abaixo-assinado ao imperador D. Pedro II. Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira, 24 de maio de 1879.
AHRS.

64
PAULO AFONSO ZARTH

campestre no distrito de Campo Novo, utilizado pelos ervateiros, com base


no argumento que era “considerado como servidão pública e que fazia
parte do patrimônio desta municipalidade”.25
Christilino analisa várias situações de usurpação de terras ricas em
erva-mate e conclui que apesar dos esforços, a municipalidade de Cruz
Alta “não conseguiu controlar a apropriação e, principalmente, a grilagem
dos ervais.” 26 Uma das estratégias apontadas pelo autor era considerar tais
terras como ocupadas com agricultura e não como áreas de extrativismo
de erva-mate, condição que poderia ser questionada na justiça. Nascimento
chega a conclusão semelhante em suas pesquisas: “a terra de servidão
coletiva perdeu espaço para a terra propriedade particular e individualizada.
A possibilidade de uma terra de uso coletivo não teve êxito.”27
Os camponeses ervateiros contavam eventualmente com apoio de
forças poderosas locais. Muitos proprietários de engenhos e comerciantes
de mate preferiam o sistema tradicional, de uso comum dos ervais, pois o
que interessava era o produto e não a propriedade da terra. É o que se
percebe na lista de assinaturas do mencionado abaixo-assinado enviado
ao Imperador pelos ervateiros de Campo Novo, na qual se encontram nomes
importantes de lideranças locais políticas e econômicas. Por outro lado, as
câmaras municipais defendiam o caráter público, pois arrecadavam tributos
e taxas. Os camponeses ervateiros poderiam receber ainda o apoio de
facções das lideranças locais, em atenção aos laços estabelecidos em
diversos momentos de conflitos armados entre os grupos dominantes.
Definir exatamente um erval público não era uma tarefa simples.
Como se sabe, a erva-mate estava espalhada na maior parte do território
do Sul do Brasil, Noroeste da Argentina e boa parte do Paraguai. As câmaras
municipais os consideraram de servidão pública, mas os documentos oficiais
indicam ao mesmo tempo ervais em propriedades privadas. Uma definição
mais clara sobre o que as autoridades entendiam por um erval consta no
relatório do Engenheiro Miranda, de 1859: “A erva se apresenta em
ceboleiras ou manchas (como vulgarmente se diz) em toda essa extensão,
e onde essas ceboleiras são maiores e mais puras, isto é, onde predomina
quase exclusivamente a árvore do mate torna-se um erval”.28
Além dos ervais propriamente ditos, definidos por Miranda pela
densidade significativa da planta, ela cresce de forma esparsa em diversos
pontos da região. Esta situação dava margem para discussão, pois não estava
claramente descrito qual o grau de densidade ou área que determinaria se
a terra era ou não um erval. Havia, certamente, um consenso sobre os
grandes ervais, mas áreas menores poderiam ser entendidas como terras
de mato com a presença esparsa de erveiras e, dessa forma, apossadas e

25
Correspondências da Câmara Municipal de Santo Antônio da Palmeira – 1877. AHRS.
26
Cristiano Christilino. Idem, op. cit., p. 85.
27
José Nascimento. Idem, op. cit., p. 67.
28
Francisco Nunes de Miranda. Idem, op. cit.

65
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

legitimadas como terras para agricultura. Como se percebe nos documentos


do judiciário e pelas análises dos autores das pesquisas recentes
mencionadas neste texto, o poder dos grupos dominantes é que definia,
em última instância, a apropriação de inúmeros ervais, salvo aqueles já
consolidados como públicos. Christilino cita, entre outros, o caso de um
grande pecuarista proprietário de mais de 60.000 hectares de terras: “os
extensos ervais públicos localizados nos fundos dos campos do ten-cel
Silva Prado e cuja conservação preocupava a Câmara de Cruz Alta, foram
apropriados pelo estancieiro sem nenhuma manifestação do órgão mu-
nicipal”. 29

Conservação dos ervais: o público e o privado

Um dos principais argumentos utilizados contra os ervais públicos


se refere à sua conservação. O extrativismo da erva-mate exige uma série
de cuidados sem os quais o erval pode ser arruinado, deixando de produzir.
Basicamente, a planta exige um descanso de 3 ou 4 anos entre uma poda e
outra. O artigo 44 do código de posturas estabelece que “é proibido colher
erva-mate de brote sem ter decorrido de uma a outra poda quatro anos.” É
fundamental também que a colheita seja na época correta, os regulamentos,
de um modo geral, proíbem a coleta de erva-mate entre setembro e
fevereiro.30 Outras regras condenam misturas com outros tipos de plantas e
regulamentam os cuidados com conservação e qualidade do produto.
Regras, proibições, prisões e multas indicam que as fraudes na produção
de erva-mate deveriam ser frequentes.
Os problemas relativos a qualidade da erva-mate riograndense
aparece nas Memórias Ecônomo Políticas de Antônio José Gonçalves Chaves,
de 1823, nas quais orientava sobre os procedimentos punitivos dos
contraventores. A erva-mate adulterada deveria ser “declarada sem valor e
lançada ao mar”.31 Quarenta anos mais tarde o presidente da província
escreveria em seu relatório sobre a importância da erva-mate para a
economia regional, mas alertava que “o modo, porém, por que se faz a
colheita deste precioso vegetal tende a acabar com os hervaes, ou pelo
menos tornar muito escasso este ramo de produção natural”.32
Os indícios apontam que regulamento deveria controlar apenas os
ervais públicos, pois as autoridades receavam ferir os direitos de propriedade
dos ervais particulares. Um ofício dos vereadores cruzaltenses ao governo
da província de 1850 informa que “nos grandes capões imediatos a serras

29
Cristiano Christilino. Idem, op. cit., p. 219.
30
Código de Posturas de Santo Antonio da Palmeira, 1875. AHRS.
31
CHAVES, Antônio José Gonçalves. Memórias economo-políticas sobre a administração pública do Brasil. Porto Alegre: Cia União
de Seguros Gerais, 1978. (Edição fac-simile da publicação da Tipografia Nacional, Rio de Janeiro, 1823), p. 199.
32
Relatório apresentado pelo presidente da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, Dr. Espiridião Eloy de Barros Pimentel, na 1.a sessão da
11.a legislatura da Assembléia Provincial. Porto Alegre, Typ. do Correio do Sul, 1864, p. 54.

66
PAULO AFONSO ZARTH

há abundância de erva, porém como esta câmara não tenha querido invadir
o direito que nela possam ter os proprietários ou posseiros dos campos, se
tem abstido de tomar medidas a respeito.”33
Os cronistas e viajantes que circularam no século XIX pela região
ervateira do Norte do Rio Grande do Sul são unânimes em criticar os
ervateiros em relação à conservação dos ervais e qualidade da erva-mate
produzida. Hemetério José Velloso da Silveira, que viveu longos anos em
Cruz Alta onde ocupou o cargo de vereador e presidente da Câmara em
meados do século XIX, escreveu de forma desanimadora sobre a
possibilidade de controlar o extrativismo sob o sistema de “comunismo”:

Tendo de organizar o código de posturas estabelecemos penas muito


severas para a colheita e preparação espontânea e até sobre a falsificação
da erva mate. Pouco adiantamos com isso, pois mudando de domicílio,
continuou o comunismo e então já não se guardava o interstício de
quatro anos de uma colheita à outra o que fez definhar e morrer muitas
árvores, tendo sido preciso as câmaras dos novos municípios de Palmeira
e Santo Ângelo, declarar interditos por três ou quatro anos os importantes
ervais de Campo Novo, Nuncorá, Galpões, Santa Rosa e outros, embora
com uma tal medida vissem diminuir o mais importante ramo de sua
receita.34

O autor do livro, vereador em 1868, certamente ajudou na redação


da ata da câmara municipal na qual os edis apontaram a “propriedade
comum” dos ervais como o princípio do problema:

É ao princípio da propriedade comum que nos devemos a destruição de


todos os magníficos hervaes deste município, e por consequencia a
expantosa diminuição deste produto que tende a desaparecer d’ entre
nós, se medidas muito enérgicas não forem tomadas por esta Camara
para abster a sua total destruição, passando os hervaes ao domínio
privado.35

Henrique Schuttel viajando pela região em 1867 observa que a


produção do importante erval do Campo Novo “carece de severas medidas
fiscaes, tanto para conservação de tão produtivo commercio, quanto para
a bondade de sua qualidade”. Observou falhas em diversas etapas da
produção, depreciando o valor do produto diante dos concorrentes
paraguaios36. O agrimensor alemão Maximiliano Beschoren trabalhou na
região nos anos 1870 e escreveu que “os erveiros não observam os períodos

33
Correspondência da Câmara Municipal de Cruz Alta ao governo da província. 1850. AHRS. Cx. 116.
34
José Hemetério Veloso da Silveira. Idem, op. cit., p. 141.
35
Ata da Câmara Municipal de Cruz Alta. 28 de abril de 1868. Citado por Cristiano Christilino. Idem, op. cit., p. 190.
36
SCHUTTEL, Henrique Anbauer. Itinerário da Cruz Alta ao Campo Novo na província do Rio Grande do Sul. Revista
do Instituto Historico, Geographico e Etnographico do Brasil. Tomo XXX, parte2. Rio de Janeiro, B. L. Garnier editor. 1868, p. 391.

67
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

de colheita durante o ano. Isso não accontece só aqui, mas em toda a


região montanhosa onde os ervateiros trabalham em terras devolutas”37
Evaristo Affonso de Castro, cronista já comentado anteriormente, informa
que os ervais de Santo Ângelo estavam estragados por um “sistema bárbaro
e devastador.”38 Nos arquivos do judiciário os processos contra infratores
são comuns. Em 1859 o fiscal da vila de Cruz Alta apreende “2 carijos com
herva-matte feita de ronovas de dois anos”, gerando processo-crime da
câmara municipal de Cruz Alta contra Pedro Ribas e outros no rincão do
Umbú.39
O relatório sobre os ervais do engenheiro Miranda também denuncia
as práticas extrativistas dos ervateiros que levariam a destruição dos ervais:
“tendem a extinguir completamente este gênero de comércio que nesta
Província é quase gênero de primeira necessidade, julgando-o segundo
parece, uma mina inesgotável”. Com base em opinião de “pessoas práticas
do lugar”, o autor aponta que os problemas não seriam resolvidos enquanto
os ervais “forem considerados como terrenos devolutos e assim livremente
deixados à vontade de quantos os procurarem.” A solução com “maior
probabilidade de êxito é o de sua alienação a particulares contanto que
eles sejam distribuídos em pequenos lotes para que seu número roube a
ocasião de monopólio que encareceria esse gênero”. 40 Apesar da
privatização, no entendimento de Miranda, o proprietário deveria submeter-
se as normas estabelecidas pela municipalidade. Por conseguinte, o autor
desconfiava que proprietários privados também não cuidariam dos ervais.
Evaristo Affonso de Castro em favor da privatização escreveu que os
ervais nacionais de Santo Ângelo, outrora devastados estavam se
recuperando: “estão de novo se criando com considerável vantagem, visto
que, presentemente, os ervais são, de modo geral, de propriedade particu-
lar, alguns por direito de posse outros por compra feita ao estado”. O cronista
afirma que os proprietários, “além de zelarem a preciosa árvore ainda
cultivam em grande escala”, citando o exemplo do cidadão Carlos Jung
que teria plantado cerca de 3 mil árvores.41 São raras as referências como
esta sobre plantio de erva-mate nos anos 1800, ao longo do tempo
predominaram largamente os ervais nativos. Se desconsiderarmos as antigas
plantações organizadas pelos padres jesuítas nas Missões, iniciativas
importantes de cultivo aparecem a partir do começo do século XX.
No período republicano, o governo estadual optou por arrendar os
ervais para empresas ervateiras, rompendo com a tradição camponesa de
uso comum. Ainda que o arrendamento não fosse uma privatização das

37
BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de Viagem na Província do Rio Grande do Sul (1875-1887). Porto Alegre: Martins
Livreiro, 1989, p. 24.
38
Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 189.
39
Processo-crime n°1739, maço 44. Cartório do cível e crime. Cruz Alta 1859. Arquivo Público do Rio Grande do Sul
- APRGS
40
Francisco Nunes de Miranda. Idem, op. cit.
41
Evaristo de Afonso Castro. Idem, op. cit., p. 189.

68
PAULO AFONSO ZARTH

terras, as quais continuariam sob domínio estatal, a exploração dos ervais


pelas companhias privatizou ao extrativismo do produto, obrigando os
camponeses a submeterem-se como empregados temporários. O artigo 5°
do novo regulamento é claro: “à excepção do arrendatário é prohibido a
qualquer outro fabricar herva-matte nos hervaes do domínio público,
incorrendo o infractor nas penas do artigo 55 do regulamento de 4 de
julho de 1900”.42 Além de impedidos de acessar livremente os ervais, os
camponeses sob regime dos governos republicanos foram tratados como
‘intrusos’ de terras públicas, produzindo o chamado “problema da intrusão”.
Tal problema tornou-se um assunto recorrente nos relatórios estaduais, os
quais foram analisados exaustivamente em suas consequências para os
camponeses na tese de Marcio Both da Silva.43
No entanto, a privatização do extrativismo nos ervais públicos na
forma de arrendamento não foi a solução para os problemas apontados
por vários cronistas e autoridades. Gerhardt cita várias fontes nas quais
fica evidente que o arrendamento não garantiu a conservação esperada:
“O fiscal do contrato de concessão em Soledade RS informou, em 1909,
que “os hervaes que percorreu, estão estragados pela poda e pelo fogo, e
que tendem a desaparecer os do domínio do Estado”.44 Um exemplo mais
contundente recolhido pelo autor evidencia os estragos produzidos pela
nova forma de exploração:

O fiscal de Passo Fundo/RS, engenheiro Serafim Terra, foi dramático em


sua avaliação: Os hervaes do domínio do Estado, explorados pela empresa
arrendatária Marquez, Vega & Compa., estão estragadissimos, o seu
estado é precário e contristador. Em período relativamente muito curto –
1903 a 1908 – ficaram reduzidos a muito menos da metade. Por toda
parte arvores secas ou cortadas pelo grosso atestam o trabalho vandálico
de destruir sem outra preocupação que o interesse do máximo lucro,
alliado ao minimo tempo.45

Gerhardt, em estudo exemplar sobre a erva-mate nas colônias de


imigrantes, afirma que “os ervais nativos foram conservados e explorados
regularmente em alguns lotes coloniais e foram, em outros, derrubados
com a floresta para abrir espaço para a agricultura”. Na avaliação do autor
“as variações de preço possivelmente influenciaram a opção individual de
cada colono entre manter a erva-mate em seu lote ou aproveitar todo solo
para a agricultura”.46 Portanto, conservar ou não os pequenos ervais privados

42
Relatório das obras públicas apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Antonio Augusto Borges de Medeiros pelo secretário de estado João José Pereira Parobé.
Porto Alegre. Officinas typographicas d A Federação, p. 23.
43
SILVA, Márcio Both da. Babel do Novo Mundo: Povoamento e vida rural na região de matas do Rio Grande do Sul. 1889-
1925. Niterói: UFF; Guarapuava: Unicentro, 2011. Outra pesquisa recente e relevante nesse contexto foi publicada
por MACHADO, Ironita Policarpo. Entre justiça e lucro: Rio Grande do Sul -1890-1930. Passo Fundo: UPF, 2012.
44
GERHARDT, Marcos. Idem, op. cit., p. 121.
45
Idem, p. 122.
46
Idem, p. 169.

69
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

seria uma questão de mercado, transcendendo os limites do debate entre o


público e o privado. A motivação do mercado parece ter influenciado
também as práticas dos tradicionais camponeses nos ervais públicos,
levando alguns grupos a explorá-los predatoriamente para atender a
demanda, burlando a fiscalização. Porém, o maior golpe contra os ervais
nativos e os camponeses ligados ao extrativismo, foi a colonização do
território com milhares de imigrantes que derrubaram a floresta para fazer
suas lavouras. Gerhardt conclui que “com a derrubada da floresta foram
prejudicadas as formas de vida silvestre que dela dependiam, mas também
sofreram prejuízo os próprios caboclos e suas as práticas socioculturais,
que há muito tempo viviam do extrativismo do mate”.47

Concl usão

A singular experiência de extrativismo de erva-mate em terras de


servidão coletiva, de uso comum, associado ao cultivo de roças de
subsistência, foi gradativamente derrotada a partir da Lei de Terras de 1850
e pelas leis estaduais subseqüentes que anularam a força dos regulamentos
municipais, baseados nos costumes. As pressões para privatizar terras
utilizadas na forma de uso comum pelos ervateiros prevaleceram pela força
dos grupos mais poderosos da região através da grilagem ou mesmo de
mecanismo legais, aproveitando a fragilidade dos camponeses diante da
justiça. A nova situação do controle das terras do país a partir do governo
republicano transformou os antigos ervais de “servidão coletiva” em
arrendamentos para empresas ervateiras. Os camponeses ervateiros, por
sua vez, só poderiam entrar nos ervais como assalariados sazonais a serviço
dos empresários.
No final do século XIX a colonização do território com imigrantes de
origem europeia, na forma de pequenas propriedades privadas, impôs
definitivamente o modelo domínio individual e privado da terra. Tal processo
veio acompanhado de um forte discurso ideológico contra as formas
tradicionais de uso da terra praticadas pelos campesinato tradicional. O
extrativismo nos ervais nativos em sua forma tradicional durou em torno
de três séculos. A acusação de depredadores dos recursos naturais – no
caso, a erva-mate silvestre – pode ser entendida como uma forma de expulsar
os camponeses e eliminar antigas práticas coletivas, herdadas dos povos
indígenas, e adequar à produção de acordo com as novas regras. Ou seja,
propriedade privada da terra, livre para compra e venda, inserção num
mercado mais amplo e concorrencial, trabalhadores disponíveis para vender
mão de obra barata. A longa experiência de uso comum dos ervais ficou no
passado.

47
Idem, p. 257.

70
PAULO AFONSO ZARTH

Fontes e Referências Bibliográficas

BESCHOREN, Maximiliano. Impressões de Viagem na Província do Rio Grande do


Sul (1875-1887). Porto Alegre: Martins Livreiro, 1989, p.24. Tradução de Ernestine
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2009. (reedição da publicação da Typographia do Commercial. Cruz Alta.1887)
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2011. (Dissertação de Mestrado em História)
GERHARDT, Marcos. História ambiental da erva-mate. Florianópolis. Universidade
Federal de SantaCatarina. 2013. (Tese de doutorado em História).
MACHADO, Ironita Policarpo. Entre Justiça e Lucro. Rio Grande do Sul: 1890-
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MIRANDA, Francisco Nunes de. Sobre os diferentes ervais, sua extensão, uberdade
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NASCIMENTO, José Antônio Moraes do. Derrubando florestas, plantando
povoados: A intervenção do poder público no processo de apropriação da terra no
norte do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Tese de doutorado apresentada no PPGH
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 2007
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SCHUTTEL, Henrique Anbauer. Itinerário da Cruz Alta ao Campo Novo na província
do Rio Grande do Sul. Revista do Instituto Historico, Geographico e Etnographico
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71
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

SILVA, Márcio Antônio Both da. Babel do Novo Mundo: Povoamento e vida rural
na região de matas do Rio Grande do Sul. 1889-1925. Niterói: UFF; Guarapuava:
Unicentro. 2011
SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios.
Porto Alegre: Typographia da Livraria Universal, 1909. P. 399.
ZARTH, Paulo Afonso. História Agrária do Planalto Gaúcho 1850 - 1920. Ijuí: Editora
da UNIJUI, 1997
ZARTH, Paulo Afonso. Do arcaico ao moderno. Ijuí: Unijui editora, 2002.

72
NOTAS METODOLÓGICAS PARA UMA ESCRITA DA
HISTÓRIA QUE CONSIDERE OS USOS SOCIAIS DO
ESPAÇO. A BUENOS AIRES NEGRA DE 1776-
18101
2
Maria Verónica Secreto

“Todos os mapas são uma abstração do mundo,


elaborada sempre a partir de algum ponto de vista.”
Henri Acselrad e Luis Régis Coli (2008).

Introdução

O presente artigo busca investigar territorialidades negras como


experiências sociais e como possíveis representações cartográficas.
Partimos da ideia de que os mapas produzem a realidade tanto quanto a
representam e, portanto, que são possíveis outras representações que deem
conta de realidades “invisibilizadas” ou escorregadias como a Buenos Aires
negra de final do século XVIII e início do XIX. A ênfase na função dos mapas
e não nas formas abre a possibilidade de outros mapeamentos.
Procuramos reconstruir uma territorialidade negra de Buenos Aires
no período vice-real e nas primeiras décadas da vida independente.
Começamos pela evidência da existência de uma grande percentagem de
negros escravos e livres vivendo em Buenos Aires no período em estudo
(aproximadamente 30% da população era negra) e de sua concentração
em alguns bairros, sobretudo, a partir da independência. 3 O objetivo é
reconstruir uma territorialidade vivenciada, para isto tomamos algumas
práticas da cartografia crítica, como o de cartografia social ou participativa,
adaptando-os a uma realidade pretérita e a uma prática historiográfica. Em
que sentido a “cartografia participativa” pode ajudar a entender os modos
em que as populações negras viviam e significavam o espaço? Numa
cartografia participativa os sujeitos definem usos e significados para seus
territórios e essas informações são inscritas em mapas, não necessariamente
desenhados por eles, embora sim o sejam seus conteúdos. Na elaboração
de uma cartografia social pretérita podemos inscrever as referências
especializadas das “falas negras” nos recenseamentos, processos

1
Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq, modalidade bolsa Pós-doutorado Sênior.
2
Professora do departamento de História da Universidade Federal Fluminense e do PPGH-UFF. E-mail:
veronica.secreto@ig.com.br.
3
GOLBERG, Marta. La población negra y mulata en la ciudad de Buenos Aires. Desarrollo Económico, n° 61, Vol. 16, abril-
junio de l976.

73
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

administrativos, judiciais, na documentação policial, nas solicitações de


permissões para construir, nos despejos, etc. para ir desenhando um
território negro, plausível de ser cartografado. A cartografia proposta é um
“pretexto” para abordar uma história social do espaço e da constituição de
um território negro. O cartografado será um instrumento de visibilização
dos usos sociais negros do espaço urbano.
Os sujeitos de nossa pesquisa não poderão participar da mesma forma
que o fazem as comunidades tradicionais incluídas no projeto “Nova
Cartografia Social da Amazônia” coordenado pelo antropólogo Alfredo
Wagner de Almeida,4 mas participarão na mesma forma que o fazem em
qualquer historiografia social através dos vestígios e indícios deixados em
falas muitas vezes indiretas5. Propomos uma aproximação entre história
social e cartografia social. Em primeiro lugar, para nós historiadores a
construção histórica de nossa disciplina é evidente. A historiografia tem
como pressuposto a reflexão sobre a prática da escrita histórica, na qual a
dimensão temporal é essencial a qualquer análise. Para a cartografia esta
foi uma perspectiva mais ou menos recente vinculada às abordagens de
John Brian Harley e Woodward por um lado e de David de Harvey por
outro.
A geografia crítica trabalha faz algumas décadas com o conceito de
cartografia social definida como uma ferramenta metodológica e conceitual
que permite construir um conhecimento integral de um território utilizando
instrumentos técnicos e vivenciais. Trata-se de uma ferramenta de
participação e planificação. 6 A Cartografia crítica define que os mapas
produzem a realidade tanto quanto a representam: “Pickles repensa o
mapeamento como a produção de espaço, geografia, lugar e território assim
como das identidades políticas mantidas por pessoas que habitam e
constituem esses espaços. Mapas são ativos; eles constroem ativamente o
conhecimento, exercem poder e podem ser poderosos meios para promover
a transformação social.”7
As políticas de mapeamento evidenciam as disputas que os diferentes
agentes sociais têm a respeito do espaço. A disputa cartográfica reflete o
conflito por território. Durante a década de 1990 várias iniciativas buscaram

4
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de; SANTOS Glademir Sales dos (org). Estigmatização e território: mapeamento
situacional dos indígenas em Manaus. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008.
5
As falas negras em primeira pessoa presente em diferentes demandas muitas vezes estão mediatizadas pelo defensor
de pobres. A este respeito ver: REBAGLIATI, Lucas. Caridad y control social en el Buenos Aires virreinal: El caso
de los Defensores de pobres (1776-1809). In: Segundas Jornadas Nacionales de Historia Social. Actas de las Jornadas (CD).
La Falda-Córdoba: Mayo de 2009. Também disponível em: http://www.cehsegreti.com.ar/Actas_II_JNHS.html e
do mesmo autor “La administración de justicia en Buenos Aires: del período virreinal a la sanción de la constitución
nacional (1776-1853)”. In: BAUCHÉ Eduardo Germán; PRADA, Mariela I. X. Teoría general del Derecho Procesal, Tomo
2, Buenos Aires: Ediciones Jurídicas, 2011.
6
CRAMPTON Jeremy W.; KRYGIER John. Uma introdução à cartografia crítica. In: ACSELRAD, Henri (Org.).
Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRRJ, 2008.
7
Ibidem, p. 89

74
MARIA VERÔNICA SECRETO

incluir as populações locais nos processos de produção de mapas,8 e o


resultado foram grafias espaciais em que as comunidades significaram seus
territórios: povos indígenas, quilombolas, extrativistas participaram desses
projetos que buscaram identificar territórios e práticas.
Para Henri Acselrad o que se inaugura a partir da cartografia
participativa é o conceito de mapa como fruto do fluxo intercultural. “Os
novos processos de territorialização são, assim, acompanhados de novas
modalidades de mapeamento que procuram incorporar os “ruídos” da
presença territorial dos povos e comunidades tradicionais”.9
Os mapas estiveram, desde sua origem, vinculados ao Estado e as
questões estratégicas. Na história da cartografia pode ser realizada a seguinte
tipologia de mapas a partir das funções específicas de cada um deles. Os
primeiros mapas encarregados pelos Estados tiveram a ver com penetração
e orientação, identificação das rotas, sinalização de pontos críticos e o
estabelecimento de símbolos que indicassem a existência de riquezas. Uma
segunda vertente da produção de mapas delimitou a territorialidade do
Estado e as propriedades dentro dele. Um terceiro tipo de mapa define as
jurisdições administrativas para organizar e hierarquizar o território
nacional. Um quarto tipo, o mapa de zoneamento, prescreve utilizações
para o território.10
A cartografia histórica, vinculada ao Estado, estabelecia grande
distância entre seus produtores/usuários e o homem comum. O mapa como
representação simbólica do real trabalha com um conjunto de “convenções”
que não são de fácil apreensão. Combina a escrita com o desenho e neste
mecanismo exclui duplamente ao leigo.
Mary Louise Pratt analisou a regra geral dos descobrimentos no
período vitoriano de locais como o lago Tanganika que “requeria que o
interessado se trasladasse à região e perguntasse aos nativos se na região
havia grandes lagos ou outros acidentes geográficos similares, depois do
qual os contratava para que o levassem. Então com o guia e o apoio dos
habitantes do lugar o explorador procedia a descobrir o que aqueles já
conheciam.” 11 Nesta operação descobrimos o mecanismo pelo qual as
“partes em branco do globo” – utilizando uma expressão de Hobsbawm –
foram preenchidas: a seleção dos saberes locais em combinação com a
negação de seus “direitos autorais”.
Na década de 1980, Brian Harley começou a publicar artigos sobre
o que foi denominado de “sua filosofia cartográfica”.12 Os artigos de Harley
8
ACSELRAD, Henri; COLI, Luis Régis. Disputas territoriais e disputas cartográficas. In: ACSELRAD Henri, (Org.).
Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRRJ, 2008, p.14.
9
ACSELRAD, Henri. Cartografías sociales: acercamientos emergentes y nuevos horizontes. http://
www.rightsandresources.org/publication_details.php?publicationID=4773.
10
ACSELRAD, Henri (Org.). Introdução. In: ___. Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRRJ, 2008, p.
9
11
PRATT, Mary Louise. Ojos imperiales. Literatura de viaje y transculturación. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes,
1997, p. 347.
12
HARLEY, Brian. La naturaliza de los mapas. Ensayos sobre historia de la cartografía. México: FCE, 2005, p 21.

75
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

trouxeram a ideia de que os mapas são construtos ideológicos, de


conhecimento e poder. Para Crampton e Krygier estas ideias eram novas na
disciplina, colocando os mapas como documentos sociológicos que deviam
ser analisados e entendidos em seus contextos históricos. David Harvey
explicou que a suposta “neutralidade” escondia os interesses do Estado.13
As críticas teóricas tornaram-se possíveis num clima de ideias em que
Harley dialogava com as propostas de Jaques Derrida e de Michel Fou-
cault. A visão de Harley ganhou força pelo fato de que, ao longo de sua
história, a elaboração de mapas entrou em conflito com conhecimentos
locais marginalizados que não eram científicos, mas que na década de
1990 eram valorizados tanto por algumas abordagens acadêmicas como
pelos movimentos sociais e mediadores.14 A ênfase na função dos mapas e
não nas formas abriu a porta para outras tradições de mapeamento. O
projeto História da Cartografia iniciado por Harley e Woodward em 1987
definiu mapa como a representação gráfica que facilita o entendimento
espacial de objetos, conceitos, condições, processos e eventos próprios
do mundo humano.15 Este alargamento do conceito de mapa se transformou
num marco das novas abordagens cartográficas que incluem as
representações de grupos subalternos sobre o espaço e os territórios.
Em suma fica claro que há várias formas de representação do espaço
que buscam reconhecimento. Nos mapeamentos participativos ou as
cartografias sociais há lugar para técnicas e formas diversas de representação
dos territórios. Nestes casos as comunidades aportam seus saberes e
informações sobre o território a ser representado, sobre suas práticas e
usos dos territórios, os conflitos, os atores, etc.
Atualmente um dos projetos mais ativos e significativos tanto no
sentindo quantitativo, pela magnitude do território e comunidades
envolvidas, como qualitativo pela reflexão gerada e os mapeamentos
realizados, é o projeto “Nova cartografia social da Amazônia”. Diz Alfredo
Wagner de Almeida, seu coordenador, sobre os mapas gerados pelas
comunidades: “No mapa que criaram para sua comunidade, as legendas
identificam os locais onde há conflitos – como “ameaça de morte”, “pressão
de grileiros”, venda ilegal de terra, “fechamento arbitrário de estrada”, en-
tre outros. Mas registram também manifestações culturais, como o bumba-
meu-boi, as festas de santo e os terreiros afro-brasileiros”.16 Para Almeida,

13
Os serviços cartográficos em vários países da América Latina estão subordinados a um organismo de origem e perfil
militar como o Instituto Geográfico Militar na Argentina, Chile, Bolívia; o Instituto Geográfico Nacional no Peru e
o Serviço Geográfico Militar no Uruguai. Ver: QUINTERO, Silvina. El legado de las geografías críticas: la cartografía
como objeto. In: HIERNAUX Daniel; LINDÓN, Alicia. Anthropos. México: Universidad Autónoma Metropolitana,
2006.
14
CRAMPTON Jeremy W.; KRYGIER, John. Uma introdução à geografia crítica. In: ACSELRAD, Henri, (Org.).
Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRRJ, 2008, p. 91.
15
QUINTERO, Silvina. El legado de las geografías críticas: la cartografía como objeto. In: HIERNAUX, Daniel;
LINDÓN, Alicia. Anthropos. México: Universidad Autónoma Metropolitana, 2006, p. 565.
16
ALMEIDA, Alfredo Wagner Breno de. Mapas com vida própria. http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/

76
MARIA VERÔNICA SECRETO

a cartografia social é um recurso que deve auxiliar e dar maior precisão ao


discurso da etnografia e da antropologia, contribuindo para a compreensão
do patrimônio cultural. Os pesquisadores do projeto ensinam como utilizar
o GPS e outros materiais, as comunidades decidem o que será mapeado.17
Do ponto de vista da historiografia vivemos uma aproximação com
as experiências especializadas. Curiosamente esta aproximação não
aconteceu no Brasil via história ambiental que desde a década de 1990
vem ganhando relevância, mas que no país permanece isolada e
estabelecendo pouco diálogo com as outras “historiografias”. Isto se deve
provavelmente a que o boom da história ambiental coincidiu com o
“descrédito” da materialidade nos estudos da cultura das décadas de 1980
e 1990.
Como mencionado a história social em suas várias vertentes vem se
desenvolvendo e incorporando novas perspectivas desde a década de 1960,
embora possamos encontrar algumas contribuições isoladas antes dessa
data. A história que também foi denominada “de baixo para cima”, ou
“história vista de baixo” trabalha com algumas limitações técnicas
específicas. Como diz Hobsbawm, todo tipo de História tem problemas
“técnicos” já que não existe um conjunto de fontes perfeitas a respeito de
qualquer recorte que façamos do passado; mas no caso da história das
pessoas comuns o problema técnico recrudesce na medida em que du-
rante a maior parte do tempo as pessoas comuns foram iletradas e deixaram
poucos vestígios escritos e só alguns indiretos. Quando um historiador faz
história social não a pode fazer no mesmo sentido que o geógrafo faz
cartografia social. A distância temporal que nos separa do passado constitui
a principal diferença. Num dos trechos de maior efeito da introdução de A
formação de classe operário inglesa, Thompson salienta esta distância entre
o historiador e seu objeto de estudo, assim como a importância de estar
atentos aos becos sem saída, aos “perdedores”, às bifurcações. “Estou
tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddista, o tecelão
do ‘obsoleto’ tear manual, o artesão ‘utópico’ e mesmo o iludido seguidor
de Joanna Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da
posteridade. Seus ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua
hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrógrada. Seus ideais
comunitários podiam ser fantasiosos. Suas conspirações insurrecionais
podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesses tempos de aguda
perturbação social, e nós, não”.18
Propomos neste trabalho, a fim de referenciar empiricamente estas
“notas metodológicas” reconstituir o que teria sido uma territorialidade

mapas-com-vida-propria; ver também: Alfredo Wagner Berno de Almeida e Glademir Sales dos Santos (orgs.).
Estigmatização e território: mapeamento situacional dos indígenas em Manaus. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008 e ALMEIDA,
Alfredo Wagner Berno de. Terras de quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais e fundos de pasto: terras
tradicionalmente ocupadas. Manaus: PGSCA-UFAM, 2008.
17
http://www.palmares.gov.br/2012/07/projeto-faz-cartografia-de-comunidades-tradicionais-brasileiras/
18
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária Inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 13.

77
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

negra na Buenos Aires vice-real. Sabemos que os negros escravos estavam


em toda parte, nas ruas vendendo empanadas, vassouras, peixes, pastelitos,
velas. Algumas escravas acompanhavam a suas amas à igreja carregando o
tapete no qual as senhoras se ajoelhavam, direito reservado às mulheres
brancas. Também se encontravam nos interiores das casas em todo tipo de
serviço e alguns andavam pelas ruas, sozinhos ou acompanhados, buscando
contratações para poder entregar as “diárias” a seus senhores. Também
havia escravos em várias tendas de artesãos desenvolvendo oficio de
sapateiros, alfaiates, chapeleiros etc. Nas padarias muitas vezes eram
colocados por seus senhores para serem disciplinados, já que este era um
oficio e um ambiente extremadamente exigente. Podiam ser encontrados
nas irmandades de várias das paróquias da cidade: na de Santo Domingo,
na de Nossa Senhora de Monserrat e na de São Francisco. Na beira do rio,
era habitual ver as escravas lavando roupa ou carregando os fardos na
cabeça. O cabildo também tinha escravos que realizavam variadas tarefas.19
Com territorialidade não nos referimos a essa ocorrência de negros e
escravos na cidade. Entendida assim a territorialidade negra na cidade de
Buenos Aires coincidiria com o próprio território da capital do vice-reino,
já que como mencionamos os escravos estavam em toda parte realizando
todo tipo de serviço. O que entendemos com territorialidade negra é a
ideia de um espaço vivenciado pelos negros livres e escravos, com as
diferenças suscetíveis que pode haver entre ambas as condições e
significados por estas vivências.
Paul Little define territorialidade como “o esforço coletivo de um
grupo social para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela
específica de seu ambiente biofísico, convertendo-a assim em seu ‘território’
ou homeland [...] O fato de que um território surge diretamente das condutas
de territorialidade de um grupo social implica que qualquer território é um
produto histórico de processos sociais e políticos”.20 É neste sentido que
vamos entender e utilizar o conceito de território.
Definir uma territorialidade negra também não é a de estabelecer
lugares da memória, locus de negritude. Como observou Pierre Nora, “El
sentimiento de continuidad se vuelve residual respecto a lugares. Hay
lugares de memoria porque ya no hay ámbitos de memoria [...] Los lugares
de la memoria son antes de todo restos. La forma extrema bajo la cual
subsiste una consciencia conmemorativa en una historia que la solicita
porque la ignora.”21 Se operássemos com a ideia de lugar de memória
bastaria elencar lugares significativos para a história da escravidão no Rio

19
O cabildo era proprietário de vários escravos, alguns vizinhos chegaram a pagar suas dívidas cedendo seus escravos.
A função de pregoeiro era exercida por um escravo. AGN, Cabildo de Buenos Aires. Actas. Tomo 23 Sala 9 27-8-6 fojas:
224vta-225.
20
LITTLE Paul. Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma antropologia da territorialidade. Serie
Antropologia 322, Brasília, 2002.
21
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. Montevideo: Trilce, 2008.

78
MARIA VERÔNICA SECRETO

da Prata. Talvez pelo empenho que gerou em termos de políticas de


“ressignificação” histórica e memória escolheríamos a Torre Monumental,
antes chamada de Torres dos Ingleses22 construída no bairro do Retiro onde
no século XVIII funcionou o Asiento dos Ingleses (mercado de escravos).
Em 1909, quando Argentina estava prestes a cumprir cem anos da Revolução
de Maio a coletividade inglesa obsequiou Buenos Aires com esse
monumento no lugar em que entre 1713 e 1750 à South Sea Company
tinha explorado o exclusivismo comercial do tráfico de escravos. Mas esta
escolha nos coloca novamente o problema dos “lugares da memória”,
problema que se relaciona com a forma que temos de lidar com o passado.
Definir lugares da memória implica cristalizar e hierarquizar determinados
eventos por sobre outros.
Evidentemente pretender fazer uma cartografia social da Buenos Aires
do final do século XVIII e início do XIX reconstruindo os usos negros do
espaço dentro dos limites da cidade não incluirá a participação no sentido
literal, mas sim, como tem feito a história social almejará representar esse
espaço a partir de uma “visão de baixo”. Ao abordar a história da gente
comum, diz Hobsbawm, estamos tentando explorar uma dimensão
desconhecida do passado, mas isto leva a um problema técnico, como já
mencionado. Mas as falas negras não serão as únicas a oferecer-nos
informação sobre o território afro-descente, também os pintores viajantes
e cronistas oferecerão pontos de vista para esta reconstrução.

A modo de exercício

Este trabalho pretende apresentar algumas reflexões teóricas e


metodológicas sobre as espacialidades históricas. Gostaríamos de dedicar
esta última parte a um pequeno exercício em torno da Buenos Aires colo-
nial e sua população negra. Não pretende ser exaustivo, porque trata-se de
uma pesquisa em andamento, mas de traçar algumas pinceladas de “color”
sobre a Buenos Aires colonial.
A cidade de Buenos Aires tem sido abordada de diferentes pontos de
vista. Predominam as abordagens demográficas para o período colonial e
as socioeconômicas para o século XIX. Estes antecedentes serão
fundamentais para compreender uma espacialidade complexa como a que
queremos reconstruir.23
Segundo Johnson, Socolow e Seibert, em 1744 se diferenciam
claramente 4 zonas em Buenos Aires: o centro, a área que rodeava a praça
central na qual estavam os edifícios do governo, as igrejas e o comércio;
os subúrbios, duas zonas ao norte e sul do centro do qual estavam separados
22
Passou a ter o nome de Torre Monumental depois do conflito bélico entre Argentina e Inglaterra pelo território insular
das Malvinas.
23
JOHNSON, Lyman L.; SOCOLOW, Susan; SEIBERT, Sibila. Población y espacio en el Buenos Aires del siglo
XVIII. Desarrollo Económico, Vol. 20, No. 79 (Oct. - Dec., 1980), p. 329-349. JOHNSON, Lyman L.; FRANK, Zephyr.

79
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

por duas valas: a das Catalinas ao norte e a do Alto ao sul. Eram bairros
semiurbanos, ocupados fundamentalmente por artesãos. Por último estava
o setor de quintas, um anel de chácaras e casas de veraneio que rodeavam
a cidade. Esta diferenciação espacial se manteria segundo os autores até o
fim do período colonial.24

La variedad de viviendas también tiende a seguir la misma dicotomía


entre el triángulo central y los barrios más alejados de la ciudad. Hasta
cinco o seis cuadras desde la plaza principal, las casas, exceptuando
aquellas que se encontraban en el bajo del rio, estaban hechas de adobe
y ladrillo. Sobre las márgenes del rio y en las áreas suburbanas aparecía
un tipo de construcción más pobre: casitas con techo de paja. También
se encuentran ranchos y ranchitos, que van prevaleciendo a medida que
uno se va alejando del centro de la ciudad.25

É volumosa a documentação do período colonial existente no Archivo


General de la Nación Argentina em que aparecem a população negra e
escrava de Buenos Aires. As falas dos escravos e dos negros livres aparecem
em processos civis, administrativos, criminais, solicitações, demandas,
testamentos, ações de liberdade, permissões de construção, etc. Estas falas
– muitas vezes mediatizadas – dizem muitas coisas, embora nosso inter-
esse seja registrar quando elas se referem ao uso do espaço. Diferentes
informações podem ser especializadas, mas devemos lembrar que ademais
da espacialização de relações sociais, usos e costumes estamos interessados
em frisar como os espaços eram representados pelos negros livres e escravos
da Buenos Aires de final do século XVIII e início do XIX.
Utilizaremos como base gráfica - sobre a qual projetar as vivências
territorializadas dos negros no período do vice-reino e da primeira metade
do XIX – os mapas realizados pela coroa espanhola com fins administrativos
e pelos governos do período independente. No século XVIII a Espanha
realizou vários mapas de diferentes regiões de seu imenso território através
da criação do Real Corpo de Engenheiros Militares criado em 1711. Embora
quase a totalidade dos empreendimentos cartográficos tivessem fins
estratégicos militares, os engenheiros militares que fizeram os mapas do
Império também contribuíram com o poder civil em levantamentos
cartográficos com fins diversos. Todos os mapas eram acompanhados por
informação de caráter histórica, demográfica e de história natural.26
É comum escutar que os bairros de Monserrat e Concepción eram

Cities and Wealth in the South Atlantic: Buenos Aires and Rio de Janeiro before 1860. Comparative Studies in Society and
History, Vol. 48, No. 3 (Jul., 2006), p. 634-668; GOLBERG, Marta. La población negra y mulata en la ciudad de
Buenos Aires. Desarrollo Económico, n° 61, Vol. 16, abril-junio de l976; GUZMAN, Tomás. El plano de una ciudad
desigual. La distribución especial de la riqueza en la ciudad de Buenos Aires en 1839. Quinto Sol, vol. 16, No 1, enero-
junio de 2012, p. 1-27.
24
JOHNSON, Lyman L.; SOCOLOW, Susan, SEIBERT. Sibila Población y espacio en el Buenos Aires del siglo
XVIII. Desarrollo Económico, Vol. 20, No. 79 (Oct. - Dec., 1980), p. 329-349.
25
JOHNSON, Lyman L.; SOCOLOW, Susan Migden; SEIBERT, Sibila, Op. cit., p. 344.
26
MONCADA MAYA, José Omar. La Cartografía Española en América durante el siglo XVIII: La actuación de los

80
MARIA VERÔNICA SECRETO

bairros negros. Miguel Angel Rosal realizou um levantamento de compras-


vendas de propriedades por parte das Sociedades Africanas para suas sedes
no século XIX e arrolou que das 62 operações somente duas acontecem
em outros bairros que não os dois mencionados. Este é uma primeira
evidencia importante, embora a realidade do século XIX não seja idêntica à
do XVIII. Esta tendência à “afroportenhização” de Monserrat foi registrada
também em outro trabalho do autor em que analisa a compra venda de
propriedades e bens de raiz por parte dos negros, pardos, livres e escravos
de Buenos Aires:

O setor sudeste (em especial Montserrat) vai-se definindo como o que


durante as primeiras décadas de vida independente se chamou o bairro
do tambor, evidentemente preferido pelos afro-portenhos, se bem são
consideráveis os assentamentos no norte e no sul da cidade [...] Na
maioria dos casos analisados, os afro-portenhos envolvidos direta ou
indiretamente nas distintas operações imobiliárias são pessoas de
condição livre, as quais por razões sociais e econômicas tendiam e
localizar-se para a periferia da cidade, em efeito, os imóveis sitos no
centro portenho eram mais caros e estavam habitados pelo patriciado, e
só os afro-portenhos de condição escrava que viviam junto a seus senhores
ocupavam esse setor da urbe.27

Quando em 1836 César Hipólito Bacle realizou um mapa dedicado


ao governador Juan Manuel de Rosas, o centro densamente povoado era
constituído por uns cinco quarteirões para cada lado da Praça da Vitória.
Para além dessa mancha continua, as casas começam a ser menos
frequentes e a cidade abre espaços mais ou menos vazios. Surgem também
os chamados huecos, áreas desocupadas que passam a ter funções sociais
parecidas às praças. A cidade de Buenos Aires no século XVIII e início do
XIX não formava um continuum, apresentava descontinuidades de todo
tipo. Valas aqui e ali que dividiam a cidade e desvalorizavam os terrenos
próximos delas.
Os huecos, terrenos baldios, foram se transformando ou formalizando
em praças. A cidade tinha vários baldios, nos quais se reuniam leiteiros,
paravam carretas antes de chegar aos mercados ou na Praça Maior. Entre
os huecos estava o da negra livre “Doña” Engracia (hoje Praça Liberdade)
que entre o mato e os tunais construiu seu mocambo, talvez um boliche.28
Os huecos e praças foram os lugares por excelência de sociabilização negra.
Os tambos, seus bailes eram realizados ali.
Tentar reconstruir uma territorialidade negra não é fácil, em primeiro
lugar porque toda a cartografia dos séculos XVIII e XIX a ignora. Nesta
aparecerá como único espaço que remete à presença negra em Buenos
Ingenieros Militares. Anais do I Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica. Paraty, 10 a 13 de maio de 2011.
27
ROSAL, Miguel Ángel. Negros y pardos propietarios de bienes raíces y de esclavos en el Buenos Aires de fines del
período hispánico. Anuario de Estudios Americanos, Vol 58, No 2, p. 505.
28
Boliche: estabelecimento em que se vendem bebidas, e também se joga baralho. Semelhante a uma taverna ou pulperia
mas de qualidade inferior.

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TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Aires os lugares do desembarque de escravos, primeiro ao sudoeste do


forte e da Praça Maior onde estava a Companhia Real e posteriormente ao
nordeste dessa praça, no Retiro.
Em 1794 foi realizado um recenseamento por bairros com a finalidade
de fazer a escolha de alcaides. Um bairro é um distrito administrativo que
está sob a jurisdição de um alcaide de bairro. Por exemplo, o bairro 13 que
foi recenseado em 1794 compreendia 12 quarteirões, 48 ruas e 154 casas.
O recenseamento foi realizado com a seguinte indicação:

Matrícula de los vecinos y abitantes del barrio nº 13 ditada a consequencia


del estabelecimiento de alcalde del barrio ordenada por el excelentíssimo
senhor Virrey Don Nicolau de Arredondo Theniente General de los Reales
Exercitos en el presente año de 1794 con arreglo a la instrucción de 2 de
enero del mismo por el alcalde de este barrio sr. Thomas Ysua Fecino y
del comercio de esta capital de Buenos Aires.29

Neste bairro, formado por 12 quarteirões, havia 1.983 habitantes


dos quais 411 eram escravos e 95 negros e pardos livres. Também havia 21
índios. 30 Nele se encontrava a Praza Nova, uma das praças muito
movimentada da capital vice-real.
A venda ambulante, como em todas as cidades hispânicas, era muito
frequente e nesta atividade se empregavam grande quantidade de negros
escravos e livres.31 A venda de alimentos: empanadas, pasteles e tortas era
quase um monopólio feminino. No cenário da Praça Nova uma negra livre,
cujo nome não foi registrado, mas que sabemos que era a mulher do
Sargento Maior do Regimento de Negros e Morenos, Manuel Farias, vendia
empanadas num dia de 1787. Na oportunidade em que ela estava com sua
cesta foi insultada por um homem que trabalhava para Pablo Agüero. Trata-
se de um conflito entre negros livres que está inscrito em outro maior: o
conflito entre Pablo Agüero – comissionado pelas autoridades coloniais
para governar os tambos e capturar escravos fugidos – e o Sargento, ambos
negros livres. O inquérito foi apurado para desvelar este conflito e não
aquele, o dos insultos à vendedora. O cenário da disputa, a praça e suas
adjacências trazia as tensões ao interior da comunidade negra. O conflito
entre os dois homens envolvia uma serie de espaços de reconhecimento
que iam além da praça.32 O processo aberto pelas autoridades militares
para apurar o caso evidencia um universo de referências maioritariamente
negro. O rol das perguntas serve para entender o que é considerado dentro
da ordem e o que está fora desta. As perguntas realizadas às testemunhas
foram mais o menos as seguintes: se a testemunha conhecia a Farias e
Aguero e se sabia que comissões tinham; se Aguero obedecia Farias; se
29
AGN, Censo, 1794, Sala IX 9-7-4.
30
AGN, Censo, 1794, Sala IX, 9-7-4.
31
ALBA, Martha de; EXBOLIN Arnaud e Georgina Rodriguez, El ambulantaje em imágenes: una historia de a venta
callejera en la ciudad de México. Siglos XVIII- XX. http://cybergeo.revues.org/5591?lang=en
32
Manuel Frías, Sargento de la Cía. de negros libres informa que el comisionado para recoger negros fugitivos y

82
MARIA VERÔNICA SECRETO

tinha ouvido os dois agredir-se de palavras e quais as palavras utilizadas;


se Aguero tinha requerido o auxílio do Sargento Maior e sua tropa para as
missões de captura dos escravos fugidos; se Aguero tinha querido coroar
no tambo dos negros ao Negro Pedro Duarte como rei dos congos ou a
algum outro de outra nação e se Aguero tinha insultado a mulher de Farias.
Os depoimentos vão mostrando a concorrência e capacidade de
influência dos dois homens negros livres sobre a população negra em geral
composta pelos soldados do batalhão de negros, os que frequentam a Praza
Nova e os Tambos, e os que participam das confrarias religiosas vinculadas
às igrejas de La Piedad, San Francisco e Santo Domingo, os negros que
moravam ou circulavam pelo do bairro de Monserrat. A concorrência se
evidencia em depoimentos como o de Pedro Duarte, para o qual era tão
sargento quanto o outro.

Perguntado o Negro Pedro Duarte sobre ambos respondeu: “que a Manuel


Farias conhece por Sargento Maior das milícias negras e a Pablo Aguero
conhece por Sargento Maior de todos os negros e comissionado pelo
governo para prender os fugitivos de sua cor.

A inimizade era antiga. Quase todas as testemunhas sabem que os


dois brigavam de palavra, sem ter escutado quais as palavras que
intercambiavam. Somente Francisco Tadeo Silva, secretário do Alcaide de
segundo voto escutou uma vez que Aguero lhe dizia a Farias que os negros
andavam insolentes à justiça e a ele porque o próprio Faria assim o
recomendava.
Mas porque depois de tantos enfrentamentos de palavra o Sargento
Maior da Companhia de negros livres Manuel Farias decidiu apresentar
formalmente a queixa? O processo nos oferece mais de um indício. Juan
Ximenez, natural de Buenos Aires, apoderado dos fazendeiros da campanha
e morador de Monserrat disse que mais ou menos dois meses atrás
encontrou os dois discutindo, sendo que era Aguero que maltratava de
palavra a Farias. Ximenez se aproximou e disse para Farias que se retirasse
que o assunto que tratavam podia ser resolvido na justiç a. Mas,
provavelmente, não foram somente as palavras de Ximenez, intentando
evitar uma desgraça maior, as que levaram o Sargento à instância superior.
Farias se persuadiu que a “desobediência” havia chegado a um nível
insuportável quando sua mulher foi insultada por um dos homens que
trabalhavam para Aguero na Plaza Nova: “Chegando a tal extremo a
inimizade que cientes disso os soldados que trazia na sua companhia, um
deles chamado Manuel Jesus, valido de dita proteção teve o valor de, na
praza Nova, tratar de puta à mulher do expoente.”

gobernar los tambos, Pablo Agüero, le ha negado toda autoridad, manejándose a su libre albedrío y dirigiéndose a él
con palabras injuriosas. AGN, Tribunales, leg. 74 expte. 10 Sala IX 36-4-3. Este caso já foi abordado por mim em
SECRETO, Maria Verónica. Negros em Buenos Aires, Rio de Janeiro: Editora Mauad, 2013.

83
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Como se isto não fosse suficiente para questionar a autoridade do


Sargento, ademais de disputar obediência com Aguero tinha que fazê-lo
com aquele que os próprios negros reconheciam como autoridade da nação:
Pedro Duarte, que tinha sido coroado como rei dos congos num dos tambos,
e segundo diz ou acredita Farias, com a proteção de Aguero. Monserrat e
seu hinterlandia constituía um único território com três autoridades negras.
O negro libre José Garcia afirmou que na véspera de Nossa Senhora
do Transito estando ele em casa durante a noite ouviu um grupo de negras,
às que disse não conhecia, falando que no dia do Transito, que era o seguinte,
o negro Pablo Aguero tinha disposto que se coroasse como rei dos Congos
a Pedro Duarte. Também o negro escravo Jose Gonzalez disse que em um
dos dias de festa que se juntam para dançar os negros viu que levavam
embaixo de um guarda-sol grande a um negro chamado Pedro Duarte e
que na cabeça levava uma espécie de coroa, ao ver isto Aguero teria
mandado tirar a coroa o que foi obedecido, “advertindo o declarante que
todos os outros negros da nação Conga veneravam e obedeciam todas as
ordens que como rei dava Pedro Duarte”. Agregou que no dia da festa de
San Baltazar na Igreja da Piedad o respeitam e obedecem como o rei de
uma nação e não como a um mordomo.
Imediatamente o Ajudante da Praza fez comparecer a Pedro Duarte.
Duarte disse que fazia muitos anos que Aguero e Farias estavam “discordes”
e que teria sido o próprio Farias quem denunciou ante o Tenente do Rei e
Sargento Maior que havia reis em várias nações. Evidenciando nesta
declaração que Aguero e a coroação dos reis da nações estavam relacionados.
Agregou que lhe constava que tinha sido Farias quem delatou as coroações
porque estando na capela da Piedad com outros confrades da irmandade
de São Baltasar para enterrar um irmão defunto, chegou Farias com tropa
aprendendo-o, indo pegar a Pablo Aguero na rancharia e dali os levou para
o Cárcere Real. O Ajudante ainda perguntou se ele tinha ido ao tambo para
ser reconhecido como rei ao que respondeu que não foi com insígnias de
rei, que foi somente com os de sua nação com capa, chapéu e um guarda-
sol improvisado para ser reconhecido como maior, mas não como rei.
Também declarou Pablo Aguero, natural da Guiné que disse ter
obedecido a Manoel Farias até que se lhe deram a comissão que agora
exercia. Que uma vez que necessitou tropa, um dia de San Baltasar em que
estavam “vindo” os negros de Cambunda, na capela da Piedad, o Sargento
não autorizou levar os soldados da companhia, utilizando a partir de então
os veteranos como mandado pelo Governador Intendente e autorizado pelo
Senhor Vice-rei.
Parece evidente que, a pesar de que a função desempenhada por
Aguero estava subordinada por regimento à autoridade do Sargento Maior
da Companhia de Negros Livres, Aguero se movimentava com quase total
independência dele. Até contava com recursos próprios, como declarou
um de seus homens, Manuel de Jesus, negro livre, natural da Guiné, morador
em casa de Aguero, que tinha um salário mensal de seis pesos pagos pelo

84
MARIA VERÔNICA SECRETO

próprio Pablo. Segundo Manuel de Jesus o dinheiro de seu salário provinha


da própria oficina de badanas que Aguero tinha em casa e na qual empregava
alguns peões e das recompensas que lhe davam os senhores dos escravos
fugidos.
No depoimento, Manuel de Jesus assumiu ter insultado à mulher do
Sargento Maior. A descrição do momento em que se produz o insulto e que
aparece uma e outra vez nos depoimentos de forma fragmentada a partir
de pontos de vista diversos é apresentada aqui pelo negro livre Manuel a
partir de uma perspectiva que, provavelmente, acreditou justificável ante
os olhos e ouvidos do relator da memória, o Ajudante Maior da Praza
Francisco Rodrigues: Estando na praza Nova um índio ébrio fazendo grande
barulho e incomodando um espanhol que ali passava, pretendeu Manuel
Jesus leva-lo preso; ao que se opôs a mulher do sargento que vendia
empanadas no mesmo local e que pretendia que o índio lhe pagasse quatro
reais que lhe devia. A negra começou a gritar com o ajudante de Aguero
para evitar a prisão e este a insultar a negra ameaçando-a de leva-la presa
também e proferindo o insulto que ninguém tem pudor em repetir no
processo: puta. Não foram utilizados eufemismos, como nos caso das
pessoas de honor.
O insulto de sua mulher na Praza Nova, lugar público por excelência
levou o Sargento a registrar a queixa; mas provavelmente já viesse pensando
nisto fazia algum tempo, tendo conhecimento de que ele não era o único
descontente com a atitude de Aguero.
Os irmãos de São Baltasar apresentaram queixa contra ele um ano
antes do que fizera o Sargento. Em 1786, o mordomo da Confraria das
Animas e São Baltasar apresentaram uma solicitude às autoridades sobre o
direito a pedir esmolas nos bailes e diversões dos negros nos dias domingos
e de festa. O reclamo era causado por ter surgido uma diferença entre os
“morenos” da parte norte e os da parte sul. Os do sul pretendiam que os do
norte fossem aos bailes no campo da Residência, enquanto os do norte,
que apresentavam a queixa preferiam fazê-lo no Retiro. Argumentavam os
irmãos do Norte que era gravoso ir ao Sul, porque era um lugar distante de
suas habitações e que uma vez concluído o baile não poderiam restituir-se
a casa de seus senhores com a prontidão necessária a seus serviços.
Solicitavam então que se habilitassem dois bailes, um na Residência para
os do sul e outro no Retiro para os do norte.
É plausível que ademais da comodidade os irmãos estivessem
procurando definir territórios de influência e de arrecadação, já que as
festas e tambos eram lugares privilegiados para pedir as esmolas
correspondentes às confrarias. Manuel Ledesma moreno livre e mordomo
da Irmandade de San Baltasar:

Recorre o suplicante a este tribunal a fim de que não se permita mais


pedir essas esmolas particulares, pois se deve duvidar de sua exata
distribuição, e para o efeito exponho que o maioral de ditos congressos
de danças é o moreno chamado Pablo Aguero, as nações estão sob seu

85
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

mando, pois ele obteve dita permissão do governo desta capital [...]
parece verossímil que ele tenha mandado pedir as esmolas, mas não é
irmão desta irmandade, nem tem nenhuma intervenção neste devoto
congresso das animas.33

Parece que Pablo Aguero, a partir da comissão que tinha sido


encomendada pelo governador, estava exercendo o poder dentro da
comunidade negra para além do próprio mandato oficial e do mandato
negro.
Aguero foi muito ativo no bairro de Monserrat e entre os negros,
escravos e livres. Em 1787 ainda o encontramos intervindo numa briga
entre escravos perto de um dos tambos. Num dos dias de festa em 1791
acompanhou ao sargento Elias, oficial branco do corpo de Dragões, e fez
repressão e prisão de um grupo de irmãos da confraria de São Baltasar. Os
irmãos tinham solicitado permissão para sair pelas ruas da cidade em
homenagem de seu padroeiro, San Baltasar, mas na saída da casa em que
se reuniram foram interceptados pelo Sargento de Dragões e pelo moreno
Aguero e mandados irem cada um para sua casa. Os negros arguiram que
tinham licença para andar pela cidade, mas o Sargento e seus
acompanhantes romperam os instrumentos dos irmãos e tiraram a licencia.34
Buenos Aires aparece como um espaço exíguo para estes homens
que disputam sua autoridade sobre uma população negra,
independentemente da autoridade patriarcal senhorial. Um único território
composto pelos espaços religiosos de procissões e confrarias, e espaços
públicos maiores, o dos bailes, tambos, praças, ruas e huecos se vai
desenhando como um espaço de convivência e de conflito. A cidade vice-
real é apropriada pela população negra que “desenha” um território
rizomórfico, não continuo, manchas aqui e acolá vão definindo outros
usos da cidade que não os senhorias. Também os espaços de trabalho, não
só de lazer e religiosos, se constituem como parte dessa espacialidade
negra. A ribeira do Rio da Prata, com suas lavandeiras negras tantas vezes
desenhadas pelos viajantes se constituirá em outro dos espaços nitidamente
definido pela presença negra, pelo menos durante o tempo que elas, primeiro
escravas e depois livres, mantiveram o “monopólio” dessa profissão.
Pretendimos com este exercício e com as páginas iniciais chamar a
atenção para a construção social do espaço, sem monumentalizações. É
um convite para pensar a territorialidade negra construída densamente a
partir de uma série de práticas e disputas cotidianas.

33
“El moyordomo de la Cofradía de Animas y San Baltasar sobre la limosna que se pide en los bailes y diversiones que
tienen los negros en los días domingo y demás de fiesta”. Tribunales, Leg. S 8, exp. 6. Sala IX 42-6-3. AGN. Grifo
nosso.
34
Solicitud hecha por Dn. José Ignacio Rato para que se ponga en libertad un esclavo suyo preso por el Sargento Elías
Bayalá por andar de baile. Solicitudes de presos. Sala IX 12-9-13. AGN.

86
MARIA VERÔNICA SECRETO

Nota:
Este mapa foi elaborado em 1794 para acompanhar o recenseamento da população levantado no
mesmo ano com o objetivo de escolher os alcaides de bairro. O impresso trata-se de uma versão do
mesmo.
Do bairro 13 mencionamos neste texto os resultados globais de população. O mesmo aparece
indicado em color roxo no mapa.
Outras duas intervenções em azul marcam os dois pontos em questão para a realização dos bailes:
Retiro e La Residencia. O baile era ocasião para pedir esmola e reconhecer os “reis”, âmbitos de
disputa de influencias e poder. Em verde estão indicadas as praças Monserrat, Conceição e Nueva,
espaços vivenciados pelos negros de forma intensa.
Também estão indicados no mapa dois dos huecos (buracos/baldios) o de Zamudio e o da Engracia
e o local onde as lavadeiras negras levavam os fardos de roupas para lavar e onde estava proibido
tomar banho ou pagar água. Vários inquéritos policiais nos informam desta proibição e das
contravenções.

87
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

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91
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

92
1. IGREJA E REFORMA AGRÁRIA
NO PERÍODO DA DITADURA
CIV IL-MILITAR (1964-1985):
a Comissão Pastoral da Terra e sua
atuação junto aos Movimentos
dos Trabalhadores Rurais
Maria José Castelano

2. PO EI RA: a expressão dos


atingidos de Itaipu
Milena Costa Mascarenhas

3. TERRA E PODER NO OESTE


DO PARANÁ
Irene Spies Adamy

Contestado 15, Hassis, acervo 4. AS S O CIAÇ ÃO R URAL DE


Fundação Hassis LONDRINA: embates e conflitos
no Norte do Paraná
Juliana Valentini

PARTE III 5. A (RE)OCUPAÇÃO RECENTE


DO MUN ICÍ PIO DE
Terra e MA RECH AL C ÂNDI DO
RON DON: uma análise do
Poder: processo de especulação da terra
Cristiane Bade Favreto
abordagens
sobre a região
Oeste e Norte do
Paraná

93
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

94
IGREJA E REFORMA AGRÁRIA NO PERÍODO DA
DITADURA CIVIL-MILITAR (1964-1985):
A COMISSÃO PASTORAL DA TERRA
E SUA ATUAÇÃO JUNTO AOS MOVIMENTOS
DOS TRABALHADORES RURAIS

Maria José Castelano1

Introdução

Este capítulo é resultado do estudo e da sistematização de bibliografia


sobre a temática Igreja e a questão agrária no período bonapartista2, entre
as décadas de 1970-1980, e da análise de entrevistas de lideranças da
Comissão Pastoral da Terra (CPT)3, além da consulta ao Boletim Poeira
(elaborado no Paraná nas décadas 1970-80) e de um boletim da CPT
nacional: O Mausoléu do Faraó, que abordou a problemática da Itaipu.
O objetivo é enfocar a atuação da CPT na região Sul, mais
especificamente no Oeste do Paraná, apontando algumas de suas
características específicas, identificadas em nossa pesquisa de doutorado
até o momento. Ademais, faz-se a reflexão sobre o contexto em que se
inicia a organização da CPT e a crítica realizada pelos seus integrantes
(bispos, leigos, freiras, padres e intelectuais) aos problemas agrários
agravados pelo “Milagre Econômico” imposto pela ditadura civil-militar.
A CPT formulou críticas contundentes aos governos militares e aos
governos eleitos após a redemocratização, pela forma como lidaram com
os conflitos originados no campo. Uma das abstrações razoáveis4 da qual
1
Professora do curso de História da UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon e doutoranda em História
Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: majo_catelano@hotmail.com.
2
“Esta forma de dominação autocrático-burguesa constitui-se num domínio exercido de modo indireto pelo conjunto da
burguesias, pelas armas, subjugando, castrando ou atrelando os poderes legislativo e judiciário.” RAGO FILHO,
Antonio. A ideologia 64: os gestores do capital atrófico. São Paulo:1998. Tese (doutorado) PUC-SP, p.15.
3
A Comissão Pastoral da Terra está organizada em todo o território nacional em 21 regionais. Cada regional tem uma
coordenação, eleita em Assembleia, de acordo com o regimento interno e um Conselho Regional. Há, ainda, algumas
CPTs que possuem uma coordenação ampliada, mas todas se articulam com o Regional da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB), do qual fazem parte. Elas unem-se, ainda, com as diversas organizações de trabalhadores
do campo. Cada CPT regional é composta por equipes de base, ou locais, que fazem o acompanhamento direto junto
aos camponeses e suas organizações. Disponível em <http://www.cptnacional.org.br/index.php/quem-somos/
organizacao/regionais#sthash.QLlAkIb5.dpuf.> Acesso em: 02 nov. 2014.
4
Sobre as abstrações razoáveis, consultar CHASIN, José. Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São
Paulo, Boitempo; RAGO FILHO, Antônio. J. CHASIN: redescobrindo Marx - a teoria das abstrações. Disponível em
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0.16253103610364.pdf>. Acesso em: 01 out. 2014.
95
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

principiamos a nossa reflexão pauta-se no reconhecimento de que o


direcionamento ideológico cristão promovido pelos integrantes da CPT,
influenciados pela Teologia da Libertação no Brasil, pode ter contribuído
no processo de educação popular e de conscientização social dos
integrantes dos movimentos ocorridos no Oeste do Paraná como Justiça e
Terra e o Mastro, quando passam a lutar por uma maior participação nas
decisões políticas, em oposição ao regime ditatorial, vigente no país.
No Paraná, entre as ações da CPT destaca-se a sua atuação na
mobilização da população a ser atingida pela construção da barragem da
Usina Hidroelétrica de Itaipu. Esta atuação pode ser acompanhada pela
elaboração e divulgação de materiais educativos e informativos que
denunciam o evidente poder desigual no processo de negociação entre
trabalhadores e Estado, no caso deste, tendo como braço institucional a
Itaipu.
O objetivo central deste estudo encontra-se na compreensão de como
o Cristianismo, por meio da Pastoral Rural e, posteriormente, da CPT, torna-
se uma ideologia de engajamento das lutas cotidianas dos movimentos
sociais e dos mediadores cristãos, que atuaram como intelectuais orgânicos.
Na esteira da concepção de intelectual orgânico de Gramsci, Alegro
(1994) afirma que:

A característica do intelectual orgânico é a clareza acerca do seu papel


de dirigente e educador. Neste sentido pode-se afirmar que a CPT atuando
junto aos movimentos sociais configura-se como um grupo de
intelectuais organizados no interior das Igrejas cristãs, que contribuem
para a elaboração de uma consciência histórica dos trabalhadores rurais,
dentro dos limites da sua condição/situação.5

Considerando o contexto político e econômico vigente durante os


governos militares (1964-1985), destaca-se que a implantação da Doutrina
de Segurança Nacional não impediu a emergência de organizações de
resistência diante de conflitos envolvendo a questão agrária, motivadas
pela expropriação de pequenos proprietários, posseiros e trabalhadores
rurais. Neste sentido, a CPT foi criada, em meados da década de 1970, por
bispos, padres, pastores e leigos progressistas envolvidos nestes conflitos,
em pleno Estado de exceção. Em várias regiões do país, como no Nordeste
e no Norte, a CPT atuou e se posicionou a favor da defesa dos interesses
dos trabalhadores do campo, ou seja, dos “oprimidos”, pela modernização
engendrada e pelo avanço do capitalismo no campo.

5
ALEGRO, Regina Célia. Buscar o Reino de Deus e a sua Justiça - A mediação pedagógica da Comissão Pastoral da Terra.
Maringá, 1994. Dissertação (Mestrado em Fundamentos da Educação) - Pós-graduação em Educação, UEM, p. 56.

96
MARIA JOSÉ CASTELANO

Posicionamento da Igreja com relação ao desenvolvimento do


capitalismo no campo e a questão agrária nas décadas 1950-
1960

Para entender os embates travados entre o Estado e a Igreja Católica


sobre a reforma agrária, recuaremos à década de 1950, período em que a
discussão sobre a necessidade da revisão da estrutura fundiária brasileira
ganhava corpo no interior do debate nacionalista, tanto nos grupos
representativos dos setores da esquerda (progressistas) quanto da direita
(conservadores).
No Brasil, o capitalismo desenvolveu-se hiper-tardiamente (o
processo de industrialização dinamizou-se apenas na década de 1950),
não realizou uma revolução burguesa e, desde os seus primórdios, dependeu
dos capitais externos para os investimentos internos. A maioria da população
sempre permaneceu excluída, sem acesso à instrução elementar, à saúde,
às liberdades políticas e à reforma agrária.

A via colonial da objetivação do capitalismo, em uma de suas


determinações mais gerais, significa o estabelecimento da existência
societária do capital sem interveniência de processo revolucionário
constituinte. Por si só esta característica da história brasileira é responsável
por traços fundamentais do modo de ser e de se mover da formação
nacional.6

Portanto, o Brasil conhece o verdadeiro capitalismo somente na


segunda metade do século XX, no período pós Segunda Guerra Mundial,
em um momento avançado das guerras imperialistas e sem nunca ter
rompido com a sua condição de país subordinado aos centros hegemônicos
do capital. Foi somente no segundo governo Vargas (1951-1955) que
surgiram os primeiros ensaios sistemáticos em favor da industrialização no
país, voltados para a ampliação e expansão do padrão de acumulação de
bens de capital e para o setor de bens de produção não duráveis.
No governo Juscelino Kubitschek, doravante Jk, (1956-1960), o
padrão de acumulação de bens de produção mudou de forma, adquirindo
consistência através do Plano de Metas, sob o slogan “50 anos em 5”. Este
plano marcou o impulso da industrialização acelerada e subordinada aos
capitais externos. Configurou-se um período de intenso crescimento
econômico, com profundas consequências sociais e políticas para o país.
No início da década de 1960, a economia sofreu com uma prolongada
recessão. Neste contexto, as “Reformas de Base”, iniciadas nos anos 1960
por setores progressistas, objetivavam ampliar o acesso das massas ao
processo de modernização capitalista em curso. Além disso, alguns projetos
possuíam uma perspectiva nacional popular, que visava uma industrialização

6
CHASIN, J. A miséria brasileira: 1964-1994: do golpe militar à crise social. São Paulo: Ad Hominem, 2000, p. 221.

97
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

autônoma do país, procurando mudar a sua inserção na divisão internacional


do trabalho, com uma postura crítica ao imperialismo estadunidense. Outros
indicavam uma direção oposta e pretendiam estreitar o vínculo ao
capitalismo norteamericano, aprofundando os laços com o capital externo,
selando a participação subalterna do país no mercado mundial.
As reformas foram colocadas na agenda da discussão, à época, por
pressão de setores sociais formados por trabalhadores rurais, operários e
estudantes engajados na luta por estas mudanças. No entanto, o projeto de
industrialização/modernização do Brasil, consolidado a partir do último
quartel do século passado, passa a ser capitaneado por um grupo de
militares com o apoio da burguesia agrária e industrial (aliados ao capital-
imperialista) e setores da classe média. Este projeto, que se mostrou
amplamente excludente, almejava frear as reformas sociais postas em curso
pelo Estado, na fase anterior ao golpe de 1964, inclusive, para o setor agrário.
Em meados do século XX, vários conflitos surgiram no campo
brasileiro como Trombas e Formoso, em Goiás, (décadas de 1940-1950), a
Guerrilha de Porecatu e a Revolta dos Posseiros, no Paraná, (década de
1950), apenas para mencionar alguns. Não é possível discutir aqui tais
conflitos, que podem ser consultados em ampla bibliografia disponível.
Mas, queremos assinalar a participação nestes conflitos de integrantes do
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Esta atuação direta também é encontrada
na formação das Ligas Camponesas, em 1955, no Nordeste, que contou
com a participação do PCB, diante de ferrenha oposição da Igreja Católica.
Em 1954, os comunistas organizaram a Segunda Conferência Nacional
de Lavradores e Camponeses, reunida em São Paulo. Dela surgiu pela
primeira vez no Brasil uma organização nacional de homens do campo, a
União dos Lavradores e Camponeses do Brasil (ULTAB). Portanto, a discussão
que se estabeleceu no início dos anos 1960 entre intelectuais de esquerda,
era sobre como a reforma agrária relacionava-se com o projeto de
industrialização e com a questão da necessidade de melhorar o padrão de
vida rural, explicitados por meio das lutas eclodidas no campo.
Entre meados da Segunda Guerra Mundial e o final da década de
1950, a linha política do PCB, assim como a de todo movimento comunista
internacional, conheceu três orientações distintas: a “união nacional”, a
“linha chinesa” e o “caminho pacífico” para a revolução.7 Assinalamos que
a Declaração de março de 1958 marcou uma profunda reviravolta na tática
do PCB, refletindo o impacto que as denúncias sobre o stalinismo e o culto
à personalidade, revelados pelo Relatório Kruschev, provocaram na
militância comunista, assim como o reconhecimento, ainda no XX
Congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), de que não
haveria somente um caminho, mas trajetórias diversas em direção ao
socialismo.
7
CASTELANO, Maria José. A proposta de reforma agrária do Partido Comunista Brasileiro (PCB) desenvolvida nas
décadas de 1950 e 1960. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23, 2005, Londrina. Anais do XXIII Simpósio
Nacional de História – História: guerra e paz. Londrina: ANPUH, 2005. CD-ROM.

98
MARIA JOSÉ CASTELANO

Como consequência deste contexto internacional, a tática adotada


pelo PCB foi a via pacífica, coerente com a estratégia global de transformação,
ou seja, para a revolução brasileira, seria necessária a aliança com os setores
considerados progressistas da burguesia. Assim, o PCB propunha fazer a
reforma agrária pela via parlamentar, pela implantação de reformas de base
que asseguravam mudanças gradativas, através do emprego tático de
acumulação de forças. Esta nova posição vai conflitar com algumas
lideranças das Ligas (os julianistas) na década de 1960, que queriam a luta
armada.
Ressalta-se que a Igreja Católica mudou suas táticas e sofreu inflexão
de orientação em sua Doutrina Social pós Segunda Guerra Mundial,
sobretudo com o Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellín. No
Brasil, neste período, a Igreja, na sua prática política se opôs às oligarquias
dos estados e municípios comprometidas com formas econômicas
“atrasadas” e com relações de trabalho consideradas antiquadas e opressivas.
Neste sentido, a Declaração dos Bispos do Nordeste, em 1956, permitiu
um salto na teoria e na prática da pastoral social. Para Martins, “O novo
conceito que centraliza o pensamento episcopal é o de desenvolvimento.”
No entanto, esta nova orientação não levou a uma pastoral social oposta ao
latifúndio e a propriedade da terra, naquele momento.8 As esperanças que
a Igreja depositou na ação do Estado e no desenvolvimento econômico
(durante parte do governo J.K.) para a superação das condições de miséria
no campo foram corroídas rapidamente. Na interpretação de Martins,
“Setores lúcidos da Igreja acreditavam que o regime militar concretizaria
reformas sociais impossíveis em um regime político aberto.” Além disso:

O golpe de estado e a ditadura são recebidos como meio de quebrar esse


círculo vicioso de poder, que restaurava sempre as oligarquias e seu
domínio, seu compromisso com o atraso e com a pobreza. Era meio
também de afastar os comunistas e outros progressistas, inclusive católicos
de esquerda [...].9

Em 1956, na IV Conferência Rural Brasileira, realizada em Fortaleza


(CE), que reuniu federações e associações rurais de vários estados,
recomendou-se a instituição de uma lei agrária para criar um fundo para
desapropriações por interesse social, constituído por meio da taxação de
terras improdutivas. Entre as propostas preconizava-se a colonização das
áreas qualificadas de “vazios demográficos” e, também, a recolonização
de áreas já ocupadas. Sugeriu-se, também, a criação do Estatuto do
Trabalhador Rural, que deveria regulamentar a jornada de oito horas, a
estabilidade e o contrato de trabalho. As oligarquias rurais combateram

8
MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite. Emancipação política e libertação nos movimentos sociais do
campo. São Paulo, Hucitec, 1989, p. 41-42.
9
Ibid., p. 47 e 46.

99
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

duramente as propostas mais radicais surgidas neste debate, como a reforma


agrária baseada no interesse social e sem indenização aos latifundiários
desapropriados. Alguns deputados trabalhistas eram contrários a “prévia” e
“justa” indenização em dinheiro às desapropriações de terras. Mas o Estatuto
só foi efetivamente aprovado em 1963, em plena crise do governo João
Goulart.
Os anos 1960 marcam, ainda, a disputa pela hegemonia na condução
das organizações camponesas entre a Igreja, o PCB e o trabalhismo.10 Á
medida que o PCB foi perdendo influência sobre os trabalhadores do campo,
aumentou a presença da Igreja nesses movimentos. Este fato se deve pela
mudança de táticas políticas do próprio PCB, explícitas na Declaração de
1958, e mencionadas anteriormente.
Em novembro de 1961 realizou-se, em Belo Horizonte, o I Congresso
Nacional dos Trabalhadores Agrícolas. A reunião foi planejada por Fran-
cisco Julião, membros da Liga e pelos dirigentes comunistas de São Paulo e
do Paraná. Mas, com a repressão aos comunistas e a vitória da autocracia
burguesa, impõe-se rígida censura às forças políticas de oposição. Neste
sentido, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
(CONTAG) resultou da aliança entre comunistas e católicos.11 Além disso,
segundo Martins, “A questão agrária, antes dessa época, tinha sua base
social nos arrendatários parceiros e foreiros, tanto no Nordeste quanto no
Sudeste, ameaçados de expulsão da terra, reduzidos a uma relação precária
e extorsiva de arrendamento”.12 Mas, a política de incentivos fiscais para o
desenvolvimento da Amazônia e outras regiões do País acentuou o inter-
esse das empresas capitalistas pela terra, intensificando os conflitos, como
mostra Martins (1981, 1989), Neidi Esterci (1987) e Otávio Ianni (1979).
Estes conflitos resultam da forma como o capital altera as relações sociais
no campo, amparados nos ideais de desenvolvimento e progresso que, na
prática, resultam na expulsão de posseiros cuja presença era vista como
causa do “atraso” ao desenvolvimento econômico.
A posição de Caio Prado13, neste debate, indicava que a causa do
atraso deveria ser buscada na presença do latifúndio e não no baixo padrão
técnico da produção dos trabalhadores rurais. Para este autor, a elevação
do nível tecnológico e da produtividade vinha frequentemente acompanhada
de piora das relações de exploração do trabalho. A elevação das condições
de vida das massas somente viria por meio da luta dos trabalhadores, sejam
quais forem suas relações de trabalho e natureza da remuneração que
recebem.

10
Consultar Leonilde S. Medeiros. Movimentos Sociais no Campo. Rio de Janeiro: FASE, 1989; José de Souza Martins. Os
camponeses e a política. Petrópolis, Vozes, 1981; PCB. Vinte anos de Política (1958-1979), São Paulo: Liv. Ciências
Humanas, 1980.
11
MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a política. Petrópolis, RJ: Vozes, 1981, p. 10.
12
Ibid., p. 11.
13
PRADO JR., A Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1978.

100
MARIA JOSÉ CASTELANO

Com relação ao posicionamento da Igreja Católica brasileira é notório


que sempre esteve aliada às oligarquias rurais e às frações da burguesia e
apoiou, inclusive, o golpe civil-militar de 1964, visando afugentar o “perigo
comunista” que rondava as manifestações sociais no campo e na cidade.
Suas alianças conservadoras são reveladas em ações como a “Marcha da
Família com Deus pela Liberdade”. Por outro lado, essa instituição também
é transpassada por contradições. O acompanhamento e a vivência junto
aos trabalhadores do campo levam alguns sacerdotes, freiras e bispos a se
engajarem na luta em defesa da reforma agrária e a fazerem críticas à ditadura
civil-militar.
Ademais, temos o surgimento junto a setores progressistas da Igreja
de um movimento que ficou conhecido como Teologia da Libertação, com
destaque na América Latina. A experiência do Movimento Educação de Base
(MEB), a alfabetização de jovens e adultos agricultores, conduzidas sob a
orientação do educador católico Paulo Freire e a organização das
Comunidades Eclesiais de Base são exemplos da atuação desta fração da
Igreja que marcou a década de 1960.

A consti tuição da CPT: o posicionamen to da Igreja f rente ao


superaviltamento do Trabalho

Movimentos como o Movimento dos Sem-Terra (MST) tiveram sua


origem e trajetória associadas às lutas e às organizações regionais de
trabalhadores rurais que não se adequarem às novas exigências de
modernização e desenvolvimento tecnológico da agroindústria, além de
posseiros desapropriados para a construção de barragens, etc.
Castelano apresenta muitas evidências de que o MST é constituído
sobre os ideais da Teologia da Libertação, percebe-se a sua presença tanto
na forma de organização teórica e prática do Movimento, quanto no papel
atribuído à mística. Inclusive, na própria concepção pedagógica, política e
de reforma agrária há a presença de ideais cristãos.14 As lutas que levaram
a formação do MST concentraram-se, inicialmente, nas regiões Sul e Sudeste
do País, durante o governo militar, entre os anos 1970 e 1980.
Em uma entrevista publicada na Revista Brasil de Fato, Frei Beto15
reafirma a sua convicção de que a Igreja Católica “[...] teve papel
preponderante nas lutas sociais na América Latina. Por meio das
Comunidades Eclesiais de Base e do advento da Teologia da Libertação,
decorrentes da ‘opção pelos pobres’, muitos militantes foram formados
pela Igreja segundo o método Paulo Freire.” Ademais, o teólogo chama a

14
CASTELANO, Maria José. Um estudo da proposta de educação do MST. Maringá, 2000. Dissertação (Mestrado em
Educação), UEM.
15
MONCAU, Joana. Religião: Chave para dialogar com o povo. (Entrevista com Frei Beto). Revista online Brasil de Fato,
15/09/2010. Disponível em <http://www.brasildefato.com.br/node/274>. Acesso em: 03 nov. 2012.

101
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

atenção para o fato de que em países que passaram por ditaduras, como o
Brasil e a Nicarágua, essa formação resultou em uma opção revolucionária
e na atuação política das pastorais católicas que influenciaram, de certo
modo, as eleições de Lula no Brasil, de Correa no Equador, de Evo na Bolívia,
de Funes em El Salvador, entre outros. 16
A não realização de uma reforma agrária no Brasil pode ser explicada
pela ausência de uma revolução democrática burguesa, cuja formação so-
cial foi subsumida, primeiro, pelo desenvolvimento do capital em sua forma
mercantil e, posteriormente, pelo imperialismo dos países desenvolvidos.
Em nossa formação social as mudanças sempre foram operadas pelo “alto”,
impondo-se uma solução no plano político imediato que excluíram as
revoluções nas quais as classes subordinadas poderiam influir. No quadro
de miséria no qual estão inseridos os “sem-terra”, cuja exclusão social se
deu desde os primórdios do Brasil e permaneceu mesmo após a constituição
da nação, a grande propriedade rural é presença decisiva. Para autores
como Chasin, em nosso país não se efetivou um regime político
democrático-liberal porque:

No Brasil, bem como na generalidade dos países coloniais ou dependentes,


a evolução do capitalismo não foi antecedida por uma época de ilusões
humanistas e de tentativas - mesmo utópicas - de realizar na prática o
“cidadão” e a comunidade democrática. Os movimentos neste sentido,
ocorridos no século passado e no início deste século, foram sempre
agitações superficiais, sem nenhum caráter verdadeiramente nacional e
popular. Aqui, a burguesia se ligou às classes dominantes, operou no
interior da economia retrógrada e fragmentada.17

Neste gradiente de formação social autocrático e subalterno desdobra-


se a conflagração e extrema contradição que permeia o campo brasileiro e
motiva conflitos recorrentes que eclodem em todo o Brasil, até mesmo
neste começo do século XXI.
Martins, ao analisar os conflitos no seio da CPT e as soluções apontadas
por esta entidade para resolver o problema da produção camponesa, avalia
que a constituição do MST, na década de 1980, foi resultado da notória
indisposição da maioria dos bispos católicos para abrigar a luta pela terra
como luta política da Igreja. Ademais, o autor referido faz uma crítica ao
direcionamento político sobre a questão agrária de algumas lideranças
vinculadas à CPT. Para Martins:

[...] a ideologia da propriedade fundiária alcançou as populações


desvalidas do campo e conformou sua mentalidade, inevitavelmente
pondo no centro de sua vida o que não é central no processo histórico.

16
Id. Ib., 2010.
17
CHASIN, José. O Integralismo de Plínio Salgado. Forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: Ciências
Humanas, 1978, p. 639.

102
MARIA JOSÉ CASTELANO

Nessa perspectiva, a ideologia agroreformista nem é superadora de


contradições, nem emancipadora, nem, propriamente, libertadora.18

A partir do final dos anos 1960, o setor agrícola absorveu quantidades


crescentes de crédito agrícola, incorporou os chamados “insumos modernos”
ao seu processo produtivo, introduzindo o uso de novas tecnologias e
mecanizando a produção, integrando-se aos modernos circuitos de
comercialização. A elevação da produtividade permitiu o aumento da
produção de matérias-primas e alimentos para a exportação e para o
mercado interno. No entanto, tal desenvolvimento elevou ainda mais o
nível de pobreza e miséria de grande contingente de trabalhadores rurais.
Martins, em seu livro A política do Brasil: lúmpen e místico, afirma
que o campesinato é uma classe que se contrapõe ao economicismo
desenvolvimentista. Nesse sentido, a luta que se trava nas décadas de 1970-
80 é um confronto entre classes sociais, entre exploradores e explorados, é
um problema político, por essa razão, precisava de uma resposta política.
Para o autor “A questão da reforma agrária, antes dessa época, tinha
sua base social nos arrendatários, parceiros e foreiros tanto no Nordeste
quanto no Sudeste, ameaçados de expulsão da terra, reduzidos rapidamente
a uma relação precária e extorsiva de arrendamento.”19 Nos anos 1970-
1980 essa base se ampliou, incluindo os posseiros e pequenos proprietários
que não se adequaram a nova política econômica. Assim, “A política de
incentivos fiscais para o desenvolvimento da Amazônia e a política de
florestamento e reflorestamento nas várias regiões do país acentuaram o
interesse das empresas capitalistas pela terra.”20 Neste processo histórico a
Igreja Católica apoia e incentiva os camponeses a lutarem pela terra, mas
tal ação não estaria vinculada a um projeto político, mas ocorreria por se
tratar de uma questão de justiça social.
Na década de 1960, teólogos vinculados à Teologia da Libertação se
aproximaram de cientistas e intelectuais, leigos, inclusive de ateus, e se
apropriaram dos referenciais teóricos metodológicos da Sociologia, da
Economia e da História para encontrar os motivos da pobreza no Brasil e
na América Latina.

Uma das conclusões encontradas foi a de que o grande culpado pela


exploração foi, inicialmente a empresa colonial e, depois, pelo capitalismo
que exporta a pobreza dos países centrais para a periferia. Com isso, a
Teologia da Libertação começa a se aproximar das teorias marxistas. Na
leitura marxista surgida nos anos 1960, a luta de classes, o motor da
história, não se restringia à esfera estrutural, em categorias estáticas de
proletariado e burguesia, como entendia o marxismo ortodoxo. A luta de
classes, para esse novo grupo, permeava todas as relações humanas

18
Martins, José de S. Os camponeses e a política no Brasil. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1981, p. 12
19
Martins, José de S. A política do Brasil: lúmpen e místico. São Paulo: Contexto, 2011, p. 10.
20
Id. Ib., p. 11

103
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

socialmente construídas: as relações de gênero, as relações étnicas e a


religião com suas instituições.21

A Teologia da Libertação surgiu com a prerrogativa de buscar


aproximar a Igreja latino-americana às realidades das populações
trabalhadoras dos países dessa parte do continente americano.

[...] a Teologia da Libertação tinha seu surgimento a partir da realização


do Concílio Vaticano II (1962-1965) se firmando após a Conferência
Geral do Episcopado Latino- Americano (1968), realizado na Colômbia,
neste concílio a Teologia da Libertação foi caracterizada como a ideologia
cristã apropriada para a realidade latino-americana da época fazendo
que parte dos sacerdotes e bispos se aproximasse dos trabalhadores
urbanos e rurais em um programa de assistência e de conscientização,
assim, foram criadas as bases que possibilitaram aos teólogos da época a
afastarem-se de uma teologia eurocêntrica e passassem a realizar uma
teologia a partir da realidade em que estavam inseridos. Em 1971, Gustavo
Gutiérrez publicou o livro “A Teologia da Libertação”, ao mesmo tempo
batizava a nova teologia e criava as bases práticas desta.22

A importância da Teologia da Libertação enquanto matriz teórica


presente na CPT e na formação ideológica de alguns movimentos populares
emergidos no Brasil e em outros países da América Latina, nas décadas de
1970 e 1980, é reconhecida por diversos autores. Entre aqueles consultados
neste estudo, temos Germani (2003), Stédile (1999), Fernandes (1996),
Bonin (1991), Brenneisen (1994), Alegro (1994), Grzybowski (1991), Iokoi
(1996), Martins (1981, 2011), Paiva (1986), Castelano (2000), Poletto
(1986) e Lowy (1991).
Em seu livro sobre a Igreja e os camponeses no Brasil, Iokoi afirma
que “A problemática das lutas camponesas não fez com que intelectuais da
Igreja produzissem análises mais profundas, [sobre a estrutura fundiária
no país] quer do ponto de vista da extensão, quer da importância empírica
dos dados sistematizados por seus numerosos grupos de pesquisa.”23 Além
disso, a Igreja não se propôs a esta tarefa.
Quando os posseiros, assalariados rurais e expropriados são
assentados, ressurgem os problemas que afligem os pequenos produtores,
sejam assalariados ou proprietários, frente ao modelo econômico em
vigência na década de 1980. Ademais, os assentados se deparam com a
baixa qualidade do solo, condições precárias de ocupação, entre outras
precariedades, já que os assentamentos, por parte do governo, visavam
atenuar os conflitos sem apresentar uma política agrícola alternativa para
estas áreas de reforma agrária.
21
FABER, Marcos Emílio Ekman; et al. Teologia da libertação: resistência intelectual nos anos de chumbo. Disponível em
<http://www.historialivre.com/brasil/teoliberta1.htm.> Acesso em: 02 out. 2012.
22
Id. Ibid.
23
IOKOI, Zilda Márcia Grícoli. Igreja e os camponeses no Brasil: Teologia da Libertação e movimentos sociais no campo-
Brasil e Peru, 1964-1986. São Paulo: Hucitec, 1996.

104
MARIA JOSÉ CASTELANO

A adversidade em que se encontrava a maior parte dos trabalhadores


rurais e a dura repressão que sofreram pode ser exemplificada em situações
de conflito que ocorriam pelo país. Kotscho (1982) expõe as mazelas
sociais resultantes da ação direta do Estado, por meio do Grupo Executivo
de Terras do Araguaia-Tocantins e a violência contra os posseiros e
trabalhadores rurais daquela região, o que motiva atritos entre o Estado e
setores da Igreja Católica. O renascimento de movimentos de resistência
por parte de parcelas de população em várias regiões do país como no
Norte (especificamente a Amazônia), no Sul e no Sudeste, nas décadas de
1970 e 1980, foi protagonizado por pequenos proprietários arrendatários,
assalariados, posseiros e colonos desapropriados para construção de
barragens.
Nas palavras de Martins:

Essa expropriação tem várias faces. Para os posseiros do Norte e do


Centro–Oeste é a expulsão deles e de suas famílias, lançados fora da
terra por meios geralmente violentos. Para o pequeno agricultor do Sul e
do Sudeste, o processo é mais suave, é quase disfarçado. A expulsão não
é direta. Ela se dá pela não-criação de condições para que o filho do
agricultor se torne agricultor autônomo como o pai. A sua tendência é a
de tornar-se um assalariado na cidade.24

Várias dissertações consultadas como Moraes Jr. (2011) e Schmidt


(2008) mostram, por meio da análise de depoimentos de agricultores sem
terra, que os movimentos Justiça e Terra e o Mastro no Paraná se
constituiram por pequenos proprietários e mini-fundistas oriundos do Rio
Grande do Sul e de Santa Catarina, além de paranaenses expulsos do campo.
Com a crise social que eclodiu após o naufrágio do “Milagre
Econômico”, em 1973, vários grupos que haviam apoiado o golpe passaram
a criticá-lo, inclusive a Igreja Católica. Novos matizes ideológicos emergiram
e tentaram conduzir as manifestações espontâneas dos trabalhadores da
indústria, no meio urbano, assim como dos trabalhadores do meio rural.
Dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, posicionou-se ao
lado dos trabalhadores rurais, assim como Dom José Maria Pires (Dom
Pelé) e Dom Antonio Fragoso. D. Waldyr Calheiros Novaes, reconheceu,
inclusive, a legitimidade da luta armada contra a ditadura. É a partir da
iniciativa destes religiosos mais sensibilizados com as questões sociais e
críticos em relação ao governo militar que surge a CPT no Brasil.
Em 1975, em Goiânia, foi realizado um encontro de bispos e prelados
da Amazônia no qual aprovam um documento de apoio à criação de uma
“Comissão de Terras”. Setores progressistas da Igreja passam a denunciar
as mazelas sociais resultantes do modelo político-econômico em vigência
no campo, naquele período. Paralelamente, surgiram ou se expandiram,

24
LENZ, Matias Martinho, S.J. (Coord.) A Igreja e a propriedade no Brasil. (Comentários ao documento da CNBB: Igreja e
problemas da Terra, Itaici, 1980). São Paulo: Loyola, 1980, p. 12.

105
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

adquirindo nova feição e importância, diversas formas ou agentes de


organização correspondentes a essa nova consciência, tais como as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), as associações de bairro e as
pastorais.

A CPT no P aran á e a su a me diaç ão e duca tiva jun to a os


trabalhadores rurais

No Paraná, a CPT existe oficialmente a partir de 1978, organizada na


região Sudoeste do Estado, vinculada à Regional Sul II da CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil). Conforme depoimento de Gernote Kirinus,
ex-secretário da CPT, ex-pastor e deputado estadual pelo Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), sua organização se deu pelo incentivo de
Dom Agostinho Sartori (bispo de Palmas), então secretário da CPT na Região
Sul. Kirinus era pastor da Igreja Luterana e foi liberado da paróquia de
Entre Rios para se dedicar inteiramente ao trabalho da CPT. Em entrevista
concedida ao jornal Voz do Paraná, Kirinus afirmou que “[...] a CPT é
ecumênica porque trata do problema da terra, que não tem religião. Este
problema é comum a todas as igrejas, porque é fundamentado nos direitos
do homem.”25
Em 1978, foi divulgada uma publicação elaborada pela CPT Nacional
com o sugestivo título O Mausoléu do Faraó: A Usina de Itaipu contra os
lavradores do Paraná. Esta publicação de 50 páginas, faz denúncias da
situação dramática enfrentada pela população a ser atingida pela
construção da Itaipu, sobretudo, ao explicitar concretamente o poder
desigual no processo de negociação entre os trabalhadores e os
representantes da Itaipu. A publicação tinha o objetivo de revelar:
1) A tensão e o medo dos colonos em falar sobre a Itaipu;
2) A desorganização inicial dos proprietários rurais e a dificuldade
de circulação das informações entre os moradores;
3) As táticas perversas de abordagem aos agricultores realizadas pelos
representantes da Itaipu;
4) O drama social, econômico e cultural das famílias que seriam e
foram expropriadas pela Itaipu.
Os colonos, como são chamados os pequenos proprietários rurais
nesta região, foram abandonados à própria sorte, sem preocupação de
promover uma política pública de reassentamento que procurasse amenizar
alguns dos problemas, como a manutenção dos grupos e famílias próximos,
sem isolá-las; a garantia de manutenção da posse da terra em iguais
condições; a destinação de terras férteis, etc. Além disso, as medidas
tomadas por parte do Estado foram marcadas pela falta de transparência

25
KIRINUS, Gernote. Entre a Cruz e a Política. Curitiba: Beija Flor, 1979, p. 137.

106
MARIA JOSÉ CASTELANO

no processo de cálculo das indenizações.


Cumpre destacar que um empreendimento da dimensão da
Hidroelétrica de Itaipu, em uma região densamente povoada, em qualquer
momento histórico significaria um grande impacto com mudanças que
repercutiriam nas dimensões ambiental, social e econômica. Mas, nas
décadas de 1970 e 1980, imperava uma conjuntura política adversa à
qualquer possibilidade de debate aberto ou manifestações populares. É
preciso alertar para a necessidade do real entendimento quanto à gravidade
da ação violenta exercida pelo aparelho de Estado contra qualquer
manifestação de contestação política durante o governo militar e isto
imprimia maior pressão sobre as pessoas que teriam o seu cotidiano (e
suas vidas) diretamente atingido.
Em 1973, o presidente brasileiro Emílio Garrastazu Médici e o
presidente paraguaio Alfredo Stroessner assinaram o “Tratado de Criação
de Itaipu”, com o objetivo de explorar o aproveitamento hidroelétrico do
rio Paraná, por meio da criação da Itaipu Binacional. Localizada na zona
de fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, a Usina de Itaipu, com o
represamento do rio Paraná, em 1982, resultou na submersão dos saltos
de Sete Quedas, alagando, também, ampla parcela de terras agricultáveis
no extremo Oeste do Paraná.
Em 1975, o projeto Itaipu foi levado ao público com a promessa de
que os desapropriados seriam indenizados com o “preço justo” ou
assentados em outros locais. Mas isto aconteceu apenas para alguns poucos
selecionados. A construção da Itaipu, com a consequente criação da
barragem e do lago (formado no ano de 1982), alterou o arranjo espacial
de extensa área dos lados paraguaio e brasileiro. No Brasil foram afetados
os municípios paranaenses de Foz do Iguaçu, Guaíra, Santa Helena, Terra
Roxa, Marechal Cândido Rondon e São Miguel do Iguaçu.
Além das consequências socioeconômicas e culturais, não pode deixar
de ser relatada, também, a dimensão ambiental. O desaparecimento das
Sete Quedas, conjunto de quedas d´água localizadas no rio Paraná, que
faz a divisa entre o município de Guaíra e o Paraguai, representa uma
perda irreparável sob qualquer dimensão financeira. No entanto, mesmo
sob esse aspecto, ela não foi mensurada no momento de calcular a
compensação financeira que a Itaipu fez aos municípios lindeiros ao lago,
pois, no cálculo correspondente à distribuição dos royalties, considerou-se
apenas a área alagada, o que resulta, até o presente, em flagrante
desequilíbrio em prejuízo para o município de Guaíra. Isso foi possível,
entre outros fatores, em razão da maneira como os prefeitos eram escolhidos
em áreas de Segurança Nacional, ou seja, eram indicados pelo poder cen-
tral, logo, representavam a extensão do governo militar na escala local.
Para o entendimento deste fato deve-se buscar evidências na política
de Segurança Nacional, pois o extremo Oeste paranaense foi marcado por
diversas intervenções dos militares nas décadas de 1960 a 1980, como a
indicação, pelo governo militar, dos prefeitos de municípios localizados

107
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

na faixa de fronteira correspondente a 150 km a partir da fronteira com


países vizinhos. Na dissertação Fronteira e Segurança Nacional no Extremo
Oeste Paranaense, Zago fez um estudo sobre o Município de Marechal
Cândido Rondon no contexto da preocupação militar com a Segurança
Nacional. Segundo a pesquisadora, o município foi declarado:

Área de Interesse da Segurança Nacional, durante o período de 1968 a


1985, em plena vigência da Ditadura Militar. Leis, decretos e atos
institucionais entraram em vigor nesse período com o objetivo de regular
e controlar todas as questões de ordem política, econômica e social.
Assim, a fronteira também esteve inserida no contexto da Segurança
Nacional, pois se fechava o país ao comunismo internacional.26

Além disso, os municípios localizados na fronteira e estâncias


hidrominerais foram considerados locais estratégicos para manutenção do
poder. Para a autora, o que pode ter motivado a inserção do município na
Área de Interesse da Segurança Nacional foram os seguintes fatores: “[...]
estar localizado na fronteira com o Paraguai, a intenção de construir uma
usina hidroelétrica no Rio Paraná, diminuir o poder de atuação do PTB e
pelo fato do município ser considerado um reduto de nazistas.”27 Em razão
da delimitação do nosso tema, não é objetivo nosso discutir tal questão,
mas cabe mencionar que a região Oeste foi ocupada em meados do século
passado por catarinenses e sul-rio-grandenses descendentes de alemães e
italianos. Há relatos e histórias contadas de que Marechal Cândido Rondon
e outras cidades da região foram refúgios de nazistas no pós-guerra. Parte
dos munícipes ainda fala dialeto alemão e há todo um marketing para
preservar esta “germanidade” da cidade, verificada pela manutenção de
fachadas echamel e festas típicas, como a Octoberfest.
Os militares e a sua representação partidária - a Aliança Renovadora
Nacional (ARENA) usaram a constituição da Área de Interesse da Segurança
Nacional para impor suas políticas aos municípios, através da nomeação
de prefeitos e controle do envio de verbas. Consideramos relevante ressaltar
esse contexto político da região para demonstrar o predomínio das forças
políticas pró-Estado no momento em que emerge o descontentamento por
parte dos agricultores atingidos pela barragem, à medida que percebem as
consequências sobre suas vidas cotidianas.
Para além do contexto na escala local, cumpre apresentar a conjuntura
nacional na qual se inseriram essas mudanças em curso no Oeste
paranaense. A crise econômica brasileira da década de 1970 levou, a partir
de 1981, à recessão, que atingiu a agricultura. O estado do Paraná destacou-
se, durante esse período, pela intensidade e pela velocidade do processo
de transformação agrária, cujo reflexo mais expressivo foi o êxodo rural,

26
ZAGO, Luciana G. Fronteira e Segurança Nacional no Extremo Oeste Paranaense. Dissertação (Mestrado em História).
Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, 2007, p. 04.
27
Id., Ib., p. 04.

108
MARIA JOSÉ CASTELANO

decorrente da decomposição de antigas formas de produzir, na esteira da


introdução de novas culturas e novas técnicas de produção, e da
decomposição da estrutura agrária através da acelerada concentração
fundiária. Além disso, em razão da crise econômica oriunda das
contradições e limites do projeto econômico da ditadura civil-militar, 1980
é considerada como “década perdida” e a política econômica da ditadura
militar deixava um pesado legado para o nosso presente histórico. De fato,
para o economista Quadros,

[...] é no período compreendido entre 1981 e 1983 que a economia


brasileira sofre o mais grave retrocesso de que se tem registro. Nesse
período, o Produto Interno Bruto apresentou taxas negativas de
crescimento em dois anos, com uma queda acumulada superior a 6%. O
forte declínio da renda média por habitante fez com que em 1983 seu
nível regredisse ao de 1976. O setor industrial foi especialmente afetado,
verificando-se entre 1981e 1983 uma redução de 20% em sua atividade,
sendo que a indústria de bens de capital foi a primeira e a mais duramente
penalizada pela recessão. Este péssimo desempenho acumulou
capacidade ociosa em níveis indesejados, e provocou forte aumento no
desemprego, que não se limitou à indústria.28

Nessa conjuntura de maior precariedade das condições de vida da


classe trabalhadora, aumentaram as mobilizações por parte de produtores
rurais de vários segmentos de produção que haviam sido, de certo modo,
incorporados ao processo de modernização agrícola. Como entre esses
“selecionados” poucos se capitalizaram, as contradições pelas quais
passam, no final da década de 1970, e as condições políticas desse período
permitiram que se organizassem em cada setor específico de produção.
Na primeira metade da década de 1980 nós temos a somatória de
uma conjuntura nacional desfavorável, marcada pela crise econômica
(perda de renda, concentração fundiária) que atingiu diretamente os
pequenos proprietários rurais, com a con junt ura loca l, com a
desapropriação de milhares de famílias no Oeste paranaense para a
construção de Itaipu. Nesse sentido, os agricultores da área atingida pela
formação do lago de Itaipu – na qual predominavam as pequenas
propriedades – enfrentaram, no mesmo momento, adversidades constituídas
nas escalas nacional e local.
Destaca-se o modo como o Estado, por meio dos seus braços
institucionais, como a Itaipu e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA), conduziu as negociações das desapropriações em razão
da construção da barragem para a hidroelétrica de Itaipu. Estas negociações
foram marcadas por táticas perversas de isolamento e violência bonapartista,
pela exclusão dos proprietários na discussão do processo, pela falta de
planejamento e organização por parte do Incra, no sentido de reassentar

28
QUADROS, Waldir de. 1985, p. 121, apud RAGO FILHO, Antonio. Op. cit., p. 382.

109
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

as famílias no Paraná ou em outras regiões brasileiras. Mas, para além da


especificidade desse conflito na sua dimensão local, constatamos que a
organização da CPT no Paraná teve relação direta neste processo conflituoso,
enquanto mediadora e apoiadora na organização da resistência dos
agricultores atingidos.
Em O Mausoléu do Faraó afirma-se: “Há muitos anos eles (colonos)
vieram e desbravaram o Oeste do Paraná: derrubaram as matas e
mecanizaram os campos para a produção de soja e trigo. Depois veio o
medo: Itaipu. O pesadelo de ter que deixar a terra e começar tudo de novo.”29
Ainda, conforme este documento:

Outra descoberta que pode ser feita em Alvorada é sobre a “justiça” do


“preço justo”. A capela católica do povoado e um galpão de reuniões –
ambos bastante velhos – estão situados num terreno urbano de 7 mil
metros quadrados. Esta área é igual aquela de propriedade da Igreja
Evangélica, cujo templo, verdade seja dita, é bem mais modesto. Mas a
diferença no preço fixado pela Itaipu, para uma e outra Igreja, foi muito
grande. O próprio bispo de Toledo, diocese onde se encontra Alvorada,
considerou “muito bom, acima das expectativas”, o pagamento de
cr$700,00 mil oferecido pela Itaipu. Enquanto isso, os evangélicos
receberam apenas cr$142,00 mil (ou 162 mil, o informante não sabia
com exatidão). A “justiça” desses preços foi certamente calculado pelo
grau de influência da Igreja Católica, que tem maioria de fiéis. Além disso,
pode-se pensar que a Itaipu pretendeu “comprar a aliança” de uma
instituição de influências como a Igreja Católica: o apoio ao processo de
desapropriação, ou pelo menos, o silêncio. Dom Armando Círio, ex-
bispo de Toledo, mostrou-se bem consciente desse problema.30

Muitas famílias foram expropriadas para viabilizar a materialização


da Hidroelétrica de Itaipu. Conforme dados retirados de Germani,31 nesse
processo 42.444 pessoas foram desapropriadas, 38.445 do meio rural e
3.999 do meio urbano. Mas, para além dos números, as cicatrizes sociais
deixadas por este evento ainda são perceptíveis nos relatos das pessoas
desapropriadas para a construção da obra, como o do Sr. Henrique Szlapak,
cuja “[...] situação de pobreza [...], sem-terra, sem outros bens senão sua
mulher e nove filhos [...]” são mencionados no documento da CPT, porque
ele, inclusive, manifesta-se publicamente por meio de cartas ao Presidente
da República, ao INCRA, mas, como resposta foi intimidado a calar-se.32
Em pronunciamento feito à Assembleia Legislativa Paranaense,
Gernote Kirinus denunciou as táticas de abordagem adotadas pela Itaipu,
para com os agricultores, na primeira fase de desapropriação. Nas suas
palavras

29
CPT. O Mausoléu do Faraó: a usina de Itaipu contra os lavradores do Paraná. 1978, p. 3.
30
Id. ib., p. 24.
31
GERMANI, Guiomar Inez. Expropriados terra e água: o conflito de Itaipu. Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia
(EDUFBA) - Universidade Luterana Brasileira (ULBRA), 2003.
32
CPT, op. cit., p. 25.

110
MARIA JOSÉ CASTELANO

Em Sede Alvorada do Iguaçu nós encontramos um processo [...] em


primeiro lugar desapropriaram na Sede do Distrito as casas comerciais,
os postos de gasolina, as farmácias e, uma vez acabada essa infra-estrutura,
o coitado do agricultor que ficou por último, teve que fazer 70 ou 80
quilômetros para comprar seu litro de gasolina, seu galão de gasolina ou
então os produtos de que ele precisava e com isso se desvalorizou a
própria propriedade. E, depois então, eram feitos os acordos com os
colonos que, também são feitos de uma forma desrespeitando a
comunidade e a organização social, porque é feito um aqui e outro acolá.
Parece que, inclusive, com o intuito de decepar as lideranças, em primeiro
lugar, para depois colher o resto já mansinho, já dócil e já dobrado aos
interesses da desapropriação da Itaipu Bi-Nacional.33

Foi esse cenário de mudança radical da paisagem no extremo Oeste


paranaense, com desdobramentos diretos nas condições de vida dessas
pessoas, que motivou ou talvez se possa dizer “forçou” a mobilização dos
agricultores, dando início ao movimento denominado Justiça e Terra. Este
reivindicava o pagamento das indenizações em terras no próprio Estado do
Paraná e melhores preços por suas benfeitorias e áreas inundadas e, em
julho de 1981, como resultado do movimento anterior foi organizado o
Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Oeste do Paraná (MASTRO).
Essa situação específica remete à análise mais abrangente feita por
Thompson, quando este afirma que a classe deve ser compreendida como
uma categoria “[...] uma formação histórica autodefinidora, que homens e
mulheres elaboram a partir de sua própria experiência de luta [...].”34
Na busca da indenização de suas terras alagadas, homens e mulheres
aprenderam a dar voz aos seus pensamentos, descobriram que não estavam
sozinhos e que a luta deve ser travada com o apoio do outro, a luta dava-se
em comunidade. Sob a forma comunitária, na constituição da sua própria
experiência de luta, almejava-se a redefinição de suas práticas e pensamentos
constituindo um modo de vida e valores contrários às práticas e valores
das classes dominantes. Conforme Kirinus (1979), “O trabalho de base nasce
no seio da própria igreja, isto é nas comunidades – especialmente as do
interior – que aglutinam pessoas homogêneas em termos de classe social. E
por isso mesmo tem interesses comuns [...].”35
A organização da CPT no Paraná, em 1976, teve relação direta com
esse processo conflituoso que emergia no Oeste do Estado, em razão da
necessidade de instituir organizações de resistência e com papel definido
de mediar conflitos envolvendo o processo de expropriação dos pequenos
proprietários, posseiros e trabalhadores rurais.
Os grupos de agricultores estavam mais organizados nas Comunidades
Eclesiais de Base e na Pastoral Rural nas cidades de Medianeira, Santa Hel-
ena, Marechal Cândido Rondon, São Miguel do Iguaçu, Matelândia,

33
KIRINUS, Gernote. Entre a Cruz e a Política. Curitiba: Beija Flor, 1979, p. 37.
34
THOMPSON, E. A miséria da Teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p.57.
35
KIRINUS, op. cit., p. 137.

111
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Capanema, entre outras. Para a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no


Brasil (IECLB), a CPT representava a oportunidade de organizar o movimento
dos trabalhadores rurais por meio de instituição ecumênica.

O Pastor Kirinus, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil –


IECLB, relata que, convidado pelo Pe. Angelo Perin, da ASSESSOAR –
Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural -, foi participar de
um encontro na recém-criada CPT de Goiânia. Daí surgiu a idéia de
organizá-la no Paraná, conforme já estava em outros Estados. O que foi
formalizado numa Assembléia da Pastoral Rural, realizada em Ponta
Grossa, na casa de líderes em agosto de 1977.36

Pode-se perceber a existência de alguns princípios da Teologia da


Libertação na atuação dos movimentos populares no Oeste do Paraná, tanto
sob o aspecto teórico, quanto prático, até mesmo de intelectuais orgânicos
vinculados à Igreja Luterana.
Considerando o contexto anteriormente mencionado, compreende-
se a relevância da Teologia da Libertação enquanto ideologia mobilizadora
junto aos trabalhadores rurais e pequenos proprietários em situação de
conflito no campo, nas organizações de resistência ao modelo político-
econômico da ditadura militar.
O termo ideologia utilizado aqui é compreendido sob uma
perspectiva marxiana, ou seja, tem sentido onto-nominativo, ideologia é
compreendida como um conjunto das formações superestruturais e as
formas de consciência.
Ao sistematizar sua concepção materialista da História, Marx e Engels
afirmam que:

A produção das idéias, representações da consciência está de início


imediatamente entrelaçada na atividade material e no intercâmbio
material dos homens, linguagem da vida efetiva. O representar, pensar, o
intercâmbio intelectual dos homens aparecem aqui ainda como afluência
direta do seu comportamento material. O mesmo vale para a produção
intelectual tal como se apresenta na linguagem da política, das leis, da
moral, da religião, da metafísica, de um povo. 37

Tendo como pressuposta a passagem anterior, concebe-se ideologia


como uma forma de consciência dos sujeitos sociais oriunda dos conflitos
e das lutas em uma sociedade, cindida em diferentes classes sociais.
Portanto, a ideologia não é entendida por nós como falsa consciência. Ao
contrário, concordamos com a concepção ontológica de que “[...] um
pensamento qualquer, certo ou errado, não importa, só se torna ideologia
quando vem a desempenhar uma precisa função social.”38 Ser ideologia,

36
ALEGRO, Regina Célia. Id ib., p. 41.
37
FERNANDES, Florestan (Org.) Marx & Engels. História. São Paulo, Ática, 1984, p. 192.
38
VAISMAN, Ester. A ideologia e a sua determinação ontológica. In: Ensaio, 17/18, 1989, p. 420

112
MARIA JOSÉ CASTELANO

exatamente, “[...] não é uma qualidade social fixa deste ou daquele


procedimento espiritual, mas, ao invés, por sua natureza ontológica é uma
função social, não uma espécie de ser.”39
Essa reflexão remete ao contexto das mobilizações dos Sem-Terra em
várias regiões brasileiras, mediadas pela CPT e sindicatos rurais no qual
emerge o MST, em 1984, em Cascavel. Em nossas investigações constatamos
que a CPT, em Marechal Cândido Rondon, surge da iniciativa de agentes
pastorais, entre eles o ex-pastor Kirinus, da Igreja Luterana, que é o redator
do boletim regional da CPT- PR, denominado Poeira. Este informativo tinha
como objetivo expresso informar o agricultor sobre as mazelas sociais no
campo e socializar experiências de lutas locais no sentido de superação e
resistência aos problemas enfrentados, em razão do processo de
modernização da agricultura na região.40
Por meio da análise da poesia escrita por um agricultor, em 1981,
durante um acampamento organizado pelos agricultores do Movimento
Justiça e Terra, em Foz do Iguaçu, fica evidente o apoio de alguns agricultores
ao governo militar, apesar dos conflitos. Mesmo apoiando o governo
ditatorial, os agricultores desapropriados se mobilizam para obter o direito
à indenização justa pelas suas terras e posses, mas no processo de luta
percebem a diferença de poder entre eles e os negociadores da Itaipu. 41

Quinze dias de luta


E quinze dias de sofrimento
Que nós temos aqui reunido
Porque a terra subiu demais
E a Itaipu poucos porcento
Já fomos levado 4 anos
E ainda não chegou este momento (grifos nossos)

Eu sempre votei a favor do governo


Até mesmo nesta última eleição
E o dia que nóis cheguemos aqui
Com toda a nossa razão
Nós fomo chamado de político
Isto que me dói no coração
Os colonos têm seus direitos
Porque são a raiz desta nação (grifos nossos)42

A poesia evidencia o sofrimento do agricultor quando percebe que o


discurso dos representantes da Itaipu e das autoridades locais são diferentes

39
LUKACS, G. Il Problema dell’Ideologia, p. 544 apud VAISMAN, Ester. A ideologia e a sua determinação ontológica.
In: Ensaio, 17/18, 1989, p. 420
40
CPT, 1978, p.1.
41
CPT, 1981.
42
KUHN, Senio. Quinze dias de Luta. Mimeo, 1/4/1981. Arquivo CPT- PR.

113
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

da prática. O movimento dos agricultores é acusado de fazer oposição


política ao regime: “E o dia que nóis cheguemos aqui/ Com toda a nossa
razão/Nó fomo chamado de político.” Ele que sempre apoiou o regime “Eu
sempre votei a favor do governo/ Até mesmo nesta última eleição” agora é
reprimido pelos representantes locais do governo, por fazer supostamente
oposição ao mesmo. Uma nova consciência emergiria neste processo
conflituoso de luta?
Em outra situação, como nas reuniões de negociações com o Incra
e com a Itaipu os agricultores não podiam enviar representantes como
assessores, advogados, pastores ou o sindicato. Nesse momento, eles
perceberam que a luta era desigual, pois do outro lado teriam de negociar
com assessores, advogados, engenheiros.
O documentário, “Desaproriado”, produzido por Frederico Füllgraf,
cineasta paranaense, mostra uma assembleia do Mastro, movimento que
abarcou os trabalhadores que não foram indenizados, ocorrida em 1983.
Durante esta assembleia, é possível perceber que a fala do agricultor vai
mudar. É interessante como o agricultor que conduz a assembleia denuncia
o racismo por traz do discurso de modernidade da ditadura militar, que
pretende a qualquer custo (e ele foi alto) modernizar o país. Apresentamos
a seguir a fala de um dos líderes do Mastro perante a representante do
Incra, durante a assembleia dos agricultores:

O Mastro reafirma mais uma vez o seu objetivo principal: Queremos


terra no Paraná. O Incra oferece para os agricultores sem terra, o Mastro,
os projetos de colonização no Pará, no Sul da Amazônia, no território de
Roraima, no Estado do Acre dizendo que o Brasil precisa levar os
agricultores do Sul para o Norte. Não só por que estão sem terra, mas por
que são melhores trabalhadores rurais que aqueles do Norte. O Mastro
acha que o homem da terra do norte é tão bom trabalhador quanto do
Sul e que não adianta levar o sulista para o Norte e trazer nordestino para
ser mão de obra barata na cidade.43

A partir das evidências apresentadas pode-se perceber que há indícios


de que as lideranças da CPT contribuíram para a formação da consciência
de classe dos seus integrantes, a partir das experiências de militância
emergidas no enfrentamento das contradições sociais e isto pode ser
constatado pelas ações concretas de mediação no conflito emergido no
Oeste paranaense. Outro fato relevante é como, ao longo do processo de
resistência, os agricultores exteriorizam a atividade intelectual (por meio
das poesias, músicas, da produção de panfletos, de documentários e da
auto-organização) conforme compreensão de Gramsci.

43
FÜLLGRAF, Frederico. Desapropriado. Documentário, 1983.

114
MARIA JOSÉ CASTELANO

Não há atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção


intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Todo
homem fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer,
ou seja, é um filósofo, um artista, um homem de gosto, participa de uma
concepção de mundo [...] contribui assim para manter ou modificar uma
concepção do mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar.44

À guisa de conclusão

A Teologia da Libertação surgiu como resposta à necessidade de uma


renovação teológica dentro da Igreja Católica e, sobretudo, na América
Latina nos anos de 1950-1960. No Brasil, vimos que a renovação das
pastorais sociais, entre elas a CPT, constituiu-se na reação da Igreja Católica
em razão da necessidade de se posicionar frente aos conflitos sociais
gerados pelo modelo econômico desenvolvimentista e subalterno ao
capitalismo internacional que, desde a década de 1950, ampliou as mazelas
sociais, sobretudo no campo brasileiro, em decorrência da Segunda
Revolução Industrial intensificada pelo regime militar (1964-1985).
O “projeto agrário” apoiado pela CPT coloca-se na direção de
contribuir para a realização de um modelo político de luta popular pela
terra e que faça parte dos projetos de transformação de toda a sociedade
brasileira. Cabe ainda investigar em que medida os princípios da Teologia
da Libertação influenciaram na atuação dos movimentos populares no Oeste
do Paraná, tanto sob o aspecto teórico, quanto prático, sobretudo os
intelectuais orgânicos vinculados à Igreja Luterana.
Ademais, em meados da década de 1980, segmentos vinculados à
Teologia da Libertação sofreram intensa crítica por parte da hierarquia da
Igreja, num processo em que foram silenciados e isolados. A ação da Igreja
Católica passa a ser marcada pelo conservadorismo na sua cúpula e pelo
arrefecimento na luta pela reforma agrária nas suas pastorais. Percebe-se o
retrocesso e a pressão interna sobre os setores progressistas da Igreja, sejam
dos mediadores ou dos movimentos sociais, inclusive, na luta pela
realização da reforma agrária radical.
O legado do processo investigado mostra que historicamente, no
Brasil, a grande massa da população só conseguiu obter alguns avanços
sociais por meio de mobilizações, apesar da maioria delas terem sofrido,
paulatinamente, derrotas na perspectiva do trabalho ao longo do século
passado.

44
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 02. Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000, p. 53.

115
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

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120
POEIRA:
A EXPRESSÃO DOS ATINGIDOS DE ITAIPU
1
Milena Costa Mascarenhas

Durante o período da ditadura civil-militar foi construída a Usina


Hidrelétrica de Itaipu Binacional, no leito do Rio Paraná entre a região do
município de Foz do Iguaçu, no Brasil, e o município de Puerto Stroessner,
hoje Ciudad de Leste, no Paraguai, entre os anos de 1975 e 1984. Este
projeto sequer foi discutido com a população atingida, pois foi um projeto
gestado em gabinetes dos governos nacionais, em especial dos dois países
envolvidos – Brasil e Paraguai. Somente no lado da fronteira brasileira,
atingiu cerca de 40 mil habitantes entre eles proprietários de terra, posseiros,
arrendatários, indígenas, comerciantes, entre tantos outros. Foram
obrigados, de diferentes formas, a deixar suas terras. Essas terras acabaram
sendo, de fato, desabitadas, mas não sem luta, não sem antes os atingidos
terem organizado um movimento reivindicatório, de denúncia das injustiças
praticadas pela Itaipu nas desapropriações (forma e valor das indenizações),
que divulgou esta face do processo para o país e o mundo, ao mesmo
tempo em que mobilizava e pressionava os “faraós e seus arquitetos”.
Este capítulo tem o objetivo de analisar o Boletim Poeira (BP),2 criado
em 1978, publicado pela Comissão Pastoral da Terra do Paraná (CPT/PR),
através das matérias e charges apresentadas. O Boletim contestava e
denunciava as ações da Itaipu, sendo o principal instrumento de
comunicação que os expropriados tinham para compartilhar suas
experiências, publicar concepções, denunciar as pressões sofridas pela
Itaipu e a partir da sua pedagogia apresentar um projeto de ação para o
movimento dos atingidos.

Poeira: no lugar das águas

Para fortalecer a articulação e a formação política da base social da


CPT/PR no Oeste e Sudoeste do Paraná, em 1978, a Comissão passou a
produzir um boletim informativo bimensal, o Poeira, produzido inicialmente
em Marechal Cândido Rondon, com o objetivo de informar, também as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), sobre as ações da CPT/PR e os
problemas enfrentados pelos agricultores dessas regiões.
O primeiro número do Boletim Poeira foi publicado em março de

1
Mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.
2
BOLETIM POEIRA (BP). Março de 1978 a janeiro de 1986.

121
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

1978 e iniciou com uma tiragem de 120 unidades. A capa do informativo


era produzida manualmente desde o nome do Boletim até os desenhos ou
charges. A parte interna era escrita com máquina de escrever na matriz e
depois de pronto era reproduzido num mimeógrafo à tinta e distribuído
gratuitamente. O boletim era impresso em papel sulfite tamanho ofício,
por vezes frente e outras, frente e verso. A periodicidade, em geral, ocorria
bimensalmente, porém há alguns números sequenciais que ficaram quase
sete meses sem ter publicação, a exemplo do número 9 que foi publicado
em maio de 1979 e o número 10 somente em dezembro do mesmo ano,
período que coincidiu com a transferência da sede da CPT de Rondon para
Curitiba.
As charges permeiam o conteúdo do Boletim Poeira e aparecem
sempre com o sentido de fazer uma crítica humorística de um fato ou
acontecimento específico e em geral estão relacionadas com a natureza
política da atuação dos sujeitos representados. Portanto, as charges faziam
parte da crítica, ou seja, da linguagem do texto. Os cartuns elaborados
pelos colaboradores do Boletim são bastante significativos e eram usados
para fazer alguma denúncia ou crítica ao momento que estavam passando
e aos fatos vivenciados. As charges dizem muitas coisas pela riqueza desta
linguagem, a exemplo do primeiro número do Poeira, que tinha na capa a
imagem de um agricultor caracterizado pelo chapéu e olhando para as
mãos vazias e abertas, demonstrando que não tinha ferramenta para
trabalhar nem terra para plantar ou criar animais. Em torno do colono fo-
ram indicados os principais problemas que enfrentava:

FIGURA 1: Capa do Boletim Poeira no. 1

Fonte: BP, Ano I, no. 1, março/1978, p. 1.

O primeiro número do Boletim Poeira, conforme observamos na capa


acima tratou de um dos maiores problemas neste período para os
agricultores que viviam às margens do Rio Paraná, que era a construção da

122
MILENA COSTA M ASCARENHAS

Itaipu, sendo que neste ano de 1978 iniciaram a construção da barragem


principal e teve início o programa de desapropriação aumentando a pressão
da Empresa para os que ainda não tinham negociado suas terras. A CPT,
através do Poeira, problematizava esse cenário social.
Até o número 9, Ano II – maio de 1979, o Boletim Poeira era elaborado
em Marechal Cândido Rondon, passando, depois disso, a ser publicado
em Curitiba, capital do Paraná, tendo em vista a mudança da sede da CPT/
PR para esta cidade, instalada no prédio da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB).
Nestes conflitos de terra, a CPT vai “[...] apoiar os camponeses em
suas lutas, estimulando sua organização para que pudessem ser os sujeitos
da conquista de seus direitos, alcançando o que seria sua condição básica:
a terra, por meio da reforma agrária”.3 A CPT tinha o conhecimento que
lutas isoladas eram lutas enfraquecidas, sendo necessário facilitar a
articulação dos trabalhadores rurais sem dependências ou tutelas,
incentivando e contribuindo para que os próprios camponeses e
trabalhadores rurais construam suas próprias organizações.4
O Boletim, sendo produzido pela CPT, além de politizar, obviamente
tinha o caráter de problematizar a questão da terra sob o paradigma
religioso, haja vista um amplo espaço dedicado para discutir a história da
terra através da Bíblia. A proposta da CPT é conciliar a atuação pastoral e a
leitura bíblica, ou seja, atuar nas diferentes formas de organização,
desenvolvidas pelos explorados, no sentido de viabilizar a sobrevivência,
resistência e transformações necessárias. A nova leitura de textos bíblicos,
ou a leitura popular da Bíblia, objetivava trabalhar principalmente com as
injustiças no processo de distribuição da terra.
O Boletim Poeira apresentava-se como uma boa arma de luta dos
expropriados de Itaipu, constituindo-se em um projeto contra-hegemônico
dos expropriados e de contra-discurso produzido pela CPT e atingidos para
se contrapor ao discurso do bloco da Itaipu. Se, por um lado, a Itaipu
estava produzindo uma verdadeira campanha publicitária para conquistar
a opinião pública, usando, dentre outros instrumentos, o Informativo Unicon,5
os expropriados precisavam deslegitimar o discurso da Itaipu, demonstrando
os confrontos e contrapontos, daqueles que estavam sofrendo na pele as
injustiças cometidas pelo grupo Itaipu.
Enquanto instrumento de comunicação o Poeira era um meio
pedagógico de formação que os expropriados tinham para compartilhar
suas experiências, elaborar concepções, denunciar as pressões realizadas
pela Itaipu e, a partir dessas elaborações, propor uma pauta de ação para o
movimento.

3
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. CPT: Pastoral e Compromisso. Petrópolis: Vozes, 1985.
4
Idem..
5
INFORMATIVO UNICON, Nº 1. Cascavel: 4 de fevereiro de 1978 a nº 117. Cascavel: dezembro de 1985.

123
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Desta forma, o Poeira objetivava ampliar a criticidade dos sujeitos,


de maneira a não aceitarem as “verdades” impostas pela Itaipu que tentavam
ludibriar os atingidos oferecendo um valor pela terra bem abaixo do
mercado, mas com um discurso de “Preço Justo” e ainda tentava convencê-
los que o sacrifício era para o bem do país. Com isso, o boletim contribuiu
para ampliar a conscientização política dos atingidos pela Itaipu e também
oferecer o espaço para exporem os seus pontos de vista. O objetivo era que
o Poeira fosse um subsídio de formação e organização.

A luta dos expropriados no Boletim Poeira

As charges, uma das formas de comunicação visual escolhida pelos


editores do Poeira, eram utilizadas para problematizar as questões presentes
e tinham como finalidade denunciar e criticar a forma como a Itaipu estava
agindo ou se comportando com os agricultores.

FIGURA 2: Reunião dos agricultores com os representantes da Itaipu

Fonte: BP, Ano I, nº 2, Maio de 1978, p. 2

A charge acima demonstra o início do processo de convencimento


que os representantes da Itaipu faziam com os agricultores para persuadi-
los a aceitarem a proposta de indenização que a empresa considerava “preço
justo”. Nesse período, segundo o Boletim Poeira, a Itaipu estava promovendo
uma série de reuniões entre os meses de abril e maio de 1978.6
O início do processo de desapropriação iniciou em 1974, e eram
feitas negociações individuais realizadas mediante Escritura Pública de
Compra e Venda, o que tinha como consequência a desconsideração do
direito a qualquer reivindicação ou questionamento por parte do vendedor
na Justiça em busca de indenização moral ou demais perdas.
Isso ocorria devido ao atraso, convenientemente aproveitado pela
Itaipu, de um Decreto Federal de desapropriação da área do reservatório, e

6
BP. Ano I, nº 2, Maio de 1978, p. 2.

124
MILENA COSTA M ASCARENHAS

teve como consequências uma série de desavisados que venderam suas


terras para Itaipu sem uma negociação que exigisse melhores condições.7
Segundo as promessas da Itaipu, todas as terras estariam indenizadas até
fins de 1978, o que de fato não ocorreu, além de permanecerem dúvidas
de como se daria este processo.

FIGURA 3: Povo unido é povo temido!

Fonte: BP Ano I, nº. 5, Novembro de 1978, p. 5

Na charge acima está explícita a importância que a CPT dava para a


união e adesão dos desapropriados para reivindicar seus interesses diante
a Itaipu. De um lado encontra-se a afirmação do movimento realizado
através das assembleias, ilustrado pelo ponto de exclamação. Em
contraposição, no outro lado da charge, encontra-se a Itaipu, que do ponto
de vista dos expropriados era um ponto de interrogação, uma incerteza,
algo não conhecido, dúvidas quanto às questões reivindicadas. No centro
do desenho está o povo unido, de mãos dadas, em círculo, transformando-
se em algo uno. A frase demonstra bem esse caráter: “povo unido é povo
temido!”, pois a união demonstra a sinergia do movimento, ou seja, mostra
a coesão dos membros do grupo em prol de um objetivo comum e isso
causaria temor para a Itaipu.8
Comparada com a outra charge, da figura 2, percebe-se que se trata
de outro momento na organização e mobilização dos expropriados. Não
há mais microfones, nem representantes maquiados, nem mesa que
hierarquiza; não há ouvintes sem rostos e inferiorizados. Na figura 3,
permanecem dois lados, o confronto e o contraponto, qualificado pelo
círculo do movimento dos atingidos. Trata-se, portanto, de uma imagem
para os atingidos e a importância da união na luta contra as injustiças. Em
1978 estava evidente que somente os pequenos unidos poderiam enfrentar
a Itaipu.

7
GERMANI, Guiomar Inez. Expropriados terra e água: o conflito de Itaipu. Salvador: Edufba: ULBRA, 2003, p. 71.
8
A imagem central dessa charge pode ser encontrada em outros materiais de formação de movimentos populares. O
fato de não ser original não prejudicou seu sentido na edição do Poeira.

125
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

FIGURA 4. Dilúvio acabando com o agricultor

Fonte: BP, Ano II, nº 7, Fevereiro 1979 p. 10

A charge acima demonstra essa narrativa trágica do dilúvio e da


“salvação que a Arca de Noé” representava. O dilúvio é a Itaipu, com a
força das águas do Rio Paraná represado que inundaria as terras. Na imagem
acima o agricultor aparece sendo expulso de sua terra e de seu trabalho
pelas águas do Rio Paraná que a Itaipu iria colocar em movimento. As
ondas engolindo o trabalhador, como se isso fosse mais forte que ele mesmo,
seria uma grande tragédia. Vejam que a luta dos desapropriados não é
travada contra as águas, mas contra as injustiças cometidas pela Itaipu.
Em alguns números do Boletim Poeira, havia solicitações por parte
da CPT, para que a população participasse das reuniões de pequenos grupos
e ajudassem na identificação de problemas e soluções, pois entendiam
que só através da união se conseguiriam avanços importantes. Nas
assembleias realizadas pelos atingidos anteriormente, já tinham sido
discutidos e debatidos os problemas por eles enfrentados.
O Poeira nº. 5, novembro de 1978, foi dedicado aos problemas que
os desapropriados enfrentavam naquele período, ficando claras, pelas
charges incluídas na capa do boletim, as principais questões que o dilúvio-
Itaipu produziria naquelas circunstâncias.

FIGURA 5: Capa do Boletim Poeira no. 5

Fonte: BP, Ano I, no. 5, novembro de 1978, p. 1.

126
MILENA COSTA M ASCARENHAS

O desenho da capa mostra as comportas sendo abertas, cidades


sendo alagadas, representação das pessoas participando da assembleia em
Santa Helena e a referência as 1.008 assinaturas feitas no documento
aprovado naquele ato e que seria entregue ao presidente Geisel, com as
reivindicações de terras no Paraná e a interrogação sobre a existência de
áreas no estado para essa finalidade e o apelo dos paraguaios aos brasileiros.
Destaca-se, também, a importância da igreja na comunidade e para o próprio
movimento, pois era o principal local/instituição para as discussões e
mobilizações realizadas naquele período.
Ao mesmo tempo, pedagogicamente e a contrapelo, problematizaram
os sentidos do canal da Usina (abertura) e da interlocução (fechamento).
Numa perspectiva popular, os passos da Itaipu marcavam “pompas à
oficialidade” e injustiças aos atingidos.
O principal evento relatado nesse Poeira foi a realização da primeira
assembleia dos atingidos pela Itaipu, ocorrida no dia 16 de outubro de
1978, considerada um marco da mobilização popular no Paraná. O objetivo
da assembleia era reunir os atingidos para discutirem sua situação e
pensarem em soluções ou alternativas para proporem encaminhamentos.
Compareceram à assembleia cerca de 1.500 agricultores que
participaram de um ato litúrgico e depois foram divididos em grupos, de
acordo com as suas regiões e comunidades (linhas no meio rural) de origem
para elencarem suas queixas e reivindicações e proporem.
O Boletim também registrou e divulgou que o movimento teve que
enfrentar a repressão praticada pela Ditadura, pois membros da equipe da
Pastoral da Terra sofreram pressões e tiveram que enfrentar dificuldades
que os militares criaram com o objetivo de enfraquecer a assembleia.
O documento não foi somente entregue aos representantes do
governo/Itaipu, como também à Comissão da Pastoral da Terra que teve
oportunidade de discutir os problemas diretamente com o Ministro de
Minas e Energia Shigeaki Ueki. Segundo matéria do Poeira, ele teria ficado
muito “preocupado” com a situação e prometeu que seriam tomadas algumas
medidas e soluções.
No número de fevereiro de 1979, a CPT discutia para onde iam as
7.000 famílias que seriam expulsas pela hidrelétrica até 1982. As alternativas
oferecidas pelo governo e pela própria Itaipu eram colonizar o Norte do
país (Mato Grosso, Acre, Amazonas, etc.). A CPT questionava se essa era de
fato a única alternativa de reassentamento, pois no Sul do país também
haveria terras disponíveis.
O Poeira tornou-se uma ferramenta importante de luta dos
expropriados e também para reforçar posicionamentos políticos, a exemplo
da luta pela reforma agrária, ao sugerir nos boletins a redistribuição das
terras de latifúndios pouco ou mal aproveitadas existentes na região Sul do
Brasil. Além disso, proporcionava espaço importante para os expropriados
adquirirem informações mais amplas e também expressarem suas opiniões

127
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

sobre os problemas então em pauta, tais como a questão do Estatuto da


Terra:

De acordo com o Estatuto da Terra, a Reforma Agrária tem como objetivo


acabar com o minifúndio – uma propriedade pequena demais para o
sustento de uma família e principalmente, acabar com o latifúndio – que
é definido como uma grande extensão de terra na mão de uma só pessoa
ou um pequeno grupo e, em geral, com grande parte sem nenhum
aproveitamento.9

A CPT não acreditava que esse tipo de colonização seria a melhor


opção para os agricultores, mas, sim, uma reforma agrária ou a
redistribuição de terras dos latifúndios improdutivos existentes no Sul do
país.
Na segunda Assembleia, realizada no dia 7 de abril, em Santa Hel-
ena, participaram mais de 2.500 agricultores, segundo o Poeira, reunidos
num campo de futebol, no Estádio dos Incas. Entre eles estavam os dirigentes
sindicais, a Diretoria da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do
Estado do Paraná (FETAEP), representantes da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) de Brasília e da CPT Nacional de
Goiânia e a CPT do Mato Grosso, além de simpatizantes e jornalistas. Não
estava presente, apesar de ter sido convidado, o Presidente da Itaipu
Binacional, o General Costa Cavalcanti.
Durante a assembleia foi produzido e aprovado, pelos presentes,
um documento intitulado “Terras no Paraná e Indenização Justa”. Neste,
constaram uma série de reivindicações, formando também uma “Comissão
de Coordenação e Representação”, responsável por coordenar o trabalho
de base, bem como reencaminhar as reivindicações e tentar realizar o
contato com o presidente Costa Cavalcanti.
A comissão se reuniu no dia 3 de maio de 1979 em Marechal Cândido
Rondon para escrever a primeira carta aberta explicando quais seriam os
próximos passos da caminhada. O primeiro seria solicitar uma audiência
com o Gen. Costa Cavalvanti, para discutir as reivindicações do documento
“Terra no Paraná e indenização justa”. Além de denunciarem uma série de
irregularidades cometidas pela Itaipu e por companhias de colonização.
A CPT, através do Poeira, informou que no dia 19 de abril de 1980
esteve reunida junto com membros da Comissão Justiça e Paz no Paraná,
alguns agricultores e o bispo de Foz do Iguaçu D. Olívio Fazza, em uma
audiência com o Departamento Jurídico da Itaipu para discutir, mais uma
vez, os problemas relacionados com a desapropriação.
O informativo denunciou práticas não cumpridas pela Itaipu, por
exemplo, o não cumprimento nos critérios estabelecidos pela Itaipu de
que posseiros receberiam no mínimo 50% da terra nua mais benfeitorias;
o valor que a Itaipu pagava estava abaixo do firmado anteriormente; a

9
BP. Ano II, nº 7, Fevereiro 1979, p. 10.

128
MILENA COSTA M ASCARENHAS

recorrência nos problemas com a medição da terra.10 Segundo a CPT as


explicações fornecidas pelo diretor jurídico da Itaipu não eram convincentes.
No número 12 do Poeira, a CPT noticiou a realização de um abaixo-
assinado pelos agricultores atingidos pela Itaipu e ainda não indenizados,
com 1.120 assinaturas, entregue à Itaipu Binacional, ao INCRA, ao Ministro
de Minas e Energia, César Cáls, e ao Ministro da Agricultura, Amauri Stábile,
em junho de 1980. A iniciativa surgiu com a aproximação do prazo para
desocupação das terras e exigiam:

1. Mais rapidez na titulação das terras pelo INCRA e na efetuação das


propostas e dos respectivos pagamentos pela Itaipu;
2. Preço mínimo de CR$ 180.000,00 (cento e oitenta mil cruzeiros) por
alqueire de terra nua e aumento proporcional nas áreas urbanas;
3. Esclarecimentos mais completos e corretos sobre a retitulação, a
desapropriação e o reassentamento11

O prazo final para sair das terras atingidas estava se aproximando da


data prevista e as indenizações não estavam ocorrendo no ritmo que se
necessitava. Das seis mil propriedades rurais e mil propriedades urbanas,
a Itaipu havia desapropriado cerca de 60%, sendo que destas 1.300
aguardavam documentação do INCRA e o instituto aguardava os laudos
topográficos da Itaipu,12 enquanto isso, os agricultores aguardavam ansiosos
por uma definição e além do sentimento de incerteza também permeava
um sentimento de injustiça sobre o que estava acontecendo.
Diante desse quadro de angústias e incertezas, as lideranças do
movimento decidiram, durante a reunião realizada no dia 11 de julho de
1980, que iriam cercar o escritório da Itaipu em Santa Helena até que suas
reivindicações fossem atendidas. Desta forma suas insatisfações não ficariam
no âmbito dos atingidos. Uma ação mais incisiva, organizada de maneira
pacífica, porém com muito mais força de pressão e exposição pública teria
que ser adotada para garantir uma posição e condição melhor para
minimizar as injustiças e fazer com que o “faraó” descesse do trono.
O Poeira 13 divulgou o resultado deste primeiro acampamento
realizado pelos desapropriados, iniciado no dia 14 de julho, em frente ao
escritório da Itaipu Binacional, na cidade de Santa Helena. Durante esse
ato de mobilização e organização foi consolidado o “Movimento Justiça e
Terra” (MJT). Na matéria que tratou desse ato, intitulada, Terra e Justiça:
exigem os agricultores, foram apresentados os motivos que levaram as
entidades de apoio e os expropriados a tomar essa decisão.
As reivindicações solicitadas pelo movimento, conforme o Poeira,
nº. 12, eram: – aumento de 100% sobre o valor pago por alqueire de terra

10
BP. Ano III, nº. 11, Maio e Junho de 1980, p. 13.
11
BP. Ano III, nº. 12, Julho/Agosto de 1980, p. 5.
12
Guiomar Inez Germani. Idem, op. cit., p. 113.
13
BP. Ano III, n 12, julho/agosto de 1980.

129
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

nua; – reajuste nos preços a cada 90 dias; – emissão de cheques


indenizatórios até 15 dias após o acerto; – reassentamento no Paraná; –
indenização de áreas atingidas pela rede condutora de energia elétrica e
possibilidade de utilização da terra até maio de 1982.
O acampamento, no primeiro dia, começou com a participação de
aproximadamente 150 agricultores e no final da tarde do dia 14 já havia
em torno de 800 agricultores concentrados, com aparelhagem de som,
batizada de “Rádio Justiça”, barracas, faixas e cartazes. O escritório da Itaipu
tinha sido tomado e a decisão era permanecer ali até obterem conquistas
substanciais. No mesmo dia, à tarde, os responsáveis pelo Departamento
Jurídico da Itaipu reuniram-se com uma comissão de representantes do
movimento para discutir suas reivindicações, porém, após 7 horas de
negociação, nada palpável foi conseguido, pois, segundo os representantes
jurídicos da Itaipu, eles não tinham poderes para assumirem um
compromisso sem antes consultar os superiores de Itaipu.
No Boletim subsequente ao ato, o MJT informou que das cinco
reivindicações, quatro tinham sido atendidas integralmente, porém faltava
o item considerado mais importante, que era o aumento de 100% sobre o
valor pago por alqueire de terra nua. No entanto, o representante da Itaipu
solicitou um prazo até o dia 26 do mesmo mês para analisar a proposta e
dar uma resposta. Sem o atendimento desta reivindicação, o movimento
decidiu permanecer acampado até a resposta da Itaipu. O número de
acampados que aderiram ao movimento só crescia: “calcula-se que em
média, diariamente, 1.800 a 2.000 permaneciam lá, acampados com as
famílias, em barraca, às quais davam nomes, como por ex.: Hotel Esperança,
Itaipu Inflação, Itaipu Indenização etc.14
Na medida em que o tempo passava, mais pessoas agregavam-se ao
movimento, com o apoio de várias entidades do país. Além de contarem
com a participação do Pe. Valentim, Pastor Werner Fuchs e de vários líderes
e autoridades locais, o MJT recebeu apoio do presidente da FETAEP, Agustinho
Bukowski, do presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA), José Guilherme Cavagnari, do Secretário de Estado da
Agricultura, Eugênio Stefanello, do Senador José Richa, do presidente da
CONTAG, Francisco Urbano de Araújo, e advogados da Comissão Justiça e
Paz da Região Oeste do Paraná.
No dia 25 de julho, durante a comemoração do dia do lavrador,
houve uma grande celebração que marcou esse ato, que teve a participação
de mais de 10 mil pessoas, novamente realizado em Santa Helena.15 Neste
mesmo dia, a Diretoria da Itaipu estaria reunida em Foz do Iguaçu para
discutir as reivindicações dos expropriados. Mas, o que se constatou foi o
não reconhecimento, por parte da Itaipu, do Movimento Justiça e Terra, ao
propor um aumento apenas parcial do solicitado.

14
BP. Ano III, nº. 12, Julho/Agosto de 1980, p. 5.
15
BP. Ano III, nº. 12, Julho/Agosto de 1980, p. 9.

130
MILENA COSTA M ASCARENHAS

Na edição do Poeira, no. 12, a CPT informou que os agricultores


reunidos no dia 26 de julho não aceitaram a proposta da Itaipu, solicitando
uma reunião com a Diretoria de Itaipu e a comissão dos Agricultores, em
Foz do Iguaçu. Desta forma foram escolhidos cinco agricultores
representantes juntamente com Olívio Fazza, Bispo da Diocese de Foz de
Iguaçu. No dia 27 foi realizada a reunião onde foi assinada a ata
estabelecendo um acordo prévio e no dia 28 aconteceu, finalmente, o acerto
entre as partes: “o acordo foi possível porque a Itaipu prometeu por escrito
que 80% das terras a serem indenizadas seriam classificadas como de
primeira classe”.16 Assim, os agricultores desmobilizam o acampamento
de Santa Helena e suspenderam a marcha para Foz do Iguaçu.

Finalizando, podemos dizer que o “MOVIMENTO: JUSTIÇA E TERRA”


conseguiu inúmeras vitórias. O aumento geral sobre o valor da terra nua
por alqueire superou 85%. Além dessa vitória significativa conseguida
através da união, da coragem e da pressão dos agricultores, outros acordos
foram realizados que vieram dar maior tranquilidade aos expropriados.17

Porém, nos meses seguintes, os indenizados começaram a perceber


ou a se sentir novamente mais fracos em relação à Itaipu. O Boletim Poeira
publicou no final do ano de 1980, uma série de reflexões sobre as atuações
injustas da Itaipu, com o seguinte questionamento: Se correr o bicho Pega,
se ficar o bicho come? Na sequência do texto a análise propunha outro
contraponto: Se enfrentar o bicho corre, se não corre a gente engole...”, ou
seja, apesar das exigências do Movimento Justiça e Terra terem sido em
parte atendidas, ainda havia pontos a serem revistos.
O MJT havia conseguido a implantação da correção monetária nos
preços das indenizações, mas esta foi fixada nas correções das Obrigações
Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs). No boletim também
esclareceram que em quatro meses os indenizados tinham recebido apenas
um aumento de 13%, o qual nem se comparava com a inflação real. Outra
promessa feita pela Itaipu e não cumprida foi a da titulação de terras pelo
INCRA, no qual a Itaipu precisava fazer a planta dessa área, mas até o final
do ano não tinham sido realizadas. Assim, novamente a CPT pediu uma
reunião dos atingidos com a direção da Itaipu:

Diante de tantas dificuldades, diante da procura de terras num país tão


grande como o nosso, o que você faria? Certamente nada se consegue
sozinho. Mas o pessoal da região de Itaipu continua pensando assim: se
juntar muita gente junta, unida e organizada, a história muda.18

16
BP. Ano III, nº. 12, Julho/Agosto de 1980, p. 10.
17
BP. Ano III, nº. 12, Julho/Agosto de 1980, p. 11.
18
BP. Ano III, no 14, Novembro/Dezembro, 1980, p. 31.

131
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Nota-se o caráter pedagógico que a CPT/MJT utilizou, no sentido de


reforçar a importância da participação popular e do engajamento dos
apoiadores, estimulando sua organização para que se transformassem em
sujeitos da conquista de seus direitos. A última frase, se juntar muita gente
junta, unida e organizada, a história muda, reforçava a ideia de que o
movimento era um agente de transformação.
Diante das crescentes angústias e insatisfações, a comissão dos
representantes se reuniu para tomar uma decisão, para isso foi convocada
uma assembleia dos expropriados no dia 16 de março de 1981, realizada
em Itacorá. Nessa assembleia compareceram cerca de 2.000 pessoas e
eles sabiam que a Itaipu só aceitaria as reivindicações apresentadas se os
expropriados tivessem mais força. A proposta era pressionar e isso
certamente se concretizaria com uma marcha até Foz do Iguaçu e
acampamento na frente à sede da binacional até o atendimento das
reivindicações.
A marcha foi brutalmente barrada ao chegar ao trevo na BR 277
que se bifurca em direção à cidade de Foz do Iguaçu e em direção à Itaipu,
centenas de homens da polícia Militar armados e seguranças da Empresa
impediram a caminhada.

FIGURA 6: Repressão ao Movimento Justiça e Terra

Fonte: BP. Ano IV, no. 15, Jan a Abr, 1981, p. 07.

Impedidos de seguir adiante com a marcha, os agricultores


decidiram organizar o acampamento ali mesmo. Para Juvêncio Mazzarollo
a decisão adotada após o impedimento e o bloqueio da rodovia, com uso
de policiamento, o acampamento no trevo foi marcante, pois possibilitou
uma boa visibilidade aos confrontos:

132
MILENA COSTA M ASCARENHAS

[...] era um lugar de maior circulação de pessoas e assim o movimento


garantiria publicidade mais ampla. Se tivessem ido até o Centro Executivo
ou ao terreno oferecido por um simpatizante do movimento, a
manifestação teria menor impacto. Por lá, onde o acampamento foi
instalado, passavam os veículos que se dirigiam à cidade de Foz do
Iguaçu, ao Paraguai e à própria Itaipu.19

Foi um grande constrangimento para a Itaipu ter a poucos


quilômetros da sua “magnífica obra” um movimento social organizado e
pacífico com mais de 1.000 pessoas acampadas no principal trevo da
cidade, passagem obrigatória de muitos turistas que liam os cartazes “Itaipu,
atração do mundo, crucificação dos brasileiros”.
O local do acampamento passou a ser designado como “trevo da
vergonha”. E se não bastasse o descaso da Itaipu com as condições dos
agricultores também provocou um boicote contra o acampamento ao
dificultar o acesso ao abastecimento de água aos manifestantes. A prefeitura
de Foz do Iguaçu, representada pelo Coronel Clóvis Cunha Vianna, também
negou qualquer auxílio aos agricultores acampados em relação ao
fornecimento de água. Simpatizantes do movimento e apoiadores da própria
comunidade local, sensibilizada com a causa dos colonos e indignada,
resolveu ajudá-los levando água para o acampamento. O bispo D. Olívio
Fazza intermediou junto ao prefeito de Foz do Iguaçu a questão do
abastecimento. Com isso, a prefeitura sentindo-se pressionada resolveu
ajudar, providenciando instalações sanitárias e água permanente.
No dia 20 de março, data da reunião com a Itaipu, os cinco
representantes do MJT, foram levar as reivindicações, porém voltaram
decepcionados. A Itaipu se recusou a negociar com os agricultores e
entregou-lhes um documento contendo as respostas às reivindicações, ou
seja, não houve qualquer possibilidade de diálogo com os integrantes do
Movimento Justiça e Terra. O documento continha uma reafirmação, por
parte da Itaipu, que sempre procedeu com justiça e que a prova disso era
de que ninguém tinha recorrido à Justiça, ignorando, desta forma, toda a
mobilização dos agricultores, e também diziam estar sensíveis à situação
dos agricultores e concediam um aumento de 80% no valor das terras. A
reivindicação atendida foi a de aumentar o prazo para retirar as benfeitorias.
O documento foi lido e analisado pelo Movimento e, ao final,
resolveram não aceitar as propostas da Itaipu e devolveram um documento
contendo a “resposta ao comunicado de Itaipu Binacional”, refutando a
nota distribuída à empresa e condenando o comportamento da mesma em
não dialogar. O movimento decidiu ficar acampado até serem atendidos
em suas reivindicações.

19
MAZZAROLLO, Juvêncio. A Taipa da injustiça: esbanjamento econômico, drama social e holocausto ecológico em
Itaipu. São Paulo: Loyola, 2003, p. 103.

133
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

No número 16 do Poeira, a CPT relatou as ações que o Movimento


Justiça e Terra realizou, no sentido de pressionar o poder público e a Itaipu
a atenderem as suas reivindicações, a exemplo da passeata, que ocorreu
no dia 7 de abril de 1981pelas ruas de Foz do Iguaçu, juntamente com
uma série de simpatizantes que se uniram em solidariedade ao movimento.
Foram mais de 5 mil pessoas concentradas na Igreja Matriz de São João
Batista e só foi encerrada com a caminhada até o “trevo da vergonha”.

FIGURA 6: Passeata em Foz do Iguaçu

Fonte: BP. Ano IV, no. 16, Maio/Junho, 1981, p. 07.

Por esses dias os agricultores realizaram também uma passeata pela cidade
de Foz do Iguaçu, tendo à frente Dom Olívio Fazza, padres, pastores,
irmãs e lideranças eclesiásticas e leigas. Para aquela manifestação vieram
caravanas de agricultores de outras áreas para se solidarizarem com os
desapropriados. Foi um fato histórico. A população de Foz saiu às ruas
para assistir e aplaudir a passeata.20

O movimento aguardava a conclusão do Instituto de Terras e


Cartografia (ITC), que faria um levantamento dos preços das terras no
sudoeste do Estado. Este laudo tiraria a conclusão se a Itaipu estava pagando

20
BP. Ano IV, no. 16, Maio/Junho, 1981, p. 07.

134
MILENA COSTA M ASCARENHAS

o “preço justo” ou não. No dia 11 de abril os colonos receberam o documento


do ITC com o levantamento do preço das terras no mercado.

O ITC provou que os agricultores tinham razão. Itaipu estava pagando


cerca de 350 mil cruzeiros por alqueires, e a pesquisa do ITC mostrou
que o preço médio para as terras de 1ª classe eram de 491 mil cruzeiros
por alqueire de terra, sem benfeitorias, sendo que 80 por cento das terras
desapropriadas estavam incluídas na Primeira classe, conforme Itaipu
havia admitido anteriormente.21

Desta forma, o ITC dava ao Movimento Justiça e Terra um maior


reconhecimento da sua luta, porém a Itaipu não aceitou os valores. No dia
8 de maio de 1981 a Itaipu entregou uma proposta de aumento de percentual
de 31% sobre o valor das terras e benfeitorias e as terras de primeira
receberiam 471 mil cruzeiros por alqueire.
No dia 9 de maio, ao completar 54 dias de acampamento, o
movimento em assembleia decidiu aceitar as condições propostas pela
Itaipu e desarmar o acampamento: “Itaipu havia aceitado praticamente 80%
de suas reivindicações, e se não havia atendido todas, pelo menos tinha
certeza: valeu a pena lutar, pois a situação agora era significativamente
melhor à do início do acampamento”.22 O acampamento terminaria, mas
não a luta por uma indenização justa.
Mesmo com o levantamento do acampamento a mobilização era
mantida, pois faltava o cumprimento das promessas por parte da Itaipu.
Enquanto isso, a CPT continuava denunciando as consequências do processo
de expropriação. Como a falta de infraestrutura nas novas terras adquiridas
pelos atingidos de Itaipu em Mato Grosso do Sul, e também algumas famílias
que não conseguiram novas terras, permanecendo no Paraná sem destino,
assim como alguns posseiros, arrendatários e boias-frias que resistiram ao
processo de expropriação. As injustiças não foram superadas mesmo após
as sucessivas pressões do MJT.
No dia 2 de março de 1982 ocorreu nova assembleia sob a
coordenação do MJT, na qual estavam presentes 180 dos 600 expropriados
pela Itaipu que ainda não tinham sido indenizados, faltando dois meses
para a desapropriação. Após terem discutido os problemas que enfrentavam,
resolveram divulgar uma Carta Aberta denunciando o tratamento dado pela
Itaipu. Entre eles, destacam-se: pagamento atrasado em mais de 90 dias,
atrasando a compra de novas terras; algumas propriedades não tinham
sido procuradas para uma proposta de preço; alguns casos de litígio
continuavam sem solução; propriedades que tinham rede elétrica ainda
não tinham sido indenizadas com inclusão do valor desses investimentos;
pagamentos realizados abaixo do prometido; famílias estavam sem

21
BP. Ano IV, no. 16, Maio a Junho, 1981, p. 09.
22
Guiomar Inez Germani. Idem, op. cit., p. 167.

135
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

infraestrutura, além disso, no Paraguai havia os mesmos problemas.23


Conforme decisão tomada na assembleia, os expropriados reunidos
em uma comissão foram a Foz do Iguaçu e apresentaram as reivindicações
à Itaipu, porém a empresa não atendeu a nenhuma das demandas. Sendo
assim, a Comissão decidiu por uma nova assembleia marcada para o dia 5
de março para discutir os próximos passos. A decisão dos presentes nessa
assembleia foi de realizar uma marcha para Foz do Iguaçu até o Trevo da
Vergonha e também de permanecer nas propriedades plantando até o dia
30 de abril, prazo dado pela Itaipu para deixarem suas terras. Porém, no
dia 8 de março, um dia antes de acontecer a marcha para Foz do Iguaçu, a
Itaipu chamou os representantes dos expropriados para discutir as
reivindicações expostas. Conforme o boletim Poeira, quase a totalidade
das reivindicações foi aceita.

Mais uma vez o povo unido e organizado, por mais simples e humilde
que seja, consegue vencer. Esta vitória começou com as primeiras
reuniões, Assembleias, marchas de protestos, acampamentos que os
expropriados de Itaipu realizaram e que só será vitória definitiva quando
o último agricultor da barragem será indenizado justamente.24

Nota-se ao longo das edições do Boletim Poeira uma qualificação e


ampliação do MJT, pois eram resultantes e resultados das lutas e da
obtenção de conquistas (redução das injustiças). A organização política do
MJT fortalecia as lutas de outros agricultores atingidos por barragens e
também envolvia a organização e o fortalecimento de outros movimentos
sociais, a exemplo do Movimento dos Agricultores Sem Terra no Oeste do
Paraná (MASTRO).
O MASTRO foi organizado a partir das lutas e experiências do MJT,
sendo o resultado da conscientização política dos agricultores e também
das sucessivas injustiças provocadas não só pela construção da barragem
da Itaipu, mas pela concentração da propriedade da terra, pelo processo
de mecanização da agricultura, crédito rural restrito e desigual, pelo novo
padrão produtivo no campo, entre outros problemas agrários e da política
agrária. O engenheiro agrônomo Claus M. Germer descreve no Poeira os
resultados obtidos em pouco tempo pelo movimento:

No fim de setembro o MASTRO fez a sua segunda reunião geral. Nesta


data ele só existia a dois meses. No entanto, o seu progresso foi grande.
Já havia 22 grupos organizados, reunindo-se regularmente, e nele já tinham
se inscrito 1.022 (mil e vinte dois) agricultores que não têm terra ou têm
terra insuficiente para viver. Além destes, há mais cerca de 800 agricultores
que vão se inscrever. Estes agricultores são somente de três municípios
do Oeste do Paraná: São Miguel do Iguaçu, Medianeira e Santa Helena.

23
BP. Ano V, no. 20, Janeiro/Fevereiro, 1982
24
BP. Ano V, no. 20, Janeiro/fevereiro, 1982, p. 09.

136
MILENA COSTA M ASCARENHAS

Isto dá uma ideia do grande número de agricultores pobres que existem


em todo o Paraná.25

Essas conquistas do MASTRO, enquanto movimento, além de


mostrarem a grande quantidade de agricultores sem terra, indicava que
havia terras suficientes para os agricultores, além de provarem que não
estavam agindo sozinhos, mas, sim, de estarem organizados.
No dia 13 de outubro de 1982 iniciou a formação de um dos maiores
lagos artificiais do mundo e enquanto milhares de famílias lamentavam as
terras que jamais veriam a partir de então, a Itaipu/Governo comemorava a
vitória. Enquanto uns davam adeus às Sete Quedas, outros exaltavam o
enchimento do lago evidenciando os conflitos de interesse, conforme os
dois textos abaixo:

Adeus, Sete Quedas Homenagem ao enchimento do lago

Sete Quedas por mim passaram I taipu, no rio Paraná profundo.


e todas sete se esvaíram. T em a grande hidrelétrica do mundo,
Cessa o estrondo das cachoeiras, A s Turbinas, quilowatt em potência.
e com ele I mensa barragem, concreto e ciência,
a memória dos índios, pulverizada, P rópria do forte, que o temor não verga,
já não desperta arrepio. U fana justa, mas da Pátria serva.
Aos mortos espanhóis, aos mortos
bandeirantes, B andeirante de agora e do futuro,
aos apagados fogos I ndo bastar um evoluir seguro,
de Ciudad Real de Guaíra vão juntar-se N as terras brasílica e guarani
os sete fantasmas das águas assassinadas A emoção sentida, aqui e ali,
por mão do homem, dono do Planeta. C om o clangor sonoro da vitória.
Aqui outrora retumbam vozes I rmão paraguaio reparte a glória,
da natureza imaginosa, fértil O uro da água, é mina de riqueza
em teatrais encenações de sonhos N o esplendor maior desta natureza,
aos homens ofertados sem contrato. A humana mão consegue, todavia,
Uma beleza-em-si, fantástico desenho L íquida selva, tornada energia.
corporizado em cachões e bulcões de Gastão Azevedo de Almeida
aéreo contorno
mostrava-se, despia-se, doava-se Fonte: UNICON. Ano V, no. 95, Novembro,
em livre culto à humana vista extasiada. 1982, p. 03.
[...]
Carlos Drummond de Andrade

Fonte: MAZZAROLLO, 2003, p. 178.

Nesses dois poemas acima, escritos no mesmo ano, em 1982,


destacam-se as diferenças/conflitos de interesses. O primeiro foi escrito
por Carlos Drummond de Andrade publicado no Jornal do Brasil no mesmo
ano. Nele expressa a sua inconformidade e a de milhares de pessoas com
a destruição do Salto de Sete Quedas. O cartão postal de Guaíra composta
de dezenove cachoeiras e considerada a maior cachoeira do mundo em
volume de água, desapareceu para sempre, significando uma perda

25
BP. Ano IV, no. 18, Setembro/Outubro, 1981, p. 22.

137
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

insubstituível e irreparável para a população. Do outro lado, o acróstico


escrito por Gastão Azevedo de Almeida, da Diretoria Jurídica de Itaipu,
demonstra um forte ufanismo a “grande construção”, a tecnologia, a ciência
“envaidecida” de tamanha obra construída pela mão do homem que
transformou a selva em riqueza energética, repartindo a “glória” com o
Paraguai.
Após o enchimento do lago, outros problemas ocorreram, sendo
noticiados pelo Poeira, em As Sete Pragas de Itaipu denunciaram que o
excesso de chuva após o fechamento da barragem e a formação do lago de
Itaipu aumentou a erosão em muitas propriedades; previam uma queda de
30% na safra; animais domésticos abandonados pelos colonos que deixaram
a área; procriação de insetos decorrentes de água parada; cheiro
insuportável em razão de animais mortos; estradas interrompidas e colonos
transferidos para outras regiões passando necessidades.26 Isso significava
que, mesmo após a formação do lago, os problemas e injustiças realizadas
pela Itaipu não finalizaram, assim como a luta dos expropriados.

Concl usão

Neste capítulo foi analisado o Boletim Poeira com o objetivo de expor


as contradições na construção da Itaipu Binacional. O Boletim apresentou-
se como um instrumento de organização pensado não só para noticiar o
que acontecia, mas também educar e organizar seus leitores diante da
construção da hidrelétrica.
Houve muita resistência por parte dos expropriados, conforme
analisado no trabalho. Muitos deles tiveram que sair de suas terras sem
uma indenização justa. Diante da constatação do embuste do “preço justo”,
os expropriados criaram, principalmente através da atuação da Comissão
Pastoral da Terra e das Comunidades Eclesiais de Base, um movimento
social de resistência e reivindicação que incluiu a produção de materiais
de formação e comunicação, a exemplo do O Mausoléu do Faraó27, o Boletim
Poeira e A Taipa da Injustiça28, nos quais socializavam as ações, propuseram
formas de organização e de discussões e denunciavam as injustiças que
sabiam que a direção da Itaipu realizava.
Entendendo ser a pesquisa uma prática que requer avanços
constantes, já que visa o acréscimo ou superação da produção historiográfica
existente, esperamos que novas pesquisas surjam para compreendermos
melhor esse movimento importante de organização e resistência construída
pelos atingidos de Itaipu. As fontes utilizadas nesta pesquisa, em especial o

26
BP. Ano V, no. 25, Novembro/Dezembro, 1982, p. 6 e 7
27
CPT. O Mausoléu do Faraó: Usina de Itaipu contra os lavradores do Paraná. CPT, 1978. (mimeo).
28
CPT. A Taipa da Injustiça. CPT, 1980.

138
MILENA COSTA M ASCARENHAS

Poeira não foram esgotadas e, certamente, possibilitarão novas pesquisas


que tratarão de questões não contempladas neste trabalho.

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139
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

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140
TERRA E PODER NO OESTE DO PARANÁ
1
Irene Spies Adamy

O estudo da classe dominante regional e sua organização na sociedade


civil, não tem merecido atenção na historiografia do Oeste do Paraná. Nem
sequer considera-se a existência de classes sociais ou frações de classe.
Quando trata de temas próximos a estes sujeitos, considera-os
empreendedores e “grandes homens” da história local. Este trabalho
caminha no sentido de abrir esta página nos estudos sobre a história do
Oeste do Paraná, a partir do estudo da entidade associativa e corporativa
dos seus agropecuaristas: a Sociedade Rural do Oeste, entendida enquanto
espaço e forma de sua organização e direção.
As classes dominantes no campo brasileiro têm sua história marcada
pela constante e intransigente defesa da propriedade da terra como um
privilégio patrimonialista para poucos, questionando e dificultando a
efetivação da reforma agrária e defendendo modelos agrícolas que tendem
a inviabilizar a agricultura familiar e camponesa.
Neste sentido, os grandes proprietários rurais da região Oeste do
Paraná têm buscado, historicamente, diferentes formas de organização e
representação política, na defesa de seus interesses e para manter sua
condição e posição de classe.
Para compreender como se desenvolveu este processo, é funda-
mental conhecer as bases materiais sob as quais esta fração de classe se
constituiu e se consolidou, bem como os embates que travou a fim de
manter sua condição hegemônica. Esta abordagem é possível e o caminho
da pesquisa pode iniciar a partir da identificação de suas entidades de
classe, de seus instrumentos e ações de luta e pela análise dos discursos
proferidos por seus representantes, voltados para promover o consenso
em torno do seu projeto social, econômico, político e cultural.
A identificação dos intelectuais orgânicos desta fração de classe e
seus aparelhos privados de hegemonia são fundamentais para compreender
como eles têm buscado a legitimação de sua condição, ocupando cargos
chaves nos espaços institucionais de poder e como tem se posicionado
frente à propriedade privada, ao Estado restrito e aos embates que travam
contra seus “inimigos” na esfera da sociedade civil e no campo de lutas
sociais relacionadas ao domínio da terra. Como situou Regina Bruno: “Se
não procurarmos conhecer quais as estratégias do patronato rural,
dificilmente conseguiremos visualizar a ordem do poder e da dominação
na sua totalidade”2.
1
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História, Poder e Práticas Sociais da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná – UNIOESTE. E-mail: ireneadamy@hotmail.com.
2
BRUNO, Angela Regina. Senhores da terra, senhores da guerra: a nova face política das elites agroindustriais no Brasil. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1997.
141
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

A formação da fração agrário-pecuarista da classe dominante na região


Oeste do Paraná, mais especificamente no município de Cascavel, encontra
suas origens em momentos distintos: no processo de privatização legal e
ilegal das terras devolutas e na grilagem de terras de posseiros,
desencadeado com a nova colonização ocorrida a partir do início da segunda
metade do século XX, cujo modelo contribuiu para a formação de uma
estrutura fundiária marcada por grandes propriedades rurais, e no modelo
de modernização conservadora da agricultura, desencadeado a partir do
final da década de 1960, que dispensou meeiros, arrendatários e
assalariados, acelerou o processo de expropriação de pequenos agricultores,
contribuindo para o aumento na concentração da terra na região. Da mesma
maneira, durante a década de 1980, a crise na agricultura e a expansão da
pecuária bovina contribuíram para o aumento na concentração de
propriedades.
O povoamento efetivo de Cascavel e que marcou sua formação atual,
teve início através da “ocupação espontânea”, ocorrida durante a década
de 1930, quando chegaram à região alguns colonos descendentes de
poloneses oriundos de Santa Catarina, bem como de “caboclos” oriundos
de Guarapuava. Instalando-se em pequenas chácaras, abriram posse e
derrubaram a mata, faziam suas roças e fundaram vilarejos como as
Colônias Esperança e São João. À época, este processo de ocupação facilitava
o acesso à terras devolutas,

pois, além de não exigir nenhuma formalidade, bastava ao posseiro entrar


na mata, construir uma casa (ou rancho), limpar uma pequena área de
mata, plantar uma roça e demarcar a área da posse. Em seguida, deveria
ser feita a solicitação de título de posse, que mais tarde seria confirmado
como título definitivo.3

A partir da década de 1940, a ocupação passou a ser realizada pelas


colonizadoras, principalmente as madeireiras, e pelo Estado que tinha o
intuito de viabilizar o povoamento, a venda ou doação de terras, com ou
sem titulação. Para tanto, foi criado inicialmente, o Departamento
Administrativo do Oeste e, em 1946, a Fundação Paranaense de Colonização
e Imigração (FPCI) e o Departamento de Geografia Terras e Colonização
(DGTC).
Ainda a partir da década de 1950, a ocupação do território do então
município de Cascavel era facilitada pelo fato de as terras serem devolutas
e o Estado reconhecer o direito de propriedade, mediante a comprovação
de posse feita pelo interessado junto aos seus órgãos. Esta situação por
vezes gerava conflito entre posseiros e os que apresentavam a titulação de
propriedade da terra e os impasses nem sempre eram resolvidos no âmbito
da legalidade.

3
MYSKIW, Antonio Marcos. Titulação de terras no Oeste Paranaense: Uma análise documental. Marechal Cândido Rondon. TCC em
História – UNIOESTE. Marechal Cândido Rondon, 2000.

142
IRENE SPIES ADAMY

Alberto Pompeu4, um dos primeiros moradores de Cascavel, atuou


com seu pai no setor madeireiro e de serrarias, extraindo pinheiros e abrindo
estradas. Segundo ele, durante o Governo Lupion havia um esquema para
titular terras para terceiros envolvendo representantes de órgãos do governo
do Estado, cartórios, polícia e autoridades locais. Pompeu relatou que, à
época, o pretendente à área de terra “ia lá no cartório, fazia a escritura,
registrava e tudo bem. Aí você tinha o proprietário. Daí, você tinha o
problema do posseiro que estava lá. Aí vocês têm que juntar os jagunços
pra tirar os posseiros de lá”.5
Sobre a quem cabia a responsabilidade de tirar o posseiro da terra,
Pompeu explica que havia uma negociação entre quem tinha a procuração
para vender a terra e o interessado em comprá-la. “O negócio era feito: Te
faço baratinho [o preço da terra], mas você assume o posseiro. Então, às
vezes tinha que tirar o posseiro antes de vender, aí valorizava a terra. Enfim,
tinha essa negociação”.6
A colonização das terras que compreendem a região Oeste foi
efetivada, basicamente, por empresas privadas. Porém, o Governo do Estado
do Paraná teve participação direta no processo atuando principalmente na
concessão de terras e títulos a estas empresas, aos novos posseiros, ou aos
posseiros que ali já se encontravam desde as primeiras décadas do século
XX. Este foi um processo conflituoso, marcado pelo favorecimento político
e por disputas em torno do direito de posse e de propriedade da terra, a
exemplo dos processos em disputa entre a União, o Estado e a empresa
Braviaco7.
O governador Moysés Lupion, no seu primeiro mandato, entre os
anos de 1947 e 1951, conforme dados do Instituto de Terras Cartografia e
Geociências do Paraná, (ITCG) emitiu 9.564 títulos de propriedade no
estado. Em seu segundo mandato, de 1956 a 1961 o número foi ainda
maior, com um total de 26.084 titulações. Este processo teve continuidade
nos governos de Ney Braga que, entre 1961 e 1965, titulou 8.880
propriedades. Entre 1979 e 1982, quando do seu segundo mandato como
governador, foram expedidos 3.366 títulos8.

4
Alberto Rodrigues Pompeu, nasceu em Foz do Iguaçu no dia 15/11/1937 e passou sua juventude entre Laranjeiras
do Sul, Guaraniaçu e Cascavel. Seu pai era agrimensor e, juntamente com seu filho, demarcaram uma boa parte das
terras na região de Cascavel. Por ser um dos primeiros contadores, Alberto Pompeu atuou junto a várias empresas
(madeireiras, colonizadoras, cartórios e instituições do poder público). Também foi professor na Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Cascavel (FECIVEL) e na UNIOESTE, quando se aposentou compulsoriamente.
5
POMPEU, Alberto Rodrigues. Entrevista concedida ao projeto Intervenções na relação Universidade/Educação
Básica: Tempo Passado, Desafio do Presente (Unioeste/MCR), Cascavel, 28/02/2009.
6
Idem.
7
Antonio Marcos Myskiw abordou estas disputas envolvendo a empresa Braviaco em sua dissertação “Colonos,
posseiros e grileiros: conflitos de terra no Oeste paranaense (1961-1966), assim como Cecília Maria Westphalen;
Brasil Pinheiro Machado e Altiva Pilatti Balhana em “Nota prévia ao estudo da ocupação da terra no Paraná
moderno”. In: Boletim da Universidade Federal do Paraná. Departamento de História, n.º 7, 1968.
8
Cf. http://www.itcg.pr.gov.br/arquivos/File/RelacaoGovernantesDITER2.pdf

143
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Dentre os primeiros grandes proprietários rurais está a família


Formighieri (os irmãos Euclydes, Orestes e Francisco) que chegou à região
do município de Cascavel no final da década de 1950, com o objetivo de
adquirir terras e instalar uma serraria. A fim de ampliar os negócios
madeireiros que a família desenvolvia no Rio Grande do Sul e sabedor da
“imensidão das florestas de pinheirais”, adquiriu de “terceiros”, amplas
áreas de terra para explorar a madeira. Euclydes José Formighieri9 foi um
dos grandes agropecuaristas de Cascavel, destacando-se pela alta tecnologia
aplicada à produção confinada de gado bovino.
Segundo Euclydes Formighieri 10 , Lupion teria sido o melhor
governador para o Oeste do Paraná, por ter acabado com as posses e os
posseiros e a chamada “indústria da posse”.11

Quando Moysés recebeu o governo, na segunda época, ele tratou de


titular, bem ou mal. “É posseiro, não tem nada”, titulava pro João dos
Anzol, para Fulano, para Beltrano, e esse Fulano ou Beltrano, vendia pra
terceiro e esse terceiro acertava com os posseiros. Por bem ou por mal,
acertava com os posseiros.12

A concessão de terras foi intensificada a partir da emancipação


política de Cascavel, quando o Governo do Paraná efetivou a titulação de
novas áreas e também de áreas ocupadas por posseiros de longa data,
numa tentativa de resolver impasses e disputas envolvendo as posses, em
especial dos posseiros de pequenas áreas.
As grandes áreas de posse foram “legalizadas” com apoio do
Governo do Estado, seguindo critérios muito particulares, a exemplo do
que explica Formighieri:

Como aconteceu comigo, por exemplo, em Ibiracema. Nós tínhamos


uma área de terra lá, que tinha 27 posseiros em cima de uma área de
1000 e poucos alqueires. E nós fizemos uma proposta para acabar com
estes posseiros. Demos cinco alqueires de terra, dada, medida, escriturada,
aliás, escriturada não, dada não. Vendida a dois mil o alqueire, ou seja:
10.000,00 cruzeiros. E 20 alqueires pro posseiro mais forte. A esse dava
10 alqueires também a 2.000,00 o alqueire. Demos pra eles um prazo de
dois meses pra vir regularizar. Era a proposta. Eles vieram, fizeram o
acerto, daí tinha que pagar. Se não pagassem, eu dava 10.000,00 cruzeiros
e eles iam embora. Levavam rancho, levavam tudo e iam embora13.

9
Euclydes José Formighieri nasceu no dia 26/06/1933 e faleceu no dia 30/01/2010. Entretanto, tivemos a oportunidade
de entrevistá-lo para esta pesquisa.
10
FORMIGHIERI, Euclides. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel, 2009. Em DVD e texto impresso
em arquivo próprio.
11
Durante os anos de 1960 e mesmo na legislação do Estatuto da Terra, a “indústria da posse” era utilizada para criticar
e desqualificar os posseiros, pois, segundo os partidários da grilagem e da modernização jurídica da posse e
propriedade da terra, os posseiros não tinham vínculo à terra, pois estariam interessados em abrir posse para depois
vendê-la (o direito de posse) e abrir novamente outra posse para também vendê-la.
12
Euclides Formighieri. Idem, op. cit.
13
Idem.

144
IRENE SPIES ADAMY

Alberto Pompeu, em entrevista explicou como era organizado o


esquema de titulação das terras que muitas vezes não beneficiavam o
legítimo posseiro. Ele esclareceu que pelo fato de haver posseiros em terras
devolutas na região de Cascavel, isso facilitava a atuação irregular inclu-
sive de representantes do Governo do Estado e de donos de cartórios.

Então, o que aconteceu: o posseiro fazia como nós fizemos no Piquiri.


Fazia a sua posse, requeria a escritura dele na Inspetoria de terras. Mas
quando saiu o título, no fim do governo do Lupion, não tinha o título em
nome dessa pessoa. Nós tínhamos uma posse lá na região do Santana e
eu trabalhava lá antes de comprar a posse. E havia um comércio de posse
interessante. A pessoa fazia uma posse, e nós compramos a terra. Mas
nós se interessávamos no pinheiro que tinha aquela posse. ... E a terra,
nós acabamos (vendendo). O título saiu no nome de uma pessoa estranha,
que o Estado tinha dado esses golpes. Olha, era impressionante a forma
que eles titulavam as terras. Eles titulavam as terras num nome de uma
pessoa inexistente14.

As empresas madeireiras, na sua grande maioria, eram também


colonizadoras, ou seja, as terras eram adquiridas, a madeira era extraída e
depois as glebas ou colônias eram loteadas e vendidas aos interessados.
Por vezes, os proprietários das colonizadoras mantinham a propriedade
de grandes áreas nas quais passaram a desenvolver a agricultura e a
pecuária.
Na década de 1960, uma das dificuldades enfrentadas na abertura
de áreas para as atividades de agricultura e pecuária era a escassez de mão
de obra. Euclydes Formighieri, em entrevista, explicou que os trabalhadores
das serrarias eram trazidos de Santa Catarina e para o preparo da terra,
foram trazidos trabalhadores de outras regiões do Brasil. Em suas
propriedades deu-se preferência aos “peões trazidos de Minas Gerais”. Suas
empresas enviavam madeira, principalmente para São Paulo, Minas Gerais
e a partir da década de 1970, para Brasília. Os caminhões que levavam
madeira retornavam trazendo dezenas de famílias de “peões” para preparar
a terra.

Eu trouxe 54 famílias de Itajubá, Minas Gerais, tudo de cor, tudo preto.


Eu tava começando (a retirada dos pinheiros) Catanduvas e Ibiracema, e
nós vendemos pro pessoal de Minas. E uns cara trabalhador, barbaridade,
uns cara que vieram pra trabalhar. Pra plantar milho e isso e aquilo. E eu
com uma dificuldade tremenda de peão pra trabalhar. Aí eu falei com um
deles e ele veio aqui no escritório. Eu disse: Você não arruma uns peão lá
[MG] pra mim? Aí ele disse: arrumo. Eu mando dois caminhões lá, daí

14
POMPEU, Alberto Rodrigues Pompeu. Entrevista realizada no dia 28 de fevereiro de 2009, em sua casa no
município de Cascavel/PR. Atividade vinculada ao projeto Intervenções na relação Universidade/Educação Básica: Tempo
Passado, Desafio do Presente, financiado pela SETI/PR através do “Programa Universidade sem Fronteira - Subprograma de Apoio
às Licenciatura”. O projeto foi coordenado pela Profa. Dra. Geni Rosa Duarte, do Colegiado do Curso de História, da
UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon, e realizado durante o período de 15/10/2007 a 15/10/2009.

145
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

você manda as mudanças. Daí eu pensei: mando dois caminhão lá pra


Minas, vem cinco mudança, porque eles são menos favorecido e tal, aí
eu marquei com ele. Eu mandava madeira pra São Paulo, onde eu tinha
depósito. Aí passado uns dias ele manda um telegrama. Mande caminhões,
pessoal arrumado. Menina do céu, quando veio o primeiro caminhão
que era pequeno, veio 22 mudança, veio 22 famílias. Não tinham nada,
nada, nada.15

Os “peões de Minas Gerais” eram responsáveis pela preparação


das áreas de agricultura e pastagem e o trabalho era realizado em troca de
pagamento diário: “Na época eu fazia muita pecuária. Pagava pra eles
derrubarem. Lá em Minas eles ganhavam dois reais e aqui eu pagava 12”16.
Além da diária, o proprietário autorizava o cultivo de pequenas roças,
para produzir os gêneros básicos de sustento: “Aí ele [o capataz] entrou
com aquela negada e fez tudo. Aí quando chegou no mês de agosto ou
setembro, eu dei arroz em casca pra eles plantarem, feijão. Se bem que
eles trouxeram aquele feijão deles lá, que tira a vagenzinha, abóbora,
moranga” 17.
Outro vínculo estabelecido entre o proprietário da terra e os
trabalhadores era o armazém, onde eram comercializados gêneros
complementares: “Eu dei pro cara lá, fazer um armazém. E ele matava
porco. Todo fim de semana eles se abasteciam lá”18.
Uma das grandes empresas de exploração de madeira na região foi
a Industrial Madeireira do Paraná – IMAPAR. Inicialmente de propriedade
de Moysés Lupion, era proprietária de extensas áreas na região Oeste,
envolvendo os atuais municípios de Cascavel, Santa Tereza, Catanduvas e
Corbélia. Segundo Formighieri, a Industrial Madeireira tinha
aproximadamente 25.000 alqueires (60.000 hectares) de terra na região.
Em 1946, as serrarias Central e São Domingos, que deram origem à Indus-
trial Madeireira do Paraná, possuíam dois escritórios. Em Foz do Iguaçu
era o escritório da Imapar, dirigida por Renato Festugato, seu fundador e
que lá permaneceu até 1966 quando se deslocou para Cascavel, onde o
então diretor da empresa era Florêncio Galafassi.
Se tomarmos como referência os critérios atuais estabelecidos pelo
INCRA, consideramos como grande propriedade rural, aquela com área
igual ou superior a 270 hectares. Então podemos concluir que em 1960,
111, das 4.030 propriedades cadastradas podiam ser assim classificadas,
o que representava 2,83% do total dos estabelecimentos e que estas
ocupavam uma área de 60.491 ha, ou seja, 34,25% da área rural do
município. Isto é demonstrativo do nível de concentração da terra naquele
momento da história de Cascavel, como apresentado na tabela abaixo.

15
Euclides Formighieri. Idem, op. cit.
16
Idem.
17
Idem.
18
Idem.

146
IRENE SPIES ADAMY

TABELA 1: ESTRUTURA FUNDIÁRIA DE CASCAVEL EM 1960 - POR FAIXA


DOS ESTABELECIMENTOS (Unidade/hectar = 10.000 m2)

Tamanho (ha.) No. de % dos Área Total % Área


Total
Estabelecimentos Estabelecimentos (ha)

1 a menos de 10 485 10,4 2.777 1,3

10 a menos de 50 3.240 70,1 86.309 38,7

50 a menos de100 591 12,8 46.197 20,7

100 a menos de 200 194 4,2 27.042 12,1

200 a menos de 500 86 1,9 25.275 11,3

500 a menos de 1000 17 0,4 12.090 5,5

Mais de 1000 08 0,2 23.126 10,4

Total 4.621 100,00 222.816 100,0

Fonte: IBGE, vol. II, Tomo XII, 1ª Parte; 1960. (Tabela organizada pela autora)

Outro referencial disponível para análise e compreensão do processo


de formação da estrutura fundiária e seus reflexos socioeconômicos, são
os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pela sua
maior disponibilidade e especificidade, serão utilizados para algumas
reflexões neste trabalho.
Há de se considerar, por outro lado, que este referencial também é
limitado, uma vez que não possibilita identificar o uso efetivo da terra,
bem como as relações de produção nela efetivadas. Se observarmos de
modo mais detalhado as transformações produzidas na estrutura fundiária
de Cascavel, podemos perceber que de 1960 a 1970 houve um aumento
significativo no total de estabelecimentos cadastrados pelo IBGE, sem que
houvesse esse aumento proporcional no total da área ocupada. Isso pode
ser explicado em parte pelo processo de titulação de terras e o consequente
estabelecimento da propriedade. Por outro lado, os dados apresentam
situação bem diferente quando analisamos o período 1975-1995, quando
o processo da modernização conservadora se consolidou.

147
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

TABELA 02: TRANSFORMAÇÕES NA ESTRUTURA FUNDIÁRIA EM


CASCAVEL ENTRE AS DÉCADAS DE 1975 E 1995
Período 1975 1995

Tamanho (ha) Estab % Estab Área/há % área Estab % Estab Área/ha % área

1 a menos de 10 3.418 48,79 19.563 9,03 731 28,21 3.965 2,30

10 a menos de 50 2.897 41,35 62.836 29,02 1.221 47,12 29.431 17,09

50 a menos de 100 337 4,81 23.552 10,88 271 10,46 19.093 11,09

100 a menos de 200 189 2,70 26.224 12,11 172 6,64 23.996 13,94

200 a menos de 500 124 1,77 37.786 17,45 142 5,48 44.374 25,77

500 a menos de 1000 25 0,36 17.123 7,91 45 1,74 31.988 18,58

Mais de 1000 16 0,23 29.457 13,60 9 0,35 19.338 11,23

Total 7.006 100,00 216.541 100,00 2.591 100,00 172.185 100,00

Fonte: IBGE. Censos agropecuários realizados no período.


(Tabela organizada pela autora).

O processo de extinção de pequenas propriedades se acentuou na


medida em que as relações capitalistas se consolidaram no campo, a
exemplo do que podemos perceber quando analisamos o período de 1975
e 1995, período em que o agronegócio se apresentava como o novo processo
de modernização da agricultura. Se em 1975 a área ocupada com
propriedades de até 50 hectares, em Cascavel, era de 82.399 ha,
representando 38,05% do total da área, em 1995 as propriedades assim
dimensionadas ocupavam apenas 33.396 ha, ou 19% do total da área.
Podemos ainda perceber, pelo quadro acima, que ao mesmo tempo
em que o número de estabelecimentos com área entre 100 a 200 hectares
manteve-se praticamente estável, o mesmo não ocorre com as propriedades
com área acima de 200 hectares. Se em 1975, elas ocupavam uma área
total de 84.366 hectares, em 1995, ocupavam 95.700 hectares,
representando 55% do total da área do município.
Segundo o Departamento de Economia Rural da Secretaria de Estado
da Agricultura, mais de sete mil propriedades foram vendidas nas regiões
de Cascavel e Toledo, apenas em 1984. Esta expropriação de pequenos
produtores, o êxodo rural e principalmente a concentração das propriedades
marcou o novo cenário da estrutura fundiária do município, bem como as
relações de poder que passaram a fortalecer a fração agrária das classes
dominantes na região.

148
IRENE SPIES ADAMY

A década de 1980 foi um período de reorganização das relações


políticas, da intensificação dos conflitos agrários e do fortalecimento dos
movimentos organizados pelos trabalhadores rurais na luta pela
democratização do acesso à terra. Entre eles destacou-se o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Sobre as contradições presentes
naquele momento na economia e na sociedade brasileira, Regina Bruno
destaca que:

A luta pela terra no Brasil desvenda os impasses e as contradições do


processo de modernização agrícola e a incoerência de uma política
agrícola que priorizou o crédito, o mercado e a grande empresa capitalista
e secundarizou a democratização da estrutura de posse e uso da terra.19

A condição de classe dominante de uma fração agrária na região


Oeste do Paraná encontra vínculos estreitos com a posse e a propriedade
da terra, base de sua sustentação econômica desde o início do processo de
privatização das terras públicas, e a partir da modernização conservadora
da agricultura brasileira, iniciada durante as décadas de 1960 e 1970 e da
expansão da pecuária a partir da década de 1980. Mas se consolida e se
efetiva, a partir de sua organização e atuação política.
O setor pecuarista da região Oeste do Paraná tem na Sociedade
Rural do Oeste (SRO) sua entidade organizativa e de representação política.
A SRO foi fundada em 9 (nove) de agosto de 1980 como uma entidade de
caráter jurídico de associação, de natureza civil e sem fins lucrativos. Sua
sede atual está localizada no Parque de Exposições Celso Garcia Cid.
Conforme o Estatuto Social da SRO, seus objetivos seriam:

Congregar os profissionais militantes ou de qualquer forma ligados ao


meio rural, à agricultura, à pecuária e demais atividades congêneres
auxiliando-os e orientando-os em seus interesses e aspirações comuns,
bem como promover e patrocinar o estudo dos problemas e dificuldades
inerentes às suas atividades, contribuindo para suas soluções.20

De acordo com o técnico da EMATER, José Geraldo Alves, a comissão


que coordenou a criação da SRO tinha o objetivo de “contribuir para o
desenvolvimento, fortalecimento e profissionalização da atividade pecuária
na região, a exemplo do que acontecia nas demais regiões do Estado”21.
A comissão defendia que era de fundamental importância “a criação
de espaços de representação política dos pecuaristas, no contexto sócio
político do Estado”, através da criação de um “fórum permanente de de-
bates de temas voltados à defesa, ao crescimento e ao desenvolvimento da
atividade, nos aspectos econômicos, sociais, legais e tecnológicos”22.
19
Regina Bruno. Idem, op. cit.
20
ESTATUTO SOCIAL DA SRO 1980, folha 01.
2471
ALVES, José Geraldo. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy por meio eletrônico. Texto impresso em arquivo
próprio. Cascavel: 2009.
22
Idem.

149
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Eduardo Sciarra, hoje Deputado Federal fez parte da comissão de


fundação da SRO e é filho do primeiro presidente da entidade. Sobre os
objetivos que se pretendia alcançar, ele destaca:

Os objetivos que a comissão tinha ao fundar a SRO eram justamente a


organização da classe, para a melhoria da raça, para melhor desempenho
no fator ganho de peso dos animais, na definição de uma política para o
setor, assistência técnica na parte das pastagens e gramíneas que seriam
utilizadas na região, a representatividade institucional e política da
entidade, enfim a organização conjunta para a realização de leilões, o
esforço coletivo para a redução de custos para cada produtor, em função
da forma coletiva como as decisões eram tomadas, a busca de recursos
privados e públicos para a implementação das benfeitorias.23

A assistência técnica da entidade orientaria os produtores sobre a


possibilidade e necessidade de melhoria genética do rebanho, inseminação
artificial, formulação de rações, melhoria das pastagens e introdução de
novas gramíneas adaptadas ao clima da região, bem como o estímulo à
utilização de culturas de inverno para complementar a alimentação ani-
mal, com destaque para o milho e a aveia. O acompanhamento técnico
contou com apoio das cooperativas, de profissionais da área, de empresas
de planejamento rural, da Emater e da Secretaria da Agricultura e do
Abastecimento do Paraná (SEAB).
De 1980 a 1988, a direção da SRO foi dividida entre dois
presidentes, ou seja: o presidente do Conselho de Administração e o
presidente executivo. Em maio de 1988, fez-se a alteração do Estatuto e
uma nova organização administrativa foi implantada, composta pelos
seguintes órgãos: Assembleia Geral, Conselho Deliberativo, Conselho Fis-
cal e Diretoria Executiva. A partir de então, apenas um diretor preside a
SRO, como pode ser observado no quadro abaixo. Vale destacar que a
atividade econômica é aqui apresentada a partir de informações dos próprios
sujeitos ou das fontes consultadas.

23
SCIARRA, Eduardo. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel: 2009. Em CR-Rom e impresso em
arquivo pessoal.

150
IRENE SPIES ADAMY

QUADRO 01: RELAÇÃO DOS PRESIDENTES DA SRO (1980 – 2010)


PERÍODO PRESIDENTES ATIVIDADE ECONÔMICA (*)

1980-1982 - Francisco Antonio Sciarra - Pecuarista

- Roberto Wypych - Pecuarista

1982-1984 - João Batista de Almeida - Pecuarista

- Nelson Emilio Menegatti - Pecuarista

1984-1986 - Sady Lazari - Pecuarista

- Nelson Emilio Menegatti - Pecuarista

1986-1988 - Sady Lazari - Pecuarista

-Matias Vilhena de Andrade - Pecuarista

1988-1990 - Edgar Bueno - Agropecuarista e empresário

1990-1992 - João Luiz Felix -Agropecuarista e empresário da


construção civil

1992-1994 - Euclydes Formighieri - Agropecuarista

1994-1996 - Euclydes Formighieri - Agropecuarista

1996-1998 - Lindonêz José Rizzotto - Agropecuarista

1998-2000 - Lindonêz José Rizzotto - Agropecuarista

2000-2002 - Lindonêz José Rizzotto - Agropecuarista

2002-2004 - Valdir Florian Lazzarini - Pecuarista

2004-2006 - Levy Cezar Czeck Dittrich - Pecuarista

2006-2008 - Alessandro Meneghel - Agropecuarista e empresário

2008-2010 - Alessandro Meneghel - Agropecuarista e empresário

2010- - Erwin Soliva - Agropecuarista

Fonte: www.expovel.com.br e imprensa regional


(Quadro organizado pela autora). (*) Indicação feita pelos próprios presidentes.

A Sociedade Rural do Oeste do Paraná foi constituída com base


nos princípios que norteavam a Sociedade Rural do Paraná, com sede em
Londrina. Entre os seus fundadores estava Francisco Sciarra que havia
presidido a SRO daquele município. Para Euclydes Formighieri, os principais
articuladores para a criação da SRO foram Francisco Sciarra e Roberto
Wipychy, grandes agropecuaristas da região.
Roberto Wypych, em seu discurso, na Assembleia de fundação
destacou a importância da nova entidade, como instrumento de organização

151
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

e unidade entre os agropecuaristas. Segundo ele a SRO:

Fará com que nós nos aproximemos mais, nós estamos muito distantes
uns dos outros, cada um por si e Deus por todos, e numa comunidade
como a nossa não pode ser assim. Somente através do convívio é que
nós poderemos estudar os nossos problemas, discuti-los e procurar suas
soluções.24

Sciarra, por sua vez, procurou ainda estimular os proprietários


presentes na Assembleia, no sentido de ampliarem seu rebanho e suas
áreas de pastagem, através da substituição das culturas de inverno, sugerindo
que:

A grande alternativa é intensificar a pecuária na região, mantendo as


lotações dos pastos mais elevadas durante o verão e durante o inverno
fazer pastagens de inverno para que possamos abrigar nossos rebanhos.
Pelo valor econômico do gado, hoje constitui uma atividade realmente
lucrativa. Em vez de tirarmos duvidosas toneladas de trigo, vamos tirar
arrobas de carne de nossas propriedades.25

Na prática, as ações empreendidas pela SRO sempre estiveram


voltadas às demandas do setor pecuarista latifundiário da região, mais
especificamente da produção de gado bovino de corte. O ex-presidente da
SRO e presidente do Sindicato Rural Patronal até o início de 2010, Nelson
Menegatti, em entrevista, ao fazer referência sobre o campo de atuação da
Sociedade afirmou que, “lá é pecuária. Os pecuaristas, a maioria não
estão com nós aqui. Estão lá. Inicialmente tinha também suínos, mas naquele
espaço hoje está a Sede do CTG Estância Colorada”26.
Os jornais de circulação regional também foram instrumentos pelos
quais se buscou construir e difundir sua representatividade. O espaço
dedicado ao anúncio da sua fundação e do papel que esta passaria a
desempenhar é indicativo de que se pretendia conquistar a aceitação e o
respeito em torno da nova entidade. Em sucessivas publicações, a SRO foi
apresentada como uma grande conquista para o desenvolvimento da
agropecuária regional.
Através do jornal “O Paraná” chamava-se a atenção para a
“necessidade da criação de uma sociedade rural do Oeste” a fim de enfrentar
e solucionar problemas comuns aos agropecuaristas, através do seu
aperfeiçoamento. Isto se deu na fase de formação da comissão que
conduziria a criação da SRO, bem como nas etapas seguintes de sua
fundação e consolidação.
Nos momentos em que, de alguma maneira, seus interesses são

24
Wypych em discurso na Assembleia de fundação da SRO, conforme ata da mesma, 1980.
25
SIARRA, Franscisco em discurso na Assembleia de fundação da SRO, conforme ata da mesma, 1980.
26
MENEGATTI, Nelson. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel: 2009. Em DVD e texto impresso em
arquivo pessoal.

152
IRENE SPIES ADAMY

negligenciados, o principal argumento do agrobusiness é de que este setor


é essencial para a produção de alimentos e amenizar a fome no mundo.
Porém, este setor da economia, no município de Cascavel tem importância
econômica questionável. Segundo dados publicados pelo IBGE, quanto ao
Produto Interno Bruto (PIB), a participação da indústria e do setor de serviços
é significativamente maior, em comparação com a agropecuária.

TABELA 3: RELAÇÃO ENTRE AS ATIVIDADES ECONÔMICAS EM


CASCAVEL E O SEU PIB EM 2007
ATIVIDADE PIB-2007 (R$)

Agropecuária 137.748.000,00

Indústria 640.426.000,00

Serviços 2.803.505.000,00

Fonte: IBGE – Censo 2006/ cidades – Cascavel


Disponível em: www.ibge.gov.br/cidadessat/topwindow.htm?1

A partir destes dados pode-se questionar a importância econômica


dos agropecuaristas da região e da própria Sociedade Rural do Oeste. Mas
é fundamental lembrar que grande parte do produto interno bruto produzido
na agropecuária de Cascavel está concentrado nas mãos de algumas famílias
que também atuam em outros segmentos da economia e, principalmente,
ocupam cargos estratégicos em entidades representativas e no Estado
restrito, a fim de garantir a realização dos seus projetos. Diante disso, pode-
se afirmar que a força política dos agropecuaristas da região está, sim,
sustentada na concentração da riqueza (condição de classe) e na sua
capacidade de organização e mobilização política (posição de classe), in-
clusive na construção e legitimação do discurso de sobrevalorização da
agropecuária.
É evidente, desde a sua fundação, o vínculo estreito entre a SRO e o
Poder Público local e estadual. Além de ser um espaço de fortalecimento,
organização e aprimoramento técnico para os agropecuaristas da região, a
SRO já era considerada pelos seus fundadores, como um espaço viável
para a projeção de lideranças políticas que representassem os seus interesses
regionais, nas diferentes instâncias do poder político e nos meios
institucionais. Estavam conscientes que, para organizar e dirigir a classe
agropecuarista, para promoverem seus interesses e disseminarem seus
projetos e sua visão de mundo, era fundamental inserir nos espaços do
Estado restrito, seus intelectuais orgânicos27 e seus projetos sociais.
Este objetivo vem sendo buscado ao longo de toda a história da SRO

27
Segundo Gramsci, todo aquele que exerce função organizativa, seja no mundo da produção econômica, seja no
Estado, é um intelectual. Porém, os intelectuais não são um grupo autônomo e independente, uma vez que “todo grupo

153
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

que tem inserido, com regularidade, nos espaços do poder político, seus
representantes, como pode ser constatado no quadro ao final deste artigo.
Se o setor pecuarista tinha como preocupações a melhoria genética
do rebanho e a adequação da produção aos padrões de sanidade e
rentabilidade, além de viabilizar a infraestrutura necessária para facilitar a
comercialização do gado, os dados presentes no referido quadro evidênciam
a consciência política dos membros da SRO, bem como a sua compreenção
sobre a importância da organização de classe e da sua partipação e
articulação política. Isto também pode ser compreendido a partir da análise
de seu evento maior realizado, anualmente, no Parque de Exposições Celso
Garcia Cid, em Cascavel: a EXPOVEL.
Para Olimpio Giovanelli, um dos fundadores da SRO e instrutor do
Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), é grande a importância
do Parque de Exposições e da própria Expovel para os agropecuaristas.

Trata-se de uma vitrine do agropecuarista. Lá ele pode mostrar o que o


Oeste produz em termos de pecuária, e também pode realizar grandes
negócios, além de promover o intercâmbio e a troca de genética, visando
melhorar sempre o seu rebanho, além do aperfeiçoamento técnico na
área de criações. Em última instância, também se traduz na sua
representação política. 28

Segundo Hylo Bresolin, um dos dirigentes da entidade, a Expovel


tem o caráter pedagógico de ensinar às novas gerações, conhecimentos
técnicos relativos à pecuária na medida em que possibilita a sua reunião,
promovendo a sua organização e a difusão de seus valores. Serve também
como espaço de continuidade da pecuária, pois os mais jovens são
incentivados para isso. Os campeonatos de hipismo, os rodeios e as
apresentações artísticas, além de criarem e fortalecerem a identidade dos
associados, de promoverem os vínculos de convivência, também motivam
as novas gerações de pecuaristas. São instrumentos de difusão de cultura.
A consciência de e da organização da fração de classe não poderia ser
expressa de forma mais clara do que no relato que Bresolin fez ao se referir
à “escola” da Expovel:

O que me chama a atenção na Expovel são os pais acompanhados pelos


filhos, pelas crianças. Isto é pedagógico. É Pedagógico você pegar teu
filho e levar ele lá na Exposição e mostrar pra ele. Ele vê com os olhos,
ouve do pai ou numa palestra a importância da atividade, as qualidades

social cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função,
não apenas no campo econômico, mas também no social e político” (GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 3 ed. trad. Carlos
Nelson Coutinho, Marcos Aurélio Nogueira e Luiz Sergio Henrique. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, v. 2,
p. 15).
28
GIOVANELLI, Olimpio. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel: 2009. Em meio eletrônico e impresso
em arquivo pessoal.

154
IRENE SPIES ADAMY

e o potencial daquela raça... para que a família que trabalha na atividade


encontre no filho o sucessor vocacionado. (Grifos meus).29

Ao mesmo tempo tem sido, enquanto corporação da sociedade civil,


um espaço de protesto, reivindicação e articulação junto à sociedade política
e ao conjunto da sociedade. É a tribuna onde apoiam ou criticam planos
econômicos e projetos agrícolas, além de promoverem, segundo eles, a
agropecuária bovina de corte como atividade econômica fundamental para
a região e para o país. A presença de representantes políticos da região e
do Estado ocorre com regularidade durante as edições da Exposição.
Eduardo Sciarra, ao falar sobre a Expovel, destacou:

A organização da Expovel, sem dúvida, que é o carro chefe e o momento


máximo. É o melhor momento do ano para a SRO porque serve não só
para expor os animais, como também através dos leilões e da mostra,
cumprir com os objetivos da SRO.30

Portanto, a Expovel é mais do que um balcão de negócios ou uma


vitrine da pecuária e do agronegócio regional. É também o espaço de
articulação dos agropecuaristas com outras frações de classe organizadas
na sociedade civil regional e estadual. A festa é o espaço e o momento de
difusão do seu conjunto de valores e de sua visão de mundo31 para aqueles
que visitam o parque durante as exposições ou acompanham por outros
meios, constituindo-se em um importante e poderoso aparelho privado de
hegemonia da fração agrária da classe dominante no Oeste do Paraná.

A SRO fortalecendo a luta contra a reforma agrária

A luta pela democratização do acesso à terra e do direito de nela


produzir e reproduzir a vida, tem marcado a história do Brasil e da região
Oeste do Paraná, durante as duas últimas décadas do século XX e neste
início do século XXI. O acirramento das contradições promovidas pelo
processo de ocupação da terra e pela “modernização” da agricultura du-
rante as décadas de 1960, 1970 e 1980 contribuíram para a ampliação do
contingente de trabalhadores despossuídos. Enquanto as propriedades
diminuíam em número, aumentavam em extensão. Segundo Regina Bruno:

29
BRESOLIN, Hylo. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel: 2009. Em DVD e texto impresso em
arquivo próprio.
30
Eduardo Sciarra. Idem, op. cit.
31
No texto O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte, Marx já situava que a condição e a posição de classe dizia respeito a base
material das classes e seus modos de viver, valores e projetos sociais e da nação que envolviam as lutas sociais e o
interesse de estabelecer uma forma ao Estado Nacional. O caso do partido da ordem e das suas duas principais frações
político-sociais (orleanistas e legitimistas) no governo de Louis Bonaparte é o exemplo mais concreto da abordagem.
Cf.: MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Editora Moraes, 1987 e MARX, K. e ENGELS F.
História. São Paulo: Ática, 1984.

155
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

A luta pela terra no Brasil desvenda os impasses e as contradições do


processo de modernização agrícola e a incoerência de uma política
agrícola que priorizou o crédito, o mercado e a grande empresa capitalista
e secundarizou a democratização da estrutura de posse e uso da terra32.

A fração agropecuarista da classe dominante do Oeste do Paraná,


organizada em sua entidade de classe, a Sociedade Rural do Oeste do Paraná
(SRO), tem organizado, ao longo de sua história, movimentos em defesa
dos seus interesses específicos, buscando a manutenção de sua condição
hegemônica. Como entidade representativa dos grandes proprietários rurais,
articulou-se com outras entidades congêneres, para somar forças na luta
por objetivos comuns, a exemplo da sua aliança com o Sindicato Rural
Patronal de Cascavel e a União Democrática Ruralista (UDR), no período
da instalação da Assembleia Nacional Constituinte, onde esteve em
discussão e votação do I Plano Nacional de Reforma Agrária (IPNRA)
divulgado pelo governo Sarney em 1985, a regulamentação da terra e o
perfil do que vinha a ser reforma agrária.
Na região Oeste do Paraná, fez parte do discurso proferido pelas
lideranças políticas e representantes dos agropecuaristas, o argumento de
que aqui não há terra para reforma agrária. Que as questões pendentes do
ponto de vista jurídico, da titulação, da adequação à legislação ambiental
ou dos índices de produtividade, não são pertinentes para as terras nesta
região. Por essa razão, os movimentos sociais de luta pela reforma agrária,
como o MST, não teriam legalidade e legitimidade em suas ações. Caberia,
portanto ao Estado, agir no sentido de punir esses movimentos e preservar
a propriedade.
O ano de 2006 marcou o início do fortalecimento da SRO, que
passou a enfrentar aberta e diretamente o MST na região Oeste do Paraná.
Neste ano Alessandro Meneghel, pela chapa UNIRURAL, foi eleito como
presidente da Sociedade, assumindo a Sociedade em 29 de maio daquele
ano. Seu discurso de posse foi marcado pela crítica ao MST e a defesa dos
interesses da sua classe, bem como pela vontade de promover a união dos
agropecuaristas.
Logo após assumir a presidência da SRO, ficou evidente que não era
apenas discurso. Em diferentes situações convocou os agropecuaristas a se
posicionarem, a agirem em defesa de suas propriedades, contra as ações
do MST. Para tanto liderou a criação do Movimento dos Produtores Rurais,
a fim de viabilizar recursos e contratar empresas privadas de seguranças
para protegê-las. “Defendo tolerância zero com baderneiros”. Assim
Meneghel se declarava em reportagem publicada pelo jornal O Paraná.33
Pela retórica produzida pelas lideranças dos grandes proprietários
rurais da região percebe-se que buscavam legitimar o uso da violência
sistematizada contra os trabalhadores sem terra.
32
BRUNO, Angela Regina Bruno. Idem, op. cit., p. XIV.
33
JORNAL O PARANÁ, Ano 32, Nº 9.616, 18/04/2008, p. 12

156
IRENE SPIES ADAMY

As “ações organizadas” por produtores rurais eram justificadas como


necessárias para defender a propriedade privada, por sua vez entendida,
como algo natural e inquestionável, uma vez que seria resultado do seu
trabalho. Também afirmavam que estas ações tinham legitimidade, tendo
em vista a ausência do Estado no seu papel de garantir a ordem e o respeito
à propriedade privada. Regina Bruno, analisando as classes dominantes no
campo brasileiro, afirmou que seu perfil pode ser marcado por dois traços
principais: “a defesa da propriedade como direito absoluto incontestável,
algo naturalmente herdado ou adquirido pelo trabalho e a violência como
prática de classe”.34
Aos grandes proprietários rurais, parece ser conveniente, em diferentes
momentos da história regional, fazer uso do discurso de que se o Estado
não faz, cabe a sociedade (eles) fazê-lo. Isto ocorre sempre que sua condição
se mostra ameaçada ou confrontada. Justificam, desta maneira, por um
lado, o uso da força e por outro, explicitam sua concepção acerca do papel
do Estado: O defensor da propriedade e o aplacador dos conflitos sociais.
Outra ação organizada pela SRO em 2007, na defesa da propriedade
privada da terra foi a edificação do “Monumento da Resistência dos
Produtores”, a exemplo do que já ocorreu em outros momentos da história
local, quando se percebe a intenção, via de regra, do poder público mu-
nicipal, de estabelecer um marco do que deveria ser registrado e lembrado.

FOTO 01: MONUMENTO DA SRO PELA RESISTÊNCIA


DOS PRODUTORES EM DEFESA DO DIREITO À PROPRIEDADE

Fonte: ADAMY, Irene Spies. 19/06/2010. (Arquivo da autora). As fotografias são o


registro do monumento edificado pela SRO para homenagear “àqueles que resistem e
lutam contra o MST”.

34
BRUNO, Angela Regina. “Nova República; a violência patronal rural como prática de classe” In: Sociologias, Porto
Alegre, ano 5, nº10, jul/dez 2003, p. 284-310.

157
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

A Sociedade Rural do Oeste do Paraná, constituída a partir dos


estreitos vínculos existentes entre os seus membros com a sociedade política
local, regional e estadual, tem sido a partir de sua criação, a entidade que
organiza e dá direção às ações da fração agropecuarista da classe dominante
na região Oeste do Paraná, constituindo-se no que Gramsci definiu como
Partido, ou seja, aquele que organiza a vontade da classe ou fração de
classe através de seus intelectuais orgânicos. Organiza ações para construir
um projeto de classe para si e para as demais classes.
A grande propriedade rural, o domínio da terra, a atuação em diversos
setores da economia, a organização e as ações políticas foram e continuam
sendo as condições fundamentais para que a classe dominante
agropecuarista consolidasse e mantivesse sua condição hegemônica na
região Oeste e mais especificamente no município de Cascavel.
A edificação do monumento contra as invasões, os canais regionais
de televisão, as publicações em jornais, livros e revistas, bem como o evento
da Exposição Feira Agropecuária, Comercial e Industrial de Cascavel
(Expovel) constituem-se, para a classe proprietária rural, como aparelhos
privados de hegemonia que, no âmbito da sociedade civil, atuam para a
formação de consenso para si e para os outros.
O discurso e as ações que buscam posicionar, nas mesmas condições,
todos os proprietários rurais, estão entre as estratégias usadas pelos grandes
proprietários rurais do Oeste do Paraná, através de suas entidades
representativas e pelos meios de imprensa, no sentido de garantir apoio e
respaldo à manutenção da sua condição hegemônica, diante do efetivo
questionamento imposto pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, cuja reorganização e fortalecimento, a partir da década de 1990,
engendraram na realidade regional, uma nova configuração das relações
de poder. O forte embate travado entre estes grupos com projetos sociais
antagônicos, tem provocado o questionamento da hegemonia dos grandes
proprietários rurais e o modelo de uso do solo e de agricultura por eles
defendidos, ou seja, o agronegócio e ao mesmo tempo, tem exigido novas
posturas de enfrentamento e acomodação.

158
IRENE SPIES ADAMY

QUADRO 2: DIRIGENTES E MEMBROS DA SOCIEDADE RURAL DO OESTE


DO PARANÁ E SUAS TRAGETÓRIAS

MEMBROS VÍNCULO COM A SRO TRAJETÓRIA

Roberto Wypych Presidente da SRO entre 1980 e 1982. Doou recursos Agropecuarista e contador
para constituição da entidade. Os leilões eram
realizados em sua “Fazenda Mocotó”, antes da Deputado Estadual (1967-70) pela ARENA.
construção do Parque de Exposições Celso Garcia Cid. Em 1975 presidiu a Cooperativa Cotriguaçu, de Cascavel.

Em 1976 e 1977 foi presidente da COOPAVEL

Presidente do Rotary Club de Cascavel

Autor da lei que autorizou a criação das faculdades de Educação, Agronomia e Filosofia, Ciências
e Letras em Cascavel - FECIVEL (atual Unioeste - Campus de Cascavel)

Disputou a eleição para Prefeito de Cascavel em 1982, porém foi derrotado por Fidelcino
Tolentino do PMDB.

Foi Senador da República pelo PMDB, em 1985 e 1986 defendendo a criação de escolas
técnicas agrícolas para o Oeste do Paraná e atuou em favor de políticas de juros agrícolas
favoráveis e pelo protelameto da dívida deste setor junto aos bancos.

Euclydes Formigheri Presidente da SRO por dois mandatos de 1992 a 1996. Agropecuarista,

Fez parte do Conselho Fiscal do SINDICARNE do Paraná, na gestão 1977- 1980)

Edgar Bueno Presidente da SRO entre 1988 e 1990. Agropecuarista

Conselheiro Fiscal entre 1990 e 1992. Empresário do setor artístico/musical

1º Presidente da CDL (1° Mandato 1978 a 1980) e 2º Mandato (1982 a 1983),

Presidente da ACIC em 1985 e 1986

Deputado Estadual eleito em 1994 pelo PSDB e em 1998 pelo PDT

Prefeito eleito de Cascavel de 2001 a 2004 e novamente em 2009.

Deputado Estadual em 2007 e 2008

Em 2007 foi presidente da Comissão de Indústria, Comércio e do Turismo na Assembléia


Legislativa do Paraná onde fez parte também da Comissão de Educação, Cultura, Esportes,
Ciência e Tecnologia.

Lindonêz José Rizzotto Presidente da SRO entre 1996 e 2002 Foi diretor da FUNDETEC de Cascavel em 2003.

José Geraldo Alves Comitê pró-criação da entidade Agrônomo chefe regional da Emater/Acarpa em 1980.

Diretor Técnico da Emater em 2001.

Olimpio Giovanelli Comitê pró-criação da entidade Médico veterinário.

Chefe do Núcleo Regional da Secretaria da Agricultura em 1980.

Edgar Pimentel Comitê pró-criação da entidade. Secretário Municipal da Agricultura e Meio Ambiente em 1980.

Deputado Estadual eleito em 1982 foi autor do projeto de estadualização da Unioeste.

MEMBROS VÍNCULO COM A SRO TRAJETÓRIA

Eduardo Francisco Sciarra Comitê pró criação da entidade. Engenheiro Civil e Empresário, filho de Francisco Antonio Sciarra, (pecuarista e sócio fundador da
SRO, participando do Conselho Administrativo).
Doou recurços para constituição da entidade.
Presidente da Associação de Engenheiros e Arquitetos de Cascavel - PR, 1979-1980.

Presidente da ACIC – Cascavel –PR e da CACIOPAR, na gestão 1982-1983.

Deputado Federal entre 2003 e 2006 pelo PFL e reeleito como Deputado Federal para o
período 2007-2010.

Integrou as Comissões Permanentes de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento


Rural como Titular entre 3/2006-1/2007 e como Suplente, 3/2005-3/2006, 14/2/2007-
15/2/2007.

Secretário de Estado da indústria, Comércio e Turismo do Paraná entre 1998 e 2002.

Pedro Muffato Membro efetivo do Conselho Fiscal da SRO quando da Agropecuarista, empresário do setor hoteleiro e supermercadista
sua criação.
Sócio proprietário da TV Tarobá desde 1982.

Vereador e prefeito de Cascavel (1972- 1976).

Na sua gestão, a Prefeitura organizou a 1ª Expovel.

Jacy Miguel Scanagatta Membro do Conselho Consultivo da SRO Agropecuarista, empresário do setor hoteleiro e de equipamentos agrícolas

Proprietário fundador do jornal O Paraná , proprietário das emissoras de rádio Capital e CBN

Prefeito eleito de Cascavel pela ARENA em 1976

Deputado Constituinte eleito em 1986

Salazar Barreiros Conselho Deliberativo da SRO entre 1990-1992 Agropecuarista, Presidente da COOPAVEL

159
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Salazar Barreiros Conselho Deliberativo da SRO entre 1990-1992 Agropecuarista, Presidente da COOPAVEL

Prefeito eleito de Cascavel (1989- 1992), Prefeito eleito de Cascavel (1997-2000)

Joni Varisco Conselho Deliberativo da SRO entre 1990-1992 Deputado Federal, foi proprietário do jornal A Cidade, de Cascavel.

José Eduardo Vieira Doação, através do Bamerindus, do espaço para os Pecuarista,


leilões da EXPOVEL
Último presidente do Bamerindus, antes da sua incorporação pelo HSBC.

Senador pelo Paraná., Ministro da Indústria, do Comércio e do Turismo (1992-1993).

Ministro da Agricultura em 1993, 1995 e 1996.

Nelson Menegatti Membro do Conselho Administrativo da SRO quando Agropecuarista,


da sua fundação.
Presidente da Associação Comercial e Industrisal de Cascavel (1965-1967) Presidente do
Sindicato Rural Patronal desde 1988.

Fonte: Imprensa regional e entrevistas. (Quadro organizado pela autora).

Fontes e Referências Bibliográficas

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Texto impresso em arquivo próprio. Cascavel: 2009.
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BRESOLIN, Hylo. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel: 2009. Em
DVD e texto impresso em arquivo próprio.
BRUNO, Angela Regina. Senhores da terra, senhores da guerra: a nova face política
das elites agroindustriais no Brasil. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p.
XIV.
___. “Agronegócio e novos modos de conflituosidade. In: FERNANDES, B. M.
(org.). Campesinato e Agronegócio na América Latina: a questão agrária atual. 1
ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008, v. 1.
___. “Nova República; a violência patronal rural como prática de classe” In:
Sociologias, Porto Alegre, ano 5, nº10, jul/dez 2003, p.284 – 310.
EXPOVEL. www.expovel.com.br, acessado em 12/11/2009.
ESTADO DO PARANÁ. Títulos de terras emitidos pelos governantes do Estado do
Paraná. http://www.itcg.pr.gov.br/arquivos/File/RelacaoGovernantesDITER2.pdf.
Acessado em outubro de 2009.
ESTATUTO SOCIAL DA SRO 1980, folha 01
FORMIGHIERI, Euclides. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel, 2009.
Em DVD e texto impresso em arquivo próprio.
GIOVANELLI, Olimpio. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel: 2009.
Em meio eletrônico e impresso em arquivo pessoal.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro:
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160
IRENE SPIES ADAMY

___. Cadernos do cárcere. 3 ed. trad. Carlos Nelson Coutinho, Marcos Aurélio
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___. Cadernos do Cárcere. Volume 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
___. Cadernos do cárcere: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. V.2.
3a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA/ censos agropecuários
a partir de 1960.
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1973.
JORNAL O PARANÁ. Ano 32, Nº 9.616, 18/04/2008.
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documental. Marechal Cândido Rondon. TCC em História – UNIOESTE. Marechal
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POMPEU, Alberto Rodrigues. Entrevista concedida ao projeto Intervenções na relação
Universidade/Educação Básica: Tempo Passado, Desafio do Presente (UNIOESTE/
MCR), Cascavel, 28/02/2009
SCIARRA, Eduardo. Entrevista concedida a Irene Spies Adamy. Cascavel: 2009. Em
CR-Rom e impresso em arquivo pessoal.

161
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

162
ASSOCIAÇÃO RURAL DE LONDRINA:
EMBATES E CONFLITOS NO NORTE DO PARANÁ
1
Juliana Valentini

Para um estudo da história de uma entidade da sociedade civil é


preciso articular as práticas que os agentes e a agência construíram ao
longo do período que constitui a demarcação temporal da pesquisa, o que
implica aproximar-se da própria ontologia da sociedade e da práxis social
dos sujeitos/atores que agem em sua dimensão integral, enquanto indivíduos
e em formas coletivas (classes organizações de classes) de fazer a si e aos
demais, enquanto inter-relação, na história.
Em busca de compreender a organização da fração agrária da classe
dominante no norte do estado do Paraná, sua capacidade mobilizadora na
defesa dos seus projetos de classe, suas estratégias para preservar/afirmar
sua hegemonia no campo, debruçamo-nos sobre o estudo de uma entidade
de classe e sua imbricação com o Estado (sociedade política) e com outras
entidades da sociedade civil.
Nesse texto apresentaremos uma abordagem sobre a história da região
norte do Paraná referente ao período de 1945 a 1960, a partir do estudo da
atuação dos membros da Associação Rural de Londrina (ARL),2 entidade
patronal rural fundada em 1946 na cidade de Londrina, norte do Paraná.
Formada inicialmente por cafeicultores a ARL teve participação com a
criminalização e repressão do conflito de Porecatu e dos sindicatos de
trabalhadores rurais na região.
O conflito de Porecatu ocorrido nas décadas de 1940 e 1950 no
Norte do Estado do Paraná, envolvendo camponeses posseiros e grileiros,
com a participação de militantes e dirigentes do Partido Comunista Brasileiro
que mobilizaram apoio aos posseiros e colaboraram na organização e
resistência armada. A revolta foi violentamente reprimida em 1951, pelas
forças policiais do estado do Paraná e de São Paulo.
Há um conjunto significativo de trabalhos que enfocam a “ocupação”
do norte do Paraná, a partir da atuação da Companhia de Terras Norte do
Paraná (CTNP), e a colonização do município de Londrina, especialmente
a partir dos discursos que enaltecem o “crescimento da cidade menina”3
1
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE.
E-mail: julianavalentini@yahoo.com.br
2
No decorrer de mais de meio século de atuação, a Associação Rural de Londrina (renomeada posteriormente
“Sociedade Rural do Norte do Paraná” e, por fim, como permanece até os dias de hoje, “Sociedade Rural do Paraná”)
desempenhou um papel importante como arregimentadora de projetos da fração de classe patronal rural. Ademais,
teve e ainda tem grande influência política na região e no estado do Paraná e manteve diálogos com organizações da
sociedade civil em todo o território nacional, ainda que com menor capacidade de mobilização, se comparada a outras
agremiações patronais de abrangência nacional.
3
Expressão muito utilizada nos meios de comunicação de circulação regional entre os anos 1940, como, por exemplo,
a Revista A PIONEIRA, financiada pela Companhia de Terras Norte do Paraná.

163
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

que, como num conto infantil, transforma-se dentro de um período de


poucos anos em uma “metrópole”, marcada pelo “progresso” e pela
“passividade” dos moradores.
Boa parte do que foi produzido entre os anos 1950, 1960 e 1970
sobre a questão, seja por historiadores, geógrafos, sociólogos e
antropólogos, que faz parte da “historiografia consagrada” da “história
tradicional” sobre a região, não raro, trata de uma (re)ocupação pacífica,
onde, de forma natural e sem conflito, homens e máquinas foram
preenchendo espaços vazios que aguardavam por eles.
A organização da propriedade da terra e da estrutura fundiária foi
marcada pela presença de fazendeiros, grileiros, posseiros, sitiantes,
trabalhadores sem terra, empresas colonizadoras estrangeiras e o governo
do Estado. Essa diversidade de sujeitos compõe um cenário díspar em
relação ao apresentado pela grande parte dos autores, onde de um lado
está “a civilização e o progresso”, representados pelos investimentos de
capital realizados pela empresa Companhia de Terras Norte do Paraná
(CTNP),4 e de outro, a barbárie e/ou o atraso, manifestados pelos modos
de produzir e de viver que não estivessem dentro da lógica de produção e
consumo do mercado capitalista.5
No presente, o passado é frequentemente reinterpretado e
reconstituído sob a ótica dominante. Não apenas no espaço acadêmico,
da publicação de livros de empresas/instituições privadas, museus que
alimentam e/ou constroem uma versão do processo de (re)ocupação, que
legitima um lugar de classe, mas também nos meios de comunicação e no
próprio sistema educacional local há a predominância desta visão.
De acordo com Sonia Adum, nas páginas dos jornais das décadas
de 1940 e 1950 “parecia uma missão quase diária” publicações de matérias
como “Eis que surge uma organização inglesa, aceitando o desafio, disposta
a desbravar o sertão inóspito, e criar o Norte do Paraná, fator preponderante
da riqueza do Estado e do País”.6 E, ainda, nas produções oficiais do “Jubileu
de Prata”, comemorado em 1959:

O Norte dormiu o sono do silêncio e do abandono durante 3 séculos e


só foi despertado em 1929 com a colonização inglesa de Lord Lovat.
Isolada a terra, como que permaneceu reservada para a maior experiência
colonizadora do sul do Continente.7

4
A empresa Brazil Plantations Syndicate Ltda fundada em Londres conseguiu adquirir no ano de 1925, 350.000
alqueires de terra junto ao governo do Estado do Paraná. Além desta gleba, no ano seguinte, [adquire outros
terrenos]. Ao todo adquiriu 515.017 alqueires. Assim a constituição da Companhia de Terras Norte do Paraná
(CTNP) foi realizada para desenvolver um projeto imobiliário. Ver TOMAZI . Nelson Dacio. Norte do Paraná.
História e Fantasmagorias. Curitiba: Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná,
1997, p.210. (Tese de Doutorado).
5
“O processo de exclusão ocorrerá gradativamente, iniciando-se com a exclusão do indígena, exclusão esta, que já
vinha se processando há muito tempo, mas que a partir do século XIX se dá de uma forma sistemática. A “barbárie”
e a “selvageria” deveriam ser eliminadas por ações violentas e bárbaras”. Nelson Tomazi. Idem, p.20.
6
JORNAL PARANÁ-NORTE, 20/09/1949.
7
BLANCO, G.; MIONI, F. Londrina no seu Jubileu de Prata. Documentário Histórico. Londrina: Realizações
Brasileiras, 1959, p. 21.

164
JULIANA VALENTINI

Nessa argumentação, prepondera a existência de um vazio


populacional, de um território que precisava ser “explorado” para gerar
riqueza, que se efetivava com a “colonização moderna” através da produção
do café. Para Sonia Adum, houve por parte da CTNP um esforço significativo
na constituição de uma visão positiva sobre sua atuação no Paraná, com a
publicação de artigos, panfletos, livros, revistas comemorativas, propagandas
relacionadas às terras e às facilidades de aquisição, etc.
Nesse material, apresentavam-se as vantagens de viver no Norte do
Paraná, as possibilidades para quem trabalhava de tornar-se proprietário, e
a certeza de lucro fácil da produção e do comércio. Enfatiza-se a fertilidade
de solo e os benefícios, a diversão e a possibilidade de trabalhos oferecidos
nas cidades.8
Essa produção tende, de modo geral, a supervalorizar o processo de
comercialização das terras proposto pela CTNP, supostamente baseado na
pequena propriedade,9 como se fosse algo novo, até então não praticado.
E, por vezes, relaciona-se inclusive a um processo de reforma agrária.10
Nelson Tomazi demonstrou, por meio de análise de Censos Agrícolas e de
fontes orais do período, que até os anos de 1920, cerca de 2/3 do total de
estabelecimentos do chamado “Norte Velho” eram pequenas propriedades.
Outras empresas já haviam utilizado essa política de parcelamento fundiário
do solo rural, ou seja, esse discurso de “novidade” relacionado à venda de
pequenas propriedades, por parte da CTNP, teve como objetivo valorizar a
atuação dessa empresa na região, mas era uma prática antiga.
Nelson Tomazi indica como essa argumentação apresentada pela
empresa foi em grande medida incorporada pelos meios de comunicação
e por parte significativa das produções historiográficas contemporâneas,
atribuindo a prosperidade da região a um princípio “racional e democrático”
da venda de terras e definindo esse comércio como a “reforma agrária”,
necessária para a prosperidade do estado.
Trata-se de uma narrativa que enaltece a participação da iniciativa
privada e, em contrapartida, a “ausência” (total ou parcial) de apoio de
políticas do Estado. Enfoca o trabalho “benevolente” da empresa que
priorizou uma forma específica de (re)ocupação e não como uma empresa
que tinha um produto à venda e visava ao lucro com a sua comercialização.
8
ADUM, Sonia. Imagens do progresso: Civilização e Barbárie em Londrina 1930-1960. Assis SP: Universidade
Estadual Paulista - Unesp/Assis,1991, p. 94.
9
“A Cia de Terras, com suas inúmeras e atraentes propagandas ia ao encontro dos anseios destas gentes, mesmo
porque, segundo alguns autores, no final dos anos vinte, as companhias privadas de colonização tinham consciência
de que sua clientela potencial, era constituída, em sua maioria, por pessoas de poucas posses. Por esse motivo,
ofereciam condições relativamente fáceis de compra de terras. Ofereciam, portanto, a possibilidade de concretização do
sonho, e, por seu lado, a realização comercial de grandes negócios imobiliários e de transportes.” Ibid.
10
É necessário distinguir as diferentes formas e intenções nas reivindicações de Reforma Agrária, que podem ser
distributivistas ou coletivistas. Nem sempre se tratam de bandeiras populares que alteram o regime de propriedade
para impedir futuras concentrações, que compreendem que a terra é um bem coletivo, de uso comunitário, como as
reivindicações de posseiros e indígenas. Do ponto de vista distributivista, é necessário fragmentar a terra para
multiplicar o número de proprietários, sem alterar regime da propriedade que é responsável pela concentração. Ver
MARTINS, José de Souza. Expropriação e violência: a questão política no campo. São Paulo: 3° Ed. Hucitec, 1991.

165
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Entretanto, o estudo de Ana Yara Lopes nos mostra que a participação


do Estado nesse processo foi ativa, não se opondo aos interesses das
empresas, mas indo ao seu encontro e mesmo participando ativamente,
possibilitando a (re)ocupação através de políticas de concessão e apoio.
A remoção/expulsão de pessoas da região não estava restrita ao
período de atuação da CTNP. Ao contrário, se acompanharmos os censos
do período de 1940 a 1980, embora com um crescimento populacional
grande, vemos com facilidade o deslocamento de significativa parte da
população que vivia no campo indo para as cidades.
No decorrer dos anos de 1940, o número de pessoas residentes na
cidade de Londrina era de 30.278 e o equivalente a 63% vivia no campo.
Duas décadas depois, o número de pessoas vivendo na zona rural foi
reduzido para 42% e na década de 1980 representava 11%, ao mesmo
tempo em que, durante essas quatro décadas, a população total multiplicou-
se em aproximadamente 9,9 vezes.11
Vemos que em âmbito municipal, entre as décadas de 1960 e 1980,
a população que vivia no campo diminuiu em grandes proporções. Ao
mesmo tempo em que reduzia-se a população residente no meio rural, a
população total da cidade cresceu 44,6%. Também foi nesse momento que
houve a mudança na legislação que regulamentou o trabalho no campo,
houve a intensificação do uso de técnicas e maquinários agrícolas, a
diversificação das atividades produtivas, etc., que influenciaram
significativamente nesse processo do êxodo rural.
Vemos também que se tratou de um momento de acirramento dos
conflitos sociais, em meio aos quais proprietários rurais decidiram organizar-
se. A ocorrência de conflitos armados na luta pela propriedade/posse de
terra na região norte do estado, especificamente em Jaguapitã e Porecatu,
teve início na década de 1940 e só foram desmobilizados com forte
repressão policial em novembro de 1951.
De acordo com o estudo de Angelo Priori, a partir de meados do
século XIX, especialmente após o ano de 1891 quando os Estados, passaram
a ter a responsabilidade sobre as políticas públicas e de legislação sobre a
questão fundiária e que as negociatas de terras, grilagens ilegais e a violência
contra posseiros e colonos foi ampliada. No ano de 1892, o governo do
Paraná publicou a lei n° 68, de 20 de dezembro, que legislava sobre os
serviços de registro, validação, legitimação, venda, aforamento e
discriminação de terras, bem como definia os princípios básicos de
colonização de novas áreas, por empresas nacionais ou estrangeiras, que
passaram a ser regulados.

11
IBGE - Censos Demográficos 1950, 1960, 1970, 1980, 1991 e 2000.Organização dos dados:PML/ SEPLAN -
Gerência de Pesquisas e Informações. Disponível em: <http://www1.londrina.pr.gov.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=163&Itemid=66> . Acesso em Abril de 2013.

166
JULIANA VALENTINI

Garantia, também, que as terras consideradas “devolutas”, situadas


dentro do limite das fronteiras do estado, só poderiam ser adquiridas
mediante transmissão de seu domínio útil pela forma de aforramento ou
pela compra. Sobre as terras provenientes de sesmarias, o governo exigiu a
sua regularização por meio do Decreto n° 1-A, de 8 de Abril de 1893.12Por
meio da Lei e do Decreto, o Estado do Paraná atribuía à Secretaria de Estado
de Negócio Obras Públicas e Colonização a responsabilidade de
regulamentar as questões da posse da terra. Deveria, portanto, “tratar da
conservação, medição, divisão, demarcação, descrição, distribuição,
registro, venda, cobrança de aforamento e reserva das terras devolutas,
legitimação de posses, revalidação de sesmarias e outros tipos de
concessão”.13 Por meio dessa legislação ficou proibido qualquer tipo de
“invasão de domínio alheio”, principalmente do apossamento de terras
devolutas do Estado, sujeitando posseiros a despejos e pagamento de multas
e sansões do Código Penal.
De acordo com o relatório apresentado por Manoel Ribas ao
presidente Getúlio Vargas, após a década de 1930 as fraudes e irregularidades
relacionadas às concessões de terras a empresas particulares representavam
juntas 5.915.852,40 de hectares que estavam em litígio. A partir dessa
documentação citada por Angelo Priori, pode-se verificar a existência de
20 grandes grilos que totalizavam 2.444.567 alqueires paulistas
(24.200m²).14 Para tentar conter a situação irregular das terras no estado,
algumas concessões foram canceladas.
A concessão de terras feita pelo Estado do Paraná para particulares, a
partir do Decreto Estadual N°. 800, de 1931, passou a ser o principal agente
fiscalizador da colonização e dos negócios de terras, e se tornou mais
intensa a partir de 1939. Esse novo direcionamento teve por finalidade
organizar uma nova fase de colonização de terras, com o Estado chamando
para si a responsabilidade de organizar diversos núcleos e colônias oficiais.
A partir desse direcionamento da política fundiária, o Departamento de
Terras se transformou no principal órgão do estado.
Angela Damaceno Ferreira destacou que onde ocorreu o conflito de
Porecatu foi justamente o local onde a maior parte dos posseiros se
estabeleceram entre 1940 e 1943. Foram atraídos posseiros, pequenos
proprietários, trabalhadores e colonos, vindos de São Paulo, Minas Gerais
e outras regiões do país.
Durante o governo de Moisés Lupion (1946-1950), os conflitos en-
tre posseiros e jagunços contratados por grileiros e fazendeiros ficaram
mais intensos. Nos estudos realizados sobre os conflitos na região norte do
estado, especificamente o de Porecatu, algumas pessoas são citadas com

12
PRIORI, Ângelo. O levante dos posseiros. Maringá: Eduem, 2011, p. 20.
13
Idem, p.21.
14
TABELA DE MEDIDAS AGRÁRIAS NÃO DECIMAIS. Disponível em: <http://sistemas.mda.gov.br/arquivos/
TABELA_MEDIDA_AGRARIA_NAO_DECIMAL.pdf>. Acesso 03/01/2014.

167
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

frequência, a exemplo dos irmãos João e Urbano Lunardelli e o pai Ricardo


Lunardelli (irmão de Geremias Lunardelli, definido por suas biografias como
o “rei do café”), acusados pelos posseiros de assassinatos e massacres de
posseiros.15
Jerônimo Inácio da Costa, grileiro que a partir de acordos com Ricardo
Lunardelli participou na expulsão de posseiros.16Clemente Vilela Arruda,
grileiro responsável pela contratação de pistoleiros para garantir a sua posse
da propriedade conhecida como Lote 13. De acordo com as fontes
levantadas por Angelo Priori, os jagunços de Clemente Vilela entraram em
conflito com o grupo de posseiros comandados por Arildo Gajardoni, em
195117. Outro caso de conflito foi na fazenda Palmeira, do grileiro Antonio
Ângelo, neste caso houve o embargo da derrubada de mata pelos posseiros.18
Dentre outros fazendeiros estavam envolvidos nos conflitos Necker Accorsi,
Otávio Furlanetto, Pedro Fagotti e outros.
A essas pessoas foram atribuídas as práticas de expulsões, grilagens,
processos, conflitos, violência, intervenção por meio de agências do Estado.
“A violência e a intimidação são mecanismos utilizados tanto por grileiros
quanto pela polícia e até pela própria justiça, cujo objetivo é desmobilizar
os posseiros e expulsá-lo de suas terras”.19
Despertou-nos a atenção que durante os anos de acirramento dos
conflitos na região, os fazendeiros e grileiros que estiveram diretamente
ligados à expulsão dos posseiros em Porecatu também estavam organizados
em torno de uma entidade patronal rural, cuja sede estava na cidade de
Londrina e abrangia todo o território no qual se desenvolveu a resistência
armada de Porecatu.
Na data da fundação da ARL, em junho de 1946, a divisão municipal
do estado do Paraná era incipiente e toda a região destacada em verde no
Mapa abaixo pertencia a cinco municípios. Foi com a emancipação, em
1947, que foram criados vários outros municípios a partir do
desmembramento de algumas áreas.20

15
POSSEANTES RESISTENTES DE PORECATU. Doze Mandamentos dos Posseiros. Porecatu, 23 abr. 1951.
Arquivo Público do Paraná. Fundo DOPS. Apud. OIKAWA. Marcelo. Porecatu: a guerrilha que os comunistas
esqueceram. 1º Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 356.
16
PRIORI, A Op. Cit. 2011, p. 85.
17
Idem, p. 145.
18
Idem, p. 167.
19
Idem, p. 82.
20
Ver, Genealogia dos Municípios do Paraná. Disponível em: http://www.itcg.pr.gov.br/modules/conteudo/
conteudo.php?conteudo=56. Acesso realizado em 25/10/2013.

168
JULIANA VALENTINI

MAPA 1: Área de atuação da ARL na data de Fundação

FONTE: IPARDES. Série retrospectiva do Paraná: Atlas Histórico da Indústria (1940/


1980). Curitiba: IPARDES, 1993. p.8. Área destacada pela autora.

No momento da fundação da Associação Rural de Londrina, a


entidade reuniu sócios de vários municípios, como Londrina, Caviúna,
Apucarana, Sertanópolis e Assaí, o que foi alterado cinco anos depois, em
assembleia ocorrida em novembro de 1951, pois passou a atuar apenas no
município de Londrina. É interessante observar que o estatuto da entidade
só foi alterado após os conflitos em Porecatu terem sido reprimidos e os
posseiros expulsos, por meio da ação da força policial do Estado do Paraná
com apoio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São
Paulo.21
Desse modo, embora com escassos documentos sobre o período,
foi possível identificar no primeiro livro de associados, que a ARL foi um
espaço que congregou diversos sujeitos interessados e envolvidos na
expulsão dos posseiros, tais como os membros da família Lunardelli,
Clemente Vilela Arruda, Antonio Angelo, Necker Accorsi, Otávio Furlanetto,
Pedro Fagotti.22
Da entidade também saíram representantes para “negociar” com os
posseiros, como os fazendeiros Renato Cunha (vereador em Londrina pelo
PSD/UDN, membro da ARL e irmão do deputado e diretor da ARL Ruy Cunha)
e o grileiro Clemente Vilela Arruda. Com isto, a própria ARL constituiu-se
em um espaço de pressões e organização contra os posseiros e na defesa
dos grilos de terra.

21
Ângelo Priori. Idem, op. cit, p. 192.
22
ASSOCIAÇÃO RURAL DE LONDRINA. Livro dos Sócios fundadores e primeiros Contribuintes. Londrina 17/
06/1946.

169
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

A formação de uma Comissão Especial para “negociar” com os


posseiros foi descrita por Angela Damaceno Ferreira com as seguintes
palavras:

O novo governador, Bento Munhoz da Rocha Netto, que assume em 31


de janeiro de 1951, constituiu de imediato uma Comissão Especial para
a questão de terras em Porecatu. Essa Comissão tinha por objetivo
conceder títulos definitivos aos posseiros localizados em terras devolutas
e transferir para outras áreas do Estado os que estivessem localizados em
propriedades privadas. Desde o início dos trabalhos da Comissão, os
posseiros colocaram-na sob suspeição, porque dela participavam
fazendeiros da região com terras ‘intrusadas’.23

Osvaldo Heller da Silva, em uma nota em seu livro “A Foice e a Cruz:


Comunistas e Católicos na História do Sindicalismo dos Trabalhadores
Rurais do Paraná”, apresentou os membros da comissão nomeada para
realizar as negociações:

Renato Cunha, advogado e fazendeiro; Oscar Santos, advogado,


fazendeiro (integralista); Clemente Vilela Arruda, fazendeiro; Edgar Távora,
advogado e político integralista; Pedro Nolasco, Farmaceutico; Herculano
Alves de Barros, Ex-posseiro, e Francisco Oliveira.24

Essa comissão reconheceu os grileiros como legítimos proprietários


das terras e organizou a remoção forçada dos posseiros para outras regiões
do estado por estarem em terrenos de propriedade particular. A expulsão
deveria ser precedida pela indenização das benfeitorias feitas pelos
posseiros, o que não foi aceito pelos fazendeiros por não concordarem
com o pagamento e, em outros casos, não foi aceito pelos posseiros devido
ao valor oferecido ser irrisório e não corresponder ao valor da despesa e
do trabalho realizado na terra.25
As duas principais reivindicações feitas pela Comissão, no decorrer
do seu trabalho, foram o aumento da força policial e a composição de uma
força com “elementos de confiança de coragem, mateiros, que conheçam
os hábitos e costumes sertanejos”.26 Em outras palavras, de “pistoleiros e
jagunços” que trabalhassem em “perfeito entendimento com a comissão”.27
E a segunda exigência foi para que a ação de deslocamento dos posseiros

23
FERREIRA. A. D. Agricultura Capitalista e Campesinato no norte do Paraná– região de Porecatu – 1940-52.
Curitiba: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, 1984, p. 74. (Dissertação de
Mestrado)
24
GAZETA DO POVO. 24/06/1951; O CRUZEIRO 14/06/1951. Apud: SILVA, Osvaldo Heller da. A foice e a cruz:
Comunistas e Católicos na História do Sindicalismo dos Trabalhadores Rurais do Paraná. Curitiba: Rosa de Bassi,
2006, p.90
25
Ângelo Priori. Idem, op. cit., p. 103-110.
26
Ibidem.
27
Ibidem.

170
JULIANA VALENTINI

para outras regiões do estado fosse rápida, com “transporte em


quantidade”.28 A forma como isso seria feito, se com a conivência ou não
dos posseiros, não foi indicada. Ou seja, a ação de “diálogo” com os
posseiros deveria ser rápida e violenta, como indicam as exigências
transcritas abaixo:

1. Uma força policial de 30 a 40 homens, sediada em Londrina.


2. Reforço dos destacamentos de Porecatu, Centenário, Jaguapitã e
Guaraci.
3. Nomeação de um delegado especial que atue e dirija todas as medidas
de segurança, de ordem, e repressivas em perfeito entendimento com a
comissão.
4. A formação de uma força especial compostos de elementos de confiança
de coragem, mateiros, que conheçam os hábitos e costumes sertanejos,
nos moldes das antigas “capturas” para a repressão e prisões de elementos
responsáveis pelas desordens e crimes praticados nas zonas onde se
exerce a ação subversiva comunista.
5. Máxima rapidez no loteamento dos terrenos onde serão legalizados
os posseiros
6. Meios de transporte de quantidade suficiente para levá-los até onde
devem ser localizados.29

Como visto, as quatro primeiras reivindicações da comissão estavam


relacionadas ao uso da violência e, as duas últimas, à rapidez com que as
ações deveriam ser feitas. As “negociações” da comissão com os posseiros
foi um fracasso: não desmobilizou a resistência, as irrisórias propostas de
pagamento apresentadas aos posseiros pelas benfeitorias não foram aceitas,
os posseiros negavam-se a ir para regiões onde a qualidade do solo era
inferior e a abrir mão das suas posses por valores irrisórios.
A permanência da mobilização em Porecatu levou a ação da polícia
para a desmobilização dos posseiros armados por meio da prisão dos
militantes do PCB que davam suporte aos posseiros. A ação violenta na
região do conflito culminou com a posterior expulsão das famílias, tendo
estas aceitado ou não as condições propostas. Os casos de negociações
que beneficiaram e garantiram aos posseiros indenizações coerentes fo-
ram exceções.
Vale a pena destacar que os conflitos na região não se resumiam à
posse da terra, os trabalhadores das fazendas efetuaram inúmeras greves
no período30 evidenciando outros espaços e bandeiras de luta. Coincidente

28
Ibidem.
29
Idem, p.107.
30
A partir de um amplo levantamento nos jornais: Imprensa Popular, Voz Operária e Terra Livre, Leonilde Sérvolo de
Medeiros compõe um quadro demonstrativo dos movimentos sociais do campo. Fornece um conjunto de dados
sobre as resistências dos trabalhadores no estado do Paraná no período de 1950 e 60, destacando especificamente as
greves que ocorreram: Londrina em 1954 e 1957. Pulinópolis em 1962, Bonsucesso, Maringá e Nova Esperança em
1963, na sua maioria por motivos salariais e por quebra de contratos. MEDEIROS, Leonilde Servolo de. A reforma Agrária
no Brasil: História e atualidade da luta pela terra. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

171
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

com os conflitos de terra na região de Porecatu, entre fins da década de


1940 e início de 1950, houve a ascensão do sindicalismo rural que se
expandiu no norte do Paraná. A reação da classe dominante foi um conjunto
de campanhas de criminalização de tais organizações.
No âmbito das organizações patronais, mobilizações vinham sendo
promovidas com o intuito de afastar os trabalhadores de organizações
sindicais e associações. Essas estratégias passaram a ser amplamente
noticiadas pela imprensa. No ano de 1954, foi debatido no Parlamento do
Estado do Paraná o Projeto de Lei proposto pelo deputado e promotor Ruy
Cunha — membro da diretoria da ARL — denominado “Patronato Agrícola”.
Tratou-se de uma proposta que já vinha sendo discutida, com menor ênfase,
desde o início da década 1950 para criação de um órgão para atender aos
“operários agrícolas”, conforme se apresentou na revista A Pioneira:

O Dr. Rui Cunha passou a descrever sua luta para criar, no Paraná, um
Patronato Agrícola, a exemplo de outros estados. Narrou que desde seu
ingresso na Assembleia vem se debatendo para assistência ao trabalhador
rural. Primeiramente apresentou um projeto atribuindo aos promotores
públicos o dever de prestar essa assistência. E na elaboração da lei de
Organização Judiciária do Estado, Dr. Rui solicitou ao Desembargador
José Munhoz de Mello, redator da lei, inclusive em seu anteprojeto,
aquela norma, tendo sido atendido. Mas, na assembleia uma emenda
supriu a disposição. Na sessão seguinte, Dr. Rui apresentou um amplo
projeto, criando o Patronato Agrícola, com maior amplitude de maneira
a tornar mais eficiente a assistência aos trabalhadores da lavoura.31

Em 1954, este assunto novamente voltou a ser noticiado na imprensa


da região, como vemos na “Folha de Londrina”:

Como medida de emergência, pleiteia o deputado Ruy Cunha, agora, da


sua tribuna na Assembleia Legislativa, que na luta pelos seus direitos,
pelos [pelo] menos, não recue o lavrador ante a barreira do custo elevado
de uma ação judicial. Que a justiça esteja ao seu alcance absolutamente
de graça. E outro não é o objetivo do projeto de lei. É do seguinte teor
esse projeto: “Patronato agrícola da Fundação de Assistência ao
trabalhador Rural”. Art. 1°. Fica criado dentro da Fundação de Assistência
ao trabalhador Rural, o PATRONATO AGRÍCOLA, como órgão de
assistência legal e judiciária aos trabalhadores rurais e de fiscalização
conciliação e disciplina e proteção ao trabalho agrícola no Estado do
Paraná.32

31
A PIONEIRA. Criação de novos distritos no Paraná e a instituição de um patronato Agrícola. Julho/agosto de 1950,
Ano III n°7.
32
FOLHA DE LONDRINA. Justiça gratuita aos lavradores do Paraná através dos Patronatos Agrícolas do Estado.
03/07/1954.

172
JULIANA VALENTINI

O sentido dado a esse órgão, denominado patronato, 33 está


relacionado à tutela que o estado exerceria sobre o trabalhador, sendo
oferecido a este um espaço onde teoricamente seus direitos seriam
assegurados. Nesse projeto, o Patronato Agrícola deveria ser integrado à
Fundação de Assistência ao Trabalhador Rural (FATR) e ter seus representantes
nomeados pelo governo do estado, que atuaria sob o assentimento da FATR
para nomear e contratar os advogados e auxiliares.
Fariam parte do Patronato Agrícola os trabalhadores rurais,
compreendidos como todos aqueles que, “mediante paga troca de
vantagens, parte dos lucros ou produtos, pagamento de forro ou renda,
exerçam diretamente a atividade agrícola, pastoril ou extrativa em terreno
alheio”, bem como o pequeno proprietário sem assalariados.34
Esse projeto voltou à baila em meio a um contexto em que
trabalhadores rurais organizavam-se e lutavam pelo direito à posse da terra,
melhores salários, contratos agrícolas e condições de trabalho. Como se
noticiava em panfletos que circularam por municípios do norte do estado,
os trabalhadores estavam organizados nas chamadas “Comissões de
Reivindicações dos Trabalhadores Rurais”, dos municípios de Mandaguari,
Rolândia, Londrina, Sertanópolis, Jataizinho e Porecatu, sob influência do
Partido Comunista Brasileiro (PCB).35
Nesses panfletos são encontradas orientações aos trabalhadores
rurais, arrendatários, empreiteiros e pequenos proprietários sobre várias
questões ligadas ao trabalho e à relação com os proprietários/patrões, como,
por exemplo, desde o valor que deveria constar nos contratos de trabalho
para a lavoura de café até o cultivo de alimentos de subsistência dentro da
propriedade. Aos arrendatários havia recomendações quanto à porcentagem
a ser paga aos proprietários da terra, aos contratos enganosos, ao tempo de
empreita e, de modo mais enfático, à necessidade de organização dos
pequenos proprietários para manterem-se no campo.36
Nesse sentido, a proposta apresentada por Ruy Cunha pode ser
compreendida como uma medida para conter demandas sociais existentes,
que poderiam levar os trabalhadores a buscar nas Comissões apoio e

33
“Proteção, amparo, auxílio; patronagem, patronato”. Essa é uma das definições dadas à palavra “patronato”,
acreditamos que o sentido dado pelo Projeto de Lei esteja próximo a este. O uso desse terno buscaria indicar um
suposto “cuidado”, camuflando a tentativa de controle dirigida pelos proprietários aos trabalhadores rurais, buscando
afastá-los da sindicalização.
34
FOLHA DE LONDRINA. Justiça gratuita aos lavradores do Paraná através dos Patronatos Agrícolas do Estado.
03/07/1954.
35
O Partido Comunista Brasileiro (PCB) desempenhou um papel importante na organização de sindicatos procurando
atuar em conflitos rurais na região, como no caso do conflito armado de Porecatu. A ação do partido entre os
trabalhadores rurais se deu em dois sentidos: no encaminhamento de questões imediatas (como salários, contratos de
arrendamento e parceria, abolição dos “vales”) e no estímulo à luta pela reforma agrária. Ver. Leonilde Medeiros. Idem,
op. cit., p.16.
36
LIGAS CAMPONESAS. Apelo aos camponeses do Paraná. 1949. Disponível no Departamento de Arquivo
Público do Paraná – DEAP. Dossiês Temáticos: Ligas Camponesas. p.22.

173
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

orientações sobre como e para que se organizar. Além disso, o Patronato


Agrícola, de acordo com o projeto de lei, seria um órgão aparelhado ao
Estado. O diretor do órgão e os demais profissionais seriam de livre provisão,
o primeiro nomeado pelo governador e os demais nomeados pelo diretor e
Conselho Diretor da Fundação de Assistência ao Trabalhador Rural (FATR).
Desse modo, presume-se que as atividades promovidas pelo órgão
não divergiriam dos anseios do governo estadual, do mesmo modo que tal
órgão não teria autonomia que possibilitasse ser transformado em um real
representante dos interesses dos trabalhadores. A função essencial do
Patronato Agrícola seria de assumir um papel pedagógico junto aos
trabalhadores rurais, buscando soluções conciliatórias e os afastando dos
sindicatos.
No período, havia reivindicações de vários direitos relacionados ao
trabalho e aos trabalhadores, assim como à permanência dos posseiros na
terra, como uma necessidade dos trabalhadores rurais empregados nas
mais variadas modalidades de contrato. A proposta do Deputado Ruy Cunha
foi a criação de um órgão estadual para mediar, por meio da “conciliação”,
os conflitos entre trabalhadores e patrões, evitando, dessa forma, que essas
demandas viessem a enraizar-se no seio da vida social, como foi o caso do
conflito armado em Porecatu ou na ampliação dos processos dos
trabalhadores rurais contra seus patrões.
A efetividade desse órgão e os prováveis mecanismos de
favorecimento não serão considerados aqui devido a escassez de fontes,
apenas em seu contexto socioeconômico, que exigia uma nova postura
dos patrões diante da organização dos trabalhadores, mas também em
relação às novas formas de organização patronal e da ação do Estado na
relação capital-trabalho. No mesmo ano de 1954, houve a criação na ARL
dos departamentos internos de “Assistência ao Trabalhador” e “Jurídico”,
para prestar serviço e orientação aos proprietários associados à entidade,
evidenciando assim o seu caráter organizativo e de ação da classe patronal
rural.
Um conjunto de matérias, publicadas na imprensa nos anos 1950,
fornece indicações sobre o clima de tensão de classe que havia entre patrões
e trabalhadores e da sindicalização dos trabalhadores, parceiros, meeiros,
sob a influência do PCB, que convém citar: “Denunciados dois advogados
de Londrina como responsáveis pela agitação comunista na zona rural”; “A
Agitação e as condições entre colonos e patrões tem como causa a política

174
JULIANA VALENTINI

do ministério da Fazenda”; “Desorganização, Indisciplina e Desrespeito


nos estabelecimentos agrícolas no Paraná”; “Legislar sem subverter”; “Entrou
em Regime de urgência na Câmara dos Deputados o projeto de lei que
manda estender aos trabalhadores rurais os benefícios da legislação
trabalhista”. Estas “chamadas” denotam a práxis patronal em relação às
lutas sociais e à necessidade de construir um consenso social por meio de
convencimento sob a ótica dos ruralistas.
Além das campanhas contra a sindicalização do trabalhador rural,
foi publicado no jornal Folha de Londrina um conjunto de advertência aos
trabalhadores e lavradores “explicando” o que poderia acontecer caso
procurassem a Justiça. Entre os “avisos” estavam: perda de dias de trabalho
e da remuneração destes, possível desemprego, pagamento das custas do
processo caso fossem derrotados, a perda da casa em que moravam ou da
terra em que plantavam, da “amizade do patrão” e das “facilidades” que
este “oferecia”, como o adiantamento da remuneração em casos de doença
ou extrema necessidade. O trecho abaixo é ilustrativo desta ação educativa
patronal:

Antes de perderes dias de trabalho para fazer reclamações a respeito de


salário mínimo e férias procures conselhos com alguém que esteja
mai s a par que tu: Procure o Pa trão. De preferência, pr ocure
antes teu patrão, que é teu melhor amigo. Não te esqueças que é
de teu patrão, o fazendeiro, que vais recorrer nos dias em que teu dinheiro
acaba e precisas de alimento ou médico para ti, teus filhos e mulher.37
(Grifos meus)

Essa e outras matérias apresentavam como exemplo casos em que os


trabalhadores da região entraram na Justiça em busca de direitos trabalhistas
(férias, salários, descanso semanal) e não foram atendidos, tentando, dessa
forma, desencorajar os trabalhadores da busca de qualquer reivindicação.
Em outros casos, abriam espaço para a fala de “especialistas” para orientar
sobre os “perigos da sindicalização”, como o delegado regional do trabalho,
juízes e promotores.
Na fala proferida por Álvaro Godoy – membro da ARL 38 e vice-
presidente da Associação dos Lavradores do Norte do Paraná (ALNP)39 – em
1956, no microfone da rádio de Londrina e transcrita pelo jornal “Folha de
Londrina”, os proprietários eram convidados a participar de reunião para
discutir os termos nos quais deveriam ser elaborados os contratos entre
colonos e proprietários para a colheita de café. Essa fala também
responsabilizou a política do governo pelo baixo preço pago aos colonos e

37
FOLHA DE LONDRINA. Trecho de um panfleto de campanha publicado continuamente pelo jornal. 15/07/1956.
38
Álvaro Godoy fez parte da ARL desde a primeira diretoria, em cargos de Comissão Fiscal e suplente, atuava
simultaneamente como diretoria da ALNP, entidade que agregava produtores de vários municípios da região.
39
ASSOCIAÇÃO RURAL DE LONDRINA. Ata da Assembleia Geral na qual foi aprovada a fusão da Associação
dos Lavradores do Norte do Paraná com a ARL, 16/07/1962. Disponível no Museu da Sociedade Rural do Paraná
– SRP.

175
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

dizia que os culpados das “discórdias” entre trabalhadores e patrões, eram


os “agitadores comunistas”.

Em última análise as agitações entre colonos e patrões têm como


causa direta a política econômica do ministro da fazenda que
ainda recentemente disse a um repórter: “para o café, nem mais um
centavo”. Faremos tudo o que for possível e estiver ao nosso alcance
para solucionar diretamente com os colonos as diferenças e as questões
que por acaso surja. Ma s na d a q uer em os com a g i t a d or es
comunistas, aos quais neg amos o di reito e as credencia is de
servirem de mediadores entre colonos e patrões. Com agitadores
não há acordo possível: eles desejam indisciplina e o caos. Seu objetivo
é levar a nossa terra para revolução social, com o fito de nos escravizar
com seus amos russos.40 (Grifos meus)

As fortes e permanentes campanhas anticomunistas promovidas na


região norte do Paraná tiveram repercussão e apoio de entidades de outros
estados, como é possível identificar na fala proferida por um dos porta-
vozes da ARL, o deputado Hugo Cabral,41 que pedia apoio e providências
para conter a sindicalização.
Em meio ao discurso pronunciado em 1956 contra a atuação do
“Sindicato dos Colonos e Assalariados Agrícolas do Norte do Paraná”, no
município de Londrina, argumentou sobre a situação de irregularidade dos
sindicatos dos trabalhadores diante do não reconhecimento pelo Ministério
do Trabalho. Leu telegramas enviados pelas associações (ARL e ALNP) do
norte do Paraná. Nestes, advertia-se sobre “o risco de grande prejuízo da
classe rural”, devido à resistência dos trabalhadores em voltar ao trabalho
antes de terem negociado suas reivindicações. “Pedimos urgentes
providências contra esses agitadores, pois não cabe culpa aos colonos,
que estão sendo enganados”.42
Na década de 1950, as lutas no meio rural brasileiro foram
intensificadas com o objetivo de estender ao campo os direitos trabalhistas
dos trabalhadores urbanos, regulados pela Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT), de 1943. No mesmo ano da fundação do sindicato dos trabalhadores
de Londrina, a Associação Rural de Londrina passou a fundar núcleos em
vários distritos da cidade com o objetivo de reforçar suas bases locais,
como ocorreu nos distritos de Tamarana, de Caramuru, de Irerê e de São
Luiz. Na cidade de Londrina foram constantes as ações trabalhistas
especialmente as que reivindicavam salário mínimo e férias, ainda que
estes direitos não tivessem garantidos aos trabalhadores rurais no plano da

40
FOLHA DE LONDRINA. A Agitação e as condições entre colonos e patrões tem como causa a política do
ministério da Fazenda 03/07/56.
41
Prefeito, deputado, um dos fundadores da Associação Rural de Londrina, primeiro presidente desta entidade.
42
FOLHA DE LONDRINA. Desorganização, Indisciplina e Desrespeito nos estabelecimentos agrícolas no Paraná.
21/07/56

176
JULIANA VALENTINI

lei. No ano de 1956, o sindicato atuou na unificação dos trabalhadores


rurais naquela luta, na busca por conquistar esses direitos apresentando
ações reivindicatórias, salário mínimo e férias, por exemplo, à Justiça do
Trabalho.43
Frente à intensificação dos movimentos dos trabalhadores (greves,
sindicato e associações) sob forte influência do PCB, frações da classe
dominante passaram a criar estratégias para fazer frente às mobilizações.
Nas fontes pesquisadas, percebemos que estava sempre presente o
argumento de que os colonos eram enganados, ludibriados, por “elementos
comunistas”, isso se observava seja na fala dos membros da entidade ou
por meio dos seus representantes em agências da sociedade política, por
meio de jornais, rádio e discursos públicos de autoridades.
Na tentativa de distanciar os colonos dos sindicatos, de convencer
sobre a má índole dos trabalhadores sindicalizados ou de ideologia
comunista, distintas entidades representativas da classe dominante
articularam inúmeras formas de pressão junto às agências da sociedade
política responsáveis pela “manutenção da ordem”, formulação e aplicação
da legislação, bem como a formulação de várias campanhas de
criminalização dos sindicatos e de orientação aos trabalhadores rurais.
Em reuniões na cidade de Londrina, as entidades patronais
(identificamos ARL e ALNP) encaminharam, por intermédio de seus
representantes em agências do Estado, sugestões de procedimentos que
deveriam ser tomados pelo governo.

Como se sabe o Sr. Souza Naves veio a Londrina especialmente para


informar sobre essa situação [agitações comunistas], a serviço do Banco
do Brasil. Durante a reunião o Deputado Hugo Cabral fez uso da palavra,
expondo o que se passa por aqui, e ressaltando as consequências que já
estão se fazendo sentir, em virtude daquele movimento. Pediu-se,
a i nd a , a o S r. S ouz a Na v es , s ua i nt er f er ê nci a j unt o à s
a utor i da d es f ed era i s , no sent i do d a v i nda d e el ement os d o
Mini st éri o do Tr a ba l ho pa r a ef et uar em a s i nd i ca l i za ção dos
trabalhadores rurais, tendo a senhoria afirmado que solicitara do
representante daquela Pasta, em Curitiba, a execução dos primeiros
passos daquela iniciativa. Acrescentou que considerava sumamente
grave tudo o que lhe foi dado observar a respeito da situação,
d ep oi s d o cont a t o q ue t ev e c om os col onos , f a z end ei r os ,
juízes etc. ressaltando que levará relatório a respeito inclusive
ao presidente da república. 44 (Grifos meus)

Nos pronunciamentos da diretoria da ARL eram criticadas as atividades


sindicais dos trabalhadores rurais, especialmente sob a influência comunista.
Alegava-se que a presença de comunistas nos sindicatos estava ameaçando
a estabilidade da relação entre trabalhadores e patrões e a produtividade
43
NETO, José Miguel Arias. Pioneirismo: Discurso Política e Identidade Regional. Revista História e Ensino. Londrina:
69-82, 1995.
44
FOLHA DE LONDRINA. Ronda Pela Cidade. 22/07/1956.

177
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

da economia na região. Para conter o avanço dos conflitos no campo, a


sugestão apresentada naquela reunião pelas entidades foi a atuação do
Ministério do Trabalho, por meio de sindicatos atrelados ao Estado, que
tutelariam os trabalhadores na tentativa de afastá-los de possíveis influências
comunistas.
As tentativas de impedir a sindicalização combativa e de elaborar
espaços de conciliação entre patrões e trabalhadores fizeram parte da pauta
das classes dominantes em toda a década de 1950. As justificativas para
legitimar esse controle foram distintas, mas o objetivo foi de conter a
organização e luta dos trabalhadores.
Em âmbito municipal, a Câmara dos Vereadores de Londrina recorreu
junto ao Secretário de Justiça do Estado e ao governador Moyses Lupion
para

tomar providências enérgicas e imediatas contra elementos comunistas


confessos que vêm subvertendo a ordem nos meios rurais, insuflando
trabalhadores [à] revolta e ao abandono [do] trabalho com destruição
de lavouras, criando clima perigoso ao desenvolvimento da região.45

Pode-se dizer que o conjunto de experiências vividas na região, desde


o conflito de Porecatu, a busca na Justiça Comum de rever contratos ou
remunerações injustas e a fundação de associações e sindicatos dos
trabalhadores rurais, ocasionou mudanças nas relações de vida nas fazendas
de café – seja por meio da reivindicação na Justiça, nas resistências no
ambiente de trabalho, de desobediência às ordens dos patrões, entre outras.
Essas mudanças levaram os trabalhadores rurais a constituir diferentes
formas de organização e luta.
O desrespeito das condições “justas” de trabalho e sobrevivência
passou a informar a prática dos trabalhadores rurais da região norte do
Paraná. Desse modo, a insatisfação dos proprietários rurais não foi apenas
com a organização dos trabalhadores rurais em sindicatos, mas com as
constantes ações trabalhistas levadas a cabo e que se tornaram mais
frequentes a partir de 1950.
Um desses processos, que ocorreu em meados do ano de 1956,
requerido por 28 trabalhadores contra o proprietário de terra Arnoldo Bulle,
pelo qual os trabalhadores reivindicavam o pagamento de salário mínimo
vigente na região (CR$ 1350,00 mensais) e férias46, foi lembrado por Álvaro
Godoy como exemplo a não ser seguido. Diante dessa ação trabalhista, o
posicionamento dos diretores da ARL foi de vitimizar os proprietários que

45
CAMARA DE VEREADORES DE LONDRINA. Telegrama Câmara Municipal de Londrina n° 15637, Disponível
no Departamento de Arquivo Público do Paraná - DEAP. Dossiês Temáticos: Sindicato dos Trabalhadores da
Lavoura de Londrina. p.51.
46
Processo da Primeira Junta de Conciliação de Londrina de 1956. Reclamação Trabalhista: n° 71. Apud: PRIORI,
Ângelo. O Protesto do Trabalho: história das lutas sociais dos trabalhadores rurais do Paraná (1954-1964). Maringá:
Eduem, 1996, p. 90.

178
JULIANA VALENTINI

estavam sendo “arrastados aos tribunais” e desestimular outras futuras


ações.

Como se explica que estejam sendo arrastados para os tribunais homens


cujo único crime é produzir e manter a estabilidade econômica deste
infeliz Brasil, que embora em estado de pauperamento (graças aos maus
governos) ainda se mantém de pé, mercê do nosso trabalho. ... Foi o que
aconteceu com o velho sertanista e lavrador Sr. Arnoldo Bulle, apesar de
ser um dos melhores patrões que conheço e tudo fazer para servir
e ajudar seus subordinados, não respeitaram eles os seus 70 anos de
idade, arrastando-o, sem motivo, como um criminoso vulgar às barras
dos tribunais. Felizmente o exmo Sr. Juiz Hércules de Macedo
R och a j ul g ou a a çã o i m p r oced ent e, p el o q ue r es p i r a m os
aliviados, uma vez que a justiça foi feita. 47 (Grifos meus)

Nos processos que tratam de reivindicações trabalhistas os advogados


dos patrões buscaram qualificar os trabalhadores rurais como meeiros,
parceiros ou empreiteiros para tentar eximir o proprietário de quitar direitos
trabalhistas. Nessa argumentação, poderiam ser qualificados de
“trabalhadores rurais” apenas os tratoristas, camaradas, fiscais, ou seja,
estes poderiam recorrer à justiça como trabalhadores, sendo que os demais
não estavam contemplados por esses direitos por ter contratos distintos.
Essa foi uma estratégia que levou parte dos patrões a ser beneficiada nos
litígios trabalhistas.48
A delimitação de requisitos para definir quais trabalhadores poderiam
ser qualificados como “trabalhadores rurais” visava a excluí-los e/ou
distanciá-los da legislação trabalhista. As tentativas de descaracterizar as
relações de trabalho para não pagar salário mínimo e férias foram recorrentes
nos processos, como indica Angelo Priori. No entanto, os debates jurídicos
sobre essa questão não foram pacíficos, brechas foram abertas e permitiram
avanços para os trabalhadores rurais.
É possível verificar que durante toda a década de 1950 foram
constantes os processos contra os proprietários. As intimidações oriundas
de setores da classe patronal não foram suficientes para conter os litígios
quando os colonos, parceiros e meeiros se consideravam moralmente
amparados pela lei.
Com vistas a “contornar” localmente as lutas sociais que se
manifestavam por meio dos constantes processos, os membros da ARL
adotaram estratégias que visavam impedir que os colonos procurassem os
tribunais. Criaram, então, em 1959, uma Junta de Particular Conciliação,
como descrito em Ata da entidade:

47
FOLHA DE LONDRINA. A agitação e as condições entre colonos e patrões tem como causa a política do
ministério da Fazenda 03/07/56.
48
Ângelo Priori. O protesto do trabalho. Idem, op. cit., p. 99.

179
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

as finalidades da junta, que são de procurar entre proprietários e operários


rurais solução por seus conflitos sem necessidade de recursos à justiça
comum a fim de evitar nos tribunais polêmicas custosas e desnecessárias,
que só trazem prejuízos e perda de tempo muitas vezes para ambas as
partes”.49

Para organizar o funcionamento da Junta foram encarregados os


proprietários rurais: Milton R. Menezes, Américo Ugollini, Antonio André e
Omar Mazzei Guimarães, que deveriam buscar acertos entre as partes.
Pode-se verificar que diante da sindicalização no meio rural a classe
dominante passou a criminalizar as nascentes organizações de trabalhadores
rurais e a tomar a frente desse processo, buscando mecanismos para afastar
a influência do PCB, fosse por meio da intervenção estatal — Ministérios e
Secretarias do Trabalho ou da criação de órgãos.
A ARL e a sua congênere ALNP tiveram uma participação ativa,
souberam organizar-se em momentos cruciais, sobretudo frente às nascentes
organizações de trabalhadores rurais, às ligas camponesas e aos
movimentos de luta pela terra. Mantiveram intensa atuação ideológica,
política e também na implementação de novas tecnologias, desenvolvimento
de pesquisas e inovação genética na produção animal e vegetal.
Podemos concluir que a ARL mobilizou forças e interesses para fazer
frente à luta de posseiros e para criminalizar as organizações dos
trabalhadores rurais. Foi, também, um espaço de formação de
“organizadores” ou “intelectuais”, ou seja, sujeitos enquanto persuasores
permanentes atuando em diferentes espaços sociais, com a capacidade de
organizar a ação política e de trabalhar na construção de uma vontade
coletiva concretizada em práticas.
Entre 1946 e 1951, a atuação da entidade foi ativa no combate às
associações de trabalhadores rurais e posseiros, que aos olhos dos
proprietários representavam uma “ameaça” à ordem social. Membros da
entidade atuaram diretamente na organização dos proprietários rurais para
conter, por meio da expulsão dos posseiros, a revolta de Porecatu. E
reivindicaram, por intermédio das comissões nomeadas para “cuidar” do
caso, o uso da força privada e pública para garantir o reconhecimento por
parte do Estado e dar legitimidade aos títulos de propriedade forjados em
esquemas ilícitos, como as grilagens.
“Coincidentemente” após o aniquilamento da revolta de Porecatu, a
ARL teve sua área de atuação reduzida ao município de Londrina, ainda
que mantendo em seu quadro dirigente membros de toda a região norte do
estado. Fomentou durante a década de 1950 a criação de núcleos locais
para o fortalecimento de suas bases e passou a fazer oposição às recém-
criadas associações e sindicatos dos trabalhadores.

49
ASSOCIAÇÃO RURAL DE LONDRINA. Ata da reunião de constituição da Junta Particular de Conciliação e de
posse de seus membros realizada na sede da Associação Rural de Londrina. 21/03/1959.

180
JULIANA VALENTINI

Ao defrontar-se com o avanço das associações de trabalhadores e


sindicatos ARL passou a organizar sua ação por intermédio do jornal Folha
de Londrina, por meio do qual os seus agentes articulavam práticas e
discursos, divulgavam informes, reivindicações, projetos, atividades
internas, mobilizações externas, orientavam juridicamente e buscavam
apoio para suas bandeiras. Mobilizou, também, representantes do governo
para que fossem oferecidas orientações e assistência jurídica aos
trabalhadores, para que estes não buscassem apoio nos sindicatos. Para
amparar os proprietários nas relações trabalhistas, a entidade fundou a
Junta Particular de Conciliação, na tentativa de desestimular as ações
trabalhistas, alterar a legislação do trabalhador rural e criminalizar a
sindicalização.

Fontes e referências bibliográficas

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Agrícola. Julho/agosto de 1950, Ano III n°7.
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Disponível no Museu da Sociedade Rural do Paraná – SRP.
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Disponível no Museu da Sociedade Rural do Paraná – SRP.
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FOLHA DE LONDRINA. A Agitação e as condições entre colonos e patrões tem
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___. Desorganização, Indisciplina e Desrespeito nos estabelecimentos agrícolas no
Paraná. 21/07/56
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181
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

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p.210. (Tese de Doutorado).

182
A (RE)OCUPAÇÃO1 RECENTE DO MUNICÍPIO
DE MARECHAL CÂNDIDO RONDON:
UMA ANÁLISE DO PROCESSO
DE ESPECULAÇÃO DA TERRA2
3
Cristiane Bade Favreto

Neste capítulo, apresentamos discussões referentes ao processo de


(re)ocupação recente do município de Marechal Cândido Rondon,
destacando a comercialização da terra e o envolvimento dos sujeitos sociais
(colonizadora, colonos, trabalhadores, etc.) nesse processo. Para tanto, a
pesquisa se ateve a investigar a formação do espaço urbano, tendo como
enfoque a prática da especulação imobiliária, e o envolvimento de agentes
imobiliários, de empresários e de governantes e suas inter-relações no
período da colonização.
O texto começa tratando do processo da colonização de Marechal
Cândido Rondon, contextualizando brevemente esse momento da história.
Em seguida, apresentamos as ações da empresa colonizadora da cidade,
que envolvem o processo de especulação da terra. Procuramos, além disso,
destacar a construção de mitos em torno dos considerados “pioneiros” do
município e de Willy Barth4. Essas análises foram realizadas com base na
ênfase que os meios de comunicação propagam destes elementos,
nomeando-os como percussores do progresso da região. Concluindo o
capítulo, buscamos apresentar a formação do mercado imobiliário no
município, apontando as relações e vínculos existentes entre os
especuladores e a municipalidade na formação da sociedade e do desenho
urbano da cidade.

1
Optamos por tratar da fase da colonização de Marechal Cândido Rondon como um processo de (re)ocupação, pois
essas terras já haviam sido ocupadas pelos indígenas, da nação Guarani, e por empresas estrangeiras antes de tal
processo de colonização dirigida se iniciar. Desse modo, destacamos a abordagem realizada por Nelson Dacio Tomazi
em Norte do Paraná: histórias e fantasmagorias, que nos orientou para o uso deste termo: “Inicialmente faço a distinção entre
ocupação e o longo caminho percorrido por povos que ocuparam a região, hoje situada ao norte do estado do Paraná,
desde há milhares de anos e que utilizavam todo esse território como espaço para o desenvolvimento de suas
sociedades – e (RE) OCUPAÇÃO – como o processo que se desenvolveu a partir de meados do século XIX, com
a preocupação de integrar estas terras, consideradas “vazias”, ao processo de valorização do capital ou ao processo
de desenvolvimento do capitalismo no Brasil”.
2
A produção desse texto decorre das análises realizadas na dissertação defendida em 2011 no Programa de Pós-
Graduação stricto sensu em História, na Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
3
Licenciada e mestre em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE. Professora
Assistente no curso de Artes Visuais da Universidade Federal de Roraima - UFRR. E-mail: cristiane_bade@yahoo.com.br
4
Dirigente da Industrial Madeireira Colonizadora Rio Paraná S.A, mais conhecida pela sua sigla (MARIPÁ), empresa
que colonizou o município de Marechal Cândido Rondon.

183
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

As fontes que buscamos para realizar a abordagem foram de campo


e bibliográficas, que nos permitiram aprofundar o conhecimento da
realidade do município referente à especulação da terra.
A produção deste capítulo, enfim, foi fundamental para entendermos
como se formaram os primeiros grupos de especuladores do município e a
sua ligação no âmbito político.

O processo de colonização em Marechal Cândido Rondon

O município de Marechal Cândido Rondon localiza-se no Oeste do


Paraná. A sua sede foi planejada pela Industrial Madeireira Colonizadora
Rio Paraná S.A (MARIPÁ), sendo considerado o centro do espaço urbano a
área formada por quadras com medidas regulares de 100 x 100 metros, as
ruas com 20 metros de largura e avenidas com 30 metros de largura5.
Os primeiros colonos que chegaram à área da sede da Vila General
Rondon na década de 1950 eram, na maioria, oriundos do Rio Grande do
Sul e Santa Catarina. Vinham em busca de novas terras nesta fronteira
agrícola, devido à escassez dessas em seus lugares e estados de origem.
Obviamente, este fenômeno migratório deve ser entendido em seu contexto
e nas condições das famílias dos colonos nos seus estados de origem, bem
como de acordo com a estrutura fundiária existente.
A emancipação do município ocorreu em 1960, com o Decreto do
governador Moysés Lupion, que no período ampliou o desmembramento
de novas unidades municipais em várias regiões do Paraná6.
O primeiro prefeito do município foi Ary Branco da Rosa, sendo este
nomeado pelo governador Moysés Lupion. Ary ficou no cargo no período
de 05 de agosto de 1960 a 25 de janeiro de 1961. Com as eleições de
1961, no ano seguinte houve a posse do novo governador do Paraná, Ney
Braga, que anulou os atos dos prefeitos nomeados pelo governo anterior e
foram realizadas, então, eleições para o executivo e o legislativo, tendo
sido eleito prefeito o candidato Arlindo Alberto Lamb (PTB), apoiado pela
Maripá.
A história da formação do município está ligada ao projeto da empresa
Maripá7. Assim, cabe analisarmos a atuação dela, como uma companhia
imobiliária 8, para entendermos o processo de especulação da terra no
período de (re)ocupação recente de Marechal Cândido Rondon.

5
SAATKAMP, Venilda. Desafios, lutas e conquistas: história de Marechal Cândido Rondon. Cascavel. ASSOESTE, 1984.
6
URNAU, Iraci Maria Wenzel. Autoritarismo, Rádio e a Idéia de Nação. Niterói: UFF, 2003. (Dissertação de Mestrado).
7
Maripá, empresa responsável pelas vendas de terras e pela organização do espaço da cidade.
8
O uso da palavra Companhia Imobiliária se refere às empresas colonizadoras e é orientado pelo estudo de João Bosco
Feres. Propriedade da Terra: opressão e miséria - o meio rural na história social do Brasil. Amsterdã/Países Baixos/Holanda:
CEDLA, 1990.

184
CRISTIANE BADE FAVRETO

Maripá e a comercialização de terras

No ano de 1946, a Industrial Madeireira Rio Paraná S. A. (MARIPÁ)


comprou a área denominada “Fazenda Britânia”, pagando na época “dezoito
milhões e quinhentos mil cruzeiros”9 pela área, iniciando, assim, o processo
de colonização na região, como tratou Marcos Nestor Stein:

Assim, a MARIPÁ, criada na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em


1946, tendo como maiores acionistas Alfredo Paschoal Ruaro, Curt Bercht,
Alberto Dalcanalle, Otto Reginaldo Renaux e Willy Barth, adquiriu a área
denominada de Fazenda Britânia, por compra da Compañia Maderas del
Alto Paraná, e iniciou o processo de colonização instalando um escritório
em Toledo, Paraná.10

Os principais acionistas da Maripá11 vislumbraram-se com a nova


possibilidade de investimento em negócios madeireiros e com a
comercialização dos lotes rurais e urbanos de terras, cujas vendas foram
intensificadas nos primeiros anos da década de 1950. Ao adquirir a
propriedade, a empresa colonizadora conseguiu algumas regalias, tais como
comprar a área por um custo baixo, pagamento com período de longo
prazo e, também, benefícios fiscais.12
Muitos colonos procuravam áreas na zona Oeste e Sul da propriedade
da Maripá, situadas em locais que hoje pertencem aos municípios de To-
ledo, Marechal Cândido Rondon, Novo Sarandi, Quatro Pontes, Vila Nova
e outros. Essa escolha levava em conta a propaganda difundida pela
colonizadora de que a área era adequada para o cultivo do café. Além do
cultivo dos produtos agrícolas com os quais estas pessoas já tinham
experiência no seu local de origem, os corretores de venda incentivavam a
comercialização das terras para o cultivo do café. Muitos migrantes foram
incentivados por esta possibilidade.13
No ano de 1953, ocorreu uma geada muito forte nessas localidades,
que acabou com os cafezais e com o projeto e propaganda da Maripá.
Mesmo com os estragos da geada, os preços das terras não baixaram e
novos colonos continuavam a comprar “colônias” da colonizadora.
Para a derrubada da mata, a empresa Maripá contratava trabalhadores
paraguaios e migrantes de origem nortista e de outros estados do Sudeste e
Nordeste do país. Boa parte dos chamados “paraguaios” permanecia na

9
GERKE, Arno Alexandre. Copagril: uma análise do cooperativismo no Extremo-Oeste do Paraná. Curitiba: UFPR,
1992. p.39.
10
STEIN, Marcos Nestor. A Construção do Discurso da Germanidade em Marechal Cândido Rondon – PR (1946-1996). Florianópolis:
UFSC, 2000. p. 16.
11
Cf. GREGORY, Valdir. Os Eurobrasileiros e o Espaço Colonial: migrações no Oeste do Paraná (1940-70). Cascavel:
Edunioeste, 2002.
12
PIAIA, Vander. A Ocupação do Oeste Paranaense e a formação de Cascavel: as singularidades de uma cidade comum. Rio de
Janeiro: UFF, 2004.
13
MACCARI, Neiva Salete Kern. Migração e Memórias: a colonização do Oeste do Paraná. Curitiba: UFPR, 1999.

185
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

região em decorrência das obrages14. Por um lado, não eram considerados


agricultores, colonos nem nacionais e, por outro, segundo suas tradições,
não tinham a mesma cultura do trabalho que os novos proprietários e
migrantes. Em relação aos assalariados “nacionais”, os trabalhadores
nortistas, predominantemente, não tinham condições para comprar terra,
eram assalariados e migrantes, e a colonizadora não orientava a vender
para aquele “elemento humano”. Estes referenciais são expressivos para
indicar a seletividade e o estigma social de quem “deveria” realizar o
trabalho braçal mais extenuante.
Antes da especulação e da venda das terras, a companhia imobiliária
Maripá explorou comercializando grande parte da madeira de lei, fosse no
mercado local, paranaense, brasileiro ou argentino. Ou seja, primeiro
aproveitava a área com a venda da madeira para posteriormente loteá-la e
vender em pequenas parcelas:

A Maripá teve que planejar seu desenvolvimento, de tal forma que as


despesas nunca poderiam ultrapassar a arrecadação proveniente da
exportação da madeira. Como a Maripá era inicialmente uma empresa
descapitalizada, neste equilíbrio é que residiu, em grande parte, a razão
do sucesso do empreendimento.15

Ao explorar a madeira da região, a Maripá uniu-se a grandes firmas,


como também observou Wachowicz: “interessante, é observar que a Maripá
não entrou sozinha no negócio de serrar a madeira do pinheiro. Ela aliou-
se a outras grandes firmas: a Industrial Madeireira do Prata, a Industrial
Colonizadora Britânia e a Industrial Colonizadora Boy-Cae”.16
Com esse tipo de exploração, a empresa ampliou significativamente
seus lucros. No início da colonização, a Maripá só vendia terras de mato
branco, isto é, aquelas que não possuíam pinhais nem madeiras de lei. As
terras que possuíam madeiras próprias para exportação não eram loteadas,
sendo deixadas para mais tarde.17
A estrutura fundiária planejada pela imobiliária Maripá foi baseada

14
O termo obrage, de origem espanhol-colonial, era utilizado como denominação de empresas estrangeiras que
exploravam a madeira e a erva mate, como apontou Ruy Christovam Wachowicz, em Obrageros, Mensus e Colonos: história
do Oeste do Paraná: “A chamada obrage foi uma propriedade e/ou exploração, típica das regiões cobertas de matas
subtropicais, em território argentino ou paraguaio. O interesse fundamental de obragero não era a colonização em
regime de pequena ou média propriedade, nem o povoamento de suas vastas terras. Seu objetivo precípuo era a
extração da erva mate, nativa da região, bem como da madeira em toros, abundante na mata nativa, subtropical. A
obrage, portanto, estava ligada ao binômio extrativista: mate-madeira. Essa exploração, típica desde o início do século
passado na Argentina e no Paraguai, penetrou de forma natural e espontânea, pelos vales navegáveis do Paraná e
Paraguai. Como o controle geográfico da navegação do sistema do Prata pertencia à Argentina, foram os obrageros
desta nação os principais responsáveis pela introdução desse sistema em território brasileiro, ou mais especificadamente:
paranaense e matogrossense”. WACHOWICZ, Ruy Christovam. Obrageros, Mensus e Colonos: história do Oeste do
Paraná. 2.ª edição. Curitiba: Ed. Vicentina, 1987, p. 44.
15
Idem, p. 171.
16
Idem, p. 172.
17
Idem, p. 177.

186
CRISTIANE BADE FAVRETO

na pequena propriedade, pois era uma forma de aumentar a lucratividade


nos negócios que fazia com a terra. Contudo, a empresa justificava, em
seus documentos, que a venda de propriedades menores era realizada
devido ao fato de as famílias não possuírem recursos financeiros suficientes
e, também, para atrair mais pessoas à região. Desse modo, muitos
pesquisadores não perceberam que esta maneira de venda era, na verdade,
uma forma para ampliar os lucros da especulação da terra, pois com a
venda de áreas menores lucrava-se mais.

Administração da Maripá

Na fase inicial da colonização, a Maripá teve como primeiro


administrador responsável da empresa Alfredo Paschoal Ruaro. Antes de
sua vinda à região, Ruaro era corretor de imóveis.
Em 1949, Alfredo Paschoal Ruaro deixa18 a administração da Maripá
e passa a gerenciar outra grande colonizadora, a Pinho e Terras.19 A Maripá,
por sua vez, passou a ter como principal dirigente o sócio e corretor Willy
Barth.

Em 1949, Ruaro foi substituído por Willy Barth no gerenciamento da


Maripá. A trajetória empreendedora anterior de Barth o credenciava a
assumir e desempenhar com competência as tarefas de administrador da
empresa. O caixeiro viajante e filho de industrial nascido em Santa Cruz
do Sul tornou-se amigo de comerciantes de Caxias do Sul, Bento
Gonçalves, Garibaldi, Nova Prata, São Marcos, Antônio Prado, Flores da
Cunha, Farroupilha, Bom Jesus e outras localidades do Rio Grande do
Sul. Abandonou as atividades de vendedor de tecidos para, em sociedade,
fundar a Barth &Annoni no Oeste de Santa Catarina, com a finalidade de
tratar de negócios de terras, madeiras e colonização.20

Tanto Ruaro quanto Willy Barth e os acionistas da colonizadora Maripá


trabalhavam com o setor do comércio em geral antes de virem morar na
região, fato registrado por Wachowicz. Desta forma, os principais
adquirentes da Fazenda Britânia, filhos ou netos de imigrantes residentes
no Rio Grande do Sul, já eram capitalistas, negociantes e velhos conhecidos,
inclusive no serviço de colonização.21
Ainda segundo Wachowicz, Barth marcou a ação da Maripá em outras
dimensões: “Assumiu a chefia da Maripá Willy Barth, experiente colonizador
gaúcho, de origem germânica. Com essa mudança de diretoria, iniciava a
Maripá a segunda fase de sua história. A Maripá madeireira, agora passaria

18
Mesmo gerenciando outra colonizadora, Ruaro mantém-se como sócio-proprietário da Maripá.
19
EMER, Ivo Oss. Desenvolvimento histórico do Oeste do Paraná e a construção da escola. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1991. p. 139.
20
GREGORY. Idem, op. cit, p. 134.
21
WACHOWICZ. Idem, op. cit, p. 167.

187
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

a ser predominantemente colonizadora”.22 Willy teve grande participação


na política da região e, ao contrário de Ruaro, foi e continua sendo muito
lembrado no processo de colonização empregado pela colonizadora Maripá,
como veremos mais adiante.

Companhia Imobiliária Maripá e o processo de especulação da


terra

A companhia imobiliária Maripá lucrou muito com a venda e


especulação das terras que adquiriu da ex-Fazenda Britânia. Este elemento
especulativo vem sendo ocultado ou secundarizado, em grande medida,
pela própria propaganda da colonizadora como também em algumas obras
da historiografia local, que tratam do processo de colonização administrada
pela Maripá, preferindo enfocar a filantropia da empresa e dos diretores
sócio-majoritários e o “pioneirismo dos desbravadores”. Contudo, Vander
Piaia chamou a atenção para os lucros que esta empresa obteve através da
valorização dos lotes:

Na medida em que incorporava trabalho e capital, o preço dos lotes


subia acima do seu custo unitário, resultando em excedentes e traduzindo-
se em frações maiores de lucro final para a colonizadora. Ademais, mesmo
que a colonizadora limitasse, em determinado ponto, seu investimento,
o fluxo crescente de interessados – baseado na experiência dos lotes já
ocupados – pressionaria os preços dos lotes ainda não ocupados. Esta
valorização atendia principalmente os anseios da colonizadora, já que
esta detinha grandes nacos de terra para venda futura.23

Sobre o valor de venda do alqueire pela Maripá, Piaia24 destacou que


a empresa inicialmente vendia os alqueires entre 800 e 1.000 cruzeiros. Já
por volta do ano de 1956, o preço do alqueire custava entre 7.000 e 9.000
cruzeiros. Segundo os dados, nota-se uma significativa elevação do preço
de mercado da terra. Vander Piaia também afirmou que esses índices
elevados da valorização não assustaram os colonos, ao contrário, os atraíram
pela possível continuidade de valorização dessas áreas. A propaganda da
colonizadora, e dos seus corretores, e o contato entre os colonos nos estados
do Rio Grande do Sul e Santa Catarina aumentaram o movimento migratório
para o Oeste paranaense.
Outra evidência desse aumento do preço das terras vendidas pela
Maripá, que indica os “bons negócios” da especulação, é o relato25 que
Mario Silva26 fez sobre o tema:
22
Idem, p. 173.
23
PIAIA. Idem, op. cit, p. 230.
24
Idem.
25
Os nomes dos entrevistados mencionados ao longo do texto foram alterados, para preservação das suas identidades.
26
Mario Silva nasceu no dia 21 de novembro de 1930, em São Luiz Gonzaga (RS). Mario Silva veio pela primeira vez
até a área da Maripá e o Oeste do Paraná em 1949, juntamente com outros colonos, para conhecer a região. Ele foi

188
CRISTIANE BADE FAVRETO

O preço da terra começou com 2 contos de réis uma colônia, depois foi
para 3, depois foi para 4, foi para 5 e assim foi aumentando, como eu fui
aumentando o frete das mudanças. A Maripá também aumentava o preço
da terra, quando vinha mais gente eles cada vez tinham um aumento.27

Os corretores eram as pessoas que vendiam terras da Maripá e


ganhavam muito dinheiro com as comissões que recebiam da empresa. A
maioria deles tratava-se de comerciantes vindos dos estados do Rio Grande
do Sul e Santa Catarina que tinham suas áreas de atuação em seus estados
de origem e na Maripá, conforme podemos ver na análise feita por Arno
Gerke: “estes corretores tinham a sua região de recrutamento, bem como a
sua área de venda. Recebiam uma comissão de treze por cento em cada
negócio realizado”.28
A colonização também atraiu muitos comerciantes à região, mas para
eles era mais interessante serem vendedores dos lotes rurais, pois recebiam
comissões. Participar da colonização abria possibilidades futuras de
desenvolvimento de atividades comerciais nas novas colônias.29
Na venda das terras, a Maripá (seus administradores e corretores)
também enganou alguns compradores. Muitos corretores, na ocasião da
venda dos terrenos, mostravam aos colonos-compradores áreas em lugares
bonitos e plainos, mas quando estes se mudavam para as áreas adquiridas,
os locais eram outros, como comentou Silva:

O Bruno Wenzel comprou cinco colônias, o Ronaldo Stogun e o velho


TenCathen também. Quando eu trouxe a mudança do Canísio Beca, que
era genro do Bruno Wensel aí o que aconteceu? Chegamos lá aí nos
falaram que não era essa a colônia dele, mas sim lá em baixo! Mas no
mapa que o Canísio tinha era aqui em cima a terra comprada, onde hoje
está localizada a Igreja e o salão da sociedade de Flor da Serra, atual
distrito de Quatro Pontes.30

A respeito da situação citada acima, um dos primeiros moradores do


município de Marechal Cândido Rondon mencionou esta prática realizada
com alguns colonos que compravam terras na região. Segundo ele:

Não, não deu problema nenhum naquele tempo. O único problema que
deu foi como a firma tinha, não sei quantos homens, que mostravam as

convidado para participar de uma viagem ao Oeste paranaense “patrocinada” pela própria Maripá que vi sava
propagandear sua colonização. Posteriormente, atuou como transportador de mudanças dos primeiros colonos da
região missioneira gaúcha até a área da Maripá, tendo realizado 300 mudanças e, concomitantemente, fazia outros
comércios (banha, farinha, madeira, etc.) entre as regiões. Mario passou a residir na região, mais especificadamente em
Novo Sarandi, em 1961, e em 1972 mudou-se para Marechal Cândido Rondon. SILVA, Mario. Entrevista realizada
por Paulo José Koling, Luciana Grespan Zago, Cristiano Glowatzky e Cristiane Bade, no dia 06 de março de 2010,
em sua residência.
27
SILVA. Idem, op. cit.
28
GERKE. Idem, op. cit, p. 43.
29
GREGORY. Idem, op. cit., p. 166-167.
30
SILVA. Idem, op. cit.

189
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

terras para nós que viemos ver as terras. Então eles mostravam as terras
que já estavam vendidas e depois a gente não tinha aquela terra que nós
estamos vendo.31

Observamos, desse modo, que a Maripá enganou vários colonos com


a venda de áreas plainas e mais centrais ao projeto urbano inicial da empresa.
Em alguns casos, as áreas adquiridas pelos colonos, no final das contas,
foram registradas em locais distantes e até mesmo em morros, não
escolhidos por eles. Assim, os corretores vendiam terras que dificilmente
seriam comercializadas naquele período (devido à localização das áreas),
aumentando consequentemente a sua lucratividade e da colonizadora.
A empresa tinha um Plano de Colonização, contendo o planejamento
e a cartografia da área. Como não tivemos acesso ao documento original,
utilizamos o relatório que Ondy Hélio Niederauer elaborou para participar
de um concurso realizado em Londrina-PR, que escolhia os municípios
que mais progrediram no ano de 1955.32 Segundo o documento, a empresa,
na venda das terras, elegeu pessoas que mais se adaptassem à região para
atender seus interesses comerciais.
A partir da leitura do Plano de Colonização, notamos que havia a
preocupação em fazer da ex-Fazenda Britânia uma área bem organizada,
com as cidades planejadas, pensando na valorização da terra e na
contribuição para o “progresso” do país.
No planejamento do parcelamento da Fazenda Britânia estavam
previstas as sedes urbanas das vilas, sendo indicativo de futuros municípios.
Pelo padrão adotado, havia a área quadrangular central da vila (lotes
urbanos, áreas públicas, áreas comunitárias e arruamento), um círculo de
chácaras de 2,5 hectares ao redor do núcleo central e as colônias rurais
(10 alqueires ou 24 hectares). Esta cartografia fundiária orientava a própria
comercialização das respectivas parcelas.33
Em relação às medidas físicas para o parcelamento dos lotes que
eram vendidos pela empresa, Marcos Stein relaciona-as e destaca que a
colônia era a unidade de venda: “ainda com relação aos procedimentos na
divisão dos lotes, denominados de colônias, cada um media
aproximadamente 10 alqueires, ou 242.000 m²”.34
No período dessa colonização, alguns colonos também se
endividavam, pois, em alguns casos, adquiriam as terras da Maripá pelo
pagamento parcelado das áreas. Já em outra situação, as dívidas eram

31
SOUZA, João. Entrevista Concedida a Maide Keefel, em 12 de junho de 1982. Disponível no acervo do Núcleo de
Pesquisa e Documentação sobre o Oeste do Paraná (Cepedal).
32
Alguns estudos realizados sobre a Maripá consideram este documento como sendo o Plano de Colonização original
da empresa, porém Marcos Nestor Stein (2000), em sua dissertação fez os devidos esclarecimentos sobre o contexto
da produção desta fonte: “Segundo ficha catalográfica do museu histórico ‘Willy Barth’ de Toledo, o Plano de Colonização foi elaborado em
1955 pelo contador da MARIPÁ Ondy Hélio Niederauer, em função de um concurso realizado em Londrina - PR para escolher os municípios que
mais ‘progrediram’ naquele ano”. STEIN. Idem, op. cit, p. 20.
33
Cf. NIEDERAUER, Ondy Hélio. Relatório de Atividades da Maripá. Toledo: 1955, (mimeo).
34
STEIN. Idem, op. cit, p. 22.

190
CRISTIANE BADE FAVRETO

oriundas dos produtos adquiridos para o sustento da família nos armazéns


da Maripá, fazendo-os se fixar no local. Dessa forma, essas situações,
segundo Maccari35, contribuíram para o “sucesso” do projeto de colonização
da companhia.
Assim, a companhia imobiliária Maripá explorou e especulou o espaço
territorial de Marechal Cândido Rondon, com a venda de parcela de terras
da antiga Fazenda Britânia, tendo um projeto seletivo para a formação so-
cial dessa região.

Willy Barth e os “pioneiros”: a construção de um mito

Não só alguns autores da historiografia que trata da região como


também grande parte da população, ao falar da colonização da Maripá,
mais especificadamente das cidades de Toledo e Marechal Cândido Rondon,
enaltecem a figura de Willy Barth, retratando principalmente as doações de
madeiras e lotes que ele e a colonizadora fizeram para a construção de
empreendimentos nessas cidades, tais como escolas, praças, casas e
comércio em geral, igrejas, sedes comunitárias ou a particulares. Em
momento algum apontam que essa madeira e os lotes doados eram
insignificantes em termos de valores para uma empresa tão rica como a
Maripá, até mesmo porque a madeira era extraída da região sem custos
adicionais para a colonizadora, que beneficiava as toras em suas serrarias.
Esta filantropia, porém, consolida uma visão benéfica da Maripá e,
principalmente, do carisma de Willy Barth.
Muitos atribuem o desenvolvimento da região à figura de Willy Barth.
Claro que ele praticou um assistencialismo/clientelismo 36, não com a
intenção de fazer a sua “boa ação samaritana”, mas agindo como um
representante da colonizadora e pela influência política que teria. Através
de suas ações, fez com que as terras dessa região, que antes não eram
valorizadas financeiramente, posteriormente fossem.37
Essa ênfase dada tanto a Willy Barth como aos “pioneiros” tende a
ocultar outros aspectos do processo de colonização, tais como o da
especulação da terra e os conflitos agrários existentes na região.
Definimos Willy Barth enquanto um “intelectual orgânico”, no sentido
Gramsciano, tendo em vista que ele teve destaque na organização dos
negócios imobiliários da Maripá na região, em especial nos municípios de
Marechal Cândido Rondon e Toledo, forjando condições a favor da expansão
da classe burguesa38.
35
MACCARI. Idem, op. cit.
36
No caso do clientelismo indicado, remete às intenções políticas de Willy Barth, uma vez que este sempre atuava no
meio político da região.
37
Antes da colonização da Maripá o espaço era muito explorado pelas Obrages, mas essa valorização era voltada à madeira
e aos ervais, e não à comercialização das terras.
38
Para aprofundarmos a conceituação do “intelectual orgânico”, analisado por Gramsci, citamos uma passagem do
texto “Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais”, de autoria de Antonio Gramsci, que

191
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Um dos estudos que abordou a questão da colonização local é o de


Udilma Weirich39. Em alguns momentos, a autora exaltou a colonizadora,
em especial a figura de Willy Barth, relacionado com a preocupação que
ele tinha com a formação da estrutura da cidade (escola, igreja, comércio,
segurança, saúde, etc.).
Dessa forma, o “mito” construído a respeito de Willy Barth,
considerado um “grande homem” precursor do progresso na região, tem
fundamentação ideológica e inclui diversos sujeitos e/ou formadores de
opinião, que engloba desde a Maripá, os governos locais, os meios de
comunicação e mesmo a historiografia, seja a produzida na academia
(independentemente da área de conhecimento) ou a de autodidatas.
Um dos aspectos relacionados à “figura” de Barth diz respeito a sua
postura em relação à receptividade dos novos migrantes. Para a permanência
de muitos colonos que se sentiam desmotivados pela falta de diversos
recursos na região, Willy Barth, através de suas estratégias discursivas,
assistencialistas e clientelistas, teve que convencer as pessoas a não voltarem
para suas cidades de origem.
Como Willy já havia participado da colonização de outras localidades,
soube convencer as pessoas a permanecerem na região para, assim,
prosseguir com o projeto de colonização planejado/executado pela Maripá,
como destacou Schmidt:

Assim, os momentos dramáticos vivenciados pelas pessoas desse meio


estavam intimamente ligados a fatores econômicos e políticos regionais.
Neste cenário, o líder deveria empreender medidas que garantissem o
equilíbrio do grupo diante das dificuldades a se enfrentar. Portanto Barth,
nos momentos de tensão, adquire expressão coletiva através de ações
que atingiam o seu grupo e motivavam as pessoas através de exemplos
de persistência, como forma de garantir os investimentos feitos no projeto
de colonização.40

define bem esta categoria: “Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo
da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe
dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e
político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador
de uma nova cultura, de um novo direito, etc. Deve-se observar o fato de que o empresário representa uma
elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente e técnica (isto é, intelectual): ele deve
possuir uma certa capacidade técnica, não somente na esfera restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas também
em outras esferas, pelo menos nas mais próximas da produção econômica (deve ser um organizador de massa de
homens, deve ser um organizador da ‘confiança’ dos que investem em sua empresa, dos compradores de sua
mercadoria, etc.). Se não todos os empresários, pelo menos uma elite deles deve possuir a capacidade de organizar
a sociedade em geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, até o organismo estatal, tendo em vista a
necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão da própria classe; ou, pelo menos, deve possuir a
capacidade de escolher os ‘prepostos’ (empregados especializados) a quem confiar esta atividade organizativa das
relações gerais exteriores à empresa”. GRAMSCI, Antonio. Caderno 12 (1932). Apontamentos e notas dispersas para um
grupo de ensaios sobre a história dos intelectuais. In: Cadernos do Cárcere. Volume 2. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 15-16.
39
WEIRICH, Udilma Lins. História e atualidades: perfil de Marechal Cândido Rondon. Marechal Cândido Rondon:
Germânica, 2004.
40
SCHMIDT, Róbi Jair. Cenas da Constituição de um Mito Político. Cascavel: Edunioeste, 2001. p. 58.

192
CRISTIANE BADE FAVRETO

Willy Barth era visto pelos colonos como uma pessoa carismática.
Ele procurava visitar os colonos, ouvir suas reclamações e confortá-los
com suas palavras. Desse modo, através das abordagens realizadas no
estudo de Maccari, sobre as memórias de colonos, compreendemos por
que Willy era tão bem quisto por estes:

Este conhecimento do processo de colonização vem colaborar na escolha


das estratégias adotadas para incentivar as pessoas a permanecer e superar
as adversidades, pois Willy Barth, além de possuir uma grande capacidade
de liderança, já tinha conhecimento prévio das reclamações que poderiam
vir a ser formuladas, o que trouxe certa facilidade quando da necessidade
de persuasão das pessoas.41

Uma forma que contribuiu e ainda colabora para o consenso


construído em torno do “mito” Willy Barth são os meios de comunicação,
nos quais a figura de Barth é mostrada como sendo a pessoa que colaborou
espontaneamente para o desenvolvimento da região, bem como dos vínculos
pessoais que tinha com outras pessoas/famílias consideradas “pioneiras”,
algumas ainda vivas e com grande influência local.
Para trabalharmos melhor essa ideia, optamos por analisar algumas
fontes de imprensa42. No caso, as reportagens de um dos jornais impressos
do município de Marechal Cândido Rondon, O Presente43, que nos permitiu,
brevemente, refletir sobre a construção ideológica da figura do(s)
“pioneiro(s)” e, principalmente, da pessoa Willy Barth. A pesquisa desta
fonte envolveu as edições dos jornais publicados durante o período de
1991 a 2008.
A Rádio Difusora do Paraná é um meio de comunicação que
constantemente produz matérias que criam um consenso legitimando a
figura daqueles que considera “pioneiros” do município. Por isso, suas
reportagens merecem uma análise mais atenta. Nesse local, pesquisamos a
programação do noticiário Frente Ampla de Notícias (FAN)44, material este

41
MACCARI. Idem, op. cit, p. 68.
42
Uma das fontes analisadas nessa pesquisa são os meios de comunicação, os meios de comunicação também são
formadores de opinião. Nesse sentido, elas merecem considerações. O exercício do poder pode ser visto nos meios
de comunicação de massa, mais especificadamente em dois aspectos, no campo econômico e ideológico, como
alertou Marilena Chauí em seu livro Simulacro e Poder: “Do ponto de vista econômico, os meios de comunicação são
empresas privadas, mesmo quando, como é o caso do Brasil, rádio e televisão são concessões estatais, pois estas são
feitas a empresas privadas; ou seja, os meios de comunicação são uma indústria (a indústria cultural) regida pelos
imperativos do capital” CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu
Abramo, 2006. p. 73. Ou seja, a partir do poder econômico os agentes atuam conforme seus interesses, em muitos
casos manipulando informações para fins particulares.
43
O Presente iniciou sua circulação em 4 de outubro de 1991, enquanto semanário. A partir de 06 de março de 2001,
passou a ser editado diariamente, incluindo os feriados e finais de semana. Após alguns anos o jornal não pôde manter
esta forma de edição e retirou as edições dos finais de semana e feriados. Atualmente, nos feriados, na segunda-feira
e no domingo não há circulação do referido jornal.
44
Nos arquivos do Frente Ampla de Notícias foram encontrados registros de notícias com texto escrito que eram lidos
durante a programação do jornalismo da Emissora AM da Rádio Difusora do Paraná. Os anos analisados neste
acervo foram de 1980 a 2007.

193
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

que estava transcrito e organizado por volumes conforme os anos. Nesta


fonte, localizamos várias reportagens que apresentaram fatos relacionados
à doação de áreas ao município, à ênfase dada a figura de Willy Barth e aos
“pioneiros oficiais”.
A primeira reportagem destacada mostra claramente a ênfase dada
pela imprensa aos sujeitos considerados “pioneiros”. Nesse caso, a matéria
refere-se ao falecimento de Max Lindenau:

Depois de período de enfermidade faleceu ontem o Sr. Max Lindenau,


aos 73 anos de idade. – Nascido no Oeste da Prussia, Max Lindenau,
chegou ao Brasil em 1937 em companhia de Olga, sua primeira mulher,
onde casou-se. Em março de 1951, Max Lindenau chegava à Marechal
Cândido Rondon, estabelecendo-se com aquela que foi a primeira
marcenaria e que dava assistência aos que necessitavam desde móveis,
portas ou janelas. – Foi ele inclusive que fabricou e doou todas as janelas
da antiga igreja evangélica cuja construção era ainda em madeira. – Como
um dos fundadores do clube aliança, Max Lindenau formou o primeiro
côro [sic.] misto da sociedade e mais tarde incentivou sendo portanto
um dos fundadores do côro [sic.] da comunidade evangélica junto com
outras pessoas. – Para a primeira escola que existiu em Marechal Cândido
Rondon ele fabricou e doou os primeiros bancos para a acomodação dos
alunos da época – Hoje, aos 73 anos Max falece, deixando por de traz
[sic.] disso toda uma gama incomensurável de velhos e benquistos amigos
que lamentam o seu desaparecimento.45

Pelo exposto, nota-se como a imprensa, no caso a Rádio Difusora do


Paraná, deu ênfase aos considerados “pioneiros” da cidade e suas práticas
assistencialistas em favor do município.
Já a matéria a seguir faz parte de uma série de reportagens
apresentadas pelo jornal “O Presente” no mês de julho de 1995, época de
aniversário do município. Em diversas edições, o jornal apontou fatos sobre
o que considera ser a história de Marechal Cândido Rondon, em especial
sobre os primeiros anos de existência da cidade. Neste sentido, a matéria a
seguir demonstra a construção desse tipo de reportagens:

Em 1954, a Colonizadora Maripá destinava quatro quadras do perímetro


urbano da vila General Rondon para ser construída uma praça.
Logo que os moradores souberam da doação, fizeram um grande mutirão
para derrubar as robustas árvores do local.
Em homenagem ao colonizador e pioneiro Willy Barth, a praça recebeu
seu nome e um busto em bronze, que está colocado em local estratégico.
Nestes sábado e domingo, a Praça Willy Barth será reinaugurada,
tornando-se o palco de grandes concentrações populares.46

45
FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS. Faleceu Pioneiro Rondonense. 09/05/1980.
46
O PRESENTE. Fatos da História de Marechal Cândido Rondon. In: O Presente, Marechal Cândido Rondon, ano III, no 187
07/07/1995. p. 24.

194
CRISTIANE BADE FAVRETO

Num dos momentos de marcação de calendário – muito usados para


a “invenção de tradições” e para a reelaboração da memória social –, na
passagem do aniversário do município em 1995, a reportagem destacou a
primeira praça construída na cidade, localizada junto a Prefeitura, numa
área central doada pela Maripá, que já estava prevista na planta urbana da
Vila General Rondon. A homenagem ao “grande homem” foi reafirmada
com a nominação da própria Praça e a edificação de um monumento
histórico, o Busto de Willy Barth, colocado no local. A matéria foi patrocinada
por uma autarquia da Municipalidade, a empresa de Serviço de
Abastecimento de Água e Esgoto (SAAE), sendo um dos boxes da matéria
“Resgatando a história de Marechal Rondon”. Governo, jornal, praça e busto
reafirmaram, em 1995, como Willy teria sido uma pessoa generosa ao doar
a área e ter predileção pela Vila General Rondon. Como já mencionamos
anteriormente, a doação de áreas para a construção de espaços públicos,
por parte da empresa Maripá, representada por Willy Barth, era vista como
uma das boas ações aos moradores.
A homenagem a Willy Barth, através de um busto, também fortaleceu
o “mito” em torno desse homem. Assim, esse símbolo foi incorporado aos
espaços oficiais de memória do município, como destacou Schmidt:

Portanto, o mito expressa-se através de símbolos, o que faz com que seja
bastante sutil e indireto, moldando valores que são assumidos por um
determinado grupo, valores estes que formam um conjunto de imagens e
crenças, podendo ser incorporadas pelas pessoas sem necessitar de
comprovações. 47

Os monumentos em homenagem a Willy Barth podem ser vistos não


só em Marechal Cândido Rondon como também em outros municípios
que integravam a área que a empresa Maripá colonizou. Os “lugares de
memória” representam diferentes simbologias. Nesse sentido, Schmidt
analisou o que esses monumentos podem representar na memória local:

Sendo assim, configurado o olhar que irá analisar as narrativas que se


referem aos monumentos que conservam imagens de Willy Barth, observa-
se que os significados que possuem estas praças, bustos, ruas etc. na
constituição desse mito político possuem uma linguagem que não é
inocente, pois revelam sentidos que vão ao encontro de valores cultivados
pelo grupo e por isso buscam garantir um espaço para essa memória.48

Já na reportagem a seguir o destaque foi dado à doação de madeiras


pela empresa Maripá para a construção das casas. O autor, nessa
reportagem, identificava e afirmava os gestos “solidários” que a empresa
mantinha com os colonos que vinham morar na região.

47
SCHMIDT. Idem, op. cit, p. 42.
48
Idem, p. 143.

195
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

As atividades agropecuárias no início da colonização para a subsistência.


A Colonizadora Maripá, administrada por Willy Barth, comercializava as
colônias de terra e os terrenos urbanos. A empresa também fornecia
madeira para a construção das casas, que, segundo Alice Weirich, eram
edificadas pelas próprias famílias colonizadoras.49

Assim como Willy, a empresa Maripá foi/é muito elogiada pela


imprensa local e demais instituições da sociedade política e civil pelo fato
de ter realizado a colonização em Marechal Cândido Rondon. A seguir,
apresentamos um trecho que destaca claramente aspectos desses elogios
publicados na imprensa:

A criação, o desenvolvimento e a vida histórica da comunidade rondonense


estão ligadas à dinâmica atuação da Industrial Madeireira Colonizadora
Rio Paraná S/A (Maripá), prestigiosa empresa comercial constituída por
comerciantes gaúchos, em 1946, e que iniciou o projeto de colonização
desta microrregião.50

A exaltação aos “pioneiros” também é voz constante no jornal. A


participação desses na história do município é frequentemente reafirmada
como ato de grandeza pelas reportagens produzidas pelo próprio jornal.

O pioneiro rondonense Guido Alfredo Rockenbach chegou a Marechal


Cândido Rondon em 1954, com o sonho de construir seu futuro naquele
“eldorado” chamado General Rondon. Ele mesmo, a exemplo de outros
colonizadores, derrubou as árvores que renderam a madeira para construir
a sua própria casa, que existe até hoje nas proximidades do salão
Borgaman [sic.]. Em 1956, Guido buscou a esposa Irmy, que foi a primeira
mulher com formação em técnico em Contabilidade a morar na
comunidade. Seu Guido, aos 80 anos, tem bastante claro na memória
fatos que o colocaram na história rondoniense.51

Nos últimos parágrafos dessa reportagem, percebemos o modo


equivocado como a história do município é compreendida por este meio
de comunicação local. Para este, as pessoas precisam participar de
determinados “fatos” para fazerem parte da história. Assim, nota-se como
os consensos vão sendo criados por estes difusores de informação.
Como já apontamos, para a Maripá essas doações eram insignificantes
em termos financeiros. Acreditamos que estas doações, para o município,
foram uma forma que a empresa visou para o crescimento da localidade,
pois, assim, consequentemente a venda de suas terras aumentariam.

49
O PRESENTE. Cinco Décadas de Progresso. In: O Presente, Marechal Cândido Rondon, ano VIII, no 398, 23/07/1999.
p. 44.
50
Idem. Marechal Rondon: uma história de sucesso. In: O Presente, Marechal Cândido Rondon, ano XI, no 1063, 25/07/
2003. p. 6.
51
O PRESENTE. Pioneiros Construíram Casas e História ao Mesmo Tempo. In: O Presente, Marechal Cândido Rondon, ano
XVI, no 2386, 15/07/2008. p. 24.

196
CRISTIANE BADE FAVRETO

Outros meios de comunicação também constantemente relembram


o dia do falecimento de Willy, associando a perda trágica que o município
teve com a sua morte, como reporta a matéria a seguir:

Falar ou escrever sobre Willy Barth é relembrar o passado triste, é relembrar


o trágico 1º de abril de 1962, é sentir saudades do “velho guerreiro” (...).
Willy Barth gostava de serviço bem feito, inspecionava tudo, cansou de
arregaçar as mangas em prol do desenvolvimento da região.52

Na história do município de Marechal Cândido Rondon Willy Barth,


a empresa Maripá e alguns considerados “pioneiros” foram apresentados,
hegemonicamente, como os principais personagens da história, outros
sujeitos e questões são deixados em segundo plano ou fora da história.

“Pioneiros” ou especuladores?

Alguns dos corretores da Maripá se estabeleceram na região nos anos


iniciais da colonização e, por meio da venda de terra, ampliaram seu capi-
tal. Estas famílias são apontadas pela imprensa local, por grande parte da
historiografia e reconhecidas pelo senso comum como os “pioneiros” da
cidade. Pretendemos, aqui, demonstrar que grande parte destes
considerados como “pioneiros” adquiriram muitas propriedades com a
especulação da terra.
Há ainda outra questão inquietante nos estudos que analisam a
história da cidade de Marechal Cândido Rondon. Estes buscam legitimar
que os primeiros colonos de descendência alemã e italiana são os
“pioneiros”53, deixando de lado outros sujeitos que fizeram parte da história
dessa localidade. Esse estigma nos inquieta, pois antes da vinda desses
colonos à região, quem ocupava essas áreas eram indígenas, mensus e
obrageros, então, por que esses recebem o nome de “pioneiros”?
Primeiramente, o processo sobre a origem do discurso que envolve
o pioneirismo surgiu a partir das representações enfatizadas em algumas
obras da historiografia, propagandas do poder público e os meios de
comunicação locais, ou seja, aqui também foi criada a representação sobre
o que foi o pioneirismo, assim como quem foram os pioneiros neste contexto
da (re)ocupação.

52
FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS. Hoje – 20 Anos de Morte do Velho Guerreiro Willy Barth. 01/04/1982.
53
Ao tratar do pioneirismo dos primeiros colonos descentes de italianos e alemães que vieram para a região, a
participação de afrodescendentes raramente é lembrada nas historiografias que tratam do período da colonização.
Uma das poucas pessoas que comentou sobre a presença dos afrodescendentes na época da colonização foi Udilma
Lins Weirich, em entrevista produzida e publicada pelo O Jornal, que comentou: “Assim quando se fala de minorias que
participaram da colonização de Rondon, temos os afrodescendentes, como principais representantes. Destes alguns poucos adquiriram terras, mas
a maioria se instalou como trabalhador”. BOOTZ, Stanley. Participação Afrodescendente é Pouco Lembrada na construção do Município. In:
O Jornal, Marechal Cândido Rondon, ano XIV, nº 649, 08/07/2010, p. 18.

197
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

Uma das figuras mais citadas e “idealizada” como pioneiro, líder e


grande homem local, foi Arlindo Alberto Lamb,54 um dos corretores da Maripá
no município de Marechal Cândido Rondon e em localidades próximas.
Em 26 de maio de 1955, Arlindo se estabeleceu no município. Na ocasião,
ele havia adquirido 20 colônias de terra pelo valor de 8 contos de réis a
colônia,55 portanto, o “ícone” das parcelas de 1 colônia (10 alqueires ou
24 hectares) não era regra geral!
Desde muito jovem, aos 15 anos, Arlindo trabalhou como
administrador da fábrica de cervejas e refrigerantes da família, no Rio Grande
do Sul, adquirindo experiência em atividades comerciais. Em entrevistas a
Jadir Zimmermann, Arlindo Lamb relatou parte desta vivência:

Quando houve a mudança para Três Passos, o pai comprou uma pequena
fábrica de cervejas e refrigerantes. A administração desta fábrica passou a
ser uma responsabilidade do filho Arlindo, na época com apenas 15 anos
de idade, pois o pai preferia trabalhar na lavoura.56

Anos depois, o pai de Arlindo comprou outro empreendimento


comercial. Nessa época, a fábrica de cerveja já havia sido vendida. Na
nova empresa, Arlindo também cuidava da parte administrativa, como
destacou Zimmermann: “O pai de Arlindo, Pedro Alberto, decidiu comprar
um estabelecimento comercial, depois que o filho voltou do exército. Havia
em Três Passos uma casa de secos e molhados, que estava com dificuldades
financeiras e desacreditada. O estabelecimento foi adquirido”.57
Ao se estabelecer na região em 1955, Arlindo continuou ampliando
seu capital, adquirindo uma empresa de transporte coletivo de Waldi Win-
ter, outro corretor da Maripá na região:

Arlindo Lamb que o pioneiro Waldi Winter tinha uma pequena empresa
de ônibus que fazia a linha de General Rondon a Cascavel. Logo, Arlindo
comprou esta linha de ônibus. Depois que equipou três caminhões com
carroceria de ônibus, numa fábrica do Rio Grande do Sul, Arlindo Lamb
estreou no transporte coletivo. Nascia, assim, a Empresa Rio Paraná Ltda.58

A respeito disso, nota-se que Arlindo rapidamente ampliou seus


negócios no município, que não se limitavam às áreas rurais e a uma vida

54
Nasceu em 16 de julho de 1921 no município de Lajeado (RS), era filho de Pedro Alberto Lamb e Amália Luiza Lamb,
uma família bem estabelecida no Rio Grande do Sul e que resolveu ampliar seus negócios no Paraná. Cf.
ZIMMERMANN. Jadir. Arlindo Alberto Lamb: uma história que merece ser contada. Marechal Cândido Rondon:
Editora Germânica, 2006.
55
MARTINS, Adriano. Entrevista Realizada nos meses de agosto e setembro de 2002, como parte do Programa de
História Oral do Projeto Centro de Memória da Câmara Municipal de Vereadores de Marechal Cândido Rondon,
desenvolvido através do convênio entre o Colegiado de História da UNIOESTE/Campus de Marechal Cândido
Rondon, durante o período de 2001-2002.
56
Cf. URNAU. Idem, op. cit, p. 26.
57
Idem, p. 32.
58
Idem, p. 38.

198
CRISTIANE BADE FAVRETO

de colono, adquirindo, por volta de 1961, a empresa de transportes


“Empresa Oeste Paraná Ltda”.59
Antes mesmo da empresa de transporte, em 1956, Arlindo Lamb
também tinha adquirido uma fábrica de tijolos no município de Pato
Bragado, de propriedade da empresa Maripá, que foi vendida por Willy
Barth, como destacou Jadir Zimmermann, o que evidencia sua proximidade
com a colonizadora e Willy Barth.60
Nota-se, pelas informações citadas anteriormente, que a família Lamb,
antes de vir para o Oeste e posteriormente a essa migração, possuía um
considerável capital financeiro e patrimonial, que se ampliou ainda mais
com a sua vinda para o município.
Não só Arlindo adquiriu diversos empreendimentos na cidade e
localidades próximas como também sua esposa gerenciava outros negócios
da família. E, assim, a família Lamb se firmava como uma das famílias mais
ricas de Marechal Cândido Rondon.
Pedro Lamb, o pai, também investiu na Vila General Rondon,
construindo a primeira rodoviária entre os anos de 1958 e 1960. O prédio
foi dado de presente aos seus filhos e recebeu o nome de Edifício Irmãos
Lamb.61
A Rádio Difusora Rondon 62 também foi um empreendimento
comercial de Arlindo Lamb, sendo ele o principal sócio-proprietário da
emissora e gestionou a concessão junto ao Ministério das Comunicações,
no Rio de Janeiro/RJ, durante o período de 1966 a 1998.63
No ano de 1981, Lamb doou a emissora para seus filhos que, por
meio de um acordo, transferiram a administração da Rádio a Elio Winter,
casado com uma das filhas de Arlindo Lamb.64
Arlindo também possuía diversas áreas rurais na região. Possuía 315
alqueires de terra em Pato Bragado, 374 alqueires em Entre Rios do Oeste
e mais 83 alqueires na localidade de Bela Vista.65 Suas colônias somavam
772 alqueires ou 1.852,8 hectares, bem mais do que uma simples “colônia”.
As áreas que Arlindo Lamb tinha em Pato Bragado e Entre Rios do
Oeste foram atingidas com a construção da usina e a formação do lago da
Itaipu Binacional. Na ocasião, Arlindo Lamb contratou um dos melhores
Escritórios de Advocacia do país para tratar do litígio que tinha com a Itaipu
acerca dos valores da indenização, como apontou Juvêncio Mazzarollo:

Um ex-prefeito de Marechal Cândido Rondon, Arlindo Lamb, não estava


aceitando os termos do acordo proposto pela Itaipu para indenizar uma

59
Idem, ibidem.
60
Idem, ibidem.
61
Idem, p. 46.
62
Desde 1981 o meio de comunicação passou a ser denominado Rádio Difusora do Paraná Ltda.
63
URNAU. Idem, op. cit.
64
ZIMMERMANN. Idem, op. cit.
65
Idem, p. 105.

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TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

vasta área de terra em seu poder e havia contratado advogado dos mais
renomados do país para defender seus interesses.66

Arlindo obteve ganho de causa no processo contra a Itaipu. Com o


dinheiro dessa indenização, adquiriu uma fazenda perto de Campo Grande/
Mato Grosso com 2.500 hectares.67
Além de possuir diversos empreendimentos no município, também
teve participação política. Em 1956, foi eleito vereador de Toledo, pelo
Distrito de General Rondon, com apoio de Willy Barth/Maripá. Foi o segundo
prefeito (o primeiro eleito) de Marechal Cândido Rondon, no período de
1961 a 1965.68
Mesmo aposentado, Arlindo não deixou dos seus negócios e do
patrimônio, ampliando ainda mais seu capital. Nota-se que ele, além de
possuir diversos empreendimentos comerciais, é dono de lotes urbanos.

Quando atingiu os 80 anos, entendeu que seria hora de parar. Foi então
que decidiu definitivamente se aposentar. Mesmo assim, continuou
mantendo pequenas atividades, especialmente voltadas à lida com a
terra. Prosseguiu cultivando alguns lotes urbanos que possuiu, até mesmo
para manter alguma ocupação. Assim prossegue a vida.69

Como vimos, Arlindo Lamb e sua família conseguiram muitos


estabelecimentos na região. Ele também foi corretor de terras da Maripá no
período da colonização, faturando muitas áreas na região. Portanto, esta é
a base social e econômica para ser “pioneiro”!
Outra personalidade influente no município que lucrou muito na
região com a comercialização da terra foi Waldi Winter. Ele foi o primeiro
representante da localidade da Vila General Rondon na municipalidade de
Toledo, como destacou Iraci Urnau:

[...] a localidade de General Rondon passou à categoria de distrito


administrativo de Toledo, pela lei municipal nº. 17, de julho de 1953. A
população da localidade elegeu Waldi Winter que integrava o Partido
Libertador (PL), como seu primeiro representante junto ao legislativo
municipal. Ele, como quase todos os moradores, era natural do Rio Grande
do Sul, veio para a região na qualidade de corretor de imóveis, fazendo a
intermediação entre a MARIPÁ, representando a pessoa de Willy Barth, e
os colonos.70

Como apontou Urnau, Waldi Winter veio para o Oeste paranaense


como corretor de imóveis. Com a venda de terras para a Maripá, ele próprio
adquiriu muitos lotes rurais no município, como os demais corretores que

66
MAZZAROLLO, Juvêncio. A Taipa da Injustiça. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2003. p. 66.
67
MARTINS. Idem, op. cit.
68
ZIMMERMANN. Idem, op. cit.
69
Idem, p. 127.
70
URNAU. Idem, op.cit, p. 53.

200
CRISTIANE BADE FAVRETO

vinham para a localidade. A comercialização de terra era um bom negócio


aos novos corretores.
Waldi, enquanto corretor da Maripá procurava ganhar muito nas suas
vendas, também trabalhava como motorista, trazendo mudanças dos
primeiros colonos. Desse modo, Mario Silva, quando questionado sobre
quem era Waldi Winter, comentou:

O Waldi Winter era o primeiro vereador aqui, ele era vereador em Toledo
e era corretor da Maripá, era lá de Santa Rosa (RS). Agora o bicho era mais
liso, como aquele muçum do banhado que você pega e ele escapa, que
para segurar esse Winter, o Arthur e o Waldi Winter, essa raça eram lisos,
eram tudo de Santa Rosa. Olha, eu trazia as caravanas de Santa Rosa,
mas se o Waldi pudesse cobrar três vezes a mais, ele cobrava três vezes a
mais. O Waldi Winter esse bicho era ensaboado.71

Iraci Urnau também apontou que Waldi Winter só teve participação


direta, enquanto político, em 1956, mas que atuou discretamente nos
“bastidores”. Como todo bom especulador, para conseguir “regalias” e ter
influências no governo municipal, não se afastou da política.
Outro caso de influência na sociedade e governo local é a família
Seyboth. Friedrich Ruprecht Seyboth e sua esposa Ingrun, com apoio da
Maripá e de Willy Barth, instalaram o Hospital e Maternidade Filadélfia,
em 195372, no mesmo ano em que chegaram ao município de Marechal
Cândido Rondon, pois já tinham realizado contato com a colonizadora. Na
fase inicial da colonização da Maripá e no período posterior, a família
Seyboth também ampliou seus negócios na cidade. Friedrich também teve
participação política, sendo vereador do município nos anos de 1966 a
197073.
Outra figura referenciada é Alfredo Wanderer, também considerado
“pioneiro”74 da localidade. Chegou ao município no ano de 1959, atuou
no comércio e no cenário político como primeiro vice-prefeito. Alfredo
trouxe muitos colonizadores do Rio Grande do Sul e Santa Catarina para
conhecerem as terras do Oeste paranaense, também trabalhou como corretor
para a empresa Maripá, ganhou muito com a venda de terras nos períodos

71
SILVA. Idem, op. cit.
72
Friedrich Ruprecht Seyboth e sua esposa haviam chegado recentemente da Alemanha, tendo uma breve passagem por
Santa Catarina. NOSSO TEMPO. Novo prefeito de Rondon nasceu na Alemanha. In: Nosso Tempo, Foz do Iguaçu, de 31/
5 a 6/6/1985, no 171.
73
Friedrich faleceu no ano de 1982.
74
Alfredo Wanderer foi um dos homenageados como Cidadão Honorário de Marechal Cândido Rondon, conforme
matéria publicada no jornal O Presente: Câmara Entrega Título de Cidadão Honorário ao Pioneiro Alfredo Wanderer. O PRESENTE.
Câmara Entrega Título de Cidadão Honorário ao Pioneiro Alfredo Wanderer. In: O Presente, Marechal Cândido Rondon, ano X,
no 581, Dia 13/07/2001. p. 7. Obviamente que tanto este ritual de honrarias quanto o de registro de quem é
instituído como pioneiro tem caráter seletivo, pois não se trata apenas de saber ou lembrar quem foram os primeiros,
mas, sim, de quem tinha influência política e econômico-social. Neste sentido, o chamado pioneirismo é construído
seletivamente e no âmbito dos espaços oficiais há uma inter-relação entre quem produz a imagem dos “grandes
homens locais” e a condição e posição de classe de ambos (na sociedade restrita e na civil).

201
TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

iniciais da colonização, como relatou Mario Silva: “[...] ele tinha uma
imobiliária, ele loteou bastante aqui, principalmente a região de Porto
Mendes”.75
Alfredo Nied 76 também foi um dos primeiros comerciantes na
localidade da antiga Vila Rondon, instalando-se entre os anos de 1950 a
1951. Segundo Mario Silva, Nied tinha um armazém que vendia diversos
produtos.77
A empresa de propriedade da família Nied mudou o nome duas vezes.
A primeira delas ocorreu no ano de 1954, como destacou Saatkamp: “após
o ano de 1954, a Firma Alfredo Nied passou a denominar-se Casa Comercial
Alfredo Nied, comercializando com secos e molhados, armarinhos, tecidos,
compra e venda de suínos”.78
Alfredo Nied criou as empresas “Rodovel Rondon Veículos” e “Rima
Rondon, Implementos e Máquinas Agrícolas” e foi sócio-proprietário do
“Frigorífico Rondon”, fundado em 1963, além de fazer o comércio de suíno.79
Ele também atuou nos bastidores na política rondonense, como destacou
Silva: “Quem teve o comando sempre aqui dentro de Rondon foi o velho
Nied, [...] Ele já era o que mandava aqui, mas escondido”.80
Grande parte dos “primeiros moradores empresários” do município
adquiriram vários empreendimentos e áreas na localidade. Neste sentido,
o caráter empresarial deles é o ponto central na construção de suas imagens.
Muitos desses já possuíam diversas propriedades no Rio Grande do Sul ou
Santa Catarina e já comercializavam terras ou tinham estabelecimentos
comerciais nas cidades de origem.
Através da análise exposta, percebemos que os primeiros corretores,
considerados por alguns historiadores e pela população local como
“pioneiros”, ganharam muito dinheiro com a especulação da terra. Outra
situação comum entre estes é a ligação direta ou indireta com o governo
local, pois estas ligações, obviamente, contribuíram para a venda de terra
e a posição social que ocuparam.

***

75
SILVA. Idem, op.cit.
76
Alfredo Nied nasceu em 1917 no município de Lajeado (RS), e faleceu em 30 de outubro de 1993 aos 76 anos de
idade. FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS. Falece Alfredo Nied. Marechal Cândido Rondon perde homem
desenvolvimentista. 30/10/1993. É oportuno mencionar que Nied também era um dos principais compradores de
porco dos colonos da região, revendendo para Ponta Grossa, Curitiba e São Paulo, de onde trazia outras mercadorias
para revender em suas lojas. Cf. SEIBERT, Carlos Alberto. Os Moradores do Loteamento Ceval na História de Marechal Cândido
Rondon (1991–2007): um estudo de caso sobre a formação do setor urbano-industrial frigorífico e a luta por moradia.
Marechal Cândido Rondon: UNIOESTE, 2008. p. 38.
77
SILVA. Idem, op. cit.
78
SAATKAMP. Idem, op. cit, p. 165.
79
FRENTE AMPLA DE NOTÍCIAS. Falece Alfredo Nied. Marechal Cândido Rondon perde homem desenvolvimentista.
30/10/1993.
80
SILVA. Idem, op. cit.

202
CRISTIANE BADE FAVRETO

Analisar a problemática da especulação do solo urbano em Marechal


Cândido Rondon no período da colonização dirigida nos fez compreender
várias particularidades que vão muito além do mercado imobiliário
representado pelos corretores e proprietários de imobiliárias. A especulação
do solo urbano aumenta cada vez mais o capital de uma parcela do
empresariado rondonense, principalmente dos donos de imobiliárias e
políticos profissionais.
A partir do momento em que analisamos a historiografia da
colonização dirigida pela empresa Maripá e as entrevistas realizadas e/ou
obtidas de outros estudos, com alguns sujeitos que vivenciaram esse
período, concluímos que boa parcela daquelas famílias que são
consideradas pela sociedade rondonense como pioneiras, na verdade, fo-
ram os primeiros especuladores no município. Nessa busca, também
identificamos que estes participavam diretamente ou indiretamente nos
espaços institucionais dos poderes públicos do município, principalmente
no executivo e no legislativo.
Apuramos que no processo de (re)ocupação da região o mercado
imobiliário tomou outros moldes, com a vinda dos investidores particulares
em áreas, que lucraram muito com a venda de terras.
As análises nos dois principais veículos de comunicação da cidade
(jornal O Presente e Rádio Difusora do Paraná) foram de grande valia para
percebemos como esses fortalecem e, em alguns casos, criam o consenso
sobre determinadas questões que legitimam as práticas e relações de poder
de grupos dominantes no município.
Por fim, entendemos que as ações da empresa Maripá não
compreenderam apenas a colonização do município como também
questões mais amplas que envolveram desde a exploração da madeira, a
especulação da terra e a hegemonia política e social nesta região.

Fontes e Referências Bibliográficas

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Município. In:O Jornal, Marechal Cândido Rondon, ano XIV, nº 649, 08/07/2010, p.
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CRISTIANE BADE FAVRETO

2008. Dissertação.
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TERRA E PODER: ABORDAGENS EM HISTÓRIA AGRÁRIA

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