PROCLAMADORES DO REINO DE DEUS Suzana R C Bornholdt PDF
PROCLAMADORES DO REINO DE DEUS Suzana R C Bornholdt PDF
PROCLAMADORES DO REINO DE DEUS Suzana R C Bornholdt PDF
Graças a Deus, não fiz este trabalho sozinha. Diversas pessoas me acompanharam nesta
rica caminhada.
Na esfera pessoal, tenho dívidas de gratidão com minha família (Coutinho) e de meu esposo
(Bornholdt). Meus pais, Neusa e Orlando, me incentivaram desde o início, ainda no período
da seleção para o ingresso no mestrado. Me apoiaram com sabedoria, pizza, churrasco,
Internet a cabo e papos animados, quando o cansaço era inevitável. Meus sogros, Neuza e
Valdemar, à distância, acompanharam diferentes momentos dessa caminhada, torcendo e
me confortando mesmo “via Embratel”. Minhas irmãs e cunhados, perto e longe, me alegram
sempre com sua amizade e torcida. Meus pequenos sobrinhos também - Davi, Luis Felipe e o
futuro João - me trazem esperança... mesmo sem saber. Tio Elias, desde sempre, me
incentivou a estudar. Nem que fosse para um dia conhecer aquela “Londres” imaginária que
permeava seus pensamentos e minha fértil imaginação ainda quando criança.
Um agradecimento especial ao meu “guapo” Luciano Campelo Bornholdt, esposo amoroso e
dedicado que revelou ser um homem de “muitas faces”. Como antropólogo, enriqueceu minha
pesquisa com suas leituras cuidadosas, com seu diálogo inteligente e com seu senso crítico.
Como meu grande amigo, caminhou de mãos dadas ao meu lado, acolheu alegrias e angústias,
sentindo todas elas comigo e por mim. Como homem, me convidou à vida: juntos, temos
criado raízes firmes e horizontes largos, rumo à grande aventura das nossas vidas...
Agradeço a CAPES, que nos últimos seis meses do meu curso de mestrado concedeu uma
bolsa para que eu pudesse concluir este trabalho. Antes disso, parte de meu sustento veio
duas instituições diferentes:
O IBE (Instituto Batista de Educação) foi um lugar que trabalhei durante o mestrado.
Além do dinheiro, o IBE proporcionou diversos ganhos... a descoberta e a rica experiência
da prática docente. Agradeço em especial a Esther Liebster e Pr. Roberto, que acreditaram
no meu trabalho e muito me incentivaram. Agradeço também aos alunos, que alegraram
minhas noites de segunda-feira com suas histórias e sua sede de conhecimento. Com
humildade, me ensinaram muitas coisas- da vida e da Teologia.
O CEFET/SJ (Centro Federal Tecnológico de São José- SC) foi outra instituição que me
acolheu durante a falta da bolsa. Lá descobri um universo diferente: a prática docente para
o ensino médio! Alguns colegas me apoiaram nesta descoberta: Romoaldo Siggelkow, Antônio
Galdino da Costa e Neusa Ramos Coutinho. Meus alunos, adolescentes ávidos por um
conhecimento muito específico, típico da idade, me estimularam a desenvolver técnicas de
“atração” para as aulas de sociologia. Acho que gostaram... e eu também.
Como disse no início, Graças a Deus não fiz este trabalho sozinha. Deus me deu paz de
espírito e amor por este trabalho. Minha força e equilíbrio vem dEle. Minha família e meus
amigos também são presentes dEle...
INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 09
CAPÍTULO 1 – CONHECENDO O CAMPO E O OBJETO.................................. 17
1. As Testemunhas de Jeová e a Missão.................................................................................. 17
1.1. A Comunicação das Testemunhas de Jeová................................................. 20
1.2. As Testemunhas de Jeová: Proclamadores do Reino de Deus.................. 22
2. Missão e Meios de Comunicação.......................................................................................... 24
2.1. Comunicações.................................................................................................... 24
2.2. Comunicação e Religião................................................................................... 27
2.3. O Cenário Atual................................................................................................ 28
2.4. A Internet........................................................................................................... 31
2.5. Internet às Avessas........................................................................................... 34
2.6. Missões e o uso da Internet............................................................................. 36
2.7. Contatos Iniciais................................................................................................ 38
1
Já no final desta pesquisa fui informada que por questões jurídicas, o nome Sociedade Torre de Vigia de
Bíblias e Tratados passou a se chamar de Associação Torre de Vigia. Como recebi esta informação dias
antes da entrega deste trabalho, registro aqui apenas a título de informação atualizada.
grupos religiosos que visam o proselitismo, assim como tratar de questões
conceituais acerca da comunicação. Abordar esta temática trouxe luz ao aspecto do
trabalho proselitista, na medida em que desperta a atenção para as maneiras como as
Testemunhas de Jeová se comunicam com o mundo.
No segundo capítulo tratei da perspectiva milenarista. Busquei, através de
dados etnográficos e de uma breve revisão bibliográfica, chamar a atenção do leitor
à temática da vinda do Reino de Jeová. A iminência da instauração do seu Reino é o
que acaba por gerar no grupo um sentimento de urgência na pregação da palavra
divina, reconfigurando a consciência e a percepção do tempo. É esta expectativa que
gera no grupo uma forte necessidade de reafirmar seus valores e suas crenças, na
medida em que crêem estar vivendo nos “últimos dias”.
Já no terceiro capítulo, tratei do papel do indivíduo com relação à Instituição,
e a forma como esta acaba por se tornar centralizadora e detentora dos discursos e
narrativas, bem como das experiências e vivências individuais. A Internet, neste
cenário, torna-se elemento didático explicativo, na medida em que revela como a
Instituição concentra e reivindica para si diferentes domínios e espaços.
O quarto capítulo tem como objetivo resgatar os três elementos tratados nos
três capítulos anteriores para mostrar que, na totalidade destes aspectos, a missão
testemunha-de-jeová configura-se de uma forma particular e diferenciada da missão
cristã tradicional. Vale ressaltar, entretanto, que os três elementos abordados (novas
tecnologias, milenarismo e individualismo) são diferentes e não são igualmente
considerados em termos metodológicos. A temática das novas tecnologias, por
exemplo, serviu como um recurso metodológico de acesso ao estilo de missão
testemunha-de-jeová. Já a temática do milenarismo teve um papel diferente,
servindo para compreender a configuração da cosmovisão do grupo e o sentimento
de urgência que os impulsiona à prática proselitista. A noção de indivíduo, por sua
vez, serviu para vislumbrar as relações das Testemunhas de Jeová como indivíduos
dentro de uma Instituição detentora e criadora de valores e regras de conduta.
Detentora e criadora, também, de um estilo missionário testemunha-de-jeová.
Capítulo 1
Conhecendo o Campo e o Objeto
2
Salvo outra indicação, as passagens bíblicas aqui referidas são citações da Tradução do Novo Mundo
das Escrituras Sagradas, Bíblia elaborada e utilizada pelas Testemunhas de Jeová.
1.1. A Comunicação das Testemunhas de Jeová
3
Segundo o grupo, o período pós guerra foi considerado o período de expansão global e de educação
bíblica, marcado através do surgimento de escolas teocráticas em diversos países.
1980, as Testemunhas de Jeová lançaram diversos folhetins, livros, estudos bíblicos,
anuários, fitas de vídeo, destinados aos membros do grupo, aos recém-interessados,
aos jovens, às pessoas mais humildes e com pouca leitura, entre outros.
Uma breve análise revela, entre outras coisas, que as Testemunhas de Jeová
têm como prioridade de comunicação não somente a produção escrita, mas a
produção escrita aliada a uma interação face a face. Ao perguntar-lhes o motivo da
mudança de enfoque no processo proselitista, explicaram-me que houve uma grande
revisão dentro da Instituição no que diz respeito ao método de divulgação da
mensagem. Chegaram à conclusão, deste modo, da maior eficiência em realizar um
contato direto com as pessoas que desejam alcançar. Argumentaram também que,
como seguidores de Jesus Cristo e de seus passos, buscam fazer exatamente o que
Ele fez. Esta decisão implica, entre outras coisas, visitar as pessoas de casa em casa e
demonstrar o amor ao próximo.
4
Vide Montenegro (1996) e Santos (1977).
5
Retornarei a esta temática no capítulo 4.
categorias nativas e da forma como os membros se pensam como pertencentes a um
determinado grupo específico.
As Testemunhas de Jeová classificam como missionário a pessoa que dedica
tempo integral à obra, viajando para realizar o “trabalho de campo” em outros
países e que realizou seu treinamento na escola de Gileade, nos Estados Unidos.
Existem também os pioneiros especiais, que dedicam exclusividade à obra
missionária, porém fizeram o treinamento no Brasil e trabalham somente em
território nacional. Já os pioneiros regulares não dedicam exclusividade à obra
proselitista, mas possuem disponibilidade em suas atividades cotidianas (por
exemplo, pessoas que não trabalham ou que trabalham apenas meio período),
assumindo um compromisso de dedicar 70 horas de trabalho proselitista por mês na
congregação que atua. Além destes, existem os pioneiros auxiliares, que são aqueles
que também não dedicam exclusividade à obra missionária e que possuem maior
disponibilidade de tempo em algum mês do ano (as férias, por exemplo), investindo
50 horas por mês no trabalho proselitista. E por último existem os publicadores,
pessoas que possuem uma vida de trabalho secular e “vão à campo” de acordo com
a disponibilidade de tempo (geralmente nos fins de semana).
Além das categorias que estão diretamente relacionadas ao trabalho de
proselitismo, existe também uma classificação quanto à membresia, que é
classificada em diferentes categorias e de acordo com funções específicas na
congregação. Existe o estudante, pessoa interessada (ainda não Testemunha de
Jeová pois não foi batizada) que é doutrinada por Testemunhas de Jeová (já
batizadas), e que estuda a Bíblia com a ajuda dos publicadores. Os publicadores,
categoria já explicitada, são pessoas que possuem uma vida cotidiana de trabalho,
família, casa, e que dedicam tempo para a pregação de acordo com a
disponibilidade. Os servos ministeriais (neste caso, apenas homens) auxiliam o
trabalho dos anciãos, dedicam-se à elaboração de discursos e à condução das
reuniões na ausência dos anciãos, ao funcionamento da biblioteca e
distribuição/organização do material de divulgação. E por último, os anciãos. Estes
ocupam a posição mais alta da estratificação local. O número de anciãos varia de
acordo com o tamanho da congregação (na congregação da Lagoa, atuavam no
momento desta pesquisa 3 anciãos e 1 servo ministerial). Estes se encarregam da
supervisão geral, da disciplina dos membros e da comunicação com os níveis
superiores da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados.
2.1. Comunicações
6
Considerando que o objetivo da presente sessão é apenas um esboço do cenário, a bibliografia referida
não reflete a totalidade e a riqueza da produção teórica da área. Os casos acima referidos foram
selecionados tendo como critério a disponibilidade de informações sobre a utilização dos meios de
comunicação.
7
Agradeço aqui a sugestão da antropóloga e profª. Dra. Sônia W. Maluf.
Pentecostal. A IURD buscou influir, segundo Mariano (1999), de dois modos: o
primeiro via conversão pessoal e o segundo, que aqui nos interessa, pelas vias
midiáticas e política. Desta forma, a partir dos anos 80 passaram, então, a ingressar e
investir mais sistematicamente na TV. Além do papel evangelístico e a tentativa de
atingir novos públicos, IURD e Renascer em Cristo lançaram mão da televisão para
iniciar a formação de Comunidades Pentecostais de Caráter Virtual (Gouveia, 1999).
Logo, se há aproximadamente trinta anos as Igrejas Pentecostais brasileiras
empenhavam esforços na promoção da evangelização face a face, hoje, segundo
Gouveia (Ibid.), o emprego de tal estratégia coloca-se como frágil e limitadora. Estes
grupos religiosos passaram, desta forma, a tratar a televisão como veículo que
poderia propiciar a ampliação do fluxo de mensagens de fé, que vão segundo a
autora atingir a população que está vivendo situação de isolamento nas grandes
cidades brasileiras. A territorialidade e a identidade do sagrado Pentecostal passam
assim, conforme Gouveia (Ibid.) a serem construídos de um lado, com bases
territoriais definidas, e de outro, por bases desterritorializadas, através da
programação televisiva. Desta forma, configura-se no Brasil uma nova visão de um
Pentecostal que vive, conforme Gouveia (Ibid.), em concomitância a fé
territorializada e desterritorializada, formando comunidades religiosas de caráter
virtual, onde seus membros participam alternando suas presenças ora nos espaços
físicos dos templos, ora fora deles.
Outro grupo religioso que exemplifica a utilização de diversas mídias é a
Igreja Presbiteriana do Brasil. Dentro de um cenário de relativa competitividade
religiosa, a mídia tornou-se um dos principais recursos pelos quais os mais diversos
grupos religiosos estabelecem contato com os membros e a sociedade em geral. A
Igreja Presbiteriana do Brasil, diferente de outros grupos religiosos, conta com
recursos escassos para manter-se no espaço midiático. Os poucos recursos, segundo
Bellotti (2003), são aplicados em produtoras responsáveis pela elaboração de
material audiovisual e impresso destinado aos fiéis (exemplificados segundo a autora
pela mídia evangélica Luz para o Caminho e pela Editora Cultura Cristã). Os programas
de televisão, por exemplo, longe de atentar para a medição de audiência, visam
segundo Bellotti (Ibid.) um objetivo: o de atrair somente quem estiver preparado
para ouvir e entender a mensagem cristã. Se o apelo às massas é prática atraente para
diversos grupos religiosos, na visão protestante reformada, conforme a autora, isso
esconde o perigo da corrupção da mensagem, considerando que agradar a todos
significaria subjugar Deus às vontades de todos os Homens. A diferenciação
pretendida pela Igreja Presbiteriana do Brasil com relação à igrejas mais populares (e
aqui subentende-se a IURD) instala-se exatamente aí: na prática e no discurso dessa
produtora presbiteriana. O mesmo ocorre com programas de rádio produzidos pela
Instituição. Navegando ao lado de valores “novos” ou ressignificados (como a auto-
ajuda, a teologia da prosperidade, etc.) a mídia da Igreja Presbiteriana utiliza-se de
temas tradicionais, como a salvação na cruz, o arrependimento e o perdão divino. O
que é novo, na verdade, está dado à luz dessa tradição, “o que perfaz um sentimento
de pertencimento que é recriado num contexto diferente da instituição eclesiástica”
(Ibid., p.5).
Transformações na forma de utilização da mídia também ocorreram com a
Igreja Católica. De acordo com Montero (1986), na década de 80, por exemplo, a
Igreja atuava aquém do considerável avanço demonstrado por grupos religiosos
“concorrentes”. Este quadro transformou-se principalmente a partir de 2000,
quando na ocasião da Jornada mundial das comunicações de 2002, o papa João
Paulo II elaborou um documento oficial convidando a comunidade católica à
reflexão do tema “Internet: um novo fórum para a proclamação do Evangelho”.
Este documento foi uma forma de convite à comunidade católica a “aventurar-se”
no mundo do ciberespaço e a potencializar o seu uso para proclamar a mensagem
proposta. A Instituição reconhece que embora a Internet não possa suprir a
experiência de Deus que só pode oferecer a vida litúrgica e sacramental da Igreja,
pode proporcionar um suplemento e um apoio únicos para preparar o encontro
com Cristo na comunidade e sustentar os novos crentes no caminho da fé que
começam.
2.4. A Internet
8
Cyberspace – Termo cunhado por Willian Gibson no seu romance Neuromancer (Ed. Ace, NY, 1984). A
ficção científica tem como protagonista Case, que entra e sai da Matrix, a rede de computadores
onipresentes que constituem o ciberespaço, no interior da qual relaciona-se com outros humanos e com
máquinas, vivendo uma realidade virtual, mas nem por isso menos real.
9
Ao analisar uma situação concreta da vida social no Ciberespaço, Guimarães empregou a perspectiva
etnográfica no estudo de um ambiente de sociabilidade que nele se constituía, encontrando uma cultura
local que se constituía autônoma em relação aos contextos off-line aos quais seus atores estavam
associados e percebendo que as relações que ali se estabeleciam podiam ser de grande intensidade, via
de regra constituindo grupos sociais e com fortes traços identitários.
10
Percebi esta forte atuação e intervenção do “divino” sobre os usuários da Internet, quando ao analisar
um site de um determinado grupo religioso presenciei ações dos usuários no sentido de buscar saúde
“física” e “espiritual”, relatando posteriormente suas vitórias.
estariam submetidas a um regime diferenciado (Guimarães, 1999). Desta forma, a
Internet passa a abarcar relações que vão além da troca de mensagens, arquivos e
informações em geral. Mais do que um ambiente de comunicação, a rede oferece
suporte a um espaço simbólico que abriga diversas atividades de caráter societário e
que “é palco de práticas e representações de diferentes grupos que o habitam”
(Ibid., 1998). Ou seja, este novo espaço serve como suporte aos processos
cognitivos, sociais e afetivos, os quais modificam esta rede de tecnologia, de acordo
com Silva (2001:151), transformando-a em espaço social povoado por pessoas que
(re)constróem suas identidades e seus laços sociais neste novo contexto
comunicacional. Geram, de acordo com a autora, uma teia de novas sociabilidades
que suscitam novos valores; estes novos valores, por sua vez, reforçam as novas
sociabilidades, gerando uma dialética de novas práticas sociais. Essas modificações
se aplicam também à noção de espaço e território, demandando algumas reflexões.
Em primeiro lugar, segundo Silva (Ibid., p. 156), as mudanças geradas por
estes suportes tecnológicos criam uma dualidade, considerando que o sujeito está
simultaneamente fixado em um lugar físico e, ao mesmo tempo, suspenso na
pluralidade de lugares que a navegação na rede lhe permite. Isto nos leva a refletir
este espaço como um não-lugar, conforme sugere Marc Augé (1994). Como conceito
apresentado pelo autor para compreender o mundo contemporâneo, o espaço por
excelência da supermodernidade é o “não lugar”: “Se um lugar pode se definir como
identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como
identitário, nem como relacional, e nem como histórico definirá um não lugar”
(Ibid., p.73). Este “não lugar”, porém, é socializado e transformado em um “lugar
antropológico” clássico como Augé o define, com suas relações, com seus
territórios demarcados e sua ocupação definida por grupos de sociabilidade
(Coutinho, 2000). Ou seja, se admitimos que existe na Internet o “não-lugar”, ou
seja, espaços de passagem, de mediação, onde não se permanece, reconhecemos
também este espaço enquanto “lugar” antropológico, em que existe suporte para a
relação interpessoal e para a organização social.
Em segundo lugar, ao abordar a questão de novos espaços antropológicos,
surge a questão da territorialidade, na medida em que o território é o ponto de
ancoragem fundamental na construção de identidades. O território é, pois, fruto da
construção de sistemas de representação. Silva (Ibid., p. 158) ressalta que apesar da
idéia de território estar ligada à idéia de fronteiras geográficas, são os elementos
simbólicos de um território que lhe dão identidade. Isto permite pensar a existência
de territórios na Internet enquanto espaços e fluxos de informação que geram
representações partilhadas. Uma particularidade deste espaço, conforme Ribeiro
(2001:140), reside no fato de possibilitar ao navegante a exploração de novos
aspectos existenciais, cognitivos e experienciais a partir de um ambiente
desterritorializado. À medida que navegam, os usuários passam a construir no
ciberespaço novas teias de relações que, conforme Ribeiro (p. 141), gradualmente
vão sendo reconhecidas e interiorizadas como parte de uma nova realidade
organizada a partir das trocas simbólicas realizadas pelos usuários. Estes passam a se
utilizar destes ambientes, muitas vezes em contextos religiosos, enquanto espaços de
reforço de suas crenças e visões de mundo. A Internet torna-se um local onde
determinadas visões de mundo são confirmadas. É plausível e confortável para
determinado grupo de usuários na medida em que este conhecimento é partilhado.
A confirmação e o compartilhar destes valores podem ser percebidos em
diversos grupos que se organizam a partir de um locus virtual. Uma exemplificação
adequada a este caso refere-se ao canal de bate papo 100%_jesus que se organiza a
partir do programa de bate-papo IRC (Internet Relay Chat), sendo considerado um
sistema de conversa multi-usuário baseado no modelo cliente-servidor. Ao entrar no
programa, o usuário deve escolher qual canal deseja participar: o nome do canal
geralmente indica a natureza da conversa predominante no ambiente.
Este ambiente de sociabilidade se autodenomina evangélico, e assim como
em outros canais de bate papo, possui regras, normas e uma estrutura hierárquica de
organização11. Os canais, de uma forma geral, se “materializam” através de uma
Home Page. No caso do canal 100%_jesus, a Home Page se propõe a prestar
diversos serviços à comunidade cristã, porém sua função primordial em relação ao
canal é estabelecer os valores que norteiam aquele ambiente. O discurso assumido
na Home Page é o de “Proclamar Jesus Cristo a toda a Internet em seus vários
ramos: IRC, Correio Eletrônico, Web, FTP, Icq. Ide por Todo o Mundo e Pregai o
11
Para maiores informações, vide Jungblut (2000) e Coutinho (2000).
Evangelho a toda criatura (Marcos 16:15”)12. Jungblut (2000) também realizou
estudos no mesmo canal de bate-papo buscando, através de dados etnográficos,
analisar a forma como os evangélicos atualizam, através da Internet, certos padrões
de comportamento social experimentados em diferentes esferas, como a sociedade
em geral, o ciberespaço e o campo evangélico. De forma sintetizada, o que
encontramos no canal de bate-papo 100%_jesus é um espaço de sociabilidade de
um determinado grupo de pessoas que compartilham valores religiosos, que acabam
por criar uma realidade plausível para o grupo, onde suas visões de mundo são
confirmadas, elaborando reais possibilidades de um espaço de conversão e
proselitismo.
12
Informações obtidas no site: http://www.lordjesus.cjb.net
Insisti em minhas buscas, e acabei por encontrar um diversificado material referente
ao grupo. Em maior produção, os evangélicos assumem o ranking da elaboração da
crítica doutrinária do grupo. Encontrei alguns sites que apenas comentavam a
respeito de aspectos relacionados a impactos sociais do grupo (como a questão do
sangue e as implicações éticas envolvidas nesta decisão), alguns sites de ex-
Testemunhas de Jeová (como por exemplo um site de gays, lésbicas e afins ex-
Testemunhas de Jeová) e por último, apenas alguns poucos sites de membros
Testemunhas de Jeová. É importante notar que estas páginas eram muito mais sites
pessoais (os ditos diários virtuais) do que propriamente um site informativo sobre a
religião. Estes sites pessoais não seriam tão interessantes se não fosse um detalhe: já
no fim do meu trabalho de campo, retornei a estas páginas para extrair algumas
outras informações, quando ao entrar na página, surge na tela do computador a
seguinte frase: “este site está sendo redirecionado para o seguinte endereço:
http://www. watchtower.org.br”. E em outra página surge a seguinte informação:
“por determinação da Watch Tower Bible and Tract Society este site foi desativado.
Para maiores informações, clique aqui” (link que também direcionava o navegador
ao site oficial das Testemunhas de Jeová).
Quanto ao grupo propriamente dito, sua discreta presença limitava-se a
expor sua página oficial13 (disponível em diversos idiomas, conforme atuação do
grupo nestes países), apenas. Ao contrário de outras Home Pages, este é um
ambiente fechado, onde não há espaços de interação nem comunicação revelando,
como em suas publicações, uma relativa homogeneidade em escala mundial das
imagens e do discurso proferido. Revelou também a busca pelos domínios dos
espaços e das identidades testemunha-de-jeová, aspecto vivenciado ao longo de meu
trabalho de campo e que será abordado em momento posterior.
Este “não-uso” da Internet possibilitou o início de minhas investigações com
as Testemunhas de Jeová, acompanhando-as regularmente às reuniões semanais e
eventos importantes do grupo na congregação da Lagoa da Conceição, em
Florianópolis. Desta forma, obtive informações preciosas sobre as questões que
13
http://www.watchtower.org
permeavam o propósito deste trabalho, como o significado da prática missionária
para o grupo e a relação que estabelecem com o uso da Internet.
O questionamento que permeia este trabalho está em pensar porque um
grupo que possui uma prática missionária muito forte e uma prática de expansão do
Reino de Jeová muito clara, utiliza determinadas tecnologias de informação em
detrimento de outras. De que forma, afinal, o “não-uso” da Internet pode revelar o
que, de fato, venha a ser missão para as Testemunhas de Jeová?
A relevância da escolha deste grupo religioso tem como aspecto a ser
considerado a prática exercida por eles de forma exaustiva e prioritária: o trabalho
proselitista de visitação de casa em casa, contrapondo desta forma o “web-
evangelismo” praticado pelos usuários do canal 100%_jesus. Pensar na forma como
as Testemunhas de Jeová se comunicam com o “mundo” hoje, significa também a
necessidade de entender e conhecer como o grupo se comunica entre si. Vale
ressaltar, porém, que o entendimento deste processo de comunicação não implica
em realizar uma “etnografia da fala” nem tampouco uma “etnografia da leitura”
(Lewgoy, 1998). O que desejo aqui é apresentar ao leitor como as Testemunhas de
Jeová se utilizam do vasto aparato bibliográfico disponível no processo de
evangelização e a opção pela não utilização de novas tecnologias.
14
Para uma discussão mais aprofundada sobre este assunto, vide capítulo 4.
virtuais passam a dispor de diversos aparatos técnicos que possibilitam estas
diferenças nas estratégias. Quando um determinado grupo disponibiliza sua Home
Page (HP) para acesso irrestrito, estabelece uma forma de oferecimento e um grau
menos elevado de intervenção em relação ao indivíduo, pois o contato somente se
estabelece se o usuário se interessa pelo conteúdo expresso na HP, ou seja, se parte
dele a iniciativa de procurar determinada página em um site de busca, por exemplo.
Por outro lado, ao ter acesso a uma mala direta de e-mails e através dela envia uma
série de textos evangelísticos, atua de forma mais direta em relação ao “perdido” e o
seu grau de intervenção é potencialmente elevado.
O fato é que diversos grupos religiosos têm se utilizado de diferentes meios
de comunicação para fazer missão. A especificidade desta pesquisa está calcada na
busca de entendimento da prática missionária das Testemunhas de Jeová,
considerando que o processo comunicativo do grupo é elaborado sob padrões
diferenciados de comunicação no mundo atual. Clarificar alguns aspectos acerca da
utilização de meios de comunicação por diferentes grupos religiosos que visam o
proselitismo, assim como abordar questões conceituais acerca da Comunicação, traz
luz sobre a prática missionária do grupo proposto na medida em que utilizam
diferenciados meios de comunicação no processo de interação e evangelização do
mundo.
15
Principalmente se considerarmos o fato de que as Testemunhas de Jeová não prestam serviço militar,
não votam, não se associam a partidos políticos e não reverenciam símbolos nacionais.
personalidade devesse ser o principal fim nas suas vidas religiosas. Logo, se a maior
parte da doutrinação do grupo implica em afastar-se do mundo (revelado através da
busca e instauração da teocracia), uma vez que o “mundo” tem seu deus (Satanás),
essa relação conflitante que se estabelece com o mundo faz com que o grupo seja
proscrito em diversos países. Ora, se essa relação com o “mundo” é conflitiva,
postula-se o “viver fora do mundo”. Os assuntos mundanos aparecem no entanto
como uma preocupação constante, ainda que sempre explicados como sinais dos
tempos, de cumprimento das profecias.
Capítulo 2
Milenarismo e as Testemunhas de Jeová
1. O Dia de Jeová
16
Para uma discussão mais detalhada a respeito do cristianismo testemunha-de-jeová e suas
diferenciações com outras religiões cristãs, vide capítulo 4. Para o momento, detenho-me no aspecto
milenarista do grupo.
ou o seu retorno) ocorre em determinado momento, a presença de tal
pessoa pode prolongar-se desse ponto em diante por um período de
anos. A Bíblia também usa a palavra grega ér-kho-mai (que significa ‘vir’),
ao referir-se ao fato de Jesus dirigir a sua atenção para uma importante
tarefa, num tempo específico durante a sua presença, a saber, o seu
trabalho qual executor nomeado por Jeová na guerra do grande dia do
Deus Todo-Poderoso (Raciocínios, p. 433).
Para as Testemunhas de Jeová, quando Jesus Cristo ascendeu aos céus não o
fez de forma visível. Pelo contrário, subiu aos céus de forma invisível aos olhos
humanos. E prometeu que iria voltar, também em forma invisível. No sentido de
reforçar sua argumentação, o grupo baseia-se em diversas referências bíblicas. No
livro de Mateus, por exemplo, encontram-se várias menções de um verbo grego de
uso comum para “vir”, o qual é ér-kho-mai. Mas em outras referências ainda no livro
de Mateus foi usada uma palavra diferente, o substantivo pa-rou-sí-a, que significa
tanto “chegada” como “presença”. Logo, não trata-se apenas do momento da
chegada, mas da presença desde a chegada. Desta forma, a “volta de Cristo” indica
para as Testemunhas de Jeová não exatamente a sua volta, mas a sua presença
prolongada. Logo, Jesus voltou (tendo dirigido sua atenção como Rei para a Terra) e
agora está presente como espírito, interferindo nos assuntos espirituais aqui na
Terra.
Tomando este quadro como referência, as Testemunhas de Jeová crêem,
baseadas em interpretações de diversas profecias bíblicas, que até 607 AEC (Antes
da Era Comum)17 todos os reis eram designados por Jeová. De 607 AEC até 1914,
período denominado por eles de “tempo designado das nações”, Jeová ficou sem
representante na Terra. E somente em 1914 Jesus Cristo assumiu nos céus o
governo do Reino de Deus. Até então, satanás tinha acesso ao céu e à Terra. Ao
assumir o poder celestial, Jesus expulsou satanás e seus demônios, que passou então
a habitar somente na Terra. Satanás, que até então tinha livre acesso aos céus, é
expulso por Jesus Cristo, que “limpa” o céu e o reduz ao domínio terrestre. Este
17
As Testemunhas de Jeová datam seus eventos de acordo com o nascimento de Cristo.
domínio satânico é marcado e evidenciado, segundo o grupo, através de diferentes
eventos explicados com referências bíblica: “Nação se levantará contra nação e
reino contra reino; e haverá grandes terremotos, e, num lugar após outro,
pestilências e escassez de víveres; e haverá vistas aterrorizantes e grandes sinais do
céu.” (Lucas 21:10,11). Foi também neste período, então no ano de 1914, que inicia-
se a I Grande Guerra Mundial. Esta guerra serviu para o grupo como sinal claro e
evidente da presença de satanás na Terra, revelando toda a sua fúria devido à sua
expulsão celestial. Vejamos o que dizem a esse respeito:
Não haverá uma volta visível, e sim, uma intervenção poderosa de Jeová no
que tange aos assuntos na Terra. Virá então o Armagedom, onde os governantes
políticos de toda a Terra se ajuntarão em oposição a Jeová e a seu Reino. “Tal
oposição será evidenciada por uma ação global contra os servos de Jeová na terra,
os representantes visíveis do Reino de Deus” (Raciocínios, p. 44). As Testemunhas
de Jeová são os representantes visíveis de Deus na Terra. Jeová Deus agirá de forma
a manipular a ação humana para que Sua vontade seja efetuada e sua vingança
cumprida. Os justos então possuirão a terra e os ímpios morrerão. A partir deste
momento a Terra estará sob domínio de Jeová, tendo Cristo como governante.
Depois do Armagedom, haverá um período de mil anos para que as pessoas sejam
ressuscitadas (pouco a pouco) e alcancem, então, a perfeição. Os ressuscitados não
serão julgados segundo os atos errados dos tempos anteriores, mas, em vez disso,
serão julgados pela sua disposição de viver à altura dos requisitos justos para a vida
no domínio do reino de Deus. Este período será considerado, segundo o grupo,
como um período de “maior programa educativo” de todos os tempos, realizado
sob a organização do Reino de Jeová. Abrir-se-ão, então, os “rolos”. Estes serão as
instruções publicadas para ajudar os humanos ressuscitados a realizar as ações que
os habilitarão para a vida eterna. Os meios e os programas educativos na “nova
terra”, dirigidos por Jeová e pelo seu Rei messiânico, serão, segundo o grupo, muito
superiores em comparação com tudo o que o mundo de satanás já ofereceu.
Durante estes mil anos, satanás estará preso. Ele será solto do abismo por
um pouco de tempo, para testar o mundo aperfeiçoado da humanidade quanto à sua
lealdade ao reinado de Jeová. Um número não especificado talvez decida seguir o
diabo, mas estes sofrerão a execução rápida do seu julgamento. “Cristo Jesus
realizará este ato final de vindicação por esmagar a cabeça da Serpente original,
aniquilando-a junto com sua prole tão cabalmente como que por um fogo que
durará ‘dia e noite, para todo o sempre’.” (Venha o teu Reino, p. 184). Com satanás
definitivamente eliminado, haverá a paz eterna e Jesus Cristo devolverá o poder e o
reino celestial ao Pai.
Os verdadeiros cristãos serão livrados do “atual sistema iníquo de coisas,
bem como a salvação da escravidão ao pecado e à morte. Para uma grande multidão
de servos féis de Jeová que vivem nos ‘últimos dias’, a salvação incluirá serem
preservados através da grande tribulação” (Raciocínios, p. 338). A referência a esta
“Grande Multidão” está na passagem bíblica de Revelação 7:15, que registra como
sendo aqueles que “estão diante do trono de Deus e o servem publicamente”, só
que na Terra. Logo, “aqueles que confessam que o Senhor Jesus é seu Salvador e
Jeová, seu Deus, a quem adoram em espírito e em verdade e servem alegremente”
(Proclamadores, p. 169) são considerados a grande multidão, que viverá eternamente
no paraíso terrestre. “As Testemunhas de Jeová entendem que se trata de servos
leais a Deus que sobreviverão ao Armagedom com a perspectiva de vida eterna
numa Terra levada de volta à condição de Paraíso” (Ibid., p.179). A Terra, na
perspectiva testemunha-de-jeová, não será destruída mas, conforme o propósito
original de Jeová Deus, será “limpa” e transformada em um paraíso para esta grande
multidão. Baseadas em referências bíblicas, acreditam que nesta nova Terra haverá
moradias adequadas e fartura de alimentos para o usufruto de todos, e todas as
doenças, enfermidades e formas de incapacidades físicas (inclusive a própria morte)
se tornarão coisas do passado.
Um “pequeno rebanho”, reconhecidos no grupo como os “144.000
ungidos”, já foram selecionados dentre todos os povos e nações para governarem
como reis com Cristo no reino celestial. Todos os 144.000 cristãos ungidos têm
evidência de terem o espírito de Deus. Com base bíblica argumentam: “Recebestes
um espírito de adoção, como filhos, espírito pelo qual clamamos: ‘Aba, Pai!’ O
próprio espírito dá testemunho com o nosso espírito de que somos filhos de Deus.
Então, se somos filhos, somos também herdeiros: deveras, herdeiros de Deus, mas
co-herdeiros de Cristo, desde que soframos juntamente, para que também sejamos
glorificados juntamente. (Romanos 8:15-17)” (Ibid., p. 142). Eles têm certeza
absoluta de que foram gerados por Deus para a filiação espiritual como co-herdeiros
de Cristo no Reino celestial. Neste respeito, é o espírito santo de Jeová que
desempenha um papel de atribuidor desta certeza. Os ungidos reconhecem seu status
e sabem que “foram batizados em Cristo Jesus” e na sua morte. Têm a firme
convicção de que são filhos espirituais de Deus, que morrerão e serão ressuscitados
para a glória celestial, assim como Jesus foi.
Ter em mente o dia de Jeová é, também, estar atento aos indícios de que o
fim está próximo. Estes indícios são pontuados pelo grupo através de seis provas,
conforme apresentado na revista A Sentinela de 15/01/2000:
1. A primeira delas, de que estamos vivendo nos últimos dias, conforme o apóstolo
Paulo registrou em 2 Timóteo 3:1-5: “Nos últimos dias haverá tempos críticos,
difíceis de manejar. Pois os homens serão amantes de si mesmos, amantes do
dinheiro, pretensiosos, soberbos, blasfemadores, desobedientes aos pais,
ingratos, desleais, (...)”.
2. A segunda prova é que vê-se nos dias atuais os efeitos da expulsão de satanás e
seus demônios dos céus. Isto acabou gerando grande sofrimento para a Terra. A
profecia de Revelação (livro de apocalipse) diz que, ao ser lançado para a Terra,
o Diabo sabia que lhe restava um curto período de tempo. “Durante este
período, satanás trava lutas contra os seguidores ungidos de Cristo (...).
Certamente vemos os efeitos de seus ataques em nosso tempo. Mas logo satanás
será confinado ao abismo para que não mais desencaminhe as nações” (Ibid.).
3. A terceira diz que vivemos nos dias do “oitavo e último rei”. Na passagem de
Revelação 17:9-11, o apóstolo João refere-se a sete reis, que representam sete
potências mundiais. Ele vê também um oitavo rei que procede dos sete. Este
representa hoje, para as Testemunhas de Jeová, as Nações Unidas.
4. A quarta diz que vivemos no período simbolizado pelos “pés da estátua do
sonho de Nabucodonozor”. O profeta Daniel interpretou o sonho da enorme
estátua na forma de um homem. Cada parte da estátua representa várias
potências mundiais. Todas as potências mundiais representadas na estátua já
surgiram.
5. Quinta, vê-se a realização de uma obra mundial de pregação, a qual Jesus disse
que ocorreria pouco antes do fim deste sistema. Segundo o grupo, essa profecia
se cumpre numa escala sem precedentes. “A Bíblia, porém, não afirma que Jeová
esperará até que cada pessoa na Terra receba testemunho. Em vez disso, as boas
novas têm de ser pregadas até que Jeová diga que basta. Daí, virá o fim” (Ibid.).
6. A sexta prova diz que o número de genuínos discípulos ungidos de Cristo “está
ficando bem pequeno, embora alguns deles evidentemente ainda estarão na
Terra quando começar a grande tribulação” (Ibid.).
Ladrões são facilmente pegos, porém é mais provável que o vigia que
fica acordado a noite inteira veja um ladrão do que aquele que adormece
de vez em quando. Como o vigia pode ser manter acordado? É mais fácil
se manter alerta por se movimentar do que por ficar a noite inteira
sentado. De modo similar, manter-se espiritualmente ativo ajudará o
cristão a ficar desperto. De modo que Pedro nos exorta a manter-nos
ativos ‘em atos santos de conduta e em ações de devoção piedosa’ (2
Pedro 3:11). Essa atividade nos ajudará a continuarmos ‘tendo bem em
mente a presença do dia de Jeová’. (A Sentinela, 01/01/2003).
18
Para James Mooney, um dos primeiros autores a estudar os movimentos messiânicos em trabalho de
campo, existia entre os grupos indígenas americanos do norte, anterior à chegada do branco, a crença na
vinda de um messias que lhe traria condições de felicidade, conhecida em tempos anteriores e que seria
então restaurada.
19
Foi com o povo de Israel que o conceito tomou seu primeiro significado. Ocorre pela primeira vez no
livro de Samuel, sugerindo o contexto que o messias era o ungido do Senhor e que seu papel era político.
Só depois do cativeiro é que surge uma promessa clara de uma idade ainda por vir, na qual todas as
injustiças seriam sanadas.
20
Cohn, Norman. En pos del milenio. Revolucionarismos milenaristas y anarquistas místicos de la
Edad Media. Edit. Seix Barral, Barcelona, 1972.
De acordo com a definição de Queiroz (Queiroz, 1976 apud Barabas, 1987),
milenarismo é a crença em um tempo futuro, onde todos os males serão corrigidos e
todas as injustiças reparadas. Barabas (1987:15) argumenta que está na “natureza do
milenarismo ser ao mesmo tempo religioso e sócio-político ao aproximar
estreitamente as esperanças e aspirações terrenas com os meios através dos quais se
espera ter acesso ao novo mundo”21. O profetismo, por sua vez, é um tipo de
movimento sócio-religioso em que o profeta tem o papel de comunicar a iminência
da chegada do messias e do milênio, e o anúncio é recebido como revelação.
Conforme Barabas (Ibid., p. 15), sua função não consiste em concretizar o milênio,
mas em preparar os eleitos para o advento.
Há uma forte discussão no sentido de compreender as mobilizações
messiânico-milenaristas e suas relações causais. Enquanto uns apontam a
determinação de fatores estruturais e sócio-econômicos, outros, segundo Queiroz
(1995), não negam a dimensão econômico-material mas destacam questões culturais,
míticas e/ou religiosas no estudo dessas manifestações. Para Maria Isaura Pereira de
Queiroz (1976), por exemplo, movimentos milenaristas brasileiros são
manifestações que denunciam crises que atingem segmentos sociais específicos. Já
no entendimento de Vittorio Lanternari (1974), os movimentos visam a regeneração
do mundo onde à medida que se desenrolam, estabelecem uma renovação
consciente da cultura religiosa estabelecida e colocam premissas de uma reforma de
toda a vida social, política e cultural, supondo crise e descontentamento na sua
origem. Para Josildeth Gomes Consorte (1973), as mobilizações messiânico-
milenaristas se constituem como ações articuladas a partir da desestruturação
profunda dos modos de vida tradicionais. Para Rossi (2002), a idéia de messianismo
vinculada somente ao pobre não é suficiente. Para este autor, a idéia é que o
messianismo não é algo exclusivo dos dominados, mas também visível entre as
classes dominantes. Se o marco teórico da maioria dos autores que trabalharam com
o messianismo permite vislumbrar a conclusão de que o messias tem relação
exclusiva com os dominados (e sua realização se dá no cotidiano das dificuldades),
Rossi diz ser difícil encontrar um autor que afirme que a classe dominante tem
utopia messiânica.
21
Tradução do autor.
Barabas (Ibid., p.14) sugere que a terminologia mais conveniente e global é
aquela que permite incluir os movimentos salvacionistas dentro da categoria mais
ampla de movimentos sócio-religiosos22. Barabas (1987) está pautada pela casuística
dos movimentos milenaristas indígenas do México, no contexto do colonialismo. A
autora argumenta que estes não devem ser entendidos como reações irreflexivas de
massas excitadas e irracionais, mas pelo contrário, como “expressão das esperanças
coletivas que manifestam, através dos séculos, o desejo e a vontade de alcançar a
liberdade” (Ibid., p. 42). Sua proposta é interessante ao articular o “social” e o
“religioso”, tonando evidente que estas dimensões não podem ser consideradas
separadamente. É interessante também porque reconhece nos
milenarismos/profetismos/ messianismos a manifestação de anseios legítimos de
um setor social qualquer.
Mas estes autores estão tratando de setores sociais que se caracterizam por
homogeneidades percebidas como dadas: identidade étnica, identidade como
pobres, discriminados, etc. No caso do pertencimento religioso nas sociedades
urbanas contemporâneas, a homogeneidade grupal, quando aceita e percebida, é
conscientemente construída pela vontade e determinação. Daí que a análise do
milenarismo ganha se levar em conta as constrições que os sujeitos fazem do
milenarismo a que se vinculam e suas justificações (Dickie, 1999).
Por um lado, não é possível caracterizar as Testemunhas de Jeová como um
grupo oriundo de uma classe social determinada. Elas não são originadas de um
mesmo contexto ou sujeitas às mesmas condições sociais e econômicas contra as
quais viessem a se rebelar. Não configuram, neste sentido, um segmento social
específico em crise econômica e social23. Por outro lado, o projeto missionário
testemunha-de-jeová busca como fim último mudanças nos valores morais da
sociedade como cumprimento da vontade de Jeová, o que, por um lado, os isenta de
qualquer tipo de engajamento voltado a mudanças sociais mas evidencia a vivência
de uma “crise de valores”. Isto dificulta caracterizá-los como um movimento sócio-
22
Nomenclatura cunhada por Vittorio Lanternari (1974).
23
Não tive acesso a informações que me possibilite caracterizar as Testemunhas de Jeová em geral no
mundo como um segmento sócio-econômico específico. Há indicações no entanto de que, no Brasil, se se
caracterizam por serem oriundos das camadas médias e médias baixas (informações pessoais das
Testemunhas de Jeová).
religioso conforme os termos propostos por Barabas. No entanto, sua proposta
permite conceber o milenarismo de uma forma menos simplista do que aquela que o
considera como uma resposta direta das classes desfavorecidas ou oprimidas. A
religião é construtiva da ação e não mera resposta ao mundo.
O milenarismo do grupo aqui pesquisado se estabelece não a partir de
elementos de pobreza, miséria e injustiça social, conforme apresentam diversos
autores que trataram o tema. O movimento milenarista das Testemunhas de Jeová
não está limitado à ideologia dos grupos marginalizados, e a idéia vinculada somente
ao pobre não é adequada a este estudo de caso. Não estamos tratando de um grupo
que sofre uma opressão econômica e grande estado de miséria, mas sim, de um
grupo que traz elementos de sofrimento e perseguição, elaborando uma auto-
atribuição vitimizada24 muito forte. O sonho de construção de uma “antisociedade”
não se funda em um protesto pela miséria, injustiça e pobreza. Estes são vistos
como indicativos do fim dos tempos. A finalidade do trabalho
proselitista/missionário das Testemunhas de Jeová é o de garantir as condições para
a salvação no momento do Armagedom. Só assim povoarão uma sociedade justa e
perfeita onde todos viverão em paz e harmonia por vontade de Jeová.
A origem etimológica do termo utopia significa “não-lugar” ou “lugar
inexistente”. Desde Platão até os socialistas utópicos contemporâneos, a utopia
estava relacionada à análise crítica das sociedades por eles vividas. Estabeleciam a
construção imaginária de uma anti-sociedade, mediante a qual diagnosticavam a
miséria e detalhavam a sociedade perfeita que serviria de exemplo ao futuro da
humanidade. Assim esboçada, a utopia pretendia encarnar os desejos fundamentais
do ser humano e encaminhar a sociedade a um bem estar terreno. Apesar de
diversas críticas a estes “gêneros utópicos”, estes pensadores denunciaram mais
radicalmente os abusos dos grupos dominantes e pretenderam comunicar ao ser
humano a esperança de novas e melhores perspectivas de vida (Barabas, 1987).
A outra expressão histórica da utopia, assim considerada pelos estudiosos
dos movimentos camponeses da Idade Média, é o milenarismo e o messianismo.
Para Barabas (Ibid.) enquanto a utopia social abstrata (inspirada no sofrimento, na
24
Esta discussão será tratada em capítulo posterior.
indigência, no despossuído) surgia do pensamento de grupos intelectuais e se
desenvolvia na teoria, a utopia dos movimentos populares expressava sua crítica de
ordem e sua esperança em um futuro melhor e diferente, em termos de linguagem
religiosa do cristianismo. Assim, a legitimidade que encontrava a coletividade
descontente nas promessas da religião, garantia participação ativa na efetuação da
mudança. Desta forma, para Barabas a distância entre a utopia social abstrata e a
utopia milenarista é, de certa forma, justificada. Estas duas formas de utopias
coexistem na história do ocidente, muitas vezes entrecruzando-se, nutrindo-se uma
da outra e muitas vezes caminhando em paralelo. Baseando-me novamente em
Barabas, apresento uma síntese de relação entre as duas formas de utopia.
Das utopias da antigüidade, A república de Platão serviu como modelo de
inspiração para épocas posteriores. Estas primeiras utopias sociais recorrem a
elementos que serão retomados por outras utopias, como por exemplo, a
causalidade atribuída ao desaparecimento da propriedade privada e, por
conseqüência, o surgimento da justiça e felicidade humana. Essa utopia se propunha
a ser uma sociedade baseada em rígida legislação, e situava-se não somente na
denúncia e no repúdio da ordem estabelecida, mas na afirmação do homem de
estabelecer uma sociedade onde reinaria a felicidade e a justiça. Estas e outras visões
e expectativas utópicas são, na maioria dos casos, projetadas como reordenamentos
do conhecido ou como retornos ao passado. Para Barabas são, na verdade, intentos
de transformação de realidades onde os desejos necessitam de concretizações.
A utopia judaica centra-se na espera de um novo céu e uma nova terra, onde
o êxodo faz parte da rebelião dos escravos do Egito. O Deus que guia Moisés se
manifesta a favor do povo subjugado, auxiliando na busca da “terra prometida”. É
desta forma que o “Deus dos hebreus” se manifesta como messiânico,
estabelecendo Moisés como profeta e dando a ele a missão de manter o povo eleito
sempre aberto à promessa do reino de liberdade. A utopia judaica é uma utopia
concreta porque sua concepção escatológica se mostra, no processo de revelação
bíblica, como oposição ao culto estabelecido que garante a ordem dada. É também
concreta porque a espera- esperança não está posta em um Deus transcendente, mas
na fraternidade coletiva e na vontade dos homens de ascender ao reino da liberdade.
Vontade esta que ocorre por causa da figura do messias. Este fundamento
messiânico e profético da mitologia bíblica suporta a perspectiva revolucionária do
cristianismo, que é retomada pelos movimentos milenaristas e messiânicos
posteriores.
Os modelos utópicos surgidos do racionalismo e industrialismo continuam
configurando-se como projetos ideais distantes das expectativas e da participação
ativa das bases sociais; e eis o motivo pelo qual não superam sua condição de
utopias abstratas. Na utopia concreta, ao contrário, a transformação radical como
realidade é uma expectativa que encontra sua possibilidade de realização na
participação coletiva das bases sociais. Outra vertente da utopia concreta é a
milenarista. A utopia milenarista significa “uma abertura à esperança do anunciado
(profecia), do prometido que ainda não é; esperança que se encontra sempre
garantida pela religião” (Ibid., p. 83).
Outra distinção entre utopia abstrata e concreta milenarista apontada por
Barabas (Ibid.) pode ser expressa através de pares de oposições. Enquanto que a
utopia abstrata se define pelo individualismo, teorização, totalitarismo e irrealização,
a utopia concreta se realiza pela coletivização, estado prático, comunitarismo e
realização. A oposição deste último, irrealização versus realização revela a
problemática da viabilidade da utopia concreta milenarista. A autora refere-se à
Ernst Bloch25, que argumenta que estes movimentos representam não meras ilusões
em conteúdo, mas “projeções da esperança totalizadora que constitui o princípio de
toda revolução” (Ibid., p. 85). Bloch adverte que a esperança no reino de liberdade
se desvanece todas as vezes que se deseja concretizá-lo. E questiona-se: o
característico da utopia milenarista não seria nunca realizá-lo? Barabas responde a
este questionamento através de Desroche26, que argumenta que o fracasso na
realização da utopia milenarista constitui da mesma forma o seu triunfo. Neste
sentido, a viabilidade da utopia milenarista não deve estar baseada nas realizações,
mas na sustentação da esperança que dá aos homens novos significados e os
mobiliza em favor de um mundo melhor. “O fracasso total ou parcial dos
milenarismos e messianismo não nega sua factibilidade, pelo contrário, projeta sua
25
Ernst Bloch, El principio esperanza, vol. 3, Edit. Aguilar, Madrid, 1980.
26
Henri Desroche, Sociologie de l’esperance, Cal Mann-Lévy, Paris, 1973.
possibilidade de ser o futuro; domínio da esperança e da imaginação criadora” (Ibid.,
p. 85).
Eis o que Barabas chamou de utopias concretas, pois a “espera-esperança” está
firmada em uma fraternidade comum, contrapondo as utopias abstratas, que se
definem pelo individualismo, totalitarismo e irrealização. O milenarismo das
Testemunhas de Jeová não pode ser caracterizado como um movimento coletivo do
mesmo tipo dos acima mencionados. De acordo com Flora (2001:05), uma
característica diferencial em relação aos movimentos brasileiros históricos é que o
grupo não caracteriza, propriamente, um movimento no sentido de uma ação coletiva,
onde houvesse a carência de condições políticas institucionais e onde o movimento
pudesse ser eficaz como agente de uma mudança social ampla, organizado com a
finalidade de construir o novo mundo (Dickie, 1999). Antes, como outros
milenarismos contemporâneos, se caracteriza por constituir grupos de adeptos que
devem, individualmente, perseguir a realização das condições necessárias (e
prescritas) para atingir a salvação.
27
Consciência de tempo é um conceito de P. Ricoeur (Ricoeur, 1985 apud Dickie, 1996) que dá conta de
dois eixos da dimensão temporal dos atores: aquele horizontal da relação entre eventos tal qual
construída por eles (a organização e a qualificação do tempo), e aquele vertical do tempo com os atores
(a vivência de acordo com a organização e a qualificação do tempo).
sociais engendram a partir de seus contextos, condicionam a vida cotidiana,
determinam rotinas, definem prioridades, etc. No caso do grupo milenarista
estudado, o milênio é uma duração temporal, marcada pela vinda do reino de Jeová;
um período definido e desejado pelos fiéis como início de uma nova vida.
Montenegro (1996), por sua vez, acrescenta:
28
Suzanne Lalleman. "Cosmogonia e Cosmologia". In: Augé, Marc. A Construção do Mundo: Religião,
Representações, Ideologia. São Paulo: Edições 70, 1978.
para o grupo o conhecimento do que acontecerá apresenta-se como algo urgente.
Mais importante ainda é a descoberta do início deste novo tempo: eis o motivo da
grande quantidade de profecias “arriscadas” até hoje. Na cosmologia testemunha-
de-jeová as profecias são mais destacadas que a nova ordem que virá, e o
Armagedom (a batalha final), ocupa um lugar mais destacado que o próprio milênio.
A urgência do “tempo do fim” é caracterizada não somente pela indicação de
eventos específicos identificados pelo grupo como indicativos do fim dos tempos –
miséria, solidão, guerras entre as nações – mas caracteriza-se pela administração no
uso do tempo. Investe-se, então, em inúmeras leituras direcionadas às verdades
bíblicas, em tempo de estudos bíblicos, em reuniões. Mas investe-se principalmente
no número de horas dedicadas ao trabalho proselitista. O tempo disponível (em um
fim de semana ou nas férias, por exemplo), tem de ser utilizado na divulgação da
mensagem. É a pressa que os estimula a realizar este trabalho neste tempo.
A crença e a realidade das Testemunhas de Jeová está permeada de profecias,
concretizadas ou não. Fracassada uma profecia, argumentam: “(...) esperanças não
realizadas não são exclusividade dos nossos dias. Os próprios apóstolos tiveram
semelhantes expectativas indevidas... Jeová é digno de ser leal e de louvor com ou
sem a recompensa final” (Proclamadores, p.78). Se a leitura do material “nativo”
tem revelado um posicionamento mais cauteloso quanto à marcação de eventos e
um claro reconhecimento de possíveis erros cometidos por marcarem datas da volta
do reino de Deus, hoje encontramos no grupo não somente este reconhecimento,
mas um movimento “discreto” capaz de arriscar algumas profecias. A indicação de
que estamos nos “últimos dias” propicia esta reflexão. Baseadas em Lucas 21:31 e
32 (“Quando virdes estas coisas ocorrer, sabei que está próximo o reino de Deus29.
Deveras, eu vos digo: Esta geração de modo algum passará até que todas estas
coisas ocorram”), acreditam que a geração que estava viva no começo do
cumprimento do sinal de 1914 está agora bem avançada em idade. Logo, para eles, o
tempo que resta deve ser muito curto e as condições mundiais fornecem toda a
indicação de que este é o caso.
29
Isto é, o tempo em que esse reino destruirá o atual mundo iníquo e ele próprio assumirá o pleno
controle dos assuntos da terra.
Esta “espera-esperança” nos remete ao comentário de Desroche (1973, apud
Barabas, 1987), citado anteriormente, que argumenta que o fracasso na realização da
utopia milenarista constitui da mesma forma o seu triunfo. A utopia milenarista das
Testemunhas de Jeová se baseia não nas realizações das profecias estabelecidas pelo
grupo, mas na esperança que oferece a eles novos significados, mobilizando-os em
busca de um mundo melhor. Queiroz (1976: 46) também pontua esta questão, ao
referir-se a um termo utilizado por Paul Alphandéry (1898)30. A “Espera
Messiânica”, como este autor se referiu, passa a remeter aos anseios do povo, como
sendo aquelas crenças que não se concretizam obrigatoriamente em movimentos
messiânicos. Logo, essa espera messiânica se aplica perfeitamente ao estudo de caso
aqui proposto, considerando que a iminência da volta e as expectativas,
concretizadas ou não, oferecem ao grupo um universo simbólico de significados que
transporta-os ao desejo de construção de um mundo melhor. A espera em si não
gera no grupo desalento e desestímulo, mas sim, renovação da esperança e reforço
dos valores já então desenvolvidos.
Esta mobilização que gira em torno da expectativa da volta, da iminência do
milênio, se realiza através do testemunho. Testemunho este que é gerado por essas
profecias, ainda que fracassadas (no limite temporal, relacionadas às datas
marcadas). A iminência da volta do reino de Jeová e suas implicações é o que
organiza o grupo na relação que estabelecem com o tempo urgente. Para as
Testemunhas de Jeová a missão do cristão na Terra “é proclamar a mensagem do
Reino de justiça do Senhor” (Raciocínios, p. 77), e como auto-definição assumem:
“sociedade mundial de pessoas que dão ativamente testemunho sobre Jeová Deus e
Seus propósitos com a humanidade (...) (Ibid., p. 384). Este “testemunhar” foi
comissionado por Jesus que, antes de acender aos céus, confiou aos seus apóstolos
dizendo: “Sereis testemunhas de mim... até as partes mais distantes da terra” (Atos
1:8). Jesus predissera também que “estas boas novas do reino seriam pregadas em
toda a terra habitada, em testemunho a todas as nações (Mt. 24:14)”. Isto significa
dizer que as profecias, experenciadas pelo grupo ou não, são expressas através da
30
Alphandéry, Paul. Notes sur le messianisme médiéval latin. Rapports Anuels de la Section des
Sciences Religieuses. École Pratique des Hautes Études, Paris, 1898-1914.
importância dada por estas pessoas à exposição da razão de sua esperança, a
comissão que receberam de falar sobre o Reino para o mundo. Mundo este que jaz
no pecado.
Neste sentido, torna-se viável estabelecer uma relação entre milenarismo e
missão. A concepção de tempo das Testemunhas de Jeová se realiza pautada pelos
elementos milenaristas, ou seja, a partir desta espera-esperança que diz que o agora é
a evidência dos “últimos dias” e define a urgência do tempo. Esta urgência é
estimulada pela iminência da volta e diante da possibilidade da volta. Esta urgência
revela-se no discurso do grupo: “(...) o tempo é curto. O tempo está-se esgotando,
não resta dúvida sobre isso (...)” (Proclamadores, p. 104).
Logo, no caso de religiões milenaristas como as Testemunhas de Jeová, o
tempo é um limite definido e desejado: as doutrinas milenaristas prescrevem uma
duração de tempo até a chegada do milênio, e o próprio milênio é uma duração
temporal. Por outro lado, por se caracterizar como um milenarismo muito rígido
(no sentido de dirigir a ação dos fiéis, regulando e norteando noções de tempo,
valores e condutas morais) e muito disciplinador (a estrutura altamente homogênea
e hierarquizada do grupo revela-se assim), acaba por selecionar os meios e as formas
de realização de ações, de forma a impedir que qualquer fator saia do controle.
Tratarei destes aspectos no capítulo 4.
31
Nisã é o mês judaico. O Dia 14 de Nisã no ano de 2003 caiu no dia 16 de Abril, quarta-feira.
celebrada com a mesma freqüência da Páscoa- anualmente- não mensal, semanal ou
diariamente.
Quando Jesus instituiu a Comemoração, “Tomou ... um pão, deu graças,
partiu-o e deu-lho, dizendo: ‘Isto significa meu corpo que há de ser dado em vosso
benefício. Persisti em fazer isso em memória de mim.’” (Lucas 22:19). Os símbolos
ou emblemas (pão sem fermento e o vinho) são utilizados por Jesus como
elementos simbólicos. O pão sem fermento simbolizava seu próprio corpo carnal
sem pecado, que ele entregou em favor do mundo. O vinho, por sua vez, foi
utilizado por Jesus como representação de seu próprio sangue, que seria derramado
para servir de base de um novo pacto com os discípulos “ungidos com o espírito”,
“que governariam com ele no céu quais reis e sacerdotes” (A Sentinela, 01/04/2003).
O vinho simboliza também o sangue derramado por Jesus para o perdão dos
pecados, “abrindo assim o caminho para os participantes serem convocados para a
vida celestial como co-herdeiros de Cristo” (Ibid.). Logo, somente os cristãos
ungidos (aqueles que fazem parte dos 144 mil que irão governar a Terra com Cristo
no céu) são os únicos que comem o pão e tomam o vinho na Comemoração. As
“outras ovelhas”, ou seja, aqueles que não vão governar com Cristo no céu mas
usufruir a vida eterna numa Terra paradísica (a grande multidão), “têm prazer em ser
observadores apreciativos da Ceia do Senhor” (Ibid.).
3.1. O Evento
32
Para uma descrição densa dos eventos regulares praticados pelo grupo, vide capítulo 4. Para o
momento, descrevo brevemente a dinâmica da Celebração para que o leitor atente ao discurso proferido e
elaborado pelo grupo à temática Milenarista.
O mesmo ocorreu com o vinho. Uma bela taça de cristal com vinho tinto foi
passada de mão em mão, sem que ninguém bebesse, repetindo o mesmo
procedimento anterior. O silêncio absoluto permaneceu. Havia grande reverência e
respeito (refletida pela seriedade do semblante) por parte dos presentes. De igual
forma, quando a taça passou pelas mãos de todos os presentes, os homens
sentaram-se junto ao ancião que já estava sentado, e passaram a taça um ao outro,
de maneira que todos participaram do ritual. Todos os presentes no salão, sem
exceção, passaram o pão e o vinho. Mas ninguém bebeu ou comeu. Encerrado este
momento, e após um segundo breve discurso, encerrou-se a Celebração (que teve
seu início pontualmente às 19:00 horas e encerramento às 21:00 horas).
Creio ser necessário explicar ao leitor com maior detalhe alguns aspectos que
envolveram a prática da Celebração, a fim de obtermos entendimento dos reais
significados deste evento. Tratei em momento anterior a respeito do simbolismo do
pão e do vinho na Celebração. Mas vale oferecer mais detalhes, na medida em que
existem fortes argumentações por parte do grupo para a escolha da elaboração de
um pão sem fermento e de um tipo de vinho muito específico, e não um vinho
qualquer.
O pão utilizado por Jesus quando este instituiu a Comemoração era o pão
utilizado na ocasião para a comemoração da Páscoa judaica. Considerando as
palavras de Jesus durante a Comemoração (“Isto significa meu corpo em vosso
benefício” Marcos 14:22), era apropriado que o pão fosse sem fermento. Logo, se o
pão representava o corpo humano perfeito e sem pecado de Jesus, o fermento às
vezes simbolizava maldade, iniqüidade ou pecado.
De igual modo, o vinho que havia no copo quando Jesus o tomou, rendeu
graças e o deu aos apóstolos, simbolizando o “sangue do pacto que há de ser
derramado em benefício de muitos” (Marcos 14: 23 e 24) era, segundo o grupo, um
vinho fermentado, e não suco de uva. “Por exemplo, o vinho fermentado, e não o
suco de uva, rebentaria ‘odres velhos’, como Jesus disse. E os inimigos de Cristo o
acusavam de ser ‘dado ao vinho’. Esta acusação não teria sentido se o vinho fosse
apenas suco de uva” (A Sentinela, 15/02/2003). Logo, segundo eles, somente vinho
tinto é um símbolo adequado do sangue derramado por Jesus e foi o vinho tinto que
usou quando instituiu a Comemoração.
Alguns vinhos tintos atuais, porém, não são aceitáveis, porque são
fortificados com aguardente ou outro tipo de álcool, ou se acrescentam a
eles ervas aromáticas e especiarias. O sangue de Jesus era adequado, não
precisando de nenhum acréscimo. Portanto, vinhos tais como porto,
xerez e vermute não seriam apropriados. O copo da Comemoração deve
conter vinho não adocicado e não fortificado. Poderia usar-se vinho
tinto sem adoçantes, feito em casa, e também vinhos tintos tais como o
Borgonha e o clarete (Ibid.).
Não somente estes dois aspectos (o pão e o vinho) nos trazem clareza e
entendimento a respeito dos reais significados do evento da Refeição Noturna do
Senhor, mas também o aspecto dos “ungidos”, ou seja, aqueles que fazem parte dos
144.000 escolhidos que governarão a Terra com Cristo no céu. Somente estes
ungidos podem tomar o vinho ou comer o pão. Tão somente estes estão habilitados
a participar da Comemoração, e Deus reservou esse privilégio àqueles que ele ungiu
com espírito santo para serem “co-herdeiros de Cristo”. Aqueles que esperam viver
para sempre no paraíso global sob o governo divino, visto que não são co-herdeiros
de Jesus com esperança celestial, apenas assistem à Comemoração como
“observadores respeitosos”.
Especialmente a partir de 1935, quando as Testemunhas de Jeová fizeram
uma grande “revisão teológica” a respeito da doutrina dos 144.000, passou-se a dar
atenção também à busca de “novas ovelhas”, ou seja, aqueles “que tem fé no
resgate, que se dedicam a Deus e que apoiam o ‘pequeno rebanho’ dos ungidos na
pregação do reino” (A Sentinela, 15/02/2003). Assim, na década de 30, de acordo
com o grupo a classe celestial estava praticamente completa. Desde então, tem-se
concentrado esforços na busca de “outras ovelhas”, cuja esperança é terrestre. Caso
um ungido se torne infiel, é muito provável que alguém, que já por muito tempo
serve fielmente a Deus como uma das outras ovelhas, seja chamado para preencher
a vaga deixada nos 144.000.
Os cristãos “gerados pelo espírito” (os ungidos) têm certeza de ter sido
incluídos em um novo pacto. Jesus mencionou-o ao usar pão ázimo e vinho para
instituir a Comemoração da sua morte: “Este copo significa o novo pacto em
virtude do meu sangue, que há de ser derramado em vosso benefício.” (Lucas
22:20). Os participantes deste novo pacto são aqueles que Jeová propõe conduzir à
glória celestial. Este novo pacto tira das nações um povo para o nome de Jeová e os
torna parte dos “descendentes” de Abraão. Assim, pois, os cristãos gerados pelo
espírito têm certeza de que estão no novo pacto e no pacto para o Reino. Portanto,
na celebração da Refeição Noturna do Senhor, apenas os relativamente poucos
remanescentes dos ungidos ainda na Terra participam do pão, que representa o
corpo humano, sem pecado, de Jesus, e do vinho, que significa o sangue perfeito
dele derramado na morte.
Na celebração da Refeição Noturna do Senhor comemorada pela
Congregação da Lagoa, grupo que realizei meu trabalho de campo, não havia
nenhum ungido, logo, ninguém naquela noite bebeu o vinho ou comeu o pão. Em
uma conversa descontraída com Carlos (pioneiro especial que atuava junto à
comunidade), perguntei-lhe se ele já havia conhecido pessoalmente algum ungido.
Ele respondeu-me que durante o seu treinamento na sede em São Paulo, conheceu
“de vista” uma pessoa que se dizia ungida. Porém, segundo ele, era vista com “maus
olhos” pelo grupo, já que era muito jovem e consequentemente, pouco experiente.
Se por um lado essa ação de grupo no sentido de dar (ou não) crédito ao ungido
pode denotar uma coerção social restritiva muito forte, por outro lado não há, à
primeira vista, nenhum tipo de proibição ou determinação por parte deste mesmo
grupo à pessoa que se auto-elege como ungida. Logo, pude perceber que de uma
maneira geral o grupo não atribui grande importância a este fato, nem tampouco ao
fato de não fazerem parte do grupo dos ungidos. De tal forma que abordam a
esperança na vida terrestre de maneira descontraída e positiva, e também muitas
vezes como tema de brincadeiras, ao escolherem já de antemão as casas em que irão
morar - preferencialmente na Lagoa da Conceição, com vista para o mar.
Dentro deste contexto, considero que a Refeição Noturna do Senhor é uma
celebração que funciona como reforço da identidade testemunha-de-jeová e é o que
dá legitimidade às crenças ali compartilhadas. Celebram a morte de Cristo, e em
celebrando o passado, o reconhecem como parte de um percurso. Um percurso
muito próximo deles, no sentido de se reconhecerem como atores desta história,
além de também reconhecerem a atualidade destes eventos. É um processo que está
se desenrolando nos dias atuais, o que explica sua urgência em tudo o que se refere
ao milênio. Este percurso é parte de uma etapa que terá seu fim com a vinda do
reino de Jeová, afirmando desta forma a crença na ocorrência do milênio. A
celebração da Refeição Noturna do Senhor vem reafirmar, também, o modo como
as Testemunhas de Jeová serão salvas. Reafirma uma cosmologia específica de
ordenação do milênio, organizando e classificando, dentro do grupo, aqueles que
reinarão com Cristo nos céus e aqueles que viverão no paraíso terrestre. A Refeição
Noturna do Senhor é uma crença compartilhada pelo grupo que serve como reforço
da identidade testemunha-de-jeová, baseando suas concepções na iminência da
instauração do Reino. É, por fim, um reforço institucional da esperança por eles
compartilhadas.
3.2. A Expectativa da Volta
33
De acordo com Dumont (2000), o desenvolvimento histórico a partir de uma matriz social do tipo holista
para uma sociedade individualista é o que desencadeia o individualismo como um valor. Este seria um
traço típico da cultura ocidental.
Ou seja, a Instituição enquanto “ser antropomórfico” engloba a identidade
individual do membro Testemunha de Jeová.
Montenegro (1996) utliza James Beckford34 para conceituar as Testemunhas
de Jeová como seita estabelecida. Seita porque mantém características de tensão e
apartamento do seu meio sociocultural, e estabelecida porque o autor está se
contrapondo à idéia evolucionista de que as seitas necessariamente se transformariam
em denominações35. O importante é que a partir de uma classificação das seitas
estabelecidas que leva em consideração dois eixos - um eixo vertical que considera o
grau de especificidade dos objetivos que o grupo persegue que refere-se à ideologia;
e um eixo horizontal, que considera o grau de intensidade com que esses objetivos
se perseguem, eixo que se refere à organização – Beckford classifica quatro tipos de
grupos: totalizantes, ativistas, individualistas e convencionais. Montenegro (Ibid.)
argumenta que Beckford vai considerar as Testemunhas de Jeová como um grupo
tipicamente totalizante:
34
Beckford, James.The trumpet of Prophecy – A Sociological Study of Jehovah’s Witnesses. Halsted
Press Book, John Wiley & Sons, New York, 1975.
35
Não é propósito deste trabalho desenvolver esta discussão, visto que está muito bem desenvolvida por
Montenegro (1996).
apenas de diferenciar as Testemunhas de Jeová de outros grupos, mas de conceituá-
las em termos missionários. Na bibliografia percorrida sobre o grupo, constatei que
apesar do grupo possuir as características que compõem o “tipo ideal” da seita, não
é um grupo fundado a partir de um cisma, e sim, criado por um líder que
desenvolve a maior parte do corpo doutrinal, recruta seus membros através do
proselitismo e lhes exige exclusividade, permanecendo até hoje em um estado de
tensão muito grande frente ao mundo secular. O conceito de seitas estabelecidas
permite considerar a existência de dois tipos: aquelas que literalmente se separam da
sociedade (através do isolamento geográfico), e também aquelas que permanecem na
sociedade global, nas áreas urbanas - como é o caso das Testemunhas de Jeová (O’
dea, 1969).
Neste contexto, o indivíduo passa a ser mera peça de engrenagem da
Instituição testemunha-de-jeová. A força totalizadora das Testemunhas de Jeová é
tanta que, ainda que esses indivíduos participem do mundo através de suas
profissões, eles não se tornam –e não se vêem como - indivíduos fragmentados
(Jungblut, 2000). A profissão/trabalho é um mero instrumento de viabilização da
existência e de viabilização do projeto testemunha-de-jeová. Logo, eles são
indivíduos em um mundo fragmentado, mas totalmente preservados pela
Instituição, que os engloba completamente.
Esta percepção de preservação da Sociedade sobre os indivíduos é detectada,
num primeiro momento, através do discurso dos pioneiros especiais, Carlos e
Eduarda, que estavam durante esta pesquisa trabalhando na congregação da Lagoa
da Conceição, em Florianópolis. Em uma das várias conversas que tivemos, eles me
informaram que estavam sendo, dentro de alguns meses, transferidos para o interior
do Estado do Paraná, onde iriam atuar como “superintendente de circuito” nas
congregações da região. Esta função implica num deslocamento constante, visitando
e auxiliando a cada semana uma congregação diferente. Ao indagar-lhes sobre os
possíveis sacrifícios e dificuldades desta função, considerando que não estabelecem
residência fixa (diferente do pioneiro especial, que reside geralmente em um lugar
próximo à congregação em que trabalha), responderam-me de forma a reconhecer
os sacrifícios de ser um pioneiro e futuramente um superintendente, mas
consideram estarem libertos do “sistema de coisas” vigente. A perspectiva da busca
incessante pelo “ter” é algo que, para Carlos e Eduarda, aprisiona o homem. Logo,
para eles, os bens materiais (e aqui me refiro, entre outras coisas, à sua mudança)
estão limitados a poucos objetos e pertences pessoais. Esta renúncia aos padrões do
“mundo” vai mais além. Como pioneiros especiais, dedicam tempo integral à obra
proselitista testemunha-de-jeová e não trabalham em serviços seculares. Este casal
provê seu sustento através de doações dos irmãos de diversas congregações e
através do recebimento de uma ajuda de custo mensal da Instituição. O recebimento
desta ajuda de custo vinda da Instituição Torre de Vigia de Bíblias e Tratados
significa dizer, entre outras coisas, que este casal vive conforme as regras de conduta
estabelecida pela Instituição. Entre essas regras, há a proibição de ter filhos. Isto
significa dizer que se um casal dedicar todos os anos de sua vida à obra missionária,
nunca terão filhos. Se porventura isto vier a acontecer, automaticamente eles são
desligados da função, deixando de ser Pioneiros. Esta informação, não posso negar,
deixou-me surpresa, considerando que eu tinha diante de mim um belo casal recém-
casado, ambos novos (Eduarda então com 23 anos e Carlos com 38). Minha
surpresa, que por um instante quase se tornou em indelicadeza me levou a olhar
para Eduarda e perguntar: “Mas vocês não querem ter filhos?”. Eduarda, com um
sorriso nos lábios, respondeu-me despretensiosamente: “Não!”.
É notável na vida dos pioneiros especiais o indivíduo-fora-do-mundo
referido por Dumont (2000). Mas considero, na mesma medida, a existência desses
indivíduos-fora-do-mundo entre as Testemunhas de Jeová que não dedicam
exclusividade à obra missionária e que dividem seu tempo com as tarefas domésticas
e seculares, como trabalho, casa, filhos e família. Passo a considerá-los, de igual
forma, assim como Carlos e Eduarda, como indivíduos-fora-do-mundo, também
vivendo o abismo entre o mundo social em que vivem e o mundo social vigente.
Identificar este elemento de separação do mundo em pessoas Testemunhas de Jeová
“comuns”, ou seja, com atividades seculares como outra qualquer, salta os olhos por
estarem vivendo, em muitos aspectos (trabalho, escola, filhos, contas para pagar,
etc.) dentro da sociedade secular. Entre os diversos exemplos possíveis de serem
selecionados, um deles nos revela, entre outras coisas, a construção deste indivíduo-
fora-do-mundo: as comemorações festivas consideradas pagãs.
Um exemplo diz respeito ao que o grupo chama de aniversários natalícios.
Segundo eles, embora as Testemunhas de Jeová respeitem o direito de outras
pessoas comemorarem aniversários natalícios, ressaltam que preferem não participar
de tais comemorações. Entre os motivos, o grupo remonta ao tempo da
Mesopotâmia e Antigo Egito para justificar a negação de uma prática que no
ambiente sociocultural que vivem pode ser vista como um reforço do valor
indivíduo. E explica:
36
A parte desta citação contida entre aspas é uma referência que o grupo utiliza dos autores Ralph e
Adelin Linton, do livro The Lore of Birthdays.
37
Dumont vai comparar este homem renunciante ao indivíduo moderno, mas com uma diferença
essencial: enquanto nós vivemos no mundo social, o renunciante vive fora dele. Por este fato, Dumont
passa então a referir-se a este renunciante como um indivíduo-fora-do-mundo, em comparação a nós,
que somos indivíduos-no-mundo.
os indivíduos são necessários. Pois o recrutamento dos membros, entre as
Testemunhas de Jeová, é resultado de um extenso e intenso trabalho proselitista, de
porta em porta, de indivíduo em indivíduo.
1. A Instituição e o Indivíduo
38
Conforme tratei de descrever no capítulo 1.
Esta citação é de riqueza teórica imprescindível para este trabalho. Ela
sintetiza em poucas linhas o que arriscaria chamar de cenário da religião no mundo
atual. Mas a riqueza do texto deste autor reside no fato de apresentar, na
comparação com as Testemunhas de Jeová, um contraste significativo, apesar de
semelhanças existirem também. As Testemunhas de Jeová reconhecem essa
fragmentação e exatamente por isso negam, de modo enfático, o seu uso. Mas ainda
que com tamanho poder fragmentador, a Internet não propicia a construção do
indivíduo testemunha-de-jeová e acaba por ser, diante de tamanho potencial,
relativizada pela Instituição.
Esta relativização da Internet pode ser vislumbrada em diversos artigos
publicados pela Instituição a respeito do assunto. “Pode tudo na Internet ser
considerado saudável? Que serviços e recursos ela oferece? Que precauções se
recomendam?” (Despertai!, 22/07/1997). Algumas temáticas são centrais na
discussão que o grupo propõe a partir destes artigos. Entre elas, destaco a pedofilia,
pornografia, vício em Internet, vício em informação, e a apostasia. Alguns artigos
remetem também à questão da identidade, na medida em que, ao utilizarem a
Internet, as Testemunhas de Jeová podem estar relacionando-se com outra pessoa
que se diz ser Testemunha de Jeová mas não é, ou então, acabar defrontando-se
com idéias apóstatas a respeito do grupo. Seja como for, me parece que há não
somente uma relativização no uso da Internet, mas também uma clara intervenção
da Instituição no sentido de impedir qualquer possibilidade do eu Testemunha de
Jeová vir a ser um indivíduo autônomo.
A religião das Testemunhas de Jeová é que detém o poder de arbitrar o que é
ou não passível de ser aceito como plausível ao grupo. É a Organização que decide
quais traços devem ser expressos, relegados a segundo plano ou ignorados na
coletividade. É a Instituição que gesta a cosmovisão que os indivíduos se dizem
crentes. E não o indivíduo. Não são possíveis pequenas narrativas construídas pelo
indivíduo como fruto do seu espontaneísmo. Pelo contrário, as narrativas utilizadas
no processo proselitista são elaboradas pela Organização e padronizadas no discurso
de todos os membros da Instituição. A Internet, neste sentido, é reveladora desta
noção de Indivíduo construída pelas Testemunhas de Jeová. A Organização
determina o tempo de uso, as informações que devem ser vistas e evitadas pelo
indivíduo. A Organização é que dá orientação à família quanto aos perigos
implícitos no uso. A Organização orienta o indivíduo nos aspectos religiosos e
morais a serem atendidos pelo indivíduo. É a Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e
Tratados quem gesta a cosmovisão do grupo, e não os indivíduos.
Falei aqui que o indivíduo testemunha-de-jeová, apesar de viver em um
mundo fragmentado e fragmentador, é totalmente preservado pela Instituição, que
acaba por cumprir um papel englobador. Isto revela-se também através da Internet
quando a Instituição solicita o zelo dos membros de “separar-se do mundo”. Um
perigo muito “sutil” possibilitado pela Internet diz respeito ao fato das Testemunhas
de Jeová envolverem-se com pessoas estranhas que não respeitam os princípios
bíblicos. Com base em 1 Coríntios 15:33 (“Não sejais desencaminhados. Más
associações estragam hábitos úteis”), argumentam que más companhias via
computador são perigosas. Vejamos outra argumentação em uma de suas revistas:
“Mas o ‘mundo’ hostil que lhes assalta não é de todo indesejado, pois
essa sua hostilidade (...) quando interpretada à luz de certas referências
bíblicas, ganha um sentido quase positivo, uma vez que confirma aquelas
profecias que garantem que contra os ‘salvos’ muitos se levantariam em
perseguições e que nesses ‘últimos tempos, que pensam estarem vivendo,
haveria muito ‘escarnecedores’ (Judas 1:8) (...) Esse mundo que lhes
visita auxilia-os a comprovar cabalmente a malignidade que ele carrega
consigo e a reforçar os propósitos desses crentes de se manterem dele o
mais afastado possível” (Ibid., p. 228).
1. Pensando a Missão
Bosch (2002) elabora uma sinopse da forma como o termo missão tem sido
usado tradicionalmente, apontando que o termo foi parafraseado como: a)
propagação da fé; b) expansão do reinado de Deus; c) conversão dos pagãos e d)
fundação de novas igrejas. Ainda assim, estas conotações são bastante recentes. Até
o século XVI o termo missão era utilizado exclusivamente com referência à doutrina
da Trindade (envio do Filho pelo Pai e do Espírito Santo pelo Pai e Filho). Os
Jesuítas foram os primeiros a usá-lo em termos de difusão da fé cristã entre pessoas,
inclusive protestantes, que não eram membros da Igreja Católica. O termo estava,
na verdade, intimamente associado à idéia de expansão colonial. Mas Bosch também
considera que o termo missão pressupõe, assim, que quem envia tem autoridade
para fazer isso. “Com freqüência, se sustentava que quem realmente enviava era
Deus, que tinha a incontestável autoridade de decretar que pessoas sejam enviadas
para executar sua vontade. Na prática, entretanto, a autoridade era entendida como
sendo conferida à Igreja ou a uma sociedade missionária, ou mesmo a um potentado
cristão” (Bosch, 2002: 17). Fazia parte desta abordagem conceber missão em termos
de expansão, ocupação de campos, conquista de outras religiões e coisas
semelhantes.
Bosch considera os motivos da missão muitas vezes ambíguos. Entre os
motivos “impuros”, o autor identificou alguns elementos, como a) o motivo
imperialista, b) cultural (missão como transferência da cultura “superior” do
missionário), c) o motivo romântico (desejo de conhecer países e povos “exóticos”)
e d) o motivo do colonialismo eclesiástico (desejo de enviar a crença e ordem
eclesiástica a outros territórios).
Teologicamente mais adequados, mas segundo Bosch também ambíguos em
sua manifestação, existem outros motivos missionários, como a) o da conversão,
que enfatiza o valor da decisão e compromisso social (porém tende a limitar o reino
de Deus às almas salvas), b) o motivo escatológico, que fixa os olhos das pessoas no
reinado de Deus como realidade futura, esquecendo exigências dessa vida; c) o
motivo da instalação das igrejas, que acentua a necessidade de reunir uma
comunidade de pessoas comprometidas (mas passa a identificar reino de Deus com
Igreja) e d) o motivo filantrópico, pelo qual a igreja é desafiada a buscar justiça no
mundo.
Logo, neste cenário de ambigüidades quanto ao conceito e prática da missão,
Bosch (Ibid.) sugere uma definição provisória para o conceito, pois reconhece que
diante deste cenário é possível formular apenas aproximações do que possa
significar o conceito de missão. Algumas delas podem ser esclarecedoras para o
nosso interesse, e por isso pontuarei as que considero mais próximas da realidade
encontrada em campo e de acordo com a auto-definição sugerida pelo próprio
grupo.
39
Agradeço aqui as instigantes sugestões da Profª. Dr.ª Maria Amélia Schmidt Dickie.
ampliação da perspectiva de compreensão do Projeto Missionário proposto.
Treinamento é uma categoria nativa que conservo, na medida em que expressa que
as qualidades do pregador são passíveis de serem adquiridas por meio de um
processo gradual.
3. Dispositivos Disciplinares
40
Apenas como exemplo, registro aqui o assunto de um discurso proferido com base no livro “Beneficie-
se”, que tinha como título Ênfase segundo o Sentido, baseado no texto bíblico de Neemias 8:8, que dizia:
“E continuaram a ler alto no livro, na lei do verdadeiro Deus, fornecendo-se esclarecimento e dando-se o
sentido dela; e continuaram a tornar a leitura compreensível”.
(líder da dinâmica), um mediador (detentor do microfone que circula pelo Salão) e
os participantes (membros da Congregação que assistem à reunião). O cenário da
dinâmica (que é o próprio Salão do Reino) está estabelecido da seguinte maneira:
Membros Membros
participantes. participantes.
Ficam sentados Ficam
em cadeiras sentados em
(organizadas cadeiras
em fileiras) (organizadas
MEDIADOR em fileiras)
Entrada do Salão
41
Agradeço aqui as sugestões da Profª. Dr.ª Maria Amélia Schmidt Dickie, que sugeriu que a Dinâmica do
Microfone pode possibilitar, entre outras coisas, a construção desta “renda” que une as pessoas que
testemunham.
42
“Por exemplo, alguns cristãos do primeiro século podiam dar testemunhos dos fatos históricos a
respeito de Jesus – concernentes a sua vida, morte e ressurreição – com conhecimento direto. (...)
Entretanto, pessoas que mais tarde depositaram sua fé em Jesus podiam dar testemunho proclamando a
outros a importância de sua vida, morte e ressurreição” (Proclamadores, 1993:13).
adquiriu o significado aplicado a pessoas que estavam dispostas a ‘selar a
seriedade de seu testemunho, ou confissão, com a morte’. Não foram
chamadas de testemunhas porque morreram; elas morreram porque eram
testemunhas leais (Proclamadores, 1993:13).
43
Mas não somente. Neste caso, existem três possibilidades: 1) a leitura perante uma assistência, 2)
demonstração com duas ou mais pessoas ou 3) discurso dirigido à Congregação.
Após a leitura de um texto realizada por um membro perante a assistência,
dois outros alunos são designados pelo ancião para um outro exercício, a
“demonstração”. Esta demonstração é, na verdade, a simulação e/ou o teatro de um
diálogo entre duas pessoas. Esta demonstração precisa de uma cena, e é no livro
Beneficie-se que o membro encontrará sugestões de 30 cenas variadas, como por
exemplo o “testemunho de casa em casa, testemunho a um vizinho, conversando
com um ateu ou agnóstico, testemunho informal numa sala de espera, explicando
suas crenças a um parente descrente, usando a Bíblia para encorajar alguém doente,
revisitando pela primeira vez alguém que demonstrou interesse”, etc. Os membros
utilizam para a demonstração a mesa e as cadeiras à frente, ao lado da tribuna, para
simular suas cenas. Transcrevo aqui um diálogo desta demonstração (Montenegro,
1996: 112):
44
Material informativo distribuído mensalmente, direcionado exclusivamente ao contexto brasileiro.
construções, ou de necessidades outras de Congregações específicas e a solicitação
de ajuda financeira ou através de mão de obra. Outra petição muito freqüente feita
pela Sociedade às Congregações é o envio dos relatórios. Estes relatórios são, na
verdade, o preenchimento de fichas. Cada membro da Congregação preenche um
relatório individual, todos os meses do ano, registrando o número de horas
disponibilizadas naquele mês específico à evangelização. A Congregação soma as
horas individuais de evangelização mensal de todos os membros e envia para a
Sociedade.
Encerradas as comunicações, seguem mais dois discursos de diferentes
anciãos, abordando temas sugeridos no folheto “Nosso Ministério do Reino”,
encadernação mensal que serve de base para a Reunião de Serviço. Após estes
discursos, o ancião encerra a reunião com uma oração, exatamente às 21:30,
completando 90 minutos exatos de reunião.
45
Claro que apesar desta descrição ser o “padrão” de uso das roupas, nem todos os presentes, em
especial as mulheres, vestiam-se da mesma forma. Este fato aparentemente não gerava discriminação
por parte do grupo. Porém, a roupa identificava com clareza o grau de familiarização com a prática
vigente.
46
A Sentinela, 1º de Maio de 2003. “O que gostaria de perguntar a Deus?”, p. 7.
praticada no evento. É interessante notar que tanto o estilo das vestimentas quanto
a prática de determinados eventos percebidos durante minha estadia em campo
eram a cada momento confirmadas através da visualização destas imagens nas
diversas publicações distribuídas pelo grupo, exemplificados através de diferentes
culturas.
Até agora trabalhei o aspecto do treinamento como ponto de partida para
pensar a prática missionária das Testemunhas de Jeová. A reflexão sobre esta prática
possibilita a identificação de uma padronização presente no grupo como produto de
um processo disciplinar que se faz tanto pela calibragem do tempo (até a exatidão
do segundo) como pela divulgação iconográfica e literária. Mas é importante
ressaltar os valores que, ao mesmo tempo, constróem e apoiam o processo
disciplinar. Esta padronização, sugiro, é identificada em diferentes contextos, entre
eles, a iconografia registrada nas publicações. O fato é que considero que o conjunto
de imagens produzidas pelas Testemunhas de Jeová é revelador na medida em que
contém um amplo conjunto de gravuras que denotam práticas específicas, e que ao
referir-me à construção de um estilo, sugiro que toda a iconografia presente no
material das Testemunhas de Jeová serve como base para moldar suas práticas e
para reforçar a padronização de uma série de práticas que encaminham inclusive à
homogeneização da prática missionária. Sugiro também que a imagética produzida
pelo grupo remete não somente à questão da homogeneização, já abordada em
momento anterior, mas também à disciplinarização, na medida em que sugere uma
difusão mundial de um mesmo estilo, denotando desta forma a padronização não
somente do “ser”, mas também do “pensar”.
1. Saída a campo
2. Testemunho informal
3. Pregação de porta em porta (testemunho formal)
4. Revisitas
5. Estudos Bíblicos
O termo “saída a campo”, tão utilizado pelo grupo, tem uma conotação de
amplitude muito forte no universo simbólico das Testemunhas de Jeová. O
“campo” de atuação do grupo não se restringe a um bairro, ao ambiente de trabalho
nem tampouco à família. O campo das Testemunhas de Jeová é a própria vida -
esteja ela vinculada ao trabalho, aos amigos ou a qualquer outro ambiente. Ou seja,
o que é preciso frisar neste primeiro ponto, “saída a campo”, é que a área de atuação
das Testemunhas de Jeová não se limita a um território específico nem a uma
situação determinada, ainda que designem a visitação de casa em casa como “saída a
campo”. O mundo é o campo, e basta ter diante de si um não-Testemunha de Jeová
para realizar esforços no sentido de propagar o treinamento recebido. A saída a
campo não está limitada somente às pessoas que dedicam exclusividade à obra
missionária, mas é extendida à todas as Testemunhas de Jeová que, por isto, são
sempre publicadores.
Tanto isso é verdade que o ponto seguinte, o testemunho informal, é
considerado aspecto primordial a ser atentado pelo grupo. A veracidade desta
informação foi presenciada por mim inúmeras vezes durante o meu trabalho de
campo. Uma de minhas dificuldades residia na possibilidade de não conseguir
apenas dialogar com os membros do grupo, mas perceber com muita clareza o
empenho conjunto em não apenas responder aos meus questionamentos, como
também me doutrinar na Verdade estabelecida. A postura de testemunhar em todo
o momento e em todos os lugares, embora não seja contabilizado o número de
horas na ficha pessoal dos membros, é considerado parte inerente à vida dos
membros. Uma rica experiência foi proporcionada por Anilma, senhora de meia
idade que participava ativamente das atividades da congregação na Lagoa. Anilma
estava presente em todos os encontros e chegava no Salão antes dos horários das
reuniões darem início. Fomos apresentadas logo no início da pesquisa, mas até
então não tínhamos conversado. Certa noite, nos encontramos coincidentemente
pouco antes de chegar à congregação. Sua primeira pergunta foi: “A Dalva está
fazendo estudo bíblico com você?” A pergunta de Anilma revelou, de certa forma,
uma tendência mais ou menos geral de abarcamento de membros, onde a tática
principal é, após um contato inicial, a prática dos estudos bíblicos na casa do
possível interessado, e posteriormente um convite à participação das reuniões.
Minha resposta para Anilma foi dada conforme o padrão por mim desenvolvido
para as perguntas mais gerais a respeito da minha presença no meio deles. Expliquei
a respeito da pesquisa, quais eram os meus interesses e meus objetivos com o
trabalho.
Anilma ouviu-me atentamente, respondendo-me que “outras religiões até são
boas”, mas a Verdade (de fato) estava com as Testemunhas de Jeová, pois elas, sim,
estudavam profundamente a Bíblia. Esta postura de Anilma revela uma postura mais
geral do grupo, de considerar todas as possibilidades de diálogo e situações que
envolvam outras pessoas como uma possibilidade de propagação da “Verdade”. O
caso de Anilma serve como ilustração pois, mesmo estando dentro do Salão, utilizou
a ocasião de uma conversa informal para falar-me a respeito de Jeová. Não foram
raras as vezes que pessoas, ao me explicarem aspectos específicos a respeito do
grupo, serviam-se desta oportunidade para explicitarem aspectos doutrinários das
Testemunhas de Jeová.
O terceiro aspecto a ser abordado, em contraponto ao testemunho informal,
o testemunho formal (ou pregação de porta em porta) é também uma ação vital às
Testemunhas de Jeová. Este testemunho formal, contabilizado na ficha individual
dos membros, é realizado por todos os participantes da comunidade (missionários,
pioneiros e publicadores)47. Central nas atividades necessárias do grupo, a pregação
de porta em porta é a mais conhecida das Testemunhas de Jeová ao redor do
mundo. Com um território específico para cobrir, as Testemunhas de Jeová se
organizam conforme os territórios que estejam sob sua responsabilidade, saindo
para visitar todas as casas de famílias que ali residam. A pregação de porta em porta
consiste em bater à porta de uma casa ou ao interfone de um apartamento,
apresentando-se ao morador por meio de uma breve conversação.
Esta conversação inicial, muito simulada durante os treinamentos recebidos
nas Congregações, tem como base de apoio o livro já referido anteriormente,
“Raciocínios à base das Escrituras”. Este livro é um manual que orienta os membros
no exercício frente a diferentes situações encontradas em campo. Dá sugestões, por
exemplo, de diversos tipos de argumentos para iniciar uma conversa48, ou então de
47
Para uma classificação mais detalhada da tipologia de atuação missionária, vide capítulo 1.
como refutar argumentos de pessoas que lhes cortam a palavra49, e também mais de
70 tópicos sobre os mais diversos temas, polêmicos e cotidianos, contendo o
posicionamento das Testemunhas de Jeová50
O “campo” das Testemunhas de Jeová provê a eles experiências vivenciais
que a meu ver motivam o enriquecimento da elaboração das técnicas de
evangelização. Estas experiências, positivas e negativas (e aqui subentende-se aceitá-
los ou refutá-los), foram inúmeras vezes relatadas a mim, como parte da construção
do que considero um ethos missionário.
48
Para iniciar uma conversa, eles dão sugestões de diversos assuntos, como “amor/bondade”, “Bíblia”,
“emprego/moradia”, “eventos atuais”, etc. No tópico “amor/bondade”, por exemplo, sugerem assim:
“Notamos que muitas pessoas estão bastante preocupadas por causa da falta de verdadeiro amor no
mundo. Está também? ... Por que acha que é essa a tendência? ... Sabia que a Bíblia predisse essa
situação? (2 Tim. 3:1-4). Ela explica também a razão disso.” Outra sugestão é dada para o mesmo tópico:
“Eu me chamo ___. Moro nesta vizinhança. Estou fazendo apenas uma breve visita para falar com meus
vizinhos sobre algo que me preocupa muito, e tenho certeza que você também já o notou. A bondade
não custa muito, mas parece ser tão rara hoje em dia. Já se perguntou alguma vez por que é assim? ...
(Mt. 24:12; 1 Jo.4:8)”.
49
Também dividido em tópicos, o livro dá sugestões de argumentações para diferentes tipos de refutação.
Por exemplo, no tópico “não estou interessado (a)”, sugerem (uma entre várias) uma resposta: “Permita-
me perguntar-lhe se quer dizer que não está interessado (a) na Bíblia, ou é na religião em geral que não
está interessado (a)? Pergunto isso porque temos encontrado muitas pessoas que antes tinham uma
religião, mas não vão mais à igreja por verem tanta hipocrisia nas igrejas (ou: acham que a religião não é
outra coisa senão comércio que visa lucros; ou: não aprovam o envolvimento da religião na política, etc.).
A Bíblia tampouco aprova tais práticas, e ela fornece a única base em que podemos olhar para o futuro
com confiança”.
50
Com temas, por exemplo, sobre aborto, adoração de antepassados, aniversários natalícios, feriados,
purgatório, sofrimento, Trindade, volta de Cristo, reencarnação, etc.
em Filipenses 1:27-29)51. Neste contexto, a coragem é o ponto alto, é o valor
máximo ressaltado pelo grupo. O ato de testemunhar implica na valorização dessa
coragem, e incluso nesta coragem está o sofrer por Jeová, por amá-lo
profundamente.
Esta coragem é salientada pelo grupo em diferentes momentos. Uma
referência constantemente citada diz respeito à perseguição religiosa sofrida pelo
grupo durante o regime nazista na Alemanha. Este movimento de resistência teve
papel tão crucial na constituição da identidade vitimizada testemunha-de-jeová que a
Instituição elaborou uma fita de vídeo (As Testemunhas de Jeová resistem ao ataque
nazista, 1996) que objetivava a divulgação em forma de palestras e ciclos de debate
através da anunciação deste material em escolas e centros de cultura, servindo como
material de apoio para professores abordarem a temática em sala de aula. As
Testemunhas de Jeová presas nos campos de concentração eram, segundo elas,
diferentes dos outros prisioneiros. Primeiro, porque cada uma delas poderia ser
liberta do campo de concentração no instante em que assinasse uma declaração
renunciando à sua fé. Segundo, porque as Testemunhas de Jeová foram o único
grupo religioso a tomar uma postura firme e organizada contra o regime nazista e
terceiro, porque denunciaram as atrocidades cometidas pelo regime nazista, mesmo
quando estavam proscritas.
Pode-se dizer que, de certo modo, esta auto-atribuição vitimizada remete à
postura de resistência na medida em que esta resistência é, na verdade, uma
resistência ao mundo e a este “sistema de coisas”. Tornam-se vítimas porque
resistem aos ataques espirituais, físicos e culturais recebidos da sociedade. Além
desta postura de resistência, o estilo de auto-atribuição vitimizada recorre a
argumentos bíblicos para justificar possíveis sofrimentos:
51
Filipenses 1:27-29: “Somente comportai-vos da maneira digna das boas novas acerca do Cristo, afim
de que, quer eu vá e vos veja, quer esteja ausente, eu ouça (falar) das coisas que se referem a vós, de
que mantendes firmes em um só espírito, com uma só alma, esforçando-vos lado a lado pela fé das boas
novas, e que em nenhum sentido estais sendo menos amedrontados pelos vossos oponentes. Esta
mesma coisa é para eles prova de destruição, mas para vós, de salvação; e esta (indicação) é de Deus,
porque a vós foi dado o privilégio, a favor de Cristo, não somente de depositardes nele a vossa fé, mas
também de sofrerdes a favor dele”.
A Bíblia indica que, nos últimos dias, haveria ‘tempos críticos, difíceis de
manejar’ (2 Timóteo 3:1-5). O texto bíblico em grego usa uma expressão
que pode ser traduzida ‘ ferozes tempos designados’. Portanto, ninguém
deve esperar em nossos dias uma vida livre de dificuldades.” (A Sentinela,
13/9/1997).
Segundo o costume de Paulo, ele entrou, indo ter com eles, e (...)
raciocinou com eles à base das Escrituras, explicando e provando com
referências que era necessário que o Cristo sofresse e fosse levantado
dentre os mortos (Atos 17:2, 3).
O versículo bíblico acima citado consolida toda a perspectiva que envolve a
prática missionária das Testemunhas de Jeová. Um pequeno livro de consulta
utilizado por eles no trabalho de campo, “Raciocínios à base das Escrituras”,
oferece ao grupo os subsídios teóricos e práticos necessários (no campo da
argumentação e no uso da Bíblia) para o reforço de suas principais explanações. O
ato de raciocinar é o principal convite das Testemunhas de Jeová às pessoas que
estejam escutando suas argumentações. Não foram raras as vezes que, ao
compartilharem comigo suas experiências de conversão, relatavam-me que ao lerem
a Bíblia, passaram a raciocinar e a entender a Verdade. Logo, o raciocínio é o que
dá a eles o respaldo de se declararem detentores da Verdade.
Em sendo bem recebidos nas casas que visitaram e realizaram o trabalho de
proselitismo, as Testemunhas de Jeová passam a revisitar essas famílias, buscando já
neste momento introduzir alguns pontos doutrinários na conversação, sobretudo,
aqueles referentes à proximidade do estabelecimento da “nova ordem”. A ação de
revisitar as pessoas tem um significado importante no processo de evangelização das
Testemunhas de Jeová, pois é a partir das revisitas que o grupo passa a estabelecer
uma relação com o visitado, sugerindo que este realize uma subscrição das
publicações do grupo (Despertai!) e em seguida, que aceite o oferecimento de um
estudo bíblico gratuito, objetivo principal deste processo de pregação de porta em
porta. Estes estudos bíblicos são ministrados àqueles que demonstraram algum
interesse nas publicações e que já tenham sido revisitados. Em geral, são realizados
semanalmente na casa da pessoa interessada, sendo guiados por um manual
doutrinário que é lido com o apoio de citações bíblicas. O estudo bíblico é
componente chave para o entendimento do processo de conversão das
Testemunhas de Jeová.
Ao perguntar-lhes sobre o significado de converter-se, ou seja, de tornar-se
uma Testemunha de Jeová, me responderam de forma clara e sucinta que a
conversão é apenas um passo rumo a um objetivo mais amplo e final, que é o
batismo. O primeiro passo para torna-se uma Testemunha de Jeová é ter em mente
o conhecimento das verdades bíblicas. É raciocinando sobre as Escrituras que a
pessoa passa a ter clareza e conhecimento sobre as verdades bíblicas aprendidas.
Através deste raciocínio à luz da Bíblia, a pessoa adquire fé sobre essas verdades,
ou seja, passa a crer naquilo que tem lido, estudado e raciocinado (baseado, segundo
eles, em Romanos 10:17)52. Depois que adquire a fé, a pessoa deve se arrepender
dos pecados cometidos até então, estabelecendo padrões de mudança em sua vida
pessoal (modificando o que, segundo eles, desagrada a Jeová). O processo de
arrependimento é, segundo eles, processo vital à conversão. É somente depois de
arrepender-se dos erros cometidos que pode-se dizer que a pessoa é, de fato,
convertida. Convertida, a pessoa que deseja se batizar deve, obrigatoriamente,
realizar serviço de campo por no mínimo seis meses. Mas este não é o momento
último. Após este processo, torna-se necessário que a pessoa convertida faça uma
“oração de entrega” à Jeová. É uma maneira de formalizar publicamente sua escolha
de dedicação a Deus. Somente após esta oração de entrega é que a pessoa pode ser
batizada. Segundo o grupo, o batismo não contém em si nenhum ato místico. É um
ato solene de demonstração pública de sua dedicação. O batismo por imersão total,
como é o caso, demonstra simbolicamente que o indivíduo batizado morre para a
vida anterior e nasce para uma nova vida, para fazer a vontade de Deus. Somente
neste momento é que a pessoa torna-se, de fato, uma Testemunha de Jeová53. É
importante notar que este processo de tornar-se uma Testemunha de Jeová não
contém na sua prática nenhum elemento que remeta ao aspecto emocional ou
mesmo, segundo eles, místico. É uma ação racional, calculada e prevista na prática
do grupo. Isto é tão verdade no processo de conversão quanto no momento de
decisão de tornar-se um pioneiro. Tornar-se uma pessoa que dedica exclusividade
do seu tempo à obra missionária (ou não tornar-se) depende muito mais de aspectos
baseados nas circunstâncias do que na experiência mística. É muito mais uma
questão de escolha (querer dar mais de si para Jeová) e circunstância (não tornar-se
um pioneiro, por exemplo, porque é pai de família) do que uma experiência fruto de
um chamado de Deus ou algo semelhante. A racionalidade é aspecto predominante
em todos os campos de atuação das Testemunhas de Jeová, inclusive no processo
de conversão.
52
Romanos 10:17: “De modo que a fé segue à coisa ouvida. Por sua vez, a coisa ouvida vem por
intermédio da palavra acerca de Cristo”.
53
É importante notar que, na cerimônia pública do batismo, são realizadas duas perguntas às pessoas
ANTES de serem batizadas: 1)À base do sacrifício de Cristo, arrependeu-se de seus pecados e dedicou-
se a Jeová Deus para fazer a sua vontade?; 2) Compreende que sua dedicação e seu batismo o
identificam como Testemunha de Jeová? Respostas afirmativas indicam que estas pessoas estão
preparadas para o batismo.
Outro aspecto que remete à racionalidade testemunha-de-jeová diz respeito à
restrição de festas seculares, como por exemplo o natal. Conforme relatam, o
nascimento de Jesus foi fixado arbitrariamente em 25 de dezembro para coincidir
com uma festividade romana, também pagã. Para construir esta argumentação,
baseiam-se em diversos materiais de consulta, retomando aspectos históricos, para
dizer: “Os primeiros cristãos não comemoravam o Natal, nem o comemoram hoje
as Testemunhas de Jeová, nem participam elas em atividades relacionadas com o
Natal” (As Testemunhas de Jeová e a Educação, p. 18). Logo, o grupo adota a
mesma posição com relação a outros feriados religiosos, que em diversos países
ocorrem durante o ano letivo. “Mas as informações providas (...) dão indicações
quanto a que observar no que diz respeito a qualquer feriado, e os princípios
bíblicos já considerados fornecem ampla orientação àqueles cujo desejo é fazer
primariamente o que agrada a Jeová Deus” (Raciocínios, p. 174).
De forma a unir todos os elementos abordados frutos da prática do
treinamento recebido na Congregação, arrisco dizer que o “trabalho de campo”
realizado pelo grupo atua no sentido de desenvolver dois movimentos: atração e
doutrinação. O movimento de atração diz respeito à busca de possíveis novos
membros. O movimento de deslocamento geográfico e espacial atrai pessoas para
dentro do grupo. Este movimento de atração é que os move à prática do bater de
porta em porta, ao testemunho informal, à distribuição das revistas, enfim. Podemos
dizer que o movimento de atração objetiva a prática da captura de novos membros.
O movimento de doutrinação, por sua vez, é o que organiza os resultados obtidos
da prática de atração, ou seja, é o que elabora de forma organizada, racional e
homogeneizadora a vida e a experiência dos novos membros rumo ao processo de
conversão significando, em última análise, o tornar-se de fato uma Testemunha de
Jeová.
4. Missão testemunha-de-jeová
Desta forma, acreditam que muitas compreensões errôneas foram causadas por
erros de tradução de alguns termos específicos. Por isso, crêem que os justos vão
para a vida, e os ímpios para o decepamento, ou seja, serão cortados da vida para a
morte.
Estabeleci esta discussão e diferenciação da perspectiva cristã missionária
sugerida por Bosch em comparação à perspectiva das Testemunhas de Jeová para
delimitar um aspecto importante deste debate. Estou considerando as missões
cristãs propostas por Bosch como “tipos ideais” que servem como modelos de
análise na reflexão proposta. Passo a utilizar, então, alguns elementos conceituais da
missão cristã sugerida por Bosch na análise da prática do grupo proposto por
considerar que estes elementos se aplicam em muitos aspectos à prática missionária
das Testemunhas de Jeová, na medida em que são identificadas características
indicadas como sendo da missão cristã tradicional. Por outro lado, também
considero o fator da auto-identificação do grupo, ao referirem-se como
“detentores” do cristianismo verdadeiro da Bíblia, em oposição ao termo
“cristandade”, referido ao cristianismo professo.
Como nossa atenção está voltada ao aspecto missionário das Testemunhas de
Jeová, as concepções sugeridas por Bosch abrem caminhos importantes para a
reflexão proposta. O primeiro aspecto diz respeito ao valor intrinsecamente
missionário da fé cristã. A prática missionária das Testemunhas de Jeová tem uma
característica persuasiva muito forte, na medida em que consideram como sendo
unicamente válidos os valores e doutrinas estabelecidas e seguidas por eles. Dizer
que a fé cristã é intrinsecamente missionária significa reconhecer o caráter
proselitista da prática do grupo. Este proselitismo torna-se persuasivo na prática do
testemunho formal (batendo de porta em porta e convencendo as pessoas com base
em excelente capacidade argumentativa) e do testemunho informal, quando
conversam com outras pessoas de forma descontraída e inesperada sobre sua fé e
crenças. Outro aspecto a ser considerado é que a missão testemunha-de-jeová
propõe um relacionamento do indivíduo que está sendo evangelizado com o divino,
com Jeová Deus. A proposta missionária do grupo sugere um estilo de vida que
modifique práticas ilícitas anteriores, incluindo nesta modificação um processo de
contato direto e dinâmico entre Deus e o indivíduo. Outro ponto importante diz
respeito à caracterização da Igreja Cristã como existência missionária. Bosch sugere
que isto se dá não através da proclamação universal do evangelho, mas através da
universalidade do evangelho que a igreja proclama. No caso das Testemunhas de
Jeová, a caracterização missionária se dá não somente através da universalidade do
evangelho que prega, mas muito mais através da universalidade de um modo de vida
muito específico, de um padrão de conduta que rege suas ações, homogeneizando o
grupo. No processo missionário testemunha-de-jeová, o entendimento da
construção de estruturas de plausibilidade (enquanto mantenedora de coerência e
significados da realidade proselitista) é que vai oferecer elementos clarificadores da
prática missionária do grupo.
Quando me refiro à missão testemunha-de-jeová, penso que há o
estabelecimento do limite de sua prática missionária à prática proselitista, ou seja, a
busca incessante de uma conversão não somente a Jeová Deus, mas a um modo de
vida específico, que inclui regras determinadas, valores compartilhados, condutas e
visões de mundo que elaboram a identidade testemunha-de-jeová. Uma prática
proselitista que não inclui outros espaços nem outras vivências que não sejam
determinadas pelo grupo.
Se estou partindo do princípio de que a prática missionária testemunha-de-
jeová é realizada através de uma densa atuação proselitista, e considerando que este
proselitismo requer a prática continuada de um treinamento que reivindica para si
tempo e dedicação, pode-se dizer, então, que este treinamento atua como um
dispositivo disciplinador na dinâmica testemunha-de-jeová
O treinamento, enquanto englobador de diversos dispositivos disciplinares, é
que oferece à Instituição a constituição de uma estrutura de plausibilidade para as
Testemunhas de Jeová. Diversos elementos passam a ser utilizados na elaboração
desta estrutura de plausibilidade. A noção de tempo por eles elaborada é uma
categoria central para o grupo, na medida em que organiza uma série de práticas e
eventos. A espera pela chegada do milênio e o estabelecimento do Reino de Jeová
na Terra, a contagem de horas investidas na prática proselitista, o tempo
cronometrado durante as reuniões e uma atenção cuidadosa em otimizar as
atividades cotidianas no intuito de gastar o tempo com coisas do Reino (e não com
as coisas deste “mundo”) mostra o tempo como uma verdadeira tecnologia
disciplinar, na medida em que ordena e nomeia toda a prática do grupo. Logo,
sugiro que o tempo é uma estrutura de plausibilidade e que, enquanto tecnologia
disciplinar, coordena a ação do grupo a uma homogeneização que submete toda
ação individual à ordenação da Instituição.
Esta homogeneização, identificada também na escrita e na iconografia elaborada
pelo grupo produz, conforme mostrei anteriormente, sugere uma padronização do
imaginário coletivo. São as imagens e os textos que passam, então, a estabelecer
como critério o que deve ser pensado, o que deve ser lido, o que deve ser
experenciado e sentido por um indivíduo Testemunha de Jeová e o que deve ser
dito para si e para os outros. São as imagens que sugerem um “estilo de ser”
Testemunha de Jeová e são os textos que tem por função padronizar o discurso e o
pensamento do grupo, principalmente se considerarmos que uma publicação da
revista A Sentinela ou Despertai! é impressa e divulgada no mundo inteiro na mesma
semana e contendo os mesmos artigos e imagens. Este é um dos fatores de
construção, ao meu ver, da homogeneização do estilo testemunha-de-jeová de ser.
Sugiro, então, que a escritura e a iconografia testemunha-de-jeová também
constróem a estrutura de plausibilidade em que se prestam a um reforço constante
da Verdade, dos valores e do estilo aceito e acatado pelo grupo.
Vale notar que o que está em jogo nesta estrutura de plausibilidade não é somente o
reforço contínuo do estabelecimento de uma homogeneização do grupo, mas uma
prática “terapêutica”, conforme sugere Berger (1997), ou seja, o que está em jogo
são também práticas organizadas pela Instituição destinadas a silenciar dúvidas e à
prevenção de lapsos de convicção. É a Instituição Sociedade Torre de Vigia de
Bíblias e Tratados que pretende para si o domínio da elaboração da estrutura de
plausibilidade testemunha-de-jeová.
Acredito, então, que é válido, tendo em vista o quadro apresentado, elaborar
um conceito de missão das Testemunhas de Jeová. O que, afinal, é missão para as
Testemunhas de Jeová, para além de sua própria definição? Uma resposta adequada
a esta pergunta exige um conceito provisório. Tão provisório quanto o conceito de
Bosch, na medida em que ainda há diversos elementos a serem explorados devido à
ambigüidade do termo e da prática, que esta pesquisa de mestrado não tem
pretensão de dar conta.
A missão testemunha-de-jeová é uma prática sistematizada pela Sociedade
Torre de Vigia de Bíblias e Tratados que visa a condução das atividades de seus
membros à uma disciplinarização de suas ações. Esta disciplinarização tem como
fim último a diligência de seus membros à prática proselitista. Mas não somente. É
esta disciplinarização que dá à Instituição a legitimidade do domínio de espaços,
formas, narrativas e identidades individuais. Estas identidades individuais passam
então a assumir a identidade da Organização que, para manter o controle sobre esta
disciplinarização, elabora estruturas de plausibilidade que visam reforçar a visão de
mundo por ela determinada. É a partir dos elementos pertencentes a esta estrutura
de plausibilidade que as Testemunhas de Jeová reforçam sua identidade enquanto
grupo e se mostram ao “mundo” como detentores de uma Verdade absoluta que
deve, necessariamente, ser divulgada.
Esta provisória definição da missão testemunha-de-jeová nos faz refletir
sobre o parecer do grupo a respeito do uso da Internet. Diversos artigos foram
elaborados para fins de divulgação a respeito do uso da Internet. São reflexões que
estimulam um olhar crítico a respeito do uso deste ambiente virtual, e atentam para
os diversos perigos gerados por este uso. Baseada na definição de missão sugerida
anteriormente, acredito que seja relevante pensar a prática do uso da Internet
(melhor dizendo, o seu “quase-uso”) e entender como, aplicada ao conceito de
missão testemunha-de-jeová, se aplica ao conceito elaborado.
Uma âncora argumentativa utilizada pela Instituição remete à racionalidade
no que refere-se ao uso do tempo e do dinheiro: “Calculou o custo do equipamento
e dos programas versus sua real necessidade? (vide Lucas 14:28)”; ou então: “Quanto
tempo levará para instalar e aprender a usar os instrumentos para navegar na
Internet?” (Despertai, 22/07/97). Vejamos parte de um outro artigo que elucida esta
argumentação:
Neste século 20, a vida tem-se tornado cada vez mais complicada. Muitas
invenções que beneficiaram a alguns acabaram se transformando em
desperdiçadoras de tempo para muitos. Além disso, programas de TV
imorais e violentos, livros pornográficos, música degradante, e assim por
diante, são exemplos de tecnologias mal-utilizadas. Além de consumirem
tempo precioso, prejudicam espiritualmente as pessoas. Naturalmente, a
prioridade máxima do cristão são os assuntos espirituais, tais como ler a
Bíblia todos os dias e assimilar bem as inestimáveis verdades bíblicas
explicadas nas revistas A Sentinela e Despertai! e em outras publicações da
Sociedade Torre de Vigia. Benefícios eternos resultarão, não de surfar na
Internet, mas de usar seu tempo para assimilar conhecimento do único
Deus verdadeiro e de seu Filho, Jesus Cristo, e aplicá-lo zelosamente. –
João 17:3; veja também Efésios 5:15-17. (Ibid., p.13).
Desta forma, cria-se um novo espaço, ainda que virtual, e é sobre este espaço
que surge uma nova busca da prática de domínio. Diante de um mundo virtual nada
ordenado, a única possibilidade de estabelecer ascendência é reivindicar para si o
domínio das informações divulgadas.
É interessante notar que a Sociedade Torre de Vigia percebe-se não somente
como detentora de domínios e estruturas de plausibilidade, mas também de
identidades. As Testemunhas de Jeová desenvolvem em seu discurso uma
argumentação que revela relativo temor frente à Internet. Uma dessas
argumentações diz respeito à questão da identidade, considerando o fato de que há
grande preocupação em relacionar-se com uma falsa Testemunha de Jeová. Como
reforço desta argumentação, alertam quanto ao uso das salas de bate papo e dos
grupos de discussão:
FREUND, Julien. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro - São Paulo: Editora
Forense, 1970.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1989.