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PROCLAMADORES DO REINO DE DEUS Suzana R C Bornholdt PDF

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Universidade Federal de Santa Catarina

Centro de Filosofia e Ciências Humanas


Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

“Proclamadores do Reino de Deus”:


Missão e as Testemunhas de Jeová

Suzana Ramos Coutinho Bornholdt

Florianópolis, Abril de 2004.


Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

“Proclamadores do Reino de Deus”:


Missão e as Testemunhas de Jeová

Dissertação apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal de
Santa Catarina como requisito parcial
à obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.

Suzana Ramos Coutinho Bornholdt

Orientadora: Profa. Dra. Maria Amélia Schmidt Dickie

Florianópolis, Abril de 2004.


Ao Luciano, com carinho.

Também aos missionários – de todas as denominações


religiosas -, que um dia me ensinaram sobre o desprendimento.
Agradecimentos

Graças a Deus, não fiz este trabalho sozinha. Diversas pessoas me acompanharam nesta
rica caminhada.

Alguns professores e funcionários do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social


da UFSC auxiliaram meu trabalho.
Maria Amélia Schmidt Dickie, minha orientadora de longa data, contribuiu muito para a
elaboração desta pesquisa. Acolheu minhas angústias, me incentivou a seguir em meio às
dificuldades, orientou meu trabalho e se alegrou com minhas vitórias e superações. Tenho
dívidas de gratidão com ela não somente por isso, mas pelas intermináveis “cartas de
recomendação”, pelas portas que abriu e pelos horizontes d’além mar que me ensinou e me
estimulou a ver.
Sônia W. Maluf e Theophilos Rifiotis, professores do PPGAS/UFSC, enriqueceram meu
trabalho com seus comentários e contribuições na avaliação do projeto desta pesquisa.
Agradeço ao Alberto Groisman, também professor do PPGAS/UFSC, que tem acompanhado
minha pesquisa desde o período da graduação. Pelos ricos comentários e leituras cuidadosas
que fez de alguns trabalhos que escrevi e que muito me ajudaram a refletir sobre esta
temática de pesquisa. E também pelas intermináveis “cartas de recomendação”.
Karla F. knierim, Maria de Fátima P. Bastos e Carlos Fante, funcionários do Departamento
de Antropologia da UFSC, agradeço pela solicitude no atendimento.

Na esfera pessoal, tenho dívidas de gratidão com minha família (Coutinho) e de meu esposo
(Bornholdt). Meus pais, Neusa e Orlando, me incentivaram desde o início, ainda no período
da seleção para o ingresso no mestrado. Me apoiaram com sabedoria, pizza, churrasco,
Internet a cabo e papos animados, quando o cansaço era inevitável. Meus sogros, Neuza e
Valdemar, à distância, acompanharam diferentes momentos dessa caminhada, torcendo e
me confortando mesmo “via Embratel”. Minhas irmãs e cunhados, perto e longe, me alegram
sempre com sua amizade e torcida. Meus pequenos sobrinhos também - Davi, Luis Felipe e o
futuro João - me trazem esperança... mesmo sem saber. Tio Elias, desde sempre, me
incentivou a estudar. Nem que fosse para um dia conhecer aquela “Londres” imaginária que
permeava seus pensamentos e minha fértil imaginação ainda quando criança.
Um agradecimento especial ao meu “guapo” Luciano Campelo Bornholdt, esposo amoroso e
dedicado que revelou ser um homem de “muitas faces”. Como antropólogo, enriqueceu minha
pesquisa com suas leituras cuidadosas, com seu diálogo inteligente e com seu senso crítico.
Como meu grande amigo, caminhou de mãos dadas ao meu lado, acolheu alegrias e angústias,
sentindo todas elas comigo e por mim. Como homem, me convidou à vida: juntos, temos
criado raízes firmes e horizontes largos, rumo à grande aventura das nossas vidas...

Agradeço a todos os membros do Salão do Reino das Testemunhas de Jeová da Lagoa da


Conceição, que abriram as portas da congregação e me ofereceram uma ajuda acolhedora.
Paulo e Rafaela Romero gastaram algumas horas do seu escasso tempo às minhas inúmeras
perguntas. Sua alegria e disposição em ajudar me fizeram sentir muito bem no meio deles.
Do mesmo modo, Antônio Fernando Pereira, presidente da comunidade já no final desta
pesquisa, disponibilizou parte do seu tempo para uma conversa muito esclarecedora e
agradável. Mas sem Albertina Volkmann e família, este trabalho estaria comprometido.
Albertina me levou a conhecer de forma mais cuidadosa as Testemunhas de Jeová. Sempre
muito paciente e atenciosa, proporcionou-me papos muito animados, algumas caronas, horas
de conversas mesmo durante seu trabalho secular e colocou-se inteiramente à minha
disposição. Albertina me levou às reuniões e muito me ensinou, de forma apaixonante, sobre
o grupo estudado.

Agradeço a CAPES, que nos últimos seis meses do meu curso de mestrado concedeu uma
bolsa para que eu pudesse concluir este trabalho. Antes disso, parte de meu sustento veio
duas instituições diferentes:
O IBE (Instituto Batista de Educação) foi um lugar que trabalhei durante o mestrado.
Além do dinheiro, o IBE proporcionou diversos ganhos... a descoberta e a rica experiência
da prática docente. Agradeço em especial a Esther Liebster e Pr. Roberto, que acreditaram
no meu trabalho e muito me incentivaram. Agradeço também aos alunos, que alegraram
minhas noites de segunda-feira com suas histórias e sua sede de conhecimento. Com
humildade, me ensinaram muitas coisas- da vida e da Teologia.
O CEFET/SJ (Centro Federal Tecnológico de São José- SC) foi outra instituição que me
acolheu durante a falta da bolsa. Lá descobri um universo diferente: a prática docente para
o ensino médio! Alguns colegas me apoiaram nesta descoberta: Romoaldo Siggelkow, Antônio
Galdino da Costa e Neusa Ramos Coutinho. Meus alunos, adolescentes ávidos por um
conhecimento muito específico, típico da idade, me estimularam a desenvolver técnicas de
“atração” para as aulas de sociologia. Acho que gostaram... e eu também.

Duas colegas acompanharam e participaram de etapas diferentes deste trabalho: Fátima


Weiss de Jesus e Ângela Della Flora. Ambas foram interlocutoras instigantes e grandes
incentivadoras.

Como disse no início, Graças a Deus não fiz este trabalho sozinha. Deus me deu paz de
espírito e amor por este trabalho. Minha força e equilíbrio vem dEle. Minha família e meus
amigos também são presentes dEle...

E que venha o doutorado!

Florianópolis, abril de 2004.


Resumo

A prática missionária das Testemunhas de Jeová é resultado de uma série de ações


que a encaminham ao proselitismo. O principal modo de comunicação para o seu
contato com o mundo, dado através do diálogo pessoal e da distribuição de suas
publicações escritas, destaca o fato de não utilizarem a Internet enquanto espaço
proselitista, em contraste com diversos outros grupos religiosos. A ação de
divulgação da mensagem é energizada pela crença na iminência da vinda do Reino
de Jeová. O “fim dos tempos”, indicado por uma série de catástrofes de ordem
natural e social, gera no grupo um sentimento de urgência na pregação da palavra
divina. Com a pregação da mensagem de Jeová identificamos o papel sistematizador
da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, que através de um treinamento
conduz as atividades de seus membros a uma disciplinarização de suas ações. Esta
disciplinarização tem como fim último a diligência de seus membros ao
proselitismo.
Sumário

INTRODUÇÃO........................................................................................................................ 09
CAPÍTULO 1 – CONHECENDO O CAMPO E O OBJETO.................................. 17
1. As Testemunhas de Jeová e a Missão.................................................................................. 17
1.1. A Comunicação das Testemunhas de Jeová................................................. 20
1.2. As Testemunhas de Jeová: Proclamadores do Reino de Deus.................. 22
2. Missão e Meios de Comunicação.......................................................................................... 24
2.1. Comunicações.................................................................................................... 24
2.2. Comunicação e Religião................................................................................... 27
2.3. O Cenário Atual................................................................................................ 28
2.4. A Internet........................................................................................................... 31
2.5. Internet às Avessas........................................................................................... 34
2.6. Missões e o uso da Internet............................................................................. 36
2.7. Contatos Iniciais................................................................................................ 38

CAPÍTULO 2 – MILENARISMO E AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ.............. 43


1. O Dia de Jeová........................................................................................................................ 44
1.1. Volta, Presença e a Grande Multidão............................................................ 44
1.2. Indícios e Urgência........................................................................................... 49
2. Pensando o Milenarismo........................................................................................................ 52
2.2. O Tempo das Testemunhas de Jeová............................................................ 58
3. A Refeição Noturna do Senhor............................................................................................ 62
3.1. O Evento............................................................................................................ 64
3.2. A Expectativa da Volta.................................................................................... 71
3.3. A Expectativa Frustrada................................................................................... 72
CAPÍTULO 3 – O INDIVÍDUO TESTEMUNHA-DE-JEOVÁ............................. 76
1. A Instituição e o Indivíduo.................................................................................................... 82
CAPÍTULO 4 – MISSÃO E AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ............................... 91
1. Pensando a Missão.................................................................................................................. 91
2. A Missão e o Treinamento.................................................................................................... 97
3. Dispositivos Disciplinares..................................................................................................... 100
3.1. A Dinâmica do Microfone............................................................................... 100
3.2. Os Estudantes da Bíblia................................................................................... 108
3.3. Iconografia testemunha-de-jeová................................................................... 112
3.4. “Saídas a Campo”............................................................................................. 115
3.5. Auto-atribuição Vitimizada............................................................................. 119
3.6. Razão e Raciocínio............................................................................................ 121
4. Missão testemunha-de-jeová................................................................................................. 125
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 137
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................... 142
Introdução
Introdução

As Testemunhas de Jeová são um grupo religioso que, em um contexto de


acelerado avanço tecnológico e comunicacional, permanecem quase “invisíveis” no
que diz respeito ao espaço midiático. Não possuem atualmente programas em rádios
nem em televisão, não se associam com outros grupos religiosos (tornando a prática
ecumênica inviável), e apenas em raros momentos são vistos dando entrevistas ou
utilizando algum meio de comunicação para expor sua fé. Por outro lado, utilizam
massivamente o meio escrito, com suas publicações A Sentinela e Despertai!, com
tiragem quinzenal de 22 milhões de revistas, e são facilmente reconhecidos quando
batem às nossas portas, ainda que identificados no senso comum como
participantes de uma “seita”, para nos trazer uma mensagem. Mas afinal, que grupo
é este que apesar de não estar na mídia, cresce em média cerca de 7% ao ano? Que
grupo é este que conta atualmente no Brasil com mais de 600.000 adeptos e ainda
assim investe mais de 107 milhões de horas por ano no trabalho proselitista?
A especificidade desta pesquisa está calcada na busca de entendimento da
prática missionária das Testemunhas de Jeová, considerando que o processo
comunicativo do grupo é elaborado sob padrões diferenciados daqueles da
comunicação no mundo atual. Enquanto diversas pesquisas vêm revelando que
diferentes grupos religiosos têm utilizado progressivamente diversos meios de
comunicação para o proselitismo (e aqui subentende-se a utilização do rádio e da
televisão, mas principalmente da Internet), as Testemunhas de Jeová por sua vez
rejeitam o uso desses meios, concentrando seus esforços no testemunho formal
através de conversas pessoais.
O interesse sobre esta temática é resultado de um trabalho já iniciado em
2000, quando elaborei meu trabalho de conclusão de curso para a obtenção do grau
de bacharel em Ciências Sociais. Tal pesquisa versou sobre um canal de bate papo
evangélico na Internet, as possíveis disputas e conflitos que giravam em torno do
poder e a forma como reproduziam determinados espaços eclesiásticos na Internet.
Apesar do recorte metodológico de tal pesquisa estar voltado às relações de poder
ali estabelecidas, percebi um forte movimento do grupo no sentido de encaminhar
suas ações não somente visando a sociabilidade mas também, em grande medida, ao
proselitismo. Esta maneira de utilização da Internet enquanto espaço viável para um
claro projeto de “expansão do Reino de Deus” me estimulou a, já no mestrado,
pesquisar como as religiões estavam elaborando seu proselitismo na Internet.
O projeto inicial que deu origem a este trabalho propunha um estudo
comparativo sobre a utilização da Internet enquanto espaço missionário por dois
grupos: a Igreja Presbiteriana do Brasil e as Testemunhas de Jeová. Meu principal
argumento considerava que o fundador das Testemunhas de Jeová, Charles T.
Russel, era de origem presbiteriana. Acreditava que, tendo em comum um mesmo
corpo inicial de doutrinas, seria possível comparar as maneiras em que ambos os
grupos elaboravam seus discursos para a utilização da Internet enquanto espaço
missionário. Acatei, porém, as sugestões da banca que, ao avaliar este projeto,
apontou que minha proposta de trabalho se esvaziava na medida em que meu
argumento não era suficientemente sólido para estabelecer um estudo comparativo
entre ambos os grupos. Além disso, o tempo era escasso e o projeto, muito amplo.
Como meu interesse estava voltado à prática missionária, acabei optando por
pesquisar as Testemunhas de Jeová. Este grupo, muito mais que os presbiterianos,
são identificados por uma prática proselitista clara e muito conhecida. São
publicamente notados por seu trabalho constante de visitação de casa em casa, por
suas revistas e por suas doutrinas, por vezes, polêmicas.
Dei início, confiante, ao meu projeto. Cria que, assim como outros grupos
religiosos, as Testemunhas de Jeová estariam na Internet, socializando, informando
e, acima de tudo, pregando. Porém, ao dar início ao meu trabalho de campo na
Internet, surpreendi-me com o que vi. Deparei-me com inúmeras matérias e artigos
(produzidos por diferentes grupos religiosos e outros grupos sociais) que tratavam a
respeito das Testemunhas de Jeová criticamente. Se não pelo aspecto religioso (suas
doutrinas, contradições, etc.), pelo aspecto social (a polêmica proibição da
transfusão de sangue, etc.). As Testemunhas de Jeová, por sua vez, atuavam de
forma discreta e inexpressiva neste meio virtual, disponibilizando na rede apenas
uma página oficial com elementos informativos a respeito do grupo, como revistas,
brochuras, alguns dados sobre as Testemunhas de Jeová ao redor do mundo, etc.
O que, num primeiro momento causou angústias – afinal, se as Testemunhas
de Jeová não estavam na Internet como eu imaginara, pregando, o que então eu iria
pesquisar? – acabou por ser o principal objetivo deste trabalho. A não utilização da
Internet como espaço de proselitismo, passou a me revelar muitos aspectos do
projeto missionário do grupo em questão. Como esta era a realidade que tinha
diante de mim – o que chamarei adiante de um “quase-uso” da Internet -, iniciei
meu trabalho de campo em março de 2003 junto à congregação das Testemunhas de
Jeová na Lagoa da Conceição em Florianópolis, Santa Catarina.
A Congregação da Lagoa (como se auto-denominam) está situada na Lagoa
da Conceição, bairro que tem atraído já há muitos anos moradores de outros
estados brasileiros e com uma agitada vida noturna, incluindo bares, boates,
lanchonetes e restaurantes dedicados especialmente ao público jovem. Uma
característica particular deste bairro está fundamentada na coexistência de
moradores tradicionais (famílias de pescadores descendentes de açorianos, que
atualmente são minoria) e grupos que tem um estilo de vida dito “alternativo”,
formando um conjunto muito diversificado (incluindo centros de Nova Era, grupos
de artesãos e artistas, profissionais liberais, etc.). No verão, especialmente, o número
de pessoas que circulam pela região aumenta consideravelmente, comprometendo a
facilidade de circulação de carros e pessoas. A Congregação ajusta-se a este agito
alterando, nos meses de dezembro a fevereiro, os encontros realizados nos sábados
à noite para os domingos de manhã. Vale considerar que a Lagoa da Conceição é
espaço desafiador para as Testemunhas de Jeová considerando o estilo de vida
predominante no lugar, destacando ainda mais as diferenças entre estes dois
“mundos”. As diferenças do grupo com a comunidade local não são apenas
geográficas, explicitadas a seguir, mas pode-se dizer que são também culturais.
Estabelecer uma nova Congregação neste bairro específico revela uma postura de
enfrentamento com realidades muito distintas e a busca pela ampliação e relativo
domínio de diferentes espaços.
As atividades são realizadas no Salão do Reino, como chamam, situado em
uma rua residencial próxima à Avenida das Rendeiras, avenida que costeia toda a
Lagoa e que é via de acesso e circulação necessária de carros, comércio e pessoas. O
Salão fica no primeiro nível de uma casa de dois andares. No andar de cima moram
algumas famílias, entre elas a proprietária que aluga o imóvel, também Testemunha
de Jeová. O ambiente é relativamente pequeno (comparado a outros Salões do
Reino em Florianópolis), tendo capacidade para abrigar durante suas reuniões cerca
de 80 pessoas.
Assim como todas as Congregações espalhadas pelo mundo, a Congregação
da Lagoa tem sob sua responsabilidade um “distrito” ou “território”. A cidade de
Florianópolis está divida em distritos, ou seja, territórios espaciais divididos
geograficamente que estão sob responsabilidade da Congregação mais próxima. Isto
significa dizer que a Congregação da Lagoa tem sob sua responsabilidade um
território específico na região da Lagoa da Conceição, e cabe a ela “cobri-la”, ou
seja, visitar todas as casas que estão neste território para realizar seu trabalho de
proselitismo. A esta função eles atribuem o nome de serviço ou “trabalho de
campo”. A expressão todas as casas registrada em negrito na frase anterior tem um
significado importante no caso da Congregação da Lagoa. Além da diversidade de
territórios culturais de que falei acima, a região que compõe o distrito de
responsabilidade da Congregação da Lagoa é cercada por morros, e diversas casas
que estão espalhadas pela região estão situadas em locais de difícil acesso. Em
muitos casos, o único meio de aproximação se dá apenas com barcos ou através de
longas trilhas ecológicas mato e morro adentro. Este quadro não é impeditivo para o
trabalho de visitação realizado pelo grupo.
Durante os três meses em que acompanhei as atividades do grupo (de março
a junho), tive ricas oportunidades de conversar, escutar, dialogar e conhecer parte do
universo religioso das Testemunhas de Jeová, expresso em muitos aspectos através
do trabalho proselitista, vivenciado por mim muito proximamente. Logo no início
da pesquisa, fui por eles indagada a respeito das questões que permeavam este
trabalho. Ao explicar-lhes, consideraram positivo que outras pessoas estivessem
“divulgando” o trabalho das Testemunhas de Jeová em diferentes meios aos quais
eles não tem acesso. Em diferentes diálogos pessoas convidaram-me a estudar a
Bíblia com eles. Em outros momentos, argumentavam que “muitas situações nos
levam a Jeová”, como por exemplo um problema de saúde, uma dificuldade, uma
tristeza – e às vezes, uma pesquisa de mestrado.
Mas o fato é que com esta pesquisa aprendi e cresci. O aprendizado veio da
necessidade de administrar e ter que lidar com tantas informações. A disponibilidade
do grupo que me acolheu tomou forma através de ricos diálogos pessoais, folhetos,
revistas, livros, fitas de vídeo, CD-ROM, entre outros, que necessariamente precisou
ser sintetizado para que este trabalho tomasse forma. O crescimento veio,
ironicamente, da diferença e da semelhança, ao mesmo tempo. Cresci por escolher
conviver com o “diferente” de mim. Essa diferença não seria tão gritante se não
fosse o fato de, durante as reuniões, as pessoas sentadas próximas a mim notarem,
surpresas, minha habilidade no manuseio da Bíblia. E então veio uma inevitável (e
para mim, temida) pergunta: “De que religião você é?”. Minha “ética protestante” e
antropológica não me permitiram mentir. O som tímido “Da Igreja Presbiteriana....”
saiu da minha boca em tom confesso e impactou minha experiência muito mais do
que eu havia imaginado. Eu estava vivendo, de fato, a diferença. E com ela, aprendi
o verdadeiro significado “antropológico” do respeito. Mas o crescimento veio
também da semelhança. O cenário, o contexto das reuniões e as expressões soavam
muito familiares para mim. Mas cresci porque aprendi a ressignificar, para aquele
contexto específico, novos nomes, novas regras, novos significados. E foi através
desta rica experiência de campo que pude captar elementos que revelam, em muitos
aspectos, a prática missionária testemunha-de-jeová. Para tanto, escolhi três
elementos: a temática das novas tecnologias e o seu “quase-uso”, a perspectiva
milenarista e o papel do indivíduo dentro da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e
Tratados. Vale ressaltar que ao longo deste trabalho, referi-me diversas vezes à
Sociedade como Instituição ou Organização e também como Sociedade1.
O primeiro capítulo dediquei à apresentação das Testemunhas de Jeová,
fornecendo ao leitor uma série de informações de maneira a contextualizá-lo e a
familiarizá-lo na história e na estrutura do grupo estudado. Busquei também
clarificar alguns aspectos acerca da utilização dos meios de comunicação por alguns

1
Já no final desta pesquisa fui informada que por questões jurídicas, o nome Sociedade Torre de Vigia de
Bíblias e Tratados passou a se chamar de Associação Torre de Vigia. Como recebi esta informação dias
antes da entrega deste trabalho, registro aqui apenas a título de informação atualizada.
grupos religiosos que visam o proselitismo, assim como tratar de questões
conceituais acerca da comunicação. Abordar esta temática trouxe luz ao aspecto do
trabalho proselitista, na medida em que desperta a atenção para as maneiras como as
Testemunhas de Jeová se comunicam com o mundo.
No segundo capítulo tratei da perspectiva milenarista. Busquei, através de
dados etnográficos e de uma breve revisão bibliográfica, chamar a atenção do leitor
à temática da vinda do Reino de Jeová. A iminência da instauração do seu Reino é o
que acaba por gerar no grupo um sentimento de urgência na pregação da palavra
divina, reconfigurando a consciência e a percepção do tempo. É esta expectativa que
gera no grupo uma forte necessidade de reafirmar seus valores e suas crenças, na
medida em que crêem estar vivendo nos “últimos dias”.
Já no terceiro capítulo, tratei do papel do indivíduo com relação à Instituição,
e a forma como esta acaba por se tornar centralizadora e detentora dos discursos e
narrativas, bem como das experiências e vivências individuais. A Internet, neste
cenário, torna-se elemento didático explicativo, na medida em que revela como a
Instituição concentra e reivindica para si diferentes domínios e espaços.
O quarto capítulo tem como objetivo resgatar os três elementos tratados nos
três capítulos anteriores para mostrar que, na totalidade destes aspectos, a missão
testemunha-de-jeová configura-se de uma forma particular e diferenciada da missão
cristã tradicional. Vale ressaltar, entretanto, que os três elementos abordados (novas
tecnologias, milenarismo e individualismo) são diferentes e não são igualmente
considerados em termos metodológicos. A temática das novas tecnologias, por
exemplo, serviu como um recurso metodológico de acesso ao estilo de missão
testemunha-de-jeová. Já a temática do milenarismo teve um papel diferente,
servindo para compreender a configuração da cosmovisão do grupo e o sentimento
de urgência que os impulsiona à prática proselitista. A noção de indivíduo, por sua
vez, serviu para vislumbrar as relações das Testemunhas de Jeová como indivíduos
dentro de uma Instituição detentora e criadora de valores e regras de conduta.
Detentora e criadora, também, de um estilo missionário testemunha-de-jeová.
Capítulo 1
Conhecendo o Campo e o Objeto

1. As Testemunhas de Jeová e a Missão

As Testemunhas de Jeová - sociedade religiosa de caráter milenarista que


mais agrega adeptos no mundo contemporâneo - surgiu em 1872 na Pensilvânia
(EUA) sob o nome de União Internacional dos Inquiridores da Bíblia. Seu fundador
foi Charles Taze Russel (1853-1916), um presbiteriano convertido ao adventismo
que passou a reinterpretar os textos bíblicos. Baseado nos livros de Daniel e
Apocalipse, Russel fixou o fim do mundo para o ano de 1874 e/ou quando o
movimento atingisse 144 mil adeptos. Após sua morte, Russel foi substituído por
Joseph Franklin Rutherford (1896-1942), que rebatizou oficialmente a religião como
hoje a conhecemos, Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, popularmente
identificados como Testemunhas de Jeová. Russel reinterpretou a idéia dos 144 mil
eleitos à Doutrina da Grande Multidão, onde estes 144 mil são escolhidos para
reinar com Cristo no céu e as demais Testemunhas viverão na Terra sob o domínio
de Cristo, como seus súditos.
Uma das características mais marcantes das Testemunhas de Jeová é a
importância dada à divulgação, transformando suas publicações e comunicação de
textos em aspectos de grande prioridade. Dirigidas por uma sociedade anônima – a
Watchtower Bible and Tract Society of New York Inc. – , as Testemunhas de Jeová
possuem como resultado marcante desta estrutura duas revistas, A Sentinela e
Despertai!, publicadas quinzenalmente em 126 idiomas e com uma tiragem média de
22 milhões de exemplares por mês. Outra característica relevante na atuação deste
grupo reside no fato de possuírem uma estrutura altamente centralizada e
hierarquizada, “refletindo o controle centralizado de suas atividades e do
pensamento de seus membros” (Faillace, 1990:106).
O milenarismo das Testemunhas de Jeová parte de uma perspectiva na qual
“os verdadeiros crentes viverão felizes e em harmonia numa terra transformada e
governada pela justiça divina” (Ibid., p.106). A relação entre Deus e os homens se
baseia nas profecias bíblicas que retratam o fim do mal e o estabelecimento do
Reino de Deus na Terra. Para este grupo, a salvação se dá pela observância dos
preceitos bíblicos, principalmente a lei divina revelada por Jesus – “Amar a Deus
com todo o coração, toda a alma, toda a mente e todas as forças” e “Amar ao
próximo com a si mesmo” (Ibid., p.107). De acordo com Faillace, cada fiel também
é um pregador que dedica parte do seu tempo ao proselitismo nas ruas ou de porta
em porta. A pregação visa não apenas a divulgação do final dos tempos e das boas
novas, mas a conquista de novos adeptos. É nesta prática proselitista de busca de
novos adeptos que estamos interessados.
É uma construção das Testemunhas de Jeová a importância do
desenvolvimento dos diferentes sistemas de comunicação para sua tarefa
proselitista. No período de maior desenvolvimento da Revolução Industrial, embora
os benefícios trazidos por este desenvolvimento fossem utilizados para promover
objetivos comerciais e políticos, também estavam disponíveis para o campo
religioso. Este cenário, segundo as Testemunhas de Jeová, foi propício para o
desenvolvimento de uma iniciativa que teria repercussões internacionais. A primeira
iniciativa ocorreu no final do século IX, quando a comunicação telegráfica passou a
revolucionar a comunicação mundial. Russel, o fundador do grupo, passou a utilizar
os jornais, que eram segundo ele “o grande fator de influência na vida diária do
mundo civilizado” (Proclamadores, p. 85). No ano de 1913, calculou-se que através
de 2000 jornais, os sermões de Russel alcançavam quinze milhões de leitores. A
mensagem era enviada através de telégrafos a uma agência noticiosa, que por sua vez
telegrafava aos jornais nos Estados Unidos, Canadá e Europa.
A segunda empreitada do grupo ocorreu em 1912, quando iniciaram um
grande empreendimento, o fotodrama da Criação. Este fotodrama da Criação era
uma combinação de filme fotográfico e slides, sincronizada com gravações musicais
e diversos discursos gravados em fonógrafos. Segundo informações do grupo, até o
final de 1914 o fotodrama foi apresentado a milhões de pessoas na América do
Norte, Europa, Nova Zelândia e Austrália.
A terceira grande estratégia proselitista utilizada pelas Testemunhas de Jeová
ocorreu assim que a radiodifusão comercial foi iniciada. Em questão de dois anos,
no ano de 1922, o “irmão” Rutherford (sucessor de Russel, que morre em 1916)
proferiu seu primeiro discurso pelo rádio, na Califórnia. Dois anos mais tarde, em
fevereiro de 1924, a emissora WBBR, de propriedade da Torre de Vigia, em Nova
Iorque, começou a operar. Com o tempo, “a sociedade organizou cadeias mundiais
para transmitir por rádio programas e discursos bíblicos. Em 1933, havia 408
emissoras que transmitiam a mensagem do Reino em seis continentes!”
(Proclamadores, p. 80).
Em 1933, as Testemunhas de Jeová começaram a empregar outro método
inovador de pregação. Um fonógrafo transportável, com amplificador e alto-falante,
era utilizado para fazer ouvir os discursos de rádio do “irmão” Rutherford. Eram
usados também carros e barcos de som para fazer “soar a mensagem do Reino”. O
uso dos fonógrafos levou ainda a outra inovação – a pregação de casa em casa com
fonógrafos leves. “Em 1934, a Sociedade passa a produzi-los, assim como uma série
de discos de 78 rpm que continham discursos bíblicos de 4 minutos e meio. Com o
tempo, foram usadas gravações em disco que abrangiam 92 assuntos diferentes”
(Ibid., p. 87). Ao todo, a Sociedade produziu mais de 47 mil fonógrafos. Entretanto,
deu-se mais ênfase às apresentações orais da mensagem do Reino, de modo que o
serviço com os fonógrafos foi, aos poucos, eliminado.
Ao lado desta postura estratégica, a postura de incentivo já assumida em
1927 de gastar uma parte de todos os domingos no testemunho em grupo, indo de
casa em casa, passou a ser constantemente reafirmada. Segundo eles, “a pregação de
casa em casa tem base sólida nas Escrituras e instavam uma participação zelosa e de
toda a alma nesta importante atividade” (Ibid., p.110), remetendo à passagem
bíblica2 de Atos 20:20: “ao passo que não me refreei de vos falar coisa alguma que
fosse proveitosa, nem de vos ensinar publicamente e de casa em casa”.

2
Salvo outra indicação, as passagens bíblicas aqui referidas são citações da Tradução do Novo Mundo
das Escrituras Sagradas, Bíblia elaborada e utilizada pelas Testemunhas de Jeová.
1.1. A Comunicação das Testemunhas de Jeová

Se historicamente as Testemunhas de Jeová utilizaram os mais diversos e


avançados meios de comunicação no trabalho proselitista, atualmente caminham em
um sentido diferenciado do quadro histórico apresentado. Esta diferença reside na
priorização da comunicação face a face. Apesar de não ser uma prática nova,
considerando que desde 1927 os membros do grupo eram incentivados a gastar uma
parte de todos os domingos no testemunho em grupo e indo de casa em casa,
atualmente essa prática de comunicação das Testemunhas de Jeová é fortemente
aliada à produção escrita. Se antigamente a Sociedade Torre de Vigia utilizou
fonógrafos, rádios, entre outros veículos de comunicação, hoje há um esforço no
sentido de concentrar suas ações no texto escrito e no contato pessoal.
Suas duas mais importantes produções escritas, as revistas semanais A
Sentinela e Despertai!, são resultados deste esforço. Segundo eles, A Sentinela tem
como objetivo observar os eventos mundiais à medida que se cumprem profecias
bíblicas, e exaltar a Jeová como Soberano do Universo. A revista Despertai!, por sua
vez, mostra como lidar com os problemas da atualidade usando a Bíblia. Segundo
eles, a revista busca apontar o verdadeiro significado por detrás dos eventos
correntes, todavia mantém-se politicamente neutra e não enaltece uma raça acima da
outra. Despertai! “edifica confiança na promessa do criador de estabelecer uma terra
paradisíaca” (A Organização que leva o Nome, 1990).
Esta diferença de foco pode ser notada no fato de as Testemunhas de Jeová
não utilizarem este novo espaço virtual possibilitado pela Internet. Possuem uma
página na Web, porém orientam os membros do grupo no sentido do máximo de
evitação possível, considerando ser um ambiente perigoso para sua moralidade e fé.
Em uma de suas publicações, alertam:

É necessária extrema cautela no uso da Internet (...) É preciso saber que


muitos sites na Internet foram criados por pessoas de intenções imorais
ou desonestas. E muitos sites que talvez não sejam imorais ou
desonestos, como os grupos de bate-papo, são pura perda de tempo.
Fique longe de tudo isso! (Despertai, 22/01/2000, p. 21).

A comunicação das Testemunhas de Jeová atualmente se dá através da leitura


e da fala. A leitura, através de um vastíssimo material de excelente qualidade gráfica,
e a fala, através de suas visitas de casa em casa, denominado por eles de “trabalho de
campo”.
De forma sintética e retomando algumas informações já apresentadas, uma
perspectiva histórica nos oferece o seguinte quadro: a partir de 1879, Charles Taze
Russel (o fundador) iniciou a publicação da revista Watchtower, contendo discursos
elaborados por ele mesmo. A ampliação destes discursos efetuou-se através da
publicação dos mesmos em jornais, alcançando um elevado número de pessoas. Em
seguida, surgiram os fotodramas da Criação, que sincronizavam gravações musicais
e diversos discursos gravados em fonógrafos. A Sociedade ampliou sua prática
missionária, então, para os rádios, alcançando seis continentes com as mais de 400
estações de rádio espalhadas por todo o mundo. Concomitante a este processo, em
1942, surgiu o “Curso Adiantado do Ministério Teocrático”, uma escola com
currículo de pesquisas bíblicas e oratória, que tinha como objetivo treinar
missionários para servirem em países onde houvesse grande necessidade de
“Proclamadores do Reino”3. Também foram treinados “irmãos qualificados” da
sede de Brooklyn, nos Estados Unidos, para visitar as filiais em todo o mundo.
Posteriormente, passaram a utilizar o fonógrafo, e à medida que foi-se dando maior
ênfase às apresentações orais da mensagem do Reino, o fonógrafo foi aos poucos
eliminado. As apresentações orais eram sempre realizadas tendo como base de
exposição duas publicações centrais entre as Testemunhas de Jeová: a Bíblia e a
revista A Sentinela. A Instituição e seu “Corpo Governante” (os líderes) passaram
então a tomar medidas para fortalecer a convicção entre as Testemunhas de Jeová
da necessidade de continuar zelosamente a proclamar o Reino de casa em casa,
através dos mais diversos artigos publicados. Desta forma, a partir da década de

3
Segundo o grupo, o período pós guerra foi considerado o período de expansão global e de educação
bíblica, marcado através do surgimento de escolas teocráticas em diversos países.
1980, as Testemunhas de Jeová lançaram diversos folhetins, livros, estudos bíblicos,
anuários, fitas de vídeo, destinados aos membros do grupo, aos recém-interessados,
aos jovens, às pessoas mais humildes e com pouca leitura, entre outros.
Uma breve análise revela, entre outras coisas, que as Testemunhas de Jeová
têm como prioridade de comunicação não somente a produção escrita, mas a
produção escrita aliada a uma interação face a face. Ao perguntar-lhes o motivo da
mudança de enfoque no processo proselitista, explicaram-me que houve uma grande
revisão dentro da Instituição no que diz respeito ao método de divulgação da
mensagem. Chegaram à conclusão, deste modo, da maior eficiência em realizar um
contato direto com as pessoas que desejam alcançar. Argumentaram também que,
como seguidores de Jesus Cristo e de seus passos, buscam fazer exatamente o que
Ele fez. Esta decisão implica, entre outras coisas, visitar as pessoas de casa em casa e
demonstrar o amor ao próximo.

1.2. Testemunhas de Jeová: Proclamadores do Reino de Deus

Realizar uma etnografia extensa e abrangente das práticas das Testemunhas


de Jeová não é propósito deste trabalho, considerando que outros autores já se
ocuparam desta tarefa4. A intenção é, através de dados etnográficos, buscar entender
a razão que leva o grupo a utilizar determinados elementos no processo proselitista
em detrimento de outros, e desta forma compreender o que de fato venha a ser
missão para as Testemunhas de Jeová.
Antes, porém, de prosseguir, vale mostrar ao leitor a noção de missão que
estou empregando aqui, a partir do discurso das próprias Testemunhas de Jeová, e
que é a noção genérica de proselitismo para a salvação5. Busco demonstrar as
categorias utilizadas pelo grupo na forma de classificação dos membros na prática
missionária. Parto da reflexão sobre a “auto definição”, isto é, da valorização das

4
Vide Montenegro (1996) e Santos (1977).
5
Retornarei a esta temática no capítulo 4.
categorias nativas e da forma como os membros se pensam como pertencentes a um
determinado grupo específico.
As Testemunhas de Jeová classificam como missionário a pessoa que dedica
tempo integral à obra, viajando para realizar o “trabalho de campo” em outros
países e que realizou seu treinamento na escola de Gileade, nos Estados Unidos.
Existem também os pioneiros especiais, que dedicam exclusividade à obra
missionária, porém fizeram o treinamento no Brasil e trabalham somente em
território nacional. Já os pioneiros regulares não dedicam exclusividade à obra
proselitista, mas possuem disponibilidade em suas atividades cotidianas (por
exemplo, pessoas que não trabalham ou que trabalham apenas meio período),
assumindo um compromisso de dedicar 70 horas de trabalho proselitista por mês na
congregação que atua. Além destes, existem os pioneiros auxiliares, que são aqueles
que também não dedicam exclusividade à obra missionária e que possuem maior
disponibilidade de tempo em algum mês do ano (as férias, por exemplo), investindo
50 horas por mês no trabalho proselitista. E por último existem os publicadores,
pessoas que possuem uma vida de trabalho secular e “vão à campo” de acordo com
a disponibilidade de tempo (geralmente nos fins de semana).
Além das categorias que estão diretamente relacionadas ao trabalho de
proselitismo, existe também uma classificação quanto à membresia, que é
classificada em diferentes categorias e de acordo com funções específicas na
congregação. Existe o estudante, pessoa interessada (ainda não Testemunha de
Jeová pois não foi batizada) que é doutrinada por Testemunhas de Jeová (já
batizadas), e que estuda a Bíblia com a ajuda dos publicadores. Os publicadores,
categoria já explicitada, são pessoas que possuem uma vida cotidiana de trabalho,
família, casa, e que dedicam tempo para a pregação de acordo com a
disponibilidade. Os servos ministeriais (neste caso, apenas homens) auxiliam o
trabalho dos anciãos, dedicam-se à elaboração de discursos e à condução das
reuniões na ausência dos anciãos, ao funcionamento da biblioteca e
distribuição/organização do material de divulgação. E por último, os anciãos. Estes
ocupam a posição mais alta da estratificação local. O número de anciãos varia de
acordo com o tamanho da congregação (na congregação da Lagoa, atuavam no
momento desta pesquisa 3 anciãos e 1 servo ministerial). Estes se encarregam da
supervisão geral, da disciplina dos membros e da comunicação com os níveis
superiores da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados.

2. Missão e Meios de Comunicação

2.1. Comunicações

O primeiro aspecto a ser considerado quando trata-se do tema


“comunicação” é reconhecer a existência de velhas e novas comunicações. Pela
velha comunicação entende-se a transmissão intencional de mensagens entre um
emissor e um receptor, ou parafraseando Yves Winkin (1998), é como se se tratasse
de um sistema telegráfico ou de um jogo de pingue-pongue. A nova comunicação,
por sua vez, quebra com diversas percepções do senso comum, e é novamente
Winkin (Ibid.) que propõe um olhar para a discussão. Esta nova comunicação
sugere que a ação deve ser concebida não mais como um ato individual, mas, sim,
como uma instituição social. “O ator social participa dela não só com suas palavras,
mas também com seus gestos, seus olhares, seus silêncios... A comunicação torna-se
assim a performance permanente da cultura” (Ibid., p.14). Não se trata, na verdade, de
opor comunicação verbal à não verbal, mas de considerá-la como um todo
integrado. Não se trata também de isolar componentes do sistema de comunicação
e falar de “linguagens do corpo”, “linguagens do gesto”, etc.

Assim como os enunciados da linguagem verbal, as ‘mensagens’ oriundas


de outros modos de comunicação não têm significação intrínseca: só no
contexto do conjunto dos modos de comunicação, ele próprio
relacionado com o contexto da interação, a significação pode ganhar
forma (Ibid., p. 32).

Os meios de comunicação, desta forma, têm uma dimensão simbólica


irredutível (Thompson, 1998): “eles se relacionam com a produção, o
armazenamento e a circulação de materiais que são significativos para os indivíduos
que produzem e os recebem” (Ibid., p.19). Thompson reconhece a importância dos
aspectos técnicos dos meios de comunicação, mas argumenta que estes não
deveriam obscurecer o fato de que o desenvolvimento dos meios de comunicação é
uma reelaboração do caráter simbólico da vida social, “uma reorganização dos
meios pelos quais a informação e o conteúdo simbólico são produzidos e
intercambiados no mundo social e uma reestruturação dos meios pelos quais os
indivíduos se relacionam entre si” (p. 19).
Se pensarmos que a atividade simbólica é uma característica da vida social e
se considerarmos que diversas instituições assumem um papel de acumulação dos
meios de informação e comunicação, podemos incluir nestas instituições, então, as
instituições religiosas. Estas, sim, se dedicam essencialmente à produção e difusão
de formas simbólicas associadas à salvação, aos valores espirituais e outras crenças.
Considerando que nos últimos 50 anos as tecnologias da informação
passaram por um processo acelerado de constantes modificações que têm alterado
inclusive o processo da comunicação de massa e que a origem destas
transformações está na chamada “revolução digital”, foi esse avanço que deu origem
a um processo de “convergência tecnológica” (Lima, 2001) que está dissolvendo as
fronteiras entre as telecomunicações, a comunicação de massa e a informática
(telefone, televisão, Internet, computador). As atuais mudanças das chamadas
tecnologias da informação são, segundo Dizard (2000), a terceira grande
transformação nas tecnologias da mídia de massa nos tempos modernos. A primeira
aconteceu no séc. XIX, com a introdução de impressoras a vapor e do papel de
jornal barato. A segunda transformação ocorreu com a introdução da transmissão
por ondas eletromagnéticas – o rádio em 1920 e a televisão em 1939. E a terceira
transformação, que segundo o autor estamos presenciando atualmente, envolve
“uma transição para a produção, armazenagem e distribuição de informação e
entretenimento estruturadas em computadores” (Ibid., p. 54).
Segundo Dizard (Ibid.), as mudanças no campo da mídia estão acontecendo
em três níveis: técnico, político e econômico.

Tecnicamente, todas as mídias estão se adaptando às novas perspectivas


abertas pela digitalização dos seus produtos tradicionais. Politicamente,
novas leis e regulamentações ao nível federal, estadual e local estão
reduzindo as barreiras que limitavam as organizações de mídia no
aproveitamento completo das novas tecnologias. Economicamente, duas
tendências dominam o cenário. Em um nível, há em andamento uma
consolidação do poder dentro dos grandes conglomerados de mídia. Em
oposição a isso está o aparecimento de novas empresas de pequeno
porte que estão desafiando esses conglomerados, tanto no campo da
produção inovadora quanto na agilidade desses novos atores (Ibid.,
p.14).

Estas alterações, sem dúvida, compõem o cenário do processo de comunicação no


mundo atual.
O conceito de cultura de massa, enquanto uma produção institucionalizada e
difusão generalizada de bens simbólicos (Thompson, Ibid.), pode ser útil para
pensar comunicação no mundo atual. Rodrigues (1998) apresenta a idéia, partilhada
com diferentes autores, de que os meios de comunicação, ao padronizarem
informações destinadas a um público indiferenciado, imporiam ideologias e culturas
hegemônicas sobre o conjunto da humanidade e chegaria um momento em que as
diferenças e desigualdades sociais, culturais e mesmo individuais seriam como que
aplainadas. Porém, esta perspectiva extensionista dos meios de comunicação revela,
conforme Rodrigues, alguns problemas teóricos importantes, entre eles, o
esquecimento de que a sociedade de massa é também uma sociedade individualista.
Por outro lado, em uma sociedade que tem o individualismo como um padrão
cultural, favorecer a individualização é o mesmo que favorecer a massificação
(homogeneização). Dito de outra forma: “ser indivíduo em uma sociedade
individualista é o caminho mais curto para ser homogêneo, quer dizer, idêntico a
todos” (Ibid., 1998).

2.2. Comunicação e Religião

Interessa-nos estabelecer uma relação entre o processo de comunicação de


massa e a Religião no mundo atual. Em um cenário de constantes e velozes
transformações e diante de uma sociedade de massas, grupos religiosos se vêem
obrigados a repensar seus princípios e modelos de atuação e para isso, passam a
fazer uso dos meios de comunicação de massa. A expansão industrial da década de
1960-1970 consolidou definitivamente esse processo, criando mercados
consumidores de bens industriais e “bens culturais” (Montero, 1986), onde os meios
de comunicação passaram a assumir a produção de visões de mundo que orientam a
sociedade. Ambas as instituições, Igreja e Indústria Cultural, são produtoras de
valores mais ou menos hegemônicos, mas se organizam segundo lógicas totalmente
distintas. Este fato fez com que a mensagem religiosa não se transformasse em “um
produto a ser vendido” (Ibid.), apesar do fenômeno religioso ter sido considerado
por muitos estudiosos com um “bem vendável no mercado”. Segundo Montero
(Ibid.), alguns autores “procuram mostrar como as estratégias de conquista de novos
conversos vai progressivamente assumindo a mesma racionalidade do marketing,
técnica que busca maximizar a eficácia na venda de um produto” (p. 68). Dentro
deste contexto, diversos grupos religiosos passam a se utilizar dos meios de
comunicação como eficazes instrumentos de conversão e evangelização de fiéis.
No Brasil, instituições religiosas passaram a se apropriar deste mercado no
final dos anos 70, com o surgimento do que passou a se chamar de fenômeno da
“Igreja Eletrônica”. Entre os estudiosos deste fenômeno está Assmann (1986), que
elaborou um estudo relacionando à “Igreja Eletrônica” dos Estados Unidos e à sua
influência na América Latina. Na definição do fenômeno, Assmann explica: “A
denominação ‘Igreja Eletrônica’ está centrada na espetacularidade televisiva. Por
extensão, essa nomenclatura recobre também o abundante uso que os
teleevangelistas costumam fazer, simultaneamente, do rádio” (Ibid., p.18). Partindo
do cenário norte-americano, de intenso e crescente uso dos meios eletrônicos
(especialmente da TV) por lideranças religiosas que elaboravam um tipo de
mensagem salvacionista (supersavers), o autor desenvolve a idéia da necessidade de
conhecer o fenômeno que se desenrola nos Estados Unidos para poder caracterizar
melhor a originalidade dos programas religiosos eletrônicos em nossa realidade. Este
fenômeno foi absorvido por diversos grupos religiosos brasileiros. Montero (1986)
já aponta, no início dos anos 80 uma “concorrência” na fé. Segundo a autora, já
naquele período os protestantes mantinham 250 estações de rádio através do país.
Pastores do protestantismo histórico tinham uma presença semanal em 88 emissoras
de TV e 43 rádios. Os pentecostais aos poucos entravam em cena, com suas curas e
milagres. A Igreja Católica neste período, segundo a autora, já começava a se
preocupar com o relativo atraso da instituição nos meios de comunicação.

2.3. O Cenário Atual

O cenário atual constitui-se, entretanto, de forma diferenciada daquele da


década de 80. A título de exemplificação, considerarei brevemente alguns casos de
grupos religiosos brasileiros, atentando para o uso que fazem das mídias6. Objetivo
mostrar ao leitor uma tendência mais ou menos geral dos grupos religiosos para o
uso dos recursos comunicativos7, no sentido de ampliar a discussão que envolve o
fato das Testemunhas de Jeová optarem por meios de comunicação que de certa
forma podem ser considerados tradicionais, como a escrita e o contato pessoal.
Na década de 80, igrejas como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
e a Renascer em Cristo provocaram um significativo reordenamento no campo

6
Considerando que o objetivo da presente sessão é apenas um esboço do cenário, a bibliografia referida
não reflete a totalidade e a riqueza da produção teórica da área. Os casos acima referidos foram
selecionados tendo como critério a disponibilidade de informações sobre a utilização dos meios de
comunicação.
7
Agradeço aqui a sugestão da antropóloga e profª. Dra. Sônia W. Maluf.
Pentecostal. A IURD buscou influir, segundo Mariano (1999), de dois modos: o
primeiro via conversão pessoal e o segundo, que aqui nos interessa, pelas vias
midiáticas e política. Desta forma, a partir dos anos 80 passaram, então, a ingressar e
investir mais sistematicamente na TV. Além do papel evangelístico e a tentativa de
atingir novos públicos, IURD e Renascer em Cristo lançaram mão da televisão para
iniciar a formação de Comunidades Pentecostais de Caráter Virtual (Gouveia, 1999).
Logo, se há aproximadamente trinta anos as Igrejas Pentecostais brasileiras
empenhavam esforços na promoção da evangelização face a face, hoje, segundo
Gouveia (Ibid.), o emprego de tal estratégia coloca-se como frágil e limitadora. Estes
grupos religiosos passaram, desta forma, a tratar a televisão como veículo que
poderia propiciar a ampliação do fluxo de mensagens de fé, que vão segundo a
autora atingir a população que está vivendo situação de isolamento nas grandes
cidades brasileiras. A territorialidade e a identidade do sagrado Pentecostal passam
assim, conforme Gouveia (Ibid.) a serem construídos de um lado, com bases
territoriais definidas, e de outro, por bases desterritorializadas, através da
programação televisiva. Desta forma, configura-se no Brasil uma nova visão de um
Pentecostal que vive, conforme Gouveia (Ibid.), em concomitância a fé
territorializada e desterritorializada, formando comunidades religiosas de caráter
virtual, onde seus membros participam alternando suas presenças ora nos espaços
físicos dos templos, ora fora deles.
Outro grupo religioso que exemplifica a utilização de diversas mídias é a
Igreja Presbiteriana do Brasil. Dentro de um cenário de relativa competitividade
religiosa, a mídia tornou-se um dos principais recursos pelos quais os mais diversos
grupos religiosos estabelecem contato com os membros e a sociedade em geral. A
Igreja Presbiteriana do Brasil, diferente de outros grupos religiosos, conta com
recursos escassos para manter-se no espaço midiático. Os poucos recursos, segundo
Bellotti (2003), são aplicados em produtoras responsáveis pela elaboração de
material audiovisual e impresso destinado aos fiéis (exemplificados segundo a autora
pela mídia evangélica Luz para o Caminho e pela Editora Cultura Cristã). Os programas
de televisão, por exemplo, longe de atentar para a medição de audiência, visam
segundo Bellotti (Ibid.) um objetivo: o de atrair somente quem estiver preparado
para ouvir e entender a mensagem cristã. Se o apelo às massas é prática atraente para
diversos grupos religiosos, na visão protestante reformada, conforme a autora, isso
esconde o perigo da corrupção da mensagem, considerando que agradar a todos
significaria subjugar Deus às vontades de todos os Homens. A diferenciação
pretendida pela Igreja Presbiteriana do Brasil com relação à igrejas mais populares (e
aqui subentende-se a IURD) instala-se exatamente aí: na prática e no discurso dessa
produtora presbiteriana. O mesmo ocorre com programas de rádio produzidos pela
Instituição. Navegando ao lado de valores “novos” ou ressignificados (como a auto-
ajuda, a teologia da prosperidade, etc.) a mídia da Igreja Presbiteriana utiliza-se de
temas tradicionais, como a salvação na cruz, o arrependimento e o perdão divino. O
que é novo, na verdade, está dado à luz dessa tradição, “o que perfaz um sentimento
de pertencimento que é recriado num contexto diferente da instituição eclesiástica”
(Ibid., p.5).
Transformações na forma de utilização da mídia também ocorreram com a
Igreja Católica. De acordo com Montero (1986), na década de 80, por exemplo, a
Igreja atuava aquém do considerável avanço demonstrado por grupos religiosos
“concorrentes”. Este quadro transformou-se principalmente a partir de 2000,
quando na ocasião da Jornada mundial das comunicações de 2002, o papa João
Paulo II elaborou um documento oficial convidando a comunidade católica à
reflexão do tema “Internet: um novo fórum para a proclamação do Evangelho”.
Este documento foi uma forma de convite à comunidade católica a “aventurar-se”
no mundo do ciberespaço e a potencializar o seu uso para proclamar a mensagem
proposta. A Instituição reconhece que embora a Internet não possa suprir a
experiência de Deus que só pode oferecer a vida litúrgica e sacramental da Igreja,
pode proporcionar um suplemento e um apoio únicos para preparar o encontro
com Cristo na comunidade e sustentar os novos crentes no caminho da fé que
começam.
2.4. A Internet

O contexto de inovações e possibilidades tecnológicas delineia um novo


ambiente denominado ciberespaço8, do qual diversos grupos religiosos têm se
utilizado. A Internet é um importante espaço utilizado por eles, propiciando o
diálogo dos fiéis entre si e com outras pessoas, tornando-se um novo campo e novo
meio de proselitismo, e sendo utilizada até mesmo pelas religiões históricas. Para
que o fenômeno protagonizado pela Internet possa ser compreendido, é necessário
levar em consideração diversos detalhes técnicos, políticos e históricos que, desde os
anos 60 levaram à constituição da Rede, além de permitir a criação de chats por
iniciativas individuais que podem congregar – on line – crentes de várias
denominações religiosas.
Inicialmente projetada para colocar máquinas em contato, a Internet acabou
tendo sua finalidade subvertida para se tornar um poderoso espaço de sociabilidade,
demonstrando o que Aranha (Aranha, 1995 apud Guimarães, 2000) chamou de
“vocação para a interação”. Diversos estudos têm permitido que este espaço seja
pensado não somente como espaços de sociabilidade, conforme mostrou Guimarães
(2000)9, nem apenas como espaços onde a força do “divino” é percebida, conforme
mostrei em pesquisa anterior (2002)10 mas sobretudo como espaço onde a
evangelização é praticada e onde o proselitismo é exercido livremente.
A idéia de virtualidade associada a uma não-realidade já não é mais adequada
para pensarmos o ciberespaço. Pierre Levy (1996; 1999) afirma que o virtual não se
opõe ao real, mas que o complementa e transforma, ao subverter as limitações
espaço-temporais que este apresenta. Com isso, o virtual não seria o oposto do real,
mas sim uma esfera singular de realidade, onde as categorias de espaço e tempo

8
Cyberspace – Termo cunhado por Willian Gibson no seu romance Neuromancer (Ed. Ace, NY, 1984). A
ficção científica tem como protagonista Case, que entra e sai da Matrix, a rede de computadores
onipresentes que constituem o ciberespaço, no interior da qual relaciona-se com outros humanos e com
máquinas, vivendo uma realidade virtual, mas nem por isso menos real.
9
Ao analisar uma situação concreta da vida social no Ciberespaço, Guimarães empregou a perspectiva
etnográfica no estudo de um ambiente de sociabilidade que nele se constituía, encontrando uma cultura
local que se constituía autônoma em relação aos contextos off-line aos quais seus atores estavam
associados e percebendo que as relações que ali se estabeleciam podiam ser de grande intensidade, via
de regra constituindo grupos sociais e com fortes traços identitários.
10
Percebi esta forte atuação e intervenção do “divino” sobre os usuários da Internet, quando ao analisar
um site de um determinado grupo religioso presenciei ações dos usuários no sentido de buscar saúde
“física” e “espiritual”, relatando posteriormente suas vitórias.
estariam submetidas a um regime diferenciado (Guimarães, 1999). Desta forma, a
Internet passa a abarcar relações que vão além da troca de mensagens, arquivos e
informações em geral. Mais do que um ambiente de comunicação, a rede oferece
suporte a um espaço simbólico que abriga diversas atividades de caráter societário e
que “é palco de práticas e representações de diferentes grupos que o habitam”
(Ibid., 1998). Ou seja, este novo espaço serve como suporte aos processos
cognitivos, sociais e afetivos, os quais modificam esta rede de tecnologia, de acordo
com Silva (2001:151), transformando-a em espaço social povoado por pessoas que
(re)constróem suas identidades e seus laços sociais neste novo contexto
comunicacional. Geram, de acordo com a autora, uma teia de novas sociabilidades
que suscitam novos valores; estes novos valores, por sua vez, reforçam as novas
sociabilidades, gerando uma dialética de novas práticas sociais. Essas modificações
se aplicam também à noção de espaço e território, demandando algumas reflexões.
Em primeiro lugar, segundo Silva (Ibid., p. 156), as mudanças geradas por
estes suportes tecnológicos criam uma dualidade, considerando que o sujeito está
simultaneamente fixado em um lugar físico e, ao mesmo tempo, suspenso na
pluralidade de lugares que a navegação na rede lhe permite. Isto nos leva a refletir
este espaço como um não-lugar, conforme sugere Marc Augé (1994). Como conceito
apresentado pelo autor para compreender o mundo contemporâneo, o espaço por
excelência da supermodernidade é o “não lugar”: “Se um lugar pode se definir como
identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como
identitário, nem como relacional, e nem como histórico definirá um não lugar”
(Ibid., p.73). Este “não lugar”, porém, é socializado e transformado em um “lugar
antropológico” clássico como Augé o define, com suas relações, com seus
territórios demarcados e sua ocupação definida por grupos de sociabilidade
(Coutinho, 2000). Ou seja, se admitimos que existe na Internet o “não-lugar”, ou
seja, espaços de passagem, de mediação, onde não se permanece, reconhecemos
também este espaço enquanto “lugar” antropológico, em que existe suporte para a
relação interpessoal e para a organização social.
Em segundo lugar, ao abordar a questão de novos espaços antropológicos,
surge a questão da territorialidade, na medida em que o território é o ponto de
ancoragem fundamental na construção de identidades. O território é, pois, fruto da
construção de sistemas de representação. Silva (Ibid., p. 158) ressalta que apesar da
idéia de território estar ligada à idéia de fronteiras geográficas, são os elementos
simbólicos de um território que lhe dão identidade. Isto permite pensar a existência
de territórios na Internet enquanto espaços e fluxos de informação que geram
representações partilhadas. Uma particularidade deste espaço, conforme Ribeiro
(2001:140), reside no fato de possibilitar ao navegante a exploração de novos
aspectos existenciais, cognitivos e experienciais a partir de um ambiente
desterritorializado. À medida que navegam, os usuários passam a construir no
ciberespaço novas teias de relações que, conforme Ribeiro (p. 141), gradualmente
vão sendo reconhecidas e interiorizadas como parte de uma nova realidade
organizada a partir das trocas simbólicas realizadas pelos usuários. Estes passam a se
utilizar destes ambientes, muitas vezes em contextos religiosos, enquanto espaços de
reforço de suas crenças e visões de mundo. A Internet torna-se um local onde
determinadas visões de mundo são confirmadas. É plausível e confortável para
determinado grupo de usuários na medida em que este conhecimento é partilhado.
A confirmação e o compartilhar destes valores podem ser percebidos em
diversos grupos que se organizam a partir de um locus virtual. Uma exemplificação
adequada a este caso refere-se ao canal de bate papo 100%_jesus que se organiza a
partir do programa de bate-papo IRC (Internet Relay Chat), sendo considerado um
sistema de conversa multi-usuário baseado no modelo cliente-servidor. Ao entrar no
programa, o usuário deve escolher qual canal deseja participar: o nome do canal
geralmente indica a natureza da conversa predominante no ambiente.
Este ambiente de sociabilidade se autodenomina evangélico, e assim como
em outros canais de bate papo, possui regras, normas e uma estrutura hierárquica de
organização11. Os canais, de uma forma geral, se “materializam” através de uma
Home Page. No caso do canal 100%_jesus, a Home Page se propõe a prestar
diversos serviços à comunidade cristã, porém sua função primordial em relação ao
canal é estabelecer os valores que norteiam aquele ambiente. O discurso assumido
na Home Page é o de “Proclamar Jesus Cristo a toda a Internet em seus vários
ramos: IRC, Correio Eletrônico, Web, FTP, Icq. Ide por Todo o Mundo e Pregai o

11
Para maiores informações, vide Jungblut (2000) e Coutinho (2000).
Evangelho a toda criatura (Marcos 16:15”)12. Jungblut (2000) também realizou
estudos no mesmo canal de bate-papo buscando, através de dados etnográficos,
analisar a forma como os evangélicos atualizam, através da Internet, certos padrões
de comportamento social experimentados em diferentes esferas, como a sociedade
em geral, o ciberespaço e o campo evangélico. De forma sintetizada, o que
encontramos no canal de bate-papo 100%_jesus é um espaço de sociabilidade de
um determinado grupo de pessoas que compartilham valores religiosos, que acabam
por criar uma realidade plausível para o grupo, onde suas visões de mundo são
confirmadas, elaborando reais possibilidades de um espaço de conversão e
proselitismo.

2.5. Internet às Avessas

A reflexão a respeito da utilização da Internet enquanto espaço missionário


serviu até aqui como base para pensar a prática missionária dos usuários do canal
100%_jesus, grupo que se organizava em um ambiente virtual com a intenção
explícita de proclamar Jesus Cristo. A atuação do canal de bate-papo 100%_jesus,
tão enfática na prática missionária, encaminhou-me à reflexão de que, em geral,
grupos evangelizadores tenderiam a usar a Internet como espaço missionário –
como era corroborado por uma diversidade de grupos religiosos. Até então, a
associação entre Internet e missão era uma obviedade que me encaminhou à
conclusão antecipada desta relação, onde igrejas e/ou diferentes grupos religiosos
reproduziriam na Internet suas próprias técnicas de evangelização (adaptadas).
Ao elaborar o Projeto de Pesquisa que balizaria a condução desta pesquisa,
eu contava que as Testemunhas de Jeová utilizariam (assim como o canal de bate-
papo 100%_jesus) a Internet enquanto espaço missionário. Quando iniciei as
pesquisas em campo virtual, surpreendi-me com o que encontrei na Internet. Minha
primeira impressão foi que as Testemunhas de Jeová simplesmente não “existiam”.

12
Informações obtidas no site: http://www.lordjesus.cjb.net
Insisti em minhas buscas, e acabei por encontrar um diversificado material referente
ao grupo. Em maior produção, os evangélicos assumem o ranking da elaboração da
crítica doutrinária do grupo. Encontrei alguns sites que apenas comentavam a
respeito de aspectos relacionados a impactos sociais do grupo (como a questão do
sangue e as implicações éticas envolvidas nesta decisão), alguns sites de ex-
Testemunhas de Jeová (como por exemplo um site de gays, lésbicas e afins ex-
Testemunhas de Jeová) e por último, apenas alguns poucos sites de membros
Testemunhas de Jeová. É importante notar que estas páginas eram muito mais sites
pessoais (os ditos diários virtuais) do que propriamente um site informativo sobre a
religião. Estes sites pessoais não seriam tão interessantes se não fosse um detalhe: já
no fim do meu trabalho de campo, retornei a estas páginas para extrair algumas
outras informações, quando ao entrar na página, surge na tela do computador a
seguinte frase: “este site está sendo redirecionado para o seguinte endereço:
http://www. watchtower.org.br”. E em outra página surge a seguinte informação:
“por determinação da Watch Tower Bible and Tract Society este site foi desativado.
Para maiores informações, clique aqui” (link que também direcionava o navegador
ao site oficial das Testemunhas de Jeová).
Quanto ao grupo propriamente dito, sua discreta presença limitava-se a
expor sua página oficial13 (disponível em diversos idiomas, conforme atuação do
grupo nestes países), apenas. Ao contrário de outras Home Pages, este é um
ambiente fechado, onde não há espaços de interação nem comunicação revelando,
como em suas publicações, uma relativa homogeneidade em escala mundial das
imagens e do discurso proferido. Revelou também a busca pelos domínios dos
espaços e das identidades testemunha-de-jeová, aspecto vivenciado ao longo de meu
trabalho de campo e que será abordado em momento posterior.
Este “não-uso” da Internet possibilitou o início de minhas investigações com
as Testemunhas de Jeová, acompanhando-as regularmente às reuniões semanais e
eventos importantes do grupo na congregação da Lagoa da Conceição, em
Florianópolis. Desta forma, obtive informações preciosas sobre as questões que

13
http://www.watchtower.org
permeavam o propósito deste trabalho, como o significado da prática missionária
para o grupo e a relação que estabelecem com o uso da Internet.
O questionamento que permeia este trabalho está em pensar porque um
grupo que possui uma prática missionária muito forte e uma prática de expansão do
Reino de Jeová muito clara, utiliza determinadas tecnologias de informação em
detrimento de outras. De que forma, afinal, o “não-uso” da Internet pode revelar o
que, de fato, venha a ser missão para as Testemunhas de Jeová?
A relevância da escolha deste grupo religioso tem como aspecto a ser
considerado a prática exercida por eles de forma exaustiva e prioritária: o trabalho
proselitista de visitação de casa em casa, contrapondo desta forma o “web-
evangelismo” praticado pelos usuários do canal 100%_jesus. Pensar na forma como
as Testemunhas de Jeová se comunicam com o “mundo” hoje, significa também a
necessidade de entender e conhecer como o grupo se comunica entre si. Vale
ressaltar, porém, que o entendimento deste processo de comunicação não implica
em realizar uma “etnografia da fala” nem tampouco uma “etnografia da leitura”
(Lewgoy, 1998). O que desejo aqui é apresentar ao leitor como as Testemunhas de
Jeová se utilizam do vasto aparato bibliográfico disponível no processo de
evangelização e a opção pela não utilização de novas tecnologias.

2.6. Missões e o Uso da Internet

O canal de bate-papo 100%_jesus, através de minha pesquisa anterior e


também da pesquisa de Jungblut, possibilitou visualizar a Internet não somente
como espaço de reforço de determinadas verdades religiosas. Mais além, a relação
destes usuários com ambientes de natureza religiosa revelaram-nos a possibilidade
de utilização da Internet como campo missionário.
Mas se a proposta é refletir acerca do projeto missionário desenvolvido pelas
Testemunhas de Jeová, objeto de estudo proposto, torna-se então necessário
delimitar o conceito de missão para ampliarmos a construção do objeto de estudo
aqui apresentado. Encontrei relativa dificuldade de levantar referências bibliográficas
que dêem conta da discussão sobre missão, sobretudo no campo das ciências
humanas. A teologia, por sua vez, ofereceu os subsídios teóricos necessários para o
prosseguimento desta discussão. Um importante autor que tratou desta temática foi
David J. Bosch, principal teólogo da missão cristã protestante da segunda metade do
século 20. Bosch (2002) admite que diante de um quadro de muitas ambigüidades
quanto ao conceito de missão (entre eles, o motivo imperialista, cultural e
colonialista), é necessário estabelecer uma definição provisória do termo. Por
missão, Bosch entende uma ação com uma característica persuasiva, que propõe um
relacionamento dinâmico com o divino. Bosch estabelece uma diferença entre
missões humanitárias (enquanto engajamento missionário no tocante às realidades
de pobreza, injustiça, etc.) e missões evangelísticas (convite ao arrependimento e à
conversão, anúncio do perdão). Considero (na mesma medida cuidadosa de Bosch,
julgando não serem a mesma coisa, apesar de estarem vinculados) que missão está
relacionada à primeira conversão e dirigida aos “não-cristãos”, e que evangelismo
está ligado à reconversão, à busca do próximo afastado. Considero também que
missão é mais amplo que o evangelismo, sendo este parte essencial da missão14.
Quando pensa-se a atuação missionária cristã tradicional, tem-se como
referência o missionário que sai de seu ambiente (casa, Igreja, bairro, cidade, país)
em busca de novos fiéis. O Ide passa a ser assumido como ação principal e os
resultados implícitos desta ação serão fruto desta busca do “perdido” e “sem
salvação”. Usando o campo missionário tradicional como referência, a Internet
passa a se revelar como renovadora de paradigmas. Se no campo tradicional a
intenção é de busca, a atuação missionária na Internet é de oferecimento. Já não há neste
tipo de ambiente a ação ativa do missionário no sentido de buscar o indivíduo, de
tomar a iniciativa no contato interpessoal. Os missionários na Internet passam a
esperar que os usuários procurem suas páginas disponíveis, ou aguardam uma visita
em seus chats. Os web–missionários também tomam a iniciativa, mas agora já não mais
no sentido de buscar o indivíduo, mas sim de oferecer a mensagem, aguardando
passivamente a visita de outros usuários, passíveis de serem evangelizados. É preciso
considerar que este oferecimento engloba diferenças nas estratégias de atuação e no
grau de intervenção da abordagem, a partir do momento em que os missionários

14
Para uma discussão mais aprofundada sobre este assunto, vide capítulo 4.
virtuais passam a dispor de diversos aparatos técnicos que possibilitam estas
diferenças nas estratégias. Quando um determinado grupo disponibiliza sua Home
Page (HP) para acesso irrestrito, estabelece uma forma de oferecimento e um grau
menos elevado de intervenção em relação ao indivíduo, pois o contato somente se
estabelece se o usuário se interessa pelo conteúdo expresso na HP, ou seja, se parte
dele a iniciativa de procurar determinada página em um site de busca, por exemplo.
Por outro lado, ao ter acesso a uma mala direta de e-mails e através dela envia uma
série de textos evangelísticos, atua de forma mais direta em relação ao “perdido” e o
seu grau de intervenção é potencialmente elevado.
O fato é que diversos grupos religiosos têm se utilizado de diferentes meios
de comunicação para fazer missão. A especificidade desta pesquisa está calcada na
busca de entendimento da prática missionária das Testemunhas de Jeová,
considerando que o processo comunicativo do grupo é elaborado sob padrões
diferenciados de comunicação no mundo atual. Clarificar alguns aspectos acerca da
utilização de meios de comunicação por diferentes grupos religiosos que visam o
proselitismo, assim como abordar questões conceituais acerca da Comunicação, traz
luz sobre a prática missionária do grupo proposto na medida em que utilizam
diferenciados meios de comunicação no processo de interação e evangelização do
mundo.

2.7. Contatos Iniciais

Dalva foi meu primeiro contato com o grupo. Ao sermos apresentadas, em


meio ao “entra e sai” de pessoas em seu ambiente de trabalho e apesar de estar
visivelmente ocupada, mostrou cordial interesse em minha exposição a respeito do
meu tema de pesquisa e confissão sobre minha falta de informação a respeito do
grupo. Muito atenciosa e solícita, Dalva demonstrou satisfação em me ajudar, e já de
início perguntou se eu conhecia o material publicado pelas Testemunhas de Jeová.
Respondi que o único acesso que havia tido estava limitado ao material encontrado
na biblioteca da Universidade Federal de Santa Catarina, o “Proclamadores do
Reino de Deus”, livro doado por uma das congregações da cidade. De imediato,
Dalva tirou de uma das gavetas de sua sala uma publicação de A Sentinela. Era um
exemplar antigo, mas serviu para Dalva explicar a periodicidade desta e da outra
revista de divulgação (Despertai!). Interessante notar neste contato inicial que uma
das primeiras informações dizia respeito às publicações do grupo. O exemplar
antigo (do ano anterior) não impossibilitou Dalva de divulgar o material do grupo,
nem tampouco de explicar suas crenças, sua fé e de forma breve, sua visão de
mundo. Todas os espaços de diálogo são verdadeiras chances de testemunhar a
respeito de Jeová.
O grupo selecionado para esta pesquisa foi o Salão do Reino das
Testemunhas de Jeová da Lagoa da Conceição em Florianópolis, Santa Catarina. A
escolha deste grupo foi motivada pela presença atuante na congregação de um casal
de pioneiros especiais (Carlos e Eduarda), que então colaboravam com o trabalho da
congregação. Como este casal era, no período de minha pesquisa, o único casal de
pioneiros especiais presentes na cidade, escolhi esta congregação, considerando a
sua presença e a possibilidade de obtenção de informações a partir de diferentes
atores sociais pertencentes à Instituição.
Minhas visitas ao Salão do Reino foram, na maior parte das vezes,
acompanhadas por Dalva, também participante da congregação na Lagoa. Sem
dúvida, sua parceria facilitou em muito minha entrada e aceitação no grupo. As
constantes perguntas sobre se Dalva estava realizando estudo bíblico comigo ou se
eu era sua vizinha, eram explicadas cuidadosamente por mim, relatando o interesse
de minha pesquisa, e sendo confirmadas com entusiasmo por Dalva. O fato de eu
ser pesquisadora gerou entusiasmo no grupo, que não só demonstrou interesse em
ler o trabalho final, como disponibilizou revistas, vídeos, ofereceu diversas sugestões
e horas de visitas pessoais para entrevistas.
Tamanha disponibilidade e aceitação do grupo se caracterizou através de
Carlos e Eduarda, pioneiros especiais que estavam auxiliando o trabalho na
congregação da Lagoa. Carlos, a par dos assuntos de minha pesquisa por causa de
Dalva, disponibilizou inúmeras publicações e textos produzidos pelo grupo.
Fazendo questão de responder atenciosamente a todos os meus questionamentos, a
cada reunião chegavam com um material novo em mãos, no intuito de ajudar. Não
foram raras as vezes que saí da congregação com o “stress informacional” que tanto
temos ouvido falar. Cada pessoa com quem eu conversava me indicava um material
diferente, uma fita de vídeo diferente, um folheto específico, uma brochura
diferente, um versículo diferente - mas nunca com referências à Internet. É
impressionante o volume de material informativo produzido pelas Testemunhas de
Jeová, revelando, como pano de fundo, uma forte homogeneidade e centralidade
nas ações e pensamento do grupo. Todo material publicado é produzido em escala
mundial, simultaneamente em 85 idiomas, o que sugere o intuito de uma
padronização no ethos do grupo.
Se com o fundador, Charles Russel, havia relativa autonomia por parte das
congregações, com seu sucessor Rutherford esta característica foi modificada. Com
a prisão de Rutherford e mais alguns líderes em 1918 (libertados no ano seguinte), o
grupo emergiu desta crise mais coeso sob a figura do próprio Rutherford. Com isso,
iniciou-se toda uma reordenação do movimento, a saber, a subordinação das
congregações à agência central, a asserção do trabalho proselitista como
responsabilidade primária dos membros e a interferência da Sociedade na
administração regional das congregações. Mas a principal mudança, porém, foi a
instauração da teocracia. A estrutura organizacional do grupo não é construída com
base em uma democracia, mas em uma teocracia. Isto significa dizer que muito além
de uma minuciosa organização com alto planejamento no proselitismo, as
Testemunhas de Jeová organizam suas ações não a partir dos valores e regras
vigentes da sociedade em que vivem15, mas a partir de elementos que crêem ser de
orientação bíblica. Negam a submissão ao Estado (e nele vivem, em certo sentido, à
parte) e buscam como fim último não apenas viver esta organização teocrática, mas
anseiam também por sua instauração na Terra. Diante de tal anseio, empenham-se
no trabalho proselitista.
Com a instauração da teocracia, tudo passou a ser controlado pela Sociedade
e a nova orientação propôs que as Testemunhas de Jeová estabelecessem uma
separação do resto da sociedade, considerando que o desenvolvimento da

15
Principalmente se considerarmos o fato de que as Testemunhas de Jeová não prestam serviço militar,
não votam, não se associam a partidos políticos e não reverenciam símbolos nacionais.
personalidade devesse ser o principal fim nas suas vidas religiosas. Logo, se a maior
parte da doutrinação do grupo implica em afastar-se do mundo (revelado através da
busca e instauração da teocracia), uma vez que o “mundo” tem seu deus (Satanás),
essa relação conflitante que se estabelece com o mundo faz com que o grupo seja
proscrito em diversos países. Ora, se essa relação com o “mundo” é conflitiva,
postula-se o “viver fora do mundo”. Os assuntos mundanos aparecem no entanto
como uma preocupação constante, ainda que sempre explicados como sinais dos
tempos, de cumprimento das profecias.
Capítulo 2
Milenarismo e as Testemunhas de Jeová

Os “sinais dos tempos” a que me referi no capítulo anterior são, na verdade,


eventos importantes ocorridos nos dias atuais e no passado recente que servem para
as Testemunhas de Jeová como indicativos da volta de Cristo. Uma passagem
bíblica muito utilizada pelo grupo reflete, de certa forma, a expectativa quanto a esta
volta: “Portanto, mantende-vos vigilantes, porque não sabeis em que dia virá o
vosso Senhor (Mateus 24:42)” (grifo meu). É neste “estado de vigilância” que o
grupo guia suas ações rumo a uma prática que visa o proselitismo como fim último.
O grupo exemplifica sua realidade atual através da vida de Noé, personagem
descrito na bíblia no livro de Gênesis:

Naquela época, havia violência por toda a parte e a inclinação do coração


do homem era ‘só má, todo o tempo’ (...). A maioria delas se ocupava
apenas com as coisas do dia-a-dia. Mas, antes de trazer o grande dilúvio,
Jeová lhes deu a oportunidade de se arrependerem. Ele comissionou
Noé a pregar, o que este cumpriu fielmente - servindo como pregador
da justiça talvez por 40,50 ou mais anos. (...). Contudo, as pessoas não
deram ouvidos ao aviso de Noé. Não estavam vigilantes. Por isso, apenas
Noé e sua família sobreviveram à execução do julgamento de Jeová. (A
Sentinela, 15/01/2000).

Assim como Noé, as Testemunhas de Jeová argumentam assumir a mesma


postura, no sentido de dar às pessoas “ampla oportunidade de escolher se serviriam
ou não a Jeová” (Ibid.), por transmitirem o aviso da parte de Deus e, com isso,
cumprir a comissão que Jesus deu aos seus seguidores. Tendo em vista este fato,
creio ser essencial abordar a questão da importância dada à volta de Cristo, na
medida em que suscita reflexões a respeito da forma como o grupo estabelece
possíveis relações entre as noções de tempo e salvação, e considerando que isto é
também revelador da prática missionária do grupo na medida em que pulsiona e
energiza suas ações proselitistas. A iminência da instauração do reino de Jeová é o
que gera no grupo o sentimento de urgência e de pressa em pregar a palavra de
Jeová Deus.

1. O Dia de Jeová

Este sentimento de urgência é acionado no grupo através da verificação de


diferentes eventos e situações vivenciadas nos dias atuais. “Ter em mente o dia de
Jeová” significa, para as Testemunhas de Jeová, que não se deve esquecer que está
muito próximo o dia em que Jeová “destruirá este sistema de coisas, antes do
estabelecimento de seu prometido novo mundo” (A Sentinela, 01/09/1997).

1.1. Volta, Presença e a Grande Multidão

O que estamos aqui chamando de crença milenarista testemunha-de-jeová é,


para eles, uma crença que os distinguiu de toda a cristandade16. Vejamos a definição
elaborada pelo grupo com relação à vinda do reino de Deus:

Antes de deixar a terra, Jesus Cristo prometeu voltar. Estão associados


com essa promessa emocionantes eventos relacionados com o reino de
Deus. Deve-se notar que há uma diferença entre vinda e presença. Assim,
ao passo que a vinda de uma pessoa (que tem a ver com a sua chegada

16
Para uma discussão mais detalhada a respeito do cristianismo testemunha-de-jeová e suas
diferenciações com outras religiões cristãs, vide capítulo 4. Para o momento, detenho-me no aspecto
milenarista do grupo.
ou o seu retorno) ocorre em determinado momento, a presença de tal
pessoa pode prolongar-se desse ponto em diante por um período de
anos. A Bíblia também usa a palavra grega ér-kho-mai (que significa ‘vir’),
ao referir-se ao fato de Jesus dirigir a sua atenção para uma importante
tarefa, num tempo específico durante a sua presença, a saber, o seu
trabalho qual executor nomeado por Jeová na guerra do grande dia do
Deus Todo-Poderoso (Raciocínios, p. 433).

Para as Testemunhas de Jeová, quando Jesus Cristo ascendeu aos céus não o
fez de forma visível. Pelo contrário, subiu aos céus de forma invisível aos olhos
humanos. E prometeu que iria voltar, também em forma invisível. No sentido de
reforçar sua argumentação, o grupo baseia-se em diversas referências bíblicas. No
livro de Mateus, por exemplo, encontram-se várias menções de um verbo grego de
uso comum para “vir”, o qual é ér-kho-mai. Mas em outras referências ainda no livro
de Mateus foi usada uma palavra diferente, o substantivo pa-rou-sí-a, que significa
tanto “chegada” como “presença”. Logo, não trata-se apenas do momento da
chegada, mas da presença desde a chegada. Desta forma, a “volta de Cristo” indica
para as Testemunhas de Jeová não exatamente a sua volta, mas a sua presença
prolongada. Logo, Jesus voltou (tendo dirigido sua atenção como Rei para a Terra) e
agora está presente como espírito, interferindo nos assuntos espirituais aqui na
Terra.
Tomando este quadro como referência, as Testemunhas de Jeová crêem,
baseadas em interpretações de diversas profecias bíblicas, que até 607 AEC (Antes
da Era Comum)17 todos os reis eram designados por Jeová. De 607 AEC até 1914,
período denominado por eles de “tempo designado das nações”, Jeová ficou sem
representante na Terra. E somente em 1914 Jesus Cristo assumiu nos céus o
governo do Reino de Deus. Até então, satanás tinha acesso ao céu e à Terra. Ao
assumir o poder celestial, Jesus expulsou satanás e seus demônios, que passou então
a habitar somente na Terra. Satanás, que até então tinha livre acesso aos céus, é
expulso por Jesus Cristo, que “limpa” o céu e o reduz ao domínio terrestre. Este

17
As Testemunhas de Jeová datam seus eventos de acordo com o nascimento de Cristo.
domínio satânico é marcado e evidenciado, segundo o grupo, através de diferentes
eventos explicados com referências bíblica: “Nação se levantará contra nação e
reino contra reino; e haverá grandes terremotos, e, num lugar após outro,
pestilências e escassez de víveres; e haverá vistas aterrorizantes e grandes sinais do
céu.” (Lucas 21:10,11). Foi também neste período, então no ano de 1914, que inicia-
se a I Grande Guerra Mundial. Esta guerra serviu para o grupo como sinal claro e
evidente da presença de satanás na Terra, revelando toda a sua fúria devido à sua
expulsão celestial. Vejamos o que dizem a esse respeito:

Jesus profetizou também: ‘Haverá vistas aterrorizantes e grandes sinais


do céu.’ (Lucas 21:11) Durante a Primeira Guerra Mundial, as incessantes
barragens de artilharia representavam algo novo — guerra total. Pela
primeira vez, os dirigíveis, e depois, ainda mais importante, os aviões,
iniciaram a era da guerra aérea. De fato, 1914-1918 foi apenas o começo,
mas levaria à situação descrita adicionalmente por Jesus na sua profecia
em que disse: ‘Também, haverá sinais no sol, e na lua, e nas estrelas, e na
terra angústia de nações, não sabendo o que fazer por causa do rugido
do mar e da sua agitação, os homens ficando desalentados de temor e na
expectativa das coisas que vêm sobre a terra habitada; porque os poderes
dos céus serão abalados.’ — Lucas 21:25, 26. (Venha o teu Reino,
1981:113).

Tornou-se claro desta forma, para as Testemunhas de Jeová, que o reino de


Deus, por Jesus Cristo, fora estabelecido nos céus em 1914. Ou seja, o grupo
considera que os “últimos dias” iniciaram em 1914. Logo, os acontecimentos atuais
como fome, miséria, injustiças sociais, guerras, etc., são atribuídos à ação de satanás
na Terra e servem para o grupo como indicativos claros e evidentes do fim próximo.
Enquanto isso, Jesus ainda está organizando o reino de Deus no céu.
A vinda de Jeová, por sua vez não será visível aos olhos humanos.
A grande profecia de Jesus sobre ‘o sinal’ de sua presença informa-nos
de que, ‘quando o Filho do homem chegar na sua glória, e com ele todos
os anjos, então se assentará no seu trono glorioso’. (Mateus 25:31) Visto
que o brilho de tal glória será prejudicial para meros olhos humanos, o
Rei tem de permanecer invisível para a humanidade. (Veja Êxodo 33:17-
20; Hebreus 12:2.) Este é o motivo de se precisar dum ‘sinal de sua
presença’. Na segunda vinda do Messias não é mais necessário que ele
abandone sua vida espiritual, celestial, para aparecer na terra num corpo
carnal, a fim de ser usado como ‘oferta pelo pecado’. Tendo provido seu
sacrifício humano ‘uma vez para sempre’, ele vem ‘na segunda vez... à
parte do pecado’, como invisível rei celestial. — Hebreus 7:26, 27;
9:27,28; 10:8-10; 1.Pedro 3:18. (Venha o teu Reino, 1981:109).

Não haverá uma volta visível, e sim, uma intervenção poderosa de Jeová no
que tange aos assuntos na Terra. Virá então o Armagedom, onde os governantes
políticos de toda a Terra se ajuntarão em oposição a Jeová e a seu Reino. “Tal
oposição será evidenciada por uma ação global contra os servos de Jeová na terra,
os representantes visíveis do Reino de Deus” (Raciocínios, p. 44). As Testemunhas
de Jeová são os representantes visíveis de Deus na Terra. Jeová Deus agirá de forma
a manipular a ação humana para que Sua vontade seja efetuada e sua vingança
cumprida. Os justos então possuirão a terra e os ímpios morrerão. A partir deste
momento a Terra estará sob domínio de Jeová, tendo Cristo como governante.
Depois do Armagedom, haverá um período de mil anos para que as pessoas sejam
ressuscitadas (pouco a pouco) e alcancem, então, a perfeição. Os ressuscitados não
serão julgados segundo os atos errados dos tempos anteriores, mas, em vez disso,
serão julgados pela sua disposição de viver à altura dos requisitos justos para a vida
no domínio do reino de Deus. Este período será considerado, segundo o grupo,
como um período de “maior programa educativo” de todos os tempos, realizado
sob a organização do Reino de Jeová. Abrir-se-ão, então, os “rolos”. Estes serão as
instruções publicadas para ajudar os humanos ressuscitados a realizar as ações que
os habilitarão para a vida eterna. Os meios e os programas educativos na “nova
terra”, dirigidos por Jeová e pelo seu Rei messiânico, serão, segundo o grupo, muito
superiores em comparação com tudo o que o mundo de satanás já ofereceu.
Durante estes mil anos, satanás estará preso. Ele será solto do abismo por
um pouco de tempo, para testar o mundo aperfeiçoado da humanidade quanto à sua
lealdade ao reinado de Jeová. Um número não especificado talvez decida seguir o
diabo, mas estes sofrerão a execução rápida do seu julgamento. “Cristo Jesus
realizará este ato final de vindicação por esmagar a cabeça da Serpente original,
aniquilando-a junto com sua prole tão cabalmente como que por um fogo que
durará ‘dia e noite, para todo o sempre’.” (Venha o teu Reino, p. 184). Com satanás
definitivamente eliminado, haverá a paz eterna e Jesus Cristo devolverá o poder e o
reino celestial ao Pai.
Os verdadeiros cristãos serão livrados do “atual sistema iníquo de coisas,
bem como a salvação da escravidão ao pecado e à morte. Para uma grande multidão
de servos féis de Jeová que vivem nos ‘últimos dias’, a salvação incluirá serem
preservados através da grande tribulação” (Raciocínios, p. 338). A referência a esta
“Grande Multidão” está na passagem bíblica de Revelação 7:15, que registra como
sendo aqueles que “estão diante do trono de Deus e o servem publicamente”, só
que na Terra. Logo, “aqueles que confessam que o Senhor Jesus é seu Salvador e
Jeová, seu Deus, a quem adoram em espírito e em verdade e servem alegremente”
(Proclamadores, p. 169) são considerados a grande multidão, que viverá eternamente
no paraíso terrestre. “As Testemunhas de Jeová entendem que se trata de servos
leais a Deus que sobreviverão ao Armagedom com a perspectiva de vida eterna
numa Terra levada de volta à condição de Paraíso” (Ibid., p.179). A Terra, na
perspectiva testemunha-de-jeová, não será destruída mas, conforme o propósito
original de Jeová Deus, será “limpa” e transformada em um paraíso para esta grande
multidão. Baseadas em referências bíblicas, acreditam que nesta nova Terra haverá
moradias adequadas e fartura de alimentos para o usufruto de todos, e todas as
doenças, enfermidades e formas de incapacidades físicas (inclusive a própria morte)
se tornarão coisas do passado.
Um “pequeno rebanho”, reconhecidos no grupo como os “144.000
ungidos”, já foram selecionados dentre todos os povos e nações para governarem
como reis com Cristo no reino celestial. Todos os 144.000 cristãos ungidos têm
evidência de terem o espírito de Deus. Com base bíblica argumentam: “Recebestes
um espírito de adoção, como filhos, espírito pelo qual clamamos: ‘Aba, Pai!’ O
próprio espírito dá testemunho com o nosso espírito de que somos filhos de Deus.
Então, se somos filhos, somos também herdeiros: deveras, herdeiros de Deus, mas
co-herdeiros de Cristo, desde que soframos juntamente, para que também sejamos
glorificados juntamente. (Romanos 8:15-17)” (Ibid., p. 142). Eles têm certeza
absoluta de que foram gerados por Deus para a filiação espiritual como co-herdeiros
de Cristo no Reino celestial. Neste respeito, é o espírito santo de Jeová que
desempenha um papel de atribuidor desta certeza. Os ungidos reconhecem seu status
e sabem que “foram batizados em Cristo Jesus” e na sua morte. Têm a firme
convicção de que são filhos espirituais de Deus, que morrerão e serão ressuscitados
para a glória celestial, assim como Jesus foi.

1.2. Indícios e Urgência

Ter em mente o dia de Jeová é, também, estar atento aos indícios de que o
fim está próximo. Estes indícios são pontuados pelo grupo através de seis provas,
conforme apresentado na revista A Sentinela de 15/01/2000:

1. A primeira delas, de que estamos vivendo nos últimos dias, conforme o apóstolo
Paulo registrou em 2 Timóteo 3:1-5: “Nos últimos dias haverá tempos críticos,
difíceis de manejar. Pois os homens serão amantes de si mesmos, amantes do
dinheiro, pretensiosos, soberbos, blasfemadores, desobedientes aos pais,
ingratos, desleais, (...)”.
2. A segunda prova é que vê-se nos dias atuais os efeitos da expulsão de satanás e
seus demônios dos céus. Isto acabou gerando grande sofrimento para a Terra. A
profecia de Revelação (livro de apocalipse) diz que, ao ser lançado para a Terra,
o Diabo sabia que lhe restava um curto período de tempo. “Durante este
período, satanás trava lutas contra os seguidores ungidos de Cristo (...).
Certamente vemos os efeitos de seus ataques em nosso tempo. Mas logo satanás
será confinado ao abismo para que não mais desencaminhe as nações” (Ibid.).
3. A terceira diz que vivemos nos dias do “oitavo e último rei”. Na passagem de
Revelação 17:9-11, o apóstolo João refere-se a sete reis, que representam sete
potências mundiais. Ele vê também um oitavo rei que procede dos sete. Este
representa hoje, para as Testemunhas de Jeová, as Nações Unidas.
4. A quarta diz que vivemos no período simbolizado pelos “pés da estátua do
sonho de Nabucodonozor”. O profeta Daniel interpretou o sonho da enorme
estátua na forma de um homem. Cada parte da estátua representa várias
potências mundiais. Todas as potências mundiais representadas na estátua já
surgiram.
5. Quinta, vê-se a realização de uma obra mundial de pregação, a qual Jesus disse
que ocorreria pouco antes do fim deste sistema. Segundo o grupo, essa profecia
se cumpre numa escala sem precedentes. “A Bíblia, porém, não afirma que Jeová
esperará até que cada pessoa na Terra receba testemunho. Em vez disso, as boas
novas têm de ser pregadas até que Jeová diga que basta. Daí, virá o fim” (Ibid.).
6. A sexta prova diz que o número de genuínos discípulos ungidos de Cristo “está
ficando bem pequeno, embora alguns deles evidentemente ainda estarão na
Terra quando começar a grande tribulação” (Ibid.).

O fato é que para as Testemunhas de Jeová há evidências claras de que


vivemos no tempo do fim deste “sistema de coisas”. Segundo o grupo, Jesus
predisse coisas tais como grandes guerras, terremotos, doenças e crimes, indicando-
os como acontecimentos presentes nos “últimos dias”. A iminência de eventos
dramáticos estabelece para o grupo a necessidade de envolvimento com uma série
de regras de condutas, ações e valores que os resguardem para o “grande dia”. A
iminência de eventos catastróficos e a real possibilidade destes eventos acontecerem
amanhã acaba por afetar todas as ações das Testemunhas de Jeová hoje. E é com base
nas promessas bíblicas deste amanhã que o grupo promove a esperança de um porvir
restaurado, de “novos céus e uma nova terra que aguardamos segundo a sua
promessa, e neste há de morar a justiça” (2 Pedro 3:13). A passagem bíblica de
Habacuque (“Não tardará!”) desperta no grupo um sentimento constante de
vigilância e urgência que acaba por estabelecer um novo molde para as noções de
tempo utilizadas pelas Testemunhas de Jeová. Leva-se em conta, no que diz respeito
à vinda do reino de Deus, não mais o tempo secular, mas passa-se a adotar o tempo
de Jeová, na medida em que, segundo a Bíblia, “um só dia é para Jeová como mil
anos, e mil anos, como um só dia” (2 Pedro 3:8). Logo, adotar o tempo de Jeová
significa agir conforme este tempo, ou seja, com urgência. Esta urgência é acionada
pelo fato de não saber quando o reino de Jeová será instaurado. O grupo não
considera que Jeová nunca agirá, pelo contrário, “o dia de Jeová virá como ladrão”
(2 Pedro 3:10). Vejamos o que diz o grupo a esse respeito:

Ladrões são facilmente pegos, porém é mais provável que o vigia que
fica acordado a noite inteira veja um ladrão do que aquele que adormece
de vez em quando. Como o vigia pode ser manter acordado? É mais fácil
se manter alerta por se movimentar do que por ficar a noite inteira
sentado. De modo similar, manter-se espiritualmente ativo ajudará o
cristão a ficar desperto. De modo que Pedro nos exorta a manter-nos
ativos ‘em atos santos de conduta e em ações de devoção piedosa’ (2
Pedro 3:11). Essa atividade nos ajudará a continuarmos ‘tendo bem em
mente a presença do dia de Jeová’. (A Sentinela, 01/01/2003).

Logo, o grupo é estimulado a aguardar pacientemente o tempo designado


por Jeová: “Podemos continuar a cultivar qualidades cristãs vitais, bem como a
transmitir as boas novas a muito mais pessoas do que de outro modo teria sido
possível” (Ibid.). De igual forma, agir conforme o tempo de Jeová serve, para o
grupo, como mantenedor deste senso de urgência, na medida em que desviar-se dele
pode encaminhar ao afastamento da atenção de coisas espirituais para objetivos
materiais, o que poderia torná-los espiritualmente “sonolentos”.
Essa espera ansiosa pela vinda do reino de Jeová nos faz crer que as
Testemunhas de Jeová podem ser consideradas em muitos aspectos como um grupo
milenarista, na medida em que organizam suas ações a partir da iminência da
instauração do reino de Jeová. Creio que realizar uma reflexão teórica a respeito do
milenarismo em geral pode nos ajudar a compreender o milenarismo testemunha-
de-jeová.
2. Pensando o Milenarismo

O pioneiro dos estudos relativos ao tema dos milenarismos foi James


Mooney (1896), que a partir do seu trabalho “Ghost Dance” sobre os índios das
pradarias norte-americanas, redefine a expressão18. A partir deste estudo, o conceito
que aludia à tradição que espera uma Idade de Ouro de mil anos (millennium), em que
Deus reinará baseada na literatura apocalíptica judaica e nas revelações do apóstolo
João, começou a ser usado não mais no sentido bíblico19 mas para referir-se a todo
um corpo de crenças do mesmo tipo que designaria qualquer classe de
salvacionismo (Barabas, 1987).
De acordo com a tipologia criada por Norman Cohn20 (Cohn, 1972 apud
Barabas, 1987), baseado em uma análise dos movimentos milenaristas da Europa na
Idade Média, os salvacionismos milenaristas têm como característica serem
coletivos, terrenos, iminentes, totais, últimos e catastróficos. A crença milenarista é
coletiva porque a salvação é para todos os “escolhidos”. É terrena porque esta nova
sociedade de felicidade e bem-estar será instaurada e desfrutada pelos “eleitos” na
vida terrena. É iminente porque os crentes passam a viver uma tensa espera da
“volta”. Ainda que muitas vezes se transforme em uma espera diferida, a ideologia
milenarista continua viva, “em estado latente” (Barabas, 1987:13), até que surjam
novos sinais e mensagens. A crença milenarista é total porque implica em uma nova
ordem social que trará não melhorias, mas uma transformação completa das
condições existenciais. É última porque conduz a um futuro definitivo, e é catastrófica
porque a busca da salvação vem precedida de acontecimentos apocalípticos. As
Testemunhas de Jeová, foco deste trabalho, possuem estas cinco características,
abarcando-as de igual modo.

18
Para James Mooney, um dos primeiros autores a estudar os movimentos messiânicos em trabalho de
campo, existia entre os grupos indígenas americanos do norte, anterior à chegada do branco, a crença na
vinda de um messias que lhe traria condições de felicidade, conhecida em tempos anteriores e que seria
então restaurada.
19
Foi com o povo de Israel que o conceito tomou seu primeiro significado. Ocorre pela primeira vez no
livro de Samuel, sugerindo o contexto que o messias era o ungido do Senhor e que seu papel era político.
Só depois do cativeiro é que surge uma promessa clara de uma idade ainda por vir, na qual todas as
injustiças seriam sanadas.
20
Cohn, Norman. En pos del milenio. Revolucionarismos milenaristas y anarquistas místicos de la
Edad Media. Edit. Seix Barral, Barcelona, 1972.
De acordo com a definição de Queiroz (Queiroz, 1976 apud Barabas, 1987),
milenarismo é a crença em um tempo futuro, onde todos os males serão corrigidos e
todas as injustiças reparadas. Barabas (1987:15) argumenta que está na “natureza do
milenarismo ser ao mesmo tempo religioso e sócio-político ao aproximar
estreitamente as esperanças e aspirações terrenas com os meios através dos quais se
espera ter acesso ao novo mundo”21. O profetismo, por sua vez, é um tipo de
movimento sócio-religioso em que o profeta tem o papel de comunicar a iminência
da chegada do messias e do milênio, e o anúncio é recebido como revelação.
Conforme Barabas (Ibid., p. 15), sua função não consiste em concretizar o milênio,
mas em preparar os eleitos para o advento.
Há uma forte discussão no sentido de compreender as mobilizações
messiânico-milenaristas e suas relações causais. Enquanto uns apontam a
determinação de fatores estruturais e sócio-econômicos, outros, segundo Queiroz
(1995), não negam a dimensão econômico-material mas destacam questões culturais,
míticas e/ou religiosas no estudo dessas manifestações. Para Maria Isaura Pereira de
Queiroz (1976), por exemplo, movimentos milenaristas brasileiros são
manifestações que denunciam crises que atingem segmentos sociais específicos. Já
no entendimento de Vittorio Lanternari (1974), os movimentos visam a regeneração
do mundo onde à medida que se desenrolam, estabelecem uma renovação
consciente da cultura religiosa estabelecida e colocam premissas de uma reforma de
toda a vida social, política e cultural, supondo crise e descontentamento na sua
origem. Para Josildeth Gomes Consorte (1973), as mobilizações messiânico-
milenaristas se constituem como ações articuladas a partir da desestruturação
profunda dos modos de vida tradicionais. Para Rossi (2002), a idéia de messianismo
vinculada somente ao pobre não é suficiente. Para este autor, a idéia é que o
messianismo não é algo exclusivo dos dominados, mas também visível entre as
classes dominantes. Se o marco teórico da maioria dos autores que trabalharam com
o messianismo permite vislumbrar a conclusão de que o messias tem relação
exclusiva com os dominados (e sua realização se dá no cotidiano das dificuldades),
Rossi diz ser difícil encontrar um autor que afirme que a classe dominante tem
utopia messiânica.

21
Tradução do autor.
Barabas (Ibid., p.14) sugere que a terminologia mais conveniente e global é
aquela que permite incluir os movimentos salvacionistas dentro da categoria mais
ampla de movimentos sócio-religiosos22. Barabas (1987) está pautada pela casuística
dos movimentos milenaristas indígenas do México, no contexto do colonialismo. A
autora argumenta que estes não devem ser entendidos como reações irreflexivas de
massas excitadas e irracionais, mas pelo contrário, como “expressão das esperanças
coletivas que manifestam, através dos séculos, o desejo e a vontade de alcançar a
liberdade” (Ibid., p. 42). Sua proposta é interessante ao articular o “social” e o
“religioso”, tonando evidente que estas dimensões não podem ser consideradas
separadamente. É interessante também porque reconhece nos
milenarismos/profetismos/ messianismos a manifestação de anseios legítimos de
um setor social qualquer.
Mas estes autores estão tratando de setores sociais que se caracterizam por
homogeneidades percebidas como dadas: identidade étnica, identidade como
pobres, discriminados, etc. No caso do pertencimento religioso nas sociedades
urbanas contemporâneas, a homogeneidade grupal, quando aceita e percebida, é
conscientemente construída pela vontade e determinação. Daí que a análise do
milenarismo ganha se levar em conta as constrições que os sujeitos fazem do
milenarismo a que se vinculam e suas justificações (Dickie, 1999).
Por um lado, não é possível caracterizar as Testemunhas de Jeová como um
grupo oriundo de uma classe social determinada. Elas não são originadas de um
mesmo contexto ou sujeitas às mesmas condições sociais e econômicas contra as
quais viessem a se rebelar. Não configuram, neste sentido, um segmento social
específico em crise econômica e social23. Por outro lado, o projeto missionário
testemunha-de-jeová busca como fim último mudanças nos valores morais da
sociedade como cumprimento da vontade de Jeová, o que, por um lado, os isenta de
qualquer tipo de engajamento voltado a mudanças sociais mas evidencia a vivência
de uma “crise de valores”. Isto dificulta caracterizá-los como um movimento sócio-

22
Nomenclatura cunhada por Vittorio Lanternari (1974).
23
Não tive acesso a informações que me possibilite caracterizar as Testemunhas de Jeová em geral no
mundo como um segmento sócio-econômico específico. Há indicações no entanto de que, no Brasil, se se
caracterizam por serem oriundos das camadas médias e médias baixas (informações pessoais das
Testemunhas de Jeová).
religioso conforme os termos propostos por Barabas. No entanto, sua proposta
permite conceber o milenarismo de uma forma menos simplista do que aquela que o
considera como uma resposta direta das classes desfavorecidas ou oprimidas. A
religião é construtiva da ação e não mera resposta ao mundo.
O milenarismo do grupo aqui pesquisado se estabelece não a partir de
elementos de pobreza, miséria e injustiça social, conforme apresentam diversos
autores que trataram o tema. O movimento milenarista das Testemunhas de Jeová
não está limitado à ideologia dos grupos marginalizados, e a idéia vinculada somente
ao pobre não é adequada a este estudo de caso. Não estamos tratando de um grupo
que sofre uma opressão econômica e grande estado de miséria, mas sim, de um
grupo que traz elementos de sofrimento e perseguição, elaborando uma auto-
atribuição vitimizada24 muito forte. O sonho de construção de uma “antisociedade”
não se funda em um protesto pela miséria, injustiça e pobreza. Estes são vistos
como indicativos do fim dos tempos. A finalidade do trabalho
proselitista/missionário das Testemunhas de Jeová é o de garantir as condições para
a salvação no momento do Armagedom. Só assim povoarão uma sociedade justa e
perfeita onde todos viverão em paz e harmonia por vontade de Jeová.
A origem etimológica do termo utopia significa “não-lugar” ou “lugar
inexistente”. Desde Platão até os socialistas utópicos contemporâneos, a utopia
estava relacionada à análise crítica das sociedades por eles vividas. Estabeleciam a
construção imaginária de uma anti-sociedade, mediante a qual diagnosticavam a
miséria e detalhavam a sociedade perfeita que serviria de exemplo ao futuro da
humanidade. Assim esboçada, a utopia pretendia encarnar os desejos fundamentais
do ser humano e encaminhar a sociedade a um bem estar terreno. Apesar de
diversas críticas a estes “gêneros utópicos”, estes pensadores denunciaram mais
radicalmente os abusos dos grupos dominantes e pretenderam comunicar ao ser
humano a esperança de novas e melhores perspectivas de vida (Barabas, 1987).
A outra expressão histórica da utopia, assim considerada pelos estudiosos
dos movimentos camponeses da Idade Média, é o milenarismo e o messianismo.
Para Barabas (Ibid.) enquanto a utopia social abstrata (inspirada no sofrimento, na

24
Esta discussão será tratada em capítulo posterior.
indigência, no despossuído) surgia do pensamento de grupos intelectuais e se
desenvolvia na teoria, a utopia dos movimentos populares expressava sua crítica de
ordem e sua esperança em um futuro melhor e diferente, em termos de linguagem
religiosa do cristianismo. Assim, a legitimidade que encontrava a coletividade
descontente nas promessas da religião, garantia participação ativa na efetuação da
mudança. Desta forma, para Barabas a distância entre a utopia social abstrata e a
utopia milenarista é, de certa forma, justificada. Estas duas formas de utopias
coexistem na história do ocidente, muitas vezes entrecruzando-se, nutrindo-se uma
da outra e muitas vezes caminhando em paralelo. Baseando-me novamente em
Barabas, apresento uma síntese de relação entre as duas formas de utopia.
Das utopias da antigüidade, A república de Platão serviu como modelo de
inspiração para épocas posteriores. Estas primeiras utopias sociais recorrem a
elementos que serão retomados por outras utopias, como por exemplo, a
causalidade atribuída ao desaparecimento da propriedade privada e, por
conseqüência, o surgimento da justiça e felicidade humana. Essa utopia se propunha
a ser uma sociedade baseada em rígida legislação, e situava-se não somente na
denúncia e no repúdio da ordem estabelecida, mas na afirmação do homem de
estabelecer uma sociedade onde reinaria a felicidade e a justiça. Estas e outras visões
e expectativas utópicas são, na maioria dos casos, projetadas como reordenamentos
do conhecido ou como retornos ao passado. Para Barabas são, na verdade, intentos
de transformação de realidades onde os desejos necessitam de concretizações.
A utopia judaica centra-se na espera de um novo céu e uma nova terra, onde
o êxodo faz parte da rebelião dos escravos do Egito. O Deus que guia Moisés se
manifesta a favor do povo subjugado, auxiliando na busca da “terra prometida”. É
desta forma que o “Deus dos hebreus” se manifesta como messiânico,
estabelecendo Moisés como profeta e dando a ele a missão de manter o povo eleito
sempre aberto à promessa do reino de liberdade. A utopia judaica é uma utopia
concreta porque sua concepção escatológica se mostra, no processo de revelação
bíblica, como oposição ao culto estabelecido que garante a ordem dada. É também
concreta porque a espera- esperança não está posta em um Deus transcendente, mas
na fraternidade coletiva e na vontade dos homens de ascender ao reino da liberdade.
Vontade esta que ocorre por causa da figura do messias. Este fundamento
messiânico e profético da mitologia bíblica suporta a perspectiva revolucionária do
cristianismo, que é retomada pelos movimentos milenaristas e messiânicos
posteriores.
Os modelos utópicos surgidos do racionalismo e industrialismo continuam
configurando-se como projetos ideais distantes das expectativas e da participação
ativa das bases sociais; e eis o motivo pelo qual não superam sua condição de
utopias abstratas. Na utopia concreta, ao contrário, a transformação radical como
realidade é uma expectativa que encontra sua possibilidade de realização na
participação coletiva das bases sociais. Outra vertente da utopia concreta é a
milenarista. A utopia milenarista significa “uma abertura à esperança do anunciado
(profecia), do prometido que ainda não é; esperança que se encontra sempre
garantida pela religião” (Ibid., p. 83).
Outra distinção entre utopia abstrata e concreta milenarista apontada por
Barabas (Ibid.) pode ser expressa através de pares de oposições. Enquanto que a
utopia abstrata se define pelo individualismo, teorização, totalitarismo e irrealização,
a utopia concreta se realiza pela coletivização, estado prático, comunitarismo e
realização. A oposição deste último, irrealização versus realização revela a
problemática da viabilidade da utopia concreta milenarista. A autora refere-se à
Ernst Bloch25, que argumenta que estes movimentos representam não meras ilusões
em conteúdo, mas “projeções da esperança totalizadora que constitui o princípio de
toda revolução” (Ibid., p. 85). Bloch adverte que a esperança no reino de liberdade
se desvanece todas as vezes que se deseja concretizá-lo. E questiona-se: o
característico da utopia milenarista não seria nunca realizá-lo? Barabas responde a
este questionamento através de Desroche26, que argumenta que o fracasso na
realização da utopia milenarista constitui da mesma forma o seu triunfo. Neste
sentido, a viabilidade da utopia milenarista não deve estar baseada nas realizações,
mas na sustentação da esperança que dá aos homens novos significados e os
mobiliza em favor de um mundo melhor. “O fracasso total ou parcial dos
milenarismos e messianismo não nega sua factibilidade, pelo contrário, projeta sua

25
Ernst Bloch, El principio esperanza, vol. 3, Edit. Aguilar, Madrid, 1980.
26
Henri Desroche, Sociologie de l’esperance, Cal Mann-Lévy, Paris, 1973.
possibilidade de ser o futuro; domínio da esperança e da imaginação criadora” (Ibid.,
p. 85).
Eis o que Barabas chamou de utopias concretas, pois a “espera-esperança” está
firmada em uma fraternidade comum, contrapondo as utopias abstratas, que se
definem pelo individualismo, totalitarismo e irrealização. O milenarismo das
Testemunhas de Jeová não pode ser caracterizado como um movimento coletivo do
mesmo tipo dos acima mencionados. De acordo com Flora (2001:05), uma
característica diferencial em relação aos movimentos brasileiros históricos é que o
grupo não caracteriza, propriamente, um movimento no sentido de uma ação coletiva,
onde houvesse a carência de condições políticas institucionais e onde o movimento
pudesse ser eficaz como agente de uma mudança social ampla, organizado com a
finalidade de construir o novo mundo (Dickie, 1999). Antes, como outros
milenarismos contemporâneos, se caracteriza por constituir grupos de adeptos que
devem, individualmente, perseguir a realização das condições necessárias (e
prescritas) para atingir a salvação.

2.2. O Tempo das Testemunhas de Jeová

O fato é que as Testemunhas de Jeová caminham calcados em uma


perspectiva milenarista, implicando em uma consciência de tempo27 muito
específica. Relativizar o tempo e percebê-lo como construção cultural é um esforço
surpreendente, sendo interessante pensar como esta categoria contribui para um
reforço do etnocentrismo inerente a cada cultura. Passo a considerar o tempo, de
acordo com Dickie (1996), como uma concepção construída histórica e
culturalmente, ou seja, como produto de um contexto sócio cultural e fator de
grande relevância na vida das pessoas: as percepções de tempo, que os grupos

27
Consciência de tempo é um conceito de P. Ricoeur (Ricoeur, 1985 apud Dickie, 1996) que dá conta de
dois eixos da dimensão temporal dos atores: aquele horizontal da relação entre eventos tal qual
construída por eles (a organização e a qualificação do tempo), e aquele vertical do tempo com os atores
(a vivência de acordo com a organização e a qualificação do tempo).
sociais engendram a partir de seus contextos, condicionam a vida cotidiana,
determinam rotinas, definem prioridades, etc. No caso do grupo milenarista
estudado, o milênio é uma duração temporal, marcada pela vinda do reino de Jeová;
um período definido e desejado pelos fiéis como início de uma nova vida.
Montenegro (1996), por sua vez, acrescenta:

Vemos que para eles o devir temporal é concebido como um processo


mecânico governado por uma lei inexorável - o cumprimento do plano
divino - cujo conteúdo total (...) encontra-se na bíblia. Esse é o referente
imutável que concebem por trás das mudanças constantes (Ibid., p. 81).

Como salientou Montenegro, a Bíblia assume papel fundamental neste


cenário. Para as Testemunhas de Jeová, a Bíblia é a única fonte que permite
estabelecer um esquema cronológico que abrange o início da humanidade até o final
dos tempos e a posterior restauração de um paraíso na Terra. Montenegro utiliza
uma distinção feita por Suzanne Lallemand28 entre cosmologia e cosmogonia, uma
vez que esta distinção ordena e relativiza o espaço atribuído pelas Testemunhas de
Jeová à Bíblia como fonte máxima de autoridade. Segundo Lallemand, entende-se
por cosmologia um conjunto de crenças e conhecimentos que abrangem o universo
natural e humano. Por cosmogonia, “entende-se como a parte desse todo mais
amplo que se concentra especialmente na explicação da criação do mundo, expondo
sob a forma de mitos, idéias sobre a origem do cosmos e sobre o processo de
constituição da sociedade” (Montenegro, 1996:64). Logo, para as Testemunhas de
Jeová a Bíblia é a fonte dessa cosmogonia. Ela contém, em sua percepção, a
verdadeira história sobre a origem do universo, criação do homem, seu propósito,
queda e destruição. É na Bíblia que encontramos a narração cosmogônica relatada e
publicada diversas vezes pelo grupo.
Para as Testemunhas de Jeová, o milênio supõe um futuro relativamente
próximo para sua concretização. Mais próximo ainda está o Armagedom, e por isso

28
Suzanne Lalleman. "Cosmogonia e Cosmologia". In: Augé, Marc. A Construção do Mundo: Religião,
Representações, Ideologia. São Paulo: Edições 70, 1978.
para o grupo o conhecimento do que acontecerá apresenta-se como algo urgente.
Mais importante ainda é a descoberta do início deste novo tempo: eis o motivo da
grande quantidade de profecias “arriscadas” até hoje. Na cosmologia testemunha-
de-jeová as profecias são mais destacadas que a nova ordem que virá, e o
Armagedom (a batalha final), ocupa um lugar mais destacado que o próprio milênio.
A urgência do “tempo do fim” é caracterizada não somente pela indicação de
eventos específicos identificados pelo grupo como indicativos do fim dos tempos –
miséria, solidão, guerras entre as nações – mas caracteriza-se pela administração no
uso do tempo. Investe-se, então, em inúmeras leituras direcionadas às verdades
bíblicas, em tempo de estudos bíblicos, em reuniões. Mas investe-se principalmente
no número de horas dedicadas ao trabalho proselitista. O tempo disponível (em um
fim de semana ou nas férias, por exemplo), tem de ser utilizado na divulgação da
mensagem. É a pressa que os estimula a realizar este trabalho neste tempo.
A crença e a realidade das Testemunhas de Jeová está permeada de profecias,
concretizadas ou não. Fracassada uma profecia, argumentam: “(...) esperanças não
realizadas não são exclusividade dos nossos dias. Os próprios apóstolos tiveram
semelhantes expectativas indevidas... Jeová é digno de ser leal e de louvor com ou
sem a recompensa final” (Proclamadores, p.78). Se a leitura do material “nativo”
tem revelado um posicionamento mais cauteloso quanto à marcação de eventos e
um claro reconhecimento de possíveis erros cometidos por marcarem datas da volta
do reino de Deus, hoje encontramos no grupo não somente este reconhecimento,
mas um movimento “discreto” capaz de arriscar algumas profecias. A indicação de
que estamos nos “últimos dias” propicia esta reflexão. Baseadas em Lucas 21:31 e
32 (“Quando virdes estas coisas ocorrer, sabei que está próximo o reino de Deus29.
Deveras, eu vos digo: Esta geração de modo algum passará até que todas estas
coisas ocorram”), acreditam que a geração que estava viva no começo do
cumprimento do sinal de 1914 está agora bem avançada em idade. Logo, para eles, o
tempo que resta deve ser muito curto e as condições mundiais fornecem toda a
indicação de que este é o caso.

29
Isto é, o tempo em que esse reino destruirá o atual mundo iníquo e ele próprio assumirá o pleno
controle dos assuntos da terra.
Esta “espera-esperança” nos remete ao comentário de Desroche (1973, apud
Barabas, 1987), citado anteriormente, que argumenta que o fracasso na realização da
utopia milenarista constitui da mesma forma o seu triunfo. A utopia milenarista das
Testemunhas de Jeová se baseia não nas realizações das profecias estabelecidas pelo
grupo, mas na esperança que oferece a eles novos significados, mobilizando-os em
busca de um mundo melhor. Queiroz (1976: 46) também pontua esta questão, ao
referir-se a um termo utilizado por Paul Alphandéry (1898)30. A “Espera
Messiânica”, como este autor se referiu, passa a remeter aos anseios do povo, como
sendo aquelas crenças que não se concretizam obrigatoriamente em movimentos
messiânicos. Logo, essa espera messiânica se aplica perfeitamente ao estudo de caso
aqui proposto, considerando que a iminência da volta e as expectativas,
concretizadas ou não, oferecem ao grupo um universo simbólico de significados que
transporta-os ao desejo de construção de um mundo melhor. A espera em si não
gera no grupo desalento e desestímulo, mas sim, renovação da esperança e reforço
dos valores já então desenvolvidos.
Esta mobilização que gira em torno da expectativa da volta, da iminência do
milênio, se realiza através do testemunho. Testemunho este que é gerado por essas
profecias, ainda que fracassadas (no limite temporal, relacionadas às datas
marcadas). A iminência da volta do reino de Jeová e suas implicações é o que
organiza o grupo na relação que estabelecem com o tempo urgente. Para as
Testemunhas de Jeová a missão do cristão na Terra “é proclamar a mensagem do
Reino de justiça do Senhor” (Raciocínios, p. 77), e como auto-definição assumem:
“sociedade mundial de pessoas que dão ativamente testemunho sobre Jeová Deus e
Seus propósitos com a humanidade (...) (Ibid., p. 384). Este “testemunhar” foi
comissionado por Jesus que, antes de acender aos céus, confiou aos seus apóstolos
dizendo: “Sereis testemunhas de mim... até as partes mais distantes da terra” (Atos
1:8). Jesus predissera também que “estas boas novas do reino seriam pregadas em
toda a terra habitada, em testemunho a todas as nações (Mt. 24:14)”. Isto significa
dizer que as profecias, experenciadas pelo grupo ou não, são expressas através da

30
Alphandéry, Paul. Notes sur le messianisme médiéval latin. Rapports Anuels de la Section des
Sciences Religieuses. École Pratique des Hautes Études, Paris, 1898-1914.
importância dada por estas pessoas à exposição da razão de sua esperança, a
comissão que receberam de falar sobre o Reino para o mundo. Mundo este que jaz
no pecado.
Neste sentido, torna-se viável estabelecer uma relação entre milenarismo e
missão. A concepção de tempo das Testemunhas de Jeová se realiza pautada pelos
elementos milenaristas, ou seja, a partir desta espera-esperança que diz que o agora é
a evidência dos “últimos dias” e define a urgência do tempo. Esta urgência é
estimulada pela iminência da volta e diante da possibilidade da volta. Esta urgência
revela-se no discurso do grupo: “(...) o tempo é curto. O tempo está-se esgotando,
não resta dúvida sobre isso (...)” (Proclamadores, p. 104).
Logo, no caso de religiões milenaristas como as Testemunhas de Jeová, o
tempo é um limite definido e desejado: as doutrinas milenaristas prescrevem uma
duração de tempo até a chegada do milênio, e o próprio milênio é uma duração
temporal. Por outro lado, por se caracterizar como um milenarismo muito rígido
(no sentido de dirigir a ação dos fiéis, regulando e norteando noções de tempo,
valores e condutas morais) e muito disciplinador (a estrutura altamente homogênea
e hierarquizada do grupo revela-se assim), acaba por selecionar os meios e as formas
de realização de ações, de forma a impedir que qualquer fator saia do controle.
Tratarei destes aspectos no capítulo 4.

3. A Refeição Noturna do Senhor

Apesar das publicações do grupo serem elementos constantes de informação


e aproximação com diferentes temáticas por mim analisadas, foi no trabalho de
campo que vivenciei eventos específicos que remetiam à volta de Jeová. Através da
celebração da Refeição Noturna do Senhor pude perceber, de fato, a temática do
milenarismo presente no grupo em um ambiente de vivência e não através de seus
escritos. Antes de descrevê-lo, porém, vale ressaltar que apesar do grupo remeter à
expectativa da instauração do Reino de Jeová também em eventuais conversas
informais e/ou em discursos proferidos pelos anciãos na congregação, foi somente
nesta celebração que percebi fortes evidências de um “movimento de grupo”
elaborado com base nesta expectativa.
A Refeição Noturna do Senhor é para as Testemunhas de Jeová uma
celebração referente ao dia em que Jesus reuniu seus apóstolos para celebrarem a
Páscoa anual. Após terem comido a refeição pascal, Judas retirou-se do ambiente, e
para os 11 apóstolos que ficaram com Jesus, ele introduziu a Refeição Noturna do
Senhor. É chamada também, segundo o grupo, de Comemoração, visto que Jesus
ordenou aos seus seguidores: “Fazei isso em minha comemoração”. Segundo as
Testemunhas de Jeová, Jesus instituiu uma refeição comemorativa – que serviria de
auxílio para a memória, ajudando os seus discípulos a recordar os acontecimentos
muito significativos daquela noite de 14 de nisã de 33 EC31 (Era Comum). Esta
observância é às vezes chamada de Comemoração da Morte de Cristo.
A Comemoração foi instituída com base em dois motivos. O primeiro deles,
segundo o grupo, tem a ver com um dos objetivos da morte de Jesus: “Ele morreu
como defensor da soberania do seu Pai celestial. Cristo provou assim que satanás,
que havia acusado falsamente os humanos de servirem a Deus por motivos egoístas,
era mentiroso” (A Sentinela, 15/02/2003). O segundo motivo da instituição da
Refeição Noturna do Senhor foi para lembrar que, por meio da sua morte como
humano perfeito, “Jesus ‘deu a sua alma como resgate em troca de muitos’ (Mateus
20:28)” (Ibid.). De forma resumida, a celebração da Refeição Noturna do Senhor
lembra “o grande amor demonstrado tanto por Jeová como por seu Filho, expresso
na morte sacrificial de Jesus” (Ibid.).
Quanto à freqüência da celebração, apesar de Jesus não mencionar nada
específico, ele instituiu a Refeição Noturna do Senhor e foi morto no dia da Páscoa,
dia 14 do mês judaico de nisã, celebrada como “recordação” do livramento de Israel
da servidão egípcia em 1513 AEC (antes da era comum). A Páscoa era realizada
apenas uma vez por ano, e Jesus intencionou que a Comemoração fosse celebrada
do mesmo modo. Isso indica, segundo o grupo, que a morte de Jesus deve ser

31
Nisã é o mês judaico. O Dia 14 de Nisã no ano de 2003 caiu no dia 16 de Abril, quarta-feira.
celebrada com a mesma freqüência da Páscoa- anualmente- não mensal, semanal ou
diariamente.
Quando Jesus instituiu a Comemoração, “Tomou ... um pão, deu graças,
partiu-o e deu-lho, dizendo: ‘Isto significa meu corpo que há de ser dado em vosso
benefício. Persisti em fazer isso em memória de mim.’” (Lucas 22:19). Os símbolos
ou emblemas (pão sem fermento e o vinho) são utilizados por Jesus como
elementos simbólicos. O pão sem fermento simbolizava seu próprio corpo carnal
sem pecado, que ele entregou em favor do mundo. O vinho, por sua vez, foi
utilizado por Jesus como representação de seu próprio sangue, que seria derramado
para servir de base de um novo pacto com os discípulos “ungidos com o espírito”,
“que governariam com ele no céu quais reis e sacerdotes” (A Sentinela, 01/04/2003).
O vinho simboliza também o sangue derramado por Jesus para o perdão dos
pecados, “abrindo assim o caminho para os participantes serem convocados para a
vida celestial como co-herdeiros de Cristo” (Ibid.). Logo, somente os cristãos
ungidos (aqueles que fazem parte dos 144 mil que irão governar a Terra com Cristo
no céu) são os únicos que comem o pão e tomam o vinho na Comemoração. As
“outras ovelhas”, ou seja, aqueles que não vão governar com Cristo no céu mas
usufruir a vida eterna numa Terra paradísica (a grande multidão), “têm prazer em ser
observadores apreciativos da Ceia do Senhor” (Ibid.).

3.1. O Evento

Todas as congregações das Testemunhas de Jeová espalhadas pelo mundo


celebram no mesmo dia a Refeição Noturna do Senhor. Porém, cada congregação
realiza seu próprio evento localmente.
Já no início de minhas visitas à congregação da Lagoa, em meados do mês de
março de 2003, estavam sendo divulgadas à comunidade algumas informações a
respeito do evento. Uma delas dizia respeito ao local da realização da Celebração
para o ano de 2003. A Refeição Noturna do Senhor é realizada sempre em algum
local alugado, geralmente fora do Salão do Reino onde ocorrem as Reuniões
regulares. No caso da Congregação da Lagoa, o motivo de “sair” deveu-se ao fato
de que o Salão onde ocorrem as reuniões regulares ser muito pequeno, suportando
cerca de no máximo 70 pessoas. Para um evento importante como este (onde além
da Celebração “em si”, visa-se levar visitantes e convidar possíveis pessoas
afastadas) tornava-se necessário alugar um outro local mais amplo. No início de
minha pesquisa, as informações divulgadas à comunidade tratavam do dia da
celebração (em 2003, seria realizada no dia 16 de Abril), assim como o local da
realização do evento. Os membros eram estimulados a convidar outras pessoas,
como amigos, parentes e vizinhos, e era notável certa expectativa por parte do
grupo para a realização da Celebração.
Chega, então, o dia do evento. Não houve alteração na programação das
reuniões, considerando que o dia da Celebração estava marcado para 16 de Abril,
quarta-feira, “após o pôr do sol”. Levando em consideração os repetidos convites de
minha informante, meu esposo me acompanhou no evento. Vale notar que como
este acontecimento é marcadamente (pelo grupo) um evento especial, fomos
vestidos de forma similar ao grupo: meu marido com terno e gravata, e eu com um
vestido de festa (marcando uma diferença nos trajes que eu estava habituada a usar
durante minhas visitas ao Salão). Estávamos vestidos de forma adequada ao
ambiente, não marcando diferenças no vestuário.
O local alugado para a realização do evento foi um salão de um hotel
conhecido em Florianópolis, notado por sua beleza, excelente infra-estrutura e
proximidade ao mar, propiciando uma vista muito agradável. Havia muitas pessoas
na entrada do Hotel, cumprimentando os que chegavam com apertos de mão,
sorrisos e seguidos “sejam bem vindos!”. Esta recepção “calorosa” contrastou de
certa forma com a recepção muitas vezes indiferente que presenciei inúmeras vezes
no Salão, o que denotou, de fato, um evento esperado e almejado pelo grupo.
Logo em minha chegada encontrei Dalva, que nos convidou para sentar ao
seu lado. O lugar onde estávamos sentados era próximo à porta de entrada. Desta
forma, todos que chegavam nos viam e nos cumprimentavam. O grupo reagiu à
presença de meu marido com muito entusiasmo, elaborando em seus discursos
notável expectativa quanto à nossa freqüência regular às reuniões do grupo.
A Celebração teve seu início exatamente às 19:00 horas. O esquema da
Celebração era muito semelhante às dinâmicas dos encontros semanais32: Após o
discurso público sobre a morte de Cristo, o ancião relatou para o grupo dados sobre
a Refeição Noturna do Senhor ocorridos em todo o mundo no ano de 2002. Fui
surpreendida com os altos números apresentados. Segundo suas estatísticas,
participaram em 2002 da Refeição Noturna do Senhor 15.597.746 (quinze milhões,
quinhentos e noventa e sete mil, setecentos e quarenta e seis) pessoas, presentes em
mais de 94 mil congregações espalhadas pelo mundo. Destas, apenas 8.760 (oito mil
setecentos e sessenta) participaram dos “emblemas” (ou seja, os ungidos).
Após o discurso proferido pelo ancião, o ancião presidente (Carlos, o
missionário que atuava junto à comunidade) foi à frente e assumiu o microfone,
convidando a comunidade a orar novamente. Após esta oração deu-se, então, início
à Comemoração. O salão que comportou o público estava dividido em duas
colunas, com corredores largos entre elas, estando a tribuna à frente. O missionário
Carlos convocou um terceiro ancião, o servo ministerial e mais três jovens rapazes
(que não eram servos ministeriais) para ajudá-lo na Celebração. O ancião que
proferiu o discurso sentou-se junto ao público. No total, os seis homens se
dividiram (três para cada lado) entre os corredores.
A Celebração foi iniciada com o pão ázimo (sem fermento), entregue pelos
homens às primeiras pessoas que estavam sentadas nos bancos da frente. Em duas
bandejas pequenas (uma para cada fileira), o pão foi passado de mão em mão, sendo
auxiliado pelos homens que permaneciam nas extremidades das fileiras, com a
função de transferir a bandeja para a próxima fileira que aguardava nos bancos de
trás. A bandeja foi passada de mão em mão; todos a olhavam, mas ninguém tocava
ou comia o pão. O silêncio neste momento era absoluto no salão. Depois da
bandeja passar pelas mãos de todos os participantes, os homens que estavam de pé
auxiliando na passagem do pão sentaram-se ao lado do ancião que proferiu o
discurso (que já estava sentado), e passaram a bandeja um ao outro.

32
Para uma descrição densa dos eventos regulares praticados pelo grupo, vide capítulo 4. Para o
momento, descrevo brevemente a dinâmica da Celebração para que o leitor atente ao discurso proferido e
elaborado pelo grupo à temática Milenarista.
O mesmo ocorreu com o vinho. Uma bela taça de cristal com vinho tinto foi
passada de mão em mão, sem que ninguém bebesse, repetindo o mesmo
procedimento anterior. O silêncio absoluto permaneceu. Havia grande reverência e
respeito (refletida pela seriedade do semblante) por parte dos presentes. De igual
forma, quando a taça passou pelas mãos de todos os presentes, os homens
sentaram-se junto ao ancião que já estava sentado, e passaram a taça um ao outro,
de maneira que todos participaram do ritual. Todos os presentes no salão, sem
exceção, passaram o pão e o vinho. Mas ninguém bebeu ou comeu. Encerrado este
momento, e após um segundo breve discurso, encerrou-se a Celebração (que teve
seu início pontualmente às 19:00 horas e encerramento às 21:00 horas).
Creio ser necessário explicar ao leitor com maior detalhe alguns aspectos que
envolveram a prática da Celebração, a fim de obtermos entendimento dos reais
significados deste evento. Tratei em momento anterior a respeito do simbolismo do
pão e do vinho na Celebração. Mas vale oferecer mais detalhes, na medida em que
existem fortes argumentações por parte do grupo para a escolha da elaboração de
um pão sem fermento e de um tipo de vinho muito específico, e não um vinho
qualquer.
O pão utilizado por Jesus quando este instituiu a Comemoração era o pão
utilizado na ocasião para a comemoração da Páscoa judaica. Considerando as
palavras de Jesus durante a Comemoração (“Isto significa meu corpo em vosso
benefício” Marcos 14:22), era apropriado que o pão fosse sem fermento. Logo, se o
pão representava o corpo humano perfeito e sem pecado de Jesus, o fermento às
vezes simbolizava maldade, iniqüidade ou pecado.

Cientes disso, as Testemunhas de Jeová seguem o precedente


estabelecido por Jesus, por usarem pão sem fermento na Comemoração.
Em alguns casos, usam matzos (pães ázimos) judaicos, sem tempero e
sem ingredientes extras tais como cebola ou ovos. Em outros casos, pão
sem fermento pode ser feito com uma pequena quantidade de farinha
integral (quando possível, de trigo) misturada com um pouco de água. A
massa deve ser esticada para ser fina e pode ser assada numa forma
levemente untada, até que o pão fique seco e crocante” (A Sentinela,
15/02/2003).

De igual modo, o vinho que havia no copo quando Jesus o tomou, rendeu
graças e o deu aos apóstolos, simbolizando o “sangue do pacto que há de ser
derramado em benefício de muitos” (Marcos 14: 23 e 24) era, segundo o grupo, um
vinho fermentado, e não suco de uva. “Por exemplo, o vinho fermentado, e não o
suco de uva, rebentaria ‘odres velhos’, como Jesus disse. E os inimigos de Cristo o
acusavam de ser ‘dado ao vinho’. Esta acusação não teria sentido se o vinho fosse
apenas suco de uva” (A Sentinela, 15/02/2003). Logo, segundo eles, somente vinho
tinto é um símbolo adequado do sangue derramado por Jesus e foi o vinho tinto que
usou quando instituiu a Comemoração.

Alguns vinhos tintos atuais, porém, não são aceitáveis, porque são
fortificados com aguardente ou outro tipo de álcool, ou se acrescentam a
eles ervas aromáticas e especiarias. O sangue de Jesus era adequado, não
precisando de nenhum acréscimo. Portanto, vinhos tais como porto,
xerez e vermute não seriam apropriados. O copo da Comemoração deve
conter vinho não adocicado e não fortificado. Poderia usar-se vinho
tinto sem adoçantes, feito em casa, e também vinhos tintos tais como o
Borgonha e o clarete (Ibid.).

Não somente estes dois aspectos (o pão e o vinho) nos trazem clareza e
entendimento a respeito dos reais significados do evento da Refeição Noturna do
Senhor, mas também o aspecto dos “ungidos”, ou seja, aqueles que fazem parte dos
144.000 escolhidos que governarão a Terra com Cristo no céu. Somente estes
ungidos podem tomar o vinho ou comer o pão. Tão somente estes estão habilitados
a participar da Comemoração, e Deus reservou esse privilégio àqueles que ele ungiu
com espírito santo para serem “co-herdeiros de Cristo”. Aqueles que esperam viver
para sempre no paraíso global sob o governo divino, visto que não são co-herdeiros
de Jesus com esperança celestial, apenas assistem à Comemoração como
“observadores respeitosos”.
Especialmente a partir de 1935, quando as Testemunhas de Jeová fizeram
uma grande “revisão teológica” a respeito da doutrina dos 144.000, passou-se a dar
atenção também à busca de “novas ovelhas”, ou seja, aqueles “que tem fé no
resgate, que se dedicam a Deus e que apoiam o ‘pequeno rebanho’ dos ungidos na
pregação do reino” (A Sentinela, 15/02/2003). Assim, na década de 30, de acordo
com o grupo a classe celestial estava praticamente completa. Desde então, tem-se
concentrado esforços na busca de “outras ovelhas”, cuja esperança é terrestre. Caso
um ungido se torne infiel, é muito provável que alguém, que já por muito tempo
serve fielmente a Deus como uma das outras ovelhas, seja chamado para preencher
a vaga deixada nos 144.000.
Os cristãos “gerados pelo espírito” (os ungidos) têm certeza de ter sido
incluídos em um novo pacto. Jesus mencionou-o ao usar pão ázimo e vinho para
instituir a Comemoração da sua morte: “Este copo significa o novo pacto em
virtude do meu sangue, que há de ser derramado em vosso benefício.” (Lucas
22:20). Os participantes deste novo pacto são aqueles que Jeová propõe conduzir à
glória celestial. Este novo pacto tira das nações um povo para o nome de Jeová e os
torna parte dos “descendentes” de Abraão. Assim, pois, os cristãos gerados pelo
espírito têm certeza de que estão no novo pacto e no pacto para o Reino. Portanto,
na celebração da Refeição Noturna do Senhor, apenas os relativamente poucos
remanescentes dos ungidos ainda na Terra participam do pão, que representa o
corpo humano, sem pecado, de Jesus, e do vinho, que significa o sangue perfeito
dele derramado na morte.
Na celebração da Refeição Noturna do Senhor comemorada pela
Congregação da Lagoa, grupo que realizei meu trabalho de campo, não havia
nenhum ungido, logo, ninguém naquela noite bebeu o vinho ou comeu o pão. Em
uma conversa descontraída com Carlos (pioneiro especial que atuava junto à
comunidade), perguntei-lhe se ele já havia conhecido pessoalmente algum ungido.
Ele respondeu-me que durante o seu treinamento na sede em São Paulo, conheceu
“de vista” uma pessoa que se dizia ungida. Porém, segundo ele, era vista com “maus
olhos” pelo grupo, já que era muito jovem e consequentemente, pouco experiente.
Se por um lado essa ação de grupo no sentido de dar (ou não) crédito ao ungido
pode denotar uma coerção social restritiva muito forte, por outro lado não há, à
primeira vista, nenhum tipo de proibição ou determinação por parte deste mesmo
grupo à pessoa que se auto-elege como ungida. Logo, pude perceber que de uma
maneira geral o grupo não atribui grande importância a este fato, nem tampouco ao
fato de não fazerem parte do grupo dos ungidos. De tal forma que abordam a
esperança na vida terrestre de maneira descontraída e positiva, e também muitas
vezes como tema de brincadeiras, ao escolherem já de antemão as casas em que irão
morar - preferencialmente na Lagoa da Conceição, com vista para o mar.
Dentro deste contexto, considero que a Refeição Noturna do Senhor é uma
celebração que funciona como reforço da identidade testemunha-de-jeová e é o que
dá legitimidade às crenças ali compartilhadas. Celebram a morte de Cristo, e em
celebrando o passado, o reconhecem como parte de um percurso. Um percurso
muito próximo deles, no sentido de se reconhecerem como atores desta história,
além de também reconhecerem a atualidade destes eventos. É um processo que está
se desenrolando nos dias atuais, o que explica sua urgência em tudo o que se refere
ao milênio. Este percurso é parte de uma etapa que terá seu fim com a vinda do
reino de Jeová, afirmando desta forma a crença na ocorrência do milênio. A
celebração da Refeição Noturna do Senhor vem reafirmar, também, o modo como
as Testemunhas de Jeová serão salvas. Reafirma uma cosmologia específica de
ordenação do milênio, organizando e classificando, dentro do grupo, aqueles que
reinarão com Cristo nos céus e aqueles que viverão no paraíso terrestre. A Refeição
Noturna do Senhor é uma crença compartilhada pelo grupo que serve como reforço
da identidade testemunha-de-jeová, baseando suas concepções na iminência da
instauração do Reino. É, por fim, um reforço institucional da esperança por eles
compartilhadas.
3.2. A Expectativa da Volta

As Testemunhas de Jeová elaboram grande expectativa quanto à vinda do


Reino de Deus, e acabam por construir percepções de tempo baseadas nas possíveis
interpretações do “Tempo de Jeová”. “Jeová é o Grandioso Cronometrista. Sua
cronometragem dos acontecimentos mostrará ser perfeita. As coisas talvez nem
sempre aconteçam como esperamos. No entanto, podemos ter absoluta fé em que
todas as promessas de Deus se cumprirão” (A Sentinela, 15/09/98).
O grupo acredita restar muito pouco tempo deste “iníquo sistema de coisas”
e apesar de aguardarem com grande expectativa os fatos evidentes ocorridos na
atualidade, posicionam-se de maneira a reconhecer que ainda é tempo de pregar as
boas novas do Reino. “Esta obra tem de ser realizada para a satisfação dele. E ‘então
virá o fim’, disse Jesus” (Ibid., p. 17). Este “fim” é aguardado e identificado através
do cumprimento de profecias bíblicas, que então identificadas, dá ao grupo plena
certeza de que o mundo atual está no “tempo do fim” e de que a promessa de Deus
de um novo mundo logo se cumprirá.
Enquanto este “fim” não chega, as Testemunhas de Jeová dedicam tempo e
esforço em prestar atenção em si mesmos, dedicando-se em uma conduta ética e
moral determinada conforme valores pré-estabelecidos pela Instituição. Este
“estado de vigilância” envolve também o anúncio da verdade bíblica a outros.
“Neste tempo do fim, cristãos vigilantes que vêem claramente o sinal da presença de
Cristo têm de proclamar a outros as ‘boas novas do reino’ e alertá-los de que em
breve Cristo virá e executará a sentença de julgamento contra esse sistema iníquo”
(Proclamadores, p. 733).
Então, se retomarmos as discussões até aqui tratadas, podemos elaborar
alguns aspectos a respeito do milenarismo das Testemunhas de Jeová. Um deles
considera que o milenarismo do grupo proposto não está ligado a processos de
exclusão relacionados à esfera econômica. A esperança na vinda do reino de Jeová
não se dá somente no sentido de corrigir um padrão de miséria, injustiça e pobreza
(indicativos deste “sistema de coisas”), mas de alcançar uma sociedade justa e
perfeita onde todos viverão em paz e harmonia.
Esta “espera-esperança”, almejada e não concretizada, nos remete à discussão
de Desroche (1973) já neste capítulo discutida. Este autor vem argumentar que o
fracasso na realização da utopia milenarista pode constituir, da mesma forma, o seu
triunfo, como uma espécie de “sustentação da esperança”. A utopia milenarista das
Testemunhas de Jeová se baseia não nas realizações das profecias identificadas, mas
na esperança que dá a eles novos significados, mobilizando-os em busca de um
mundo melhor. A iminência da volta e as expectativas, concretizadas ou não, servem
como sustentação de um universo simbólico de significados que auxilia na
construção de um desejo coletivo que visa o bem futuro. A espera em si não se
presta a gerar no grupo desestímulo, mas sim, renovação da esperança e reforço dos
valores estabelecidos. Esta “espera” (que tem embutida em si a renovação da
esperança e reforço dos valores) é expressa e elaborada, em grande medida, através
da Celebração da Refeição Noturna do Senhor, aqui relatada. É este evento que, a
meu ver, contribui em grande parte para a “sustentação da esperança”, na medida
em que retoma elementos fundamentais da crença milenarista como parte central de
sua prática.

3.3. A expectativa frustrada

Desde o início de seu trabalho em 1872, Russel (o fundador das


Testemunhas de Jeová) já anunciava que o “Tempo dos gentios” terminaria em
1914. Mesmo tendo criticado alguns homens que haviam fixado várias datas para a
volta de Jeová, Russel estava certo de que existia uma cronologia exata (baseada na
Bíblia) que indicava a primeira semana de outubro de 1914 como o fim dos tempos.
Muitos dos ungidos acreditaram que iriam para o céu naquela primeira semana de
outubro. Porém, nada aconteceu, e todos ainda estavam na Terra. Então, Russel se
pronunciou:
(...) Não era nosso desejo que a nossa vontade fosse feita;
portanto, quando descobrimos que o que estávamos esperando em
outubro de 1914 era errado, ficamos contentes que o Senhor não mudou
Seu plano para nos agradar. Não queríamos que Ele fizesse isso.
Meramente desejamos entender Seus planos e propósitos (...)
Imaginávamos que a obra da colheita (...) seria realizada antes do fim dos
Tempos dos Gentios,; mas nada na Bíblia dizia isso... (...) Nossa atitude
atual (...) deve ser de muita gratidão a Deus, de mais apreço pela bela
verdade que Ele nos concedeu o privilégio de enxergar e de ser
identificados com ela e de incrementado zelo em ajudar a levar essa
Verdade ao conhecimento de outros. (Proclamadores, p. 63).

Calculou-se, já sob a liderança do sucessor de Russel, J. F. Rutherford, que a


volta de Jeová estaria marcada para o ano de 1925. Porém, o ano de 1925 chegou,
passou e nada aconteceu novamente. E argumentaram: “(...) esperanças não
realizadas não são exclusividade dos nossos dias. Os próprios apóstolos tiveram
semelhantes expectativas indevidas...” (Ibid., p. 78).
As Testemunhas de Jeová começaram a partilhar, então, a crença de que o
Reino Milenar de Cristo viria depois de 6.000 anos da história humana. Esses
cálculos, segundo o grupo, apontavam para o ano de 1975. Vale notar que o período
que antecedeu esta data tinha como contexto o fim das grandes guerras e relativa
“paz mundial”. Segundo o grupo, suscitou-se muitos comentários se, então no ano
de 1966, o Armagedom teria terminado e satanás já estaria amarrado. O presidente
do grupo na ocasião, F. W. Franz, respondeu: “Pode ser. Mas não estamos dizendo
isso. Todas as coisas são possíveis a Deus. Mas não estamos dizendo isso. E que
ninguém seja específico ao falar sobre o que irá acontece a partir de agora (1966) até
1975. (...) A grande questão é: o tempo é curto. O tempo está-se esgotando, não
resta dúvidas sobre isso” (Proclamadores, p. 104).
Passou-se, então, o ano de 1975, e as expectativas a respeito da volta do
reino de Jeová não se concretizaram. Os registros do grupo mostram, por sua vez,
que este evento levou o “Corpo Governante” (neste período liderado por Nathan
H. Knorr), em dezembro de 1975, a aprovar “um dos mais importantes reajustes
organizacionais da história moderna das Testemunhas de Jeová” (Ibid., p. 109). A
estrutura organizacional que temos hoje no grupo é resultado deste significativo
reajuste. A partir de 1º de janeiro de 1976, todas as atividades da Sociedade Torre
de Vigia de Bíblias e Tratados e das congregações das Testemunhas de Jeová
espalhadas pela Terra foram então submetidas às comissões administrativas do
Corpo Governante. Os resultados desta reestruturação revelam, em grande medida,
a reflexão que passo a desenvolver no capítulo seguinte que vai tratar da relação do
indivíduo com a Sociedade Torre Vigia.
Capítulo 3
O Indivíduo testemunha-de-jeová

Como mencionei antes, a partir de 1976 iniciou-se uma grande reforma na


estrutura organizacional das Testemunhas de Jeová. A Instituição tinha, com esta
reforma, o objetivo de cuidar “da melhor maneira possível” (Proclamadores, p.108)
de tudo o que estava envolvido na pregação mundial e no trabalho de ensino na
Palavra de Deus. Para tanto, o Corpo Governante passou a não mais centrar sua
doutrina na marcação de datas específicas para a volta de Jeová, e sim a tomar
medidas para fortalecer a convicção entre as Testemunhas de Jeová “da necessidade
de continuar zelosamente a proclamar o Reino de casa em casa” (Proclamadores, p.
110). Passou-se a investir, então, em diversos centros de treinamento ao redor do
mundo e inúmeras publicações visando reforçar o conjunto de valores por eles
compartilhados.
Todo este reordenamento foi liderado por Frederick W. Franz, então
presidente da Associação. Este líder, assim como seus antecessores, são
reconhecidos pelas Testemunhas de Jeová como homens que contribuíram de modo
notável para o progresso da obra do Reino. Os registros do grupo remetem, em
ordem cronológica, a Charles T. Russell (o fundador), Joseph F. Rutherford, Nathan
H.Knorr e Frederick W. Franz. Mas foi a partir da reestruturação liderada por Franz
que a Sociedade Torre de Vigia passou a negar a personificação da Instituição
relacionada a um homem específico e a remeter apenas a um líder divino, Jesus
Cristo.

Ele (Cristo) é Cabeça dessas Testemunhas organizadas de Jeová, aquele a


quem ‘foi dada toda a autoridade’ para dirigir esta obra “todos os dias,
até à terminação do sistema de coisas”. (Mat. 28:18-20) Estão
determinadas a se submeter à chefia de Cristo, a se apegar à Palavra de
Deus e a cooperar com a direção do espírito santo, para que continuem a
avançar na adoração do único Deus verdadeiro e a provar ser “um povo
peculiarmente seu, zeloso de obras excelentes”. — Tito 2:14.
(Proclamadores, p. 117).

Deste período em diante, as Testemunhas de Jeová passaram a anular a


imagem do líder e a remeter exclusivamente à liderança de Cristo. Notei claramente
este fato durante me trabalho de campo. Ao perguntar-lhes a respeito do atual líder
das Testemunhas de Jeová, não sabiam informar-me seu nome, de onde era, nem o
período de vigência de sua administração. Dalva, minha principal informante,
reproduziu o discurso da citação acima. Os quatro líderes citados acima foram
usados por Deus apenas para reorganizar e reagrupar as Testemunhas de Jeová na
Terra. Hoje, porém, segundo ela, não há necessidade de remeter à pessoa de um
líder. “Quem lidera as Testemunhas de Jeová hoje é Jesus Cristo”, relatou-me Dalva.
Este deslocamento da personificação de um indivíduo à pessoa de Jesus Cristo é
revelador da anulação do valor indivíduo (Dumont: 2000)33 em prol do valor da
Instituição como totalidade. Ao discutir a auto-definição das Testemunhas de Jeová
como grupo, Montenegro (1996) mostra um desdobramento no que de um lado é o
grupo e o que, de outro, é a Organização. Considerando que grupo é algo que
sempre existiu e que organização é algo criado por homens, Montenegro argumenta:

As expressões referidas à organização sempre implicam uma imagem


antropomórfica dela, frases como ‘a organização diz’, ‘a organização nos
pede’, ‘a organização pensa’ formam parte de um vocabulário cotidiano
da congregação; tal imagem remete à idéia de que a organização chamada
‘teocrática’ é quase um canal direto da expressão da vontade de Jeová e
por isso o grupo foi por ela englobado (Montenegro, 1996:10).

33
De acordo com Dumont (2000), o desenvolvimento histórico a partir de uma matriz social do tipo holista
para uma sociedade individualista é o que desencadeia o individualismo como um valor. Este seria um
traço típico da cultura ocidental.
Ou seja, a Instituição enquanto “ser antropomórfico” engloba a identidade
individual do membro Testemunha de Jeová.
Montenegro (1996) utliza James Beckford34 para conceituar as Testemunhas
de Jeová como seita estabelecida. Seita porque mantém características de tensão e
apartamento do seu meio sociocultural, e estabelecida porque o autor está se
contrapondo à idéia evolucionista de que as seitas necessariamente se transformariam
em denominações35. O importante é que a partir de uma classificação das seitas
estabelecidas que leva em consideração dois eixos - um eixo vertical que considera o
grau de especificidade dos objetivos que o grupo persegue que refere-se à ideologia;
e um eixo horizontal, que considera o grau de intensidade com que esses objetivos
se perseguem, eixo que se refere à organização – Beckford classifica quatro tipos de
grupos: totalizantes, ativistas, individualistas e convencionais. Montenegro (Ibid.)
argumenta que Beckford vai considerar as Testemunhas de Jeová como um grupo
tipicamente totalizante:

A esta categoria corresponderia um número muito pequeno de grupos


caracterizados por uma liderança assertiva por cima do nível de grupos
locais, objetivos altamente específicos, imensa condução para lograr os
objetivos, rigoroso controle dos membros na demanda por tempo e
energia, um controle sobre a qualidade dos neófitos, uma atitude
totalizante para com a vida dos membros, claridade (sic) respeito a como
devem ser as relações com as autoridades seculares, negativa a cooperar
com outras organizações religiosas, uma alta taxa de recrutamento e
recâmbio (sic) de membresia e uma baixa taxa de mudança no doutrinal
(Montenegro, 1996: 18).

Assim como Montenegro, não estou buscando uma tipologia classificatória


para o grupo à maneira de Beckford. Mas parto do princípio de que a discussão que
está contida no conceito de “seita estabelecida” pode ser utilizada no sentido não

34
Beckford, James.The trumpet of Prophecy – A Sociological Study of Jehovah’s Witnesses. Halsted
Press Book, John Wiley & Sons, New York, 1975.
35
Não é propósito deste trabalho desenvolver esta discussão, visto que está muito bem desenvolvida por
Montenegro (1996).
apenas de diferenciar as Testemunhas de Jeová de outros grupos, mas de conceituá-
las em termos missionários. Na bibliografia percorrida sobre o grupo, constatei que
apesar do grupo possuir as características que compõem o “tipo ideal” da seita, não
é um grupo fundado a partir de um cisma, e sim, criado por um líder que
desenvolve a maior parte do corpo doutrinal, recruta seus membros através do
proselitismo e lhes exige exclusividade, permanecendo até hoje em um estado de
tensão muito grande frente ao mundo secular. O conceito de seitas estabelecidas
permite considerar a existência de dois tipos: aquelas que literalmente se separam da
sociedade (através do isolamento geográfico), e também aquelas que permanecem na
sociedade global, nas áreas urbanas - como é o caso das Testemunhas de Jeová (O’
dea, 1969).
Neste contexto, o indivíduo passa a ser mera peça de engrenagem da
Instituição testemunha-de-jeová. A força totalizadora das Testemunhas de Jeová é
tanta que, ainda que esses indivíduos participem do mundo através de suas
profissões, eles não se tornam –e não se vêem como - indivíduos fragmentados
(Jungblut, 2000). A profissão/trabalho é um mero instrumento de viabilização da
existência e de viabilização do projeto testemunha-de-jeová. Logo, eles são
indivíduos em um mundo fragmentado, mas totalmente preservados pela
Instituição, que os engloba completamente.
Esta percepção de preservação da Sociedade sobre os indivíduos é detectada,
num primeiro momento, através do discurso dos pioneiros especiais, Carlos e
Eduarda, que estavam durante esta pesquisa trabalhando na congregação da Lagoa
da Conceição, em Florianópolis. Em uma das várias conversas que tivemos, eles me
informaram que estavam sendo, dentro de alguns meses, transferidos para o interior
do Estado do Paraná, onde iriam atuar como “superintendente de circuito” nas
congregações da região. Esta função implica num deslocamento constante, visitando
e auxiliando a cada semana uma congregação diferente. Ao indagar-lhes sobre os
possíveis sacrifícios e dificuldades desta função, considerando que não estabelecem
residência fixa (diferente do pioneiro especial, que reside geralmente em um lugar
próximo à congregação em que trabalha), responderam-me de forma a reconhecer
os sacrifícios de ser um pioneiro e futuramente um superintendente, mas
consideram estarem libertos do “sistema de coisas” vigente. A perspectiva da busca
incessante pelo “ter” é algo que, para Carlos e Eduarda, aprisiona o homem. Logo,
para eles, os bens materiais (e aqui me refiro, entre outras coisas, à sua mudança)
estão limitados a poucos objetos e pertences pessoais. Esta renúncia aos padrões do
“mundo” vai mais além. Como pioneiros especiais, dedicam tempo integral à obra
proselitista testemunha-de-jeová e não trabalham em serviços seculares. Este casal
provê seu sustento através de doações dos irmãos de diversas congregações e
através do recebimento de uma ajuda de custo mensal da Instituição. O recebimento
desta ajuda de custo vinda da Instituição Torre de Vigia de Bíblias e Tratados
significa dizer, entre outras coisas, que este casal vive conforme as regras de conduta
estabelecida pela Instituição. Entre essas regras, há a proibição de ter filhos. Isto
significa dizer que se um casal dedicar todos os anos de sua vida à obra missionária,
nunca terão filhos. Se porventura isto vier a acontecer, automaticamente eles são
desligados da função, deixando de ser Pioneiros. Esta informação, não posso negar,
deixou-me surpresa, considerando que eu tinha diante de mim um belo casal recém-
casado, ambos novos (Eduarda então com 23 anos e Carlos com 38). Minha
surpresa, que por um instante quase se tornou em indelicadeza me levou a olhar
para Eduarda e perguntar: “Mas vocês não querem ter filhos?”. Eduarda, com um
sorriso nos lábios, respondeu-me despretensiosamente: “Não!”.
É notável na vida dos pioneiros especiais o indivíduo-fora-do-mundo
referido por Dumont (2000). Mas considero, na mesma medida, a existência desses
indivíduos-fora-do-mundo entre as Testemunhas de Jeová que não dedicam
exclusividade à obra missionária e que dividem seu tempo com as tarefas domésticas
e seculares, como trabalho, casa, filhos e família. Passo a considerá-los, de igual
forma, assim como Carlos e Eduarda, como indivíduos-fora-do-mundo, também
vivendo o abismo entre o mundo social em que vivem e o mundo social vigente.
Identificar este elemento de separação do mundo em pessoas Testemunhas de Jeová
“comuns”, ou seja, com atividades seculares como outra qualquer, salta os olhos por
estarem vivendo, em muitos aspectos (trabalho, escola, filhos, contas para pagar,
etc.) dentro da sociedade secular. Entre os diversos exemplos possíveis de serem
selecionados, um deles nos revela, entre outras coisas, a construção deste indivíduo-
fora-do-mundo: as comemorações festivas consideradas pagãs.
Um exemplo diz respeito ao que o grupo chama de aniversários natalícios.
Segundo eles, embora as Testemunhas de Jeová respeitem o direito de outras
pessoas comemorarem aniversários natalícios, ressaltam que preferem não participar
de tais comemorações. Entre os motivos, o grupo remonta ao tempo da
Mesopotâmia e Antigo Egito para justificar a negação de uma prática que no
ambiente sociocultural que vivem pode ser vista como um reforço do valor
indivíduo. E explica:

‘A Mesopotâmia e o Egito, berços da civilização, foram também as


primeiras terras em que os homens lembravam e honravam seus
aniversários natalícios. A guarda de registros de aniversários natalícios era
importante, nos tempos antigos, principalmente porque a data do
nascimento era essencial para se fazer um horóscopo’36. A ligação direta
com a astrologia é motivo de grande preocupação para todos os que
evitam a astrologia por causa do que a bíblia diz sobre ela. (...) (As
Testemunhas de Jeová e a Educação, p. 15).

As posturas que acima relatei poderiam ser pensadas como o distanciamento a


que Dumont se refere (2000), o distanciamento em face do mundo social,
construído por eles, que acaba por gerar uma relativização da vida, apesar de não
poder classificar as Testemunhas de Jeová como renunciantes nos moldes de
Dumont37. Esta relativização da vida é o que dá ao grupo a capacidade de negociar e
abdicar de valores sociais vigentes e predominantes em prol de uma crença na busca
fervorosa de agradar a Jeová Deus, de sofrer por Ele, com imensa satisfação. Estão
neste “mundo”, mas dele não fazem parte.
A presença das Testemunhas de Jeová neste “mundo” tem, então, o
compromisso da salvação do maior número de pessoas possível. E é para isso que

36
A parte desta citação contida entre aspas é uma referência que o grupo utiliza dos autores Ralph e
Adelin Linton, do livro The Lore of Birthdays.
37
Dumont vai comparar este homem renunciante ao indivíduo moderno, mas com uma diferença
essencial: enquanto nós vivemos no mundo social, o renunciante vive fora dele. Por este fato, Dumont
passa então a referir-se a este renunciante como um indivíduo-fora-do-mundo, em comparação a nós,
que somos indivíduos-no-mundo.
os indivíduos são necessários. Pois o recrutamento dos membros, entre as
Testemunhas de Jeová, é resultado de um extenso e intenso trabalho proselitista, de
porta em porta, de indivíduo em indivíduo.

1. A Instituição e o Indivíduo

A Internet, conforme tratei na introdução deste trabalho, nos serve aqui


enquanto um recurso metodológico que auxilia na visualização do abarcamento da
Instituição sobre o indivíduo. Conforme abordei no capítulo 1, é o contraste dado
pela diferença na utilização de diferentes meios de comunicação das Testemunhas
de Jeová e os outros grupos religiosos que nos auxilia no esclarecimento do modo
como o grupo pesquisado visualiza a missão e como eles se constituem enquanto
um corpo missionário.
O estudo de Jungblut (2000), que tratou do aspecto da construção do
indivíduo na Internet, é o ponto de referência que aqui vou utilizar para pensar a
construção das Testemunhas de Jeová como missionárias. Jungblut analisou a forma
como os evangélicos atualizam, através da Internet, certos padrões de
comportamento social experimentados em diferentes esferas da sociedade em geral,
o ciberespaço e o campo evangélico. O trabalho de Jungblut pode, neste contexto,
contribuir em diversos aspectos, considerando que este autor está pensando o
indivíduo dentro de um quadro de “transformações inéditas e tão globalmente
impactantes” (Ibid., p. 42). As atitudes frente estas rápidas transformações sociais
evidenciam, ainda mais, aspectos específicos do indivíduo presente nas
Testemunhas de Jeová em contraposição ao indivíduo na sociedade moderna e
contemporânea.
Jungblut faz uma reflexão sobre a construção do “eu” na Internet. Na
impossibilidade de utilizar formas tradicionais de se apresentar diante de outros,
através do corpo, voz, roupa, etc., este “eu”, ao se utilizar de meios de comunicação,
precisa se construir e se descrever como pessoa para o outro. E é neste exercício, no
que ele pressupõe de poder de auto-representação, que o indivíduo atual mostra-se
talvez mais nu do que nunca. A fragmentação do “eu” é, segundo o autor,
proporcionada pelos diversos recursos que possibilitam múltiplas interações
simultâneas. Este “eu” que Jungblut se refere, no que tange as Testemunhas de
Jeová, não oferece possibilidades de auto-representação. O que parece essencial
nestes processos todos em que se vê o indivíduo no ciberespaço são, na opinião de
Jungblut, os novos poderes, as novas formas de autonomia, de liberdade que este
“eu” passa a desfrutar. A representação frente ao mundo secular (dentro e fora dos
meios de comunicação) é construída e determinada não por uma parcela de pessoas
que compartilham uma mesma cosmovisão, mas por uma Instituição que tem uma
atitude totalizante para com a vida dos membros. Logo, o que encontramos na
Internet não é este “eu” sugerido por Jungblut, com poderes de auto-representação,
mas sim a Instituição. A Instituição que pensa, que fala, que decide, que tem voz
única. Logo, a face que se mostra ao mundo secular, a face que encontramos na
Internet é a face da Instituição.
Jungblut ressalta que são muitos os autores que, ao analisar o ciberespaço,
evidenciam seu caráter anárquico, caótico, amorfo, perigoso, etc. Mas o que há, de
fato, na opinião de Jungblut (2000), “é um determinado consenso de que o
ciberespaço subverte muito da normatização social que mal ou bem impera no
mundo offline (...)” (Ibid., p. 44). Há porém, que se reconhecer que neste amplo
universo virtual o que passa a ocorrer, também, não é apenas uma subversão das
regras de normatização social, mas a criação e o estabelecimento de novas regras de
conduta, condizente com o ambiente social pré-estabelecido. Há também descrições
de autores que segundo Jungblut referem-se ao ciberespaço como um território livre
para manifestações de todas as idéias possíveis, “local em que qualquer pessoa
dotada de um mínimo de recursos consegue disponibilizar a centenas de milhões de
pessoas dados que considera relevantes a qualquer causa ou finalidade” (Ibid., p.44).
No caso das Testemunhas de Jeová, há um reconhecimento da utilidade deste
espaço virtual, admitindo ter um certo valor educativo e relativa importância no
mundo dos negócios e das comunicações. Porém, reside exatamente aí um dos seus
grandes perigos: por ser um grande território livre para manifestações individuais e
de diversas idéias possíveis, passa a ser um espaço altamente periculoso, contendo
todas as perversões humanas possíveis. Entre elas a pornografia, livremente
disponível para ser acessada por crianças, jovens e adultos. Em um relato em uma
de suas publicações, alegam: “Alguns sites são chocantes. E podem aparecer sem
mais nem menos (...) Eles tentam enlaçar você. Querem seduzi-lo – para tirar o seu
dinheiro (...). Uma vez que você começa a ver matéria imprópria, é difícil parar – é
uma coisa que vicia mesmo.” (Despertai!, 22/01/2000). Não somente a pornografia é
fonte de alerta, mas também a pedofilia. As Testemunhas de Jeová alertam seus
membros, em especial os pais, contra estes exploradores de crianças: “Alguns
pedófilos participam em conversas eletrônicas interativas com jovens. Fingindo-se
de crianças, esses adultos extraem nomes e endereços de jovens insuspeitos”
(Despertai!, 22/07/1997). Ou então: “Não há limites ou restrições ao tipo de
informação que os usuários da Internet podem implantar e acessar. Esse é um
ambiente onde geralmente as crianças e os adolescentes são alvos fáceis do crime e
da exploração (...) (Ibid.). Seja como for, a liberdade que esse território oferece
compromete não somente o aspecto moral da família como também propicia
informações apóstatas a respeito do grupo, preocupação central no discurso das
Testemunhas de Jeová. Exemplifico esta argumentação no que se refere ao uso do e-
mail:

As informações talvez lhe sejam passadas na forma de experiências ou


comentários sobre nossas crenças. Estas informações são passadas a
outros que, por sua vez, também as passam adiante. Geralmente, não há
como confirmar as informações, que podem ser inverídicas. Os
comentários podem servir de fachada para divulgar idéias apóstatas.
(Nosso Ministério do Reino, novembro de 1999).

Esta fragmentação dirige nosso olhar para os considerados perigos do


ciberespaço, claramente confirmados no discurso das Testemunhas de Jeová. O fato
é que o “eu” das Testemunhas de Jeová é, na verdade a Sociedade Torre de Vigia de
Bíblias e Tratados (eu Testemunha de Jeová = eu Organização). O “eu” individual
não encontra espaço no ambiente virtual, já que é absorvido pela identidade
abrangente da Instituição, que em todos os momentos se apresenta como
mediadora destas informações. Isto é revelado pelo fato de a Instituição orientar os
seus membros a não disponibilizarem páginas na Internet, instruindo-os a
remeterem qualquer informação sobre a Sociedade à página oficial38. Absorvem,
desta forma, as expressões e discursos individuais possivelmente elaborados neste
meio virtual. Estas expressões individuais são tão claramente absorvidas pela
Instituição que relatam:

Por volta de 1980, algumas pessoas que haviam participado nas


atividades das Testemunhas de Jeová por vários anos, incluindo alguns
que haviam servido com destaque na organização, vinham tentando de
vários modos causar divisão e se opunham à obra das Testemunhas de
Jeová. Para fortalecer o povo de Jeová contra essa influência apóstata, A
Sentinela publicou artigos (...). O Corpo Governante não permitiu que os
esforços dos opositores o desviassem do objetivo primário das
Testemunhas de Jeová —proclamar o Reino de Deus! (Proclamadores,
p. 110)

Na concepção de Jungblut, para o indivíduo no mundo moderno

(...) a religião se transforma numa crença experimentada muito mais


individualmente do que coletivamente, já que é o indivíduo que, em
última instância, é que detém o poder de arbitrar o que é ou não passível
de ser aceito como plausível em relação à religião. Mesmo fazendo parte
de coletividades religiosas (...). é o indivíduo quem decide quais traços
religiosos expressos na coletividade são os que devem ser enfatizados,
relegados a segundo plano ou ignorados. O indivíduo (...) transforma-se
no gestor quase absoluto da cosmovisão de que se diz crente. Trata-se,
portanto, de um poder adquirido pelo indivíduo, de autonomia
individual frente às tradições religiosas (Ibid., p. 69).

38
Conforme tratei de descrever no capítulo 1.
Esta citação é de riqueza teórica imprescindível para este trabalho. Ela
sintetiza em poucas linhas o que arriscaria chamar de cenário da religião no mundo
atual. Mas a riqueza do texto deste autor reside no fato de apresentar, na
comparação com as Testemunhas de Jeová, um contraste significativo, apesar de
semelhanças existirem também. As Testemunhas de Jeová reconhecem essa
fragmentação e exatamente por isso negam, de modo enfático, o seu uso. Mas ainda
que com tamanho poder fragmentador, a Internet não propicia a construção do
indivíduo testemunha-de-jeová e acaba por ser, diante de tamanho potencial,
relativizada pela Instituição.
Esta relativização da Internet pode ser vislumbrada em diversos artigos
publicados pela Instituição a respeito do assunto. “Pode tudo na Internet ser
considerado saudável? Que serviços e recursos ela oferece? Que precauções se
recomendam?” (Despertai!, 22/07/1997). Algumas temáticas são centrais na
discussão que o grupo propõe a partir destes artigos. Entre elas, destaco a pedofilia,
pornografia, vício em Internet, vício em informação, e a apostasia. Alguns artigos
remetem também à questão da identidade, na medida em que, ao utilizarem a
Internet, as Testemunhas de Jeová podem estar relacionando-se com outra pessoa
que se diz ser Testemunha de Jeová mas não é, ou então, acabar defrontando-se
com idéias apóstatas a respeito do grupo. Seja como for, me parece que há não
somente uma relativização no uso da Internet, mas também uma clara intervenção
da Instituição no sentido de impedir qualquer possibilidade do eu Testemunha de
Jeová vir a ser um indivíduo autônomo.
A religião das Testemunhas de Jeová é que detém o poder de arbitrar o que é
ou não passível de ser aceito como plausível ao grupo. É a Organização que decide
quais traços devem ser expressos, relegados a segundo plano ou ignorados na
coletividade. É a Instituição que gesta a cosmovisão que os indivíduos se dizem
crentes. E não o indivíduo. Não são possíveis pequenas narrativas construídas pelo
indivíduo como fruto do seu espontaneísmo. Pelo contrário, as narrativas utilizadas
no processo proselitista são elaboradas pela Organização e padronizadas no discurso
de todos os membros da Instituição. A Internet, neste sentido, é reveladora desta
noção de Indivíduo construída pelas Testemunhas de Jeová. A Organização
determina o tempo de uso, as informações que devem ser vistas e evitadas pelo
indivíduo. A Organização é que dá orientação à família quanto aos perigos
implícitos no uso. A Organização orienta o indivíduo nos aspectos religiosos e
morais a serem atendidos pelo indivíduo. É a Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e
Tratados quem gesta a cosmovisão do grupo, e não os indivíduos.
Falei aqui que o indivíduo testemunha-de-jeová, apesar de viver em um
mundo fragmentado e fragmentador, é totalmente preservado pela Instituição, que
acaba por cumprir um papel englobador. Isto revela-se também através da Internet
quando a Instituição solicita o zelo dos membros de “separar-se do mundo”. Um
perigo muito “sutil” possibilitado pela Internet diz respeito ao fato das Testemunhas
de Jeová envolverem-se com pessoas estranhas que não respeitam os princípios
bíblicos. Com base em 1 Coríntios 15:33 (“Não sejais desencaminhados. Más
associações estragam hábitos úteis”), argumentam que más companhias via
computador são perigosas. Vejamos outra argumentação em uma de suas revistas:

Na organização de Deus encontramos orientação e proteção para nos


manter separados do mundo e motivados a nos envolver bastante na
obra do Senhor. (1 Cor. 15:58). (...) A congregação também fornece
apoio espiritual e ajuda para seus membros. Ali poderá encontrar um
grupo de amigos amorosos, que demonstram preocupação e interesse -
pessoas a quem você conhece pessoalmente e que estão prontas e
dispostas a ajudar e a consolar os outros nos momentos difíceis. (2 Cor.
7:5-7) Os membros da congregação são protegidos pela providência
bíblica de desassociar tanto transgressores impenitentes como quem
promove idéias apóstatas. (1 Cor. 5:9-13; Tito 3:10, 11) Será que
podemos esperar encontrar esse mesmo cuidado amoroso quando nos
associamos com outros via Internet? (Nosso Ministério do Reino,
nov/1999).
O grupo argumenta que as evidências provam o contrário:

Alguns sites da Internet obviamente são veículos de propaganda apóstata.


Esses sites podem afirmar o contrário, e seus autores podem fornecer
explicações detalhadas para comprovar que realmente são Testemunhas
de Jeová. Podem até pedir que lhes forneça informações com o objetivo
de verificar se você é Testemunha de Jeová (Ibid.).

Um dos principais argumentos do grupo orienta as pessoas à busca de


discernimento. É este discernimento bíblico que protegerá os indivíduos dos
perigos da Internet. É o discernimento encontrado na Sociedade, na leitura da sua
produção bibliográfica e nas orientações produzidas pela Sociedade é que pode
proteger o indivíduo deste ambiente enganoso.
A prática missionária dos evangélicos registrada por Jungblut revela que estes
“...poderão ser vistos divulgando severa ou amistosamente mensagens cristãs em
salas ou canais ‘mundanos’. (...) Como justificativa por estarem em ‘locais’ tão
mundanos poderão dizer que, ‘como ovelhas no meio dos lobos’, estão pregando o
evangelho (...)” (Jungblut, p. 111). Os evangélicos tornam-se, para Jungblut, agentes
ativos de interlocução com o mundo, escolhendo lugares, assuntos e interlocutores
com quem querem se comunicar, e isso sem que sua identidade cristã-evangélica seja
obrigatoriamente revelada. No caso das Testemunhas de Jeová, há poucas
possibilidades de encontrá-los pregando a mensagem em salas de bate papo
considerada por eles como “apóstatas”. Há, também, uma total impossibilidade de
que sua identidade não seja revelada, principalmente durante o trabalho proselitista.
Jungblut faz uma referência aos evangélicos, mas que em muito pode se
aplicar ao caso das Testemunhas de Jeová:

“Mas o ‘mundo’ hostil que lhes assalta não é de todo indesejado, pois
essa sua hostilidade (...) quando interpretada à luz de certas referências
bíblicas, ganha um sentido quase positivo, uma vez que confirma aquelas
profecias que garantem que contra os ‘salvos’ muitos se levantariam em
perseguições e que nesses ‘últimos tempos, que pensam estarem vivendo,
haveria muito ‘escarnecedores’ (Judas 1:8) (...) Esse mundo que lhes
visita auxilia-os a comprovar cabalmente a malignidade que ele carrega
consigo e a reforçar os propósitos desses crentes de se manterem dele o
mais afastado possível” (Ibid., p. 228).

A Internet, em última análise, é para as Testemunhas de Jeová reforçadora


desta argumentação. Enquanto que, para Jungblut, os evangélicos usuários da
Internet saem ilesos do contato com os “outros” e ainda reforçam os fundamentos
de sua fé, para as Testemunhas de Jeová a Internet é exatamente o ambiente
propício para a inquietação desta crença “inabalável”. “O que há (...) é uma
flexibilização do cumprimento de uma determinada norma de conduta biblicamente
estabelecida. Flexibilização essa que efetivamente se dá como um ato de aumento de
autonomia desses crentes em relação à tradição” (Ibid., p. 237).
Capítulo 4
Missão e as Testemunhas de Jeová

Busquei no capítulo anterior refletir a respeito do papel do indivíduo na


Sociedade das Testemunhas de Jeová como um dos elementos que compõem um
cenário mais amplo da prática missionária testemunha-de-jeová. Argumentei até aqui
que três elementos são reveladores deste fazer missão para o grupo, a saber, o
privilegiamento do contato face a face (e o conseqüente não-uso da Internet), a
percepção de tempo a partir da perspectiva milenarista e o papel do indivíduo na
Instituição. Resta-me, então, neste cenário, realizar uma reflexão aprofundada sobre
o aspecto missionário em si, partindo dos dados encontrados em meu trabalho de
campo.

1. Pensando a Missão

Bosch (2002) elabora uma sinopse da forma como o termo missão tem sido
usado tradicionalmente, apontando que o termo foi parafraseado como: a)
propagação da fé; b) expansão do reinado de Deus; c) conversão dos pagãos e d)
fundação de novas igrejas. Ainda assim, estas conotações são bastante recentes. Até
o século XVI o termo missão era utilizado exclusivamente com referência à doutrina
da Trindade (envio do Filho pelo Pai e do Espírito Santo pelo Pai e Filho). Os
Jesuítas foram os primeiros a usá-lo em termos de difusão da fé cristã entre pessoas,
inclusive protestantes, que não eram membros da Igreja Católica. O termo estava,
na verdade, intimamente associado à idéia de expansão colonial. Mas Bosch também
considera que o termo missão pressupõe, assim, que quem envia tem autoridade
para fazer isso. “Com freqüência, se sustentava que quem realmente enviava era
Deus, que tinha a incontestável autoridade de decretar que pessoas sejam enviadas
para executar sua vontade. Na prática, entretanto, a autoridade era entendida como
sendo conferida à Igreja ou a uma sociedade missionária, ou mesmo a um potentado
cristão” (Bosch, 2002: 17). Fazia parte desta abordagem conceber missão em termos
de expansão, ocupação de campos, conquista de outras religiões e coisas
semelhantes.
Bosch considera os motivos da missão muitas vezes ambíguos. Entre os
motivos “impuros”, o autor identificou alguns elementos, como a) o motivo
imperialista, b) cultural (missão como transferência da cultura “superior” do
missionário), c) o motivo romântico (desejo de conhecer países e povos “exóticos”)
e d) o motivo do colonialismo eclesiástico (desejo de enviar a crença e ordem
eclesiástica a outros territórios).
Teologicamente mais adequados, mas segundo Bosch também ambíguos em
sua manifestação, existem outros motivos missionários, como a) o da conversão,
que enfatiza o valor da decisão e compromisso social (porém tende a limitar o reino
de Deus às almas salvas), b) o motivo escatológico, que fixa os olhos das pessoas no
reinado de Deus como realidade futura, esquecendo exigências dessa vida; c) o
motivo da instalação das igrejas, que acentua a necessidade de reunir uma
comunidade de pessoas comprometidas (mas passa a identificar reino de Deus com
Igreja) e d) o motivo filantrópico, pelo qual a igreja é desafiada a buscar justiça no
mundo.
Logo, neste cenário de ambigüidades quanto ao conceito e prática da missão,
Bosch (Ibid.) sugere uma definição provisória para o conceito, pois reconhece que
diante deste cenário é possível formular apenas aproximações do que possa
significar o conceito de missão. Algumas delas podem ser esclarecedoras para o
nosso interesse, e por isso pontuarei as que considero mais próximas da realidade
encontrada em campo e de acordo com a auto-definição sugerida pelo próprio
grupo.

1. A fé cristã é intrinsecamente missionária e compartilha essa característica


persuasiva com diversas religiões. O cristianismo é missionário por sua própria
natureza, ou nega sua própria razão de ser;
2. A missão cristã dá expressão ao relacionamento dinâmico entre Deus e o
mundo;
3. Não há “leis” de missão imutáveis e corretas às quais a Bíblia daria acesso e que
proporcionaria às pessoas esquemas de aplicação em cada situação;
4. A Igreja Cristã deve ser caracterizada como existência missionária. Isto significa
dizer que a Igreja começa a ser missionária não através de sua proclamação
universal do evangelho, mas através da universalidade do evangelho que ela
proclama;
5. A justificação e fundamentação das missões (exterior e no próprio país) residem
na universalidade da salvação e na indivisibilidade do reinado de Cristo;
6. É necessário estabelecer distinção entre missão (no singular) e missões (no plural).
“Missão” designa a missio Dei (missão de Deus), ou seja, a auto-revelação de
Deus como Aquele que ama o mundo. “Missões” , as missiones ecclesiae (missões
da Igreja) designa formas particulares, relacionadas com o tempo, lugares ou
necessidades específicos, de participação na missio Dei;
7. Missão é o “sim” de Deus ao mundo. Atualmente, o sim de Deus se revela ao
mundo no engajamento missionário da igreja no tocante às realidades de
pobreza, injustiça, etc.;
8. Mas missão é também o “não” de Deus ao mundo. Se por um lado sustenta-se
que o “sim” de Deus ao mundo é a expressão da solidariedade cristã com a
sociedade, também tem-se a confirmação da missão e evangelização como o
“não” de Deus, como expressão de nossa oposição e conflito com o mundo;
9. A missão inclui a evangelização como uma de suas dimensões essenciais.
Evangelização é a proclamação da salvação em Cristo às pessoas que não crêem
nele, chamando-as ao arrependimento e à conversão, anunciando o perdão do
pecado e convidando-as a tornar-se membros vivos da comunidade terrena de
Cristo e a começar uma vida de serviço aos outros no poder do Espírito Santo
(Ibid., p. 26).

Vale, porém, atentar para o fato de que a reflexão de Bosch é elaborada a


partir da idéia de que a fé cristã é intrinsecamente missionária se pautando, portanto,
nas práticas e concepções missionárias cristãs. Sugiro, porém, (baseada nas
concepções de Bosch) que a missão feita pelas Testemunhas de Jeová é diferente do
que ele chama Missão Cristã. Bosch, em sua concepção finalizadora, reconhece que
missão cristã é a participação de pessoas cristãs na missão libertadora de Jesus, que
é a boa nova do amor de Deus, e que tem como objetivo transformar a sociedade e
o indivíduo à luz de Cristo (Silva, 1999).
A perspectiva missionária das Testemunhas de Jeová, apesar de elaborar
aspectos semelhantes aos da missão cristã, estabelece valores diferenciados com
relação ao personagem central da sua prática, não assumindo o cristianismo como
eixo único da sua identidade religiosa. Jesus Cristo não ocupa papel central e
motivador das suas ações, e as pessoas atuam na experiência de uma missão que, em
nome da salvação, promove a doutrina e elabora estruturas de plausibilidade
(Berger, 1997) que objetivam o reforço dos valores morais e identitários do grupo e
a constante ampliação de suas fronteiras. Dito de outra forma, o aumento do
número dos que se podem contar como Testemunhas de Jeová.
A missão testemunha-de-jeová, parece ser, portanto, sinônimo do
proselitismo, a busca incessante de uma conversão não somente a Jeová Deus,
àquele modo de vida específico, permeado de regras, valores, condutas e visões de
mundo que definem e constroem a identidade testemunha-de-jeová e que, do seu
ponto de vista, conduz à salvação. Uma prática proselitista que não inclui outros
espaços nem outras vivências que não sejam as determinadas pelo grupo. Por isso a
experiência ecumênica torna-se inviável, e a relação estabelecida com o
“extramundo”, ou seja, tudo aquilo que caminha à margem dos valores testemunha-
de-jeová (inclusive o cristianismo padrão) é impraticável. A concepção de missão
cristã de Bosch diz que a igreja é enviada ao mundo para servir e amar. Mas a missão
das Testemunhas de Jeová não é feita do serviço e do amor ao próximo (apesar de
anexá-los ao seu discurso em alguns momentos). Elas não realizam missão como
uma ação humanitária. São enviadas ao mundo com um intuito mais específico, de
proselitismo e conversão.
A Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados (uma entidade despojada
de qualquer elemento que remeta a indivíduos específicos e, portanto,
despersonalizada) é o principal ator do processo missionário/proselitista, e em
nome do grupo delimita e constrói espaços de ação dos membros, estimulando o
aperfeiçoamento de técnicas de persuasão e reivindicando para si o domínio da
vivência religiosa individual dos seus membros. A Bíblia, ao lado da Sociedade, tem
espaço privilegiado mas somente sob a ótica da interpretação oferecida pelo próprio
grupo. Estes elementos centrais do fazer missionário testemunha-de-jeová é que vão
determinar que outros aspectos (como o uso da Internet, por exemplo) não façam
parte do conjunto das ações missionárias do grupo.
Para o sucesso da missão, no entanto, as Testemunhas de Jeová aprendem a
proselitizar de acordo com os preceitos da Instituição, passando por um
treinamento que não se restringe a atividades específicas de aprendizado, mas que se
constitui em um processo disciplinar constante de sua vida enquanto Testemunhas.
O treinamento propriamente dito que os membros recebem visando a atividade
proselitista pode ser considerado, assim como fez Montenegro (1996), como um
sistema ritual. O ponto de vista adotado pela autora considera que o treinamento
pertence ao âmbito das ritualizações, sendo espaço de construção de comunicação
simbólica e não podendo ser reduzido somente a um mero comportamento
instrumental. Montenegro cita Leach (2001), que argumenta que “o ritual pode ser
visto como um aspecto do comportamento diário, e não algo restrito aos contextos
sagrados, uma vez que em toda a ação humana está presente um aspecto técnico e
um aspecto comunicativo, expressivo” (Leach, 2001 apud Montenegro, 1996).
Montenegro utiliza também Da Matta (1997), ao considerar que os rituais não
devem ser tomados como momentos diferenciados (em forma, qualidade e matéria-
prima) daqueles que informam a vida cotidiana. E argumenta:

Destas considerações depreendem-se questões que retomo para nossa


análise. A primeira é que o ritual não pertence ao âmbito do
extraordinário como oposto ao rotineiro, uma vez que não é definido
substancialmente. A segunda é que, sendo assim, não temos domínios
específicos (...) onde se possa falar de rituais e outros em que não se
possa, uma vez que todas as esferas da vida social podem ser vistas como
capazes de engendrar ritos. Assim, um grupo ou sociedade poderá operar
ritualmente, dramatizar, colocar em foco alguns elementos dentro de
uma diversidade de valores ideológicos ou realizações que fazem parte da
sua vida cotidiana (Montenegro, 1996:108).

Tomando o ritual como comunicação simbólica, onde o grupo assinala,


dramatiza, coloca em foco, isto é, opera ritualmente alguns elementos e relações que
fazem parte da sua tarefa cotidiana de proselitistas, é possível deduzir que o ritual
opera em reforço aos valores ali colocados em foco. Ao fazer isto, atua como uma
tecnologia disciplinar (Foucault, 1977; 1979) na medida em que, através da ação
coletiva, difunde esses valores como normalizadores da vida. Neste caso,
normalizadores tanto de indivíduos como do proselitismo. Ao ensinar aos seus
como converter outros, produz um processo de reafirmação constante do que é ser
uma Testemunha de Jeová. O treinamento, enquanto tecnologia disciplinar, utiliza
um conjunto de dispositivos disciplinadores da dinâmica do grupo. Vou, por isto,
examinar neste capítulo como se realiza esta normalização focalizando o que, na
classificação das Testemunhas de Jeová, constitui as atividades de treinamento.
Estas atividades estão organizadas em 5 tipos de eventos. Às terças-feiras,
ocorre o “Estudo de Livro da Congregação”. São encontros semanais nas casas dos
próprios membros, para estudo específico da Bíblia. Tem duração de uma hora e
agrega por volta de 15 a 20 pessoas. Às quintas-feiras, acontecem dois eventos na
mesma noite. Primeiro, ocorre a “Escola do Ministério Teocrático”, com duração de
45 minutos, e em seguida, a “Reunião de Serviço”, também com duração de 45
minutos. A Escola do Ministério Teocrático é basicamente, segundo eles, um curso
de oratória. A segunda reunião tem como objetivo trazer notícias das sucursais de
outros países, comunicações da Sociedade nos Estados Unidos, eventos importantes
na comunidade, etc. Por último, o encontro de sábado contém também no mesmo
evento duas reuniões. A primeira delas trata do “Discurso Público”, pregação
trazida por um ancião da própria comunidade ou de outra Congregação, e tem
duração de 45 minutos. E em seguida, o grupo participa do “Estudo Bíblico” de A
Sentinela, completando um total de 2 horas de reunião. Considero, na totalidade de
suas ações, que os diferentes encontros promovidos pelo grupo tem como alcance
final o aprimoramento de elementos que sejam significativos na comunicação com o
mundo.
2. A Missão e o Treinamento

Ao refletir sobre o poder nas sociedades contemporâneas, Foucault oferece


instrumentos de análise que são úteis para pensar o treinamento das Testemunhas
de Jeová para a missão proselitista. Foucault afirma que o poder não se restringe aos
seu sentido repressor (proibição), aquele oriundo da concepção jurídica, que prevê
uma agência reguladora da sociedade e opera a regulação através da ameaça de
punição. Uma regulação que exige a obediência.
Foucault sugere que um exame mais cuidadoso das relações de poder revela,
como no caso da sexualidade nas sociedades modernas, por exemplo, a presença de
“tecnologias” muito mais complexas e muito mais positivas do que a relação
reguladora pautada na proibição/obediência (Foucault, 1977:87). Assim, através de
tecnologias específicas, que não necessariamente tenha um agente executor, o poder
se exerceria como produtor de sujeitos, um poder positivado no estímulo aos
comportamentos, um poder produtivo e não repressor.
São estas tecnologias, a que Foucault faz menção, que podem ser úteis para
elaborarmos uma reflexão mais específica a respeito do treinamento realizado pelas
Testemunhas de Jeová enquanto um conjunto de dispositivos disciplinadores na
dinâmica do grupo proposto. No caso, a difusão destas tecnologias e seus
dispositivos teria na Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados um agente. É a
Instituição que atua, de uma forma que se pauta na articulação empresarial de
produção de bens. É a Instituição que atua na difusão não só da Verdade – os
textos, a mensagem, a doutrina – mas na difusão das tecnologias que produzem
sujeitos destes textos e mensagens. No entanto, o específico desta agência é que ela
não é percebida pelos indivíduos como externa a eles. A Sociedade é, ao mesmo
tempo, “ela” e “nós”. Portanto, poder-se-ia dizer que é através destas tecnologias
que a Sociedade possibilita a constituição de uma estrutura de plausibilidade (Berger,
1997) para as Testemunhas de Jeová.
Berger considera que todos os grupos sociais possuem “corpos de
conhecimento”, ou seja, estruturas cognitivas que determinam aquilo que é aceito ou
crido como conhecimento. Estas estruturas de conhecimento só se tornam
plausíveis para o grupo na medida em que outros continuam a confirmar
determinado conhecimento. “Plausibilidade” é um termo sugerido por Berger, “no
sentido daquilo que as pessoas realmente acham digno de fé, e das idéias sobre a
realidade depende do suporte social que estas idéias recebem” (Ibid., p. 65). Ou seja,
são idéias que continuam sendo plausíveis porque outros continuam a afirmá-las e a
realidade circundante delas não destoa. E é na junção de circunstâncias sociais
específicas que tem-se a plausibilidade de determinadas convicções e ações.
Esta reflexão elaborada por Berger é enriquecedora à análise das
Testemunhas de Jeová na medida em que passo a considerar que diferentes práticas
e concepções elaboradas pelo grupo são determinadas por um rígido dispositivo
disciplinar que constrói a estrutura de plausibilidade mantenedora da prática
testemunha-de-jeová. Toda a movimentação do grupo caminha conforme estruturas
cognitivas elaboradas e pré-estabelecidas pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e
Tratados. Identifico o treinamento que a Instituição provê para os seus membros
como constituído de tecnologias disciplinares que se realizam: vou tratar de quatro
destas tecnologias que, considero, respondem pela sustentação da estrutura de
plausibilidade da missão testemunha-de-jeová. A constituição da teia que se dá
através da dinâmica do microfone, o valor do tempo (na calibragem precisa da
ação), o argumento da verdade (o raciocínio como valor) e a vitimização.
O valor do tempo é a tecnologia que perpassa todas as outras, servindo
como pano de fundo para a eficiência das atividades e do ser Testemunha de Jeová.
Para que os resultados alcançados em seu “trabalho de campo” sejam de largo
alcance, as Testemunhas de Jeová investem grande parte de seu tempo e energia no
treinamento de técnicas para o trabalho proselitista. O investimento gasto com o
tempo no contexto considerado (onde predomina a lógica capitalista de
produtividade, de otimização do tempo, de produção em escala mundial, da
indústria) e que salientei no capítulo anterior é aqui considerado como aspecto
valorativo. Grande parte da argumentação da Instituição com relação ao tempo está
baseada na idéia de que os membros devem ser “criteriosos no seu uso”,
concentrando-se em “assuntos espirituais e em coisas importantes e essenciais para a
vida cristã” (Nosso Ministério do Reino, nov./1999).
O controle do tempo das pessoas foi uma das tecnologias de
disciplinarização que nasceu junto com o capitalismo. Comparada à vida no campo,
em que o ritmo do trabalho era controlado por tarefas realizadas, o capitalismo
aprisionou corpos, por períodos de tempo determinados, ao trabalho. A concepção
de tempo é tão fundamental na vida social que prisões, hospitais, colégios têm de
usar o relógio como disciplinador, sob pena de desorganizar o movimento e ação
dos corpos. Acredito, portanto, que esta cronometragem do tempo utilizada pelas
Testemunhas de Jeová é uma poderosa “arma” da Instituição, um instrumento. Não
há tempo livre para aquela outra dimensão do ser que à liberdade se associa e
constrói o Indivíduo proposto pelo liberalismo clássico39. O tempo transforma-se
em um instrumento disciplinador na medida em que coordena de forma limitadora a
ação do indivíduo não somente à prática proselitista testemunha-de-jeová, mas
também a uma série de ações que resultam em um modo de vida específico. É o
tempo que organiza as ações do grupo no sentido de afirmar a esperança na
instauração do milênio; são ações limitadas pelo tempo que estimulam o grupo à
aquisição de bons resultados no treinamento de práticas proselitistas; é a contagem
do número de horas evangelizadas no “trabalho de campo” realizada por todas as
Testemunhas de Jeová espalhadas pelo mundo que gera no grupo estímulo para
seguir adiante. Logo, as Testemunhas de Jeová passam, então, a produzir um outro
indivíduo – que pensa como indivíduo em vários aspectos, mas que se anula como
indivíduo livre, ao assumir a identidade Testemunha de Jeová.
A mediação do tempo, calibrado pelo relógio, é uma das tecnologias
disciplinares na medida em que nomeia a ordem (no sentido de dar nomes- horas,
minutos, segundos- à ordem pretendida e vivenciada pelo grupo) e define o
universo temporal das Testemunhas de Jeová pela valorização do tempo
quantificado e qualificado no trabalho por Jeová. Logo, o treinamento- e o tempo
gasto com ele- é uma forma de disciplina, bem como produtor de sujeitos cuja
concepção de tempo se pauta por estes valores apreendidos.
Logo, se o grupo investe grande parte de suas reuniões aprimorando-se em
técnicas de oratória (como mesmo se referem) e proselitismo, considero essencial o
entendimento deste treinamento enquanto englobador de diversos dispositivos
disciplinares. Acredito também que o entendimento do treinamento dá subsídios de

39
Agradeço aqui as instigantes sugestões da Profª. Dr.ª Maria Amélia Schmidt Dickie.
ampliação da perspectiva de compreensão do Projeto Missionário proposto.
Treinamento é uma categoria nativa que conservo, na medida em que expressa que
as qualidades do pregador são passíveis de serem adquiridas por meio de um
processo gradual.

3. Dispositivos Disciplinares

3.1. A Dinâmica do Microfone

Como estou propondo uma reflexão a respeito das técnicas de evangelização,


creio que seja relevante, então, descrever para o leitor um encontro específico, que
suscita elementos manifestos a respeito deste treinamento. Refiro-me, daqui por
diante, às reuniões assistidas por mim às quintas-feiras, noite em que ocorrem a
“Escola do Ministério Teocrático” e a “Reunião de Serviço”. O material utilizado
para este treinamento são os livros “Beneficie-se”, “Raciocínios à base das
Escrituras” e “Nosso Ministério do Reino”, descritos a seguir.
O início da reunião dá-se pontualmente às 20:00 horas, no Salão da
Congregação da Lagoa. Sob coordenação de um Servo Ministerial ou Ancião, o
encontro é aberto com o anúncio de um cântico. As pessoas levantam-se, e com
seus cadernos de cânticos em mãos, entoam em um único coro, afinadíssimo,
músicas que são acompanhadas por um CD instrumental, muito bem orquestrado.
Dalva, minha principal informante, de forma solícita aproximava-se de mim
esticando o braço para frente e oferecendo-me a possibilidade de, ao alcance dos
meus olhos, ler juntamente com ela os cânticos entoados pelo grupo. Ao final deste
cântico, a pessoa que está à frente profere uma oração, quando todos fecham os
olhos e curvam as cabeças, proferindo um “amém” ao final da oração. Em seguida,
outro ancião vai à frente (denominado por eles “tribuna”) e profere um discurso
com base no livro Beneficie-se. Este livro define com exatidão o propósito do
encontro de quinta-feira. É um livro elaborado para desenvolver a oratória e a arte
de ensino, auxiliando os membros de todas as Congregações ao redor do mundo “a
expressarem-se de maneira mais eficiente e a tornarem-se melhores instrutores da
palavra de Deus”. É basicamente, segundo eles, um curso de oratória. A Escola do
Ministério Teocrático baseia-se integralmente neste livro, que traz diversas
referências à Bíblia40. Todo o material contido no livro Beneficie-se tem como
objetivo final auxiliar as Testemunhas de Jeová a elaborar, da maneira mais
adequada possível, capacidades de argumentação, discurso e persuasão.
Após este breve discurso, que tem a duração exata de 5 minutos, o servo
ministerial sobe à tribuna para proferir outro discurso, também baseado no livro
Beneficie-se e também voltado à temática da necessidade da qualidade do
testemunho proferido. Este discurso pode durar no máximo 15 minutos. Após o
discurso deste servo ministerial, o ancião sobe à Tribuna para conduzir um outro
momento do primeiro encontro: os “Destaques da leitura da semana”. Todas as
semanas, as Testemunhas de Jeová programam a leitura de capítulos específicos da
Bíblia. Somam, semanalmente, uma média de leitura de 4 a 6 capítulos lidos,
variando de acordo com o tamanho das passagens bíblicas. Esta programação, que é
seguida à risca, tem como objetivo final a leitura completa da Bíblia a cada três anos.
A dinâmica dos Destaques da Bíblia segue liderada pelo ancião, que solicita aos
presentes que compartilhem e façam comentários públicos sobre o que aprenderam
com o texto lido.
A maioria dos “rituais” elaborados pelas Testemunhas de Jeová são guiados
por uma prática muito particular: é o que passo a denominar, daqui por diante, de
“dinâmica do microfone”. Utilizo o termo “ritual” entre aspas porque, conforme o
próprio grupo, as Testemunhas de Jeová afirmam que em sua prática não há
nenhum tipo de ritual. Em auto-definição, expressam que a devoção de sua religião
é um modo de vida e não uma devoção ritualista. A dinâmica do microfone que
passo a descrever consiste na presença de três atores: o ancião ou servo ministerial

40
Apenas como exemplo, registro aqui o assunto de um discurso proferido com base no livro “Beneficie-
se”, que tinha como título Ênfase segundo o Sentido, baseado no texto bíblico de Neemias 8:8, que dizia:
“E continuaram a ler alto no livro, na lei do verdadeiro Deus, fornecendo-se esclarecimento e dando-se o
sentido dela; e continuaram a tornar a leitura compreensível”.
(líder da dinâmica), um mediador (detentor do microfone que circula pelo Salão) e
os participantes (membros da Congregação que assistem à reunião). O cenário da
dinâmica (que é o próprio Salão do Reino) está estabelecido da seguinte maneira:

Na parede está escrito:


“Chegai-vos a Deus e Ele se chegará a vós”.
Tiago 4:8

Mesa redonda com


duas cadeiras
(participação dos
estudantes)
TRIBUNA
(Ancião ou Servo Ministerial)

Membros Membros
participantes. participantes.
Ficam sentados Ficam
em cadeiras sentados em
(organizadas cadeiras
em fileiras) (organizadas
MEDIADOR em fileiras)

Entrada do Salão

A dinâmica do microfone é realizada todas as vezes que é solicitado à


Congregação emitir opiniões e respostas às perguntas contidas em diferentes
materiais de leitura (como a Bíblia e a revista A Sentinela, por exemplo) e em
diferentes reuniões. O ancião ou servo ministerial faz um convite aleatório aos
membros da Congregação a compartilharem aspectos relevantes de sua leitura e
aplicação na vida cotidiana (no caso dos Destaques da Bíblia) ou para que dêem suas
respostas (no caso da leitura de outras revistas). De forma espontânea, diversas
pessoas (homens, mulheres e crianças) erguem suas mãos ao mesmo tempo, em
sinal de disponibilidade. O líder que está à frente escolhe uma pessoa, chamando-a
pelo nome. Neste instante, o mediador (que a esta altura já está de pé no corredor
principal da Congregação com um microfone sem fio em mãos) vai até a pessoa
escolhida pelo líder, disponibilizando o microfone para que esta responda à
pergunta solicitada ou compartilhe suas experiências pessoais. Em seguida, a pessoa
que respondeu às perguntas devolve o microfone ao mediador, que espera em pé e
no meio do Salão novas orientações do líder. Estas orientações o encaminham a
levar o microfone a outra pessoa, ou a sentar-se (neste caso, dá-se por encerrada a
dinâmica do microfone).
Podemos pensar que, no caminhar do portador do microfone (o mediador)
pelo Salão, são traçadas linhas imaginárias que sugerem uma renda que liga, que
une as pessoas que emitem seus testemunhos41. A reflexão sobre o testemunho
revela-se importante na medida em que surge como uma categoria “nativa” central
para o projeto Missionário. Se buscarmos em material “nativo” a origem etimológica
do termo “testemunha”, a palavra vem do hebraico (derivado do verbo ´udh) que
significa “retornar”, “repetir” ou “fazer de novo”. Já as palavras gregas traduzidas da
Bíblia como “testemunho” (originalmente com conotação jurídica) assumem, com o
tempo, significado mais amplo, sendo empregado tanto no sentido de testemunho
de fatos certificáveis como no testemunho de verdades (tornar conhecidas e
confessar convicções). Segundo eles, uma testemunha “relata fatos com
conhecimento pessoal direto, ou proclama conceitos ou verdades dos quais está
convicta” (Proclamadores, 1993:13)42. O grupo argumenta que

O proceder fiel de cristãos do primeiro século ampliou ainda mais o


significado de “testemunha”. Muitos daqueles primitivos cristãos deram
testemunho sob perseguição e em face da morte. (...) Em resultado disso,
por volta do segundo século da Era Cristã, a palavra grega para
testemunha (már-tyrs, da qual também se derivou a palavra mártir)

41
Agradeço aqui as sugestões da Profª. Dr.ª Maria Amélia Schmidt Dickie, que sugeriu que a Dinâmica do
Microfone pode possibilitar, entre outras coisas, a construção desta “renda” que une as pessoas que
testemunham.
42
“Por exemplo, alguns cristãos do primeiro século podiam dar testemunhos dos fatos históricos a
respeito de Jesus – concernentes a sua vida, morte e ressurreição – com conhecimento direto. (...)
Entretanto, pessoas que mais tarde depositaram sua fé em Jesus podiam dar testemunho proclamando a
outros a importância de sua vida, morte e ressurreição” (Proclamadores, 1993:13).
adquiriu o significado aplicado a pessoas que estavam dispostas a ‘selar a
seriedade de seu testemunho, ou confissão, com a morte’. Não foram
chamadas de testemunhas porque morreram; elas morreram porque eram
testemunhas leais (Proclamadores, 1993:13).

No contexto da dinâmica do microfone, pode-se dizer que a ação de


testemunhar tem uma conotação mais ampla de significados. Não inclui somente o
testemunho de fatos certificáveis nem tampouco unicamente a confissão de
convicções sob pena de tornarem-se mártires. Mas inclui nesta prática a declaração
de respostas corretas, previstas no material de leitura utilizado durante os encontros.
É a voz particular do indivíduo que ressoa no coro maior dos fiéis (entendido aqui
como o “eu” maior). É também o posicionamento do indivíduo que, ao expor-se
por expressar a frase correta, tece nós desta renda, muitas vezes colocando-se como
um nó firme que não permite que esta renda se rompa, mas ao contrário, se
fortaleça. Testemunhar é um evento e é contar uma história (Dickie, 1996:38). Neste
caso, a história contada é a reprodução da verdade e seu reforço. Por outro lado,
como evento, o testemunho é o momento – no espaço compartilhado pelos pares –
do indivíduo se produzir como pertencendo ao grupo por estar conforme com o
que aqui considero como ditamos disciplinares.
Mas a dinâmica do microfone me causou, de início, certa estranheza. Não
pela prática em si, mas pela prática dentro do contexto da reunião. Isto porque as
celebrações das Testemunhas de Jeová, sejam eventos especiais ou reuniões
semanais, possuem uma formalidade estática, uma praxe que não inclui nenhum
tipo de emoção nem dá espaço para gestos, movimentos, tons e olhares exagerados.
A dinâmica do microfone pareceria, entretanto, possibilitar ações alternativas não
padronizadas e abrir espaços para manifestações individuais.
Durante minha estada em campo, observei a participação de um casal com
um filho pequeno (por volta dos dois anos de idade). Pelos poucos comentários que
ouvi, soube que este casal, que estivera durante algum tempo “afastado”, retornava à
participação das atividades do grupo. Sem muito entrosamento com a comunidade
local, freqüentavam esporadicamente as reuniões, de forma muito discreta. Certa
noite, em uma reunião semanal, durante a dinâmica do microfone, um segundo casal
(que aparentemente era amigo do casal a que me refiro) segurava em seu colo o filho
deles. Quando o ancião, que estava à frente, determinou o momento de respostas, o
segundo casal que segurava a criança em seu colo estimulou o pequeno menino à
responder. A pequena criança, observada pelo olhar surpreso dos pais, levanta a
mão e o mediador com o microfone vai até ele. A moça que segurava a criança em
seu colo sussurrou a resposta em seu ouvido. E o garotinho, que mal sabia falar, dá
sua resposta: “Jesus!” (a resposta correta). A mãe do menino, com um sorriso nos
lábios e visivelmente emocionada com a resposta do filho, começa a chorar no
ombro do marido. Até então, esta foi a primeira (e até o final da pesquisa, a única)
manifestação de qualquer tipo de sentimento expresso (e não sei até que ponto
sentido, também) durante as reuniões. As pessoas sentadas próximas ao casal
observavam, olhando constantemente para a mulher que ainda chorava no ombro
de seu cônjuge. Arrisco dizer que estes olhares não eram resultado de uma postura
de reprovação do grupo, mas sim de estranhamento pela prática incomum da
mulher dentro do grupo. Este exemplo revela que, muito além da emoção da mãe
em ver a vida de seu filho dedicada a Jeová, ela foi pescada por um expediente
disciplinador de inclusão (que foi o suposto testemunho proferido pelo filho). A
emoção expressa desta mulher é muito mais resultado de um sentimento de
pertencimento à esta renda, ou seja, a pública possibilidade de se entrelaçar nos nós
desta renda que fortalecem a prática testemunha-de-jeová e elevam o sentimento de
pertencimento ao grupo. O filho, neste cenário, é transformado em coadjuvante na
cena e possivelmente também degrau do ator.
Durante todo o período do trabalho de campo esta dinâmica do microfone
me gerou angústias por não entender o que significa, afinal, este “ritual”. Muitas
vezes me perguntei o que está implícito nestas ações. O que significa, afinal, este
movimento de levantar as mãos diante da possibilidade de uma resposta, e falar em
um microfone respostas praticamente lidas, mas em um tom de frase bem
elaborada? Que valores estão em jogo, afinal, na dinâmica do microfone? Vale
esclarecer que os textos lidos durante a dinâmica, incluem em cada parágrafo uma
nota de rodapé com as respectivas perguntas, sempre realizadas pelo ancião. Logo,
as respostas proferidas pelo grupo são geralmente de fácil acesso (já que refere-se ao
parágrafo recém lido), podendo ser respondidas por crianças, jovens e adultos,
conforme o grau de complexidade da elaboração da resposta. Por exemplo, se um
parágrafo tem no texto a frase “Jesus deu a seguinte comissão aos seus seguidores:
‘Ide... e fazei discípulos de pessoas de todas as nações, batizando-as..., ensinando-as
a observar todas as coisas que vos ordenei’ (Mateus 28:19-20)... Os assim ensinados
e que estivessem ‘corretamente dispostos para com a vida eterna’ seriam batizados,
assim como Jesus...”, a nota de rodapé registra a seguinte pergunta: “Que comissão
Jesus deu aos seus seguidores, e o que fizeram os ‘corretamente dispostos para com
a vida eterna’?” (A Sentinela, 15/09/1996).
A reflexão a respeito da dinâmica do microfone suscita elementos que
remetem à discussão sobre o papel do indivíduo na Instituição. Conforme sugeri em
capítulo anterior, a Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados absorve para si a
identidade individual das Testemunhas de Jeová. Sugeri um elemento de igualdade
entre o eu Testemunha de Jeová e o eu Organização, na medida em que esta
Organização traz para seu domínio a identidade individual, limitando ações e
discursos particulares. A dinâmica do microfone não vem negar este domínio da
Organização sobre o aspecto individual, pelo contrário, surge como elemento que
articula o movimento individual do “testemunho” com o discurso vigente. É um
dispositivo disciplinador que mantém neutralizada a possibilidade de pequenas
narrativas do discurso individual, conduzindo-a conforme o discurso de interesse da
Instituição.
Enquanto eu, ao mesmo tempo que refletia sobre minhas angústias e
observava a reunião, “mergulhada” em reflexões antropológicas, tinha no meu
campo de visão do lugar onde eu estava sentada, uma mulher chamada Telma.
Telma, uma simpática mulher de meia idade, estava sentada ao lado do seu filho
caçula, uma criança por volta dos seus sete anos. O garoto, sentado com a revista A
Sentinela na mão e diante da possibilidade de responder uma pergunta da revista, é
incentivado por sua mãe, que lhe apontava no texto a resposta correta. Como são
várias perguntas, Telma realizou o mesmo movimento várias vezes, até que o garoto
encorajou-se, levantou a mão e respondeu uma pergunta no microfone. Telma, com
um largo sorriso no rosto, abraça o garoto carinhosamente, cochichando um “muito
bem!” para ele.
Se estou considerando que a dinâmica do microfone possibilita ações
alternativas não padronizadas, os dois exemplos acima referidos revelam-se como
manifestações claras a respeito destas práticas. É neste momento que há a
possibilidade da expressão de emoções, movimentos e olhares, gestos não
previsíveis na conduta estática da reunião. Torna-se um evento diferenciado da
prática na comunidade. Mas não somente. A dinâmica do microfone, além de
auxiliar na construção e reprodução das práticas do grupo (no caso da mãe que
incentiva seu filho, por exemplo), revela em muitos aspectos a elaboração de um
relativo status do membro. Status este que manifesta publicamente o crédito da auto-
atribuição da identidade testemunha-de-jeová. É um status que demonstra, diante do
grupo, se o indivíduo é ou não Testemunha de Jeová, revelando a intimidade do
membro com o evento, com a prática em si.
Mas além do status, a dinâmica do microfone traz ao grupo ordenação e
disciplina. Em diferentes momentos desta pesquisa, sugeri que havia entre as
Testemunhas de Jeová uma forte homogeneização da prática e da cosmovisão
compartilhada pelo grupo. Esta homogeneização é identificada quando
reconhecemos elementos idênticos e padronizados na prática e no discurso de
todas as Congregações espalhadas pelo mundo. Mas a homogeneização não pode
ser considerada como único aspecto característico do grupo. Toda esta
padronização e busca obrigatória da homogeneização das Testemunhas de Jeová
revela, na verdade, a busca por uma ordenação de suas práticas. “Ordenação” no
sentido de ordem, de arrumação, de boa disposição. A dinâmica do microfone como
dispositivo disciplinar revela, entre outros aspectos, a busca da ordenação de seu
treinamento, de seu culto e de possíveis movimentos além dos já programados. Esta
necessidade de ordenação pode sugerir o motivo pelo qual as Testemunhas de Jeová
negam enfaticamente o uso da Internet, espaço que traz como uma das
características principais a desordem. Retornaremos a esta discussão mais adiante.
3.2. Os estudantes da Bíblia

Após os destaques da leitura da Bíblia (expresso através da dinâmica do


microfone relatado nas páginas anteriores), o ancião que lidera a dinâmica pronuncia
um breve discurso elaborado com referência a uma passagem bíblica. Concluído
este discurso, o ancião passa a palavra ao servo ministerial, que então chama à
“participação dos estudantes”. Considero o tempo separado ao estudo da Bíblia e às
técnicas de treinamento proselitistas como um dispositivo disciplinar, na medida em
que os “estudantes” seriam, então, uma categoria de indivíduos ainda não
totalmente disciplinados, mas em processo evidente de doutrinação.
A participação dos estudantes da “Escola do Ministério Teocrático” é
definida pelo superintendente da escola. São três momentos diferentes, e em cada
reunião um membro da comunidade (previamente escolhido) vai à tribuna expor
(praticar, na verdade) um quesito da tabela das características de oratória do livro
Beneficie-se. Estes estudos oferecem explicação sobre o que fazer para dominar
aspectos de oratória e ensino e a importância de cada um destes elementos.
Encontra-se também orientações práticas sobre como aplicar as sugestões
oferecidas. Há 53 diferentes pontos a serem exercitados. Eis alguns como exemplo:
“Leitura exata, articulação clara, pronúncia correta, cordialidade e entusiasmo,
naturalidade, uso do microfone, uso da Bíblia ao responder perguntas, falar com
tato mas de modo firme, qualidade da voz, leitura de textos com ênfase adequada,
repetição para dar ênfase, clareza, argumentos convincentes, controle e boa
distribuição do tempo, introdução que desperta interesse, conclusão eficaz, destaque
dos pontos principais”, entre outros.
O ancião convida a pessoa previamente designada para ir à frente e, através
da leitura de um texto43, ela é observada conforme o quesito que esteja sendo
avaliada. Ao final desta “tarefa”, o ancião emite sua opinião a respeito da performance
do aluno. Em todos es encontros que participei, os alunos foram aprovados no
quesito em que estava sendo avaliados, recebendo elogios do ancião.

43
Mas não somente. Neste caso, existem três possibilidades: 1) a leitura perante uma assistência, 2)
demonstração com duas ou mais pessoas ou 3) discurso dirigido à Congregação.
Após a leitura de um texto realizada por um membro perante a assistência,
dois outros alunos são designados pelo ancião para um outro exercício, a
“demonstração”. Esta demonstração é, na verdade, a simulação e/ou o teatro de um
diálogo entre duas pessoas. Esta demonstração precisa de uma cena, e é no livro
Beneficie-se que o membro encontrará sugestões de 30 cenas variadas, como por
exemplo o “testemunho de casa em casa, testemunho a um vizinho, conversando
com um ateu ou agnóstico, testemunho informal numa sala de espera, explicando
suas crenças a um parente descrente, usando a Bíblia para encorajar alguém doente,
revisitando pela primeira vez alguém que demonstrou interesse”, etc. Os membros
utilizam para a demonstração a mesa e as cadeiras à frente, ao lado da tribuna, para
simular suas cenas. Transcrevo aqui um diálogo desta demonstração (Montenegro,
1996: 112):

Participantes: duas mulheres


Cenário: Testemunhando a uma tia

TJ- Bom dia, tia!


Tia- Bom dia, Márcia.
TJ- Tia, eu quero falar com você sobre a questão de você estar
freqüentando reuniões de espíritas. Você acha isso certo, não
tem medo daquelas coisas?
Tia- Tenho medo, sim, dos mortos e dos demônios, mas acredito
que eles existem e podem se comunicar com a gente.
TJ- Você sabe que milhões de pessoas estão presas às
superstições e mentiras. Temem os mortos e os demônios, têm medo
de bruxarias e feitiços, e que essas coisas são mentiras de
Satanás, o diabo?
Tia- O que eu posso fazer?
TJ- Os servos de Deus não estão enlaçados em nenhuma destas
coisas. Jeová é muito, mas muito mais poderoso que Satanás. Se
servir a Jeová, Ele lhe dará a proteção contra os demônios. Quer
ver? Vamos ler Tiago 4:7 (Márcia busca a citação na Bíblia e lê
para o outro personagem: “Sujeitai-vos , portanto, a Deus; mas
oponde-vos ao Diabo, e ele fugirá de vós”).
Tia- Sim, Márcia. Mas os demônios estão sempre prontos para se
manifestar.
TJ- Se os demônios a molestarem, você poderá invocar a Jeová
pelo nome e Ele lhe dará ajuda. Quanto aos mortos, é impossível
que falem, porque um corpo morto é uma alma morta. Como poderiam
falar?
Tia- Então é só orar para não ter mais medo?
TJ- Não. Primeiro você deve livrar-se de tudo o que estiver
relacionado com práticas espíritas. Se quer agradar a Deus não é
só abandonar a adoração falsa e parar com as coisas ruins, mas
precisa praticar a religião verdadeira. Jeová tem um povo, que
são as Testemunhas de Jeová. Vamos ler Isaías 43:10 (vós sois as
minhas testemunhas, é a pronunciação de Jeová, sim, meu servo a
quem escolhi, para que saibais e tenhais fé em mim, e para que
entendais que eu sou o Mesmo. Antes de mim não foi formado
nenhum Deus e depois de mim não foi formado nenhum Deus e depois
de mim continuou a não haver nenhum).
Tia- E as outras pessoas, por que continuam acreditando em
espíritos?
TJ- Bom, porque Satanás e os demônios têm pessoas na terra que
ensinam e praticam coisas erradas, mas as coisas feitas por
satanás não são brincadeiras, são muito perigosas. Se o que você
quer é saber o que vai acontecer no futuro, tem que estudar a
Bíblia.
Tia- Acho que vou aceitar o convite que você me fez para estudar
a Bíblia.

Encerrada a demonstração, que tem duração máxima de 5 minutos, o ancião


emite sua opinião para a dupla que desenvolveu a cena. Em uma das minhas
primeiras visitas à Congregação, um ancião elogiava uma dupla de mulheres,
dizendo: “Parabéns! Vocês foram muito boas no tempo. 4 minutos e 22 segundos!”.
No mesmo instante, Dalva sussurrou: “Elas tinham até 5 minutos!”. O tempo é, de
fato, em todas estas dinâmicas, aspecto importante e muito valorizado e
compartilhado pelo grupo. Dois detalhes podem ser destacados, além do tempo
cronometrado. Um deles é que esta encenação teatral não é motivo de riso nem de
descontração para eles, apesar de muitas vezes as cenas se prestarem a isso. É
encarado pelo grupo com seriedade e extrema atenção, de jovens e adultos. O outro
detalhe que vale mais uma vez ser destacado refere-se à Bíblia, que é usada em todos
os momentos desta encenação. A formalidade permanece como eixo central na
movimentação da reunião. Nada de gestos exagerados, pelo contrário, vozes calmas
e bem educadas.
O objetivo final das demonstrações realizadas pelos estudantes é treinar e
compartilhar este treinamento com a comunidade, auxiliando no ensinamento da
forma como se deve pregar às pessoas que ainda não são Testemunhas de Jeová. No
caso das teatralizações, é realçada a solução positiva dos conflitos, colocando o
proselitismo como um domínio que implica na confrontação do ponto de vista do
grupo com o de um interlocutor do “mundo”. Aqui, a estrutura de hierarquias do
grupo também é atualizada, uma vez que os anciãos têm autoridade para corrigir e
qualificar o desempenho do estudante. As demonstrações são designadas de
antemão não pela Congregação mas pelo corpo governante internacional, que define
os temas e organiza os discursos e demonstrações de forma a serem elaborados a
respeito do mesmo tema e em todas as Congregações mundiais.
Encerrada a participação dos estudantes, o ancião convida a Congregação a
entoar mais um cântico, e em seguida, passa para a segunda reunião, a Reunião de
Serviço. Este encontro, guiado pela literatura de distribuição mensal “Nosso
Ministério do Reino”44 geralmente liderada por um dos anciãos da Congregação,
principia com a notificação de alguns avisos à comunidade. Primeiro, tratam dos
assuntos locais. São notificações lembrando, por exemplo, os publicadores dos dias
de serviço de campo e do local de encontro para saída em dias determinados; ou
então lembrando das responsabilidades de alguns membros quanto a atividades
específicas, ou ainda recordando as famílias da escala de limpeza do Salão. Em
seguida, divulgam as comunicações mais gerais. Estas são, normalmente, a leitura de
cartas da Sociedade, da matriz no Brasil (situada em Tatuí, São Paulo) ou dos
Estados Unidos, matriz mundial. São geralmente comunicações abordando a
necessidade da construção de novos templos e de mão de obra voluntária para estas

44
Material informativo distribuído mensalmente, direcionado exclusivamente ao contexto brasileiro.
construções, ou de necessidades outras de Congregações específicas e a solicitação
de ajuda financeira ou através de mão de obra. Outra petição muito freqüente feita
pela Sociedade às Congregações é o envio dos relatórios. Estes relatórios são, na
verdade, o preenchimento de fichas. Cada membro da Congregação preenche um
relatório individual, todos os meses do ano, registrando o número de horas
disponibilizadas naquele mês específico à evangelização. A Congregação soma as
horas individuais de evangelização mensal de todos os membros e envia para a
Sociedade.
Encerradas as comunicações, seguem mais dois discursos de diferentes
anciãos, abordando temas sugeridos no folheto “Nosso Ministério do Reino”,
encadernação mensal que serve de base para a Reunião de Serviço. Após estes
discursos, o ancião encerra a reunião com uma oração, exatamente às 21:30,
completando 90 minutos exatos de reunião.

3.3. Iconografia testemunha-de-jeová

Atentar para a produção imagética das Testemunhas de Jeová pode trazer


elementos reveladores da prática na qual estamos interessados. É revelador na
medida em que o material gráfico das Testemunhas de Jeová contém um amplo
conjunto de imagens e gravuras que denotam práticas específicas, assim como um
conjunto de situações e acontecimentos previstos na prática cosmológica das
Testemunhas de Jeová. É revelador também na medida da uniformização da
informação sobre a qual e com a qual as Testemunhas de Jeová trabalham no
mundo todo. Um aspecto que despertou minha curiosidade quando tive em mãos,
logo no início da pesquisa, algumas brochuras e folhetos das Testemunhas de Jeová,
estava diretamente relacionado às sensações e idéias que as imagens desejavam
sugerir ao leitor, assim como a qualidade gráfica do material disponível. Destaco a
seguir alguns aspectos pelos quais examinar as imagens.
O primeiro aspecto que podemos deter nossa atenção diz respeito aos
principais eventos. Considerando que dois eventos específicos marcam a
cosmovisão testemunha-de-jeová, e aqui subentendendo-se o Armagedom e o
estabelecimento do Novo Mundo na Terra, estes são temas recorrentes em suas
publicações. São, então, utilizados recursos de imagem para exemplificar o que está
sendo abordado no formato textual. O Armagedom, marcado pela destruição dos
governos humanos e o estabelecimento do governo divino, inúmeras vezes
enfatizado em diferentes publicações, tem como registro iconográfico o fim do
“sistema mundial”, com imagens de morte, tragédia, desespero e destruição da
Terra. Este fim não permitirá que ninguém (nem homem nem demônios) continue a
fazer coisas que “ameacem a ordem universal”, já então estabelecida no pacífico
novo mundo, também registrada na produção imagética elaborada pelo grupo.
Logo, se as imagens relacionadas ao Armagedom desenham quadros em tons
escuros, onde as expressões faciais das pessoas buscam passar ao leitor sensações de
angústia e medo diante da possibilidade real da morte que gira ao seu redor, a
imagética elaborada para a exemplificação do novo mundo constrói uma percepção
diferente. O registro iconográfico do novo mundo visa, exatamente oposto ao
Armagedom, evidenciar elementos que denotem alegria plena, harmonia entre os
diferentes povos e culturas, uma natureza restaurada que renda frutos ao homem e o
estabelecimento de uma convivência equilibrada do homem com esta mesma
natureza. O uso de cores bem definidas e a ênfase na utilização de cores primárias
contrastam com o uso das cores secundárias e predominantemente mais escuras
registradas pela imagética usada para o Armagedom.
Logo, a produção iconográfica das Testemunhas de Jeová destina-se, em
muitos aspectos, à construção de uma imagem de eventos específicos, ou seja,
destina-se à elaboração de uma padronização do imaginário coletivo que,
expressa através não somente das imagens mas também da produção textual e do
discurso proferido pelo grupo, compõe a construção de um imaginário coletivo que
cria a expectativa do contexto da volta de Cristo. Enquanto minoria cognitiva
(Berger, 1997), ou seja, enquanto grupo formado ao redor de um corpo de
conhecimentos divergentes dos da maioria, as publicações iconográficas das
Testemunhas de Jeová são poderosas armas na construção da estrutura de
plausibilidade (Ibid.) na medida em que sustentam e reforçam para o indivíduo
concepções do mundo compartilhadas pelo grupo. É um senso comum imaginário
que se estende à elaboração de um estilo personalizado testemunha-de-jeová,
perceptível por uma padronização estética dos indivíduos.
Quando me refiro à construção deste estilo testemunha-de-jeová, quero
referir-me a um conjunto de elementos corporais que denotam a elaboração deste
estilo a que me refiro. Montenegro (1996) fez uma extensa reflexão a respeito deste
estilo, sugerindo uma educação do corpo e da fala testemunha-de-jeová. Interessa-
nos aqui, entretanto, não a descrição extensa do estilo, já bem elaborada por
Montenegro, mas identificar a partir da elaboração iconográfica produzida pelo
grupo o que estas imagens sugerem às Testemunhas de Jeová como elementos
importantes a serem seguidos. Vale considerar que ao referir-me à construção deste
estilo, focalizo a atenção não mais sobre o registro dos fatos históricos passados
(cenas bíblicas) apresentado nas publicações através de gravuras pintadas ou
desenhos (como no caso anterior), mas com fotos reais de situações cotidianas das
pessoas nos dias atuais.
O primeiro aspecto a ser considerado diz respeito às vestimentas. O estilo de
vestir das Testemunhas de Jeová registrado nas diversas fotos publicadas – e isto
inclui o kit terno-gravata-pasta (no caso masculino) e no caso feminino roupas finas,
muito discretas, de cores sóbrias e refinadas – é claramente identificado quando
visita-se uma Congregação. Lembro-me da surpresa ao ver crianças (meninos por
volta dos seis anos) vestidas exatamente iguais aos homens: terno e gravata,
esforçando-se em levar junto ao corpo uma pasta grande, desproporcional para o
seu tamanho. As meninas por sua vez, assim como as mulheres adultas, trajavam
vestidos finos, com meia calça, salto alto e belos penteados45.
Não somente as vestimentas são notadamente padronizadas na comparação
realidade versus imagem como também as reuniões e seus principais eventos. É
importante notar que a dinâmica do microfone por exemplo, que tanto me causou
estranheza, está registrada46 em diferentes imagens exatamente do mesmo modo
como as que assisti na Congregação da Lagoa. Da mesma forma, a cerimônia da
Refeição Noturna do Senhor exibe em fotos a mesma ordenação e dinâmica

45
Claro que apesar desta descrição ser o “padrão” de uso das roupas, nem todos os presentes, em
especial as mulheres, vestiam-se da mesma forma. Este fato aparentemente não gerava discriminação
por parte do grupo. Porém, a roupa identificava com clareza o grau de familiarização com a prática
vigente.
46
A Sentinela, 1º de Maio de 2003. “O que gostaria de perguntar a Deus?”, p. 7.
praticada no evento. É interessante notar que tanto o estilo das vestimentas quanto
a prática de determinados eventos percebidos durante minha estadia em campo
eram a cada momento confirmadas através da visualização destas imagens nas
diversas publicações distribuídas pelo grupo, exemplificados através de diferentes
culturas.
Até agora trabalhei o aspecto do treinamento como ponto de partida para
pensar a prática missionária das Testemunhas de Jeová. A reflexão sobre esta prática
possibilita a identificação de uma padronização presente no grupo como produto de
um processo disciplinar que se faz tanto pela calibragem do tempo (até a exatidão
do segundo) como pela divulgação iconográfica e literária. Mas é importante
ressaltar os valores que, ao mesmo tempo, constróem e apoiam o processo
disciplinar. Esta padronização, sugiro, é identificada em diferentes contextos, entre
eles, a iconografia registrada nas publicações. O fato é que considero que o conjunto
de imagens produzidas pelas Testemunhas de Jeová é revelador na medida em que
contém um amplo conjunto de gravuras que denotam práticas específicas, e que ao
referir-me à construção de um estilo, sugiro que toda a iconografia presente no
material das Testemunhas de Jeová serve como base para moldar suas práticas e
para reforçar a padronização de uma série de práticas que encaminham inclusive à
homogeneização da prática missionária. Sugiro também que a imagética produzida
pelo grupo remete não somente à questão da homogeneização, já abordada em
momento anterior, mas também à disciplinarização, na medida em que sugere uma
difusão mundial de um mesmo estilo, denotando desta forma a padronização não
somente do “ser”, mas também do “pensar”.

3.4. Saídas a Campo

A temática do treinamento prevê uma ordem seqüencial (sugerida pelo


próprio grupo) de ações práticas, como as saídas a campo, o testemunho informal, a
pregação de porta em porta, as revisitas e os estudos bíblicos. Penso que seja
necessário refletir a respeito das técnicas adquiridas através do treinamento, de
maneira que inclua não somente categorias utilizadas pelo grupo, mas também
dados que considero relevantes e que são fruto do material coletado em meu
trabalho de campo, relacionados à conversão. Cabe-nos, porém, uma reflexão sobre
estas atividades para o grupo, na medida em que configuram elemento fundamental
da estrutura de plausibilidade. A disciplinarização só é eficiente porque consegue
construir uma estrutura de plausibilidade para os sujeitos. Estes sujeitos tornam-se
(e sentem-se como) portadores da verdade e eficientes no uso dos mecanismos de
sua propagação (através dos dispositivos disciplinares). E é desta maneira que para
eles torna-se legítimo o cumprimento de sua missão de salvação.
Na primeira parte deste capítulo delineei os principais aspectos do que estou
propondo chamar de Projeto Missionário das Testemunhas de Jeová. Este Projeto
Missionário é ao mesmo tempo produto e produtor de técnicas de proselitismo
embutidas no processo disciplinar, descrito nas páginas anteriores. Ao receber o
treinamento, as Testemunhas de Jeová vislumbram diante de si um “campo” que
demanda atendimento; este atendimento se dá quando as Testemunhas de Jeová
colocam em prática o treinamento recebido semanalmente. O que vou tratar agora
diz respeito ao princípio que orienta as atividades proselitistas com as quais cada
Testemunha de Jeová deve se comprometer, vistas sob sua ótica, e que se
configuram para eles o que eu estou entendendo por Projeto Missionário
testemunha-de-jeová. É o princípio da racionalidade que atua também enquanto um
dispositivo da tecnologia disciplinar.
Atentemos à ordem das atividades explicitada pelo grupo:

1. Saída a campo
2. Testemunho informal
3. Pregação de porta em porta (testemunho formal)
4. Revisitas
5. Estudos Bíblicos

O termo “saída a campo”, tão utilizado pelo grupo, tem uma conotação de
amplitude muito forte no universo simbólico das Testemunhas de Jeová. O
“campo” de atuação do grupo não se restringe a um bairro, ao ambiente de trabalho
nem tampouco à família. O campo das Testemunhas de Jeová é a própria vida -
esteja ela vinculada ao trabalho, aos amigos ou a qualquer outro ambiente. Ou seja,
o que é preciso frisar neste primeiro ponto, “saída a campo”, é que a área de atuação
das Testemunhas de Jeová não se limita a um território específico nem a uma
situação determinada, ainda que designem a visitação de casa em casa como “saída a
campo”. O mundo é o campo, e basta ter diante de si um não-Testemunha de Jeová
para realizar esforços no sentido de propagar o treinamento recebido. A saída a
campo não está limitada somente às pessoas que dedicam exclusividade à obra
missionária, mas é extendida à todas as Testemunhas de Jeová que, por isto, são
sempre publicadores.
Tanto isso é verdade que o ponto seguinte, o testemunho informal, é
considerado aspecto primordial a ser atentado pelo grupo. A veracidade desta
informação foi presenciada por mim inúmeras vezes durante o meu trabalho de
campo. Uma de minhas dificuldades residia na possibilidade de não conseguir
apenas dialogar com os membros do grupo, mas perceber com muita clareza o
empenho conjunto em não apenas responder aos meus questionamentos, como
também me doutrinar na Verdade estabelecida. A postura de testemunhar em todo
o momento e em todos os lugares, embora não seja contabilizado o número de
horas na ficha pessoal dos membros, é considerado parte inerente à vida dos
membros. Uma rica experiência foi proporcionada por Anilma, senhora de meia
idade que participava ativamente das atividades da congregação na Lagoa. Anilma
estava presente em todos os encontros e chegava no Salão antes dos horários das
reuniões darem início. Fomos apresentadas logo no início da pesquisa, mas até
então não tínhamos conversado. Certa noite, nos encontramos coincidentemente
pouco antes de chegar à congregação. Sua primeira pergunta foi: “A Dalva está
fazendo estudo bíblico com você?” A pergunta de Anilma revelou, de certa forma,
uma tendência mais ou menos geral de abarcamento de membros, onde a tática
principal é, após um contato inicial, a prática dos estudos bíblicos na casa do
possível interessado, e posteriormente um convite à participação das reuniões.
Minha resposta para Anilma foi dada conforme o padrão por mim desenvolvido
para as perguntas mais gerais a respeito da minha presença no meio deles. Expliquei
a respeito da pesquisa, quais eram os meus interesses e meus objetivos com o
trabalho.
Anilma ouviu-me atentamente, respondendo-me que “outras religiões até são
boas”, mas a Verdade (de fato) estava com as Testemunhas de Jeová, pois elas, sim,
estudavam profundamente a Bíblia. Esta postura de Anilma revela uma postura mais
geral do grupo, de considerar todas as possibilidades de diálogo e situações que
envolvam outras pessoas como uma possibilidade de propagação da “Verdade”. O
caso de Anilma serve como ilustração pois, mesmo estando dentro do Salão, utilizou
a ocasião de uma conversa informal para falar-me a respeito de Jeová. Não foram
raras as vezes que pessoas, ao me explicarem aspectos específicos a respeito do
grupo, serviam-se desta oportunidade para explicitarem aspectos doutrinários das
Testemunhas de Jeová.
O terceiro aspecto a ser abordado, em contraponto ao testemunho informal,
o testemunho formal (ou pregação de porta em porta) é também uma ação vital às
Testemunhas de Jeová. Este testemunho formal, contabilizado na ficha individual
dos membros, é realizado por todos os participantes da comunidade (missionários,
pioneiros e publicadores)47. Central nas atividades necessárias do grupo, a pregação
de porta em porta é a mais conhecida das Testemunhas de Jeová ao redor do
mundo. Com um território específico para cobrir, as Testemunhas de Jeová se
organizam conforme os territórios que estejam sob sua responsabilidade, saindo
para visitar todas as casas de famílias que ali residam. A pregação de porta em porta
consiste em bater à porta de uma casa ou ao interfone de um apartamento,
apresentando-se ao morador por meio de uma breve conversação.
Esta conversação inicial, muito simulada durante os treinamentos recebidos
nas Congregações, tem como base de apoio o livro já referido anteriormente,
“Raciocínios à base das Escrituras”. Este livro é um manual que orienta os membros
no exercício frente a diferentes situações encontradas em campo. Dá sugestões, por
exemplo, de diversos tipos de argumentos para iniciar uma conversa48, ou então de

47
Para uma classificação mais detalhada da tipologia de atuação missionária, vide capítulo 1.
como refutar argumentos de pessoas que lhes cortam a palavra49, e também mais de
70 tópicos sobre os mais diversos temas, polêmicos e cotidianos, contendo o
posicionamento das Testemunhas de Jeová50
O “campo” das Testemunhas de Jeová provê a eles experiências vivenciais
que a meu ver motivam o enriquecimento da elaboração das técnicas de
evangelização. Estas experiências, positivas e negativas (e aqui subentende-se aceitá-
los ou refutá-los), foram inúmeras vezes relatadas a mim, como parte da construção
do que considero um ethos missionário.

3.5. Auto-atribuição Vitimizada

O “ir a campo” tem implícito em suas práticas uma valorização de uma


espécie de sofrimento que implica na possibilidade de ser negado, refutado e muitas
vezes até mesmo rechaçado pelas pessoas abordadas por eles. Elaboram um estilo
de missão que denota uma “auto-atribuição vitimizada” como elemento central da
prática de campo. Um aspecto deste ethos missionário produzido pelas Testemunhas
de Jeová consiste, a meu ver, em não ter vergonha da fé que possuem. O que
importa para o grupo neste contexto é, sempre, o ponto de vista de Jeová, ser
encorajado por Ele e ter o privilégio de sofrer por Ele (segundo o grupo, baseado

48
Para iniciar uma conversa, eles dão sugestões de diversos assuntos, como “amor/bondade”, “Bíblia”,
“emprego/moradia”, “eventos atuais”, etc. No tópico “amor/bondade”, por exemplo, sugerem assim:
“Notamos que muitas pessoas estão bastante preocupadas por causa da falta de verdadeiro amor no
mundo. Está também? ... Por que acha que é essa a tendência? ... Sabia que a Bíblia predisse essa
situação? (2 Tim. 3:1-4). Ela explica também a razão disso.” Outra sugestão é dada para o mesmo tópico:
“Eu me chamo ___. Moro nesta vizinhança. Estou fazendo apenas uma breve visita para falar com meus
vizinhos sobre algo que me preocupa muito, e tenho certeza que você também já o notou. A bondade
não custa muito, mas parece ser tão rara hoje em dia. Já se perguntou alguma vez por que é assim? ...
(Mt. 24:12; 1 Jo.4:8)”.
49
Também dividido em tópicos, o livro dá sugestões de argumentações para diferentes tipos de refutação.
Por exemplo, no tópico “não estou interessado (a)”, sugerem (uma entre várias) uma resposta: “Permita-
me perguntar-lhe se quer dizer que não está interessado (a) na Bíblia, ou é na religião em geral que não
está interessado (a)? Pergunto isso porque temos encontrado muitas pessoas que antes tinham uma
religião, mas não vão mais à igreja por verem tanta hipocrisia nas igrejas (ou: acham que a religião não é
outra coisa senão comércio que visa lucros; ou: não aprovam o envolvimento da religião na política, etc.).
A Bíblia tampouco aprova tais práticas, e ela fornece a única base em que podemos olhar para o futuro
com confiança”.
50
Com temas, por exemplo, sobre aborto, adoração de antepassados, aniversários natalícios, feriados,
purgatório, sofrimento, Trindade, volta de Cristo, reencarnação, etc.
em Filipenses 1:27-29)51. Neste contexto, a coragem é o ponto alto, é o valor
máximo ressaltado pelo grupo. O ato de testemunhar implica na valorização dessa
coragem, e incluso nesta coragem está o sofrer por Jeová, por amá-lo
profundamente.
Esta coragem é salientada pelo grupo em diferentes momentos. Uma
referência constantemente citada diz respeito à perseguição religiosa sofrida pelo
grupo durante o regime nazista na Alemanha. Este movimento de resistência teve
papel tão crucial na constituição da identidade vitimizada testemunha-de-jeová que a
Instituição elaborou uma fita de vídeo (As Testemunhas de Jeová resistem ao ataque
nazista, 1996) que objetivava a divulgação em forma de palestras e ciclos de debate
através da anunciação deste material em escolas e centros de cultura, servindo como
material de apoio para professores abordarem a temática em sala de aula. As
Testemunhas de Jeová presas nos campos de concentração eram, segundo elas,
diferentes dos outros prisioneiros. Primeiro, porque cada uma delas poderia ser
liberta do campo de concentração no instante em que assinasse uma declaração
renunciando à sua fé. Segundo, porque as Testemunhas de Jeová foram o único
grupo religioso a tomar uma postura firme e organizada contra o regime nazista e
terceiro, porque denunciaram as atrocidades cometidas pelo regime nazista, mesmo
quando estavam proscritas.
Pode-se dizer que, de certo modo, esta auto-atribuição vitimizada remete à
postura de resistência na medida em que esta resistência é, na verdade, uma
resistência ao mundo e a este “sistema de coisas”. Tornam-se vítimas porque
resistem aos ataques espirituais, físicos e culturais recebidos da sociedade. Além
desta postura de resistência, o estilo de auto-atribuição vitimizada recorre a
argumentos bíblicos para justificar possíveis sofrimentos:

51
Filipenses 1:27-29: “Somente comportai-vos da maneira digna das boas novas acerca do Cristo, afim
de que, quer eu vá e vos veja, quer esteja ausente, eu ouça (falar) das coisas que se referem a vós, de
que mantendes firmes em um só espírito, com uma só alma, esforçando-vos lado a lado pela fé das boas
novas, e que em nenhum sentido estais sendo menos amedrontados pelos vossos oponentes. Esta
mesma coisa é para eles prova de destruição, mas para vós, de salvação; e esta (indicação) é de Deus,
porque a vós foi dado o privilégio, a favor de Cristo, não somente de depositardes nele a vossa fé, mas
também de sofrerdes a favor dele”.
A Bíblia indica que, nos últimos dias, haveria ‘tempos críticos, difíceis de
manejar’ (2 Timóteo 3:1-5). O texto bíblico em grego usa uma expressão
que pode ser traduzida ‘ ferozes tempos designados’. Portanto, ninguém
deve esperar em nossos dias uma vida livre de dificuldades.” (A Sentinela,
13/9/1997).

A descrição destes “ferozes tempos designados” nada mais é que o


Armagedom, ou seja, período quando os governantes políticos da terra se ajuntarão
em oposição a Jeová e a seu Reino. Esta oposição, segundo o grupo, “será
evidenciada por uma ação global contra os servos de Jesus na Terra, os
representantes visíveis do Reino de Deus” (Proclamadores, p. 44). São através das
profecias registradas na Bíblia que as Testemunhas de Jeová passam a acreditar e a
elaborar um papel de vítimas, na medida em que crêem que sofrerão perseguições,
privações e lutas. O Armagedom e as situações envolvidas (e esperadas) neste
evento ajuda a construir junto com fatos anteriores parte da vitimização anexada à
identidade testemunha-de-jeová.
Desta forma, a auto-atribuição vitimizada tem sua identidade reforçada
também através da construção da esperança na iminência da instauração do reino de
Jeová. Os indícios de que o fim está próximo evidenciam situações cotidianas que
servem como base para o discurso proferido.

3.6 Razão e Raciocínio

Segundo o costume de Paulo, ele entrou, indo ter com eles, e (...)
raciocinou com eles à base das Escrituras, explicando e provando com
referências que era necessário que o Cristo sofresse e fosse levantado
dentre os mortos (Atos 17:2, 3).
O versículo bíblico acima citado consolida toda a perspectiva que envolve a
prática missionária das Testemunhas de Jeová. Um pequeno livro de consulta
utilizado por eles no trabalho de campo, “Raciocínios à base das Escrituras”,
oferece ao grupo os subsídios teóricos e práticos necessários (no campo da
argumentação e no uso da Bíblia) para o reforço de suas principais explanações. O
ato de raciocinar é o principal convite das Testemunhas de Jeová às pessoas que
estejam escutando suas argumentações. Não foram raras as vezes que, ao
compartilharem comigo suas experiências de conversão, relatavam-me que ao lerem
a Bíblia, passaram a raciocinar e a entender a Verdade. Logo, o raciocínio é o que
dá a eles o respaldo de se declararem detentores da Verdade.
Em sendo bem recebidos nas casas que visitaram e realizaram o trabalho de
proselitismo, as Testemunhas de Jeová passam a revisitar essas famílias, buscando já
neste momento introduzir alguns pontos doutrinários na conversação, sobretudo,
aqueles referentes à proximidade do estabelecimento da “nova ordem”. A ação de
revisitar as pessoas tem um significado importante no processo de evangelização das
Testemunhas de Jeová, pois é a partir das revisitas que o grupo passa a estabelecer
uma relação com o visitado, sugerindo que este realize uma subscrição das
publicações do grupo (Despertai!) e em seguida, que aceite o oferecimento de um
estudo bíblico gratuito, objetivo principal deste processo de pregação de porta em
porta. Estes estudos bíblicos são ministrados àqueles que demonstraram algum
interesse nas publicações e que já tenham sido revisitados. Em geral, são realizados
semanalmente na casa da pessoa interessada, sendo guiados por um manual
doutrinário que é lido com o apoio de citações bíblicas. O estudo bíblico é
componente chave para o entendimento do processo de conversão das
Testemunhas de Jeová.
Ao perguntar-lhes sobre o significado de converter-se, ou seja, de tornar-se
uma Testemunha de Jeová, me responderam de forma clara e sucinta que a
conversão é apenas um passo rumo a um objetivo mais amplo e final, que é o
batismo. O primeiro passo para torna-se uma Testemunha de Jeová é ter em mente
o conhecimento das verdades bíblicas. É raciocinando sobre as Escrituras que a
pessoa passa a ter clareza e conhecimento sobre as verdades bíblicas aprendidas.
Através deste raciocínio à luz da Bíblia, a pessoa adquire fé sobre essas verdades,
ou seja, passa a crer naquilo que tem lido, estudado e raciocinado (baseado, segundo
eles, em Romanos 10:17)52. Depois que adquire a fé, a pessoa deve se arrepender
dos pecados cometidos até então, estabelecendo padrões de mudança em sua vida
pessoal (modificando o que, segundo eles, desagrada a Jeová). O processo de
arrependimento é, segundo eles, processo vital à conversão. É somente depois de
arrepender-se dos erros cometidos que pode-se dizer que a pessoa é, de fato,
convertida. Convertida, a pessoa que deseja se batizar deve, obrigatoriamente,
realizar serviço de campo por no mínimo seis meses. Mas este não é o momento
último. Após este processo, torna-se necessário que a pessoa convertida faça uma
“oração de entrega” à Jeová. É uma maneira de formalizar publicamente sua escolha
de dedicação a Deus. Somente após esta oração de entrega é que a pessoa pode ser
batizada. Segundo o grupo, o batismo não contém em si nenhum ato místico. É um
ato solene de demonstração pública de sua dedicação. O batismo por imersão total,
como é o caso, demonstra simbolicamente que o indivíduo batizado morre para a
vida anterior e nasce para uma nova vida, para fazer a vontade de Deus. Somente
neste momento é que a pessoa torna-se, de fato, uma Testemunha de Jeová53. É
importante notar que este processo de tornar-se uma Testemunha de Jeová não
contém na sua prática nenhum elemento que remeta ao aspecto emocional ou
mesmo, segundo eles, místico. É uma ação racional, calculada e prevista na prática
do grupo. Isto é tão verdade no processo de conversão quanto no momento de
decisão de tornar-se um pioneiro. Tornar-se uma pessoa que dedica exclusividade
do seu tempo à obra missionária (ou não tornar-se) depende muito mais de aspectos
baseados nas circunstâncias do que na experiência mística. É muito mais uma
questão de escolha (querer dar mais de si para Jeová) e circunstância (não tornar-se
um pioneiro, por exemplo, porque é pai de família) do que uma experiência fruto de
um chamado de Deus ou algo semelhante. A racionalidade é aspecto predominante
em todos os campos de atuação das Testemunhas de Jeová, inclusive no processo
de conversão.

52
Romanos 10:17: “De modo que a fé segue à coisa ouvida. Por sua vez, a coisa ouvida vem por
intermédio da palavra acerca de Cristo”.
53
É importante notar que, na cerimônia pública do batismo, são realizadas duas perguntas às pessoas
ANTES de serem batizadas: 1)À base do sacrifício de Cristo, arrependeu-se de seus pecados e dedicou-
se a Jeová Deus para fazer a sua vontade?; 2) Compreende que sua dedicação e seu batismo o
identificam como Testemunha de Jeová? Respostas afirmativas indicam que estas pessoas estão
preparadas para o batismo.
Outro aspecto que remete à racionalidade testemunha-de-jeová diz respeito à
restrição de festas seculares, como por exemplo o natal. Conforme relatam, o
nascimento de Jesus foi fixado arbitrariamente em 25 de dezembro para coincidir
com uma festividade romana, também pagã. Para construir esta argumentação,
baseiam-se em diversos materiais de consulta, retomando aspectos históricos, para
dizer: “Os primeiros cristãos não comemoravam o Natal, nem o comemoram hoje
as Testemunhas de Jeová, nem participam elas em atividades relacionadas com o
Natal” (As Testemunhas de Jeová e a Educação, p. 18). Logo, o grupo adota a
mesma posição com relação a outros feriados religiosos, que em diversos países
ocorrem durante o ano letivo. “Mas as informações providas (...) dão indicações
quanto a que observar no que diz respeito a qualquer feriado, e os princípios
bíblicos já considerados fornecem ampla orientação àqueles cujo desejo é fazer
primariamente o que agrada a Jeová Deus” (Raciocínios, p. 174).
De forma a unir todos os elementos abordados frutos da prática do
treinamento recebido na Congregação, arrisco dizer que o “trabalho de campo”
realizado pelo grupo atua no sentido de desenvolver dois movimentos: atração e
doutrinação. O movimento de atração diz respeito à busca de possíveis novos
membros. O movimento de deslocamento geográfico e espacial atrai pessoas para
dentro do grupo. Este movimento de atração é que os move à prática do bater de
porta em porta, ao testemunho informal, à distribuição das revistas, enfim. Podemos
dizer que o movimento de atração objetiva a prática da captura de novos membros.
O movimento de doutrinação, por sua vez, é o que organiza os resultados obtidos
da prática de atração, ou seja, é o que elabora de forma organizada, racional e
homogeneizadora a vida e a experiência dos novos membros rumo ao processo de
conversão significando, em última análise, o tornar-se de fato uma Testemunha de
Jeová.
4. Missão testemunha-de-jeová

O quadro teórico oferecido por Bosch esclarece vários aspectos da missão


testemunha-de-jeová que nos auxilia a compreender com clareza o Projeto
Missionário das Testemunhas de Jeová. Antes, porém, de considerar os elementos
por ele discutidos para avaliar o aspecto missionário do grupo proposto, é
necessário pensar que Bosch está referindo-se a todo momento às missões cristãs.
Nas páginas anteriores mostrei como, no treinamento recebido, aquela parte
dedicada a solidificar os argumentos para as abordagens do trabalho de casa em casa
enfatiza a relação individual com Jeová. Ora, essa vinculação explícita a Jeová em
princípio desautorizaria pensar a missão testemunha-de-jeová através dos
parâmetros propostos por Bosch para as missões cristãs, mesmo porque ela está
partindo da idéia de que o conceito de missão está implícito na própria natureza do
cristianismo. No entanto, é possível considerar da formulação de Bosch elementos
para um tipo ideal que serve de referência para pensar o projeto missionário das
Testemunhas de Jeová. É preciso notar, no entanto, que apesar das referências
evangelizadoras das Testemunhas de Jeová estarem sempre ligadas a Jeová, são
enfáticas em se declarar profundamente cristãs.
O cristianismo das Testemunhas de Jeová, porém, não se ajusta ao
cristianismo propriamente dito. A postura testemunha-de-jeová diferencia-se
estruturalmente da postura cristã das principais igrejas ou denominações
contemporâneas, negando e contrapondo diversos aspectos doutrinários. O
principal aspecto (e que em minha opinião é o que vai estabelecer a linha divisória
na discussão que estamos propondo), diz respeito à Trindade, ou seja, a concepção
que inclui em um único ser o Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo,
formando juntos um único Deus. Para as Testemunhas de Jeová, por sua vez, a
Trindade é um ensinamento anti-bíblico, argumentando não constar na Bíblia
nenhum registro que contenha nem a explicação justificando a existência da
Trindade nem o termo propriamente dito. Para o grupo, estes três elementos são
componentes que estabelecem uma ordem hierárquica, sendo partes diferentes com
funções específicas. Jeová Deus é o Pai, soberano e elevado acima de todas as
coisas, que recebe o status de Todo-Poderoso e que contém em si qualidades
ilimitadas (como poder, amor, justiça e sabedoria). Jesus Cristo, filho de Deus, é o
mediador entre Deus e o Homem. Poderoso, porém inferior em cargo e poder e é
separado de Jeová Deus, não constituindo com este um único elemento. Já o
Espírito Santo não constitui uma pessoa, mas a força ativa de Deus que atua no
mundo por intermédio da Sua Palavra.
Outro aspecto é a recusa do ecumenismo que institui uma fronteira com os
demais cristãos. Na concepção do grupo, a prática ecumênica torna-se inviável pelo
fato de outras religiões não guiarem suas ações exatamente de acordo com a Bíblia.
Para as Testemunhas de Jeová, torna-se inviável “associarem-se” a outro grupo
religioso que não siga os preceitos exatos em conformidade com a vontade de Jeová.
Como base desta argumentação, remontam à passagem bíblica de I Coríntios 1:10:
“Exorto-vos agora, irmãos, que por intermédio do nome de nosso Senhor Jesus
Cristo, que todos faleis de acordo, e que não haja entre vós divisões, mas que
estejais aptamente unidos na mesma mente e na mesma maneira de pensar”
(grifo meu).
Logo, podemos dizer que o cristianismo proposto pelas Testemunhas de
Jeová estabelece um universo simbólico e de ações que institui um domínio da
Verdade diferente do cristianismo, que prevê o ecumenismo como prática viável e
amplamente aceita. Isto é tão real que o livro “Raciocínios à base das Escrituras”
utiliza a seguinte argumentação:

A Bíblia não concorda com o conceito moderno de que existem muitas


maneiras aceitáveis de se adorar a Deus. Efésios 4:5 diz que ‘há um só
Senhor, uma só fé’. Jesus declarou: ‘Estreito é o portão e apertada a
estrada que conduz à vida, e poucos são os que o acham (...)’. Repetidas
vezes as Escrituras referem-se ao conjunto dos ensinos cristãos
verdadeiros como a ‘verdade’, e o cristianismo é mencionado como o
‘caminho da verdade’ (...). Em razão de as Testemunhas de Jeová
basearem na Bíblia todas as suas crenças, normas de conduta e
procedimentos organizacionais, sua fé na própria Bíblia como sendo a
Palavra de Deus lhes dá a convicção de que possuem realmente a
verdade. Assim, sua posição não é egoística, mas demonstra confiança na
Bíblia como o padrão certo pelo qual se pode avaliar a religião a que a
pessoa pertence. Não são egocêntricas, antes, têm vivo desejo de
partilhar suas crenças com outros (Raciocínios, p. 388).

Logo, o fato de avaliarem conforme o seu padrão (que na sua concepção, é o


correto) as diferentes religiões a que pertencem as pessoas, excluem qualquer
possibilidade de diálogo com outros grupos no sentido de buscar um patamar
comum. Não há possibilidade de flexibilização de seus princípios e de sua verdade.
Não há encontros possíveis, a menos que os outros venham até eles. O cristianismo
das Testemunhas de Jeová caminha à margem da perspectiva cristã predominante
não somente pelo aspecto doutrinário (e aqui sugiro não somente a discordância
sobre a Trindade, mas sobre a alma e o inferno), mas também pela forma como
estabelecem relações de auto-exclusão com os outros grupos.
Esta discussão doutrinária sobre a imortalidade da alma, assim como do
tormento eterno, são consideradas pelo grupo doutrinas pagãs que se infiltraram no
cristianismo. Para muitos grupos religiosos, “alma” significa a parte imaterial ou
espiritual de um ser humano, que sobrevive à morte do corpo físico. Para as
Testemunhas de Jeová, a alma humana não é imortal.

‘A crença de que a alma continua sua existência após a dissolução do


corpo é um assunto de especulação filosófica ou teológica e não de
simples fé, e concordemente, não é expressamente ensinada em parte
alguma da Escritura Sagrada’ – The Jewish Encyclopedia (1910).
(Raciocínios, p. 34).

Já com relação ao tormento eterno, o grupo argumenta que

A palavra ‘inferno’ se encontra em muitas traduções da Bíblia. Nos


mesmos versículos, outras traduções rezam ‘a sepultura’, ‘o mundo dos
mortos’, e assim por diante. Outras versões da Bíblia simplesmente
transliteram as palavras da língua original, que são às vezes traduzidas
por ‘inferno’, isto é, expressam-nas com letras do nosso alfabeto, mas
deixam as palavras sem tradução. Que palavras são estas? A palavra
hebraica she’óhl e seu equivalente em grego haí-des não se referem a um
lugar individual de sepultamento, mas à sepultura comum da
humanidade morta; também a palavra grega gé-en-na, que é usada como
símbolo da destruição eterna. (Raciocínios, p. 191).

Desta forma, acreditam que muitas compreensões errôneas foram causadas por
erros de tradução de alguns termos específicos. Por isso, crêem que os justos vão
para a vida, e os ímpios para o decepamento, ou seja, serão cortados da vida para a
morte.
Estabeleci esta discussão e diferenciação da perspectiva cristã missionária
sugerida por Bosch em comparação à perspectiva das Testemunhas de Jeová para
delimitar um aspecto importante deste debate. Estou considerando as missões
cristãs propostas por Bosch como “tipos ideais” que servem como modelos de
análise na reflexão proposta. Passo a utilizar, então, alguns elementos conceituais da
missão cristã sugerida por Bosch na análise da prática do grupo proposto por
considerar que estes elementos se aplicam em muitos aspectos à prática missionária
das Testemunhas de Jeová, na medida em que são identificadas características
indicadas como sendo da missão cristã tradicional. Por outro lado, também
considero o fator da auto-identificação do grupo, ao referirem-se como
“detentores” do cristianismo verdadeiro da Bíblia, em oposição ao termo
“cristandade”, referido ao cristianismo professo.
Como nossa atenção está voltada ao aspecto missionário das Testemunhas de
Jeová, as concepções sugeridas por Bosch abrem caminhos importantes para a
reflexão proposta. O primeiro aspecto diz respeito ao valor intrinsecamente
missionário da fé cristã. A prática missionária das Testemunhas de Jeová tem uma
característica persuasiva muito forte, na medida em que consideram como sendo
unicamente válidos os valores e doutrinas estabelecidas e seguidas por eles. Dizer
que a fé cristã é intrinsecamente missionária significa reconhecer o caráter
proselitista da prática do grupo. Este proselitismo torna-se persuasivo na prática do
testemunho formal (batendo de porta em porta e convencendo as pessoas com base
em excelente capacidade argumentativa) e do testemunho informal, quando
conversam com outras pessoas de forma descontraída e inesperada sobre sua fé e
crenças. Outro aspecto a ser considerado é que a missão testemunha-de-jeová
propõe um relacionamento do indivíduo que está sendo evangelizado com o divino,
com Jeová Deus. A proposta missionária do grupo sugere um estilo de vida que
modifique práticas ilícitas anteriores, incluindo nesta modificação um processo de
contato direto e dinâmico entre Deus e o indivíduo. Outro ponto importante diz
respeito à caracterização da Igreja Cristã como existência missionária. Bosch sugere
que isto se dá não através da proclamação universal do evangelho, mas através da
universalidade do evangelho que a igreja proclama. No caso das Testemunhas de
Jeová, a caracterização missionária se dá não somente através da universalidade do
evangelho que prega, mas muito mais através da universalidade de um modo de vida
muito específico, de um padrão de conduta que rege suas ações, homogeneizando o
grupo. No processo missionário testemunha-de-jeová, o entendimento da
construção de estruturas de plausibilidade (enquanto mantenedora de coerência e
significados da realidade proselitista) é que vai oferecer elementos clarificadores da
prática missionária do grupo.
Quando me refiro à missão testemunha-de-jeová, penso que há o
estabelecimento do limite de sua prática missionária à prática proselitista, ou seja, a
busca incessante de uma conversão não somente a Jeová Deus, mas a um modo de
vida específico, que inclui regras determinadas, valores compartilhados, condutas e
visões de mundo que elaboram a identidade testemunha-de-jeová. Uma prática
proselitista que não inclui outros espaços nem outras vivências que não sejam
determinadas pelo grupo.
Se estou partindo do princípio de que a prática missionária testemunha-de-
jeová é realizada através de uma densa atuação proselitista, e considerando que este
proselitismo requer a prática continuada de um treinamento que reivindica para si
tempo e dedicação, pode-se dizer, então, que este treinamento atua como um
dispositivo disciplinador na dinâmica testemunha-de-jeová
O treinamento, enquanto englobador de diversos dispositivos disciplinares, é
que oferece à Instituição a constituição de uma estrutura de plausibilidade para as
Testemunhas de Jeová. Diversos elementos passam a ser utilizados na elaboração
desta estrutura de plausibilidade. A noção de tempo por eles elaborada é uma
categoria central para o grupo, na medida em que organiza uma série de práticas e
eventos. A espera pela chegada do milênio e o estabelecimento do Reino de Jeová
na Terra, a contagem de horas investidas na prática proselitista, o tempo
cronometrado durante as reuniões e uma atenção cuidadosa em otimizar as
atividades cotidianas no intuito de gastar o tempo com coisas do Reino (e não com
as coisas deste “mundo”) mostra o tempo como uma verdadeira tecnologia
disciplinar, na medida em que ordena e nomeia toda a prática do grupo. Logo,
sugiro que o tempo é uma estrutura de plausibilidade e que, enquanto tecnologia
disciplinar, coordena a ação do grupo a uma homogeneização que submete toda
ação individual à ordenação da Instituição.
Esta homogeneização, identificada também na escrita e na iconografia elaborada
pelo grupo produz, conforme mostrei anteriormente, sugere uma padronização do
imaginário coletivo. São as imagens e os textos que passam, então, a estabelecer
como critério o que deve ser pensado, o que deve ser lido, o que deve ser
experenciado e sentido por um indivíduo Testemunha de Jeová e o que deve ser
dito para si e para os outros. São as imagens que sugerem um “estilo de ser”
Testemunha de Jeová e são os textos que tem por função padronizar o discurso e o
pensamento do grupo, principalmente se considerarmos que uma publicação da
revista A Sentinela ou Despertai! é impressa e divulgada no mundo inteiro na mesma
semana e contendo os mesmos artigos e imagens. Este é um dos fatores de
construção, ao meu ver, da homogeneização do estilo testemunha-de-jeová de ser.
Sugiro, então, que a escritura e a iconografia testemunha-de-jeová também
constróem a estrutura de plausibilidade em que se prestam a um reforço constante
da Verdade, dos valores e do estilo aceito e acatado pelo grupo.
Vale notar que o que está em jogo nesta estrutura de plausibilidade não é somente o
reforço contínuo do estabelecimento de uma homogeneização do grupo, mas uma
prática “terapêutica”, conforme sugere Berger (1997), ou seja, o que está em jogo
são também práticas organizadas pela Instituição destinadas a silenciar dúvidas e à
prevenção de lapsos de convicção. É a Instituição Sociedade Torre de Vigia de
Bíblias e Tratados que pretende para si o domínio da elaboração da estrutura de
plausibilidade testemunha-de-jeová.
Acredito, então, que é válido, tendo em vista o quadro apresentado, elaborar
um conceito de missão das Testemunhas de Jeová. O que, afinal, é missão para as
Testemunhas de Jeová, para além de sua própria definição? Uma resposta adequada
a esta pergunta exige um conceito provisório. Tão provisório quanto o conceito de
Bosch, na medida em que ainda há diversos elementos a serem explorados devido à
ambigüidade do termo e da prática, que esta pesquisa de mestrado não tem
pretensão de dar conta.
A missão testemunha-de-jeová é uma prática sistematizada pela Sociedade
Torre de Vigia de Bíblias e Tratados que visa a condução das atividades de seus
membros à uma disciplinarização de suas ações. Esta disciplinarização tem como
fim último a diligência de seus membros à prática proselitista. Mas não somente. É
esta disciplinarização que dá à Instituição a legitimidade do domínio de espaços,
formas, narrativas e identidades individuais. Estas identidades individuais passam
então a assumir a identidade da Organização que, para manter o controle sobre esta
disciplinarização, elabora estruturas de plausibilidade que visam reforçar a visão de
mundo por ela determinada. É a partir dos elementos pertencentes a esta estrutura
de plausibilidade que as Testemunhas de Jeová reforçam sua identidade enquanto
grupo e se mostram ao “mundo” como detentores de uma Verdade absoluta que
deve, necessariamente, ser divulgada.
Esta provisória definição da missão testemunha-de-jeová nos faz refletir
sobre o parecer do grupo a respeito do uso da Internet. Diversos artigos foram
elaborados para fins de divulgação a respeito do uso da Internet. São reflexões que
estimulam um olhar crítico a respeito do uso deste ambiente virtual, e atentam para
os diversos perigos gerados por este uso. Baseada na definição de missão sugerida
anteriormente, acredito que seja relevante pensar a prática do uso da Internet
(melhor dizendo, o seu “quase-uso”) e entender como, aplicada ao conceito de
missão testemunha-de-jeová, se aplica ao conceito elaborado.
Uma âncora argumentativa utilizada pela Instituição remete à racionalidade
no que refere-se ao uso do tempo e do dinheiro: “Calculou o custo do equipamento
e dos programas versus sua real necessidade? (vide Lucas 14:28)”; ou então: “Quanto
tempo levará para instalar e aprender a usar os instrumentos para navegar na
Internet?” (Despertai, 22/07/97). Vejamos parte de um outro artigo que elucida esta
argumentação:

Neste século 20, a vida tem-se tornado cada vez mais complicada. Muitas
invenções que beneficiaram a alguns acabaram se transformando em
desperdiçadoras de tempo para muitos. Além disso, programas de TV
imorais e violentos, livros pornográficos, música degradante, e assim por
diante, são exemplos de tecnologias mal-utilizadas. Além de consumirem
tempo precioso, prejudicam espiritualmente as pessoas. Naturalmente, a
prioridade máxima do cristão são os assuntos espirituais, tais como ler a
Bíblia todos os dias e assimilar bem as inestimáveis verdades bíblicas
explicadas nas revistas A Sentinela e Despertai! e em outras publicações da
Sociedade Torre de Vigia. Benefícios eternos resultarão, não de surfar na
Internet, mas de usar seu tempo para assimilar conhecimento do único
Deus verdadeiro e de seu Filho, Jesus Cristo, e aplicá-lo zelosamente. –
João 17:3; veja também Efésios 5:15-17. (Ibid., p.13).

Vale notar que não somente a racionalidade no uso e otimização do tempo é


abordada no texto, mas também referências que conduzem o leitor à uma busca do
conhecimento e das verdades bíblicas que são encontradas em nenhum outro
lugar senão nas revistas e nas publicações da Sociedade Torre de Vigia. Não só o
uso do tempo é valorizado, mas principalmente o estabelecimento do limite que
conduz o membro da Instituição ao lugar de encontro da Verdade, que é
determinado pela Instituição. Isto vem revelar, em certo sentido, a reivindicação da
Instituição de domínio na construção da estrutura de plausibilidade, na medida em
que estabelece ao indivíduo onde e como encontrar a verdade. Verdade esta que é
elaborada pela Instituição.
A construção deste limite revela-se a partir do momento em que, ao
reconhecer relativa importância quanto ao uso e impacto da Internet na sociedade
atual, a Instituição estabelece um site na Internet no sentido de oferecer informações
exatas sobre as crenças e as atividades das Testemunhas de Jeová.
Nossa página (site) na Web não tem por objetivo lançar novas
publicações, mas tornar disponíveis ao público as informações em
formato eletrônico. Não há necessidade de ninguém preparar páginas na
Internet sobre as Testemunhas de Jeová, sobre nossas atividades ou
crenças. Nossa página oficial apresenta informações exatas para quem as
desejar. Embora nossa página não tenha provisão para mensagens
eletrônicas (e-mail), alista endereços de correspondência das filiais e
congêneres em todo o mundo. Dessa forma, as pessoas podem escrever
para obter mais informações ou receber ajuda pessoal de Testemunhas
de Jeová localmente. Sinta-se à vontade para fornecer o endereço acima
citado da Internet a quem esteja disposto a começar a aprender a verdade
bíblica usando esse meio.(Nosso Ministério do Reino, novembro/1997).

Desta forma, cria-se um novo espaço, ainda que virtual, e é sobre este espaço
que surge uma nova busca da prática de domínio. Diante de um mundo virtual nada
ordenado, a única possibilidade de estabelecer ascendência é reivindicar para si o
domínio das informações divulgadas.
É interessante notar que a Sociedade Torre de Vigia percebe-se não somente
como detentora de domínios e estruturas de plausibilidade, mas também de
identidades. As Testemunhas de Jeová desenvolvem em seu discurso uma
argumentação que revela relativo temor frente à Internet. Uma dessas
argumentações diz respeito à questão da identidade, considerando o fato de que há
grande preocupação em relacionar-se com uma falsa Testemunha de Jeová. Como
reforço desta argumentação, alertam quanto ao uso das salas de bate papo e dos
grupos de discussão:

Você convidaria um estranho à sua casa sem primeiro descobrir quem


ele é? E se não houvesse meios de descobrir? Deixaria que ele ficasse
sozinho com seus filhos? Não há dúvida de que isso pode acontecer na
Internet. É possível enviar e receber mensagens eletrônicas de pessoas
que você não conhece. O mesmo acontece quando você participa de
conversas pelo computador, num fórum ou num chat room (sala de bate-
papo).Os participantes talvez digam que são Testemunhas de Jeová, mas
muitas vezes não são. Alguém pode mentor sobre a idade ou até sobre o
sexo. As informações talvez lhe sejam passadas na forma de experiências
ou comentários sobre nossas crenças. Essas informações são passadas a
outros que, por sua vez, também as passam adiante. Geralmente, não há
como confirmar as informações, que podem ser inverídicas. Os
comentários podem servir de fachada para divulgar idéias apóstatas.
(Nosso Ministério do Reino, nov/1999).

A reivindicação da Instituição sobre a identidade individual do membro


Testemunha de Jeová se dá principalmente através de duas formas: a proibição de
narrativas individuais, que são substituídas pelo discurso unitário da Sociedade
frente ao mundo secular e a orientação de evitação do indivíduo frente às coisas
deste mundo, oferecidas pela Internet:

É necessária extrema cautela no uso da Internet (...). É verdade que


existem muitas fontes úteis na rede, como bibliotecas, livrarias e canais
noticiosos. Por exemplo, a Sociedade Torre de Vigia (dos EUA)
recentemente anunciou seu próprio endereço mundial na rede (...) que
serve para fornecer informações corretas a respeito das Testemunhas de
Jeová. Ainda assim, deve-se reconhecer que existem influências
extremamente prejudiciais na Internet, incluindo pornografia e apostasia.
O cristão deve ter em mente o conselho de Paulo: ‘Isto, portanto, digo, e
dou testemunho no Senhor, que não mais andeis assim como também as
nações andam na improficuidade das suas mentes... Tendo ficado além
de todo mo senso moral, entregaram-se à conduta desenfreada para
fazerem com ganância toda sorte de impureza. Mas vós não aprendestes
que o Cristo seja assim’. (Efésios 4:17-20). (...) É preciso saber que
muitos sites na Internet foram criados por pessoas de intenções imorais
ou desonestas. E muitos sites que talvez não sejam imorais ou
desonestos, como os grupos de bate-papo, são pura perda de tempo.
Fique longe de tudo isso! (Despertai, 8/01/1998).
A anulação da identidade individual significa também o estabelecimento de
uma relação de separação com o “mundo”:

Quando vamos ao Salão do Reino, não há dúvida de que estamos com


nossos irmãos. Nós os conhecemos. Ninguém exige prova disso porque
o amor fraternal demonstrado ali deixa isso claro. Não temos de
apresentar credenciais para provar que realmente somos Testemunhas de
Jeová. É no Salão do Reino que encontramos o verdadeiro intercâmbio
de encorajamento mencionado por Paulo em Hebreus 10:24,25. Não
podemos esperar isso nos sites da Internet, que incentivam a associação
on line. Ter em mente as palavras do Salmo 26:4,5 pode fazer com que
fiquemos atentos as perigos facilmente encontrados nos sites da Internet.
(Ibid., p. 3).

Separar-se do “mundo” e distanciar-se da Internet, na medida em que esta


não oferece alternativas e mecanismos de ordenação, domínio e controle, ou seja, é
vista como livre e indisciplinável, possibilita a elaboração de mecanismos de
ordenação produzidos pela Sociedade Torre de Vigia que visam a construção de
estruturas de plausibilidade que reforçam as visões de mundo compartilhadas pelo
grupo, possibilitando que as Testemunhas de Jeová se apresentem ao “mundo”
através de uma única prática: a prática proselitista.
Considerações Finais
Considerações Finais

Falei, aqui, das Testemunhas de Jeová. Tentei aproximar ao máximo através


do meu texto o leitor do grupo estudado, relatando experiências de campo e
percepções que acredito revelar, em certa medida, elementos essenciais que fazem
parte da vivência testemunha-de-jeová e que acabam por determinar e delimitar sua
prática de trabalho proselitista.
Por tempos, durante esta pesquisa, tive dificuldade em identificar os reais
motivos que levam o grupo a um “quase-uso” da Internet. Encontrei dificuldades
também em acessar meus informantes com relação ao seu uso cotidiano da Internet.
Afinal, neste contexto eu não poderia negar que eles são também “indivíduos-no-
mundo”, e de certa foram muito bem socializados e contextualizados. Mas o fato é
que a Internet, assim como outros meios de comunicação, é vista por eles assim
como determina a Instituição: como fonte de informação e como via de acesso a um
objetivo que tem um fim último. Seja ele qual for, não diz respeito à sociabilidade e
muito menos ao trabalho proselitista. Mais, é visto como perigoso para sua
moralidade e fé.
A diferença, dada pelo contraste, no uso dos meios de comunicação de massa
com relação a outros grupos religiosos vem demonstrar o forte investimento das
Testemunhas de Jeová na produção escrita e no contato pessoal. Enquanto diversos
pesquisadores (como por exemplo Montero, 1986) apontam para o fato de que
diferentes grupos religiosos estão revendo seus princípios e modelos de atração –
lançando-se na “aventura” do ciberespaço -, as Testemunhas de Jeová por sua vez têm
historicamente revisto suas técnicas de atração para investir somente no trabalho
individual e, como dizem, no “corpo a corpo”. O grupo nega o uso da televisão, do
rádio e da Internet como meio possível de propagação de suas crenças, investindo
massivamente no aprimoramento de técnicas de abordagem pessoal, através do
treinamento que visa como fim último a prática proselitista.
Uma peculiaridade da comunicação testemunha-de-jeová reside no fato de,
ao mesmo tempo em que investem em um denso e exclusivo contato pessoal,
comunicam-se com o “mundo” assumindo a face da Instituição. Não há espaço, no
contexto considerado, para narrativas individuais e nem espaços para outras
vivências que não aquelas determinadas pela Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e
Tratados. As vozes e as mensagens que saem da boca de todas as Testemunhas de
Jeová espalhadas pelo mundo não são um conjunto de mensagens individuais que
acabam por formar, coincidentemente, um todo coerente. Pelo contrário, essa
coerência no discurso e a forte homogeneização presenciada em campo é resultado
de um esforço continuado da Instituição, que reivindica para si todas e quaisquer
possibilidades de formatação de narrativas individuais, padronizando o discurso
proferido pelos seus indivíduos e estabelecendo os critérios de comunicação- entre
si e com o mundo.
A instituição assume voz ativa, apresentando-se para o grupo enquanto uma
identidade “antropomórfica” (cf. Montenegro, 1996). É a organização que “diz”, é a
organização que “pede”, é a organização que “pensa”. É também a organização que
acaba por estabelecer as formas e as estratégias de atração e convencimento do
“mundo”. Mas não somente. É também a Instituição quem cria, sustenta e reforça
diferentes práticas e concepções elaboradas pelo grupo através de tecnologias
disciplinares que reforçam os valores e as identidades compartilhadas.
Logo, quando estou abordando a temática da missão testemunha-de-jeová,
estou estabelecendo o limite desta prática à prática proselitista, ou seja, a busca
incessante de uma conversão não somente a Jeová Deus mas a um modo de vida
específico que envolve uma série de regras, condutas, valores morais e visões de
mundo que determinam e constróem a identidade testemunha-de-jeová. Considero
também que, em sendo a prática missionária testemunha-de-jeová uma prática
proselitista, é esta prática que demanda uma elaboração continuada de um
treinamento que reivindica para si tempo e dedicação. Considerei, a partir de dados
etnográficos, que este treinamento que visa o aprimoramento de técnicas
proselitistas atua para o grupo como uma tecnologia disciplinadora, nos termos
propostos por Foucault (1977; 1979). Esta reflexão foi enriquecedora para nossa
análise, na medida em que passei a considerar que diferentes práticas e concepções
elaboradas pelo grupo são determinadas por um rígido controle sobre a produção de
um regime de verdade mantenedor da vida Testemunha de Jeová. O grupo caminha
conforme estruturas cognitivas elaboradas e pré-estabelecidas pela Sociedade Torre
de Vigia de Bíblias e Tratados. É interessante notar que o processo disciplinar se
realiza em nome da expectativa de eficiência do proselitismo. E é assim que a
disciplina se auto alimenta.
São estes elementos do treinamento que dão a eles um preparo teológico-
doutrinário-argumentativo para suas “idas a campo”. É durante estes treinamentos
que as Testemunhas de Jeová estudam, falam, ouvem, lêem e se equipam para
encararem, preparadas, o trabalho proselitista. Mas todos os elementos
preparatórios contidos neste treinamento que visa o trabalho proselitista são
energizados pela possibilidade iminente da volta do Reino de Jeová. A concepção de
tempo das Testemunhas de Jeová é organizada a partir de uma “espera-esperança”
que acaba por gerar no grupo uma consciência de tempo urgente., estimulada pela
iminência da vinda. Esta “espera-esperança” almejada e não concretizada se
constitui, da mesma forma, em seu triunfo. A utopia milenarista das Testemunhas
de Jeová se baseia não nas realizações das profecias, mas na esperança que dá a eles
novos significados, gerando no grupo estímulo, renovação da própria esperança e
reforço dos valores estabelecidos.
Procurei mostrar que os três elementos que abordei nesta pesquisa são
diferentes e não são igualmente considerados em termos metodológicos. Enquanto
a temática das novas tecnologias, (especificamente a abordagem da Internet) serviu
como um recurso metodológico de acesso ao estilo de missão testemunha-de-jeová,
a temática do milenarismo teve um papel diferente, servindo para compreender a
configuração da cosmovisão do grupo e o sentimento de urgência que os impulsiona
à prática proselitista. Já a noção de indivíduo clarificou as relações das Testemunhas
de Jeová com a Instituição, detentora e criadora de valores e regras de conduta.
Detentora e criadora, também, de um estilo missionário.
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SOCIEDADE TORRE DE VIGIA DE BÍBLIAS E TRATADOS. Por que
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A ORGANIZAÇAO que leva o Nome. Produção da Watchtower Bible and Tract


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