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SOUZA, Neusa Santos. Tornar-Se Negro As Vicissitudes Da Identidade Do Negro Brasileiro em Ascensão Social. 2. Ed. Rio de Janeiro Edições Graal, 1983. 88 P PDF

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COLEÇÃO TENDÊNCIAS NEUSA SANTOS SOUZA

VOL. N.O 4

TORNAR-SE NEGRO
ou
As Vicissitudes da Identidade
do Negro Brasileiro
em Ascensão Social
2.ª edição

1 J 1
1
<'1111yriHhf hy Ncuza Santos Souza

e'apa 11crnanda Gomes

Aerowafia de capa Tige

R<•visão Beatriz Cintra Martins

Produção Orlando Fernandes

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Sousa, Neusa Santos.


Tornar-se negro : as vicissitudes da identidade do negro
brasileiro em ascenção social / Neusa Santos Souza. - Rio
de Janeiro : Edições Graal, 1983
Coleção Tendências; v. 4)

Bibliografia. Aos amigos


Ao pessoal de casa
1. Negros - Condições sociais 2. Negros no Brasil I.
Título II. Série
À Ester.

CDD - 305.8036081
82-0867 CDU - 572.96 (81)

1~ Edição: Abril 1983

Direitos adquiridos para a língua portuguesa por


EDIÇÕES GRAAL LTDA.
Rua Hermenegildo de Barros, 31-A - Glória l
20.241 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil.
Fone: (021) 252-8582 l
'
Conselho Editorial
Antonio Candido f
Fernando Gasparian
Fernando Henrique Cardoso

1990
í
Impresso no Brasil!Printed in Brazil

1
Agradecimentos fndice
Âqueles que me contaram suas histórias-de-vida, num gesto de
confiança e generosidade. PREFÁCIO - Da Cor ao Corpo: A Violência do Racismo, 1
Àqueles que caminharam comigo no dia-a-dia da construção CAPÍTULO J
deste trabalho - Gregório F. Baremblitt e Madel Terezinha Luz. Introdução, 17
Aqueles que, além da amizade, deram-me contribuições decisivas CAPÍTULO II
na elaboração deste trabalho. São muitos, especialmente: Astrogildo Antecedentes Históricos da Ascensão Social do Negro Brasileiro
B. Esteves Filho, Anamaria T. Tambellini, Célia Leitão, Cláudia - A Construção da Emocionalidade, 19
Massadar, Isidoro Eduardo Americano do Brasil, João Ferreira Fi- CAPÍTULOIII
lho, Joel Birman, José Carlos de Souza Lima, Jurandir Freire Costa, O Mito Negro, 25
Luiz Eduardo B. M. Soares, Marco Aurélio Luz, Patrícia Birman,
CAPÍTULO IV
Roberto Machado, Rogério Luz e Sherrine M. Njaine Borges.
Narcisismo e Ideal do Ego, 33
A Maria Clara Schiefler da Cunha Forster, pela datilografia.
CAPÍTULO V
A História de Luísa, 45
CAPÍTULO VI
Temas Privilegiados, 61

1. REPRESENTAÇÃO DE SI, 61
1.1 - Definições, 61
1.2 - Fantasias e Estereótipos Sexuais, 62
1.3 - Representação do Corpo, 63
1. 4 - O Mulato: Ser e não Ser Negro, 64

2. DAS ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO, 65


2 .1 - Ser o Melhor, 65
2 .2 - Aceitar a Mistificação, 65
2 .2 . 1 - Perder a Cor, 65
2. 2. 2 - Negar as Tradições Negras, 66
2. 2. 3 - Não Falar no Assunto, 66
3 DO PREÇO DA ASCENSÃO: A CONTINUA PROVA, 66 PREFACIO
CAPÍTULO VII
Metodologia, 69
( CAPÍTULOVIII
Conclusão, 77
Da cor ao corpo: a violência do .racismo
POSFÁCIO- Digressões Metodológicas de um Colaborador, 79
Jurandir Freire Costa
BIBLIOGRAFIA, 87

Há 11 anos atrás, publicava-se em Paris as cartas de pnsao


do negro americano George Jackson. A Jean Genet coube a ta-
refa de introduzir a obra ao público francês. Introdução que, já
no início, traía as expectativas do leitor, pois nada tinha em comum
com os usuais prefácios ou comentários do gênero. Genet, o co-
mentarista, tragado pela emoção do texto, despediu a pretensão
da crítica, convertendo-se em aliado do combate e do amor do
negro pelo negro. As cartas de Jackson, dizia ele, eram um "poema
de amor e combate".
Prefaciar o presente livro, colocou-nos diante de um dilema
semelhante. Perguntamo-nos, insistentemente, o que acrescentar a
esta denúncia feita de depoimentos que falam por si. A autora
empresta seu talento aos oprimidos. Põe a serviço do negro sua
generosidade e firmeza intelectuais. E, como resultado, temos esta
condenação sem mágoas; este alerta que nos martela a consciência
e ecoa aos ouvidos como um grande grito de solidariedade aos
injust.içados.
Lendo este trabalho, não nos foi possível deixar de evocar a
inscrição definitivamente gravada no monumento às vítimas do ho-
locausto nazista em Paris: "Pardonne, mais n'oublie pas".
Impossível, do mesmo modo, foi abordá-lo com o olhar de
quem julga mais um produto de nossa incipiente .indústria acadê-
mica de teses. A credibilidade do que é afirmado não nasce, pri-
mordialmente, dos conhecidos passaportes para o tantas vezes insí-
pido mundo da respeitabilidade científica: "rigor teórico"; "coerên-
cia conceituai"; "fidedignidade do fato compírico" etc. Aqui, a
dor cria a noção; a indignação; o conceito; a dignidade; o discurso.
Retomando as palavras de Marilena Chauí, diríamos que este
não é um discurso competente. Nele, os cânones do protocolo

1
científico, apesar de respeitados, não mumificam o saber. O es- negro. Este, através da internalização compulsória e brutal de um
queleto teórico-metodológico é apenas suporte de uma substância Ideal de Ego branco, é obrigado a formular para st um projeto
viva que pulsa, transpira e nos transmite um sentimento de hones- identificatório incompatível com as propriedades biológicas do seu
tidade radical. A crítica contundente não :recorre ao ódio ou ao corpo. Entre o Ego e seu Ideal cria-se, então, um fosso que o
ressentimento para ser escutada. A liberdade e a igualdade são sujeito negro tenta transpor, às custas de sua possibilidade de feli-
exigidas, reclamadas. Mas em nome da fraternidade. Não nos cidade, quando não de seu equilíbrio psíquico.
enganemos, esta adesão terna e apaixonada à verdade contra a O Ideal de Ego do negro, em contraposição ao que ocorre re-
opressão tem fornecido aquilo que de melhor possuímos nas ciências gularmente com o branco, é forjado desrespeitando aquilo que, em
humanas. linguagem psicanalítica, denominamos regras das identificações nor-
Comentar um trabalho deste gênero exige, portanto, que abdi- mativas ou estruturantes. Estas regras são aquelas que permitem
quemos rapidamente de nossos velhos hábitos de pensar. É inútil, ao sujeito ultrapassar a fase inic.ial do desenvolvimento psíquico
neste caso, duelar com a palavra. Ou, o que é mais corrente, pro- onde o perfil de sua identidade é desenhado a partir de uma dupla
curar cindi-la e buscar no verso e reverso de seu âmago a verda- perspectiva: 1. 0 ) a perspectiva do olhar e do desejo do agente
deira intenção, ideologicamente travestida. que ocupa a função materna; 2. 0 ) a perspectiva da imagem cor-
poral produzida pelo imaturo aparelho perceptivo da criança.
O trabalho crítico não deve procurar desvendar um suposto
sentido latente emudecido pela ruidosa máscara do manifesto. A esta fase inaugural da construção da identidade do sujeito
chamamos de narcísica, imaginária ou onipotente, termos indisso-
Muito ao contrário, deve deixar-se conduzir pela visjbilidade do
ciáveis e funcionalmente complementares na dinâmica mental que
testemunho daqueles a quem foi dada a palavra. Deve acompanhar
os preside e organiza.
a postura da autora, prolongando seus propósitos e intenções, quais
sejam, tornar o saber um instrumento de transformação e não um As regras das identificações normativas ou estruturantes são
objeto de disputa escolástica. uma barreira contra a perpetuação desta posição orginária da infân-
cia do homem. Acompanhando o desenvolvimento biológico da
'VNeste sentido, o estudo sobre as vicissitudes do negro brasileiro
criança, elas permitem ao sujeito infantil o acesso a uma outra ordem
em ascensão soe.ia! levou-nos, incoercivelmente, a refletir sobre a
do existente a ordem da cultura onde a palavra e desejo
violência. violência parece-nos a pedra de toque, o núcleo cen-
maternos não mais serão as únicas fontes de definição da "verdade"
tral do problema abordado. Ser negro é ser violentado de forma ou "realidade" de sua identidade. O dueto exclusivo entre a crian-
constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla ça e a mãe é interrompido. Em primeiro lugar, pela presença do
injunção: a de encarnar o corpo e os ideais de Ego do sujeito pai e, em seguida, pela presença dos pares, que serão todos os outros
branco e a de recusar, negar e anular a presença: do corpo negro. sujeitos exteriores à comunidade familiar.
Nisto reside, a nosso ver, a espinha dorsal da violência racista. Estas jnstâncias vão mostrar ao sujeito aquilo que lhe é per-
Violência que, poderia ajudar-nos a melhor mitido, proibido ou prescrito sentir ou exprimir, a fim de que sejam
entender o fardo imposto a todos os excluídos da norma psico-só- garantidos, simultaneamente, seu direito a existência, enquanto ser
cio-somática criada pela classe dominante branca ou que se auto- psíquico autônomo, e o da existência de seu grupo, enquanto comu-
define desta maneira. nidade histórico·-social. As identificações normativo-estruturantes,
Em que consiste esta violência? A autora, sem ambigüidades, propostas pelos pais aos filhos, são a mediação necessária entre o
aponta-nos seu primeiro traço, v.isto sob o ângulo da dinâmica in- sujeito e a cultura. Mediação que se faz através das relações físi-
trapsíquica. A violência racista do branco exerce-se, antes de mais co-emocionais criadas dentro da família e do estoque de significados
nada, pela impiedosa tendência a destruir a identidade do sujeito lingüísticos que a cultura põe à disposição dos sujeitos.

2 3
negro sabe igualmente que, hoje como ontem, pela fome de lucro
O Ideal do Ego é um produto da decantação destas experiên-
e poder, o branco condenou e condena milhões e milhões de seres
cias. Produto formado a partir de imagens e palavras, representa-
humanos à mais abjeta e degradada miséria física e moral.
ções e afetos que circulam incessantemente entre a criança e o
adulto, entre o sujeito e a cultura. Sua função, no caso ideal, é O negro sabe tudo isto e, talvez, muito mais. Porém, a bran-
a de favorecer o surgimento de uma identidade do sujeito, compa- cura transcende o branco. Eles - indivíduo, povo, nação ou
I ívcl com o investimento erótico de seu corpo e de seu pensamento, Estado brancos - podem "enegrecer-se". Ela, a brancura, perma-
via indispensável a sua relação harmoniosa com os outros e com nece branca. Nada pode macular esta brancura que, à ferro e fogo,
o mundo. cravou-se na consciência negra como sinônimo de pureza artística;
Ao sujeito negro, esta possibilidade é, em grande parte, sone nobreza estética; majestade moral; sabedoria científica etc. O
gada. O modelo de Ideal de Ego que lhe é oferecido em troca belo, o bom, o justo e o verdadeiro são brancos. O branco é, foi
da antiga aspiração narcísico-imaginária não é um modelo humano e continua sendo a manifestação do Espírito, da Idéia, da Razão.
de existência psíquica concreta, histórica e, conseqüentemente, reali- O branco, a brancura, são os únicos artíf.ices e legítimos herdeiros
zável ou atingível. O modelo de identificação normativo-estruturan- do progresso e desenvolvimento do homem. Eles são a cultura, a
te com o qual ele se defronta é o de um fetiche: o fetiche do branco, civilização, em uma palavra, a "humanidade".
da brancura. O racismo esconde assim seu verdadeiro rosto. Pela repres-
Para o sujeito negro oprimido, os indivíduos brancos, diversos são ou persuassão, leva o sujeito negro a desejar, invejar e projetar
em suas efetivas realidades psíquicas, econômicas, sociais e cultu- um futuro identificatório antagônico em relação à realidade de seu
rais, ganham uma feição ímpar, uniforme e universal: a brancura. corpo e de sua histór.ia étnica e pessoal. Todo ideal identificatório
A brancura detém o olhar do negro antes que ele penetre a falha do negro converte-se, desta maneira, num ideal de retorno ao pas-
do branco. A brancura é abstraída, reificada, alçada à condição sado, onde ele poderia ter sido branco, ou na projeção de um fu-
de realidade autônoma, independente de quem a porta enquanto turo, onde seu corpo e identidade negros deverão desaparecer.
atributo étnico ou, mais precisamente, racial. A brancura é o fe-
Não é difícil imaginar o ciclo entrópico, a direção mortífera
tiche sjmétrico inverso do que a autora designou por mito negro.
imprimida a este ideal. O negro, no desejo de embranquecer, de-
Funciona como um pré-dado, como uma essência que antecede a
seja, nada mais, nada menos, que a própria extinção. Seu projeto
existência e manifestações históricas dos indivíduos reais, que são
apenas seus arautos e atualizadores. O fetichismo em que se assen- é o de, no futuro, deixar de existir; sua aspiração é a de não ser
ta a ideologia racial faz do predicado branco, da brancura, o "su- ou não ter sido.
jeito universal e essencial" e do sujeito branco um "predicado con- Esta é, de maneira sucinta, a argumentação nodal da autora,
tingente e particular". quando desmonta e explicita os mecanismos da violência racista.
Vítima dos efeitos dessa alienação, pouco importa, então, ao Porém, como não ver, através desta mesma demonstração, que
sujeito negro o que o branco real, enquanto indivíduo ou grupo, a ideologia de cor é, na verdade, a superfície de uma ideologia
venha a fazer, sentir ou pensar. Hipnotizado pelo fetiche do bran- ma.is daninha, a ideologia do corpo. De fato, parece-nos evidente
co, ele está condenado a negar tudo aquilo que contradiga o mito que o ataque racista à cor é o "close-up" de uma contenda que tem
da brancura. no corpo seu verdadeiro canipo de batalha. Uma visão panorâ-
O negro sabe que o branco criou a inquisição, o colonialis- mica, rapidamente, nos mostra que o sujeito negro ao repudiar a
mo, o imperialismo, o anti-semitismo, o nazismo, o stalinismo e cor, repudia, radicalmente o corpo.
tantas outras formas de despotismo e opressão ao longo da história.
O negro também sabe que o branco criou a escravidão e a pilha- Nos depoimentos colhidos e nas análises feitas, a autora mostra
gem, as guerras e as destruições, dizimando milhares de vidas. O como o mito negro constrói-se às expensas de uma desvalorização

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sistemática dos atr,ibutos físicos do sujeito negro. É com desprezo, resultantes da diferença em relação ao branco vão traduzir-se em
vergonha ou hostilidade que os depoentes referem-se ao "beiço ódio ao corpo negro.
grosso" do negro; "nariz chato e grosso" do negro; "cabelo ruim"
A discriminação de que seu corpo é objeto, não dá tréguas à hu-
do negro; "bundão" do negro; "primitivismo" sexual do negro e
milhação sofrida pelo sujeito negro que não abdica de seus direitos
assim por diante. humanos, resignando-se à passiva condição de "inferior". Curiosa
O segundo traço da violência racista, não duvidamos, é o de e trágica contradição. É no momento mesmo em que o negro rei-
estabelecer, por meio do preconceito de cor, uma relação persecu- v.indica sua condição de igualdade perante a sociedade que a ima-
tória entre o sujeito negro e seu corpo. O corpo ou a imagem gem de seu corpo surge como um intruso, como um mal a ser sa-
corporal eroticamente investida é um dos componentes fundamentais nado, diante de um pensamento que se emancipa e luta pela liber-
na construção da identidade do indivíduo. A identidade do sujeito dade. Um dos entrevistados dizia: "Eu sinto o problema racial
depende, em grande medida, da relação que ele cria com o corpo. como uma ferida. É uma coisa que penso e sinto todo o tempo.
A imagem ou enunciado identificatório que o sujeito tem de si E um negócio que não cicatriza nunca."
estão baseados na experiência de dor, prazer ou desprazer que o Os esforços para curar a "ferida" vão então suceder-se numa
corpo obriga-lhe a sentir e a pensar. escalada patética e dolorosamente inút.il. Primeiro tenta-se meta-
Para que o sujeito construa enunciados sobre sua identidade, morforsear o corpo presente, atual, de modo penoso e caricato.
de modo a criar uma estrutura psíquica harmoniosa, é necessário São os "pregadores de roupa" destinados a afilar o nariz ou os
que o corpo seja predominantemente vivido e pensado como local produtos químicos usados para alisar o "cabelo ruim". Em segui-
e fonte de vida e prazer. As inev.itáveis situações· de sofrimento da, vêm as tentativas de aniquilar, no futuro, o corpo rebelde à mu-
que o corpo impõe ao sujeito tem que ser "esquecidas", imputadas tação, no presente. São as uniões sexuais com o branco e a pro-
ao acaso ou a agentes externos ao corpo. Só assim, o sujeito pode criação do filho mulato. O filho mulato e o neto talvez branco
continuar a amar e cuidar daquilo que é, por excelência, condição representam uma louca vingança, suicida e homicida, contra um
de sua sobrevida. corpo e uma "raça" que, obstinadamente, recusam o ideal branco
assumido pelo sujeito negro.
No dizer de Piera Aulagnier, criadora da teoria que inspira
esta reflexão, o futuro identificatório do sujeito depende desta possi- O andamento deste processo torna perceptível, assim, um outro
bilidade de "inocentar" o corpo. Um corpo que não consegue ser fenômeno, tão bem anotado pela autora. O sujeito negro, possuído
absolvido do sofrimento que infringe ao sujeito torna-se um corpo pelo ideal de embranquecimento, é forçado a querer destruir os
perseguidor, odiado, visto como foco permanente de ameaça de sinais de cor do seu corpo e da sua prole. Mas, para executar
morte e dor. este intento, compromete seu pensamento com o trabalho de lidar
quase que exclusivamente com afetos e representações vinculados
Pode-se imaginar quais as seqüelas psíquicas derivadas desta à dor e à morte:
última situação. A relação persecutória com o corpo expõe o su-
jeito a uma tensão mental cujo desfecho, como seria previsível, é O pensamento do sujeito negro, parasitado pelo racismo, ter-
a tentativa de eliminar o epicentro do conflito. mina por fazer do prazer um elemento secundário na vida do corpo
e da mente. Para o psiquismo do negro em ascensão, que vive o
A partir do momento em que o negro toma consciência do
impasse consciente do racismo, o importante não é saber, viver e
racismo, seu psiquismo é marcado com o selo da perseguição pelo pensar o que poderia vir a dar-lhe prazer, mas o que é desejável
corpo-próprio. Daí por diante, o sujeito vai controlar, observar, pelo branco. E, como o branco não deseja o corpo negro, o pen-
vigiar este corpo que se opõe à construção da identidade branca samento vai encarregar-se de fazê-lo inexistir, desaparecer enquanto
que ele foi coagido a desejar. A amargura, desespero ou revolta representação mental.

6 7
Este é o terceiro elemento constitutivo da violência racista. O num processo imantado pela positividade da expenencia de satis-
racismo que, através da estigmatização da cor, amputa a dimensão fação. Prazer e desprazer são facetas de uma mesma ordem de
de prazer do corpo negro, também perverte o pensamento do sujeito, orientação psíquica ou, se se quiser, de um mesmo princípio do
privando-o da possibilidade de pensar o prazer, e do prazer de funcionamento mental. Por conseguinte, o pensamento voltado
funcionar em liberdade. O pensamento do negro é um pensamento para a elaboração do conflito estruturado pela oposição prazer/
sitiado, acuado e acossado pela dor de pressão racista. Como con- frustração é um pensamento fluido, criador, levado sempre adiante
seqüência, a dinâmica da organização mental é subvertida. Um dos pela promessa de prazer do objeto idealizado.
princípios régios do funcionamento psíquico, o princípio do prazer,
Diversa é a situação do pensamento atraído para a órbita da
perde a hegemonia de que goza na organização dos processos men-
dor. A dor não é um fenômeno pertencente à série de elementos
tais. A economia psíquica passa a gravitar em torno da dor, des-
que compõem o regime erótico. A experiência da dor inscreve-se
locando o prazer do centro do pensamento.
no registro das representações e afetos adscritos à ordem da morte
Em termos psicanalíticos, afirmamos que o principal vetor de da destruição Diante da dor, o que interessa é recompor a in-
crescimento e desenvolvimento psicológicos é a experiência de sa- tegndade do aparelho psíquico esgarçado pelo estímulo excessivo.
tisfação. O sujeito busca sempre reencontrar na realidade um ob- Na "experiência de dor", ao contrário da "experiência de satisfa-
jeto que corresponda ao traço mnêmico de um objeto primordial, ção", o movimento do psiquismo rigidifica-se. Reduz-se a acionar
matr.iz de uma experiência de satisfação inesquecível. Este movi- defesas cujo único objetivo é controlar, dominar, fazer desaparecer
mento do psiquismo com vistas à reedição do prazer constitui o a excitação dolorosa O modelo de compreensão das· reações psí-
desejo. O desejo, em sua vertente erótica, é este impulso, esta qmcas face a dor é o da compulsão de repetição, como Freud de-
moção em direção ao objeto e à situação de prazer. monstra a propósito das neuroses traumáticas.
Nesta busca nostálgica da satisfação perdida, o sujeito esbarra- O pensamento do sujeito em situação de dor, permanece in-
se, é inevitável, com a decepção. O prazer esperado, moldado pela sensível ao apelo erótico. O refluxo narcísico, em direção ao cor-
lembrança do objeto ideal de outrora, jamais encontra na realidade po-próprio ou ao Ego, observável nesses casos, é um elemento
o objeto adequado à fantasia. Todo objeto substituto do objeto coadjuvante, no drama central do psiquismo. Os fenômenos narcí-
primordial será falho, imperfeito, limitado. O desejo está fadado sicos sublinhados nos quadros da "experiência de dor" representam,
à incompletude. em nosso ponto de vista, uma neutralização, mais ou menos dura-
Mas esta falta consubstancial ao desejo de prazer é o sal da doura, mais ou menos extensa, do princípio do prazer. Quando
terra do continente psíquico. A esperança de realizar o prazer a dor faz sua entrada na cena psíquica o prazer retira-se, recolhe-se
aos bastidores.
sonhado, leva o sujeito a transformar-se, idealizando o futuro con-
forme seu Ideal de Ego, e a transformar o mundo na busca do A dor não nasce, portanto, da frustração, nem é sinônimo de
objeto desejado. O pensamento, função e .instrumento do Ego na desprazer. Sua origem não se encontra na decepção amorosa. Seu
definição de sua identidade, ao defrontàr-se com a decepção, faz ponto de irradiação não é o obstáculo à realização do prazer, e sim
do desprazer o moto-propulsor de novas esperanças e expectativas. o rompimento da homeostase psíquica provocado por um trauma
A polarização prazer/desprazer faz o pensamento transitar na esfera específico produzido pela violência.
de representações e afetos que concernem o prazer de pensar e a
Não iremos, no momento, deter-nos nas justificativas metapsi-
possibilidade de viver, de novo, o prazer.
cológicas que apóiam as distinções que acabamos de propor. Em
O desprazer, todos sabemos, não pertence a uma linhagem psí- outros trabalhos, procuramos demonstrar as razões clínico-teóricas
quica autônoma, diversa em natureza e objetivos da linhagem do que sustentam a oposição entre "experiência de dor", fruto da vio-
prazer. Ele é tão-somente o momento negativo, o passo atrás dado lência, e "experiência de satisfação/frustração", correlato do prin-

8 9
cípio do prazer/desprazer. Basta-nos, agora, sem entrar em maio- Um primeiro expediente do pensamento na luta contra a ne-
res considerações a respeito da natureza da dor e da violência, pos- gritude em favor do Ideal branco, já observamos, consiste em tentar
I ulur esta diferenciação interna ao campo psíquico. E assinalar que reverter a situação biológica do corpo, por meio de técnicas de
é neste estreito quadrante que o pensamento do sujeito negro se correção física. O pensamento abandona a verdade partilhada pelo
debate. grupo cultural a respejto da imutabilidade das leis da hereditarie-
dade. Deixa-se contaminar pela ilusão de poder interferir sobre o
A reação do pensamento negro frente a violência do Ideal
patrimônio genético, mediante o emprego de artefatos mecânicos
hranco não é uma resposta ao desprazer da frustração, elemento
aplicados à superfície corporal.
periférico do conflito, mas uma réplica à dor. O sujeito negro
diante da "ferida" que é a representação de sua imagem corporal, A inutilidade deste procedimento, comprovada ao longo das
tenta, sobretudo, cicatrizar o que sangra. É a este trabalho de cerco gerações, não tem o poder de desmentir a ficção psíquica de que o
à dor, de regeneração da lesão que o pensamento se dedica. A atributo étnico não é um atributo arbitrário, assim como o são os
um custo que, como se vê neste trabalho, será cada vez mais alto. fatos da ordem da cultura. O negro herda de seus ancestrais a
O tributo pago pelo negro à espoliação racista de seu direito à crença mágica na possibilidade de alterar o tipo racial, sem atingir
identidade é o de ter de conviver com um pensamento incapaz de as estruturas genotípicas. A dissociação no campo do pensamento
formular enunciados de prazer sobre a identidade do sujeito. O é evidente. Assim como ocorre com o branco, em outros setores
racismo tende a banir da vida psíquica do negro todo prazer de da existência e da experiência psicossociais, a racionalidade lógica
pensar e todo pensamento de prazer. não consegue sobrepor-se ao impulso irracional para a realização
imaginária do desejo.
Pensar sobre a identidade negra redunda sempre em sofrimento
para o sujeito. Em função disto, o pensamento cria espaços de Para alguns, entretanto, esta etapa é vencida. A magia do
censura à sua liberdade de expressão e, simultaneament·e, suprime procedimento consegue ser batida pelos desmentidos constantes da
realidade. O pensamento avança, então, em direção a técnicas de
retalhos de sua própria matéria. A "ferida" do corpo transforma-se
mudanças mais exeqüíveis e eficazes. O sujeito já não mais tenta
em "ferida" do pensamento. Um pensamento forçado a não poder
converter o corpo negro em corpo branco. Contenta-se em renegar
representar a identidade real do sujeito é um pensamento mutilado
o estereótipo do comportamento negro, copiando e assumindo um
em sua essência. Os enunciados do pensamento sobre identidade
estereótipo de comportamento que pensa ser propriedade exclusiva
do EU são enunciados constitutivos do pensamento ele mesmo. do branco e em cuja supremacia acredita.
A violência racista subtrai do sujeito a possibilidade de explo- O comportamento é, por sua natureza, mais plástico e flexível.
rar e extrair do pensamento todo o infinito potencial de criatividade, A meio caminho entre o fato natural e o fato cultural, o compor-
beleza e prazer que ele é capaz de produzir. O pensamento do tamento ou conduta, compõe-se, ao mesmo tempo, de elementos
sujeito negro é um pensamento que se auto-restringe. Que deli- físicos, predicados morais, condutas sociais, maneiras de exprimir-se
mita fronteiras mesquinhas à sua área de expansão e abrangência, e possibilidades de local.izar-se na ecologia urbana, em situações de
em virtude do bloqueio imposto pela dor de refletir sobre a própria prestígio e ascensão social. Assim se exprimia uma entrevistada:
identidade. "Aí eu não sabia meu lugar, mas sabia que negro eu não era.
As estratégias, táticas e compromissos que o pensamento do Negro era sujo, eu era limpa; negro era burro, eu era inteligente;
sujeito negro cria d.iante do racismo, demonstram o que foi afir- era morar na favela e eu não morava e, sobretudo, negro tinha
lábios e nariz grossos e eu não tinha".
mado. Através dos testemunhos dos negros entrevistados é possível
captar os rastros deste combate do pensamento contra a realidade A combinação de certas regras de higiene com certas manifes-
do corpo e da identidade negra. tações intelectuais unem-se às condições de moradia e à miscige-

10 11
nação de traços físicos, para definirem um contorno de condutas cauciona o mito negro fabricado pelo branco. Não apenas aceita
e posturas físico-morais, tidas como índices de brancura. O pen- sua cor como um predicado pejorativo como pensa que suprimin-
samento entrega-se a uma verdadeira garimpagem, tentando colher do-a enquanto representação do espaço do pensamento, suprime sua
na "ganga" do corpo negro, o "ouro puro" dos traços brancos. Os identidade negra.
supostos predicados brancos são catados à lupa. Selecionados, ca- O mesmo mecanismo de construção da identidade total da
talogados e armazenados de tal sorte que o corpo e a identjdade pessoa a partir de um único atributo tem sua contrapartida na
do sujeito, são divididos em uma parte branca e outra negra. A identificação do sujeito ao papel ou função social de artista. Dei-
primeira age, desta forma, como um antídoto contra a total identi- xando de ser negro para ser artista, o sujeito troca o atributo des-
ficação do sujeito com a condição de negro. prezado por um outro, apreciado e valorizado pelo branco. A si-
O pensamento, neste nível, opera um compromisso. Afirma tuação de alienação, por ter sido invertida, não perde, entretanto,
e nega a presença da negritude. Admite, .implicitamente, que o suas características fundamentais. Tanto faz "perder a cor" para
negro existe, quando enumera qualificativos brancos, cuja escassez tornar-se "artista". O resultado é sempre o mesmo: a identidade
nega, ao mesmo tempo, a totalidade. A submissão ao código do negra existe como um apêndice do desejo e da palavra do branco.
comportamento tido como branco, concretiza a figura racista criada Este é o segundo processo a que fizemos referência. O sujeito
pela mistificadora democracia rac.ial brasileira, a do "negro de alma negro delegando ao branco o direito de definir sua identidade renun-
branca". cia ao diálogo que mantém viva a dinâmica do pensamento. Um
No entanto, o exercício de negação da identidade a que se livra pensamento privado do confronto com outro pensamento perde-se
o pensamento, não chega, também neste caso, a escotomizar a rea- num solipsismo, cujas conseqüências são a autolegitimação absoluta
lidade da perceção. O pensamento não sucumbe por completo ao da "verdade" pensada ou, inversamente, sua absoluta negação. Esta
impacto da dor, interpretando a realidade corpórea de maneira to- lei do tudo ou nada, reenvia o pensamento do sistema que ordena os
talmente fantasiada. Sua função essencial, a de dispositivo seletor processos secundários ao sistema característico dos processos pri-
e metabolizador de estímulos pulsionais e excitações vindas do mun- mários. Ou seja, o pensamento tende a romper seus elos com a
do externo, resta intacta. A alteração que podemos notar, circuns- realidade e a reforçar suas ligações com os processos que estruturam
creve-se a certas zonas de sua organização ou a certos momentos de as leis do inconsciente, do imaginário, ou qualquer outro nome que
seu funcionamento. se prefira.

Em outros casos, mais dramáticos, a distorção é bem maior e Recorrendo, novamente, a Piera Aulagnier, diríamos que esta
mais radical. Um depoente dizia: "Eu estava crescendo como ar- filiação do pensamento ao sistema dos processos primários, não se
tista e então ia sendo aceito. Aí eu já não era negro. Perdi a dá, é claro, gratuitamente. Como mostra esta autora, o sujeito im-
cor. . . O racismo continuava. Eu era aceito sem cor, mas eu pelido a utilizar este tipo de defesa procura fugir à "prova da dú-
ia vivendo". vida", que surge do confronto com o pensamento de outro sujeito.
Neste confronto, as "verdades" narcísicas enunciadas sobre sua pró-
Perder a cor, significa para o indivíduo, uma sujeição completa pria identidade podem ser contraditas, levando-o à experiência do
ao imperativo rac.ista. Aqui, pelo menos dois processos psíquicos sofrimento. Contudo, evitando o desprazer de duvidar e de ver
de alteração do pensamento devem ser assinalados. infirmados seus enunciados de verdade, o sujeito também impede
O primeiro deles, concerne a relação do sujeito ao enunciado seu ingresso no terreno das rivalidades e acordos que formam as
sobre a "verdade" de sua identidade, proferido pelo branco. O "verdades partilhadas" por seus pares, base do convívio humano e
negro que perde a cor, admite que esta metonímia do corpo e da da sobrevivência cultural.
identidade coincide com a totalidade destes existentes, o que é emi- Esta tendência virtual à exclusão da "prova da dúvida", está
nentemente falso. Aderindo à ideologia racista da cor, o sujeito presente em todo sujeito, dada a inclinação do psiquismo para evitar

12 13
o desprazer. Contudo, para que esta virtualidade se atualize é pre- cinação negativa. E assim como acontece na psicopatologia, o
ciso: a) que a "verdade" posta em dúvida atjnja um aspecto neu- emprego dessa defesa traz consigo conseqüências drásticas. O re-
rálgico da identidade do sujeito; b) que este encontre na realidade, púdio à identidade persecutória, fundado na alucinação negativa, não
um outro sujeito com as condições necessárias para fazê-lo crer, na consegue manter-se ao longo do tempo. Dinâmica e economica-
ilusão de pensar em liberdade, sem duvidar. mente onerosa, esta defesa provoca uma espécie de exaustão na ca-
pacidade de pensar. A ident.idade negra, negativamente alucinada,
Defrontado com uma ou outra circunstância, ou, ainda, com as pressiona as barreiras erguidas contra sua irrupção no espaço psí-
duas simultaneamente, o sujeito é levado a abrir mão da arquitetura quico reservado às representações. O pensamento não resiste à
dialógica do pensamento. E conforme a dinâmica e a trajetória de tensão de continuar "representando-a em branco." Sua estrutura
sua vida psíquica, isto pode ocorrer, basicamente, de duas maneiras. desmantela-se. Sua função de intérprete de percepções e emoções,
Na primeira delas, o sujeito impermeabiliza o pensamento con- desejos e defesas, cai por terra. O sujeito como que desiste de en-
tra a .intrusão do pensamento do outro. Encerra, por assim dizer, contrar escapatórias e negociar soluções. A violência racista obtém
a comunicação com o exterior. Vai buscar no mundo interno - seu máximo efeito.
sensações físicas, afetos e representações - o aval para os enun- Assistimos, então, à invasão catastrófica de afetos e representa-
ciados de verdade sobre sua identidade. Pensamos em alguns tipos ções sem nome ou sentido, com seus correlativos sentimentos de
de pensamento psicótico ou mesmo no pensamento de alguns toxi- perda da identidade e despersonalização: "Contavam que ( quando
cômanos, em que a dúvida sobre o que é pensado cessa de existir. era pequena) falava muito sozinha, tinha amigos invisíveis, falava
muito na frente do espelho, era uma sensação de me sentir, de me
Na segunda, a direção do processo é como que invertida. O
reconhecer, de identidade minha. Falava comigo mesma; me achava
sujeito pára de pensar autonomamente conferindo a um outro o di-
muito feia, me identificava como uma menina negra, diferente; não
reito arbitrário e onipotente de definir a verdade indubitável sobre
tinha nenhuma menina como eu. Todas as meninas tinham o ca-
sua identidade. Esta possibilidade, caracteriza o que Piera Aulagnier
belo liso, o nariz fino. Minha mãe mandava eu botar pregador de
chamou de "estado de alienação".
roupa no nariz para ficar menos chato. Depois eu fui sentindo que
Acreditamos que este últ.imo fenômeno descreve satisfatoria- aquele negócio de olhar no espelho era uma coisa ruim. Um dia
mente o que acontece com o pensamento do negro que "perde a eu me percebi com medo de mim no espelho! Tive uma crise de
cor" e a identidade negras, para ganhar a "alma branca" ( artística, pavor. Foi terrível. Fiquei um tempo grande assim; não podia
folclórica), também definida pelo branco. Visando evitar a dor, me olhar no espelho com medo de reviver aquela sensação."
o negro desiste de defender sua "verdade" contra a "verdade" da pa- O nada, o vazio tecido no lugar da representação da identidade
lavra branca. Expurga de seu pensamento os itens relativos a ques- negra é subitamente preenchido. A identidade temida e odiada
tão da identidade que ele poderia criar e outorga ao discurso do emerge como um corpo estranho que o pensamento, surpreendido
branco, o arbitrário poder de definir o que ele pode deve pensar em suas lacunas, não sabe qualificar. Após ter sido recusada ou
sobre si mesmo. melhor, alucinada negativamente, volta à tona. Não com a "in-
Todavia, os entraves ao livre exercício do pensar podem ir mais quietante estranheza" do retorno do recalcado, mas com a tonalidade
além. O sujeito, na tentativa de desfazer-se da identidade negra, efetiva e representacional própria do fato alucionatório. O pavor
dissocia a percepção de sua representação psíquica. Cria no sistema sentido foi o produto de um pensamento que, momentaneamente, es-
do pensamento um ponto cego, ativamente encarregado de dissipar vaiu-se, carregando em sua derrocada, as defesas construídas contra
os traços das imagens e idéias constitutivas desta identidade. o surgimento daquela identidade.
Aproximamo-nos, nestes limites, de um fenômeno francamente O percurso de vida desta pessoa recapitula, de maneira trans-
aparentado ao que conhecemos na clínica psicopatológica como alu- lúcida, o que poderia ser tomado por uma história prototípica da

14 15
violentação do negro pelo branco. É uma história psíquica onde são CAPÍTULO I
admiravelmente resumidas as etapas de reação à violência, desde o
momento inicial da resistência ao instante final da rendição.
No começo, era o diálogo com o espelho e com os interlocuto-
res imaginários. Imagem comovente da solidão do sujeito face ao
ambiente hostil. A entrevistada procura, sozinha, garantir seu di- Introdução
reito a uma identidade passível de ser amada. No entanto, as reti-
cências que acompanham o processo já dão mostras da dúvida que
ela t.inha em investir amorosamente na imagem do corpo e no Ideal
de Ego negros. Em seguida, vem o confronto com o Ideal de Ego
branco da mãe e da realidade racista do seu meio social. Nasce, Uma das formas de exercer autonomia é possuir um discurso
então, a dor e a tentativa de forçar o espelho a reproduzir a imagem sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto
branca desejada ou, em caso de impossibilidade, a opacificar-se, dei- mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade.
xando de refletir a imagem negra desprezada. Finalmente, o "tour
de force" agônico representado pela recusa em olhar o espelho que, Este livro representa meu anseio e tentativa de elaborar um
retratando o estertor do pensamento, deixava passar, através das gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso
brechas das defesas, a imagem cautelosamente mantida à distância. do negro sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade.

A violência racista pode submeter o sujeito negro a uma situação Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de ser-se
cuja desumanidade nos desarma e deixa perplexos. Seria difícil negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes
encontrar o adjetivo adequado para nomear esta odiosa forma de brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e
opressão. Mais difíc.il ainda, talvez, é entender a flácida omissão expectativas brancas. Este olhar se detém, particularmente, sobre a
com que a teoria psicanalítica tratou até então, este assunto. Pen- experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, res-
sar que a psicanálise brasileira, para falar do que nos compete, con- ponde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica na
viveu tanto tempo com esses "crimes de paz", adotando uma ati- decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos.
tude cúmplice ou complacente ou, no melhor dos casos, indiferente, Este livro pretende estudar os passos dessa trajetória, seus pres-
deve conduzir-nos a uma outra questão: Que psicanálise é esta? supostos e desdobramentos.
Que psicanalistas somos nós?
A justificativa histórica deste trabalho se fundamenta na cons-
De Reich, todos conhecemos a exortação que tornou-se quase tatação inequívoca da precariedade, no Brasil, de estudos sobre a
um símbolo de alerta contra a alienação: Escuta, Zé Ninguém! De vida emocional dos negros e da absoluta ausência de um discurso, a
Fanon, também conhecemos a mensagem vigorosa, emitida no mes- esse nível, elaborado pelo negro, acerca de si mesmo.
mo diapasão: Escuta, branco! Deste trabalho parece, surgir, agora,
um apelo de timbre idêntico: Escuta, Psicanalista! Presta atenção a A outra justificativa, presença insólita ou grande ausente dos
essas vozes que a auotra nos fez ouvir. Ela nos mostra o que trabalhos acadêmicos, é de caráter emocional. A descoberta de ser
fomos incapazes de ver. Seus olhos, como disse Genet de Jackson, negra é mais que a constatação do óbvio. (Aliás, o óbvio é aquela
"são claros. Eu disse claros e não azuis". categoria que só aparece enquanto tal, depois do trabalho de se des-
cortinar muitos véus) 1 . Saber-se negra é viver a experiência de ter
Rio de Janeiro, 1982
1. - RIBEIRO, D. Sobre o óbvio, em Encontros com a Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978, n. 0 1.

16 17
sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, CAPlTULO II
submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é
tumbém, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua
história e recriar-se em suas potencialidades.
Aqui esta experiência é a matéria prima. É ela quem trans-
forma o que poderia ser um mero exercício acadêmico, exigido Antecedentes Históricos da Ascensão
como mais um requisito da ascensão social, num anseio apaixonado Social do Negro Brasileiro
de produção de conhecimento. É ela que, articulada com experiên- A Construção da Emocionalidade
cias vividas por outros negros e negras, transmutar-se-á num saber
que - racional e emocionalmente - reivindico como indispensável
para negros e brancos, num processo real de libertação.
O negro que se empenha na conquista da ascensão social paga
o preço do massacre mais ou menos dramático de sua identidade. A história da ascensão social do negro brasileiro é, concomi-
Afastado de seus valores originais, representados fundamentalmente tantemente, a história da construção de sua emocionalidade, esta
por sua herança religiosa, o negro tomou o branco como modelo de maneira própria, historicamente determinada, de organizar e lidar
identificação, como única possibilidade de "tomar-se gente". 2 dinamicamente com o mosaico de afetos. Construção histórica, a
Este livro trata desse contingente de negros, no que diz respeito emocionalidade do negro é vista aqui como um elemento particular
ao custo emocional da sujeição, negação e massacre de sua iden- que se subordina ao conjunto mais geral de injunções da História
tidade original, de sua identidade histórico-existencial. da formação social onde ele se inscreve.
Tendo que livrar-se da concepção tradicionalista que o definia
econômica, política e socialmente como inferior e submisso, e não
possuindo uma outra concepção positiva de si mesmo, o negro viu-se
obrigado a tomar o branco como modelo de identidade, ao estruturar
e levar a cabo a estratégia de ascensão social
A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo,
definiu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de
tratar e ser tratado, os padrões de interação com o branco e instituiu
o paralelismo entre cor negra e posição social inferior. 2 • 3

1. - Ascensão Social - movimento pelo qual um agente ou grupo so-


cial, realizando uma possibilidade de ascensão social, muda de uma classe
social ( ou de uma camada de classe) para outra socialmente considerda su-
perior. Aqui, classe social é entendida como sendo a estratificação em ter-
mos de posição nos processos sociais de produção, dominação e ideologiza-
ção, isto é: se tomará em conta não só a posição na instância econômica
( compra ou venda da força de trabalho), mas também a relação dos agentes
com o poder (lugar no aparelho jurídico-político do Estado) e com os
emblemas de classes ( valores éticos, estéticos etc.).
2. - IANNI, O. Escravidão e Racismo. São Paulo, Hucitec.
2. - FERNANDES, F. A Integração do Negro na Sociedade de Clas- 3. - FERNANDES, F. A Integração do Negro na Sociedade de Clas-
ses. São Paulo, Atica, 1978. ses. São Paulo, Ática, 1978.

18 19
( onvém explicitar que raça aqui é entendida como noção ideo- de liberto: a ele cabia o papel do disciplinado - dócil, submisso
lógica engendrada como critério social para distribuição de posição e útil 8 - enquanto o branco agia com o autoritarismo, por vezes
nu estrutura de classes. Apesar de estar fundamentada em quali- paternalista, que era característico da dominação senhorial. Esse
dades biológicas, principalmente a cor da pele, raça sempre foi de- lugar de inferioridade se espelhava no modo de inserção da popu-
finida no Brasil em termos de atributo compartilhado por um de- lação negra no sistema ocupacional das cidades: "Uma parcela
terminado grupo social, tendo em comum uma mesma graduação aparentemente pequena dessa população está inserida numa teia de
social, um mesmo contingente de prestígio e mesma bagagem de ocupações e segundo posições típicas da estrutura ocupacional do
valores culturais. 4 , 5 sistema de classes. Outra parcela aparentemente considerável per-
manece presa a ocupações típicas da situação pré-industrial e pré-
Na ordem social escravocrata, a representação do negro como capitalista". 9
socialmente inferior correspondia a uma situação de fato. Entre-
tanto, a desagregação desta ordem econômica e social e sua substi- Lutando, muitas vezes, contra a maré da dominação, o negro
tuição pela sociedade capitalista tornou tal representação obsoleta. foi, aos poucos, conquistando espaços que o integravam à ordem
A espoliação social que se mantém para além da Abolição busca, social competitiva e lhe permitiam classificar-se no sistema vigente
então, novos elementos que lhe permitam justificar-se. E todo um de classes sociais. A ascensão surgia, assim, como um projeto cuja
dispositivo de atribuições de qualidades negativas aos negros é ela- realização traria consigo a prova insofismável dessa inserção. Signi-
borado com o objetivo de manter o espaço de participação social ficava um empreendimento que, por si só, dignificava aqueles que o
do negro nos mesmos limites estreitos da antiga ordem social. "Os realizassem E mais: retirando-o da marginalidade social, onde sem-
brancos isolavam certos aspectos do comportamento dos negros das pre estivera aprisionado, a ascensão social se fazia representar, ideo-
condições que os produzira passando a encará-los como atributos logicamente, para o negro, como um instrumento de redenção eco-
invariáveis da 'natureza humana' dos negros." 6 nômica, social e política, capaz de tomá-lo cidadão respeitável, digno
de participar da comunidade nacional.
Nas sociedades de classes multirraciais e racistas como o Brasil,
a raça exerce funções simbólicas ( valorativas e estratificadoras). A E, como naquela sociedade, o cidadão era o branco, os serviços
categoria racial possibilita a distribuição dos indivíduos em diferentes respeitáveis eram os "serviços-de-branco", ser bem tratado era ser
posições na estrutura de classe, conforme pertençam ou estejam mais tratado como o branco. Foi com a disposição básica de ser gente
próximos dos padrões raciais da classe/raça dominante. 7 que o negro organizou-se para a ascensão, o que equivale dizer: foi
com a principal determinação de assemelhar-se ao branco - ainda
A definição inferiorizante do negro perdurou mesmo depois da que tendo que deixar de ser negro que o negro buscou, via as-
desagregação da sociedade escravocrata e da sua substituição pela censão social, tomar-se gente.
sociedade capitalista, regida por uma ordem social competitiva. Ne-
gros e brancos viam-se e entreviam-se através de uma ótica defor- Incentivos e bloqueios a esse projeto eram engendrados pela
mada conseqüente à persistência dos padrões tradicionalistas das re- estrutura das relações raciais que se comportavam de modo ambíguo
lações sociais. O negro era paradoxalmente enclausurado na posição - ora impondo barreiras, ora abrindo brechas à ascensão social do
negro - mas que, dentro dessa ambivalência, cumpria as mesmas e
inequívocas funções de fragmentar a identidade, minar o orgulho e
4. - BASTIDE, R. e FERNANDES, F. Brancos e Negros em São
Paulo. São Paulo, Nacional, 1959. desmantelar a solidariedade do grupo negro. 10
5. - IANNI, O. Raças e Classes Sociais no Brasil. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1972. 8. FOUCALT, M. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis,
6. - CARDOSO, F. H. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. Vozes, 1977.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 251. 9. - FERNANDES, F. A Integração do Negro na Sociedade de Clas-
7. - HASENBALG, C. A. Discriminação e Desigualdade Raciais no ses. São Paulo, Atica, 1979, p. 129.
Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1979. 10. - FERNANDES, F. Idem.

20 21
O tripé formado pelo contínuo de cor, ideologia do embranque- romper com o paralelismo negro/miséria. Uns e outros hostilíza-
cimcnto e democracia racial - sustentáculo da estrutura das rela- vam-se reciprocamente. Os primeiros, pelo ressentimento de não
ções raciais no Brasil - produziram as condições de possibilidade "subir na vida" e pela convicção de que perderiam o antigo compa-
de ascensão do negro. nheiro que, ao ascender, se afastaria do meio negro. Os outros,
por um sentimento de retaliação frente à hostilidade dos primejros e
Constitutivo do primeiro elemento do tripé -- o contínuo de
pela tendência a assimilar o discurso ideológico da democracia ra-
cor - era o fato de que branco e negro representavam apenas os
cial que vê o negro que não sobe como um desqualificado, do ponto
extremos de uma linha ininterrupta onde, às diferentes nuances de
de vista individual. Assim, o negro que conseguia romper com to-
cor, se adscreviam significados diversos, segundo o critério de que
das estas barreiras e ascender, tornava-se exceção. E "a condição
quanto maior a brancura, maiores as possibilidades de êxito e
aceitação. sine qua non para a 'pessoa de cor' contar como exceção ainda é a
identificação ostensiva com os interesses, os valores e os modelos
A inexistência de barreiras de cor e de segregação racial - ba- de organização da personalidade do 'branco'. Mesmo o negro e o
luartes da democracia racial - associada à ideologia do embranque- mulato que não queiram 'passar por branco' precisam corresponder
cimento, resultava num crescente desestímulo à solidariedade do aparentemente a esse requisito, onde e quando aspirem a ser aceitos
negro que percebia seu grupo de origem como referência negativa, e a serem tratados de acordo com as prerrogativas de sua posição
lugar de onde teria que escapar para realizar, individualmente, as ex- social" .13
pectativas de mobil.idade vertical ascendente. O caráter individua-
Enquanto exceção, "confirmava a regra", já que seu êxito não
lista da ascensão era coerente com as prédicas da democracia racial
trazia como conseqüência uma reavaliação das condições de possibi-
que colocava ênfase na capacidade individual como responsável pela
lidade do negro enquanto grupo, nem uma mudança de sua posição
efetivação do projeto.11
na ordem social vigente. Como exceção perdia a cor: "deixa de
Por outro lado, as inúmeras barreiras à conquista da ascensão ser 'preto' ou 'mulato' para muitos efeitos sociais, sendo encarado
social encontradas pelo negro, contribuiram para ampliar o fosso como 'uma figura importante', ou 'um grande homem'. . . Vê-se,
que o separava de sua identidade enquanto indivíduo e enquanto assim, compelido a desfigurar-se material e moralmente. Tem de
grupo. submeter-se, previamente, ao 'figurino do branco'. E, se isso não
Herança da sociedade escravocrata, a desigualdade racial, que bastasse, precisa conformar-se' aos papéis sociais ambíguos do 'cava-
colocava o negro a reboque das populações nacionais, era preser- lheiro por exceção', em todas, as circunstâncias sujeito a dar provas
vada e reforçada pelo preconceito de cor que funcionava como man- ultraconvincentes de sua capacidade de ser, de pensar e de agir como
tenedor da hegemonia branca nas relações interraciais. equivalente moral do 'branco'. Em suma, condena-se a negar-se
Um certo modo de reação apática, fruto da introjeção da ima- duplamente, como indivíduo e como parte de um estoque racial, para
gem do negro constituída pelo branco, onde o negro reconhece taci- poder afirmar-se socialmente" .14
tamente sua inferioridade, e a postura evitativa da confrontação om- A história da ascensão social do negro brasilejro é, assim, a
bro-a-ombro com o branco eram tipos de resposta do negro ao pre- história de sua assimilação aos padrões brancos de relações sociais.
conceito de cor que s·e configurava não só em obstáculos à ascensão, É a história da submissão ideológica de um estoque racial em pre-
como redundavam em verdadeiros danos à sua imagem, conduzindo-o sença de outro que se lhe faz hegemônico. É a história de uma
a avaliações autodepreciativas. 12 identidade renunciada, em atenção às circunstâncias que estipulam
O meio negro se dividia: de um lado ficavam aqueles que se o preço do reconhecimento ao negro com base na intensidade de
conformavam com a "vida de negro" e do outro os que ousavam sua negação.

l l. - HASF.NBALG, C. A. Idem. 13. - FERNANDES, F. Idem, p. 266.


12. --- FERNANDES, F. Idem. 14. - FERNANDES, F. Idem. Pp. 267-269.

22 23
CAPÍTULO III

O Mito Negro

Quando a natureza toma o lugar da história, quando a contin-


gência se transforma em eternidade e, por um 'milagre econômico",
a "simplicidade das essências" suprime a incômoda e necessária
compreensão das relações sociais, o mito se instaura, inaugurando
um tempo e um espaço feitos de tanta clareza quanto ilusão. Clare-
za, ilusão e verossimilhança que são frutos de um poder constitutivo
do próprio mito: o de dissolver, simbolicamente, as contradições que
existem em seu redor. 1
O mito é uma fala, um discurso - verbal ou visual - uma
forma de comunicação sobre qualquer objeto: coisa, comunicação
ou pessoa. Mas o mito não é uma fala qualquer. É uma fala que
objetiva escamotear o real, produzir o ilusório, negar a história,
transformá-la em "natureza". Instrumento formal da ideologia,
o mito é um efeito social que pode entender-se como resultante
da convergência de determinações econômico-político-ideológicas e
psíquicas.
Enquanto produto econômico-político-ideológico, o mito é um
conjunto de representações que expressa e oculta uma ordem de pro-
dução de bens de dominação e doutrinação. 2
Enquanto produto psíquico, o mito resulta de um certo modo
de funcionamento do psiquismo em que predomina o processo pri-
mário, o princípio do prazer e a ordem do imaginário.
O mito negro configura-se numa das variáveis que produz a
singularidade do problema negro. Esta singularidade é tridimensio-
nalmente organizada:
1. - BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro, Difusão Editorial, 1978.
2. - LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro, Tem-
po Brasileiro, 1975.

25
1.0 ) pelos elementos que entram em jogo na composição Assim é que para afirmar-se ou para negar-se, o negro toma o
desse mito; branco como marco referencial. A espontaneidade lhe é um direi-
to negado, não lhe cabe simplesmente ser - há que estar alerta
2.º) - pelo poder que tem esse mito de estruturar um espaço, Não tanto para agir, mas sobretudo para evitar situações em que
feito de expectativas e exigências, ocupado e vivido seja obrigado a fazê-lo abertamente.
pelo negro enquanto objeto da história;
3.º) - por um certo desafio colocado a esse contingente espe- "Estou cansada de me impor. O negro não pode entrar num
cífico de sujeitos - os negros. restaurante, por exemplo, naturalmente. Tem que entrar se
impondo." (Sonia)
Incrustrado em nossa formação social, matriz constitutiva do
superego de pais e filhos, o mito negro, na plenitude de sua contin- Há que estar sempre em guarda. Defendido. "Se impor" é
gência, se impõe como desafio a todo negro que recusa o destino colocar-se de modo a evitar ser atacado, violentado, discriminado.
da submissão. Interpelado num tom e numa linguagem que o dila- É fazer-se perceber como detentor dos valores de pessoa, digno de
cera inteiro, o negro se vê diante do desafio múltiplo de conhecê-lo respeito, portanto. Vivendo no mundo dos brancos, nos diz Fanon:
e eliminá-lo. Como Édipo, se encontra frente a frente à Esfinge e "El negro deja de compotarse como indivíduo capaz de acción. La
seu enigma: é vital apoderar-se do conhecimento, desvendar a res- finalidad de su acción, "entonces, será Otro ( en forma de blanco),
posta e assim destruir o inimigo para seguir livre. Obviamente, cabe porque sólo Otro puede valorizalo" 4 •
Édipo
a negros e não-negros a consecução desse intento, mesmo porque No negro, a marca da diferença, ferro em brasa que o separa
1
o mito negro é feito de imagos fantasmáticas compartilhadas por
do branco, é vivida não só a nível do seu comportamento externo:
ambos. Razão maior para que tal empenho seja comum é o nosso
ele reedita essa desigualdade, introjetada no seu universo psíquico,
anseio de construir um mundo onde não mais seja preciso dividí-lo
quando, ao conviver com outro negro, seu semelhante, reproduz o
entre negros e brancos. Entretanto, enquanto objeto da opressão,
ritual de separação, numa cisão caricata que leva Franz Fanon a
cabe ao negro a vanguarda desta luta, assumindo o lugar de sujeito
dizer: "El negro tiene dos dimensiones. Una com su congénere,
ativo, lugar de onde se conquista uma real libertação.
otra con el blanco. Un mismo negro se comporta de modo diferente
O mito negro se constitui rompendo uma das figuras caracterís- con un bianca y con otro negro" 5 • É também isto o que revela
ticas do mito - a identificação - e impondo a marca do insólito, Carmem, ao falar sobre o "primitivismo" do negro:
do diferente. 3
"Eu generalizo isso pra todos os negros: os que chegaram às
"Minha mãe dizia: 'você é um negro'. Dizia isto me sacu- classes altas e os que não chegaram. Os que chegaram às
dindo ... pra mostrar que eu não era da mesma origem dela." classes altas, com os brancos são racionais; com os negros sol-
(Pedro) tam tudo, ficam emocionais. É o primitivismo." (Carmem)
A marca da diferença começava em casa. O garoto, filho de O irracional, o feio, o ruim, o sujo, o sensitivo, o superpotente
homem negro e mulher branca, vivia cedo a experiência que fixava: e o exótico são as principais figuras representativas do mito negro.
"o negro é diferente". Diferente, inferior e subalterno ao branco. Cada uma delas se expressa através de falas características, portado-
Porque aqui, a diferença não abriga qualquer vestígio de neutralida- ras de uma mensagem ideológica que busca afirmar a linearidade da
de e se define em relação a um outro, o branco, proprietário exclu-
sivo do lugar de referência, a partir do qual o negro será definido
e se autodefinirá. 4. - FANON, F. ! Escucha, bianca Barcelona, Nova Terra, 1970,
p. 197.
3. - BARTHES, R. Idem. 5. - FANON, F. Idem, p. 41.

)
26 27
··natureza negra" enquanto rejeita a contradição, a política e a histó-
ria em suas múltiplas determinações. negro e intelectual, ser negro e não ter que ser pobre. Ser
negro sem ter que voltar às origens - viver na favela."
A representação do negro como elo entre o macaco e o homem (Carmem)
branco é uma das falas míticas mais significativas de uma visão que
O reduz e cristaliza à instância biológica. Esta representação exclui
Ê a autoridade da estética branca quem define o belo e sua
a entrada do negro na cadeia dos significantes, único lugar de onde
contraparte, o feio, nesta nossa sociedade classista, onde os lugares
é possível compartilhar do mundo simbólico e passar da biologia à
de poder e tomada de decisões são ocupados hegemonicamente por
história.
brancos. Ela é quem afirma: "o negro é o outro do belo". É esta
"Eu me assumia como negro: ir aos lugares e saber que eu era mesma autoridade quem conquista, de negros e brancos, o consenso
diferente dos outros. Eu era negro, mas diferente: sabia se- legitimador dos padrões ideológicos que discriminam uns em detri-
gurar num garfo, não era um macaco, sabia tocar piano ... mento de outros.
,,1

Muita coisa tenho assimilado do branco: comer de garfo e


faca, ser simpático ... " (Pedro) "Meu pai é um mulato muito bonito: nariz afilado, não tem
beiço, pode passar por branco. Como é careca, não dá muito
O nosso interlocutor denuncia ainda a identificação do negro com pra ver o cabelo ruim do crioulo." (Luísa)
o despossuído: de valores, de civilidade, de humanidade.
"O D., eu aceitei o jogo dele de me minimizar. Namoramos
Sua voz faz coro com outra que explicita o paralelismo entre
dois anos e pouco. Ele não me assumia pra fora mas eu fi-
negro e miséria, canto atávico remanescente do período abolicionista,
cava contente porque, no fundo, ele me curtia. Eu nunca
que marca sua presença ainda hoje como estigma em torno do mundo
achei que fosse nada racial. Achava que era porque. eu era
instável da classe média negra.
muito feia. Nunca achei que devia discutir isso. Ele já era
"Minha avó, ela diz que quer casar de novo: 'Casar com um uma grande aquisição: era bonito, cobiçado e estava comi-
go." (Luísa)
francês pra clarear a família'. Quando a gente (as netas) está
namorado, ela pergunta se é preto ou branco. Diz que tem
"Eu me achava muito feia. Quando eu tinha seis, sete anos
que clarear a família. O clarear não é só a questão da pele,
porque o negro é o símbolo de miséria, de fome. De repente, eu queria ser freira. Eu pensava assim: gente feia casa com
clarear é também a ascensão econômica e social. Se for um gente feia. Eu sou fe.ia, não quero casar com gente feia.
cara negro que tenha condição econômica e social boa, tudo V ou ser freira . . . Eu era muito invejosa: inveja do físico das
bem. Tem um lance de cor, mas no sentido de que cor (preta) pessoas - achava que as pessoas eram muito mais bonitas
lembra miséria." (Carmem) do que eu." (Luísa)

"Comecei a transar o Movimento Negro, tipo "Black is O sujo está associado ao negro: à cor, ao homem e à mulher
beautiful", mais pelo lado da beleza, do sexo. . . aí tinha uns negros. A linguagem gestual, oral e escrita institucionaliza o sen-
lances de cantar em festival . . . Eu queria ser uma crioula tido depreciat.ivo do significante negro: o "Aurélio", por exemplo
grande! Meu nome no prédio era Carmem Davis (uma alusão - para citar apenas um dos nossos mais conceituados dicionários -
a Angela Davis) . Acho que o que me faz sempre fugir do vincula ao verbete NEGRO os atributos sujo, sujeira, entre dez ou-
lance negro é o lance da pobreza - pobreza em todos os tros de caráter pejorativo. 6
sentidos: financeira e intelectual. Acho que emocionalmente
sou pela burguesia negra. . . Depois descobri que se podia ser 6. - FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1975.
28
29
O negro acreditou no conto, no mito, e passou a ver-se com os Tem mais dificuldades de ser racional, aí se joga pro emocio-
olhos e falar a linguagem do dominador. nal. Ele tem uma coisa de jogar mais sentimento no que faz.
É mais primitivo, mais humano, mais artesanal. Primitivo no
". . . e existe o racismo do negro contra o negro. Eu fui bar- sentido primário, primeiro: a emoção é primária à razão. Tal-
rado na porta do Conservatório Nacional de Teatro e depois vez o discurso racista tenha razão quando diz que o negro é
soube que o porteiro ( que era negro) teve vergonha de eu ser mais emocional". (Carmem)
negro e fazer sujeira por lá."
Resquício do período escravista, em que o negro era a "besta
Castrado em sua iniciativa, tolhido em sua espontaneidade, o de carga", sua decantada resistênc.ia física está associada a um des-
negro passou a reagir, ao invés de agir e até mesmo evitar a ação. tino mítico que lhe garante a necessária competência para as ta-
refas árduas.
"Eu nunca dormi com uma mulher branca. . . com a mulher
negra posso expor, discutir qualquer problema sem medo, fa- Florestam Fernandes nos mostra como o folclore brasileiro re-
lar, fazer. Com a mulher branca, posso fazer qualquer coisa gistra e testemunha, em sua tradição oral, a existência dessa as-
em termos sexuais, o que é normal fazer, e ser mal interpretado: sociação: 7
'coisa de negro, coisa suja'." (Sales)
"O negro é burro de carga
Houve quem acreditasse que a sujeita vinha das entranhas, do O branco é inteligente
útero, órgão matriz. O branco só não trabalha
Porque preto não é gente."
"Minha avó não gostava de negro. Dizia que crioulo, sobre-
tudo o negro, não prestava: 'se você vir confusão, saiba que é "Quem diz que preto se cansa
o negro que está fazendo; se vir um negro correr, é ladrão. Não tem boa opinião
Você tem que casar com um branco pra limpar o útero'." Se trabalha o dia inteiro
(Luísa) De noite inda faz serão."

Alguns estereótipos que constituem a mitologia negra adquirem, "Negro é bicho safado
a nível do discurso, uma significação aparentemente positiva. Tem fôlego de sete gatos
O "privilégio da sensibilidade" que se mater.ializa na musicali- Não fica doente nunca
dade e rítmicidade do negro, a singular resistência física e extraordi- Esse pé de carrapato."
nária potência e desempenho sexuais, são atributos que revelam um
falso reconhecimento de uma suposta superioridade negra. Todos A superpotência sexual é mais um dos estereótipos que atribui
estes "dons" estão associados à "irracionalidade" e "primitivismo" ao negro a supremacia do biológico e, como os da resistência física
do negro em oposição à "racionalidade" e "refinamento" do branco. e "sensibilidade privilegiada", reafirma a representação de animali-
Quando se fala na emocionalidade do negro é quase sempre para lhe dade no negro, em oposição à sua condição histórica, à sua huma-
contrapor a capacidade de raciocínio do branco. nidade.

"O negro tem uma sensibilidade diferente. Uma forma senti-


mental diferente. Uma entrega maior. Tudo que penetra. 7. _ FERNANDES, F. O Negro no Mundo dos Brancos. São Paulo,
Parece que o negro tá menos amortecido pra sensibilidade. Difusão Européia do Livro, 1972, p. 206.

30
Assim "os traços que poderiam caracterizar o negro como su- CAPÍTULO IV
penor sao aqueles que simbolizam uma verdadeira imferioridade e
que defjnem 'a besta' ".8
Passaram por nossos olhos, ouvidos e pele, fragmentos de dis-
cursos, colhidos das histórias-de-vida dos nossos entrevistados onde
ouvimos falar o negro enquanto sujeito que introjeta, assimila e re- Narcisismo e Ideal do Ego
produz, como sendo seu, o discurso do branco. O discurso e os
interesses. Tal façanha - a hegemonia dos interesses dominantes
- é v.iabilizada pela eficácia dos mecanismos ideológicos cuja ga-
rantia, a nível psiquico, é assegurada por certas articulações estru-
turais e transações psicodinâmicas que cumpre elucidar. Assim é É preciso que haja um modelo a partir do qual o indivíduo
que se impõe o exame de dois conceitos fundamentais - Narcisismo possa se constituir - um modelo ideal, perfeito ou quase. Um mo-
e Ideal do Ego - forças estruturantes do psiquismo que desempe- delo que recupere o narcisismo original perdido, ainda que seja atra-
nham um papel chave na produção do negro enquanto sujeito - vés de uma mediação: a idealização dos pais, substitutos e ideais
sujeitado, identificado e assimilado ao branco. coletivos. Esse modelo é o Ideal do Ego.1-2
O Ideal do Ego não se confunde com o Ego Ideal.
O Ego Ideal, instância regida pelo signo da onipotência e mar-
cada pelo registro do imaginário, caracteriza-se pela idealização ma-
ciça e pelo predomínio das representações fantasmáticas.
O Ideal do Ego é do domínio do simbólico. Simbólico quer
dizer articulação e vínculo. Simbólico é o registro ao qual perten-
cem a Ordem simbólica e a Lei que fundamenta esta ordem. O
Ideal do Ego é, portanto, a instância que estrutura o sujejto psíquico,
vinculando-o à Lei e à Ordem. É o lugar do discurso. O Ideal
do Ego é a estrutura mediante a qual "se produz a conexão da nor-
matividade libidinal com a cultural". 3
Realizar o Ideal do Ego é uma exigência - dificilmente bur-
lável - que o Superego vai ,impor ao Ego. E a medida de tran-
qüilidade e harmonia interna do indivíduo é dada pelo nível de apro-
ximação entre o Ego atual e o Ideal do Ego. "Há sempre uma
sensação de triunfo quando algo no Ego coincide com o Ideal do
Ego. E o sentimento de culpa (bem como o de inferioridade) tam-

1. - LAPLANCHE, J., PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise.


Lisboa, Moraes, 1970.
2. - HORSTEIN, B. L. Teoria de las ldeologías y Psicoanalisis. Bue-
nos Aires, Kargieman, 1973.
8. - FERNANDES, F. Idem. 3. - HORNSTEIN, B. L. Idem, p. 214.

32 33
bém pode ser entendido como uma tensão entre o Ego e o Ideal Não havia nenhum empenho por parte de meus pais em
do Ego." 4
reconstruir o percurso, as raízes negras de minha família. Ha-
E o negro? via um evitar velado, meio inconsciente, da história das raízes
O negro de quem estamos falando é aquele cujo Ideal de Ego negras de minha família". (Alberto)
é branco. O negro que ora tematizamos é aquele que nasce e so-
As vezes esta rejeição, levada ao nível do desespero, violenta o
brevive .imerso numa ideologia que lhe é imposta pelo branco como
corpo físico. E então, algo mais para além do corpo biológko -
ideal a ser atingido e que endossa a luta para realizar este modelo.
o corpo erógeno, de que nos fala Serge Leclaire 5, é crucialmente
Como se constrói o Ideal de Ego desse negro?
lesado:
Ouçamos o que ele diz:
"Contavam que ( quando era pequena) falava muito sozinha,
"Meus pais, quando casaram, foram viver no interior. Era a tinha amigos invisíveis, falava muito na frente do espelho: era
elite da cidade: ele médico, ela professora. Fui criado nesse uma sensação de me sentir, de me reconhecer, de identidade
contexto. Não havia nenhum empenho por parte dos meus minha. Falava comigo mesma, me achava muito feia, me iden-
pais em reconstru.ir o percurso, as raízes negras de minha fa- tificava como uma menina negra, diferente: não tinha nenhuma
mília. Passei minha infância aí, arrodeado daquele zelo que menina como eu. Todas as meninas tinham o cabelo liso, o
cerca as elites. Meus pais não me deixaram ir à escola para nariz fino. Minha mãe mandava eu botar pregador de roupa
no nariz pra ficar menos chato. Depois eu fui sentindo que
não me misturar com os meninos, aquela gente pobre. Só fui
aquele negócio de olhar no espelho era uma coisa ruim. Um
para a escola aos dez anos, quando fui para a capital fazer o
dia eu me percebi com medo de mim no espelho! Tive uma
gmas10. Me alfabetizei em casa, com uma tia que era pro-
crise de pavor. Foi terrível. Fiquei um tempo grande as-
fessora e tinha as tinturas da capital. Lá fui estudar num co-
sim: não podia me olhar no espelho com medo de reviver
légio de elite. . . Tinha uma coisa de nobreza, uma atmosfera
aquela sensação." (Luísa)
de nobreza, ainda que decadente, em torno de minha famí-
lia ... " (Alberto) "C. (primeiro homem com quem teve um relacionamento afe-
tivo-sexual) era branco, família branca e morava em Ipane-
O figurino é branco, em seus diversos matizes. Aqui branco ma. . . Eu tinha vergonha do meu corpo. Eu queria transar
quer dizer aristocrata, elitista, letrado, bem sucedido. Noutro mo- no escuro. Ele é que, aos poucos, foi me mostrando que as
mento, branco é rico, inteligente, poderoso. Sob quaisquer nuan- coisas eram diferentes. Eu me sentia gostada. Ele me en-
ces, em qualquer circunstância, branco é o modelo a ser escolhido. sinava a gostar de meu corpo. Mas eu fui ficando cada vez
Escolha singular, fixada à revelia de quem apenas deve a tal modelo mais fechada, me sentia ameaçada por todos em relação a C..
configurar-se. Tinha medo de tudo. Foi um lance racial: eu estava vivendo
um lance de ser mulher negra para o C. mas não tava conse-
Na construção de um Ideal de Ego branco, a primeira regra
guindo ser mulher negra para mim mesma. Aí ele destransou.
básica que ao negro se impõe é a negação, o expurgo de qualquer
Fiquei quase louca ... " (Carmem)
"mancha negra". É a voz de um dos nossos entrevistados que ecoa
pungente sobre nossos tímpanos:
Os antepessados ocupam um lugar privilegiado na história do
negro, particularmente do negro brasileiro. Substancialmente inves-
4. - FREUD, S. Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921) em
Edição Standard. Rio de Janeiro, Imago, 1969, Volume XVIII, p. 166.
5. - LECLAIRE, S. O Corpo Erógeno. Rio de Janeiro, 1979.

34 35
só agüentei uns três anos. Fugi de casa e fui morar com mi-
tidos de energia libid.inal, suas palavras têm estatuto de verdade e
nha mãe. Minha mãe era empregada doméstica na Gávea.
força de lei e seus projetos não realizados são o destino dos descen-
Aí as coisas mudaram: em Cordovil eu era o rei; na Gávea eu
dentes. Assim, estas figuras ancestrais - mais ou menos remotas
era formiga. Em Cordovil eu morava no morro, no alto, via
- éonstróem o sistema Superego Ideal do Ego, viabilizando a inte-
tudo lá de cima. Zona Sul é outro mundo. Eu tinha medo.
riorização das exigências e ideais a serem cumpridos por filhos, netos,
Quando eu entrava no ônibus, tinha medo de apertar a cam-
bisnetos, ad infinitum.
painha, comecei a me policiar. Uma chama que já tinha den-
tro de mim, começou a aumentar muito: vontade de um dia
"Minha avó, ela diz que quer se casar de novo. 'Casar com
apertar bem a campainha do ônibus, de ter uma posição, en-
um francês pra clarear a família'. Quando a gente ( as ne-
trar dentro do jogo, o jogo da Zona Sul: ou você entra no
tas) está namorando, ela pergunta se é preto ou branco. Diz
jogo ou passa a ser mais um. . . Vivemos no sistema capitalista
que tem que clarear a família. O clarear não é só a questão
- o negócio é ter grana. . . O negro tem que estar na frente
da pele, porque o negro é símbolo da miséria, de fome. De
e sobretudo atrás das máquinas - dirigindo os botões . . . Eu
repente, clarear é também a ascensão econômica e social. Se
nunca estou contente com o que tenho, eu sempre quero al-
for um cara negro que tenha condição econômica e social boa,
guma coisa a mais. Estou sempre a buscar alguma coisa.''
tudo bem. Tem um lance de cor, mas no sentido de que a (Correia)
cor (preta), lembra miséria. O preto (para ser aceito como
I
possível integrante da família) tem que ter curso superior. Se
Numa sociedade multirracial, racista, de hegemonia branca, o
for um branco, não precisa. Principalmente em relação a nós
"a posteriori" 6 se produz no momento em que o negro enfrenta
- filhos do único filho dela que ascendeu - tem muita ex-
peito-a-peito as condições concretas de opressão em que está imerso.
pectativa. Nós somos os filhos do PROFESSOR ... " (Car-
mem) O cotid_iano é pródigo em situações em que o negro se vê
diante de falsas alternativas, insatisfatórias todas: afirmação/negação,
"Minha avó era bem negra: nariz grosso, beiços grossos, voz exploração, dominação/submissão.
grossa. Não gostava de negro. Ela dizia: 'se você vir con- O discurso do nosso Correia é radical: na formação do Ideal
fusão, sa,iba que é o negro que está fazendo; se vir um negro do Ego não lhe escapa nenhuma das características básicas do mo-
correr, é ladrão. Você tem que casar com um branco pra delo racista e capitalista. Seu Ideal de Ego é fundado na dupla
limpar o útero'." (Luísa) opressão de classe e de cor.
Radical_ização maior podemos ver em Natanael, que toma como
O contexto familiar é o lugar primeiro onde a ação constituinte modelo não só o dominador mas o Ideal do Ego do dominador.
do Ideal do Ego se desenrola. É aí onde se cuida de arar o caminho
a ser percorrido, antes mesmo que o negro, ainda não sujeito, a não " ( o passado escravista) não interfere em nada. Para algumas
ser ao desejo do Outro, construa o seu projeto de chegar Já. Depois pessoas, sim. Mas para os que não têm essa mentalidade de
é a vida de rua, a escola, o trabalho, os espaços do lazer. Muitas escravo, que até se acham superiores, isso não interfere em
vezes, é nesses lugares segundos, pleno de experiências novas, que o nada." (Natanael)
Ideal do Ego - cujas vigas mestras já foram erigidas - encontra
ocasião de reforçar-se, assim adquirindo significado e eficácia de mo- Neste discurso encontramos, ainda, uma màrca característica
delo ideal para o sujeito. da cultura ocidental e branca, onde estamos imersos: o individualis-
mo - a doutrina e apologia da responsabilidade individual.
". . . quando minha avó morreu, meu pai se amigou com uma
6. - LAPLANCHE, J., PONTALTS, J. B. Idem.
mulher e foram morar lá em casa. Aí as coisas mudaram e

36 37
Continua Natanael: Esta é a expressão fidedigna daquilo que identificamos como a
tentativa de aproximação do Ego em relação ao Ideal do Ego.
"A maior parte dos negros não consegue um lugar ao sol por Nesta tentativa de realização - tão imperiosa quanto impos-
suas próprias incapacidades: preguiça, falta de força de von- sível - o Ego lança mão de táticas diversas, cujo denominador co-
tade. Apesar dos obstáculos, eu consegui o maior posto den- mum se faz representar por um redobrar permanente de esforços,
tro do navio, depois do comandante." por uma potencialização obrigatória de suas capacidades:
Colocando-se como exemplo, Natanael, a um só tempo, reforça "No curso primário eu era a primeira aluna da sala. Adorava
a tese de que ao indivíduo cabe o lugar decisivo na História e - estudar. Minha afirmação sempre foi o estudo. A prova de
"exceção que confirma a regra" - fortalece os estereótipos que
admissão. ... foi a primeira vez que senti aquela responsabili-
depreciam o grupo ao qual nega e recusa sua pertinência. É assim
dade de ser inteligente e então ter que passar. Eu tinha que
que ele conclui a entrevista: ser a melhor. Eu me exigia muito - mais até que meus Ir-
mãos - mas todos sentimos a pressão de fora ... "
" . . . O negócio é ir em frente, esquecer esse negócio de raça
e vencer." "No meu último ano de ginásio, comecei a fazer teatro na Es-
cola ... Houve um Festival de Música e fui a melhor intérprete.
O relacionamento entre o Ego e o Ideal do Ego é vivido sob
No final do ano fui escolhida como a melhor aluna da turma.
o signo da tensão. E como não sê-lo, se o Superego bombardeia o
Foi uma glória! Fiz o discurso do término do curso, passei a
Ego com incessantes exigências de atingir um Ideal inalcançável?
bandeira pra outra turma, uma glória! . . . A coisa da glória
O negro, certamente, não é o único a viver esta experiência. nos estudos era um papel que eu já tinha cumprido e que iria
É certo que existe sempre, em todo sujejto não-psicótico, uma rela- me acompanhar pro resto da vida ... "
ção de tensão entre essas instâncias, devido a um quantum de insa-
tisfação resultante do inexorável fracasso em atingir o ideal dese- "Resolvi fazer Medicina - não sei direito porque, mas deve
jado. O ideal desejado é a identidade com o Ego Ideal, formação ter sido o resultado de toda uma estruturação de minha vida -
intrapsíquica definida como "ideal narcís.ico de onipotência forjado eu tinha que escolher a carreira mais nobre, o vestibular mais
a partir do modelo do narcisismo infantil". 7 Contudo, há degraus, difícil."
níveis variáveis de insatisfação. Num registro simbólico, lugar onde
opera a conduta neurót.ica que nos interessa aqui, estes níveis de "Pra mim, um homem negro tinha que ser especial, ser muito
frustação serão definidos, em última instância, pela relação estabe- melhor que o branco, se destacar, ser como eu. Teria que
lecida entre o Ego atual e o Ideal do Ego. No negro, do qual fa- ser lindo! Muito bonito, muito inteligente ... Nunca apareceu
lamos, esta relação caracteriza-se por uma acentuada defasagem tra-
um homem assim ... "
duzida por uma dramática insatisfação, a despeito dos êxitos obje-
tivos conquistados pelo sujeito. ". . . me apaixonei pelo S. S. era o homem negro, presidente
do Diretório, paixão da maioria das mulheres, bonito, inteli-
"Eu nunca tou contente com o que tenho. Eu sempre quero
gente, líder, casado.·. . A mulher dele era branca. . . Acho que
alguma coisa mais. Estou sempre a buscar alguma cojsa."
fui a primeira mulher negra por quem ele se interessou. Mas
(Correia) não era só isso. Era também a curtição de eu ser negra. A
curtição é a seguinte: é ser o mais em tudo; a mais bonita, a
7. - LAPLANCHE, J., PONTALIS, J. B. Idem, p. 190. mais inteligente, a mais sensual - a responsabilidade de ter

38 39
_

que ser, a exigência de ter que ser. Ser negro é ter que ser o mana - o resíduo do narc1s1smo infantil; outra parte decorre da
mais." (Luísa) onipotência que é corroborada pela experiência ( a realização do
Ideal do Ego), enquanto uma terceira parte provém da satisfação
" nas minhas fantasias eu tenho muito dinheiro . . . tenho da libido objetal." 8
uma fantasia de ter terras de montão, casa grande - não
para dar lucro, nem para grandes plantações. É para curtir Sentimentos de culpa e inferioridade, insegurança e angústia
mesmo as coisas da fazenda. . . Tenho também fantasias de atormentam aqueles cujo Ego caiu em desgraça diante do Superego.
sucesso: descobrir alguma coisa interessante, escrever um li- A distância entre o ideal e o possível cria um fosso vivido com
vro mu.ito importante. Ganhar o Prêmio Nobel ... " (Eu- efeito de autodesvalorização, timidez, retraimento e ansiedade fóbica.
nice) "O C. era branco, família branca e morava em Ipanema. Senti
aí todos os complexos. Ia na casa dele morrendo de vergo-
"Eu sempre gosto que as pessoas digam que eu sou inteligente, nha. Só me relacionava bem com ele na Faculdade. . . Me
que, apesar de todos os defeitos, isso é o que ressai em mim." sentia rejeitada nos lugares, não conseguia dar uma palavra.
(Eunice) Eu não conseguia nem transar meu estereótipo, minha imagem
de mulher maravilhosa. Não me sentia respeitada pelos ami-
"Eu não aceito ser uma pretinha. Quero ser a crioula mara- gos dele, me sentia ins,egura. É como se eu apresentasse uma
vilhosa. O branco aceita a mistificação do negro: 'sou preta, imagem e não fosse nada daquilo. . . Eu sentia vergonha de
sim, mas até consigo ser melhor que vocês'." (Carmem) meu corpo. Eu queria transar no escuro. . . Eu fui ficando
cada vez mais fechada, me sentia ameaçada por todos em re-
Ser o melhor! Na realidade, na fantasia, para se afirmar, para lação a C.. Tinha medo de tudo." (Carmem)
minimizar, compensar o "defeito", para ser aceito. Ser o melhor
é a consigna a ser introjetada, assimilada e. reproduzida. Ser o me- "Fiquei apaixonada por R., mas ele estava, na época, come-
lhor, dado unânime em todas as histórias-de-vida. çando o processo de um novo casamento e sofri muito. Eu
Para o negro, entretanto, ser o melhor, a despeito de tudo, não fiquei de terceira. Ela era branca, mais madura, uma mulher
lhe garante o êxito, a consecução do Ideal. É que o Ideal do Ego com filho. . . Eu a achava mais segura, mais forte do que eu.
do negro, que é em grande parte constutuído pelos ideais dominan- Fiquei de terceira. Fiquei achando que estava cumprindo o
tes, é branco. E ser branco lhe é impossível. papel da mulher negra: a amante. Os homens ficavam com
as mulheres brancas." (Luísa)
Dilacerante, crua, cruenta descoberta ...
Diante da experiência do inverossímil, frente à constatação dra- Autodesvalorização e conformismo, atitude fóbica, submissa e
mática da impossibilidade de realizar o Ideal, o negro vislumbra duas contemporizadora são experiências vividas por nossos entrevistados,
altemat_ivas genéricas: sucumbir às punições do Superego ou lutar, humilhados, intimidados e decepcionados consigo próprios por não
lutar ainda mais, buscando encontrar novas saídas. responderem às expectativas que se impõem a si mesmos, por não
A primeira alternativa genérica - sucumbir às pumçoes do Su- possuirem um Ideal realizável pelo Ego.
perego - é representada pela Melancolia, em seus diferentes mati-
zes e gradações. Aqui, o sentimento de perda da auto-estima é o "Eu capitalizava as reações negativas que me levavam à humi-
dado constante que nos permite unificar numa mesma categoria - lhação e recolhimento. Reagia com pânico quando os me-
Melancol.ia - as diferentes feições desta condição psicopatológica \
que denuncia a falência do Ego. "Uma parte da auto-estima é pri- 8. - FREUD, S. Sobre o Narcisisnio: Uma Introdução (1914) em Edi-
ção Standard. Rio de Janeiro, Imago, 1969, Volume XIV, p. 118.

40 41
ninos ( colegas brancos) me chamavam "negrinho", "preto fu- Deprimida, Mara pune-se a si mesma, negando-se em sua be-
dido". Eu tinha sido programado como sendo um deles. O leza, inteligência e vivacidade. Diz não namorar ninguém há muito
fato de eu ser discriminado assim, só me surpreendia, me hu- tempo. ". . . Saio pouco, sou muito fechada. Com minha irmã .. .
milhava. Se eu tivesse sido um menino de comunidade negra, me sinto deslocada com os amigos dela. . . Não tenho assunto .. .
eu teria reagido. Teria alguma coisa para afirmar. Mas eu Na Faculdade. . . cada um tem sua vida ... "
tinha sido programado para ser corno um deles. A timidez, Acusando-se, Mara torna seu o discurso ideológico da sociedade,
fruto de minha criação, fez com que eu tornasse urna atitude introjetado e assimilado pelo Superego: "O negro é marginal, o
de contemporizar, submissa. Eu não tinha orgulho nenhum. negro é tudo de ruim . . . Ser negro no Brasil é um problema -
Fiquei à mercê daquilo tudo. Tentei rn.inirnizar as dores ... ele sofre muitas barreiras, mas ele se retrai um pouco em quebrar
Me tornei muito retraído condescendente. Aquela docilidade essas barreiras. Ele é passivo".
de escravo! Engolia sapo ... " (Alberto) Mas existe uma segunda alternativa: lutar, lutar mais ainda por
encontrar novos caminhos. Um deles passa pela busca do objeto amo-
Um exemplo final de punição superegóica: aqui o modelo bran- roso. Um objeto que, por suas características, possa ser o substituto
I
i ! co está encarnado na figura do pai e é cumprido pelos irmãos da do Ideal irrealizável. Um parceiro branco com quem o negro -
nossa entrevistada, Mara, a d.iferente. através da intimidade da relação afetivo-sexual - possa se identifi-
A mãe de Mara é negra, mas, ao contrário desta, "está bem car e realizar o Ideal de Ego inatingível "Em muitas formas de
de cuca, financeiramente, em relação ao marido que escolheu". escolha amorosa, é fato evidente que o objeto serve de sucedâneo
Mara tem escolhido os parceiros, segundo o modelo Ideal, mas di- para algum inatingido Ideal do Ego de nós mesmos. Nós o ama-
ferentemente da mãe, tem fracassado na escolha. A depressão é o mos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir
castigo. para o nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir dessa
maneira indireta como meio de satisfazer nosso narcisismo." 9 É assim
Mara é uma moça de vinte e quatro anos, às vésperas de for- que se troca a impossibilidade de cumprir o Ideal pela inviabilidade
mar-se em Letras. Filha de branco e negra, tem dois irmãos que de experimentar o amor autêntico. Ama-se a brancura, como diz
ela define como sendo "branco e morena-dara". Quanto a si mes- Fanon. 10 O parceiro branco é transformado em instrumento tático,
ma, diz: "Eu sou a mais escura. . . me considero negra. Tenho numa luta cuja estratégia é cumprir os ditames superegóicos, calca-
mais parentes negros do que brancos. Sou uma mistura." dos nos valores hegemônicos da ideologia dominante.
A entrevista que Mara nos concede é tão fechada quando ela Esta é a saída pela porta dos fundos, caminho transverso, via
própria. "Não", "não sei", "não me lembro", "não entendo" são indireta.
expressões que se repetem.
Moça de poucos amigos desde a infância, Mara teve dois namo- "Eu sinto o problema racial como uma ferida. É uma coisa
rados que terminaram a relação "por pressão de família - precon- que penso e sinto todo o tempo. É um negócio que não ci-
ceito racial". catriza nunca." (Sales)

Namorou durante um ano com o segundo, mas "nunca saímos O negro que elege o branco como Ideal do Ego engendra em
juntos". Solicitada por nós, Mara tenta encontrar uma explicação. si mesmo urna ferida narcísica, grave e dilacerante, que, como con-
Uma explicação que busca esconder o óbvio: "Acomodação a ficar
em casa, vendo TV". A inconsistência de tal hipótese explicativa
9. - FREUD, S. Psicologia de Grupo e a Análise do Ego (1921) em
lhe conduz a uma perplexidade que lhe obriga a concluir, patetica- Edição Standard, Rio de Janeiro, Imago, 1969, Volume XVIII, p. 143.
mente: "Não entendo ... " 10. - FANON, F. ! Escucha, bianca ! Barcelona, Nova Terra, 1970.

1
42 43
1
dição de cura, demanda ao negro a construção de um outro Ideal de
CAPÍTULO V
Ego. Um novo Ideal de Ego que lhe configure um rosto próprio,
que encarne seus valores e interesses, que tenha como referência e
1
perspectiva a História. Um Ideal construído· através da militância
1
política, lugar privilegiado de construção transformadora da História.
Independente dos modos de compreender o sentido da prática A História de Luísa
1 '
política, seu exercício é representado para o negro como o meio de
recuperar a auto-estima, de afirmar sua existência, de marcar o seu
lugar.

"Substitui bem o C. pela militância política. Ele não quis se


engajar e eu usei isto contra ele - quis mostrar que eu era Neta de empregadas domésticas e filha de pais de classe mé-
superior a ele. Escolhi a linha política mais avançada. Foi dia baixa, Luísa é uma médica recém-formada, nascida no Rio há
aí que comecei a transar politicamente a questão racial." 23 anos.
(Carmem) "Fui filha única até os quatro anos de idade. Meus pais eram
filhos de empregada doméstica. A patroa assumiu meu pai como
"O negro tem que tomar posição (política). A gente tem que filho. Minha mãe acha que meu pai teria sido um dos filhos do
buscar soluções. O negro é sempre negro. . . só tem uma
patrão. Meu pai nega.
forma de pesar na balança: é mostrar o peso econômico da
massa negra organizada. O negro não pode se esconder, ele Minha avó fala que o marido dela era muito mau, batia nela.
tem que ir à luta. . . Não tem que pedir licença, tem que ir à Ela teve muitos filhos, morreram todos, só sobrou meu pai e uma
luta ... O negro tem que fazer sua história." (Correia) tia. Meu pai foi acolhido e minha tia não. Meu pai sempre teve
mais chances. Fez até o 2. 0 grau. É bancário. Hoje é subge-
" ... comecei a prestar mais atenção em volta, a estabelecer rente. Tem 25 anos de banco.
'I
1. uma relação mais atenta com a sociedade. Meu trabalho pas- A imagem física do meu pai: mulato, bonito, careca, 47 anos,
1

sou a ser mais vestido com as roupas da negritude. A meu gorduchinho. É uma pessoa muito bonita: nariz afilado, não tem
modo ... " (Alberto)
beiço, pode passar por branco. Como é careca, não dá muito pra
1

I i ver o cabelo ruim do crioulo.


1
1 Minha avó: negra muito bonita. A cor negra é roxa, bonita .
j
Nariz fino, olhos puxados. Não se assume negra. Fisicamente, in-
clusive: estica o cabelo, tem até calvície. Morre de raiva porque eu
não estico meu ca/jelo.
Minha mãe: filha de empregada. Teve uma vida mais fudida
que meu pai. Teve que trabalhar cedo. Com 18 anos conheceu
meu pai, namorou, noivou durante oito anos e depois casou. Tra-
balhava num laboratório, parece que embalando remédios, não sei
bem, depois fez um concurso pro Estado e foi trabalhar num hospi-
tal. Fazia de tudo: servente, atendente de enfermagem. . . Hoje já

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conseguiu um trabalho burocrático: funcionária pública, trabalha na Minha mãe conta que foi me ter numa Casa de Saúde carís-
Seção de Pessoal. Concluiu o ginásio há pouco tempo. sima com medo de que eu morresse como meu irmão que morreu
3 dias depois que nasceu e minha mãe jura que foi barberagem do
Meu pai ficava a jogar bola e via minha mãe passar para ir
médico. Eu sempre fui cuidada, muito cercada com muita atenção
trabalhar. Ele ficava paquerando minha mãe. Namoraram e quan-
porque, além de ser a primeira filha, primeira neta, muito esperada,
do minha mãe o levou pra minha avó conhecê-lo, minha avó disse
tinha o medo de perder outro filho. Minha mãe diz que tinha muito
que ele tinha que trabalhar se quisesse namorar a filha dela. Foi
leite pra me dar.
aí que ele disse que tomou consciência de que não era o filho da
dona da casa e, sim, da empregada e tinha que começar a trabalhar. Tinha o lance da minha solidão. Contam que eu falava muito
Começou a trabalhar no Banco, onde está até hoje. sozinha, tinha amigos invisíveis, falava na frente do espelho. Era
uma sensação de me reconhecer, de identidade minha, de me sentir;
Minha mãe é gorda, bem mãe, peitão, daqueles que ela se or- falava comigo mesma, me achava feia, me identificava como uma
gulha de que amamentou muito os filhos. Parece comigo, é mu- menina negra, diferente. Não tinha nenhuma menina como eu. To-
lata, tem o nariz mais grosso, mais amulatado. Não tem bundão das as meninas tinham o cabelo liso, nariz fino. Minha mãe man-
de crioula, não. Ela ficou muito feia, barriguda. Barriga de estria dava botar pregador de roupa no nariz pra ficar menos chato.
de cinco filhos. O cabelo, ela passa hené, enrola, não passa o ferro. Depois eu.deixei de falar no espelho mas eu me lembro que era
A imagem última que me ficou de minha avó era muito feia. uma coisa de eu me sentir. Não consigo explicar isso. Talvez es-
Teve AVC. Era bem negra. Nariz grosso, beiços grossos, voz ses fassem momentos onde eu não estava dispersa. Momentos co-
grossa. Era uma pessoa bem malandra. Andava com veados. Os migo mesma. Eu sempre fui muito dispersa.
veados gostavam dela. Ela passava por homem fácil. Era muito Depois eu fui sentindo que aquilo (olhar no espelho) era uma
vivida, malandra. Teve uma filha - minha mãe - se assumia coisa ruim. Um dia eu me percebi com medo de mim no espelho
como mãe solteira. Nunca inventou histórias sobre meu avô, como e um dia tive uma crise de pavor e foi terrível. Fiquei um tempo
minha avó paterna. As amigas dela eram todas mães solteiras. De- grande assim: não podia me olhar no espelho com medo de reviver
pois do nascimento da minha mãe, ela não teve mais outros relacio- aquela sensação.
namentos. Essa é a imagem e a impressão que tenho. Não gos- Pra mim, minha história mesmo começa quando minha irmã
tava de negro. Dizia que crioulo, sobretudo o negro, não prestava: nasceu. Fiquei feliz quando meu pai disse que nasceu minha irmã.
"se você vir confusão, saiba que é o negro que está fazendo; se você Mas aí comecei a ter, inconscientemente, mil reações: sonambulismo,
vir um negro correr, é ladrão. Tem que casar com um branco pra ranger os dentes, sono agitado. De noite, eu ia, dormindo, na ga-
limpar o útero." Ela foi minha mãe de criação: é a imagem da veta onde estavam as fraldas de minha irmã e jogava tudo no chão.
proteção. Eu dormia com ela. Eu tinha medo do escuro, ela me Mas, conscientemente, eu estava feliz.
cuidava: me levava pra escola, penteava o cabelo, lavava a roupa. Ela era mais branca do que eu. Tinha os cabelos lisos. Os
A malandragem dela me marcou muito: eu via pelas fotos dela de vizinhos diziam que ela parecia com meu pai. Aí, nessa fase, acon-
Carnaval: era um jeito debochado de ser, parecia que sabia muita teceu uma coisa linda em minha vida: meus pais foram ao pediatra
coisa do mundo, muito sacadora. Os amigos veados que ela tinha, e ele aconselhou que eles me dissessem: "Luísa, eu gosto muito de
ela tomava cerveja com eles, fumava cigarros, coisas que não eram você". Eu dou mil beijos em meu pai hoie por causa disso.
bem.
Eu tive mais vantagens que minha irmã. Meu pai gostava mais
O sentimento de proteção era misturado com raiva e vergonha. de mim do que dela. Minha mãe não aparentava preferência. Eu
Por ser negra, por n:ão estar com roupas bonitas, por não ser minha tive, na minha adolescência, a impressão de que eu era o filho ho-
mãe mesmo, diferente das outras meninas que iam pra escola com mem que ele estava esperando. Eu me lembro da decepção dele
pai e mãe. quando nasciam as mulheres.

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O lance da religião é que é muito marcado. Eu achava, quan- Na prova de admissão, foi a primeira vez que senti aquela res-
do tinha 6, 7 anos, que eu queria ser freira. Eu pensava assim: ponsabilidade de ser inteligente e então ter que passar. Eu tinha
gente feia casa com gente feia. Eu sou feia, não quero casar com que ser a melhor, eu me exigia muito. Mais até que meus irmãos,
gente feia, vou ser freira. O mistério das freiras me fascinava mui- mas todos sentiam a pressão de fora. Passei em terceiro lugar. Mi-
to. Eu queria estudar no colégio das freiras, além de ser o colégio nhas amigas não passaram ou então tiraram nota mais baixa. Eu
das meninas ricas. Eu sonhava muito e morria de medo de diabo, fiquei cheia de glória.
inferno ... Meu pai fez um discurso, quando entrei pro ginásio, dizendo da
Primeira aluna da classe! Adorava estudar. Gostava da escola. importância e responsabilidade de entrar no ginásio - "não se mis-
Tinha amigos. Morria de medo de solidão. Não gostava de ir pra turar com as esquerdas".
1 '
casa: minhas irmãs eram sempre muito mais novas do que eu. Eu lia muito e a maioria dos meus colegas não gostava de ler
Eu era muito invejosa; inveja do físico das pessoas. Achava e eu já me destacava por isso. Eu era boa aluna, extrovertida, mas
que as pessoas eram muito mais bonitas que eu. bem comportada. Com 12, 13 anos fiquei mais bagunceira. Foi
muito bom. Antes, eu era muito bem comportada. Passei a ficar
Na minha turma tinha negros. Eram negros rebeldes, geral-
mais saltinha mas era uma boa aluna. Achei um modo de contro-
mente da favela. Eu era negra-brànca: eu era como aquelas pessoas
lar os professores: ser bagunceira mas ser boa aluna. Ainda con-
mas não queria ser igual a elas de jeito nenhum. Mas também, eu
servava alguma coisa da Luísa bem comportada, por exemplo: pedia
não era como os outros, os brancos: eles eram filhos de professores.
desculpas depois da bagunça feita, coisa que ninguém fazia. Assim,
Minha mãe não ia na reunião de pais e mestres - estava trabalhan-
eu preservava alguma coisa da Luísa bem comportada.
do. Minha afirmação sempre foi o estudo.
Com 14 anos estava acabando o ginásio. Comecei a fazer tea-
Eu desprezava, não transava com os pretos. Os brancos, eu
tro na Escola. Resolvemos fazer uma peça escrita por nós mesmos,
admirava, eram meus amigos. Minhas duas amigas de infância eram
sobre os problemas que nos tocavam, interessavam. Um dos pro-
judias - brancas mesmo. blemas era o racismo. Eu fui escolhida para o papel principal -
Venderam o prédio que a gente morava, em Ipanema e viemos eu era a única negra. Foi uma coisa legal. Não foi um momento
morar no Jardim Botânico.Baixou o status. . . Estudar numa esco- de consciência profunda, não era tanta vergonha, era uma coisa
la muito misturada. . . Tinha muita gente pobre. Eu tinha nove menos ruim. Foi a primeira vez que discuti a questã'o do racismo -
anos, já podia entrar no ginásio e já estava meio claro pra mim que sem fa1lar de mim, mas falando do assunto. Foi a primeira vez que
eu não gostava de pobre e de preto. Então, eu me sentia superior usei cabelo afro, também era uma coisa legal.
1
a todo mundo: intelectualmente e porque não era tão pobre.Conheci Teve o Festival de Música - eu fui a melhor intérprete.
uma menina que era filha de brigadeiro e éramos amigas . . . Era
1

do meu nível. E no final do ano fui escolhida como a melhor aluna dai turma,
foi uma glória! Fizo o discurso do términ:o do curso, passei a bandeira
Meu pai dizia que a gente era rico. Minha mãe dizia que a pra outra turma, uma glória!
gente era pobre. Eu achava que ser rico era morar naqueles edifí-
cios que tinham brinquedo. Mas também não era pobre, porque ser A coisa da glória nos estudos era um papel que eu já tinha
pobre era morar na favela. Aí, eu não sabia meu lugar, mas sabia cumprido, era uma coisa necessária, que ia me acompanhar pro
i que negro eu não era. Negro era sujo, eu era limpa; negro era resto da vida. Agora, tinha a outro mundo da arte, que eu já tava
burro, eu era inteligente; era morar na favela e eu não morava e, entrando, e tinha me dado legal e era outra coisa. Eu tinha um
sobretudo, negro tinha lábios e nariz grossos e eu não tinha. Eu pouco de medo - não era tão aceito socialmetne, mas o sucesso nos
era mulata, ainda tinha esperança de me salvar. Em termos de clas- estudos me dava força pra saber o que era aquilo. . . . era uma coisa
se continuava a dúvida. Em termos de negritude, não. que eu não assumia plenamente como o pessoal que fazia teatro

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assumia: usar roupas diferentes, cabelo diferente, me amendrontava; ele me curtia. Nunca achei que· devia discutir isso. Ele já era uma
mas era uma coisa que me puxava e eu via que era possível viver, grande aquisição minha, porque era bonito, cobiçado e estava comigo.
apesar das exigências das pessoas de que eu era uma pessoa inteli- No 2.0 ano científico fui, com toda a turma, estudar num colé-
gente· . . O seguro era ser estudiosa, inteligente. Aí eu sabia que gio liberal. A gente o chamava "Paraíso da Liberdade". Tinha
a aceitação era certa, essas outras coisas, não. A exigência era muitos negros aí. Muitos, não, mas assumidos. Apareciam mais.
prmczpalmente de minha família, mas tinha os outros amigos, colegas Principalmente as mulheres. Já falavam alguma coisa sobre a raça,
que faziam música, teatro - eu sentia que tinha uma barreira a sobre libertação. As meninas negras de minha turma eram três:
quebrar. bem assumidas, bagunceiras, rebeldes. Eu me identificava com elas
A Igreja, que era uma Igreja revolucionária e que eu estava mas continuava sendo estudiosa, bem comportada, apesar de fazer
muito ligada versus o pessoal de teatro, que já na época usava tóxi- umas baguncinhas, mas pedindo desculpas depois.
cos etc. . . Pintou uma divisão em mim. Eu gostava das duas Me apaixonei pelo professor de Física. Era um cara mais velho,
coisas: o pessoal da Igreja e o pessoal de teatro, mas a Igreja era casado. Resolvi fazer Física. Era uma coisa difícil, mas eu sabia
uma coisa que me segurava, que eu sabia que não ia desbundar. que me daria bem. Ia fazer Física. Ele era bonito, uma porção de
A questão racial pintou aí da seguinte forma: quando aparecia meninas se apaixonavam por ele. A forma de sedução minha foi
um rapaz negro no grupo existia toda uma pressão, toda uma expec- ser boa aluna - uma forma de me negar como mulher - seduzir
tativa das pessoas para eu namorar com ele. E eu não queria. pela cabeça, o que aliás sempre foi o meu esquema.
Imagine, eu fá dava resposta de que por que eu tinha que namorar Depois resolvi fazer Medicina - não sei direito porque - mas
com ele? Só porque era negro? E tinha, às vezes, lances agressi- deve ter sido o resultado de toda uma estruturação de minha vida.
vos, das pessoas me acharem racista. Mas tinha também a coisa Eu tinha que escolher a carreira mais nobre, o vestibular mais difícil,
de eu não querer namorar com eles porque eram negro,s, mesmo. a carreira que e.u teria contato com gente, fazer o bem. Pensei em
Pra mim um homem negro tinha que ser especial. Ser muito melhor ser Assistente Social - a coisa da religião - mas não era tão nobre
que o branco, se destacar, ser como eu. Teria que ser lindo! Muito como Medicina.
bonito, muito inteligente. Nunca me apareceu um homem assim . .. A minha primeira angústia grandezinha senti no ano do Vesti-
Meu primeiro namorado foi o David. Eu tinha 15 ano.i,. bular. Tinha sono agitado, acordava no meio da noite gritando pa-
David era branco, filho de tcheco com alemã. Era louro de olhos lavrões, tinha medo de multidão, depois medo de estar sozinha na
azuis. Nunca me assumiu como namorada dele. Tudo era mara- rua, falta de ar, ansiedade de esperar uma fila, por exemplo. Fui a
vilhoso quando estávamos sozinhos ou com pessoas íntimas. Não um médico que fez um eletroencefalograma, encontrou uma disritmia e
serviu de explicação pra tudo. Fiquei muito tranquilizada, porque
saíamos à rua de mãos dadas, nunca me apresentou à família dele,
antes a coisa era incompreensível. Tomei, durante todo o ano, Comi-
até a irmã dele, que estudava na mesma escola, ele não aceitava
1 tal L e Tegretol - e vivia dormindo. Assim, não pude estudar direito
que eu fizesse muito carinho nele (quando a irmã estava por perto).
e perdi o Vestibular - o que foi a primeira grande' derrota de minha
1
Eu nunca achei que era nada racial. Achava que era porque eu
vida. Se, por um lado, tinha a lustificativa: "Ah, coitada, ela saiu
era muito feia. Aceitei o jogo dele me minimizar. Namoramos
de uma crise", por outro, eu sentia que perdi o respaldo. Se eu era
assim dois anos e pouco. Nunca conversamos sobre a questão ra
inteligente tinha que passar no Vestibular.
cial Ele tinha muito probilema de identificação - "espiga de
milho , era o apelido que lhe davam. A maioria dos amigos dele O ano seguinte foi o da descoberta do sexo. Ainda com David.
eram negros. Ele me curtia como negra - a coisa da propaganda Muito sarro, mas não acontecia nada.
li
- a mulata, o escracho, a coisa de ser à vontade. Eu sofria porque Conheci o Mário. Ele era homossexual, eu percebi logo, e ele
ele não me assumia pra fora. Mas ficava contente por 'e no fundo, também me disse, mas ele tava a fim de deixar de ser homossexual e
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me achava bonita, tesuda. Eu também achava ele bonito. Mas foi Me desencantei com o Curso de Medicina. Entrei na Facul-
terrível, porque ficamos namorando dois anos, ele não conseguiu tre- dade de Ciências Sociais. Aí me apaixonei pelo Sílvio, o homem
par comigo e também não trepava com homem, porque estava comi- negro presidente do Diretório, paixão da maioria das mulheres, bo-
go. Tinha toda uma situação de que a família dele gostava de mim, nito, inteligente, líder, casado. Nos aproximamos timidamente. A
me aceitava. Primeira e única família de namorado que me aceitou. mulher dele fazia jogo. Ela era branca e se sentia ameaçada. Ela
Me achavam ótima, não queriam que ele fosse homossexual, então, podia aceitar que estava perdendo ele, o que era ruim, mas perder
mesmo sendo negra, me aceitavam. Depois nós vimos que não tinha para uma mulher negra era insuportável. Sílvio, acho que o pro-
nada a ver essa coisa de ele não procurar outras pessoas. Aí abri- cesso dele era muito igual ao meu: de não se assumir como negro,
mos a relação. Aí ele passou a transar com outros homens. Aí eu de não procurar mulheres negras, de ser rejeitado pelas mulheres
entrei numa competição: eu tirava um sarrinho, fazia jogo de sedução brancas -e a Marina foi a primeira mulher branca que gostou e
com os homens que ele transava. Era um desafio essa coisa de conquistou ele. E eu acho que fui a primeira mulher negra por
seduzir um homossexual. Eu nunca senti o Mário me rejeitando quem ele conseguiu se interessar. Mas acho que não é só isso.
como o David. Ele me curtia como mulher, como pessoa. Ele Era também a curtição de eu ser negra. A curtição é como ser o
sofria muito por não conseguir trepar comigo. Ele dizia que estava mais tudo: a mais bonita, a mais inteligente, a mais sensual. A res-
cada vez mais perdendo o tesão. Quanto mais eu conhecia ele, mais ponsabilidade, a exigência. . . Ser negro é ter que ser o mais. Daí
ele dizia ,que se assustava. Eu não pensava na questão racial. Ele me eu achar que as pessoas me curtem por ser negra, por ser o mais.
curtia. Dizia: "você é negra, você dança bem, você é bonita" - Já que as pessoas vão me pedir eu dou logo.
mas de uma forma diferente do David. A partir do momento em
que não havia uma rejeição clara, eu não pensava nisso . .. O Sabino foi o negro comum que sempre me curtiu, estava
sempre por perto, gostava de mim. Mas eu só tava querendo saber
O Roberto foi a pessoa que durante todo esse tempo me dava do Sílvio. Até que um dia, num gesto de caridade (ri), caridade,
toques sobre a questão racial: "por que você usa seu cabelo assim?" não, trepei com ele. No outro dia, foi terrível: acordei e foi uma
(alisado). Ele conversava comigo, me mostrava o outro lado. Ele sensação terrível pavor de ver aquele corpo que era igual ao do
era branco. Era muito companheiro. Tinha muito carinho por meu pai, foi terrível. Saí e não quis saber mais dele. Ele conti-
mim. Um dia, estava muito triste, estávamos deitados juntos e tre- nuou apaixonado, me procurando, mas eu não quis mais nada.
pamos. Foi a pessoa com quem trepei pela primeira vez. Depois Era delicada na rejeição, mas rejeitava. Nunca falamos sobre o
fiquei apaixonada, mas ele já estava começando o processo de um que aconteceu. Ele foi a primeira pessoa que cobrou de mim uma
novo casamento e sofri muito. Eu fiquei de terceira. Ela era bran- participação política, ligada à questão negra.
ca, mais madura, já era uma mulher com filho, não aprendeu a ser
mulher com o Roberto, como eu. Achava ela mais segura, mais Queria ser comunista. Pensava assim: se essas pessoas foram
forte . . . Fiquei achando que estava cumprindo o papel da mulher torturadas, presas, exiladas, elas têm que estar com a verdade. Era
negra - a amante. Os homens ficavam com as mulheres brancas. também o lance de ficar do lado do poder. Não sei porque nem
Eu me achava mais mulher porque era negra: ser negra tinha pontos que poder era esse. A minha relação com a Igreja, o ter sido ban-
contra, mas tinha um veneno, uma coisa que segurava o homem. Eu deirante, o fazer Medicina, eram coisas de fazer bem aos outros.
me achava potencialmente mais mulher que ela. Porque era negra. A esquerda era isso também: o bem coletivo. Mas com a Igreja
Era uma coisa fantasiosa, me achava melhor trepando. Eu era tinha uma coisa de eu ir buscar segurança. Com a esquerda, não.
1

negra, era diferente, era alguma coisa melhor. Acho que tinha uma Entrei no Movimento Negro. Foi aí que conheci a Carmem, a
propaganda subliminar. Os homens, o David, o Mário, o Roberto, primeira mulher negra que me deu uma culpa por eu ser negra e
cada um à sua maneira . . . eu achava que por trás dos elogios tinha ter o que tinha. E eu pensava que tinha o que tinha porque tinha
um elogio por eu ser negra. um marido branco.
1

52 53
Na Faculdade de Medicina o racismo era sutil. Mais ri- se restringe aos cuidados da maternagem, mas que se exerce, sobre-
gor com o negro, maior exigência. O negro é mais chamado à tudo, contra o incesto e suas conseqüências 13 •
atenção - temos alguma coisa diferente.
Através da avó, Luísa se depara, face a face, com a interdição:
Tive várias transações, transitórias todas, com caras brancos, não casar com preto/não casar com o pai. Aqui, a Lei retira sua
todos. Nunca se colocava a questão racial. legitimidade e justificativa dos pressupostos ideológicos aos quais
Jorge, meu marido, a família dele não me aceita. Ele assume serve: não casar com preto porque "preto não presta, é ladrão, é
sujo".
tudo. Me impõe sem assumir uma briga, uma discussão. Respeita
I i tudo o que faço. O Movimento Negro, por exemplo. Se é para o Luísa faz da sua vida o discurso da avó. O interdito se atua-
11 meu crescimento, então tudo bem. Ele me falou que nunca tinha liza na escolha do objeto amoroso que se dá de acordo com os
'1
: 1
pensado, nunca passou pela cabeça dele casar, transar uma mulher cânones da Lei que ameaça com a desgraça da castração (morte)
negra e que ele teve uma certa dificuldade, no começo, de me assu- aqueles que ousam transgredi-la. E Luísa cumpre a Lei. Ela não
mir. A gente quase não discute isso. quer perder o falo, atributo conquistado por identificação com a avó.
Todos os seus relacionamentos afetivo-sexuais são com homens
. . . E o Vitor: o mais bonito da turma, inteligente, difícil para brancos. Há duas exceções, no entanto. A primeira é Sabino, com
as mulheres, o homem negro que eu queria para viver uma experiên- o qual vivencia uma experiência inequívoca de incesto e o castigo
cia afetivo-sexual. A transa com ele foi frustrante, no geral. Ele imediato: "No outro dia foi terrível: acordei e foi uma sensação
não era esse homem que eu esperava. Não era também o potente terrível; pavor de ver aquele corpo que era igual ao do meu pai, foi
- fantasia da mulher branca e da mulher negra também, até minha terrível. Saí e não quis saber mais dele". Luísa vive o nojo/luto
também. Eu esperava um lance de dominação, mesmo. Esperava pelo objeto amado ambivalente que, em não podendo mais ser
até aceitando, mesmo. E não pintou. Ele não conseguiu nem tre- investido, se deteriora, se perde.
par comigo. Também teve uma coisa importante: ele me disse que
Vitor é o parceiro-cúmplice da segunda transgressão que não
a maioria das mulheres que ele tinha transado eram negras. Então,
se realiza. Aqui, antes que seja castrada, Luísa castra o parceiro.
pensei, se é assim, aquele veneno que eu acho que tenho. . . vai ser Tomando o papel ativo de castrar, ela exorcisa o perigo de ser cas-
1
uma prova, vai ter que surgir uma coisa verdadeira - se eu sou trada. E tudo não passa de um ensaio - "ele era o homem negro
esse veneno que eu queria ser, teria que ser porque eu sou Luísa, que eu queria viver para experiência afetivo-sexual" - um jogo,
independente de ser negra. uma peça de teatro invisível - não para o elenco do Inconsciente
- E a coisa do veneno por ser negra, como é que fica, Luísa? mas para os atores que fazem do campo da Consciência seu palco.
- Não sei. . . Talvez o medo de transar com crioulo, seja Identificada com o falo da avó, Luísa segue na sua busca de
1

por medo de ver que essa coisa não existe. objeto de amor. E, assim, desafia-se a si mesma na conquista de
um parceiro homossexual, passando, inclusive, a competir com ele
na conquista de outros homossexuais: " . . . - Ele passou a transar
com outros homens. Aí eu entrei numa competição: eu tirava um
ANALISE sarrinho, fazia jogo de sedução com os homens que ele transava.
Era um desafio essa coisa de seduzir um homossexual".
A avó materna de Luísa é a figura que ocupa o lugar privilegia-
A identidade com a avó é a condição de possibilidade que es-
do na constituição de sua história. Mulher fálica, é esta avó quem
trutura em Luísa uma base de sustentação onde assentar-se-ão os
exerce a Função de Pai enquanto representante e guardiã da Lei e
na medida em que se faz imagem da proteção ... Proteção que não 1. - LECLAIRE, S. O Corpo Erógeno. Rio de Janeiro, 1979.

54 55
!I
paradigmas e estereótipos fundamentais da ideologia hegemónica que sentação distorcida e minimizada que cada um elabora a respeito do
estabelece a maneira de sentir, agir e o jeito de ver a vida no âmbito outro.
das relações interraciais. O "escracho" é o substantivo usado por A representação pseudo valorizada encontra em Luísa um nível
Luísa para definir-se enquanto mulata e é também a inscrição que de recusa" que se expressa na negação radical de seu estatuto de
identificava aquela mulher "bem malandra, vivida, sacadora", que mulher. Então, se há que seduzir o homem, que isto se faça "pela
"andava com veados" e cujas fotos escancaravam seu "jeito debo- cabeça": "Me apaixonei pelo professor de Física. . . A forma de
chado" de ser. Mulher que fumava, bebia, se assumia como mãe sedução minha foi ser boa aluna - uma forma de me negar como
solteira, que "fazia coisas que não eram bem". mulher - seduzir pela cabeça, o que, aliás, sempre foi o meu
esquema".
O escracho, o deboche, o estar à vontade são comportamentos
que se propagandeiam, exigem e esperam da mulher negra. E, en- Na identificação com a avó, surge em Luísa um núcleo de desva-
quanto mulher subsumida a estas expectativas, Luísa reproduz a lorização contundente: acredita que, enquanto mulher negra, lhe cabe
imagem que tem da avó ao tempo em que cumpre os ditames sociais o lugar de terceira - o terceiro termo a ser excluído. Considera
que, como sua avó, a mulher negra é mulher sem companheiro:
1

'1 que normatizam seu comportamento e circunscrevem "seu lugar" -


"Fiquei achando que estava cumprindo o papel da mulher negra -
1

lugar de mulata, de mulher negra. Ser mulata é ser a mulher veneno,


a amante. Os homens ficavam com as mulheres brancas".
a melhor de cama, a ma.is sensual. Luísa acredita no que diz este
mito e a ele se submete: " ... antes que me peçam, dou logo". O Ideal de Ego de Luísa caracteriza-se por uma identidade com
o difícil, o nobre, o melhor, o branco.
Fixada numa imagem que a aliena, Luísa se debate num circuito
de desvalorização e pseudo valorização: " ... ser negra tinha pontos Criança ainda, aprendeu a depreciar, rejeitar e deformar o pró-
contra, mas tinha um veneno, uma coisa que segurava o homem ... prio corpo para configurá-lo à imagem e semelhança do branco.
A curtição ( de ser negra) é ser a mais tudo: a mais bonita, a mais Este, sim, era o belo, invejável, digno de consideração e apreço:
inteligente, a mais sensual". "Contam que eu falava muito sozinha, tinha amigos invisíveis, falava
na frente do espelho.. . Era uma sensação de me reconhecer, de
O primeiro objeto amoroso de Luísa é o signo desta ambigüi- identidade minha, de me sentir. . . me achava muito feia, me identi-
dade constituída pelo par valor (pseudo valor) x desvalor.,Ambi- ficava como uma menina negra, diferente. Todas as meninas tinham
güidade que é vivida em relaçãd à representação de si e do objeto. o cabelo liso, nariz fino. Minha mãe mandava eu botar pregador
David era o homem com quem vivia "maravilhosamente" na de roupa no nariz pra ficar menos chato. . . Eu era muito invejosa;
clandestinidade, às escondidas. A sós ou com íntimos, era "curtida" inveja do físico das pessoas. Achava que as pessoas eram muito
como mulher negra propaganda. Caso contrário, nenhum gesto de- mais bonitas que eu. . . Eu desprezava, não transava com os pretos.
veria denunciar qualquer intimidade. E Luísa fala da vivência emo- Os brancos, eu admirava, eram meus amigos. Minhas duas amigas
cional desta contradição: "Eu sofria porque ele não me assumia de infância eram judias - brancas mesmo".
pra fora, mas ficava contente porque, no fundo, ele me curtia." Luísa busca atingir seu Ideal de Ego. E torna-se aquilo que
Aceitando o jogo de desqualificação, Luísa compartilha da imagem denomina "negra-branca": uma negra diferente, com valores nitida-
amesquinhada que o parceiro tem de si. Por outro lado, este homem mente atribuídos ao branco numa intensidade maximizada. Ser inte-
branco, olhos azuis, bonito e cobiçado - a "grande aquisição" - é ligente, mostrar brilhantismo intelectual, "a coisa da glória nos estu-
visto por Luísa como uma pessoa estigmatizada e que se autodesva- dos" é a exigêacia que Luísa há de cumprir "pro resto da vida", o
loriza: "Ele tinha muito problema de identificação - "espiga de aval mais seguro para sua inserção no mundo branco. Seu percurso
milho" era o apelido que lhe davam. A maioria dos amigos dele pelo ginásio nos mostra isto de modo exaustivo.
eram negros". Aqui, o objeto amoroso é introduzido no mesmo Demarcada pela diferença que a separa dos negros comuns,
1

circuito que aprisiona Luísa. Ambos compartilham de uma repre- Luísa acredita que poderia ser aceita por si mesma e pelos outros,

56 57
poderia "se salvar": " (era) a primeira aluna da classe . . . Na mi- tinha pensado, nunca passou pela cabeça dele transar, casar com uma
nha turma tinha negros. Eram negros rebeldes, geralmente da fave- mulher negra e que ele teve uma certa dificuldade, no começo, de
la. Eu era negra-branca: eu era como aquelas pessoas mas não me assumir. A gente quase não discute isso."
queria ser igual a elas de jeito nenhum. Mas também eu não era Luísa logra conquistar uma identidade de mulher negra. Sua
como os outros, os brancos. . . Minha afirmação sempre foi o identidade, constituída de mitos e imagos, estrutura-se como sintoma:
estudo. . . Eu tinha nove anos . . . e já estava meio claro pra mim é um sistema opaco de desconhecimento e reconhecimento, marcado
que eu não gostava de pobre e de preto. Então, eu me sentia por todas as ambigüidades provenientes de sua origem imaginária. 2
superior a todo mundo: intelectualmente e porque não era tão Identidade feita de contradições, submetida às formações ideológicas
1
pobre ... " dominantes e sobredeterminada pela história individual e pela Histó-
E o negro com quem poderia vir a dignar-se a viver um relaciona- ria da formação social onde a primeira se inscreve. É com esta
i
I' 1 '
mento afetivo-sexual teria que ser como ela: "Para mim, um ho- identidade que Luísa toma consciência de suas constradições e tenta
mem negro tinha que ser especial. Ser muito melhor que o branco, participar da luta polftica que busca transformar a História e sua
se destacar, ser como eu. Teria que ser lindo! Muito bonito, muito história. E começa, iconoclasta, a demolir os mitos. Sua conclusão
inteligente ... " Não sendo assim, Luísa lhe concede apenas favo- acerca do relacionamento com Vítor testemunha essa nova consciên-
res, por piedade, "por caridade": "O Sabino foi o negro comum cia: ". . . A transa com ele. . . teve uma coisa importante: ele
me disse que a maioria das mulheres que ele tinha transado eram
que sempre me curtiu, estava sempre por perto, gostava de mim ...
negras. Então, pensei, se é assim, aquele veneno que eu acho que
Até que um dia, num gesto de caridade (ri), caridade, não, trepei
tenho. . . vai ser uma prova, vai ter que surgir uma coisa verdadeira
com ele".
- se eu sou esse veneno que eu queria ser, teria que ser porque eu
A escolha da profissão é outro lugar que está marcado pelas sou Luísa, independente de ser negra. . . talvez o medo de transar
diretrizes que orientam Luísa na consecução do Ideal do Ego. com crioulo seja por medo de ver que essa coisa não ,existe".
" ... resolvi fazer Medicina. . . Eu tinha que escolher a carreira
mais nobre, o vestibular mais difícil, a carreira que eu teria contato
com gente, fazer o bem. Pensei em ser Assistente Social a coisa
da religião mas não era nobre como Medicina."
Luísa nos fala de suas paixões. O fascínio amoroso que o
Sílvio lhe desperta nos demonstra os valores essenciais que consti-
tuem seu Ideal do Ego. Sílvio é o "negro-branco" que ela procura
em si e no outro: " . . . me apaixonei pelo Sílvio, o homem negro
Presidente do Diretório, paixão da maioria das mulheres, bonito, inte-
ligente, líder, casado". Este último qualificativo, uma constante das
suas paixões, indica a reprodução do triângulo edípico na escolha do
objeto amoroso.
Luísa casa-se com Jorge. É branco. Jorge representa a posse
do Bem que, na fantasia de Luísa, é absolutizado e mitificado como
elemento propiciador de todos os outros bens. ". . . conheci a Car-
mem, a primeira mulher negra que me deu uma culpa por eu ser
negra e ter o que tinha. E eu pensava que tinha o que tinha porque
tinha um marido branco." Sendo branco, Jorge está de acordo com 2. - HORNSTEIN, B. L. Teoria de las ldeologías y Psicoanalisis. Bue-
o veredito da avó. E não se discute isto. "Ele me falou que nunca nos Aires, Kargieman, 1973.

58 59
CAP1TULO VI

Temas Privilegiados
i
1

1
l'

1,

Ao colher as histórias-de- vida, escutei meus entrevistados fala-


rem de si. Num contato direto, vi e ouvi pessoas entristecerem-se,
i i
1 !
baixarem e levantarem a voz, calarem-se de repente, afogadas de
emoção. Vi sorrisos que, inequivocamente, ocupavam o lugar do
choro. Vi raiva, dor, perplexidade e, vez por outra, esperança.
Alguns temas ocuparam um lugar privilegiado no discurso dos
entrevistados e na minha escuta. Eles falam da representação que
o negro tem de si, das estratégias e do preço da ascensão social.
Este tripé constitui a temática que irá homogeneizar a despei-
to da heterogeneidade as histórias-de-vida dos entrevistados, ca-
racterizando-as como histórias de negros brasileiros em ascensão
social.
Aqui, de viva voz, eles se autodefinem, falam de suas fantasias
sexuais e do significado da condição de mulato(a), contam o que é
preciso fazer para "chegar lá" e para manter as posições conquis-
tadas.
Estes depoimentos que são objeto deste capítulo, sofrem aqui os
limites da transmissão escrita, que transforma em letra morta a
experiência pessoal, direta, libidinalmente viva.
Ainda assim, é legítimo escutá-los. Que eles falem então!

1. REPRESENTAÇÃO DE SI

1.1 - Definições

"Ser negro é ter que ser o mais." (Luísa)


"O negro é sempre negro. Ele terá sempre o processo de
discriminação." (Correia)

61
" Ele é mais primitivo, talvez. Primitivo no sentido de chato . . . o que é que as pessoas iam pensar. . . Quando eu via um
primário, primeiro: a emoção é primária à razão. Talvez o discur- negro, eu queria afastá-lo de minha frente - é claro, iria me per-
so racista tenha razão quando diz que o negro é mais emocional ... " turbar ... " (Carmem)
(Camen) - " . . . ser negra tinha um veneno, uma coisa que segurava
- "Uma amiga minha, judia, me dizia que nós tínhamos os o homem. . . Eu me achava potencialmente mais mulher que ela
mesmos problemas ( o do preconceito e discriminação). Eu dizia porque era negra. Era uma coisa fantasiosa - me achava melhor
que era muito diferente: o judeu, só se sabe se ele mostrar a Estrela trepando. Eu era negra, era diferente, era alguma coisa melhor ... "
de Davi. E o negro, não. Está na cara!" (Eunice) (Luísa)
'
1
- "Minha avó. . . dizia que crioulo, sobretudo o negro, não
11 prestava. 'Se você vir confusão, saiba que é o negro que está fa- - "O homem negro é mais potente. As mulheres brancas
zendo; se vir um negro correr, é ladrão. Tem que casar com um acham isso - acho que elas têm razão." (Natanael)
branco pra limpar o útero'." (Luísa) - "Meu pai era muito namorador - isso é coisa de crioulo ...
- "A cor mais visada como suspeito é a cor negra. Há uma Eu poderia me prostituir como homem. Seria fácil viver na Zona
tese na Polícia de que a maioria dos negros são assaltantes. Meus Sul como objeto sexual das mulheres brancas." (Correia)
colegas, na maior parte das vezes, só identificavam negro." (Natanael)
- "Entrei na Faculdade de Comunicação cheia de expectativas - "Nunca dormi com uma mulher branca. Nunca tentei e até
de transar a vida cultural, agitar a Faculdade. Agitei, logo de saída, recusei porque uma mulher branca queria dormir comigo e eu não
uma peça de teatro com debates. Entrei em contato com muita gen- quis. Tem até o estereótipo de que o negro é mais macho, é o
te, trabalhei pra caralho. Depois eu soube que o pessoal achava melhor. Eu não tenho nada disso." (Sales)
que eu era Polícia." (Carmem) - " . . . ele ( um parceiro negro) não era esse homem que eu
- ". . . o negro é o símbolo de miséria, de fome. . . a cor esperava. Não era também o potente - fantasia da mulher branca
(preta) lembra miséria... Acho que o que me faz sempre fugir e da mulher negra também ... " (Luísa)
do lance negro é o lance da pobreza: pobreza em todos os sentidos
- financeira e intelectual." (Carmem) - "Por muito tempo eu fiz o gênero 'crioula gostosa'. Tran-
" "Ser negro é ter que mostrar algo - é ter uma série de sava o lance folclórico do negro como o exótico." (Carmem)
espaços vedados e mostrar que pode atingir um nível mais alto, uma
cultura diferente." (Sales)
- "Eu fui barrado na porta do Conservatório Nacional de 1.3 - Representação do Corpo
Teatro e depois soube que o porteiro ( que era negro) teve vergonha
de eu ser negro e fazer sujeira por lá." (Correia) - " . . . Eu tinha vergonha do meu corpo. Eu queria transar
- "Na Bahia, fiz uma peça onde eu tinha uma fala assim: no escuro . . . Eu não gostava do meu corpo, dentro de uma coisa
'Eu sou o Presidente do Sindicato ... ' A reação do público foi me de ser negra. Corpo de negra, corpo de mulher tipo operário.
chamar macaco, veado, jogar casca de laranja. . . O negro não Isso sempre me grilou pra burro ... " (Carmem)
tem direito ao Poder, nem mesmo num palco, representando um - " . . . fiquei insegura quanto à minha aparência física. Acho
papel. . . " (Correia) que as pessoas não vão gostar de minha aparência. Sou grande,
mais gorda que as pessoas de minha idade. É também o lance da
cor." (Eunice)
1.2 - Fantasias e Estereótipos Sexuais
j, - "Apesar de toda minha consciência racial, não consigo ter
" ... eu tinha uma coisa (fantasia) de que todo negro que- tesão por crioulo. Tem que ser muito especial. Não transo com
ria me comer. Todo negro ia se aproximar de mim e ia ficar qualquer um. Transei com dois negros africanos. Senti dificuldade

62 63
de transar o corpo - com a luz apagada foi menos ruim. . . M. foi 2. DAS ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO
o único negro que me falou o que realmente ele sentia - e que
era o mesmo que eu sentia. Ele me diz que uma mulher negra 2.1 - Ser o melhor
de mini-saia, uma perna, uma buceta preta não dava tesão ne-
nhum . . . " (Carmem) - " . . . fomos morar em Copacabana, num edifício onde
éramos os únicos negros. Tudo de ruim caía em cima de nós.
- ". . . eu me achava muito feia, me identificava como uma Minha mãe ficava revoltada quando vinha uma queixa - a gente
menina negra, diferente. . . Todas as meninas tinham o cabelo liso,
tinha que ser perfeito. A gente dizia: ah! mãe, todo mundo faz ...
nariz fino. Minha mãe mandava eu botar pregador de roupa no
Ela, então dizia: 'mas vocês são pretos ... ' Em Cascadura era uma
nariz pra ficar menos chato. . . Eu era muito invejosa do físico das
vida mais solta, de rua, de moleque. Na Zona Sul, os limites: como
pessoas - achava que as pessoas eram muito mais bonitas do que
eu." (Luísa) se comportar, como deixar de se comportar. Ter que se comportar
melhor que os outros ... " (Carmem)
- " ... consegui entrar no Conservatório Nacional de Teatro.
1.4 - O mulato: ser e não ser negro No primeiro dia de aula, cochichos e piadinhas contra os negros.
Tomei a decisão de ser o melhor. E fui o melhor. Tive convites
- "No prédio, o cara que eu paquerava tinha o apelido de para lugares de ainda mais destaque e prestígio que o Conservató-
"carvãozinho". Era bem moreno, mas não era negro. Era lindo, rio ... " (Correia)
cabelos compridos, feições finas. . . Devia ter aí um lance de identi-
- "Eu tinha que ser a melhor, eu me exigia muito. . . Sempre
ficação: ele era negro mas não era negro ... " (Carmem)
fui a primeira aluna, no primário e no ginásio. (Na quarta série
- "Não tomo a negritude como uma causa, como uma bandei- ginasial) teve o Festival de Música e fui a melhor intérprete. E no
ra política, mesmo porque não sou negro de todo: sou mulato, nato, final do ano fui escolhida como a melhor aluna da turma. Depois
no sentido lato, democrático, sou brasileiro." (Alberto) resolvi fazer Medicina. . . Eu tinha que escolher a carreira mais
- "Meu pai dizia que a gente era rico. Minha mãe dizia nobre, o vestibular mais difícil ... " (Luísa)
que a gente era pobre. Eu achava que ser rico era morar naqueles - "Meu pai achava que a gente tinha que ser as melhores por-
edifícios que tinham brinquedos. Mas, também, não era pobre, por- que éramos pretas. Uma coisa que sempre me chateou foi que meu
que pobre era morar na favela. Aí eu não sabia meu lugar mas pai sempre trazia presentes educativos. Todo mundo lá em casa
sabia que negra eu não era. Negro era sujo, eu era limpe; negro tinha que ser o melhor aluno." (Eunice)
era burro, eu era inteligente; era morar morar na favela e eu não
morava e, sobretudo, negro tinha lábios grossos e eu não tinha. Eu
era mulata, ainda tinha esperança de me salvar ... " (Luísa) 2.2 - Aceitar a mistificação
- "Uma forma de fugir dessa coisa de não achar o peru do
homem negro bonito - e não é só o peru: é a bunda, é o corpo 2.2.1 - Perder a cor
todo - é sentir tesão por mulato. . . Isto é uma forma de escamo-
tear o problema. Mas tem o outro lado: é uma forma de eu me - "Eu estava crescendo como artista e então ia sendo aceito.
sentir negra, mas não tanto. . . não é tão identificado. . . O mulato, Aí eu já não era negro. Perdi a cor. Todo esse jogo era vivido
optei por ele como uma saída. Tem dois tipos: o que quer ser por mim de modo contemporizador. Eu não tinha como me con-
branco e o que quer assumir a condição de ser negro, mas negro frontar. Não discutia muito a questão. Ia vivendo. O racismo
diferente - aí se encaixa bem com a gente que somos negros dife- continuava. Eu era aceito sem cor mas eu ia vivendo. Esse jogo
rentes." (Carmem). era o meu jogo também." (Alberto)

64 65
1

I,
2.2.2 - Negar as tradições negras se integra ao meio de dominância branca que não satisfaz. É um
lugar onde tudo é uma prova, onde estão sempre te testando. Justa-
- "Meu pai foi o único dos filhos que ascendeu. . . Fez mente por ser negro tem sempre a idéia de um merecimento por
Licenciatura em Ciências e dava aula de Biologia no Santo Inácio. você estar ali. A gente sempre tem que ter uma justificativa pra
Ele sempre transou a religião negra - é babalorixá de candomblé, dar, por estar nesse meio. E tem o teste pra ver se a gente conti-
com todo intelectualismo dele. Ele me diz: 'você, crioula, fazendo nua merecendo. A exigência de ser o melhor é pra todo mundo,
Psicanálise! Psicanalista de crioulo é pai-de-santo'. É o único da pra toda a sociedade, mas os negros são aqueles que têm que
família a assumir esse lance. Não é uma questão folclórica. Ele assimilar isto melhor." (Carmem)
acredita mesmo. E esse é o grande câncer de minha avó: o filhó
dela, professor, é o macumbeiro. Ela faz de conta que não existe
a situação." (Carmem)

2.2.3 - Não falar no assunto


l

- "O David era louro de olhos azuis. Nunca me assumiu co-


mo namorada dele. Tudo era maravilhoso quando estávamos sozi-
nhos ou com pessoas muito íntimas . . . E eu nunca achei que fosse
nada racial. . . Nunca achei que devia discutir isso. Ele já era
1
uma grande aquisição minha porque era bonito, cobiçado e estava
,1 comigo!" (Luísa)
1
- "Jorge, meu marido. . . a família dele não me aceita ...
Ele assume tudo. Me impõe. A gente quase não discute isso."
(Luísa)
1.1
" é uma dificuldade discutir, nesse meio, (pequena bur-
guesia branca, intelectual) a questão racial. Há o pacto de que
'quase somos iguais' e assim é inoportuno, inadequado, perigoso,
discutir a questão. E há dois tipos de resposta desse meio à questão
racial: uma paternalista-mistificadora: 'ah, vamos discutir, sim.
Meu bisavô era negro, eu até me sinto negro ... ' e outra de nega-
ção: 'Não. Não vamos discutir isto.'" (Carmem)

,, '
3. DO PREÇO DA ASCENSÃO: A CONTINUA PROVA
'

- "O sentimento de rejeição existe. A nível da existência, no


dia-a-dia. Depois que eu adquiri consciência, eu tentei me impor -
pelo lado ntelectual, que é um modo de competição. A gente tem
duas opções pra não se sentir tão isolada: a gente se integra à
comunidade negra - e eu já estou fora dela há muito tempo - ou

66 67
CAPÍTULO VII

Metodologia

O universo da pesquisa limita-se ao Estado do Rio de Janeiro.


O eixo Rio-São Paulo representou e representa o pólo mais avan-
çado do capitalismo industrial no Brasil. Foi aí que o negro, ex-es-
cravo, teimando em permanecer na cidade, resistindo heroicamente
a ser banido para o campo, ingressou no processo de urbanização e
industrialização, vivendo suas injunções e conseqüências. 1
Através das ideologias de mobilidade social ascendente e de-
mocracia racial, a vida da metrópole, regida pelo sistema competi-
tivo que começa a se organizar, cria um conjunto de necessidades,
aspirações e insatisfações que incentivam o negro a lutar, junto com
outros setores da sociedade, pela conquista da ascensão social.
Eminentemente urbana, a questão da ascensão social, optamos
11
pelo Rio de Janeiro como unidade significativa para este estudo. A
outra razão pela qual esta escolha se fez em relação ao Rio é de
ordem pragmática: minha vida se desenvolve, no momento, no Rio
de Janeiro e sofre injunções que me impossibilitam, material e con-
cretamente, o deslocamento sistemático para outras metrópoles onde
poderia encontrar nuances diversas do mesmo problema investigado.
A ascensão social do negro brasileiro, no que tange aos con-
flitos emocionais daí decorrentes, foi analisada aqui, utilizando-se o
método do estudo de caso e a técnica de história-de-vida.
O estudo de caso é um método qualitativo de análise onde
qualquer unidade social é tomada como representativa da totalidade.

1. - FERNANDES, F. A Integração do Negro na Sociedade de Clas-


ses. São Paulo, Ática, 1978.
2. - FERNANDES, F. Idem.

69
1
"É um meio de organizar os dados sociais preservando O caráter particularmente na Antropologia. Mais recentemente, a Psiquiatria
unitário do objeto social estudado".ª e a Psicanálise têm-se utilizado das autobiografias para o estudo
Neste trabalho, a unidade está representada por dez histórias-de- aprofundado do seu objeto. Para citar apenas um exemplo, inves-
vida de negros que compartilham o fato de estarem vivendo um tido da maior relevância e significação, lembramos que Freud ela-
processo. de ascensão social numa sociedade multirracial, racista e de borou a teoria da paranóia com base no relato autobiográfico do
hegemonia branca que, paradoxalmente, veicula a ideologia de de- Dr. Daniel Paul Schreber - o famoso caso Schreber.5
1 ! mocracia racial, em contradição com a existência de práticas discri- As histórias-de-vida foram colhidas em sucessivas entrevistas,
1
,,
c10nanas racistas. cujo número variava de um a cinco para cada entrevistado. Esta
1
'1 O critério de escolha dos entrevistados deu-se com base nestas variação corria por conta das necessidades da pesquisa e das carac-
1

características: serem negros, viverem no Brasil e estarem em ascen- terísticas individuais das pessoas que se dispuseram a contar-me suas
sao social - e na disponibilidade para me contarem suas vidas vidas.
Quanto a ascensão, não importava o nível atingido nem a origem Algumas pessoas, num período de mais ou menos uma hora,
de classe destas pessoas. O que se levava em conta era a existência já se sentiam fatigadas, dando mostras do esforço empreendido nesse
da mobihdade social ascendente. trabalho tão mobilizador de afetos que é o de abrir-se a um outro
O estudo de caso coloca o problema da representatividade do naquilo que diz respeito à sua intimidade, conflitos, emoções, vida.
todo ª ser cumprido pela unidade. Tal questão se resolve ao apreen- Outras, no afã de "lembrar tudo", ofereciam-se numa profusão de
der-se o sentido de totalidade. "A totalidade de qualquer objeto _ detalhes e circunstâncias que nos levava a realizar sucessivos encon-
quer físico biológico ou social - é uma construção intelectual. tros, na tentativa de cobrir o percurso de suas vidas até o momento
Concretamente não existem limites que definem qualquer processo atual. O ritmo básico de cada um foi respeitado.
ou objeto. Assim posto, evidencia-se a impossibilidade de traçar Na quase totalidade das vezes,. entrei em contato com as pes-
limites de qualquer objeto social ou de afirmar-se em que ponto soas por telefone. Elas me eram indicadas por amigos e colegas
concluir a coleta de dados sobre o objeto delimitado Na áti
t r · co d . · pra ica comuns que sabiam da existência da pesquisa.
es e imite e dado pela compreensão do pesquisador face ao obj eto
de sua pesquisa. A partir do contato por telefone criou-se, em quase todos os
entrevistados, uma expectativa: a de que eu fosse branca. Alguns
. Deste modo, poderíamos ter estudado uma só ou n histórias-de- disseram-me isto com palavras. Outros, com atitudes. A idéia que
vida. Estudamos .dez. Dez não é um número cabalístico - aqui, perpassava e fundava tal expectativa era a de que "negro que sobe
pelo menos. Ele indica que ao fim da construção e análise de dez não fala de negro" ou, em outras palavras: faz parte das estratégias
histórias atingi o mvel desejado de compreensão do meu objeto de de ascensão aceitar a mistificação constitutiva da ideologia da de-
pesquisa. Nível de compreensão este que, obviamente, não me per- mocracia racial: somos uma democracia racial, não existe problema
mite conclusões a serem generalizadas mas me possibilita a elabo- negro, não há porque falar nisto.
ração de hipoteses que poderão vir a ser testadas por outros pes-
qmsadores ou por mim mesma, num outro momento. Em geral, depois de um telefonema onde me apresentava, fa-
lava em linhas gerais sobre o trabalho e convidava o futuro entre-
A história-de-vida é aqui utilizada como técnica de organização vistado a dar-me uma entrevista, esta se realizava. Houve, entre-
do matenal. Esta técnica tem uma tradição nas ciências sociais, tanto, um caso que, por sua singularidade, merece ser contado.

3· - GOOD, W. J., HATT, P. K. Métodos em Pesquisa Social. São


Paulo, Nac10nal, 1979, pg. 422. 5. - FREUD, S. Notas Psicanalíticas sobre um Relato Autobiográfico
4. - GOOD, W. J., HATT, P. K. Idem.
de um caso de Paranóia (Dementia Paranoides) (1911). Em Edição Stan-
dard, Vol. XII, Rio de Janeiro, Imago, 1969.

70 71
laremos logo mais. Elas também serviram como material ilustrativo
Através de um amigo comum, fiz contato com uma pessoa
que falava, com a linguagem do entrevistado, aquilo que a teoria
na verdade uma personalidade, por ser um dos raros negros em sua
profissão. vinha elaborar.
Uma das histórias-de-vida, entretanto, foi tomada separada-
Para conseguir o encontro, que não passou de um, precisei dar
mente, analisada em detalhes, constituindo um dos capítulos deste
nada menos do que quinze telefonemas, a maioria deles atendidos
livro. Tal fato se deve à riqueza ilustrativa da história de Luísa,
por sua secretária.
que traz em si o essencial de todas as outras e que conta, ainda,
À entrevista, tão gentil quanto desconfiado, colocou-se como com um refinado nível de elaboração da entrevistada.
colaborador que deveria ir-se abrindo à medida que eu me fosse O eixo central da análise organizou-se em torno do Complexo
provando digna de sua confiança. de Édipo, entendido e assinalado em sua função universal de ins-
Confessou-me - esta foi a expressão usada - que não espe-· tância interditória. "O Complexo de Édipo não é redutível a uma
rava que eu fosse negra e que quando me viu entrar, pensou com situação real, à influência efetivamente exercida sobre a criança pelo
seus botões: "essa moça deve ter alguma coisa na cabeça". casal parental. Ele retira sua eficácia do fato de fazer intervir uma
1:
instância interditória (proibição do incesto) que barra o acesso à
'1 Falou-me uma ou outra coisa de sua vida, dentro dos poucos satisfação naturalmente procurada e que liga inseparavelmente o de-
: !
minutos do seu preciosíssimo tempo. Vez por outra falava do amigo sejo à lei." Aqui o Complexo de Édipo é visto em suas relações
comum, pessoa da mais alta estima e consideração, responsável em com o processo de produção ideológica, no que toca a seu agencia-
última instância por aquele encontro, absolutamente único. mento psíquico - condição de possibilidade e eficácia da ideologia
Ao final da entrevista pediu-me para ligar, a fim de combinar- a nível dos sujeitos.
mos novo horário. Deixaria a hora com sua secretária. Assim o Partimos de uma hipótese: a de que o negro tem dificuldade
fiz e, depois de três ou quatro telefonemas infrutíferos, consegui de conquistar uma identidade egossintônica que o integre ao seu
1
marcar novo encontro. Encontro frustro. Em lá chegando, nosso grupo de origem e que o instrumentalize para a conquista da ascen-
1
nobre entrevistado tinha outro compromisso. Que eu ligasse outro são social. Numa sociedade de classes onde os lugares de poder e
1 dia para combinarmos de novo - este era o recado deixado (?) tomada de decisão são ocupados por brancos, o negro que pretende
1
com a secretária. . . Não era preciso. Nada mais eloqüente que ascender lança mão de uma identidade calcada em emblemas bran-
estas falhas, equívocos, esquecimentos. O Inconsciente fala assim. cos, na tentativa de ultrapassar os obstáculos advindos do fato de
"Para bom entendedor, meia palavra basta." "Escreva quem qui- ter nascido negro. Essa identidade é contraditória; ao tempo em
ser, leia quem souber." que serve de aval para o ingresso nos lugares de prestígio e poder,
o coloca em conflito com sua historicidade, dado que se vê obrigado
Estando em contato direto com as pessoas, eu falava da pes-
a negar o passado e o presente: o passado, no que concerne à tra-
quisa. Dizia que estava estudando a vida emocional do negro que
dição e cultura negras e o presente, no que tange à experiência da
ascendia no Brasil e, assim, gostaria que elas me contassem suas
discriminação racial.
1 vidas. O anonimato era garantido. Isso era tudo.
Com esta hipótese encaminhamo-nos para a elaboração de um
li As pessoas eram deixadas livres para contarem sobre suas vidas,
aparato teórico-conceituai específico, viabilizado pela articulação da
do modo que quisessem. A minha interferência fazia-se no mo-
Teoria das Ideologias com a Psicanálise.
mento e no sentido de escalrecer uma ou outra coisa que, num pri-
meiro instante, escapava ao meu entendimento.
As histórias-de-vida foram analisadas com o aparato conceituai 6. - LAPLANCHE, J., PONTALIS, J. B. Vocabulário da Pa :análise.
Lisboa, Moraes, 1970, p. 120.
fornecido pela Psicanálise e pela Teoria das Ideologias da qual fa-

72 73
A Teoria das Ideologias, teoria regional do Materialismo His- reprodução dos sujeitos-suportes, é o espaço privilegiado onde se
tórico, tem como objeto "dar cuenta dei proceso que desde la es- entrecruzaria a ciência do Inconsciente e a ciência da História. 11
tructura social global, a través de los aparatos ideológicos del estado, Aqui, o Complexo de Édipo foi o conceito capital que possi-
y desde las prácticas concretas en que un indivíduo se inscribe en bilitou a compreensão psicanalítica de um problema sobredetermi-
el proceso de producción, determina un universo de significaciones nado pela história de uma formação social específica e pela história
que hacen impacto com su estructura psíquica, dando como resul- da estruturação do sujeito-suporte dos efeitos ideológicos pertinentes
tado una ideología intemalizada". 7 a esta formação social.
A ideologia aqui é entendida como um sistema de represen-
tações, fortemente carregadas de afetos que se manifestam na sub-
jetividade consciente como vivências, idéias ou imagens e no com-
portamento objetivo como atitudes, condutas e discursos. A
ideologia é um dispositivo social que serve aos fins de organizar
um saber acerca dos mais diversos aspectos da vida humana, ca-
racterizando-se por ser compartilhada pela comunidade como um
todo, ou por um setor significativo da mesma, oferecendo coerência
a seus integrantes em tomo de crenças, fins, meios, valores etc. A
ideologia tem geralmente características muito abrangentes ( cosmo-
visão, por exemplo), forte conteúdo emocional (função de ilusão,
realização de desejos conscientes e inconscientes) e recursos de con-
vicção como a apelação à realidade dada pelos sentidos e compar-
tilhada por todos (consensualidade) ou a seu caráter eterno e
invariável ( conaturalidade) .8
A ideologia se viabiliza através do sujeito. "Só existe ideologia
através do sujeito e para sujeitos". 9 • Sobredeterminado pelas outras
estruturas do modo de produção e pela estrutura edípica, o sujeito
é o suporte dos efeitos ideológicos agenciados por leis inconscientes
que organizam o terreno subjetivo da instância ideológica. É aqui,
no âmbito ideológico, que a Psicanálise, ciência do Inconsciente,
encontra seu lugar de articulação com o Materialismo Histórico.
Elucidar o processamento da ideologia a nível subjetivo é tarefa
que se outorga à Psicanálise. 10
O Complexo de Édipo, organização libidinal que articula o de-
sejo e a lei, estrutura estruturante da personalidade e condição da

7. - HORNSTEIN, B. L. Teoria de las Ideologias y Psicoanalisis.


Buenos Aires, Kargieman, 1973, p. 25.
8. - BAREMBLITT, G. F. Comunicação Pessoal.
9. - ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado.
11. - HORNSTEIN, B. L. Idem.
10. - HORNSTEIN, B. L. Idem.

75
1
74
CAPlTULO VIII

Conclusão

1:

O negro brasileiro que ascende socialmente não nega uma


presumível identidade negra. Enquanto negro, ele não possui uma
identidade positiva, a qual possa afirmar ou negar. É que, no Brasil,
nascer com a pele preta e/ou outros caracteres do tipo negróide e
compartilhar de uma mesma história de desenraizamento, escravidão
e discriminação racial, não organiza, por si só, uma identidade negra.
Ser negro é, além disto, tomar consciência do processo ideoló-
gico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma
estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada,
na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta consciência e
criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças
e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração.
Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um
vir a ser. Ser negro é tornar-se negro.
Tornar-se negro, portanto, ou consumir-se em esforços por cum-
prir o veredito impossível - desejo do Outro - de vir a ser branco,
são as alternativas genéricas que se colocam ao negro brasileiro que
responde positivamente ao apelo da ascensão social.
A possibilidade de construir uma identidade negra - tarefa
eminentemente política - exige como condição imprescindível, a
contestação do modelo advindo das figuras primeiras - pais ou
substitutos - que lhe ensinam a ser uma caricatura do branco.
Rompendo com este modelo, o negro organiza as condições de possi-
bilidade que lhe permitirão ter um rosto próprio.
A outra possibilidade alternativa, possibilidade impossível, em
última instância, frágil utopia que reduz o negro a modelar-se segun-
do o figurino do branco, é aquela que, ao lhe acenar com um ideal

77
POSFACIO
1

inalcançável, engendra no negro uma ferida narcísica por não cumprir


este ideal.
Esta ferida narcísica e os modos de lidar com ela constituem a
psicopatologia do negro brasileiro em ascensão social e tem como
dado nuclear uma relação de tensão contínua entre Superego, Ego
atual e Ideal do Ego. A nível clínico, esta relação de tensão toma Digressões Metodológicas de um Colaborador
o feitio de sentimento de culpa, inferioridade, defesa fóbica e depres- Gregório F. Baremblitt
sao, afetos e atitudes que definem a identidade do negro brasileiro
em ascensão social como uma estrutura de desconhecimento/reco-
nhecimento.
Esta identidade, que em tudo contraria os interesses históricos e
psicológicos do negro, tem sido uma tradição na história do negro
Em repetidas oportunidades tenho tido o privilégio de orientar
brasileiro em ascensão social. Entretanto, a construção de uma
nova identidade é uma possibilidade que nos aponta esta dissertação, teses de jovens pesquisadores brasileiros.
gerada a partir da voz de negros que, mais ou menos contraditória Esta ocasião é para mim uma honra especial, que me entusiasma
ou fragilmente, batem-se por construir uma identidade que lhe dê duplamente.
feiçoes propnas, fundada, portanto, em seus interesses, transforma-
A promissora autora deste trabalho me concedeu sua preferên-
dora da História - individual e coletiva, social e psicológica.
cia para "catalisar" a pesquisa que realizou.
Agora me retribui o eventual apoio que talvez lhe pude· dar,
animando-me a adicionar estas linhas a seu livro.
Creio que esta participação só se justifica se não me limito a
um comentário laudatório.
Concluirei rapidamente com este propósito, dizendo que sinto
a maior admiração pela autora e pelo presente estudo. Creio que
o mesmo explora de forma fecunda as condições de produção que
preexistiam na pessoa e na conjuntura que o geraram.

1
Neuza é negra, mulher, militante e trabalhadora da Saúde
Mental.
Vive, luta, investiga, se forma e se transforma no Brasil, em
1982.
[1 Seus méritos se resumem a nada menos que tentar demonstrar
que, na luta que tem empreendido, devem se harmonizar várias vir-
i
tudes indispensáveis.
l
11

78 79
É necessário não renunciar a nenhuma delas, prevenindo assim do das multinacionais. Nunca será suficientemente denunciada a
os vícios que resultam de sua ausência, isolamento artificial e exa- soberba dos "super-homens arianos", tanto como a do "povo eleito
gero unilateral. de Deus". Sempre será prioritário impugnar as alucinações de uma
visão idiota para a qual Margareth Thacher é tão mulher quanto o
Trata-se de ser politicamente operativo sem cair no ativismo era Rosa Luxemburgo.
anárquico, no empirismo "pratiqueiro", na "moralzinha" liberal ou
no historicismo vulgar. Trata-se de procurar o rigor metodológico Torna-se até incômodo desmistificar a alegre estupidez que con-
sem incorrer na obsessão epistemologista, na metafísica formalista e segue achar alguma nota cromática em comum entre Fanon e Pelé.
no esteticismo gongórico, versões modernas, em "palavras cruzadas", Como encontrar alguma semelhança entre o catolicismo da
do cientificismo. Igreja Franquista e o dos terceiro-mundistas brasileiros?
Trata-se de trabalhar - indagar - , combater no seio das sin- Como superar o abismo que separa um certo obeso ministro
gularidades mais viscerais do Deséjo e do Socius: desde a raça, o de Federico García Lorca?
sexo, a faixa etária, a profissão, a nacionalidade, a classe . . . sem
esquecer jamais certos axiomas que definem as peculiaridades reais Mais do que inútil, é perigoso tratar de investigar essas séries
destes modos evidentes do ser. sem recursos formal-abstratos pertinentes. A certeza inflamada de
que eles podem "falar por si mesmos" é a medida exata da igno-
Trata-se de não ignorar que estas multiplicidades são formas rância de que, enquanto grupos submetidos, "são falados". E tam-
com limites, marcas, recursos, funções e produtos aparentes. Iden- bém, é claro, mandados sentir, mandados atuar etc ...
tidades empíricas que ainda esperam ser criticamente conhecidas.
Em suma: são "efeitos". A fé em um conhecimento que se auto-revela em algum tipo
idealizado de "consulta" é a introdução do acting out espontaneísta.
Quando conseguimos aceder à férrea lógica de sua materialidade Já sabemos sobejamente quem lucra com isto. Há somente um tipo
histórica, descobrimo-las sempre se atravessando mutuamente, se- de colaborar inocente que o Estado Burguês ama mais que aos hu-
gundo uma transversalidade que as integra em um universo não to- manistas: os libertários. Estes conseguem disparar a maquinaria
talizável que as sobredetermina. É ali onde se encontra seu ver- repressiva no lugar e no momento em que as forças revolucionárias
li dadeiro funcionamento, tão distante das declamações humanitárias ainda não sabem o que fazem, nem o que fazer para alcançar aquilo
!' como dos vômitos do ódio chauvinista. a que se propõem.
Pluralidade de processos, ao mesmo tempo desejantes e sociais, Porém, a partir de outro lado simétrico, jamais será suficien-
cujo curso é sempre, simultaneamente, reprodutivo de suas condições temente enfatizado que, em uma formação econômico-social con-
de produção específicas e também gerador de diferenças de novi- creta, não existe um lugar-à-parte-de-todo-lugar.
dade. No entanto, não é fácil avaliar a proporção em que cada uma
dessas forças conservadoras ou criativas compõem as idiossincrasias Se a "profissão" de intelectual ou cientista militante é suspeita,
mencionadas. como não haveria de sê-lo a Teoria, que também é uma Instituição?

Assim, o mapa infinitamente móvel de sua articulação jamais Nada nem ninguém está fora do sistema. Provavelmente por-
define as singularidades nacionais, de sexo, de raça e as demais como que o sistema não tem um dentro e um fora. A questão é saber
essenciais, circunscritas e homogeneamente reacionárias ou revolu- como funcionamos nele e como ele funciona em nós.
!

I', cionárias. São seus acoplamentos conjunturais que os constituem Por isso é importante ter presente que Objeto de Conhecimento
repressiva ou libertadoramente. não é Conhecimento do Objeto, assim como conhecimento produzido
1

11
I, Não é supérfluo recordar a alteridade radical que separa o na- não é ainda objeto transformado. Acrescente-se a isto a convicção
cionalismo rascista do socialista, ou o internacionalismo proletário de que nas disciplinas sociais, toda inteligibilização ( ainda que seja

80 81
uma prática específica) não é mais que um momento mais ou menos polívoca - revolucionária - esquizonte de nível molecular, e uma
médiato da transformação eficiente, e que cada passo envolve ine- repressivo-paranóide de nível molar. Cada singularidade será uma
xoravelmente o interventor, no processo. engrenagem que funciona como parte de equipamentos integrados
por dispositivos heterogêneos a serviço de uma ou de outra das lógicas
Cada singularidade precisa ser profundamente caracterizada para
citadas. Claro está que seu programa pode ser decodificado e aco-
ser reivindicada e, por sua vez, não a conhecemos senão no com-
plado revolucionariamente segundo uma remaquinação sinérgica com
promisso de mudar suas formas históricas "alienadas", mas nesse
processos concomitantes.
ínterim, a gente se conhece e muda nesse empreendimento. Tudo
isto requer um poder pensar sem preconceitos, porém também sem A partir de meu lugar, e de meu momento, me esforço para
o preconceito de que se pode pensar sem premissas. pôr à prova a potencialidade heurística, estratégica e organizativa
dessas propostas. Nada me permitiu, até agora. descartá-las ou acei-
Certas tomadas de posição com respeito ao. Desejó, à Produção,
tá-las integralmente.
ao Todo Social e à sua História são indispensáveis. Mas aqui se
abre o dilema entre vigilância ou dogmatismo, por um lado, e su- Talvez o que importa seja assegurar-se de que nenhuma das
peração ou revisionismo, por outro. duas ou qualquer outra sustentam a incognoscibílídade, a aleatorie-
dade, a fatalidade ou a intangibilidade do devir material.
A primeira coisa a assegurar é a coincidência no objetivo ten-
II dencial: o advento do Modo de Produção Socialista. Do mundo
sem exploração, sem dominação e sem mistificação, isto é o pri-
Um velho teórico militante costumava dizer-me brincando que, meiro e não o último passo. O caminho é longo e difícil e há
em matéria de teoria revolucionária, deveríamos comportar-nos como muitos trechos a percorrer acompanhado.
o faz a Receita Federal. Buscar uma espécie de "mínimo não tri-
Somente na transição sem fim para esses objetivos as singula-
butável" que possibilite receptividade heurística e aliança na luta
ridades acharão justiça para sua diferença no concerto do Eros Uni-
cognoscitiva, sem cair na confusão ou no ecletismo.
versal.
Por exemplo: pode-se sustentar a tese de que o Todo Social
Agora: o conhecimento, enquanto trabalho social, é perfectível
opera estrutural e dialeticamente. Como conseqüência será um es-
e acumulativo. Em complexa vertebração com o mesmo, os movi-
paço diversificado, articulado e hierarquizado. Procurar-se-á, então,
mentos revolucionários também o são.
identificar nele a contradição principal, a secundária, as acessórias,
as de ordem interior às anteriores etc. . . Tratar-se-á de identificar Por estes motivos, o já conseguido não é venerável nem irre-
instâncias últimas determinantes, dominantes e decisivas. Situar-se-á movível, e sim respeitável e defensável enquanto utilizável. Por isso
a singularidade estudada em sua condição de área complexa de cru- também é trabalhável. Uma iconoclastia frenética que nega tudo
zamento e superposição condensada e deslocada de autonomias re- ( ( especialmente suas dúvidas teórico-políticas) e pretende mudar tudo
lativas, de ideologias, aparelhos, estabelecimentos e assim por diante, que existe no mesmo tempo, não leva em conta os índices de inércia
para entender sua operatividade conjuntural. que tornam o desenvolvimento dos processos pendular e desigual.
A partir de outra leitura, neofuncionalísta "política", tentar-se-á Não ter estratégia nenhuma é ter uma má estratégia.
ver o movimento histórico funcionando como um só processo com Essa postura é tão destrutiva como uma ortodoxia despótica que
dois registros, social e desejante, protagonizado por uma rede de não se reprocessa constantemente, No melhor dos casos tenta nor-
acoplamentos maquínícos. Tais máquinas diversificadas por dife- malmente readequar-se a uma realidade que a ultrapassa apelando
renças de regime ( desejantes, sociais e técnicas), estarão historica- a esse ritual de anulamento chamado autocrítica. É esse fanatismo
mente polarizadas. Opor-se-ão segundo uma lógica produtiva - o que nos leva a desconfiar da inamovibilidade desses famosos fun-

82 83
<lamentos dos quais se diz terem sido "traídos" ou recuperados "des- Pode-se discutir até a fartura neste escrito que tipo de Mate-
de sempre". rialismo Histórico e que tipo de Psicanálise foram articulados para
dar conta do fenômeno que se denuncia: a assimilação fagocitadora
É a entelequização do instituído revolucionário.
da negritude no capitalismo.
Mas a iconoclastia radical, hipostasiando o momento da inter-
pelação negativa constante aos princípios nos conduz o outro tipo Pode-se questionar a articulação mesma, por exemplo: no que
de traição, o absolutismo do "revolucionário instituinte". se refere à relação entre Inter,esse Pré-consciente, Desejo Incons-
ciente, Classe Social e Identidade de Raça.
Como definir a política? Como a arte de fazer o impossível?
Como arte de fazer o prudente? Ou como o trabalho de fazer o Não vale a pena duvidar de que nossos analistas "oficiais" de
possível, todo o possível, porém nada mais que o possível? Bagé ( que como se sabe são analfabetos e agráficos) dirão sua frase
predileta "isso não é análise".
O bom é aquele outro que nunca é suficiente. O melhor é
inimigo do boni. Talvez nossos analistas de Versailles ( que são o complemento
No político há uma falsa oposição entre o cinismo dos "direitos amaneirado dos de Bagé) impugnem o uso da entrevista como ins-
autorais" e o das "ótimas intenções". O interesse dos primeiros é trumento psicanalítico. (Para alguns os ouvidos só funcionam por
demonstrar que todo o novo já existia no germen, ou seja, que seus trás de um divã.) Para outros o inconsciente· só fala se o interlo-
benefícios lhes pertencem ( vejam-se certas teorias da ideologia). O cutor está mudo, .dado o obstáculo de que não pode estar efetiva-
interesse dos segundos é provar que o que eles ainda não estão fa- mente morto.
zendo existir já poderia haver sido. Ou seja: que podem apro- Porém o que não se poderá desvalorizar é o que Neuza con-
priar-se sem reconhecimento do quanto já foi batalhado (vejam-se segue (menos que descobrir) ilustrar: a identificação com as insíg-
certas reflexões anarcóides sobre o poder) . nias do perseguidor, a adoção de sua posição subjetiva de classe, a
Burocratas e utopistas não são mais que duas faces de uma Mimesis fascinada de uma periferia com o centro despótico, a sub-
mesma moeda, que não paga o ônus de quem vive hoje no reino da missão dos simulacros ao Ideal, o maior sucesso da paranóia bur-
necessidade. Por isso, em matéria de produtividade e política há guesa-branca: a conquista da repressão que, no dizer de Reich, o
que aplicar aquela regra de 10% de inspiração e 90% de trans- próprio Desejo deseja.
piração.
O que verdadeiramente importa é que há alguns erros que
Permitam-me uma síntese irreverente: as amistosas querelas en- N euza procurou não cometer.
tre Marx e Freud não deviam incentivar as seduções de Nietszche,
Weber ou Bakunin. Mas isto não exclui a possibilidade de que os Não se quis aqui condenar a violência simbólica invocando uma
mesmos possam ser periodicamente convidados a "bater um papo". "natureza humana" ou divina "supostamente injuriada". Não se
pretendeu condenar a "escravidão" em nome dos "direitos humanos"
Sínteses apressadas fazem misturas hipócritas. Talmudismos da Democracia Burguesa. Não se fala aqui de expectativas de ascen-
eternos não ganham o reino dos céus. são como "pautas de consumo", ignorando a divisão social do tra-
balho e a posição da classe. Não se pretendeu pulverizar, homo-
genizar e tornar ubíquos os poderes, sem referi-los ao Poder do
III Estado. Não se sacralizou a singularidade negra inventando a fic-
ção do herói compactamente positivo. Em suma: não se pretendeu
Quem quer que venha a julgar o trabalho de Neuza deveria tratar o Inconsciente, nem a Linguagem, nem o Poder, nem os Va-
aplicar aquele critério da Receita Federal. lores, como algo externo à História ( entendida como transição e

84 85
transação de Modos de Produção). Em resumo: foi reconhecida e Bibliografia
retrabalhada uma herança gloriosa.
Porém o fundamental é que este estudo, manifestamente ou não,
!'
I! foi praticado a partir de uma filiação a um setor político do Movi-
mento Negro Brasileiro, atendendo a urgências que a companheira
1 1!
Neuza registra e com o qual contribui para resolver. ALTHUSSER, L. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. ln
1

Neste sentido, seu emprego acadêmico, assim como sua publi- Posições II. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1980.
i
cação e divulgação ulterior, serão valiosos por causas completa- BAREMBLITT, G. F. Comunicação Pessoal, 12 de maio de 1970.
mente estranhas às que movem os fabricantes universitários de papers BARTHES, R. Mitologias. Rio de Janeiro, Difusão Editorial, 1978.
ou os hipócritas denunciadores individualistas profissionais de salão.
Para ser Lênin ou Foncault não basta ser agitador. BASTIDE, R. & FERNANDES, F. Brancos e Negros em São
Paulo. São Paulo, Nacional, 1959.
A partir de minha humilde singularidade de militante científi-
co (?), h.omem, judeu, argentino, que faz o que pode contra-dentro- CARDOSO, F. H. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional.
do sistema, me permito congratular a autora, dizendo-lhe: "Missão Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
Cumprida". FANON, F. jEscucha, bianca! Barcelona, Nova Terra, 1970.
Claro que ela mal me escuta. Já está envolvida em outra FERNANDES, F. A Integração do Negro na Sociedade de Classes.
investigação. São Paulo, Atica, 1978.
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1
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