A Presença Da Forma Trágica PDF
A Presença Da Forma Trágica PDF
A Presença Da Forma Trágica PDF
Rio de Janeiro
Julho de 2010
Souza, Ricardo Pinto de.
A presença da forma trágica / Ricardo Pinto de Souza. – Rio
de Janeiro: UFRJ/ FL, 2010.
ix, 240f.: 31 cm.
Orientador: Eduardo de Faria Coutinho
Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras / Programa de
Pós-graduação em Ciência da Literatura (Literatura Comparada), 2010.
Referências Bibliográficas: f. 228-240.
1. Tragédia Grega. 2.Idealismo Alemão. 3. Filologia Clássica I.
Souza, Ricardo Pinto de II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em
Ciência da Literatura III. Título.
ii
A presença da forma trágica
Ricardo Pinto de Souza
Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho
Examinada por:
Rio de Janeiro
Julho de 2010
iii
RESUMO
SOUZA, Ricardo Pinto de. A presença da forma trágica. Rio de Janeiro, 2010. (Doutorado
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
iv
ABSTRACT
SOUZA, Ricardo Pinto de. The presence of tragic form. Rio de Janeiro, 2010. (Doutorado
em Ciência da Literatura (Literatura Comparada). Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
This is a study of the reception of Greek tragedy in German idealism. There’s the
reading of some plays written by the three Greek tragedy writers, Aeschylus, Sophocles and
Euripedes, and the presentation of some of the themes in these texts, such as loneliness, the
relationship between man and god and man and community and the clash of moral values.
This reading follows the way tragedy has been understood in German idealism, especially
in Hegel’s and Hölderlin’s work. Our aim is to understand how a reflection upon otherness,
which is the way we understand the idealistic dialectics, is related to an art form, the
tragedy. This otherness, the realm of negativity, is something that must be confronted in a
first moment so that later there may be a possibility of reconciliation, of reunion of the
isolated individual and the absolute. The hypothesis is that the tragic form was used as a
theoretical model or at least as an inspiration for the building of this thought. We also refer
to the work of philologists born at the end of nineteenth century, such as Werner Jaeger,
Karl Reinhardt and Bruno Snell among others, who use in their work the idealist thinkers’
ideas and concepts. This is a way of mediating the literary and the philosophic discourse.
We also considered the relationship between philosophic and poetic discourse by referring
to Plato’s banishment of poetry and mimesis from his Republic. There’s a chapter dedicated
to each of the Greek tragedy writers, a chapter turned toward the study of Plato’s
banishment of the poet from his politeia, and finally a chapter on the theory of tragedy in
German idealism.
v
SINOPSE
Hegel e Hölderlin, e pelos filólogos da geração de eruditos nascidos em fins do século XIX,
que em sua leitura dialoga com a tradição idealista. O objetivo é recuperar os temas desta
vi
Para Iza e Chloe, para meus pais e minha irmã, nisso que salva.
vii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
3. SÓFOCLES
3.2. Electras 85
4. EURÍPÍDES
viii
5. PLATÃO E A EXPULSÃO DO POETA
7. CONCLUSÃO 222
8. BIBLIOGRAFIA 228
ix
INTRODUÇÃO
A tragédia nasce em Atenas no século VI a.C (os primeiros festivais ocorrem por
volta do ano 530), como uma prática relacionada aos ritos de Dionísio durante cinco
dias do mês de março, chega a seu auge após a vitória grega sobre os Persas em 480, e,
morte de Eurípides em 406 a.C. talvez seja um marco adequado para o fim do gênero
enquanto prática festiva e pública, acima de tudo enquanto prática textual que se renova.
Temos então cerca de noventa anos entre o surgimento das primeiras peças de Ésquilo e
a morte de Eurípides.
Das centenas de obras produzidas neste período, os pósteros puderam ler trinta e
deste corpo não é arbitrária a princípio: Ésquilo, Sófocles e Eurípides teriam sido os
autores mais populares (e o que significaria isto para a Atenas clássica?), além dos mais
respeitados pelos antigos. As peças que sobreviveram teriam também sido as preferidas
pelo público do período, e sua sobrevivência logo após a morte dos autores se deve
preservação destas obras geração após geração por cerca de 2500 anos, e, mais que isso,
sua influência constante sobre o pensamento e o sentimento dos homens que chegaram a
presente como uma constante fonte de renovação espiritual, seja através de sua
representação e leitura, ou meramente através daquilo que gerou com sua sombra, o
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pensamento trágico, aponta para que o que estes três escritores gregos produziram há
tanto tempo atrás fala a alguma dimensão fundamental do ser humano. Por mais que
respeito quase pânico que a Europa pensante tem em relação à cultura grega de um
modo geral, é difícil não utilizar a definitiva palavra “universal” quando nos referimos
ao alcance desta literatura. Sua centralidade na cultura ocidental só é par com a desta
imaginação plástica – nos três casos concepções únicas da cultura grega do período.
Dito isto, talvez não seja um mistério tão misterioso assim, nem milagre, nem
menos uma pequena fração extremamente representativa do conjunto desta obra, tenha
escapado à derrisão.
Mas de que derrisão a tragédia escapa? Pois ainda temos o interesse escolar por
uma boa parte da cultura grega, e ainda mantemos como uma presença fantasmal uma
esforços dos que vieram após o fim da antiguidade pôde ser salva e registrada. O
estatuto do texto trágico é nitidamente diferente. Ele não se esgota no interesse, nem se
estabelece simplesmente através do gosto pelo exótico e pelo distante, tampouco por
nosso amor ocidental pelas idéia da Grécia. A tragédia é, ainda, um modelo que nos
presença que precisa ser emulada, distorcida e superada (cf BLOOM, 2002). Assim, o
texto trágico é ainda algo que a literatura e a cultura modernas tentam emular.
Estranhamente sua sombra não pesa, e por mais que a legibilidade destes textos seja
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comprometida pelo tempo, ainda dialogamos com eles como com contemporâneos. Esta
tese tentará reconstruir a partir de uma leitura do texto trágico um momento desta
início do século XX. É uma discussão difícil, mas que tem o mérito de ser
realizar uma leitura da tragédia a partir de autores como Werner Jaeger (1888-1961),
Gilbert Murray (1866-1957), filólogos e scholars nascidos em fins do século XIX e que
constroem uma Grécia que dialoga com aquela que inspirou as obras de Hegel, de
construída no campo do idealismo alemão do século XIX. Assim, neste estudo haverá
campo com a Grécia trágica que interessou à tradição do idealismo não é algo
expectativas que a filosofia deitou. Em alguns momentos do trabalho haverá uma leitura
proposta, mas um gesto inevitável considerando a atração que a tragédia exerce sobre
qualquer leitor.
concentrar principalmente em dois aspectos das peças, que parecem estruturar a leitura
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especialmente de Hegel e de Hölderlin. O primeiro é a solidão do herói trágico, a
próprio para seus atos e sentimentos. A solidão humana, neste caso, se relaciona a duas
comunidade, da lei positiva dos rituais e costumes. Em ambos os casos o texto trágico
resultado do confronto é geralmente aniquilante, mas seu sentido passa sempre pela
valores. Nas palavras de George Steiner, em seu livro Antigones, muito maior e mais
ambicioso que nosso trabalho, mas que parte de uma proposta muito próxima:
A prescrição ética de Kant sobre o valor absoluto que um ser humano deve assinalar a
um outro, a luta epistemológica heróica de Fichte com a “contra-presença” dos outros
eus e a paradoxal necessidade desta presença para qualquer sistema inteligível de
liberdade e sociedade, a famosa dramaturgia da realização da consciência através do
encontro antagonístico com o outro, – todos são derivados do axioma da solidão e na
esperança de que possa ser, parcialmente, rescindida. (STEINER,.1984: 15)1
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A filologia do fim do século XIX vai utilizar o pensamento idealista como um
ponto de referência, e se manter nos contornos das conclusões a que Hölderlin e Hegel,
descrevem o trágico em termos muito próximos daqueles utilizados por Hölderlin, como
mundo e do homem. Autores como Cornford ou Gilbert Murray seguem de perto uma
trágico como um problema de conflito de valores. Já autores como Jaeger, Bruno Snell
ou Paul Friedländer utilizam uma teoria dialética que tem início em Hegel, e sua
descrição da cultura grega circula pelos temas de uma história do espírito (Jaeger e
Bruno Snell), ou de uma fenomenologia (Paul Friedländer, em seu caso já mais próximo
uma alteridade radical que isola o indivíduo e que tem de ser superada. Esta alteridade
pode tomar várias conformações no texto trágico, pode ser o divino, o direito, os valores
do outro, mas está sempre presente de forma tensa. Vamos nos referir a esta palavra,
tensão, muitas vezes ao longo do trabalho. O termo não deve ser entendido como tensão
narrativa, como quando um autor cria um elemento de mistério na trama para aumentar
uma matriz espiritual, é comunicação sensível de uma forma, uma idéia, um conceito.
Isso, por um lado, faz com que a tradição filológica do fim do século XIX tenha como
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representação de valores na forma trágica, mas por outro lado produz uma cegueira
constante para aspectos ligados a questões antropológicas que formam o cerne da leitura
O texto trágico vai surgir para a Alemanha do século XIX como um caminho
para criar identidade. O que autores como Lessing, ou Goethe ou Schiller buscavam em
sua leitura dos gregos era obter um atalho para a grandeza que um espaço de fala alemã
aquilo que uma jovem intelectualidade alemã imagina como o potencial próprio de sua
língua e cultura. A pretensão inicialmente é encontrar uma medida para o bom-gosto, ter
um parâmetro para medir a própria cultura. O objetivo, no entanto, não é recriar uma
próximo a ser emulado por estes jovens autores. Como afirma Roberto Machado em O
Para se formar o bom gosto na modernidade é preciso voltar aos gregos, o artista
moderno deve antes de tudo imitar as obras-primas ... A imitação dos antigos, no
entanto, não é um fim em si mesmo, é um meio de se chegar a uma reprodução do real
mais rapidamente. (MACHADO, 2006: 15.
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preocupações, mas sim aquilo que esta forma literária legou em termos de visão da vida
alemã se confundiriam com os da filosofia alemã. Hegel, especialmente, com sua leitura
posteriormente, a importância que este pensamento teve para nossa própria visão de
mundo, sempre circulou como um fantasma pela Europa. Esta presença trágica não pode
legitimação para ansiedades modernas. Há uma força literária na tragédia que a mantém
enquanto forma atual, a mantém como literatura com a qual nos identificamos, e os
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Schopenhauer concebe a filosofia como exercício de transfiguração. A derrisão a que o
assassinato redutor de seus fantasmas. Mas, a tragédia não é redutível, nunca chega a se
sermos devorados.
Não terá sido exatamente isto que se dá com o pensamento trágico, de quando a
tenta com Hegel instrumentalizar o texto trágico para incluí-lo em seu domínio e acaba,
sentido atribuído pela filosofia do idealismo, nem sua tarefa será possivelmente a
origem do drama barroco alemão (BENJAMIN, 1984), optando pela última como um
mecanismo de representação mais adequado aos problemas modernos, talvez seja isto
que esteja em jogo. Mesmo que ainda possamos nos referir à representação de uma idéia
a hierarquia que estabelece que a representação se volta para fora do homem particular
capacidade de um absoluto, além do desejo deste absoluto. E talvez seja este o vírus que
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o trágico inocula na filosofia, a possibilidade de que no palco, nas palavras, na imagem,
seja o transitório e o finito que fique registrado, e não o infinito, que uma
felicidade, entre eu e outro deve ser mantida sem nunca ser interrompida.
alteridade no idealismo. Este outro pensado, que deve ser tocado para permitir a
filosofia a partir de Nietzche vai conceber é que este processo não se interrompe, que
ele não é o meio para um fim, mas a própria dinâmica inesgotável de um estar no
mundo do homem, que se justifica por si, e que o pensamento deve acompanhar esta
dinâmica se quiser se manter vivo. Na dialética de Hegel isto já está previsto, embora na
pensamento mais próximo a nós. Nosso trabalho vai tratar do momento anterior a esta
passagem, mas que a prepara de uma certa maneira, se concordarmos que a base da
através do choque com o negativo, a alteridade. Vamos nos ater a este momento, o que
já é a fuga de uma estética simbólica. Por outro lado, a obra de Walter Benjamin, como
um meio-termo e uma ponte entre o idealismo e uma concepção mais próxima a nós do
vamos aprofundar nos próximos capítulos, é que a tragédia figura uma dialética entre
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identidade e diferença, entre proximidade e distância2. Há na tragédia uma dialética
que permite a proximidade sociável, que são os ritos públicos de união, de funeral, de
trágica, profanados para que sua função, e, especialmente o papel do homem nestes
âmbitos, seja repensado. Esta profanação é dialética, e nasce de uma leitura específica e
nova que a Grécia, ou pelo menos a Atenas do século V tem sobre a realidade e o
sentido do humano. O liame dos ritos públicos existe através da repressão daquilo que
seja ambição individual e desejo sem medida. A hybris, elemento estrutural que faz a
fábula trágica se mover, se refere então a esta energia reprimida que a existência social
pólis. É este campo negativo que a tragédia põe em movimento na figuração do exílio,
pontuais de uma trajetória, após os quais ainda é possível uma religação, um regresso –
tem de distinto é entender este regresso e esta memória como elementos possíveis, mas
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A história de Édipo ou do ciclo dos aqueus com Agamêmnon e Orestes, é
que a solidão humana é intrinsecamente desastrosa, é porque temos, pela primeira vez,
conceber idéias e noções que sejam válidas para todos os homens, passa
surge como uma linguagem, como a forma de comunicação do homem com o divino,
como a mediação problemática da solidão humana com os valores de que este homem
está isolado. Em Hegel esta é uma dialética entre família e pólis, entre os valores mais
Em Hölderlin temos uma dialética entre um grande indivíduo, o herói dotado do fogo
natureza. Em ambos os casos esta dialética deve gerar uma reconciliação, uma
transformação de valores que aponte para um novo estado, para um novo equilíbrio.
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que possa alcançar o universal, que possa não ser apenas um indivíduo singular e
unilateral, mas que consiga sensivelmente atingir o ideal. Pensar este homem universal
ainda não está. E este distanciamento do familiar, por sua vez, envolve pensar o
O que a tragédia faz é dar forma à ansiedade deste abandono utilizando algumas
fábulas tradicionais. Mas, se um dos impulsos para a forma trágica é este temor diante
de um homem isolado, o resultado tem um alcance muito mais amplo do que isto. Na
universal, que pode ser medida do humano e não apenas de si mesmo e de sua
comunidade.
familiar gera seu negativo, na figuração do expulso e do estrangeiro. Mas esta figuração,
por sua vez, modifica as condições da proteção familiar. A paixão dos heróis trágicos
que o universo familiar cesse de ser a base sagrada da existência humana, mas este
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universo se abre ao estrangeiro como elemento a ser interrogado, apropriado e,
um império ateniense após a última invasão persa. Esta não é uma preocupação
condição dúbia dos heróis trágicos no que se refere a sua pátria. Édipo é um estrangeiro
falso e um falso conterrâneo, um tebano que se crê coríntio, um coríntio que “adota”
Tebas apesar de seu destino ditar que será expulso duas vezes desta terra. Medéia é a
esposa estrangeira de um herói estrangeiro, perdida em uma terra que deseja anular o
rito sagrado que a uniu a Jasão e exilá-la e a seus filhos. Filóctetes sofre sozinho em
uma ilha sem ter a quem chamar de irmão. Egisto, o amante de Clitemnestra, é um
aqueu que quer destruir sua própria linhagem, Orestes é o exilado que retorna e que em
vários momentos pode ser visto sob o manto de um estrangeiro, seja quando se disfarça
para matar sua mãe, seja quando, exilado e perseguido pelas Fúrias, chega ao Areópago.
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Agamêmnon que se apieda da rainha troiana Hécuba e contribui para que ela realize sua
destino do argivo Orestes. Este é um bom símbolo da síntese política que nos oferece a
tragédia: Orestes, exilado em terra estrangeira, é justiçado e perdoado não por sua
comunidade, mas por estes outros a princípio não comprometidos com seu sofrimento.
a crença de que a tragédia representa um conflito que deve ser superado, em que os
valores éticos em oposição devem se transformar para gerar um novo momento, mais
universal.
século V, permanecerá um tema de toda tradição após os anos do ciclo trágico grego.
Seus termos serão adequados e atualizados para cada época e lugar, mas seja em
moral do ser humano, ou seja, a interrogação pela medida mais própria do que seja a
ação humana, sempre retornará quando nos referimos ao trágico. E é esta dialética que
permitirá, através de uma longa linha de transformações, que a forma trágica dê origem
a uma filosofia do trágico e a uma filosofia trágica, como viriam a exigir Peter Szondi,
Walter Benjamin ou Adorno. Será esta forma que nos permitirá, finalmente, falar em
um espírito trágico.
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Mais à frente trataremos mais especificamente da leitura do idealismo sobre o
trágico; por hora gostaríamos de apontar que a dialética entre o indivíduo e o universal,
entre o absoluto e sua formalização, que a tragédia grega representa pelo confronto do
a. C. O esforço de nosso trabalho será tentar recuperar parte das questões que o
tragédia como forma, como prática textual, que tem o papel histórico de estabelecer um
estritamente distinta. A literatura tem o dever de ser linguagem pública, o que vale
dizer, linguagem que refere constantemente a uma identidade e que atende à vocação
concreta de jamais se afastar demais da vida, real ou sonhada, dos homens. Isto obriga o
literário a ser mimético (ou talvez a mimese obrigue ao literário), mas esta mimese não
é totalmente livre, é um jogo que tem suas regras. Acima de tudo, a literatura tem um
compromisso com a beleza, o que define e limita o tipo de conhecimento que chega a
23
moral do produto literário, como a impossibilidade de que o conhecimento poético
gerado pela literatura seja aceito pacificamente: ele é sempre questionável, sempre. A
maneira como o discurso literário tentou compensar esta última fragilidade foi se atar a
uma concretude emocional e sensível da vida dos homens. Aquilo que ela carece de
certeza compensa com um dom oferecido, a aposta, mais ou menos correta, de que o
vagar cego do homem pelo mundo, embora seja o lugar da incerteza, possui uma
O discurso filosófico tem suas próprias questões e limites, mas o dom que tenta
criar é outro. Seu problema de saída é a condição de verdade daquilo que afirma, e,
o tipo de produto do discurso filosófico tem a pretensão de ser permanente, de ser uma
humana: a dignidade não está no humano em si, em todo o humano, mas naquilo que é
passível de permanecer, naquilo que é imutável. Conforme nos informa João Camillo
se liberar da tradição metafísica, a filosofia ainda está afastada da prática mimética que
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a literatura estabeleceu como sua forma por excelência de expressão, e que a obriga
uma prática essencial na literatura, ou ao menos é uma tradição tão poderosa que se
impõe como uma natureza. No caso da filosofia, Platão baseou sua escrita na forma
forma de preparar a discussão filosófica. Então, embora na filosofia esta fabulação seja
marginal, ela é ainda assim admissível. A mimese, por outro lado, é um corte entre os
discursos. Mas, enquanto a literatura torna a mimese sua prática mais comum, a
argumentativo que visa chegar à verdade. A representação é admissível, desde que ela
conduz a um ponto de decisão em que aquilo que é representado aponte para o uno, para
o universal, o essencial.
aí, talvez apenas uma revelação, já distinta da revelação metafísica, que aponta
25
constantemente para um resto, um produto da prática textual a ser sempre buscado e
perdido. A revelação literária ocorre de tal maneira que este resto possível é diluído na
própria forma. Uma rosa, por qualquer outro nome, continuaria sendo rosa. O “sentido”
da rosa é o outro nome que lhe damos, que, sim, tautologicamente aponta para a
primeira rosa.
consegue praticar (e não deseja, é averso a). Ainda que este sentido buscado seja
obsessão. Daí que, pelo menos até Nietzsche, o discurso metafísico é também
discurso filosófico, e o prazer bastante concreto que eles geram através de sua
representação, assim como seu lugar devido em uma possível ordem cósmica, são um
ponto cego. Para o literário, ao contrário, este campo daquilo que é o contrário do bem é
uma presença bastante concreta, inescapável, na verdade. Já que o discurso literário não
se obriga a tirar nenhuma conclusão dela, sua representação pode ser gratuita, ou seja,
pode ser realizada sem que se chegue a uma decisão sobre as conseqüências dessa
presença para a ordem do mundo e do homem. Não seria possível para um poeta chegar
ao tipo de decisão a que Descartes chega ao pensar sobre o sentido da realidade e afastar
a possibilidade de que um “gênio maligno” esteja por trás da ordem das coisas. Na
verdade, não seria nem uma questão quando ele fosse representar essa ordem, pois o
poeta não se preocupa em dizer o criador, não mais, ao menos, do que em dizer o
contrário da criação também. Isto não quer dizer que não haja ideologia ou fé a sustentar
26
uma obra, mas sim que o próprio funcionamento do literário, com seus tropos e práticas
paraíso, um tão intenso quanto o outro. O que isto diz do universo em que os dois
lugares são possíveis fica por conta de quem lê. Mas uma das conclusões possíveis é
que o Grande Deus que os sustenta não é lá um sujeito muito legal. O sentido possível
não é algo que necessariamente leve ao justo, ao bom, ao feliz, pois na obra literária o
contrário destes valores tem a mesma intensidade. E, acima de tudo, o sentido é uma
potencialidade, sua atualização não é exigida, ou pelo menos não é exigida para que o
que, na representação, pode ser recuperada. Neste sentido, a reflexão sobre a tragédia
durante o período em que vamos nos deter a imagina sempre como a expressão
sofrimento, mas cria um ponto cego para uma materialidade da obra de arte, para a
possibilidade de que haja na obra de arte um outro mecanismo que não seja a produção
preocupação se refere ao evitamento deste campo, como ser justo, como ser bom, como
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ser feliz. Isto significa que diante do mal o discurso filosófico se limita a dizê-lo
sempre crises, sempre cortes no real que devem ser cauterizados, o que quer dizer,
silenciados, desviados.
Mas, e se o mal não for negatividade? Se for uma das potências que organizam a
devemos modalizar: a representação literária não responde a uma pergunta, não tenta
possamos dizer: ela apresenta resposta a uma pergunta que não foi feita. O que temos
diante de uma peça como Agamêmnon, por exemplo, em que o representado é o mal
sofrimento, por uma interrogação à realidade, ou por um prazer, que se confunde com
um dever de ofício, de imitar o sofrimento pura e simplesmente porque ele está lá?
Quando Platão expulsa o poeta esta é uma das coisas que está em jogo, a
sua mera existência, simplesmente por estarem lá. Isto não quer dizer que o discurso
literário não respeite uma ordem ética. Apenas esta ordem ética não adere: podemos
condenar Macbeth – e a fabulação de Shakespeare visa isto –, mas sentimos prazer com
e por Macbeth, e este prazer não atende a uma ordem moral, não atende à unidade ética
necessária entre belo, bom e conhecimento. Sentimos prazer em ver Macbeth, seus atos,
sua perversão, sua queda. Caso ao fim da peça ele se tornasse rei da Escócia,
acreditamos que nosso prazer não seria menor, não porque “gostamos” de Macbeth, mas
28
sim porque suspeitamos que haja um sentido não-óbvio diante do que vemos, e, acima
de tudo, nos satisfazemos com que esse sentido se perca na memória do que vimos, se
a realidade pensada pelos filósofos e a realidade pensada pelos poetas. Autores como
Hegel ou Schelling, ou, de resto, qualquer dos grandes nomes por que passaremos aqui,
são imensos e possuem obras francamente muito além de nossa capacidade de abarcá-
las. Mas estes mesmos gigantes que tentaram pensar a realidade de cabo a rabo se
rompido, que aproxima suas idéias e seu discurso da prática textual literária. O trágico é
uma possível conciliação da filosofia com este homem real naquilo que ele tem de
1
Tradução própria do original em inglês:
Kant’s ethical prescript as to the absolute evalution which one human being must assign to another,
Fichte’s heroic epistemological struggle with the ‘counter-presence’ of the other selves and the
paradoxical necessity of this presence to any intelligible system of freedom and society, Hegel’s famous
dramaturgy of the achievement of self through antagonistic encounter with the other – all are derived
from the axiom of aloneness and the hope that this action can be, partially, rescinded.
2
A inspiração para esta leitura vem do comentário de Derrida sobre Levinas em Adeus a Emmanuel
Lévinas, especialmente uma certa dialética da hospitalidade e do outro, do rosto, como fundação do
pensamento. Nos desviamos desta leitura e não vamos retomá-la ao longo do trabalho, mas nos pareceu
justo indicar sua seminilidade. (cf DERRIDA, Jaques. Adeus a Emmanuel Lévinas. (trad Fábio e Eva
Landa) São Paulo: Perspectiva, 2004.
3
PENNA, João Camillo. Introdução – O imperativo do pensamento. In LACOUE-LABARTHE, Philippe.
Ensaios sobre arte e filosofia. (org e trad Virgínia de Araújo Figueiredo e João Camillo Penna). São
Paulo: Paz e Terra, 2000. (p.14)
29
1: Sobre o texto trágico: questões iniciais
stynx , tambores e canto coral. O espaço do palco é dividido entre coro, posto mais
uma plataforma acima dos mortais. Usam-se máscaras, para efeitos cênicos e melódicos.
constante entre a visão velha, religiosa, e o humanismo que surgia. Sua linguagem é
Aristóteles entende que a tragédia existe enquanto veículo para produzir catarse, a
Aristóteles ainda é uma das melhores definições da forma trágica, porque nos indica a
materialidade do que teria sido a tragédia, sua prática enquanto espetáculo. Acima de
tudo nos obriga a entendê-la como obra de arte multidimensional, em que várias artes se
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O fato de a tragédia ser aquilo que mais tarde entenderíamos, especialmente
seja, obra que fala a todos os sentidos e a todos os níveis da experiência humana, cria
mais estritamente literárias e culturais que chegam a nós através dos textos preservados,
sua formalização verbal e ideológica, mas aquilo que seria a forma trágica de fato supõe
uma união bastante cerrada entre a performance textual e aqueles outros três níveis, o da
nível exclua a dos outros. Assim, autores da estatura de Albin Lesky, Paul Vernant ou
Werner Jaeger nos oferecem uma descrição ampla do texto trágico, das questões
culturais e estéticas que ele suscita, mas não relacionam estas questões a sua
conhecimento estético. É exatamente esta intuição que torna Nietzsche um pensador tão
Sua originalidade foi ... valorizar a música para pensar a tragédia grega como uma arte
essencialmente musical, ou como tendo origem no espírito da música. (MACHADO,
2006: 243).
Esta é uma limitação com que teremos de lidar, em parte por limites pessoais, em parte
porque este nível de reconstrução da cultura grega não é possível. De qualquer maneira,
31
Para nossa discussão será pertinente estabelecer um corte entre dois níveis
forma trágica, mas para apresentá-los será útil distingui-los. O primeiro nível é
religioso: a tragédia reproduz no palco os mitos e rituais com que o público ateniense
pensava sua relação com o divino, seu lugar no universo e sua identidade tanto
comunitária quanto individual. Neste nível é que importa manter sempre presente a
mês de março. Corroborava-se esta visão com a referência à Arte poética de Aristóteles,
forma trágica. Durante muito tempo este início da tragédia explicava o nome do gênero
(o canto do bode como sendo o canto dos sátiros). Albin Lesky critica esta posição:
mas, temos de nos perguntar, como faziam os atenienses que viveram logo após a era de
32
ouro do teatro, o que a tragédia tem a ver com Dioniso? Após a leitura de Nietzsche é
também, que utiliza o Édipo rei e a Antígona como modelos para seu comentário sobre
a distinção entre direito divino e direito humano, entre direito natural (relacionado à
estabelecer o divino como um dos pólos fundamentais para uma leitura da tragédia. Mas
isto não dá conta do problema mais estritamente ritual. O espetáculo trágico ocorreu
durante décadas relacionado ao culto de Dioniso, mas a referência ao deus é escassa nas
sobreviventes, do que se conhece sobre as peças perdidas. O aspecto religioso das peças
religiosas, embora para nossa mentalidade seja difícil entender como um herói com a
história de Édipo possa ser digno de culto. E, no entanto, o aspecto religioso das
inicialmente para explicar a origem de certas figuras menores do culto grego (cf.
Areópago, etc.
relação entre a tragédia e o ritual religioso. Mas não resolve o problema de como
Dioniso se relaciona com o ritual trágico. Lesky tem uma leitura bastante próxima à de
33
A aparente contradição entre a tragédia como parte do culto dionisíaco e seu conteúdo
não dionisáico foi observado muito cedo pelos antigos e deu margem a uma expressão
proverbial: “Isto nada tem a ver com Dioniso” ... Nesta conexão, adquire máxima
importância para nós um relato de Heródoto (V, 67). Desde a mais alta antiguidade
existia em Sícion o culto do herói argivo Adrasto, e Heródoto diz expressamente que os
sicionences não veneravam a Dioniso, mas a Adrasto, e em coros trágicos cantavam
seus tormentos ... o conteúdo desses cantos eram os feitos e os sofrimentos do herói de
um dos grandes ciclos de lendas. E é neste ponto que entra a reforma do tirano
Clístenes, que dedica estes cantos a Dioniso, isto é, faz com que estes cantos sejam
entoados não no culto do herói Adrasto, mas no serviço do novo deus. ... A passagem
não diz outra coisa senão que os velhos coros “trágicos”, com seu conteúdo tirado dos
cantos heróicos, passaram a integrar o serviço religioso dionisíaco.
(LESKY, 2006: 78-79)
A hipótese é que esta transição tenha se dado também em Atenas, e que, com a ligação
dos coros em homenagem a algum herói com os coros a Dioniso, tenha havido
lentamente uma mudança de conteúdo, com estes cantos adquirindo caráter dionisíaco,
promoção da democracia grega, sendo o rito por excelência que une aqueles homens
livres e mercadores que deveriam liderar. Ésquilo, autor e ator de suas peças, teve
tragédias produzidas por Péricles, o estratego maior de Atenas. O fato objetivo dos
história de heróis e de deuses, relaciona a grandeza de uns à de outros, e faz com que
seja impossível não pensar o espetáculo trágico em algum nível como também um rito
de classe. Mas pensá-lo exclusivamente deste modo não daria conta da riqueza da forma
trágica. No mínimo, porque esta grandeza representada no palco era sempre manchada
pelo crime e pela impureza. Este é um elemento importante das relações de classe e
34
poder que se tornam presentes na tragédia: elas não são simples propaganda de um
poder, de uma estirpe ou de uma classe, mas sim a contradição e problematização deste
poder, desta estirpe, desta classe. Uma maneira de entendermos esta estranha
o rei é transformado ritualmente em homo sacer, em entidade sagrada que deve ser
adorada e execrada simultaneamente, ou, no mínimo, ser tornado objeto de troça. Todas
as sociedades pré-modernas conhecem este ritual, e esta será uma das bases de René
Girard para relacionar a tragédia aos rituais de bode expiatório que ele entende como
cultura. A vantagem desta leitura do fenômeno é que ela liga a tragédia a rituais muito
nenhum termo de comparação válido. No auge do império marítimo que se formou após
a guerra contra os persas temos uma cidade de cerca de 300.000 habitantes, com rotas
fato de a democracia ateniense ter podido sustentar uma guerra de trinta anos contra
todo o resto da Grécia dá a medida de seu poder. Uma boa parte das instituições
culturais a que estamos acostumados tem sua origem na Atenas desta época. Era uma
perguntar a força que eles ainda possuem em uma sociedade que prepara o surgimento
35
outros momentos, como na era barroca ou no século XIX burguês, a tragédia põe em
cena e reflete sobre os vícios do poder e do cidadão, e isto não de forma restrita e
privada, mas de forma pública. Não temos então propaganda, mas um momento de
excepcional riqueza espiritual em que existe liberdade crítica, mais que isso, em que a
daímon e caráter, entre destino e vontade, entre o que é dito aparentemente e o que é
dito de fato – podem ter suas raízes apontadas para a necessidade de incluir o cidadão na
democracia ateniense era restritiva, pois não é a quantidade de cidadãos que define a
dinâmica deste poder, e sim a maneira como os vários interesses que o compõem são
inclusão do público na construção do sentido da peça trágica vai além disso. Pois, ao
contrário das outras formas tradicionais da literatura grega, como os ciclos épicos, a
literatura religiosa e a lírica, a tragédia tem a contradição como parte constituinte de seu
texto. E por ser irônico e contraditório, o texto trágico exige um processo ativo de
decifração do signo. Exige um leitor como o entendemos, alguém que possa ler nas
doce e subalterno, cumprindo o papel de boa esposa. O público todo já sabe de antemão
36
que ela assassinará o marido, e o sentido real de seu discurso, a ironia antecipatória do
assassinato, só é construída fora da própria peça, no público que a assiste. Esta é já a co-
obra de arte) só existe enquanto atualização cumprida por um leitor, enquanto discurso
no palco dizendo “olha, isso é mentira!”, “olha, isso não é necessariamente assim”. É a
mente do espectador que traça estas relações, e, portanto, é a mente do espectador que
que mantém vivo o mito identitário da pólis. Este ente coletivo que é a comunidade de
corte entre dois planos de sentido, um que se dá no palco, insuficiente, e outro que se
completa na mente do espectador, traz o público para dentro do palco, torna-o parte
ativa do espetáculo. Acima de tudo, faz com que a arte trágica seja já uma reflexão
fulguração intensa e transitória da obra de arte que Platão não pôde mais que condenar
é trazida à baila.
responsáveis pelos temas que vai abordar. As questões de sucessão, a hybris, a natureza
37
da justiça, o destino do homem e da comunidade, a relação do homem com o divino e os
limites entre os dois reinos, estas todas são preocupações que o século XIX vai projetar
espiritual, um novo herói consciente que Platão pensará como o seu modelo de ser
ateniense – em um novo personagem, que usa sua própria humanidade como medida de
sua presença no mundo, é um dos grandes legados da arte trágica. O nosso esforço a
partir de agora será de entender como os valores tradicionais da cultura grega conforme
interpretados pela tradição filológica e filosófica do período a que estamos nos atando
história hegeliana, que o Paidéia de Jaeger parece acompanhar. Em Jaeger isto se daria
aristocrático, ligado aos valores da épica e que a partir da influência das idéias e da
estado, a que a instituição dos concursos trágicos estaria ligada, e um terceiro momento,
após a queda de Atenas na Guerra do Peloponeso, em que uma certa consciência ética
construída pela tragédia culminaria na obra platônica. Jaeger conta a história espiritual
38
autoconsciência humana, na transição da épica para a visão trágica e da visão trágica
para a visão platônica. Segundo Jaeger, esta transição está ligada especialmente á idéia
Sólon:
religioso e político da cultura grega é que o problema da justiça está sempre presente. A
justiça dos homens, do erro (a hamartía) e perdão. Talvez a maneira mais produtiva de
iniciarmos a discussão seja entendendo a idéia de erro trágico, tão sublinhada por
teologia. Em primeiro lugar, a hamartía não se refere à relação entre arbítrio e pecado
que marca a visão cristã de mundo. O hamarton não é aquele que peca, mas aquele que
39
pecador é aquele que se afasta de deus –, a hamartía ocorre sem que haja a necessidade
herói, mas antes sofrido por ele, ou ainda: ocorre pela própria natureza da relação entre
tragédia por Hölderlin, e comentadores como Lesky e Reinhardt vão aderir plenamente
a este modelo interpretativo. Autores mais próximos a um modelo ético hegeliano, que
percebe este divino como nada mais que um nome para a consciência, vão atribui a este
deus a identidade com valores éticos e políticos tradicionais, identidade com uma idéia
momento em que a consciência humana ganha força porque é obrigada a agir de acordo
com seu próprio julgamento. Outra maneira de entender este deus, e neste caso é uma
discussão constante em todo século XIX, é como destino, como uma alteridade radical
só que infinitamente mais poderoso que o próprio homem. Para que haja a hamartía é
graça divina, cometa um ato que o torne impuro. Assim, Édipo não é hamarton porque o
deus vira as costas para ele, mas sim porque, simultâneo a este abandono, há o
assassinato e o incesto. Para que haja o erro, é necessário o abandono pelo deus,
distinção entre o pecado cristão e a hamartía trágica porque para a discussão ética do
século XIX isto funciona como uma iluminação. Na maneira como a hamartía é
40
Hegel sobre Antígona. É este tornar complexo o circuito do crime e castigo que faz da
falta trágica, a leitura da falta trágica neste momento, como um momento de afirmação
problema moral. É o que talvez possa permitir a afirmação de Hegel logo no início da
Fenomenologia:
O crime trágico obedece a uma lógica distante do simples condenatório, mas é antes
uma figuração do encontro da ação humana com sua alteridade no destino. Quando
Hegel afirma que não existe mal, esta é a preparação para afirmar a necessidade da
relacionalmente sempre errado por não ser o eu. É no confronto e na interpenetração dos
Este eu que isolado age sobre o mundo sempre de forma coerente (e necessária) consigo
destinada a se chocar com uma alteridade, é o herói trágico, marcado ao mesmo tempo
Por outro lado, como na visão grega a hamartía é essencialmente uma impureza,
uma polução, é possível que o hamarton seja livre do sofrimento que a mancha traz
através do ritual de purificação. Para tanto é necessário, obviamente, que o deus esteja
disposto a devolver sua graça, a reverter o abandono do herói. Tanto quanto a hamartía,
41
o perdão ritual é um tema que circunda a tragédia. É o que torna possível, por exemplo,
Medéia não supõe sua vida terminada com o assassinato dos filhos, e sua liberação da
maldição que a hamartía traz se dá através do rito a ser celebrado, e significa livrá-la
dos efeitos práticos do crime – o impuro traz a maldição do deus, portanto não pode
purificação, o criminoso pode fazer parte de novo da ordem divina e humana. A catarse
catarse trágica provoca reflete a purgação religiosa que o texto trágico tematiza.
Mas é preciso entender este texto trágico enquanto forma que problematiza a
visão de mundo tradicional dos gregos. O herói trágico é ainda hamarton, mas a relação
entre divino e humano já não é tão passiva quanto na religião tradicional grega. O que a
aquele que comete o ato impuro devido ao deus, ao destino, à “força daimônica à qual
ninguém pode resistir” nas palavras de Jaeger, o herói trágico é aquele que torna este
42
natureza – a justiça e o sentido – do divino, e que adiciona à equação a sua própria
responsabilidade soberana sobre sua ação. Isto é representado pela confusão no texto
trágico, entre o daímon e o ethos, os dois pólos que conformam a ação humana. O
Eurípides esta presença se torna cada vez mais um elemento imanente, confundindo-se
no último com a paixão humana, em que o deus influi muito pouco. Mas o daímon não é
Ájax, o herói é tocado por Atena para matar os rebanhos dos gregos pensando eliminar,
na verdade, seus aliados a quem agora devota ódio. A traição de Ájax aos outros gregos
é uma Ate, uma cegueira, uma ação incontrolável que foge a seu poder de decisão. Mas
a traição de Ájax só é possível por seu ethos, por ser o maior dos guerreiros, que deseja
justamente as armas de Aquiles, por ser orgulhoso, e assim a cegueira que leva Ájax a
tentar assassinar Ulisses e Agamêmnon só é possível porque Ájax é Ájax e não outro.
daímon apaga a identidade ao obrigar a ação do herói além de seu controle, contra seu
próprio interesse e contra, na verdade, aquilo que o define – seu lugar privilegiado na
ordem cósmica, que o torna um homem superior aos outros, o que só ocorre por
é o próprio caráter do herói que torna seu daímon necessário. Em Destino e caráter,
Benjamin:
43
Nas fronteiras do conceito do homem a ponto de exercer uma ação, não se saberia
definir o conceito de um mundo exterior. Antes, entre o homem que exerce uma ação e
o mundo exterior tudo é ação recíproca, seus campos de ação se interpenetram; por mais
distintas que possam ser as representações, seus conceitos não são separáveis. Não
somente, e em nenhum caso, pode-se indicar aquilo que, em última análise, vale como
função do destino (isto não significaria nada aqui se, por exemplo, ocorresse isto na
pura experiência, houvesse passagem recíproca de um ao outro), mas o exterior que
reencontra o homem a ponto de agir pode sempre, por princípio, e na medida em que se
quiser , se reduzir a seu próprio exterior, digamos mais: ser visado a princípio como
sendo este exterior mesmo. Nesta perspectiva, longe de ser teoricamente golpes um do
outro, caráter e destino coincidem. (BENJAMIN, 1971a: 153)1
No mesmo texto mais abaixo Benjamin utilize esta lógica para tentar entender a
um crime e vai contra a justiça, mas a justiça é exatamente construída para que o
criminoso se torne criminoso, para que da miséria chegue ao crime, já que não pode
momento em que o herói rompe com o direito divino e afirma sua própria consciência,
como uma loucura (sagrada). Pois ao mesmo tempo que a loucura é sempre impessoal, é
para si e para os outros e impedindo seu retorno, ela é também afirmação de uma
herói são parelhas, e é nela que isto que se constrói, uma consciência, um espírito
individual, brilha mais forte. Quando Ájax reclama de seu destino, é isto que está em
jogo: como eu pude me tornar outro, como o que eu sempre fui me conduziu a ser isto?
44
E mata-me a filha de Zeus supremo,
Deusa dotada de grande poder.
Que terra ainda me receberá?
Onde procurarei refugiar-me
Se minha boa fama, amigos meus,
Morreu com as vítimas mortas por mim,
E se sou condenado a um triunfo
Cuja conquista me leva à loucura?
...
... Nunca mais
vereis o homem que fui até ontem,
homem tão bravo que Tróia arrogante
– direi aqui palavras presunçosas –
até há pouco não vira outro igual
no exército vindo da terra grega!
Mas vede agora a grande humilhação
Que o reduziu praticamente a nada!...
(SÓFOCLES, In ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES, 1993: vv. 545-582 (tradução
de Mário da Gama Kury)
Destino e caráter são os dois níveis de articulação da ação trágica. Um refere o deus, o
outro a condição humana. No texto trágico estes dois campos se confundem cada vez
mais para aos poucos haver a construção de uma consciência cada vez mais complexa.
O tipo de entendimento tenso da condição humana que a tragédia traz fica bem claro se
de erro trágico, começa paulatinamente a se tornar uma culpa trágica. Como afirma
Jean-Pierre Vernant:
Jaeger afirma algo muito próximo a isto em seu comentário a Ésquilo (cf JAEGER,
45
complexo do erro e da dor é um momento da construção de um homem grego em
em que já se pode falar em um indivíduo que tem condições de mediar a realidade com
sua própria razão. Vamos tentar entender este processo utilizando a imagem da sentença
uma ilustração para pensar a maneira como a relação com o divino foi entendida na
tragédia conforme lida pelo período que estamos tratando. A inscrição no templo de
espécie de síntese da religiosidade grega. Seu significado básico é: sabe que és mortal e
que não estás à altura dos deuses. No universo pré-clássico de Homero e Hesíodo o
sentido da sentença é bastante direto: conhece que és um homem, que não estás à altura
dos deuses, aceita teus limites humanos. É o “Nunca a estirpe humana se assemelhará à
dos deuses imortais” (Ilíada 5, 440) na luta de Diomedes contra Apolo disfarçado de
Enéias. Neste caso, o “conhecer” que a sentença parece propor é da mediação entre
que interfere diretamente nos assuntos dos homens, e seu jogo de preferências e
caprichos traça o caminho de glória ou o desastre para o herói. Mas o deus é também o
limite inalcançável que o homem não pode tocar e não deve almejar. O deus – o rito ao
46
deus – é a lei em que se constroem as ambições humanas, e o deus é naturalmente o
destino: sua vontade anula os planos e desejos humanos. Ele estabelece os limites do
justo, ele os extrapola segundo seu capricho. E é esta ambigüidade que prepara o
advento da tragédia séculos depois das epopéias. Nas palavras de Albin Lesky:
entre homens e deuses é a morte, é aquilo que estabelece uma distância entre o homem
mortal e o deus imortal. Nesta visão é necessário que o homem seja inapelavelmente
mortal para que a distinção entre humano e divino seja mantida. Para a visão do trágico
do século XIX, este corte se torna problemático, pois o homem, concebendo sua
que isso, de sua solidão existencial, de sua separação com o todo. É esta angústia que
das bases da cultura, é a maneira de separar o reino dos mortos e dos vivos. A angústia
que autores como Hölderlin e Hegel localizam na tragédia é de outra ordem, pois, a
trincada. O desejo de continuidade de uma cultura tão pujante quanto a ateniense tem
47
como reflexo o ataque à própria identidade estabelecida pelo rito, que veta em cláusula
A fábula de Alceste, de Eurípides, é uma boa fantasia para ilustrar esta angústia.
O herói, Ádmeto, rei de Feras, recebe como favor de Apolo estender sua vida caso
consiga convencer alguém a acompanhar a morte em seu lugar. Primeiro, pede que um
de seus velhos pais morra em seu lugar, mas é sua esposa, Alceste, quem acaba
aceitando substituí-lo. Uma Morte, que já não é uma força distante e impessoal,
Apolo, vem para levar Alceste ao Hades. O próximo passo da tragédia é o surgimento
de Hércules durante o luto por Alceste. Ádmeto se recusa a dizer que está de luto por
alguém próximo, e oferece hospedagem a Hércules. Mais tarde, ao saber que o luto é
pela rainha de Feras, Hércules se retira. Ao fim da peça o herói ressurge com uma
mulher velada. É Alceste, que Hércules devolve a Ádmeto após louvar o rito da
hospedagem.
O final feliz torna Alceste uma obra estranha em meio ao corpo trágico, e em
Hércules superpoderoso. Mas essa peça tem como grande virtude tornar explícito o jogo
entre vida e morte que toda tragédia dramatiza. A Morte alegórica já é um indício de
que as tensões culturais que foram responsáveis pelo surgimento do gênero estavam
tomando outra forma na Atenas dos sofistas e de Platão, mas vamos encontrar poucos
exemplos dentro do gênero de uma profanação tão grande do ritual quanto a morte
revertida. Nesta reversão há a presença de um ser humano que pede igualdade com o
divino: aquilo que Apolo não pôde, impedir a Morte de levar Alceste, é alcançado pelo
48
O confronto e as acusações mútuas entre Ádmeto e seu pai, Feres, pela morte de
talvez haja uma crítica ao estilo dos heróis de coragem abismal de Sófocles e Ésquilo,
Feres são essencialmente uma reflexão ética em linguagem elevada do que seja a
infelicidade de Ádmeto é privada, baseada em ter de ficar só, mas aí já uma solidão
emocional de se ver sem um objeto de desejo. O primado deste homem privado, que
possui sua vida interior tão rica quanto a dos ritos da comunidade, só é possível na
49
Mas a fala de Ádmeto tem mais riqueza. Neste trecho ele repassa os ritos
a platéia por certo não deixará de notar que o sucesso destes ritos não é exclusivo de seu
pai: a fala de Ádmeto poderia perfeitamente referir a si próprio. René Girard identifica
deter em Girard mais à frente, mas gostaríamos de propor que a duplicação trágica,
Medéia e Glauce, a futura esposa de Jasão, é uma maneira de abordar o limite entre vida
e morte, ou a distância entre lei humana e lei divina, nos termos que Hegel utiliza na
de uma maneira bastante rica, porque estabelece que este jogo de manutenção e de
exemplos que demos acima são primariamente problemas de sucessão, de quem detém o
Girard: a crise sacrificial só pode ser resolvida pelo restabelecimento dos limites
deve sanar, que é a confusão entre mundo dos vivos e dos mortos, da dissolução do
limite entre mortais e imortais. Laio morto ainda tem presença ativa na realidade de
dos mortos ainda parece agir sobre o dos vivos, e isto é um sinal não só da força do
50
divino, que se pretende independente do divino. Os dois níveis, o ritual e o político, são
indissolúveis, mistura que alimenta a nova visão grega, uma expressão utilizada por
prepara a filosofia platônica. Girard considera as tragédias cautionary tales, sua teoria
para os gregos. Mas, e se não for assim? E se o anti-herói Édipo, como um veneno-
remédio em um outro sentido além do farmacológico, trouxesse aos gregos algo além do
terror, algo como uma admiração velada por aquela potência, distinta do divino, que
estava surgindo, como se um dragão fosse liberado? Que tipo de sentimento terá
despertado a fala de Ádmeto “pois não te sepultarei/ Com estas mãos que vês”, uma
Horror, certamente, mas não poderíamos dizer também que este novo homem ateniense
do Homérico na tragédia de Édipo, que, aliás, pode muito bem ser entendida como a
dramatização do oráculo. A ação na peça é motivada por três oráculos:o primeiro leva
Laio a abandonar seu filho, que viria a ser Édipo. O segundo, que anuncia o destino de
pai, si mesmo. Na relação do herói com Apolo temos a criatura que é representação do
51
poder divino. Édipo, como toda a vida humana, é o livro que o divino escreve, talvez
é, aqui, transfigurado: não é o sentido direto do limite entre homem e divino, mas uma
tua origem e teu destino, estas coisas impessoais, bem acima e mais poderosas que o
indivíduo. Mas, em Édipo, tanto origem quanto destino são um elo entre destino e
indivíduo. Este elo pode marcar tanto uma distância infinita e superável apenas na
aniquilação, como em Hölderlin, quanto uma distância tão tênue que a ação humana
do divino. Édipo só pode ser abandonado porque os deuses decidem se retrair de sua
traço de permanência no humano que seja distinto daquele que uma criatura possui. O
conhecer homérico parece concordar com aquela expressão da cabala que Borges sentia
prazer em citar – “se Deus apenas tirar o olhar de tua mão ela cairá sem vida”. O
conhecer trágico, este que Édipo dramatiza, prepara o campo para uma nova visão, em
que, mesmo sem o olhar do deus, tua mão permanece agindo, ainda que seja para
confrontar amorosamente o deus. Este confronto entre dois pólos igualmente válidos,
confronto em termos de sua própria obra, como uma figuração do conflito entre família
52
transfiguração da consciência, através do reconhecimento da alteridade e do retorno a si
mais problemática, pois não é algo conciliável. Talvez um bom vislumbre deste
Segundo Reinhardt:
Os deuses de Sófocles não trazem nenhum consolo ao homem, e quando eles dirigem
seu destino para que ele se conheça, ele se apreende como homem apenas em seu
entregar-se e abandonar-se. Somente no despedaçamento sua essência parece sair de sua
dissonância, tornando-se pura para ganhar o estado de uma harmonia com a ordem
divina. (REINHARDT , 2007: 11)
sua passagem de uma religião e de um ritual sagrado para algo muito próximo de uma
autonomia. É uma equação em que o divino, desde sempre retraído, está agora
possivelmente também qualquer divino – teríamos de definir até que ponto uma
53
seu Paideia nos dá a medida da dificuldade de se falar em uma “tragédia” para além da
ao homem, em relação à felicidade humana, ao menos, mas supõe também uma ordem
cósmica em que o divino ainda participa nos assuntos humanos, ao menos na forma de
uma proposital provocação à falsa leitura (e é esta hamartía de Édipo para Hölderlin, ter
inferioridade do homem em relação ao céu, assim como seu dever de piedade, no século
em seu abandono a fragilidade do homem, mas também a força ética que os obriga a
agir apesar de tudo, em nome do dever, da honra, ou simplesmente de uma vaga idéia de
trágico no século XIX, através da leitura de Schiller e mais tarde de Schelling (cf cap.
6). O abandono divino aniquila e violenta o homem, mas, ato contínuo, eleva o humano.
do deus ou da comunidade, não produzia uma individualidade menor, mas maior do que
antes da situação trágica. Este grande eu que surge no trágico pode ser forte o bastante
54
para reavivar o laço quebrado entre o homem enquanto ser racional e sua natureza
situação limite do trágico em que esta dimensão ética do homem, sua humanidade, é
negada, e na resistência a esta negação é que o humano brilha mais forte. Nesta
O que caracteriza o homem é a vontade, e a própria razão nada mais é do que a perene
regra do mesmo. Sua prerrogativa, dado que toda natureza age racionalmente, reside
apenas em que ele, cônscia e voluntariamente, o faz segundo a razão. Todas as outras
coisas são obrigadas; o homem é o ser que quer. Por essa mesma razão, nada há de mais
indigno do homem que sofrer violência, pois a violência o nega. Quem a exerce sobre
nós, não faz nada menos que contestar-nos a humanidade. (SCHILLER, 1992: 49)
A leitura de Schiller segue de perto uma ética kantiana, e a violência a que ele se refere
sublime, diante de tudo aquilo que foge da escala humana e torna sua razão inútil. A
formalização artística os eventos infinitos que violentam o homem são postos de novo
Sem o belo, haveria sempre um litígio ininterrupto entre a nossa destinação natural e
racional. Ante o empenho de satisfazer nossa missão espiritual, iríamos perder nossa
humanidade. ... Sem o sublime, o belo nos faria esquecer nossa dignidade. ... Só quando
o sublime se conjuga com o belo é que somos perfeitos cidadãos da natureza, sem, por
isso, sermos seus escravos e sem perdermos os nossos direitos de cidadãos no mundo
inteligível. (SCHILLER, 1992: 69)
55
O trágico seria a forma que conjuga de forma mais intensa violência e resistência à
violência, o universo humano e o divino, aquilo que a razão dá conta e aquilo que lhe
aniquilamento está representada a unificação do homem com as forças imensas que lhe
negam.
56
1
Versão própria da tradução francesa:
Aux frontières du concept d’homme en train d’exercer une action, on ne saurait definir le concept d’un
monde extéurieur. Bien plutôt, entre l’homme qui exerce une action et le monde extérieur, tout est action
réciproque, leurs champs d’action s’interpénetrent; si différentes que puissant en être les representations,
leurs concepts ne sont pas séparables. Non seulement, en aucun cas on ne peut indiquer ce qui, en
dernière analyse, vaut comme function du destin …, mais l’extérieur que r’encontre l’homme en train
d’agir peut toujours, par principe, et dans la mesure que l’on veut, se réduire a son proper extérieur, dison
plus: être envisage par principe comme étant cet extérieur meme. Dans cette perspective, loin d’être
théoriquement coupes l’un de l’autre, caractère et destin coincident.
2
Na versão de David Kovacs (EURÍPIDES, Alcestis, 1994: vv. 650-665)
[And she and I would have lived for the rest of our time, and I would not be grieving for my trouble,
bereft of her.]
What is more, all that is required for a man to be happy has already befallen you: you spent the prime of
your life as a king, and you had me as son and successor to your house, so that you were not going to die
childless and leave your house behind without heirs for others to plunder. Surely you cannot say that you
abandoned me to death because I dishonored you in your old age, for I have always shown you [660]
every respect. And now this is the repayment you and my mother have made to me. You had better hurry,
therefore, and beget other children to take care of you in old age and, when you have died, to dress you
and lay you out for burial. I for my part shall never bury you myself.
57
2: Ésquilo e o deus necessário
XIX. Embora o Sófocles do ciclo tebano seja o autor mais comentado, especialmente
por nele estar presente com mais força aquilo que o idealismo reconheceria como o
fulcro da tragédia, a colisão ética entre valores igualmente válidos, ou a colisão entre
divino e humano, é em Ésquilo que se busca a semente desta estrutura. Nele são
conflito ético (como por exemplo na oposição entre Prometeu e a lei de Zeus em
moral de como resolver uma aporia (que a decisão de Orestes sobre matar ou não matar
(que as Eumênides, quando Orestes é libertado da maldição das Fúrias, serviria para
herói são apenas a parte mais visível de sua ressonância. E, no entanto, o Ésquilo na
humana, essencialmente justa. Isto não quer dizer que os deuses de Ésquilo tenham
contrário, poucos personagens da grande literatura são tão cruéis quanto o Zeus que
58
aprisiona Prometeu em Prometeu acorrentado. Nos termos apresentados por Albin
Lesky:
O problema mais difícil de compreender prende-se com a imagem de Zeus desta peça.
Em que relação se encontra o novo senhor do Olimpo, que governa pela violência e
causa sofrimentos como os de Io, com o justo condutor do mundo, a quem nas piedosas
preces do Agamémnon mal se ousa invocar com o nome de Zeus?
(LESKY, 1995: 284)
Esta crueldade divina, e a maneira como o homem pode reagir diante dela, é o
sobre a necessidade e sobre o lugar da natureza nas ações humanas. A crueldade do deus
impessoalidade dura há uma ordem, justa porque se preocupa, como a natureza dotada
comunitária e política da cidade. Esta ordem política será um dos nortes para o
Jaeger lê a obra de Ésquilo como a representação dos ideais políticos do legislador ático
Sólon. Segundo Jaeger, o que motiva e informa a forma trágica, é, mais do que os
mau-destino, à força impessoal e destrutiva de um fado. Mas em Sólon, a Ate não libera
pessoal. O termo já seria previsto por Homero na Odisséia. Nas palavras de Jaeger
59
Ali [na Odisséia] se faz clara distinção entre uma Ate, no sentido de um destino
prepotente, imprevisível e divino, e a culpabilidade da ação humana, que aumenta as
desventuras do homem em uma medida superior às pressões do destino. Para a segunda
é essencial à previsão da ação injusta conscientemente desejada.
(JAEGER, 2003: 181)
O que Sólon faz, segundo Jaeger, é reler a tradição religiosa grega de tal
castigo não é a ação individual, mas sim a desmesura da comunidade ao permitir más
Se considerarmos, porém, a idéia que Sólon forma do castigo, descobriremos até que
ponto ela se afasta do realismo religioso em que se apóia a fé de Hesíodo na Justiça. O
castigo divino não consiste em peste ou más colheitas, como em Hesíodo, mas se realiza
de forma imanente pela desordem que toda a violação do direito gera no organismo
social. (JAEGER, 2003: 179).
Sólon concebe a base da democracia ateniense dentro desta visão, de que a hybris é
evitar a ruína que a injustiça das leis necessariamente projeta sobre a comunidade, é ter
instituições políticas fortes, ou seja, um estado justo, que vá além do arbítrio tanto dos
interesses pessoais de uma nobreza egoísta quanto dos interesses de um tirano. Ésquilo
teria esta justa medida política como um pano de fundo para sua obra. Jaeger considera
Prometeu acorrentado é um modelo da tirania contra a qual Sólon fala, assim como seu
nenhum dos dois defensáveis diante do ideário da democracia ateniense. Mas estes
personagens são mais que isso, e há uma reflexão sobre uma ordem cósmica
60
Não acreditamos que estas instâncias possam ser separadas, e se confundem na
forma trágica. Talvez o que nos ajude a pensar isto seja a maneira como a exigência
necessariamente vai despertar a ação das Fúrias e levar ao sofrimento do herói podem
dissolução. Será o mesmo tema de Sófocles em Édipo rei, mas o deus de Ésquilo
menos o deus que seduz Io e Leda, e mais o deus filosófico de Xenófanes, uno, todo-
Estes deuses homéricos são obra do homem, e se os bois e os leões tivessem mãos,
fabricariam deuses à sua imagem e semelhança ... Mas, na verdade, um só é o deus
supremo, todo ele olhos, todo ele ouvidos. Sem esforço, tudo abala com a força do seu
espírito, permanecendo firme em si mesmo, sem movimento que não convenha à sua
grandeza (B 25-26). Já aqui se anuncia o motor imóvel de Aristóteles.
(LESKY, 1995: 239).
Mas este “Zeus” que é celebrado no início de Coéforas (vv. 243-260), identificado
herói trágico, mas ele é ainda a força que impede o retorno ao caos. Em Ésquilo, o
abandono do homem pelo deus não significa abandono do deus da ordem cósmica, mas
passa por uma concepção desta ordem como sustentada por sacrifício e dever. É
61
especialmente a batalha de Salamina, em que a vitória sobre os persas teve por custo a
destruição de Atenas.
um preço pela ordem que impõe. Tanto preço quanto ordem são essencialmente justos.
dissolução dos limites. Nós vamos agora nos referir ao pensamento de René Girard
pensamento de Hegel. Girard vai considerar tão central a questão do limite entre eu e
outro que vai atribuir aos rituais responsáveis pelo restabelecimento dos limites a
fundação secreta da cultura humana. Para Girard, o rito político que a tragédia
dramatiza tenta dar conta de uma crise sacrificial. A reflexão de Girard é essencialmente
sobre o desejo humano, como se o mediador inicial das relações humanas fosse o
desejo. A referência a seu pensamento serve especialmente para iluminar o quanto isto
processo contínuo da condição humana, pode ser lido de forma bastante destrutiva.
no mundo. Mas é um desejo não exatamente do outro ou do que o outro possui, e sim o
62
desejo da própria identidade do outro. Isto cria um duplo fantasmal: o outro sou eu
violência: desejar o outro, desejar o desejo do outro, nos termos próprios de Girard,
significa permitir o ódio universal, pois, segundo Girard em Violence and the sacred:
Isto significa, por um lado, que a base formal da justiça, a distinção entre arbítrio
e direito, entre o desejado e o permitido, é impossível, pois todos são um outro a quem
o ódio é devido, portanto sem possibilidade de limite ao desejo, pois é justa a destruição
do inimigo que ameaça minha própria identidade; por outro lado, isto significa também
identidades, todos são culpados. É esta última característica que permite o controle do
violenta do desejo deve ser reprimida para que haja a possibilidade da comunidade
sobre o qual o desejo pelo outro pode ser posto, e, com sua expulsão, exorcizado, e
estética desta lógica cultural, essencialmente uma cautionary tale sobre o perigo do
63
duplo. Toda a teoria de Girard parte do princípio de que a indistinção é um convite à
violência, tão perniciosa que o sentido do ritual tem de permanecer oculto do espírito
indivíduo que consiga lidar com a indistinção de forma consciente, talvez desejá-la
humano pode dar conta da violência do desejo que o estrutura, e que o mecanismo
oculto que garante a existência social pode finalmente ser desvelado. O mecanismo que
que o impossível gozo sobre o outro pode retornar a ser gozo sobre si através do ritual
Hegel desta estrutura é a dialética entre o senhor e o escravo, em que uma primeira
mediar sua relação com o mundo objetivo. A consciência do escravo reflete o mundo
para o senhor, a media de forma incompleta, embora satisfatória porque aquilo que o
escravo reflete é apenas aquilo que o senhor permite que reflita, o que garante que a
alteridade. Mas em Hegel esta é uma dialética que precisa ser superada através da
tem sentido então apenas dentro deste movimento de renúncia, ao próprio desejo, à
própria decisão: aquilo que forma o herói trágico, a hybris de sua decisão, de sua
64
afirmação de si, é o que precisa ser superado para que este grande eu possa ganhar um
novo sentido e se reconciliar com os valores com que entrou em conflito na tragédia.
Ao renunciar a si, a sua ação efetiva sobre a realidade de forma isolada e parcial, a
sua decisão, seu desejo e seu gozo em um momento anterior, à distância, e assim
recuperar seu próprio sentido. Este se tornar outro retomando o sentido de si e daquilo a
que este si se opunha, que é o aufhebung, é também a dialética que Hegel vai perceber
exorcizar sua dissolução, mas antes de tencioná-los para obter conhecimento estético,
Aceitar o pensamento de Girard significa abdicar de uma consciência que possa encarar
o abismo e retornar, abdicar de um sentido heróico do ser humano. E é isto que não é
possível na tragédia. É verdade que o otimismo homérico já não é possível, que a luta
contra a natureza e as paixões não parece solúvel, pois temos um homem que não
65
já capaz de ser livre destas forças, como a filosofia platônica irá crer possível. Mas é
verdade também que o pessimismo trágico não abdicou de tentar tirar nacos cada vez
maiores de consciência do caos. A relação entre homem e deus, o lugar por excelência
para entender estes limites. E nesta reflexão, a natureza do deus é uma questão
fundamental.
Entre Zeus e Prometeu temos uma relação de duplo, tão característica da tragédia. Pois,
se a natureza de Zeus é o poder, o absoluto da decisão sobre o que pode e não pode
ocorrer no mundo, Prometeu é aquele que contraria esta decisão, que foge ao absoluto
que é também uma maneira de pensar o limite entre vida e morte – como o campo da
morte influi sobre os viventes e assim desfaz o limite tradicional entre o reino dos
mortais e dos imortais. Prometeu, como Medéia, como as mulheres troianas, como
Édipo, como Ádmeto de Alceste, é um morto-vivo, um ser que ainda existe enquanto
criatura dotada de vida biológica, mas que não participa da vida enquanto um estar no
mundo ativo, que mantém laços com a comunidade e com os deuses. A morte em vida
de Prometeu é a punição por sua hybris, por sua duplicação da natureza de Zeus. Temos
o trágico quando, em vez deste duplo profano ser eliminado e exorcizado, o que
acabaria com a crise sacrificial, nos termos de Girard, ele é mantido enquanto campo de
discurso, enquanto ser que tem voz e vida ativa, projetando sua sombra sobre a distinção
66
entre vivos e mortos, entre eu e outro, e assim confundindo os limites dos dois campos.
Prometeu é o herói que desafia o poder soberano de Zeus e por isso é punido. Mas, cabe
perguntar, por que este poder soberano não dá fim a Prometeu? Pois se seu sofrimento é
contínuo, ele não impede que o herói se manifeste ainda enquanto ser dotado de
ainda fala para outros, ainda representa sua própria presença. Na fala de Prometeu:
Em termos cênicos esta fala forte tem a função essencialmente de iniciar o páthos de
de uma presença. O personagem trágico é aquele que se faz notar, que chama a atenção
para si: notai este sujeito, notai este discurso, notai esta presença que apesar de impura e
abandonada ainda assim se apresenta diante de vós. Notai, finalmente, que o exilado
Como dar presença àquilo que deveria estar morto, a esta morte que retorna para
67
assombrar os vivos e a ordem? É aqui que uma arte essencialmente cênica vem construir
a tragédia. Música, cênica, dança e discurso se articulam para fazer com que a presença
sensível que torna a tragédia algo muito além da lembrança do mito. Aqui também há
gratuita e distinta do que seja o sério2 da conseqüência e da vida ativa. Mas o discurso
público, do universo jurídico, político e religioso, faz com que o público esteja entre o
formas de viver, uma relacionada ao deus e ao universo dos mortos, e outra relacionada
à vida ativa dos viventes, forma um campo de significados que confundem o limite e o
horizonte de sentidos. São talvez dois modos de ser que na tragédia ganham igual
deus. Na leitura de autores como Jaeger ou Bruno Snell, a relação do herói trágico com
primeira vez, de um indivíduo moralmente livre, que é obrigado a tomar uma posição
68
ética diante de uma aporia. E nesta tomada de posição surge seu afastamento em relação
Só com Ésquilo é que o homem tem consciência de chegar, através de sua própria
reflexão, a um agir responsável, e só assim surge a idéia de liberdade humana e da
autonomia do agir. Ésquilo representou esta nova situação colocando um homem diante
de duas instâncias divinas contraditórias: seu Orestes, por exemplo, deve obedecer à
ordem de Apolo de vingar a morte do pai, isto é, de matar a mãe – e assim transgride o
mandamento divino de honrar a mãe. É, portanto, obrigado, visto que os imperativos
divinos se elidem reciprocamente e falham em sua tarefa, a decidir sozinho. (SNELL,
2009: 253)
suportar com o coração impávido a sorte que nos é imposta e admitir a impossibilidade
uma fala herética, representação de sua hybris, mas que precisa ser também notada:
heresia em seu texto, da heresia e do seu contrário, o respeito cego à vontade do deus.
Estes momentos são de horror religioso, mas supomos também de um certo prazer
Como nos referimos anteriormente, o herói trágico tem um traço específico, que o
69
das vítimas sagradas, a presença e o discurso do morto-vivo tem de ser ouvido. O herói
trágico é aquele que não pode ser tirado facilmente da percepção, é aquela impureza que
não pode ser expurgada, que permanece, que diz. O herói trágico, apesar da tragédia ser
uma espécie de escrita da morte, de escrita de uma morte que amplia seus limites sobre
os vivos, é aquele que não pode ser morto. Ele mantém viva sua memória, às vezes ele
Prometeu a Zeus, de uma grandiosidade que tem poucos pares na história da literatura:
porque a tragédia confunde os reinos dos mortos e dos viventes. Esta é uma questão
indestrutibilidade como valor da dignidade humana, ainda que de uma forma deslocada.
que se deu sua gênese, reproduzem ainda a indestrutibilidade trágica. Gilbert Murray se
70
refere a este valor trágico enquanto afirmação ética do ser humano sobre o cosmos
Em sua forma primitiva, esta vitória sobre a morte exige a ressurreição ou renascimento
do herói: em sua forma mais elevada, no sentimento que encontra tão magnífica
expressão em O rival de Sanção [Samson agonistes], de Milton, de que, mesmo que o
herói esteja ou não morto, venceu realmente em algum sentido mais profundo o mal
ante o qual sucumbiu seu corpo, e que “nada resta à lágrimas”. (MURRAY, 1943:. 23)3
A leitura de Murray segue a leitura ética que se torna canônica a partir de Hegel
leitura do trágico. E estas tensões são presentes através da oposição do herói aos outros
com que se confronta. É o turno do discurso que constrói a presença do herói, é esta
trágica é.
Talvez seja a esta irredutibilidade que Walter Benjamin se refere ao dizer que o
herói trágico é mudo em sua crítica ao Oedipe rex de Gide (O ensaio “Édipo, ou o mito
razoável” In BENJAMIN, 1971a). Ele é mudo porque não nos concede um sentido,
porque na forma trágica há um conteúdo não exprimível, uma potencialidade que não se
herói sobre si e seus atos, sobre o sentido daquilo que fez. Quando Benjamin diz em
E como Édipo não seria golpeado de mutez, como o pensamento poderia alguma vez se
livrar das redes que lhe interditam saber o que constitui sua perda, o crime mesmo, o
oráculo de Apolo, ou sua própria maldição contra o assassino de Laio? Esta mutez,
entretanto, não caracteriza apenas a Édipo, mas a todos heróis da tragédia grega. E é ela
que sublinha sempre de novo as críticas recentes: “O herói trágico não possui uma
linguagem inteiramente à sua medida que não seja o silêncio”. (BENJAMIN, 1971:
178)4
71
A mudez do herói trágico é paradoxalmente construída por seu próprio discurso, por sua
mera presença indestrutível que exige permanência contra aquilo que deseja sua
destruição. Esta exigência pode ser chamada como uma mudez apenas se entendermos
que o dizer necessita legar um sentido final, o que a tragédia não apenas recusa, mas se
revela incapaz, pois destrói as fronteiras que permitiriam julgamento e decisão, que
sentido fica projetado em uma outra dimensão que não seja apenas a da palavra
peças, um futuro, um outro lugar, uma outra moral, em que herói e deus possam estar
reconciliados. Mas esta outra dimensão é oferecida apenas à mente coletiva da platéia
como um dom marginal à própria ação: é nos espectadores que este campo negativo se
torna efetivo e tem alguma presença. Quanto ao próprio herói, o sentido de seus atos é
sua própria morte, sua aceitação da morte como o sacrifício necessário à reconciliação
entre os valores que se batem no conflito trágico. Nós podemos pensar nesta aceitação
da morte, neste abandono à aniquilação, naquilo que Benjamin descreve como o vazio
da alma do herói trágico (cf. abaixo), como uma das figurações daquela renúncia a si
mesmo que Hegel aponta como necessária para a construção do espírito. Em Hölderlin,
este silêncio é o “signo=0” (cf. Capítulo 6) que a tragédia deve construir para que se
chegue a uma linguagem do absoluto que seja comum a humano e divino, e esta
linguagem é o silêncio.
A renúncia do herói a um sentido final é aquilo que cria o espaço adequado para
sua responsabilidade e erro consciente, e a marca de algo que seja além deste grande eu
inicial, um outro conjunto de valores que através de sua liberdade, e, após o conflito
72
com o grande outro que é o deus ou a comunidade, através de sua renúncia à liberdade,
barroco alemão:
Não assim o herói trágico [referindo-se à atitude de Sócrates diante da morte], que teme
a morte como algo que lhe é familiar, pessoal e imanente. No fundo, sua vida se
desdobra a partir da morte, que não é seu fim, mas sua forma. Pois a existência trágica
só pode assumir sua tarefa porque seus limites, tanto os da vida lingüística quanto os da
vida física, lhe são dados desde o início, e lhe são inerentes. Essa idéia foi formulada
das mais diferentes maneiras, das quais a mais adequada talvez seja a contida no
comentário casual de “a morte trágica é apenas o sinal extremo de que a alma já
morreu”. Com efeito, pode-se dizer que o herói trágico não tem alma. Do seu interior
incomensuravelmente vazio ressoam, ao longe, os novos mandamentos divinos, e nesse
eco as gerações futuras aprendem sua linguagem. (BENJAMIN, 1984: 137)
Este “ser-para-a-morte” do herói é o seu sentido, e esta morte necessária que ele carrega
em suas ações surge mais forte em oposição ao desejo de escapar dela (que constrói sua
mudez: o herói aceita seus limites após tê-los recusado, e sua aceitação é tão paradoxal
que não pode ser dita). E na oposição que o herói figura entre desejo e renúncia, entre
É interessante notar como essa mutez trágica, que gostaríamos de entender como
especificamente, da ação pelo que é certo e não por interesse, formassem uma aporia
inescapável. A resposta de Benjamin para o problema é propor que a Justiça pode ser
depende da identidade entre ação e desinteresse, em que o gesto ético pode ser motivado
73
exclusivamente por um julgamento supra-sensível, ou seja, quando o entendimento se
(universalmente) válido, o que exclui como justo qualquer gesto que atenda a uma
vocação pessoal e subjetiva. Age-se em nome do que é correto, esta correção pode ou
não gerar felicidade pessoal, mas o bonum, o prazer, não deve orientar o gesto ético. Em
Kant, em última instância a decisão moral é sempre determinada por um absoluto, por
justo é insuficiente, e que a justiça pode ser encontrada apenas na instância imanente da
vida sensível e histórica dos homens entre outros homens. Introduzindo a questão,
Afinal, quem decide sobre a legitimidade dos meios e a justiça dos fins não é jamais a
razão, mas o poder do destino, e quem decide sobre este é Deus. É uma maneira de ver
incomum, mas apenas porque existe o hábito arraigado de pensar os fins justos como
fins de um direito possível, ou seja, não apenas universalmente válidos (o que seria uma
conseqüência analítica do elemento justiça), mas passíveis de universalização – o que
está em contradição com esse elemento, como se poderia demonstrar. Pois, fins que são
justos, universalmente reconhecíveis, universalmente válidos para uma determinada
situação, não o são para nenhuma outra, por parecida que seja sob outros aspectos. Uma
função não mediata da violência, tal como está sendo discutida aqui, aparece na
experiência de vida cotidiana. Quanto ao ser humano, a ira, por exemplo, o leva às mais
patentes explosões de violência, uma violência que não se refere como meio a um fim
proposto. Ela não é meio, e sim manifestação. É verdade que esse tipo de violência tem
suas manifestações objetivas, onde ela é sujeita à crítica. Elas se encontram, antes de
mais nada e de maneira altamente significativa, no mito.6
maneira de justificá-la é entender que o justo não passa por uma identidade monolítica
entre fins e ação, mas se estabelece quando a ação ética responde a uma vocação, a um
daímon inescapável, o que torna a única violência justa aquela que é necessária, não
racionalmente necessária, mas necessária de acordo com uma visão trágica da vida, que
74
diz que as paixões humanas não são mediatizáveis pela razão. Ou ao menos, que o
necessária não porque corresponda a alguma decisão pragmática sobre um agir visando
uma meta histórica, mas sim porque na vida cotidiana os operários sentem a necessidade
ordem. Este texto se insere em um projeto crítico mais amplo de Benjamin, o de pensar
uma ética que escape ao mesmo tempo daquilo que ele reconhece como as restrições
kantianas, que, se não são necessariamente conservadoras, têm como conseqüência uma
hegelianismo, que parece entender o indivíduo como um elemento pequeno demais para
Mais exatamente: este condicionante histórico que forma a necessidade é lido pela
violência:
O poder mítico em sua forma arquetípica é mera manifestação dos deuses. Não meio
para seus fins, quase não manifestação de sua vontade, antes manifestação de sua
existência. Disso, a lenda de Níobe oferece um excelente exemplo. É verdade que ação
de Apolo e Ártemis pode parecer uma mera punição da transgressão de um direito
existente. A hybris de Níobe conjura a fatalidade, não por transgredir a lei, mas por
desafiar o destino – para uma luta na qual o destino terá de ser o vencedor, podendo
engendrar, na vitória, um direito. Até que ponto o poder divino, no sentido da
Antigüidade, não era o poder mantenedor da punição, fica patente nas lendas, onde o
herói, por exemplo Prometeu, desafia o destino com digna coragem, luta contra ele, com
ou sem sorte, e acaba tendo a esperança de um dia levar aos homens um novo direito. É,
no fundo, esse herói e o poder jurídico do mito incorporado por ele que o povo tenta
tornar presente, ainda nos dias de hoje, quando admira o grande bandido. A violência
portanto desaba sobre Níobe a partir da esfera incerta e ambígua do destino. (cf nota 6)
75
trágica. Daí sua importância no idealismo e em seu legado do trágico como modelo para
pensar o limite da liberdade humana. Mas não temos ainda o trágico na mera
manifestação do divino. Ser tocado pelo deus, expressão ambígua que em algumas
sociedades significa sofrer uma desgraça, não é ainda um evento trágico, ou ao menos
não é ainda o que a tragédia representa. É preciso que esta necessidade, justa na piedade
herói tocado pelo deus tenha a chance de manifestar sua oposição. Uma leitura
raposa das fábulas, aquele que burla o poder e o relativiza, que vence porque escapa ao
Hesíodo (Teogonia, 535-540) é ele, por exemplo, que enganando Zeus faz com que os
deuses tenham de aceitar no sacrifício a pior parte dos animais, os ossos e a gordura.
Mas o Prometeu trágico já não é um trickster. Ele, para ser trágico, precisa mimetizar,
ao se lhe opor abertamente, o poder divino. Isto cria um campo de tensão entre a
considerarmos que este herói é um modelo identitário para a pólis, com aquilo que
claro que este homem proposto pelo trágico, embora anteceda e, na verdade, prepare o
herói platônico, é distinto deste. Os campos de tensão com que o herói trágico se
solidão, etc – não podem ser resolvidos de maneira simples, são geralmente aporísticos.
inválido, mas o herói trágico é aquele que mantém esta tensão. E é este tensionamento
76
constante que é responsável pela dimensão mais-que-humana destes personagens.
identidade tencionada como pertencente àquilo que Benjamin chama de criatura. Diz
…, Santner aponta que a palavra criatura deriva do latim creatura, que significa um ser
passando por um processo de criação. É, Santner diz, não tanto o nome de um
determinado estado de ser como o significante de uma exposição que se processa, de ser
apanhado no processo de se tornar criatura através do ditame da alteridade divina. A
dimensão teológica do termo é crucial: a criatura é primeiro e antes de mais nada um ser
criado, um ser que vive sujeita a um soberano (o termo alemão Kreatur tem as mesmas
conotações). À medida que a história do termo progrediu, no entanto, tornou-se
sinônimo com não simplesmente as criações de Deus, mas antes com as linhagens
particularmente monstruosas destas criações. Neste uso, pode evocar compaixão, pena
ou mesmo horror; significa um ser marcado por uma intermediação que põe as
fronteiras entre formas de vida particulares em questão. A criatura torna-se assim um ser
que vive nas brechas entre espécies, uma ameaça ao próprio sistema de classificação. E
é precisamente com este duplo sentido que Santner trabalha, desenvolvendo o conceito
de criatura de Benjamin como um ser liminar [a referência específica é ao Odradek do
texto de Benjamin sobre Kafka] (e de fato como um ser que emerge em situações
liminares, excepcionais) que acha a si mesmo atada biologicamente a um poder
soberano. (ABOTT, In FITZGERALD; SALZANI, 2008: 86)7
O pensamento de Walter Benjamin visa exatamente uma maneira de manter esta tensão
destas tensões não seja catastrófica, como geralmente é. O horizonte da felicidade, que
descrição do poder divino, do sentido da relação do poder divino com a criatura, parece
ser aplicável ao Zeus de Ésquilo. A forma trágica dilui a decisão diante da oposição
forma trágica. No entanto, por uma questão narrativa, o conflito tem de ser fechado, e
não porque o mito não poderia se manter em aberto, mas porque o efeito estético surge
que ganha. A tragédia apresenta o outro possível, mas não se preocupa em atualizá-lo (a
não ser talvez em Eurípides, mas ainda chegaremos lá). O pensamento de Benjamin, no
77
entanto, é exatamente a reflexão revolucionária (no sentido político, inclusive) de por
acorrentado. Em algumas versões do mito Prometeu é rendido por Hércules, que mata a
águia de Zeus e o liberta. Outras referem que teria convencido o centauro Chiron a ficar
oráculo relacionado à queda de Zeus, salvando assim o tirano do casamento com Tétis,
que geraria o filho que o iria destronar. A versão de Ésquilo provavelmente deveria
incluir este detalhe, dado que ele se combina com a idéia de piedade de sua literatura. A
conceito que se formou no século XIX. Nas palavras de Lesky, referindo Goethe:
Aristóteles entende como o “sentido de ser”, mais que propriamente função, da tragédia
possivelmente tem como referência mais as peças do inglês do que o teatro grego. Uma
segunda questão é que Goethe fala de tragédia a partir das reflexões de Lessing sobre a
purgação catártica como um efeito necessário para que a obra de arte possua um sentido
78
moral e didático, uma descarga emocional que ao mesmo tempo libere o espírito para o
conteúdo humano do que foi apresentado. Mais à frente (Capítulo 6) nos deteremos no
Goethe já temos a defesa de uma obra de arte autônoma, de um estético como forma de
conhecimento alternativo a uma razão pura, como uma forma válida do homem se pôr
possamos nos referir à obra hegeliana como uma filosofia trágica, no sentido de que a
trágica em seus momentos mais característicos, nas obras “de horror” de Ésquilo e
valores humanos, a manter a tensão indecidível entre valores éticos e religiosos. É a isto
que havíamos nos referido na introdução quando dissemos que a forma trágica “dilui o
última instância, pertence aos deuses, ao destino, ao incognoscível que se limita com a
experiência humana. O espectador não precisa se prender ao que vê ali, não existe
potencialidade. A catarse é a marca deste desligamento, embora este não seja o sentido
79
clínica grega, a uma homeopatia, especialmente, em que o excesso emocional, ao ser
daquilo que propõe Lessing em primeiro lugar. A maneira mais simples de resolver o
problema de um trágico que não é “tão trágico assim” é fazer a distinção, conforme
propõe Albin Lesky, entre uma visão cerradamente trágica da realidade e outra em que
o trágico é parte integrante de uma cosmovisão, mas não sua forma exclusiva.
O problema central desta posição é que ela tende a diminuir a tensão entre formalização
tragédia enquanto forma, como se o termo “trágico” fosse apenas emprestado e pudesse
ser substituído por algum outro, como fatalismo ou pessimismo, e que a tragédia (o tipo
uma ilustração mais que o objeto próprio a ser definido. Em outros termos, como se
aquilo que a estética busca definir como trágico pudesse prescindir da forma concreta da
conciliatórias, que assombra a tentativa de definição, mas que tem de ser levado em
1
If violence is the great leveler of men and everybody becomes the double, or “twin”, of his antagonist, it
seems to follow that all the doubles are identical and that anyone can at any given moment become the
double of all others; that is, the sole object of universal obsession and hatred.
80
2
Utilizamos aqui termos de Huizinga na descrição do jogo enquanto fundamento da cultura. Cf
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2004.
3
En su forma primitiva, esta victoria sobre la muerte exige la resurrección o renacimiento del héroe: en su
forma más elevada, en el sentimiento que encuentra tan magnífica expresión en EL rival de Sansón, de
Milton, de que, ya sea que el héroe esté o no muerto, ha vencido realmente en algun sentido más profundo
el mal ante el cual ha sucumbido su cuerpo, y que “nada queda para las lágrimas”.
4
Versão própria da tadução francesa de Walter Benjamin:
Et comment Oedipe ne serait-il frappé de mutité, comment la pensée se pourrait-elle jamais déprendre du
rets qui lui interdit de savoir ce qui fait sa perte, le crime même, l’oracle d’Apollon, ou sa propre
malédiction contre le meurtrier de Laïos? Cette mutité, au demurant,ne caractérise pas le seul Oedipe,
mais tous les héros de la tragédide grecque. Et c’est elle que soulignent toujours a nouveau les critiques
récentes: “Le herós tragique n’a q’un langage entièrement à sa mesure, c’est le silence”.
5
Nossa leitura destes textos se deu a partir da tradução de Gandillac para a Denoël.BENJAMIN, Walter.
Oeuvres I: myth e violence.(trad. De Maurice de Gandillac) Paris: Denoël, 1971.
6
Vamos utilizar aqui e na outra citação de Crítica da violência a tradução de Willi Bolle ao texto, Critica
da violência – crítica do poder. In BENJAMIN, Walter.. Documentos de cultura, documentos de
barbárie: escritos escolhidos, (trad. de Celeste H. M. Ribeiro de Souza et al) São Paulo:
Cultrix/EDUSP, 1986. Os trechos citados são de uma reprodução parcial do texto disponível no endereço
http://www.espacoacademico.com.br/021/21tc_benjamin.htm
7
Tadução própria do original em inglês:
…, Santner points out that the word creature derives from the Latin creatura, which signifies a being
undergoing a process of creation. It is, Santner says, .not so much the name of a determinate state of being
as the signifier of an ongoing exposure, of being caught up in the process of becoming creature through
the dictates of divine alterity. The theological dimension of the term is crucial: a creature is first and
foremost a created being, a being that lives in thrall to a sovereign (the German term Kreatur has the same
connotations). As the history of the term progressed, however, it came to be synonymous with not simply
God’s creations but rather with particularly monstrous strains of those creations: in this usage, it can
evoke compassion, pity or even horror; it signifies a being marked by an indeterminacy that puts the
borders between particular life forms in question. The creature thus becomes a being that dwells in the
gaps between species, a threat to the very system of classification. And it is precisely this double meaning
that Santner works with, developing a Benjaminian concept of the creature as a liminal being [a referência
específica é ao Odradek no texto de Benjamin sobre Kafka] (and indeed as a being that emerges in
liminal, exceptional situations) that finds itself biologically tied to sovereign power.
81
3: SÓFOCLES
constrói, como a oposição trágica entre dois campos igualmente poderosos é representada.
são coisas claras, em Sófocles estas razões se tornam dúbias, o argumento, multifacetado,
perde o ponto de inflexão. Mesmo que Clitemnestra ou Orestes cometam suas vinganças
desejos, e poderes são postos sobre a mesa. Sabemos o que motiva cada personagem, pois
uma interioridade. Sabemos com certeza o que motiva Orestes e Clitemnestra, não temos
razão para duvidar do que declaram. Este universo interior, tão exíguo e indistinto do que é
silêncio, uma parte de si é sempre indizível. O que faz com que Jocasta tente impedir Édipo
de chegar à verdade, quando, na iminência de descobrir toda a verdade sobre si, o herói
82
JO Mas eu, contudo, insisto: encerra a busca!
ED Só encerro quando tudo esclarecer.
JO Desejo-te o melhor, quando te falo.
ED Há muito esse melhor só me angustia.
JO Pudesses ignorar tua identidade!
(SÓFOCLES, 2001: vv 1054-1068 (tradução de Trajano Vieira)
É horror, certamente, de estar envolvida em uma história tão terrível. Mas no silêncio de
Jocasta, no seu pedido de silêncio, em seu calar sobre porque quer que Édipo não descubra
a verdade, estão projetadas outras razões em potência – o afeto erótico por seu marido/filho,
mundo, do qual terá de abdicar caso a calamidade que sofre se confirme. Mais que isso, a
inversão do destino que imaginava próprio de si e que se revela falso, isto informa de um
deus perverso, de um homem perverso, de uma ordem diabólica. Mas estas são
possibilidades não ditas, que se sobrepõem e se tornam presentes apenas como leitura, e
É o mesmo com Antígona, que a cada passo de seus argumentos confirma e nega
suas razões. O amor excessivo a Polinices ou à linhagem, o orgulho de sua posição que não
quer abandonar, o sentimento religioso, estas todas são possíveis motivações para seu
desafio a Creonte. Mas a razão de fato, esta escapa à linguagem. Antígona, obviamente, se
justifica: o deus, o amor à família, o puro dever são seus argumentos. Mas nas acusações de
Ismene de Creonte, que não chegam a ser refutadas e colam à heroína, constrói-se uma
que o personagem – e o ser humano heróico, ideal problemático de uma visão e um modelo
de decifração do humano – torna-se alguma coisa mais profunda do que era em Ésquilo.
Pois, esta riqueza interior só é silenciada porque é complexa demais para ser representada
83
de forma distinta, porque escapa à representação enquanto coisa que, embora possa ser
percebida, não pode ser dita. Não é que faltem palavras para Antígona declarar suas razões,
nem que ela as desconheça. Antígona pode dizer o que sente, e, provavelmente, sabe o que
sente, como qualquer outro personagem trágico. O problema é que suas motivações são
algo tão complexo que o dizê-las as esvaziaria de sentido. Elas se sobrepõem de forma algo
mórbida, como em sua idéia de fidelidade aos deuses infernais. Quando no diálogo com
sua ambigüidade, sua riqueza. Mas isto se constrói não através de um porquê – a não ser
que admitamos que a única coisa que está em jogo para Antígona é a piedade religiosa, o
dever para com os deuses infernais, o que seria insatisfatório. A única justificativa na
platéia, o que raios isso significa? E no silêncio surge a arte de Sófocles, em que a máscara
do personagem já não manifesta apenas – sua aparência não diz tudo, as palavras não
bastam, e um continente de sentido – a alma, talvez – resta sem ser dito. Seria fácil e
inadequado pensar isto como uma espécie de formalização da alétheia filosófica, embora
84
necessariamente estas questões estejam na ordem do dia para o teatro de Sófocles. Melhor,
talvez, pensar o silêncio representado por Sófocles como uma técnica de representação,
uma estratégia para representar a “alma profunda cheia de logos” de Heráclito, como talvez
As palavras não bastam. Não bastam porque a complexidade que Ésquilo projetava
Orestes, os vários níveis de significado que a derrota dos persas ou a luta entre os irmãos
manifestavam na ação dos personagens são agora projetados para dentro do próprio
indivíduo. Isto é possível porque este grande eu, dotado de uma alma e de um mundo
interior ao qual nos referimos tantas vezes está a ponto de surgir em sua forma acabada,
3.2. Electras
Ésquilo havia preparado o caminho para que a multiplicidade da ação trágica fosse
internalizada. Possivelmente o momento em que a semente seja lançada nos textos que
chegaram até nós é no reconhecimento entre Electra e Orestes nas Coéforas. Porque aí o
que está em jogo não é simplesmente uma peripécia a mais dentro do enredo, não é
85
efeito da leitura do reconhecimento em um público, não serve apenas para marcar uma
novamente. O efeito possível é o do páthos ente dois irmãos que se amam e que se revêm
após muitos anos de separação e sofrimento. Exatamente este sentido, o mais direto e
versos 210-234), quando se evita o contato entre os irmãos. Orestes se apresenta a Electra, e
logo em seguida pede que a irmã controle sua alegria, para evitar suspeitas sobre seus
planos. O gesto que confirmaria o reconhecimento, presente mais tarde tanto na versão de
Sófocles quanto na de Eurípides, não está lá. Em vez disso um substituto do corpo do outro
é utilizado: as mechas de cabelo, o tecido que envolve Orestes, a imagem da armadilha, que
o toque que confirmaria a aliança, é evitado. Em seguida há o silêncio sobre os dois, outro
– o abraço que não se cumpre, a troca de experiências que é vetada – não impede, no
entanto, que ele percorra a cena. Mas não é representado, nem verbalmente, nem
cenicamente. Isto não quer dizer que o páthos não esteja lá, significa sim que ainda não há
maneira devida de representá-lo, seja por pudor, seja por ainda não haver um modelo de
representação que o autor possa utilizar como ponto de partida. De novo, este não dizer não
se deve a uma falta de palavras, mas sim ao fato de que o lugar da representação da
intensidade entre os gregos sempre foi a objetiva exterioridade da ação. A medida da dor da
perda de Pátroclo é a devastação que Aquiles provoca entre os troianos, a marca de sua
humilhação quando perde Briseida é retirar sua espada contra Agamêmnon. Mas, qual a
86
confirmação da identidade. Na Electra de Sófocles temos um abraço, que traduz a alegria
a voz de Orestes pedindo que ela silencie. Em Eurípides o abraço se repete, mais longo, já
não a marca do páthos do reencontro, mas algo como uma gratuidade do afeto. A distância
de Ésquilo para Eurípides e Sófocles é aquela de algo que não pode ser dito de maneira
simples – em Ésquilo este universo afetivo não é representado, nos outros dois
tragediógrafos é representado através de um abraço, este gesto tão raro nas tragédias, como
qualquer outra espécie de contato entre corpos. É Sófocles que torna o toque uma
linguagem, uma forma de representar o grande afeto, como uma consciência de que a
linguagem verbal não é bastante para dizer a emoção. Dizer a emoção, como Shakespeare
fez, ou como Eurípides ensaiou fazer em algumas peças, exige um certo tipo de consciência
psicológica ainda não formalizada àquela altura – o tipo de olho para o detalhe que
pessoal e intransferível do milagre do reencontro. Este “olho” para o detalhe só viria mais
tarde, mas é interessante notar como, por uma falta de técnica discursiva que obriga
que envolve o personagem, algo mais poderoso é atingido, ou de uma intensidade distinta,
O silêncio é concreto na Electra de Sófocles: Orestes pede que a irmã se cale após o
própria trama: após se abraçarem, Orestes pede que a irmã se cale para que não haja o risco
87
Ésquilo, mas o abraço que antecede o diálogo dos dois estabelece que o silêncio, que o veto
preparação da cena por Sófocles: Orestes dá uma urna com as falsas cinzas de si mesmo à
irmã, que ainda não o reconhece. Electra se desfaz em prantos, fala com a urna como se
falasse com o irmão, a aperta contra o corpo, e, assim, materializa seu desespero. A cena
O que Sófocles faz é criar a antecipação pelo reconhecimento dos irmãos. É um artesanato
tão sutil e ao mesmo tempo tão poderoso que só podemos compará-lo à técnica teatral de
nosso próprio tempo. Pois o que prepara a emoção é o não dito, o vetado, o silenciado, e, no
concentração podemos vislumbrar algo como um si por trás das máscaras, uma alma no
palco, já não a fantasmal entidade dos filósofos, mas uma presença. Karl Reinhardt
descreve esta passagem como uma pequena metabole, não uma virada dramática, mas uma
88
... Pois como Electra pode revelar a profundidade do seu amor fraternal apenas sob a pressão
causada pelo embuste, também Orestes, crescendo por causa da mesma pressão, pode passar
de ânimo renovado, da felicidade da vitória para a percepção dolorosa e compadecida, a fim
de que a alma da irmã, ao tocar o que é igual a ela, incendeie-se. (REINHARDT, 2007: 184)
Esta alma que se incendeia é mais presente, e sua presença é poderosa o bastante para que
Orestes mude seus planos e revele sua identidade à irmã. Isto é já um atestado da
concretude deste espírito que está sendo construído pela cultura grega, pesado o bastante
para afetar o mundo objetivo dos corpos, das palavras e das ações. Outra maneira de
dizermos isto é que, antes que haja o reconhecimento físico e formal entre os irmãos, o que
89
EL Não entendi.
OR Melhor calar: não quero que outros me ouçam.
(SÓFOCLES In EURÍPIDES; SÓFOCLES, 2009: 64-65 (tradução de Trajano Vieira)3
É finalmente no abraço que toda a concentração de emoção que Sófocles criou é liberada. E
neste gesto corporal, o silêncio exigido por Orestes ganha um segundo plano, já não apenas
o silêncio devido à fabulação da peça, o silêncio de Ésquilo, mas uma nova dimensão em
que o silenciar se refere também à contenção da emoção que ameaça transbordar e tomar o
palco inteiro. A dimensão do afeto, do transbordante, esta que torna a alma concreta e
Sófocles há contenção, em parte porque o autor não adere totalmente aos novos valores de
Atenas, dos quais Eurípides será um entusiasta, em parte porque há em Sófocles a intuição
de que esta alma profunda e difícil se representa através de algum nível de silêncio
não proíbe a irmã de se expressar, mas projeta a expansão do afeto para mais tarde.
90
Eurípides parte do princípio de que o efeito trágico passa necessariamente pela
não é teológico, como ainda é em Ésquilo e Sófocles, mas psicológico, de fato, do abismo
entre a alma e o corpo. Este silêncio da alma passa necessariamente por uma relação com o
A dor de Filoctetes, em sua confusão entre corpo e espírito – dor de ter sido traído
pelos companheiros de armas, dor por estar agonizando com uma ferida incurável – é a
dor que o faz olhar a terra procurando a morte e ao mesmo tempo o céu em alguma
identidade com o sagrado, a figura de um ser humano corporal, do mortal distante do divino
e que, no entanto, à sua revelia, ainda precisa desempenhar um papel no drama cósmico.
Este homem que se faz humano no corpo ferido e devastado é um modelo possível para
representa acima de tudo seu corpo, sua dor corporal, um ser humano enquanto ser
A dor que sente não é superável, e tão poderosa que faz com que o herói a
demonstre mesmo publicamente, para sua vergonha e humilhação. E este ser humano frágil
91
é o humano de Sófocles. Como o velho Édipo, como o Hércules agonizante de As
grandeza moral humana ainda é um nada em comparação com estas forças devastadoras e
absolutas que agem sobre o homem, um daímon que se manifesta no próprio corpo, um
gregos tinham gênios para estas potências, exteriores ao homem, como forças invisíveis ou
Sófocles está em entender que estas forças devastadoras são a própria humanidade, e aqui
pela primeira vez nós podemos pensar de fato em uma condição humana para além da
mortalidade e da rendição ao divino. Pois tanto destino quanto morte, dor e decadência, são,
na visão grega tradicional, limites humanos, pontos em que o humano toca o divino, seu
non plus ultra. Este limite trágico, o da inferioridade física do humano em relação ao divino
necessariamente um ser de finitude, e ainda que sua mente possa aproximá-lo do infinito,
este infinito será sempre inicialmente lugar do sublime, do abalo diante de algo muito
maior que a razão dá conta. O que o pensamento faz deste sublime e da finitude humana é
da formalização na obra de arte este sublime possa receber uma mediada humana e retornar
divina não é superável: apenas através de uma série de mediações muito complexas, que
a morte é a figura mais poderosa) é que o ser humano pode contar se aproximar da medida
92
imensa da natureza. O primeiro passo para isso é obter a consciência desta distância,
superação desta distância: primeiro percebê-la, depois confrontá-la. Segundo Gérard Bras
Ao captar um lampejo num corpo, um sorriso de mulher etc, essa arte tende a nos mostrar
não o imutável, o divino – que Hegel chama de o substancial – mas, ao contrário, o efêmero
da substância sensível, a manifestação fenomênica. Com isto, esta arte nos abre para uma
reflexão filosófica sobre o real, não por nos introduzir num mundo verdadeiro para além da
existência natural, mas, ao contrário, por nos levar a pensar que a verdade é a união do ser e
do devir, da essência e das aparências. (BRAS, 1990: 35)
mútua do todo e das partes se religarem na conciliação trágica. A seguir vamos tentar
demonstrar como em Sófocles se processa este momento de cisão entre finitude e infinito
que, em um segundo momento, através do conflito trágico, pode revelar e conciliar homem
e deus. Vamos realizar a seguir uma leitura mais pessoal e especulativa do processo, menos
Assim, há uma condição humana que determina que o homem é ser finito. Esta é a
lugar do homem na ordem das coisas, em oposição aos animais, aos deuses, aos rios e
93
bosques. O que Sófocles está pondo no palco é algo distinto disto, o sofrimento de
dor, decadência e agonia, mas, acima de tudo, uma segunda natureza humana, a
a condição humana, já não um deus ou um gênio, mas a própria essência complicada do que
é ser humano.
Se o morto-vivo que é o herói trágico em Ésquilo é algo que surge para ressuscitar
seu discurso e seu direito, como quem dissesse “eu que estou morto agora vos digo o que
sou, minhas razões e motivos”, em Sófocles temos uma complicação disto. Pois diferente
de Dario, Orestes ou Prometeu, não basta a este morto-vivo, a este estrangeiro conterrâneo
ou qualquer outra tensa conformação criatural que o herói assuma, não basta dar conta da
sua presença. É preciso que ela seja concreta para além de um discurso e uma narrativa, que
adquira e refira um segundo plano, que não é o inacessível do destino, este sempre presente
em toda tragédia, mas o inacessível da alma humana. O herói trágico em Sófocles é aquele
que se diz, diz sua história e direito, como em Ésquilo, mas, mais que isso, diz sua alma, o
rumor estranho e profundo de sua alma. E, na falta de uma técnica consolidada para
apresentar este segundo plano do herói, é no sofrimento do corpo que ele é representado,
como um espírito que se faz carne. Talvez aí, nesta alma-corpo que sofre de Sófocles,
que temos o germe do “espírito se fez carne”. Não se trata apenas de uma extensibilidade
da alma, das metáforas que comparam corpo e espírito, como “meu coração se enche de
luz”, ou “minha cabeça está pesada”, isto tudo já previsto em Parmênides e Heráclito, e
94
formando o mosaico da longa transição da visão antiga para a visão nova. Em Sófocles
temos uma alma que é corpo, que está em consonância com o corpo, com a carne humana:
quando uma sofre outra sofre, o sentido e o destino de uma é o destino de outra. Os heróis
agonizantes de Sófocles se referem àquilo que Nancy escreve em Corpus sobre o substrato
... A outra [versão], a mesma, indiscerníveis e distintas, emparelhadas como no amor. “O”
corpo terá sempre estado no limite destas duas versões, lá onde elas se tocam e
simultaneamente se repelem. O corpo – a sua verdade – terá sido sempre o intervalo de dois
sentidos – cujos intervalos da direita e da esquerda, do alto e do baixo ... não fazem mais do
que se exprimir entre si reciprocamente.
A outra versão da vinda chama-se encarnação. Se digo verbum caro factum est (logos sarx
egeneto) estou num certo sentido afirmar que caro constitui a glória e a verdadeira vinda de
verbum. Mas estou igualmente a afirmar, num sentido completamente diferente, que verbum
(logos) constitui a verdadeira presença e o sentido de caro (sarx). E se, num certo sentido
(uma vez mais), estas duas versões se pertencem mutuamente, e se “encarnação” nomeia
ambas e em conjunto, num outro sentido ainda, no entanto, elas excluem-se. (NANCY,
2000: 64)
explorar agora é a maneira como esta iluminação foi possível a Sófocles, pois, este tipo de
que representa a alma e um sofrimento que torna este corpo concreto surgem de problemas
específicos do palco grego, por um lado da relação do texto trágico com a tradição épica e,
É Bruno Snell que tenta dar conta do problema principal de leitura da épica grega: a
sensibilidade e a visão de mundo grega é radicalmente diferente da nossa. Não é que não
concebe um corpo como todo orgânico conforme entendemos. O corpo é acima de tudo a
95
ação específica do corpo sobre a realidade. O corpo é a perna que corre, a pele que recebe a
armadura ou a que é rompida pela lança, não há um “olhar”, mas antes uma expressão dos
olhos que tem certa intensidade ou mansidão. E a alma, cuja figuração é sempre construída
em relação a um corpo, acompanha este corpo grego composto de partes atuantes que se
Poderíamos, utilizando uma imagem de Snell, dizer que a alma está lá, mas não foi ainda
descoberta, e isto de uma maneira bem complicada: esta alma não pode ser descoberta
como uma ilha é descoberta, ela ainda não está presente. Por outro lado, não podemos supor
(ou ao menos não podemos conceber) uma diferença tão radical em relação a outros
humanos que faça com que algo como uma consciência corporal, como a sensação de um
corpo que limita minha identidade em relação ao resto do mundo esteja completamente
ausente. Assim, é através de analogias que este corpo e esta alma são primeiro
seguida uma alma análoga a um corpo, uma identidade que é também um todo orgânico e
não a manifestação dos “órgãos” do espírito, e, finalmente, uma essência autônoma. Então,
este é um plano contra o qual a literatura trágica se põe: a materialidade e ao mesmo tempo
96
a limitação do corpo e da alma homéricos, pois, embora o texto trágico tenha antecedendo-
o vários séculos de literatura que prepararam tanto o corpo quanto a alma, o modelo básico
de seu discurso é a épica, por conta da dependência da tragédia em relação ao mito. Esta
sua narrativa ao longo de muitos versos e horas, iluminando e ressaltando certas passagens,
construindo os antecedentes do que narra, o texto trágico depende das duas horas em que a
peça individual da tetralogia deve ser apresentada. O único tema é o mito não tanto por uma
momento mais intenso. Os antecedentes biográficos são dados fora do próprio texto trágico,
o que permite que ele concentre sua fabulação naqueles momentos mais intensos de uma
confrontando, surjam sob uma luz mais intensa. Isto, no entanto, se é uma solução, por
permitir à tragédia ser arte de intensidade e de tensão, é também um problema, pois o texto
que serve de modelo à tragédia é contrário ao tensionamento. Auerbach entende isto como
faltando a ela aquilo que é essencial à tragédia, um segundo plano, psicológico, em que a
ação dos personagens ganha um outro sentido. Mas para o surgimento deste segundo plano
idas e voltas narrativas, como “efeito retardador”, seguindo uma discussão de Goethe e
Schiller:
97
Goethe e Schiller, que em fins de abril de 1797 se correspondiam, não especificamente
sobre o episódio aqui em pauta [o da cicatriz de Ulisses na Odisséia], mas sobre o
“elemento retardador” na poesia homérica em geral, opunham-no diretamente ao princípio
da “tensão” – termo esse não propriamente utilizado, mas claramente aludido, quando o
processo retardador é posto, como processo épico propriamente dito, ao trágico (cartas de
19, 21 e 22 de abril). O elemento retardador, o “avançar e retroceder” mediante
interpolações, também a mim, parece estar, na poesia homérica, em contraposição ao
impulso tenso para uma meta. ... Mas a verdadeira causa de impressão de retardamento
parece-me residir em outra coisa; precisamente, na necessidade do estilo homérico de não
deixar nada do que é mencionado na penumbra ou inacabado. (AUERBACH, 1998: 3).
É esta característica da literatura homérica, a compulsão em dizer tudo, mais do que uma
ausência de tensão, descartada por Auerbach, que impede a existência de um segundo plano
movimentado, dos fenômenos, sem que se mostre, em parte alguma, uma forma
possibilidade de uma alma, e é do silêncio parcial sobre elas que surge um segundo plano,
explorado pela literatura trágica. Este é o silêncio do deus, mas é também, e cada vez mais,
Então o texto trágico tem como ponto de partida uma épica em cuja escrita uma de
suas características fundamentais, a tensão entre dois planos de significado, está ausente. A
tarefa do tragediógrafo é tornar presente este segundo plano, especialmente após Ésquilo,
quando esta profundidade da alma humana não era ainda uma questão tão direta quanto
para Sófocles e Eurípides. Como então representar este segundo plano? A resposta mais
direta é através do discurso. E pensemos que a descrição, para um público que é formado
pela audição da épica, não será um recurso pobre. Obviamente no teatro não temos a
98
psicológico em outras modalidades de narrativa. Ele surge às vezes na figura do
mensageiro, que torna presente a ação que ocorreu fora do palco, e os personagens podem
expressar aquilo que sentem, como muitas vezes o fazem. Mas, insistimos, a representação
alma, do homem interior que está presente no trágico. Em um teatro moderno, a expressão
dos atores dá conta disso: as sutis contrações do corpo e da face do ator, o micro-gestual
que tenta tornar presente o movimento da alma. Mas em um teatro de máscaras, que precisa
impossibilidade.
sobre o qual ficavam os atores, separando-os tanto do coro quanto do fundo da cena, era um
espaço longo e estreito. Ele permitia que uma carroça ou um pequeno cortejo ficasse
fosse um grande boneco, imitando o porte do titã. Mas impediria a ação em dois planos
cênicos como uma figuração daquilo que se passava dentro do personagem. Esta seria uma
uma maneira que fosse perceptível para os possíveis quinze mil espectadores do teatro de
99
Dioniso? Não com um franzir de sobrancelhas. Possivelmente havia um gesto que
correspondesse a preocupação, alguma posição das mãos ou alguma postura que a platéia
interpretasse como preocupação. Peter Arnott em seu livro Public and performance in
greek theatre relaciona o gestual do teatro grego com o da oratória. Seu argumento é que
atores e oradores partilhavam algumas técnicas, o que permitia que a profissão dos
primeiros fosse um bom preparatório para a dos segundos. Em ambos os casos, a arte
gestual está ligada à idéia de hypokrisis, a performance ou a ação de tornar as idéias mais
intensas ao ouvinte. De fato, a oratória e o teatro são inseparáveis no teatro grego, e parece
bastante provável que a arte de um campo tenha alimentado a de outro. Segundo Arnott
Podemos deduzir algo dos gestos utilizados pelos oradores gregos. De novo, Ésquines é
valioso. Seus discursos, repletos de acusações pessoais, descreve o comportamento de seus
oponentes. Conta que era um gesto típico de Demóstenes colocar suas mãos sobre a testa.
Este era também um gesto comum do palco. Em outro ponto, Ésquines descreve seu rival
como “girando”. Isto sugere uma atuação [hypocrisis] animada, e vívido acompanhamento
físico. Do discurso de Demóstenes contra Teócrines, parece que era perfeitamente aceitável
para o defensor se jogar sobre os pés de seus oponentes, um toque teatral ainda admissível
nas cortes de justiça. . (ARNOTT, 1989:54)5
gestual tão vivo é tornar o teatro trágico grego como uma arte expressionista.
Necessariamente não havia a sofisticação gestual do teatro No, voltado para um público
expressionismo cênico grego, com gestos fortes como nos filmes alemães do início do
século XX, é criar um contraste grande demais entre esta ostensividade e a sutileza do texto
bem com o teatro de Eurípides, o que talvez nos diga que esta era uma possibilidade para o
100
palco da época. Mas uma possibilidade plena, pensamos, para o texto de Eurípides, não
para o de Sófocles.
Um outro caminho encontrado por Sófocles foi representar a alma pelo corpo, tornar
a alma presente através daquilo que nela toca o corpo, ou seja, a dor. Os abraços de
Sófocles – Orestes e Electra que se abraçam no reencontro, Édipo que abraça Antígona e
Ismene em Colono, o abraço relatado pelo mensageiro entre Antígona morta e Hêmon,
Neoptolemo carregando Filoctetes – são uma das dimensões da importância do corpo para a
arte de Sófocles. O toque traduz uma intensidade do encontro de corpos que o verbo não
daria conta. O toque é uma maneira de estabelecer uma igualdade e uma aliança em um
nível mais profundo do que o discurso, pois se as palavras em Sófocles podem ser vãs e
terem às vezes o sentido contrário do que dizem, o toque é o gesto certo que restabelece
uma certa ordem em um mundo confuso. Toca-se o igual, através do toque minha
identidade se confunde com a do outro. E nessa confusão o corpo projeta uma sombra que é
como na recusa de Édipo em tocar Teseu após o herói ter salvado suas filhas em Édipo em
Colono:
101
Mas o que falo? Como a mim, sem sorte,
Alguém, livre da nódoa da desgraça,
Permitirá que o toque? Eu mesmo não
Posso aceitar: só quem provou ruína
Igual a minha dela participa.
Saudações, à distância! No futuro,
Zela por mim, coo hoje o fazes, justo!
(SÓFOCLES, 2005: vv 1119-1138 (tradução de Trajano Vieira)6
A outra maneira, mais rica e de grande importância para a cultura mais tarde, é
tornar o corpo como aquilo que é indizível, e tornando-o indizível, impedindo que o
discurso tome posse totalmente da dor que é tornada presente, apontar para um outro
silêncio, o da alma. O sofrimento da ferida de Filoctetes é muito mais concreto que a dor
moral que sente por ter sido traído, ao menos é mais representável. Mas na sua
representação é também aquela dor moral que está presente. Da mesma maneira, a velhice
de Édipo é simples de ser tornada presente, e em seu corpo alquebrado e cego, muito mais
fácil e intenso em sua mera presença no palco do que um comentário de Édipo. O corpo
devastado é a maneira de se obter dois efeitos. Primeiro, obter um corpo mais presente, de
Mas é o corpo de Filoctetes que fica mais presente em sua devastação, não porque a doença
seja algo mais atraente que a saúde, nem mesmo em termos de fabulação, mas porque
de um corpo que é ele mesmo alma. Há um passo além em Sófocles, aquilo que marca seu
102
tradicionalismo e, ao mesmo tempo, sua diferença em relação a Ésquilo e Eurípides. Pois,
sua sensibilidade, apesar de ser contemporâneo de Sófocles, ser mais próxima da nossa, e
se Ésquilo é titânico, é o autor que ainda nitidamente mantém traços de uma grandeza épica
em seus heróis, Sófocles é aquele que mais nos faz pensar na palavra gênio. Gênio porque
representação de seus heróis, porque é um autor fundamental, séculos mais tarde, para
nossa própria concepção do que seja o humano, através de seu Édipo e sua Antígona. E esta
genialidade, ou a impressão de genialidade que sua exígua obra nos causa, advém
exatamente disto que para nós é uma inversão de atributos, de haver em suas peças um
Isto não é sem conseqüência, pois esta alma silenciosa em Sófocles, mesmo que
surgida de uma necessidade cênica, por uma espécie de incapacidade de representar uma
alma, torna-se um campo vazio de sentido a ser invadido pelo discurso do corpo. Filoctetes,
Édipo, Antígona, Ájax, todos eles são dotados de um ethos, de um núcleo duro que os
motiva e os obriga a agir da maneira que agem. Mas este ethos não permite, ao contrário de
Seu caráter está acima de sua capacidade de decisão. E, no entanto, se move... Pois ainda
que Sófocles não possa, ou não queira, representar o drama interior, ele ocorre – ocorre
para a sensibilidade do público, que cada vez mais se afasta da visão monolítica e sagrada
da vida, ocorre para a ação trágica – já não o campo amplo do ódio, da maldição, da revolta
Sófocles que nos restaram são desgraças individuais, sofrimentos de indivíduos que se vêm
103
diante do horror de si próprios, dos pequenos gestos que cometeram e que tiveram
deitou com uma mulher, engendrou filhos – como isso produz um miasma? Pensemos em
cadeia de eventos que não planeja nem deseja produz o fim de Ájax.
O que produz esta mais valia monstruosa, que torna o gesto cotidiano de um vivente
em algo horrível, é o deus – é na distância entre o divino e o humano que há espaço para a
desproporção entre um gesto mínimo e uma catástrofe, como uma borboleta que cause um
furacão do outro lado do mundo. Mas além do deus há o homem, a consciência humana. O
que faz com que um gesto menor torne-se cataclísmico é o conjunto de ações coordenado
pelo deus, mas a medida do cataclisma, aquilo que o torna sublime, digamos, é a
consciência do homem que o sofre. Esta consciência que em Sófocles silencia, que não sabe
ou não pode dizer, seja porque a medida humana é pequena demais para o que ocorre, seja
porque o autor não sabe ainda representar esta consciência que pode abarcar a infinita
profundidade do mal sofrido, seja porque, e é aqui que há uma possível grandeza
incomparável do Sófocles autor, do nome Sófocles, porque neste silêncio que não deve ser
preenchido indevidamente por qualquer coisa, por gestos ou palavras, é que está a única
que falseia a descrição – pois aquilo que preenche o discurso devido da alma é o lamento
concreto do corpo. E eis que a alma se torna concreta, torna-se, ela também, corpo.
teatro, e segue a uma lógica própria, relacionada tanto aos recursos cênicos de uma cultura
104
quanto às suas idiossincrasias. A lógica que torna o corpo de Filoctetes mais presente que o
corpo de Neoptolemo, uma lógica cênica, de presença de palco, é a mesma que obriga que
suicidou ou que Astiânax foi sacrificado, mas não vemos os assassinatos e suicídios. Talvez
devamos nos deter um pouco mais sobre o sentido da ação exterior ao palco na tragédia.
ou de uma luta corporal poderia ter efeitos devastadores sobre uma platéia tão numerosa
ponto seria difícil de prever. Outra possibilidade se refere a um pudor diante da morte em
um ritual religioso, como era a tragédia. As mortes e vinganças na tragédia têm uma
dimensão sacrificial para além da simples peripécia do drama, e esta dimensão obrigaria a
sangue dentro do palco, mas impediria a representação do próprio sacrifício. Outra hipótese
é que os limites do palco grego não dariam conta de representar a fuga e o movimento
grego. Mike Wiles, se referindo à organização do palco grego, aponta para o quanto a
skênê, a parede ou tela que dividia o palco entre o que a platéia via e o invisível, meio que
delimita o espaço da ilusão. Segundo Wiles em Tragedy in Athens: performance stage and
theatrical meaning
105
Na relação interna entre a área de atuação e o auditório podemos discernir uma mudança
histórica com a introdução do skênê ou fachada. Inicialmente não havia a parede do palco, e
a audiência se reunia ao redor de um espaço de dança que de forma alguma pretendia
espelhar a realidade. Uma performance assim seria definida por Uberfeld antes como ludus
(uma apresentação festiva) do que como mimesis (imitação da realidade) dentro de um
espaço de atuação que se aproximava de seu modelo “plataforma”. O skênê criava um área
fora do palco oculta e a conseqüente ilusão de que a ação se extendia para onde a audiência
não podia vê-la . (WYLES, 1997: 15-16)7
A separação entre o palco e o bastidor da skênê servia essencialmente para dar aos atores
cordas que seriam utilizados nos momentos mais cênicos do espetáculo. Mas para além de
sua função direta, ele acabava provocando a extensão do palco. Com a skênê a ação podia
Filoctetes, que fugiam à visão do público. Neste espaço fechado o silêncio da representação
ganhava uma dimensão nova, já não era um silêncio sem conseqüências, silêncio da
ausência de conteúdo, de algo que não interessa ao drama, mas, ao contrário, era uma não-
palco. Era por trás da fachada dos bastidores que ocorriam os assassinatos e suicídios,
traço da cultura grega, a extrema publicidade de vida, em que o espaço privado estava
theatre:
Na variante grega desta combinação, certas associações locais e sociais surgem. A sociedade
grega era, primeiramente, uma sociedade ao ar livre. Encontros, assembléias, tribunais,
negócios e cerimônias religiosas normalmente se davam fora de casa, à luz do sol. O grego
dormia sobre seu telhado (como ainda têm tendência de fazer) e realizava uma boa parte de
sua vida privada nas ruas. Ao contrário, o espaço reservado é muitas vezes manchado com
furtividade e suspeição. O que não pode ser abertamente visto é potencialmente perigoso.
Este sentimento transborda das peças. O que é bom, honesto e aberto tem a tendência de
ocorrer do lado de fora; o que é enganoso, furtivo e malicioso, do lado de dentro. Em
106
Agamémnon, o palácio é um lugar de mal corruptor em que o rei entra para encontrar seu
fim. Em Antígona, a heroína, buscando uma conversa com sua irmã, conduz Ismene para
fora do paço, em vez de, como faríamos, para algum lugar privado e protegido do lado de
dentro. Em Medéia, a casa é um lugar demoníaco de onde a voz de Medéia é ouvida pela
primeira vez através de ameaças e que finalmente suga seus filhos para dentro para sua
destruição. (ARNOTT, 1989: 133)8
O silêncio cênico é o que prepara a representação deste outro silêncio, o da alma, e nos
dois casos o não representado serve mais como uma caixa amplificadora do que como um
abafador.
Os lamentos de Filoctetes ao longo da peça, seus ais e seu corpo devastado, sua
fome, seu cansaço, sua agonia, são aquilo que torna seu corpo mais presente. Mas este
corpo de êxtase. É nele que tanto a razão do espírito humano, sua profundidade afetiva e,
de lucidez durante sua agonia que Hércules ata o destino de seu filho Hilo, ao exigir que se
case com Iole e incendeie seu corpo para destruí-lo. No sofrimento do corpo, na
manifestação do poder divino sobre o corpo, é que aparece de forma clara, por contraste, a
natureza do divino, sua essência negativa em relação ao homem, que sofre por sua
crueldade, talvez não propriamente da crueldade do deus contra o homem, mas a crueldade
da distância entre as duas naturezas. E esta crueldade deve ser ouvida, deve ser vista e
aceita. É este talvez o sentido da fala final de Hilo, quando faz o comentário sobre as
E que vós sabeis de toda a inclemência dos deuses no decorrer destes fatos. Eles, que
geraram e são chamados, pois assistem impassíveis a tamanhos sofrimentos. Os do futuro,
107
ninguém consegue os divisar, os do presente, deploráveis são para nós, e vergonhosos
quanto aos deuses. Mas os mais penosos são os que se apresentam ao homem que esta
desgraça suporta. (SÓFOCLES, 1996: vv. 1265-1278 (tradução de Maria do céu Fialho)9
O fechamento da peça “mas, em tudo isto, nada que não seja obra de Zeus” (vv1277-78),
corporal no palco é pensarmos o estatuto desta dor. A obra clássica de Elaine Scary, The
body in pain, talvez seja uma boa referência para liderar nosso questionamento. A tese
que sofre. O corpo que sofre é meu corpo, mas não sou eu, esta dor que abrigo é exterior a
mim, e mesmo assim faz com que aquilo que sou, todo o arcabouço de experiência que
forma minha identidade, se confunda com a dor. Nos termos de Scarry, a voz do corpo, no
grito de dor, no gemido, no pulsar da dor, cala a voz do espírito. Sua preocupação principal
é entender o estatuto da tortura e da guerra, de que forma a relação de poder entre vítima e
algoz, que se dá sobre o corpo mas também sobre a linguagem, cria o mecanismo de
subjugação da vítima. Assim, a dor não existe em uma dimensão puramente física, mas
destruição desta alma, a destruição do mundo a que ela se liga. É daí que a experiência da
desligado de todo seu referencial. Solidão que se constrói através da linguagem: a dor é
108
incomunicável, ela torna a linguagem insuficiente. Mas, ao mesmo tempo, é na dor que a
linguagem brilha e pode surgir com mais força. Nas palavras de Scarry
Filoctetes junto de Gritos e sussurros de Bergman são apresentados como os dois maiores
modelos de representação da dor, representando esta dialética entre corpo e alma que
Scarry está pensando. Os vários ais de Filoctetes, que ele intercala com imprecações e
momentos de lucidez, são exatamente a medida desta dor corporal que comunica ao mesmo
tempo que destrói a alma. O mundo roubado de quem sofre põe a vítima em uma solidão
absoluta, e nesta solidão está a condição humana. Por outro lado, é a solidão da dor que
obriga a vítima a transcender sua experiência normal e ganhar uma nova perspectiva, a
Neoptolemo após obrigar o jovem a jurar que não o deixaria sozinho, vemos esta solidão e
109
A agonia do herói faz com que ele procure o deus, faz com que o perceba, na verdade. Mas
natureza, ser jogado em uma solidão ainda mais absoluta do que a anterior. Pois aquilo que
seguindo o pensamento de Hölderlin, explica isso por uma espécie de lucidez tetânica de
Sófocles, que consegue aceitar o deus mesmo que seu sentido seja o sofrimento, mesmo
que o papel que esta divindade reserve ao homem seja o lugar do sofrimento e da injustiça.
Segundo Reinhardt:
A leitura que Reinhardt faz de Sófocles é baseada nos temas de Hölderlin do afastamento
do deus e da estrutura excêntrica, como centros de gravidade que de uma distância infinita
se repelem e atraem, da relação entre o homem e divino. Assim, embora possamos aceitar
que devido à tradição e à visão de mundo grega este deus seja aceito e respeitado, não
conseguimos ver em Sófocles uma adesão tão imediata ao sentido deste deus. É verdade
herói, no caso de Filoctetes a recuperação de sua honra e de seu corpo, prometida pelos
110
olímpicos através de Hércules, no caso de Édipo sua ascensão no final da peça, quando
desaparece “tragado” pelo deus em vez de simplesmente morrer. Mas o sofrimento já foi
dado, ele não se apaga na ascensão. Desta perspectiva, o deus ex machina da aparição de
Héracles não apaga os sofrimentos nem o abandono de Filoctetes. E o absoluto em que ele
parece querer se dissipar, seu retorno ao centro, ao círculo celeste, é impossível sem a
consciência do mal sofrido. Esta consciência é o dom que o trágico deixa à platéia.
Sófocles acreditamos que se dê algo distinto, talvez pelo estatuto do corpo em suas peças.
tempo, a fome, o desejo, a dor. O deus em Sófocles é aquele que tortura o homem, que o
castiga (ou que está tão distante que recusa até mesmo o castigo, como na leitura de
Hölderlin sobre Édipo rei) por um crime que foi necessário – no momento em que o herói
decide agir e seu ethos se manifesta, cada um de seus atos é inevitável para que o sentido de
humanidade. E esta relação, em que há uma violência essencial, não simplesmente uma
violência contra um ato específico em um sentido policial, mas uma violência de um poder
fundador que se volta contra aquilo tudo que é o herói, é o elo entre deus e homem. A
linguagem do deus é a violência, é pelo sofrimento que ele dá sua presença, e nesta
plenamente livre do que sem o confronto. A condição para que a relação violenta entre deus
e homem produza conhecimento é que o homem possa renunciar ao universo sensível, por
um lado, e que o deus aceite a presença do homem, de sua liberdade e grandeza, como parte
111
conhecimento em que a relação entre homem e deus toma a forma perversa da tortura, de
simplesmente um poder essencialmente cruel tentando manter seu domínio sobre o herói.
Tortura, então, para retornar por um momento para o ponto de início, consiste de um ato
físico primário, a inflição de dor, e de um ato verbal primário, a interrogação. O ato verbal,
por seu turno, consiste de duas partes, “ a pergunta” e “a resposta”, cada uma com
conotações convencionais que a falsificam completamente. “A pergunta” é enganosamente
entendida como “o motivo”; “a resposta” é enganosamente entendida como traição ... Uma é
absolvição de responsabilidade, a outra é uma confissão de responsabilidade, as duas juntas
viram de cabeça para baixo a realidade moral da tortura. (SCARRY, 1985: 35)12
Quando Scarry diz que a resposta do torturado é uma traição, ela se refere tanto ao fato do
tortura é uma falsificação da verdade da situação, mas está longe de ser algo leviano. Há
uma dimensão teológica neste tipo de relação entre verdade e sofrimento, que é
representada nas peças de Sófocles, e isto por uma coincidência de necessidade cênica e das
sofrimento infligido e uma linguagem que deve surgir do sofrimento é mais franca, sem as
simplesmente mantenedor de uma ordem. Mas para que este processo de obtenção de
conhecimento através do sofrimento seja verdadeiro, para que ele revele um poder
Schelling, em sua X carta de Cartas sobre dogmatismo e criticismo, que podemos ler esta
112
A potência divina é demasiado sublime para ser corrompida por lisonjas, seus heróis são
demasiado nobres para poderem ser salvos pela covardia. Aqui nada mais resta do que –
lutar e sucumbir
Mas tal luta também só é pensável através da arte trágica: não poderia tornar-se um sistema
de agir [e podemos identificar aqui uma das raízes da restrição de Benjamin ao poder
policial mantenedor da ordem,], já porque um tal sistema pressuporia uma raça de titãs e,
sem essa pressuposição, redundaria, sem dúvida, na maior ruína para a humanidade. Se
nossa espécie fosse destinada a ser torturada pelos terrores de um mundo invisível, não seria
mais fácil ser covarde diante da potência superior desse mundo, estremecer diante do menor
pensamento de liberdade, do que sucumbir lutando? Mas, de fato, se assim fosse, nos
atormentariam mais os pavores do mundo presente do que os terrores do mundo futuro. O
mesmo homem que mendigou sua existência no mundo supra-sensível torna-se, neste
mundo, um espírito de flagelo da humanidade, que se enfurece contra si mesmo e contra os
outros. Das humilhações daquele mundo, o domínio deste mundo deve desagravá-lo. Ao
despertar das beatitudes daquele mundo, ele retorna a este para fazer dele um inferno. E é
uma sorte se ele se embala nos braços daquele mundo para tornar-se, neste, uma criança
moral. (SCHELLING in FICHTE; SCHELLING, 1973: 209)
Para que haja substância ética, para que haja uma moralidade categórica, é necessário que o
sofrimento humano (no pensamento idealista causado e sempre referente à distância entre o
mundo finito do ser humano sensível e o infinito que ele anseia), seja uma expressão de sua
entre aceitação do limite e, nesta aceitação, ainda assim manter o impulso em direção à
alteridade divina, é o que permite que o deus surja. Assim, o que esta coincidência produz é
chega à conclusão de que foi mais vítima da necessidade que um agente consciente de seus
113
atos, e assim reconhece a grandeza divina, é uma destas instâncias de renúncia. Édipo trai
aceitar Édipo em seu seio, traindo-se também, ao se manifestar e quebrar a distância entre
deus e homem. Mas a base da reconciliação, assim como a base do conflito contra o deus,
está no homem, no ato da confissão, já não a admissão de uma culpa ontológica, como num
traição no ato de confessar – a dor do Édipo velho o obriga a confessar aos anciãos sua
história, e nisso se desarma e se trai. A história de si, que tão ciosamente protege, é
guardada por uma razão concreta: o temor de que sua impureza motive sua morte ou
expulsão por outros. Quando Édipo confessa se abandona a uma solidão absoluta, em que
rompido. Mas é esta ruptura que permite sua redenção: é reconstruindo lucidamente sua
ao horror – que Édipo adquire de novo presença entre os homens. Sua fábula continua
terrível, mas após o sofrimento de uma vida, o velho pode dizer “cheguei aonde cheguei
nada sabendo”:
114
Se posso mencionar meus genitores,
que fomentam o atual pavor. Bem sei.
Nada macula minha natureza:
Reagi ao que sofri. Acaso fui
Agente ciente? Quem me diz que errei?
Cheguei aonde cheguei nada sabendo;
Sofri por quem, sabendo, me arruinou.
(SÓFOCLES, 2005: vv. 258-274 (tradução de Trajano Vieira)13
episódio do encontro com Laio, quando o cortejo do pai o ataca. Mas, considerando a
conhecimento. Daí o poder de sugestão que a catarse tem sobre a mente ocidental, tão
grande que obscurece seu sentido original, médico e religioso, de expurgo. O sentido
Para que as emoções excessivas sejam expurgadas é preciso que sejam primeiro animadas,
para que se possa superar o sofrimento – e, na tragédia, mais que isso, a própria morte – é
preciso sofrer. E devemos entender este aprendizado pela dor não da maneira pragmática
constrói como um acúmulo, como em alguma espécie de relação econômica com a vida,
trágico se refere a algo mais essencial, a intuição de que, ao sofrer – e em Sófocles estamos
conseguimos vislumbrar alguma coisa nova, talvez a outra metade inacessível da condição
115
humana, a que diz respeito apenas aos deuses. É assim também que lemos a fala de
Ésquilo, em momento nenhum chega a conhecer algo novo, talvez porque possua
negativo em que foi capturado. Prometeu não confessa, apenas relata o que aconteceu
um destino que Prometeu recusa. Embora sua experiência de sofrimento já aponte para
aquilo que estamos chamando de conhecimento trágico, será apenas com Sófocles e
Eurípides que teremos isto bem elaborado. Pois ao deus de Ésquilo é devida apenas
obediência. Qualquer outra relação, que permitisse experimentar o divino como algo
palpável, como um campo a ser conquistado, é vetada. Quando Sófocles representa a alma
pelo corpo uma forma é encontrada, e esta forma, embora acreditemos que tenha surgido de
razões práticas cênicas, tem como conseqüência uma nova visão. Para representar a parte
divina do humano foi necessário utilizar o corpo, e para representar um corpo de forma
mais intensa foi necessário atá-lo ao sofrimento. Alma é igual a corpo, que é igual a
campo infernal, em que o sentido da vida, tanto do lado da experiência imanente e concreta
são essencialmente torturados pelo destino. Ele parece dramatizar o jogo de poder que se
constrói entre torturado e vítima: a voz do corpo aponta para o silêncio do sentido, tanto o
116
sentido cósmico do papel do homem na ordem das coisas quanto do sentido moral da razão
mal faz parte de uma certa ordem de manutenção da vida. Ao contrário de Jó, personagem
quase trágico, o herói de Sófocles não aceita pacificamente a manifestação divina. O deus
existe e exerce seu poder, mas este poder sem que o deus se aproxime do homem é vazio: é
Quando em Colono Édipo declara sua inocência, quando diz que “Os atos padeci, não
cometi”, este perdão é obtido mais através da própria consciência, de uma avaliação lúcida
de seus atos, e não de um dom divino, de uma epifania ou de uma purificação – é Édipo que
se autopurifica e declara inocente, não o ritual, não o deus. Sua “inocência” é uma afronta
ao deus, em parte porque ela é parcial – Édipo continua sendo culpado de hybris, de ter
suposto que sua razão pode se igualar à do deus – em parte porque esta liberação do erro é
reconhece o poder do deus mas exige que o deus, como Édipo, se torne outro e supere a
conhecimento trágico é exatamente o processo espiritual pelo qual esta fronteira começa a
mas no desejo de conhecer sua natureza, está sendo desenhada na tragédia. E esta natureza
em seu efeito sobre o homem, o mal divino que é a força do tempo, da biologia, do frágil
tecido do homem, não é plena e não corresponde à dignidade desta alma e pensamento.
117
indissoluvelmente a um corpo, mas paralelamente estabelece a diferença abismal entre alma
e corpo, pois no mais agudo da dor ainda há algo que resiste à dissolução, e este algo brilha
com mais força exatamente quando a voz do corpo agonizante obriga a voz da alma a se
Pois o que o processo de tortura faz é dividir o ser humano em dois, para tornar enfática
aquela distinção sempre presente, mas, a não ser no caso extremo de doença e morte,
apenas latente entre uma consciência e um corpo, entre um “eu” e “meu corpo” ... [tortura é
como a morte] pois na morte o corpo está empaticamente presente enquanto aquela outra
parte elusiva representada pela voz está ausente de maneira tão alarmante que até céus são
criados para explicar aonde foi. (SCARRY, 1985: 49)14
relação entre homem e deus. A conclusão possível, que só se manifesta no vazio absoluto
se confrontam com a distância e exigem sua superação. Seu prêmio é conquistado por conta
própria: o conhecimento de que o ser humano é frágil, mas que nesta fragilidade existe
grandeza heróica, a grandeza de retornar a um lugar onde a agonia não seja o sentido
nisto Ésquilo já contribui. Este ir ao inferno e retornar, tocar o mal e a morte e ainda assim
118
novidade trágica é imaginar que mesmo o corpo humano devastado, ou seja, o corpo do
homem real em oposição ao corpo do mito arcaico, é capaz deste feito. E aqui temos a
levará à filosofia. Talvez este seja o sentido das máscaras de Górgonas que decoravam os
1
Na tradução de Kury (SÓFOCLES , 2002: vv 7885)
Procede como te aprouver; de qualquer modo/ Hei de enterrá-lo e será belo para mim / morrer cumprindo
esse dever: repousarei/ ao lado dele, amada por quem tanto amei/ e santo é o meu delito, pois terei de amar /
aos mortos muito, muito tempo mais que aos vivos./ Eu jazerei eternamente sob a terra
E tu, se queres, foge à lei mais cara aos deuses.
2
Na tradução de Kury (SÓFOCLES In ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES, 2007: vv 1175-1186)
OR Ah! Dize-me senhora: teu nome é Electra?
El Este é o nome muito infeliz que sou...
OR Lamento imensamente tanta desventura!...
EL Será mesmo de mim que te condóis, senhor?
OR Devem ser grandes tuas penas. Sinto muito...
EL Tuas palavras cabem-me como a ninguém.
OR Destino amargo!... Sem esposo... Desditosa...
EL Por que te mostras comovido, forasteiro?
OR Não tinha consciência de meus próprios males...
EL E como percebeste isto neste instante?
OR Vendo teus sofrimentos, tantos e tão grandes
3
Na tradução de Kury (SÓFOCLES In ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES, 2007: vv 1218-36)
119
(Orestes tira gentilmente a urna das mãos de Electra)
EL Então onde é a tumba do infeliz Orestes?
OR Em parte alguma; os vivos não têm sepultura.
OR Que me dizes, menino?
OR Digo-te a verdade.
EL Então ele ainda vive?
OR Não pareço vivo?
EL És ele?
OR Sou. Observa bem este sinete,
Outrora de meu pai, e dize que não sou!
EL Bendito dia!
OR Mais ainda para mim!
EL É esta tua voz?
OR Só esta escutarás!
EL (abraçando Orestes) Tenho-te então nos braços?
OR Terás para sempre!
EL Amigas minhas! Eis Orestes! Contemplai-o!
Fingindo-se de morto, ei-lo afinal de volta,
vivo e saudável, graças a seu fingimento
CO Estamos vendo, filha, e por esta ventura
Choramos incontidas lágrimas de júbilo!
EL Filho de um pai extremamente amado,
Chegaste aqui de volta finalmente!
Vieste, achaste e viste quem querias!
OR Este era o meu desejo, mas guarda silêncio
EL Por quê?
OR Calemos ambos; alguém pode ouvir-nos
120
4
Na tradução de E. P. Coleridge (EURÍPIDES, 1938: vv 576-598)
5
Tradução própria do original em inglês:
We can deduce something of the actual gestures used by Greek orators. Once again, Aeschines is valuable.
His speeches, crammed with personal invective, describe the behaviour of his opponents. He tells us that it
was a typical gesture of Demosthenes to put his hand to his forehead. This was also a common gesture of the
stage. Elsewhere, Aeschines describes his rival as ‘twirling around’. This suggests an animated delivery
[hypokrisis], and lively physical accompaniment. From Demosthenes speech against Theokrines, it appears
that it was perfectly in order for de defendant to throw himself at his opponents feet, a theatrical touch still
permissible in the lawcourts
6
Na tradução de Kury (SÓFOCLES, 2002, Édipo em Colono: vv 1300-1324)
121
Pode participar das minhas; cumprimento-te
De onde me encontro e peço-te que no futuro
Me ajudes lealmente como até agora.
Stranger, do not be amazed at my persistence, if I prolong my words to my children, found again beyond my
hope. I well know that my present joy in them has come to me from you, and you alone, for you—and not any
other mortal—have rescued them. May the gods grant to you my wish, both to you yourself and to this land;
for among you, above all mankind, I have found piety, the spirit of decency, and lips that tell no lie. I know
these things, and I repay them with these words; for what I have, I have through you, and no one else. Stretch
out to me your right hand, lord, that I may touch it; and if it is right, let me kiss your cheek. But what am I
saying? Wretched as I have become, how could I wish you to touch a man in whom every stain of evils has
made its dwelling? I will not touch you—nor will I allow it, if you do consent. They alone, who know them,
can share these burdens. Receive my greeting where you stand, and in the future too give me your righteous
care, as you have given it up to this hour.
7
Tradução própria do original em inglês:
In the internal relationship of acting area to auditorium, we can discern a historical shift upon the introduction
of the skênê or façade. Initially there was no stage wall, and the audience gathered around a dancing space
which did not in any way purpot to mirror reality. Such a performance would be termed by Ubersfeld as ludus
(festive enactement) rather than mimesis (imitation of reality) within an acting space which approximates to
her ‘platform’ model. The skênê created a hidden off-stage area and the consequent illusion that the visible
action extended where the audience could not see it.
8
Tradução própria do original em inglês:
In the Greek variant of this combination, certain local societal associations appear. Greek society was,
primarily, an open-air society. Meetings, assemblies, courts, tribunals, business dealings, and religious
ceremonies commonly took place outdoors, in the full light of the sun. Greek slept on their roofs (as they still
tend to do) and carried on a good deal of their private life in the streets. Conversely, indoors is often tainted
with furtiveness and suspicion. What cannot be openly seen is potentially dangerous.
This feeling washes over the plays. What is good, honest, and open tends to happen outside; what is sly,
furtive, and malicious, inside. In Agamemnon the palace is a place of festering evil, that the king enters to
meet his doom. In Antigone the heroine, seeking conversation with her sister, leads Ismene ‘outside the
courtyard’, rather then, as we would, to some private and protected place indoors. In Medea, the house is a
demonic place from which Medea’s voice is first heard threatening and which ultimately sucks her children
inside to their destruction
9
Na versão de Jebb (SÓFOCLES, 1892: vv. 1275-1278)
And you, maiden, do not be left at the house. You have seen immense, shocking death, with sorrows great in
number and strange. And in all of them there is nothing that is not Zeus.
10
To witness the moment when pain causes a reversion to the pre-language of cries and groans is to witness
the destruction of language, but conversely, to be present when a person moves up out of that pre-language
and projects the facts of sentiense into speech is almost to have been permited to be present at the birth of
language itself.
11
Na versão de Jebb (SÓFOCLES, 1898: vv 812-820)
122
FI Up there!
NE What is this new delirium? Why do you gaze at the dome above us?
FI Let me go, let me go!
NE Where will you go, if I do so?
FI Let me go, I say!
NE I will not.
FI You will kill me, if you touch me further.
NE There, then, I release you—if in fact you believe it is for the better.
FI Wide Earth, embrace me now on the verge of death!
This pain no longer lets me stand up.
12
Tradução própria do original em inglês:
Torture, then, to return for a moment to the starting point, consist of a primary physical act, the infliction of
pain, and a primary verbal act, the interrogation. The verbal act, in turn, consists of two parts, “the question”
and “the answer”, each with conventional connotations that wholly falsify it. “The question” is mistakenly
understood to be “the motive”; “the answer” is mistakenly understood to be betrayal … The one is absolution
of responsibility,; the other is a confessing of responsibility, the two together turn the moral reality of torture
upside down.
13
Na tradução de Kury (SÓFOCLES, 2002, Édipo em Colono: vv. 264-286)
123
What help comes, then, of repute or fair fame, if it ends in idle breath; seeing that Athens, as men say, is god-
fearing beyond all, and alone has the power to shelter the outraged stranger, and alone the power to help him?
And where are these things for me, when, after making me rise up from this rocky seat, you then drive me
from the land, afraid of my name alone? Not, surely, afraid of my person or of my acts; since my acts, at least,
have been in suffering rather than doing—if I must mention the tale of my mother and my father, because of
which you fear me. That know I full well. And yet how was I innately evil? I, who was merely requiting a
wrong, so that, had I been acting with knowledge, even then I could not be accounted evil. But, as it was, all
unknowing I went where I went—while they who wronged me knowingly sought my ruin.
14
Tradução própria do original em inglês:
For what the process of torture does is to split the human being into two, to make emphatic the ever present,
but, except in the extremity of sickness and death, only latent distinction between a self and a body, between a
“me” and “my body” … [torture is like death] for in death the body is emphatically present while that more
elusive part represented by the voice is so alarmingly absent that heavens are created to explain its
whereabouts.
124
4: EURÍPIDES
A imagem de Eurípides ficou marcada para nós como a do autor ambíguo que ao
mesmo tempo mantém e destrói a tragédia. A leitura moderna passa muito pela posição de
Nietzsche, que considera a tragédia de Eurípides como o fim da era trágica dos gregos: já
não a grandeza da tensão trágica, mas um tipo de arte que estaria tão próxima do espírito da
filosofia platônica que já não poderíamos falar de um espírito trágico. A contra-face desta
leitura é a posição de Eurípides na antiguidade e mesmo nos ciclos trágicos modernos: foi o
autor mais popular entre os pósteros da Atenas clássica, e através de Sêneca influenciou a
tragédia de Shakespeare. Racine tem uma Fedra, e a mente presa em um pesadelo dos anti-
heróis shakespeareanos típicos, como Macbeth, Hamlet ou Lear, está muito mais próxima
mesmo tempo o traidor do espírito trágico e o autor cuja leitura foi responsável pela
renovação do trágico. Talvez aqui nós possamos nos referir à distinção entre uma leitura
colada a um projeto filosófico e uma outra que se cola a um projeto estético. Aquela
percebe a obra de Eurípides como deletéria, um vacilo que quase escapa da espécie, da
idéia de trágico, e que ajuda a fundar a metafísica, este grande pecado do Ocidente. A
disso paixão e êxtase, acima de tudo uma imagem do homem transfigurada pela emoção, e
125
Esta é a imagem de Eurípides entre os que vieram depois, entre os próprios gregos a
provavelmente por entender que na obra de Eurípides o efeito catártico é atingido de forma
mais direta e intensa. Isto aponta para o fato de que, provavelmente para a Atenas que
os valores representados em Ésquilo e Sófocles já não diziam tanto quanto há alguns anos.
É óbvio para Aristóteles que as peças de Eurípides são imperfeitas, no sentido de que o tipo
de artesanato sutil que vemos em Sófocles e o peso orgânico das obras de Ésquilo estão
episódios fragmentários, sem muita preocupação com a concatenação entre causas e efeitos
que é um dos encantos até hoje na obra dos dois outros tragediógrafos. Eurípides, por outro
mendigos em vez da grandeza heróica que marca a obra de Ésquilo, é o índice de como a
obra de Eurípides era percebida por uma parte mais conservadora da sociedade ateniense.
Eurípides teria ensinado o povo a falar em suas peças, mas, ao custo de ter enfraquecido sua
têmpera. Se Os sete chefes contra Tebas de Ésquilo é uma peça cheia de Ares, cheia de
emoção marcial e celebração de um páthos guerreiro, As fenícias, que trata do mesmo tema,
ou As troianas, que representa a situação das mulheres troianas escravizadas após a queda
da cidade, são peças antibélicas, e, como Aristófanes acusa Eurípides, peças femininas, de
126
desenho essencial daquilo que incomodava aos contemporâneos do autor trágico. No
filósofo, há a reclamação de que Eurípides parece abdicar de uma espécie de ilusão cênica –
pois a sua fabulação, por ser às vezes incoerente e mal concatenada, obriga o espectador
todo instante a se lembrar de que está diante de uma obra de artifício, que nada daquilo é
verdade, ou então, o que é pior, que qualquer coisa é possível, que o milagre e o acaso
aparição de Egito em Medéia, é isto que está em jogo, a exigência do filósofo de que o
círculo mágico da representação teatral seja mimético de uma maneira conseqüente, que os
mecanismos de causa e efeito que constroem a realidade concreta da vida estejam presentes
Eurípedes são excessivamente banais, que suas questões são questões menores, ou ao
EU “Egito, segundo a tradição comum, alçando as velas para ir a Argos com seus
cinqüenta filhos...”
ES ... perdeu sua garrafinha.
EU Que significa esta garrafinha? Você se arrependerá por isto!
DIÔNISO Recite para ele outro prólogo, Eurípides, queremos ouvir mais.
EU “Diôniso que, armado com o tirso e coberto de peles de veadinhos, dança no cume
do Parnaso à luz das tochas...”
ES ... e perdeu sua garrafinha.
EU Para o golpe, eis aqui um prólogo ao qual ele não o poderá aplicar: “Não existe
homem algum feliz em tudo; um oriundo de uma ilustre origem, não tem fortuna;
outro de nascimento obscuro...”
ES ... perdeu sua garrafinha.
DI Eurípides!
127
ARISTÓFANES, As rãs, 2004: pp 258-259 (trad. Mário da Gama Kury)1
desejo de representar homens, mulheres e paixões reais. Miséria humana, medo, estupidez,
são sentimentos bastante comuns nas peças de Eurípides, e marcam a diferença deste autor
trágico não deve ser nem muito superior nem muito inferior ao homem normal, serve muito
bem para caracterizar as peças de Eurípides, mas nem tanto a têmpera heróica de Prometeu,
e Antígona, ou a coragem espiritual de Édipo. Seus personagens são mais verossímeis, são
A seguir, supondo que a acusação seja “Isto não é verdade”, pode-se respondê-la dizendo
“Mas talvez pudesse ser”, como Sófocles, que disse que retratava as pessoas como deveriam
ser e Eurípides como elas eram. (Poetica, XX, 1460b; ARISTÓTELES, 1932, v. 23)2
decadência, de um poeta que recusa seu papel de pedagogo e investe em uma mimese
distinta da que vinha sendo feita até então. Os personagens de Eurípides são mais
deuses, como Ésquilo e Sófocles, e nisto há a ruptura com uma tradição religiosa e ética
128
que Aristófanes não consegue perdoar. Acima de tudo, há a recusa do poeta de um papel de
vate, de voz do invisível e antena do deus, como Platão caracteriza o poeta no Íon, mas
recusa também em declarar que este invisível na verdade é cognoscível, como faria a
filosofia. Eurípedes não é mais um vate e não é ainda um filósofo, e esta recusa dupla é que
define seu lugar na ordem trágica. Jaeger vai descrevê-lo como um autor entre dois
mundos, que nem concorda com os valores tradicionais em que a tragédia se formou nem
adere plenamente ao racionalismo de que a filosofia platônica seria o grande furto. Segundo
Jaeger:
Eurípides é o último grande poeta grego no sentido antigo da palavra. Mas também ele tem
um pé distante daquele em que a tragédia grega nasceu. A antiguidade o chamou de filósofo
do palco. Na verdade pertence a dois mundos. Nós o situamos ainda no mundo antigo, que
estava destinado a derrubar, mas que brilha mais uma vez na sua obra com o mais alto
esplendor. A poesia conserva ainda para ele o antigo papel de guia. Mas abre o caminho ao
novo espírito que a arredaria da sua posição tradicional. É um daqueles grandes paradoxos
nos quais a história se compraz. (JAEGER, 1995: 396)
É um homem da crítica do humano, mas não um homem que proponha um novo humano. É
humana. As paixões humanas, já não ligadas a uma força exterior ao homem, como na
visão tradicional que ao menos Ésquilo adota plenamente, é o que move e brilha mais forte
nas tragédias de Eurípides. Nós vamos retornar a isso mais à frente, mas por enquanto
129
vamos concordar que a mimese euripidiana tem a pretensão de representar o mundo
sentimental e psicológico dos personagens. Este é o plano principal da ação trágica, é nos
sentimentos dos personagens, em suas decisões e medos, que encontramos a base de suas
seguida na maneira como esta indestrutibilidade se torna presença agônica de uma alma e
de um corpo em Sófocles. Nos dois casos, este homem interior que vai surgindo se põe
absoluto moral nesta manifestação, e temos já o indício de uma autonomia moral humana.
O que Eurípides vai fazer é utilizar estes temas, mas estabelecendo uma mudança
fundamental: em sua literatura o lugar do deus é um lugar vazio. E neste vazio do divino,
que não é simplesmente o retraimento de Ésquilo e Sófocles, mas de fato uma ausência de
presença divina atuando sobre o mundo. Não é que em Eurípedes os deuses sejam cruéis
com os homens, eles simplesmente não existem ou não se importam. Nesta ausência existe
a possibilidade do humano surgir como motor da ação, mas sempre de uma forma
a justiça dos deuses, embora cruel, é um fundo de sentido que impede o absurdo, esta
existência e de pensar o lugar do negativo em uma economia da vida, quando o deus deixa
de existir como um pressuposto ético e religioso para a ação humana, este mal é
130
internalizado para o círculo dos homens e seus desejos e razões. É preciso deixar claro que
divindades são ainda os motores por trás da destruição humana. Em As troianas o grande
plano da ação é também definido pelo diálogo entre Posidon e Atena, e em As fenícias é o
elemento mágico da maldição paterna que justifica a ruína dos labdácidas. Mas em todos
estes casos, o que é representado não é a relação dos homens com estas potências, mas sim
a relação dos homens entre si: o que importa para Eurípides não é mostrar a imposição do
deus sobre o homem, como no caso de Édipo ou do Orestes da Orestéia, não a relação deste
homem com o absoluto devastador da divindade, mas sim como funciona a alma humana
em certas situações limites, como o homem se move, e discute, e age quando está diante de
coisas terríveis. Ou seja, quando Eurípides representa o mal, suas peças não procuram tocar
o humano sob o jugo da divindade, mas sim tocar o humano sob o jugo de si mesmo. Isto
significa que suas peças são geralmente estudos de situações: como um certo homem ou
mulher agem em tal situação, o que passa pela cabeça de tal personagem se perde um filho
ou é ameaçado de morte, até que ponto um herói é realmente heróico se confrontado com o
medo e a dor, o que passa pela mente de um homem em uma situação difícil. Estas
tornam em Eurípides o puro jogo de possibilidades morais e afetivas. Vem daí o aspecto
fragmentário e episódico de suas obras, em que a ação surge destes “comos”, e não do
império de uma força inumana encarnada em uma causalidade cega. A exceção a este
comentário seria As bacantes, em que o divino tem de fato uma importância excepcional,
131
mas fora este caso, suas peças representam som e fúria para que o homem, exclusivamente,
Uma das conseqüências deste “humanismo” euripidiana é a baixa estima com que o
Ésquilo e Sófocles, e Eurípides entra como um termo estranho, ligado em praticamente toda
a tradição filosófica do século XIX, de Schelling a Nietzsche, como o autor que personifica
decisão trágica, que leva ao conflito do herói com a divindade, é tornado uma coisa
multifacetada, já não mediado pelo outro absoluto da divindade mas sim pelos vários
pontos de vista das paixões dos personagens que se confrontam. Talvez a maneira de
apresentarmos isto adequadamente seja pensar que o silêncio divino que Ésquilo e Sófocles
alteridade do homem, é preenchido por Eurípides. Seus deuses cessam de ser aquilo que
está distante e que serve de campo negativo ao homem e se tornam seres humanos, ao
relação ao humano. O sentido desta decadência varia de autor para autor, mas de um modo
quando o vigor de uma substância ética, para usar o termo de Hegel, que se manifestava na
vida concreta e na arte, passa a se manifestar na filosofia. Em Hegel isto significa um amor
vazio do pensamento pelo pensamento, quando os conflitos são retirados de seu solo vital, a
com aqueles dos sofistas, o comentário de Hegel em sua Filosofia da história sobre a
132
Paralelamente ao progresso no desenvolvimento da arte religiosa e da situação política,
progride o fortalecimento do inimigo destruidor: o pensamento. E na época da Guerra do
Peloponeso a ciência já estava bastante desenvolvida. Com os sofistas, teve início a reflexão
sobre o existente e o raciocínio. Exatamente essa atividade e ocupação, que vimos entre os
gregos na vida prática e no exercício da arte, mostra-se também, entre eles, nas oscilações
das representações. Assim como as coisas sensíveis da atividade humana são alteradas,
processadas e deturpadas, também o conteúdo do espírito, o significado, o sabido, oscila,
tornando-se objeto de atividade, esta se transforma em um interesse em si. A reviravolta do
pensamento e o prazer interior nele contido, esse jogo sem interesses, tornam-se o próprio
interesse. ... Mas essa formação do pensamento tornou-se o meio de impor intenções e
interesses ao povo. O sofista experiente sabia como manipular um conceito para este ou
aquele fim; assim, estavam abertas todas as portas para as paixões. Um dos princípios
supremos dos sofistas era: “O homem é a medida de todas as coisas”. Também aqui, como
em todos os aforismos deste gênero, existe ambigüidade, ou seja, o homem pode ser o
espírito em sua profundidade e veracidade, ou também em suas arbitrariedades e interesses
especiais. Os sofistas referiam-se apenas aos homens como subjetivos; com isso,
explicavam a arbitrariedade pelo princípio daquilo que era justo e apontavam o que era útil
ao sujeito como a última razão determinante. (HEGEL, 1999: 227)
Paradoxalmente, é na obra em que o deus está ausente que o milagre acontece com
suas peças, percebemos que todo seu esforço se volta para construir situações em que a
ação humana se misture com a direção divina. É preciso para que os deuses se manifestem
que sua influência tenha um reflexo imanente: em Ájax, Atena pune Ájax, mas sua hybris é
provocada pela decisão dos gregos em entregar as armas de Aquiles a Ulisses, a morte de
mundano pelo muito humano desejo de vingança de Orestes, o Édipo de Édipo rei é o
homem tocado pelo deus, mas é sua reação soberana a uma situação adversa, a praga de
Tebas, que põe a ação em andamento, a derrota dos persas em Os persas é um decreto
divino, mas é a ambição de Xerxes que leva seu exército a ser destruído. Em todos estes
casos há um reflexo entre o plano divino e aquele da decisão humana. Frances Cornford,
em seu livro que desenha um Tucídides trágico, se refere a este processo como uma
133
homem interior como tomado por demônios, os sentimentos divinizados como o medo, o
amor, o orgulho, etc (que são deuses de fato e não alegorias), para, no início da era trágica
justificativa da ojeriza do alemão por Eurípedes: nele o brilho gratuito dos olímpicos estaria
divino no humano já não é uma cadeia necessária como em Sófocles e Ésquilo, mas um
elemento formal que Eurípides mantém da forma trágica, sem que tenha muitas
conseqüências para a ação. Ou ainda: aquilo que os personagens fazem nas peças de
Eurípides se refere apenas ao mundo dos homens, e muito pouco ao mundo dos deuses. É
Afrodite que motiva a paixão de Fedra em Hipólito, mas sua morte e a de Hipólito nascem
de um mecanismo concreto de vergonha e ciúmes, e as deusas ali já não são a força cega
que destrói Édipo e Filoctetes ou o poder puro de Zeus. Suas motivações são tão
cognoscíveis e sua ação tão direta quanto as de Iago de Otelo. Nas palavras de Lesky:
134
Tanto na cena final que acabamos de esboçar, como no prólogo pronunciado por Afrodite,
encontramos passos que fazem aparecer todo o conflito como uma disputa entre as duas
deusas, pela categoria e pela honra. Como podemos explicar isto precisamente neste drama,
que nos parece modelado a partir do espaço humano? Eurípides não acreditava na existência
dessas divindades, e as cenas em que aparecem estão separadas por um abismo (chamado
sofística) das cenas dos deuses na Orestéia ou da cena inicial de Ájax, com Atena. (LESKY,
1995: 398)
compreensíveis do universo de valores dos homens, está ausente nos outros tragediógrafos,
e é um traço específico de Eurípides. É nestes termos que devemos entender, então, o vazio
do deus em sua obra, não como a ausência formal da presença divina – aliás, os deuses
olímpicos são muito mais figurados em Eurípides do que em Ésquilo e Sófocles – , mas sim
pelos fato de que esta presença é limitada a uma razão humana, o que, na verdade, esvazia
de sentido o deus. Este espaço da divindade como um espaço vazio tem suas conseqüências
na obra de Eurípides, tanto em sua recepção, e os ataques de Aristófanes são uma boa
traço de estilo a que não se pode fugir, teria também a vantagem de estabelecer uma
comunicação mais direta com seu público. Através da figuração deste ou daquele deus,
obra. Mas dificilmente esta presença formal pode ser interpretada como uma religiosidade
de fato. A figura é a mesma, mas apenas na religião tradicional podemos falar em um deus
135
4.3. Deuses e homens
torna algo fácil. O carro do sol que serve para Medéia fugir, o resgate de Alceste do
inferno, a Helena simulacro de Helena, estes todos são elementos estranhos a uma
mentalidade que tenha de levar a divindade a sério. Os deuses nas outras tragédias têm uma
atuação muito mais discreta, e mesmo a Atena de Ájax e de As Eumênides, que interage
com os atores de uma forma mais ativa, é ainda uma força do desconhecido, realizando
milagres menores como causar um delírio e organizar um tribunal. Apenas uma divindade
decaída faz milagres, pois o pensamento ainda religioso só suporta um contato tão direto
com o deus no passado mítico. No pensamento ainda mítico, em que o deus é o limite do
efeito, dor, destino. É um pensamento racionalizante que concebe a divindade como algo
que dobra a realidade de forma espetacular, porque neste pensamento este é o único lugar
e do respeito à tradição mítica, não através do milagre, da presença concreta do deus. Isto
só chega a ser um problema para a forma trágica porque, ao contrário do discurso épico ou
religioso, em que fica estabelecido um corte definitivo entre passado mítico e presente
histórico, com referências tanto a um quanto a outro universo. Nas palavras de Easterling
136
O que é crucial é a mistura de passado e presente: a ambientação em tempos heróicos de
maneira nenhuma interdita referências ao mundo contemporâneo, e de fato depende de uma
multidão de lembretes irônicos à audiência de que eles estão no presente, assistindo a
eventos que pretendem estar acontecendo em um outro tempo e lugar. Quanto mais esta
tensão pode ser explorada, mais poderosamente a peça deve ser capaz de capturar sua
audiência. (EASTERLING In EASTERLING, 1997: 167)4
Embora em Eurípides o paradoxo de que menos religião signifique mais milagre esteja
muito presente, em todo o corpo trágico há este jogo entre visível e invisível, entre razão e
que esta tensão, que nunca chega a ser resolvida nos outros tragediógrafos, oscila entre uma
presença tão forte do mito que este se concretiza em cenas absurdas, inverossímeis em
relação ao resto da tradição trágica que nos restou e à tradição religiosa como um todo, ou a
pura ausência do divino como motivo da ação. O modelo mais usual da representação dos
deuses é aquele que Sófocles usa em Ájax durante o diálogo entre Atena e Ulisses. Atena
está presente como um elemento da fabulação, é ela que provoca a loucura de Ájax. Mas
sua atuação de fato se dá em outro campo, como uma maneira de avisar que o que ocorre
com Ájax é uma marca do divino, que os deuses são cruéis e suas razões pertencem apenas
a si mesmos, e que, finalmente, o lugar do homem é se calar diante disso. Quando lemos
em seu diálogo:
137
SÓFOCLES In ÉSQUILO, SÓFOCLES, EURÍPIDES, 1993: vv. 156-167. (trad.
Mário da Gama Kury)
Estamos diante de uma das muitas indicações do texto trágico à platéia de como interpretar
o que ocorrerá adiante, ou seja, que a história de Ájax é um exemplo da força do destino
divino sobre o homem, a que todos estão sujeitos e todos devem temer. Atena sai de cena
em seguida, e a tragédia humana ocorre, com a dor e o suicídio de Ájax. Assim, o plano de
atuação do divino não é sua figuração, sua ação direta no palco, mas está em outra ordem,
quando, após a heroína aceitar ser sacrificada pela pátria, é salva por uma intervenção
Depois o sacerdote
Tirou o gládio da bacia feita de ouro,
Pronunciando a invocação para escolher
O lugar onde iria desferir o golpe.
Meu coração se contraiu angustiado
e baixei a cabeça. Repentinamente
manifestou-se a todos nós, estupefactos,
um acontecimento sobrenatural,
sem dúvida um prodígio: todos ouvimos
distintamente o ruído de um golpe rápido
de gládio, mas a virgem desaparecera,
sugada pela terra, sem que se pudesse
ver ou conjecturar onde ocorrera o fato.
O sacerdote deu um grito e nosso exército,
Uníssono, iniciou suas aclamações
Diante daquele milagre, obra, sem dúvida,
De algum dos deuses, muito além da expectativa,
Inexplicável mesmo para quem o viu.
De fato, jazia imóvel, recém-morta,
Uma corça descomunal e muito bela,
Cujo sangue inda fresco manchava o altar.
(EURÍPIDES, Ifigênia em Áulis, 1993: vv. 2196- 2214)5
138
Esta intervenção, que lembra tanto o episódio do sacrifício de Isaac, é bastante rara tanto na
tradição religiosa grega quanto nas tragédias dos outros autores. Uma opção para explicá-la
apenas nas teogonias encontramos este tipo de milagre, com o deus subvertendo a realidade
próximo ocorre em Édipo em Colono, quando ao fim da peça Édipo desaparece no ar após
ouvir a invocação do deus. Mas, neste caso, temos uma meditação sobre a vida humana e a
ordem do divino. Não é o caso de Ifigênia em Áulis, em que a ação toda se dá em torno do
um episódio desses na peça final de Sófocles, um autor que de resto sempre tratou o divino
com bastante pudor, indica que talvez em algum momento das experiências limite que os
perdeu. A religião grega nunca adotou o lema do “creia porque absurdo”, mas nos
possibilidade aberta.
provável, é entendê-lo como uma figuração não religiosa, como uma fantasia intelectual. É
este o espírito da comédia, em que temos cidades construídas nas nuvens e disputas de
desprovidos de um fundo religioso. Mas esta é uma liberdade da comédia, em que homens
puros são representados. A tragédia deveria representar a divindade, e Eurípides o faz, mas
de uma maneira tão alienada que esta divindade passa por um exercício fantasioso.
139
A outra maneira de Eurípides resolver a tensão entre mítico e histórico é esvaziar
Fenícias ou em As troianas. Nestes casos temos a presença formal dos deuses, o carro do
sol em que Medéia foge, a maldição paterna sobre Etéocles e Polinices, o diálogo entre
Atena e Posídon. Mas estes são elementos completamente marginais à trama, que se move
Nada caracteriza com tanta exatidão a tendência naturalista dos novos tempos [os anos
durante a Guerra do Peloponeso] como o esforço realizado pela arte no sentido de retirar o
mito do seu alheamento e da sua vacuidade, corrigindo-lhe a exemplaridade por meio do
contato com a realidade vivida e desprovida de ilusões. Foi Eurípides quem empreendeu
esta tarefa ingente, não a sangue-frio, mas com o ânimo apaixonado de uma forte
personalidade artística e com tenaz perseverança contra longos anos de fracassos e
desenganos, pois a maior parte do povo tardou muito em apoiar seu esforço. (JAEGER,
1995: 398)
coisas que acontecem no palco, nem são o campo negativo que atrai o homem para o
identificação imediata é com o próprio universo humano das paixões e da história, do que
140
4.4. O pesadelo da história
Atenas. A primeira, a guerra contra a invasão persa, é uma experiência de glória. As duas
primeiro caso a improvável vitória sobre o exército persa lega aos atenienses um sentido de
missão histórica, como um destino manifesto que é confirmado pela vitória, nos dois outros
esta confiança otimista na própria potência e nos próprios valores fica abalada. Se a obra de
expansão após a primeira guerra construiu nos atenienses, a obra de Eurípides é realizada
autonomia, mas sim aquele sentido de estranho relativismo moral que as guerras severas
permite tanto que os valores tradicionais sejam menos respeitados e respeitáveis, quanto
uma franqueza quase brutal na consideração do que seja o homem, suas paixões e motivos.
O grande porta-voz deste período é Tucídides, e é nele mais que em Eurípides que podemos
mapear a mudança de espírito que levaria ao fim da era trágica e ao início da filosofia. No
historiador o relativismo moral da vida durante a guerra se traduz em uma teoria do poder
que confunde justiça com força, e que, apesar de conceber a derrota ateniense segundo um
modelo trágico, como um caso de hybris de uma nação heróica, não consegue lamentar
totalmente sua queda. A simpatia de Tucídides, ou, se aceitarmos que sua história segue de
sofrimento inútil da guerra do que a este ou aquele partido. Mesmo isto é um sentimento
141
ambíguo, pois se existe de fato o sentimento de piedade diante dos massacres e sacrifícios
que espartanos e atenienses causam em seu conflito, existe também a defesa direta do
direito do leão, a idéia de que o mais forte pode justamente dominar o mais fraco, e que a
força, mais que qualquer outra categoria de justiça, divina ou não, é a legitimadora da ação
humana.
algumas peças, como Andrômaca, em que os espartanos são vilões de clichê, e Ifigênia em
Áulis, em que a heroína aceita o sacrifício “pela pátria”, estamos, parece, diante de formas
os vencidos da guerra, parece haver uma reflexão um pouco mais cuidadosa e franca sobre
a natureza da guerra e da história. O interesse das duas últimas peças passa principalmente
pouco a pouco as idéias tradicionais de destino e de singularidade individual com que eram
crença em Tucídides de que o ser humano e suas paixões são sempre iguais, que existe uma
constante nos atos coletivos humanos que pode ser pensada e tornada conhecimento. No
caso do tragediógrafo, isto significa o pensamento nada confortável de uma certa dignidade
dos vencidos e daqueles que sofreram com os desastres da guerra, um tema novo para a
derrotados segue um esquema contrário ao que se vê nas peças de Eurípides. Os persas não
é uma peça de compaixão, e a catarse, se podemos falar de catarse neste caso, passava
muito mais por um júbilo público de registrar de uma forma tão íntima a ate do agressor.
142
Não é o caso das peças de Eurípides, em que o sofrimento das troianas é de fato
maneira como esta nova matéria histórica era processada pela mente do período é
que os mestres sofistas ensinavam, a maneira de enxergar uma situação por vários ângulos
e defender de maneira adequada cada um dos lados da situação. Esta prática, que a filosofia
platônica entendia por má-fé, se relacionava a um espírito que a própria tragédia cultivava,
de manutenção da tensão entre pólos. Na sofística a meta do discurso não era a solução de
humano, o que no caso dos mestres itinerantes era algo mais ligado à performance que à
verdade de um conteúdo, no que a crítica platônica é justa, mas de qualquer maneira tinha
conceder dignidade igual aos valores em conflito, capacidade de se pôr na pele do outro.
inseparáveis, mas é preciso notar que enquanto a pura performance tornou Eurípides uma
perceber a transitoriedade das paixões e razões humanas deu universalidade a sua obra e a
143
uma situação complexa, do que propriamente a preocupação com uma alma profunda à
aquele que põe o irracional como um elemento estruturante de suas tramas, o irracional
de As troianas, absolutamente imanente, está muito longe ainda da nossa idéia de amor e
sentimentos. O amor moderno está relacionado através de Dante e dos românticos a uma
vivência pública. Não é esta paixão exatamente que está presente em Eurípides, mas sim a
crença muito grega de que o sentido da realidade está no mundo público, da cidade e da
Werther, de um naufrágio no mundo que revela a verdade de uma individualidade, mas sim
da perda concreta e catastrófica dos laços com o dever e a comunidade. Esta paixão
Eurípides, deve ser entendida como o lugar da negatividade que a ausência do deus deixa
vago. Em As troianas, no diálogo entre Hécuba e Helena, vemos esta dinâmica bem
desenhada. Após a queda de Tróia ambas são escravas, e Hécuba acusa Helena pelos males
troianos. Esta se defende, atribuindo sua fuga com Páris à influência de Afrodite. A
144
Hera teria tanto desejo pela beleza?
Receberá esposo melhor que Zeus?
Ou Atenas está caçando bodas com um dos deuses,
A que do pai reivindicou a virgindade,
Fugindo do leito? Não tornes as deusas estúpidas
Ao enfeitar teu ato vil; não persuadirás os argutos.
Cípris disseste (isto é muito engraçado)
Ter vindo com meu filho ao lar de Menelau.
Permanecendo, plácida, no céu, a ti não
Levaria a Ílion, com Amiclas e tudo?
Meu filho era o mais notável em beleza,
E teu espírito, vendo-o, tornou-se Cípris:
Sim, toda loucura é Afrodite aos mortais,
E é correto que o nome da deusa reja a afronesia.
Vislumbrando-o, com trajes bárbaros
E com ouro luzindo, teu espírito desvairou-se.
Pois em Argos circulavas tendo pouco,
Mas afastada de Esparta, a cidade frígia
Onde escorre outro esperaste inundar
Com gastos: não te era o bastante a casa
De Menelau para te esbaldares em luxúria.
(EURÍPIDES, As troianas, 2004: vv. 914-997 (tradução Christian Werner)6
Hécuba inicia desclassificando o argumento de Helena: a fábula sobre o concurso das três
dificilmente seria chocante para uma platéia do século V ouvir que um mito homérico é só
uma lenda, e isto não tem nenhuma conseqüência religiosa. Mas se pensarmos que toda a
tragédia parte exatamente destes mitos, há sim algo de estranho na fala da heroína Hécuba.
O excurso de Hécuba sobre as deusas – que Atena não teria por que ser a mais bela, que
divino, tão diferente do mistério sagrado em Ésquilo e Sófocles que soa algo humorístico, e
quase nos faz concordar com a garrafinha de Aristófanes. Mas nesta racionalização, na
Helena partiu de seu próprio desejo e interesse, e não de um daímon mandado por Afrodite.
145
psicológico de um sujeito que age contra o dever e a comunidade em nome de si mesmo. É
importante notar que os personagens de Eurípides são apaixonados, mas esta paixão é
Neste caso temos a conformação de uma ate, um destino-cegueira que faz o herói agir
contra si mesmo, de forma autodestrutiva ainda que muitas vezes inconsciente das
seguem uma lógica de desejo e de interesse, demoníaca apenas na medida em que estas
autodestrutivas. O mal, que nos outros dois grandes é um confronto heróico do homem com
baseados na vida concreta e nos valores dos homens concretos. Enquanto em Tucídides a
mediação deste interesse é a força, o mais forte tem o direito de tomar aquilo que sua força
permitir, em Eurípides são os valores mais escorregadios do dever e do bem que constroem
o conflito trágico. Dever para a comunidade, bem comum, que são problematizados na obra
de Eurípides, pois a base destes valores não é a presença do absoluto divino, mas sim a
sensibilidade que a guerra traz, que torna mesmo os atos mais terríveis passíveis de defesa.
Isto não significa cinismo, mas sim a compreensão bastante lúcida de que, já que a ação
humana é baseada na incerteza da paixão, é muito difícil chegar a uma decisão final sobre a
moralidade de cada situação. Quando as paixões, sejam elas eróticas ou políticas, estão em
jogo, quando o universo interior do homem tão incerto e variável está por trás dos atos,
146
tudo se cobre de uma névoa de indefinição tão intensa quanto o silêncio divino. Medéia
talvez seja a peça em que temos este princípio representado da maneira mais perfeita. A
bruxa é uma vilã, certamente, mas nos movimentos de sua alma, na oscilação do amor aos
moral, uma pessoa cuja medida externa para a ação está perdida e tem de sofrer a presença
simultânea e confusa de sentimentos opostos, seus únicos guias possíveis. Na cena que
antecede o assassinato dos filhos, vemos Medéia se debatendo sobre como agir:
tradicionais, que ligam seus atos a uma razão divina e política, e que visam
indubitavelmente o bem nos crimes que estão para cometer, e que indubitavelmente são
seres morais, atados ao dever, Medéia age em nome apenas daquilo que sente, seja o amor
aos filhos seja o ódio ao marido. E neste caso como no de muitos outros personagens, como
147
podemos falar em erro trágico? Pois o que quer que Medéia faça está atendendo a um
chamado interior muito poderoso, não distinto de qualquer outro homem ou instituição
humana, mas que tem apenas em si mesmo a medida de sua moralidade. Kitto, em seu
comentário sobre Eurípides em Tragédia grega, aponta para como esta entidade abstrata
Considerou [Eurípides] a hamartía trágica, bem como a ação trágica, não como partes do
carácter do indivíduo que levam à sua queda, mas de uma maneira mais abstracta, como
elementos do desastre que, na nossa natureza humana comum, conduzem ao sofrimento, no
que as pessoas culpadas podem participar ou não. (KITTO, 1990: 115)
A hamartía está ligada à idéia de impureza, de ato impuro diante dos deuses. Mas, em um
medida dos atos humanos é o próprio homem interior, pois é a alma o motor destes atos,
como julgar? É neste tipo de interrogação que temos uma pista pra o “humanismo” de
Eurípides, já que, na falta de um absoluto moral, que permite a Eurípides pôr em cena
personagens como Medéia, personagens que carecem dos valores positivos que um herói
deveria ter, é um sentimento mais abstrato de empatia ao humano que pode levar à catarse.
A empatia pelo herói passa pelo reconhecimento na audiência de que aquilo representado é
um ser humano em geral, qualquer pessoa, e que devido a alguma dignidade categórica que
as pessoas possuem deve-se sofrer por elas. Bruno Snell reconhece em Medéia o primeiro
personagem em que a justiça já não está ligada a uma ordem divina, mas sim a valores
pensamento europeu:
148
Eurípides é o primeiro a representar, na sua Medéia, um ser humano que não tem outro meio
de despertar a compaixão exceto o de ser uma criatura atormentada: essa bárbara fora-da-lei
tem a seu favor apenas o direito humano universal. Essa Medéia também é, porém, ao
mesmo tempo, a primeira pessoa cujos sentimentos e cujos pensamentos são explicados sob
um ângulo puramente psicológico e humano e que, embora sendo bárbara, é superior aos
demais pela cultura espiritual e pela eloqüência. Quando o homem pela primeira vez se
mostra independente dos deuses, prontamente se revela a potência do espírito humano
autônomo e a intangibilidade do humano direito à justiça. (SNELL, 2009: 261)
alteridade como coisa intensa e apaixonada, rendeu-lhe a posteridade mais próspera, mas
também as críticas mais cruéis. Quando pensamos em uma peça como As troianas, que fala
de uma cidade devastada em um momento que a própria Atenas está sob risco bastante
concreto de ser conquistada e subjugada, tendo ela própria arrasado outras cidades durante
a guerra, percebemos a dimensão de sua coragem intelectual e, por outro lado, da franqueza
com que os próprios atenienses tratavam sua realidade. Nas palavras de Easterling
Esta peça lida com o pior que pode acontecer a uma cidade, Adrian Poole propriamente a
chamou de “fim-de-jogo de Eurípedes”. Ela usa os eventos da Guerra de Tróia,
particularmente as últimas horas antes do incêndio final das ruínas, quando os homens já
estão mortos, as mulheres esperando ser distribuídas a seus novos mestres, e os vitoriosos
prontos para velejar para casa. A peça foi encenada em 415 a. C., quando a possibilidade de
que uma cidade grega pudesse ser aniquilada não era de maneira alguma remota para a
audiência. Platea, uma cidade aliada, dificilmente mais que quarenta milhas de Atenas, fora
completamente destruída o ano após sua captulação para os peloponesos em 427, e em
Cione e Calcídice em 421 e em Melos em 416 os próprios atenienses mataram todos os
homens aptos a servir e escravizaram o resto da comunidade. (EASTERLING, 1997: 173)8
149
A invocação dos mortos ao fim da peça, quando Hécuba bate as mãos no chão invocando
seus compatriotas mortos na guerra, é uma daquelas cenas universais que a tragédia grega
Este lamento pelos mortos, que são os mortos inimigos e os próprios, é talvez um bom
símbolo do que ocorre na literatura de Eurípides. Após ele, não teremos mais tragédias a
serem lembradas. Após Eurípides teremos um novo tipo de crítica, corajosa também, mas
que entenderá a suspensão trágica como uma celebração do erro e do mal. Mas o momento
brilhante da cultura grega em que os três grandes atuaram permanece ainda como um ponto
e da vida. Como Tróia, seu nome não desaparece apesar de tudo. Esta vitória contra o
tempo, contra a derrisão de ser reduzido a uma outra natureza, esta intensidade e
150
integridade que nunca se rendeu, estes são indícios da grandeza da tragédia. Esta eternidade
possível da arte tira e dá na mesma medida o sentido do homem. Como nos diz Easterling:
Os velhos provérbios sobre a mutabilidade da fortuna tomam uma nova dimensão sinistra
quando são tomados no contexto da destruição de uma comunidade inteira e sua cultura,
mas o de Hécuba tem de ser levado em conta ao fim da peça, quando ela lidera as mulheres
em um ritual de despedida para os mortos troianos, batendo no chão e clamando por filhos e
maridos. A ênfase é toda sobre perda e aniquilamento, mas ao menos um elemento pode ser
entendido de maneira diferente por uma audiência educada na poesia épica. Quando o coro
canta que o “nome da cidade vai desaparecer” e “Tróia não mais existe” (1322-24) [1678-80
na tradução de Mário da Gama Kury] eles estão cantando para uma audiência para quem o
nome de Tróia sobreviveu. (EASTERLING In EASTERLING, 1997: 177) 10
1
Na versão de Mathew Arnold (ARISTÓFANES: ll. 1206-1224)
2
Next, supposing the charge is "That is not true," one can meet it by saying "But perhaps it ought to be," just
as Sophocles said that he portrayed people as they ought to be and Euripides portrayed them as they are.
3
Tradução própria do original em inglês:
The theory involves so delicate an equilibrium between natural and superhuman, so nice a compromise of
faith and knowledge, that it cannot be maintened for long. The balance must turn, and there is no doubt wich
scale will sink. The supernatural must fade and recede. The gods must surrender again to man the life with
which, as he slowly learns, himself at his own cost has lavishily endowed them. Human nature re-enters upon
its alienated domain, conscious of itself, and of nothing else but a material world which centers round it.
Desire and Hope must resign their dream shape, and all of that will be left of them is a hot movement of the
blood, the thrill of a quickening nerve.
151
4
What is crucial is the mixture of past and present: the setting in heroic times in no way precludes reference
to the contemporary world, and indeed depends on a multitude of ironic reminders to the audience that they
are in the present, watching events that purport to be happening in another time and place. The more this
tension can be exploited, the more powerfully should the play be able to enthrall its audience.
5
Na versão de E. P. Coleridge (EURÍPIDES, 1891: vv. 1578-1590)
But the priest, seizing his knife, offered up a prayer and was closely scanning the maiden's throat to see where
he should strike. It was no slight sorrow filled my heart, as I stood by with bowed head; when there was a
sudden miracle! Each one of us distinctly heard the sound of a blow, but none saw the spot where the maiden
vanished. The priest cried out, and all the army took up the cry at the sight of a marvel all unlooked for, due to
some god's agency, and passing all belief, although it was seen; for there upon the ground lay a deer of
immense size, magnificent to see, gasping out her life, with whose blood the altar of the goddess was
thoroughly bedewed.
6
Na versão de Kury ( EURÍPIDES, As troianas, 2001: vv. 1230- 1267)
Alio-me primeiro às deusas. Vou mostrar / Quanta injustiça existe nas palavras dela. / Ninguém de boa-fé
creria que Hera e Palas / Pudessem comportar-se com baixeza tal / A ponto de em conluio Hera prometer /
Que venderia aos bárbaros a terra argiva, / E Palas que daria Atenas aos troianos, / Sbmissa ao jugo frígio.
Essa competição / Das deusas junto ao Ida certamente foi / Uma frivolidade ou entretenimento. / Por que
razão Hera divina nutriria / Desejo tão insano de ser a mais bela? / Seria para conquistar melhor esposo / que
Zeus onipotente? Quereria Palas / credenciar-se a esposa de qualquer dos deuses, / ela, que obteve de seu pai
o privilégio / de ser eternamente virgem, pois as núpcias / lhe repugnavam? Não procures disfarçar / a tua
perversão atribuindo às deusas / tamanha insensatez. Pessoas ponderadas / jamais irão acreditar em tua
história. / E quanto a Cípris, tu nos fazes rir, e muito, / Dizendo que ela foi com Páris ao palácio / De
Menelau, como se adeusa, mesmo estando / Tranqüilamente em seu celestial assento, / Não tivesse poder para
levar-te a Ílion / Com toda a cidade de Amiclas facilmente! / Meu filho era dotado de beleza rara / E foi teu
próprio espírito que ao contemplá-lo / Criou a impressão de Cípris. As loucuras / De amor, que os homens
consideram diferentes / E imputam a Afrodite, são iguais às outras. / A imagem de meu filho em sua roupa
exótica, / Bordada de ouro fulgurante, transtornou-te / A alma; em Argos tua vida era medíocre; / Trocando
Esparta pela rica terra frígia, / Por onde corre um rio de ouro, imaginavas / Que aqui teria bens em
superabundância. / O palácio de Menelau / Já não bastava às tuas exigências de excessivo luxo
7
Na versão de Kury (EURÍPIDES, Medéia, 2001: vv. 1190-1208)
152
Jamais dirão de mim que eu entreguei meus filhos
À sanha dos inimigos! Seja como for,
Perecerão! Ora: se a morte é inevitável,
Eu mesma, que lhes dei a vida, os matarei!
8
Tradução do original em inglês:
This play deals with the worst that can happen to a city; Adrian Poole aptly called it “Euripides' Endgame”. It
uses the events of the Trojan War, particularly the last hours before the ultimate firing of the ruins, when the
men are already dead, the women waiting to be allocated to their new masters, and the victors preparing to
sail home. The play was put on in 415 BC, when the possibility that a Greek city might be annihilated was not
at all a remote one for the audience. Plataea, an allied city, hardly more than forty miles from Athens, had
been utterly destroyed the year after it capitulated to the Peloponnesians in 427, and at Scione in Chalcidice in
421 and at Melos in 416 the Athenians themselves had put to death all the males of military age and enslaved
the rest of the community.
9
Na versão de Kury (EURÍPEDES, As troianas, 2001, vv. 1647-680)
10
Tradução do original em inglês:
The old proverbial sayings about the mutability of fortune take on new grimness when they are seen in the
context of the destruction of a whole community and its culture, but Hecuba's have to be taken into account at
the very end of the play, when she leads the women in a farewell ritual for the Trojan dead, beating the
ground and calling out to children and husbands. The emphasis is all on loss and annihilation, but at least one
153
statement can be understood differently by an audience brought up on epic poetry. When the Chorus sing that
the “name of the land will vanish” and “Troy no longer exists” (1322- 24) they are singing for an audience for
whom Troy's name has survived.
154
5: PLATÃO E A EXPULSÃO DO POETA
5.1. Platonismus
Nosso comentário sobre Platão vai seguir de forma bastante próxima o comentário de
dois autores, o Jaeger de Paidéia e Paul Friedländer em Platon. Não existe concordância
exata entre os autores: o imenso livro de Jaeger tem Platão como centro, e sua leitura parte
do princípio de que toda cultura grega é manifestação do ideal de educação cujo maior
mente o ambiente grego após a arte de Eurípides e Tucídides, autores que tornaram o
heróico e o pólo divino da arte trágica são bastante enfraquecidos em nome de uma busca
por um homem imanente, aprisionado às forças das paixões e dos acontecimentos mais do
155
que às exigências do deus e do destino. Outra coisa que deveremos ter em mente também é
que a afirmação de que o estatuto da poesia grega é distinto da moderna, como se aquela
tanto o texto poético quanto o recital, é a principal instituição educacional do mundo grego,
e que este estatuto é distinto do que a poesia possui no mundo moderno. A percepção desta
distinção está por trás, por exemplo, da leitura do jovem George Steiner sobre a tragédia,
em A morte da tragédia (STEINER, 2006), mas não procura dar conta de que esta “simples
literatura” alimentou todo o pensamento do século XIX, e que nesta perspectiva a exigência
O Platão de Paul Friedländer tem a mesma centralidade que o de Jaeger, mas a maneira
como a relação da obra platônica com a mimese poética é construída é bem menos
mito platônico. É uma condenação construída por várias mediações, mais do que
condenação pura e simples. A imagem que Friedländer utiliza para entender este processo é
enxergar com os olhos da alma e não com os do corpo. Referindo-se à República, que
Assim transcorre durante longo tempo a preparação, com o objetivo final nesta
interdependência, a pura metafísica e a contemplação das idéias, enlaçando por fim a
imagem acabada: a alma, pensada segundo o modelo do corpo, tem olhos como ele para ver,
só que esses olhos estão enfocados nas formas eternas. (FRIEDLÄNDER, 1989, v. 1: 31)1
156
Ainda há a condenação à mimese poética, mas ela é entendida em um contexto em boa
medida também poético, com esta condenação sendo entendida como a re-elaboração de
realidade do filósofo.
século XIX passa por compreender como o veto à poesia como forma válida de
conhecimento foi construído por Platão, e como este veto foi entendido e trabalhado na
filosofia e na filologia do período. Os textos básicos para isso são os capítulos II, III e X da
equalização de pintura e poesia épica e trágica. Os diálogos Íon e Fedro serão também
vamos ter de aprofundar, entre a poesia enquanto forma simbólica, enquanto conteúdo a ser
é entendida pelo momento em que nos detemos, passa pela crítica de ambos os estatutos, e
por uma tentativa de separação entre a verdade possível e parcial (misturada com ilusões e
nossa discussão, porque marca o lugar complicado que a escrita possui na transmissão do
157
5.2. Justiça e representação
felicidade humana. Esta é uma discussão política, mas em sua base está a definição do
significado da realidade: a cidade mais justa é aquela que promover a areté do cidadão, a
fazer com que seu cidadão viva mais de acordo com uma idéia de justiça e de verdade. Em
Platão, isto significa necessariamente criar uma sociedade que constantemente dê meios a
está, então, o conhecimento da verdade. Toda instituição desta cidade deverá se estruturar
ao redor das disciplinas necessárias para a obtenção desta verdade, ou seja, ao redor da
disciplina filosófica. Uma cidade que se organize desta forma será necessariamente feliz,
mais próprio, de ação de acordo com a realidade profunda do mundo, para além da
de ações que um governo deve realizar para que a areté se cumpra. Estas ações são a
religião etc. Estas ações são também negativas: a proibição de certas práticas, de certos
poesia: esta estaria em desacordo com a melhor politeia, e seria um dos maus-hábitos que
158
Uma das conclusões de Platão é da melhor forma de economia política da cidade, ou
seja, a melhor forma de organizar a ação pública dos cidadãos, a função de cada parte da
ou favor, mas da afinidade de cada um em relação ao valor essencial que guia cada nível, a
Cada indivíduo obedece às regras e aos limites de cada nível, o que impede a decadência e
– Vamos! disse eu. Ouve-me e vê se faz sentido o que estou dizendo! Aquilo que, desde o
início, quando fundávamos a cidade, estabelecemos que devíamos fazer o tempo todo é,
parece-me, a justiça ou uma forma de justiça. Se estás bem lembrado, estabelecemos e
muitas vezes dissemos que cada um devia ocupar-se com uma das tarefas relativas à cidade,
aquela para a qual sua natureza é mais bem dotada.
– Dissemos, sim.
– E que cumprir a tarefa que é sua sem meter-se em muitas atividades é justiça, isso
ouvimos de muitos outros e, e nós mesmos dissemos muitas vezes.
–Dissemos, sim.
– Pois bem! Disse eu. Eis, meu amigo, o que, de certa maneira, pode ser o que é a
justiça:cada um cumprir a tarefa que é sua. (PLATÃO, 2006: IV, 433a,b)3
É importante recuperarmos esta divisão, porque, embora aparentemente ela não diga
como a ação pública é concebida por Platão. A função de cada indivíduo não é nunca
arbitrária, e corresponde à verdade da alma de cada um. Fazer móveis não é simplesmente o
trabalho de um carpinteiro, não é apenas a maneira como este trabalhador obtém seu
sustento, nem é algo exterior a si. Ao contrário, o ser carpinteiro é a expressão da alma
159
deste indivíduo, ou da parte da alma na divisão entre apetite, razão e espírito, que nele é
mais forte, sendo algo que se relaciona ontologicamente a sua identidade. Em uma
sociedade sem distinções como a eutopia platônica, em que riqueza pessoal, laço familiar e
agremiação política ou de qualquer outro tipo devem ser abolidas, toda identidade é
sustentada pela função pública deste indivíduo na sociedade. Da mesma forma, o fabricar
móveis não é apenas um gesto ou uma prática, mas é a maneira privilegiada deste sujeito
lidar com o conhecimento, é sua maneira de construir a realidade, mais que isso, é o índice
de a quanta realidade este indivíduo tem capacidade de ter acesso. Quando Platão
cadeira está mais distante que a própria cadeira, e esta mais distante que a imagem
conceitual da cadeira em relação à forma primordial que serve de arquétipo para todas as
cadeiras, uma das conseqüências é que o afastamento do poeta em relação à verdade não é
mesma maneira que o ver do filósofo, do soldado e do artesão são eles próprios, o vício da
visão do poeta torna-o também um elemento falso em uma sociedade que deve celebrar e
promover a verdade. A mentira do poeta tem assim uma dimensão ética, e se este conta
mentiras é porque sua alma não consegue mais que isso. A prática pública é o homem,
válida para uma sociedade fundada sobre a obtenção da verdade. A poesia não é apenas
uma técnica, não é apenas um “dizer bonito”, mas é uma substância ética negativa em
160
Esta diferença não é marcada de forma tão nítida de início. Ao fim do livro II temos
trágicos representariam não a verdade do deus (que Platão identifica plenamente com uma
divindade boa, plenamente “virtuosa”), mas sim uma divindade misturada a vícios de
covardia e descontrole de si que pertencem à parte inferior da alma do homem, ligada aos
– Ah! disse eu. O deus, já que é bom, não seria responsável por tudo, como muitos dizem,
mas por poucas coisas em relação aos homens e por muitas não... É que temos menos bens
que males e não devemos ter nenhum outro como causa; e, quanto aos males, devemos
procurar outras causas, mas não o deus
– Parece-me que é bem verdade o que está dizendo, disse.
– Ah! Não podemos aceitar nem de Homero nem de outro poeta esse erro que cometem em
relação aos deuses quando dizem que:
duas grandes jarras jazem no limiar de Zeus
cheias de sortes, uma de boas, a outra de más.
(PLATÃO, 2006: II, 379d, e)4
representação que privilegia exatamente esta parte inferior do ser humano, e, repetindo a
argumentação já contida em Íon e no Fedro, afirmando que a mimese poética não oferece
conforme ele desenvolve melhor no livro VII com a alegoria da caverna. Outro elemento
importante do argumento de Platão contra a poesia neste livro é que o deus é uno e
verdadeiro, que não falseia sua natureza ou age de forma a enganar os mortais, e que os
poetas ao representarem-no como algo que engana o homem ou que assume outras formas
161
que não a sua própria, estariam novamente mentindo, por ignorância e necessária falsidade,
Ah! O deus é completamente simples em seus atos e palavras, ele próprio não se transforma
e não engana aos outros, nem com aparições, nem com palavras, nem com envio de sinais,
quer em vigília, quer sonhando.
– É assim que também me parece, disse ele, quando tu falas.
– Ah! Tu me concedes, disse que há uma segunda norma que se deve seguir ao falar a
respeito dos deuses em narrativas e poemas? Que não se diga que, sendo magos, eles se
transformam e nos seduzem com mentiras expressas em palavras ou em obras!
– Concedo.
– Ah! Embora louvemos muitas coisas em Homero, não elogiamos o sonho enviado por
Zeus a Agamenão... [Ilíada 2, 1-34, em que Zeus envia um falso sonho a Agamemnon
incentivando-o a entrar em combate para que os gregos corram perigo e percebam a
necessidade de Aquiles] (PLATÃO, 2006: II, 383a)5
forma poética em si, e nem à maneira típica de transmissão destes conteúdos no mundo
especialmente pela tragédia. Outros tipos de poesia e de arte, que representem conteúdos
desejáveis pela politéia, seriam mantidos. Ou seja, o que é expulso da politéia platônica é
um certo tipo de performer e um certo tipo de poesia, e não toda poesia e todo rapsodo.
– Será que devemos somente vigiar os poetas, obrigando-os a criar, no interior de seus
poemas, a imagem do bom caráter, ou impedir que os componham em nossa cidade? Ou
também aos outros artífices devemos vigiar e proibir que, em suas obras, criem esse mau
hábito, intemperança, baixeza, indecência, quer nas imagens de seres vivos, quer nos
edifícios, quer em outra obra de arte? Ou a quem não for capaz disso não devemos permitir
que exerça sua arte em nossa cidade, para que nossos guardiões, nutridos no meio das
imagens do vício, como numa pastagem má, a cada dia e de bocado em bocado, façam uma
grande ceifa e dela se apascentando não acumulem, sem que o percebam, um grande mal em
suas almas? (PLATÃO, 2006: III, 401,b)6
162
… e conceder que Homero é o melhor poeta e o primeiro entre os trágicos, mas saber que
somente hinos aos deuses e encômios aos homens de bem devem ser admitidos na cidade.
Se, porém, acolheres a sedutora musa na lírica ou na métrica, o prazer e a dor reinarão na
cidade em vez da lei e do princípio que, entre nós, sempre foi tido como o melhor.
(PLATÃO, 2006: X, 607a)7
platônico, de que certa poesia seria boa e certa poesia má, que uma seria admissível, outra
não. O que estaria em jogo, então, seria a condenação da poesia que não representa nem
pensamento platônico, em que o mito poético ainda é um problema muito presente em sua
obra. É nesta perspectiva que Paul Friedländer se refere a uma relação mais amistosa de
Para Platão, como intérprete do mundo, estas lendas haviam dado um fragmento de
explicação do mundo – ho filomythos filósofos pós esti – el amigo de los mitos (filomythos)
de algun modo es amigo de la sabiduria (filósofos) –, fragmentos de un gran mito medido ,
perdido e despedaçado através das voltas do tempo, que se trata de purificar, de enlaçar e de
dar-lhe forma de novo. (FRIEDLÄNDER, 1989: 171)8
A mentira poética seria, nessa perspectiva, parcial, no sentido de que não representa toda a
simplicidade do Bem, esta gradação não se sustenta. Uma verdade parcial ou manchada por
mentiras e inverdades já não é verdade, e a mentira parcial é mentira inteira, pois promove
163
Após estabelecer, com a alegoria da caverna, a distinção entre o conhecer filosófico
em relação aos outros conheceres, o cerne do caso de Platão contra a poesia é apresentado
concretização através da música e do verbo daquilo que vê, como um negativo da prática sã
habitantes da caverna, e que portanto aquilo que representa será necessariamente falso,
possibilidade parece estar prevista quando mais adiante em seu argumento contra a poesia,
– Então, será justo que a façamos regressar do exílio depois de defender-se com um canto
lírico ou com outro metro qualquer?
– Sem dúvida.
– Concederíamos também a quantos, entre todos os seus patronos, não são poetas, mas
amantes da poesia, que digam em sua defesa, com um discurso sem métrica, que ela não só
é agradável mas também útil em relação à cidade e à vida humana, e com boa vontade os
ouviremos. É que o lucro será nosso, caso pareça não só agradável, mas útil também.
(PLATÃO, 2006: X, 607d)9
164
Mas tal reconciliação ocorrerá sob a condição de que a poesia possa provar seu valor para a
politéia, e não em seus próprios termos, mas a partir de uma crítica. Caso contrário:
Enquanto, porém, não for capaz de defender-se, nós escutaremos o que ela diz, repetindo
para nós mesmos, como numa cantilena, essa argumentação que apresentamos, tomando
cuidado para não reincidir naquele amor infantil e vulgar. Sentimos, então, que não se deve
ter verdadeiro interesse por tal poesia, como se ela atingisse a verdade e devesse ser levada a
sério, mas, ao contrário, deve quem a ouve tomar cuidado e temer pela constituição que traz
dentro de si e também acatar a respeito da poesia as normas que enunciamos.
– Concordo em tudo, disse ele.
– Grande, disse, é a peleja, meu caro Gláucon, grande e não do porte que se espera, a peleja
cokm que se busca ser bom ou mau. Sendo assim, levado nem pelas honras, nem pelo
dinheiro, nem por nenhum comando, nem pela poesia, vale a pena descuidar da justiça e das
outras virtudes. (PLATÃO, 2006: X, 308a, b)10
O problema é que esta prova em retrospecto é impossível, pois, e aí vem a segunda causa
de condenação de Platão à poesia, a parte boa da alma humana, a razão, aquela parte que
Aqui a distinção entre poeta e filósofo ganha uma nova distância, em uma espécie
diferença não é solúvel por um ajuste, porque uma conformação do poeta à visão filosófica
165
o tornaria um filósofo, e não um poeta, o que mudaria também sua prática. A prática do
performance do poeta é seu próprio fim enquanto poeta. Da mesma maneira que a natureza
A leitura específica de Jaeger desta passagem é bastante elucidativa de quanto seu Platão
está ligado a uma espécie de dialética grega do espírito. O autor se refere que a base para a
uma identidade entre o corpo espiritual, as três partes da alma platônica, e o corpo social,
justo, a arete política leva à arete espiritual, mas para que haja a primeira é necessário que
166
haja também a segunda. As leis são a mediação que permite a esta identidade ser mantida
em bases sãs, sem falseamento ou engano, e um bom Estado será aquele em que as
instituições sejam expressão do bom Espírito. E o bom Estado da alma é aquele em que a
parte superior do espírito, a razão, comande e dirija a parte inferior, onde estão os apetites,
conteúdo da consciência se dê em bons termos. Ele excita os apetites sensíveis e faz com
partes. Sua presença é tão insidiosa que arrisca a destruição tanto do Estado político quanto
O que ele censura ao poeta imitativo é evocar um Estado mau na alma de cada indivíduo, ao
discursar ao gosto daquilo que nele há de irracional. Esta imagem é tirada da tão impugnada
prática dos demagogos que adulam a multidão. O poeta torna a alma incapaz de distinguir o
importante do não importante, pois as mesmas coisas representa-as às vezes como grandes,
e, outras vezes, como pequenas, conforme o fim que tem em vista em cada caso. E é
precisamente esta relatividade que prova que o poeta cria ídolos e não reconhece a verdade.
(JAEGER, 1995: 986)
Este seria o cerne da condenação de Platão aos poetas. É importante notar que o grande
modelo de poesia à época de Platão é Eurípides, não só o mais popular, mas cada vez mais
respeitado por uma Atenas cosmopolita. Embora os exemplos de mentiras poéticas que
de Eurípides que tem de ser exorcizado. É Paul Friedländer que pensa esta relação com a
167
Na última década de Eurípides – que na qualidade de criador e destruidor de mitos ao
mesmo tempo inseriu as forças de dissolução nas raízes do mesmo mito – , trancorre a
juvnetude de Platão. É bom lembrar-se que seu tio e modelo admirado foi Crítias, e dos
seguidores de Eurípides é o próprio Crítias o que, no palco ateniense, mostra o mundo dos
deuses como a descoberta venturosa de um homem astuto [referência ao fragmento de uma
peça, o fragmento de Sísifo, atribuído a Crítias]. (FRIEDLÄNDER, 1989: 170)12
que este membro da comunidade tem em sua experiência. Homero, considerado também
como trágico, como o primeiro dos trágicos, é necessariamente o Homero dos recitais, em
Ìon: A prova que tu me dás é flagrande, Sócrates. Falar-te-ei sem subterfúgios. Com efeito,
quando recito um passo patético, os meus olhos enchem-se de lágrimas; se é assustador e
terrível, os cabelos eriçam-se-me e o coração bate-me mais depressa. (...)
Sócrates: Sabes que vocês fazem que a maior parte dos espectadores experimente os
mesmos sentimentos?
Íon: Sei-o muito bem! Vejo-os do alto do estrado, cada vez que choram ou lançam olhares
terríveis ou tremem com as minhas palavras. É necessário, com efeito, que os observe bem:
se os fizer chorar, eu rirei quando receber o dinheiro, enquanto que, se rirem, chorarei eu ao
perder o meu salário. . (Íon, 534c-e)13
Este é um diálogo anterior à República, mas que já contém o cerne do caso platônico contra
a arte mimética: o poeta não conhece de fato, apenas representa inadequadamente aquilo
que vê, para que outros também vejam o que o poeta criador deixou registrado. É preciso
frisar que a esta altura da obra platônica ainda não há uma condenação categórica da arte
168
assim como a pretensão propedêutica da poesia: esta não ensina, ao contrário do que se
assim como o poeta criador, são inspirados pelo deus. Sua ação é comparável à de
Este detalhe é importante, porque aponta para uma teoria do daimônico, que seria
desenvolvida melhor em o Banquete. Se há ainda algo que Platão deva a uma visão trágica
daimônica que, comunicando forma e aparência, envolve a ambas e permite a visão clara.
A poesia, que em Íon ainda pertence possivelmente a esta zona intermediária, na altura dos
textos maduros de Platão é excluída. Não é difícil entender o porque da expulsão da poesia
como caminho para o conhecimento das formas. Seu germe está na teoria poética de Platão
169
em Íon: a ação do poeta é semelhante à de um ímã, ele transmite o entusiasmo do texto a
sua platéia. Nesta projeção, o que está presente é a afirmação do sensível: são os
feita como uma presença, ela “toma” o poeta e a platéia, não permitindo que um termo de
afastamento entre no jogo. A imediatez da ação do poeta cria um problema sério em termos
de visão das formas, de percepção das idéias, porque a falsidade do que é transmitido (e
inverdade) não pode ser percebida. A platéia que é tomada pela presença poética não tem
entre idéia e aparência. Nós estamos acostumados a pensar sobre este processo como
afastamento crítico, mas na filosofia platônica conforme foi pensada especialmente por
Friedländer a partir do romantismo alemão, isto se relaciona a uma teoria da imagem mais
do que a uma teoria do conceito. Neste panorama a idéia platônica não é simplesmente a
espécie, o conceito que abarca todos os indivíduos; ela possui uma concretude imagística,
um peso de presença que não é simplesmente lógico, mas também, através da mediação
daimônica, sensível, e é mais monádica que conceitual. O exemplo dado por Friedländer
serviria de forma essencial para todas as plantas. Em Goethe este arquétipo não é uma
uma planta concreta, uma imagem de planta que o poeta teria encontrado em sua viagem à
Itália. É o conceito “visto” concretamente, tornado presença, mas para que esta visão seja
170
verdadeira, para que o conceito visto seja de fato a forma e não a aparência, é preciso a
E com efeito, para Platão, surge o mundo sucessivamente como idéia e aparência de forma
completamente mais sutil, um laço mais forte devia transformar de novo esta oposição em
unidade. Para ele a alma humana é um intermediário (metaxy) entre idéia e aparência, assim
também a “doxa” como terceiro nível do mundo do conhecimento, um intermediário entre
não-ser e ser, conduzida deste a aquele. Pois novamente a “dianoia”, a zona da ciência
individual, está no meio, entre o puro conhecimento que se dirige ao reino das idéias e a
mera opinião que o dirige à flutuante aparência. Sem a proporção dos elementos, sem a o
harmônico sistema das formas de ser e conhecer, sem a “metaxy” da alma, sem a zona do
“demônico”, se partem céu e terra entre si. (FRIEDLÄNDER, 1989: 58)15
O problema e a virulência da poesia para Platão está na maneira como ela complica a
metaxy. Pois a idéia platônica, assim como a presença poéitca, é também um tipo de
não mediada, e por sua imediatez sensível não permite o discernimento entre aparência e
idéia. Este é o cerne da terceira e principal crítica de Platão à poesia, e aqui se marca
poético não se refere apenas à performance, mas também à poesia enquanto processo
– Não é essa, porém, a maior acusação que temos contra ela. Ser capaz de causar dano
mesmo às pessoas de bem, com exceção de bem poucos, nisso é que está o maior perigo...
– Como não, se isso é que ela faz?
– Ouve e presta atenção! Os melhores entre nós, ao ouvir Homero ou outro poeta trágico
imitando um herói que, tomado pela dor do luto, dispara uma grande tirada entremeada por
gemidos ou canta e bate no peito, disso sabes muito bem, sentimos prazer e, esquecendo-nos
de nós próprios, vamos atrás deles compartilhando de seus sentimentos e ainda, com muito
empenho, louvamos como bom poeta principalmente que nos emociona a tal ponto.
– Sei disso… como poderia deixar de saber? ...
– Se considerasses que a parte da alma que estava sendo contida naquela ocasião, no
momento dos infortúnios familiares, e sentia uma necessidade imperiosa de chorar e
171
lamentar-se até saciar-se, porque por sua natureza é afeita a esses desejos, é a que, naquele
momento, os poetas satisfazem e alegram. O que em nós, porém, por natureza é o melhor, já
que não recebeu, nem da razão nem do hábito, formação suficiente, diminui a vigilância
sobre essa parte lamurienta, porque é apenas espectadora de sofrimentos alheios, e para ela,
quando um outro que se diz homem de bem, inoportunamente dá vazão a seu luto, nada há
de vergonhoso em aplaudi-lo e compadecer-se dele. Ao contrário, ela julga que terá um
lucro, o prazer, e não admitiria ser privada dele, por desprezar o poema em seu todo. São
muito poucos, penso eu, os que cuidam dos sofrimentos alheios necessariamente resulta
num ganho para nós próprios. É que, para alguém que nutre sua compaixão com o
sofrimento de outrem de modo que a torne forte, não será fácil contê-la nos seus.
(PLATÃO, 2006: X, 605c-606b)16
O grande pecado da poesia seria que, por criar uma imagem que tem a aparência de
realidade, esta impede que o processo racional de medida e avaliação possa perceber a
falsidade ética daquilo que está sendo dito. Jaeger tem uma leitura bastante direta deste
Jaeger:
... o nosso ideal moral do Homem está em franca oposição com nossos sentimentos poéticos.
A natural necessidade de chorarmos e de nos lamentarmos, que na vida sufocamos pela
violência, é satisfeita pelo poeta e sentimo-la nele como um prazer. A parte verdadeiramente
melhor de nosso ser, se estiver mal educada pela razão e pelo hábito, cede neste caso e
abandona sua vigilante resistência para dar rédea solta à necessidade de se lamentar... A
simpatia é na poesia trágica o que o sentimento do ridículo é na poesia cômica: a fonte da
ação exercida no ânimo de quem ouve. Todos nos rendemos a este encanto, embora sejam
poucos os que advertem a mudança que no seu próprio ser se opera em virtude do
fortalecimento destes impulsos pela poesia. (JAEGER, 1995: 987-88)
Algo que fica suposto no comentário de Jaeger é a diferença da visão platônica para a
aristotélica, pois o mecanismo que Platão identifica como pernicioso, a capacidade que a
poesia tem de afetar o sensível e nublar a razão, é muito próximo da catarse aristotélica.
172
concebe a catarse como um mecanismo são, que, na verdade, ajuda a prática filosófica pois
o homem não é apenas ético, nem se refere puramente a uma prática orgânica de
purificação. Não é apenas que a poesia defenda coisas falsas e leve a falsas conclusões,
nem que ela fortaleça a parte errada do organismo psíquico, mas há também um problema
epistemológico: a poesia cria uma imagem que compete com a imagem filosófica, mas, ao
contrário desta, que se constrói através da mediação racional, da ciência das medidas: a
imagem poética não é mediável. É isto que ela possui de vicioso: o fato de não permitir a
defesa do filósofo contra a imagem que se sobrepõe à sua, o perigo de ser mais efetiva que
a imagem filosófica e de ser uma mentira com mais presença que a verdade conforme
Platão a enxerga.
de uma presença poética, e é cisão, porque esta sensibilidade é negada em nome de uma
outra forma de relação com o conhecimento e com a realidade. A seguir vamos tratar
brevemente de como este cuidado platônico em relação à mimese está no centro de uma
173
O problema central desta discussão é o estatuto do texto (e portanto da
representação) na obra de Platão. No ponto mais extremo temos a teoria das doutrinas não-
escritas que chega até nós através de Giovanni Reale17. O argumento fundamental de
Reale, baseado em um trecho do Fedro que alerta para que a escrita não tem a capacidade
de manter o pensamento vivo e que destrói a memória, é que é necessário que se leia a
Platão seria uma espécie de recurso mnemônico, um instrumento para avivar a memória e
recuperar a raiz da discussão, mas aquilo que seria o conteúdo mesmo da doutrina
estaria presente nos textos, embora eles apontem para este conteúdo profundo. Este sentido
mais complexo da obra platônica passa necessariamente por uma revisão da literatura
(DERRIDA, 1981), de Derrida. O mesmo texto, o Fedro, serve de base para o comentário
de Derrida sobre a escrita em Platão. O que está em jogo em Derrida é relacionar este
leitura possível de Platão que retrabalhe o sentido de sua obra. A hipótese básica é que a
especialmente a ironia) tem um lugar bastante problemático, não sendo encarada como
plenamente adequada à disciplina filosófica. Por trás disto estaria uma identificação da
escrita com aspectos femininos da ação discursiva, quando o discurso se obriga a atender a
necessidades outras, estéticas e sensíveis, para além daquelas do direto discurso filosófico.
174
A complexidade da discussão não vai ser resgatada aqui, mas gostaríamos de
parte da obra platônica que se refere a uma performance poética, às imagens, mitos, ironia,
e outras estratégias discursivas que aproximam o texto platônico talvez não da poesia, que
tem um lugar muito específico na cultura grega de sua época, mas da literatura em um
sentido mais amplo, no sentido de uma ação discursiva criativa, de algo mediado pela
imaginação. Este não era um problema menor para filólogos da geração de Friedländer e
Jaeger, que vêm de um panorama cultural muito marcado pela referência ao pensamento
filosófico alemão do século XIX. A prática comum de Friedländer, de tentar iluminar certas
exemplo – sua teoria da ironia socrática é uma teoria também da ironia em Schlegel, sua
teoria da imagem/idéia platônica é uma forma de ler a imagem em Goethe, etc– aponta para
a dificuldade de lidar com a condenação platônica à poesia. Nenhum autor dessa geração
teve capacidade para efetuar um rompimento total com a filosofia platônica como vamos
ver em Nietzsche, mas permanece sempre uma contradição quase insuperável conciliar uma
leitura textual de Platão com a apresentação de sua filosofia. O texto platônico parece ser
abordável por uma teoria literária, e na verdade não haver a possibilidade de propor
plenamente que sua obra não seja em algum nível literatura conforme a de Goethe, Schiller
ou Schlegel. Mas seu pensamento é contrário a isso. Neste panorama, o trabalho de Eric
Havenlock (1903-1988), Preface to Plato, funciona como uma espécie de elo comunicativo
175
Havelock, que vai alimentar toda sua obra e pesquisa, é que a literatura platônica representa
uma mudança de paradigma entre uma cultura tradicional oral e uma cultura baseada na
Em resumo: o alvo de Platão é precisamente aquelas qualidades que aplaudimos nele. Seu
alcance, sua catolicidade, seu comando do registro emocional humano, sua intensidade e
sinceridade, e seu poder de dizer coisas em nós mesmos que apenas ele pode revelar. E
ainda assim para Platão tudo isso é um tipo de doença, e precisamos perguntar por quê. .
(HAVENLOCK, 1963: 6)18
A discussão continua, estabelecendo que aquilo que Platão entendia por poesia é algo
essencialmente distinto de nossa poesia, e isto em um sentido mais profundo do que aquele
que Jaeger propõe. Não é apenas que a poesia do ator e do rapsodo tenham uma presença
prática mais intensa, mas, mais que isso, elas são instituições de um tipo antigo de
percepção, de uma cultura baseada na oralidade e na presença física daquele que discursa,
quando o filósofo afirma do perigo que a presença poética tem sobre a alma, o que na
descrição de Havenlock: o “texto” oral, para que seja a instituição educativa que é na
Grécia, tem de ser referenciável, tem de estar vivo na memória, por assim dizer. Sem a
texto é tê-lo internalizado, sabê-lo de cor. E a instituição que permite este grau de
176
conhecimento é exatamente o recital público, com a recriação do que está sendo descrito
não apenas para o entendimento, mas para todos os sentidos. Uma récita de Homero como é
descrita por Íon, em que a audiência chora junto do Rapsodo e este junto dos personagens, é
necessária em uma cultura oral para que o texto seja fixado. Não basta apenas uma
experiência mais intensa na relação com o texto para fixá-lo, mas deve ser mais presente
também, pois é através da repetição constante que o texto é fixado. Neste sentido, o texto
todos são a própria história contada. Segundo Havenlock sobre a apresentação poética:
Ela se foca inicialmente não sobre o ato do artista, mas sobre seu poder de fazer sua
audiência se identificar quase patologicamente com o conteúdo do que está dizendo. E assim
quando Platão parece confundir o gênero épico com o dramático, o que ele está dizendo é
que qualquer sentença poetizada precisa ser planejada e recitada de maneira a torná-la um
tipo de drama dentro da alma de tanto o recitador quanto da audiência. (HAVENLOCK,
1963: 45)19
Neste panorama, a cultura oral dos recitais impede o afastamento necessário à liberdade por
que Platão está lutando. Não é apenas que a cultura poética seja falsa, mas o problema
básico é que ela é excessivamente presente, ela deixa muito pouco espaço para a
individualidade. E é contra esta presença excessiva que Platão construiria seu caso. A obra
platônica marcaria a passagem de uma cultura literária para uma cultura oral, e neste
inversão de paradigma: Platão não seria o detrator da poesia, mas o defensor da nova forma
177
condenação à arte poética, nem à técnica literária, nem propriamente ao conteúdo e à forma
de conhecimento poético, mediado pela imaginação e pela criatividade, mas antes uma
defesa destes campos contra a força da cultura oral tradicional. Aqui temos uma espécie de
1
Versão da tradução do original para o espanhol:
Así transcurre durante longo tiempo la preparación, con el objetivo final en esta interdependencia, la pura
metafísica y la contemplación de las ideas, enlazando internamente por fin la imagen acabada: el alma,
pensada según el modelo del cuerpo, tiene ojos como él para ver, sólo que esos ojos están enfocados hacia las
formas eternas.
2
Utilizamos a tradução de Anna Lia Amaral de Almeida Prado pela Martins Fontes (PLATÃO, 2006) para as
citações em português, com a versão de Paul Shorey em inglês para cotização (PLATÃO, 1969, v5 e 6)
3
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
For what we laid down in the beginning as a universal requirement when we were founding our city, this I
think, or some form of this, is justice. And what we did lay down, and often said, you recall, was that each
one man must perform one social service in the state for which his nature is best adapted.” “Yes, we said
that.” “And again that to do one's own business and not to be a busybody is justice, is a saying that we have
heard from many and have often repeated ourselves.” “We have.” “This, then,” I said, “my friend, if taken in
a certain sense appears to be justice, this principle of doing one's own business.
4
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
Neither, then, could God,” said I, “since he is good, be, as the multitude say, the cause of all things, but for
mankind he is the cause of few things, but of many things not the cause. For good things are far fewer with us
than evil, and for the good we must assume no other cause than God, but the cause of evil we must look for in
other things and not in God.” “What you say seems to me most true,” he replied. “Then,” said I, “we must not
accept from Homer or any other poet the folly of such error as this about the gods when he says“ Two urns
stand on the floor of the palace of Zeus and are filled with Dooms he allots, one of blessings, the other of gifts
that are evil
5
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
“From every point of view the divine and the divinity are free from falsehood.” “By all means.” “Then God is
altogether simple and true in deed and word, and neither changes himself nor deceives others by visions or
words or the sending of signs in waking or in dreams.” “I myself think so,” he said, “when I hear you say it.”
“You concur then,” I said, “this as our second norm or canon for speech and poetry about the gods,—that they
are neither wizards in shape-shifting nor do they mislead us by falsehoods in words or deed?” “I concur.”
“Then, though there are many other things that we praise in Homer, this we will not applaud, the sending of
the dream by Zeus on Agamemnon…
6
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
Is it, then, only the poets that we must supervise and compel to embody in their poems the semblance of the
good character or else not write poetry among us, or must we keep watch over the other craftsmen, and forbid
178
them to represent the evil disposition, the licentious, the illiberal, the graceless, either in the likeness of living
creatures or in buildings or in any other product of their art, on penalty, if unable to obey, of being forbidden
to practice their art among us, that our guardians may not be bred among symbols of evil…
7
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
… and concede to them that Homer is the most poetic of poets and the first of tragedians, but we must know
the truth, that we can admit no poetry into our city save only hymns to the gods and the praises of good
men. For if you grant admission to the honeyed muse in lyric or epic, pleasure and pain will be lords of your
city instead of law and that which shall from time to time have approved itself to the general reason as the
best.”
8
Versão da tradução do original para o espanhol
Para Platón, como intérprete del mundo, había sido dado en esas leyendas un fragmento de explicación del
mundo – ho filomythos filósofos pós esti – el amigo de los mitos (filomythos) de alguna manera es amigo de
la sabiduría (filósofos)–, fragmentos de un gran mito medido, perdido y troceado a través de las vueltas del
teimpo, que se trata de purificar, de enlazar y de darle forma de nuevo.
9
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
“Then may she not justly return from this exile after she has pleaded her defence, whether in lyric or other
measure?” “By all means.” “And we would allow her advocates who are not poets but lovers of poetry to
plead her cause in prose without metre, and show that she is not only delightful but beneficial to orderly
government and all the life of man.
10
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
“… so long as she is unable to make good her defence we shall chant over to ourselves as we listen the
reasons that we have given as a counter-charm to her spell, to preserve us from slipping back into the childish
loves of the multitude; for we have come to see that we must not take such poetry seriously as a serious
thing that lays hold on truth, but that he who lends an ear to it must be on his guard fearing for the polity in
his soul and must believe what we have said about poetry.” “By all means,” he said, “I concur.” “Yes, for
great is the struggle,” I said, “dear Glaucon, a far greater contest than we think it, that determines whether a
man prove good or bad, so that not the lure of honor or wealth or any office, no, nor of poetry either, should
incite us to be careless of righteousness and all excellence.”
11
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
“And shall we not say that the part of us that leads us to dwell in memory on our suffering and impels us to
lamentation, and cannot get enough of that sort of thing, is the irrational and idle part of us, the associate of
cowardice?” “Yes, we will say that.” “And does not the fretful part of us present many and varied occasions
for imitation, while the intelligent and temperate disposition, always remaining approximately the same, is
neither easy to imitate nor to be understood when imitated, especially by a nondescript mob assembled in the
theater? For the representation imitates a type that is alien to them.” “By all means.” “And is it not obvious
that the nature of the mimetic poet is not related to this better part of the soul and his cunning is not framed to
please it, if he is to win favor with the multitude, but is devoted to the fretful and complicated type of
character because it is easy to imitate?” … we shall say that the mimetic poet sets up in each individual soul a
vicious constitution by fashioning phantoms far removed from reality, and by currying favor with the
senseless element hat cannot distinguish the greater from the less, but calls the same thing now one, now the
other.”
179
12
Versão da tradução do original para o espanhol
En la última década de Eurípides – que en calidad de creador y detruidor de mitos al mismo tiempo insertó las
fuerzas de disolución en las raíces del mismo mito –, transcurre la juventud de Platón. Es bueno acordarse que
su tío y admirado molde fue Crítias, y de que entre los seguidores de Eurípides es el proprio Crítias el que,
desde la escena ateniense, muestra el mundo de los dioses como el venturoso hallazgo de un hombre astuto.
13
Utilizamos para a citação em português a tradução de Victor Jabouille (PLATÃO, 1988). Para o cotejo
abaixo a tradução de W. R. M. Lamb (PLATÃO, 1925, v9). Disponível em
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/ .
Ion: How vivid to me, Socrates, is this part of your proof! For I will tell you without reserve: when I relate a
tale of woe, my eyes are filled with tears; and when it is of fear or awe, my hair stands on end with terror, and
my heart leaps. (…)
Socrates: And are you aware that you rhapsodes produce these same effects on most of the spectators also?
Ion: Yes, very fully aware: for I look down upon them from the platform and see them at such moments
crying and turning awestruck eyes upon me and yielding to the amazement of my tale. For I have to pay the
closest attention to them; since, if I set them crying, I shall laugh myself because of the money I take, but if
they laugh, I myself shall cry because of the money I lose.
14
Versão da tradução do original para o espanhol
Es el pensamiento o la imagen de lo “demónico” como una zona “entre” la superficie humana y la divina que,
por su situación intermedia, “enlaza el todo conjuntamente consigo mismo”. Diotima situa ese reino, al
comiezo de su mito de Eros, y lo hace como lugar de todo tráfico entre dioses y hombres, para lo que está
toda arte de la mántica y el sacerdotal, toda brujería y la magia...”
15
Versão da tradução do original para o espanhol
Y en efecto, para Platón sale el mundo sucesivamente en idea y aparencia de forma completamente más sutil,
un lazo tan fuerte debía cambiar de nuevo esta oposición en unidad. Así es para el un intermedio (metaxy)
entre idea y aprencia es el alma humana, así la “doxa” como tercer grado del mundo del conocimiento, un
intermedio entre no-ser y ser, conducida de éste a aquél. Pues de nuevo la “dianoia”, la zona de la ciencia
individual, está en el medio, entre el puro conocimiento que se dirige a el reino de las ideas y la mera opinión
que le dirige a la fluctuante aparencia. Sin la proporción de los elementos, sin el armónico sistema de las
formas de ser y conocer, sin la “metaxy” del alma, sin la zona de lo “demónico”, se rompen cielo y tierra
entre sí.
16
Na versão de Paul Shorey (PLATÃO, 1969, v5 e 6):
“But we have not yet brought our chief accusation against it. Its power to corrupt, with rare exceptions, even
the better sort is surely the chief cause for alarm.” “How could it be otherwise, if it really does that?” “ Listen
and reflect. I think you know that the very best of us, when we hear Homer or some other of the makers of
tragedy imitating one of the heroes who is in grief, and is delivering a long tirade in his lamentations or
chanting and beating his breast, feel pleasure, and abandon ourselves and accompany the representation with
sympathy and eagerness, and we praise as an excellent poet the one who most strongly affects us in this way.”
“O yes,” said I, “if you would consider it in this way.” …
“If you would reflect that the part of the soul that in the former case, in our own misfortunes, was forcibly
restrained, and that has hungered for tears and a good cry and satisfaction, because it is its nature to desire
these things, is the element in us that the poets satisfy and delight, and that the best element in our nature,
since it has never been properly educated by reason or even by habit, then relaxes its guard over the plaintive
180
part, inasmuch as this is contemplating the woes of others and it is no shame to it to praise and pity another
who, claiming to be a good man, abandons himself to excess in his grief; but it thinks this vicarious pleasure
is so much clear gain, and would not consent to forfeit it by disdaining the poem altogether. That is, I think,
because few are capable of reflecting that what we enjoy in others will inevitably react upon ourselves. For
after feeding fat the emotion of pity there, it is not easy to restrain it in our own sufferings.”
17
cf. O segundo volume de REALE, Giovanni. História da filosofia antiga (6v). (trad Marcelo Perine). São
Paulo: edições Loyola, 1993.
18
Tradução própria do original em inglês:
In short, Plato’s target in the poet is precisely those qualities we appalud in him; his range, his catholicity, his
command of the human emotional register, his intensity and sincerity, and his power to say things in ourselves
that only he can say and only he can reveal. Yet to Plato all this is a kind of disease, and we have to ask why.
19
Tradução própria do original em inglês:
It focuses initially not on the artist’s act but on his power to make his audience identify almost pathologically
and certainly sympathetically with the content of what he is saying. And hence also when Plato seems to
confuse the epic and the dramatic genres, what he is saying is that any poetized statement must be designed
and recited in such a way as to make it a kind of drama within the soul both of the reciter and hence of the
audience.
181
6: teorias da tragédia no idealismo alemão
Isto significa estabelecer os termos da discussão, tentar perceber, por exemplo, como a
torna em Hegel e em Hölderlin algo bastante distinto, já não uma teoria do efeito estético,
mas uma ontologia. A discussão sobre o trágico é também um dos parâmetros que delimita
uma filosofia do esclarecimento, em Lessing e Kant, para o idealismo que se afirma a partir
discutiremos a tragédia em Hegel. É preciso notar que há duas teorias fortes do trágico em
Hegel, uma primeira nos capítulos V e VI da Fenomenologia do espírito, em que Édipo rei
e Antígona são entendidos como manifestação do espírito no universo ético (e neste caso a
discussão sobre o trágico está atada à discussão ética, é uma teoria de como o espírito surge
no Estado antigo, na pólis grega), e um segundo momento, dez anos mais tarde, em que ao
fim da quarta parte de seu Curso de estética Hegel estabelece uma teoria geral da tragédia.
Neste caso, embora a discussão central ainda seja ética (como tudo o mais na obra de
Hegel), já não se trata de entender a manifestação do espírito na polis, mas sim de teorizar a
182
Fenomenologia do espírito é alguma coisa tão central que Hegel não se preocupa nem em
tratá-la como uma forma artística, nem relacioná-la a uma teoria da catarse, o parâmetro
para toda discussão sobre o trágico. Ao fim deste capítulos trataremos brevemente da
tragédia em Hölderlin, especialmente de sua teoria do trágico, que é mais uma ontologia e
um leitura sobre o sentido de compaixão e terror que a catarse trágica deve purificar. Este é
é que o “terror” com que se traduz o phobos na Arte poética de Aristóteles deveria ser
traduzido mais propriamente por “temor”, “medo”. Para Lessing, a possível confusão
tradutória seria responsável pelos teatros modernos que tentaram reproduzir o teatro trágico
terem cometido excessos, com obras que se afastaram do espírito original da tragédia. O
que está em jogo em Lessing é qual a dívida dos contemporâneos para com a tragédia
clássica, se uma fidelidade formal ou uma fidelidade espiritual. Esta é uma primeira
aparição da distinção entre uma filosofia do trágico e o trágico enquanto forma literária,
fundamental para o idealismo do século XIX em seu esforço sobre o pensamento estético.
práticos do palco e da sociedade grega, e que sua reprodução pura e simples em um palco
moderno – ou, mais precisamente, em um palco alemão moderno – não poderia jamais
183
voltada especialmente ao classicismo francês que tenta emular o teatro trágico grego, tem
um alcance mais amplo do que a problematização entre público e obra. O tema central da
mais adequado o termo “temor”. Para Lessing, compaixão e temor não seriam apenas
sentimentos instrumentais, efeitos de uma performance cujo objetivo final seria a sua
autodissolução na catarse para que o espectador, o sujeito afetado pela obra, pudesse atingir
temor e compaixão, que Lessing liga ao termo filantropia correlato em Aristóteles (76ª
“filantropia”, que Lessing estabelece como uma forma específica de sentimento, distinto da
compaixão, na medida em que não é motivado pelo sensível, mas é sim amor ao humano
em geral, sentimento moral de dever para com o próximo mais que o afeto pelo personagem
que sofre, e que faz com que o espectador sinta piedade mesmo pelos vilões que estão para
morrer, pelo criminoso e pelo celerado. Esta filantropia projeta a obra em uma dimensão
que vai um pouco além da reflexão de Platão e Aristóteles sobre a tragédia clássica. Em
ambos a poesia é entendida como essencialmente uma prática performática, mas de modo
algum, especialmente em Platão, algo que corresponda a uma verdade ontológica do ser
humano. O caráter “filantrópico” que Lessing atribui à forma trágica a tornaria um caminho
conhecimento, pois no filantrópico, na compaixão que a forma trágica desperta pelo herói
que sofre, culpado ou não, surge o amor pelo humano. Segundo Lessing:
184
É exatamente esse amor, digo eu, que em nenhuma circunstância podemos perder
inteiramente para com o nosso próximo, que, sob a cinza ... continua a sopitar inextinguível
e como se esperasse uma lufada propícia de infortúnio, dor e perdição, para irromper numa
labareda de compaixão, exatamente esse amor é que Aristóteles denomina sob o nome de
filantropia. (LESSING, 1991: 64)
Banquete, é ainda a força daimônica que media a relação entre o universo ético e o homem
singular, a ponte entre a razão do indivíduo e as idéias. Apenas este eros é filtrado pela
visão sentimental e política do século XVIII, que o torna não uma força de espanto, um
certos valores morais positivos que Lessing concebe como a base ética da tragédia. Nós
retornaremos a este amor que é um dos termos fundamentais da discussão trágica em Hegel
como uma obra que diga respeito apenas ao sensível, mas como uma forma que consegue
penetrar no universo ético e dar acesso a uma realidade profunda, representar um bem
moral, mesmo quando trata de vilões e celerados. Isto ainda não é a centralidade que a
Lessing ainda estabelece que a obra de arte precisa se justificar moralmente, ela ainda está
subordinada a uma função didática e moralizante, mesmo que esta função seja uma espécie
de plano de fundo.
Lessing ainda não chega à visão de Schiller de que a obra de arte é gratuita, é lugar
185
sua Crítica da faculdade de juízo. Em sua concepção, a obra de arte ainda é funcional,
estamos ainda diante da questão da liberdade humana, como em Schiller, e mais tarde no
idealismo, mas apenas de uma liberdade política, circunscrita a uma determinada situação
histórica concreta.
à justeza a algum fim que a tornaria apreensível pelo entendimento dentro do âmbito de
uma razão prática. A beleza é gratuita e não pode construir entendimento. Uma das
diferenças entre Lessing e Kant é que o último não supõe a catarse como um momento
Lessing sobre o trágico para o belo e a obra de arte em geral, o que talvez seja autorizado
por seu Laocoonte. A maneira de Kant pensar o belo estabelece que sua apreensão, de
gosto, afeto, e entendimento, sem que esta relação consiga em momento algum chegar ao
belo afasta-o da tragédia, já que esta passa necessariamente pela discussão do interesse
moral e da necessidade. Só pode ser belo aquilo que não tem uma finalidade, que não
concerne ao julgamento, mas apenas ao campo relativo do afeto. O que a geração de Iena
legítimo para o conhecimento, como algo que diz respeito a uma manifestação legítima da
verdade (do divino, do absoluto, da idéia) no mundo. De Kant é mantida a noção de que a
186
arte se relaciona de alguma maneira ao entendimento, de que no sentimento do belo o
entendimento participa, e não apenas o gosto individual, mas contra Kant o idealismo supõe
que haja uma substância apreensível por trás do sentimento do belo, que este possa através
do parcial e do singular que lhe são específicos estabelecer o acesso ao universal. Segundo
As definições kantianas a esse respeito [sobre o belo] são bastantes conhecidas: o belo é o
que agrada universalmente e sem conceito. Trata-se então menos de saber em que ele
consiste do que de estudar o juízo pelo qual é enunciado, a maneira pela qual é dito. Seu
mérito é, para Hegel, enunciar a co-penetração do espiritual e do sensível, do universal e do
particular. Sabe-se que o juízo de gosto é, em Kant, nada menos que pessoal e relativo. Mas
justamente Kant não chega, segundo Hegel, a pensar objetivamente essa co-penetração, uma
vez que ela só existe fundada no juízo, isto é, no subjetivo. (BRAS, 1990: 19)
O belo em Kant não tem uma dimensão ética necessária, e para uma filosofia idealista que
identifica a substância ética, o que está por trás da ação concreta do homem quando este
obedece a uma necessidade racional, será contra isto. Esta liberdade moral do belo será um
dos pontos de divergência mais importantes entre o idealismo e a geração precedente. Não
é que a obra de arte para os de Iena tenha de ser moralizadora em um sentido positivo, da
lei e dos valores estabelecidos, já dados, mas sim que o sentimento do belo surge da
percepção de uma substância ética (Hegel) ou ontológica (Schelling, Hölderlin) por trás da
obra de arte.
Lessing talvez concorde com a liberdade moral do belo, ou pelo menos supõe que
um personagem bom esteticamente não tem de ser bom também moralmente, mas não
conceberia a liberdade entre obra de arte e finalidade moral. Lessing possui a humana
sabedoria de entender que aquilo que chamamos de belo não é desinteressado: não
187
independe, como pensa Kant, de seu entorno, nem é necessariamente uma questão de gosto
conhecimento. Em Lessing o belo, ou pelo menos a obra de arte, parte privilegiada de seu
universo, está articulado com condições e circunstâncias que o formam. Não tem uma
origem, mas um nascimento, e sua apreensão não é uma constante, mas se transforma de
acordo com a história e a sociedade, e, acima de tudo, as paixões humanas são um estágio
que aponta. O belo deve ser moral, deve atender a e dialogar com o entendimento. Daí a
clinicamente purgar um desequilíbrio, como propõe Aristóteles, mas antes para permitir
que a partir do novo equilíbrio atingido algum conhecimento possa ser obtido. Em Kant o
objetos à contemplação, não consegue jamais fazer com que as intuições estéticas formem
188
toda atividade humana também, de que a arte é o principal exemplo. O que há no idealismo
espírito humano. Já não apenas o jogo livre que prepara o advento da liberdade, como na
obra de arte é para esta geração a manifestação já acabada do espírito, é na obra de arte e
naquilo que ela suscita, a sensação estética de beleza, que o ser humano reconhece a
grandeza de seu espírito, é através dela que supera a amnésia de sua grandeza moral e
catarse aristotélica, favorecendo uma teoria do conflito trágico. A tragédia cessa de ser
partes, acima de tudo como uma maneira de se pensar o espírito humano diante daquilo que
caracterizado de maneira mais direta em Hegel. Em seu caso, a estrutura trágica é a própria
Muitos intérpretes da tragédia, começando já com Aristóteles, focam seu comentário sobre o
efeito da tragédia, sobre sua recepção. Hegel, junto com Friedrich Hölderlin (1770-1843),
Friedrich Schelling (1775-1854), e Peter Szondi (1929-1979), é um dos poucos na tradição a
tomar um caminho diferente. Hegel foca na estrutura fulcral da tragédia. E assim o foco de
Hegel sobre a estrutura da colisão trágica lhe dá um novo ângulo dos motivos tradicionais
de medo e compaixão. Para Hegel, a audiência não deve temer o destino exterior, como com
Aristóteles, mas a substância ética que, se violada, se voltará contra o herói. (ROCHE, 2006:
4, In DUNCAN, 2006)1
189
É Schelling que primeiro reconhece no estético esta dimensão ontológica. Em sua Filosofia
representação para se tornar uma das partes mais importantes do pensamento filosófico.
Não é só que a obra de arte possa representar uma verdade e ser algo mais que um exercício
entendimento tão válido quanto a razão, contra Kant. A obra de arte na verdade é a
Schelling:
Esta cisão entre a visão kantiana e o idealismo que surge logo após o criticismo talvez
tenha nas Cartas sobre dogmatismo e criticismo de Schelling seu melhor documento. É ao
e não apenas seu fenômeno. A décima carta oferece, segundo Peter Szondi em Poesia e
tragédia, o que vale dizer, a primeira vez em que uma teoria do trágico é algo além da
reflexão sobre o efeito da catarse. A definição de Schelling nesta carta é importante porque
190
ao mesmo tempo que constrói a transição entre o racionalismo da ilustração e o sistema
Muitas vezes se perguntou como a razão grega podia suportar as contradições de sua
tragédia. Um mortal, destinado pela fatalidade a ser um criminoso, lutando ele mesmo
contra a fatalidade, e contudo terrivelmente castigado pelo crime que era obra do destino! O
fundamento dessa contradição, aquilo que a tornava suportável, estava em um nível mais
profundo do que onde a procuraram, estava no conflito da liberdade humana com a potência
do mundo objetivo, no qual o mortal, se aquela potência é uma potência superior (um
fatum), tinha de necessariamente ser derrotado, e, contudo, porque não foi derrotado sem
luta, tinha de ser punido por sua própria derrota. Que o criminoso, que apenas sucumbiu à
potência superior do destino, fosse punido, era um reconhecimento da liberdade humana,
uma honra que se prestava à liberdade. (SCHELLING, 1973: 208)
liberdade), assim como a conclusão de Schelling, de que a derrota do ser humano no trágico
era a afirmação de sua liberdade e portanto manifestação do espírito e do ideal, estão por
trás tanto da dialética de Hegel, a expressão do conflito entre Espírito e alteridade, entre
ontologia) de que a única solução para a reconciliação com uma natureza e um divino que
estão em uma distância infinita em relação ao homem é o conflito com esta natureza e este
Liberdade e submissão, mesmo a tragédia grega não podia harmonizar. Somente um ser que
fosse despojado da liberdade podia sucumbir ao destino. – Era um grande pensamento
suportar voluntariamente mesmo a punição por um crime inevitável, para, desse modo, pela
própria perda de sua liberdade, provar essa mesma liberdade e sucumbir fazendo ainda uma
declaração de vontade livre. (SCHELLING, 1973: 208)
191
é uma daquelas afirmações que ressoam pelos pósteros, que exige ser pensada e emulada e
valores em relação ao mundo natural que tenta destruí-lo, ganha dignidade e amplia seu
alcance, se iguala a este outro infinito, a natureza. A crença de Hegel de que a natureza,
através do trabalho do Espírito, em uma longa trajetória de conflito e destruição, pode ser
suprassumida na obra humana (na ação através do trabalho, da história, da arte, da religião),
e que ela é na verdade a alteridade fundamental na busca do espírito pelo absoluto de si, e
que no conflito entre Espírito e Natureza está a fundação do processo dialético que leva ao
em que este sujeito necessariamente perece, mas, assim, através deste gesto simbólico,
consegue atingir uma nova linguagem e representar o infinito, está relacionado a esta
passagem de Schelling.
192
6.3. A tragédia em Hegel: a descrição formal no Curso de estética
idealista com a tradição de teoria estética desde Aristóteles, pois, na geração de Hegel, e
especialmente nele, temos a exigência de um conceito de arte que não respeite nem as
natureza e belo. No Curso de estética Hegel estabelece logo de início sua posição em
relação à tradição aristotélica: o fim da arte, ou ao menos sua missão , não seria representar
a natureza, mas sim manifestar o espírito. É importante chamarmos a atenção para uma
questão conceitual, tentar entender que a arte, assim como, na verdade, os outros aspectos
absoluto presente no mundo, atado à história e ação dos homens, e ao mesmo tempo dotar
particulares e singulares que uma obra qualquer tem presente. Assim, a substância da obra
está sempre em si mesma, em sua forma e especificidade, mas está também fora de si
193
fazer a disjunção entre o sensível e o ideal, eles estão atados, um diz o outro. Segundo
Partir da Idéia para refletir sobre a arte, dizer que o Belo é Idéia, é portanto estabelecer a
unidade conceitual do conjunto histórico das obras de arte e, ao mesmo tempo, conferir-lhe
um sentido. É reconhecer que uma obra desprovida de significação é também desprovida de
razão de ser e, em conseqüência, não existe efetivamente: nem idéia separada do mundo
material, nem simples figura redutível a uma utilidade qualquer, a obra de arte é a unidade
significante de uma forma sensível e de um conteúdo espiritual sob a dominância do
conteúdo. (BRAS, 1990: 58)
A visão hegeliana sobre a tragédia segue a mesma lógica da arte e de qualquer outra
comentário sobre o trágico. A leitura formal de Hegel sobre o trágico, em seu Curso de
Aristóteles e Platão, e que fundamentou toda teoria estética até o idealismo. O que a arte
homem no mundo, ou seja, a maneira como a ação concreta do homem revela o absoluto do
substância ética, o grande mote da filosofia de Hegel. Segundo Hegel na primeira parte de
Pretendendo que a imitação constitua o fim da arte, que a arte consista, por conseguinte,
numa fiel imitação do que já existe, coloca-se a lembrança na base da produção artística.
Priva-se, assim, a arte da liberdade, do poder de exprimir o belo. O homem pode, decerto,
194
ter interesse em produzir aparências como a natureza produz formas. Mas não pode se tratar
de um interesse puramente subjetivo em que o homem se limita a querer mostrar destreza e
habilidade sem considerar o valor objetivo daquilo que é sua intenção de produzir. Ora, o
valor de um produto provém do conteúdo, na medida em que este participa do espírito.
Como imitador, o homem não ultrapassa os limites do natural, ao passo que o conteúdo deve
ser de natureza espiritual. (HEGEL, 1996: 28-9)
próximo da anamnese filosófica: ela é uma das instâncias em que é figurado, junto da
aquisição de liberdade espiritual. Uma arte que seja mimética conforme a definição de
Aristóteles, que represente apenas o sensível, se afasta de sua missão, que é o contrário
histórica, das paixões, dos desejos, é sempre figuração, mas uma figuração que possui a
mesma matéria do que representa, é a própria matéria do que representa. Uma obra de arte
aí não é algo que diz outra coisa e nisto se afasta do dito, como no pensamento platônico,
mas é sim a própria voz do que diz, é a própria coisa se expressando. Isto não significa que
não haja mediação entre a figuração e a idéia, mas sim que a figuração é a própria
Por isso, podemos dizer, de modo geral, que o tema propriamente dito da tragédia originária
é o divino; mas não o divino do modo como constitui o conteúdo da consciência religiosa
como tal, e sim tal como penetra no mundo, no agir individual, mas que nesta efetividade
não perde nem seu caráter substancial nem se vê dirigido ao que é oposto a si mesmo. Nesta
Forma, a substância espiritual do querer e do realizar é o ético. Pois o ético, caso o
apreendamos em sua consistência imediata e não apenas do ponto de vista da reflexão
195
subjetiva como o formalmente moral, é o divino em sua realidade mundana, o substancial,
cujos lados, tanto particulares quanto essenciais, fornecem o conteúdo motor da ação
verdadeiramente humana e no agir mesmo explicitam esta sua essência e a tornam efetiva.
(HEGEL, 2004, v. 4:231)
arte tem um lugar específico, distante da filosofia e da religião, mas não tem uma dignidade
inferior a ambas. Antes de mais nada a obra de arte tem a capacidade de explicitar
Schelling, por exemplo, a crença de que esta missão de representação do artístico, sempre
transmitido a todo pensamento estético posterior, que acredita que a linguagem artística
pode dar conta de representar o infinito, ainda que o mecanismo de representação seja
Hegel em relação a seus contemporâneos, a Natureza não é vista como identidade, o natural
não é aquilo a que o homem deve retornar, mas antes aquilo que deve superar para que
196
Aquilo que a filosofia da arte de Hegel confirma na visão estética tradicional é a
excitada, mas sim na maneira como esta representação consegue desvelar as razões por trás
da ação representada. A definição do trágico em Hegel passa por uma releitura eticizante da
catarse aristotélica. Em Hegel a catarse que surge da resolução do conflito trágico diz
catarse surge como o momento de reconciliação entre estes dois pólos, entre uma lei divina
e uma lei humana, mesmo que esta reconciliação seja mediada pela morte. Aqui Hegel se
aproxima de Hölderlin, que vai encarar também a reconciliação entre divino e humano
tornar efetiva a presença do espírito, ou seja, de perceber este espírito não como um valor
distante e cego, mas como algo a ser mediado pela experiência concreta da vida, um
quando estes valores éticos absolutos, lei da cidade e lei da família, na Fenomenologia, são
197
alteridade, seu isolamento unilateral em si mesmos e a impossibilidade de reconhecer a
diversidade, é o que provoca o conflito trágico. Segundo Hegel no quarto volume de Curso
de estética:
enfrentarem e reconhecer que cada um tem substância ética. Deste reconhecimento surge a
a catarse é uma metáfora para o aufhebung, e vale talvez imaginar a hipótese de que a
relação de precedência não é da filosofia hegeliana para a catarse, com a catarse como uma
forma de aufhebung, mas sim com a catarse, a leitura de Hegel sobre a catarse e a tragédia
desde muito cedo em sua trajetória, como inspiração para o aufhebung. É na retomada da
catarse aristotélica que Hegel fornece sua definição mais acabada da forma trágica como
reconciliação das polaridade éticas isoladas. Segundo Hegel, no quarto volume de seu
Curso de estética:
198
O que por conseguinte é suprimido [aufgehoben] no desenlace trágico é apenas a
particularidade unilateral, que não conseguiu se adaptar a esta harmonia e que na tragédia de
seu agir, quando não pode abandonar a si mesma e seu propósito, se vê entregue, segundo
toda sua totalidade, ao declínio ou pelo menos se vê forçada a resignar, quando disso é
capaz, diante da realização de sua finalidade. A este respeito, Aristóteles, como é sabido,
situou o efeito verídico da tragédia no fato de que ela deve suscitar e purificar o temor e a
compaixão. (HEGEL, 2004, v. 4:237-8)
Lessing em sua Dramaturgia de Hamburgo, estabelecendo os limites para o que deve ser
entendido como temor e compaixão na tragédia. Não se trataria de purificar paixões puras,
não é propriamente a miséria e o sofrimento que levam à catarse, mas sim este sofrimento
espírito, aos valores éticos absolutos que são sua natureza. Isto exige que em sua ação os
personagens trágicos sejam plenamente responsáveis por aquilo que fazem. Não é trágico o
acaso cego nem o simples arbítrio do divino, mas apenas o conflito consciente do herói
possibilidade de que a reconciliação que Hegel reconhece como o fim da tragédia tenha um
sentido profundo, possa representar a vitória do absoluto sobre o particular. Esta posição de
universal. Segundo Hegel, o efeito trágico não passa pelo pathos puro, mas sim por este
199
Um sofrimento verdadeiramente trágico, ao contrário, é apenas sentenciado, por sobre os
indivíduos agentes, como conseqüência de seu próprio feito, tanto legitimado quanto cheio
de culpa por meio de sua colisão, pelo qual eles também têm de responder como todo o seu
eu [Selbst].
Acima de mero temor e da simpatia trágica está, por isso, o sentimento da reconciliação,
que a tragédia garante por meio da visão da eterna justiça, que em seu imperar absoluto
perpassa a legitimidade relativa dos fins e das paixões unilaterais, porque ela não pode
tolerar que o conflito e a contradição das potências éticas, unas segundo o seu conceito, se
impunham vitoriosas na efetividade e conquistem consistência. (HEGEL, 2004, v. 4:239)
O Curso de estética de Hegel fornece então uma definição da tragédia à luz de sua
própria filosofia. A seguir vamos nos deter na presença de Édipo rei e Antígona na
Fenomenologia do espírito, no modo como estas peças foram entendidas por Hegel como
Hegel, já que é neste livro que são introduzidas as visões centrais de Hegel. O aufhebung, a
da imanência das ações e paixões humanas, estes todos são temas característicos de Hegel
que são apresentados no livro. A Fenomenologia é publicada em 1807, cerca de dez anos
antes dos cursos de estética ministrados por Hegel, e a presença da tragédia na obra tem
uma chave distinta dos cursos. Se neste trabalho Hegel apresenta a reflexão sobre a tragédia
Sófocles são lidas no capítulo VI como uma maneira de ilustrar o próprio pensamento de
200
porque refere o surgimento do trabalho do espírito dentro da realidade coletiva e histórica,
ou seja, como o espírito consegue manifestar sua essência absoluta em um ambiente em que
parcial, entre particular e universal, entre sensibilidade finita e razão infinita. Os dois
fenômeno, nos limites históricos e concretos da atividade humana. Mas, ato contínuo, na
próprio conforto e plenitude de ser uma consciência isolada e dar-se ao confronto com
outras consciências, valores e ações, ou seja, de reconhecer que o sentido unilateral em que
se dá seu gozo não é suficiente para garantir a verdade de sua ação. Esta talvez seja a
orgânico, como uma imensa mente que se manifesta em indivíduos singulares, o espírito é
contradições dentro desta mente coletiva que é o povo, há a possibilidade do singular ter
compreensão cada vez mais profunda da substância ética absoluta que ele manifesta. Nas
201
Esta necessidade do indivíduo transcender o singular tem diferentes leituras na tradição
Portanto, o espírito aparece aqui como a experiência do cogitamus e não mais apenas do
cogito. Supõe a superação das consciências singulares e, simultaneamente, a conservação de
sua diversidade no seio da substância. É no coração da consciência singular que
descobrimos sua relação com outras consciências singulares. Cada uma é para-si e ao
mesmo tempo para outrem, cada uma exige o reconhecimento da outra para ser ela mesma e
deve igualmente reconhecer a outra. (HYPPOLITE, 2003: 343)
Esta necessidade da verdade ser uma construção coletiva é também o que estabelece a
afinidade das teorias revolucionárias comunistas com o pensamento de Hegel, e que torna
sua teoria uma teoria da história humana. De qualquer maneira, em Hegel a possibilidade
alteridade, do ser em si, alienado em seu gozo isolado, com os objetos exteriores a si
própria sensibilidade e se confrontar com outros valores de uma forma construtiva. É neste
202
âmbito que Hegel utiliza as figuras de Édipo e de Antígona, como uma maneira de
deste Estado.
A cidade-estado grega é concebida por Hegel como a sobreposição entre lei divina e
humana. O divino não tem nesta parte do trabalho o sentido específico do ideal, nem é uma
se refere à instância da família, que em Hegel tem a função específica de conceder sentido
universal, nos termos de Hegel um acontecimento vazio e que ameaça esvaziar o sentido da
obra daquele que viveu porque retira este morto do ciclo de alteridade, torna-o um ser puro,
fora da ação relacional, e, portanto pura passividade, que nem age sobre os outros nem pode
impedir a ação dos outros sobre si, que é resgatado deste destino ao ser afastado da
comunidade dos vivos através do ritual funerário. Quando a família enterra seu morto
daqueles que ficam, preservando o sentido daquilo que o morto viveu. Segundo Hegel:
[parágrafo 452] Acontece por isso que também o ser morto, o ser universal, se torne um
[ser] retornado a si, um ser-para-si ou que a pura singularidade singular, carente de forças,
seja elevada à individualidade universal. O morto, por ter liberado o seu ser do seu agir, ou
do Uno negativo – é a singularidade vazia, apenas um passivo ser para Outro, abandonado a
toda individualidade irracional inferior e às forças da matéria abstrata. Agora elas são mais
poderosas que o morto: a primeira, em razão da vida que possui, e as outras, por causa de
sua natureza negativa.
A família afasta o morto desse agir que o profana, [o agir] dos desejos inconscientes e das
essências abstratas; põe o seu agir no lugar [do agir deles] e faz o parente desposar o seio da
terra, a individualidade elementar imperecível. Desse modo, torna-o sócio de uma
comunidade que, antes, mantém subjugadas e prisioneiras as forças das matérias singulares
e as vitalidades inferiores, que queriam desencadear-se contra o morto e destruí-lo.
(HEGEL, 2002: 312-3)
203
O dever de enterro permite que o singular, que o indivíduo se proteja de ser tornado objeto
vazio e puramente passivo. Nas palavras de Hegel, constitui “a lei divina perfeita, ou a ação
ética positiva para com o Singular” (HEGEL, 2002: 313). O dever de enterro também
insere o morto no universal, faz com que sua morte, que poderia se confundida com um
sem sentido, torne-se uma última ação do morto, seu pulo limiar do singular para o
universal. Acima de tudo a família resgata o morto da natureza, faz com que sua morte seja
Sua morte é o trabalho de sua vida, seu vir-a-ser universal, mas tal morte aparece, no
entanto, como uma contingência, um fato da natureza cuja significação espiritual não é
aparente: é o papel da família, da lei divina, retirar a morte à natureza e dela fazer
essencialmente uma “operação do espírito”. A função ética da família, tal como Hegel a
considera aqui, é a de tornar a morte a seu encargo. (HYPPOLITE, 2003: 365)
direito superior ao da cidade, é a este direito familiar que se refere, de enterrar o próprio
morto, de dotar esta morte de um último sentido sem o qual o ser de Polinices se esvazia,
torna-se não mais a matéria espiritual do humano, mas algo que pertence de novo à
fraternal, que em seu entender pertence a um tipo mais espiritualizado de amor, pois não
está atado ao dever natural e biológico, como o amor entre pais e filhos ou o amor entre
homem e mulher, que tem na procriação e no desejo formas de interesse. O amor fraternal é
Antígona se reconhece em Polinices, este nela, sem a nota conflituosa que produz a
204
maturidade do eu com o mundo. E para este amor, que Hölderlin vai identificar como o
fogo aórgico que domina o personagem trágico e o obriga agir respeitando este fogo e nada
mais, a dimensão do agir de Polinices, sua traição a Tebas que motiva o veto a seu
ser superada no puro agir, porque estamos diante da oposição entre dois absolutos, ambos
justos. Mas este conflito é também obra do espírito, é a conciliação do individual com o
mesmo tempo que a obrigação da cidade reconhecer sua alteridade, seu outro na lei divina
da família. Mas esta conciliação só ocorre caso o agir da cidade e o agir de Antígona se
sua revolta se manifesta o direito divino do funeral; Antígona tem de ser punida e tem de
ser culpada, porque sua culpa e punição manifestam a lei da comunidade. Nas palavras de
Inocência é irreconciliável com a ação humana, mas apenas na ação há identidade moral.
Antígona é culpada. O edito de Creonte é uma punição política, para Antígona é um crime
ontológico. A culpa de Polinices para com Tebas é totalmente irrelevante para o sentido
existencial que nela tem seu singular, insubstituível ser. O Sein de seu irmão não pode, de
maneira nenhuma, ser qualificado por seu Tun. A morte é precisamente o retorno da ação
para o ser. Ao tomar sobre si a inevitável culpa da ação ao opor o feminino ontológico ao
masculino-político, Antígona se coloca acima de Édipo: seu “crime” é plenamente
consciente. (STEINER, 1984: 35)3
A morte de Antígona permite que ambos os sentidos, o da lei humana e o da lei divina, as
duas instâncias que estruturam a cidade clássica, fiquem claros, e nesta efetivação chega-se
a um novo equilíbrio, em que a lei humana suprassume a lei divina embora ainda mantenha
205
sua memória. A continuação do capítulo VI da Fenomenologia trata de como esta lei divina
retorna com outras figuras e produz o declínio do Estado ático. A ilustração aqui já não é o
sobre a forma trágica mais do que propriamente em sua obra poética. O objetivo será
sobre a tragédia em Hölderlin tem algumas especificidades que a tornam uma espécie de
fulcro para todo pensamento trágico, pois ao mesmo tempo que a referência para aquilo que
é dito pelo autor é todo o pensamento idealista, suas conclusões preparam o surgimento de
não tão óbvios imediatamente. Aquilo que se afasta, por exemplo, o desejo de Hölderlin de
206
Talvez a melhor maneira de iniciar a discussão seja apresentando a concepção de
Hölderlin sobre a linguagem poética, o que vai nos preparar para entender como a tragédia
é vista em sua obra. Segundo Hölderlin, no pequeno texto O modo de proceder do espírito
com a natureza, de sua reflexão sobre aquilo que é e seus limites de ação e de
O que é descrito por Hölderlin é um tipo de relação não muito distinta da dialética
que nasce a possibilidade de uma linguagem poética. O que vai distinguir Hölderlin de
na matéria coletiva da história, Hölderlin ainda exige que esta reconciliação se dê de forma
207
experiência de um indivíduo livre, cuja sensibilidade não é, como em Hegel, posta em uma
são libertárias, mas enquanto em Hegel a necessidade é uma espécie de professor tirânico
do espírito em seu caminho em direção à liberdade humana, um professor que em sua ação
contingência. Nisto Hölderlin concorda com a tradição idealista do indivíduo como núcleo
da liberdade e do conhecimento. Esta distinção específica entre o pensamento dos dois, que
humana na história e Hölderlin na arte, fica bastante clara no comentário de Hölderlin sobre
Não é apenas por si mesmo e nem pelos objetos que o homem pode fazer a experiência de
que, no mundo, há mais do que um curso mecânico, de que há um espírito, um deus. Essa
experiência dá-se apenas numa relação mais viva com o que o cerca, para além das
necessidades imediatas.
Cada um teria, portanto, o seu próprio deus na medida em que possui a sua própria esfera de
ação e de experiência, só havendo uma divindade comunitária na medida em que os demais
possuem uma esfera comunitária em que agem e sofrem humanamente, isto é, para além das
necessidades imediatas. (HÖLDERLIN, 1994: 68)
individualidade como a condição para uma história é uma posição nitidamente distante de
através da destruição de uma parte da diferença entre os pólos ao mesmo tempo que
mantém uma parte do contraditório ainda vivo na figuração nova que surge do processo.
208
Assim, no confronto entre Antígona e Creonte o elemento contraditório (a indiferença de
Antígona em relação à substância ética, em relação à moralidade do agir que condenou seu
irmão) é destruído na morte de Antígona. Mas a nova forma de lei que surge do confronto
será obrigada a levar em consideração em sua moralidade parte da exigência daquilo que
foi aniquilado, ou seja, será obrigada a pensar a letra da nova lei em relação ao direito
familiar de retirar o morto da comunidade ética dos viventes e assim preservá-lo. A forma
nova que surge do confronto é aufhebt em relação ao momento do próprio confronto, ela
absorve em sua substância parte daquilo que foi obrigada a destruir, e assim se modifica. A
Esta consciência é sempre retrospectiva, é sempre uma reflexão sobre aquilo que
ocorreu, e apenas nesta instância temporal é que é possível uma linguagem para descrever a
sentido do vivido, e a percepção atual é necessariamente pobre para dar conta do presente.
O famoso exemplo do aqui e agora com que Hegel explica no início da Fenomenologia do
este limite: dizemos sempre o que já passou, o que já não é, e apenas aceitando esta
Segundo Hegel:
[parágrafo 95] Portanto a própria certeza sensível deve ser indagada: Que é o isto? Se o
tomamos no duplo aspecto de seu ser, como agora e como aqui, a dialética que tem nele vai
tomar uma forma tão inteligível quanto ele mesmo. À pergunta: que é o agora?
209
respondemos, por exemplo: o agora é a noite. Para tirar a prova da verdade dessa certeza
sensível basta uma experiência simples. Anotamos por escrito essa verdade; uma verdade
nada perde por ser anotada, nem tampouco porque a guardamos. Vejamos de novo, agora,
neste meio-dia, a verdade anotada; devemos dizer, então, que se tornou vazia. (HEGEL,
2002: 87)
linguagem, que, de alguma maneira, ao dizer que “agora é noite” estejamos dizendo
simultaneamente que “agora é meio-dia”, e que o elemento sensível da categoria, que ata o
conhecimento– baseada não no que passou, no que se perdeu, no que se diluiu, mas sim
uma forma de tradução e registro desse trabalho do negativo, mas a instância em que se dá
humana. É na ação que absoluto e particular se reconciliam, é na ação que sua oposição se
registro, pois ele ocorre após o aufhebung, após o instante em que o momento pleno da
contradição fazia brilhar de maneira integral o sentido próprio de cada campo em conflito,
após a conciliação.
O que Hölderlin vai exigir da poesia e da linguagem é que elas possam não apenas
registrar, mas mediar o conflito. Uma poesia que possa dizer o homem e dizer a natureza
em seus próprios termos, dizer o momento em que sua alteridade, para Hölderlin uma
alteridade entre dois absolutos, esteja presente de maneira simultânea e integral. Isto torna a
210
linguagem poética, e a poesia trágica como forma maior desta linguagem, essencialmente
grandeza, sua plenitude, são mantidos: a linguagem não dilui o sentido do evento – e o
evento de fato é sempre negatividade entre homem e natureza, entre o homem e o divino.
Este sentido que em Hegel se perde no registro, pois o registro do sentido ocorre após sua
direta pela poesia. Há aqui entre esses dois amigos a repetição do conflito entre poesia e
pretende. É claro que em Hegel este veto se estende a todo o saber humano, e não apenas à
conciliação dos absolutos do homem e da natureza precisa dar conta dos limites lógicos do
simbólico, dar conta de que o agora será sempre um agora específico, por exemplo. A teoria
simbólico pode permitir a expressão plena de dois absolutos no momento de seu conflito.
Sua resposta é promover uma espécie de inversão de valores, em que o absoluto de uma
presença, o absoluto do sentimento do divino, que não é representável pela linguagem por
outro absoluto, por uma ausência, por uma falta de significação, pelo absoluto de um
silêncio, de uma falha em comunicar, por uma traição do homem e do divino em dizerem
um ao outro e promoverem sua comunhão. Nesta falha que produz o abismo infinito entre
os dois pode ser representado outro infinito, o da reconciliação entre os dois, sua união
211
renovada. É assim que Hölderlin explica a tragédia no pequeno parágrafo O significado da
tragédia:
Quando Hölderlin estabelece que a maneira de significar “o fundo velado de toda natureza”
obrigada a silenciar por não dar conta mais de dizer, é obrigada a um gesto extremo, seu
próprio silêncio, a suspensão de sua ação, quando se torna alguma coisa além de linguagem
cujo signo e linguagem é a ação do herói, é o momento limite do sacrifício. Peter Szondi
Esta dialética segundo a qual o que é forte não pode aparecer a não ser como falho e
necessitando de qualquer coisa falha para que sua força apareça, funda a necessidade da
arte. Nele [Hölderlin] a natureza aparece não mais propriamente, mas mediada por um
signo. Este signo, na tragédia, é o herói. Incapaz de fazer frente à potência da natureza, e
anulado por ela, ele é “insignificante” e “ineficaz”. Mas, no momento da morte do herói
trágico, quando o signo é igual a zero, a natureza se apresenta triunfante em seu dom mais
forte e o originário é francamente desvelado. Hölderlin interpreta assim a tragédia como o
sacrifício oferecido pelo homem à natureza para a conduzir a aparecer de maneira adequada.
(SZONDI, 1976: 14)4
212
Estruturalmente a teoria do trágico de Hölderlin se aproxima da afirmação de Schelling de
o sentido do sacrifício trágico é distinto nos dois. O fato de este sacrifício ser na verdade
sua posição da de Hegel. Mas, ao contrário de Hegel, em que o mundo da natureza é que
deve ser silenciado – o direito familiar, próximo do direito natural, que deve ser suprimido
aproximar de novo o divino do humano, fazer com que o sentido pleno da natureza se
um processo dialético em que o herói, enquanto signo, passa da ação e da presença concreta
para a morte e a ausência, e ao se tornar esta grande alteridade que é o morto toca nesta
outra grande alteridade que é o divino. O que sua teoria da tragédia também tem de
dialético é conceber a relação do herói com a divindade como uma relação conflituosa, de
luta agressiva entre duas potências de dignidade igual. A significação através do silêncio é
o que Hölderlin chamou de infidelidade entre deus e homem. É este silêncio, esta
deus e a traição do homem, a infidelidade mútua que faz com que o deus se retraia para
213
longe do mundo e que o homem o confronte exigindo sua presença, sua reunificação
consigo, é a maneira específica com que as duas potências se relacionam. É segundo esta
teoria que se dá tanto a escrita de seu Empédocles quanto sua tradução de Antígona, e é
sacrifício trágico se reúnem e reconciliam, estão separados pelo abismo dos limites
dentro destes limites, que são a aceitação do retraimento do divino, mas que são também a
momento em que o fogo aórgico se acende e o homem começa a desejar transcender estes
limites, é que se dá a situação trágica. Esta pretensão de se igualar ao deus, o tema de sua
A ode trágica tem início no fogo mais elevado. O espírito puro, a pura interioridade
ultrapassou os seus limites. Não sustentou de maneira suficientemente comedida as ligações
da vida, essas que em virtude de sua disposição interior tendem, necessária e
inexoravelmente, ao contato, só que de forma desmesurada, como a consciência, a reflexão
e a sensibilidade física. Da desmesura da interioridade surge, portanto, a discórdia que a ode
trágica simula, desde o começo, a fim de apresentar o puro. Por um ato natural, ela então
prossegue do extremo da diferença e da indigência até o extremo da indistinção, do puro, do
supra-sensível, que parece não admitir nenhuma indigência. (HÖLDERLIN, 1994: 79)
214
É uma interioridade excepcionalmente poderosa que faz com que o herói trágico deseje
encarar o deus. Só que este ato é vetado pela lei religiosa, é necessariamente desejo nefasto,
sacrílego, em dois sentidos. É formalmente sacrílego porque vai contra a separação estrita
categórico que o divino e a natureza representam. Há uma chave mística nesta construção
Hölderlin tem um sentido moral muito fraco, se referindo mais especificamente à traição do
limite entre deus e homem. O pecado é a pretensão do homem ao divino, que em sua leitura
passa pelo abandono do universo sensível, do afastamento do ritual religioso, por exemplo,
para Empédocles:
Quanto mais infinita a interioridade, mais inexprimível, mais próxima ela se torna do nefas,
tanto mais fria e rigorosamente a imagem deve distinguir o homem e o elemento por ele
sentido a fim de manter a sensação em seus limites. Assim, quanto menos a imagem
exprime, de forma imediata, a sensação, mais ela deve negar a forma e a matéria.
(HÖLDERLIN, 1994: 81)
O paradoxo é que este abandono do universo ético, da convivência com outros homens e a
humanidade não está nestes gestos sensíveis, mas em outra comunidade, junto ao divino, é
aquilo que dá ao herói trágico o vislumbre da natureza do divino. Françoise Dastur em seu
215
comentário a Hölderlin em Hölderlin: tragédia e modernidade, identifica neste paradoxo,
da decisão trágica, pensar em como o herói age erradamente, e convicto em seu errar,
apesar de ser um indivíduo elevado. Só que o erro trágico, a hamartía, seria um desvio
apenas aparente: na verdade ele estabelece que a ação a que o herói responde dentro da
espírito absoluto. O herói desafia o divino e tenta subverter seu lugar na ordem do mundo
porque sua ação não se dá dentro de uma lógica de recompensa e temor, de sujeição, mas
sim dentro da lógica de liberdade absoluta que seu fogo aórgico exige. Segundo Dastur,
Hölderlin, ao propor uma hamartía que seja erro apenas aparente, estaria pensando em
termos de uma moralidade absoluta, supra-ética, que teria o imperativo categórico de Kant
como referência:
É neste sentido que Hölderlin se refere a uma “retirada categórica” do divino, que exigiria
do homem o confronto com o deus para seu retorno categórico. O afastamento do divino é
necessário, porque esta é a maneira de significar sua presença, assim como o confronto do
herói aórgico contra o deus também é necessário, porque é isto que exige sua essência
semelhante à divina. Neste sentido, o herói aórgico participa mais da essência divina do que
os sacerdotes, que podem na melhor das hipóteses reproduzir o desejo divino, a verdade do
216
deus, que é e não é a verdade do herói. É a verdade do herói porque seu fogo o eleva à
altura do deus, ao universo supra-sensível daquilo que já não pertence ao fenômeno, mas ao
necessariamente como antagonista do divino, como elemento que vai contra aquilo que é a
natureza divina, o afastamento, mas que é obrigado a reconhecer que sua distância em
relação ao deus é tão grande que mesmo este antagonismo não será considerado. O deus
está ausente de fato, ele não se manifesta nem quando provocado. Segundo Dastur:
Em Édipo rei e Antígona, Sófocles expõe a relação do homem com a retirada categórica do
deus. Édipo é atheos – é o que diz o verso 661 da tragédia –, o que não quer dizer, de modo
algum, ateu no sentido moderno dessa palavra, mas sim abandonado pelo deus que dele se
retira e nem mesmo se dá ao trabalho de castigá-lo quando seu crime é descoberto.
(HÖLDERLIN, 1994: 187)
necessidade tão premente quanto o afastamento do divino e o combate do herói com o deus
que se retira. O cerne do trágico estaria então na revelação da linguagem que permite esta
conciliação, na maneira como deus e homem, cada um atendendo ao princípio que lhes
cabe, conseguem encontrar uma linguagem que os religue e permita sua união. Este
momento de revelação ocorre quando o conflito é mais intenso, quando deus e homem
põem em xeque o lugar de cada um. Hölderlin localiza no surgimento do adivinho Tirésias
nas tragédias de Édipo rei e Antígona. Tirésias surge para revelar que a pretensão humana
não está de acordo com a verdade divina, que o lugar ético e político da existência humana
não pode ser transcendido para um lugar teológico, de conhecimento do divino. Na leitura
217
de Hölderlin, a grande hamartía de Édipo não é seu parricídio e incesto, mas sim ter
interpretado de forma desmesurada a sentença do oráculo que inicia a peça. O oráculo exige
que o crime cometido contra Laio seja purificado, o que, segundo o lugar devido do homem
na ordem do mundo, significaria cumprir os rituais e agir com justiça para com o povo da
cidade. Mas Édipo interpreta a sentença, segundo sua natureza aórgica, como uma licença
para seu desejo espiritual de saber mais e afirmar a capacidade de seu espírito em dominar
herói de que ele não deve desejar penetrar mais no mistério, não deve tentar descobrir a
verdade para além daquilo que seja seu lugar como homem atado à comunidade dos
viventes, faz com que surja o dissenso entre a dignidade que o deus reserva ao homem e
aquela que o herói exige para si em sua desmesura, e que caso continue insistindo seu
destino será o aniquilamento. A intervenção de Tirésias deixa clara para além de qualquer
dúvida a distância entre a pretensão humana e a natureza divina, e nesta fissura criada na
ordem do conhecimento surge o silêncio que separa deus e homem, a distância entre a
aórgico recusa acatar o desejo divino de que apague o fogo que o consome, a recusa do não
saber, a recusa de sair do lugar de liberdade que seu espírito conquistou através do desejo
aniquilação que o próprio homem elege, seu abandono da comunidade dos vivos para entrar
no ser puro dos mortos. Esta reconciliação é também aquilo que Hölderlin vai entender
como catarse: da mesma forma que em Aristóteles compaixão e medo são purgados da
218
incomunicabilidade entre humano e divino é purgada, é superada, através de sua
explicitação. Deus e homem se unem na morte porque sua separação já é morte, esta é a
exige do eu ainda sensível, há o caminho para a união com o divino. Segundo Philippe
Após a descoberta de que existe um absoluto de silêncio que os separa, deus e homem
podem utilizar este silêncio como uma linguagem comum a ambos e se reconciliar. A
silêncio como a linguagem que liga deus e homem: na infidelidade mútua, na confirmação
do homem ao deus quando recusa o lugar que o deus lhe reservou na ordem do mundo.
de deus (que não se manifesta na tragédia para punir) e de homem (que é obrigado a
afastar do sensível). Hölderlin, em suas Observações sobre Édipo, se refere a esta catarse
219
toda parte, ... o deus e o homem – para que o curso do mundo não tenha lacuna e não
desapareça a memória dos celestiais – se comunicam na forma da infidelidade esquecedora
de tudo, pois a infidelidade divina é o que há de melhor para lembrar. (HÖLDERLIN, 2008:
79)
Esta catarse é também, e tão importante quanto isto, a retirada do homem da comunidade
dos viventes, sua penetração no categórico quando aceita a morte. Segundo Hölderlin em
1
Tradução própria do original em inglês:
Most interpreters of tragedy, beginning already with Aristotle, focus their accounts of tragedy on the effect of
tragedy, on its reception. Hegel, along with Friedrich Hölderlin (1770-1843), Friedrich Schelling (1775-
1854), and Peter Szondi (1929-1979), is one of the few figures in the tradition to take a different path. Hegel
focuses on the core structure of tragedy. And yet Hegel’s focus on the structure of tragic collision gives him a
new angle on the traditional motifs of fear and pity. For Hegel the audience is to fear not external fate, as with
Aristotle, but the ethical substance which, if violated, will turn against the hero.
2
Versão própria da tradução ao francês:
Dans l’interpretation de Schelling, le héros tragique cuccombe seulemant devant la “puissance supéurieure”
de l’objèctif, il est puni pour avoir succombé, et meme pous avoir engage le combat, el ainsi le valeur positive
dans son attitude – cette volonté de liberté que constitue “l’essence de Moi” – se retourne contre lui même. Ce
processus, on peut, avec Hegel, l’appeler “dialectique”. Schelling, il est vrais, avait en vue l’affirmation d’une
liberté acquire aux prix de l’anéantissement, la possibilité d’une action purement tragique que lui demeurant
étrangère.
3
Tradução própria do original em inglês:
Innocence is irreconciliable with human action, but only in action is there moral identity. Antigone is guilty.
Creon’s edict is a political punishment, to Antigone it is an ontological crime. Polyneice’s guilt towards
Thebes is totally irrelevant to her existencial sense of his singular, irreplaceable being. The Sein of her brother
cannot, in any way, be qualified by his Tun. Death is precisely, the return from action into being. In taking
upon herself the inevitable guilt of action, in opposing the feminine-ontological to the masculine-political,
Antigone stands above Oedipus: her “crime” is fully conscious.
4
Versão própria da tradução ao francês:
220
Cette dialectique selon l’aquelle ce qui est fort ne peut de lui-même apparaître que comme faible et au besoin
de quelque chose de faible pour que ça force apparaisse, fonde la necessité de l’art. En luis la nature apparaît
non plus proprement, mais mediatisé par un signe. Ce signe, dans la tragédie, c’est l’héros. Incappable de
faire échec à la puissance de la nature, et anéanti par elle, il est “insignifiant” et “sans effet”. Mais, au moment
de la mort du héros tragique, lorsque le signe est égal à zero, la nature se présente triomphatrice dans son dons
le plus fort et l’originel est franchement découvert. Hölderlin inteprète ainsi la tragédie comme le sacrifice
offert par l’homme a la nature pour la conduire à apparaître de façon adequate.
5
Estes temos têm sinal invertido em relação aos princípios do apolíneo e do dionisíaco no Nascimento da
tragédia de Nietzsche. Em Hölderlin a natureza manifesta o princípio formal apolíneo (orgânico em sua
nomenclatura), e o homem o princípio informal dionisíaco (aórgico em Hölderlin). A discussão se dá também
em outros termos, pois o juviniano e a natureza são espiritualizados, possuem um fundo metafísico que não
está presente em Nietzsche.
221
CONCLUSÃO
referiu constantemente à tragédia grega em sua formação. Autores como Schelling, Hegel e
Hölderlin enxergaram na tragédia uma espécie de modelo, ou, mais exatamente, uma
figuração, daquilo que eles identificaram como as questões mais urgentes do ser humano: a
seu alvo, seu fim, é que neste reconhecimento daquilo que está fora de si o indivíduo possa
resolver seu anseio por comunhão e por superação de sua finitude. É da relação com o
outro, da maneira como esta alteridade é reconhecida e processada, que surge a relevância
da forma trágica para o idealismo. Porque reconhecer a alteridade geralmente passa por
este é um outro mais universal, que está mais próximo de sua própria individualidade e do
absoluto que ele anseia. Aquilo que o idealismo percebeu no trágico foi a promessa de que
conhecimento mais puro sobre o indivíduo e aquilo que lhe é exterior, e que, de posse deste
conhecimento seja possível se chegar ao absoluto, de que através da finitude seja possível
tocar o infinito.
222
Em autores como Ésquilo, Sófocles e Eurípides a geração de Hegel reconheceu que
este projeto havia sido cumprido, e que aquele conhecimento ansiado que levaria à
havia sido figurado na tragédia. Como uma hipótese impossível de ser comprovada, talvez
possamos propor que a leitura intensiva do texto trágico, que levou a uma certa idéia do
trágico, foi responsável por identificar de uma maneira tão direta a relação com a alteridade
como uma relação de sofrimento e de colisão. Por outro lado, a tragédia para o idealismo é
arte trágica como uma obra que visa o efeito sensível e a torne uma outra coisa: a
uma maneira nova e em boa medida ignorado na teoria estética do idealismo, que surge a
reconciliação, a crença de que o herói trágico é culpado eticamente, mas que nesta culpa
reside um dom redentor, a crença de que o herói trágico é uma figuração de um humano
que o idealismo chega sobre o trágico. Se para Aristóteles o sofrimento do herói tem o
este sofrimento surge já entendido como uma forma autônoma em que a recepção pelo
auditório é pouco importante, e como a linguagem dura que comunica indivíduo e absoluto.
O aparato filológico de que nos utilizamos serve como uma maneira de mediar este
discurso estritamente filosófico, de uma filosofia da arte, com as questões literárias mais
223
citamos com mais freqüência, como Jaeger, Lesky ou Bruno Snell, têm uma sensibilidade e
historiadores da arte e da cultura e não filósofos, o que significa que seu discurso aponta
estar presentes em um trabalho de crítica literária. A referência a estes autores serve para
Nossa intenção e estratégia de leitura foi fazer com que este texto surgisse em paralelo ao
texto filosófico, e assim permitir uma relação mais intensa entre os dois discursos, com a
pretensão de que assim o diálogo ocorresse de uma maneira mais equilibrada, iluminando
forma trágica possa manter diante deste discurso teórico, repetindo em um outro nível,
menos urgente, digamos, a dialética que nos preocupamos em descrever. Mesmo que o
plano deste estudo tenha sido a apresentação de uma leitura específica do trágico, na
Nesta diferença reside talvez o motivo deste trabalho, que não chega a ser
explicitado nem realizado, mas que foi um dos entornos de sua escrita, o divórcio entre
quando a musa afirma que a poesia diz muitas mentiras disfarçadas de verdade, mas que às
vezes diz verdades, é um credo tranqüilo para a prática da arte, uma espécie de reserva que
permite ao discurso criativo ser menos responsável, e a partir desta irresponsabilidade legar,
para além do prazer, algumas formas novas ao mundo. Esta capacidade, que
224
necessariamente lembra da transitoriedade dos valores e esforços do homem, é exatamente
o que um discurso filosófico preocupado com aquilo que é permanente não pode aceitar.
Este mundo aberto da poesia e da arte, em que a fantasia traz para dentro de um sistema de
valores imagens novas, que com o tempo e a sorte podem adquirir permanência e modificar
a realidade que as cerca, como uma ilusão que ganhe concretude qual os objetos de Tlöm
incerteza e mutabilidade. O veto platônico passa, como nos referimos no capítulo cinco, por
esta incapacidade de aceitar este jogo com os limites entre permanente e impermanente. A
confusão que o literário causa entre verdade e aparência, entre valor e insignificância, não
nos parece algo que possa ser plenamente processado por um discurso filosófico, mesmo
após Nietzsche. Talvez se trate não de aceitar uma conciliação, que sempre estaria marcada
por certos desenganos mútuos de ambas as partes, mas de permitir que o conflito se
processe de uma forma produtiva. Quando o idealismo entende a arte concreta como algo a
ser tratado por uma filosofia da arte, quando supõe que na grande obra de arte haja apenas
nisto prepara sua própria crise, porque as mentiras da obra de arte têm um poder e uma
modificaram a própria arte, inseriram em seu sistema o peso de uma responsabilidade que
Para finalizar gostaríamos de refletir de uma forma mais livre sobre os limites do
pensamento sobre o trágico no século XIX. Isto significa, talvez, pensar em como a base
225
deste pensamento, o desejo de superar a finitude e a solidão, se tornou um projeto
praticamente irrealizável na modernidade. E isto poderá ser um bem, porque nos permite,
através de uma longa corrente de idéias, pensar a liberdade humana e a possível conciliação
do homem com seus demônios em termos mais modestos, mais próximos a uma realidade
tão pouco espiritual como é a nossa, em que aquelas potências negativas no próprio
idealismo, o corpo, a natureza, as vozes menores daquilo que não exige o infinito mas
apenas algum tipo de presença, e que estão fadadas àquilo que é esquecimento e
desaparição, possam ser ouvidas de uma maneira mais adequada. É o projeto de Walter
não é nunca a felicidade, mas apenas uma lenta aceitação de um eu cheio de limites. E há
uma certa consolação em poder deitar ao chão o fardo da eternidade, do infinito, da força
de boa fé o abandono da promessa antiga, de que a potência do ser humano pode aproximá-
lo de deuses, que sua solidão pode ser recompensada por êxtase e que o sofrimento, ao
menos por um instante, conceda um sentido maior àquilo que é a vida? E eis o problema,
pois, embora ao longo de muito tempo tenhamos tentado nos disciplinar a aceitar que os
limites humanos não são conciliáveis, que todo conhecimento e toda experiência são
parciais e que não há remédio para isto, ainda uma parte de nós busca a promessa.
representado seja sempre a parte fraca, transitória e fugaz do homem. Mas há um anticorpo
no idealismo, a promessa de absoluto, que não consegue ser expurgada deste novo corpo do
conhecimento. Diante desta promessa, do fascínio que ela exerce, da esperança que ela
226
produz, a consciência do limite acaba se tornando uma coisa fraca, no mínimo uma
conquista sem brilho. Em momentos em que a lucidez é difícil, nos momentos duros em
que os limites parecem ser pesados demais, o desejo pelo absoluto pode muito bem gerar
limite. De tornar esta promessa algo que seja um elemento de tensão dentro de um
pensamento que se acostumou demais a ficar preso em seu horizonte. Os frutos dessa
possibilidade ainda não vieram, mas se são possíveis autores como Guimarães Rosa ou
Bataille, que experimentaram com o infinito, cada um a seu modo, em um mundo sem
espírito, há a indicação de que este é um projeto possível na arte, para além da arte, talvez.
227
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