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Cosmos, Caos e o Mundo Que Virá by Norman Cohn

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Sumário

AGRADECIMENTOS
PREFÁCIO

I - O ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO

1 - O EGITO
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12

2 – MESOPOTÂMIA
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10

3 - ÍNDIA VÉDICA
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11

4 - ZOROASTRISMO
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9

5 - DO MITO DO COMBATE A FÉ APOCALÍPTICA


Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6

II - CRISOL SÍRIO-PALESTINO

6 - UGARIT
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4

7 - YAHWEH EA MONARQUIA DE JERUSALÉM


Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6

8 - O EXÍLIO E O PÓS-EXÍLIO
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8

9 - APOCALIPSES JUDAICOS (I)


Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6

10 - APOCALIPSES JUDAICOS (II)


Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5

11 - A SEITA DE JESUS
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
12 - O LIVRO DO APOCALIPSE
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6

13 - JUDEUS, ZOROASTRIANOS E CRISTÃOS


Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3

POSFÁCIO
NOTAS

AGRADECIMENTOS

Por muitos anos depois de iniciada a elaboração deste livro, fui professor na
cátedra Astor-Wolfson da Universidade de Sussex, posição que me permitiu
muito mais tempo para pesquisas do que o normalmente desfrutado pelos
acadêmicos britânicos. Por isso sou muito grato a David Astor e à Wolfson
Foundation. Também recordo com grande apreço o ano que passei como fellow
desta admirável academia que é o Netherlands Institute for Advanced Studies,
em Wassenaar.

Durante minha longa travessia, fui extraordinariamente revigorado,


estimulado e esclarecido pelas conversas e troca de correspondência com Mary
Boyce e Robert Canroll, que coroaram sua boa vontade lendo e comentando o
manuscrito final. Agradeço também a Geza Vermes, por ter me encorajado a
aceitar e levar adiante esse empreendimento, e a ele e a Henry Saggs, por suas
meditadas — e proveitosas — indicações bibliográficas. Com Robert Baldock e
seus colegas da Yale University Press, em Londres, tenho um débito pelo
escrupuloso cuidado com que prepararam o livro para publicação.

O que devo à minha esposa e ao meu filho Nik é incalculável. Se não fosse
pelo estímulo deles, o livro nunca teria sido terminado, e, sem suas críticas, ele
teria deficiências ainda maiores. São de minha inteira responsabilidade,
evidentemente, os erros, os descuidos e quaisquer outras falhas.
PREFÁCIO

Este livro investiga as raízes mais profundas e o surgimento de uma


expectativa ainda hoje florescente: a de que em breve haverá uma consumação
maravilhosa, quando o bem será enfim vitorioso contra o mal, reduzindo-o para
sempre à nulidade; a de que os agentes humanos do mal serão ou fisicamente
aniquilados ou afastados de alguma outra forma; a de que a partir de então os
eleitos irão viver como uma coletividade, unânime e sem conflito, em uma terra
transformada e purificada. Essa expectativa tem uma longa história em nossa
civilização. Em sua versão explicitamente cristã, exerceu poderoso fascínio ao
longo dos séculos, e continua a exercê-lo; e, na versão secularizada, é facilmente
reconhecível em certas ideologias político-sociais. Por outro lado, existiram
grandes civilizações, algumas com duração de milênios, que nunca conheceram
tais expectativas. Assim, onde e como elas se originaram? E que tipo de
concepção de mundo as precedeu?

Essas questões vêm me preocupando, de maneira intermitente, por quase


meio século — na verdade, desde que escrevi meu primeiro estudo sobre as
crenças coletivas, The pursuit of the mil (c. lenniutn [A busca do milênio], logo
após a Segunda Guerra Mundial. Sem dúvida, elas também preocuparam a
outros antes de mim, mas as respostas correntes deixaram-me insatisfeito. Eu
duvidava que os povos “primitivos” ou “arcaicos” de todas as partes e de todas
as épocas de fato imaginassem o tempo repetindo-se em longos ciclos,
pontuados por descrições e recriações periódicas do mundo e/ou da humanidade.
E era de fato tão certo que os primeiros a esperar uma consumação final e única
tivessem sido os judeus e os cristãos? O problema todo parecia clamar por uma
reavaliação.

Cerca de vinte anos atrás, comecei a reexaminar a questão. Esse livro


resume as conclusões que, nesse longo período, pouco a pouco acabaram se
impondo a mim.



Wood End

Hertfordshire, Inglaterra


I - O ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO
1 - O EGITO
Capítulo 1

O cosmos, no sentido de uma ordem compreensiva e onipresente, era algo


inquestionável no antigo Oriente Próximo: o céu e a terra, a natureza e a
sociedade, tudo havia sido criado e ordenado pelos deuses e continuava sob a
supervisão deles.

Não que o cosmos fosse tranqüilo. Havia forças caóticas, incansáveis e


ameaçadoras. E aqui também atuavam os deuses. Ainda que alguns fossem
benevolentes, outros não o eram — e havia aqueles ora benevolentes, ora
destrutivos. Todas as concepções de mundo do Oriente Próximo revelavam uma
consciência não só da ordem existente no mundo, como da instabilidade dessa
mesma ordem.

Apesar disso, imaginava-se o mundo ordenado como sendo, em essência,


imutável. Claro que se notava a ocorrência de mudanças e se faziam avanços
tecnológicos, mas nada disso despertava expectativas de um futuro radicalmente
diverso de tudo o que se conhecia no presente e no passado: as coisas
continuariam a ser o que sempre haviam sido. No âmago de todas as concepções
de mundo do Oriente Próximo reinava um sentimento de imutabilidade.

Elaboradas por sacerdotes e teólogos, essas visões de mundo eram adotadas


de bom grado pelos membros das camadas superiores da sociedade: para os reis,
administradores e escribas, elas serviam como justificativa de uma ordem social
que trazia numerosos e evidentes benefícios aos privilegiados. Isso não significa,
porém, que fossem repudiadas pelas pessoas comuns. Afinal, a preocupação com
a ordem e o caos refletia uma expe riência generalizada de como se davam as
coisas.

As pessoas comuns conheciam muito bem as ameaças que pesavam sobre


qualquer plano, pondo a perder todo o seu trabalho: cada horta e cada campo
podiam ser arruinados por enchentes ou pela seca; cada rebanho e cada manada
podiam ser tomados por bandos predatórios de fora da sociedade ou, em seu
interior, por ladrões comuns. Como socorro, as pessoas dependiam do Estado —
quase sempre uma monarquia. Por mais opressivo que fosse, o Estado garantia a
ordem. Vigilância na manutenção da lei, prevenção e punição dos crimes,
vigilância também para afastar inimigos estrangeiros e, quando necessário,
derrotá-los em combate — tudo isso não apenas garantia a sobrevivência do
Estado, como também afirmava e fortalecia o mundo ordenado. O
funcionamento regular e efetivo desse grande protetor, o Estado, e de sua
suprema personificação, o rei, pertencia à mesma ordem abrangente que incluía
os movimentos do sol, da lua, das estrelas e a sucessão das estações.

Enraizadas na realidade cotidiana, as interpretações propostas por


sacerdotes e teólogos costumavam ser aceitas até mesmo por aqueles que tinham
delas apenas uma vaga compreensão. E por não serem sistemas filosóficos
abstratos, mas visões de mundo religiosas, elas foram capazes de modelar não só
o comportamento dos indivíduos, mas também a vida econômica, social e
política da sociedade.

Evidentemente, todas essas visões de mundo eram etnocêntricas: as


sociedades nas quais foram elaboradas situavam-se firmemente no centro do
mundo ordenado.


Capítulo 2

Em nenhuma outra parte a consciência do cosmos e de tudo o que o


ameaçava era mais desenvolvida do que no Egito.1

A própria sobrevivência dos egípcios sempre dependeu do Nilo. A maior


parte do país é desértica e as chuvas são insuficientes para o cultivo de cereais
ou a criação de rebanhos. A agricultura só é possível em uma estreita faixa de
terra às margens do grande rio e nunca poderia ter sido praticada não fosse a
inundação anual que, do fim de junho ao fim de setembro, corre em direção ao
norte por quase mil quilômetros.

Os antigos egípcios impressionaram-se profundamente com o contraste


entre a “Terra Negra”, assim chamada por causa da espessa camada de lama
negra depositada pela inundação, e a “Terra Vermelha”, o deserto temível e
mortífero. E havia ainda o comportamento errático do próprio Nilo. Até a
tecnologia moderna tomar possível a construção de represas, o rio podia
transbordar em determinado ano e, no seguinte, manter-se num nível muito
baixo — em ambos os casos a fome era certa. Tudo isso contribuiu para gerar
um sentimento de que o mundo encontrava-se perpetuamente ameaçado. E o
mesmo efeito tinha o contraste, sempre tão dramático no Egito, entre o dia e a
noite: dias luminosos em que o sol, esplêndido, onipotente, criador e provedor da
vida, reinava sobre a terra, e noites que tão abruptamente engoliam o sol — um
tempo repleto de ameaças, no qual a vida era suspensa.

No Período Arcaico, ou Dinástico Anterior, o perigo havia tomado outra


forma. Como muitas outras regiões do globo, durante dezenas de milhares de
anos o Egito fora habitado por minúsculos e isolados grupos de caçadores. No
quarto milênio, agrupamentos pequenos e dispersos de agricultores espalharam-
se ao longo do vale do Nilo e, na segunda metade desse milênio, tribos ou
pequenos Estados começaram a se formar. Por volta de 3050 a.C, as guerras
entre esses proto-reinos haviam culminado, após um processo cujo desenrolar
ainda se discute, na criação de um reino unificado que abrangia todo o Egito.
Mas a segurança política havia desaparecido para sempre. A partir de então, a
existência foi percebida sobretudo em termos de conflito, real ou potencial.

O curso da história egípcia foi menos tranqüilo do que em geral se supõe. É


verdade que o Egito — protegido pelo deserto a oeste, pelo Mediterrâneo ao
norte e a leste pelo mar Vermelho — estava menos exposto a invasões do que a
maioria dos estados do Oriente Próximo.

A despeito disso, também ele passou por períodos de turbulência política. O


Período Arcaico e o Antigo Império (3050-2160 a.C.)2 testemunharam um
grande florescimento da civilização, mas foram seguidos por dois séculos de
governos fracos, guerra civil e colapso econômico — o Primeiro Período
Intermediário (2160-1991). Embora no Médio Império (1991-1786) tenha se
restaurado a paz e a prosperidade, seguiu-se a ele o Segundo Período
Intermediário (1786-1540), no qual, dividido em dois reinos, o Egito foi
dominado cultural e politicamente por estrangeiros. Sob uma vigorosa linhagem
de reis nativos, o Novo Império (1540-1070) tomou-se o centro de um domínio
que se estendia da Núbia à Ásia Menor, mas cuja manutenção exigiu incessantes
guerras. Depois o Novo Império entrou em um lento e irremediável declínio,
durante o qual o Egito foi conquistado pelos persas e em seguida por Alexandre,
o Grande, antes de ser incorporado ao Império romano em 30 a.C. É natural,
portanto, que a visão de mundo egípcia tenha sido afetada por todas essas
convulsões. Era bastante evidente que, por mais forte que fosse o Estado egípcio,
ele nunca fora absolutamente seguro. O mundo ordenado, identificado com esse
Estado, estava sempre em risco.


Capítulo 3

Os egípcios não acreditavam que o mundo havia sido criado a partir do


nada: sempre existira algum tipo de matéria. A criação original era imaginada
como uma modelagem que transformara a matéria informe em um mundo
ordenado.

Muitas eram as versões do modo como isto se dera. A mais influente, do


terceiro milênio em diante, estava associada aos grandes centros religiosos de
Heliópolis (originalmente chamada de On), Mênfis e Hermópolis. Havia
concordância quanto ao essencial. O mundo não fora modelado por um deus
existente desde sempre — o que existira desde sempre fora o caos. Muitas vezes
esse caos é descrito em termos negativos: não pode ser explicado, não se
assemelha a nada e é a negação do mundo presente, atual. Ele é o que existia
“antes de existir o céu, antes de existir a terra, antes de existirem os homens,
antes de os deuses terem nascido, antes de existir a morte”.3 Todavia, não se
concebia o caos como algo imaterial: ele era um oceano ilimitado, chamado
Nun. Trevas cobriam a face do abismo, pois ainda não havia o sol. Mas no
interior do abismo escuro e líquido encontrava-se, em estado latente, a
substância primeira a partir da qual seria formado o mundo. Também submerso
em algum ponto dele estava o demiurgo que iria fazer essa modelagem.

O demiurgo, porém, só existia enquanto potencialidade, ainda sem


consciência de si e da tarefa que o esperava.

Quanto ao primeiro passo da feitura do mundo, também não havia


desacordo. Em determinado momento — conhecido como “a primeira época” ou
“a primeira ocasião” —, uma minúscula ilha emergiu das águas: era o outeiro
primordial. Esta noção sem dúvida reflete a experiência, repetida todos os anos,
da inundação e refluxo do Nilo — o espetáculo de uma terra quase submersa que
em seguida surge renovada das águas, coberta de solo fresco, e logo verde,
repleta de criaturas vivas, fértil, pronta para o cultivo: uma gênese todos os anos.
Talvez, como sugeriram alguns estudiosos, houvesse até mesmo vagas
lembranças, transmitidas de uma geração a outra de camponeses, de uma época
em que a maior parte do Egito era pantanosa, inundada por um Nilo que ainda
não escavara seu leito, com apenas algumas ilhas dispersas elevando-se acima da
superfície aquática. Seja como for, quase todos os locais de alguma importância
reivindicavam ter sido construídos sobre ou em tomo do outeiro primordial.
Mênfis, Heliópolis, Hermópolis, Tebas, Esna, Edfu, Dendera, Crocodilópolis
eram apenas alguns dos centros onde se supunha que o mundo ordenado havia
começado.

Embora já existisse antes de qualquer outro deus, às vezes sendo até


chamado de “pai dos deuses”, o Nun não era uma força ativa. A organização e o
ordenamento do mundo precisavam ser realizados pelo demiurgo. Mas o que isto
implicava? Para os egípcios, isto não implicava conflito: o demiurgo não
aparece, nos hinos que lhe foram dedicados, lutando contra o caos ou contra os
monstros do caos. Seu significado é bem outro. O caos original era um estado
unitário, indiferenciado, e o demiurgo personificava o processo de diferenciação
e definição. Ao contrário do caos original, que era ilimitado, havia limites no
mundo ordenado que começava a emergir com o demiurgo. Além do mais, o
demiurgo trouxe luz aonde reinava a escuridão primordial — e na luz as coisas
podem existir em separado. Graças ao demiurgo, a unidade transformou-se em
multiplicidade.4 Enquanto o estado original é descrito como o tempo “em que
duas coisas ainda não haviam passado a existir”, o demiurgo é chamado de “o
Um, que de si mesmo faz milhões”.5

Os teólogos de Heliópolis e Hermópolis sustentavam que o demiurgo era o


deus-sol Ra; os de Mênfís o identificavam ao deus-terra Ptah.6 Todos
concordavam que ele só passara a existir de fato no momento em que surgira o
outeiro primordial. No interior do Nun, ele se encontrava em estado de
“sonolência” ou “inércia”, mas ao tomar consciência de si ele próprio se
transformou. Sem ter sido gerado por nenhum pai, nem concebido por nenhuma
mãe, por sua própria vontade ele se atribuiu um corpo e deu início à sua
existência ativa.

Na doutrina menfita, o demiurgo Ptah também era chamado Tatenen, “a


terra que se erguia”, o que o vinculava ao outeiro primordial e ao solo que
reaparecia após a inundação anual. Ptah fez o mundo, criou os deuses, seus
templos e suas imagens. Ele era o senhor da matéria. Fundou as províncias e as
cidades do Egito. Os alimentos e as bebidas, o sustento material da vida, eram
dons de Ptah. Ele foi o criador de todas as artes e ofícios, era o patrono da
construção, da escultura, da metalurgia. Foi ele quem colocou o céu no lugar
apropriado e o manteve lá, foi ele quem criou o sol e o subordinou a si.

Todavia, a teologia mais influente foi a de Heliópolis. Em meados do


terceiro milênio, o deus-sol Ra (ou Re) havia se tornado o deus supremo da
cidade de Heliópolis — e logo foi identificado ao antigo deus tribal dos
heliopolitanos, Atum (que significa “o Completado”), ao deus-escaravelho
Khepri (“aquele que vem a ser”), ao deus-falcão Hórus e ao deus dos horizontes,
Akhti. Na verdade, no decurso da história egípcia Ra foi identificado com a
maioria das divindades adoradas como deuses supremos em diversas cidades —
os quais, com isso, perdiam seus atributos originais e adquiriam a dignidade do
deus-sol e do demiurgo autocriador. Assim, uma obscura divindade tebana,
Amun, tomouse o poderoso Amon-Ra quando Tebas passou a ser, no princípio
do Novo Império, a capital da dinastia governante.

Nada disso reduziu a supremacia de Ra, nem sua importância como


demiurgo. E sua estatura também não diminuiu em teologias como as de
Hermópolis ou Esna, as quais sustentavam que Ra não se originara diretamente
do Nun, mas fora criado por demiurgos saídos do Nun. Na realidade, enquanto
os sacerdotes esforçavam-se por reconciliar as várias teologias, o deus-sol
tomou-se uma presença verdadeiramente universal. Seu único rival sério foi o
deus Osíris — ao qual voltaremos. E foi apenas muito depois — na época greco-
romana — que o culto de Osíris por fim tomou o lugar daquele dedicado a Ra.

A forma pela qual o demiurgo se manifestou pela primeira vez foi objeto de
uma elaboração imaginativa. Segundo textos do templo de Edfu, ele saiu voando
da escuridão primordial sob a forma de um falcão e pousou em um caniço à
margem da água. Os sacerdotes hermopolitanos conseguiram ser ainda mais
imaginativos. Segundo eles, logo após a “primeira ocasião” oito divindades
primitivas, algumas semelhantes a sapos, outras a serpentes — todas elas,
portanto, intimamente relacionadas com o caos aquático —, criaram uma flor de
lótus no lago do templo em Hermópolis, e deste lago Ra emergiu como uma
criança. Os hermopolitanos também falavam de um ovo cósmico que fora
chocado no outeiro primordial. Mas a iconografia favorece ainda outra versão,
esta de origem heliopolitana. Cansado de flutuar no Nun, o demiurgo subiu para
o outeiro, dotado já de uma forma humana, com olhos, boca, língua, mãos,
coração, braços, pernas, pênis.

As primeiras criações do demiurgo foram o deus do ar Shu e uma deusa,


provavelmente da umidade, chamada Tefnut; ele os criou, segundo uma das
versões, masturbando-se e, segundo outra, cuspindo. Ambas as versões eram de
Heliópolis. A teologia menfita era mais sutil: em seu coração, Ptah concebera os
deuses que pretendia criar e, em seguida, concretizou suas idéias por meio da
língua, isto é, pela fala. Concordava-se em geral que, uma vez criados, Shu e
Tefnut haviam produzido a terra e o céu — imaginada a primeira como uma
travessa chata com borda corrugada e, o segundo, como um tacho de cabeça para
baixo, apoiado em suportes que o mantinham a uma distância segura da terra.
Esta e o céu se uniram e geraram dois casais divinos. Com o surgimento dessas
divindades, teve início um processo gradual que resultou no povoamento do
mundo com deuses, seres humanos e animais. Aqui o deus-oleiro Khnum teve
papel importante, moldando cada embrião em sua roda e em seguida colocando-
o no útero da mãe.

Os deuses egípcios tinham muito em comum com os seres humanos. É


verdade que, na época pré-histórica, os egípcios, assim como muitos povos
primitivos, deram formas animais à maioria de suas divindades; porém, já no
Período Arcaico e no Antigo Império, um número cada vez maior de deuses
tinha uma aparência em parte ou totalmente humana. E, mais importante,
possuíam algumas das limitações dos seres humanos. Com exceção do
demiurgo, não eram oniscientes nem onipotentes: podiam ser surpreendidos
pelos acontecimentos e nem sempre conseguiam alterá-los. Os deuses nem
mesmo gozavam da vida eterna. Não só todos eles, com exceção do demiurgo,
haviam sido criados por deuses mais antigos, como podiam envelhecer e morrer.
Existem mitos que mostram o próprio deus-sol envelhecendo, afastando-se do
governo ativo e colocando outro deus como seu representante. Em Tebas, Edfu e
Hermópolis, havia até mesmo túmulos de deuses que se supunha terem vivido e
morrido no passado remoto. Tudo isso enfatiza o parentesco entre deuses e seres
humanos.

Mas não elimina o abismo que havia entre eles. Os deuses viviam além dos
limites da terra — nos céus ou nos mundos inferiores — e os seres humanos não
tinham contato direto com eles. No entanto, atuavam na terra, e de maneira
muito poderosa. Um campo de força circundava cada divindade e de todas
irradiava-se um poder mágico, afetando tudo o que merecesse a atenção dele ou
dela. Além do mais, embora fossem diversos, os deuses e as deusas formavam
uma comunidade, quase uma família: seus relacionamentos parentais, filiais,
matrimoniais e de outros tipos, associados às suas várias personalidades e
funções, constituíam a dinâmica oculta do universo. Era uma concepção que
inspirava temor, e os egípcios de fato expressavam um temor respeitoso pelo
poderio e majestade de suas divindades — mesmo hoje pode-se ver a intensidade
disso na câmara de colunas em Kamak, com suas 134 colunas gigantes dispostas
em dezesseis fileiras.
O temor, porém, estava mesclado ao amor. Como diz um dos hinos: “Eu me
prostro com temor de ti, eu ergo os olhos para ti com amor”.7 Segundo a
concepção dos egípcios, os homens e as mulheres foram criados para existir,
como os próprios deuses, e não para servir de escravos a estes. Na verdade, eles
estavam con vencidos de que, ao organizar o mundo, o demiurgo sentiu prazer
em adaptá-lo, com a luz do sol, as plantas, os animais — e também com os
deuses — às necessidades humanas. E seu exemplo estabeleceu o tom para os
outros deuses: quase todos eram benevolentes. Depender de tais seres não era
nenhuma dificuldade.

Além disso, os egípcios sabiam que, tal como eles próprios, os deuses
estavam subordinados e eram sustentados pelo princípio de ordem que abrangia
tudo e era chamado de ma’at.


Capítulo 4

O conceito de ma’at surgiu como resposta às necessidades do Estado


egípcio.8 Assim que este se formou, tornou-se evidente que uma comunidade
política tão complexa, abrangendo povos de origens diversas e muitas vezes com
interesses conflitantes, exigia um corpo de leis. Só um corpo de leis
sistematizado, e imposto e aplicado de maneira autoritária, poderia evitar o caos.
O termo ma’at significa “base”, como a base de um trono. E ma’at era, de fato, a
base sobre a qual se assentava o sistema jurídico egípcio. Um dos reis mais
antigos chamava a si mesmo de “senhor de ma’at” e alegava ter concebido
ma’at em seu coração e a promulgado com sua boca.

Logo ma’at adquiriu um significado muito mais amplo: a palavra foi usada
para indicar um princípio de ordem tão abrangente que governava todos os
aspectos da existência. O equilíbrio do universo e a coesão de seus elementos, a
seqüência das estações, o movimento dos corpos celestes, o curso diurno do sol
e, entre os seres humanos, o cumprimento adequado dos rituais e obrigações
religiosas pelos sacerdotes; a correção, a honestidade e a sinceridade nas
relações pessoais — tudo isso estava incluído em ma’at. Para o pensamento
egípcio, a natureza e a sociedade eram dois lados de uma realidade única: tudo o
que fosse harmonioso e regular em qualquer um dos lados era uma expressão de
ma’at.

Não por acaso, portanto, o hieróglifo para ma’at lembrava o outeiro


primordial, pois ma’at passou a ser considerada a base sobre a qual estava
assentado o próprio mundo ordenado. Acreditava-se que ma’at estivera presente
desde o instante em que o mundo ordenado emergira do caos primordial e na
verdade simbolizava o estado prístino do mundo: o demiurgo a estabeleceu
quando subiu ao topo do outeiro primordial.

Na teologia menfita, o deus-terra Ptah é chamado “senhor de ma’at” e o


pedestal sobre o qual é comumente representado tem a mesma forma do
hieróglifo que designa ma’at.9 Na teologia heliopolitana, o “senhor de ma’at” era
evidentemente o deus-sol Ra. Ali o estabelecimento de ma’at coincidiu com a
primeira aurora. Além do mais, considerava-se que cada aurora evocava, das
profundezas do passado, aquele acontecimento original. No clima egípcio, cada
aurora era (e é) maravilhosamente luminosa; para os antigos egípcios, isto
parecia um milagre diário, uma repetição da “primeira ocasião”. E o que se
seguia não era menos maravilhoso. Eles consideravam que, a cada dia, o deus-
sol atravessava o céu em uma barca e, em outra, passava pelo mundo inferior. A
travessia bem-sucedida do perigoso mundo inferior, realizada com a ajuda de
deuses secundários, o triunfante reaparecimento ao nascer do dia — tudo isso era
uma comprovação sempre renovada de que o deus-sol tinha o poder de sustentar
e renovar o mundo ordenado.

O deus-sol e ma’at eram associados de maneira tão estreita a ponto de


serem considerados inseparáveis. Ma’at sustentava a vida de Ra: um hino ao
deus-sol proclama que “teu alimento consiste de ma’at, tua bebida é ma’at, teu
pão é ma’at, a vestimenta de teu corpo é ma’at”.10 Com o tempo acabou surgindo
uma deusa chamada Ma’at. Ela também estava estreitamente relacionada ao
deus-sol, sendo por vezes chamada até mesmo de sua irmã. A deusa Ma’at
acompanhava Ra quando este atravessava o céu em sua barca; com freqüência é
retratada na proa deste, como piloto. Guiado por ela, Ra seguia um curso cuja
retidão era em si mesma uma afirmação da ordem perfeita e indestrutível.

Da altura dos céus, Ra observava os atos dos seres humanos e os julgava.


Aqueles que se consideravam injustiçados podiam levar-lhe suas queixas,
sabendo que ele garantiria que se fizesse justiça, pois era um juiz imparcial e
incorruptível. Um funcionário despedido injustamente podia recorrer ao deus-sol
para ser readmitido e obter a punição de seu perseguidor. Sobretudo os menos
privilegiados e mais indefesos podiam contar com seu apoio: ele protegia os
órfãos, os humilhados e os pobres contra a tirania arbitrária. Tudo isso é
explicitamente afirmado em hinos que datam do Novo Império, mas já é
sugerido de maneira clara na famosa “Instrução” para o rei Merikare, composta
por volta de 2050 a.C.12

Em sua condição de juiz, Ra contava com o apoio da tripulação da barca


solar. Sem dúvida, a deusa Ma’at o ajudava, assim como os quatro babuínos que
ocupavam a proa da barca. Vivendo com ma’aty detestando tudo o que se opunha
a ela, eles impediam que os fortes oprimissem os fracos — e, ao fazer isso,
ofertavam ma’at a Ra e contentavam os deuses.13 Porém, acima de tudo, Ra
dependia de seu secretário e eventual substituto, o deus lunar Thoth, por vezes
chamado de seu filho.14 A implicação disto é evidente neste verso de um hino a
Ra: “Diariamente Thoth escreve ma’at para ti”.15 Thoth também é representado
na proa da barca solar. Sua tarefa era esmagar a oposição que Ra encontrava
durante a travessia — e também isto era uma afirmação de ma’at.
Thoth havia sido agraciado com a sabedoria e a percepção necessárias para
impor e manter ma’at entre os deuses e os seres humanos. Como “legislador no
céu e na terra”, encarregava-se de garantir que os deuses se mantivessem em
suas esferas apropriadas de atividade; que, na sociedade humana, as várias
corporações profissionais cumprissem suas funções adequadas; que as nações
respeitassem suas fronteiras; e que os campos fossem mantidos dentro de seus
limites.16 Como “senhor das leis”, ensinava ma’at aos deuses: nos conflitos entre
estes, ele resolvia a disputa e restabelecia a paz e a harmonia. Também auxiliava
a suprema autoridade na terra, o faraó, em sua administração governamental.
Graças à sua vigilância, todo ser humano que transgredisse ma’at sabia que seria
punido, seja nesta vida ou na vindoura. Como inimigo de toda forma de
desordem, Thoth estava incessantemente atento para que ma’at fosse respeitada
em todo o universo.


Capítulo 5

A concretização política e social de ma’at era o Estado egípcio, e a essência


deste era a monarquia, considerada uma instituição divina.17 O longo processo
histórico no qual inúmeros clãs, tribos e proto-reinos haviam se fundido em um
Estado unificado sob um único rei foi associado, no plano da imaginação, ao
momento em que o outeiro primordial emergiu das águas e o deus-sol ascendeu
a fim de assumir o governo do universo.

Segundo a história oficial, originalmente o Egito havia sido governado


pelos próprios deuses. O primeiro governante de todos havia sido o deus-sol.
Depois vieram seus filhos e filhas, em seguida seus netos, sempre como casais
reais, e eles por sua vez foram sucedidos por uma linhagem de semideuses e
semideusas, ou “espíritos”. Os soberanos humanos do Egito eram descendentes e
legítimos herdeiros destes.

Na verdade, a história da monarquia egípcia foi bastante turbulenta: muitas


vezes a sucessão era decidida por guerra civil e com freqüência o fundador de
uma nova dinastia não passava de um usurpador ambicioso e cruel. Apesar de
tudo, a monarquia sempre foi apresentada como garantia da retidão no mundo, e
o triunfo da dinastia no poder sempre mostrado como afirmação da ordem
estabelecida pelos deuses.

O mito de Seth e Osíris é esclarecedor. Seth era o deus anômalo. Enquanto


outros deuses eram simbolizados por animais existentes, como um gato ou um
falcão, Seth era o único que tinha como símbolo uma criatura inteiramente
fabulosa. Seu próprio nascimento foi violento e anormal — por esforço próprio
ele irrompeu do flanco de sua mãe, Nut, a deusa do céu —, trazendo conflito e
perturbação à ordem do mundo. Era uma personificação da força física bruta, da
potência sexual, da desenfreada promiscuidade bissexual, do descontrole. As
tempestades destrutivas, o deserto aterrorizante e tudo o que era exótico e
desconcertante podia ser associado a ele. E, além disso, Seth assassinou o irmão
— o grande deus Osíris —, desmembrou-lhe o corpo e lançou os pedaços no
Nilo.

Isto era um ataque à monarquia legítima, pois entre os deuses Osíris era rei,
abaixo apenas de Ra. Ao matá-lo antes que pudesse gerar um herdeiro, Seth
criou a possibilidade de usurpação da realeza. Porém ísis, esposa e irmã de
Osíris, juntou os membros dispersos, inclusive o falo. Desse modo, foi capaz de
dar ao esposo um herdeiro póstumo, Hórus — prova viva de que a linhagem e a
transmissão legítima da monarquia podem triunfar até mesmo sobre a violência
mais extrema.

Em uma luta individual, Horas — em parte graças aos dotes mágicos de sua
mãe, em parte devido à própria astúcia — conseguiu subjugar o assassino de seu
pai.

O resultado foi decidido pelos magistrados divinos, reunidos para julgar o


caso em Heliópolis: Hórus tomou-se rei na terra e, portanto, um deus com o qual
o faraó vivo sempre poderia ser identificado; Osíris, por sua vez, foi agraciado
com o domínio do mundo inferior, ao qual já havia descido. Mas Seth não foi
completamente rejeitado: em uma versão do mito, ele se toma senhor de regiões
fora do mundo ordenado — os desertos estéreis, os países estrangeiros —; em
outra, é readmitido no mundo ordenado, como criado do deus-sol.18 Assim, com
a consolidação da monarquia legítima, o cosmos era reafirmado.

O faraó não só descendia dos deuses, como ele próprio era semidivino. A
partir do Antigo Império, acreditava-se que cada rei, ao morrer, tomava seu lugar
entre os deuses. E, mais importante, enquanto ainda vivo o rei era visto não
apenas como filho de uma coletividade de deuses e deusas, mas especificamente
como o “filho de Ra”. No Novo Império, a implicação deste epíteto foi
explicitada: manteve-se a ficção de que o deus-sol, sob a forma do rei no poder,
sempre se acasalava com a principal esposa do rei, a fim de gerar um ser único
que ficava a meio caminho entre os deuses e a humanidade. O acasalamento é
retratado nas paredes de vários templos e a inscrição que acompanha a imagem
no templo de Amenhotep III (1391-53), em Luxor, mostra até que ponto se
supunha físico o acasalamento:
Palavras proferidas por Amon-Ra, Senhor de Karnak, preeminente em seu harém, quando
tomou a forma desse esposo dela, rei Menkheperura [Tuthmosis IV], dando-lhe vida. Ele a
encontrou adormecida na parte mais recôndita de seu palácio. Ela despertou ao sentir a divina
fragrância e voltou-se para Sua Majestade. Ele foi direto a ela, excitado por ela. Ele permitiu
que ela contemplasse sua forma divina, depois de ter se colocado diante dela, de modo que ela
se rejubilasse com sua perfeição. O amor dele penetrou-lhe o corpo. O palácio foi tomado pela
fragrância divina e todos os seus odores eram os da terra de Punt.19

O faraó semidivino e os deuses de verdade se ajudavam, prestando serviços


uns aos outros. O faraó dirigia-se aos deuses como representante do povo
egípcio, fazendo oferendas em nome dele e, em troca, solicitando-lhes favores.
Por intermédio do faraó, o povo era capaz de fortalecer os deuses e, com isso,
possibilitar que estes mantivessem a ordem do mundo. De forma recíproca, por
intermédio do faraó o poder benévolo dos deuses era conferido às pessoas. Tanto
os deuses como os seres humanos dependiam do faraó para o seu bem-estar.

Se o faraó representava o povo perante os deuses, também representava os


deuses perante o povo. Em especial, ele era o representante de Ra. Como
afirmou um dos reis, “[o deus] me criou como aquele que deveria fazer aquilo
que ele havia feito e realizar aquilo que ele ordenou que deveria ser feito. Ele me
designou pastor dessa terra, pois sabia quem poderia mantê-la em ordem para
ele”.20 O papel do rei estava simbolizado já na cerimônia de ascensão ao trono. O
novo rei era entronizado na aurora do dia imediatamente posterior à morte de seu
antecessor — e isso era entendido como comemoração e renovação da subida de
Ra ao outeiro primordial. Se o nascer de cada dia era percebido como
restabelecimento do cosmos, assim também era a ascensão ao trono de um novo
rei.

Tal como o próprio Ra, o rei era “senhor de ma’at” e em textos


comemorativos há referências a vários reis como “aquele que faz ma’at”,
“protetor de ma’at”, “aquele que vive de ma’at”. Na verdade, considerava-se o
rei unido de maneira literal a ma’at e, idealmente, todo o povo estaria unido a
ma’at por intermédio dele: “Ma’at depois de ter se unido [ao rei Horemheb]” —
“Tu [rei Sethos] fixou ma’at no Egito; ela se uniu a todos”.21 Ao manter ma’at, o
rei garantia que o Estado permanecesse integrado à ordem cósmica, assegurando
assim o bem-estar da sociedade. Desse modo, o rei Amenófis III (1417-1379)
sentiu-se chamado a “fazer prosperar o Egito, como nos tempos primordiais, por
meio dos planos de ma’at” e Ramsés IV (1166-60) pôde declarar “Eu trouxe
ma’at a esta terra”.22

O rei tinha a esperança de que, preservando ma’at na terra, em troca os


deuses fariam com que esta prosperasse. Assim, Ramsés IV recorria a Osíris,
como deus do solo e da vegetação:
E Tu me darás Nilos majestosos e fecundos, para que possa proporcionar tuas oferendas
divinas e proporcionar oferendas divinas a todos os deuses e deusas do Sul e do Norte; a fim
de manter vivo o povo de todas as tuas terras, seus gados e seus arvoredos, que tua mão
formou [...] E, em minha época, tu ficarás satisfeito com a terra do Egito, a tua terra.23
Os deuses não eram surdos a tais apelos. O nascimento de Ramsés u, cujo
longo reinado iria durar de 1304 a 1237, foi comemorado por Amon-Ra, seu pai
divino, com esta declaração: “Eu coloquei a justiça [ma’at] em seu devido
lugar”. E o resultado, ficamos sabendo, foi que a terra tomou-se firme, os céus
ficaram satisfeitos e os deuses contentes.24 Do mesmo modo, por Ramsés III
(1198-66) ter feito ma’at todos os dias, Amon-Ra assegurou que as cheias do
Nilo trouxessem abundância para a terra e que o povo desfrutasse de todas as
coisas boas.25

Um Egito fértil era, por si mesmo, um sinal da presença de ma’at: o curso


dos negócios humanos e o curso da natureza não podiam ser separados. Uma
canção composta para celebrar a ascensão ao trono do rei Memeptah, no Novo
Império, transmite de maneira muito bela esse relacionamento:
Regozije a terra toda, o tempo da bonança chegou. Um senhor foi indicado para todas as
nações [...] Oh, todos vocês honrados, venham e vejam! A verdade suprimiu a falsidade, os
pecadores foram humilhados, tudo o que é invejoso foi rejeitado. As águas se mantiveram em
seu nível e não baixaram, e o Nilo teve uma grande [cheia]. Os dias são longos, inúmeras as
horas da noite, e os meses vêm na ordem certa. Os deuses estão contentes e com os corações
felizes, e a vida é gasta no riso e na admiração.26

Uma das principais expressões de ma’at era a justiça — na verdade, as


próprias palavras que designavam a justiça, um julgamento isento, o ser
declarado inocente, o ser declarado correto, todas elas têm como raiz a palavra
ma’at. Como responsável pela justiça, o rei devia supostamente inspirar-se não
apenas em Ra, mas também, e de maneira ainda mais fiel, em Thoth, o assistente
de Ra. O faraó era glorificado por “estabelecer leis como Thoth”. Era chamado
“o deus bondoso, o herdeiro de Thoth, que destrói o que é mau e faz o que é
verdadeiro”, “que fala o que é justo, assim como Thoth”. Porém, a justiça
significava muito mais do que a administração imparcial das leis. Esperava-se
que o faraó demonstrasse infinita solicitude pelo povo: não por acaso ele se
comparava a um pastor e empunhava o cajado como um de seus símbolos régios.
A “Instrução” para o rei Merikare relaciona as qualidades pelas quais um faraó
recém-entronizado e ainda inseguro de seu poder esperava legitimar seu
domínio:
Faz justiça enquanto estiveres na terra. Aquieta aquele que chora; não oprimas a viúva; não
impeças nenhum homem de receber a propriedade de seu pai; não prejudiques nenhum
funcionário em seu posto. Fica de guarda contra punições equivocadas [...].

A mesma “Instrução” mostra de que modo a solicitude régia era uma


expressão dentre muitas da solicitude por tudo manifestada pelo próprio
demiurgo:
Bem conduzidos são os homens, o gado do deus. Ele fez o céu e a terra conforme o desejo
deles [...] Ele fez o alento da vida [para] suas narinas. [...] Ele ergue-se no céu conforme o
desejo deles. Para eles, ele fez plantas, animais, aves e peixes para alimentá-los [...] Ele fez a
luz do dia conforme o desejo deles e navega por ela a Fim de vê-los (...) e ouve quando
choram. Ele fez governantes para eles [...], um apoio para sustentar as costas dos
incapacitados.37

Por intermédio dessa solicitude com os desafortunados, semelhante à dos


deuses, o rei confirmava que seu domínio de fato contava com a sanção divina.

Na prática, a administração da justiça era delegada pelo faraó a um vizir,


que por sua vez a delegava a diversos magistrados. Esperava-se que todos eles
colaborassem na manutenção e no fortalecimento de ma’at. O vizir era até
mesmo chamado de “sacerdote de ma’at”, e as notas autobiográficas
encontradas nos túmulos dos magistrados revelam idêntica preocupação. Esses
homens declaram que, quando julgavam um caso entre dois litigantes, ambas as
partes saíam satisfeitas. E terminavam alegando que haviam provado ser
“homens de ma’at”. Evidentemente, nem sempre esta era a opinião dos
litigantes. Porém, se as reclamações contra juízes parciais e venais são
freqüentes, isto revela o quão seriamente as pessoas consideravam o ideal de
justiça.

Ninguém se preocupava mais com ma’at do que os escribas de alto escalão,


isto é, os funcionários burocráticos graduados.28

Em uma sociedade onde a maioria era iletrada, esses “homens da escrita”


formavam uma elite tida em alta conta. Eles dispunham de grande poder, pois
deles dependia toda a administração estatal. Consideravam-se “homens do rei”
— mas também acreditavam que o deus supremo os havia encarregado da tarefa
de promover ma’at na comunidade egípcia. Tinham uma responsabilidade
especial pela formação de futuros funcionários, e esperava-se que estes
cumprissem seus deveres de acordo com os preceitos de ma’at. Supunha-se que
o coração do bom funcionário estivesse de tal modo impregnado de ma’at que
não lhe seria possível transgredir a ordem estabelecida divinamente. Acima de
tudo, esperava-se que um conselheiro da corte agisse de acordo com ma’at:
“Faça ma’at para o rei, [pois] ma’at é aquilo que o rei ama! Fale ma’at para o
rei, [pois] aquilo que o rei ama é ma’at”.29

Os mais minuciosos arranjos administrativos podem ser vistos como


afirmações de ma’at. Um grande senhor feudal, por exemplo, poderia elogiar o
rei por haver delimitado suas terras, e as aldeias que ali existiam, e por ter
destinado a elas sua parcela do Nilo e das águas de suas cheias — e acrescentaria
que o rei fizera tudo aquilo “devido ao grande amor que tem por ma’at”. De
modo similar, o rei Amenemhet I (1991-1962) declarou que havia fixado os
limites dos distritos de maneira tão inalterável “como os céus” — e assim
procedera “por depositar muita confiança em ma’at.


Capítulo 6

Para uma sociedade etnocêntrica não havia afirmação mais vigorosa da


ordem no mundo do que uma vitória militar. Isto valia tanto no caso de uma
guerra colonial na Núbia ou de uma guerra civil no próprio Egito, como no caso,
durante o Novo Império, de uma guerra contra outra potência imperial: as forças
inimigas sempre eram percebidas como forças do caos. No combate a essas
forças, o Egito e seus deuses eram aliados. Como afirma uma das preces régias:
“Que tu possas fazer saber a todas as nações baixas e a todas as nações altas que
és o poder do faraó, teu filho, contra todas as nações baixas e em todas as nações
altas. Tu asseguraste a vitória ao Egito, tua única terra”.32

Em inúmeros templos egípcios encontra-se uma imagem, esculpida ou


pintada, mas sempre em posição eminente, que mostra um dos deuses mais
elevados presenteando o rei com a maça da vitória. Os textos que a acompanham
esclarecem o simbolismo: “Toma para ti a espada, ó poderoso rei”, diz o deus
Hórus ao rei Seti I (1318-04), “[...] a fim de esmagar as nações rebeldes, que
violam tuas fronteiras [...] elas caem no próprio sangue pelo poderio de teu pai
Amon, que a ti decretou a força e a vitória”.33 O deus também podia celebrar a
vitória que ele e o rei haviam conquistado juntos, como o faz Amon-Ra em
benefício do rei Thutmosis ui (1504-1450) :
Eu lancei teus inimigos sob tuas sandálias, tu esmagaste as hordas rebeldes conforme Eu te
ordenei. A terra, em seu comprimento e largura, Ocidentais e Orientais, [está submetida a
ti. Tu pisoteaste todas as nações, teu coração alegre; [...] Eu eliminei de suas narinas o
alento da vida, Eu coloquei o terror de tua majestade em seus corações, eu fiz com que tuas
vitórias fossem divulgadas em todas as terras, Meu diadema-serpente ilumina teus
domínios. Não há quem se rebele contra ti em todo o circuito do céu; Eles vêm, trazendo às
costas seus tributos; Curvando-se perante tua majestade conforme ordem minha. Eu tomei
impotentes os invasores que vieram antes de ti; Seus corações calcinados, seus membros
tomados de tremores.34

Desde o início da história egípcia, os monumentos e anais oficiais


invariavelmente mostram o rei como vitorioso. Mas isto corresponde à
realidade? Certamente não muito. Por exemplo, em 1285 a.C, Ramsés II, à frente
de uma de suas quatro legiões, foi emboscado pelos hititas e seus aliados em
Kadesh, às margens do Orontes. Descrita nos relatos egípcios, a batalha
subseqüente sugere um drama ritual, com todos desempenhando os papéis
determinados pela tradição. Os inimigos são rebeldes contra o domínio do faraó,
e tão numerosos que cobrem montanhas e vales como uma nuvem de
gafanhotos. O rei sai de sua tenda trajando a veste cerimonial completa, com o
emblema da serpente “cuspidora de fogo” na testa, sobe em sua carruagem e,
sozinho, sem o apoio de nenhuma de suas tropas, ajudado apenas pelo deus
Amon, pisoteia os inimigos e faz com que se dispersem aterrorizados. Juntos, o
faraó e Amon são mais eficazes do que “milhões de infantes e centenas de
milhares de carruagens”.35

O que se esperava do rei não foi e não podia ser mudado, e isto determinava
o que se atribuía a ele. Ramsés III (1198-66) não hesitou em reivindicar para si a
assombrosa vitória que Ramsés II supostamente havia infligido aos hititas —
mesmo que em sua época os hititas já tivessem deixado de existir como potência
política. O rei Sahure (2455-43) derrotou os líbios no campo de batalha — e seu
sucessor, Pepi II, apropriou-se dos relatos dessa mesma vitória, embora
provavelmente nunca tenha lutado contra os líbios. Tutankhamon (1361-52), que
morreu aos treze anos de idade, foi retratado como vitorioso sobre povos ao sul e
a leste do Egito, embora nunca tenha realizado campanhas contra eles.
Considerar tais relatos como meras falsificações históricas é um equívoco. A
precisão, ou imprecisão, factual deles era irrelevante: sua intenção era mostrar
que o faraó em questão havia de fato cumprido o papel que lhe cabia,
reafirmando e fortalecendo o cosmos.

Essa mesma intenção explica as pinturas murais, encontradas em muitos


templos, que mostram longas filas de prisioneiros de guerra, cada um
representando uma cidade ou país conquistado, esperando a vez de ser
massacrado ritualmente, muitas vezes pelo próprio faraó. Os historiadores
modernos acreditam que não houve nenhum de tais massacres cerimoniais.36
Porém, como as potências estrangeiras hostis, ou supostamente hostis,
necessariamente faziam parte das forças do caos, era inconcebível que não
fossem aniquiladas pelo faraó.

Uma das cerimônias de culto realizadas nos templos egípcios era um ritual
de “aniquilação dos inimigos”. Este normalmente assumia a forma de um
sacrifício sangrento, não de seres humanos mas de animais selvagens — animais
que, por uma ou outra razão, eram tradicionalmente rotulados como inimigos
dos deuses. Essas vítimas eram identificadas de maneira explícita com os povos
“rebeldes”. Isto explica por que, em muitos templos, imagens dos triunfos do
faraó no campo de batalha são mescladas a imagens dele caçando e abatendo
animais selvagens. Em Edfu, por exemplo, é representada uma enorme rede na
qual foram capturados não apenas pássaros, mas também animais e homens — e
estes são prisioneiros de guerra, ajoelhados e com os braços firmemente
amarrados. O rei e dois ou três deuses estão fechando e arrastando a rede. Os
textos que as acompanham deixam claro que tais imagens eram reforçadas por
cerimônias e fórmulas encantatórias, destinadas a submeter e destruir os
inimigos do rei.37

Tão importante era essa percepção do faraó e de seu papel que não sofria
abalos nem mesmo quando o Egito era conquistado por uma potência
estrangeira. Pelo contrário, qualquer monarca estrangeiro que viesse a governar
o Egito era visto como um faraó legítimo, se se dispusesse a aceitar os títulos
faraônicos e a cultuar os deuses egípcios. Tanto o conquistador persa Cambises
como Alexandre, o Grande, tiveram o bom senso de agir assim. Aqueles
governantes estrangeiros que deixaram de satisfazer essas expectativas foram
eles próprios rotulados de agentes do caos: seus reinados significavam uma
ausência temporária do faraó e de ma’at, uma vitória temporária do caos.38


Capítulo 7

O que chamamos de visão de mundo religiosa poderia muito bem ser


chamada de ideologia política, e os teólogos que a criaram e elaboraram também
poderiam ser chamados de propagandistas políticos. Eles eram encontrados entre
os sacerdotes dos grandes templos, que deviam sua prosperidade — sua própria
existência, na verdade — à proteção régia. Os valores e atitudes desses homens
eram os valores e atitudes da corte. Eles consideravam um dever sagrado
assegurar a manutenção da monarquia e do Estado instituído em tomo dela. O
mesmo valia para todos os outros indivíduos letrados que exerciam uma
autoridade derivada do rei, desde os abastados funcionários e administradores do
alto escalão até os níveis inferiores da burocracia e do sacerdócio. Todas essas
pessoas eram conservadoras no sentido estrito do termo: a principal preocupação
delas era manter a situação vigente.

De maneira geral, foram bem-sucedidas: a sociedade egípcia era


extraordinariamente estável. Às vezes o país era invadido e conquistado, em
outras as ambições da alta nobreza ocasionaram guerras civis, mas o único
movimento que talvez pudesse ser chamado de revolucionário foi desencadeado
por um faraó. Entre 1364 e 1347 a.C., o rei Akhenaten (Amenhotep IV) aboliu o
culto dos antigos deuses, inclusive o de Amon-Ra, e erigiu o Aten — o disco do
sol — como o único deus verdadeiro, identificando-se com ele. Não há nenhum
motivo para supor que esta inovação se devesse a um clamor popular, ou que sua
revogação, pelo genro de Akhenaten, Tutankhamon, tenha sido contrária à
vontade popular.

Chegaram até nós alguns escritos — as Profecias de Neferti e as Exortações


de Ipuwer são os mais importantes — que equiparam os pobres aos invasores
estrangeiros: agentes do caos que entrariam em ação tão logo houvesse qualquer
enfraquecimento da autoridade real.59 Eles também devem ser levados em conta.

As Profecias de Neferti falam de um Egito devassado e espoliado por


estrangeiros, um Egito no qual ruíra a hierarquia social e os vínculos sociais e
familiares tradicionais:
Veja!, o grande não mais governa a terra [...] Toda a felicidade desapareceu, A terra está
vergada sob a aflição [...] Eu mostro a ti a terra em tumulto: O fraco está bem armado, Aquele
que o cumprimenta foi cumprimentado. Eu agora mostro a ti em cima o que estava
embaixo. [...] O mendigo receberá riquezas, O grande (irá roubar) para viver. O pobre irá
comer pão, Os escravos serão exaltados.39

A desordem na sociedade reflete-se em uma natureza desordenada. Tanto o


Nilo como o sol ficam desgovernados:
Seco está o rio do Egito, uma pessoa atravessa a água a pé: Uma pessoa busca água para que
as naus naveguem. Seu leito se tomou uma praia. A praia se tomará água. Curso d’água de
volta à praia. [...] Re irá se afastar da humanidade: Mas ele irá se erguer em sua hora,
Ninguém irá saber quando for meio-dia: Ninguém irá distinguir sua sombra.40

As Profecias de Neferti terminam saudando o rei Amenemhet I como o governante que irá restituir
ma’at e expulsar da terra o caos.

As Exortações de Ipuwer têm a preocupação de mostrar o que acontece quando


um rei (não especificado) falha no exercício de sua legítima autoridade.41 Em
uma terra desprovida de governo, alguns indivíduos, ignorando as restrições
tradicionais, desencadeiam conflitos sem que sejam reprimidos. O resultado é
uma revolução — ‘Todas as aldeias clamam: ‘Vamos expulsar nossos
governantes!’”. A hierarquia tradicional é totalmente destruída: “Vejam como
agora todos os escalões mudaram de lugar”, “Vejam como agora o povo se
transformou”. Agora os grandes é que passavam “fome e sofrimentos”.

O autor mostra o que isto significa na prática. Os juízes são afastados da


terra; os nobres, expulsos dos palácios reais. Aqueles que vestiam linhos finos
eram espancados com bastões e postos a trabalhar nas mós. As mulheres nobres
vagavam pela terra, obrigadas a carregar fardos pesados e a dormir em catres —
na verdade, recebiam o tratamento normalmente destinado às escravas. Quanto
aos bebês de famílias nobres, eram deixados no topo dos montes para que
morressem, ou então atirados contra os muros. Os escribas eram assassinados e
os livros da lei jogados às ruas, para serem pisoteados pelos mendigos.

Isto é o que diziam as Profecias de Neferti e as Exortações de Ipuwer. Tais coisas,


porém, chegaram a ocorrer de fato? Os egiptólogos em geral concordam que,
embora de tempos em tempos ocorressem distúrbios sociais, nunca houve
nenhuma convulsão tão dramática. Aparentemente, tanto as Profecias de Neferti
como as Exortações de Ipuwer pertencem a uma tradição literária específica: a
descrição de situações de caos.42 Mais do que acontecimentos reais, essas
“queixas” refletem os temores dos privilegiados, a sensação de que viviam em
uma pequena ilha de ordem e civilização em meio a um mar de desordem e
barbárie. E refletem, também, a necessidade que os privilegiados tinham de um
rei poderoso que mantivesse longe o caos social.

Capítulo 8

Nações hostis, rebeldes e provocadores de todo tipo não eram apenas


transgressores de ma’at, mas cúmplices e instrumentos das potências sobre-
humanas do caos. Pois no mundo também atuava um princípio que era o exato
oposto de ma’at. Os egípcios o chamavam de isfet, palavra muitas vezes
traduzida como “falsidade” ou “injustiça”, mas cujo significado vai muito além.
Isfet designava tudo o que fosse contrário à correção do mundo e era uma força
com a qual se devia tomar cuidado. Pois o mundo ordenado continuava sendo,
tal como a colina primordial, uma ilha de ordem em um oceano de caos que
ameaçava sobrepujá-la e fazê-la desaparecer.

Quando o mundo ordenado foi formado a partir do caos primordial, esta


massa escura e aquosa não cessou de existir. O Nun ainda permeava o universo
e, ao mesmo tempo, circundava a terra e preenchia as regiões inferas. Mas tinha
também seu aspecto benéfico, pois dele provinham tanto as chuvas como — o
que era muito mais importante — a inundação anual. De novo, toda noite o deus-
sol mergulhava no Nun, “envelhecido” e “cansado” depois da longa jornada do
dia, para se levantar na manhã seguinte retemperado e rejuvenescido.43 Mesmo
assim, o caos que circundava o mundo ordenado era visto como uma presença
assustadora e obsedante.

Na visão dos egípcios, ma’at estava sob permanente ameaça dos seres
monstruosos que habitavam os abismos do mundo inferior, e o líder dessas
personificações de isfet era a gigantesca serpente Apófis, ou Apep, que se
assemelhava a um dragão.44 Apófis era um deus, mas um deus maligno —
“aquele do semblante maligno”, “aquele do caráter maléfico” são alguns de seus
epítetos. Embora sua origem tenha se perdido nas névoas do tempo, foi durante o
turbulento Primeiro Período Intermediário, quando a estabilidade característica
do Antigo Império parecia perdida para sempre, que ele primeiro se distinguiu
como uma força de imenso poder destrutivo. E assim permaneceu até o Novo
Império e mesmo depois dele.

Apófis personificava o caos primordial. Não tinha os órgãos dos sentidos e,


portanto, não podia ver nem ouvir, apenas gritar. E sempre agia na escuridão.
Enquanto a barca do deus-sol navegava pelo mundo inferior, ele tentava
incessantemente bloquear a passagem bebendo o suposto rio em que ela seguia.
Em todo momento de escuridão — um eclipse, a lua nova, um céu nebuloso,
mas sobretudo os instantes críticos do crepúsculo e da aurora — Apófis estava
presente e atuante.

Quando, no final do dia, a barca solar desaparecia no horizonte, Ra e os


deuses menores que constituíam a tripulação da barca eram obrigados a
combater a serpente, uma luta que voltava a ser travada no início da manhã. Essa
batalha na fronteira do caos e do mundo ordenado era uma luta feroz: Apófis era
retalhado com facas, transpassado com lanças, queimado com o fogo do irado
olhar do deus-sol. E aqui Seth desempenhava um papel fundamental: ereto na
proa da barca solar, ele perfurava a serpente com sua lança, de modo que as
águas cósmicas pudessem dele escorrer, permitindo que o deus-sol prosseguisse
em seu caminho. Já não mais anômalo, nem maligno, Seth aparece agora como
um deus heróico, destruidor de monstros e preservador do mundo. Ainda
veremos muitos outros deuses desse tipo, alguns semíticos, outros indo-
europeus.

Era uma batalha extremamente urgente e necessária — se Apófis


conseguisse vencê-la, mesmo que por uma única vez, o sol interromperia seu
curso e chegaria ao fim o mundo ordenado. Conscientes disso, os egípcios
faziam o possível para ajudar os deuses. Todos os dias, sacerdotes de muitos
templos em todo o reino — inclusive do grande templo de Amon-Ra em Karnak
— entoavam liturgias celebrando a vitória do deus-sol sobre a serpente.
Aparentemente, tais liturgias eram consideradas uma forma de magia voltada
para a destruição definitiva de Apófis:
Ele tombou na chama, Apófis com uma faca em sua cabeça. Ele não pode ver e seu nome já
não é desta terra. Eu ordenei que uma maldição seja lançada sobre ele; eu consumi seus
ossos; eu aniquilei sua alma no decurso de cada dia; eu quebrei as vértebras de seu pescoço,
separei-as com uma faca que retalhou sua carne e penetrou em seu couro [...] Eu o tomei não-
existente [...] Ele está caído e derrotado.45

A vasta liturgia da qual essas frases constituem minúscula parte encontra-se


em uma obra conhecida como O livro do Apófis destruidor, descrito no texto
como um livro secreto mantido no saguão do templo como um tesouro de
palavras mágicas.46 O livro também contém instruções para a fabricação de uma
imagem de cera de Apófis. Esta deve ser colocada no chão, para que o sacerdote
pise nela com o pé esquerdo e a transforme em uma massa amorfa. Depois de
retalhada com uma faca de sílex, a massa é por fim lançada em um fogo especial
mente preparado. Isso é feito todas as manhãs, ao meio-dia e à noite; nos
momentos em que o sol é obscurecido por nuvens ou pela chuva, várias dessas
figuras devem ser queimadas.

A despeito de tudo, Apófis nunca foi destruído, pois era imortal. Além do
mais, havia existido desde sempre. O mundo e os deuses tinham uma origem,
mas o caos e seus monstros não haviam sido criados. Isso valia não apenas para
Apófis, mas para todo um exército de seres estranhos e ameaçadores — criaturas
híbridas, bestas monstruosas, homens sem cabeça — mostrados nos muros das
sepulturas no Vale dos Reis, alinhados às margens do rio subterrâneo,
ameaçando a barca solar enquanto ela segue seu curso. Todos eles viviam fora
do mundo ordenado; não faziam parte da criação e existiam por toda a
eternidade.47 Tudo o que se podia fazer era mantê-los à distância.


Capítulo 9

Afastar os perigos que ameaçavam a terra do Egito, defender e perpetuar o


domínio de ma’at era uma tarefa gigantesca e interminável, exigindo não só
esforços constantes de deuses e seres humanos, mas também a colaboração entre
eles. Os templos e os cultos ali realizados serviam para assegurar a continuidade
dessa colaboração, de modo que o cosmos sempre estivesse protegido contra as
forças do caos.

Um templo do Oriente Próximo em nada se comparava a um templo grego


ou a uma igreja cristã. Não era um local onde os crentes se reuniam para um
culto; na verdade, as pessoas comuns nem tinham acesso ao seu interior. Era um
local de mistério, onde os sacerdotes realizavam complicados rituais na presença
apenas do deus. Além disso, um templo egípcio era, por si próprio, uma
encarnação do cosmos. Uma vez que se vivenciava cada deus em seu santuário
como a força suprema no mundo ordenado, o edifício que abrigava sua estátua
era uma representação desse mundo ordenado. Em muitos casos, a própria
estrutura do edifício simbolizava o surgimento do mundo ordenado no “início
dos tempos”. Os templos eram vistos como recriações do outeiro primordial em
que o demiurgo havia descansado.48

Um texto do templo de Edfu descreve a relação entre o mito e o edifício.


Após o demiurgo ter chegado ao outeiro, a área tornou-se um local sagrado que
precisava ser protegido, o que foi feito erguendo-se um muro de juncos. Quando
as águas refluíram, a proteção de junco foi sendo ampliada até se transformar em
um templo de junco completo, com o abrigo contendo o deus — originalmente
no topo do outeiro — ainda em um nível um pouco mais elevado do que o resto.
Tudo isso foi fielmente transposto para o templo de pedra: as mudanças nos
níveis dos pavimentos e dos tetos reproduziam a forma do outeiro primordial.
Além disso, as águas do Nun que haviam circundado a “ilha da criação” original
foram reproduzidas na ornamentação do muro de tijolos que circundava o
recinto do templo: linhas sinuosas, alternadamente côncavas e convexas. As
colunas, cujos capitéis tinham formas que lembravam palmeiras, flores de lótus
ou juncos, representavam a abundante vegetação que havia na ilha primordial.
Na base das paredes, alguns templos também possuíam relevos representando
plantas, as quais pareciam estar crescendo do próprio solo. Assim, cada novo
templo era considerado a representação do santuário original de junco — e
dotado do mesmo e vasto poder mágico.
Assim como o outeiro primordial havia sido uma ilha de ordem circundada
por um oceano de caos, no mundo além do recinto do templo as forças do caos
continuavam ativas. A função do templo era reduzir à impotência essas forças.49
Para assegurar a imunidade do próprio templo, o recinto sagrado era protegido
por paredes espessas. Imagens do faraó empunhando sua maça sobre a cabeça
dos prisioneiros de guerra ou abatendo animais selvagens tinham o mesmo
objetivo no plano simbólico: eram os meios de manter à distância as forças da
desordem. De novo, no culto as forças mágicas do templo eram constantemente
evocadas a fim de proteger o deus contra o caos circundante e, com isso,
proteger o próprio mundo ordenado. Pois, embora a ordem tivesse sido
estabelecida pelos deuses e ainda que estivessem empenhados em garantir sua
sobrevivência, eles não conseguiriam êxito sem a ajuda permanente dos seres
humanos. E os ritos realizados nos templos proporcionavam essa ajuda.50

Os ritos centravam-se na estátua ou imagem de um deus ou uma deusa. A


imagem era feita na oficina no templo, mas deixava de ser matéria inanimada e
tornava-se um receptáculo para a presença divina após um elaborado rito secreto
de consagração que envolvia elocuções e atos mágicos. Durante esta cerimônia,
os olhos e a boca da imagem eram “abertos”, a fim de que ela pudesse ver e
comer, e a imagem então era dotada de “vida”. Mas poderia permanecer viva
apenas com a ajuda de outros ritos, realizados de maneira regular e apropriada.

Esses ritos são descritos em cenas pintadas nas paredes dos templos, ao lado
das respectivas instruções. Toda manhã, os sacerdotes oficiantes retiravam a
estátua do deus ou deusa do santuário em que havia passado a noite, removiam-
lhe as vestes e a maquiagem do dia anterior e, depois, purificavam-na e tomavam
a vesti-la. Mas o que acima de tudo proporcionava à divindade força para
sustentar o mundo ordenado eram as oferendas dos fiéis: todos os dias ele ou ela
eram mais do que satisfatoriamente alimentados. Não fazia diferença se depois
os alimentos, intocados, eram removidos do edifício do templo e distribuídos
entre os sacerdotes, como pagamento por seus serviços: mesmo assim a
divindade era revigorada.

O culto nos templos era inconcebível sem o faraó. Era ele quem mandava
construir os templos e cuidava para que se restaurassem os dilapidados. Era ele
quem assegurava que oferendas regulares e abundantes fossem feitas. E ele os
dotava com terras — e de maneira tão generosa que, no Novo Império, os
templos possuíam cerca de um terço de todas as terras cultiváveis, nas quais
vivia quase um quinto de todos os habitantes do país.
Acima de tudo, o faraó era, em cada templo, o sumo sacerdote. Se
aceitássemos as pinturas murais como historicamente exatas, seria forçoso
concluir què ele oficiava todos os ritos em todos os templos do Egito, sem
nenhuma ajuda dos sacerdotes. Na realidade, ele provavelmente estava presente
na cerimônia de fundação de cada templo e, na capital, talvez realizasse o rito
diário do principal deus do Estado. Todos os outros ritos eram oficiados por
sacerdotes. Porém, embora as pinturas murais não sejam literalmente
verdadeiras, elas o são em um nível simbólico: considerava-se que o rei estava
presente no sacerdote. Era a presença dele no culto que garantia a continuidade
da ordem estabelecida pelos deuses. Em determinado rito sempre retratado na
parede dos fundos do santo dos santos, o faraó na verdade oferece ma’at, sob a
forma de comida ou de uma estatueta da deusa Ma’at, à divindade residente.51
Não se pode imaginar simbolização mais eloqüente da importância da ordem
para os egípcios.


Capítulo 10

As pessoas comuns consideravam normal que, assim como os sacerdotes se


esforçavam por manter e fortalecer ma’at através do ritual, cabia a elas buscar o
mesmo por meio de seu comportamento social — o que, em si, implicava
conformidade. Além disso, embora suas preocupações não coincidissem com as
preocupações dos que cuidavam do bem-estar do Estado, elas se harmonizavam.
Deuses secundários e espíritos benéficos permaneciam próximos dos indivíduos,
velando por suas ocupações e preocupações cotidianas, ao passo que espíritos
maléficos, ou demônios, pairavam ao lado, aguardando a oportunidade de
infligir algum dano, enfermidade ou morte.52

Outros deuses e deusas menores supervisionavam as terras pantanosas às


margens do Nilo e as atividades de caça e pesca que ali ocorriam, bem como a
tecelagem e a confecção de roupas, a produção de vinho, azeite e ungüentos
perfumados, os cereais e as colheitas — em suma, todos os aspectos da vida
econômica. A solicitude divina também influenciava o destino individual dos
seres humanos. Desde o momento da concepção, o deus-oleiro Khnum modelava
o corpo da criança e o espírito vital em seu interior. Ainda outras divindades
velavam pelos nascimentos e atuavam como parteiras — a principal delas era a
deusa do parto Ta-Uret (mais conhecida por seu nome grego, Thoeris), em geral
representada como um hipopótamo fêmea e grávida. As pessoas dirigiam-lhe
orações em pequenas capelas ou em seus próprios lares, tal como o faziam para
o deus Shed, que oferecia proteção contra acidentes como picadas de escorpião,
ou para o grotesco anão Bes, deus da alegria e da pilhéria.

Menos ubíquos, aparentemente, do que os demônios mesopotâmicos, os


demônios egípcios eram, porém, bastante perigosos. Os grandes deuses os
enviavam para que percorressem a terra como seus mensageiros, levando a
doença e a morte. Normalmente eles se deslocavam — assim como seus
equivalentes na Mesopotâmia — em grupos de sete ou de múltiplos de sete, ou
ainda em sete grupos. Armados de facas, arrancavam o coração daqueles
escolhidos pelos deuses para perecer.

Os demônios podiam atuar a qualquer momento, mas certos períodos de


transição eram mais favoráveis: o final do dia, o final do mês, o final do ano, o
final da década. Nesses períodos, quando a ordem era perturbada, os demônios
ficavam à solta. As pessoas tomavam todas as precauções possíveis contra eles.
Durante os cinco últimos dias do ano, longas preces de súplica eram dirigidas às
divindades, sobretudo a Sekhmet, uma deusa com cabeça de leão e ela própria
demoníaca. Também se usavam amuletos que representavam Sekhmet,
considerados portadores de uma magia protetora. Acima de tudo, as pessoas
invocavam a ajuda de pequenos deuses e espíritos benfeitores, os quais eram
especialistas no combate aos demônios. Assim, quando os demônios armados de
facas se reuniam em tomo de um recém-nascido e de sua mãe, bons espíritos
também armados juntavam-se para combatê-los.

Desse modo, a gigantesca e incessante batalha no plano cósmico entre Ra e


Apófis, entre a ordem e a desordem, tinha sua contrapartida nas vicissitudes
individuais.


Capítulo 11

Os egípcios não apreciavam a novidade; na verdade, não gostavam sequer


de admitir a possibilidade de sua ocorrência. Supunha-se que cada templo era
uma continuação e uma recriação do primeiro abrigo no qual o demiurgo havia
descansado “no início dos tempos”.

Cada rei era um incasável defensor do cosmos, sempre vitorioso contra os


agentes do caos. Cada batalha, fosse qual fosse o seu “verdadeiro” resultado, era
vista — assim como o ritual no templo — como reafirmação de
ma’at restabelecimento do mundo ordenado tal como ele fora no “início dos
tempos”.53 O ideal egípcio não era tanto a duração imutável e sem fim, mas a
regeneração e o rejuvenescimento periódicos, repetidos de maneira incessante.

O deus mais estreitamente associado à regeneração e ao rejuvenescimento


era Osíris, o grande deus assassinado e desmembrado por Seth.54 Como
ressuscitara milagrosamente, Osíris às vezes era identificado com o grão que
renasce após ter sido enterrado no subsolo; em outras, com a lua que volta a
brilhar após um período de invisibilidade; e, em outras ainda, com o Nilo, que
produz nova inundação após uma época de seca. Havia ritos para ajudar Osíris a
dar início aos recomeços necessários. Em um drama sagrado conhecido como Os
mistérios de Osíris, um bolo em forma de múmia era plantado e regado
juntamente com sementes de cereal: o nascimento de brotos verdes não só
representava como também estimulava o renascimento anual da natureza. O
mesmo rito era repetido a cada lua nova, de modo que também o ciclo lunar
continuasse inalterado.

A trajetória do sol era vista como um modelo tanto da estabilidade como da


recorrência cíclica.55 Inúmeros textos contam de que forma, na derradeira hora da
noite, o deus-sol e todos os seus deuses auxiliares na barca solar penetram em
uma gigantesca serpente como indivíduos velhos, enfraquecidos pela idade, e
dela saem ainda como os mesmos deuses, mas agora sob a forma de crianças; e
como os quatro babuínos da barca solar abrem os portões orientais do céu e
deixam a luz fluir para o mundo como sempre fizera; e como o deus-sol ergue-se
para repetir sua maravilhosa façanha original como sempre havia feito.56

Por mais diferentes que fossem, Ra e Osíris estavam apesar disso


estreitamente vinculados — um conhecido alto-relevo mostra até mesmo uma
múmia com cabeça de carneiro e a inscrição: “Eis Ra quando vem descansar
diariamente em Osíris” e “Eis Osíris quando vem descansar diariamente em
Ra”.57 Juntos, os dois grandes deuses proporcionavam aos egípcios um padrão de
morte e renascimento, de fim e começo renovados. Isso é evidente, por exemplo,
na maneira como os reinados são calculados. Quando um rei morria, seu
sucessor ascendia ao trono já na aurora do dia seguinte, o que era visto como
repetição do primeiro nascer do sol no outeiro primordial. O primeiro ano do
novo reinado era calculado de tal forma que ia daquele momento até o começo
da inundação, a qual marcava o início do segundo ano. Desse modo, o faraó
estava associado tanto a Ra quanto a Osíris e seu reinado integrava-se no ritmo
cíclico do mundo.58

Os egípcios imaginavam o tempo como algo que se estendia


interminavelmente à frente — de maneira interminável e também imutável, a
não ser pelas recorrências cíclicas, que igualmente não tinham fim. Talvez — e
há alguns textos que sugerem isto — depois de bilhões de anos o tempo
destinado ao mundo iria se esgotar, o sol não mais seguiria seu curso, os céus
cairiam, o cosmos reverteria ao caos aquoso.59 Esta, porém, era uma perspectiva
muito remota para causar alguma preocupação. O importante era que o mundo
ordenado permanecesse inalterado em sua essência, que não acontecesse nada
que já não tivesse algum paralelo no presente ou no passado. Mesmo quando em
épocas de desastres sociais e políticos surgiam profecias de um futuro melhor,
tudo o que estas almejavam era a restauração da ordem anterior.60 Nenhum faraó
tinha a esperança de fazer mais do que restabelecer a situação “tal qual era na
época de Ra, no início”.


Capítulo 12

O anseio egípcio de rejuvenescimento e regeneração, de uma realidade


imune ao desgaste do tempo, encontrou sua expressão suprema nas crenças sobre
a vida após a morte.

Tais crenças variaram muito no decorrer da longa história egípcia.61 No


Antigo Império, a vida do rei após a morte adquiriu extraordinária importância:
acreditava-se que o faraó morto ascendia ao céu e se juntava às estrelas
circumpolares, pois elas nunca desaparecem; ou então — crença muito mais
duradoura — que se juntava a Ra na barca solar, ali dando continuidade a seus
deveres régios, como defensor de ma’at, e do Egito como o domínio de ma’at,
para toda a eternidade. A própria arquitetura das sepulturas reais, a partir da
construção das pirâmides, foi uma expressão simbólica dessas expectativas.

O rei também concedia dotações funerárias aos membros da família real e a


alguns nobres favoritos, de modo que pudessem ser sepultados a seu lado:
evidentemente, esperava continuar desfrutando da companhia deles após a
morte. Os camponeses, por outro lado, não podiam esperar nada mais do que
uma continuação indefinida da vida laboriosa que levavam na terra.

O Primeiro Período Intermediário testemunhou o que se costuma chamar de


“democratização da imortalidade”, que entretanto parece ter sido mais a
democratização de uma vida beatífica após a morte. Primeiro a nobreza em geral
e, depois, as pessoas de outros níveis sociais, todos passaram a cultivar a
expectativa de uma vida após a morte não só eterna, mas melhor do que suas
vidas presentes. Essas expectativas estavam associadas à difusão do culto de
Osíris. Já no Antigo Império, o rei, além de ser filho de Ra, alegava que, ao
morrer, se transformaria em Osíris. Este também acabou vinculado aos ritos
realizados na ascensão e coroação do rei; no Médio Império, os novos
governantes até mesmo o adotaram como patrono, em detrimento de Ra, mais
estreitamente ligado às dinastias anteriores. Osíris, porém, tinha um apelo muito
mais popular do que Ra. Seu estranho destino — o assassinato e
desmembramento por Seth, a ressurreição e a exaltação subseqüentes — foi
interpretado como exemplo do sofrimento e do reconhecimento do inocente.
Para os membros menos privilegiados da sociedade, isto fazia sentido. Depois,
Osíris passou a ser visto como senhor do mundo subterrâneo e dos mortos bem-
aventurados — e como um deus capaz de conceder a ressurreição a seus
seguidores. Era o que bastava para assegurar a enorme difusão de seu culto.
Enquanto os outros grandes deuses permaneciam distantes em seus templos, o
benigno deus funerário Osíris podia ser adorado em qualquer parte e por
qualquer pessoa, ao lado dos deuses domésticos e locais que lidavam com as
questões cotidianas.

Não se considerava, aparentemente, que os mortos bem-aventurados se


restringissem apenas ao mundo subterrâneo. A alma (ba) de um morto
continuava a existir nos céus, mas a pessoa poderia reviver apenas quando a
alma se reunisse ao corpo no mundo subterrâneo.

Isso era possível porque as almas dos mortos bem-aventurados


acompanhavam, aos milhões, a barca solar em sua jornada noturna. A
revivificação e o rejuvenescimento eram portanto transitórios, mas vividos com
tal intensidade que cada noite equivalia a toda uma vida terrena. Além disso,
esse redespertar para uma vida exaltada e mais plena estava destinado a se
repetir indefinidamente: os mortos bem-aventurados podiam ter a expectativa de
uma existência que se prolongaria por milhões de anos.

Para os outros, a vida beatífica após a morte era imaginada em termos


bastante concretos.62 O domicílio dos mortos ressurrectos no mundo inferior era
chamado de “Campo de Junco” e imaginado como um paraíso ilimitado e fértil,
no qual reinava a eterna primavera e onde as colheitas eram regulares e
abundantes. Ricos e pobres recebiam extensões de terra, as quais esperava-se
que cultivassem. Esta possibilidade levou os abastados a equipar suas sepulturas
com centenas de figuras de trabalhadores, que se encarregariam desse cultivo, e
até os camponeses mais pobres costumavam dotar seus túmulos com um ou dois
pequenos escravos de argila.

A vida após a morte era uma versão bastante aperfeiçoada da existência


cotidiana no Egito — assim como o mundo inferior era uma imagem espelhada
do vale do Nilo. As cenas que os nobres mandavam pintar nas paredes de seus
túmulos mostram que eles tinham a esperança de continuar desfrutando de todos
os prazeres que haviam gozado na existência terrena, caçando, pescando,
banqueteando-se e, evidentemente, sendo servidos por criados. Cenas de
colheita, de abate de animais, de fabricação de pães e bebidas muitas vezes são
acompanhadas do retrato do próprio morto sentado a uma mesa repleta de
alimentos. Camponeses e artesãos não tinham a perspectiva de tanta abastança,
mas podiam esperar por uma existência livre de perigos, de envelhecimento e de
doenças. E todos poderiam dispor facilmente de cerveja e pão, água fresca,
brisas refrescantes e boas roupas.

Por volta do Médio Império, todo egípcio, homem ou mulher, tinha acesso a
essas bênçãos. Embora aqueles que tivessem recursos para tanto pudessem, além
disso, erguer sepulturas monumentais, isto já não era necessário. Mais
importantes eram as fórmulas mágicas.

Aquelas que originalmente haviam sido pintadas no interior das pirâmides,


visando a proteção do rei, agora eram colocadas nos caixões de madeira das
pessoas comuns; mais tarde elas se tomariam ainda mais difundidas, sendo
reproduzidas em papiros no chamado Livro dos mortos — que os egípcios
conheciam como Capítulos da passagem ao dia. O objetivo dessas fórmulas era sempre
o mesmo: possibilitar ao falecido sair da sepultura e evitar as inúmeras
armadilhas e perigos que marcavam o caminho para o mundo futuro.

A magia, porém, não era tudo. Estavam habilitados para a vida futura
somente os que haviam adorado Osíris e conduzido suas vidas de acordo com
ma’at. Acreditava-se que, ao morrer, a pessoa apresentava-se perante um tribunal,
com juízes (normalmente o próprio Osíris, auxiliado por cerca de 42 juízes
assistentes), advogados de acusação e defesa, testemunhas e até um escrivão (em
geral o deus Thoth). Em um aposento muitas vezes chamado de câmara da ma’at
dupla, isto é, a ma’at da vida e da morte, o coração do falecido era colocado no
prato de uma balança, enquanto no outro uma pena representava ma’at, a Fim de
se determinar o quanto sua conduta havia sido conforme à ordem estabelecida
pelos deuses.

É possível ter uma idéia do que isso significava pelas chamadas “confissões
negativas” — notas justificativas que os egípcios mandavam colocar nas
próprias sepulturas. Essas notas não apenas insistiam em que o falecido havia
sido assíduo em suas oferendas aos deuses, sobretudo a Osíris, mas também que
não havia explorado nem prejudicado o próximo. Nem matado ou roubado. Nem
havia causado escassez desviando o suprimento de água ou destruindo as safras.
Nem despojado ninguém de sua herança. Em resumo, que havia sido uma pessoa
de ma’at.

É de notar que o falecido nada diz do bem que praticou, mas apenas do mal
que se absteve de fazer. Uma vida beatífica após a morte era acima de tudo uma
recompensa por não se ter aumentado o mal no mundo.63 Aqueles que haviam
vivido de acordo com isfet e não segundo ma’at, esses eram excluídos. Os
transgressores eram designados pela mesma palavra atribuída aos inimigos
políticos e uns e outros podiam ser associados ao eterno monstro do caos, a
serpente Apófis. Uma série de obras sobre o mundo inferior, datadas de 1500
a.C., conta-nos o destino deles.64

Era, sob todos os aspectos, o oposto do que estava reservado aos devotos.
Nus, esfomeados, surdos e cegos, isolados de todo contato com o deus-sol ou
com Osíris, eles eram lançados no caos que circundava o mundo ordenado. Para
todos os seres humanos, a morte significava sair do mundo ordenado e cair no
caos que sempre havia estado ali; porém, enquanto os mortos devotos
experimentavam apenas a força rejuvenescedora do oceano primordial e
retomavam renovados e imortais ao mundo ordenado, os transgressores de ma’at
passavam por uma “segunda morte”. Imaginado às vezes como uma terrível
escuridão, como um oceano de fogo ou ainda como um demoníaco crocodilo
devorador, o caos os consumia. E se em algumas versões isso significava
aniquilação, em outras tratava-se do tormento etemo: um antegozo daquele
inferno que iria assombrar tantas mentes cristãs em épocas posteriores.

Qualquer que fosse o meio, o objetivo era sempre o mesmo: eliminar do


mundo ordenado tudo aquilo capaz de prejudicá-lo. A vida além-túmulo dos
mortos bem-aventurados, por outro lado, pertencia ao âmbito do mundo
ordenado. Na verdade, era apenas na vida após a morte que se concretizava em
sua plenitude a ordem estabelecida pelos deuses. Os seres humanos vivos e os
mortos bem-aventurados habitavam todos o mesmo mundo — mas enquanto o
domínio dos vivos sempre estava sujeito a perturbações, repleto de conflitos, o
mesmo não ocorria com o reino dos mortos. Isso é dito de maneira muito bela
em outra inscrição da época do Novo Império:
a região dos mortos [...] a terra da eternidade, da justiça e da equidade, isenta de todo terror
[...] Discussões ali são abominadas e ninguém se ergue contra o companheiro. É uma terra
contra a qual ninguém se rebela; todos os nossos parentes ali descansam desde o primeiro dia
do tempo. Os descendentes de milhões de milhões ali chegam, cada um deles [...] A duração
das coisas terrenas é como a de um sonho, mas uma recepção justa é proporcionada àquele
que alcança o Ocidente.65

Para os indivíduos, isso era extremamente tranqüilizador, mas não


implicava nenhuma alteração na ordem do mundo: o reino tranqüilo dos mortos
bem-aventurados existia e sempre haveria de existir, ao lado do agitado mundo
dos vivos.

Que o tempo se movia para uma consumação universal, quando todas as


coisas estariam bem para todo o sempre e o caos deixaria de ser uma ameaça —
esta noção não tinha lugar no pensamento egípcio.


2 – MESOPOTÂMIA

Capítulo 1

Já no início da época histórica, por volta de 3000 a.C., os povos que


falavam a língua suméria, concentrados no extremo sul da Mesopotâmia, haviam
chegado a uma noção própria de ordem do mundo. E esta noção foi adotada e
adaptada pelos povos que falavam acádio, os quais viviam em parte ao lado
daqueles que falavam sumério, mas sobretudo mais ao norte: babilônios e
assírios também aderiram a ela quando dominaram a Mesopotâmia no segundo e
no primeiro milênios.1

Assim como a avançada civilização egípcia, a avançada civilização


mesopotâmica durou cerca de três mil anos, mantendo-se extraordinariamente
uniforme durante esse prolongado período. Fosse com predomínio sumério ou
com predomínio semítico, irradiando-se de Ur, de Uruk, de Nipur ou ainda de
Agade, da Babilônia, de Asshur ou de Nínive, tratava-se sempre e
reconhecidamente da mesma civilização. Entretanto, não foi nunca uma
civilização tranqüila. A geografia e a história associaram-se para tornar a vida na
Mesopotâmia ainda menos segura do que no Egito.

Sem intervenção humana, a Mesopotâmia teria permanecido um deserto


escaldante e estéril. Graças ao sistema de irrigação que coletava e canalizava as
cheias repletas de sedimentos dos rios Tigre e Eufrates, ela se tornara uma terra
fértil, com uma agricultura capaz de alimentar uma grande população. Mas o
trabalho de irrigação era extremamente árduo. As inundações, entre abril e
junho, ocorriam tarde demais para as safras de inverno e cedo demais para as de
verão. A irrigação precisava ser ininterrupta, exigindo uma rede de canais e
diques, que por sua vez demandavam o esforço incessante de uma vasta força de
trabalho.

Mesmo assim não havia garantia de êxito. O Tigre e o Eufrates eram muito
menos confiáveis do que o Nilo. Bastava que o nível das águas se mantivesse
baixo por alguns poucos anos para que a terra se tornasse um deserto; e, por
outro lado, uma única cheia excessiva podia transformá-la em um gigantesco
pântano. Não importava o que o homem conseguisse em termos de irrigação e
agricultura, ele sempre corria o risco de ver desfeito seu trabalho. O futuro
sempre era imprevisível e ameaçador. Às vezes, chuvas torrenciais e ventos
abrasadores carregados de poeira tornavam a vida quase intolerável. E mesmo
nas melhores épocas a Mesopotâmia era uma terra difícil de ser cultivada. Não
era, de forma alguma, rica em recursos naturais: metais, pedras, madeiras tinham
de ser trazidos de outras regiões. A vida era uma luta sem trégua contra a
natureza recalcitrante.

For volta do terceiro milênio, a guerra constituía outra fonte de insegurança.


A oeste do Eufrates estende-se o vasto deserto sírio-árabe, com sua dispersa
população de nômades. Os camponeses mesopotâmicos que ocupavam a planície
aluvial eram constantemente atormentados por essas tribos selvagens, que
atacavam suas aldeias e vilarejos. E, entre os habitantes das planícies e os
moradores dos contrafortes montanhosos ao norte, havia uma tensão permanente
que muitas vezes explodia em violentos conflitos. Uma interminável guerra de
guerrilhas foi a ruína de uma série de reinos mesopotâmicos. Vezes sem conta a
região foi invadida e conquistada por povos das terras altas: gútios, elamitas,
cassitas, persas.

Mas, acima de tudo, os mesopotâmicos guerreavam entre si. Durante a


primeira metade do terceiro milênio, os governantes sumérios lutavam entre si
pela supremacia sobre a Suméria, que abrangia uma dezena de cidades-Estado.
De meados do terceiro milênio até a queda da Babilônia, em 539 a.C.,
incontáveis monarcas no sul e no norte, sumérios e semitas, lutaram entre si com
o objetivo de estabelecer um reino cujas fronteiras englobassem toda a
Mesopotâmia. E essas guerras sempre deixavam um rastro de destruição e
matança indiscriminadas.

Para os mesopotâmicos, o cosmos era algo muito real, tão real quanto as
forças que o ameaçavam.


Capítulo 2

No início, segundo a mais antiga visão de mundo mesopotâmica, nada havia


além do oceano salgado, primordial, ilimitado. Depois o oceano gerou o céu e a
terra, vinculados entre si. Um deus forçou a separação deles e assim criou este
mundo ou universo, que passou a se assentar, imerso, em meio ao oceano
primordial. O mundo consistia da terra, imaginada como uma travessa plana com
a borda corrugada de montanhas; acima dela, a abóbada do céu, apoiando-se
sobre as montanhas e sustentada pela atmosfera, com corpos astrais movendo-se
ao longo dela; abaixo da terra, uma massa de água doce, chamada abzu ou apsu
(de onde se originou a palavra “abismo”); e, ainda mais para baixo, sob o abzu,
havia outro hemisfério, o mundo inferior, onde viviam os espíritos dos mortos.

Por volta do terceiro milênio, o mundo todo era visto como um Estado.
Sobre a superfície da terra, este mundo não se estendia além da Mesopotâmia e
das nações com quem mantinha relações. A Mesopotâmia, e sobretudo sua
capital — Babilônia, para os babilônios, e provavelmente Nipur, para os
sumérios —, era o eixo do mundo, o qual era governado por deuses e deusas
mesopotâmicos.

Muitas dessas divindades representavam originalmente aspectos da


natureza. Além disso, funcionavam como patronos individuais das diversas
cidades-Estado que se desenvolveram na Suméria no final do quarto milênio e
início do terceiro. Mais tarde houve uma mudança de ênfase: todas as divindades
foram organizadas em um único panteão estruturado hierarquicamente — o qual,
ampliado, seria depois adotado por babilônios e assírios. Em todos os seus
aspectos, o panteão revelava uma preocupação com a ordem — tanto a da
sociedade como a da natureza — em todo o mundo.

Originalmente, o deus mais graduado era a divindade tutelar da cidade de


Uruk, chamado An em sumério e Anu ou Anum em acádio, a língua dos semitas.
Seu nome era a palavra suméria que designava o céu, e de fato ele era um deus
celeste: a chuva estava associada a ele, assim como as constelações mutáveis e,
por intermédio delas, as épocas do ano com seus respectivos trabalhos e
festivais. An era o pai de todas as coisas: havia gerado plantas e árvores e os
deuses eram seus filhos, assim como os demônios.

An controlava tudo na natureza e na sociedade. Sob seu comando, todas as


coisas seguiam pelo caminho apropriado. Foi a vontade dele que extraiu do caos
a existência e instaurou a ordem no mundo. Majestoso e remoto, representava a
autoridade absoluta — e toda autoridade, divina ou humana, originava-se dele,
como o sabiam os próprios deuses:
Ó An! Tua grande autoridade está acima de tudo, quem poderia negar isto? Ó pai dos deuses,
tua autoridade, o fundamento mesmo do céu e da terra, que deus poderia desprezá-la?2

Quase tão poderoso quanto An era o deus Enlil, uma figura de


extraordinária complexidade. Patrono da cidade de Nipur e deus do vento, era a
potência que originalmente havia separado o céu da terra, criando assim o
mundo. Também era ele a força que sustinha os ritmos da natureza e propiciava
abundância e prosperidade à terra. Graças a ele cresciam as plantações,
reproduziam-se os animais, os peixes e as aves, mantinham-se cheios de água os
canais. A vida da sociedade também se devia a ele: sem a permissão de Enlil
nenhuma cidade podia ser fundada ou habitada, nenhum curral de gado ou redil
de ovelhas podia ser construído, nenhum rei, senhor, sacerdote ou general podia
ser nomeado. Enlil, porém, não era uma divindade puramente benévola. Se,
como senhor do úmido vento da primavera, era amigo do agricultor, como
senhor do vento tempestuoso era uma figura temível, implacável executor de
toda destruição decretada pelos deuses.

No final, o papel de Enlil tornou-se quase tão abrangente quanto o de An.


Enquanto An era o senhor do céu, Enlil era o senhor da terra e o deus nacional
da Suméria. Tal como An, passou a ser chamado de “pai dos deuses”, e o
primeiro mês do ano, no qual se decidia o destino do novo ano, era consagrado a
ambos. Planejador cósmico de infinita sutileza, administrador cósmico de
infinita habilidade, Enlil era a encarnação da providência divina:
Enlil, cuja autoridade é de longo alcance, cuja palavra é sagrada, o senhor cujas decisões são
imutáveis, que para sempre decreta os destinos, Cujo olho exaltado vasculha as terras. Cuja
luz exaltada penetra no coração de todas as terras, Enlil, sentado à larga no trono branco, no
trono sublime, Que aperfeiçoa os decretos do poder, da soberania, do principado, Os deuses
terrestres se curvam temerosos perante ele, Os deuses celestes se humilham perante ele [...].3

Os deuses governantes e dominadores permaneceram no centro da visão de


mundo dos mesopotâmicos enquanto durou a civilização deles. Quando, no
decorrer do segundo milênio, o antigo mundo das cidades-Estado sumérias foi
substituído pelos impérios semitas, An e Enlil tenderam a passar para o segundo
plano, em favor dos principais deuses desses impérios: Marduk, na Babilônia, e
Asshur, na Assíria. As crenças subjacentes permaneceram as mesmas: tanto
Marduk como Ashur tomaram-se reis dos deuses e governantes do mundo.

Logo abaixo de An e de Enlil estava o deus Enki (Ea, em acádio) — o deus


tutelar de Eridu — e a deusa Ninhursaga. Cabia a Enki implementar as decisões
de An e Enlil, organizar o mundo como cidade-Estado e mantê-lo em bom
estado de funcionamento. Estreitamente associado à água doce, Enki definiu os
regimes do Tigre e do Eufrates, encarregando um deus de cuidar dos canais e
outro de garantir que os pântanos ficassem repletos de peixes e juncos. Também
organizou as chuvas e determinou que um terceiro deus cuidasse delas. Deus da
inteligência e da sabedoria, patrocinava as artes e os ofícios, a ciência, a
literatura e a magia benéfica. Quanto a Ninhursaga — conhecida como “senhora
do ventre” e “senhora das formas” —, era a mãe de todas as coisas vivas, “a mãe
de todas as crianças”. Encarregada da proliferação dos rebanhos e da
perpetuação da humanidade, seu lugar era ao lado de An, Enlil e Enki como uma
das principais divindades.

Em seus papéis como governantes do mundo, An e Enlil tinham um


representante muito eficaz no deus-sol, chamado pelos sumérios de Utu e pelos
semitas de Shamash, que era o deus tutelar de Larsa e de Sipar. Sua tarefa
específica era a manutenção de um princípio ao qual sumérios e semitas
atribuíam grande importância e que designavam por termos que significavam
“retidão”, “correção”, “verdade” e também “justiça”.4

Em acádio, as palavras eram kettu e mesharu, e com freqüência o deus-sol


era chamado de “senhor de kettu e mesharu”: às vezes era até imaginado e
retratado tendo ao lado uma deusa Kettu e um deus Mesharu — de maneira
similar ao deus-sol egípcio Ra e seus acompanhantes, a deusa Ma’at e o deus
Thoth. Na Mesopotâmia, tal como no Egito, o curso do sol era visto como um
exemplo perfeito de retidão, de correção. E em ambas as regiões considerava-se
que o sol, ao seguir por seu caminho, estava na posição mais adequada para
observar onde se respeitava a correção e a justiça e onde estas eram
transgredidas: ele era “aquele para quem não existem segredos”. E havia preces
que associavam a exultação pelo nascer do sol à louvação de Shamash por ele
haver ministrado a justiça social. Em geral, Shamash era representado
empunhando um bastão e um anel, que indicavam respectivamente a retidão e a
completude e simbolizavam a ordem a que estavam submetidos os deuses
supremos e todo-poderosos.
Ainda que An, Enlil, Enki/Ea, Ninhursaga e Utu/Shamash fossem os
principais responsáveis pela manutenção da ordem cósmica, também havia uma
multidão de deuses e deusas menores, encarregados de cuidar de determinada
cidade ou então, a pedido de Enki, de determinado aspecto do mundo. Cada uma
dessas divindades governava seu domínio por meio de uma ou mais entidades
que os sumérios chamavam de mes.5 Embora o termo me não possa ser traduzido
adequadamente por nenhuma palavra das línguas modernas, temos uma idéia
geral de seu significado para os mesopotâmicos. Um me atuava como uma regra,
uma lei ou um decreto, regulamentando um elemento específico na sociedade ou
civilização. Durante a criação do mundo, An reuniu todos os mes e colocou-os
sob os cuidados de outros deuses, seus filhos. A partir de então, Enki dirigiu ou
“cavalgou” as “dezenas de milhares” de mes; ao mesmo tempo, outros deuses
cuidavam da supervisão e custódia de mes específicos. O domínio dos deuses; as
funções de rei, sacerdote, pastor; os ofícios de carpinteiro, ferreiro, coureiro,
cesteiro, escriba; retidão, justiça, verdade; regozijo, lamentação; conflito, luta;
uma terra rebelada; destruição de cidades; fogo devorador; o fogo do lar; arte,
música; cada templo — tudo isso e muito, muito mais tinha seu próprio me.
Atuando em conjunto, os mes implementavam as intenções dos deuses para os
seres humanos — aqueles, é claro, que viviam na Mesopotâmia.

De vez em quando, todos os deuses se reuniam em uma grande assembléia,


realizada no átrio do templo de Eniil, o Ekur, em Nipur. Sob a presidência de
An, os deuses então tomavam decisões a respeito do governo do mundo.
Malfeitores, humanos ou divinos, eram julgados e sentenciados. A assembléia
podia depor reis e decretar a transferência de poder de um reino para outro, e até
um dos deuses principais podia ser temporariamente banido. Os deuses também
podiam, como veremos, tomar medidas de emergência para evitar que eles
próprios fossem destruídos.


Capítulo 3

Embora invisíveis para o olho humano, os deuses eram imaginados,


conforme se pode ver por suas estátuas, como possuindo forma humana e
também necessidades humanas. Muito antes de existir qualquer ser humano, eles
habitavam o mundo que haviam modelado. Os deuses, e não os seres humanos,
haviam inventado a irrigação e a agricultura, e o fizeram para satisfazer suas
próprias exigências. Além disso, no início, todos os deuses, com exceção dos
quatro principais, haviam trabalhado na construção e na manutenção dos canais,
na semeadura e na colheita. A humanidade só foi criada por An porque esses
deuses se cansaram de trabalho tão árduo e depuseram as ferramentas. Todos
reconheciam que uma função essencial da humanidade era desobrigar os deuses
de suas tarefas. Isso determinava a atitude servil dos mesopotâmicos em relação
a seus deuses.

Por volta do terceiro milênio, a Suméria — uma região menor do que a


Bélgica — continha cerca de uma dúzia de cidades-Estado. Cada uma delas
tinha como patrono um deus, ao qual havia sido destinada quando da criação da
humanidade e ao qual ela pertencera desde então. Esse deus tinha seu templo na
cidade e ali “vivia” — em uma imagem feita de madeira preciosa e vestida com
um traje feito de lâminas de ouro —, de maneira muito semelhante a um
governante humano em seu palácio. Ali os sacerdotes o serviam como os
cortesões serviriam um governante humano — com um intrincado ritual em que
cada gesto seguia estritamente as prescrições tradicionais.

Assim como as divindades egípcias, as mesopotâmicas precisavam ser


alimentadas. E o mesmo se dava com seus consortes e filhos, que em geral
tinham seus próprios templos, e com os sacerdotes e artesãos vinculados ao
templo. Já no terceiro milênio, as oferendas de alimentos e bebidas eram
bastante generosas. Em épocas posteriores, tornou-se enorme a quantidade de
alimentos destinada, dia após dia, aos templos de cada cidade: touros e javalis,
incontáveis ovelhas e aves, centenas de quilos de pão, dezenas de barris de vinho
e cerveja. Embora tudo isso significasse um fardo para a população, não há
motivo para pensar que ela se ressentia — pois de que outra maneira os deuses
teriam força para defender a cidade-Estado, e depois a nação-Estado, situada no
centro do mundo ordenado?

Tal como no Egito, a ordem do mundo era percebida como algo


essencialmente imutável, mas, enquanto os egípcios consideravam que essa
ordem havia sido determinada “no início dos tempos”, na Mesopotâmia ela
estava determinada por protótipos celestes. Desse modo, um templo
mesopotâmico era uma réplica, não de um outeiro primordial, mas de um templo
celeste — uma contrapartida terrena da moradia sublime do deus. Enquanto tal,
era um vínculo entre o céu e a terra, uma afirmação do relacionamento
duradouro entre as atividades terrenas e o mundo dos deuses.

Não havia maior glória para um rei do que receber de um deus um pedido
para que reconstruísse seu templo arruinado, pois ao fazer isso ele estava
reafirmando a ordem estabelecida no céu.6 Todavia, o templo precisava ser
erguido exatamente no mesmo local, seguindo exatamente o mesmo projeto,
exatamente com os mesmos materiais e a mesma ornamentação do templo
anterior. Quando o último de todos os reis mesopotâmicos, Nabu-na’id da
Babilônia (555-39), estava reconstruindo um templo do deus-sol, este mesmo
indicou-lhe os alicerces que haviam sido colocados por um dos primeiros reis
sumérios e que ninguém havia visto desde então. Este templo primitivo, por sua
vez, era uma cópia exata de outro templo ainda mais antigo, erigido pelos
próprios deuses na época da criação do mundo, quando ainda não havia nenhum
ser humano. O protótipo deste templo primordial estava preservado no céu;
assim, ao reconstruir o templo, o rei seguia um modelo supraterreno que havia
existido, imutável, desde o começo de tudo.

Era dessa maneira que cada rei via sua própria obra — desde o grande
governante do primeiro império babilónico, Hamurabi (1792-50), até o assírio
Senaqueribe (704-681), o qual, ao reconstruir um templo, alegou que
desenterrara “fundações cuja estrutura havia sido traçada ali para toda a
eternidade na escrita do céu”. E isso não era tudo: durante a reconstrução, os
deuses não apenas prescreviam as medidas do templo, como determinavam os
próprios gestos do rei, de modo que reproduzissem os gestos que eles mesmos
haviam feito quando, no início, haviam erguido o primeiro exemplar do
protótipo celeste.


Capítulo 4

A guerra e as ameaças de guerra, que levaram à substituição das aldeias


desprotegidas por cidades fortificadas, também estimularam o desenvolvimento
da monarquia. E, se no início um rei era eleito para enfrentar alguma emergência
específica, abdicando de sua autoridade quando a situação se resolvia, isto
deixou de ocorrer quando a guerra se tornou corriqueira. A partir do segundo
milênio, a monarquia permanente foi a forma de governo mais comum entre os
Estados mesopotâmicos, fossem eles grandes ou pequenos, sumérios ou acádios.
Ao mesmo tempo, o rei tornou-se uma figura majestosa, despertando temor e
reverência em seus súditos. Uma aura sobrenatural, até então sempre atribuída às
divindades, passou a circundá-lo.

Embora os reis mesopotâmicos raramente fossem divinizados, eram pelo


menos escolhidos pelos deuses.7 A realeza, que existia independentemente de
qualquer rei, era originária do céu. Foi o deus An quem enviou a realeza e sua
insígnia à terra logo após a criação da humanidade, e pelo melhor dos motivos:
os seres humanos revelaram-se tão estúpidos que necessitavam de governantes
para que pudessem servir aos deuses da maneira apropriada.

Como soberano celeste, An convocava todo rei novo, presenteava-o com o


reino e a insígnia, instalava-o em seu palácio e dava-lhe a “palavra” de An. E
quando este foi em grande parte substituído por Enlil, e depois por Marduk e
Ashur, o relacionamento entre deus e rei permaneceu inalterado. Os reis da
Assíria, com milhões de súditos, governavam na condição de representantes e
instrumentos do deus Ashur, assim como os soberanos das primeiras cidades-
Estado sumérias haviam governado seus minúsculos territórios em nome dos
deuses padroeiros de suas cidades.

Um Estado mesopotâmico era a suprema expressão na terra da ordem


estabelecida pelos deuses e a tarefa do rei era garantir que, em seus domínios,
essa ordem fosse mantida. Isto valia tanto para o rei de uma cidade-Estado
suméria como para o soberano de um império assírio ou babilónico. Quando
Gudea, rei de Lagash, foi instruído por um oráculo a reconstruir o templo da
cidade, tal instrução veio do deus tutelar de Lagash, o qual por sua vez a
recebera do próprio Enlil. Do mesmo modo, um monarca assírio consultaria o
deus nacional Ashur ou então o deus-sol Shamash antes de lançar uma campanha
militar ou até quando precisava nomear um funcionário graduado. As inscrições
históricas assírias — que relacionam os templos erigidos por determinado rei, as
obras de irrigação que empreendeu e as vitórias que conquistou — eram todas
dirigidas para os olhos divinos e não para os olhos humanos. E por este motivo
que eram colocadas em frente à estátua do deus ou enterradas em seu templo. O
objetivo de cada inscrição era mostrar ao deus o quanto o rei havia contribuído
para o fortalecimento do mundo ordenado.

O rei também representava seus súditos perante os deuses. Longe de ser um


monarca absoluto e despótico, estava limitado por inúmeros deveres religiosos
— no cumprimento dos quais era supervisionado por uma inflexível classe
sacerdotal. A fim de manter os deuses bem-dispostos, o rei precisava orar, jejuar,
submeter-se a purificações rituais e seguir uma grande quantidade de prescrições
mágico-religiosas. Cabia a ele determinar a quantidade de oferendas religiosas
feitas diariamente em cada templo e cuidar para que cada templo tivesse o
suficiente, em terras e rendas, para assegurar tais oferendas. Também era de sua
responsabilidade a construção de novos templos e a reforma dos decadentes. Em
troca do cumprimento consciencioso de todas essas obrigações, esperava-se que
os deuses concedessem fertilidade à terra. Mesmo aqui o rei era implicado. Os
deuses podiam enviar chuvas abundantes, mas cabia ao rei assegurar que a
irrigação fosse feita de maneira eficiente e que o sistema de canais funcionasse a
contento.

Sob todos os aspectos, o bem-estar do reino dependia, portanto, do


soberano. Este era mencionado como “aquele que mantém a vida do país”. A
presença no trono de um rei devoto era vista como garantia de que o ciclo das
estações prosseguiria sem tropeços, de que as safras seriam regulares e
abundantes, e de que as gerações se sucederiam sem interrupção. Mas sempre
eram os deuses que prescreviam os deveres do rei e lhe concediam seus poderes.
Assim Lipit-Eshtar (1934-24) fora escolhido pelos deuses An, Enlil e Ninlil para
garantir que haveria abundância de cereais, assim Enlil nomeou Iddin-Dagan
(1974-54) para assegurar que as pessoas teriam toda a comida e água doce de
que necessitavam.8 Um epíteto que vários reis — sumérios, babilônios, assírios
— adotaram para si era “lavrador”. Este era um modo de afirmar que o reino
devia sua fertilidade à força mágica com que os deuses haviam recompensado a
devoção dele. Quanto mais zeloso fosse um rei no serviço aos deuses, maior
seria sua eficácia como “lavrador”.

Tal como no Egito, o rei também chamava a si mesmo de “pastor”: cuidava


do povo em nome dos deuses, os verdadeiros senhores. E o primeiro dever do
pastor real era fazer com que a justiça prevalecesse na terra. Dizer que os
mesopotâmicos respeitavam profundamente a lei seria uma enorme atenuação da
realidade — para eles a lei era uma criação divina, algo revelado ao rei pelos
deuses, de modo que este pudesse promulgá-la em nome deles. Aqui o papel de
Utu/Shamash, deus do sol e da justiça, era fundamental. O predecessor de Lipit-
Eshtar, Ishme-Dagan (1953-35), tratou muito bem dessa questão:
Utu colocou o que é certo, a palavra bem fundamentada, em minha boca, para proferir
julgamento, tomar uma decisão, conduzir o povo de Imodo correto, para colocar a justiça
antes de tudo, para dar a orientação certa aos bons, para destruir os maus [...] de modo que o
poderoso não possa fazer apenas sua vontade [...] para destruir o mal, para fazer crescer o
que é certo [...]9

A associação entre o monarca governante e o deus-sol podia ser bem ampla.


Os hinos reais descrevem Ur-Nammu (2113-96) como predestinado pelo deus
Enlil para governar a terra tal qual o próprio Utu, enquanto Lipit-Eshtar é
descrito avançando em seu esplendor da mesma maneira que o deus-sol.10 No
prólogo de seu famoso código de leis, Hamurabi compara-se ao sol exatamente
por causa de sua preocupação com a justiça:
Anum e Enlil me nomearam [...] para fazer com que a justiça prevaleça na terra, para destruir
o perverso e o mau, para que o forte não possa oprimir o fraco para que eu me erga como o
sol sobre o [povo de] cabeça negra e para que ilumine a terra.11

Na famosa esteia de Hamurabi, o rei é mostrado de pé em frente ao trono de


Shamash, de quem recebe as leis.

Claramente, aquilo que era designado por kettu e mesharu, e supervisionado


por Utu/Shamash, abrangia muito do que hoje seria chamado de “justiça social”.
Inundações, secas e pragas sempre obrigavam os camponeses a recorrer a
empréstimos com juros elevados; e de meados do terceiro milênio em diante, a
maioria deles estava muito endividada, o que levou muitos a venderem a si
mesmos como escravos. Vários reis, preocupados em evitar a turbulência social
e a instabilidade política, promulgaram uma anistia desses débitos — e também
isto foi apresentado como sendo a intenção de Shamash. Na verdade, porém, a
preocupação de um governante com a justiça compreendia supostamente tudo o
que se referia ao bem-estar da população. O epílogo do código de Hamurabi
apresenta esse ideal:
Eu extirpei o inimigo acima e embaixo; Eu dei um fim à guerra; Eu promovi o bem-estar da
terra;

Eu fiz com que as pessoas descansassem em moradas agradáveis; Eu não permiti que ninguém
as aterrorizasse. Os grandes deuses me convocaram, para que me tomasse o benevolente
pastor cujo cetro é honrado; Minha sombra benigna estende-se sobre a cidade. Em meu peito
eu trago o povo da terra da Suméria e da Acádia; Ele prosperou sob minha proteção; Eu os
governei em paz; Eu os abriguei sob minha força.12


Capítulo 5

Tal como os egípcios, e na verdade como todos os povos do antigo Oriente


Próximo, os mesopotâmicos estavam convencidos de que a ordem do mundo
existia apenas para o benefício deles próprios e de seus deuses. E, pelo menos
desde o terceiro milênio, considerava-se que a guerra era uma das maneiras mais
eficazes de fortalecer essa ordem. Não era por acaso que aqueles veículos da
vontade e da atividade divinas, os mes, incluíam a rebelião, o conflito, o fogo
devorador, a destruição de cidades. Ao defender seus domínios e ao conquistar
novos territórios, o rei não estava apenas cumprindo a função original e mais
básica da realeza, como também estava obedecendo à vontade dos deuses. Em
consequência, podia ter a esperança de contar com a ajuda deles: quando
desencadeava uma campanha militar, era sempre “com a força e o poder dos
grandes deuses”. Uma fórmula tradicional de homenagem ao governante da
cidade suméria de Uruk apresenta de maneira explícita esta conexão:
O rompedor de cabeças, o amado príncipe de An, Ó! Como ele inspirou medo depois que
chegou! As tropas inimigas sumiram, dispersando-se na retaguarda, seus homens incapazes de
enfrentá-lo.13

A promessa que a deusa da guerra fez ao rei assírio Eshar-haddon, cerca de


dois mil anos depois, expressa a mesma convicção: “Eu sou Ishtar de Arbela. Eu
esfolarei os teus inimigos e os darei a ti”.14

A Ishtar acádia era a mesma deusa que os sumérios conheciam por Inana.
Era a irmã de Utu/Shamash — o que é bastante compreensível, pois a justiça no
reino e a vitória sobre os inimigos estrangeiros eram ambas manifestações
importantes da ordem do mundo. Ishtar controlava os temporais e a chuva — e
podia reter a chuva a fim de obrigar uma cidade a se submeter a outra favorecida
por ela. Também era capaz de descer até a terra em forma de tempestade, com
trovões que faziam tremer a terra e raios que incendiavam as plantações. Era
normal que se imaginasse um deus da tempestade participando da batalha nas
nuvens: este era o caso do deus da tempestade Ninurta, assim como o de Ishtar.
A batalha era chamada de “dança de Ishtar” e a própria deusa se vangloriava:
Quando me ergo no meio da batalha, Eu sou o coração da batalha, o braço dos
guerreiros. Meu pai [An] deu-me os céus, deu-me a terra, Eu sou Inana! A soberania ele me
deu, a realeza ele me deu, o fragor da batalha ele me deu, o ataque ele me deu, a tempestade
ele me deu, o furacão ele me deu! 15
Ao longo de toda a história da Mesopotâmia, os reis esperaram e
comprovaram o apoio divino na guerra, e da maneira mais imediata e concreta:
não era só Inana/Ishtar que participava da batalha, mas também os deuses
tutelares. Uma esteia erigida para comemorar a vitória de um rei da cidade
suméria de Lagash contra a cidade vizinha de Umma mostra o deus tutelar de
Lagash, Ningirsu, lançando sua rede sobre os inimigos da cidade e rompendo-
lhes o crânio com sua maça. Esta batalha teve lugar logo após 2500 a.C. Um
baixo-relevo feito quase dois mil anos depois mostra o deus nacional da Assíria,
Ashur, pairando no ar sobre o rei enquanto este entra na batalha, empunhando
seu arco exatamente na mesma posição em que o rei o faz. E, depois da vitória, o
rei atribuiria o êxito aos deuses e não ao comando dele mesmo:
O temor dos grandes deuses, meus senhores, tomou conta deles, eles viram minhas poderosas
tropas de assalto e ficaram enlouquecidos [de terror]. Ishtar, rainha do ataque e do combate
corpo a corpo, que ama meus sacerdotes, postou-se ao meu lado, quebrou os arcos deles e
dispersou sua formação de batalha, de modo que todos disseram “Este é o nosso rei!”. Ao seu
sublime comando, eles se aproximaram de mim, um após o outro, e se regozijaram como
ovelhas, e me trataram como senhor deles.16

Assim, a cada vitória os deuses e o rei reafirmavam e fortaleciam juntos a


ordem do mundo.
Capítulo 6

Por mais obstinadamente que os mesopotâmicos se agarrassem à crença em


uma ordem em essência imutável e estabelecida pelos deuses, eles não podiam
deixar de reconhecer que, na prática, a vida no interior dessa ordem era bastante
insegura. Sabiam muito bem que no mundo atuavam forças caóticas, que sempre
havia sido assim e sempre seria. Essa consciência permeia grande parte da
mitologia mesopotâmica de todos os períodos.

Há um tipo de mito, que se convencionou chamar de “mito do combate”,


que conta como um deus defendeu o mundo ordenado contra os ataques do
caos.17 Na Mesopotâmia, os mais antigos desses mitos são de origem suméria:
aparentemente pertencem a uma tradição que estava bem estabelecida já no
terceiro milênio.

O herói dos mitos sumérios em geral é Ninurta, deus da tempestade e da


inundação da primavera. Era o filho favorito de Enlil e o protetor de toda a
Suméria, aquele que lhe garantia prosperidade e harmonia social. Acima de tudo,
era um poderoso guerreiro — tão poderoso que ao chegar, inteiramente armado,
em sua carruagem ornamentada com troféus de batalha, era capaz de causar
pânico entre os próprios deuses reunidos. E também foi capaz de induzir seu pai
Enlil a conceder-lhe um culto no próprio templo deste, o Ekur, em Nipur.

Um desses mitos, conhecido sobretudo em sua versão acádia, fala de um


combate entre Ninurta e Anzu.18 Este monstro era um pássaro, provavelmente
uma águia ou um abutre de enormes dimensões. Possuía poderes sobrenaturais e
pertencia ao mundo dos deuses. No início parece ter sido uma criatura benigna,
vivendo em bons termos com os deuses. Porém, por volta de 2000 a.C, adquiriu
um aspecto sinistro, rebelando-se contra os deuses e tornando-se totalmente
maligno, um demônio de fato. Anzu sempre foi associado a Ninurta, como seu
parente e animal heráldico. Depois tornou-se seu adversário, em uma luta pelo
poder que decidiria o destino do mundo.

Na Mesopotâmia, o poder régio era considerado uma força autônoma,


ligada ao rei mas também presente em certos objetos sem os quais o soberano
era impotente: não apenas a coroa, o cetro e a túnica real, mas também o
“registro das sentenças” e o “registro dos destinos”. Um rei mesopotâmico tinha
o direito de decidir o “destino” de seus súditos — ou seja, quais seriam suas
carreiras e suas atividades — e essas decisões eram difundidas, sob a forma de
decretos escritos, por todo o reino. Acreditava-se que um resumo desses decretos
também estivesse incorporado em algum registro, mas na realidade não havia
nenhum registro de tal espécie.

Tão carregadas de poder eram as insígnias reais, inclusive o registro fictício


dos destinos, que se acreditava que um rei destituído delas se tornaria uma
pessoa comum, sem importância política ou poder coercitivo. Por sua vez, os
funcionários aos quais o rei delegava autoridade dependiam da presença deste à
frente do governo: com o desaparecimento do rei, toda á autoridade era anulada
e a maquinaria do reino deixava de funcionar.

Ora, tudo isso também ocorria no domínio cósmico e celestial. Enlil


também havia delegado poder aos seus subordinados, os deuses menores. Estes
cuidavam do bom funcionamento dos vários aspectos do mundo — mas só
podiam fazê-lo enquanto Enlil continuasse de posse de suas insígnias, inclusive
do registro dos destinos. Porém, havia um período em que Enlil necessariamente
se despojava delas: quando tomava seu banho matinal. Lamentavelmente, o
auxiliar no qual Enlil mais confiava, seu íntimo e confidente, revelou-se
traiçoeiro — como costumava ocorrer também nas cortes humanas. Este auxiliar
era o pássaro Anzu. Sempre ao lado de Enlil enquanto este presidia
majestosamente o mundo, Anzu, tomado pela inveja e pela ambição, começou a
se perguntar por que ele próprio não poderia se tomar o soberano de todos os
deuses. E certa manhã, quando Enlil estava sem as insígnias, Anzu apropriou-se
do registro dos destinos e fugiu para um esconderijo nas montanhas.
Imediatamente tudo se imobilizou, o mundo mergulhou em uma inércia e um
silêncio absolutos.

Os deuses, incapazes de desempenhar suas funções normais, reuniram-se


em assembléia; isso também era uma transposição do que costumava ocorrer na
terra, em situações similares de emergência. O presidente da assembléia não era
o incapacitado Enlil, mas Anu, o ancestral de todos os deuses. Decidiu-se então
que um dos deuses seria escolhido para derrotar Anzu. recuperar o registro dos
destinos e, com isso, recolocar o mundo em seu eixo. Depois de três deuses
terem recusado a missão, alegando ser esta impossível, o sábio e astucioso Ea
(Enki) convenceu a grande deusa, mãe de todos os deuses, a fazer com que seu
favorito, Ninurta, tomasse a si o encargo. Primeiro Ninurta tentou sobrepujar
Anzu envolvendo-o em “sete ventos”, como se fosse uma rede; mas Anzu, por
estar de posse do registro dos destinos, escapou todas as vezes. De novo Ea foi
obrigado a intervir. Seguindo seus conselhos, Ninurta conseguiu cortar as penas
de Anzu e trespassá-lo com flechas; em seguida, cortou-lhe o pescoço. Não
chegou até nós o final do poema, mas cabe supor que a fonte de poder foi
restituída a Enlil e que os deuses menores retomaram suas atividades. Quanto a
Ninurta, sua fama correu o mundo.

Outros mitos nos contam de que modo a ordem do mundo foi ameaçada por
monstros saídos do abzu subterrâneo, eles próprios dotados de toda a força
destrutiva das águas do caos. Labu era um gigantesco dragão marinho, com 480
quilômetros de comprimento e 48 de altura. De tempos em tempos, saía do mar
para devastar a terra, dizimando pessoas e animais, aterrorizando até mesmo os
deuses. Aqui também o primeiro deus escolhido para enfrentar o monstro
recusou-se a lutar. No final, o deus da tempestade, cavalgando as nuvens,
conseguiu destruir o dragão; e parece que foi recompensado com a soberania
sobre os deuses.

Em seguida havia o demônio Asakku, que vinha à terra em uma nuvem ou


no vento do norte: um espírito de nulidade, causador de enfermidades, destruidor
de animais recém-nascidos e ocasionador de tempestades de areia.19 Em sua luta
com Asakku, Ninurta foi derrotado no início, mas em seguida, aconselhado por
seu pai Enlil, lançou a inundação contra o demônio e, enquanto este estava
submerso, desferiu-lhe um golpe fatal. Em seguida, a própria inundação trouxe
destruição à terra. Os deuses responsáveis pela irrigação e pela agricultura foram
levados ao desespero. E Ninurta outra vez entrou em ação: empilhou grande
quantidade de rochas, formando um dique diante da Suméria. Quanto à
inundação que já cobrira a terra, Ninurta a canalizou para o Tigre, com
resultados admiráveis:
Contemplem agora tudo o que há na terra Regozijem-se com Ninurta, o rei da terra; Os
campos proporcionaram muitos cereais, A colheita no palmar e no vinhedo foi abundante, E
amontoada nos celeiros e colinas.20

Esses mitos sumérios de uma luta entre deuses e monstros do caos são os
primeiros exemplos —já eram conhecidos antes de 2000 a.C. — de uma tradição
que iria perdurar por milênios. Tratava-se também de uma tradição muito
difundida: como veremos nos capítulos posteriores, era conhecida dos hindus
védicos e, quase certamente, também dos iranianos. Na Mesopotâmia. receberia
sua expressão mais famosa na Babilônia, quando já possuía uma história de mais
de mil anos.

Capítulo 7

O famoso mito, ou epopéia, babilónico Enuma elish (assim chamado por


causa de suas palavras iniciais, que significam “Quando, no alto”) conta os feitos
do deus Marduk.21 As façanhas de Ninurta sem dúvida eram conhecidas de seu
autor, ou autores, mas a história que ele relata tem uma dimensão muito mais
majestosa.

Marduk sempre foi o deus tutelar da Babilônia, e já no período inicial da


supremacia babilónica Hamurabi o havia promovido à condição de deus
supremo. O Enuma elish reiterou esta dignidade, com idêntica intenção política,
no segundo período de supremacia babilónica. E, no início do primeiro milênio,
quando a Assíria substituiu a Babilônia como potência dominante, uma nova
versão da história foi composta, tendo Ashur como herói.

O Enuma elish apresenta um mito da criação muito mais elaborado do que a


cosmogonia tradicional. A obra começa com um relato de como eram as coisas
no início. Nem o céu nem a terra existiam — havia apenas um caos aquoso, no
qual a água doce subterrânea, Apsu (imaginado como sendo masculino), estava
misturada com a água salgada do mar, Tiamat (imaginada como feminina). No
começo não havia nenhum deus, mas então Apsu gerou dois deles, nascidos de
Tiamat. Gerações de deuses se seguiram, habitando o vazio informe. A
configuração do mundo ainda pertencia ao futuro.

Porém, assim que foram criados, os deuses introduziram um novo princípio


no mundo — o movimento. Apsu e Tiamat representavam o repouso, a inércia;
extraordinariamente velhos, queriam apenas ser deixados em paz. Os jovens
deuses, ao contrário, eram ativos, agitados. Quando se reuniam para dançar,
sempre incomodavam Apsu. Este queixou-se a Tiamat — afirmando que tal
comportamento atrapalhava seu descanso durante o dia e seu sono durante a
noite — e declarou que pretendia despedaçar todos os deuses.

Tiamat, na condição de mãe, não podia evidentemente consentir na


destruição de sua prole. Mas Apsu continuou a tramar a destruição deles, que
acabaram por saber desses planos. E foram tomados pelo pânico — até que Ea
encontrou uma solução: por meio de uma fórmula mágica, fez Apsu cair no
sono. Em seguida, despojou-o da coroa e do manto real, matou-o e estabeleceu
sua própria residência acima dele. Desse modo, as águas subterrâneas foram
dominadas — como também Ninurta o fizera —, enquanto Ea erigiu seu templo
em Eridu, sobre as águas de uma laguna.

Nascido em Eridu, Marduk era filho de Ea. Uma esplêndida criatura desde o
nascimento, com força e sabedoria sobrenaturais, ele é o verdadeiro herói do
mito. Suas aventuras começaram quando seu avô Anu criou os ventos
tempestuosos para que brincasse. Mas, com isso, agora outros deuses é que não
conseguiam dormir. Esses deuses, espíritos afins ao de Apsu, foram bem-
sucedidos ali onde Apsu fracassara: convenceram a própria Tiamat a tomar
alguma medida contra o principal grupo de deuses, aliados de Anu, Ea e Marduk
— os quais afinal eram coletivamente responsáveis por ela ter perdido seu
consorte Apsu.

Tiamat preparou-se para a guerra e gerou as tropas que iriam lutar:


serpentes monstruosas com presas afiadas e corpos repletos de veneno. Chegou
mesmo a dotar esses seres repulsivos de uma aura atemorizante e quase divina, a
fim de que todos os que os contemplassem morressem de terror. E acrescentou
reforços: víboras, dragões, leões enormes, cães enraivecidos, poderosos
demônios da tempestade, bisões, criaturas voadoras, homens-escorpião — todos
letais e ávidos para entrar em combate. Na liderança dessa hoste, Tiamat colocou
seu segundo marido, o deus Kingu, e para garantir a vitória confiou-lhe o
supremo instrumento de poder: o registro dos destinos.

Quando souberam desses preparativos, os deuses mais uma vez ficaram


apavorados. Primeiro Ea, a personificação da sabedoria, e depois Anu, a
personificação da autoridade, recuaram aterrorizados à vista de Tiamat. Por fim,
os deuses recorreram ao jovem Marduk, que concordou em enfrentar Tiamat,
mas com uma condição: a autoridade de todos os deuses deveria ser transferida
inteiramente para ele. Em resumo, se vencesse seria entronizado rei de todos os
deuses. Tal condição foi aceita e Marduk recebeu todos os direitos que
acompanhavam a realeza: o poder de promover e rebaixar deuses conforme
achasse necessário, autoridade para travar guerras, o poder de matar ou poupar
prisioneiros de guerra.

Paramentado com a insígnia real e armado de arco, flechas, maça e rede,


Marduk encheu-se de um furor ardente e montou em sua carruagem de assalto.
Como um temporal, precedido de relâmpagos e seguido por ventos
tempestuosos, enfrentou Tiamat e seus aliados. Kingu e seu exército foram
imediatamente tomados de terror e apenas Tiamat se manteve firme. Ela e
Marduk se engalfinharam. Todavia, quando Tiamat abriu a boca para engoli-lo,
Marduk lançou seu “vento maléfico” contra ela, e este escancarou-lhe a boca e
dilatou-lhe o ventre. Em seguida, disparou por sua garganta uma flecha que lhe
rasgou as entranhas e fez em pedaços seu coração.

Com a morte de Tiamat, seus seguidores foram capturados, desarmados e


feitos prisioneiros, enquanto Kingu foi despojado do registro dos destinos. Agora
o jovem deus estava livre para empregar de maneira construtiva seu poder.
Subindo na carcaça de Tiamat, ele a dividiu em duas partes, “como um
molusco”. De uma delas ele fez o céu e o fixou: para impedir que a água de
Tiamat escapasse, instalou traves vigiadas por guardas. No céu recém-criado, em
um ponto diretamente oposto à morada que seu pai havia construído sobre Apsu,
Marduk ergueu para si uma réplica exata do palácio paterno. Em seguida, fez as
constelações e organizou o calendário. A lua e o sol receberam instruções sobre
como se conduzir. Por fim, Marduk criou a terra, usando os fluidos do corpo de
Tiamat para suprir os rios da Mesopotâmia.

Todavia, se o mito de Marduk, tal como relatado no Enuma elish, é um mito


cosmogônico, isto necessariamente não é verdadeiro para o mito em sua forma
original: os sacerdotes de Marduk podem muito bem ter alçado seu deus ao
status de criador, para mostrar que ele merecia ser o deus padroeiro de uma
Babilônia recém-elevada a uma posição de domínio. Seja como for, é certo que o
mito do combate nem sempre teve implicações cosmogônicas. O deus
desconhecido que derrotou o dragão Labu, ou Ninurta ao matar o pássaro Anzu,
estavam claramente atuando em um mundo já existente — e o mesmo ocorria,
como veremos, com todas as façanhas de Ba’al, o deus cananeu da tempestade.
Na verdade, o mito do combate enquanto tal estava mais interessado em mostrar
como o cosmos havia sido preservado, dadas as ameaças sempre recorrentes, do
que em explicar como veio a existir. Isso também vale para o Enuma elish.

A fim de que pudesse preservar o mundo, Marduk foi nomeado rei perpétuo
“dos deuses do céu e da terra”. E ao jovem deus foi atribuída uma nova função:
com Tiamat fora do caminho e o universo criado, ele ficou encarregado da tarefa
de administrá-lo em benefício dos deuses, os quais em troca lhe prestariam
obediência. O primeiro pedido de Marduk foi que os deuses lhe construíssem um
palácio que servisse de quartel-general administrativo real — e que também
poderia servir, quando necessário, como residência de todos os deuses. Esse
“palácio” era, evidentemente, o templo de Marduk na Babilônia: Esagila,
imponente símbolo da ordem e da permanência, conhecido pelos babilónicos
como “o palácio do céu e da terra”, a sede da realeza.

Os deuses que se haviam aliado a Tiamat tiveram suas vidas poupadas e


foram postos a trabalhar na construção de Esagila; no entanto, comovido com
suas demonstrações de gratidão e fidelidade, Marduk logo decidiu criar novos
seres para levar adiante a obra. Kingu, que desempenhara papel tão importante
na rebelião, foi condenado e executado; a partir de seu sangue, Ea, sob as ordens
de Marduk, criou a humanidade (o Enuma elish não é a única obra
mesopotâmica que afirma que a humanidade partilha a substância de um deus
rebelde...). Agora todos os deuses podiam se limitar a tarefas menos estafantes:
um grupo foi encarregado de ajudar na administração do céu, a outro coube a
superintendência das questões terrenas.

Na inauguração de seu quartel-general, Marduk convidou todos os deuses


para um banquete. Depois disso, os grandes deuses completaram os arranjos para
o bom funcionamento do mundo. Os decretos ou “destinos” determinados pela
assembléia receberam sua forma final. Marduk foi instalado no trono real e todos
os deuses prestaram-lhe homenagem e juraram lealdade. O mais antigo deles,
Anshar, o pai de Anu, assim definiu o papel do novo rei:
Insuperável seja seu domínio, que ele não tenha rivais, que ele seja o pastor do povo de cabeça
negra e que falem de seus feitos até o final dos tempos. Que ele determine grandes porções de
alimento para seus ancestrais, que ele cuide do sustento deles, tome conta de seus santuários
[...].22

Desse modo, a autoridade real de Marduk iria assegurar o bem-estar dos


mesopotâmicos e dos seus deuses. E a história termina com os deuses recitando
os cinqüenta nomes de Marduk, cada um deles glorificando seu poder.

O Enuma elish é uma obra complexa, composta para servir a muitos


objetivos. Não só exalta a Babilônia e seu deus padroeiro, mas explica como foi
dominado o caos primordial, como foi criado o mundo ordenado, como o
domínio real foi estabelecido de modo a garantir a manutenção do cosmos. E
todas essas conquistas são mostradas como resultado da energia e da iniciativa
juvenis. É o vigoroso e jovem deus da tempestade que coloca tudo em
movimento e assegura que esse movimento — constante e controlado —
prossiga ininterrupto. Isto teria sido impossível sem a morte, não dos “pais” —
pois Marduk demonstra um respeito inabalável tanto por seu pai como pelo avô
e pelo bisavô —, mas do ancestral remoto e anterior aos deuses, Tiamat. Assim
como Apsu antes dela, Tiamat precisa ser morta, pois representa a inércia, o peso
morto do passado: se esses dois tivessem sido vitoriosos, os deuses
permaneceriam para sempre inativos, nada jamais iria mudar, não haveria
nenhuma diferenciação e, na verdade, nada aconteceria.

Marduk personifica não apenas o dinamismo, mas a inteligência criativa.


Ao perdoar os deuses que se haviam aliado a Tiamat, ao proporcionar regalias a
todos os deuses e atribuir-lhes tarefas administrativas bem definidas, ele criou
condições para uma ordem harmoniosa e durável no mundo. Assim ordenado, o
mundo assemelhava-se a um Estado monárquico bem dirigido, próspero e
pacífico.

No entanto, o mundo nunca foi totalmente seguro. Embora Tiamat tivesse


sido morta havia muito, muito tempo, e suas águas estivessem supostamente
contidas pelas traves celestes, de algum modo ela continuava a existir, como
ameaça constante à ordem do mundo. Enquanto mar, Tiamat continuava
presente, cobrindo a maior parte da superfície conhecida da terra. E, mais
importante, Tiamat continuava presente como a suprema personificação do caos.
Como tal, ela tinha de ser periodicamente repelida e de novo destruída. Em sua
conclusão, o Enuma elish traz uma prece para que as inundações de Tiamat
fossem mantidas à distância por mais um ano. Este também era um dos objetivos
da festa de ano-novo conhecida como akitu. Tratava-se de um antigo festival ao
qual, no decorrer dos séculos, foram incorporados inúmeros elementos de
diversos ritos e cultos. No primeiro milênio, o akitu era celebrado em várias
cidades e em meses diferentes — na Babilônia e em Asshur no equinócio da
primavera —, mas sempre representava um período em que os deuses
determinavam os destinos para o ano seguinte.

No nono dos doze dias do festival, as estátuas dos deuses eram carregadas
em procissão até um templo especial, chamado de “casa de akitu” erguido fora
dos limites urbanos. Na Assíria, onde também se celebrava o akitu, o rei
Senaqueribe mandou retratar a cena nas portas de cobre do templo e gravar ali
sua interpretação: “uma figura de Ashur, empunhando o arco sobre sua
carruagem, prestes a lutar contra Tiamat [...] [além dos] deuses que marcham
adiante e os deuses que marcham atrás dele [...] [e] Tiamat e as criaturas [que
estavam] nela”.23 Presume-se que, na casa de akitu, Tiamat era representada por
uma plataforma; quando a procissão ali chegava com a estátua de Marduk, esta
era colocada sobre a plataforma, de modo a simbolizar sua vitória sobre Tiamat,
enquanto as estátuas dos outros deuses ofereciam congratulações e presentes.24
No decorrer do festival, a destruição de Tiamat também era simbolizada por atos
como o da quebra de um cântaro ou a bissecção de uma pomba. O significado de
tudo isso era explicitado quando um sacerdote, recluso na casa de akitu, recitava
o Emana elish perante a estátua do deus-herói: sob os auspícios de Marduk,
reafirmava-se a ordem no universo.

No festival do ano-novo, o anseio dos mesopotâmicos por segurança


encontrava uma comovente expressão. Enfrentando um clima que a qualquer
momento poderia mergulhar toda a região na fome, os mesopotâmicos sabiam
que as estações continuariam a se suceder, que a lua, o sol e as estrelas
continuariam em seu curso, que a vida só prosseguiria se convencessem os
deuses a lhes conceder uma decisão favorável. Perante as ameaças sempre
recorrentes de invasão e conquista, eles sabiam que dependiam por completo da
boa vontade e da ajuda de Marduk. Por intermédio do akitu, encontravam
resposta as esperanças e os temores de todos os mesopotâmicos; a natureza era
renovada, a sociedade consolidada, a angústia aquietada e o caos afastado por
mais um ano.25


Capítulo 8

Do ponto de vista humano, até mesmo os deuses podiam ser fonte de


insegurança. Como servos dos deuses, os mesopotâmicos não eram tão ingênuos
a ponto de confiar na boa vontade de seus senhores. Que os deuses podiam agir
de maneira impiedosa e até ser cruéis e destrutivos de propósito — isto já se
tornara óbvio na época das cidades-Estado sumérias, e assim continuou por todo
o decorrer da civilização mesopotâmica.

Essas pessoas sabiam muito bem que os grandes deuses não eram apenas
todo-poderosos, mas também inescrutáveis:
Uma nuvem de tempestade pairando no horizonte seu coração inescrutável, Sua palavra, uma
nuvem de tempestade pairando no horizonte, seu coração inescrutável; a palavra do grande
An, uma nuvem de tempestade pairando no horizonte, a palavra de Enlil, urna nuvem de
tempestade pairando no horizonte, seu coração inescrutável[...]26

E ainda:
Quem conhece a vontade dos deuses celestes? Quem penetra os desígnios dos deuses
subterrâneos? Onde os mortais aprenderam o caminho de um deus? Aquele que ontem estava
vivo hoje está morto. Estou perplexo com tudo isso; não entendo seu significado.21

O mero enfado por parte dos seres humanos poderia acarretar-lhes uma
punição impiedosa. Um mito incorporado em um poema acádico de meados do
segundo milênio mostra os deuses agindo em relação à humanidade da mesma
maneira que Apsu agira em relação aos deuses.28 Depois que os seres humanos
foram criados para aliviar os deuses de suas tarefas, os primeiros se
multiplicaram com tanta rapidez que, doze séculos depois, o burburinho de tanta
gente havia se tornado intolerável, “a terra mugia como um touro”.
Impossibilitado de dormir, Enlil convenceu os deuses a enviarem a peste — o
que de fato reduziu a população e também o barulho. No entanto, depois de
outros doze séculos, a população e o ruído haviam retomado aos mesmos e
elevados níveis anteriores. Desta vez, as chuvas foram interrompidas, medida
que teve algum êxito. Mas o problema continuou, assim como a impossibilidade
de Enlil dormir. Afrontados, os deuses se reuniram a fim de interromper durante
seis anos tanto as chuvas como as cheias anuais, e os resultados foram
horripilantes: vizinhos passaram a atacar uns aos outros, pais matavam e
devoravam os próprios filhos. Só a intervenção do benévolo Ea salvou a
humanidade: fazendo com que parecesse um acidente, permitiu que grandes
quantidades de peixe alcançassem os esfomeados.

Furioso, Enlil decidiu-se pela aniquilação total da humanidade e conseguiu


que todos os deuses jurassem que iriam cooperar no afogamento de todos os
seres humanos em um dilúvio. Mas Ea interviu de novo: sem romper
formalmente seu juramento, conseguiu alertar um de seus criados humanos, um
sábio chamado Atrahasis. Este Noé mesopotâmico construiu um enorme barco e
nele colocou sua família e todos os tipos de animais. Assim, o pequeno grupo
sobreviveu aos sete dias e sete noites de dilúvio. Enquanto isso, os deuses, que
haviam ficado sem receber suas oferendas costumeiras, começaram a sentir uma
terrível fome. Quando, terminada a inundação, Atrahasis ofereceu-lhes um
sacrifício, eles para lá acorreram como um bando de moscas.

Por fim, Enlil consentiu na sobrevivência da humanidade — mas apenas


com a condição de que os homens não se multiplicassem em excesso. Foi então
que os deuses criaram o tipo da mulher estéril e da sacerdotisa virgem, além de
um demônio especializado na matança de crianças.

O mito de Atrahasis não tem a intenção de criticar os deuses, muito menos


Enlil. Pelo contrário, o poema termina com uma louvação ao “grande feito’’ que
ele realizara ao desencadear o dilúvio. Por mais que os deuses fossem
insensíveis, os meros humanos não tinham o direito de se queixar. Deviam
aceitar o mundo tal como era e evitar a todo custo importunar os deuses. Mesmo
assim, o temor do dilúvio era uma característica constante da vida
mesopotâmica.

As derrotas na guerra e seus conseqüentes horrores também eram muito


temidos. Ao contrário dos egípcios, não era possível para os mesopotâmicos
fingir que a derrota nunca havia ocorrido: a experiência histórica deles era
terrível demais para isso. Os sumérios já sabiam com que facilidade os grandes
deuses podiam privar de seu apoio uma cidade-Estado e como era impossível se
opor à decisão deles. Há um comovente poema em que Ningal, deusa padroeira
de Ur, lamenta a decisão, tomada por uma assembléia divina chefiada por An e
Enlil, de destruir sua cidade, enquanto se aflige por sua incapacidade de
dissuadi-los. Aos olhos do historiador moderno, Ur foi capturada, saqueada e
incendiada por hordas selvagens vindas das montanhas. No entanto, para os
sumérios, a destruição era obra do próprio Enlil, na condição de deus da
tempestade:
Quando me lamentava por aquele dia de tempestade, aquele dia de tempestade, a mim
destinado, a mim imposto, carregada de lágrimas [...] Não pude escapar à fatalidade daquele
dia. O temor da destruição da tempestade, tal como um dilúvio, pesou sobre mim, [...] Verti
lágrimas de verdade perante An. Lamentei-me de verdade perante Erúil: “Que minha cidade
não seja destruída!” Eu de fato disse a eles. “Que Ur não seja destruída!”, de fato eu disse a
eles. Que seus habitantes não sejam destruídos!” [...] [Mas veja,] eles deram ordens para que
a cidade fosse destruída, [mas veja,] eles deram ordens para que Ur fosse destruída e, como
previa seu destino, que perecessem os seus moradores.29

A derrota na guerra às vezes também era considerada uma vitória do caos.


O Poema (ou Epopéia) de Erra (ou ainda Era ou Irra) conta as façanhas de um
deus cujos epítetos incluem “eminente filho de EnliF” “senhor supremo” e
“campeão dos deuses”.30 Apesar disso, Ea era um deus da guerra em seu aspecto
negativo — a guerra como orgia de destruição e matança. Durante muitos
séculos, “Erra” foi na verdade um dos nomes do deus Nergal, que governava o
mundo subterrâneo e os mortos que o habitavam. Enquanto tal, sempre foi um
grande matador. Sua única preocupação era aumentar cada vez mais a população
de seus domínios — e fazia isto não apenas ocasionando a morte prematura de
indivíduos, mas por meio de epidemias e de guerras. Para tanto, contava com
tropas — uma hoste de demônios conhecidos coletivamente como “os Sete”.
Originalmente criados por Anu para aterrorizar e matar os seres humanos
quando estes se tornavam barulhentos, os Sete atuavam por intermédio do fogo,
do vento tempestuoso, da ferocidade do leão, do veneno do dragão — e da
guerra.

A história não é contada diretamente, mas por meio de uma série de


exortações e queixas dos vários personagens envolvidos. Estimulado pelos Sete,
Erra tenta convencer Marduk a deixar seu palácio. Este se recusa, lembrando-se
de que, ao abandonar Esagila em outra ocasião, o mundo ordenado mergulhara
no dilúvio e no caos — e o trabalho que tivera para reconstituí-lo fora enorme.
Se saísse agora, as águas voltariam a cobrir a terra, a luz do dia seria substituída
pela escuridão, os ventos maléficos começariam a soprar, os Sete emergiriam do
mundo subterrâneo e destruiriam todos os seres vivos. Porém, no final, o
governante do mundo acaba vítima da própria credulidade: quando Erra se
compromete a manter a ordem no palácio, Marduk sai para supervisionar a
restauração de suas estátuas dilapidadas.

Isto proporciona a Erra a oportunidade que aguardava. Em um discurso ao


seu lugar-tenente Ishum, ele se vangloria de que irá destruir a luz do sol,
transformar o dia em noite, fazer da terra um deserto e das cidades escombros,
assolar as montanhas e aniquilar as criaturas que nelas vivem, agitar o mar e
acabar com suas riquezas, privar o gado de água e dizimar os seres humanos.

Ishum concorda que Erra é capaz de tudo isso e de muito mais. Ignorando a
autoridade legítima de Marduk, Erra havia “desfeito o nó que mantém unido o
mundo”. Na Babilônia, provocou conflitos civis e massacres indiscriminados.
Agora a desordem social está desencadeando a desordem na natureza: o rio
secou e, no mar, grandes tormentas destroem os barcos pesqueiros. E Erra
planeja uma destruição ainda maior: não apenas de pessoas, mas de árvores,
edifícios, barcos, canais e mesmo do mundo subterrâneo. Os céus irão tremer, as
estrelas e os planetas irão se desviar de seu curso, o rei dos deuses abdicará, o
universo não mais será governado. Trata-se, na verdade, de um tributo a Erra
enquanto monstro do caos imensamente poderoso.

Não que a guerra em si mesma fosse condenada. Pelo contrário, como todos
os povos do antigo Oriente Próximo, os mesopotâmicos não tinham a menor
dúvida de que a guerra vitoriosa, travada sob os auspícios da deusa da vitória
Inana/Ishtar, era uma afirmação do cosmos. A guerra de Erra era a guerra do
ponto de vista do derrotado. Os estudiosos não estão de acordo sobre a data em
que foi composto o Poema de Erra, mas é evidente que deve ter sido inspirado
por algum desastre militar imposto à Babilônia. O objetivo do autor parece ter
sido o de explicar como tal coisa pôde acontecer a uma cidade que Marduk havia
fundado para ser sua residência e o centro do universo. Ele buscou uma resposta
na doutrina religiosa a que tinha acesso: os acontecimentos terrenos refletiam o
que ocorria entre os deuses; portanto, os infortúnios da Babilônia deviam ser um
reflexo da substituição de Marduk por Erra.

As conseqüências de tal substituição eram incalculáveis, segundo o poema.


Durante todo o tempo em que Erra exerce seu poder destrutivo, Marduk é
impedido de retornar ao centro do mundo ordenado — a Esagila, seu templo —,
mas tudo muda assim que Erra é convencido a voltar sua ira contra os nômades
que atacavam caravanas e pilhavam aldeias. Marduk e os outros deuses retomam
seus postos, restaurando-se a ordem e a fertilidade. Apesar disso, o próprio fato
de que era possível conceber Erra destronando Marduk, mesmo
temporariamente, mostra o quanto às vezes o cosmos deve ter parecido precário.


Capítulo 9

Havia outras personificações do perigo e da desordem: os demônios, hostes


deles — todos inteiramente dedicados à destruição.31 “Nascidos nas montanhas
ocidentais, criados nas montanhas orientais”, esses seres aterrorizantes viviam
no deserto, nas terras estéreis e nos espaços vazios, sentindo-se em casa nas
fronteiras do mundo ordenado. No entanto, os demônios podiam ir a toda parte.
Por vezes, chegavam até a forçar a entrada na abóbada do céu, aglomerando-se
raivosamente em tomo do deus lunar e afastando-o de seu trono. O eclipse
resultante permitiu que atacassem o rei e, através dele, todo o país, varrendo a
terra como um furacão. Em seguida, foi preciso todo o poder reunido de Enlil,
Ea e Marduk para salvar o mundo da desintegração.

Porém, o mais comum era que os demônios atacassem os indivíduos em


situações específicas — em locais solitários e durante o sono, as refeições ou o
parto. Em geral imaginados como espíritos aéreos, uma brisa ou um vento, eram
capazes de entrar em uma casa por rachaduras, por buracos ou por debaixo da
porta. Assexuados, sem companheiros ou filhos, os demônios destruíam os
vínculos familiares: podiam tornar um homem impotente ou fazer com que a
esposa se afastasse do marido. Eles sugavam o sangue das pessoas e devoravam
sua carne. Por onde passavam, deixavam uma trilha de veneno: todos aqueles
que andavam pelo mesmo local ficavam com os pés cobertos de manchas
lívidas. Um veneno tão mortal quanto o da serpente ou do escorpião escorria de
suas bocas ou pingava de suas garras. Os demônios, seres sujos e impuros,
emitiam um odor fétido.

A biblioteca do último rei assírio, Assurbanipal, originalmente em Nínive e


hoje no British Museum, possui uma lista de demônios e seus tipos, com os
respectivos atributos específicos.32 A maior parte tinha origem suméria. Um
deles era Namtaru: filho de Enlil e de Ereshkigal, a rainha do mundo
subterrâneo, atuava como mensageiro de Nergal, o rei do mundo subterrâneo.
Enquanto tal, era o demônio da peste e o mensageiro da morte: quem fosse
apanhado por ele morria de imediato, indo aumentar a população dos domínios
de Nergal. O demônio feminino Lamashtu era uma virgem estéril e frustrada que
atacava as mulheres grávidas e em trabalho de parto e matava seus bebês.
Normalmente era representada como uma mulher nua com cabeça de leoa e pés
semelhantes às garras de uma ave de rapina. Nascida no céu e filha do próprio
Anu, ela se revelou tão perversa que foi condenada a viver na terra. O vento
quente que trazia do deserto as tempestades de areia era obra do demônio
Pazuzu, representado como um monstro alado com quatro garras e cabeça
disforme. Lilitu, súcubo que visitava os homens à noite, era fecundado por esses
contatos e gerava outros demônios, conhecidos coletivamente como alu e gallu.
Estes, por sua vez, eram portadores de morte aos seres humanos: atuando
subrepticiamente à noite, abatiam as pessoas como se elas fossem atingidas pela
queda de um muro. O principal demônio da doença era Asaku (o sumério Asag).
Segundo a descrição, quando Asaku passava a habitar o corpo de um homem,
cobria-o como uma túnica quando este se movimentava e, no final, acabava por
paralisá-lo. Havia também um demônio específico da dor de cabeça, responsável
pelas dores incapacitantes que acompanham a insolação.

Os demônios seriam menos bem-sucedidos se as pessoas não pecassem.


Quando isto ocorria, o espírito ou os espíritos protetores abandonavam a pessoa,
deixando o campo livre para os demônios. Um deles então tomaria conta do
lugar vago e o pecador seria acometido de alguma doença. Mais cedo ou mais
tarde, isto era algo que ocorria a todo mundo.33 Os mesopotâmicos não faziam
distinção entre o comportamento anti-social e a transgressão, mesmo
involuntária, de um tabu. Ficava exposto aos demônios todo aquele que
colocasse os membros de uma família uns contra os outros, desrespeitasse os
pais, trapaceasse nos negócios, movesse a pedra que assinalava um limite,
seduzisse a mulher do vizinho ou assassinasse alguém. Porém, o mesmo ocorria
com aquele que inadvertidamente comesse alho no dia errado ou atravessasse
um rio, subisse uma escada ou trabalhasse no jardim num dia inapropriado. Uma
vez que era impossível evitar o pecado, também o era evitar os demônios e as
aflições que ocasionavam. Havia ordem no mundo, mas ela não existia para a
conveniência dos seres humanos.


Capítulo 10

Os deuses haviam reservado a imortalidade para si mesmos. Por decisão


deles, a morte era o destino universal dos seres humanos.34 Como diz a
maravilhosa Epopéia de Gilgamesh:
Quem, meu amigo, jamais chegou tão alto [a ponto de poder] elevar-se ao céu e viver para
sempre com Shamash? Simples homem, seus dias estão contados, faça o que fizer, não passa
de vento. Mesmo agora, você já teme a morte.35

Este temor também pertencia à condição humana:


Aquela que me seguiu, a voraz, está em meu aposento, a Morte! E para onde quer que vire meu
rosto, lá está ela, a Morte!36

Chegada a hora predeterminada, todo ser humano, como alma


desencarnada, deve empreender a descida ao nível mais baixo do mundo, abaixo
do apsu. Nessa região das sombras, a luz da qual desfrutam os vivos foi
substituída pela escuridão, o som e o movimento deram lugar ao silêncio e à
imobilidade. Nenhum bem aguarda aquele que partiu
Para a terra de onde não há retorno Para a casa da qual nunca sai quem entra; Para a estrada cujo
caminho não tem volta; Para a casa na qual é despojado da luz quem entra; Onde o pó é o alimento [e] a
argila o sustento.37

Não que os mortos deixassem de existir: a aniquilação completa era tão


inconcebível para os mesopotâmicos quanto para os egípcios. Assim como estes,
os mesopotâmicos eram comumente enterrados com talismãs, utensílios
domésticos e instrumentos de trabalho; a intervalos regulares, também eles eram
supridos de alimentos e bebidas por seus filhos.18 Em troca dessas atenções, eles
ajudavam os membros da família que ainda estavam vivos — por exemplo, em
casos de doença. No entanto, se fossem esquecidos, passavam a se comportar
como os demônios, os outros habitantes do mundo subterrâneo. Um
mesopotâmico que ao morrer não tivesse sepultamento adequado ou que fosse
esquecido com muita rapidez podia provocar enfermidades físicas ou mentais
nos parentes. Claro que tais ansiedades também eram familiares aos egípcios,39
assim como a muitos outros povos. Na Mesopotâmia, porém, elas adquiriram
singular urgência. Ali, os mesmos rituais de exorcismo empregados contra os
demônios também eram usados contra os fantasmas dos mortos vingativos.

Mesmo para os mais afortunados dentre os mortos a vida após a morte não
oferecia nenhuma consolação pelos sofrimentos passados na terra. Sem dúvida,
havia deuses no mundo subterrâneo — não apenas Nergal e sua consorte
Ereshkigal, mas todo um grupo de deuses subalternos. Mas eles constituíam uma
companhia severa e morosa, morando em seu próprio palácio protegido, e não
demonstravam favorecimento a nenhum morto. A perspectiva de uma vida bem-
aventurada após a morte, tão presente para os egípcios, não existia para os
mesopotâmicos.

E, tanto quanto os egípcios, eram incapazes de imaginar que o mundo


pudesse ser aperfeiçoado e tomado imutável em sua perfeição. Fantasias de
cosmos sem caos não lhes interessavam.40


3 - ÍNDIA VÉDICA
Capítulo 1

Não foram apenas as civilizações tecnologicamente desenvolvidas do


Crescente Fértil que elaboraram visões de mundo centradas em uma ordem
estabelecida pelos deuses, basicamente atemporal e imutável, porém nunca
completamente tranqüila. As tribos proto-indo-arianas que, na segunda metade
do terceiro milênio, viviam nas vastas estepes da Rússia meridional também
fizeram o mesmo.1

Por volta de 2000 a.C., e talvez até mesmo antes, essas tribos haviam se
dividido em dois povos, os indo-arianos e os iranianos. No decorrer do segundo
milênio, a maior parte de ambos os povos abandonou as estepes. Seja qual for o
motivo — talvez a perda das terras de pastagem devido à seca ou a geadas
prolongadas, talvez a pressão do crescimento populacional —, tribos inteiras
migraram, levando consigo seus rebanhos. O principal grupo de indo-arianos
moveu-se pela Ásia Central e o Afeganistão, atravessou os perigosos
desfiladeiros do Hindu Kush e desceu até o vale do Indo — onde chegou em
ondas sucessivas, provavelmente ao longo de vários séculos a partir de 1500 a.C.

Na época, o vale do Indo era bastante semelhante aos vales do Nilo, do


Tigre e do Eufrates, por ser de fácil aproveitamento e fertilizado por abundantes
sedimentos carregados pelas cheias. E, como eles, o Indo foi um berço de
civilização: escavações revelaram que as famosas cidades de Harappa e
Mohenjo-Daro controlavam um império que durou no mínimo de 2300 a 1750
a.C. Logo depois de 1750 algum desastre sucedeu a essa civilização rica e
eficiente. Costumava-se pensar que tal desastre havia sido uma invasão indo-
ariana anterior, mas hoje prevalece a opinião de que houve um terremoto forte o
bastante para alterar o curso do Indo e inundar as terras cultivadas.

Quando as primeiras tribos indo-arianas chegaram, cerca de dois séculos


depois, elas não precisaram assaltar as maciças defesas de tijolos das grandes
cidades. Mas elas tinham arcos e flechas, machados de bronze e, o que era mais
importante, carruagens com rodas raiadas, puxadas por dois cavalos
emparelhados e conduzidas por dois guerreiros. Assim equipadas, tomaram
facilmente as fortalezas menores que haviam restado e se estabeleceram na
região como conquistadores. Não que formassem uma nação: dispostas a se unir
para subjugar os não-arianos, povos de pele escura que chamavam de dasas, não
era menor a disposição que os indo-arianos revelavam para guerrear entre si.2
Cada tribo era governada por um raja ou “rei”, auxiliado por um séquito de
nobres guerreiros e por um conselho de anciãos. No período inicial, o rei era
sobretudo um líder guerreiro. De forma alguma divino, ele ainda assim estava
estreitamente relacionado com os reis celestiais, os deuses. A vitória na guerra e
a subjugação dos inimigos, o domínio, a prosperidade, a riqueza, a posse de
herdeiros — tudo isso era presente dos deuses e revelava que um rei estava em
harmonia com os deuses e com a ordem cósmica.3 Todavia, nessa sociedade
guerreira, os sacerdotes, ou brâmanes, sempre uma classe poderosa, pouco a
pouco passaram a adquirir uma posição mais elevada que a dos guerreiros, acima
até do próprio raja. Um rei que infringisse os direitos dos brâmanes era
considerado transgressor da ordem estabelecida pelos deuses e condenava à
destruição a si mesmo e ao reino.

Comparados aos povos de Harappa e Mohenjo-Daro, os arianos eram


tecnologicamente atrasados. Nas construções, usavam taipa e não alvenaria, e
por isso nenhum de seus edifícios sobreviveu; além disso, não deixaram estátuas
nem estatuetas. Nas estepes, haviam vivido como criadores de gado e de cavalos
e nada conheciam da vida urbana, reunindo-se em aldeias tribais e mantendo
rebanhos de gado, cavalos, ovelhas e bodes em pastagens vizinhas. É verdade
que a economia logo deixou de ser predominantemente pastoril para se tomar
uma mistura de pastoreio e agricultura de cevada e trigo. Mas o gado continuou
ocupando posição central: os agricultores oravam pelo crescimento dos
rebanhos, o butim dos guerreiros consistia sobretudo de gado, os sacerdotes
recebiam gado como pagamento de seus serviços. Na verdade, o gado era uma
espécie de meio de troca, sendo os valores definidos em cabeças de gado.

Assim era a sociedade que, durante o período de 1500 a 1000 a.C,


gradualmente se estabeleceu na ‘Terra dos Sete Rios”.


Capítulo 2

Praticamente a nossa única fonte de informações sobre as tribos invasoras é


o Rig Veda.4 O que ele tem a dizer sobre a estrutura social, a organização
econômica e as guerras é valioso, mas circunstancial. Por ser uma obra religiosa,
esclarece sobretudo a visão de mundo indo-ariana, ou védica, como é chamada
em geral e de forma mais apropriada.

Veda significa “conhecimento”, conhecimento das forças sobre-humanas


atuantes no mundo, e da maneira de influenciá-las. Acreditava-se que esse
conhecimento existisse desde sempre. Porém, certa vez, muito, muito tempo
antes, ele foi “visto” por determinados sábios em estado de êxtase visionário.
Ostensivamente revelado por experiências numinosas e súbitas percepções das
origens ocultas das coisas e de suas inter-relações, esse conhecimento incluía
técnicas e regras mágicas para se estabelecer contato e iniciar uma colaboração
com as potências superiores. Era, portanto, extremamente valioso: enquanto
repositório da verdade eterna, fonte de todo entendimento, único guia infalível
para os vivos, era mais potente do que os próprios deuses.

A história verdadeira do Rig Veda é conhecida. Embora essa coleção de


mais de mil hinos em sânscrito tenha recebido sua forma escrita por volta de 600
d.C., e ainda que os textos remanescentes mais antigos sejam de cerca de 1200
d.C., os próprios hinos foram compostos em uma época na qual os arianos
estavam havia pouco tempo no subcontinente — a maior parte deles chegara
provavelmente por volta de 1200 a.C. No início do primeiro milênio os hinos
foram reunidos e organizados. Já nessa época eram considerados sagrados e,
portanto, não se permitia a alteração de nenhuma palavra; as escolas sacerdotais
elaboraram controles para assegurar que isto não ocorresse. Mesmo quando a
arte da escrita já se difundira por toda parte, raramente os hinos foram anotados.
Em vez disso, eram transmitidos oralmente nas escolas sacerdotais, de uma
geração a outra de sacerdotes e cantores. A capacidade mnemónica desenvolvida
por esses profissionais garantiu que o texto sobrevivesse, essencialmente intacto,
até os dias de hoje.

A maioria dos hinos foi composta e rememorada por várias famílias


sacerdotais, para uso no culto sacrificial. Embora seu conteúdo esteja em grande
parte baseado em crenças populares generalizadas, a forma é a de uma poesia de
grande sofisticação. E ainda que a coleção tenha servido aos interesses da
comunidade indo- ariana ou védica como um todo, aliviando as preocupações
das pessoas comuns com saúde, segurança, prosperidade e descendência, ela está
permeada pelos interesses de uma elite intelectual.

Os hinos do Rig Veda incluem orações, litanias e sobretudo canções


laudatórias, exaltando deuses específicos e suas obras majestosas, tendo por
objetivo, quando recitados ou cantados, fortalecê-los nas atividades que
estivessem realizando. A partir dos episódios que relatam, bem como de
indicações e alusões dispersas, é possível reconstruir uma visão de mundo
coerente e completa.5


Capítulo 3

O Rig Veda nada traz das concepções que em épocas posteriores iriam
florescer com tanto vigor na índia: vastos ciclos de tempo girando lentamente,
cada época que declinava sendo seguida por um novo começo e um novo
declínio, incessantemente repetidos, almas individuais passando por milhares e
milhares de encarnações. Os hindus védicos viam as coisas de maneira muito
diversa. Para eles, o mundo ordenado, o cosmos, não passaria por modificações:
sempre imperfeito, ameaçado por forças destrutivas, mesmo assim continuaria a
existir indefinidamente da maneira que era.

Por outro lado, o cosmos não havia existido desde sempre, tendo sido
estabelecido em determinado momento do passado. O Rig Veda contém várias
passagens de como isso veio a ocorrer.6

Em algumas das mais famosas, é o deus Indra que domina o caos primordial
e cria o mundo ordenado.7

Indra é o deus mais importante no Rig Veda: nada menos do que um quarto
de todos os hinos é dedicado a ele — cerca de 250, ao passo que nenhum outro
deus recebe mais do que dez. A etimologia de seu nome é desconhecida, mas
alguns de seus epítetos sugerem que originalmente ele personificou a força bruta
da natureza, sobretudo da atmosfera: é um deus da tempestade, que brande o raio
e o trovão e controla a chuva. Mas é também um guerreiro divino, descrito em
termos antropomórficos como um gigante com braços e mãos poderosos, boca e
garganta vorazes e prodigioso apetite. Eternamente jovem e forte, tormentoso e
violento, mas também ardiloso, Indra é um lutador formidável. Move-se em uma
carruagem dourada puxada por dois cavalos baios vigorosos. Ao lançar seu raio
dotado de mil dentes, nunca erra o alvo.

Esse guerreiro divino era um deus de guerreiros. Não que seu culto fosse
praticado apenas, ou mesmo principalmente, por guerreiros profissionais: uma
tribo inteira o adorava como seu guardião — mas um guardião cujas habilidades
eram necessárias sobretudo em épocas de guerra. Pois — talvez já na estepe,
mas com certeza na época em que chegaram ao vale do Indo — as tribos indo-
arianas haviam desenvolvido um ethos guerreiro. Embora houvesse uma classe
guerreira, esperava-se que todo homem adulto pegasse em armas. E todos,
indistintamente, pediam ajuda a Indra — nenhum de forma mais devota do que o
rei, acima de tudo um senhor da guerra. Na verdade, argumentou-se de maneira
plausível que a exaltação de Indra foi uma maneira de legitimar a substituição
dos tradicionais chefes tribais por esses novos senhores.8

Aparentemente, no início os bharatas constituíam a tribo mais temível. O


Rig Veda os descreve como “caçadores de gado que se moviam em hordas”,
acrescentando que a origem da força deles era Indra. Os bharatas ganharam a
inimizade das outras tribos, que se aliaram contra eles e evidentemente também
invocaram o apoio de Indra. E todas as tribos, sem exceção, recorriam à ajuda de
Indra para subjugar os dasas. E não o invocavam em vão: como incansável
defensor dos indo-arianos, Indra capturava cidades hostis e aniquilava seus
habitantes, tomava os rebanhos eqüinos e bovinos do inimigo e os dava ao seu
próprio povo.

O vínculo entre Indra e as tribos indo-arianas é mostrado como sendo muito


íntimo. Com cavalos e carruagens, as tribos moviam-se sob o comando do deus,
retratado como o autor de todas as vitórias que elas alcançavam. Os guerreiros
são exortados a tomá-lo como exemplo, a serem “heróis no estilo de Indra” e,
vencendo os dasas, a realizar sua obra. Esta exortação é dirigida tanto às pessoas
comuns como aos guerreiros profissionais.

Considerava-se que Indra estava fisicamente presente no meio da batalha:


ao lado dos companheiros de pele clara, ele abate os homens escuros com sua
lança, exercendo seu poder soberano por intermédio dos reis tribais. Há, no Rig
Veda, um hino de batalha que fala sobre isso:
Indra — conhecido pela força, herói proeminente, poderoso, triunfante, exercitando a força,
acima de todos os heróis, acima de todos os guerreiros, nascido da força — subam nas
carruagens vitoriosas, tomem as vacas! Ele, arrombando os currais de vacas, encontrando o gado
com o raio no braço, vencendo a competição e investindo com vigor — sejam heróis como ele, ó
membros do clã! Agarrem-se a ele, ó companheiros! Lançando-se com destreza nos currais de
vacas, Indra, o herói inflexível, de ira centuplicada, subjugador de tropas, duro de ser combatido
— possa ele vir em nosso auxílio nas batalhas! 9

Porém, Indra é muito mais do que um deus da guerra e da tempestade.


Conhecido como “aquele com um milhar de testículos”, é dotado de ilimitada
energia criativa e vitalidade triunfante — e sempre as utilizou em benefício dos
seres humanos. Senhor da natureza, Indra confere fertilidade aos campos e às
mulheres, e, na verdade, todo processo proveitoso e positivo é manifestação de
seu poder benéfico. A primeira e mais extraordinária manifestação desse poder
foi a cosmogonia.10 No limite mais extremo do mundo, ou talvez no céu, havia
uma caverna habitada pelo demônio Vala, nome que significa “confinamento”.
Ali rebanhos de vacas eram mantidos aprisionados. Seus donos também eram
demônios, embora o nome deles, Panis, fosse usado igualmente para designar os
ricos avarentos que não faziam oferendas adequadas aos deuses e a seus
sacerdotes.

Nesse mito, Indra aparece como rei-sacerdote. Guiado por sua cadela divina
e auxiliado por um corpo de sacerdotes celestes chefiados pelo deus Brhaspati,
“senhor do canto cultual”, Indra vai até a caverna e força a entrada. Não
consegue isto pela força bruta, mas por meio de um sacrifício e de cantos
sagrados em tomo do fogo sacrificial. Essas canções são dotadas da força mágica
de rita — a ordem do mundo estabelecida pelos deuses — e o feito de Indra é
em si mesmo afirmação dessa ordem. E o seu canto liberta as vacas.

Estas simbolizam o nascer do sol — daí sua cor avermelhada — e, ao serem


libertadas, tem início a sucessão de auroras. Antes confinado na escuridão, agora
o sol percorre seu trajeto acima do mundo. A luz emana, a escuridão é banida. E,
com a libertação das vacas, a nutrição torna-se disponível não só para os
sacerdotes, mas também para a humanidade.


Capítulo 4

Há um outro mito cosmogônico associado a Indra, e muito mais


conhecido.11 Na verdade, nenhum hino do Rig Veda conta a história, mas muitos
fazem referência a ela; e, com a ajuda de comentários e reelaborações hindus
posteriores, é possível reconstruir o mito a partir dessas indicações dispersas. O
mundo ordenado passou a existir em conseqüência da intervenção de Indra na
guerra entre os Adityas e os rakshas ou rakshashas, os “demônios”. No Rig
Veda, tanto os rakshashas como os Adityas são dota1 dos de poderes mágicos e
sobre-humanos. Embora identificados de várias maneiras no Rig Veda, os
Adityas nunca passam de oito. A quantidade de demônios também é
indeterminada, mas em geral são sete; seu líder é — ou era, até encontrar Indra
— o arquide- mônio Vritra.

Os Adityas e os demônios eram totalmente opostos. Os primeiros, em geral


imaginados com aparência humana, eram seres benevolentes, filhos da deusa
Aditi, cujo nome provavelmente significa “liberdade” e que acima de tudo
representava a noção de uma natureza completamcnte livre de qualquer restrição
ou impedimento. Isso valia também para toda a família: de várias maneiras,
todos os Adityas estimulavam uma vida exuberante e voltada para fora. Os
demônios faziam o oposto — na verdade, em épocas posteriores à do Rig Veda
receberam o nome de Danavas, termo que significa “sujeição”, “restrição”.
Concebidos como serpentes, dragões ou ainda javalis, dedicavam-se a restringir,
obstruir, sujeitar.

No início havia as águas cósmicas e elas eram refreadas ou cobertas por


Vritra. O arquidemônio — cujo próprio nome significa “limitador”, “oposição”,
“bloqueio” — em geral era imaginado como uma serpente gigante (ahi)
repousando sobre a montanha primordial ou contendo dentro de si a montanha,
no interior da qual ficavam as águas. Também era concebido como um javali
flutuando nas águas. Traiçoeiro e malévolo, Vritra morava nos limites da
escuridão.

Os Adityas queriam libertar as águas — sobretudo porque então o sol estava


contido nelas como um embrião. A menos que as águas fluíssem e o sol fosse
colocado no céu, o mundo não poderia funcionar. Vritra e seus demônios
auxiliares opunham-se terminantemente a isto: o mundo ordenado não deveria de
forma alguma existir, as águas deveriam permanecer aprisionadas para sempre.
Por isso eclodiu a guerra entre os Adityas e os demônios e, embora o Rig
Veda não relate suas fases iniciais, apenas aludindo a elas, é evidente que os
Adityas foram derrotados. Foi então que se viram obrigados a criar Indra, a fim
de que este os defendesse. Aparentemente Indra tinha o céu como pai e a terra
como mãe, e era o mais jovem dos deuses. Logo após nascer, já estava pronto
para lutar em favor dos deuses mais velhos, mas com uma condição: caso fosse
vitorioso, seria o rei de todos os deuses.

A primeira medida de Indra foi tomar três grandes goles do estimulante


conhecido como soma. Este o transformou, certamente tal como esperava. Em
um átimo, Indra cresceu tanto que preencheu o céu e a terra. Aterrorizados, seus
pais fugiram cada um para um lado — e, uma vez separados, o céu e a terra
nunca mais voltariam a se unir. Esta foi a primeira etapa no ordenamento do
mundo. Os deuses ainda continuavam apavorados com Vritra: haviam se
submetido ao arquidemônio e, quando ouviam seu silvo, assustavam-se como
frágeis anciãos. Por isso, abandonaram seu defensor. Mas Indra, impávido,
preparou-se para a batalha. Primeiro desencadeou uma tempestade, personificada
pelo deus Rudra e seus auxiliares, os Maruts. Depois, armado com o raio e o
trovão mágicos, o vajra, confeccionados pelo deus- artesão, atirou-se contra
Vritra. Foi um combate feroz. Primeiro Vritra quebrou o maxilar de Indra, mas
então, enquanto o céu tremia com os gritos do monstro, Indra quebrou o maxilar
de Vritra, esmagou seu rosto, arrebentou seu crânio e o deixou caído no solo. Por
fim, Indra atacou e destruiu o arquidemônio feminino Danu, cujo nome indica
tratar-se de outra personificação do constrangimento. Embora Danu seja descrita
como mãe de Vritra, sem dúvida deve ter sido originalmente sua consorte e,
portanto, algo como uma contrapartida da Tiamat babilónica. Indra deixou o
cadáver de Danu caído sobre o de Vritra.

Desse modo, Indra tornou-se de fato o senhor supremo: os deuses estavam


contentes por lhe conferir seus poderes e submeter-se ao seu domínio. Em
seguida, começou a criar o mundo ordenado. A montanha primordial, que
perdera a solidez e tremia, foi fixada no fundo das águas cósmicas e a terra se
espalhou em torno dela. Depois, Indra separou o Sat do Asat, o “existente” do
“não-existente”.

O Asat sempre existira, pois era o caos primordial. Agora havia sido
confinado sob a terra e separado dela por um grande abismo. Enquanto mundo
subterrâneo, tornou-se a morada de Vritra e de outros demônios. O Sat,
organizado em três partes — céu, atmosfera e terra —, tomou-se o domínio no
qual se moviam e existiam os deuses e os seres humanos. Sob a superfície de
pedra do céu, um caminho foi entalhado para permitir a trajetória do sol. Posto
afinal no lugar que lhe era de direito, o sol brilhou sobre toda a terra e tiveram
início suas revoluções. Quanto às águas cósmicas, elas escorreram da caverna
onde Vritra as mantivera presas — ou, segundo alguns relatos, do ventre
rompido do próprio Vritra —, formando os rios e correndo para o mar, como
pássaros voltando ao ninho ou carruagens em competição. Essas águas também
eram deusas — e, nesta condição, designadas pelo termo elogioso de praxe:
“vacas”. E Indra tornou-se o esposo delas. Graças a ele, os úberes dessas vacas
divinas estavam repletos: as águas, mudadas no mais maternal dos seres,
tornaram-se o oceano celeste que proporciona a chuva necessária à vida.

Era ocasião para uma grande festa, na qual todos os deuses entoaram
louvações a Indra. Também era uma oportunidade para os deuses assumirem as
funções que lhes cabiam. A lei cósmica, rita, fora estabelecida; e, de acordo com
ela e com a natureza de cada um deles, os deuses começaram a cumprir suas
tarefas.

Não terminaram aí os feitos heróicos de Indra. Restavam ainda outros


demônios e Indra deu cabo deles também. Além disso, quaisquer que fossem
seus nomes, todos esses demônios eram Vritra, e a luta de Indra contra todos eles
tinha o mesmo significado: a cada vez as águas precisavam ser libertadas, a cada
vez era preciso assegurar a posição do sol, a fim de que o cosmos não voltasse a
mergulhar no caos.


Capítulo 5

O mito de Indra é um exemplo proeminente de mito do combate e guarda


muito em comum com outros mitos similares. Vritra assemelha-se bastante ao
egípcio Apep ou Apófis. Como este, ele representa o caos primordial: habitando
as trevas eternas, contém as águas cósmicas. Ao atacá-lo, perfurá-lo e matá-lo, o
deus-guerreiro — Indra ou Seth — liberta essas águas. Ao mesmo tempo, o deus
liberta o sol e permite que ele se mova no caminho apropriado. E, se
considerarmos os pares no mito de Indra, a semelhança é ainda maior. O deus
Trita Aptya é o companheiro íntimo de Indra e repete algumas de suas façanhas
— na verdade, pode muito bem ter sido uma versão anterior do próprio Indra.
Ora, do dragão abatido por Trita Aptya diz-se que emite sons estridentes — e o
grito de Apep, cortando as trevas, é uma característica inesquecível do mito
egípcio. O paralelismo com os mitos me- sopotâmicos de Ninurta e Marduk não
é menos surpreendente. Trata-se do mesmo padrão básico. Tanto em um caso
como no outro, os deuses vêem-se desamparados perante um poder monstruoso.
Mas então surge um deus da guerra e da tempestade — uma figura heróica, mais
jovem, mais empreendedora e corajosa do que os outros deuses. Enfrenta o
monstro, conseguindo derrotá-lo e matá-lo. Em reconhecimento a esse feito
prodigioso, o deus da tempestade é glorificado acima de todos, ou de quase
todos, os outros deuses. Pode até mesmo colocar os deuses para trabalhar no
mundo, cada um na respectiva posição. E há um grande banquete dos deuses
para inaugurar a nova era, enquanto o jovem deus é louvado.

Entre Indra e Marduk surge ainda outro ponto de convergência: ambos, ao


matar os monstros, tomam-se deuses criadores. Os próprios monstros têm muito
em comum. Tanto Tiamat como Vritra são forças voltadas para a esterilidade e a
inércia, hostis à vida e à atividade. De ambos seria possível dizer que, enquanto
tal força permanece dominante, absolutamente nada jamais poderá ocorrer. Mas
isso não é tudo: tanto Tiamat como Vritra são ancestrais primordiais que mantêm
um relacionamento ambíguo, e mesmo atormentado, com os deuses mais jovens.
Tiamat tem tanta consciência de ser a ancestral dos deuses que, até ser
provocada de forma insuportável, tenta protegê-los de seu marido enraivecido.
Quanto a Vritra, um hino do Rig Veda descreve os deuses supremos — Varuna,
Agni, Soma — como estando contidos dentro dela: a serpente é o “pai” deles.12
Eles a abandonam com muita relutância, mesmo após as exortações de Indra.
“Insensivelmente eu abandonei aquele que foi tão bom para mim, deixando meus
amigos para me juntar a uma tribo estrangeira”, lamenta Agni. “Passei muitas
horas dentro dele. Agora eu escolho Indra e abandono o pai. Agni, Soma,
Varuna — todos desaparecem”, suspira Soma. Aplicadas a um pai, essas são
frases estranhas: não podemos deixar de nos perguntar se a própria Vritra não
era por vezes imaginada como a mãe primordial, tal como Tiamat. Seja como
for, em ambos os casos o ancestral precisa ser morto, para que os deuses mais
jovens possam ocupar seus lugares adequados no mundo — o mundo recém-
ordenado.

Com isso, retornamos a Apep. Também ele é um ancestral, pois já estava


presente antes que existisse o mundo ordenado; na verdade, antes mesmo de
qualquer um dos deuses. E, se agora é uma figura destrutiva e francamente
hostil, não se deve isto ao fato de os aspectos benignos e nutridores do caos
primordial terem sido separados e atribuídos a outra serpente cósmica — àquela
serpente que circunda o mundo e para a qual os deuses e os mortos bem-
aventurados vão todas as noites e de onde emergem, pela manhã, rejuvenescidos
e renascidos?

Poderíamos continuar. Como será visto em capitulo posterior, uma versão


do mito do combate estreitamente ligada à versão védica floresceu entre os
escandinavos — e há pouco chamou-se a atenção para um conto popular russo
também claramente inspirado no mito de Indra. Com isso, dispomos de três
tradições distintas — a egípcia, a mesopotâmica e a indo-européia —, todas
muito antigas. Buscar uma origem comum para elas parece ser um exercício vão;
se essas tradições têm muito em comum, isto se deve ao fato de exprimirem os
mesmos temores e esperanças. De uma forma ou de outra, o mito difundiu-se por
vastas áreas do mundo antigo. E o que ele diz em todas as suas versões é uma
mesma coisa: o cosmos sempre foi e sempre será ameaçado pelo caos; no
entanto, sempre sobreviveu e sempre sobreviverá.


Capítulo 6

O cosmos existia, e perdurava, graças ao princípio imutável chamado rita.13


Assim como o termo egípcio ma’at, rita não pode ser traduzido por nenhuma
palavra moderna, mas sabemos seu significado. Etimologicamente, o termo rita
significa “pôr em movimento” e foi usado para designar a maneira correta e
normal de as coisas ocorrerem no mundo. No Rig Veda, aparece por vezes como
expressão da vontade dos deuses, mas também figura como força poderosa
independente dos deuses — na verdade, como uma força cuja lei os deuses eram
obrigados a obedecer e cujos desígnios cabia a eles realizar.

A ordem da natureza, que regula a alternância do dia e da noite e o ciclo das


estações, e a ordem da vida humana, pela qual todo indivíduo pauta sua
existência do nascimento à morte, eram ambas incluídas em rita” e o mesmo
ocorria com a ordem ritual, que prescrevia os sacrifícios que deveriam ser feitos
aos deuses. A ordem moral, pela qual se supunha que os seres humanos
regulassem sua conduta e seus relacionamentos, também fazia parte de rita:
aquele que se comportasse de acordo com as exigências desse princípio seria
justo, correto, honesto — e iria prosperar, os ventos soprariam com doçura para
ele. O discurso pronunciado em conformidade com rita era um discurso
verdadeiro; do mesmo modo, onde predominasse rita não havia lugar para a
mentira nem para os mentirosos. Na verdade, o domínio de rita era universal:
sua expressão visível eram os movimentos do sol, da lua e das estrelas. Rita era
também a força que colocava em movimento tudo o que preservava e ampliava a
vida: graças a ela, o dia nascia, os rios corriam, cresciam as plantas alimentícias,
davam leite as vacas.

Determinados deuses eram particularmente preocupados com a manutenção


de rita.14 Por muito tempo, Varuna foi considerado pelos estudiosos como deus
celeste; na verdade, pensava-se que seu nome era idêntico ao do deus grego
Urano. Hoje tal concepção está desacreditada e ele é reconhecido como sendo
essencialmente um rei que controlava tudo. Muito do que se atribuía a Indra
também o era a Varuna: dizia-se que no início ele determinou as dimensões da
terra, fixou o céu em seu lugar, estabeleceu a trajetória do sol. Porém, não era
um deus guerreiro, as batalhas tribais não lhe diziam respeito. Remoto e
imperturbável, de sua morada acima do céu Varuna zelava pelo cosmos e por
rita, como guardião e protetor.
A preservação do mundo físico e da sociedade humana dependia de Varuna.
Era graças ao seu poder abrangente que a terra e o céu permaneciam firmes e
imóveis, que a natureza continuava seu curso regular e normal. Do mesmo
modo, sua vontade, tal como expressa nas decisões que tomava, era a origem de
toda lei e de toda moralidade. Os deuses e os seres humanos estavam obrigados a
agir em conformidade a ela — e Varuna cuidava para que o fizessem. Era graças
à sua vigilância que os seres humanos se conduziam de acordo com rita. Seus
espiões o mantinham informado dos atos humanos e toda transgressão contra
rita era punida. Qualquer desleixo na adoração dos deuses — inclusive os erros,
mesmo involuntários, no ritual do sacrifício — era punido com a doença, que
constituía um sinal de desordem, anrita. Profundamente conscientes de sua
insuficiência, as pessoas oravam a Varuna para que perdoasse suas trangressões
e lhes concedesse felicidade.

Havia outras transgressões a rita. Assassinato, blasfêmia, fraude,


embriaguez, cólera, jogatina, trapaça nos dados — tudo isso era proibido por
Varuna. Além do mais, cada pessoa tinha uma função específica na sociedade,
apropriada à sua posição na estrutura de classes. Esperava-se que ela se
empenhasse em cumprir tal função com assiduidade: era um modo de afirmar
que o mundo estava em ordem. Se a pessoa falhasse, o funcionamento do
cosmos seria prejudicado. Toda ocorrência dessa espécie despertava a ira de
Varuna.

Pior ainda era o juramento em falso. Fazer um juramento era um ato


religioso, realizado com ritos religiosos: as palavras pronunciadas eram dotadas
de força sobrenatural, que podia se voltar contra aquele que jurasse em falso.
Quem fizesse tal coisa estava se aliando ao próprio princípio oposto a rita.

Desse modo, não surpreende que Varuna também seja o deus dos
juramentos. O que é, na verdade, duplamente apropriado, pois, entre todos os
elementos naturais que controlava, Varuna estava relacionado de maneira mais
íntima com a água, ela própria associada aos juramentos.15 Quando era acusada
de algum delito e protestava inocência, uma pessoa podia ser mantida debaixo
d’água enquanto uma flecha era lançada e recuperada; se ainda estivesse viva
quando a flecha fosse recuperada, estava comprovado que falara a verdade e,
portanto, que era inocente.

Varuna controlava as chuvas, e o fluxo regular dos riachos e rios era


atribuição dele. Mas sua conexão com as águas ia muito além disso. Segundo o
Rig Veda, Varuna morava no grande oceano que circundava todo o cosmos e do
qual originalmente este havia emergido. A casa de Varuna ficava nessas águas.
Há, na verdade, bons motivos para se pensar que o nome divino Apam Napat,
“filho das águas”, conhecido tanto pelos hindus védicos como pelos iranianos e
que portanto deve ser de origem indo-iraniana, foi no início um epíteto de
Varuna.16

Presumivelmente devido à associação com as águas informes que existiam


fora do mundo ordenado, Varuna também era chamado de “deus da noite”.
Guardião da lei cósmica, habitante do oceano cósmico, senhor sobretudo do céu
noturno, Varuna envolvia todas as coisas.

Mitra era um companheiro íntimo de Varuna, porém mais bondoso e menos


aterrorizante — não estava associado à noite, e sim ao dia e ao sol, e também ao
fogo, em vez da água. Secundava Varuna na preocupação pela sociedade
humana, encorajando a amabilidade, a concórdia, a resolução pacífica das
disputas. Enquanto Varuna, representando a realeza em seus aspectos estáticos,
era o guardião do grande princípio de rita, Mitra supervisionava a operação
prática de rita no mundo. Para aqueles que viviam de acordo com rita, era
sempre um amigo e um aliado prestimoso.17

O substantivo mithra significa “contrato”, mas a palavra era empregada em


sentido muito amplo. “Contrato” era entendido como a base de um
relacionamento no qual se entrava voluntariamente e que unia as pessoas de
modo amigável e pacífico. Subjacente a ele havia a noção de uma integração
patrocinada pelos deuses, em oposição ao isolamento caótico e repleto de
conflitos. Na verdade, aparentemente se considerava que o protótipo de todos os
contratos humanos era um grande contrato cósmico que reconciliava todos os
opostos: luz e treva, noite e aurora, vida e morte. Os negócios humanos e os
processos da natureza estavam sujeitos à mesma ordem, rita, de modo que a
noção de contrato aplicava-se a ambos da mesma forma.18 Assim, era bastante
apropriado que o deus mais intimamente relacionado com a operação de rita no
mundo também fosse uma personificação do contrato.

Depois havia Indra. Embora já se tenha argumentado que Indra possuía


pouca ou nenhuma relação com rita, não é isto o que diz o Rig Veda. Na
realidade, há diversas passagens cm que Indra, o único deus que rivaliza com
Varuna em majestade régia, é retratado como criador e protetor de rita, tal qual
Varuna.19 Ou então mostrado como ajudante de Varuna na supervisão do
funcionamento de rita no mundo, do mesmo modo que Mitra. E, de fato, os
dvandva — nomes compostos “aos pares” — Mitravaruna e Indravaruna são na
prática intercambiáveis: a colaboração que indicam é do mesmo tipo em ambos
os casos.

Conta-se de Indra que ele estabelece a ordem no funcionamento do universo


e preserva a lei eterna, que a regularidade da natureza é uma manifestação de seu
poder, que por meio de rita ele desencadeia a seqüência das manhãs, que ele se
move com cavalos emparelhados pela ordem eterna e até que ele próprio é rita.
Enquanto rita, Indra abre os ouvidos dos moralmente surdos e inspira
pensamentos que impedem as transgressões. Na realidade, o céu e a terra são
dele, as próprias vacas lhe oferecem leite.

Há indícios abundantes de que este guerreiro divino e deus dos guerreiros,


defensor das tribos invasoras nas guerras contra os povos nativos, também era
percebido como a força que atuava em todo o mundo ordenado e o guiava. Mas
como poderia ser de outro modo, se na índia védica, tal como em outras partes, a
vitória na guerra era em si mesma uma afirmação suprema da ordem
estabelecida pelos deuses?

E ele continua sendo um guerreiro: incontáveis vezes destrói os demônios


originários do mundo subterrâneo, ameaçando e prejudicando o mundo de rita.
A guerra do deus contra as forças do caos não terminou e, na verdade, não pode
nunca terminar.


Capítulo 7

Os deuses e os seres humanos dependem do soma para se fortalecer e se


revitalizar.20 Soma era uma planta repleta de seiva que crescia nas regiões
montanhosas. Já houve muitas discussões sobre que planta exatamente era essa,
sem que se tenha chegado a alguma conclusão. Os sacerdotes zoroastrianos
ainda hoje empregam uma planta chamada hom, que é uma espécie de Efedra.
Porém, ainda estamos muito longe de poder afirmar com certeza que o atual hom
é a mesma planta que o haoma/soma de três milênios atrás. Uma das sugestões
mais plausíveis é que a antiga planta era o pergamum harmala, um tipo de
arruda selvagem.21

Com o soma, preparava-se uma bebida intoxicante. Sacerdotes treinados


banhavam em água as hastes da planta repetidas vezes, depois as maceravam
com pedras e, em seguida, filtravam e diluíam o sumo obtido. O processo era um
ritual religioso solene. Os poetas que o descrevem no Rig Vedo observam que
seus cantos levam a obra adiante e que o soma, em troca, revela-lhes segredos
celestiais e os inspira no canto.

O soma era um poderoso estimulante. Considerava-se que ele acelerava o


pensamento, trazia inspiração poética, aumentava a energia física e intelectual.
Para o guerreiro, renovava a coragem; ao sacerdote, proporcionava o ânimo
necessário para oferecer um sacrifício apropriado. O soma também curava as
doenças e aumentava a potência sexual. Acima de tudo, proporcionava uma vida
longa: era um elixir vitae. Não só os seres humanos, mas os próprios deuses
precisavam de soma — na verdade, deviam ao soma sua extraordinária força e
esplendor. Quando, durante o sacrifício, sacerdotes e deuses bebiam juntos o
soma, fortaleciam-se os vínculos entre a comunidade e seus deuses.

Os benefícios do soma eram tão ilimitados que ele não poderia ser
simplesmente uma planta: devia ser um deus. E, de fato, Soma é descrito como o
amigo e protetor dos outros deuses, que podiam recorrer a ele para afastar os
inimigos e assegurar o próprio bem-estar. Soma era louvado em termos tão
ardorosos quanto os dedicados aos deuses supremos. Era o Rei Soma — rei das
plantas e das ervas, mas também rei dos deuses e dos seres humanos, senhor de
todos os povos, rei do mundo. Chegava mesmo a ser chamado de criador e
senhor do céu, conservador de tudo o que existe. O próprio sacrifício do soma
assumiu importância cósmica: o ruído da maceração era o trovão, o filtro de lã
representava as nuvens, as gotas de sumo eram a chuva, que por sua vez
estimulava o crescimento das plantas. Sob a forma de umidade, Soma estava em
todas as plantas e em todas as criaturas, humanas ou animais, que se
alimentavam de plantas. Soma também estava presente no sêmen. Na verdade,
Soma era o poder que assegurava a continuação do processo cíclico do qual
dependia toda a vida. A vida estuante era o seu domínio, assim como era o de
Varuna — só que no seu caso tratava-se da vida percebida como incessante
processo de reprodução.

Tal como Soma, Agni era ao mesmo tempo um fenômeno e um deus, ou


melhor, um fenômeno percebido como deus.22 Agni era o fogo — seu nome está
relacionado com o latim ignis. Assim como o soma, o fogo era fervorosamente
adorado tanto pelos iranianos como pelos hindus védicos, e portanto deve ter
sido um deus já para os proto-indo-iranianos. Dificilmente poderia ter sido de
outro modo. A própria sobrevivência dos povos das estepes dependia do fogo.
Originalmente, eles sem dúvida o perceberam como uma força que lhes
proporcionava calor nos invernos rigorosos e lhes possibilitava cozinhar a carne,
que constituía a parte principal de sua dieta. Porém, o Agni do Rig Veda é muito
mais do que isto.

O Rig Veda refere-se inúmeras vezes às águas como sendo o lar de Agni.
Quando, por exemplo, um sacerdote consagrava um rei despejando água no
soberano, ele invocava todos os Agnis que habitavam a água. Essa associação
entre fogo e água, tão paradoxal à primeira vista, faz sentido quando lembramos
que a água podia significar as águas cósmicas. Agni é chamado de “filho das
águas” e também de “touro das águas”, no sentido de que ele as engravida. É
como se o fogo fosse a força masculina primordial que penetrasse na força
feminina primordial a fim de renascer desta.23

Embora sendo uma força cósmica e primordial, Agni podia ser observado
atuando no mundo. Suas chamas eram como cabelos, seus olhos faiscavam, sua
língua lambia as árvores, seus dentes afiados as devoravam. Ele podia ser
aterrorizante quando incendiava a floresta e a estepe, manifestando então uma
força conquistadora e violenta. Mas estava presente por toda parte, o que lhe
dava uma extraordinária percepção: sabia de tudo o que acontecia, não podia ser
enganado, era um deus sábio e astuto. E também estava presente no sol,
difundindo sua radiância pelo céu e sobre a terra, trazendo consolação, liberando
energia.
Agni podia ser muito útil para os seres humanos. Também podia ser amigo
íntimo de uma pessoa, mais do que qualquer outro deus. A vontade no fogo
doméstico e nunca ausente dele, era o benevolente patrono e protetor da família,
tomando conta do gado e dos cavalos, afastando os inimigos humanos e sobre-
humanos, protegendo contra as dificuldades e doenças. Ele era hostil aos
demônios que assombravam o mundo, seus olhos atentos logo os detectavam,
seus dentes afiados logo os destruíam.

No ritual de sacrifício, o papel de Agni era fundamental. Os hindus védicos


— e também os iranianos — faziam suas oferendas em cima do fogo. Mantido
sempre aceso, alimentado com manteiga derretida, o fogo consumia as oferendas
— o que significava que os deuses partilhavam delas. Era Agni quem convidava
os deuses para a refeição, quem os levava até o local, quem cuidava para que as
oferendas fossem saborosas. Com freqüên- cia, era denominado o sacerdote do
sacrifício. Tal como Soma, era o patrono desses sacerdotes, protegendo-os e
fortificando-os, trazendo-lhes inspiração para que compusessem belos hinos e os
recitassem bem. Em troca, tal como Soma, ele próprio era louvado em muitos
hinos.

O panteão védico incluía muitos outros deuses. Bastante estimado era


Vishnu, que mais tarde se tornaria um deus de grande importância. Ele era
amigo íntimo de Indra e o auxiliava na luta contra Vritra. E, como Indra, era um
agente de libertação: ao medir o universo com seus passos, abriu espaço para que
os seres humanos vivessem e agissem com liberdade e para que os deuses
exercessem seus poderes. Benevolente e generoso, Vishnu estimulava todos os
tipos de fertilidade, cuidando da concepção e do nascimento, proporcionando
chuva, alimentos e todas as coisas boas em abundância. A deusa das auroras,
Usas, também figura em destaque no Rig Veda. Belíssima, eternamente jovem,
ela conduzia uma carruagem puxada por vacas ou cavalos avermelhados. Usas
destruía não apenas as trevas, mas também a inimizade; sua luz trazia prazer,
bem-estar, sucesso. Os hinos em seu louvor se rejubilam com o retomo
previsível da luz do dia: se cada noite era vivida como uma irrupção do caos,
cada aurora era vivida como um restabelecimento de rita. Semelhantes a Usas
eram os dois gêmeos conhecidos como Nasatya ou Asvin, “donos de cavalos”.
“Netos do céu”, representavam a luz da aurora que se difundia. Todos os dias
cavalgavam ao longo do céu em uma carruagem dourada. Também eles eram
destruidores das trevas e dos demônios que ali proliferavam. Protegiam os
guerreiros na batalha e, como médicos, ajudavam as mulheres em trabalho de
parto.
Em seguida havia as vacas.24 A vaca tinha uma importância muito maior do
que a meramente econômica, simbolizando tudo o que existia de mais precioso.
Na literatura védica, a deusa Usas é chamada de “vaca”, assim como os raios de
luz na aurora são denominados “rebanho de vacas”. Isto enfatizava a santidade
das vacas, pois os primeiros raios inauguravam o ritual de sacrifício, do qual
dependiam não só o bem-estar dos deuses e dos seres humanos, mas a própria
sobrevivência do mundo ordenado. E uma vaca “capaz de parir e dar leite” era a
melhor remuneração para o brâmane que realizava o sacrifício.

As águas, percebidas como fonte de cura física e moral e elas próprias


santificadas, também eram chamadas de “vacas”. A grande deusa Aditi, mãe dos
Adityas e símbolo supremo da liberdade e do desenvolvimento, era chamada de
“vaca leiteira” e, no ritual védico, simbolizada por uma vaca. Originalmente
empregada como figura de linguagem, um símile ou uma metáfora, no final a
palavra para “vaca” ou “vacas” passou a designar o mais sagrado dos seres. E,
como as deusas eram consideradas vacas, estas também se tomaram sagradas.
Em um hino do Rig Veda, uma vaca descreve a si mesma como aquela “que
conhece a fórmula ritual, aquela que ergue a voz sacrificial inerente a todas as
devoções pias, uma deusa que veio de entre os deuses”.25

Isto não implicava a proibição de abater as vacas. Pelo contrário, elas


constituíam a melhor oferenda que se podia fazer aos deuses.


Capítulo 9

Os deuses, por eles mesmos, não teriam tido a força de prosseguir a


interminável tarefa de preservar o mundo ordenado e fortalecer rita, pois
dependiam dos sacrifícios oferecidos pelos seres humanos.

O sacrifício na sociedade védica tinha um papel diferente daquele que


desempenhava nas sociedades egípcia e mesopotâmi- ca.26 Naturalmente, quando
viviam como tribos seminômades nas estepes russas e, depois, durante a longa
migração para a índia, os indo-arianos não possuíam templos. O mesmo ocorria
com os hindus védicos. E, mais importante, estes aparentemente nada conheciam
de rituais públicos, tribais ou nacionais. Os sacrifícios aos deuses eram
realizados em casa, em nome de um indivíduo ou de uma família pequena. Na
verdade, constituíam uma forma de hospitalidade privada: as divindades eram
convidadas para uma refeição em sua honra. Isto implicava muito mais do que a
mera oferta de alimentos. O deus era recebido como um convidado: ofereciam-
lhe uma bebida para se refrescar após a viagem, prepa- ravam-lhe um assento de
ervas macias, entretiam-no com poesia e música. Em troca, a família desfrutava
da experiência afortunada de partilhar da presença de um ou vários deuses. Ela
também esperava que o deus — como qualquer convidado humano —
retribuísse a hospitalidade com um presente ou um favor.

Com exceção dos rituais mais simples, todos os outros exigiam a


participação dos sacerdotes, os quais precisavam ser remunerados — o que
significava que a principal força motriz por trás do culto era o desejo que
indivíduos prósperos tinham de aumentar ainda mais seu bem-estar. Apesar
disso, tanto na sociedade védica como em outras da Antigüidade, a manutenção
da ordem do mundo exigia a constante repetição dos sacrifícios rituais. O modo
como tal processo era entendido é mostrado não só no Rig Veda, mas também na
coletânea litúrgica conhecida como Yajur Veda e, sobretudo, no Brahmanas, no
qual se descrevem os cantos e os ritos para os sacerdotes oficiantes.

No sacrifício védico, a oferenda era em geral um animal doméstico (nunca


se usavam animais selvagens), mas também podia ser uma planta. Fosse o que
fosse, era vista como sendo parte do sacrificante — isto é, da pessoa que
proporcionara a oferenda e em cujo benefício se fazia o sacrifício — e
representava toda a pessoa. Isto era verdade mesmo que o oficiante não fosse um
sacerdote: era sempre o sacrificante que oferecia a si mesmo.27
Partes do animal ou planta sacrificados eram consumidas no fogo e o aroma
que se elevava aos céus nutria os deuses. O que restava era comido pelo
sacrificante e pelo sacerdote ou sacerdotes — e isto também era visto como uma
destruição total e consumidora da oferenda. Por fim, o sacrificante
recompensava generosamente os sacerdotes: em cada etapa, precisava sentir que
estava se desfazendo de algo que era parte de si mesmo.

Os deuses dependiam do sacrifício para seu bem-estar e, na verdade, para


sua imortalidade. Sem os sacrifícios, eles se enfraqueceriam e não mais seriam
capazes de garantir a prosperidade da terra e de seus habitantes. Fortalecidos
pelos sacrifícios, era possível confiar que enviariam chuva — na índia, a
manifestação suprema da ordem cósmica. A chuva na época apropriada fazia
com que as plantas crescessem, o que proporcionava alimento para os animais e
os seres humanos e, desse modo, permitia os sacrifícios que nutriam os próprios
deuses.

O céu e a terra, o domínio dos deuses e o dos humanos, dependiam por


completo um do outro, podiam subsistir apenas como duas partes de um único
todo. O que garantia a subsistência do todo era rita e o que possibilitava a
existência desse grande princípio era o sacrifício. Este era, ao mesmo tempo, o
mais poderoso e mais indispensável sustentáculo do cosmos.

Todo sacrifício fortalecia rita, mesmo aqueles oferecidos pelo chefe de uma
casa na intimidade do lar; porém, o sacrifício oferecido por um rei tinha eficácia
especial. Embora o rei védico não passasse de um chefe guerreiro com poder de
mando sobre um pequeno principado, era o membro mais rico da comunidade, o
que lhe permitia promover oferendas suntuosas, em benefício tanto dos súditos
como do reino. Além de alimentar os deuses, cabia-lhe sustentar também os
brâmanes: todo sacrifício real era acompanhado por farta distribuição de
presentes para estes. Em geral, tais presentes incluíam vacas e terras de pasto,
pois o leite, a manteiga clarificada e as coalhadas eram os alimentos favoritos
dos deuses e faziam parte de todo sacrifício. O brâmane, por sua vez, dedicava-
se inteiramente ao fortalecimento de rita — e o fazia celebrando os sacrifícios.
Esses brâmanes atuavam ainda como conselheiros dos reis, o que também era
visto como afirmação de rita, pois o exercício de governo era um dos aspectos
da ordem cósmica.


Capítulo 10

Um deus se destacava dos outros: Rudra, o deus das terras incultas, das
regiões desabitadas e, portanto, dos aspectos perigosos e atemorizantes da
natureza.28 Imaginava-se que residia nas altas cordilheiras ao norte — enquanto
os outros deuses moravam no leste — e que freqüentava locais solitários e
insólitos. Mais proeminente nas crenças folclóricas do que no Rig Veda, Rudra
vivia à vontade com os animais selvagens e as serpentes. Figurava como
padroeiro dos caçadores, assim como dos ladrões e assaltantes. Trazia
enfermidade e morte para os seres humanos e para o gado. Mesmo assim, há no
Rig Veda hinos dedicados a esse deus e se faziam oferendas a ele, na esperança
de torná-lo menos hostil, pois era possível despertar sua compaixão e,
eventualmente, até mesmo fazê-lo atuar como prestativo curandeiro de homens e
animais.

Rudra vivia nas margens do mundo ordenado, sem pertencer inteiramente a


ele mas também sem ser um completo estranho. Já com os demônios a situação
era bem diversa. Eles estavam sempre empenhados em derrubar os deuses e
ocupar o lugar deles. A fim de alcançar tal objetivo, precisavam enfraquecer rita
— e tinham uma maneira própria de fazer isto.29 Sempre que um rei interferia na
vida dos brâmanes ou nas práticas normais de sacrifício, os demônios estavam
presentes. O mesmo valia para qualquer interferência na estrutura de classes,
pois estas eram definidas não só por seus papéis sociais, mas por sua relação
com o sacrifício. Tal interferência debilitava o mundo ordenado. Se não fosse
reprimida, se os demônios não fossem derrotados, o cosmos se desintegraria no
caos. Na prática, toda seca prolongada era considerada manifestação do caos e
sinal evidente de que os sacrifícios não haviam sido feitos da maneira correta.

Assim como os demônios haviam uma vez tentado impedir a criação do


mundo ordenado, agora se empenhavam em infligir danos àquele mundo, bem
como aos seres humanos e animais que nele viviam. Não havia limite para suas
nefandas atividades.30 Eles ameaçavam a propriedade, a boa sorte, a saúde e a
vida do indivíduo. Em duplas ou em bandos, os demônios vagueavam pela terra.
Por vezes, eram imaginados com uma aparência mais ou menos humana,
sobretudo com uma aparência de mulher, mas distorcida — olhos amarelos, três
cabeças. Em outras, eram concebidos como répteis ou animais — em geral
serpentes, mas também cães, corujas e abutres. Havia demônios que à noite
transformavam-se em animais e, sob a nova forma, voavam pelo ar, reuniam-se
em encruzilhadas e saltitavam em tomo das casas. As pessoas oravam ao deus do
fogo Agni para que mantivesse longe tais criaturas. Estas eram capazes de
grande malefício, pois traziam doenças e enfermidades. Alguns demônios
especializavam-se em penetrar nas vítimas e devorá-las a partir de dentro. Havia
momentos críticos — depois da morte de um parente ou depois de um
nascimento — em que a pessoa ficava particularmente vulnerável aos desígnios
maléficos dos demônios.

Os seres humanos podiam se aliar aos demônios. Um inimigo podia recorrer


a algum demônio para arruinar um sacrifício e, com isso, impedir que o ofertante
obtivesse os benefícios esperados. Os feiticeiros podiam empregar demônios,
adquirindo eles próprios características demoníacas. Também podia ocorrer que
toda uma categoria de seres humanos viesse a ser considerada como demoníaca.
Foi o que aconteceu com os chamados dasas, povos de pele escura que
ocupavam o norte da índia quando lá chegaram os indo-arianos. Sobretudo nas
lendas, era comum que os líderes dos dasas fossem vistos como demônios.

A residência permanente e quartel-general dos demônios era o mundo


subterrâneo. O Rig Veda não traz nenhum relato sistemático deste mundo, mas
inclui muitas alusões a ele e contém um hino particularmente esclarecedor.31
Ficamos sabendo que sob a terra há um abismo, um poço sem fundo envolto em
completa e eterna escuridão. Os seres humanos que se colocaram contra rita vão
para lá: não só os feiticeiros, mas todos os indivíduos que demonstraram pouca
consideração pelos deuses e pelos sacerdotes ou que negligenciaram seus
deveres. Por terem favorecido o deus deles, anrita, o oposto de rita, são mortos
pelos guardiões de rita, Soma e Agni, e expulsos do mundo ordenado.

Pois esse mundo, abrangendo a terra, o céu e tudo o que está acima deste,
funciona de acordo com rita. E o domínio do sol, da luz e das águas benéficas, é
o regaço da deusa Aditi, mãe dos Adityas, o lar seguro dos deuses e dos seres
humanos. O mundo subterrâneo, ao contrário, é o regaço de Nirrti, “destruição”.
Ali nunca chega o sol, não há luz, calor ou água fertilizante. No mundo
subterrâneo, não há rita, apenas anrita. Ele está fora do mundo ordenado, é o
domínio do caos.32


Capítulo 11

Aparentemente, aqueles que haviam cometido transgressões contra rita não


eram os únicos a ser lançados, após a morte, em uma desesperançada e
melancólica existência nas trevas eternas do mundo subterrâneo. É provável que
originalmente, na época dos proto-indo-iranianos, este fosse o destino de todos e
que nos tempos védicos tenha continuado a ser o destino das pessoas comuns.

O Rig Veda nada tem a dizer sobre as pessoas comuns — o que é bastante
compreensível, pois foi composto, em benefício próprio, por membros dos
estratos privilegiados da sociedade. Para os privilegiados, ele oferece uma
perspectiva das mais agradáveis. Contanto que tivessem honrado os deuses e
feito as apropriadas oferendas rituais, sido generosas com os sacerdotes e
cumprido suas respectivas funções no mundo, tais pessoas não tinham motivo
para se preocupar com o mundo subterrâneo. Ao contrário, podiam esperar por
uma vida após a morte tão feliz como a que aguardava os membros mais
afortunados da sociedade egípcia.

Os hindus védicos acreditavam que cada um desses indivíduos possuía um


espírito — uma substância imaterial semelhante a um sopro. Mas, embora o
espírito fosse distinto do corpo, ele não o abandonava para sempre após o
momento da morte. Quando o indivíduo morria, seu espírito dirigia-se tranqüilo
e contente para o céu — e lá reencontrava o corpo. Nem mesmo a cremação
impedia esse reencontro: se o corpo não tivesse sido danificado por algum
pássaro ou animal e se os ossos fossem reunidos após a cerimônia e dispostos de
maneira correta, o corpo todo seria reconstituído no mundo vindouro, pronto
para ser retomado pelo espírito. Em seguida, a vida era reiniciada.33

Os mortos continuavam a viver no céu, onde moravam com os Pais —


aqueles que haviam morrido antes deles — e com Yama, o primeiro homem e,
portanto, o primeiro a morrer. Agora ele reinava, sem governar de fato, no céu.
Este domínio bem-aventurado é descrito inúmeras vezes no Rig Veda: repleto de
luz radiante, harmonia e júbilo.34 Seus habitantes alimentam-se de leite, mel e,
claro, soma. Mantêm relações sexuais — ainda mais deliciosas porque todos
foram libertados dos defeitos físicos. O som de doces cantos e de flautas sempre
está presente. Há até mesmo vacas mágicas, que realizam todos os desejos que
um indivíduo tiver. Em resumo, após a morte a vida da minoria afortunada seria
uma versão muito mais aperfeiçoada da vida que ela levara na terra — uma vida,
além disso, que estaria livre, por fim e para sempre, das ameaças dos incansáveis
representantes do caos.

Porém, nada disso tinha a ver com o futuro do próprio mundo.


4 - ZOROASTRISMO

Capítulo 1

Em uma época na qual os hindus védicos ainda imaginavam que o mundo


estivesse em eterno equilíbrio, surgiu entre os iranianos uma concepção
completamente nova do tempo e das perspectivas da humanidade, graças ao
profeta Zaratustra — em geral mais conhecido pela forma grega e posterior de
seu nome, Zoroastro —, que veio a considerar toda existência como a gradativa
atualização de um plano divino.1 Também previu a derradeira conclusão deste
plano, uma gloriosa consumação em que as coisas alcançariam a perfeição de
uma vez por todas.

Quando tudo isto ocorreu? Existem duas opiniões, que não podem ser
conciliadas. Segundo a tradição zoroastriana, o profeta viveu 258 anos antes de
Alexandre, o que o situaria em meados do século VI a.C. Esta data foi aceita por
importantes estudiosos. No entanto, demonstrou-se que tal tradição derivava de
um cálculo tardio baseado em uma ficção grega.2 Por mais de um século, indícios
arqueológicos e lingüísticos vêm se acumulando em favor da concepção
alternativa — isto é, de que Zoroastro viveu em um período muito anterior, em
alguma época entre 1500 e 1200 a.C., quando os iranianos já eram pastores
assentados mas não agricultores.3 Os hinos litúrgicos do próprio Zoroastro, os
Gathas, fazem inúmeras alusões às instituições, costumes, tecnologia e maneiras
de pensar da sociedade pastoril tradicional, ao passo que não trazem um único
símile derivado da agricultura. Em certo trecho, o profeta chega a pedir ao deus
supremo que lhe conceda um camelo, um garanhão e dez éguas. Além disso, o
nome Zaratustra provavelmente significa “aquele que domina os camelos” ou
“aquele que possui camelos ágeis”.4

Quanto à região em que viveu Zoroastro, os estudiosos também não


chegaram a um acordo. Alguns sustentam que sua terra não era distante da pátria
original dos iranianos, em algum lugar ao sul dos Urais, onde hoje é o
Cazaquistão; outros afirmam tratar-se de uma região ao longo da rota das
migrações iranianas para o sul, no extremo leste do atual Irã ou no oeste no
Afeganistão. Todos, porém, concordam que o povo ao qual pertencia Zoroastro
acabou por se estabelecer na parte oriental do Irã. Os esforços dos sacerdotes
zoroastrianos de épocas posteriores para situar as origens de sua religião no Irã
ocidental não encontram confirmação nos fatos históricos. A religião já devia ser
muito antiga; antes de ter se difundido tão longe, já devia, na verdade, ter
adquirido o prestígio inviolável da extrema antigüidade, pois suas escrituras não
fazem a menor referência a nenhum rei, povo, local ou tradição do Irã ocidental.

Único entre os fundadores das grandes religiões, Zoroastro começou como


sacerdote de uma religião mais antiga, a religião tradicional dos iranianos — o
que significa que, desde a idade dos sete anos mais ou menos, deve ter sido
submetido a um rigoroso treinamento profissional. No entanto, se sua
mentalidade sempre permaneceu a de um sacerdote impregnado de doutrinas
antiquíssimas, Zoroastro também era dotado de um espírito audaz, original e
apaixonado. Segundo uma tradição, a partir dos vinte anos de idade levou por
algum tempo uma vida de peregrino, visitando visionários e videntes. Tais
indivíduos haviam existido durante incontáveis gerações e praticavam
disciplinas intelectuais bem estabelecidas. Mas a experiência e as realizações de
Zoroastro seriam únicas. Em algum momento, teve iluminações, ou alucinações,
nas quais viu e ouviu o grande deus Ahura Mazda — o Senhor da Sabedoria —,
circundado por outras seis figuras radiantes. Deste momento em diante, sentiu-se
como o profeta escolhido pelos deuses para difundir uma fé religiosa que diferia
bastante da fé tradicional.

Embora nunca tivesse como objetivo abolir a religião de seus ancestrais,


Zoroastro de fato procurou reformá-la, o que foi suficiente para atrair a
inimizade do clero tradicionalista. Como muitas vezes acontece — basta pensar
em Jesus e em Maomé —, Zoroastro não conseguiu se estabelecer como profeta
na região onde fora criado; assim, depois de alguns anos mudou-se para outro
lugar. E na corte do príncipe Vishtaspa encontrou um lar para toda a vida, onde
era venerado e onde suas doutrinas foram difundidas. Ele próprio parece ter
pregado para todos aqueles dispostos a escutá-lo — homens e mulheres, pobres e
ricos, ignorantes e letrados —, acenando com uma imortalidade bem-aventurada
para todos que aceitassem sua mensagem. Se, como parece provável, tal futuro
viera a ser considerado como algo reservado apenas a príncipes, guerreiros e
sacerdotes, estes certamente devem ter se enfurecido com o ataque do profeta a
esse monopólio. Outras inimizades surgiram: príncipes vizinhos tomaram em
armas para destruir a nova fé. Mas os adeptos do profeta foram vitoriosos no
campo de batalha e a fé sobreviveu.

Muito da história inicial do zoroastrismo permanece obscuro, mas existem


bons motivos para se pensar que, durante o primeiro milênio de sua existência, a
religião conseguiu se estabelecer em vastas áreas do nordeste e do leste
iranianos. Além do mais, a despeito de formidáveis barreiras geográficas,
alcançou também o Irã ocidental, que havia sido invadido e ocupado pelos
medas (no norte) e pelos persas (no sul); e o fez de maneira tão efetiva que, por
volta do século VII a.C., os sacerdotes hereditários do Irã ocidental, os magi,
haviam se convertido à nova fé. No início do século VI, muitos membros da
dinastia real dos aquemênidas eram zoroastrianos. E Ciro, o Grande, o monarca
persa que fundou o primeiro império iraniano em 549 a.C., provavelmente
também era adepto do zoroastrismo; se verdadeiro, isto deve ter facilitado tanto
sua conquista da Média, onde muitos nobres eram zoroastrianos, como a do Irã
oriental, onde se encontravam as mais antigas comunidades zoroastrianas. Sem
dúvida, o zoroastrismo logo se tornou a religião da casa real e a religião oficial
de todo o Irã; e assim permaneceu durante os dois séculos que durou o poderoso
império aquemênida. Mesmo quando este foi conquistado por Alexandre, o
Grande, em 334-31 a.C., e a dinastia aquemênida foi substituída pela dinastia
macedônica dos selêucidas, o zoroastrismo continuou a prosperar. E, ao longo
dos oito séculos do segundo e do terceiro impérios iranianos — o parta (ou
arsácida) e o sassânida —, do século n a.C. ao século VII d.C., voltou a ser a
religião oficial do Estado.

Quando, em meados do século VII, os exércitos muçulmanos originários da


Arábia afinal derrubaram o império sassânida, a grande época do zoroastrismo
começou a declinar. Embora as qualidades éticas instiladas pelos ensinamentos
de Zoroastro tivessem preparado a religião para sobreviver a incontáveis
vicissitudes, inclusive perseguições, ela gradativamente deixou de ser, em
termos numéricos, uma das principais religiões mundiais: na década de 1970,
restavam apenas cerca de 130 mil zoroastrianos. A maioria — cerca de 90 mil —
vivia no subcontinente indiano, para onde seus ancestrais haviam fugido muitos
séculos antes, a fim de escapar à opressão muçulmana — são os parses
(“persas”). No Irã, existem hoje menos de 20 mil adeptos do zoroastrismo.

Já o impacto do zoroastrismo é outra questão: embora em geral isto não seja


reconhecido, seu impacto foi, e continua sendo, imenso. Durante séculos antes
de Cristo, os ensinamentos básicos do zoroastrismo tiveram enorme difusão. Em
um capítulo posterior, será argumentado que eles exerceram grande influência
entre os judeus e mais ainda entre os cristãos primitivos — e, consequentemente,
sobre a visão de mundo que iria se tornar a própria civilização européia.


Capítulo 2

O zoroastrismo possuía escrituras sagradas, conhecidas coletivamente como


Avesta, termo cujo provável significado era algo como “elocução autorizada”. O
A vesta remanescente é apenas um quarto do original, e mesmo esta parte
provavelmente recebeu uma forma escrita apenas nos séculos V ou VI d.C. Até
então, sua preservação dependeu quase totalmente da transmissão oral, de uma
geração a outra, nas escolas sacerdotais. No entanto, embora o intervalo entre a
proclamação de Zoroastro e o século VI d.C. seja de cerca de dois mil anos, a
transmissão de suas palavras parece ter alcançado a mesma extraordinária
precisão da transmissão oral do Rig Veda.

Ainda que truncado, o Avesta continua sendo volumoso. Inclui dezessete


hinos compostos pelo próprio Zoroastro, os Gathas, escritos em uma língua do
Irã oriental tão arcaica que se aproxima da usada no Rig Veda. O restante do
Aves ta, também em dialeto do leste iraniano, é lingüisticamente de um período
posterior — e por isso costuma ser denominado Avesta “mais novo” ou
“posterior”. Nem por isso seu conteúdo é mais recente. Estudos atuais tendem a
considerar que, quaisquer que tenham sido os acréscimos e modificações em
séculos posteriores, o Avesta “mais novo” contém muitos ensinamentos originais
de Zoroastro, chegando mesmo a incluir algum material preservado por ele e
seus seguidores e que já na época provinha de um passado remoto. Depois, além
do Avesta, há as obras em pálavi e médio-persa, cuja redação final é apenas dos
séculos IX e X d.C. No entanto, elas incluem um resumo de todo o Avesta
original (o Dinkard) e longos trechos traduzidos de partes perdidas do Avesta.
Especialmente instrutivo é o livro em pálavi conhecido como Bun- dahishn
(“criação”), que trata tanto da criação do mundo ordenado como de seu destino
final.

A despeito de certos obstáculos, essas várias obras permitiram aos


estudiosos reconstruir, com razoável grau de confiabilidade, não só os
ensinamentos do próprio Zoroastro e dos teólogos que interpretaram e
elaboraram tais ensinamentos, como também a visão de mundo da sociedade
iraniana na qual ele nasceu. Como seria de esperar, esta apresentava estreita
semelhança com a visão de mundo védica. Em ambas, é fundamental a
concepção de uma ordem que a tudo abrange. Entre o povo que produziu
Zoroastro — os estudiosos os chamam “avestanos”, por causa do Avesta —, o
termo indo-iraniano rita era conhecido como asha, mas tinha o mesmo
significado.6 O panteão que de várias maneiras sustentava asha também era em
grande parte semelhante. O Avesta contém vários yashts, ou hinos de louvor,
dedicados às antigas divindades pré-zoroastrianas7 — e algumas delas são
contrapartidas exatas das divindades védicas. O deus do fogo, Atar, apresenta a
mesma natureza e as mesmas funções de Agni, Haoma é o mesmo deus
conhecido como Soma e a deusa-rio Saravasti figura em ambos os panteões.

Muitos deuses menores também contribuíam para a manutenção de asha:


deuses que personificavam conceitos como a hospitalidade devida a um
convidado, a prosperidade que se esperava de um contrato de casamento, as
preces que asseguravam a vitória no campo de batalha. Tais divindades podiam
ser “abstratas”, mas não eram de modo algum remotas: ao contrário, para seus
adoradores eram forças altamente individualizadas e sempre presentes. O mesmo
se aplicava ao deus que representava as almas de todos os animais úteis, o deus
que representava a cura e a inspiração, os deuses que personificavam o céu, a
terra, o sol, a lua — e muitos, muitos outros. A maioria desses deuses
secundários tinha igualmente sua contrapartida védica.

Porém, o Avesta diverge do Rig Veda na abordagem dos deuses supremos


que trouxeram à luz o mundo ordenado e continuavam responsáveis por sua
supervisão. Indra é mencionado apenas de passagem, e mesmo assim como um
demônio. Varuna está presente — se é que se trata dele — apenas como o
obscuro “Filho das Águas”. Por outro lado, o Mithra iraniano sobressai como
figura muito mais impressionante do que o Mitra védico. O deus que domina a
visão de mundo avestana é Ahura Mazda, o “Senhor da Sabedoria”, e não se
sabe com clareza se os sacerdotes védicos tinham dele qualquer conhecimento.8

Não há desacordo entre os estudiosos sobre o significado dessas


discrepâncias. No capítulo seguinte, será argumentado que elas têm implicações
muito maiores do que se poderia imaginar à primeira vista. Entretanto, um fato é
reconhecido por todos e pode ser dado como certo: Zoroastro deu a Ahura
Mazda uma posição muito mais exaltada do que a atribuída a qualquer divindade
no mundo antigo.


Capítulo 3

Segundo uma antiga doutrina indo-iraniana, no início havia apenas um


exemplar de cada ser — uma planta, um animal, um homem. Talvez tenha sido
refletindo sobre essa singularidade primordial que Zoroastro chegou à convicção
de que no começo havia apenas um único deus. E, não há dúvida, proclamou
que, em alguma época do passado, Ahura Mazda, o inteiramente sábio, justo e
bom, havia sido o único deus. Ele próprio incriado, Ahura Mazda foi a causa
original de tudo o que é bom no universo, seja divino ou humano, animado ou
inanimado, abstrato ou concreto — em resumo, foi ele a causa original de asha e
de tudo o que está de acordo com asha.

A dignidade única de Ahura Mazda como criador e guardião do mundo


ordenado é o tema de um dos mais belos Gathas:
Isto eu pergunto a Ti, diga-me verdadeiramente. Senhor. Quem, no início, na criação, foi o Pai
de Asha? Quem estabeleceu o curso do sol e das estrelas? Graças a quem a lua cresce e
depois diminui? Isto e ainda mais, ó Mazda, eu quero saber. Isto eu pergunto a Ti, diga-me
verdadeiramente, Senhor. Quem sustentou a terra de baixo para cima e impediu que os céus
caíssem? Quem [sustentou) as águas e as plantas? Quem atrelou velozes cavalos aos ventos e
às nuvens? Isto eu pergunto a Ti, diga-me verdadeiramente. Senhor. Qual artesão criou a luz e
a escuridão? Qual artesão criou tanto o sono como a vigília? Graças a quem existem a
aurora, o meio-dia e a véspera, que lembram ao devoto seu dever? [...] Quem fez o filho
devidamente respeitoso do pai?9

Em conseqüência, Ahura Mazda era merecedor da suprema adoração — e


no credo zoroastriano a religião é de fato chamada de “adoração de Mazda”.

Embora no início Ahura Mazda fosse o único ser divino, não era o único
ser. Os iranianos sempre haviam reconhecido a existência de um princípio que
era a própria negação de asha — um princípio de falsidade ou distorção, uma
força de desordem atuando incessantemente no mundo. Eles o denominavam
druj, que significava “falsidade”, “a Mentira”, e o conceito parece ter significado
mais para eles do que o termo correspondente, druh, significava para os hindus
védicos. Zoroastro elaborou ainda mais tal conceito: Ahura Mazda tinha um
poderoso antagonista em Angra Mainyu, o espírito da destruição, do mal ativo.

Nos Gathas, o profeta deixou um resumo disto, sua principal revelação: “Na
verdade existem dois espíritos primordiais, gêmeos conhecidos por estarem em
conflito. Em pensamento e palavra, em ato eles são dois: o melhor e o pior
[...]”.’° Também nos Gathas, as palavras usadas por Ahura Mazda para repudiar
seu grande adversário tocam no ponto crucial: “Nem os nossos pensamentos,
ensinamentos ou vontades, nem as nossas escolhas, palavras ou atos, nem o
nosso eu interior ou a nossa alma estão de acordo”.11

No pensamento de Zoroastro, os espíritos gêmeos personificavam as forças


que sustentavam o cosmos e as forças que tentavam solapá-lo. Originalmente,
embora fossem sobre-humanos e sobrenaturais, tiveram de escolher entre os dois
princípios. Ahura Mazda, de acordo com sua natureza profundamente moral,
decidiu apoiar asha, enquanto Angra Mainyu, movido por sua perversidade
moral, escolheu ficar ao lado de druj. Assim teve início uma luta cujas
vicissitudes constituem o passado, o presente e o futuro do mundo.

Essa reinterpretação das concepções tradicionais teve enormes implicações.


Para as primeiras gerações, a ordem estabelecida pelos deuses, embora
constantemente perturbada, havia sido nâo obstante essencialmente estática. Isso
continuava a ser verdadeiro no caso dos hindus védicos: do mundo retratado no
Rig Veda ainda se podia dizer que assim como as coisas haviam sido, assim
continuariam a ser. Para Zoroastro e seus seguidores, por outro lado, nada era
estático. O ataque de Angra Mainyu contra asha, a defesa de asha por Ahura
Mazda, embora prosseguissem por muito tempo não continuariam para todo o
sempre. O mundo era um campo de batalha, a batalha ainda estava sendo
travada, mas teria um fim.

O próprio tempo estava em movimento, seguindo adiante. Nos escritos


teológicos de Zoroastro, há uma distinção entre, de um lado, o tempo ilimitado,
ou eternidade, e, de outro, o tempo “limitado” ou “enclausurado”. A luta entre
Ahura Mazda e Angra Mainyu ocorre no interior do tempo “limitado”; sua
conclusão irá assinalar o fim do tempo limitado e o começo de uma eternidade
de beatitude. Pois no final Angra Mainyu será destruído, druj deixará de existir,
asha irá prevalecer por toda parte, e para sempre o cosmos ficará livre das forças
do caos. Desse modo, o objetivo de Ahura Mazda será alcançado e o plano
divino estará completo. Tudo isso é uma sistematização do que está implícito no
pensamento do próprio profeta.


Capítulo 4

Desde o início, portanto, defrontaram-se os dois espíritos. Mas, se iriam


travar uma guerra cósmica, precisavam de aliados — e, como não havia nenhum
possível aliado, seria preciso criá-los. O antagonismo entre os dois espíritos
começou a se exprimir de modo ativo, na criação e na contracriação.

A fim de realizar sua obra como criador, Ahura Mazda recorreu a um


intermediário, um ser provavelmente derivado do deus- artesão indo-iraniano —
que aparece no Rig Veda sob o nome de Tvastr e é mencionado de passagem no
Avesta. Este ser era o Spenta Mainyu, o “Espírito Santo”, representante de Ahura
Mazda, embora dele não se distinguisse.

O Senhor da Sabedoria começou criando seis poderosos seres divinos para


auxiliá-lo — as figuras radiantes da revelação inicial do profeta. Uma delas é
asha, e os nomes das outras podem ser traduzidos por Bom Pensamento,
Domínio (exercido corretamente), Devoção, Totalidade e Imortalidade; sem
dúvida correspondem a conceitos-chave na tradicional cultura intelectual.
Conhecidos coletivamente como Amesha Spentas (“Santos Imortais” ou
“Generosos Imortais”), todos são subordinados a Ahura Mazda e atuam apenas
de acordo com sua vontade.

Os zoroastrianos também continuaram a adorar os deuses do tradicional


panteão indo-iraniano, sobretudo aqueles a quem eram dedicados yashts no
Avesta; mas os estudiosos não estão de acordo se o próprio Zoroastro os incluía
entre os seres criados por Ahura Mazda ou se foram reintroduzidos na religião
em uma etapa posterior. Porém, não há nenhuma dúvida quanto ao grande ato
criativo de Ahura Mazda: com a ajuda dos seis Santos Imortais, ele fez com que
o mundo ordenado passasse a existir.

A cosmogonia de Zoroastro, tal como se encontra nos Gathas, foi depois


elaborada e explicitada por gerações de teólogos zoroastrianos. O resultado é
descrito de maneira mais completa no Bundahishn em pálavi, que, embora tenha
recebido sua forma final apenas no século IX ou X d.C, faz inúmeras citações
diretas de fontes anteriores, algumas delas contendo material bem arcaico.12

A fonte original parece ter sido um mito cosmogônico que já estava


estabelecido antes de Zoroastro, resultante de séculos de reflexão nas escolas
sacerdotais. Seus lineamentos podem ser reconstituídos a partir do Bundahishn.
Trata-se do relato do modo como os deuses criaram — ou melhor, arranjaram,
organizaram — o cosmos em sete etapas ou “criações”. A primeira e a segunda
“criações” foram a do céu — uma grande concha arredondada, feita de pedra —
e a da água, que encheu a concha pela metade. Em seguida, foi criada a terra,
como um grande prato achatado flutuando na água; e, depois, no meio da terra,
uma única planta, um único animal (um touro) e um único homem. O fogo veio
por último e tomou duas formas: como o fogo visível e como força vital
invisível, difusa por todas as “criações” animadas.

No início, o sol causticante permaneceu imóvel no alto: o mundo não tinha


nenhum movimento, nada mudava, suspenso ao meio-dia. O início do mundo
mutável e em movimento que conhecemos foi determinado pelo destino do
primeiro touro, do primeiro homem e da primeira planta.

No princípio, os três levavam uma existência tranqüila no centro do mundo.


O touro — “o Touro Único” — era gigantesco, branco, brilhante como o sol e
vivia à margem de um rio. Na margem oposta encontrava-se o homem, cujo
nome, Gayo-Maretan (Gayomard, em pálavi), significava “Vida Mortal”; era
igualmente largo e alto, e tão brilhante quanto a lua. As mudanças tiveram início
quando o touro e o homem foram sacrificados pelos deuses: da semente deles
surgiu a multiplicidade de animais e seres humanos.13 Quanto à planta —
imaginada como “úmida e leitosa, sem galhos, sem casca” —, os deuses a
maceraram e da seiva surgiram todas as plantas.

Desse modo foi desencadeado o ciclo da vida, com a morte seguindo-se à


vida e uma geração sucedendo a outra. O sol começou sua jornada regular
através do céu, as estações começaram a percorrer seu curso regular. O mundo
ordenado havia passado a existir e, enquanto os seres humanos cumprissem sua
parte, ele nunca falharia. Os pensadores que elaboraram essa cosmogonia
estavam sem dúvida mais interessados na origem e na natureza física das coisas
do que em problemas morais e espirituais. Zoroastro, por outro lado, estava
menos preocupado com o processo de criação do que com seu propósito.
Quando retomou a doutrina antiga, ele a rein- terpretou de maneira drástica, a
fim de adaptá-la à sua própria visão de mundo profundamente ética. Ainda
segundo o Bun- dahishn — e aqui sua influência é confirmada pelo ritual zoroas-
triano —, o profeta deixou cada uma das sete “criações” sob os cuidados dos
grandes Santos Imortais: o céu sob o Domínio, a água sob a Totalidade, a terra
sob a Devoção, as plantas sob a Imortalidade e os animais sob o Bom
Pensamento; o homem foi colocado sob os cuidados do próprio Ahura Mazda,
ou de seu Espírito Santo, e o fogo ficou sob os cuidados de asha.

Muito antes da época de Zoroastro, os indo-iranianos haviam considerado o


fogo uma divindade. Para os hindus védicos, assim como para os iranianos, o
fogo era um dos principais objetos de culto, ao qual todos os dias eram feitas
oferendas devotas. Associando o fogo ao próprio princípio compreensivo da
ordem, o profeta atribui a ele um sentido ainda mais profundo, como a força vital
presente em todas as criações. Estabeleceu que seus seguidores deveriam orar na
presença do fogo, fixando nele os olhos e concentrando o pensamento em asha,
na justiça e na verdade. Suas palavras nunca foram esquecidas. Quando, no
período aquemêni- da, os zoroastrianos ergueram seus primeiros templos, o local
no santuário que em muitas religiões seria ocupado por uma imagem foi
reservado para um fogo sagrado que era mantido permanentemente aceso. E até
hoje os zoroastrianos fazem suas orações perante o fogo — seja a prece familiar
junto ao fogo doméstico, seja a prece de sacerdotes perante um fogo ritual, seja a
prece de um indivíduo diante dos grandes fogos naturais do sol e da lua.

Portanto, cada uma das sete “criações” ficou sob os cuidados de um Santo
Imortal. “Cuidado”, porém, é um termo vago. Na prática, cada um dos grandes
Santos Imortais era identificado com sua “criação”, sendo imanente a ela e
responsável por sua proteção. Por exemplo, a Devoção e a terra humilde eram os
aspectos espiritual e material de uma única coisa; imaginava-se que o Espírito
Santo, procedente do deus supremo, penetrava e habitava em toda pessoa devota;
e o princípio da ordem, da justiça e da verdade estava presente em todo fogo. Na
verdade, os grandes Santos Imortais tinham um duplo significado: eram, ao
mesmo tempo, personificações dos mais elevados valores espirituais e guardiões
do mundo físico; habitavam as alturas juntamente com Ahura Mazda, mas
permeavam toda a existência no mundo terreno. Ao concebê-los, Zoroastro
entrelaçou o espiritual e o material, de modo que o próprio mundo físico — ou,
antes, tudo o que havia de bom e íntegro no mundo físico — foi visto como
impregnado de próposito moral e dirigido pela busca espiritual.

Os teólogos zoroastrianos sempre ensinaram que Ahura Mazda primeiro


criou o mundo em um estado incorpóreo e espiritual, e só depois o transformou
no mundo tangível, visível e material que conhecemos. Essa transmutação do
incorpóreo no corpóreo de modo algum representou uma queda, uma
degeneração — foi um completamento, uma realização: para os zoroastrianos, a
materialidade era um acréscimo bem-vindo.
A própria criação do mundo ordenado tinha um propósito moral, ou seja, a
derrota de Angra Mainyu. O objetivo era atrair a hostilidade e a fúria destrutiva
dessa força terrível. Ao trazê-lo à existência, Ahura Mazda criou um cenário no
qual seus aliados podiam travar uma luta conjunta contra as forças do caos,
confundindo-as e, no fim, aniquilando-as — uma armadilha em que Angra
Mainyu iria cair e na qual se consumiria por inteiro.14

A porção de “tempo limitado” durante a qual o mundo sofre os ataques de


Angra Mainyu é conhecida como “tempo da mistura”. A expressão é apropriada,
pois desde o início tal ataque visava macular a pureza de cada uma das sete
“criações”. Embora o céu fosse feito das “mais duras pedras”, o espírito maligno
o impregnou. Em seguida, contaminou a água, tornando-a quase toda salgada.
Penetrou no solo, transformando grande parte dele em deserto. Poluiu até o fogo,
a mais pura das criações, mesclando a fumaça a ele. Acima de tudo, destruiu
aquelas “criações” que estavam vivas — a planta original, o animal original, o
homem original.

Desse modo, a matança que, segundo os ensinamentos tradicionais, havia


sido realizada pelos deuses como sacrifício, agora era levada adiante por Angra
Mainyu, movido por pura maldade. O resultado, porém, era o mesmo: a criação
do mundo mutável e contínuo. Pois Ahura Mazda e os Santos Imortais
revidaram o ataque homicida de Angra Mainyu com um maciço contra-ataque:
para substituir os seres únicos que ele havia assassinado, criaram toda a
multiplicidade de plantas, animais e seres humanos. Em outras palavras, a
multiplicação dos seres vivos, que na visão de mundo tradicional deveu-se
simplesmente à beneficência dos deuses, revelava-se agora parte da estratégia de
Ahura Mazda para reduzir Angra Mainyu à impotência. E o que no início parecia
ser a maior vitória deste acabou se revelando uma derrota irreversível.


Capítulo 5

Assim como Zoroastro transformou as noções tradicionais a respeito de


como o mundo foi ordenado, do mesmo modo ele e seus seguidores
transformaram as noções tradicionais a respeito daquilo que os seres humanos
deviam aos deuses.

Os deuses iranianos — “os Imortais”, “os Esplendorosos”, como eram


chamados — eram na maioria benevolentes em relação a seus adoradores, mas
também necessitavam de seu apoio. Para os iranianos, o sacrifício tinha a mesma
importância crucial que lhe atribuíam os hindus védicos. Era uma forma de
hospitalidade pela qual se esperava retribuição, mas ia além disso. Um indivíduo
podia adorar um deus para alcançar seu favor, mas — como na índia védica e em
outras sociedades antigas — a adoração tinha outro objetivo mais amplo:
propiciar aos deuses condições e estímulos para que agissem em prol do bem
comum. Adorados de maneira adequada, com louvações eloqüentes e sacrifícios
generosos, os deuses e deusas mostravam-se mais inclinados a manter asha e
estavam mais bem equipados para tanto. A fertilidade e a prosperidade, a
moralidade e as transações justas, a vitória na guerra — todas essas diversas
manifestações de asha dependiam dos esforços de deuses que haviam sido
favorecidos e fortificados pelas preces e oferendas dos seres humanos.

Os sacrifícios eram oferecidos regularmente por todos os lares. As


oferendas consistiam em ingredientes que representavam os reinos animal e
vegetal — quase sempre leite, manteiga, pedaços de carne, seiva de plantas.
Havia também sacrifícios sacerdotais diários que seguiam um ritual
extremamente elaborado, baseado na cosmogonia iraniana, que diferia da védica,
como vimos. Todos os dias, os sacerdotes reencenavam simbolicamente o
sacrifício original pelo qual os deuses haviam estabelecido o mundo ordenado.
Nesses sacrifícios, todas as “criações” — pedra, água, terra, plantas, animais,
fogo — eram representadas por objetos consagrados pelo sacerdote, o qual
representava ele próprio a “criação” do homem. Por meio dessas consagrações,
todos os aspectos do cosmos eram purificados e abençoados.15

Assim como no caso dos hindus védicos, o local onde se fazia o sacrifício
não era um templo, mas um pequeno trecho de solo plano ao ar livre, consagrado
por preces e delimitado por um sulco, de modo a excluir dali as forças do caos.
Cada sacrifício era realizado para uma divindade específica invocada pelo nome,
com fórmulas rituais adequadas e as abundantes louvações apropriadas a um
convidado de honra. Depois do serviço, a carne do animal sacrificado — que, em
ocasiões especiais, podia ser um cavalo, um touro ou uma vaca — era partilhada
pelo sacerdote e os devotos. O próprio deus era fortalecido pelo odor da carne
assada. Também se oferecia a ele uma refrescante bebida de leite, romã e haoma
— pois essa maravilhosa planta-sacerdote-deus era tão crucial no culto iraniano
quanto no védico. Como diz uma passagem do Avesta: “Até a mais leve
compressão de haoma, até o menor desfrute de haoma basta para destruir um
milhar de demônios”.16

Graças ao constante fluxo de sacrifícios, sacerdotais e individuais, os


processos inaugurados pelos deuses no início continuariam interminavelmente: o
sol sempre se levantaria, a chuva cairia, as plantas cresceriam, o mundo
permaneceria habitável para os seres humanos. Não fosse por esses sacrifícios,
as trevas, a seca e a selva cobririam toda a terra.

Todas essas obrigações tradicionais eram aceitas por Zoroastro e foram


adotadas por seus seguidores; na verdade, constituem a base do ritual
zoroastriano até hoje. O profeta, contudo, reconhecia outras obrigações, mais
prementes, e também estas continuaram a ser reconhecidas ao longo do tempo.
Todo zoroastriano sabe que, dentre os seres criados por Ahura Mazda para
povoar o mundo, os humanos são os únicos a arcar com uma responsabilidade
imensa e a ter a possibilidade de prestar um serviço imensamente valioso.

Assim como os dois espíritos escolheram no início ser respectivamente o


bem e o mal, do mesmo modo cada indivíduo precisa escolher entre os valores
construtivos e destrutivos representados pelos dois espíritos. No centro mesmo
do zoroastrismo encontra-se a noção de liberdade de escolha. Aqueles que
escolhem o bem tornam-se, depois dos Santos Imortais e dos deuses, os mais
preciosos aliados de Ahura Mazda na luta contra Angra Mainyu. A intenção do
deus supremo é, precisamente, que os seres humanos sejam seus principais
protagonistas entre as criaturas mortais, defendendo asha e combatendo druj. No
drama cósmico, eles receberam o papel de um redentor coletivo: passo a passo,
em colaboração com as forças divinas, devem preparar o mundo para a
salvação.17

Os meios para tanto são ao mesmo tempo espirituais e materiais, pois, como
sempre no zoroastrismo, ambos estão de tal forma entrelaçados que chegam a ser
indistintos. Espera-se de um ser humano que faça tudo ao seu alcance para
promover o bem-estar e a prosperidade do mundo, mas também seu próprio
bem-estar e prosperidade. Aqueles que assim agem reafirmam os valores mais
elevados, cumprem o supremo dever religioso. Uma passagem no tratado em
pálavi conhecido como Preceitos selecionados dos antigos sábios ou,
alternativamente, como O livro do conselho de Zartusht, que de fato é um
catecismo zoroastriano, resumindo aquilo que todos os meninos e meninas de
quinze anos devem saber antes de serem confirmados na religião, ilustra muito
bem este ponto:
O primeiro [dever] do homem é professar a religião e praticar e adorar segundo ela. Segundo,
deve tomar uma esposa e gerar uma prole terrena. Deve ser diligente nisto e não negligenciá-
lo de forma alguma. Terceiro, deve transformar o solo em terra arável e cultivá-la. Quarto,
deve tratar bem os animais domésticos. Quinto, deve reservar um terço de seus dias e noites
para freqüentar a escola sacerdotal e indagar sobre a sabedoria dos homens justos; um terço
de seus dias e noites deve dedicar ao trabalho e à geração de prosperidade; e um terço de seus
dias deve reservar para alimentar-se, divertir-se e descansar.18


A esta passagem podemos acrescentar outra, de um texto litúrgico conhecido como Vendidad, ou
Contra os seres maléficos:

Aquele que semeia o grão semeia asha e promove e estimula a [...] religião com uma centena
de novos domicílios [...] Quando o grão está preparado, os demônios começam a suar; quando
é feita a moagem [ou joeiramento], os demônios berram; quando a massa está pronta, os
demônios perdem o fôlego.19

A primeira dessas passagens data do período islâmico, a segunda é


provavelmente do final do período parta, e ambas obviamente se destinam não a
pastores, mas a agricultores sedentários.

Apesar disso, ajustam-se bem aos ensinamentos do profeta: já nos Gathas o


homem devoto é aquele que cuida da criação “boa” e a conserva. Nos Gathas, o
homem devoto é tipicamente o bom boiadeiro: paciente, disciplinado, corajoso,
sempre alerta para defender a “boa” criação contra os predadores, animais ou
humanos, que ameaçam seu bem-estar.20

O pastoreio do gado é na verdade tratado como modelo para o


comportamento ético em geral e o bom boiadeiro ocupa lugar muito semelhante
ao do bom pastor da Bíblia.
Há outra maneira pela qual se espera que um zoroastriano auxilie Ahura
Mazda: pela observação estrita de diversas leis de pureza. Estas impõem uma
atenção redobrada em relação à limpeza pessoal e incluem também várias
exigências rituais. A finalidade comum de todas elas é fortalecer o mundo
ordenado — a “boa” criação de Ahura Mazda — e enfraquecer as forças do
caos, incorporadas na contracriação de Angra Mainyu. Isto só pode ser
alcançado se ambas forem mantidas rigorosamente separadas. Um cadáver, por
exemplo, representa uma vitória para Angra Mainyu, e se for permitido que entre
em contato com qualquer parte da “boa” criação, ele tenderá a corroer o todo.
Portanto, qualquer um que permita que um corpo morto toque a terra ou a água
estará estimulando a seca no verão e a neve profunda no inverno, desastres que,
por sua vez, irão matar o gado “bom”. O mesmo valia para a sujeira, a ferrugem,
o mofo e as pragas, assim como para tudo o que era eliminado pelo corpo
humano — não só o excremento, mas também a pele morta, as unhas cortadas, o
cabelo que caía e, acima de tudo, o sangue. Nos livros em pálavi, as espécies
animais danosas aos seres humanos — insetos como formigas, besouros,
gafanhotos; répteis como escorpiões, lagartos e serpentes; animais de rapina,
como lobos — também são considerados instrumentos de Angra Mainyu,
criados para secundá-lo no esforço de danificar o mundo ordenado.21 Um dos
deveres dos zoroastrianos é destruir tais criaturas.

Essas elaborações da doutrina dualista do profeta provavelmente foram


formuladas logo no início da história da religião. Graças a elas os zoroastrianos
mantinham, desde o início, um relacionamento com o cosmos muito diferente
daquele de outros povos do mundo antigo, com exceção apenas dos judeus.
Enquanto em outras sociedades o povo se limitava a contribuir para as oferendas
que os sacerdotes faziam aos deuses e assim, indiretamente, ajudava a manter a
ordem do mundo, um zoroastriano empenhava-se de maneira constante e direta,
cumprindo obrigações que afetavam todos os aspectos de sua vida. Por um lado,
isto representou uma democratização: todos os membros da comunidade
participavam, através das tarefas comuns do dia-a-dia, na manutenção e no
fortalecimento do mundo organizado — na verdade, todos estavam preparando o
caminho para a consumação final, quando o mundo se tomaria perfeito. Por
outro lado, as regras relativas à vida cotidiana, que foram proliferando ao longo
dos séculos, estabeleciam uma barreira entre os zoroastrianos e os outros povos:
tal como os judeus, os zoroastrianos constituíam um povo isolado.


Capítulo 6

Ahura Mazda contava com outros aliados importantes entre as criaturas


mortais que trouxera à luz. Embora não fosse explicitamente santificado como
na índia védica, o gado era valorizado como parte integrante da comunidade,
juntamente com os seres humanos. Aos olhos de Zoroastro, a vaca nutritiva, de
temperamento brando e maternal, era o supremo representante dos animais
“bons’’ dos quais dependia a vida humana. E isso não era tudo: a vaca e o boi —
assim como o carneiro ou a ovelha na Bíblia — podiam facilmente ser
transformados em símbolos da bondade perseguida. Se, por um lado, o sacrifício
regular e devoto de uma vaca ou um boi era aprovado pelo profeta — como o
fora pelos proto-indo-iranianos e como ainda era pelos hindus védicos —, era-
lhe ultrajante, por outro lado, a maneira com que bandos de ladrões de gado se
apoderavam de manadas inteiras e as conduziam para longe dos pastos
verdejantes, levando-as para regiões secas ou então abatendo-as para consumo.
Ele via a si mesmo como o grande defensor desse gado-vítima. Todo um Gatha
é dedicado à difícil situação da vaca, indefesa em um mundo repleto de
violência. Quando a “alma da vaca” apela por socorro a Ahura Mazda, este
responde que a única ajuda efetiva deve vir de Zoroastro.22

Outros aliados preciosos são os cães. Nos longos períodos anteriores à


domesticação do cavalo, os pastores recorriam aos cachorros para controlar a
manada — e o profundo respeito que devotavam a esses animais leais e
afetuosos passou para os ensinamentos de Zoroastro. Havia muita literatura oral
sobre cães; um fragmento remanescente — um capítulo do Vendidad —
descreve de que maneira o cão de um boiadeiro, sendo uma criatura do Espírito
Santo, passa todas as noites matando as criaturas do Espírito Maligno e alertando
contra a grande praga da vida pastoril, os lobos.23 Ainda hoje, os zoroastrianos
não apenas consideram os cães criaturas devotas como sustentam que o olhar do
cão é purificador, uma força que afasta os demônios. Nos funerais zoroastrianos,
por exemplo, é indispensável a presença de um cão, que purifica o cadáver com
seu olhar e assim fortalece a “boa” criação. Na verdade, porém, todos os animais
úteis ao homem são considerados úteis a Ahura Mazda na luta contra Angra
Mainyu. Por isso, todas essas criaturas merecem ser tratadas com consideração.

Em seguida, havia os fravashis — que podem ter sido os espíritos de heróis


zoroastrianos mortos, mas também simplesmente os espíritos dos ancestrais; seja
como for, eles atuavam como protetores dos vivos. Eram imaginados como
guerreiros alados, femininos como as valquírias, vivos e muito poderosos. Os
textos nos contam de que modo dezenas de milhares de fravashis podiam
avançar, “cada um deles buscando obter água para a própria família, para a
própria aldeia, para a própria tribo, para a própria região”. Eram evocados em
tempo de guerra, e nunca em vão: “Quando um poderoso governante da terra foi
ameaçado por adversários hostis, ele então os convocou, os poderosos fravashis
dos justos. Eles virão em sua ajuda [...]; podem voar até ele como pássaros de
belas asas. Eles o servem como arma e como braços [...]”. E eles se
empenhavam em assegurar a continuidade do povo: “É graças ao seu esplendor e
à sua glória que as mulheres concebem filhos [...] têm um parto fácil e muitos
filhos”.24

Os fravashis são incluídos entre os seres divinos que sustentam e fortalecem


asha. Existe um hino em que o próprio Ahura Mazda lhes rende homenagem,
como aliados indispensáveis. Não fosse pela intervenção das poderosas almas
dos justos, diz ele, todo o poder teria passado para o lado de druj; Angra Mainyu
teria conquistado tudo sobre a terra — e, uma vez estabelecido, jamais abriria
mão de seu domínio.25

Pois Angra Mainyu também contava com aliados poderosos. Os iranianos


sempre haviam se sentido ameaçados por demônios e, no Avesta, as hostes
demoníacas são interpretadas como sendo as hostes do Espírito do Mal.26 Os
Gathas relatam de que maneira, no início, os demônios decidiram se aliar a
Angra Mainyu, com o resultado de que “foram tomados pela Fúria, com a qual
afligiram o mundo e a humanidade”.27 Acima de tudo, os demônios estavam
constantemente seduzindo as pessoas para que os adorassem. Zoroastro sem
dúvida sabia de um culto dedicado a certos demônios e horrorizava-se. Um culto
destinado a aplacar e a propiciar as forças maléficas em ação no mundo seria
muito atraente para um grande número de pessoas que sofriam as vicissitudes e
misérias da vida — mas, aos olhos de Zoroastro e de seus seguidores, isto era
apenas a negação de tudo o que Ahura Mazda pretendia para o seu mundo bom.

Era enorme a quantidade de demônios, todos empenhados em ajudar Angra


Mainyu nos esforços para arruinar o mundo “bom” criado por Ahura Mazda.
Tudo o que prejudicasse o gado ou destruísse as colheitas era personificado
como um demônio. O ambiente natural estava repleto deles. As regiões inóspitas
além dos limites das terras ocupadas e das pastagens eram lugares temidos, nos
quais não se entrava sem risco de vida. Nas trevas noturnas também
proliferavam demônios. Somente o nascer do sol os impedia de destruir tudo no
mundo, de tal modo que nem os deuses encontrariam lugar para ficar.

Demoníacas também eram todas as tendências nos seres humanos — tais


como a ira, a inveja e a preguiça — que os levava a transgredir algum princípio
da ordem. O mesmo valia para tudo o que assaltava o corpo da pessoa: a velhice,
a doença, a fome e a sede eram todas imaginadas como demônios tentando
incessantemente impedir a atuação de asha. Acima de tudo, a morte era um
triunfo dos demônios. Um aterrorizante demônio feminino chamado Nasu
instalava-se no cadáver no próprio instante da morte, enquanto outros demônios
com nomes como “aquele que ata o corpo” e “aquele que arrasta o corpo”
ficavam à espreita.

Seria um equívoco interpretar essas operações demoníacas de acordo com


concepções modernas de saúde e higiene; elas eram incidentes no ataque de
Angra Mainyu contra a “boa” criação. E, por este motivo, apenas o cadáver de
um zoroastriano devoto sofria dessa maneira — o cadáver de um servo de druj
estava imune, pois tal pessoa não tinha lugar nos domínios de Ahura Mazda.28

As leis de pureza eram consideradas salvaguardas contra as hostes


demoníacas. No Vendidad são relacionadas as precauções necessárias quando se
corta as unhas. A pessoa deve enterrar os pedaços de unha ao mesmo tempo em
que pronuncia uma fórmula mágica e traça um sulco nove vezes em torno do
local. Em seguida, deve dedicar os pedaços de unha à coruja, a ave predileta de
asha, de maneira que esta possa usá-los como dardos e flechas contra os
demônios. De outro modo, os pedaços de unha cairão nas mãos dos próprios
demônios e eles é que os usarão como dardos e flechas.

Os demônios, pelo menos os mais importantes, eram conhecidos como


daevas. Tradicionalmente, o termo foi aplicado a todos os seres divinos, sem
qualquer distinção, mas para Zoroastro e seus adeptos os daevas eram a
contrapartida negativa dos Santos Imortais. Assim como estes se dedicavam à
manutenção de asha, os daevas empenhavam-se em sua destruição. O yasht 13
conta de que modo, anteriormente, os daevas conseguiram até mesmo
interromper o movimento dos corpos celestes: “As estrelas, a lua, o sol e as
luminárias antes permaneciam imóveis em seus lugares, devido à hostilidade dos
daevas, aos ataques dos daevas”™ Essa maquinação foi frustrada pelos
fravashis; em outros momentos, contudo, montado em sua carruagem e armado
de arcos, flechas e uma grande maça, é Mithra quem lança os demônios em
debandada.
Os Gathas não trazem o nome de nenhum dos daevas, mas o Vendidad, que
relaciona o nome de uma hoste de demônios, menciona os cinco mais poderosos
e sinistros: Indra, Saurva, Nanghaithya, Taurvi e Zairi.13 Os estudiosos não
chegaram a um acordo sobre o que representam esses demônios. O fato de dois
deles terem nomes que correspondem aos nomes de divindades védicas levou
alguns a postular um conflito entre iranianos e indo-iranianos pela terra do Irã,
no decorrer do qual os iranianos vieram a considerar como demônios os deuses
de seus inimigos.31 Outros argumentaram que os deuses transformados em
demônios não tinham origem indo-ariana, mas proto-indo-iraniana — que, na
verdade, eram deuses particularmente reverenciados por guerreiros ladrões de
gado entre os próprios iranianos.32 Porém, o trecho no Vendidad em que
aparecem esses demônios, associado aos comentários sobre os mesmos seres
feitos no Bundahishn e no Dinkard, sugerem uma interpretação diferente.

No Vendidad, os cinco arquidemônios aparecem no exorcismo que


acompanha a limpeza ritual de uma pessoa contaminada, por exemplo, pelo
contato com um cadáver. A intenção é expulsar todos os cinco “desta casa, deste
bairro, deste vilarejo, do próprio corpo do homem profanado pelos mortos, do
próprio corpo da mulher profanada pelos mortos; do senhor da casa, do senhor
do bairro, do senhor do vilarejo, do senhor da terra; de todo o corpo do mundo
sagrado”.

O Bundahishn é mais prolixo. Saurva é apresentado ali como o demônio


que estimula a anarquia e a embriaguez, e seduz os zoroastrianos para que
rejeitem o manto e o cinto sagrados que são parte inseparável de sua vestimenta.
Taurvi e Zairi são demônios que introduzem veneno nas plantas e nos animais,
provocando assim a seca e a fome; também eles seduzem os zoroastrianos, para
que andem descalços ou calçados de maneira inadequada. Além da etimologia,
Nanghaithya parece não ter nada em comum com o védico Nasatya, que era um
outro nome para os Asvins, as divindades gêmeas da aurora e da luz do dia,
através das quais frustravam os demônios que vagueavam à noite. Nanghaithya,
ao contrário, parece ter sido um demônio da morte. E, quanto ao chefe do bando,
não há nenhum motivo para duvidar que seja o mesmo Indra que encontramos
no Rig Veda e que, de deus poderoso, foi transformado em demônio igualmente
poderoso. No Dinkard, Indra é descrito como o espírito da desobediência e da
apostasia, desviando os zoroastrianos do caminho da conduta correta. Na
verdade, trata-se de uma personificação de druj — o que toma totalmente
apropriado que o Santo Imortal a que caberá destruí-lo na consumação final seja
Asha Vashishta, a personificação de asha.33 No próximo capítulo será visto de
que maneira o prestativo e benevolente Indra passou a ser encarado de forma tão
negativa.

Em resumo, as referências no Vendidad, no Bundahishn e no Dinkard


mostram que os grandes daevas eram as personificações supremas das forças do
caos, menos destrutivos e fatais apenas do que seu criador e comandante, o
próprio Angra Mainyu ou, como veio a ser chamado, Ahriman.


Capítulo 7

A tradição zoroastriana sustenta que o pensamento — e as revelações —


que levaram o profeta a uma interpretação inovadora da existência pertencem a
um período inicial de sua vida, antes da mudança para a corte de Vishtaspa. Não
há motivo para questionar essa tradição: a visão de mundo de Zoroastro sem
dúvida foi influenciada por sua própria experiência numa época em que se
encontrava indefeso, e consciente do que ocorria com outras pessoas indefesas.

Zoroastro era um sacerdote plenamente qualificado da religião tradicional,


mas deve ter começado como um homem pobre — e como alguém que sofreu
muito com a pobreza e com a impotência que a acompanha. Nos Gathas, ele
pede a Ahura Mazda que o socorra em termos materiais: “Eu sei por que sou
impotente, Mazda; não possuo muitas cabeças de gado, nem muitos homens; eu
me lamento a ti”; “Quem é considerado o protetor do meu gado, quem, exceto eu
[...]?”.34 A vaca também se lamenta pela impotência de seu protetor — “um
homem sem força, ao passo que eu desejava alguém que governasse com força.
Quando surgirá aquele que lhe dará uma ajuda eficaz?”,35 pergunta a vaca,
enquanto Zoroastro faz ele próprio um pedido bem específico: “Isto eu peço a ti,
diga-me verdadeiramente, Senhor, quando receberei aquela recompensa, isto é,
dez éguas e um camelo [...]?”.36 Este, contudo, não é o cerne da questão.
Subjacente à interpretação dada por Zoroastro aos antiquíssimos conceitos de
asha e druj, encontra-se a percepção aguda de uma ordem social relativamente
pacífica ameaçada por agressores externos. Ele evidentemente conhecia dois
tipos de tribos. Existiam aquelas que viviam sobretudo do gado e nada buscavam
além de boas pastagens. E havia as tribos que eram verdadeiros bandos
guerreiros, impiedosos, afeiçoados à violência, ansiosos por espoliar e matar os
pacíficos boiadeiros. Identificando-se com estes, o profeta abominava os bandos
guerreiros.37

Há na verdade bons motivos para se pensar que os Gathas foram compostos


num período em que uma sociedade que vivera de forma quase inalterada
durante séculos, e que nunca possuíra armas muito destrutivas, começava a
entrar em conflito e a ser substituída por um novo tipo de sociedade, mais
guerreira e mais bem equipada para a guerra. No princípio do segundo milênio,
grupos de jovens indo-arianos atravessaram os desfiladeiros do Cáucaso em
direção aos ricos reinos ao sul, a fim de se engajar como mercenários nos
exércitos de príncipes em guerra. Ali eles se familiarizaram com as carruagens
de combate que iriam transformar a arte da guerra em todo o Mediterrâneo
oriental. Alguns desses indo-arianos ficaram para sempre em terras distantes,
mas outros retornaram às estepes já como guerreiros profissionais, levando
consigo suas carruagens e novas habilidades guerreiras. Para esses homens
aventureiros e cruéis, o antigo modo de vida tribal, com seus costumes e seu
direito consuetudinário, já não fazia muito sentido. Assim, ao lado das tribos
tradicionais governadas por conselhos, surgiram bandos de guerreiros liderados
por um chefe e interessados mais no roubo do que na criação de gado.38

A partir da evidência dos Gathas (inclusive lingüística), argumentou-se de


maneira convincente que, no início, a sociedade proto-indo-iraniana, e as
sociedades indo-arianas e iranianas que a sucederam, não possuíam uma classe
de guerreiros profissionais: com exceção dos sacerdotes, todos os homens
adultos eram boiadeiros.39 Sem dúvida, em determinados momentos as tribos
entravam em conflito por causa dos campos de pasto, mas tais lutas dificilmente
ultrapassariam o nível de escaramuças locais. A situação mudou quando
surgiram os guerreiros profissionais. Os carros de combate possibilitaram aos
chefes e seus bandos fazer incursões contra povoados tribais dispersos em áreas
muito amplas, apropriando-se de manadas inteiras de gado e matando seres
humanos em uma escala antes inconcebível. E, se esse modo de vida foi
introduzido nas estepes pelos indo-arianos que retornavam à região natal, não
permaneceu como monopólio deles por muito tempo. No mínimo para se
defender, as tribos iranianas precisavam dominar a arte de condução das
carruagens e um novo tipo de tática de guerra. A vida nas estepes mudou por
completo ao se transformar em uma típica “época heróica”, turbulenta, inquieta,
fazendo das proezas militares seu valor mais elevado e da conquista de butins
seu principal objetivo.40

Os Gathas sem dúvida parecem refletir as tensões e misérias de um período


em que esse novo modo de vida se consolidava. Nesses hinos, se o criador de
gado consciencioso é apresentado como o homem devoto par excellence, o
homem perverso par excellence é o que adquire fama e fortuna roubando gado:
“Aqueles perversos que se apresentam com toda a pompa como príncipes e
damas, também eles arruinaram a vida, roubando a propriedade dos herdeiros
[legítimos] [...] Mazda amaldiçoou aqueles que com [seus] hábitos de prazer
arruinaram a vida da vaca [...]”.41 Esses indivíduos fortalecem druj, apoiam o
falso, são representantes do caos. São “aqueles que com objetivos escusos
aumentam com suas línguas a fúria e a crueldade, eles são não pastores entre
pastores, para os quais prevalecem os feitos maléficos, pois não promovem as
boas ações, servem aos daevas, a religião do homem perverso”.42 Não há motivo
para duvidar que o chefe desses daevas seja o deus-guerreiro Indra. Zoroastro
não admitia nenhuma misericórdia para com esses “seguidores da Mentira”:
deviam ser derrotados e mortos.43

Ao que parece, essa mensagem não suscitou respostas significativas, nem


arrebanhou seguidores para o profeta em sua terra natal. Zoroastro partiu — e o
povo entre o qual se estabeleceu devia contar com guerreiros profissionais, pois
foram capazes de travar e vencer guerras em defesa da nova fé. E ele não
permaneceu um homem pobre e indefeso. Na nova terra, primeiro converteu a
esposa do governante e, depois, o próprio governante; foi agraciado com todas as
honrarias; e a mulher com quem se casou pertencia a uma família poderosa.
Tudo isso encontra-se na tradição zoroastriana e é aceito pela maioria dos
estudiosos modernos.

A importância histórica de Zoroastro não é afetada pela prosperidade que


acabou alcançando. Ele é o exemplo mais antigo que se conhece de um tipo
específico de profeta — os chamados “milenaristas” — e as experiências que
determinaram o conteúdo de seus ensinamentos também parecem ter sido
típicas. Os profetas que prometem uma transformação total da existência, um
aperfeiçoamento pleno do mundo, com freqüência baseiam sua inspiração
original no espetáculo não apenas do sofrimento, mas de um tipo específico de
sofrimento: aquele ocasionado pela destruição de um antigo modo de vida, com
suas certezas e salvaguardas familiares.44 E, aparentemente, Zoroastro era um
profeta assim.


Capítulo 8

Os ensinamentos zoroastrianos tanto sobre a condição dos indivíduos após a


morte como sobre o estado do mundo após o fim do “tempo limitado” eram
revolucionários na época. Alusões a esses ensinamentos encontram-se nos
próprios Gathas, mas para um relato mais completo será preciso retornar outra
vez ao Bundahishn. Quando se considera que as passagens relevantes são
traduções de textos avestanos perdidos, que podem ser datados de meados do
primeiro milênio a.C, se não forem ainda mais antigos, elas se tornam de fato
surpreendentes.45

Antes da época de Zoroastro, as crenças relativas à vida após a morte


haviam se desenvolvido entre os iranianos de maneira muito semelhante à
registrada entre os hindus védicos. No início, acreditava-se que todos os mortos
levavam uma existência desolada e sombria sob a terra. Mais tarde, passou-se a
considerar que uns poucos indivíduos escolhidos — príncipes, guerreiros e
sacerdotes que haviam observado todos os desígnios de asha e sido generosos
nas oferendas aos deuses — iriam após a morte para um paraíso no céu,
desfrutando do sol, da luz e de todos os prazeres dos sentidos. O destino de cada
indivíduo era decidido em uma ponte sobre um abismo: apenas as almas dos
poucos privilegiados eram capazes de atravessá-la; o resto mergulharia
diretamente no desconfortável e melancólico mundo subterrâneo.46

O profeta manteve o conceito da ponte, mas deu-lhe um novo conteúdo


moral. Em seus ensinamentos, todos os seres humanos — mulheres e homens,
humildes e privilegiados — podem ter a esperança de alcançar o céu; o único
requisito indispensável é o aperfeiçoamento ético, naturalmente segundo os
termos zoroastrianos. Sobre a ponte, todos os pensamentos, atos e palavras do
indivíduo, desde a idade de quinze anos, são comparados entre si. Se há uma
preponderância daqueles que estão de acordo com as noções zoroastrianas de
bondade, o indivíduo segue para “as mansões luminosas do céu”, onde viverá na
presença de Ahura Mazda e dos Santos Imortais. Se, ao contrário, houver uma
preponderância de pensamentos, palavras e ações maléficas, o indivíduo vai para
o mundo subterrâneo. Já nos Gathas esse mundo subterrâneo havia adquirido um
novo sentido, passando a ser a moradia da Mentira, os domínios de Angra
Mainyu. É também um local de punição onde, em meio às trevas, entre gritos de
horror, alimentando-se da comida mais abominável, são torturadas as almas dos
condenados. Em suma, o mundo subterrâneo foi transformado em um inferno:
este conceito também parece ter sido uma inovação de Zoroastro.

O profeta parece ter modificado os conceitos tradicionais ainda em outros


aspectos. Antes dele acreditava-se que, passado o intervalo de um ano, as poucas
almas privilegiadas que iam para o céu acabavam por se reunir a seus corpos,
transformadas em carne imortal. Os Gathas sugerem que nada disso era aceito
pelo profeta. Para ele, aparentemente, o céu era habitado por almas
desencarnadas e, ao final do “tempo limitado”, haveria a ressurreição universal
da carne.

Aqueles que compuseram o material avestano sabiam muito bem que a


ressurreição universal dos corpos pareceria inacreditável para a maioria e por
isso elaboraram uma resposta esplendidamente poética. “De onde”, é o que
fazem Zoroastro perguntar, “será reunido o corpo que o vento dispersou e a água
levou para longe? E como irá ocorrer a ressurreição?” É Ahura Mazda quem
responde:
Quando eu criei a terra que sustenta toda a vida física [...]; e quando criei o grão, para que
fosse dispersado na terra e germinasse de novo, produzindo crescimento [...]; e quando criei a
nuvem, que traz água para o mundo e faz chover quando quer; e quando criei o vento, que
sopra onde quer — então a criação de cada um desses foi mais difícil para mim do que o
despertar dos mortos. Pois [...] considere, se eu fiz aquilo que antes não existia, por que não
poderia refazer aquilo que antes existiu?47

A exemplo da criação original, a ressurreição dos mortos deveria ser uma


obra miraculosa de Ahura Mazda, realizada como parte de seu plano para o
aperfeiçoamento de todas as coisas.

Zoroastro teve a revelação não só do início da luta cósmica, mas também de


sua conclusão. Ao final do “tempo limitado” — que será também o fim do
“tempo da mistura” — o mundo irá passar por uma espécie de prova por meio da
qual será purgado de todo mal, inclusive dos pecadores mortos. Todos os seres
humanos que já viveram irão se reunir em uma grande assembléia onde cada
indivíduo será confrontado com suas ações boas e más — e os redimidos se
destacarão dos condenados com tanta clareza quanto as ovelhas brancas das
negras. Em seguida, o Fogo e o Espírito da Cura irão juntos fundir o metal nas
colinas e montanhas, a terra será coberta por um grande rio de metal derretido e
todos terão de atravessar essa corrente. Para os devotos, será como andar por
leite quente, e apenas os perversos saberão que, na verdade, estão atravessando
metal derretido.48

Nesta crença, Zoroastro provavelmente fundiu histórias de erupções


vulcânicas e rios de lava derretida com seu conhecimento de determinada prática
tribal. Uma pessoa acusada podia ser submetida a uma prova na qual se
derramava cobre derretido sobre o peito dela: se fosse inocente, as potências
divinas interviriam para salvá-la; se fosse culpada, pereceria de imediato.49 O
objetivo do ordálio universal ao término do “tempo limitado” era análogo: os
perversos seriam destruídos no metal derretido. Zoroastro é explícito a esse
respeito em um de seus hinos: “Essa retribuição que Tu irás determinar para
ambas as partes, ó Mazda, por meio de Teu fogo brilhante e abrasador, é um
sinal para todos os seres vivos, a fim de destruir o perverso e salvar o justo 50 Já
nos ensinamentos zoroastrianos mais recentes o dilúvio abrasador é apresentado
apenas como purgação — os perversos terão seus pecados calcinados, de modo
que possam se reunir aos justos —, mas é provável que tal interpretação tenha
sido proposta pela primeira vez cerca de dois mil anos depois da época de
Zoroastro. Para o profeta, tal leniência com certeza teria sido inconcebível.

Enquanto os pecadores mortos terão sua miserável estadia no inferno


seguida por dolorosa aniquilação, para os devotos mortos a existência bem-
aventurada como almas desencarnadas no céu se seguirá de uma existência
incomparavelmente mais bem-aventurada na terra. Mais bem-aventurada porque
menos parcial: outra vez dotados de corpos, serão capazes de desfrutar as
alegrias dos sentidos assim como as do espírito.

O Bundahishn conta como a existência será completamente transformada.


Os seres divinos criados por Ahura Mazda para serem seus aliados, os Santos
Imortais, alcançarão a vitória definitiva sobre as forças de Angra Mainyu. A
palavra verdadeira prevalecerá sobre a falsa. A Perfeição e a Imortalidade
derrotarão a fome e a sede. Asha triunfará em todos os planos sobre druj, a
ordem prevista pelo deus supremo prevalecerá contra tudo o que a nega. Por fim,
o próprio Ahura Mazda virá ao mundo como sacerdote, a fim de celebrar um
derradeiro sacrifício. Todos os justos irão partilhar da gordura do touro fabuloso
e do “haoma branco” sobrenatural oferecidos nesse sacrifício, e em
consequência seus corpos se tomarão não só imortais, mas eternamente jovens:
aqueles que alcançaram a maturidade permanecerão para sempre como se
tivessem quarenta anos de idade, os corpos dos jovens ficarão para sempre como
se tivessem quinze anos. Desse modo, a aparente vitória de Angra Mainyu sobre
esta maravilhosa “criação”, o homem, será anulada.
O mundo bom de Ahura Mazda será purificado de todo o mal introduzido
por Angra Mainyu. E mesmo este, “impotente e com seu poder destruído,
retomará apressado para a sombria escuridão por onde entrou [no mundo]. E o
metal derretido inundará o inferno; e o fedor e a sujeira na terra, ali onde estava
o inferno, serão queimados por aquele metal, e assim ele se tornará limpo. A
fresta por onde o Espírito do Mal havia entrado será fechada por aquele metal
[...]”.51

A própria aparência do mundo irá mudar. A terra será achatada por uma
inundação abrasadora, de modo que sua superfície se tornará uma única planície
nivelada: as montanhas cobertas de neve do Irã — erguidas originalmente em
conseqüência dos ataques de Angra Mainyu — deixarão de existir. Nesse
ambiente perfeito, os seres humanos remanescentes viverão na mais perfeita
harmonia. Maridos, esposas e filhos, incluindo, é claro, os mortos ressurrectos,
serão reunidos e viverão juntos como o fazem neste mundo — com a diferença
de que não haverá mais a geração de crianças. Toda a humanidade formará uma
única comunidade de devotos zoroastrianos, todos unidos na adoração de Ahura
Mazda e dos Santos Imortais, todos unidos em pensamento, palavra e ato.

A grande transformação é denominada o “tornar maravilhoso”


(Frashokereti em avestano e Frashegird em pálavi), enquanto nos livros em
pálavi a eternidade que se seguirá à transformação é chamada de “separação”,
para indicar o contraste em relação ao “tempo da mistura”. É uma promessa que,
por mais distante que esteja da concretização, sempre significou muito para os
zoroastrianos. Todos os anos, o estado vindouro de bem-aventurança é
prefigurado no festival de ano-novo denominado No Roz: comemorado no
equinócio da primavera, é vivenciado como um renascimento da natureza, da
sociedade e dos indivíduos, como uma renovação do mundo.

O “tornar maravilhoso” irá na verdade mudar tudo. O que se encontra


adiante, no final dos tempos, é um estado do qual foram eliminadas todas as
imperfeições; um mundo em que todos viverão para sempre em meio a uma paz
que nada pode perturbar; uma eternidade em que a história terá cessado e nada
mais poderá acontecer; um domínio inalterável, sobre o qual o deus supremo irá
reinar com uma autoridade que permanecerá inconteste para sempre.


Capítulo 9

Ao anunciar pela primeira vez o “tornar maravilhoso”, para quando


Zoroastro previa a grande consumação? Com certeza para um futuro próximo.
Deve ter sentido que nem todos os seus contemporâneos viveriam para vê-la, do
contrário dificilmente teria se preocupado com o destino daqueles que haviam
morrido quando o mundo ainda estava em sua atual condição — suas aventuras
na fatídica ponte e sua estadia no céu, no inferno ou no limbo.

Mas os Gathas deixam transparecer um grande sentido de urgência. Não há


como negar a convicção que movia o profeta: ele claramente acreditava que fora
enviado por Ahura Mazda naquele momento específico para exortar os seres
humanos a seguir de imediato pelo caminho correto, no breve período
remanescente antes da transformação do mundo. Em determinada passagem,
parece mesmo estar pedindo ao deus supremo que permitisse a ele e seus
seguidores participar do “tornar maravilhoso”.52

Porém, Zoroastro morreu, sua figura começou a se esfumar no passado e


ainda assim o mundo não se transformou. As primeiras gerações de
zoroastrianos devem ter se desapontado tão amargamente quanto os primitivos
cristãos mil anos depois. O modo como as gerações subseqüentes se consolaram
também lembra o desenvolvimento da crença cristã. Elas passaram a ver o
profeta como um salvador do mundo enviado pelo deus supremo — e também
elaboraram o conceito de um redentor futuro, em quem Zoroastro iria, por assim
dizer, reencamar, e que finalizaria sua obra.

Foi então que surgiu um mito da natividade, no qual se contava que, ao se


aproximar a época do nascimento de Zoroastro, Ahura Mazda criou a glória
flamejante do profeta e a conduziu, através dos mundos da luz infinita, do sol, da
lua, das estrelas (imaginadas como mais próximas da terra do que o sol e a lua) e
do fogo da casa dos avós do profeta, até o corpo da avó. Esta deu então à luz a
mãe do profeta — uma criança com o corpo tão radiante quanto o fogo. Em
seguida, como se quisesse afastar ainda mais o profeta do resto da humanidade,
Ahura Mazda ordenou aos Santos Imortais que colocassem a alma dele em um
miraculoso caule de haoma e seu futuro corpo no leite de vacas milagrosas.
Como no antigo ritual de sacrifício, o pai de Zoroastro juntou o haoma ao leite,
consagrou a mistura a Ahura Mazda e, em seguida, ele e sua mulher o beberam.
Agora o profeta podia ser concebido, na certeza de que viria ao mundo repleto
de força divina, como personificação única de asha. E, no seu nascimento, toda a
criação “boa” se rejubilou, enquanto os demônios, prevendo a própria derrota,
tentavam freneticamente destruir o bebê. O esforço deles foi em vão: a vinda de
Zoroastro representava uma intervenção direta do deus supremo na história
mundial e assegurava a concretização final do plano divino.53

Quanto ao futuro redentor, os próprios Gathas dào uma indicação útil, pois
o profeta, quando abatido pelo pensamento de que poderia não estar vivo para
presenciar o “tornar maravilhoso”, havia encontrado consolo imaginando
“aquele acima do bem” que viria depois dele.54 Com base nessa indicação, foi
elaborada a prodigiosa figura do Saoshyant, cujo nome significa literalmente
“futuro benfeitor”.55

A vinda do Saoshyant será precedida por uma época na qual, em vez de


asha triunfar sobre druj, este parecerá ter a vitória assegurada. Esses dias são
descritos em uma profecia supostamente transmitida pelo próprio Ahura Mazda
a Zoroastro:
Nessa época [...] todos os homens se tomarão enganadores e as grandes alianças serão
alteradas. A honra e a afeição e o amor pela alma desaparecerão do mundo (...) Os raios do sol
serão muito horizontais e de pequena inclinação, e o ano e o mês e o dia serão mais curtos. E a
terra (...) se contrairá (...) E as pessoas nascerão atrofiadas, e terão poucas habilidades e pouca
energia. Não será possível a uma nuvem auspiciosa e a um vento justo trazer chuva na estação e
no tempo certos. Nuvens soturnas escurecerão todo o céu: um vento quente e um vento frio
soprarão e arrastarão com eles todos os frutos e grãos de cereais. A chuva não cairá no
momento certo e, quando cair, será uma chuva de criaturas perniciosas, não de água. E a água
dos rios e das fontes irá diminuir e não voltará a aumentar (...) O camelo, o boi e o carneiro
nascerão muito menores e menos resistentes. O gado da seca terá pouca força, e o veloz cavalo
será fraco e não conseguirá galopar além de um pequeno trecho (...) O Espírito do Mal será
muito opressivo e tirânico, nessa época em que será necessário destruí-lo.36

A vinda do Saoshyant desencadeará essa destruição tão necessária. E seu


nascimento será ainda mais miraculoso que o de Zoroastro. Conta-se que a
semente do profeta está preservada em um lago no sudeste iraniano, onde é
velada por 99.999 almas de devotos mortos. Quando o “tempo limitado” se
aproximar de seu tormentoso final, uma virgem chamada Vispa-Taurari (cujo
significado é “aquela que a tudo conquista”) irá se banhar no lago, ficará grávida
da semente do profeta e dará à luz o filho dele, Asvat-Ereta (“aquele que
personifica a verdade”). Asvat-Ereta é o Saoshyant, o protagonista de todas as
fases do drama escatológico. Ele empunhará a “arma vitoriosa” com a qual
Vishtaspa, o patrono real de Zoroastro, defendeu a fé contra seus inimigos — e
com a qual, num passado ainda mais distante, os lendários heróis iranianos
destruíram os monstros e ogros de sua época. Em tomo dele se agruparão alguns
“chefes imortais” — guerreiros poderosos que haviam liderado os povos
iranianos na guerra e que desde então permaneceram em locais remotos, à espera
do chamado para a derradeira batalha; o maior deles será um dos filhos de
Vishtaspa, o comandante do mais antigo exército zoroastriano. Juntamente com
esses companheiros de armas, todos eles “pensando bem, falando bem, agindo
bem, em boa consciência”, os aliados sobrenaturais de Ahura Mazda, os grandes
Santos Imortais, avançarão contra Angra Mainyu e suas hostes.

Mas isso não é tudo. Durante os 57 anos anteriores ao “tornar maravilhoso”,


o Saoshyant irá trazer os mortos de volta à vida, e lhes dará de novo seus corpos;
também caberá a ele reunir os vivos e os mortos para o grande ordálio. Segundo
algumas versões, irá até mesmo substituir Ahura Mazda na tarefa de conceder a
imortalidade aos justos. Por fim, fixando seu olhar no mundo, ele o tomará
imortal e incorruptível, completando assim o “tornar maravilhoso”, o triunfo
final do cosmos sobre o caos.

A profecia sobre o Saoshyant é muito antiga: certamente anterior à era


aquemênida e talvez remonte quase à época de Zoroastro. Mas seu apelo
revelou-se perene: ela ajudou gerações e gerações de zoroastrianos, ao longo de
todos os infortúnios que sofreram, a manter viva a fé no aperfeiçoamento final
do mundo. Na verdade, a crença na vinda do Saoshyant prosperou devido aos
infortúnios. Há indícios de que foi sustentada de maneira mais tenaz nas épocas
em que a comunidade zoroastriana sofreu seus piores desastres — após a
conquista de Alexandre e, de novo, após a conquista árabe. Foi um fator crucial
para que os zoroastrianos mantivessem a fé quando perseguidos por governantes
muçulmanos; e, posteriormente, voltou a florescer com mais força entre os
oprimidos zoroastrianos do Irã do que entre seus irmãos mais afortunados, os
parses da índia.57

Contudo, se no zoroastrismo popular sempre foi importante a expectativa de


um único saoshyant, cuja vinda tornará as coisas perfeitas de uma vez por todas,
o zoroastrismo como religião de Estado incrustou essa esperança simples em um
corpo doutrinário mais complexo.

No século VI a.C., o zoroastrismo tornou-se a religião oficial do primeiro


império iraniano. Embora seja impossível saber se foi adotado pelo fundador
desse império — Ciro, o Grande (549-29) —, não há a menor dúvida de que seus
sucessores o fizeram. As inscrições nos túmulos de Dario, o Grande (522-486),
Xerxes (486-65) e Artaxerxes I (465-24) comprovam a natureza imutável da fé
dinástica. E, na verdade, todos os monarcas aquemênidas viam a si mesmos
como representantes terrenos do Senhor da Sabedoria.

Todavia, nem tudo na religião dos Gathas era apropriado a uma religião de
Estado. Uma instituição dotada não apenas de grande autoridade espiritual, mas
também de grande poder temporal, dispondo de templos, santuários, enormes
propriedades rurais e grande número de sacerdotes, dificilmente poderia ansiar
por uma completa transformação do mundo. Pelo contrário, se o zoroastrismo
pretendia funcionar de maneira eficiente como religião dominante de um império
triunfante e firmemente estabelecido, era imprescindível que modificasse sua
escatologia. O “tornar maravilhoso” precisava ser transferido, de maneira oficial
e definitiva, para um futuro remoto.

Tal revisão foi efetuada, antes da primeira metade do século IV a.C., por
sacerdotes estudiosos que haviam abandonado o zoroastrismo ortodoxo em favor
de uma heresia conhecida como zurvanismo.58 Essa variante da religião, adotada
pelos últimos monarcas aquemênidas e também pelos sassânidas, acomodava
facilmente um esquema de sucessivas épocas do mundo. Segundo tal esquema,
influenciado pelas especulações dos astrônomos babilónicos sobre o “grande
ano”, o “tempo limitado” era dividido em vários períodos idênticos. Em uma das
versões que chegaram até nós, o “tempo limitado” estende-se por nove mil anos,
dividindo-se em três períodos de três mil anos; em outra, estende-se por doze mil
anos, divididos em quatro períodos iguais. Na revisão original, porém, o “tempo
limitado” foi fixado em seis mil anos; e, mesmo nas versões de nove mil e doze
mil anos, os seis últimos milênios incluem tudo o que acontece nesta terra.

De acordo com o Bundahishn, que apresenta o esquema dos doze mil anos,
os três primeiros milênios são dedicados aos preparativos para a luta cósmica. O
deus supremo (agora chamado de Ormazd) torna-se consciente do Espírito do
Mal (agora denominado Ahriman) e de suas intenções destrutivas, e cria seu
mundo bom em estado puramente espiritual. Ahriman reage atacando o mundo
bom; quando fracassa, mergulha de volta na escuridão de onde saíra e ali cria
seus aliados, os daevas. Ao longo dos três mil anos seguintes, Ormazd torna
material sua criação espiritual; e, no final do período, Ahriman volta a atacá-la,
desta vez com mais êxito, pois consegue introduzir nela a morte, a doença e a
destrutividade. Ormazd, porém, já havia tomado precauções, criando a alma de
Zoroastro; e, depois de existir durante seis mil anos em estado espiritual, essa
alma une-se a um corpo. No ano 9000, Zoroastro recebe a revelação da única
religião verdadeira.

Os três milênios remanescentes de “tempo limitado” testemunham a luta


final, fadada a se encerrar com o “tornar maravilhoso”. No entanto, esse período
conclusivo é ele próprio dividido em três períodos de mil anos, cada qual
terminando com o surgimento de um novo redentor: o Saoshyant é triplicado. A
lenda completa, tal como consta no Dinkard, por exemplo, relata de que modo o
profeta, ao se aproximar de sua terceira esposa, por três vezes derramou o sêmen
no solo. Em vez de uma porção de sêmen, existem três porções no fundo do lago
— ainda hoje podem ser vistas ali, brilhando como lampiões. Em vez de uma
virgem predestinada, três delas irão se banhar no lago, uma a cada final de
milênio. E cada um dos três filhos de Zoroastro assim concebidos será
encarregado de uma tarefa redentora. No final de cada milênio, os ensinamentos
zoroastrianos terão caído no esquecimento; cada um dos saoshyant deverá, por
sua vez, infundir-lhe nova vida — até que o último a nascer, o supremo
Saoshyant Asvat-Ereta, promova o “tornar maravilhoso”.

Nesse esquema da história mundial estava incluído o momento presente:


devia restar apenas um breve período antes do surgimento do primeiro
saoshyant. Sendo assim, deixava de ser iminente o “tornar maravilhoso”, que
Zoroastro tivera a esperança de ver ocorrer em sua própria época ou logo depois
e que as gerações seguintes de zoroastrianos ainda haviam aguardado com
impaciência. Entre a época em que o zoroastrismo se tornara religião oficial e a
transformação final do mundo havia um confortável intervalo de mais de dois
milênios. Quaisquer que tenham sido suas intenções, e por mais que seus
interesses fossem puramente filosóficos, os sacerdotes zoroastrianos haviam
feito algo com importantes implicações políticas e sociais: haviam alterado a
mensagem original do profeta de tal modo que os monarcas aquemênidas, e
depois deles os monarcas partas e sassânidas, podiam encontrar nela uma
ideologia perfeitamente adequada às próprias necessidades.

De fato, o zoroastrismo, enquanto religião das dinastias reais do Irã,


funcionava de maneira muito semelhante às religiões das casas reais de outras
regiões do Oriente Próximo.59 Isto se comprova, por exemplo, pelas inscrições
em que Dario, o Grande, registrou seus objetivos e realizações. Dario estava
convencido de que fora escolhido por Ahuramazda (como o Senhor da Sabedoria
era chamado nessa época) para governar um império que era em si uma
manifestação de asha: “Ahuramazda, ao ver essa terra em comoção, ele a
concedeu a mim, ele me fez rei. Eu sou rei. Pela graça de Ahuramazda, eu a
coloquei em seu lugar”. Males de todo tipo — fome, injustiça, opressão na
comunidade, bem como potências hostis e seus exércitos, além de qualquer
oposição à sua própria soberania — tudo isso era obra da Mentira, drauga
(anteriormente, druj). Dario pedia ajuda a Ahuramazda na defesa da terra contra
drauga. E também exortava seu sucessor: “Tu serás rei de agora em diante, com
todo o vigor proteja a ti mesmo contra drauga”™ Cerca de mil anos depois de
Dario, um rei da dinastia sassânida ainda considerava que sua principal tarefa era
a manutenção de asha: “[...] Eu busquei o curso de ação mais agradável a Deus e
descobri que ele consiste naquele pelo qual o céu e a terra continuam a existir, as
montanhas permanecem imóveis, os rios correm, a terra é mantida pura; isto é,
de maneira igualitária e justa”.61

Como vimos, tudo isso é comparável aos pronunciamentos dos faraós


egípcios e dos reis do Oriente Próximo, monarcas que viam a ordem estabelecida
pelos deuses deteriorar-se constantemente e sofrer ameaças contínuas — não
obstante essencialmente imutável — e que nunca poderiam ter imaginado uma
consumação futura que transformasse por completo o mundo.

Mas a proclamação de Zoroastro permaneceu e continuou a exercer seu


fascínio, em círculos muito distantes das cortes e dos reis.


5 - DO MITO DO COMBATE A FÉ
APOCALÍPTICA

Capítulo 1

No âmago do ensinamento de Zoroastro está a consciência da guerra


cósmica: a convicção de que uma poderosa força espiritual voltada para a
manutenção e a ampliação da vida em um mundo ordenado luta contra uma
força espiritual, igualmente poderosa, voltada para a destruição da vida e a
redução do mundo ordenado ao caos. Tinha essa visão de mundo uma pré-
história entre os iranianos? Seria talvez uma nova versão — inteiramente
espiritualizada e intelectualizada — do mito do combate? Lamentavelmente, não
se encontra no Avesta nenhum deus comparável a Indra, nem qualquer combate
comparável à luta de Indra com Vritra; e esse silêncio levou até os estudiosos
mais eminentes a colocar de lado a possibilidade.1 Mas a questão é de tal
importância para o argumento principal deste livro que não pode ser
desconsiderada: é preciso investigar mais além.

De 4500 a 2500 a.C, considera-se que os proto-indo-europeus tenham


vivido em alguma parte das estepes da Rússia meridional; na segunda metade do
terceiro milênio, porém, começaram a surgir vários povos entre seus
descendentes — povos com identidades distintas, falando línguas que, embora
relacionadas, também eram distintas. E esses povos migravam para cada vez
mais longe da região original dos indo-europeus. Os proto-indo-iranianos e seus
descendentes (os indo-arianos e os iranianos) formavam apenas um ramo de uma
árvore grandiosa cujos ramos iriam se estender do vale do Indo até a
Escandinávia. E é nesta que encontramos não só o mito do combate, mas
também um deus cujo parentesco com Indra é inegável: Thor.

A maior parte do que sabemos sobre Thor vem de um texto islandês, a


Prosa de Edda, composto por Snorri Sturluson no início do século XIII d.C.2 A
data tardia, e o fato de que na época a Islândia era cristã havia mais de dois
séculos, poderiam fazer da Prosa de Edda uma fonte suspeita para antigas
crenças pagãs — exceto pelo fato de se poder demonstrar que ela incorpora
tradições muito antigas: sua cosmogonia, por exemplo, é praticamente idêntica a
uma das cosmogonias védicas.

Do mesmo modo, o que a Prosa de Edda tem a dizer de Thor também


deriva de antigas tradições. O próprio nome Thor (que significa “trovão”) sugere
um deus proto-indo-europeu perdido, pois sua versão alemã, Donar, está
claramente relacionada a Tanaris, nome do deus celta do trovão e da guerra. Na
verdade, ambos os nomes originam-se de uma raiz comum, também encontrada
na palavra “trovão” em sânscrito, grego e latim. Por mais tardias que sejam as
fontes literárias, quando nos aproximamos de Thor estamos contemplando as
névoas de um passado muito remoto.

Na Escandinávia, Thor foi adquirindo importância ao longo dos séculos, até


se tornar a principal figura do panteão nórdico, rivalizando com Odin até
sobrepujá-lo e presidindo todos os aspectos da vida. No período viking, ele era o
deus mais popular. Seu nome era incorporado tanto a nomes de lugares como de
indivíduos, como um elemento teofórico. E a todas as partes aonde iam os
vikings levavam seu culto, que prosperou não apenas nas terras escandinavas,
mas também em Dublin, na Irlanda, e provavelmente até em Kiev, na Rússia.

Em muitas regiões havia templos dedicados a Thor. Há uma descrição — da


segunda metade do século XI, mas refletindo uma situação anterior — do
santuário nacional sueco. Este santuário abrigava imagens de três deuses: o
grande deus Odin, a deusa Freyr e, entre eles, Thor, como o mais poderoso de
todos. E o culto sobreviveu mesmo após a derrota final do paganismo pelos
cristãos. Inscrições que datam da própria véspera da conversão ainda pedem a
Thor que proteja os mortos nas sepulturas e muito tempo depois as pessoas
continuaram usando amuletos que representavam o martelo de Thor, e não a
cruz.

É surpreendente a semelhança entre Indra e Thor. Também este era um deus


jovem, e com freqüência é apresentado como filho de Odin. Loiro, de barba
vermelha e muito forte, comia e bebia de maneira prodigiosa: características de
Indra, todas elas. Acima de tudo, Thor era um guerreiro: em épocas de guerra,
liderava todo o povo. Em tais momentos, conduzia uma carruagem puxada por
dois bodes — o que parece estranho até lembrarmos que, na índia, um duplo de
Indra chamado Pusan também conduzia uma carruagem puxada por bodes. E, tal
como Indra, Thor possuía armas irresistíveis: luvas de ferro e, sobretudo, um
cinto e um martelo mágicos. Tal como a maça de Indra, o martelo de Thor fora
confeccionado por um artesão especializado em fazer tesouros para os deuses —
e ambas as armas assemelhavam-se a um raio.

Não terminava aí a afinidade entre Indra e Thor. Embora fosse aterrorizante


no papel de guerreiro, com seu próprio povo ele era benevolente, protegendo o
gado, as plantações e as colheitas. Agia como padroeiro de um povoado, ao
mesmo tempo em que o defendia contra os inimigos externos e assegurava sua
estabilidade interna. Guardião da lei, era invocado como testemunha em todos os
juramentos. A proteção dos indivíduos também era característica sua: em
momentos de aflição, era ele o deus a quem as pessoas primeiro recorriam. E
acompanhava todos os acontecimentos na vida de uma pessoa: amistoso e
protetor, estava presente no casamento e no leito de morte.

Em todos os momentos e de todas as maneiras, Thor era o mantenedor da


ordem. Ao fazer o mundo ordenado, os deuses criaram para si mesmos um
espaço chamado Asgard e, para os seres humanos, um espaço chamado Midgard.
Graças à sua enorme força, Thor era capaz de sustentar toda essa criação. Porém,
o mundo ordenado nunca estava seguro, pois era constantemente ameaçado
pelos gigantes de Jotunheimar, a Terra dos Gigantes, que ficava além dos limites
do mundo. Era a tarefa de Thor manter afastados os gigantes.

Estes eram similares às serpentes e aos dragões védicos: verdadeiras


encarnações do caos, da nulidade e da morte. Certa vez, na ausência de Thor, o
mais temível dentre os gigantes, Hrungnir, ameaçou matar todos os deuses e
deusas. Aterrorizados, estes convocaram Thor, que logo surgiu em meio a
trovões e raios. Hrungnir tinha um auxiliar para ajudá-lo, um monstro de três
cabeças, tal como os monstros védicos Trisiras e Visvarupa contra os quais Indra
e Trita Aptya lutaram. Mesmo assim, Thor enfrentou e matou o gigante,
salvando o mundo dos deuses. Quanto ao mundo dos homens, Thor o salvou
inúmeras vezes. Ele próprio descreve como foi obrigado a permanecer um
período no leste, lutando contra um exército de gigantes, pois, se tivessem sido
bem-sucedidos, teriam devastado Midgard a tal ponto que esta não mais poderia
sustentar os seres humanos.

Encontram-se ecos dos combates védicos também no relato feito por Snorri
da luta entre Thor e o enorme monstro marinho, a serpente Midgard. que ficava
enrolada em torno da terra e seria capaz de destruí-la. Entrando no mar, Thor
lançou sua linha e pescou o monstro. Nada jamais infundiu tanto terror, ficamos
sabendo, quanto o olhar que Thor lançou à serpente e o modo como esta
devolveu-lhe a mirada enquanto lançava veneno. Thor teria então esmagado o
crânio da serpente com o machado, se seu companheiro não tivesse, de tanto
medo, cortado a linha.

Por causa disso, a serpente Midgard, assim como Vritra, continua sendo
uma ameaça constante ao mundo ordenado. Pois a ameaça do caos está sempre
presente: isso era claro tanto para os deuses como para os seres humanos. Certa
vez, quando os gigantes conseguiram roubar o martelo de Thor, o pânico se
espalhou entre os deuses — pois quem iria agora defender o mundo dos deuses e
o dos homens contra as forças sempre ameaçadoras do caos?

A afinidade entre Thor e Indra é em geral aceita pelos estudiosos; na


verdade, foi reconhecida desde que a mitologia comparada tornou-se uma
disciplina respeitável, em meados do século XIX. Na época, foi explicada em
termos de uma derivação comum de um esquecido deus proto-indo-europeu que
teria possuído as mesmas características — e também esta explicação costuma
ser aceita hoje. E, recentemente, chegou a ser reforçada pela descoberta de uma
história folclórica russa que, por razões etimológicas e pelo conteúdo, está
claramente relacionada ao mito de Indra e Vritra.3

Todavia, se o deus védico Indra descende de um deus proto-indo-europeu, a


linha de derivação deve passar por um deus proto-indo-iraniano — e seria muito
estranho se não houvesse nenhum deus iraniano correspondente ao Indra védico.
No Avesta, portanto, não haveria nenhum vestígio de um deus ou de deuses que,
como Thor e Indra, combateram os monstros do caos e com isso preservaram o
mundo ordenado? Esta será a direção de nossa busca.


Capítulo 2

O Avesta tem muito a dizer sobre os monstros do caos e sobre os heróis


humanos que lutaram contra eles e os destruíram.

Podemos começar pelo destino desejado para todas as hostes demoníacas.


Fica claro, no Rig Veda, que os demônios nem sempre habitaram o mundo
subterrâneo: foi Indra que os despachou para lá. Desde então, embora eles
possam visitar, e de fato visitem, a superfície da terra para provocar devastações,
sua verdadeira morada passou a ser o domínio das trevas. Os zoroastrianos
tinham uma concepção similar — na verdade, um yasht relata de que modo os
demônios podiam ser vistos emergindo na superfície da terra em certo
desfiladeiro montanhoso, o qual era a passagem para o mundo subterrâneo.
Porém, os zoroastrianos estavam convencidos de que não havia sido um deus,
mas o próprio Zoroastro, ao recitar uma prece especialmente poderosa durante o
ritual apropriado, quem originalmente enviara os demônios para lá.4

Em seguida, havia os dragões Sruvara, Gandarva e Snavidka. Todos


monstros aterrorizantes, amarelados, venenosos, devoradores de homens — mas
também muito mais do que isso.5 De Sruvara conta-se que, se não tivesse sido
morto, todo o universo teria sido destruído, e o próprio Ahura Mazda não teria
como se defender de Angra Mainyu. O mesmo ocorria com Gandarva, que vivia
nas profundezas do mar: se não tivesse sido morto, Angra Mainyu teria se
tornado o senhor da criação de Ahura Mazda. Quanto a Snavidka —
afortunadamente foi morto ainda com pouca idade, pois ele se vangloriava de
que, uma vez adulto, faria do céu e da terra sua carruagem. Sem dúvida, esses
demônios simbolizavam uma força que, se não fosse contida, seria capaz de
reduzir ao caos todo o mundo ordenado. Mas, nesse caso, quem poderia vencê-
los, além de um deus-guerreiro? Não seria o guerreiro Keresaspa, que os destrói
nas histórias que chegaram até nós, uma versão humanizada desse deus?

A mesma impressão, até mais intensa, nos vem de outra lenda incluída no
Avesta.6 O iraniano Thraetaona, filho de Athwya, é um herói puramente humano;
no entanto, tem muito em comum com o antigo deus Trita Aptya, que aparece no
Rig Veda repetindo algumas das façanhas mais prodigiosas de Indra. No Irã,
Thraetaona derrota Azi Dahaka, um estridente dragão de três cabeças e seis
olhos; na índia, por outro lado, também Trita Aptya mata um estridente dragão
de três cabeças e seis olhos. E existem vínculos entre Thraetaona e o próprio
Indra: as águas que este liberta ao matar Vritra também são deusas — e, ao
matar Azi Dahaka, Thraetaona liberta duas donzelas: mudança comum quando
um mito se transforma em lenda. Já se sugeriu até mesmo que o nome Azi
Dahaka significa “dragão dos dasas” — isto é, daqueles povos nativos que
foram conquistados pelas tribos invasoras —, correspondendo no Irã aos hindus
com os quais Vritra estava associado e que foram combatidos por Indra.7

Todavia, se esses guerreiros eram versões humanizadas de antigos deuses


pré-zoroastrianos que combateram os monstros do caos, quem poderiam ter sido
esses deuses?


Capítulo 3

De fato, o próprio Avesta faz menção de um deus — ainda que secundário


— que luta com um monstro do caos e o derrota: Tishtrya. Considera-se que o
yasht 8, dedicado a esse deus, seja de origem pré-zoroastriana, embora tenha
sido editado para se adaptar a esta doutrina.8 Ele apresenta Tishtrya como
criatura de Ahura Mazda, mas isto nada revela do status original do deus. No
yasht mesmo encontram-se indicações de que seu status havia de fato sido muito
exaltado: Tishtrya aparece dotado de poderes mágicos, um governante
dominador embora extremamente solícito, ansiado com fervor por todas as
criaturas da terra, da água e do ar.

Tishtrya era um deus astral. Seu nome, na forma como o conhecemos,


parece derivar de uma palavra proto-indo-européia que significa “pertencente ao
grupo das três estrelas” — presumivelmente o cinturão de Orion; em algum
momento, entretanto, ele passou a ser associado com Sírio. Graças a outros
textos zoroastrianos, sabemos que se imaginavam as estrelas fixas organizadas
em cinco exércitos, sob o comando de cinco grandes estrelas cuja missão era
combater os demônios. Tishtrya, à frente do exército oriental, era o mais
importante desses comandantes — ele é descrito como deus da “estrela brilhante
e radiosa”, “senhor e supervisor de todas as estrelas”. No entanto, de forma
alguma Tishtrya permanece distante dos seres humanos. Em especial, preocupa-
se bastante em garantir a sobrevivência e a prosperidade do povo iraniano,
proporcionando-lhe lugares em que possa viver em paz, com abundância de
água. Enquanto estrela, à noite ele afasta os demônios fêmeas que, com a
intenção de ferir os seres humanos, caem do céu como estrelas cadentes. Nem
sempre ele está no céu — normalmente atua na terra, sob vários disfarces.
Quando se manifesta sob a forma de um jovem alto e forte, é para conceder
abundância de filhos. Sob a forma de touro, proporciona abundância de gado;
como garanhão, abundância de cavalos.

A maior realização de Tishtrya é como defensor dos seres humanos contra


Apaosha, o demônio da seca, da escassez e da fome. Nessa condição ele se
manifesta como um belo garanhão branco, com orelhas e focinho dourados.
Tishtrya tenta chegar até o mar Vourukusha, a água mítica que é fonte de todos
os rios e de toda a chuva, mas o caminho está bloqueado por Apaosha — que
também assume a forma de um garanhão, só que negro e sem pêlos. Durante três
dias e noites, o cavalo branco e o negro lutam entre si, casco contra casco. No
primeiro combate, Tishtrya é derrotado — e ele sabe o motivo: recebeu muito
pouca adoração. Ele reclama que, se fosse mais adorado, teria a força de dez
garanhões, dez camelos, dez touros, dez montanhas, dez riachos canalizados. Em
conseqüência, o próprio Ahura Mazda adora Tishtrya, sendo o exemplo seguido
pelos seres humanos. Isso muda tudo, pois Tishtrya se torna invencível. No
segundo combate, Apaosha é completamente derrotado. Essa luta se dá entre
rivais no plano sexual — dois garanhões sobrenaturais competindo por uma égua
—, pois o mar Vourukusha, tal como descrito, assemelha-se a um cavalo. Agora,
quando Tishtrya mergulha no mar, suas águas ficam revoltas, da superfície
elevam-se nuvens repletas de água e sementes, a chuva cai, as plantas brotam
das sementes, a terra é salva. Tudo isso volta a ocorrer todos os anos.

Sem dúvida, o yasht que conhecemos não é inteiramente confiável como


guia para nos mostrar de que modo se imaginava Tishtrya em épocas pré-
zoroastrianas, mas revela pelo menos que este deus possuía muitos dos traços
encontrados no Indra védico. Assim como este, Tishtrya era um libertador das
águas — não um deus da chuva mas um deus que, ao derrotar e destruir um
monstro do caos, libertou as águas para que fertilizassem a terra. Ele é amistoso
e prestativo com seu povo, isto é, com as tribos que o adoram. E demonstra boa
vontade não apenas em seu combate anual, mas também na guerra constante que
move contra demônios menos importantes.

Há ainda outras similaridades. Existem bons motivos para se considerar que


este combate era reencenado ritualmente a cada ano, durante uma corrida de
cavalos no circuito completo de um hipódromo — por que outro motivo o yasht
iria especificar que cada cavalo conduz o outro pelo comprimento de um
hipódromo, isto é, até a metade do circuito? Ora, já se argumentou que os
combates de Indra também eram reencenados em corridas de carruagens.9 Outra
vez, tanto Tishtrya como Indra personificam a potência sexual: o mergulho do
primeiro nas águas remete diretamente ao casamento de Indra com as águas
libertadas. Sem dúvida, esta é a razão pela qual ambos os deuses têm como
avatares um jovem, um touro e um garanhão.10


Capítulo 4

Parece claro que, antes de Zoroastro, os iranianos tinham de fato, assim


como os hindus védicos, deuses responsáveis pela defesa do mundo ordenado
contra os sempre renovados ataques dos representantes do caos. Tishtrya era um
deles, mas há motivos suficientes para suspeitar que havia um deus maior, um
guerreiro, atuando nesse sentido em escala muito mais ampla.

O yasht 14, dedicado ao deus da vitória Verethraghna, revela que ele


partilhava muitas das características do Indra védico.”

Segundo o yasht, Verethraghna podia se incorporar em qualquer uma dentre


dez encarnações, todas elas exprimindo sua transbordante vitalidade: um vento
impetuoso, um touro, um garanhão, um camelo no cio, um jovem de quinze
anos, uma águia, um carneiro, um bode selvagem, um guerreiro. Indra também
podia assumir todo tipo de forma, algumas das quais — carneiro, touro,
garanhão, águia — idênticas às de Verethraghna.12

O parentesco entre os dois deuses ainda vai mais longe. O mesmo yasht
mostra que Verethraghna é muito mais do que um deus da vitória na guerra. Ele
proporciona a vitória não apenas no combate, mas também na eloqüência, nas
discussões, em todos os tipos de ação. Os inimigos que submete não se
restringem a exércitos hostis, mas incluem os demônios e seus aliados humanos,
as bruxas e os feiticeiros. Aos homens ele concede força nos braços, saúde em
todos os membros, corpos bem protegidos, testículos inesgotáveis. Na verdade, é
um deus guardião que ajuda seu povo de todas as formas. Quando adorado de
maneira apropriada, não só as carruagens inimigas como também a fome e a
doença são mantidas à distância, ao passo que a adoração insuficiente ou
inapropriada ocasiona desastres na terra. Tudo isso lembra Indra. E se o camelo
no cio, um dos avatares de Verethraghna, tem de fato a paixão mais forte e a
mais potente ejaculação dentre todas as criaturas masculinas, há aqui um
paralelo evidente com um dos epítetos de Indra: “aquele com mil testículos”.

Mas, na verdade, o próprio nome de Verethraghna o vincula a Indra, cujo


epíteto mais comum no Rig Veda é vritrahan. Vritrahan significava “aquele que
esmaga a oposição”; mas talvez seja uma referência mais específica à destruição
do representante maior da oposição, a serpente Vritra. Do mesmo modo, o nome
Verethraghna significa “esmagamento da oposição” ou, simplesmente, “vitória”.
Ainda resta determinar se poderia também ser uma referência à destruição de
uma serpente chamada Verethra (como seria em avestano). Em nenhuma parte
do Avesta encontram-se alusões a essa possível façanha de Verethraghna, mas
outras fontes confirmam a hipótese.

Desde o século I d.C., a Armênia era uma terra predominantemente


zoroastriana até que, do século III em diante, foi pouco a pouco se convertendo
ao cristianismo. Em uma obra cristã da Armênia há menção a um deus anterior
chamado Vahagn, que supostamente outorgava bravura aos seus adoradores.13 O
nascimento de Vahagn foi miraculoso: o céu e a terra entraram em trabalho de
parto, um junco ergueu-se do mar púrpura, do junco ergueu-se uma fumaça que
se transformou em chama e desta saiu uma criança com cabelo em fogo, bigode
de chamas e olhos como dois sóis. Ora, esse Vahagn com certeza é Verethraghna
— e é explicitamente chamado de “matador de dragões”. Em outro texto
armênio, o dragão cósmico é identificado por um nome, Vishap. igualmente de
origem iraniana: vishapa é um epíteto comum no Avesta para os dragões,
significando “aquele que tem veneno como fluidos”.14

Esses dados armênios contribuem para a importância de uma história hoje


preservada apenas num fragmento de uma obra parse.15 Trata-se ali de uma
missão da qual Ahura Mazda encarregou o deus Bahram, isto é, Verethraghna.
Como deus “criado vitorioso desde o princípio”, Bahram recebeu a tarefa de
capturar o maligno demônio Gannak Menok, que estava devastando o mundo, e
de atá-lo e aprisioná-lo para sempre no inferno, de cabeça para baixo. Isto
ocorreu depois que os seres especialmente criados por Ahura Mazda como seus
aliados, os seis Santos Imortais, haviam todos tentado em vão tal façanha.
Bahram evidentemente foi bem-sucedido.

Muita coisa não está clara nesta história. Embora seja dito que esses grandes
acontecimentos deverão ocorrer na grande consumação, eles são narrados como
se já tivessem ocorrido, em uma ocasião remota do passado. Além do mais,
embora Gannak Menok seja claramente Angra Mainyu, o modo como o combate
é descrito faz com que ele pareça mais um dragão do que um ser puramente
espiritual. Essas ambigüidades são importantes. A história toda não seria apenas
uma elaboração do antigo mito do deus-guerreiro que luta e destrói o monstro do
caos? Sem dúvida, a recompensa concedida a Bahram sugere tal coisa, já que
depois da vitória ele foi promovido à posição de sétimo Santo Imortal, e o maior
de todos. Isto nos lembra que Indra, após a vitória sobre Vritra, foi promovido a
rei de todos os deuses. Sem dúvida, Verethraghna foi honrado do mesmo modo,
e o que o texto parse registra é uma versão zoroastrianizada deste acontecimento
singular.

As semelhanças entre Verethraghna e Indra são na verdade tantas e tão


surpreendentes que somos levados a perguntar: na origem, eram eles um único
deus? E o Verethraghna diminuído do Avesta não seria simplesmente uma
versão de Indra aceitável para o zoroastrismo?16


Capítulo 5

O fato de Indra aparecer no Avesta como o principal demônio, a própria


personificação de druj, revela que ele havia sido um dos principais deuses indo-
iranianos e que era inaceitável para os zoroastrianos. Mas por que inaceitável?

Já se argumentou que Indra foi rejeitado por Zoroastro e pelos zoroastrianos


porque era padroeiro dos ladrões de gado. Talvez isto tenha contribuído, mas não
haveria algo mais a dizer sobre a questão? Não seria possível que, em épocas
pré-zoroastrianas, o Indra iraniano estivesse em relação a Ahura Mazda na
mesma posição do Indra védico perante Varuna: na posição de um guerreiro
incessante e ativamente empenhado em afastar as forças do caos, perante o
supervisor sereno e majestático da ordem universal, ou seja, numa relação de
parceria entre iguais? Se for assim, bastaria isto para torná-lo amaldiçoado aos
zoroastrianos. Para o profeta e seus seguidores, nenhum deus poderia ser, mesmo
aproximadamente, equivalente a Ahura Mazda. Tishtrya teria permissão para
prosseguir em sua tarefa altamente especializada — um Indra tão poderoso como
este só podia ser transformado em demônio.

Porém, até mesmo os seguidores iranianos de Zoroastro necessitavam de


ajuda divina em épocas de guerra. Aparentemente, o papel de Indra como deus
da guerra foi assumido por Mithra — um deus muito mais agressivo do que o
Mitra védico. E, curiosamente, esse Mithra zoroastrianizado é na verdade uma
reminiscência de Indra como deus da guerra, até nos detalhes precisos de uma
poderosa maça “com centenas de tachões e centenas de lâminas, cujo manejo
dizimava os homens, feita de metal amarelo, forte e dourado, a mais poderosa
das armas, a mais vitoriosa das armas [...]".17 Além do mais, Mithra tem como
assistente o Indra diminuído, Verethraghna — e este ainda faz, em nome de
Mithra, o que Indra antes fazia por conta própria: “ele corta em pedaços tudo ao
mesmo tempo, misturando no chão os ossos, o cérebro, o sangue de homens
violadores do contrato”,18 assim como Indra, no Rig Veda, “tal qual uma pedra
lançada do céu”, abate com força ardorosa todos aqueles que violam o contrato.
Verethraghna mantém até o javali selvagem como avatar, exatamente como
Indra.

Quando Mithra se torna um deus solar — o que acabaria sendo para os


iranianos —, o javali Verethraghna continua presente, feroz, forte, com presas
afiadas, patas e mandíbulas de ferro, correndo à frente de Mithra em seu
percurso diário através do céu.19

Desse modo, como indicado, Indra continua a estar presente no


zoroastrismo: em parte como demônio, mas também reduzido, fragmentado,
escondido, em Verethraghna e em Mithra. Em sua forma original e majestosa,
não havia lugar para ele. Pois, agora, Ahura Mazda — mais exaltado nos
ensinamentos zoroastrianos do que qualquer deus jamais havia sido —
combinava as funções dos dois maiores deuses do panteão védico. Não apenas
velava pela ordem universal, como Varuna, mas também, tal como Indra,
combatia incessantemente as forças do caos, agora incorporadas em Angra
Mainyu/Ahriman.


Capítulo 6

Nesta altura, somos obrigados a reconhecer que um enorme abismo separa


os ensinamentos de Zoroastro do antigo mito do combate.

Os feitos de Ahura Mazda vão muito além de tudo o que se conhece do mito
tradicional. A guerra que trava é uma guerra espiritual, cujo objetivo não se
limita a assegurar a fertilidade das terras e as vitórias militares de seu povo. Não
se trata nem mesmo da mera manutenção do mundo ordenado. O que ele faz é
remover do mundo toda forma de desordem, de maneira exaustiva e para
sempre, tomando possível um estado em que o cosmos deixará de ser ameaçado
pelo caos. Desse modo, no final. Angra Mainyu/Ahriman é aniquilado de uma
vez por todas, juntamente com todas as hostes demoníacas e seus aliados
humanos. Em vez de vitórias repetidas mas incompletas, há a promessa de uma
vitória definitiva e total.

Zoroastro, já se sugeriu, inspirou-se em um antigo e potente mito do


combate para criar um outro mito do combate ainda mais potente.20 Sua criação
sobrevive até hoje: o próprio âmago do zoroastrismo sempre foi um mito do
combate — na verdade, até mesmo o próprio guerreiro divino está presente, sob
a forma do redentor futuro, o saoshyant Asvat-Ereta. Mas o mito tradicional,
como era conhecido no antigo Oriente Próximo antes de Zoroastro, foi
transformado em fé apocalíptica.

Esta era uma percepção do mundo drasticamente nova e abriu novas


possibilidades. As visões de mundo que conheciam apenas um cosmos eterno e
imutável, mas sob a constante ameaça do caos, eram essencialmente
conservadoras. Embora pudessem conquistar a fidelidade de toda uma
sociedade, serviam sobretudo aos interesses das autoridades estabelecidas.
Quando integrados a uma ideologia imperial, os ensinamentos zoroastrianos
desempenharam o mesmo papel. Mas ofereciam também outra possibilidade,
muito diversa.

Originalmente, no pensamento do próprio profeta, o conflito entre Ahura


Mazda e Angra Mainyu refletia um conflito social, e o “tornar maravilhoso’’
significava, entre outras coisas, a resolução desse conflito. No mundo presente,
guerreiros ricos e poderosos estavam espoliando indefesos criadores de gado e
suas manadas; no mundo perfeito do porvir, estes iriam prosperar e os guerreiros
predadores seriam consumidos pelo fogo. Algum eco dessa época remota
permaneceu: os ensinamentos zoroastrianos mantiveram sua capacidade, em
determinadas circunstâncias, de inspirar indivíduos ou grupos dissidentes a
aguardar com confiança o dia em que a ordem estabelecida seria abolida e se
derrubariam as autoridades existentes, enquanto eles próprios seriam
recompensados e exaltados. Quando a escatologia zoroastriana foi assimilada e
adaptada por não-zoroastrianos, isto ocorreu em escala grandiosa, como
veremos.


II - CRISOL SÍRIO-PALESTINO

6 - UGARIT
Capítulo 1

Entre os dois grandes centros de civilização, o Egito e a Mesopotâmia,


estendia-se a entidade geográfica e cultural que na Bíblia é chamada de terra de
Canaã e que os historiadores atuais denominam Síria-Palestina. Abrangendo
aproximadamente a área reunida do Israel moderno, da Jordânia, do Líbano e do
litoral e centro da Síria, era habitada por uma mistura de povos semíticos aos
quais se costuma chamar, para o período até 1200 a.C., de cananeus.1 De 1200
a.C. em diante, a região também foi habitada pelo povo que conhecemos como
israelitas.

Também nessa região, durante séculos os indivíduos viveram naquilo que


percebiam como uma ordem estabelecida pelos deuses, uma ordem
essencialmente imutável, embora sempre ameaçada pelas forças do caos. E
também ali chegou uma época em que os espíritos proféticos começaram a falar
de uma gloriosa consumação vindoura, quando todas as coisas seriam renovadas.
Esses desenvolvimentos merecem ser examinados de maneira detalhada, pois
suas conseqüências se fizeram sentir ao longo dos séculos, chegando mesmo aos
tempos atuais.

No segundo milênio, os cananeus viviam em diversas cidades-Estado e


dedicavam-se à agricultura e ao comércio. Porém, sem contar com os grandes
rios que promoveram o desenvolvimento da civilização a oeste e a leste, Canaã
era uma terra relativamente atrasada, com comunidades urbanas pequenas —
sabe-se que uma das maiores cidades ocupava uma área inferior a 35 acres.
Viviam na dependência de cada colheita, em função da chuva na época e na
quantidade certas, com a seca e a fome sempre pairando no horizonte.

Até bem recentemente, tudo o que sabíamos da visão de mundo cananéia


baseava-se nos polêmicos comentários dos profetas hebreus.2 Esta situação
alterou-se com a descoberta, em 1929, sob uma colina conhecida como Ras
Shamra, dos restos da cidade-Estado de Ugarit. Situada no litoral sírio, na altura
da extremidade setentrional de Chipre, Ugarit era o centro das rotas comerciais
entre a Mesopotâmia, o Egito e o Mediterrâneo. Nessa metrópole, gente de todas
as grandes civilizações da Idade do Bronze tardia, tanto indo-européias como
semitas, entravam em contato e trocavam idéias e histórias. Em termos
estratégicos, a cidade também era importante seja para os egípcios, seja para
seus rivais ocasionais, os hititas. Em conseqüência, Ugarit desfrutava de uma
riqueza e de um prestígio excepcionais. A abundância, qualidade e variedade dos
escritos encontrados nos arquivos do palácio e na biblioteca localizada entre os
dois templos principais dão testemunho de uma era de prosperidade que durou
de 1400 a c.1200 a.C.

Mesmo situada além do limite setentrional da terra de Canaã, Ugarit


partilhava da cultura cananéia comum das Idades do Bronze Média e Final (1700
a 1200 a.C.). Politicamente, toda a área estava incluída em um contexto imperial,
quase sempre o do império egípcio. A maioria das cidades-Estado, grandes ou
pequenas, eram reinos, e seus governantes, embora vassalos de senhores muito
mais poderosos, exerciam nas próprias terras enorme autoridade e desfrutavam
de grande prestígio.

As lendas ugaríticas têm muito a dizer sobre a realeza cananéia, ou pelo


menos sobre o ideal cananeu de realeza. Acreditava-se que a dinastia do lendário
rei Keret contava com a sanção divina do chefe do panteão. Tal como um
soberano mesopotâmico, um rei de Ugarit era, ao mesmo tempo, representante
do povo perante os deuses e destes perante a comunidade. Há indícios sugerindo
que, depois da morte, ao próprio rei era concedido algum tipo de status divino.

Em teoria, o rei era responsável pela justiça e pela correção nos negócios
comunitários. A exemplo de monarcas mais poderosos, supunha-se que
dedicasse especial atenção às necessidades de viúvas e órfãos.3 Ao manter a boa
ordem na sociedade, acreditava-se também que exercia uma influência benigna
sobre a natureza. A li onde prevaleciam a justiça e a correção, a seca e a fome
eram mantidas a distância e a terra permanecia fértil — o epíteto mais comum do
rei Daniel é “provedor de fertilidade”. E, originalmente, o rei também era o líder
na guerra e suas vitórias fortaleciam ainda mais o mundo ordenado. É verdade
que, na segunda metade do segundo milênio, as funções que antes pertenciam ao
rei haviam sido transferidas para profissionais — sacerdotes, juízes, soldados. A
despeito disso, o rei ainda era a suprema autoridade no Estado e continuava a ser
visto como responsável pela sustentação da ordem estabelecida pelos deuses.4

Isto não significa que a monarquia ou a ordem estabelecida pelos deuses


parecesse muito benigna aos camponeses cananeus. A tarefa de sustentar o
luxuoso estilo de vida da casa real, numa terra pobre como Canaã, impunha um
fardo esmagador sobre os camponeses: em Ugarit, os cerca de seis mil a oito mil
moradores da cidade, em sua maior parte economicamente improdutivos e
dependentes do palácio, eram sustentados por apenas 25 mil lavradores
distribuídos nos campos circundantes.5 A longo prazo, o sistema revelou-se
inoperante. No século XIII, a economia entrou em colapso, as aldeias foram
abandonadas e as cidades-Estado — não mais protegidas por um Egito que
estava ele próprio enfraquecido — revelaram-se incapazes de evitar que a região
fosse invadida pelos “povos do mar” originários da Anatólia e das ilhas do Egeu.

Apesar disso, a visão de mundo cananéia sobreviveu e influenciou


profundamente um povo que só então estava adquirindo uma identidade: os
israelitas.


Capítulo 2

Aparentemente, foi um certo Elimeleque quem deu aos mitos ugaríticos sua
atual forma literária, entre 1380 e 1360 a.C., embora eles provavelmente
estivessem em circulação, como literatura oral ou escrita, desde cerca de um
século antes.6 Os mitos revelam um grande e variado panteão dominado por três
divindades principais: os deuses El e Hadad (este em geral conhecido como
Ba’al, significando “senhor”), e a deusa Anat. El, cujo nome significava “deus”,
era o deus criador. Criador e procriador, pois supervisionava a concepção e o
parto entre os seres humanos. El parece ter gerado os deuses no sentido mais
literal — esta, sem dúvida, é a razão de ser chamado por vezes de “Touro El”.
Também era conhecido como “Criador das Coisas Criadas”, e há bons motivos
para se pensar que — tal como An e Marduk — ele era considerado criador do
céu e da terra. El tinha uma consorte, a deusa Athirat ou Asera, que havia
participado da obra de criação. Figura um tanto vaga em Ugarit, sabe-se que
Athirat foi reverenciada como divindade importante em outras partes da região.
Tanto El como Athirat eram seres primordiais que sempre haviam existido.

Pai dos deuses e líder da família de deuses, El presidia a assembléia divina.7


Ele é chamado de “rei”, sendo de fato uma figura régia. Majestoso, distante, com
freqiiência é mostrado solitário, sentado junto “à fonte de dois regatos”,
significando talvez a fonte comum das águas superiores e inferiores do oceano
cósmico. Aparentemente considerava-se que esta se localizava em algum ponto
nas montanhas Amanus, ao norte de Ugarit. El morava ali, em um templo em
forma de tenda, e era ali que a assembléia dos deuses se reunia para receber suas
instruções. A tenda de El era o próprio centro do universo imaginado pelos
cananeus e deste centro El exercia seu domínio.

Era um domínio benévolo. Pois, embora imperturbável, El não deixava de


se envolver. Com freqiiência, era requisitado para atender os pedidos de seus
filhos, os deuses subalternos. Estes estavam sempre tentando influenciá-lo, mas
ainda assim se prostravam diante dele, reconhecendo-lhe a sabedoria superior:
“Seu decreto, El, é sábio, sua sabedoria é eterna”.8 El era o único deus com o
direito de emitir decretos — e seus decretos tinham de ser obedecidos.
Encarregado de todo o universo, cabia a ele assegurar a manutenção do
equilíbrio entre todos os poderes conflitantes e concorrentes que havia no
universo.
El também se preocupava com a sociedade humana.9 Na lenda do rei Keret,
ele é chamado de pai do rei, e o papel deste como fiador e sustentáculo da justiça
na comunidade é claramente um reflexo do próprio papel de El. Assim como
supervisionava a ordem no universo, também velava pela ordem na sociedade, e
essa ordem incluía a justiça e a correção em todas as transações. Não por acaso
El era conhecido como “o bondoso, o compassivo” — uma designação
curiosamente evocativa do “Alá, o Misericordioso, o Compassivo” do
islamismo. Mas El também era capaz de se enfurecer: as transgressões na
comunidade, intencionais ou não, podiam irritá-lo — e quando isto ocorria ele
incitava as potências vizinhas a invadir e conquistar os transgressores. Para
evitar tais calamidades, o rei tinha de realizar rituais de expiação e oferecer
sacrifícios. Mas isso também revela o quanto se considerava que a boa ordem
social era da alçada do deus supremo.


Capítulo 3

O deus que mais sobressai nos mitos ugaríticos é Ba’al,1 () que parece ter
entrado tardiamente no panteão. Talvez fosse um deus de origem estrangeira,
introduzido por imigrantes. Com certeza não era filho da consorte de El, Athirat,
pois era temido e odiado por ela e pelos inúmeros deuses que formavam sua
descendência.

Originalmente, Ba’al era um guerreiro divino — com freqüência é retratado


armado de punhal, maça e lança. Jovem e vigoroso, seus epítetos mais comuns
são “o poderoso”, “o mais poderoso dos heróis”, “o príncipe” e também “aquele
que cavalga as nuvens”, pois, como outros guerreiros divinos, era um deus da
tempestade e da chuva. Ele se manifestava sobretudo nas violentas tempestades
de outono e do final do inverno. Dizia-se que determinava a estação certa para as
chuvas e abria as nuvens quando chegava a época de umedecer o solo gretado e
prepará-lo para o cultivo. Também podia ser aterrorizador: suas setas em forma
de relâmpago e sua voz em forma de trovão faziam com que as montanhas
cambaleassem e tremessem, convulsionando a terra.

Ao contrário de El, Ba’al não se mantinha distante, além do alcance das


forças destrutivas. Pelo contrário, estava sempre ameaçado por elas. Ba’al é
mostrado em permanente atividade, sempre defendendo o cosmos contra as
forças do caos. É a força incansável de cujo exercício sempre dependeram, e
sempre dependerão, o curso adequado da natureza e a própria sobrevivência da
vida no mundo. Embora El tivesse criado o mundo e continuasse a supervisioná-
lo, cabia a Ba’al a responsabilidade de garantir a realização das intenções
benévolas de El.” E se os textos remanescentes não incluem nenhum mito sobre
o ato criativo original de El, mas apenas mitos sobre a incessante atividade de
Ba’al, sem dúvida isto reflete a importância relativa que as pessoas atribuíam,
por um lado, a um acontecimento no passado remoto e, por outro, ao seu próprio
bem-estar no presente.

A aventura inicial de Ba’al tem muito em comum com a façanha de outro


deus da tempestade juvenil, o Marduk da Babilônia. Certa vez, El,
desconsiderando as duras advertências de vários deuses e deusas, cedeu aos
pedidos de um deus chamado Yam e permitiu que este construísse um palácio,
concedendo-lhe assim, inadvertidamente, o status de rei. Entre os epítetos de
Yam encontramos “Senhor do Mar” e “Corrente do Mar e do Oceano” — e se
algumas traduções dão “Mar e Rio” ou mesmo “Rio Príncipe”, parece na
verdade que esse “rio” é apenas uma corrente oceânica. Pois Yam é claramente
um deus do mar, e do mar imaginado como força indomável, perpetuamente em
movimento, sempre ameaçando a terra sólida — na verdade, o Mediterrâneo
oriental tal como experimentado todos os invernos pelos marinheiros e
pescadores de Ugarit. Mas isto não é tudo: os domínios de Yam também
abrangem o mar ainda mais aterrorizante, o oceano mítico que circunda o mundo
e poderia a qualquer instante submergi-lo e aniquilá-lo.12

Assim que adquiriu a condição régia, Yam começou a aterrorizar a


assembléia dos deuses, e o fez de maneira tão eficaz que, ao pedir a eles que lhe
entregassem Ba’al, os deuses assentiram. Ba’al, porém, não se submeteu. Em
vez disso, tornou-se paladino dos deuses e lançou-se num combate contra as
águas turbulentas, tendo a perspectiva da realeza como recompensa. O artesão
divino entregou-lhe armas e, ao mesmo tempo, definiu o que estava em jogo:
Verdadeiramente, eu digo a ti, ó príncipe Ba ‘al, Tu alcançarás teu reino eterno, teu domínio
será para sempre. [...] Expulse Yam do trono [...].13

Quando Ba’al alcança a vitória, os deuses reconhecem plenamente o que ele


realizou e que conseqüências advirão daí. Então, El manda erguer um palácio
para Ba’al; um palácio imaginado como uma morada celestial acima do monte
Zafon, cerca de trinta quilômetros ao norte de Ugarit. O tratamento exaustivo
desse tema sugere que talvez haja uma relação com o mundo real: a intenção não
poderia ter sido estimular ou explicar a construção do grande templo de Ba’al
recém-escavado em Ugarit? É bastante provável, pois, assim como não podia
governar os deuses sem dispor de um palácio, Ba’al não podia conceder a
fertilidade aos humanos sem um templo terreno.

Uma vez alojado de maneira adequada, Ba’al se torna de fato “Senhor”. Faz
valer seu domínio sobre “oito e oitenta cidades, sim, nove e noventa”, e
proclama:
[Pois] só eu sou aquele que será rei sobre os deuses, [que] de fato engorda deuses e homens,
que satisfaz as multidões da terra.14
Tal como El, Ba’al é agora rei dos deuses, mas sua realeza é diferente da
exercida por El. Este sempre foi rei, seu domínio é eterno, imutável. Ba’al, ao
contrário, precisa não só conquistar a realeza, mas também defendê-la; seu
domínio é instável, precário. E nem sempre ele é o governante supremo. Como
vice-regente de El, tem domínio sobre a terra e seus habitantes. Nunca substitui
El como senhor de todo o universo, tal como o fez Marduk em relação a Anu e
Enlil na Babilônia. E, embora seja possível e até provável que o mito de Marduk
e Tiamat deva algo ao mito de Ba’al e Yam, o mito cananeu, mais antigo, é o
menos grandioso dos dois: não há nenhum indício de que Ba’al crie o céu e a
terra a partir do corpo de Yam.

Mesmo assim, Yam é um monstro do caos e, ao derrotá-lo, Ba’al preserva o


mundo ordenado. Certas passagens em outros mitos ugaríticos são mais
esclarecedoras quanto a isso, identificando o deus do mar a uma serpente ou um
dragão. Em uma delas, a irmã de Ba’al, Anat, lembra de que modo ela o ajudou
no fatídico combate:
Não fui eu que destruí Yam, dileto de El, [...] Não foi o dragão capturado [e] vencido? Eu de
fato destruí a serpente coleante, o tirano de sete cabeças.15

Em outro trecho o próprio Ba’al é lembrado de sua vitória:


[...] tu esmagaste Leviatã, a serpente escorregadia, e deste um fim à serpente escorregadia, o
tirano de sete cabeças.16

No entanto, o monstro do caos não é aniquilado, mas apenas contido,


mantido à distância — afinal, também ele é um deus, “amado de El”. E, de
qualquer modo, Ba’al tem outro antagonista ainda mais temível para enfrentar: o
deus Mot, outro “amado de El”.17 Enquanto Ba’al é o deus da chuva e ajuda a
terra a florescer, Mot é o deus da seca e condena a terra à esterilidade. Na terra,
sua morada é o deserto crestado pelo sol, ele é o gênio do calor escaldante do
verão. Mas é muito mais do que isso. Assim como Ba’al é o senhor do mundo
dos vivos, Mot é o senhor da morte — na verdade, seu próprio nome significa
“morte”. Tal como o Nergal mesopotâmico, ele é a morte imaginada como um
ser voraz, dotado de insaciável apetite por carne e sangue humanos.18

Quando sai de seus domínios, Mot leva a desolação a todas as colinas e


todos os vales por onde passa, extinguindo o alento da vida em todos os seres
humanos que encontra. E não há ser humano que, mais cedo ou mais tarde, não
se encontre com Mot. Quando a deusa Anat tenta conquistar um príncipe com
promessas de imortalidade, ele não se ilude:
Não mintas para mim, ó virgem, pois para um herói tua mentira é indecorosa. Como [seu]
destino derradeiro, o que obtém um homem? O que consegue um homem como [sua] sina
final? [...] a morte de todos os homens será a minha morte, mesmo eu com certeza irei
morrer.19

A morada de Mot é o mundo inferior, onde ele governa como rei; sua
“voracidade” refere-se também à descida dos mortos ao mundo inferior. Esse
domínio tenebroso, mencionado alternadamente como “a terra”, “o Poço”, “o
Abismo”, é descrito como uma “cidade” pertencente a Mot. Não é uma cidade
na qual se entra de boa vontade. Para os cananeus, assim como para os
mesopotâmicos, a morte é uma forma de existência miserável. Ainda que filhos e
netos fizessem oferendas regulares de alimento e bebida a fim de amenizar a
fome e a sede de alguns, nem todos contavam com descendentes solícitos ou
mesmo com qualquer tipo de descendência. Esfomeados, os espíritos dos
desesperados constituíam um perigo constante para os vivos.20

Quando Mot desafia Ba’al, este não tem outra escolha senão enfrentá-lo. O
combate ocorre na fronteira do mundo inferior, e ali Ba’al cai morto. O risco de
que essa morte desencadeie uma catástrofe total é tão grande que o próprio El
desce do trono, ajoelha-se no chão e realiza todos os ritos do luto. “O que
acontecerá ao povo?”, indaga ele, considerando até a possibilidade de descer ao
mundo inferior para resgatar Ba’al. No fim, é Anat, a irmã e consorte de Ba’al,
quem encontra seu corpo e lhe proporciona sepultamento condigno. Ba’al
renasce e a terra volta a se tornar fértil. Em um sonho, El vê t4os céus [lançando]
uma chuva de azeite e o mel escorrendo pelos uádis”; deliciado, ele exclama:
Mesmo eu poderei sentar e ficar à vontade, e a alma dentro de mim poderá descansar; pois
Ba‘al, o mais poderoso, está vivo, o senhor príncipe da terra existe.11

Porém, a segurança completa não é para este mundo. Mot também renasce e
os dois rivais voltam a se enfrentar em grandioso combate:
Eles se olharam como brasas ardentes; Mot era forte, Ba’al era forte. Eles mordiam como
serpentes; Mot era forte, Ba ‘al era forte. Eles puxavam um ao outro como galgos; Mot caiu,
Ba ‘al caiu sobre ele.22

No final, por intermédio de um mensageiro, El ordena a Mot que se afaste e


deixe Ba’al viver e reinar nos domínios que lhe pertencem por direito.

Os mitos de Ba’al podem ser vistos de mais de uma maneira.23 Ba’al, Yam e
Mot são todos eles deuses, cada um reinando em seu próprio domínio. Em certo
nível, seus conflitos simbolizam as vicissitudes meteorológicas da terra de
Canaã. Isto não significa — embora esta seja uma posição sustentada por
muitos24 — que tais conflitos devam ser interpretados em termos do ciclo das
estações; muito menos que Ba’al seja um deus que morre e renasce segundo as
estações. Não há referência no texto a ciclos sazonais e, quando se ausenta, Ba’al
não o faz por uma única estação, mas por sete ou oito (significando “muitos”)
anos. O que o mito diz é que Ba’al, o portador da fertilidade, consegue manter
seu predomínio apenas quando subjuga Yam, o gênio das águas sempre prontas
a submergir a terra, ou Mot, o gênio da seca sempre prestes a levar a fome à
terra. Já se afirmou que os mitos sobre as vitórias de Ba’al eram recitados em
festivais de outono para a celebração do ano-novo, a fim de garantir que as
vitórias se repetissem e que outra vez fosse concedida a chuva que possibilita a
vida — e isto pode muito bem ser verdade.

Entretanto, tais mitos não se referem apenas à fertilidade. Mot não é apenas
a seca, mas também a morte. A luta entre Mot e Ba’al simboliza a luta entre as
forças da vida e as forças da morte. Está em risco a própria sobrevivência do
mundo dos vivos. E o mesmo pode ser dito do combate que Ba’al trava com as
águas, pois estas simbolizam as forças destrutivas que constantemente ameaçam
o mundo ordenado e cujo triunfo reduziria este mundo ao caos primordial de
onde ele surgiu. Além do mais, também é verdade que, se nenhuma dessas duas
forças poderosas é capaz de derrotar Ba’al definitivamente, nenhuma delas pode
ser derrotada para sempre. O caos é uma possibilidade perene, a morte a mais
certa das certezas — e ambos parte inelutável da realidade.25


Capítulo 4

A irmã e consorte de Ba’al, a deusa Anat, era adorada não só em Canaã,


mas também na Anatólia, na Mesopotâmia e no Egito; no entanto, são os textos
de Ras Shamra que nos proporcionam mais informações a respeito dela.26 Como
Ba’al, Anat está empenhada na promoção da fertilidade. Em placas de argila
moldada originárias de Canaã ela é retratada nua e com os órgãos sexuais
ressaltados; provavelmente trata-se de amuletos destinados a facilitar o parto. E
Anat se empenha igualmente em promover a fertilidade da terra. Quando Ba’al é
morto por Mot, ela ajuda a trazê-lo de volta à vida. E, além disso, ela enfrenta o
próprio Mot, conseguindo destruí-lo:
Ela agarrou o divino Mot, com uma espada ela o dividiu, com uma peneira ela o joeirou, com
um fogo ela o queimou, com uma mó ela o moeu, pelo campo ela o dispersou; a carne dele foi
devorada pelas aves.27

Anat é de fato uma lutadora valente. Em uma passagem ela lembra Ba’al de
que estava presente em todos os combates dele, participando ativamente de todos
eles, desde a luta original com o “Mar e a Corrente Oceânica”. Isto significa que,
tal como seu irmão, Anat é uma defensora da assembléia divina contra um deus
rebelde e arrogante — na verdade, uma defensora do cosmos contra o caos. Esta,
sem dúvida, é a chave para se entender um trecho que deixou perplexo mais de
um comentador.28

Essa passagem, incorporada à história de Ba’al, descreve como Anat


decapitou pessoas que viviam nos vales, nas cidades, no litoral e na terra do sol
nascente, até que as cabeças cortadas dos soldados chegaram à altura de seu
cinto e ela caminhou mergulhada em sangue. Não satisfeita, continuou a
massacrar tropas em seu próprio palácio (ou templo?), rejubilando-se e rindo
durante todo o episódio. Em seguida, Anat, a “Progenitora de Nações”, lavou as
mãos no sangue dos mortos, no orvalho e na chuva enviados por seu irmão Ba’al
e ainda no óleo da terra.

Nada disso parece estranho quando se tem em mente o quão importante


eram a vitória e a derrota militares para todas as sociedades do Oriente Próximo,
inclusive as cidades-Estado cananéias. Por volta de 1200 a.C, a própria Ugarit
foi conquistada e completamente destruída, mas até então contava com seus
deuses para defendê-la. O próprio Ba’al podia ser invocado como aliado nas
guerras: “Se algum forte atacar seu portão, um guerreiro suas muralhas, erga os
olhos [em prece] para Ba’alu: ‘Ó Ba’alu, por favor afaste o forte do nosso
portão, o guerreiro das nossas muralhas’ [...] E Ba’alu atenderá suas preces
[...]”.29

A sociedade ugarítica era uma sociedade militar: o rei era o chefe do


exército e tinha o governador militar da cidade como um de seus principais
auxiliares. A própria cidade, além de bem-fortificada, era protegida por
arqueiros, lançadores de fundas e guerreiros equipados com carruagens de
combate. Sem dúvida, para essa pequena nação a vitória na guerra tinha o
mesmo valor transcendente que lhe atribuíam os grandes impérios: devia ser
vista como parte da ordem estabelecida pelos deuses, como manifestação da
correção do mundo, tanto quanto a fertilidade da terra. E aqui, certamente, está o
sentido da orgia de matança promovida por Anat. Afinal, nos baixo-relevos
assírios que celebravam a vitória do deus e do rei encontramos uma enorme
quantidade de mãos e cabeças cortadas, tal como, no Egito, o faraó glorificava o
terror imposto aos vencidos como uma afirmação de ma’at. Assim como Anat
preservava o mundo ordenado quando ajudava Ba’al a vencer os deuses das
águas indomáveis e os deuses da seca, ela também o preservava ao derrotar e
matar os inimigos daqueles que a adoravam. Não sem razão, portanto, no Egito o
culto de Anat era observado pelos faraós guerreiros da xix dinastia e Ramsés II
chamava sua espada de “Anat vitoriosa”. Na verdade, Anat era uma equivalente
ocidental da deusa mesopotâmica da guerra, Inana/Ishtar.

O quadro geral é bastante claro: em Ugarit, e presumivelmente em outras


cidades-Estado cananéias, a concepção de uma ordem onipresente estabelecida
pelos deuses era tão familiar quanto nos grandes impérios. Nestes, assim como
em Ugarit, considerava-se que essa ordem, mesmo permanentemente ameaçada,
sempre conseguiria sobreviver. E também ali não se punha em discussão o que
era a expectativa máxima de todos: as coisas continuariam a ser o que sempre
haviam sido.


7 - YAHWEH EA MONARQUIA DE JERUSALÉM

Capítulo 1

É possível imaginar que a história dos israelitas seja fácil de resumir, assim
como sua visão de mundo, pois ambas estão documentadas na Bíblia hebraica,
também conhecida como Velho Testamento. Infelizmente isto não é, de maneira
nenhuma, o que acontece, pois as partes relevantes da Bíblia foram coligidas e
editadas num período bem tardio, entre 600 a.C. e 100 a.C. — e editadas, além
do mais, para que se adequassem às crenças e experiências dos redatores. Com
freqüência é difícil, e às vezes impossível, distinguir o que pode ter sido
vivenciado e expresso em épocas anteriores aos acréscimos e interpretações. E
tampouco é fácil escolher entre os argumentos e as conclusões dos estudiosos
bíblicos, que vêm divergindo por mais de um século. Porém, com este caveat
lector, é preciso tentar fazê-lo.

Enquanto um povo identificável, os israelitas chegaram tarde à terra de


Canaã. A área de povoamento mais antiga que é plausível considerar israelita
remonta, de acordo com recentes pesquisas arqueológicas, ao período por volta
de 1200 a.C., quando surgiu uma centena de aldeias não fortificadas na região
montanhosa, distante das cidades cananéias do litoral. Essas comunidades aldeãs
eram muito pequenas e dependiam, para sua sobrevivência, da agricultura e da
criação de ovelhas, bodes e, às vezes, rebanhos bovinos. Alguns estudiosos
acreditam que foram fundadas por camponeses que conseguiram se subtrair ao
controle das cidades-Estado, numa época em que estas entraram em declínio;
outros sustentam que originalmente eles eram imigrantes nômades do Oriente,
de Edom e Moab.2

Isto não implica necessariamente que a história contada no Êxodo seja


ficcional. Ao que parece, havia no Egito muita gente que não possuía
propriedades; vivendo às margens da sociedade urbana, essas pessoas eram
conhecidas como hapirus e foram obrigadas a trabalhar na construção da nova
capital de Ramsés II (1304-1237 a.C). Algumas delas podem muito bem ter
escapado e se reunido aos povoados em Canaã. A similaridade entre os termos
“hapiru” e “hebreu” toma muito provável a hipótese, mesmo sabendo-se que os
hapirus nunca constituíram um grupo étnico homogêneo.

Nos dois séculos seguintes, os israelitas, aparentemente organizados em


tribos, ocuparam uma extensa área de Canaã — e, não obstante, as férteis regiões
costeiras, com suas cidades-Estado densamente povoadas, permaneceram
intocadas. Por volta do ano 1000 a.C., uma combinação de fatores políticos e
econômicos levou à formação de um Estado israelita centralizado e governado
por um rei. Muitos estudiosos consideram este o ponto inicial da história de
Israel, como narrativa crível sobre um povo claramente identificável.

Até então, os israelitas haviam se dividido em dois grupos ou “casas”


principais, o setentrional e o meridional. O segundo rei, Davi, fundiu ambas as
“casas” em um reino unificado; ele e depois seu filho, Salomão, governaram
ambos os grupos a partir de Jerusalém, a capital, localizada em território neutro
entre as regiões do sul e do norte. Na verdade, o domínio deles ia além: as
cidades-Estado cananéias das planícies central e setentrional foram subjugadas e
transformadas em vassalas. Não há consenso sobre a possibilidade de outros
reinos vizinhos terem sido derrotados e incorporados ao domínio israelita.

A monarquia instalada em Jerusalém devia muito às antigas sociedades do


Oriente Próximo. Sua organização política foi copiada do Novo Império egípcio,
a burocracia aparentemente foi recrutada nas cidades-Estado cananéias, a
ideologia baseava-se em modelos mesopotâmicos e cananeus. Nada disto
proporcionou-lhe prosperidade ou segurança duradouras. Nem mesmo a união
das duas “casas” sob um único monarca sobreviveu à morte de Salomão,
ocorrida em 926 ou 922 a.C. As “casas” continuaram existindo como reinos
separados — o reino do norte ainda duraria por mais dois séculos; o do sul, por
mais de três. As vezes os dois reinos lutavam entre si e com freqüência
guerreavam com outras pequenas potências da região da Síria-Palestina. Mas seu
poder era restrito, insuficiente para enfrentar os perigos que os ameaçariam a
partir do século VIII a.C.

As conquistas que o império neo-assírio vinha realizando já por um século


deram um salto quando, em 745 a.C., Tiglath-Pileser ui ascendeu ao trono.
Durante as décadas de 730 e 720 a.C., o reino israelita setentrional foi primeiro
reduzido à condição de vassalo e depois abolido, sendo o território transformado
em mais uma província assíria. Em conformidade com a prática neo-assíria, a
classe dominante israelita foi deportada para várias regiões distantes do império,
onde acabaria por se integrar à população local e desaparecer. O reino
meridional, chamado reino de Judá, tomou-se um Estado vassalo dos assírios e
assim permaneceu — até que no final do século VII o próprio império assírio foi
sobrepujado por uma coalizão dominada pelos babilônios. E logo depois toda a
Síria-Palestina caiu sob o domínio da Babilônia.
Em 597 a.C., o monarca babilônio Nabucodonosor (Nebuchadnezzar ou
Nebuchadrezzar), insatisfeito com o comportamento do rei vassalo de Judá,
ocupou Jerusalém. Quase todos os habitantes que possuíam alguma influência ou
habilidade foram deportados para a Babilônia: o rei e sua família, os altos
funcionários do palácio, os ricos e os letrados, além de ferreiros, metalúrgicos e
artesãos de todos os tipos. Depois de alguns anos, o novo rei vassalo, que havia
sido nomeado por Nabucodonosor, tentou se rebelar. As conseqüências foram as
que se poderiam esperar: em 586, os babilônios voltaram a invadir Jerusalém —
e desta vez as muralhas da cidade foram derrubadas e o templo de Salomão
completamente destruído. O mesmo destino coube a outros vilarejos de Judá. A
monarquia davídica, que havia governado por cerca de quatro séculos, foi
eliminada: o último rei, depois de ser forçado a presenciar a execução de seus
filhos, foi cegado e conduzido em grilhões para a Babilônia. O Estado ruiu e
Judá perdeu o último resquício de independência política.


Capítulo 2

Embora o reino setentrional, durante o tempo que durou, tenha sido maior e
mais poderoso, coube ao reino sulino herdar e preservar a ideologia do império
davídico e salomônico. A maior parte do que sabemos a respeito da religião
israelita — sobre o que os estudiosos bíblicos acostumaram-se a chamar de
“iaveísmo” — vem do reino de Judá.

Na Bíblia hebraica, o iaveísmo é apresentado como uma visão de mundo


imutável e unificada, mas já não se pode aceitar como historicamente válida tal
colocação. Os estudiosos modernos demonstraram que o iaveísmo abrangia duas
visões de mundo muito diferentes. Uma delas sempre divergiu acentuadamente
do padrão corriqueiro no Oriente Próximo e acabou afastando-se por completo.
Já a outra forma de iaveísmo, que prosperou sob a monarquia de Jerusalém,
seguia muito de perto tal padrão.

Existem similaridades entre a visão de mundo revelada pelas fontes


ugaríticas e o iaveísmo da monarquia de Jerusalém. Não se trata de uma
influência direta: não só a distância entre Ugarit e Jerusalém era muito grande
pelos padrões da época, mas a cidade-Estado de Ugarit foi destruída cerca de
dois séculos antes da fundação da monarquia de Jerusalém. Porém, a visão de
mundo que associamos a Ugarit não era exclusiva daquela cidade-Estado. Ao
contrário, era comum em toda a Síria-Palestina e sobreviveu na visão de mundo
daqueles cananeus tardios, os fenícios, por um milênio após a queda de Ugarit.4

Torna-se cada vez mais difícil afirmar com alguma segurança quando, onde
e como os israelitas conheceram o deus Yahweh. É possível, como diz o Êxodo,
que ele tenha sido originalmente um deus midianita, introduzido na terra de
Canaã por imigrantes oriundos do Egito; ou então pode ter surgido como um
deus menor do panteão cananeu. O certo é que os israelitas, ao se tomarem
conscientes de si mesmos como povo, já haviam adotado Yahweh como deus
tutelar. Com o estabelecimento da monarquia, Yahweh tornou-se o deus
padroeiro do reino, e quando este foi dividido em duas partes, continuou a ser o
deus de ambas — assim como Chemosh era o deus tutelar dos moabitas;
Milkom, dos amonitas; Hadad, dos arameus; Melkart, dos tírios.

Isto não significa que Yahweh tenha sido considerado desde o início como o
maior de todos os deuses. Originalmente, El era o deus supremo dos israelitas,
tal como sempre havia sido para os cananeus. Mesmo se desconsiderarmos o
pronunciamento de El no ciclo de Ba’al — “o nome de meu filho é Yaw” —,
cuja importância ainda é objeto de discussão,5 não podemos ignorar a passagem
bíblica que mostra Yahweh como subordinado a El. Deuteronômio 32:8 conta
como El Elyon — isto é, El, o Mais Exaltado — dividiu as nações entre os
filhos, Yahweh recebendo Israel como sua parte. A sugestão, apresentada
algumas vezes, de que isto significa simplesmente que El, “Deus”, sob o nome
de Yahweh, escolhera os israelitas para si, não é convincente. Além disso, El
sempre preservou traços de sua dignidade original: todas as referências a ele na
Bíblia são profundamente respeitosas.

Porém, se Yahweh originalmente estava subordinado a El, seria possível


que no início os israelitas o imaginassem como um deus similar ao Ba?al
cananeu ou ao Marduk babilónico? Na verdade, sim, seria possível. Naquele que
é considerado como o mais antigo texto da Bíblia, o Cântico de Débora (Juízes
5), Yahweh aparece como um deus da tempestade que, ao se aproximar, faz a
terra tremer, o céu balançar e a chuva cair torrencialmente. Em outro hino muito
antigo, aparece “cavalgando as nuvens em toda a sua glória”.6 E o paralelismo
vai muito além disto — muito além, certamente, do que se esperaria de uma obra
editada com tanto rigor como a Bíblia.

Ba’al conseguiu estabelecer pela primeira vez seu domínio sobre o mundo
ao subjugar as rebeldes águas cósmicas, simbolizadas por uma serpente ou um
dragão. Existem salmos que mostram Yahweh subjugando ao mesmo tempo as
águas e os dragões Leviatã e Raab — e estes mesmos salmos proclamam o
reinado de Yahweh:
A voz de Yahweh está sobre as águas; troveja o Deus da glória, Yahweh, sobre muitas
águas. Yahweh em seu trono sobre o dilúvio; Yahweh em seu trono como rei para sempre.7

Há indícios muito fortes de que estes salmos eram recitados no festival de


outono que assinalava o ano-novo e de que este festival incluía a afirmação e
celebração do reinado de Yahweh. E estudiosos respeitáveis já chegaram a
argumentar que incluía algo mais: uma simbolização ritual da entronização de
Yahweh como rei do mundo — do mesmo modo como Marduk era entronizado
durante o akitu, ou ainda uma celebração do triunfante retorno de Yahweh após a
vitória contra as forças do caos.8
Seja como for, muitos desses salmos (inclusive o citado) com certeza
remontam ao período monárquico e, portanto, antecedem o relato da criação
apresentado em Gênesis 1, que quase certamente é do século VI a.C. Antes de se
tomar o deus que precisava apenas fazer o firmamento, separar “as águas que
estavam abaixo do firmamento das águas que estavam acima do firmamento” e
exclamar “que as águas sob o firmamento sejam reunidas em um único local, e
que a terra seca apareça”,9 Yahweh fora um deus que, tal como Ba’al, precisou
lutar contra as águas até que elas se submetessem a sua vontade:
Tu dividiste o mar com o teu poder, quebraste as cabeças dos monstros das águas; tu
esmagaste as cabeças do Leviatã dando-o como alimento às feras selvagens.10

Assim como Ba’al, Yahweh sustentava constantemente o mundo ordenado.


Graças a sua vitória sobre Mot, Ba’al foi capaz de assegurar a fertilidade do solo
e a multiplicação da vida sobre a terra. A vitória de Yahweh sobre as águas
permitiu-lhe fazer o mesmo. De tempos em tempos, ele libertava uma porção da
parte superior do mar cósmico, através de aberturas no céu semelhantes a
janelas; o que saía por elas era a chuva. O Salmo 64, depois de louvar Yahweh
como o deus que acalma a fúria dos mares, exalta-o também como o deus da
chuva e, portanto, como aquele que assegura uma vida abundante:
Visitas a terra e a regas, cumulando-a de riquezas. O ribeiro de Deus é cheio d’água, tu
preparas seu trigal. Preparas a terra assim: regando-lhe os sulcos, aplanando seus terrões,
amolecendo-a com chuviscos, abençoando-lhes os brotos. Comas o ano com tua bondade, e
tuas trilhas gotejam fartura; as pastagens do deserto gotejam, e as colinas cingem-se de
júbilo; os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales se vestem de espigas, dão gritos de
alegria e canta. 11


Capítulo 3

Enquanto o divino guerreiro Ba’al deixou para sua irmã Anat a tarefa de
combater os inimigos humanos, Yahweh tomou para si tal encargo, pois era um
temível deus da guerra.12 Embora não se considere mais que tenha havido uma
conquista israelita de Canaã tal como a descrita em Josué 1-12, não há nenhum
bom motivo para duvidar que algumas das tribos envolveram-se de tempos em
tempos em ações militares contra as forças cananéias. O Cântico de Débora
descreve uma batalha em que seis tribos derrotam uma coalizão de cidades-
Estado cananéias na planície de Jezreel. Aqui já se atribui uma dimensão
cósmica à luta contra os inimigos políticos: Yahweh aparece intervindo
diretamente na batalha e conta com o auxílio das estrelas, consideradas seres
divinos subalternos. Não há dúvida quanto à origem desta concepção: a
mitologia cananéia menciona uma assembléia celestial de “filhos de El” que
incluía uma assembléia de estrelas. Estes seres foram herdados por Yahweh: são
as miríades de santos, “todos em tua mão”,13 e o ajudam a travar as guerras de
Israel.

Em outros relatos dos feitos guerreiros de Yahweh, a influência do mito de


Ba’al é óbvia. Quando se lança contra os inimigos de Israel, com freqüência
Yahweh é retratado como um deus da tempestade cavalgando as nuvens — a
sujeição das nações enfurecidas está no mesmo plano da sujeição das águas
tempestuosas e espumantes.

Em um trecho de Habacuc, com certeza recitado no Templo durante o


festival de outono, as águas indomáveis são completamente identificadas com o
povo inimigo, presumivelmente os babilônios, e o guerreiro divino vindo do céu
destrói a ambos:
Será contra os rios, Iahweh, que a tua cólera se inflama, ou o teu furor contra o mar para que
montes em teus cavalos, em teus carros vitoriosos? [...] Com cólera percorres a terra, com ira
pisas as nações. Tu saíste para salvar o teu povo, [...] pisaste o mar com teus cavalos, o
turbilhão das grandes águas.14

Acima de tudo, era por meio de vitórias sobre inimigos sempre novos que se
esperava que Yahweh, agora e no futuro, fizesse o que havia feito no início:
vencer o caos, restabelecer o cosmos.

Capítulo 4

Tal como Ba’al ou Marduk, Yahweh não permaneceu subordinado ao deus


supremo. Nada mais normal que as pessoas exaltassem seu deus tutelar a uma
posição de dignidade única, colocando-o acima de todos os outros deuses. Isto
também aconteceu com Yahweh, que acabou sendo identificado com El.

Alguns estudiosos acreditam que os dois deuses permaneceram separados


ao longo dos séculos da monarquia e só se fundiram pela primeira vez durante o
Exílio, nas profecias do Segundo Isaías. No entanto, alguns salmos, considerados
do início do período monárquico, sugerem que já naquele momento Yahweh
estava tomando o lugar de El.15

Um epíteto comum de El era “Elyon”, significando “o Mais Elevado”.


Nestes salmos, Yahweh também é chamado de “o Mais Elevado” e seu domínio
é tão absoluto quanto o de El. “Pois Yahweh Altíssimo é terrível”, “é o grande
rei sobre a terra inteira”; Yahweh é “o Altíssimo sobre a terra inteira, mais
elevado que todos os deuses”; ele “firmou no céu o seu trono, e sua realeza
governa o universo”.16 Este é na verdade o deus que o profeta Isaías contemplou
em uma visão — “sentado em um trono alto e elevado”, circundado por serafins
que clamavam sem cessar: “Santo, santo, santo é Yahweh dos Exércitos, a sua
glória enche toda a terra”.17

A autoridade de Yahweh é universal, pois — de novo como El —, ele criou


o mundo, que, portanto, pertence inteiramente a ele:
Porque Yahweh é um deus grande, o grande rei sobre todos os deuses; ele tem nas mãos as
profundezas da terra, e dele são os cumes das montanhas; é dele o mar, pois foi ele quem o fez,
e a terra firme, que plasmaram suas mãos.18

No Salmo 82, Yahweh é até mesmo mostrado presidindo uma assembléia de


deuses menores e os julgando. Tem palavras duras para todos. Eles haviam
negligenciado a defesa dos pobres e dos humilhados, haviam ficado ao lado dos
opressores. Ao falhar na manutenção da justiça, haviam colocado em perigo todo
o mundo ordenado: as próprias fundações da terra haviam sido abaladas.
Portanto, embora fossem “os filhos de El”, precisavam morrer.
Entre os deuses cananeus, foi sempre o pai dos deuses, El, o mais
preocupado com a preservação da eqüidade e da justiça entre os seres humanos
— e Yahweh revelava a mesma preocupação. Muitos salmos tratam de sua
compaixão pelos membros indefesos da sociedade: “Pai dos órfãos, justiceiro
das viúvas, tal é Deus em sua morada santa”.19 A antiqüíssima concepção do
Oriente Próximo segundo a qual a eqüidade é expressão da ordem cósmica
encontra-se nitidamente expressa no Salmo 72, pois ali o que se espera do rei é o
que normalmente se espera de Yahweh enquanto EI:
Com justiça ele julgue os pobres do povo, salve os filhos do indigente e esmague seus
opressores.20

O tema foi retomado e elaborado pelos profetas, de Amós e Oséias no


século VIII a.C. até Jeremias no início do Exílio. Inúmeras vezes estes homens
exprimiram sua preocupação por aqueles arquétipos da vulnerabilidade no antigo
Oriente Próximo: “a viúva, o órfão, o pobre”. Insistiram sem cessar que, ao
ignorar o direito de tais pessoas, a sociedade estava se condenando à destruição:
Ai da nação pecadora! do povo cheio de iniquidade! [...] A vossa terra está desolada e vossas
cidades estão incendiadas, Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem! Buscai o direito,
corrigi o opressor! Fazei justiça ao órfão, defendei a causa da viúva!21
Capítulo 5

Davi e Salomão fizeram de Jerusalém o centro do culto a Yahweh, no que


foram seguidos por seus sucessores, os reis davídicos de Judá. Um oráculo
proclamou que “Porque Yahweh escolheu Sião, desejou-a como residência
própria: ‘Ela é o meu repouso para sempre...’”. Desse modo, Jerusalém foi
declarada “as moradas do Altíssimo”.22 Era uma inovação de origem política. Na
tradição israelita mais antiga havia muitos locais de grande significado religioso
— ao passo que Jerusalém não tinha nenhum. Mas agora Jerusalém havia se
tornado a capital do reino, e isto mudou tudo.

Yahweh residia entre seu povo em Jerusalém. Foi ali que revelou sua
vontade e foi ali que abençoou seu povo.23 E ele o fazia como rei: vitorioso sobre
as águas do caos, “sentado sobre o dilúvio”, dominava desde o monte Sião, tal
como Marduk o fazia a partir do monte Zafon.24 E continuou a proporcionar
segurança e refúgio, agora como o defensor de Israel contra aquelas outras
forças do caos, as nações inimigas. Por ser o local de sua residência, Sião passou
a ser visto como a “rocha sagrada”. Era o centro e a fundação do mundo
ordenado, a expressão suprema de uma ordem estabelecida no céu, precisando
portanto ser incessantemente defendida contra os agentes do caos. Se fosse
capturada, todo o cosmos seria reduzido ao caos.25

Seguindo o exemplo de outros reis do Oriente Próximo, Davi planejou e


Salomão construiu em Jerusalém um templo para o deus padroeiro. Como outros
templos do Oriente Próximo, era um local de mistério: as pessoas comuns
tinham acesso apenas ao pátio externo, pois a admissão ao recinto do templo só
era permitida aos sacerdotes. A despeito disso, a edificação tinha finalidade
propagandística: havia sido projetada para impressionar israelitas e cananeus
com o sentimento de que a nova soberania régia era de fato sancionada pela
divindade. O templo abrigava a arca, um objeto que na época pré-monárquica
provavelmente havia sido considerado o trono de Yahweh e servira como
paládio de Israel nas guerras filistinas. Por outro lado, o próprio edifício foi
construído e decorado à maneira cananéia — uma declaração visual que não
poderia deixar de impressionar os súditos cananeus dos soberanos israelitas.

Na verdade, o Templo de Jerusalém tinha muito em comum com outros


templos da região.26 Sua fundação foi percebida como um ato divino; na
realidade, supunha-se que sua planta havia sido revelada por Deus a Davi e que
correspondia à do templo celestial. Em um aspecto o templo sem dúvida era
único: nele não havia nenhuma imagem do deus. Porém, se o próprio Yahweh
não podia ser retratado, seu trono — flanqueado por querubins esculpidos — e
seu tamborete para os pés — talvez idêntico à arca — eram suficientes para
mostrar que também ele, como qualquer outro deus, tinha no templo sua morada
terrena.

Pela localização e pelos elementos decorativos, o Templo era repleto de


simbolismo cósmico.27 Foi erguido sobre uma grande rocha — hoje o local é
assinalado pelo Domo da Rocha islâmico — e esta rocha foi considerada o ponto
fixo em torno do qual, no início. Deus havia formado a terra. Debaixo da rocha
estavam as águas subterrâneas, aquelas forças do caos que sempre estavam
ameaçando engolfar o mundo ordenado. O Templo mantinha tais forças à
distância. No interior da construção, as águas primordiais eram representadas por
um enorme tanque de bronze, sustentado por doze touros também de bronze. O
tanque tinha metade da largura do edifício, ele próprio projetado para representar
o mundo ordenado. Os touros e os inúmeros entalhes de palmeiras e romãs
simbolizavam a fertilidade do mundo ordenado, enquanto os pilares defronte ao
vestíbulo provavelmente simbolizavam sua permanência e durabilidade. O
Templo era de fato percebido como fonte de força e vitalidade divinas, as quais
emanavam dele em benefício do povo, dos rebanhos e das plantações.

Tal qual os templos mesopotâmicos, o Templo unia o céu e a terra: a


soberania celestial de Yahweh refletia-se na soberania que exercia a partir de seu
trono terreno. Os rituais realizados no Templo eram vistos como algo que
mantinha e reforçava essa correspondência. Ninguém duvidava que qualquer
interrupção ou equívoco no serviço do Templo colocaria em perigo o cosmos —
seria na verdade um desastre cósmico, assinalando a vitória das forças do caos.
Em tudo isso, o Templo assemelhava-se aos templos de outras sociedades do
Oriente Próximo.

Nem mesmo os rituais que ali se realizavam eram característicos apenas do


iaveísmo. Como em toda parte, o sacrifício estava no centro do culto. As pessoas
levavam touros, carneiros e bodes — ou, se fossem pobres, pombos e pombas —
e os abatiam ali; estes oferecimentos eram então queimados no altar pelo
sacerdote. Também se ofereciam cereais. E, como em toda parte, a finalidade do
sacrifício era alimentar o deus. Se, em alguns dos salmos, as canções de
agradecimento são privilegiadas em detrimento do sacrifício, também elas têm
como objetivo fortalecer o poder de Yahweh.
Também havia ritos régios, nos quais o rei representava Yahweh e
aparentemente até sentava-se no trono divino. Sem dúvida, o relacionamento
entre o deus nacional e o rei não era menos íntimo do que em outras sociedades
da região. Pela boca de Natã, o profeta da corte, provavelmente durante o
reinado de Salomão, Yahweh fez uma promessa a Davi: “A tua casa e a tua
realeza subsistirão para sempre diante de mim, e o teu trono se estabelecerá para
sempre”.28 Os salmos entoados no próprio Templo afirmam o mesmo:
Eu jurei ao meu servo Davi: estabeleci tua descendência para sempre, de geração em geração
construo um trono para ti. [...] Jamais vou mentir a Davi! Sua descendência será perpétua, e o
seu trono é como o sol à minha frente, é como a lua, firmada para sempre, um verdadeiro
testemunho nas nuvens.29

Imagens extraídas do mito da soberania de Ba’al, que sem dúvida figuravam


na ideologia real cananéia, também se encontram aqui: “Colocarei sua mão sobre
o mar, e sua direita sobre os rios”.30 Entronizado no monte Sião, a montanha
sagrada de Yahweh, junto a um templo régio onde se recitavam tais palavras, um
rei da casa de Davi não tinha dúvidas de que era o representante na terra de seu
deus tutelar, o qual também era o deus supremo.31
Capítulo 6

No fim das contas, a visão de mundo israelita no período da monarquia


tinha muito em comum com as visões de mundo dos cananeus, dos
mesopotâmicos e mesmo dos egípcios. Os israelitas também consideravam que
estavam vivendo em uma ordem estabelecida divinamente, que existia em
benefício deles e nunca iria se modificar de maneira radical. O significado desta
ordem para eles é indicado por três palavras hebraicas: mishpat, tsedeq e shalom.

Mishpat, em geral traduzida como “julgamento”, significava mais do que isso.


Designava o domínio ou o governo regular de Yahweh enquanto rei e, portanto,
a própria ordem estabelecida por ele. Tsedeq era o princípio subjacente a esta
ordem. Normalmente traduzida nas versões inglesas da Bíblia como “retidão”,
seria melhor vertê-la por “correção”. Para os cananeus, tsedeq era a manifestação
benéfica do deus-sol — a poderosa divindade que, na Cananéia, assim como em
muitas outras sociedades, velava sobre o mundo como juiz, trazendo à luz os
crimes ocultos e corrigindo as injustiças impostas aos inocentes. Quando os
deuses cananeus foram absorvidos em Yahweh, tsedeq tomou-se um atributo
deste, e a manifestação visível de sua atividade foi chamada de tsedaqah.

Quando os mesopotâmicos buscaram um equivalente acádio de tsedeq,


escolheram kettu. E, assim como as divindades Kettu e Mesharu sustentavam o
trono de Shamash — o grande deus do sol e da justiça —, do mesmo modo tsedeq
e mishpat sustentavam o trono de Yahweh. Além disso, tsedeq sempre preservou
algo de sua associação original com o sol. Em casa tanto no céu como no
Templo de Jerusalém, este princípio refulgia sobre o mundo. Para Isaías, era a
própria antítese das trevas e do caos.32

Quanto a shalom, o termo designava o bem-estar e a boa sorte em todos os


aspectos: prosperidade em uma terra fértil, vitória na guerra, paz. Mas não se
obtinha shalom a troco de nada. A ordem que Yahweh havia estabelecido no
mundo da natureza e no mundo da política internacional estava interligada à
ordem moral que ele esperava de seu povo. Shalom era o fruto de tsedeq: se este
fosse mantido na terra, então a terra desfrutaria de shalom.

Porém, era assim que as coisas se passavam de fato? Os israelitas não


tinham menos consciência do que outros povos quanto ao fato de que a ordem
estabelecida no céu raramente era tranqüila — o cosmos sempre corria o risco de
ser perturbado pelas forças do caos.” Havia o deserto, que avançava por trechos
de seu território e era uma expansão ilimitada a leste e ao sul. Aos olhos dos
israelitas, o deserto era um lugar demoníaco, terrível, sem lei, habitado por
criaturas vis como serpentes, escorpiões, chacais, urubus, hienas. Era a morada
dos demônios e dos monstros, um reino de confusão e caos, tal como havia sido
antes do surgimento do mundo ordenado. E aquela amplidão desolada e seca,
onde não cresciam plantas nutritivas, era percebida como uma constante ameaça
à terra cultivada.

Em seguida, havia as nações hostis, algumas tão poderosas que reduziam à


insignificância o reino de Judá. Como vimos, os exércitos invasores eram
percebidos como monstros do caos, similares às águas incontroláveis ou ao
vento causticante que soprava do deserto. As invasões eram vivenciadas como o
ressurgimento do caos primordial.

Se a vida era repleta de incertezas, a morte não oferecia nenhuma


perspectiva encorajadora. O que os israelitas esperavam da vida após a morte
não ia além do que o esperado por cananeus ou mesopotâmicos.34 O destino
comum de todos, ricos e pobres, maus e virtuosos, era descer ao Xeol, o mundo
dos mortos, o “poço”, para nunca mais retomar. Acreditava-se que o Xeol estava
localizado nas profundezas da terra, “nos locais tenebrosos, nas profundezas”.
Continuava a haver ali algum tipo de existência e, como em outras sociedades do
Oriente Próximo, os parentes do morto podiam melhorar sua situação por meio
de oferendas de alimentos e bebidas. Apesar disso, o Xeol era “a terra do
esquecimento”. O homem virtuoso podia se consolar com o pensamento de que
deixaria atrás de si uma boa reputação, ou talvez com a idéia de que seu nome
sobreviveria nos filhos. No entanto, para além disso o futuro era pouco
promissor, mesmo para o mais devoto israelita.

Tampouco os israelitas, no período da monarquia, tinham quaisquer


esperanças grandiosas para as futuras gerações. Quase todas as promessas
contidas nos livros proféticos mais antigos são hoje consideradas interpolações
de épocas muito posteriores, e as poucas exceções são de alcance bastante
modesto. A despeito de todos os argumentos em contrário, é difícil constatar que
a expectativa de uma gloriosa consumação futura fosse maior entre os israelitas
do período monárquico do que entre outros povos do Oriente Próximo.


8 - O EXÍLIO E O PÓS-EXÍLIO

Capítulo 1

Se não houvesse nada na visão de mundo israelita além do que foi colocado
no capítulo anterior, ela estaria hoje tão morta quanto as visões de mundo dos
outros pequenos povos da Síria-Palestina — ou, no final das contas, como as
visões de mundo egípcia e mesopotâmica. Porém, havia algo mais: uma tradição
conhecida pelos historiadores como “Yahweh sozinho”.1

Pelos indícios tanto da Bíblia como da arqueologia, o politeísmo deve ter se


difundido por todos os níveis da sociedade israelita, da choça do camponês ao
palácio real e ao próprio Templo. Evidentemente, todos concordavam que
Yahweh era o deus tutelar de Israel, e um deus poderoso, a ser adorado com toda
a devoção — muitos entretanto sustentavam que outros deuses também
poderiam e deveriam ser adorados. Essas pessoas não consideravam a adoração
daquelas antigas divindades cananéias, Ba’al e Asera, ou das divindades
menores do séquito de Yahweh (muitas vezes chamadas de “hostes celestiais” e
identificadas com as estreias), como algo que diminuísse de alguma forma a
dignidade ímpar de Yahweh.2 Tudo isso era bastante corriqueiro em uma
sociedade do antigo Oriente Próximo. Excepcional era a denúncia do politeísmo
por uma série de profetas e a insistência deles em que os israelitas adorassem
apenas e tão-somente Yahweh.

Tal exigência era, na época, algo bastante singular. Evidentemente, os


deuses padroeiros de outros povos também exigiam constante atenção. E esta
demanda de Yahweh acabaria tendo conseqüências prodigiosas. Foi a partir da
tradição do “Yahweh sozinho” que se desenvolveu o monoteísmo e é desta
tradição que derivam o judaísmo e, por intermédio dele, o cristianismo e o
islamismo.

O Livro de Oséias é o mais antigo documento do movimento em prol do


“Yahweh sozinho”. A atuação do próprio Oséias deu-se a partir de 750 a.C., e,
embora o livro que leva seu nome inclua acréscimos posteriores, estes são obra
de homens que partilhavam suas convicções e que provavelmente viveram
também no século VIII a.C. E o que o Livro de Oséias retrata é uma religião
oficial politeísta, portanto abominada por Yahweh:
Eles sacrificavam aos baals e queimavam incenso aos ídolos. [...] Mas eu sou Yahweh, teu
Deus, desde a terra do Egito. Não deves reconhecer outro Deus além de mim, não há salvador
que não seja eu.3

Para o leitor atual, estas palavras parecem um eco do primeiro dos Dez
Mandamentos, mas na verdade é o mandamento que ecoa Oséias, pois o
Decálogo é de um período muito posterior. Foi Oséias, também, o primeiro a
conferir ao relacionamento de Yahweh com Israel toda a intensidade emocional
e toda a ambivalência de um casamento em sua forma mais apaixonada. Para ele,
assim como para Jeremias e Ezequiel, o Israel politeísta era semelhante a uma
esposa infiel ou mesmo a uma prostituta.4 Ao recorrer a tal linguagem, esses
homens estavam falando em nome de Yahweh: “Yahweh disse [...] Não adorarás
outro deus. Pois Yahweh tem por nome Zeloso: é um Deus zeloso”.5

No reino meridional, o movimento em favor de “Yahweh sozinho” parece


ter se desenvolvido mais tarde do que no setentrional. É apenas no reinado de
Josias (641-09 a.C.) que encontramos ali sinais inequívocos da atividade desse
movimento. No início desse reinado, o profeta Sofonias aparece como seu porta-
voz:
Estenderei a minha mão contra Judá e contra todos os habitantes de Jerusalém, aniquilarei
deste lugar o resto de Baal, o nome dos sacerdotes dos ídolos, os que se prostram nos telhados
diante dos exércitos dos céus, os que se prostram diante de Yahweh, mas juram por Melcom.6

Talvez sob a influência de Sofonias, o movimento encontrou defensores


entre os sacerdotes do Templo, inclusive o sumo sacerdote Hilquias. Em 622
a.C., este presenteou o rei com um livro supostamente encontrado durante as
obras de restauração do Templo. Uma descoberta genuína ou — como parece
mais provável — uma falsificação, o livro teve extraordinário impacto sobre o
rei. Por toda parte, acreditava-se que seu conteúdo era idêntico ao núcleo de
Deuteronômio 12-26. Seja como for, o livro levou Josias a ordenar que fossem
removidos do Templo todos os objetos dedicados a Ba’al, a Asera e às “hostes
celestiais”, e que fossem fechados todos os santuários provinciais.

Quando Josias foi morto em combate em 609 a.C., sua reforma ainda não
havia produzido nenhuma conversão em massa: estava por vir o triunfo final do
movimento “Yahweh sozinho”. Mas já se iniciara um processo que, no final, iria
alterar radicalmente a visão de mundo israelita.

Capítulo 2

O movimento “Yahweh sozinho” pode ser entendido como uma resposta


particularmente engenhosa a uma situação de permanente insegurança.

Como os efeitos do declínio político se faziam sentir de maneira cada vez


mais intensa, e como se aproximavam a humilhação e a derrota finais, era
preciso uma explicação. A concepção de Yahweh sozinho sugeria uma
explicação: e se o deus tutelar Yahweh estivesse punindo seu povo por não ter
adorado apenas a ele? Para alguns, tal pensamento era bastante convincente e, na
verdade, abria caminho para uma nova teodicéia. Yahweh era um deus tão
grande que podia moldar o destino das nações — e ele estava usando esse poder
para castigar seu povo. Os reis da Assíria e da Babilônia, que pareciam tão
poderosos, não passavam de instrumentos pelos quais iria punir os israelitas.
Além disso, estes mereciam o que vinha ocorrendo: fosse qual fosse o desastre
que lhes acontecesse, ele era apresentado como uma prova adicional tanto da
retidão quanto da força de Yahweh. Isso era uma novidade. Uma punição divina
constantemente renovada e infligida de maneira bastante explícita, por causa de
uma apostasia nacional constantemente repetida — eis uma interpretação dos
acontecimentos políticos e do curso da história sem paralelo em qualquer outra
cultura do mundo antigo.

Tal qual mostrado na Bíblia, o status de Yahweh de fato não se assemelha


ao de nenhum outro deus do Oriente Próximo. Em outras sociedades da região,
as tribulações políticas podiam ser interpretadas como sinais do desagrado
divino — mas não tribulações como as que recaíram sobre o povo de Israel no
período de dominação assíria. Quando um povo experimentava derrotas militares
tão esmagadoras e submissão política tão completa, a conclusão óbvia era
inescapável: reconhecia-se que sua divindade tutelar era mais fraca do que a
divindade tutelar do conquistador. E, uma vez desacreditados, o deus ou a deusa
eram logo negligenciados e esquecidos. Nada disso ocorreu a Yahweh. Pelo
contrário: a própria magnitude dos desastres foi considerada indício conclusivo
tanto da justiça quanto do poder de Yahweh.

Na literatura do movimento deuteronomista, que pertence ao século VII e à


primeira metade do vi, esta concepção de Yahweh e de seu papel é elaborada em
uma teologia coerente. No próprio Deuteronômio, o conceito de eleição é
tornado mais explícito do que jamais havia sido: “Pois tu és um povo consagrado
a Yahweh teu Deus; foi a ti que Yahweh teu Deus escolheu para que pertenças a
ele como seu povo próprio, dentre todos os povos que existem sobre a face da
terra. Se Yahweh se afeiçoou a vós e vos escolheu, não é por serdes o mais
numeroso de todos os povos — pelo contrário, sois o menor dentre os povos! —
e sim por amor a vós Ao mesmo tempo, há uma ênfase nova na noção da aliança,
ou “pacto”, que Yahweh supostamente havia estabelecido com seu povo no
monte Horeb [Sinai]: “Não terás outros deuses diante de mim [...] porque eu,
Yahweh teu Deus, sou um Deus ciumento, que puno a iniqüidade dos pais sobre
os filhos, até a terceira e a quarta geração dos que me odeiam, mas que também
ajo com amor até a milésima geração para com aqueles que me amam e guardam
os meus mandamentos”.7 Na chamada “História deuteronomista”, que
compreende os livros de Josué, dos Juízes, os dois de Samuel e os dois de Reis,
cerca de sete séculos de história israelita são interpretados em termos dos
conceitos gêmeos de eleição e pacto. Cada desastre é considerado uma punição
infligida por Deus ao seu povo escolhido toda vez que ele rompeu o pacto e cada
recuperação uma recompensa pela fidelidade renovada.


Capítulo 3

“Guardar os mandamentos de Deus” assumiu assim um novo sentido. Como


apresentado pelo Deuteronomista, o pacto incluía uma série de leis que se
esperava que o povo observasse. Eram as 41 leis do Código da Aliança (Êxodo
20:23-23:33) e as 68 leis do Código Deuteronômico (Deuteronômio 12-26),
além dos inúmeros ordenamentos da Lei de Santidade (Levítico 17-26) — o
número de mandamentos e proibições continuou a aumentar, até chegar a um
total de 613.

Todas essas leis foram atribuídas a Moisés, ou antes a Deus falando por
intermédio de Moisés. Na realidade, elas tinham origens as mais diversas.
Aquelas formuladas como casos judiciais são provavelmente muito antigas —
muitas têm paralelo nas coleções de leis da Mesopotâmia. Isto vale para as leis
que tratam de questões como as penalidades para assassinato, estupro, roubo e
outros crimes; os prejuízos causados à pessoa ou propriedade; regras para a
agricultura e o comércio; e arranjos financeiros envolvidos no casamento. Mas
também existem muitas leis que refletem a ideologia do movimento
deuteronomista.

Yahweh havia considerado os israelitas como o seu “reino de sacerdotes”,


sua “nação santa”, e estipulações tais como a circuncisão e a guarda do Shabat
foram prescritas especialmente para tal povo. Muitas foram extraídas
diretamente da legislação sacerdotal: prescrições relativas à pureza, aos
sacrifícios e ao casamento, além de muitas outras questões que até então diziam
respeito apenas aos sacerdotes, tornaram-se obrigatórias para todos. Graças a
este corpo legal sancionado pela religião, surgiu um modo de vida
exclusivamente israelita ou iaveísta e os israelitas tomaram-se um povo separado
e peculiar.

Embora tudo isso pouco tenha afetado o reino de Judá até sua destruição, os
efeitos foram enormes entre os exilados na Babilônia. Lá, o mandamento de se
aprender e ensinar a Lei tornou-se essencial para a preservação tanto da religião
como da comunidade. Quando se instituiu a observância do Shabat e o culto na
sinagoga, a Lei adquiriu importância fundamental. Ela constituía o núcleo de
uma tradição que toda geração precisava dominar e transmitir à geração
seguinte. Aderindo a esta tradição, os judeus demonstravam sua devoção
exclusiva a Yahweh.
Depois do Exílio, este novo tipo de religião também se estabeleceu em Judá,
graças aos esforços de dois homens, Neemias e Ezra, ambos pertencentes à
comunidade da Babilônia. Neemias, um judeu que ocupava um alto posto na
corte persa, foi nomeado governador de Judá, que havia sido incorporado ao
império persa. Ezra, o “escriba”, recebeu autorização do soberano persa para
ensinar a Lei a todos aqueles que na Síria-Palestina se consideravam judeus, bem
como a incumbência de estabelecer um sistema administrativo capaz de
assegurar que a Lei fosse obedecida em Judá. Ambos deviam essa autoridade ao
fato de que Judá, a despeito do tamanho diminuto, tinha importância estratégica
para os persas, sendo conveniente que por razões militares ali houvesse
estabilidade. E ambos usaram essa autoridade para fortalecer o sentimento de
identidade e de dignidade dos judeus de Judá.

Teve início uma completa reforma religiosa. A “Lei de Ezra” foi compilada
— uma legislação que, por suas estipulações e proibições, garantia que os judeus
permaneceriam efetivamente separados de outros povos. Imposto com a sanção
do governo persa, este corpo de leis também conferiu aos judeus um status legal
no interior do império: não sendo mais uma nação, tomaram-se pelo menos uma
comunidade que tinha o direito de decidir questões internas de acordo com a lei
de seu deus. Algum tempo depois, o Pentateuco recebeu sua forma definitiva e,
tal como a Torá, tomou-se um dos fundamentos da religião judaica.

Na época de seu estabelecimento e de sua exaltação, a Lei proporcionava


aos judeus benefícios individuais comparáveis aos que os zoroastrianos
obtinham de seu complicado código religioso. Agora, o comum dos mortais
podia ajudar a manter e fortalecer a ordem estabelecida divinamente. Além do
mais, podia contar com a certeza de que tal ordem nunca iria falhar. O Salmo
119 transmite de maneira admirável o novo significado da Lei:
Yahweh, tua palavra é para sempre, ela está firmada no céu; tua verdade continua, de geração
em geração: fixaste a terra, e ela permanece. Tudo existe até hoje conforme tuas normas, pois
todas as coisas te servem. [...] Eu vi o limite de toda perfeição: teu mandamento é muito
amplo.8

Era uma mensagem encorajadora para um povo que precisava


desesperadamente de encorajamento. No passado, muitas vezes Yahweh de fato
se mostrara vingativo e punitivo, mas isto ocorrera porque os judeus não haviam
cumprido as exigências da Lei. Se eles o fizessem no futuro, tudo correria bem.

Capítulo 4

A Lei não era a única fonte de encorajamento descoberta pelos intelectuais


reunidos no movimento deuteronomista: foram eles que atribuíram à tradição do
Êxodo o significado único que ela ainda possui para o atual judeu observante.9
Isto não significa negar que a tradição tivesse raízes antigas. Os estudiosos que
aceitam a historicidade do Êxodo costumam situar o acontecimento no século
XIII a.C., e não há dúvida de que a tradição era conhecida no reino setentrional
por volta do século VIII a.C.

No entanto, o relato de como um povo em cativeiro fora libertado,


triunfando sobre seus opressores, e partira em um périplo que no final o levaria à
terra que lhe estava destinada — tal história dificilmente poderia interessar a reis
ou cortesãos. O mesmo não se pode dizer de pessoas que haviam testemunhado a
destruição do reino de Judá e que agora enfrentavam a angústia do exílio: para
estes, tal relato deve ter calado fundo. E ainda hoje a versão que produziram, no
Livro do Êxodo, é a parte da Bíblia hebraica que mais toca os cativos e os
oprimidos.10

Foi pouco antes do exílio babilónico, ou em sua vigência, que o antigo


festival de outono, no qual se celebrava o domínio de Yahweh sobre as águas,
perdeu importância em favor do festival da Páscoa na primavera, no qual se
comemorava e se celebrava o Êxodo. Nada poderia indicar com maior clareza o
quão radical estava sendo a transformação da visão de mundo. No lugar de uma
ordem mundial essencialmente imutável, sempre ameaçada mas sempre
sobrevivendo, a história começava a ocupar o centro de interesse.

Não que Yahweh tenha sido o único deus da Antigüidade a ser considerado
como “atuando na história”. Como vimos, muitos outros deuses — egípcios,
sumérios, assírios, babilônios e mesmo cananeus — foram imaginados
desempenhando papéis muito ativos na política internacional, sobretudo nas
guerras.11 Tampouco era inusitado interpretar a vitória ou a derrota na guerra, a
prosperidade ou a ruína de uma dinastia, como manifestações da aprovação ou
desaprovação divinas: as cartas cananéias de Amarna no século XIV a.C. e a
inscrição moabita de Mesha no século IX a.C. mostram como tal concepção era
difundida. Esses paralelos são reais e não deveriam ser negligenciados como
normalmente vêm sendo. No entanto, mesmo levando-os em conta, é verdade
que, tal como apresentada pelos escritores deuteronomistas, a atuação de
Yahweh no campo da história é mais constante, mais intencional e mais coerente
do que qualquer coisa atribuída a outros deuses.12

Era esta concepção de seu deus como “senhor da história” que, por volta de
600 a.C., levou certos defensores do movimento “Yahweh sozinho” a romper
com uma visão de mundo antiquíssima, na qual a ordem e a desordem eram
aceitas como realidades permanentes, e também a esperar com impaciência por
uma gloriosa consumação em que todas as coisas seriam endireitadas.13


Capítulo 5

A destruição do reino de Judá pelos babilônios ocorreu enquanto a obra dos


escritores deuteronomistas estava sendo elaborada e afetou seu desenvolvimento.
E, de modo ainda mais profundo, afetou o pensamento de certos profetas.

O que se chamar de “profecia clássica” — designando os ditos e escritos


dos profetas, e discípulos de profetas, que foram preservados na Bíblia hebraica
— teve início por volta de meados do século VIII a.C., na mesma época em que
os efeitos da decadência política começavam a se fazer sentir, e continuou como
acompanhamento da longa série de derrotas, humilhações e desilusões que se
seguiu. “Ai! Alvoroço de uma multidão de povos, como o rugir dos mares
agitados, de povos em tumulto como o tumultuar de águas poderosas!”14 — o
simbolismo tradicional do caos é inteiramente apropriado à época em que
floresceu a “profecia clássica”. Às vezes os profetas previam desastres que
estavam prestes a ocorrer, em outras comentavam desastres que já haviam
ocorrido — porém, acima de tudo proclamavam ostensivamente, como uma
mensagem do próprio Yahweh, que esses acontecimentos eram punições
infligidas ao povo de Israel pelo deus de Israel. Mas isto também mudou com o
colapso final do reino de Judá.

Esse desastre extraordinário ultrapassou tudo o que a profecia tivera de


explicar e justificar no passado. Foi vivenciado como um colapso do próprio
mundo ordenado. Com a destruição do Templo, a ordem divina havia perdido
seu centro e fora rompida a correspondência entre o céu e a terra. Contemplando
as ruínas de Jerusalém, o profeta Jeremias sentiu que estava testemunhando um
retorno ao caos primitivo:
Eu olhei a terra: eis que era vazia e disforme; os céus: mas sua luz não existia. Olhei as
montanhas: eis que elas tremiam e todas as colinas se abalavam. Olhei e eis que não havia
mais homens; e todos os pássaros do céu tinham fugido.15

A própria desesperança da situação impeliu uma nova geração de profetas a


colocar uma nova questão — e a respondê-la. Mesmo que por infidelidade e
desobediência Israel houvesse merecido punição tão terrível, ainda assim
continuava a ser o povo de Yahweh. No final, este não acabaria se apiedando?
Não voltaria a ser o deus obsequioso que fora no começo da história de Israel?
Se já uma vez havia libertado seu povo do cativeiro estrangeiro, com
certeza podia e faria o mesmo de novo, e desta vez para todo o sempre.

Yahweh faria mais do que isso. No momento mesmo em que a sorte dos
israelitas encontrava-se em seu ponto mais baixo, a profecia começou a
proclamar que uma nova ordem de coisas, perfeitamente gloriosa, estava prestes
a se instalar. A ordem que Yahweh sempre havia desejado seria restabelecida,
mas transfigurada e num plano superior. E seria restabelecida em benefício
exclusivo daqueles que, como os próprios profetas, dedicavam-se inteiramente
apenas a Yahweh.16

Essa reorientação foi um resultado do exílio: os profetas que a realizaram,


bem como as pessoas a quem eles dirigiam suas profecias, pertenciam à elite que
havia sido deportada para a Babilônia. Em termos materiais, a situação dessa
elite — uns poucos milhares de nobres, altos funcionários, sacerdotes e artesãos
especializados, acompanhados de suas famílias — não era de forma alguma
intolerável. Eles viviam em aldeias próprias, nas quais tinham permissão para
construir casas, cultivar hortas, adquirir terras. Também podiam fazer negócios,
contratar empregados e até possuir escravos. Não sofriam restrições na vida
social ou familiar, nem estavam sujeitos a perseguições religiosas. A despeito
disso, eram infelizes: percebiam o exílio como um estado de caos, comparável à
própria morte. Além do mais, enquanto os israelitas que haviam permanecido em
Judá pelo menos continuavam a viver em meio a circunstâncias familiares, os
deportados viram-se em um ambiente estranho e desconcertante.17

A nação-Estado de Judá deixara de existir, a dinastia davídica havia sido


deposta, o representante de Yahweh na terra fora levado cego e acorrentado para
morrer em cativeiro — porém, mais difícil era aceitar que os conquistadores
responsáveis por todas essas coisas terríveis prosperassem cada vez mais. Na
Babilônia, os deportados encontraram uma civilização muito mais complexa e
desenvolvida do que aquela a que estavam acostumados. Além disso, essa terra
estranha aparentemente tinha deuses superiores. Marduk parecia ter se revelado
mais forte do que Yahweh, pois, por intermédio de seus babilônios, havia
derrotado Judá: a esplêndida pompa com que ele e seus companheiros divinos
eram adorados parecia apropriada à dignidade e ao poderio deles. Não
surpreende que alguns deportados tenham passado também a adorar, ao lado de
Yahweh, os deuses babilónicos, ou que outros tenham abandonado Yahweh por
completo.
Estas, porém, não eram as únicas reações possíveis. Não é incomum, no
caso de uma minoria de origem estrangeira, que ela intensifique a devoção ao
que considera seus traços mais característicos, enfatizando e glorificando tudo
aquilo que a separa de maneira nítida e a coloca acima da população nativa entre
a qual vive. O legado singular dos deportados era o conhecimento e a adoração
de Yahweh. E mesmo quando alguns se afastaram, desiludidos e amargurados,
do deus que velara por Israel desde o início, outros se voltaram para ele com
renovada confiança. A experiência do exílio babilónico assegurou a vitória final
dos adeptos do “Yahweh sozinho”.

O surgimento de uma nova esperança pode ser identificado no Livro de


Ezequiel.18 Formado como sacerdote do Templo de Jerusalém, Ezequiel foi
deportado para a Babilônia em 597 a.C, ainda rapaz, e pelo resto da vida
dedicou-se à proteção espiritual dos israelitas exilados. Ele atraiu discípulos, que
colecionavam e copiavam seus escritos e que também os alteravam e os
ampliavam. Embora indiscutivelmente tenha a marca de uma única
personalidade dominante, o Livro de Ezequiel é representativo de toda uma
comunidade — os adeptos do “Yahweh sozinho” que faziam parte da primeira
geração de deportados. E se a maior parte da obra destina-se à explicação da
conquista de Judá e à queda de Jerusalém como um castigo justo pela adoração
politeísta, ela também contém uma mensagem de esperança, igualmente
transmitida pelo próprio Yahweh.

A crise atual, assegura-nos o texto, será a derradeira. A comunidade de


exilados tomará isto realidade, pois os deportados estão se arrependendo, estão
se voltando para Yahweh sem qualquer reserva e abandonando todos os outros
deuses. Desse modo, os israelitas exilados se tomarão o verdadeiro Israel, o povo
escolhido por Yahweh, o único grupo que pode reivindicar o apoio dele. E, em
troca, Yahweh os levará de volta a Judá, onde, no Templo reerguido sobre o
monte Sião, eles conseguirão firmar sua adoração como culto único: “Com
efeito, no meu santo monte, sobre o alto monte de Israel — oráculo do senhor
Yahweh — é que me servirá toda a casa de Israel, toda ela na sua terra. Ali terei
prazer neles, ali buscarei as vossas ofertas e o melhor dos vossos dons,
juntamente com as vossas coisas santas”.19

Ezequiel prevê uma milagrosa transformação do caráter israelita. E isto é


descrito pelo próprio Yahweh: “Dar-lhes-ei um só coração, porei no seu íntimo
um coração novo: removerei do seu corpo o coração de pedra, dar-lhes-ei um
coração de carne, a fim de que andem de acordo com os meus estatutos e
guardem as minhas normas e as cumpram. Então serão o meu povo e eu serei o
seu Deus”.20 A época estará madura para a grande reunião dos exilados. Serão
levados de volta à terra de Israel não apenas os que haviam sido deportados para
a Babilônia, mas todos os israelitas dispersos, inclusive os descendentes
daqueles deportados do reino setentrional pelos assírios, mais de um século
antes. Os reinos havia muito desaparecidos se reergueriam, agora unidos de
maneira indissolúvel e tendo Jerusalém como centro.

Acima da nação restaurada se erguerá o Templo reconstruído e dotado de


significado cósmico. Ele será a casa de Yahweh, e quando ele entrar ali, ela
ficará repleta de sua glória radiante. Ele será erguido no monte Sião, que é
exaltado como a principal montanha do mundo. Para cuidar da nação, Yahweh
nomeará seu servo, um novo Davi, o pastor real do rebanho reunido — aqui
retoma esta metáfora tão familiar na Mesopotâmia e no Egito. E os mortais
comuns também serão obrigados a observar as mesmas normas de conduta social
que eram aceitas, em teoria, por todo o Oriente Próximo. Na concepção de
Ezequiel, o homem devoto, que vive de acordo com tsedeq, não oprime
ninguém, muito menos os mais fracos — estrangeiros, viúvas, órfãos. Ele
alimenta o faminto e veste os que não têm roupas. Não comete adultério,
abomina a injustiça e age de maneira eqíiitativa nos negócios entre os homens.21

Por sua vez, Yahweh mostra-se um deus tutelar em tudo benevolente:


Concluirei com eles uma aliança de paz e extirparei da terra as feras, de modo que habitem no
deserto em segurança e durmam nos seus bosques. Distribuí-las-ei nos arredores do meu
outeiro e trarei chuva no tempo certo, uma chuva abençoada. A árvore do campo dará o seu
fruto, a terra produzirá a sua safra, e elas estarão seguras em sua terra e saberão que eu sou
Yahweh, quando eu quebrar as varas do jugo e as libertar da mão dos que as sujeitavam
[...].22

Em seguida, Yahweh descreve o destino das nações que haviam se


mostrado hostis para com o povo de Israel: elas se tomarão “uma desolação e um
deserto”, suas colinas e vales cobertos de mortos.

Em tudo isto a maioria da população, que nunca havia saído de Judá, terá
uma participação pequena ou mesmo nula. Os exilados aos quais Ezequiel e seus
discípulos se dirigiam constituíam uma elite tanto social quanto intelectual, e não
é difícil perceber, em suas profecias e naquelas que lhes são atribuídas, a
consciência que possuíam desta situação privilegiada, bem como o desprezo que
votavam aos camponeses de sua terra natal. Daqueles que ainda continuavam em
Judá, Yahweh diz: “Certamente uns cairão à espada no meio das ruínas,
enquanto outros em pleno campo serão dados a comer às feras, enquanto outros
ainda, refugiados nas montanhas e nas cavernas, morrerão de peste [...] Desse
modo saberão que eu sou Yahweh, quando eu reduzir a terra a uma desolação e a
um deserto, por causa de todas as abominações que praticaram”.23 Nada menos
do que o extermínio deve ser o destino de todos aqueles que se recusam a adorar
somente a Yahweh e permanecem obstinadamente politeístas.

Portanto, quando olhavam para o futuro, Ezequiel e seus seguidores viam a


si mesmos estabelecendo a adoração exclusiva de Yahweh na terra de Judá; e
viam o próprio reino de Judá como uma nação-Estado em que o ideal comum do
Oriente Próximo — uma ordem onipresente estabelecida por ato divino — seria
plenamente concretizado, e da maneira mais impressionante que se poderia
imaginar: tudo o que pudesse se opor a essa ordem seria eliminado. No entanto,
havia outro profeta entre os exilados na Babilônia que estava disposto a ir muito
mais longe, prevendo um futuro ainda mais radicalmente novo: o profeta
anônimo conhecido como Deutero-Isaías ou Segundo Isaías.


Capítulo 6

O profeta Isaías viveu no século VII a.C., mas em geral se considera que
pelo menos metade do livro que leva seu nome na Bíblia hebraica foi escrito
num período muito posterior. Como, quando e onde esse livro foi composto e
redigido ainda é uma questão aberta para os estudiosos bíblicos, e é improvável
que cheguem logo a um acordo. O relato apresentado em seguida representa o
que ainda é a posição da maioria.24

Segundo essa concepção, a maior parte dos capítulos 40-55 é decididamente


obra de um único profeta, o “Segundo Isaías”, que se encontrava em atividade
meio século após a morte de Ezequiel. Suas profecias parecem pertencer ao
período de 547 a 538 a.C. Nesta época, ele teria presenciado o monarca medo-
persa Ciro II estabelecer o maior império jamais conhecido e testemunhara
confrontos de impérios em escala jamais imaginada. Obrigado a se perguntar que
participação nesses acontecimentos colossais teria Yahweh, o deus padroeiro de
um povo pequeno e impotente, foi capaz de encontrar uma resposta à altura do
momento: todas aquelas transformações eram obra de Yahweh e tinham como
finalidade a plena salvação de seus fiéis seguidores.

Para o Segundo Isaías, assim como para Ezequiel antes dele, os fiéis
seguidores de Yahweh deveriam ser encontrados entre os exilados. O
relacionamento que agora Yahweh mantinha com estes era muito diferente do
relacionamento que tivera antes com os israelitas. No que se refere aos exilados,
é coisa do passado a punição que com tanta fúria ameaçavam os profetas
anteriores, pois o próprio exílio a concretizara. E o Segundo Isaías também sabe
exatamente de que maneira Yahweh irá provar ao seu povo que este havia de
fato recebido o perdão e recuperado o favor de seu deus: a Babilônia está prestes
a ser subjugada pelos persas.

Os profetas anteriores ao exílio muitas vezes haviam apresentado os grandes


conquistadores de sua época como meros instrumentos nas mãos de Yahweh —
mas tratava-se então de instrumentos a serem usados na correção dos israelitas.
Já Ciro, tal como apresentado pelo Segundo Isaías, desempenha papel muito
diverso: esse monarca pagão deve ser o redentor dos israelitas. O próprio
Yahweh encarregou-o disto: “Eu te chamei pelo teu nome, e te dei um nome
ilustre, embora não me conhecesses”, “[sou eu que] digo a Ciro: ‘Meu pastor’.
Ele cumprirá toda a minha vontade, dizendo a Jerusalém: Tu serás reconstruída’,
e ao Templo: Tu serás restabelecido”‘.25 A queda da Babilônia significará o fim
do exílio para os deportados, pois Ciro os libertará para que retomem a sua terra
natal.

Porém, se o Segundo Isaías é, antes de tudo, o profeta do retomo, ele não se


limita a isto. Se excluirmos o caso de Zoroastro, discutível e muito discutido, o
Segundo Isaías é o primeiro monoteísta de que temos conhecimento.26
Tradicionalmente, mesmo aqueles que defendiam a posição de que os israelitas
deviam adorar apenas a Yahweh consideravam verdadeiros os deuses dos outros
povos, reconhecendo-lhes os poderes e os méritos. No século VIII a.C., o profeta
Miquéias resumiu o quadro com admirável concisão: “Todos os povos
caminham, cada qual em nome de seu deus: nós, porém, caminhamos em nome
de Yahweh, nosso Deus, para sempre e eternamente!”.27 O Livro dos Juízes foi
escrito no século VI e nele ainda se encontra um guerreiro israelita que diz ao rei
de um povo vizinho: “Não possuis tudo o que teu deus Camos te deu? Do
mesmo modo, tudo o que Yahweh, o nosso Deus, tomou dos seus possuidores,
nós o possuímos!”.28

Nada disso era aceitável para o Segundo Isaías. Repetidas vezes, por
intermédio dele Yahweh nega qualquer realidade aos deuses das nações pagãs —
desafiando-os a mostrar seus poderes, zombando deles porque nada têm a
mostrar. Sem dúvida, isto se dirigia sobretudo aos israelitas que haviam
começado a adorar os deuses babilónicos, mas por trás da intenção polêmica
nota-se a preocupação com um problema mais profundo. Os israelitas
encontravam-se dispersos por toda parte, não lhes restara nenhum poder político
— de que modo, então, o deus deles poderia salvá-los, se não fosse onipotente e,
na verdade, o único deus? “Eu sou Yahweh, e não há nenhum outro, fora de mim
não há Deus”, “Eu digo: o meu propósito será realizado, hei de cumprir aquilo
que me apraz”.29

Na época do Segundo Isaías, a noção de que Yahweh criou o mundo


também estava se tornando mais importante do que havia sido para os profetas
anteriores ao exílio. No Salmo 74, aparentemente um lamento pela destruição do
Templo em 586 a.C., as antigas imagens do mito do combate recebem um
significado genuinamente cosmogônico. Aqui a vitória de Yahweh sobre as
águas turbulentas torna-se parte essencial da ordenação original do mundo:
Tu dividiste o mar com o teu poder, quebraste as cabeças dos monstros das águas; tu
esmagaste as cabeças do Leviatã dando-o como alimento às feras selvagens; tu abriste fontes e
torrentes, tu fizeste secar rios inesgotáveis.30
Também para o Segundo Isaías, Yahweh era o deus criador. Por sua boca,
Yahweh proclama: “A minha mão fundou a terra, a minha destra estendeu os
céus; eu chamo-os e todos juntos se apresentam”.31 A lógica por trás disto é
evidente. O colapso do reino de Judá, a tomada de Jerusalém, o próprio exílio —
tudo isto representava a vitória do caos sobre o cosmos. Somente um deus que
no princípio havia transformado o caos primordial no mundo ordenado poderia
restabelecer este mundo.

Mas, se fosse assim, com certeza Yahweh poderia fazer mais do que apenas
restituir a Israel sua posição anterior. O Segundo Isaías não tinha a menor dúvida
quanto a isso: o amor de Yahweh por seu povo eleito estava prestes a se
manifestar da forma mais esplêndida possível. Por meio de um ato tão
extraordinário quanto a criação original, o mundo estava prestes a ser
transformado — e o povo de Israel prestes a receber a posição mais gloriosa
deste mundo transformado.

A queda profetizada da Babilônia já é apresentada como sendo muito mais


do que um acontecimento político, por mais momentoso que este pudesse ser:
ela é uma afirmação da ordem correta no mundo. Para o Segundo Isaías, a
Babilônia representa todas as nações pagãs que uma vez oprimiram Israel e,
como tal, é uma incorporação concentrada das forças do caos. Ao subjugar a
Babilônia por meio de Ciro, seu instrumento, Yahweh estará oferecendo uma
demonstração verdadeiramente espetacular de poder: “Obrigarei os teus
opressores a comerem a sua própria carne! Eles embriagar-se-ão com o seu
sangue como com vinho novo. E toda carne saberá que eu, Yahweh, sou o teu
redentor”.32

Em seguida virá a libertação dos exilados e o retorno à Palestina. Este é


descrito em termos calculados para lembrar o êxodo do Egito — e o êxodo não
como ele ocorreu ou como de fato pode ter ocorrido, mas tal como passara a ser
imaginado no século VI a.C. Para o Segundo Isaías, a maneira como Yahweh
havia aberto um caminho no mar para os israelitas em fuga era outra
manifestação de seu poder contra as forças do caos — e esse mesmo poder iria
realizar agora outro milagre redentor:
Desperta, desperta! Mune-te de força, ó braço de Yahweh! Desperta como nos dias antigos,
nas gerações de outrora. Por acaso não és tu aquele que despedaçou Raab, que trespassou o
dragão? Não és tu aquele que secou o mar, as águas do Grande Abismo? E fez do fundo do
mar um caminho, a fim de que os resgatados passassem? Assim voltarão os que forem
libertados por Yahweh, chegarão a Sião gritando de alegria [...].33

Tal como as águas, o deserto sempre havia simbolizado o caos. Quando o


Segundo Isaías conta de que modo Yahweh irá transformar o deserto em uma
terra fértil e ordenada, trata-se de outra maneira de predizer o triunfo do cosmos
sobre o caos. Uma estrada se estenderá da Babilônia até Jerusalém e os campos
serão aplainados para facilitar o caminho: “Seja entulhado todo vale, todo monte
e toda colina sejam nivelados”.34 E embora a estrada tenha de cruzar o deserto,
ela formará uma espécie de oásis, plantado com árvores de porte e suprido de
água abundante. Os exilados marcharão por ela em triunfo. Não apenas as
aldeias e os povoados, mas também os animais selvagens e os pássaros, além da
própria natureza inanimada, lhes darão as boas-vindas: “Na vossa presença,
montes e outeiros romperão em canto, e todas as árvores baterão palmas”.35

Quando os exilados retomarem, o mesmo se dará com o próprio Yahweh.


Tal como Ezequiel antes dele, o Segundo Isaías considera o exílio como uma
época em que Yahweh abandonou seu legítimo lar em Jerusalém. Agora ele irá
retornar, como um rei, e residir de novo em sua cidade. “Então a glória de
Yahweh há de revelar-se e toda carne, de uma vez só, o verá.”36 Esta glória não é
só a de um rei transcendental, mas também a do guerreiro divino que nos tempos
arcaicos liderou as tribos israelitas no campo de batalha e agora ergue-se de
novo em sua ira:
Yahweh sai como um herói, como se fosse um guerreiro o seu zelo se inflama, ele ergue o grito
de guerra, sim, ele grita, atira-se vitoriosamente sobre os seus inimigos.37

A volta dos que haviam sido exilados na Babilônia será apenas a primeira
etapa da grande reunião de israelitas dispersos por todas as terras, ao norte, ao
sul, a leste e a oeste. Serão tão numerosos que os limites de Jerusalém precisarão
ser ampliados: a cidade será reconstruída, com um esplendor maior do que
nunca. Todas as outras cidades de Judá também serão reconstruídas e
repovoadas. A população se multiplicará e a terra desfrutará de bênçãos que
ultrapassarão tudo o que ela conheceu antes do exílio.

Yahweh firmará uma nova aliança com seu povo. O amor e a fidelidade que
antes devotou a Davi e à monarquia davídica agora será dirigido a todo o seu
povo. Shalom — bem-estar, harmonia, prosperidade e paz — estará com este
povo como nunca antes. E o novo decreto irá durar para sempre:
Os montes podem mudar de lugar e as colinas podem abalar-se, mas o meu amor não mudará,
a minha aliança de paz não será abalada [...].38

E também:
Yahweh consolou Sião, consolou todas as suas ruínas; ele transformará o seu deserto em um
Éden e as suas estepes em um jardim de Yahweh [...] a minha salvação será eterna e a minha
justiça não terá fim.39

Sem dúvida, o Segundo Isaías vê o fim do exílio babilónico como a


inauguração de uma era na qual se manifestará, de uma vez por todas, a
soberania de Yahweh, indisputada e indisputável.

Porém, a reabilitação por Yahweh de seu povo eleito não se restringirá a


isto. Aos olhos das nações pagãs, as tribulações que recaíram sobre esse povo
pareciam se refletir no próprio Yahweh. Agora chegou o momento em que ele
irá demonstrar o quão equivocadas estavam elas, o quão injustificado era o
desprezo delas: Yahweh está prestes a mostrar a todas as nações que ele é de fato
o único e verdadeiro deus — e, ao fazer isto, dará ao povo de Israel uma posição
única entre as nações do mundo.

Muito se escreveu sobre o “universalismo” do Segundo Isaías,


argumentando-se até que sua obra assinala o início do empreendimento
missionário. Tal noção só é plausível quando se supõe que as chamadas
“canções dos servos” são do mesmo autor responsável pelos capítulos 40-55 —
algo que foi objeto de muita discussão — e em seguida se interpretam dois
versos de uma das canções de modo a adequá-los a concepções universalistas
preconcebidas. O núcleo da argumentação do Segundo Isaías nos. conduz a uma
direção bem diferente.40 Todas as nações que se opuserem ao povo de Israel
deverão ser destruídas:
Tu os procurarás, mas não os encontrarás; os que te combatem serão reduzidos a nada,
ficarão aniquilados aqueles que te fazem guerra. [...] Tu os joeirarás e o vento os levará; o
furacão os dispersará.41


Outras nações serão autorizadas a ajudar os israelitas, de modo que estes
possam retomar à terra natal:
Eis que levantarei a minha mão para as nações; darei um sinal aos povos e eles trarão os teus
filhos nos seus braços, as tuas filhas serão carregadas nos seus ombros. Reis serão os teus
tutores, as suas princesas serão as tuas amas-de-leite. Prostrar-se-ão diante de ti com o rosto
em terra e lamberão o pó dos teus pés.42

Em nenhum momento o Segundo Isaías defende o proselitismo, em nenhum


momento recomenda que os israelitas saiam pelo mundo convertendo os pagãos.
A “missão” do povo eleito é apenas demonstrar ao resto do mundo — pela
maneira como foi resgatado de uma posição de total impotência e profunda
humilhação — o poder incomparável de Yahweh:
Regozijai-vos, juntas lançai gritos de alegria, ó ruínas de Jerusalém! Porque Yahweh consolou
o seu povo, ele redimiu Jerusalém. Yahweh descobriu o seu braço santo aos olhos de todas as
nações, e todas as extremidades da terra viram a salvação do nosso Deus.43

Vezes sem conta o profeta diz como as nações contemplarão, deslumbradas


e emudecidas, a libertação e a exaltação do povo de Israel por Yahweh. Algumas
até se tornarão cativas dos israelitas, marchando acorrentadas atrás deles,
prostrando-se em súplicas e dizendo: “Só contigo Deus está! Fora dele não há
nenhum Deus”.44 Só desta maneira Yahweh alcançará seu objetivo, “de que se
saiba desde o nascente do sol até o poente que, fora de mim, não há ninguém: eu
sou Yahweh e não há nenhum outro!”.45 A humanidade como um todo apresenta
pouco interesse para o profeta: juntamente com as montanhas e as florestas, ela é
um mero espectador do drama prodigioso. Só importa o que Yahweh irá fazer
por Israel.

Sabe-se menos sobre o Segundo Isaías do que sobre qualquer outro profeta
hebraico. Em alguns aspectos, ele se assemelha aos seus predecessores pré-
exflicos: como eles, alega que recebeu de Yahweh uma missão e que fala em seu
nome. Porém, recorre com mais freqüência à língua e à liturgia hebraicas — na
verdade, sua mensagem pode muito bem ter sido transmitida a grupos de
exilados reunidos em cultos públicos, antes de ser incorporada à obra literária
que conhecemos. O Segundo Isaías tinha seguidores, mas não há motivos para
supor que fossem numerosos. E, como é de todo provável, se é a ele que se
refere o quarto “canto do servo”, então o preço que pagou pelo papel de profeta
foi a morte por açoitamento — seja pelas autoridades babilónicas, alarmadas
com as implicações políticas de sua mensagem, seja pelos próprios exilados,
desiludidos quando Ciro não realizou a profetizada destruição da Babilônia.

Apesar disso, esse tipo de profecia inaugurado pelo profeta do exílio e do


retorno iria prosseguir e prosperar com mais vigor do que nunca, depois que o
exílio acabasse e os israelitas retornassem a sua terra.


Capítulo 7

O exílio durou apenas duas gerações, pois, em 538 a.C., o império


neobabilônico foi de fato conquistado por Ciro. Este extraordinário governante
tinha como política permitir aos povos conquistados uma autonomia muito maior
do que se permitira em impérios anteriores. Embora o controle político
permanecesse firmemente nas mãos dos conquistadores persas, os vários povos
que faziam parte do império aquemênida foram estimulados a manter e a
desenvolver seus próprios modos de vida, sob a liderança de suas próprias elites
culturais. Em conformidade com tal política, permitiu-se que os israelitas
deportados para a Babilônia retomassem a Judá. O tesouro imperial chegou
mesmo a destinar fundos para a reconstrução do Templo em Jerusalém.

Por um momento deve ter parecido que a profecia do Segundo Isaías estava
prestes a se cumprir — mas apenas por um momento. Não só as nações não
afluíram a Jerusalém, como não seguiram para lá nem mesmo os descendentes
dos israelitas deportados pelos assírios. A maioria dos exilados na Babilônia
decidiu permanecer ali mesmo. A diáspora chegara para ficar — e sem dúvida é
por isso que se costuma nesta altura abandonar o termo “israelitas”, com suas
associações territoriais, e substituí-lo pelo termo “judeus”.

Longe de ser o centro do cosmos, com meros quarenta quilômetros de


comprimento e uma população de cerca de 20 mil pessoas — que no decorrer de
um século chegaria talvez a 50 mil —, a terra de Judá tomou-se, e assim
permaneceu, uma minúscula sub-província de um império tão gigantesco que
deve ter parecido de âmbito mundial. Impotentes em termos políticos, sem
exército ou outro meio de defesa, os habitantes de Judá viram-se obrigados a
deixar de lado toda esperança de recuperar, no futuro próximo, a independência
nacional. Além do mais, tratava-se ainda de uma população empobrecida,
sobrevivendo a duras penas numa terra inúmeras vezes devastada por guerras,
conquistas e impostos.

Os profetas continuavam a prever uma consumação gloriosa. Muitas dessas


profecias foram incorporadas ao Livro de Isaías: não só todas aquelas incluídas
nos capítulos finais, 56 a 66, como também muitas das que se encontram
dispersas nos capítulos anteriores são em geral consideradas do período pós-
exílico.46
Muito provavelmente, a maioria desse material pertence ao meio século e
pouco após o fim do exílio, embora as especulações dos eruditos variem,
situando algumas delas no período dos séculos VI ao III a.C. Outras profecias da
redenção futura encontram-se em dois livros posteriores ao exílio, Zacarias e
Joel; e, segundo vários estudiosos, nos livros dos profetas anteriores ao exílio —
Amós, Oséias, Miquéias e Sofonias —, mas como inserções pós-exílicas. Em
nenhum desses casos, o contexto e as datas podem ser determinados com
segurança.

Por outro lado, não há dúvida quanto ao sentido geral dessas profecias.
Temas prefigurados pela primeira vez por um dos profetas do exílio, Ezequiel e
o Segundo Isaías, retornam inúmeras vezes, cada vez mais elaborados.47 Nos
acréscimos e inserções ao Livro de Isaías, o passado e o presente são vistos
como um tempo de pecado — mas uma nova era se aproxima. Não há nenhuma
indicação de que os primeiros talvez pudessem fundir-se nesta última por um
aprimoramento gradual: a mudança só pode ocorrer pela intervenção direta de
Yahweh, e será total. O próprio Yahweh fala de uma nova criação: “Com efeito,
vou criar novos céus e nova terra; as coisas de outrora não serão lembradas, nem
tornarão a vir ao coração. Alegrai-vos, pois, e regozijai-vos para sempre com
aquilo que estou para criar [,..]”.48 É uma profecia, portanto, não da destruição do
universo, mas da transformação radical do mundo: a ordem atual do mundo,
imperfeita e precária, será substituída de um momento para o outro por uma
ordem perfeita e indestrutível.

A essência sobrenatural dessa ordem revela-se na famosa passagem que


relata como ela se estenderá até mesmo ao reino animal:
Então o lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o
leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará. A vaca e o urso
pastarão juntos, juntas se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o
boi. A criança de peito poderá brincar junto à cova da áspide, a criança pequena porá a mão
na cova da víbora. Ninguém fará o mal nem destruição nenhuma em todo o meu santo monte,
porque a terra ficará cheia do conhecimento de Yahweh, como as águas enchem o mar.49

O santo monte é o monte Sião, imaginado — tal como já o havia sido em


Ezequiel — como uma enorme montanha sobre a qual Jerusalém e o Templo
erguem-se muito acima do mundo. É a morada de Yahweh enquanto rei, assim
como Jerusalém será chamada de cidade de Yahweh. Nas “visões noturnas”
atribuídas a Zacarias, Yahweh anuncia até mesmo que a Jerusalém reconstruída
não terá necessidade de muralhas, pois ele próprio será uma muralha de fogo a
circundá-la, assim como uma glória em seu centro.50 Irradiando-se a partir deste
centro, o espírito de Yahweh transformará a vida interior de seu povo. Em
oráculos de data e origem incertas incluídos em Joel, esta transformação é
descrita com extraordinária nitidez. A nova era será um período de êxtase
visionário:
E sabereis que eu estou no meio de Israel, eu, Yahweh, vosso Deus, e não outro! [...] Depois
disto, derramarei o meu espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão,
vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens terão visões. Mesmo sobre os escravos e as
escravas, naqueles dias, derramarei o meu espírito.51

Um acréscimo em Isaías descreve de que modo também a vida corporal será


transformada. A morte na infância ou na juventude será desconhecida: morrer
antes de completar cem anos será um infortúnio excepcional.52 Até mesmo as
doenças mais graves serão curadas: “Então se abrirão os olhos dos cegos, e os
ouvidos dos surdos se desobstruirão. Então o coxo saltará como o cervo, e a
língua do mudo cantará canções alegres”.53 A nova era é, evidentemente, o que
se chama com freqüência de “era messiânica”, mas este termo é enganador. A
designação de “messias” — que em hebraico e aramaico significa apenas “o
eleito” — aparece raras vezes na Bíblia hebraica, e, quando aparece, trata-se
simplesmente de um título dado ao rei ou, quando a monarquia deixou de existir,
ao sumo sacerdote. O futuro rei esperado, da casa de Davi, nunca é chamado de
“messias”, nem jamais é retratado como uma figura sobrenatural. Ele será, no
máximo, um grande líder militar e um soberano sábio e justo, guiado por
Yahweh e indicado por ele para governar seu povo em Judá. A noção de um
redentor transcendental em forma humana, tão importante no zoroastrismo e tão
central no cristianismo, inexiste na Bíblia hebraica.

Nas profecias do período do exílio em diante, o futuro rei davídico


desempenha apenas papel secundário. O motivo é óbvio: quando desapareceu a
possibilidade de restauração da dinastia, o próprio Yahweh assumiu o poder.
Yahweh é o verdadeiro governante na futura era de bem-aventurança. E esta era
é concebida, acima de tudo, como uma época em que a soberania real será
estabelecida de maneira sólida e definitiva, em que se tornará manifesta e será
reconhecida. Também é concebida como uma época em que Yahweh imporá,
como nunca antes, sua “retidão” sobre o mundo. O Segundo Isaías e seus
sucessores pós-exílicos ainda empregam o termo tsedeq, mas para eles tsedeq é
algo que, embora inerente ao mundo desde sua criação, somente agora se tomará
realidade:
Como a terra faz brotar a sua vegetação, e o jardim faz germinar as suas sementes, assim o
Senhor Yahweh faz germinar a justiça [tsedeq] e o louvor na presença de todas as nações.54


Capítulo 8

Evidentemente, a bem-aventurança futura é reservada por Yahweh aos seus


fiéis seguidores. A sombra da glória radiante da era futura é o destino que
aguarda os pagãos. É verdade que, às vezes, a profecia pós-exílica admite a
conversão de alguns pagãos ao culto de Yahweh. Aqueles que o fizerem irão
automaticamente adquirir o direito de participar do culto no Templo e alguns até
serão aceitos como sacerdotes.55 Tais pensamentos refletem a ampliação dos
horizontes intelectuais que resultara, primeiro, do exílio babilónico e, depois, da
incorporação ao império persa. No conjunto da profecia pós-exílica, porém, eles
constituem um tema insignificante.

O tema principal é o oposto: os inimigos de Israel são inimigos de Yahweh


e a vingança deste contra esses povos será impiedosa. A punição mais leve é a
escravidão: os pagãos serão condenados a servir ao povo de Israel como pastores
ou lavradores.56 Também serão obrigados a contribuir para a glorificação de
Jerusalém, com seu Templo reconstruído:
Estrangeiros reedificarão os teus muros e os seus reis te servirão, pois que, se na minha cólera
te feri, agora, na minha graça, me compadeci de ti. As tuas portas estarão sempre abertas, não
se fecharão nem de dia nem de noite, a fim de que se traga a ti a riqueza das nações e os seus
reis sejam conduzidos a ti. Com efeito, a nação e o reino que não te servirem perecerão, sim,
essas nações serão reduzidas a uma ruína. [...] Os filhos dos teus opressores se dirigirão a ti
humildemente; prostrar-se-ão aos teus pés todos os que te desprezavam, e te chamarão
“Cidade de Yahweh” [...]57

Um destino muito pior espera as nações que haviam oprimido ou lutado


contra o povo de Yahweh. Enquanto nos céus as estrelas se apagam e os frutos
da terra se arruinam, elas são condenadas ao massacre e à destruição: “Os seus
mortos são lançados fora, o mau cheiro dos seus cadáveres se espalha, os montes
se inundam com o seu sangue”.58 Edom — uma tradicional inimiga de Judá que,
além do mais, havia se aproveitado da fraqueza de Judá nos anos seguintes à
conquista babilónica — será castigada de maneira horripilante:
Com efeito, Yahweh tem um dia de vingança, um ano de retribuição em prol da causa de Sião.
As suas torrentes se converterão em pez, o pó do seu chão, em enxofre; a sua terra ficará
reduzida a pez ardente, que não se apagará noite e dia: a suafutnaça subirá para sempre; de
geração em geração subsistirá a ruína; pelos séculos dos séculos não haverá quem passe por
ela.59

A participação de Yahweh é indicada com extraordinária nitidez: imaginado


sob sua antiga forma de guerreiro divino, ele marcha vitoriosamente através do
país, mais terrível do que nunca — em sua fúria, esmaga Edom e outras nações
similares, de tal modo que suas vestes ficam encharcadas de sangue.60 Esta é a
concretização de seu desígnio para o mundo: assim como a era vindoura
representa a consumação da história, a destruição dos ímpios representa o triunfo
definitivo do cosmos sobre o caos. O núcleo dos capítulos 38 e 39 de Ezequiel
talvez tenha sido concebido pelo próprio profeta, mas, em sua forma atual, a
maior parte desses capítulos remonta a épocas posteriores ao exílio. Eles contam
de que modo o príncipe Gog, da terra de Magog, comandará um enorme
exército, do qual participam muitas nações, para invadir e saquear a terra onde
os israelitas por fim vivem em paz. Yahweh planejou isto: ao derrubar Gog e
suas hostes, estará obrigando todas as nações a reconhecer que seu poder não
tem limite. Sua fúria se exprimirá em uma convulsão de proporções cósmicas:
Diante de mim tremerão os peixes do mar, as aves do céu, os animais do campo, todo réptil
que rasteja sobre a terra e todo o homem que vive sobre a face da terra. Os montes serão
arrasados, as rochas íngremes, bem como todos os muros ruirão por terra. Chamarei contra
ele [Gog] toda espada [...] será a espada de todos contra todos.

Castigá-lo-ei com a peste e o sangue; farei chover uma chuva torrencial, saraiva, fogo e
enxofre sobre ele e as suas tropas e os muitos povos que vierem com ele. [...] Durante sete
meses a casa de Israel os sepultará, com o fim de purificar a terra. [...] Manifestarei minha
glória às nações. Todas as nações verão o castigo que hei de executar, e a minha mão, que
farei cair sobre elas. E a casa de Israel saberá que eu sou Yahweh, o seu Deus, desde aquele
dia e daí em diante.61

Evidentemente, o Gog mítico e seus exércitos míticos não representam


entidades políticas específicas, e sim uma potência maligna que se encarna nos
ímpios mas cujo âmbito é universal e absoluto. O extermínio dos ímpios
equivale à eliminação das forças do caos — o que é, por sua vez, um prelúdio
indispensável ao triunfo final de Yahweh e à justificação final de seu povo. Joel
afirma a mesma coisa: Yahweh irá derramar seu espírito e terá início a era do
êxtase visionário, mas somente após Yahweh ter levado a julgamento, “em nome
de Israel”, as nações ímpias. Então, “Jerusalém será santa [...] O Egito será uma
desolação e Edom será um deserto desolado”.62

Porém, nem todo judeu que estiver vivo na época da grande consumação irá
partilhar de suas bênçãos. É perfeitamente possível pertencer por nascimento ao
povo de Yahweh e mesmo assim perder essa condição privilegiada: sem dúvida
os profetas pensavam naqueles que haviam se apegado ao politeísmo.63 No
amanhecer da nova era, tais judeus — “os perversos”, “os sem-lei”, “os ímpios”
— serão destruídos. Na verdade, antes de descrever as delícias da era vindoura,
Yahweh dá sua sentença sobre esses perversos — como se a eliminação deles,
não menos do que a das nações pagãs, fosse um primeiro passo obrigatório para
a grande renovação: “Eu vos destinarei à espada; todos vós dobrareis as costas
para a matança [...] Com efeito, vou criar novos céus e nova terra”.64

Com o declínio do politeísmo, também declinou a tradição profética.


Todavia, o que havia sido dito não poderia ser retirado. Graças a sua
incorporação na Bíblia, aquilo que fora predito pelos profetas do exílio e do pós-
exílio acabaria tendo enorme influência, e não só entre os judeus. Confrontados
com a destruição do Templo, da nação e da monarquia, Ezequiel e o Segundo
Isaías, bem como seus seguidores, haviam encontrado uma resposta
extremamente eficaz. Abalados por acontecimentos que pareciam colocar em
questão a própria existência do mundo ordenado, lutando com um sentimento de
total desorientação e de frustração, eles haviam produzido imagens de um futuro
glorioso, a ser desfrutado por uma elite. Essas imagens iriam permanecer como
força viva séculos depois que a situação que lhes dera origem perdesse toda
atualidade.


9 - APOCALIPSES JUDAICOS (I)

Capítulo 1

Cerca de dois séculos após a derrubada do império babilónico pelos persas,


o império destes foi conquistado por Alexandre. Entre 334 e 331 a.C., as vitórias
de Alexandre sobre os exércitos persas encerraram de fato a história do antigo
Oriente Próximo e inauguraram o período helenístico no mundo mediterrânico
oriental. Para todas as regiões conquistadas pelos exércitos de Alexandre
seguiram colonos gregos; fundaram-se novas cidades inteiramente gregas e
antigas cidades passaram a contar com uma população grega. E, após a morte de
Alexandre, o vasto império que fundara foi dividido entre dinastias de origem
grega. No século III, a Palestina — ou melhor, a região da Palestina chamada
Judéia, que correspondia de modo aproximado ao antigo reino de Judá — estava
sob o domínio de uma destas dinastias, a dos Ptolomeus, sediada no Egito. No
início do século II, ela passou a ser governada por outra dinastia, a dos
selêucidas, esta baseada na Síria.1

Os escritos mais antigos a que os estudiosos modernos atribuíram o rótulo


de “apocalipses judaicos” foram produzidos na Palestina nos séculos III e II
a.C.2 São obras difíceis, repletas de uma erudição estranha e de um simbolismo
complexo. E, embora não haja nenhum indício conclusivo de terem sido
compostas em proveito de seitas específicas, as concepções que exprimem sobre
o caos, o cosmos e o mundo vindouro não encontraram lugar no judaísmo oficial
tal como este se desenvolvera desde a época dos deuteronomistas.

O rótulo moderno é bastante apropriado. O termo grego apokalypsis


significa “desvelamento”, “descobrimento” — e uma característica comum a
todos os apocalipses é o propósito de desvendar aos seres humanos segredos
anteriormente conhecidos apenas nos céus. As vezes, tal conhecimento secreto
trata do mundo celestial, mas na maioria das vezes refere-se ao destino deste
nosso mundo. Na verdade, os dois tipos de segredo estão intimamente
vinculados, pois o que ocorre na terra é considerado reflexo do que ocorre no
céu. Se o mundo encontra-se agora na iminência de uma transformação total e
definitiva, isto se deve a um decreto celeste.

Supunha-se que os desvendamentos originais haviam ocorrido muito tempo


antes. Os apocalipses são em geral pseudônimos: trazem nomes de autores, mas
estes são homens santos que viveram, ou acreditava-se que tivessem vivido, em
um passado já então muito distante. Dos três apocalipses que serão examinados
aqui, o Livro de Daniel é atribuído a um homem que se supunha ter vivido
durante o exílio babilónico do século VI, enquanto o Livro dos Jubileus é
atribuído a Moisés e o I Enoque a um patriarca do próprio começo dos tempos.

O recurso à pseudonímica refletia a tendência arcaizante característica do


período helenístico, mas acima de tudo servia para reforçar a autoridade de um
escrito. Os autores dos apocalipses queriam ardentemente que suas obras fossem
levadas a sério, como pronunciamentos verdadeiros e de inspiração divina.
Alcançavam o objetivo alegando que, ao fazer essas revelações, Deus havia
determinado que permanecessem secretas, ocultas, “seladas”, até que chegasse o
momento certo para divulgá-las. Tais ficções fizeram mais do que apenas
autenticar os apocalipses. Não apenas justificava-se assim a espera de séculos,
como as próprias revelações pareciam ainda mais preciosas por terem esperado
por tanto tempo.

Os autores de apocalipses sem dúvida fizeram tudo o que puderam para que
suas obras parecessem genuínas — por exemplo, tomaram o cuidado de nunca
mencionar o nome de qualquer indivíduo que tivesse vivido depois da época dos
supostos autores. Não há como negar os indícios de um plano consciente, de
uma simulação deliberada. Apesar disso, quando lemos tais obras ficamos com a
impressão de que seus autores as consideravam de alguma forma genuínas.3
Mais ainda: estes homens parecem ter achado que seus escritos não apenas
complementavam, mas iam além da profecia bíblica, e viam-se não só como
sucessores dos profetas, mas também como superiores a eles. Por trás dos
pronunciamentos dos profetas, sugerem eles, há um sentido oculto que fora
compreendido de maneira imperfeita pelos próprios profetas. Apenas a uns
poucos sábios Deus havia revelado plenamente este sentido — e somente agora,
com o desvelamento dos escritos daqueles sábios, a verdadeira significação da
profecia seria esclarecida.

Em medida muito maior do que os profetas, os autores dos apocalipses


costumavam receber as revelações sob a forma de visões — por vezes, sentiam-
se até mesmo transportados para uma região distante da terra ou dos céus. Com
freqüência, os acontecimentos que lhes eram revelados encontravam-se
disfarçados em símbolos e alegorias, com animais representando homens ou
nações, anjos bons representados por homens e anjos caídos por estrelas. Na
verdade, não sabemos até que ponto o material simbólico encontrado nos
apocalipses reflete uma experiência visionária de primeira mão. A linguagem
simbólica é tradicional e deriva em grande parte de antigos mitos; ao contrário
da profecia bíblica, o apocalipse pertence a um gênero erudito e recende a longas
vigílias de estudo. Porém, feitas todas as ressalvas, parece inconcebível que, sem
algumas visões genuínas e intensas, os apocalipses pudessem ter sido escritos.

As revelações que seus autores receberam de Deus eram muito diversas


daquelas recebidas pelos profetas bíblicos. Não há, nos apocalipses, nenhuma
sugestão de que os seres humanos possam, por sua obediência ou desobediência,
alterar a forma dos acontecimentos futuros. O futuro já está determinado; na
verdade, seu curso já está inscrito em um livro celestial. E seu resultado será
diverso de tudo o que havia sido indicado pela profecia clássica. Haverá um
julgamento final. Haverá uma vida após a morte na qual os seres humanos,
inclusive os mortos ressurrectos, irão receber as recompensas e as punições
justas. E se alguns seres humanos serão transformados em anjos, outros serão
condenados ao tormento eterno.

Também em outros aspectos os apocalipses diferem da profecia bíblica.


Deus havia falado diretamente aos profetas — porém, desde a época deles. Deus
se tornara mais remoto, afastando-se dos seres humanos e de suas preocupações.
Agora, quando se comunicava com um apocalíptico, sempre recorria a um
intermediário, um anjo. Embora os anjos não fossem desconhecidos na Bíblia
hebraica, é apenas nos apocalipses que eles se tomam atores principais. Ali eles
acompanham e guiam os apocalípticos em suas excursões visionárias,
esclarecem o sentido das visões e são a garantia da própria veracidade das
visões. O relacionamento entre o anjo e o apocalíptico ganha uma descrição
vívida em Daniel:
No vigésimo quarto dia do primeiro mês, estando às margens do grande rio, o Tigre, levantei
os olhos para observar. E vi: Um homem revestido de linho, com os rins cingidos de ouro
puro, seu corpo tinha a aparência do crisólito e seu rosto o aspecto do relâmpago seus olhos
como lâmpadas de fogo, seus braços e suas pernas como o fulgor do bronze polido, e o som de
suas palavras como o clamor de uma multidão.

Somente eu, Daniel, vi esta aparição. Os homens que estavam comigo não viam a visão [...]

Ouvi, então, o som de suas palavras. Ao ouvir o som de suas palavras, desfaleci sobre o meu
rosto, meu rosto contra a terra. [...] Ao dizer-me ele estas palavras, levantei-me, todo trêmulo.
E prosseguiu: “Não temas, Daniel. [...] vim para fazer-te compreender o que sucederá a teu
povo, no fim dos dias, porque há ainda uma visão para esses dias.4

A menção ao rio Tigre é significativa. Pois se uma das raízes dos


apocalipses judaicos leva à profecia bíblica, outra leva à civilização
mesopotâmica. Desde a época da Suméria, a Mesopotâmia era famosa por sua
classe profissional de “sábios”. Na Babilônia, alguns destes sábios
especializaram-se na “sabedoria cosmológica” — astronomia, meteorologia, a
geografia do mundo conhecido e a geografia mítica do paraíso —, enquanto
outros concentraram-se na “sabedoria mântica”, na arte de interpretação dos
sonhos. Sem dúvida em conseqüência da diáspora babilónica, aqueles que pela
primeira vez criaram e estabeleceram o gênero do apocalipse judaico foram
capazes de aproveitar essas tradições.5 E com certeza não é coincidência o fato
de — como veremos — tanto o intérprete de sonhos Daniel como o
enciclopédico Enoque terem fortes vínculos com a Babilônia.

Na verdade, muita coisa caiu na rede dos apocalípticos.6 Os mitos antigos,


que os israelitas haviam partilhado com os cananeus, retornam à vida em seus
escritos. E a influência zoroastriana também estava presente — em que medida,
veremos em um capítulo posterior.


Capítulo 2

No mundo helenístico havia um ressentimento muito difundido contra o


domínio estrangeiro, ressentimento que por vezes encontrou expressão na
profecia pseudonímica.7 No Egito, a Crônica demótica e o Oráculo do oleiro,
duas profecias de emancipação política compostas sob o domínio grego, foram
ambos disfarçados para que parecessem ter sido escritos durante o reinado de
faraós havia muito desaparecidos. O Oráculo de Hystapes, persa, também prevê
a emancipação política, desta vez do domínio romano que havia sucedido o
grego — e esse Hystapes é ninguém menos do que Vishtaspa, o patrono de
Zoroastro. É como se os povos das nações conquistadas se voltassem para um
passado distante em busca de forças para enfrentar um presente e um futuro que
não tinham meios de influenciar.

Alguns dos apocalipses judaicos desempenharam a mesma função, mas em


escala muito mais grandiosa. Enquanto os oráculos egípcios e persas referem-se
a períodos limitados e prometem melhoras também restritas, essas obras judaicas
pretendem interpretar a própria história e dizer o que há depois do fim da
história. A visão de mundo que oferecem é tanto dualista como escatológica. Ao
longo da história, o desígnio divino foi constantemente confrontado e frustrado
pelas forças demoníacas, mas agora Deus está prestes a afirmar sua autoridade
absoluta: ele irá encerrar a história e inaugurar a era final e eterna da redenção.

A mais antiga dessas obras surgiu como reação a uma crise repentina na
década de 160 a.C. Em geral, os governos no mundo helenístico não interferiam
com as religiões ancestrais, mas nessa década, por motivos ainda discutidos
pelos historiadores, o monarca selêucida Antíoco iv Epifânio abriu exceção para
o judaísmo. É bem verdade que o poder da dinastia estava periclitante: Antíoco
havia conduzido uma guerra bem-sucedida contra o Egito e a vitória lhe fora
roubada devido a uma intervenção romana. E possível, também, que Antíoco
tivesse uma personalidade desequilibrada. Seja qual for o motivo, ele estava
mais do que pronto para se voltar contra os judeus de Jerusalém. Quando um
sumo sacerdote tentou afastar seu sucessor, o qual pagara generosamente para
cair nas graças do rei, este encontrou uma desculpa para intervir.

Antíoco Epifânio agiu com extraordinária brutalidade. Em 169, invadiu o


Templo, roubou os objetos de culto e arrancou os ornamentos de ouro do
edifício. Para os judeus, tais atos já constituíam ofensa imperdoável, mas o pior
ainda estava por vir. Em 167 a.C., depois de ter sido forçado pelos romanos, de
maneira extremamente humilhante, a encerrar uma bem-sucedida campanha
militar contra o Egito e a abandonar todos os seus projetos em relação àquele
país, Antíoco voltou-se contra Jerusalém. A cidade foi saqueada e incendiada,
muitos de seus habitantes foram mortos, outros fugiram para o deserto, inúmeras
mulheres e crianças foram levadas para o cativeiro. Por fim, as muralhas da
cidade foram demolidas. Uma nova cidade fortificada foi erguida e ocupada por
tropas selêucidas.

Todas as práticas da religião judaica foram proibidas: os sacrifícios usuais


não podiam mais ser oferecidos, não se podia observar o Shabat nem realizar a
circuncisão e os rolos de pergaminhos sagrados deveriam ser destruídos — a
violação de qualquer uma dessas ordens era punível com a morte. E, pior de
tudo, no Templo, o culto de Yahweh foi substituído pelo culto de um deus sírio,
Baal Shamen, um novo altar foi erguido sobre o antigo e sacrifícios de porcos,
animais tabus para os judeus, passaram a ser feitos ali. Também nas províncias
ergueram-se altares aos deuses pagãos — e por toda parte o culto incluía, além
de tudo, oferendas em honra do rei. Todos eram obrigados a participar desse
culto estrangeiro, cabendo aos funcionários do rei assegurar que isto fosse feito.
Portanto, fora abolido o direito que a comunidade judaica sempre havia
desfrutado, de viver de acordo com suas próprias leis religiosas.

Porém, o que era Israel senão uma comunidade unida pelo “zelo pela Lei”,
como esta fora definida na Torá? Muitos judeus estavam dispostos a lutar, e até
mesmo a morrer, para não transgredir este princípio. A família sacerdotal dos
asmoneus — um pai e cinco filhos — proporcionou os líderes; e um dos filhos,
Judas, apelidado Macabeu (talvez com o significado de “cabeça de martelo”),
revelou-se um comandante tão eficiente que a guerra ficou conhecida na história
como o levante macabeu. A liderança de Judas e a disposição de seus seguidores
para arriscar a vida pela causa, ao lado das dificuldades internas e externas que
assolavam o Estado selêucida, asseguraram a vitória aos judeus. Em 164 a.C., o
Templo foi reconquistado, restaurou-se o culto legítimo e dois anos depois a
comunidade judaica recuperou seus direitos tradicionais.


Capítulo 3

Na Bíblia hebraica, o último livro a ser composto foi o de Daniel, que, em


sua forma atual, é um produto da perseguição de Antíoco Epifânio.8 À primeira
vista, este livro trata dos feitos e da experiência de um judeu chamado Daniel —
personificação lendária da sabedoria e da retidão — que viveu na corte
babilónica durante e após o exílio. Os seis capítulos iniciais (de um total de
doze) trazem relatos sobre Daniel: provavelmente se originaram na diáspora
babilónica, embora possam muito bem ter sido redigidos durante a crise de
Antíoco. Os seis últimos capítulos foram compostos de modo a dar a entender
que haviam sido escritos pelo próprio Daniel: em quatro apocalipses interligados
ele descreve uma série de visões em que lhe foram revelados os acontecimentos
futuros. Mas tudo isso não passa de ficção: na verdade, esses capítulos foram
escritos entre 169 e 165 a.C., provavelmente por mais de um autor.

Único dentre os seis capítulos iniciais, o segundo contém um apocalipse.


Daniel relata como o rei Nabucodonosor sonhou com uma enorme e terrível
estátua, com cabeça de ouro, o peito e os braços de prata, ventre e coxas de
bronze, pernas de ferro e pés de ferro e argila. Enquanto ele observa, uma pedra
arrancada de uma montanha — mas não por “mãos humanas” — atinge os pés
da estátua e os esfacela; em seguida, todo o resto da figura se desintegra e
desaparece sem deixar vestígio. Mas a pedra transforma-se em uma grande
montanha, preenchendo toda a terra. Aquilo que nenhum sábio da Babilônia
conseguira fazer, Deus proporcionou a Daniel: uma visão que mostrava não só o
que Nabucodonosor sonhara, mas também o significado do sonho.

A cabeça de ouro, explicou Daniel ao rei, era o próprio Nabucodonosor,


enquanto as partes de prata e bronze representavam reinos futuros, inferiores ao
babilónico. Mas o principal interesse de Daniel estava reservado para o quarto
reino, representado pelas pernas de ferro e pelos pés de ferro e argila. Assim
como o ferro esmaga e esfacela todas as coisas, do mesmo modo, previu ele,
esse reino irá esmagar e esfacelar toda a terra: evidentemente, ele estava
prevendo a história do império de Alexandre e os Estados que o sucederam. A
despeito disso, esse reino sofreria de fraquezas internas: fracassariam as
tentativas de unir suas inúmeras partes por meio de casamentos dinásticos, pois
essas partes seriam tão incompatíveis quanto o ferro e a argila — uma referência
explícita ao difícil relacionamento entre os selêucidas e os ptolomeus. Por fim, o
próprio Deus iria intervir: “No tempo desses reis o Deus do céu suscitará um
reino que jamais será destruído, um reino que jamais passará a outro povo.
Esmagará e aniquilará todos os outros reinos, enquanto ele mesmo subsistirá
para sempre. Foi o que pude ver na pedra que se destacou da montanha, sem que
mão alguma a tivesse tocado, e reduziu a pó o ferro, o bronze, a argila, a prata e
o ouro”. A pedra na verdade representa um reino que Deus irá estabelecer “no
fim dos dias”.9 Esse reino será universal e eterno. Além do mais, será
estabelecido neste mundo terrestre — senão, por que a garantia de que nunca
“passará para outro povo”? De fato, o que mais poderia significar uma pedra que
preenche “toda a terra”?

O esquema de quatro sucessivos impérios, ou “reinos”, mundiais era bem


conhecido no antigo Oriente Próximo,10 mas, nas mãos do compilador do Livro
de Daniel — que presenciou o auge da perseguição de Antíoco e o levante
macabeu —, ele adquiriu novo significado. Isto é ainda mais evidente no sétimo
capítulo. Ali há uma previsão do futuro muito semelhante à do segundo capítulo,
mas a narração recorre a símbolos muito diferentes, dotados de uma força
imaginativa muito maior e avançando muito além no futuro. As coisas também
ficam mais bem explicadas. Ali Daniel aparece não como intérprete de sonhos,
mas como o próprio sonhador, sendo a tarefa de interpretação assumida por um
anjo.

Em seu sonho, ou visão noturna, Daniel vê quatro animais monstruosos


surgindo de um mar tempestuoso, um após o outro, cada qual diferente e mais
estranho que o outro. Um leão com asas de águia, uma criatura semelhante a um
urso, um leopardo com quatro asas e quatro cabeças e, por fim, uma criatura
mais terrível que todas as anteriores. De novo, é o quarto item que chama a
atenção de Daniel:
Eu vi um quarto animal, terrível, espantoso, e extremamente forte: com enormes dentes de
ferro, comia, triturava e calcava aos pés o que restava. Muito diferente dos animais que o
haviam precedido, tinha este dez chifres. Enquanto eu considerava esses chifres, notei que
surgia entre eles ainda outro chifre, pequeno [...]. E neste chifre havia olhos como olhos
humanos, e uma boca que proferia palavras arrogantes.11

O surgimento do pequeno chifre é o sinal para a consumação da história. O


próprio Deus aparece, como “o Antigo de Dias” ou “Antigo de Anos” — um
título talvez emprestado do cananeu El, que entretanto havia se tornado o
principal deus do panteão sírio e era às vezes chamado de “Pai dos Anos”. Com
vestes brancas e de cabelos brancos. Deus está sentado em um trono de fogo,
servido por miríades de seres que formam as hostes celestiais. O tribunal toma
assento e — como em um tribunal de justiça contemporâneo — os livros são
abertos. A uma ordem do juiz divino, o quarto animal é destruído e sua carcaça
lançada às chamas. Então, “um como Filho de Homem” aparece, “vindo sobre as
nuvens do céu”. Ele é apresentado ao Ancião, que lhe transmite a soberania que
nunca terá fim, um tal poder régio que todos os povos e nações do mundo se
submeterão a ele.

Embora geralmente se considere que tudo isto vá ocorrer no céu, há


inúmeros indícios de que seu autor imaginou a cena acontecendo na terra. Os
animais monstruosos saem do mar, o símbolo do caos, hostil a Deus e sempre
ameaçando o mundo ordenado. A terra para onde vão é a mesma terra pisoteada
pelo quarto monstro — com certeza a Palestina. E, quando os tronos surgem e o
Antigo de Anos, servido por miríades de anjos, toma seu lugar, sem dúvida o
cenário também é a Palestina. Isto nos lembra outras teofanias anunciadas na
Bíblia hebraica — por exemplo, no Salmo 96: “As árvores da terra gritem de
alegria, diante de Yahweh, pois ele vem, pois ele vem para julgar a terra”; em
Zacarias: “E Yahweh, meu Deus, virá, todos os santos com ele” em um vale
aberto por milagre junto a Jerusalém; e em Joel: “Ali eu me sentarei para julgar
todas as nações dos arredores”.12

O significado dos quatro animais monstruosos é explicado no mesmo


capítulo 7: como as quatro partes da estátua no segundo capítulo, eles
representam as potências imperiais que haviam dominado os judeus. O quarto
monstro, muito mais terrível que seus predecessores, é identificado com o
império de Alexandre e os Estados que o sucederam; os dez chifres são os
diversos monarcas, com Antíoco sendo representado tanto pelo décimo chifre
como pelo “chifre pequeno”. Porém, há muito mais nesse simbolismo.


Capítulo 4

Sabe-se que os mitos antigos sobre os monstros do caos ainda eram muito
difundidos no século II e sem dúvida proporcionaram os símbolos utilizados
pelo autor do sétimo capítulo do Livro de Daniel.13 Com os animais que
emergem do mar turbulento, aqueles monstros retornam à vida dotados de um
novo sentido. A exemplo daqueles seres primordiais, os impérios pagãos
combatem a ordem estabelecida nos céus, lutando para substituir o cosmos pelo
caos. Isto vale sobretudo para o quarto e último império e, acima de tudo, para o
próprio Antíoco. O capítulo 7 prevê de que modo o tirano irá impedir os judeus
piedosos, “os santos do Altíssimo”, de observar a Lei e como tentará modificar
as datas das festas religiosas — ambos essenciais para a manutenção da ordem
estabelecida por Deus. Nos capítulos 8 e 10, que devem ter sido escritos depois,
Antíoco aparece como um monstro do caos com forma humana. Ele estabelecerá
a “abominação da desolação” (siqus shomen — deformação proposital do nome
divino Baal Shamen) no próprio Templo. Ele exaltará a si mesmo acima de todos
os deuses, inclusive do único e verdadeiro Deus, e irá desafiar o Altíssimo.
Todas essas coisas foram reveladas a Daniel em visões e comunicações
angélicas — assim como a vingança divina: no prazo de três anos e meio, o reino
do tirano será destruído e ele próprio perecerá.

Nem o governo de Antíoco nem sua derrubada são imaginados em termos


políticos comuns. Os judeus haviam deixado de aceitar os deuses tutelares das
nações como deuses verdadeiros, mas os haviam substituído por anjos
padroeiros — e esses anjos podiam participar, ao lado dos seres humanos, em
conflitos internacionais. No Livro de Daniel, o anjo da guarda de Israel, Miguel,
é mencionado como “o grande príncipe”, “um dos grandes príncipes”, e o fato de
Israel ter um protetor tão poderoso na corte celestial significa que, por mais
irrelevante que o Povo Eleito possa parecer em termos puramente políticos, ele
nunca pode ser destruído por outras nações.14

Por vezes os anjos padroeiros das nações lutam entre si no céu — do mesmo
modo como os deuses, nos mitos da Mesopotâmia, costumavam lutar entre si em
batalhas que decidiam o resultado de batalhas travadas na terra. Em Daniel, tal
concepção é pressuposta: ficamos sabendo de lutas futuras de Gabriel e Daniel
contra o anjo protetor da Pérsia e, depois — quando o império aquemênida
chega o fim e surgem os reinos ptolomaico e selêucida —, contra o anjo protetor
da Grécia.15 É o resultado no céu desta última batalha que determina o resultado
da guerra dos macabeus. Na libertação e redenção final dos judeus, há
participação direta de Miguel: “E chegará [Antíoco] a seu termo, sem que
ninguém lhe venha em auxílio. Nesse tempo levantar-se-á Miguel, o grande
Príncipe, que se conserva junto dos filhos do teu povo. Será um tempo de tal
angústia qual jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem.
Mas nesse tempo o teu povo escapará 16

Dado este contexto, pode-se entender a afirmação enigmática de que “o


chifre pequeno” se “ergueu até contra o exército dos céus, derrubando por terra
parte do exército e das estrelas e calcando-as aos pés. E chegou mesmo a exaltar-
se contra o Príncipe dos exércitos”.17 Estrelas e anjos estavam estreitamente
associados; na verdade, na Bíblia e nos apocalipses, os anjos muitas vezes são
simbolizados por estrelas.18 Tanto as estrelas como os anjos eram seres
flamejantes e uns e outros eram agentes inteligentes e responsáveis de seu
criador; juntos, constituíam “os exércitos dos céus”. A partir de 169 a.C.,
Antíoco efetivamente havia mandado cunhar moedas que traziam sua própria
efígie sob o título “Antiochus Theos Epiphanes” ou “Antíoco Deus manifesto”; e
por vezes a efígie era encimada por uma estrela.19 Para o judeu devoto que
redigiu o sétimo capítulo do Livro de Daniel, isso mostrava que o tirano havia se
equiparado e desafiado os exércitos celestes e o comandante destes, o arcanjo
Miguel.

O Livro de Daniel não é um manifesto macabeu. Não tem como objetivo


recrutar tropas, mas encorajar a população civil — ou melhor, uma elite
pertencente a esta população — a suportar com firmeza a perseguição. Este é o
propósito implícito que vincula a primeira metade do livro à segunda, de modo a
formarem um todo coerente. Pois a moral transmitida pelas histórias é idêntica à
suposição presente nas profecias. Quando Sidrac, Misac e Abdênago se recusam
a adorar o ídolo dourado e são lançados na fornalha incandescente; quando o
próprio Daniel é lançado aos leões, por insistir em orar ao seu deus a despeito da
proibição régia — tais figuras são apresentadas como exemplares para os judeus
a quem Antíoco impunha escolhas não menos terríveis. E se Yahweh havia
resgatado esses heróis do passado, como seria possível que agora abandonasse
seus fiéis seguidores? As libertações individuais relatadas nas histórias
prenunciavam a libertação em massa prometida nas profecias apocalípticas.

Pois a libertação seria obra de Deus: as forças dos macabeus não passavam
de instrumentos em sua mão, e a vitória delas, quando chegasse, seria na verdade
a vitória de Deus. Na grande visão do “Antigo de Dias”, é o próprio Deus quem
julga o reino selêucida, simbolizado pelo quarto animal, e o condena à
destruição. E é o próprio Deus quem entrega a soberania eterna sobre todo o
mundo a “um como Filho de Homem”.


Capítulo 5

O que devemos concluir a respeito de “um como Filho de Homem” que


surge “vindo sobre as nuvens do céu”? Embora a frase em si não signifique nada
além de “alguém semelhante a um ser humano”, “alguém com aparência
humana”, a figura do sonho de Daniel possui com certeza um significado
especial. Porém, o que significa exatamente é algo discutível — e de fato tem
sido objeto de infindáveis discussões.20

Alguns estudiosos alegaram que esse alguém semelhante a um ser humano é


de fato um ser humano, uma personagem histórica: Moisés, Judas Macabeu ou o
próprio Daniel. No entanto, quando se consideram dois trechos do sétimo
capítulo, parece se impor outra resposta, ou conjunto de respostas. Dessa figura
semelhante a um homem, diz-se que “a ele foi outorgado o império, a honra e o
reino, e todos os povos, nações e línguas o serviram. Seu império é um império
eterno que jamais passará, e seu reino jamais será destruído”.21 E, dos “santos do
Altíssimo”, é dito que “o império, a soberania, e a grandeza de todos os reinos
sob o céu serão outorgados [a eles]. Seu império é um império eterno e todas as
potências irão servir e obedecer a eles”. Sem dúvida, há apenas duas
possibilidades: ou esse “um como Filho de Homem” é apenas um símbolo para
os “santos do Altíssimo”, ou é o representante deles — o anjo Miguel ou talvez o
futuro soberano messiânico. Em ambos os casos ele personifica o sentimento de
eleição, a certeza de uma futura redenção e exaltação dos judeus — isto é, dos
judeus aos quais se dirigia o autor do Livro de Daniel.

Pois os “santos do Altíssimo” sem dúvida são judeus.22 E na promessa que


lhes faz Daniel no capítulo sétimo ecoa uma frase que, no quinto capítulo, ele
dirigira a Baltazar, rei da Babilônia: “Ó rei, o Deus Altíssimo concedeu o reino,
a grandeza, a majestade, a glória a Nabucodonosor, teu pai. Por essa grandeza
que Deus lhe dera, tremiam de medo diante dele todos os povos, nações e
línguas”.23 Tudo aquilo que pertencera aos grandes impérios pagãos passaria
para os judeus aos quais Daniel se dirige. Tudo e mais um pouco: pois,
enquanto cada um desses impérios exerceu seu domínio somente até ser
substituído por outro império, tal destino não espera o domínio exercido por
esses judeus: “Seu império é um império eterno” — ou, nas palavras ainda mais explícitas
do segundo capítulo, “um reino que jamais passará a outro povo. Esmagará e aniquilará todos os outros
reinos, enquanto ele mesmo subsistirá para sempre”.24
Tudo isso irá ocorrer nesta terra. O futuro império, que também será o reino
de Deus, será tão genuinamente terrestre quanto os impérios pagãos do passado
— na verdade, seu início será marcado pela reconsagração do Templo de
Jerusalém, profanado por Antíoco. No entanto, o império futuro será
inteiramente diverso de todos os impérios anteriores; na verdade, estará em total
oposição a tudo o que aconteceu na história. Até seu surgimento, a retidão quase
sempre esteve ausente da terra, sendo encontrada plenamente apenas no céu.
Com a chegada do reino de Deus, a retidão também se difundirá pela terra, a
ordem estabelecida divinamente se estenderá a toda parte. Os judeus que
presidirão tal reino serão, do mesmo modo, diferentes dos judeus do passado. A
própria frase “povo dos santos do Altíssimo” alude a um povo inteiramente sem
pecado e inteiramente reconciliado com Deus; e o mesmo se dá com a figura
intimidadora do “um como Filho de Homem”.

Podemos ser mais precisos. Em Daniel, há indicações de que esse povo é


formado pelos judeus que seguiram os ensinamentos dos “sábios”, ou seja, de
visionários tais como o autor do Livro de Daniel. Com esses “sábios”, eles terão
aprendido a técnica da resistência não-violenta; mantendo-se firmes sob a
perseguição, terão passado por uma purificação e um refinamento interiores, de
modo a se tornarem “alvos”.25 Também terão conhecido a técnica da
interpretação escatológica, aprendendo a relacionar tanto a Torá como as
experiências visionárias com o “tempo do fim”. Interiormente modificados e
dotados de sabedoria esotérica, formarão uma elite elevada muito acima da
condição humana normal. Além disso, sendo uma comunidade de “santos”
vivendo na terra, eles se corresponderão com os “santos” angelicais que vivem
no céu. E, enquanto os reinos simbolizados pelos animais foram em sua época
concretizações do poder político puramente humano, os habitantes do reino
vindouro serão instrumentos do poder divino.


Capítulo 6

O estabelecimento do império dos santos como império derradeiro e eterno


será precedido por um julgamento divino, o qual irá determinar o destino não só
do império selêucida, mas também de cada judeu individualmente. Após a
derrubada e morte de Antíoco, todos os judeus observantes — “todos os que
estão inscritos no livro” — serão poupados de sofrimentos adicionais. E deverá
haver uma bênção ainda mais maravilhosa. O capítulo 12, que encerra o Livro de
Daniel, faz uma extraordinária profecia: “[...] E muitos dos que dormem no solo
poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio, para o
horror eterno”. Esta passagem não tem paralelo na Bíblia hebraica: ela assinala
um rompimento decisivo com a concepção tradicional da morte entre os
israelitas. A perspectiva do Xeol, “o abismo”, “a terra do esquecimento”, que se
apresenta aos piedosos e aos ímpios indistintamente, é substituída por algo muito
diverso: na grande consumação, os mortos retomarão à vida, irão a julgamento e
serão recompensados ou punidos.26

Quem são esses mortos? Também nesta questão os estudiosos ainda não
chegaram a um acordo. De modo geral, parece provável que o autor do
apocalipse não tinha em mente o conjunto da humanidade e nem mesmo os
judeus enquanto tais, mas apenas duas categorias de judeus. Por um lado, os
mártires que, sob a perseguição de Antíoco, haviam escolhido a morte a fim de
não trair seu deus; por outro lado, aqueles que haviam capitulado e agora
desfrutavam do favor do tirano. Por que os piedosos deveriam perecer, não a
despeito de sua piedade, mas por causa dela? E por que a apostasia deveria ser
recompensada com a vida, e muitas vezes até mesmo com uma vida próspera?
Em Daniel 12, a profecia afirmava que não iria perdurar um estado de coisas que
era um ultraje tão monstruoso aos padrões de justiça judeus e israelitas. Daniel
12 foi composto quando a perseguição ainda estava ocorrendo — não é de
surpreender, portanto, que oferecesse solução para um tormento muito real de
seus leitores.

O destino dos apóstatas e dos mártires após a ressurreição é indicado com


bastante clareza. Como no Terceiro Isaías, os corpos dos apóstatas serão
vilipendiados — sem dúvida no vale de Hinom. Os mártires, por outro lado,
deverão viver para sempre. Aparentemente, esta vida será uma vida corpórea
nesta terra. Uma passagem em II Macabeus relata a história de um judeu piedoso
que, durante a perseguição de Antíoco, em vez de cometer idolatria, impalou a si
mesmo com uma espada e lançou as próprias entranhas à multidão que o
cercava; e, ao fazer isto, gritou que Deus, como senhor da vida, no devido
momento iria lhe restituir as entranhas.27 Verdadeira ou fictícia, a história revela
o quão familiar era a noção de que os mártires seriam trazidos de volta à vida em
carne e osso. Na verdade, retomando o Livro de Daniel, de que outra maneira
poderiam desfrutar das alegrias do império mundial judaico? E se eles iriam
viver para sempre com seus corpos, estes não teriam de ser incorruptíveis e
sempre jovens? A revelação que supostamente havia sido feita ao sábio Daniel,
com quatro séculos de antecedência, parecia implicar tudo isto.

O destino que aguardava os “líderes sábios” era ainda mais impressionante.


“Os que são esclarecidos resplandecerão, como o resplendor do firmamento; e os
que ensinam a muitos a justiça hão de ser como as estrelas, por toda a
eternidade”. É verdade que alguns estudiosos interpretaram essas imagens como
simples metáforas, significando apenas que a glória das realizações desses
homens permanecerá para sempre. No entanto, há indícios abundantes, em
fontes judaicas e cristãs dos três séculos seguintes, de que os indivíduos
excepcionalmente santos esperavam, no Final, receber vestes de glória que os
tornariam resplendentes e flamejantes. Certamente o autor do apocalipse estava
prevendo que ele e seus companheiros viveriam por toda a eternidade como
seres sobre-humanos, semelhantes a anjos ou a estrelas.


10 - APOCALIPSES JUDAICOS (II)

Capítulo 1

Duas obras apocalípticas, o I Enoque e o Livro dos Jubileus, tratam de


maneira explícita da ordem estabelecida divinamente e das forças que a
ameaçam.

Embora o I Enoque não faça parte da Bíblia, nem mesmo dos Apócrifos,
nos séculos imediatamente anteriores e posteriores a Jesus esse texto era
amplamente conhecido e desfrutava de imenso prestígio. Nos séculos II e I a.C.,
nada menos que onze manuscritos dele foram produzidos somente pela
comunidade de Qumran, e com certeza era conhecido em círculos muito mais
amplos: os autores de apocalipses posteriores, do final do século I d.C, ainda
estavam familiarizados com o texto. E se os rabinos, quando terminaram de
estabelecer o cânone hebraico — também no final do século I d.C. —, excluíram
o I Enoque, os cristãos primitivos o viam de maneira muito mais favorável. O
Novo Testamento e os Apócrifos contêm referências à obra: no século I, Judas o
cita, e, no seguinte, Barnabé alude a ele como tendo pertencido às Escrituras. Na
verdade, ao longo dos três primeiros séculos, esse texto continuou a ter toda a
autoridade de um livro canônico para os autores cristãos, inclusive para Padres
tão importantes quanto Clemente de Alexandria, Irineu e Tertuliano. Foi apenas
no século IV, sob a influência de são Jerônimo e santo Agostinho, que ele caiu
em descrédito, e mesmo assim só no Ocidente. Na Igreja oriental, continuou a
ser tratado com respeito até o século IX.

Devido ao veto dos rabinos, não chegou até nós nenhuma versão completa
da obra, em sua linguagem (ou linguagens) original. Os fragmentos de Qumran
sugerem que quase todo o I Enoque foi composto em aramaico, embora parte
dele possa ter sido escrita em hebraico. Nossa principal fonte, contudo, é uma
tradução etíope feita entre os séculos IV e VI para a Igreja cristã da Etiópia.1 Esta
versão baseia-se sobretudo em uma tradução grega, da qual sobreviveram
fragmentos. Independentemente do idioma, a obra é conhecida como I Enoque,
para distingui-la de um texto muito diverso conhecido pelos títulos de II Enoque,
Os segredos de Enoque ou Enoque eslavônico.

Na verdade, o I Enoque não é obra de nenhum indivíduo isolado; trata-se de


uma coleção de textos redigidos entre os séculos III a.C. e I d.C., e parte deles
reflete as tensões e tormentos da perseguição promovida por Antíoco. Mas não é
assim que o livro se apresenta, pois dá a impressão de ter sido composto pelo
Enoque mencionado de passagem no Gênesis, como o sétimo patriarca em uma
genealogia que vai de Adão a Noé. Ali, conta-se que ele era o pai de Matusalém
e homem de excepcional piedade: apenas dele se diz que “andava com Deus”.
Sua recompensa foi também excepcional, pois nunca morreu: tendo alcançado a
idade de 365 anos, “Enoque andou com Deus, depois desapareceu, pois Deus o
arrebatou”.2

Há muito já se reconheceu que essa passagem do Gênesis alude a uma


tradição mais complexa. Enoque, o sétimo patriarca, tem características em
comum seja com o sétimo rei da Lista Real suméria, seja com o sétimo sábio
sumério — duas figuras do passado remoto, a respeito das quais os babilônios
tinham muito a dizer. De fato, a lenda de Enoque parece ter se originado durante
a diáspora oriental, desenvolvendo-se em parte como emulação dos modelos
mesopotâmicos. Sem dúvida, no século II d.C. Enoque havia se tornado um
personagem quase sobre-humano, desfrutando de contatos íntimos com os seres
celestes e dotado de um conhecimento único não só do cosmos, mas também do
futuro. Um dos autores do I Enoque faz com que ele diga: “Eu vi tudo nas
tabuletas do céu, e eu li tudo o que estava escrito [...] todos os feitos dos homens,
e todos aqueles que nasceram da carne pelas gerações da eternidade”. E o Livro
dos Jubileus o distingue como o homem escolhido por Deus para prever e
predizer o futuro até o Juízo Final.3 À primeira vista, o Livro dos Jubileus parece
ser apenas uma reelaboração da história contada no Gênesis e no Êxodo, desde a
criação do mundo até a fuga do Egito.4

No entanto, o livro é um verdadeiro apocalipse. Tem a forma de um


apocalipse, pois a história é apresentada como uma revelação secreta
originalmente transmitida a Moisés por anjos no monte Sinai. Além disso — tal
como no I Enoque —, a narrativa é entremeada de profecias sobre a grande
consumação e a própria maneira como se relatam eventos passados, como o
Dilúvio, faz com que estes pareçam proféticos — prefigurações do cataclismo
final.

O Livro dos Jubileus parece ter sido composto por um único autor no período entre 175 e
140 a.C. Esse autor tinha conhecimento dos trechos mais antigos do I Enoque e
explicita muita coisa que é apenas aludida naqueles escritos. O destino do livro
também foi semelhante ao do I Enoque. Escrito em hebraico, foi traduzido para
o grego, e do grego para o etíope — língua na qual nos chegou a única versão
completa da obra (que continua a ser incluída em algumas versões da Bíblia
etíope). E, tal como o I Enoque, o Livro dos Jubileus foi levado muito a sério
pela seita de Qumran. Um dos escritos da seita, conhecido como Documento de
Damasco, cita-o como fonte autorizada/ e doze manuscritos fragmentários da
obra foram encontrados em Qumran — um a mais do que os manuscritos do I
Enoque.

Além disso, as mensagens de ambos os apocalipses têm muito em comum.


Capítulo 2

Sem dúvida alguma, tanto o I Enoque como o Livro dos Jubileus são
produtos da civilização helenística. Uma concepção de mundo tão enciclopédica
a ponto de abranger a geografia do céu e da terra, a astronomia, a meteorologia e
a medicina não fazia parte da tradição judaica — mas era muito familiar aos
gregos letrados. Aos olhos destes, o entendimento racional do funcionamento do
universo e a especulação racional sobre a força por trás desse funcionamento
eram os privilégios e as realizações mais elevados ao alcance dos homens. O I
Enoque e o Livro dos Jubileus revelam que os “sábios” judeus estavam bem
informados sobre a sabedoria grega — mas também os mostram empenhados
implicitamente em uma controvérsia com essa sabedoria.

Esses homens preocupavam-se em nâo aceitar a sabedoria alheia tal como


ela se apresentava, procurando antes apontar-lhe as deficiências: faltava-lhe o
conhecimento do plano divino — conhecimento, acima de tudo, do iminente
completamento desse plano. Os autores do I Enoque e do Livro dos Jubileus
nunca duvidaram que possuíam uma compreensão do mundo superior à dos
gregos e estavam dispostos a prová-lo. Assim, essas obras não são tentativas de
imitar a sabedoria grega, mas de emulá-la e sobrepujá-la.

Ambas as obras são impregnadas de um sentimento de ordem universal e


em ambas tal ordem é apresentada como expressão da vontade de Deus. Este
criou o céu e a terra e agora governa a ambos como um rei. Enoque o divisa nas
alturas do céu, sentado em trono radiante, servido por dez mil vezes dez mil
anjos. Ali se encontra a fonte de toda a ordem: o cosmos é governado por
decretos divinos. Nessa visão de mundo em que não havia lugar para “leis”
impessoais, a regularidade da natureza deriva da obediência. Os seres humanos,
as plantas, os ventos e as estrelas são todos criaturas de Deus, e como tais são
obrigadas a obedecer-lhe.6

São os anjos os responsáveis por fazer com que de fato obedeçam. Tudo o
que existe no mundo está sob a guarda de um anjo e todos os anjos estão sob o
comando de Deus, o “Senhor dos Espíritos”, como é chamado no I Enoque. O
Livro dos Jubileus mostra Deus, já no primeiro dia da criação, assegurando a
estabilidade de sua obra por meio da criação de anjos que cuidem dos ventos e
das nuvens, do granizo e da geada, do raio e do trovão, do frio e do calor, do
inverno, da primavera, do verão, do tempo da colheita, da luz da aurora e da
manhã, do lusco-fusco do anoitecer — na verdade, de todas as coisas no céu e na
terra.7 E o I Enoque conta de que modo o anjo Uriel “tem um poder celestial
sobre a noite e o dia de modo a fazer com que a luz brilhe sobre os homens: o
sol, a lua, e as estrelas, todos os poderes do céu que seguem em suas órbitas”, ao
passo que os anjos menores cuidam das estrelas individuais para assegurar que
apareçam nos momentos e locais apropriados.8

Uma das partes mais antigas do I Enoque (capítulos 72-82) é um tratado


sobre os fenômenos astronômicos e cósmicos; constitui a versão reduzida de
uma obra que se sabe ter existido independentemente e cuja antigüidade remonta
pelo menos ao século II a.C.

Na versão do I Enoque, o sábio é conduzido através do céu pelo anjo Uriel.


Ao contemplar as luminárias celestes aparecendo e desaparecendo por seus
“portais”, ele aprende a apreciar a uniformidade e a ordem que Deus estabeleceu
em toda a sua criação e que continuará, imutável, “por cada ano do mundo [...]
até que seja feita a nova criação destinada a durar para sempre”. Ele vê também
os “portais” por onde sopram os ventos, e os próprios ventos: “Eu vi os quatro
ventos que movem o céu e fazem com que o disco do sol e todas as estrelas se
ponham”.9 Em outro trecho, o sopro dos ventos é descrito como simétrico, com o
propósito de ilustrar uma ordem que abrange a tudo.

De modo mais claro do que em qualquer passagem da Bíblia hebraica, o


Livro dos Jubileus e o I Enoque falam de um Juízo Final que virá na
consumação dos tempos. Os esplêndidos capítulos iniciais (1-5) do I Enoque, em
geral considerados do século III, contam como os seres humanos serão julgados
conforme tiverem sido submissos ou rebeldes à vontade divina que rege todas as
coisas no céu e na terra. Em uma visão, o sábio vê que nesse momento
derradeiro Deus descerá do céu acompanhado de dez mil anjos, tomará posição
no monte Sinai e comandará o julgamento. A norma pela qual ele irá julgar é
inteiramente explicitada:
Contemple todos os acontecimentos no céu, o modo como as luzes do céu não alteram seu
curso, como cada uma se ergue e se põe em ordem, cada uma em seu momento apropriado, e
como não transgridem sua lei. Considere a terra [...] Considere o verão e o inverno, como a
terra inteira está repleta de água, e as nuvens e o orvalho e a chuva se apoiam nela [...]
Contemple como as árvores estão cobertas de plantas verdes, e carregadas de frutas. E
entenda a respeito de tudo e perceba como Ele que vive para sempre criou todas as coisas
para ti e [como] suas obras [estão] perante ele em cada ano sucessivo, e todas as suas obras o
servem e não se alteram, mas como decretou Deus, de modo que tudo seja realizado. E
considere como, juntos, os mares e os rios completam suas tarefas. Mas tu não perseveraste,
nem cumpriste a Lei do Senhor. Mas tu transgrediste [...] tu não terás paz!10

No interior da ordem estabelecida por Deus, há uma maneira correta para


cada criatura se comportar, um papel adequado que cada criatura deve
desempenhar.

O afastamento do caminho prescrito é o que levará à condenação.11 Como


diz o Livro dos Jubileus: “[N]o dia da grande condenação [...] o julgamento é
aplicado a todos aqueles que corromperam seus caminhos e suas obras perante o
Senhor [...] todos que se afastaram do caminho pelo qual devem seguir; e se não
seguirem por ali, há uma sentença determinada para cada criatura e cada
espécie”.12 Deus é um rei — e, como na terra, estão associados a sabedoria real e
o poder real. Tal como um soberano do Oriente Próximo, Deus afirma sua
autoridade exibindo tanto os esplendores de seu reino como a severidade com
que pune a rebelião.13 É bastante apropriado que Enoque, no decurso de sua
viagem celeste, após contemplar a maravilhosa ordem do universo controlado
por Deus, chegue à beira do abismo em que as estrelas rebeldes, aquelas que
haviam desobedecido o comando divino e deixado de brilhar nas horas
indicadas, são submetidas ao tormento do fogo por dez mil anos.

Embora a “Lei do Senhor” aqui descrita obviamente não contradiga a Lei


que, segundo a Bíblia, foi outorgada no Sinai, ela é diferente. Afinal,
supostamente é muito mais antiga e aplica-se não só aos israelitas — os quais
ainda não existiam na época de Enoque —, mas a toda a humanidade. Os
pecados dos seres humanos são apresentados como uma forma de desordem,
uma ofensa contra a ordem universal estabelecida por Deus.

No Livro dos Jubileus, a Lei é de fato revelada a Moisés — porém, mesmo


ali, traz implicações que não se encontram na Lei Mosaica incluída na Bíblia.
Seus mandamentos e prescrições estão escritos em tábuas celestiais e são
promulgados por um anjo. Refletem uma ordem que abrange tudo, e, ao observá-
los, os judeus e os anjos estão unidos em um empreendimento comum. A
circuncisão é um caso exemplar. Todos os anjos eram do sexo masculino e Deus
criara já circuncidados os anjos das duas ordens mais elevadas. Agora os judeus
deviam seguir este exemplo. Um menino judeu que não fosse circuncidado no
oitavo dia após o nascimento havia transgredido a ordem estabelecida por Deus e
servia apenas para ser “extirpado da terra”.14
Havia outra maneira pela qual se esperava que os judeus colaborassem com
os anjos: uns e outros deveriam observar o Shabat e as festas anuais. E,
evidentemente, deveriam observá-los nos mesmos dias — não haviam sido
estabelecidos no céu e inscritos nas tábuas celestes os regulamentos relativos ao
calendário?

Porém, nem todos os judeus aceitavam o mesmo calendário: na época, o


calendário judaico oficial era bem diferente do calendário exposto no I Enoque e
no Livro dos Jubileus.” Mas os autores dos apocalipses não eram os únicos a
saber que o último havia sido determinado e revelado por Deus: a comunidade
de Qumran também o observava.

O calendário judaico oficial, aprovado pelos sacerdotes do Templo e


observado pela grande maioria dos judeus, era na verdade um calendário lunar;
seu ano tinha 354 dias, sendo necessário acrescentar um mês adicional a cada
três anos. Por outro lado, o tratado cósmico-astronômico incluído no I Enoque
apresenta um calendário solar. Ao contrário do calendário lunar, o solar
caracterizava-se pela regularidade. Consiste de 364 dias ou, precisamente, 52
semanas; ou doze meses de trinta dias cada, mais quatro dias intercalados.
Graças a essa regularidade, os primeiros dias do ano e do início de cada estação
sempre caíam no mesmo dia da semana, a quarta-feira, e sempre no mesmo dia
da semana caíam também as festas anuais, como a Páscoa ou o Dia do Perdão.
Os defensores deste calendário atribuíam sua descoberta ao patriarca Enoque.
Sem dúvida, a idade de 365 anos, consignada a ele no Gênesis, tem valor
simbólico e reflete a mesma tradição.

Tanto o Livro dos Jubileus como o I Enoque afirmam que o calendário de


364 dias, estabelecido por Deus, foi originalmente observado por todos os
israelitas, mas acabou sendo abandonado durante o exílio babilónico, de modo
que desde aquela época todos os judeus haviam se desencaminhado. Na
realidade, o calendário parece ter sido estabelecido em meados do século III.
Sem dúvida, ele teria interessado aos precursores da comunidade de Qumran e
depois à própria comunidade, fosse como meio de afirmar uma identidade
separada — ou separatista —, fosse para reforçar a reivindicação de serem o
único e verdadeiro Israel, os únicos que haviam preservado a retidão original das
coisas.

Para o I Enoque, é “a grande e eterna luz para todo o sempre chamada de


sol”, correndo sem falhar por dias e noites em sua carruagem, como Deus havia
ordenado — é apenas esta luz, o sol, que determina os dias adequados para o
Shabat e as festas.16

Os piedosos sabem disso muito bem, ao passo que os pecadores contam os


dias incorretamente. O Livro dos Jubileus é mais explícito, pois afirma que, na
criação, “Deus indicou o sol para ser um grande sinal sobre a terra, marcando os
dias, os Shabats, os meses, as festas, os anos E, quando o anjo Uriel transmite a
Moisés as instruções de Deus, ele salienta como é importante que os judeus se
pautem pelo calendário solar. Se não obedecerem a este mandamento, “então
eles perturbarão todas as suas estações, e os anos se deslocarão 18 E, no final, as
verdadeiras datas do Shabat e das festas acabarão sendo esquecidas.

Uriel prediz que isto irá de fato ocorrer. Devido aos defensores do
calendário lunar, os dias santos serão confundidos com os dias “impuros”. A
implicação é clara: aos olhos do autor do Livro dos Jubileus, e daqueles que o
levavam a sério, os seguidores do calendário lunar estavam perturbando a ordem
cósmica estabelecida divinamente. E isso tinha importância para o Juízo Final e
seu resultado. Na época seguinte ao Juízo, apenas o calendário solar será
observado — e apenas aqueles que o observam agora podem ter a esperança de
partilhar deste futuro abençoado.


Capítulo 3

Se o mundo ordenado era imperfeito, se o cosmos estava de algum modo


fora de prumo, isto não era culpa apenas dos seres humanos: uma força maligna
estava atuando, empenhada em frustrar os desígnios divinos.

Tal concepção não tinha lugar na visão de mundo israelita. O satan que
aparece de tempos em tempos na Bíblia hebraica — de modo mais notável no
prólogo a Jó — é sem dúvida um anjo bem posicionado na corte celestial.
Conselheiro e emissário de Yahweh, deve o epíteto de satan (“adversário” ou
“acusador”) apenas ao fato de por vezes desempenhar o papel de advogado de
acusação contra este ou aquele ser humano. Embora tenham sido feitas várias
tentativas de associá-lo ao Satã de épocas posteriores, hoje está demonstrado que
tal associação é um equívoco.19

Mais fecundo é comparar uma estranha passagem na Bíblia com um trecho


similar no Livro dos Jubileus. No Êxodo ficamos sabendo que quando Moisés,
por ordem de Yahweh, estava se dirigindo ao Egito para resgatar os israelitas
cativos, Yahweh decidiu matá-lo — e o teria feito se não fosse pela intervenção
de uma mulher que reivindicou Moisés como seu esposo.20 No Livro dos
Jubileus, a narrativa que os anjos ditam a Moisés no monte Sinai está baseada no
Gênesis e no Êxodo — e, quando se trata de predizer a tentativa de assassinato
de Moisés por Yahweh, a história é inteiramente reescrita.21 A idéia de que
Yahweh podia agir movido por capricho ou malícia — e mesmo de que poderia
agir contra os interesses de seu povo — tornara-se inaceitável: agora a tentativa
de assassinato de Moisés é atribuída não a ele, mas a um espírito chamado
Mastema (que significa “hostilidade” ou “animosidade”). Mastema tentará matar
Moisés porque é inimigo dos israelitas e ativo aliado dos egípcios. Felizmente,
Deus consegue frustrá-lo em todas as ocasiões e, portanto, salvar Moisés e os
israelitas.

Em Mastema encontramos, pela primeira vez em contexto judaico, um ser


sobrenatural que personifica a inimizade a Deus e a oposição ativa aos desígnios
divinos para o mundo — na verdade, um ser dotado daquela força terrível que,
como o Demônio, irá desempenhar papel tão importante na experiência cristã.22
As poucas frases dispersas no Livro dos Jubileus inauguram uma poderosa
tradição que iria perdurar por cerca de dois milênios e que subsiste ainda hoje.
No Livro dos Jubileus, o Príncipe Mastema, como é chamado, não atua
sozinho, pois conta com a ajuda de um exército de demônios. Para saber quem
são esses demônios e como surgiram, precisamos examinar a primeira parte do I
Enoque, conhecida como “Livro dos observadores”23 e pressuposta pelo Livro
dos Jubileus. Os capítulos 6-16 e o 19 contam de que modo, à medida que a
humanidade se multiplicava, alguns anjos ficaram tão impressionados com a
beleza das filhas dos homens que desceram à terra, assumiram forma humana e
se casaram com elas. Ao fazer isto, tornaram-se impuros e abdicaram da
qualidade espiritual com que haviam sido dotados por Deus. E ensinaram aos
seres humanos muitas coisas das quais estes nunca deveriam ter conhecimento,
como fabricar armas, vestir-se de maneira sedutora, praticar a magia — o que,
por sua vez, exigia o sacrifício a falsos deuses. Em consequência, “houve grande
impiedade e muita fornicação, e eles se desencaminharam, e todos os seus
caminhos se corromperam”.24

Pior ainda, o intercurso ilícito entre anjos e mulheres deu origem a uma raça
de gigantes, uma espécie extremamente destrutiva que passou a devorar tudo
sobre a terra, inclusive os seres humanos e eles próprios.

Da terra devastada os clamores dos assassinados elevaram-se ao céu, onde


foram ouvidos pelos arcanjos. A pedido deles, Deus interveio enviando o
Dilúvio, do qual se salvariam apenas Noé e sua prole. Também fez com que os
gigantes lutassem entre si até se matarem todos. E, quanto aos anjos decaídos,
após testemunharem o massacre de sua progénie foram aprisionados debaixo de
montanhas; o anjo Azazel, que havia ensinado aos homens a fabricação de
armas, foi encarcerado nas profundezas da terra, as mãos e os pés amarrados.

Grande parte disto é uma recapitulação de um mito bem conhecido — que,


incidentalmente, pode ser reconhecido nos versículos iniciais de Gênesis 6. Em
sua forma original, a história nada tinha a ver com o atual estado do mundo — e,
na verdade, se os anjos decaídos haviam sido aprisionados e os gigantes estavam
todos mortos, que relação poderiam ter? No entanto, em algum momento durante
a dominação grega a história foi adaptada para explicar a terrível situação em
que se encontravam os judeus. O “Livro dos observadores” explica que, embora
os anjos decaídos sejam mantidos em cativeiro no interior da terra, seus espíritos
permanecem ativos na superfície, incitando os judeus a transgredir as leis de
pureza ou fazendo com que realizem sacrifícios aos deuses pagãos.25 Ou ainda —
como alternativa —, são os espíritos da prole dos anjos, os gigantes, que
permanecem ativos. Invisíveis enquanto espíritos, mas capazes de assumir
inúmeras formas, eles continuam a atacar e a molestar os seres humanos. Seja
qual for sua origem, esses espíritos são os demônios que constituem o exército
de Mastema.

O Livro dos Jubileus oferece uma explicação mais detalhada. Depois do


Dilúvio, Noé soube que espíritos maléficos, nascidos de anjos decaídos, estavam
desencaminhando seus próprios netos das sendas da retidão e até mesmo
matando alguns deles. Atendendo às orações de Noé, Deus ordenou que os
arcanjos aprisionassem todos esses espíritos, ou demônios, no interior da terra,
no “local da condenação” onde já se encontravam seus pais.

Mas os demônios tinham um líder, Mastema, e este pediu um favor a Deus:


que alguns demônios permanecessem na terra, sob seu comando, com o objetivo
de corromper os seres humanos e desencaminhá-los. Impressionado com o
argumento de Mastema, de que “grande é a maldade dos filhos de homens”,
Deus concordou em que fossem tentados dessa maneira. Um décimo dos
demônios foi poupado, permanecendo submetido a seu líder até o dia do Juízo.26
E desde então, Mastema, ou Satã, ou Beliar (no Livro dos Jubileus, é designado
por esses três nomes) vem utilizando seu exército de demônios para cometer
“todo tipo de erros e pecados, e todo tipo de transgressão, de modo a corromper
e destruir, e a derramar sangue sobre a terra”27 — e, além disso, para levar os
seres humanos a agir do mesmo modo.

Essa idéia também iria assombrar os cristãos ao longo dos séculos.


Capítulo 4

No pensamento judaico, o pecado e a doença estavam intimamente


associados. Que os demônios eram considerados causadores tanto das doenças
como dos pecados, nota-se na reação dos arcanjos: “E explicamos a Noé todos
os remédios para suas doenças, juntamente com suas seduções, e como ele
poderia curá-los com ervas da terra. E Noé anotou tudo em um livro, como nós o
instruímos, a respeito de todos os tipos de remédios”28 — um estratagema que
pode ter protegido os descendentes imediatos de Noé, mas evidentemente pouco
influiu no destino das gerações posteriores.

O autor do Livro dos Jubileus está convencido de que desde o Dilúvio a


saúde e a vitalidade das pessoas vêm se deteriorando de uma geração a outra.29
Antes as pessoas viviam quase mil anos e todos esses anos eram bons. Pouco
antes do fim dos tempos, o período de vida normal se reduzirá a setenta ou no
máximo oitenta anos, e todos repletos de sofrimentos. Desse modo são punidas
as transgressões, sobretudo as transgressões dos judeus que negligenciam os
mandamentos e decretos de Deus. Porém, é das hostes demoníacas sob o
comando de Mastema a responsabilidade final por essas sempre repetidas
transgressões e por essa longa e incessante degeneração.

Abraão reconhece isto quando ora: “Salve-me das mãos dos espíritos
maléficos que dominam os pensamentos dos corações humanos, e faça com que
não me desencaminhem de Ti, meu Deus”.30 E quando abençoa seu filho Jacó
com estas palavras: “Os espíritos de Mastema não prevalecerão sobre ti [...] para
te desviar do Senhor”.31

Misericordiosamente, os demônios têm adversários à altura: existem seres


angélicos enviados por Deus com a missão de proteger os seres humanos. O
mundo, na verdade, está dividido em dois campos hostis: um formado pelos
anjos obedientes a Deus e por uma minoria de judeus eleitos; o outro, pelos
demônios — eles próprios descendentes de anjos desobedientes — e pela
multidão de seres humanos que caíram sob seu domínio. E enquanto os raros
eleitos, fortalecidos pelos anjos obedientes, observam com firmeza os
mandamentos divinos, o resto da humanidade, constantemente seduzido pelos
demônios, acumula uma transgressão atrás da outra.

Esse estado de coisas não irá perdurar para sempre. Para o autor do Livro
dos Jubileus, é iminente o “grande julgamento”. Depois de relatar, sob o disfarce
da profecia, os males que haviam tomado conta da Palestina no passado recente
— a opressão e perseguição dos judeus piedosos pelos selêucidas, os conflitos
entre os próprios judeus, a miséria assombrosa que fazia com que crianças
ficassem de cabelo branco e parecessem pequenos velhos32 —, ele prediz uma
grande mudança. Primeiro virá um renascimento religioso: “E nesses dias as
crianças começarão a estudar as leis, e a cumprir os mandamentos, e a voltar
para as sendas da retidão”.33 Em seguida, os opressores serão derrubados.

Certamente, a profecia de que os piedosos se erguerão contra seus


opressores e os expulsarão não deve ser entendida em termos puramente
militares, não mais do que profecias semelhantes encontradas nos escritos da
comunidade de Qumran. Em vez disso, o autor devia estar à espera de um
julgamento como o descrito no I Enoque — que relata como Deus irá descer do
céu com as hostes angélicas e a terra será convulsionada, enquanto os eleitos
permanecerão em segurança. Então os ímpios serão julgados e condenados. E se
os pagãos serão lançados às profundezas da terra, os judeus que haviam sido
compelidos pelos demônios a adorá-los serão “aprisionados para sempre” no
vale de Hinom, nas proximidades de Jerusalém.34

Ao mesmo tempo, os anjos decaídos encontrarão a ruína final. E se a


punição deles é espantosa, isto se deve — como nos lembra o “Livro dos
observadores” — ao fato de terem introduzido o caos no mundo ordenado. Um
arcanjo conduz Enoque a um lugar onde ele vê uma fenda com colossais colunas
de fogo descendo do céu; e, mais além, um lugar que não possui “nem o
firmamento do céu sobre ele, nem o fundamento da terra sob ele”. Este deserto
causticante além da terra e do céu é o lugar de punição para os seres sobre-
humanos que transgrediram a ordem divinamente estabelecida, inclusive para as
estrelas que deixaram de brilhar nas horas apropriadas. Enoque fica sabendo que,
no dia do Juízo, os próprios anjos decaídos serão tirados de sua atual prisão no
interior da terra e lançados naquele abismo escaldante, para ali permanecerem,
em perpétuo tormento, por toda a eternidade.35

O mundo será expurgado de toda força destrutiva, seja humana seja


demoníaca, e ficará para sempre curado e pacificado: “Não haverá mais um Satã
nem qualquer ser maléfico e, daquele momento em diante, a terra ficará limpa”.36
Em tal mundo, os eleitos podem esperar por um destino glorioso. O Livro dos
Jubileus conta como o longo processo de degeneração será invertido:
E os dias passarão a ser muitos e a aumentar entre os filhos de homens, até que seus dias se
aproximem de um milhar de anos, e de um número de anos maior do que [antes] era o número
de dias. E não haverá nenhum homem velho Nem alguém repleto de dias pois todos serão
como crianças e jovens.31

Em uma terra renovada, sob um céu renovado, os eleitos viverão em


segurança, enquanto as luminárias celestes, dotadas de força nova, derramarão
bálsamo sobre eles. Isto no que se refere ao Livro dos Jubileus; já o I Enoque é
mais explícito. No “grande julgamento [que] marcará a consumação de tudo para
sempre”, os eleitos irão herdar a terra e serão abençoados com prosperidade, paz
e alegria. No centro da terra haverá uma árvore maravilhosa, exalando uma
fragrância única, com folhas e flores perenes e frutos em abundância. Os eleitos
ficarão impregnados até os ossos dessa fragrância, e isto lhes garantirá uma
longa vida sobre a terra, livre de todo sofrimento, labuta e dor. Acima de tudo,
Deus, “o Santo e Grande, o Senhor da Glória, o Rei Eterno”, irá habitar entre
eles, no topo de uma montanha elevada que será seu trono: eles ficarão unidos a
Deus, vivendo em sua luz.38

Em outro trecho do I Enoque, que abrange os capítulos 85-90 e é conhecido


como o “Apocalipse animal”, o tema da degeneração e da regeneração é
apresentado como algo concernente a toda a humanidade. Ali as várias nações
são simbolizadas por animais — as primeiras gerações de seres humanos como
touros e vacas, os israelitas como ovelhas, os inimigos de Israel em diferentes
períodos históricos como várias espécies de animais selvagens que costumam
atacar e devorar as ovelhas, os macabeus como vigorosos carneiros que
enfrentam os animais selvagens e os destroem.

Os anjos decaídos também aparecem ali, assim como outros anjos maléficos
— os anjos da guarda das nações pagãs e hostis. No Juízo Final, iminente para o
autor, estes últimos serão lançados no abismo flamejante, juntamente com todos
os povos que alguma vez oprimiram Israel. E o resto da humanidade será
submetido a um processo de regeneração. As nações pagãs ficarão tão
assombradas com a revelação do poder do único Deus verdadeiro que acabarão
por se converter. Em seguida. Deus substituirá a Jerusalém existente pela nova
Jerusalém. O Templo existente também será substituído por um novo Templo,
maior, mais alto, decorado de maneira mais esplêndida — e todas as nações
acorrerão a ele. E Deus aceitará a todas com alegria.
Uma profunda transformação tem início. As primeiras gerações da
humanidade eram apropriadamente representadas por touros e vacas. Foi
somente após a intervenção dos anjos decaídos que os vários povos puderam ser
representados, tal como convinha, por criaturas como leões, tigres, lobos, cães,
hienas, ursos selvagens, raposas, texugos, porcos, falcões, abutres, milhafres,
águias, corvos — muitos deles ferozes e perigosos para o homem, todos impuros
pelos padrões judaicos e, certamente, todos inferiores aos touros e vacas
originais. Também as ovelhas são inferiores: na narrativa alegórica, em geral são
mostradas como meras vítimas dos animais selvagens, sempre se lamentando,
incapazes de se proteger. Até mesmo o carneiro — Judas Macabeu —, que se
sobressai no meio delas e usa os chifres com tanta eficácia, é obviamente uma
criatura inferior a um touro. Porém, tudo isso irá mudar quando Deus tiver
estabelecido seu reino na terra.

Primeiro irá nascer um único touro branco, com chifres tão grandes que
todos os animais o temerão. Mas em seguida os próprios animais sofrerão
mudanças: “E enquanto eu observava todas as espécies eram transformadas, e
todas se tornaram touros brancos; e o primeiro dentre eles era um touro bravo, e
esse touro era um animal enorme e tinha chifres negros em sua cabeça”.39 Deus
se rejubila por essas novas criaturas — e com razão. A degeneração ocorrida
desde a queda dos anjos é revertida, restaura-se a grandeza das primeiras
gerações após a criação. Na verdade, essa grandeza é ampliada. Pois, se Adão
era representado simplesmente por um touro branco, o touro bravo com chifres
excepcionalmente grandes representa sem dúvida um novo Adão, mais glorioso
que o primeiro — talvez um personagem messiânico. E, de novo, no início havia
apenas poucos seres humanos no mundo, mas nessa época futura e derradeira
haverá multidões, e cada indivíduo será tão louvável quanto aqueles poucos
seres humanos originais.

Mas essas pessoas felizes não serão imortais, nem se contarão entre elas os
mortos virtuosos. Nas poucas vezes em que estes são mencionados no I Enoque
e no Livro dos Jubileus, parecem destinados a uma existência bem-aventurada
como almas incorpóreas — uma noção tão pouco judaica que os estudiosos
costumam atribuí-la a influências gregas. O que estas obras sem dúvida
prometem com mais ênfase é que uma geração após outra, sucedendo-se
interminavelmente, irá desfrutar de uma vida pacífica, sadia e longa, vivida em
perfeita comunhão com Deus, em um mundo do qual todo agente do caos,
humano ou sobrenatural, terá sido eliminado.

Capítulo 5

Os autores do Livro de Daniel e do I Enoque sem dúvida se consideram


homens escolhidos por Deus, dotados de uma sabedoria inacessível aos mortais
comuns, os únicos a compreender o passado e prever o futuro.

Também estavam convencidos de que esse futuro lhes reservava um lugar


extraordinariamente glorioso. No entanto, não há nenhum indício convincente de
que fossem sectários, no sentido de pertencerem a um grupo identificável. Na
verdade, sabe-se da existência de apenas duas seitas apocalípticas no período
entre 200 a.C. e 100 d.C.: a seita de Qumran e os cristãos primitivos.

Muito se conhece da seita que produziu os “Manuscritos do mar Morto”


encontrados em Qumran, no deserto de Judá, entre 1947 e 1956.40 Na opinião da
maioria dos estudiosos, era idêntica à seita dos essênios descrita pelos autores
judeus Flávio Josefo e Filo de Alexandria e mencionada de passagem pelo
romano Plínio, o Antigo. Provavelmente surgiu no início do século II a.C.,
durante a crise desencadeada por Antíoco, e terminou em 68 d.C., durante a
primeira guerra judaica contra Roma. Parte de seus membros, homens e
mulheres, vivia uma existência laica no interior da sociedade palestina. Outra
parte, de membros empenhados em uma observância mais estrita, e
provavelmente todos do sexo masculino, formou a comunidade de Qumran entre
150 e 140 a.C. Em termos numéricos a seita era insignificante: estimou-se, a
partir de indícios arqueológicos, que em nenhum período a população de
Qumran excedeu um total de duzentos membros; e acredita-se que o número
total de essênios tenha sido de cerca de 4 mil. Por outro lado, essas pessoas eram
todas membros voluntários e comprometidos da seita: uma pessoa se tornava
essênia não por causa de seu nascimento (tal como um judeu), mas em virtude de
uma escolha madura e pessoal.

A seita era exclusivista ao extremo e extraordinariamente autoconfiante. A


despeito de seu tamanho, considerava-se o verdadeiro Israel, o único portador da
tradição religiosa autêntica. Seu fundador — um sacerdote mencionado apenas
como “o Mestre da Retidão” — fora enviado para firmar um “novo pacto”, uma
forma nova e definitiva da eterna aliança entre Deus e o povo de Israel. E esse
pacto existia em benefício dos membros da seita, e apenas deles. Se, por um
lado, os membros eram encorajados pelos líderes espirituais a ter sempre em
mente o quanto eram frágeis e indignos, o quanto dependiam da ajuda e do apoio
de Deus, por outro lado garantiam-lhes que sua fidelidade ao novo pacto seria
maravilhosamente recompensada. Já na vida presente, seriam exaltados a uma
“eterna altura” e unidos aos anjos no céu: Deus havia “reunido a assembléia
deles aos Filhos do Céu”.41

A fraternidade de Qumran adotava um modo de vida extremamente


peculiar. O objetivo desses “homens de perfeita santidade”, como chamavam a si
mesmos, era “buscar a Deus com todo o coração e toda a alma”. Isto significava,
evidentemente, que deviam observar cada um dos 613 mandamentos positivos e
negativos da Lei. Mas isto não bastava. Tal como no caso dos monges cristãos
de épocas posteriores, era exigido que se dedicassem por completo à
comunidade — fazendo as refeições em comum, orando em comum e tendo
todas as posses em comum. A estrutura da comunidade era hierárquica. Os
sacerdotes vinham em primeiro lugar, e o principal deles era o Guardião ou
Mestre: cabia a ele ensinar à comunidade não só como viver, mas também no
que acreditar.

A instrução doutrinária era essencial, pois Deus havia revelado ao Mestre da


Retidão um conhecimento tão esotérico que até então só fora desfrutado pelos
anjos:
Meus olhos contemplaram aquilo que é eterno, a sabedoria oculta aos homens, o
conhecimento e os sábios desígnios [escondidos] dos filhos dos homens; uma fonte de retidão
e um reservatório de força, uma nascente de glória [escondida] da assembléia da carne. Deus
deu tudo isso aos Seus eleitos como uma posse para sempre, e fez com que herdassem o
destino dos Santos.42

No âmago da “sabedoria oculta aos homens” estava a convicção de que


todas as coisas no céu e na terra estão ordenadas de acordo com “os mistérios de
Deus”. Implícita no termo raz, “mistério” — que também se encontra em Daniel
—, está a concepção de que tudo o que existe, já existiu ou irá existir deve-se ao
fato de que, no início, o Deus da Sabedoria estabeleceu sua forma e seu destino.
Isto vale tanto para os seres humanos como para os anjos; o curso da história e as
vicissitudes da hoste celestial estão todos determinados perante Deus: todas as
coisas devem seguir o curso designado e cumprir suas tarefas. O funcionamento
do universo não é menos predeterminado: as estrelas devem seguir a órbita
prescrita, a neve e o granizo devem realizar os objetivos indicados. Trata-se, em
essência, da visão de mundo do I Enoque e do Livro dos Jubileus.
A “sabedoria oculta aos homens” incluía os conhecimentos referentes ao
calendário. Todo ato ritualístico precisava ser realizado não só da maneira
correta, mas também no momento certo. Conforme determinado na Regra da
Comunidade, os membros da seita não deviam “se afastar de nenhum
mandamento de Deus a respeito de seus momentos designados; eles não se
adiantarão nem se atrasarão em relação a seus momentos designados”.43 Esta era
uma exigência não só de pontualidade na realização das duas orações diárias, na
aurora e no crepúsculo, mas também de uma observância estrita do calendário
litúrgico da seita. Nos manuscritos, há muitos indícios de que este se baseava no
mesmo calendário solar descrito no I Enoque e no Livro dos Jubileus. Somente
ao se manter em harmonia com “as leis da Grande Luminária do céu”44 — que
também eram as leis de Deus —, a liturgia poderia corresponder àquela liturgia
entoada pelos coros angélicos no templo celestial.

Igualmente importante era a doutrina dos “dois espíritos”, cujo relato mais
claro se encontra na Regra da Comunidade:
[O Deus da Sabedoria] criou o homem para governar o mundo, e conferiu-lhe dois espíritos,
pelos quais ele deveria viver até o momento de Sua visitação: os espíritos da verdade e da
falsidade.

Aqueles nascidos da verdade emergem de uma fonte de luz, mas os nascidos da falsidade
emergem de uma fonte de trevas. Todos os filhos da retidão são governados pelo Príncipe da
Luz e andam pelos caminhos da luz, mas todos os filhos da falsidade são governados pelo Anjo
das Trevas e andam pelos caminhos da escuridão.

O Anjo das Trevas leva todos os filhos da retidão a se desencaminharem, e até o seu final,
todos os pecados, iniqüidades, perversidades e atos ilegítimos destes são ocasionados por seu
domínio de acordo com os mistérios de Deus [...]

Mas o Deus de Israel e Seu Anjo da Verdade irão socorrer todos os filhos da luz. Pois é Ele o
criador dos espíritos da Luz e das Trevas e fundamentou toda ação neles e estabeleceu todos
os atos [sobre] os caminhos deles.

E ele ama um deles para todo o sempre e se rejubila em suas obras para todo o sempre; mas o
conselho do outro ele abomina e odeia seus caminhos para todo o sempre.45

Os “filhos da luz”, “aqueles nascidos da verdade”, eram evidentemente os


membros da seita. Era no coração deles que o Príncipe da Luz havia triunfado
sobre o Anjo das Trevas, e supunha-se que os frutos dessa vitória fossem
virtudes como a humildade, a paciência e a bondade. Aqueles em cujo coração
reinava o Anjo das Trevas tinham como características o orgulho, a soberba, a
impiedade — qualidades facilmente reconhecidas nos grandes deste mundo.

No início, os “filhos das trevas”, “aqueles nascidos da falsidade”, eram


identificados com os sacerdotes de Jerusalém, sendo o sumo sacerdote a suprema
personificação do mal. Durante muitos séculos — na verdade, desde a época de
Salomão e de seu sumo sacerdote Zadoque —, a família zadoquita havia
monopolizado a função de liderança dos sacerdotes, mas, durante a crise
helenística do início do século II a.C., perdeu esse monopólio. Aos olhos dos
judeus tradicionalistas, os asmoneus que sucederam os zadoquitas não passavam
de usurpadores. O indivíduo que a chamada “Regra de Damasco” identifica
como “o sacerdote perverso”, “o mentiroso”, “o declamador” era sem dúvida um
dos sacerdotes asmoneus — provavelmente o primeiro deles, Jônatas. Foi em
protesto contra a usurpação que a seita decidiu refugiar-se em um “local de
exílio”, estabelecendo a colônia junto ao mar Morto. E alguns dos essênios
sempre insistiram que, enquanto o Templo permanecesse nas mãos dos
asmoneus, eles não participariam de seus ritos: Deus seria adorado
verdadeiramente apenas pela própria seita, onde esta estivesse.

Mais tarde, no manuscrito conhecido como “Regra da guerra”, as denúncias


mais veementes são dirigidas contra os romanos — chamados ali pelo nome
tradicionalmente empregado pelos autores judaicos para designar a maior
potência mundial existente: Kittim. Os romanos, que governaram diretamente a
Judéia a partir de 6 d.C. (com exceção de um interlúdio de três anos), eram em
geral odiados pelos judeus. Quando a corrupção e a inépcia dos procuradores de
Roma resultaram em guerra, eles encontraram uma tal intransigência entre os
sectários de Qumran que, no verão de 68, destruíram a colônia e massacraram
seus ocupantes. Supondo-se que a seita de Qumran seja na verdade essênia, vale
a pena citar o relato que Flávio Josefo fez da conduta dos essênios quando
torturados por seus derradeiros inimigos:
A guerra contra os romanos submeteu suas almas a terríveis provações de todos os tipos.
Estirados e torcidos na roda, queimados e quebrados, e obrigados a passar por todos os
instrumentos de tortura de maneira a induzi-los a blasfemar contra seu legislador ou a ingerir
algum alimento proibido, recusaram submeter-se a todas as exigências, e nenhum deles jamais
se humilhou perante seus perseguidores ou derramou uma lágrima. Sorrindo em meio à
agonia, e zombando suavemente de seus tormentadores, eles alegremente entregaram suas
almas, confiantes de que as receberiam de volta.46


O que proporcionava força tão extraordinária a esses homens era a interpretação que faziam da
profecia bíblica. Assim como os autores dos apocalipses, estavam convencidos de que somente eles haviam
entendido o que fora proclamado pelos profetas, algo cujo efetivo significado escapara até mesmo a estes.
Graças à inspiração divina, o Mestre da Retidão fora capaz de apreender e expor a verdadeira importância
dos ensinamentos de Isaías, de Oséias e dos outros. Deus lhe informara “quando os tempos chegariam ao
fim” e o que aconteceria então aos piedosos e aos ímpios. Como costuma ocorrer em tais grupos, o valor
que a comunidade de Qumran atribuía à humildade e à paciência não a impediu de entreter fantasias de
natureza bem diversa. Todos os que se haviam rebelado contra Deus estavam prestes a ser aniquilados, a
“Casa de Judá” (isto é, a própria seita) estava na iminência de triunfar de uma vez por todas, os mortos
piedosos seriam ressuscitados a fim de partilhar desta glória — tudo isso encontrava-se nos conhecimentos
secretos que o Mestre havia decodificado da profecia bíblica e transmitido a seus discípulos, os sábios da
comunidade. E foi este conhecimento que, nas horas de provação, permitiu aos membros da seita não
apenas aceitar o martírio, mas também rejubilar-se com ele.

O Mestre da Retidão e os sábios que o seguiam sempre haviam aguardado uma conflagração final,
quando um papel decisivo estaria reservado à seita. Sob o comando do “Príncipe da Congregação”, os
“filhos da luz” atacariam o “exército de Satã” — primeiro os judeus incrédulos e seus aliados entre as
nações vizinhas, em seguida os romanos que ocupavam a terra. Depois, seguiriam até Jerusalém e
restaurariam o culto correto no Templo. A partir dessa base, travariam uma guerra contra vários povos do
Oriente Próximo. À vitória sobre eles se seguiria a vitória sobre os romanos. Com todos os exércitos de
Beliar completamente derrotados, os “filhos da luz” iriam celebrar seu “herói”, o próprio Deus. O hino com
que fariam isto lembra a profecia subseqüente ao exílio:

Eleve-se, ó Herói! [...] Castigue as nações, Tuas adversárias, e devore a carne com Tua
espada! Cubra Tua terra de glória, e Tua herança de bênçãos! Que haja multidão de gado em
Teus campos, e, em Teus palácios, prata e ouro e pedras preciosas! Ó Sião, rejubile-se à
larga! Rejubilem-se, cidades de Judá! Mantenham sempre abertos seus portões para que sejam
trazidas as hostes das nações! Os reis delas O servirão e todos os seus opressores se
prostrarão perante Ti; eles irão beijar o pó de Teus pés. Gritem de alegria, ó filhas do meu
povo! Enfeitem-se com jóias gloriosas e predominem sobre os reinos das nações! A soberania
estará com o Senhor e o domínio eterno com Israel.47


Essa guerra na terra não duraria menos de quarenta anos, com interlúdios sabáticos a cada sete anos
— e, como em Daniel, ela teria uma dimensão cósmica, uma contrapartida celeste. Os exércitos angélicos
sob o comando do padroeiro de Israel, o anjo Miguel — ali chamado também Príncipe da Luz e
Melquisedeque (“meu rei é retidão”) —, enfrentariam as forças demoníacas lideradas por Beliar, também
chamado Melquiresha (“meu rei é impiedade”). Os dois exércitos estariam tão equilibrados que as hostes
angélicas alcançariam a vitória três vezes, o mesmo ocorrendo com as hostes demoníacas. No final, o
próprio Deus iria intervir de modo a aniquilar todo o mal.48 Ou, segundo outra versão, haveria um Juízo
Final, quando Miguel/Melquisedeque recompensaria os “santos de Deus” e executaria a vingança contra
Satã e seus asseclas.49

A seita esperava que sua vitória final fosse seguida de imediato pela era messiânica. Em alguns
manuscritos, o “Príncipe da Congregação” é identificado como o messias davídico: ele governará Israel
como rei, sob a orientação de um messias-sacerdote, “intérprete da Lei”, “que irá ensinar a retidão no final
dos dias”.50 Isto era um pouco mais que uma projeção no futuro das instituições já existentes na seita. De
qualquer modo, a era messiânica não é a derradeira: há alusões a uma transformação mais fundamental, por
vezes chamada de “Renovação”.’1 Quando esta ocorrer, os pecadores serão lançados em “tormento eterno e
incessante desgraça [...] no fogo das regiões sombrias”.52 Os justos, por outro lado, serão recompensados
com “bálsamos, muita paz em uma vida longa, e fecundidade, juntamente com eterna bem-aventurança e
eterna alegria na vida sem fim, uma coroa de glória e uma vestimenta de majestade em luz incessante”.53

Não há aqui nenhuma sugestão — não mais do que no Livro de Daniel — de que os justos irão viver
como almas imateriais em um domínio imaterial: as coroas de alegria e as vestimentas de majestade serão
conferidas a corpos, os quais em seguida se tomarão (como em Daniel) radiantes e parecidos com os dos
anjos. E em trechos confirma-se — o que, de qualquer modo, deveríamos ter suposto — que os mortos
piedosos serão ressuscitados a fim de participar de um estado de glória eterno e derradeiro: “Ice uma
bandeira, ó tu que jaz no pó! Ó corpos roídos pelos vermes, ergam um estandarte [...]!”54 A vida em
companhia dos anjos, já desfrutada na vida presente,55 será o destino eterno de todos os justos.

Tal era a visão de mundo da comunidade de Qumran. Muito dela lembra aquelas obras tão apreciadas
pela comunidade: o Livro de Daniel, o I Enoque, o Livro dos Jubileus. Em seu dualismo radical, por outro
lado, lembra um outro corpo de ensinamentos. Os dois espíritos em guerra, atuando tanto no mundo como
no coração de cada ser humano; a batalha escatológica entre o príncipe da luz e o das trevas, com a vitória
alternando-se entre ambos; a intervenção final de Deus a fim de aniquilar as forças do mal; a “Renovação”
que inaugura, para os eleitos, uma eternidade de bem-aventurança numa terra purificada — tudo isso é
estranhamente familiar, mais do que tudo o que se encontra nos apocalipses, às expectativas propostas e
difundidas pelo zoroastrismo, sobretudo em sua versão zurvanita.56

Coincidência ou influência? Ainda retornaremos a essa questão.


11 - A SEITA DE JESUS

Capítulo 1

Embora ao longo dos séculos os judeus se mantivessem unidos em torno da devoção a Yahweh e da
aceitação das obrigações inscritas na Torá, sua união limitava-se a isto. Até a queda de Jerusalém em 70
d.C. e o subseqíiente conselho em Yavneh, não havia ortodoxia judaica: o judaísmo incluía inúmeros
grupos e seitas. Os cristãos formavam uma delas, assim como os saduceus, os fariseus, os essênios, os
“zelotes” (combatentes da resistência) e outros menos conhecidos. Os cristãos, incluindo os gentios
convertidos, consideravam-se judeus, e, até uma data bem avançada no século II d.C., outros judeus também
consideravam os cristãos como judeus, embora com estranhas crenças a respeito do profeta Jesus de
Nazaré.1

Quase tudo o que sabemos a respeito de Jesus e de seus primeiros seguidores vem das obras em grego
de autores desconhecidos que adotaram os nomes de Mateus, Marcos e Lucas, e que conhecemos como
evangelhos sinóticos. O evangelho mais antigo, o de Marcos, provavelmente foi composto por volta de 70
d.C., mas textos mais antigos encontram-se incrustrados em Mateus e Lucas. Esse material, desconhecido
para Marcos e em geral atribuído a uma fonte perdida conhecida como Q, foi composto provavelmente por
volta de 50 d.C.

Considera-se que Marcos e Q refletem as crenças e as expectativas de carismáticos que, a exemplo de


Jesus e dos discípulos originais, vagavam de uma aldeia a outra na Síria-Palestina, fundando comunidades
de conversos à medida que seguiam adiante.2 Ambas as fontes baseiam-se em tradições que remontam à
época do próprio Jesus. O Jesus que elas retratam é, primeiro e antes de tudo, um arauto do reino de Deus.
Trata-se de um homem obsedado com a chegada do reino e a eliminação das forças que se opõem a ele.3

Mas, para Jesus, o que significavam o reino e sua vinda? Achava ele que se tratava de um processo
gradual de aperfeiçoamento ético, estendendo-se até um futuro remoto? Ou seria algo presente aqui e agora,
algo a que os indivíduos teriam acesso se o quisessem? Seria um sentimento de companheirismo do
indivíduo para com Deus? Todas essas concepções já foram defendidas, com muita erudição e convicção,
por estudiosos respeitáveis. No entanto, outros estudiosos propuseram interpretações que, por mais
divergentes em pontos específicos, têm em comum o pleno reconhecimento do contexto histórico em que
Jesus viveu, pensou e ensinou.4 Eles sustentam que Jesus esperava uma completa transformação do mundo
no futuro muito próximo. Essa interpretação — que encontra firme apoio tanto em Marcos como em Q —
será adotada aqui.


Capítulo 2

Por que motivo o reino de Deus estaria no futuro? Por que não esteve sempre presente? A resposta de
Marcos é bastante clara, embora muitos cristãos atuais a considerem difícil de aceitar. Vários sectários
judeus, tais como a comunidade de Qumran e o autor do Livro dos Jubileus, pregavam que um ser
sobrenatural de força aterrorizante atuava no mundo, lutando sem cessar para frustrar as intenções de Deus
— e continuaria a agir assim até que no fim dos tempos fosse derrubado e destruído.5 Marcos apresenta
Jesus e seus discípulos como profundamente imbuídos da mesma convicção: no centro da visão de mundo
deles também havia um dualismo escatológico.

No início mesmo de seu ministério, após ser batizado por João, Jesus recebe a visita do Espírito, que
de imediato o leva ao deserto, onde por quarenta dias seria tentado por Belial (ou Satã). Na tradição judaica,
a tentação não era considerada sedução, mas uma prova de força: Jesus trava um combate com Satã — um
Satã tão poderoso que domina todos os reinos do mundo. E o cenário da luta, ou combate, é significativo: “e
[Jesus] vivia entre as feras, e os anjos o serviam’’. São imagens muito familiares da Bíblia: uma vez que,
segundo o Gênesis, Adão vivera em paz entre os animais selvagens no Jardim do Éden, do mesmo modo,
segundo Isaías, na era vindoura todas as espécies animais viverão em paz umas com as outras e com os
seres humanos. Agora que Satã está sendo derrotado, o paraíso está sendo reconquistado — e, se os anjos
estão a serviço de um ser humano, isto significa que está sendo restaurada a comunhão entre Deus e a
humanidade.6

Nas versões anteriores do mito do combate, as forças do caos que o herói — Marduk ou Ba’al —
enfrentava e derrotava eram simbolizadas pelo mar tempestuoso. Haveria talvez algum eco disso nas
histórias de como Jesus repreendeu e acalmou as águas inquietas do lago de Genesaré, caminhando então
sobre elas? De modo mais certo, Jesus luta com Belial por meio de exorcismos.7 Nos territórios
setentrionais, os “homens de Deus’’ sempre haviam sido creditados com poderes curativos: já no século IX
a.C, Elias e Eliseu eram curandeiros famosos. Mas os poderes atribuídos a Jesus (também oriundo do norte)
tinham um significado novo e mais profundo. Acreditava-se em geral que tanto as doenças físicas quanto as
mentais eram manifestações do poder de Satã. A enfermidade física era o modo como Deus punia o pecado
— era Satã, porém, quem levava os seres humanos a pecar. Quanto às desordens mentais, estas deviam-se à
possessão demoníaca — e, claro, os demônios eram auxiliares de Satã.

Deus havia dado a Jesus poder sobre os demônios, como eles próprios reconheceram ao exclamar:
“Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para arruinar-nos?”.8 E como os demônios pertenciam às
hostes satânicas, cada exorcismo de um deles era visto como um ataque bem-sucedido aos domínios de
Satã. É desta maneira que, nos evangelhos, Jesus justifica seus exorcismos perante aqueles que os criticam:
nos debates com os oponentes, deixa claro que considerava esses atos como parte de uma enorme luta,
travada por ele e seus seguidores em nome de Deus, com a ajuda de Deus, contra os inimigos de Deus.9
Chega mesmo a se comparar com um ladrão que entra na casa de um homem forte, amarra-o e rouba seus
pertences — o homem forte sendo, evidentemente, Satã.10

O mesmo significado é atribuído à atividade de Jesus e seus discípulos enquanto pregadores. Quando
Jesus ordena a seus seguidores que preguem a vinda do reino, também os encarrega, ao mesmo tempo e
como parte da mesma missão, de expulsar demônios, curar os enfermos e oferecer o perdão para seus
pecados — três formas de dizer a mesma coisa, pois as palavras que significam “curar”, “expulsar
demônios” e “perdoar os pecados” eram sinônimos intercambiáveis.” O exorcismo, a cura e o anúncio da
chegada do reino eram maneiras de libertar as pessoas do domínio de Satã.

Afastar as pessoas para longe de Satã por meio da pregação, do exorcismo dos demônios e da cura
das enfermidades — tudo isto fazia parte do drama escatológico. Embora os milagres de Jesus tenham sido
por vezes comparados aos feitos dos mágicos helenísticos ou rabínicos, seu significado original era bem
diverso: todos os seus milagres tinham o objetivo de preparar o caminho para a chegada do reino — na
verdade, eram sinais da iminência do reino. Quando os discípulos retomam da missão, exultando com o
êxito, seu relato faz com que Jesus evoque uma visão: ele vê Satã cair tal como o raio cai do céu.12 O
sentido é bastante claro: Satã, antes senhor de todos os reinos da terra, está perdendo o poder, seu domínio
chega ao fim, sua mina é certa.

Não que o reino de Satã vá terminar de modo pacífico, cedendo pouco a pouco ao reino de Deus.
Antes que o cosmos possa se tornar perfeito, as forças do caos se enfurecerão como nunca antes. Os escritos
apocalípticos haviam previsto exaustivamente um período de terríveis tribulações que precederia a era final
de redenção: a guerra do quarto animal contra o povo de Deus, em Daniel, é um exemplo. O chamado
“apocalipse de Marcos” conta como as guerras e os rumores de guerras, terremotos e fomes, perseguições e
fugas, escurecimentos do sol e da lua e perturbações das estrelas irão inaugurar a grande consumação13 —
e, mesmo se esta profecia específica foi elaborada pela Igreja primitiva, o temor que exprime pode muito
bem ter sido partilhado por Jesus. O texto do pai-nosso indica a mesma coisa, pois originalmente a frase
“não nos deixe cair em tentação” ou “não nos imponha tal provação” referia-se às adversidades planejadas
por Satã como último e desesperado estratagema para subverter os fiéis e preservar seu poder no mundo.14
É por isso que, na versão de Mateus, tal apelo é reforçado por outro: “Livra-nos do Maligno”, isto é, de
Satã. Como iremos ver, o Livro do Apocalipse tem muito a dizer sobre isto.

O reino viria quando Deus o desejasse, seu advento seria a irrupção na história de uma força divina
destruidora e transformadora. Mas os seres humanos poderiam preparar o caminho, o número dos que
seriam eleitos para participar do reino poderia ser ampliado. Jesus e seus discípulos são apresentados como
homens que buscam tal objetivo.


Capítulo 3

No reino vindouro, a intenção original de Deus, não mais frustrada por Beliar-Satã, seria plenamente
realizada.

Jesus partilhava a visão do mundo corrente na época. Havia a terra com seus habitantes humanos,
havia o céu com suas hostes angélicas — e os dois não apenas estavam relacionados, como deviam se
corresponder com exatidão. É isto o que estava para ocorrer: Deus, em manifestação suprema de sua
autoridade soberana, estava prestes a restaurar a ordem que havia originalmente determinado para o céu e a
terra, mas que até então vigorara apenas no céu. “Venha o teu Reino, seja feita a tua Vontade na terra como
no céu” — vistas em tal contexto, as palavras adquirem novo sentido. Elas se referem a uma restauração na
terra do que havia estado ali no início. O Jardim do Éden havia sido efetivamente o céu na terra. Agora esta
perfeição primordial estava prestes a ser recriada — em escala gigantesca, envolvendo multidões e não
apenas Adão e Eva, e desta vez de maneira irreversível.

Entre os seres humanos e Deus seria estabelecido um novo relacionamento, no qual a confiança e a
submissão filial teriam como resposta um ilimitado amor paterno. E esse amor se manifestaria como
transformação da condição humana. Todas as bênçãos antecipadas pelos profetas seriam concedidas. Em
Isaías, está dito que “Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se desobstruirão”.15 Para
Jesus, isto só podia significar que o poder exercido por Satã e seus demônios sobre os seres humanos seria
rompido — e isto já estava acontecendo. Nas palavras de Mateus: “De sorte que as multidões ficaram
espantadas ao ver os mudos falando, os aleijados sãos, os coxos andando e os cegos a ver. E renderam
glória ao Deus de Israel”.16

Também não haveria mais fome. Aqui o Livro de Isaías novamente apontava o caminho: “Yahweh
dos Exércitos prepara para todos os povos, sobre esta montanha, um banquete de carnes gordas, um
banquete de vinhos finos, de carnes suculentas, de vinhos depurados”.17

As vezes, Jesus também compara o reino a um banquete, e parece que não se tratava de mera
comparação, pois na Ultima Ceia relata-se que ele disse: “Em verdade vos digo, já não beberei do fruto da
videira até aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus”.18 Isto não implica necessariamente
que Jesus esperava retomar do reino dos mortos — de acordo com estas palavras, poderia muito bem estar
esperando que os dias seguintes trouxessem não a sua morte, mas o próprio reino. E há ainda a história da
figueira que Jesus supostamente teria amaldiçoado por não dar figos quando ele os queria, embora não fosse
a estação adequada: já se argumentou de maneira plausível que na verdade Jesus clamava pelo advento do
reino, quando a maldição primordial sobre a terra seria anulada e a natureza produziria seus frutos com
incessante abundância.19

Seja como for que interpretemos essas passagens, não há dúvida de que alguns dos primeiros cristãos
esperavam de fato por uma era de fertilidade e fartura ilimitadas. Um eco dessas expectativas encontra-se
preservado nos escritos do “Padre Apostólico” Papias, compostos por volta de 110 d.C.20 Erudito e bispo de
Hierópolis, na Frigia, Papias era um judeu cristão que partilhava a perspectiva dos judeus cristãos que
haviam fugido da Palestina para a Ásia Menor após a catástrofe de 70 d.C. Dedicou-se a preservar os relatos
dos ensinamentos de Jesus que estavam em circulação — e eis o que acredita que Jesus vaticinara a respeito
do milênio que se seguiria ao seu retomo à terra:
Virão os dias nos quais as videiras florescerão, tendo cada uma dez mil brotos, e em cada
broto dez mil galhos, e em cada galho verdadeiro dez mil ramos, e em cada ramo dez mil
cachos, e em cada cacho dez mil uvas, e cada uva produzirá vinte e cinco medidas de vinho. E
quando qualquer um dos Santos tocar em um cacho, outro cacho irá exclamar: “Eu sou um
cacho melhor, colha a mim; peça a bênção do Senhor por meu intermédio”. Do mesmo modo,
[o Senhor] disse que um grão de trigo produziria dez mil espigas, e cada espiga teria dez mil
grãos, e cada grão daria dez libras da mais fina farinha, alva e pura; e as maçãs, as sementes,
a relva produziriam com a mesma abundância; e todos os animais, alimentando-se apenas do
que receberam da terra, se tomariam pacíficos e amistosos uns com os outros, e
completamente submissos ao homem. Ora, essas coisas são aceitas pelos crentes. E Judas,
sendo um traidor incrédulo, perguntou: “Como todo esse crescimento será criado pelo
Senhor?”. Mas o Senhor respondeu-lhe: “Aqueles que estiverem vivos nesse tempo, esses
verão”.21


Tais expectativas eram tradicionais. Sancionadas por grande parte das profecias posteriores ao exílio,
encontraram um lugar também nos apocalipses judaicos: aquele conhecido como II Baruc, composto por
volta de 100 d.C, contém uma profecia muito semelhante à encontrada em Papias.22 Ainda no final do
século II, Irineu, bispo de Lyon e respeitado teólogo, costumava citar Papias ao lado de trechos das
Escrituras, insistindo até que a ortodoxia impunha acreditar que tais coisas iriam ocorrer.2 Que o próprio
Jesus tivesse partilhado essas mesmas expectativas deve ter parecido evidente.

Como é dito nos evangelhos, Jesus esperava que os habitantes do reino fossem muito diferentes dos
mortais comuns. Seu comentário sobre João Batista aponta nessa direção: ninguém maior do que João havia
nascido de mulher e, no entanto, o menor dos habitantes do reino seria maior do que ele.24 Em outro
momento, Jesus deixa claro que considera João Batista a reencarnação de Elias — aquele profeta máximo
cujo retomo à terra era aguardado, conforme a tradição, como anúncio do advento do reino. Assim, se João
é inferior aos habitantes do futuro reino, estes terão se tornado algo mais do que aqueles “nascidos de
mulher”.

A sugestão pode ser explorada. De novo lembramos a frase do pai-nosso, “na terra como no céu”.
Com o advento do reino, o estado desse mundo irá refletir o que sempre existiu no céu. Talvez, então, o céu
e a terra se fundam e todos os habitantes desse domínio único se tornem gloriosos? Por vezes Jesus parece
sugerir exatamente isto: no reino, diz ele, homens e mulheres serão “como os anjos nos céus” e não se
casarão. Em outra parte relata-se que, segundo suas palavras, no reino os justos brilharão “como o sol”.25

Paulo sem dúvida esperava um reino puramente espiritual, “no ar”. Mas o próprio Jesus parece, em
vez disso, ter esperado por uma terra transformada. Se for assim, estava sendo fiel a uma tradição que
remontava a apocalipses como o I Enoque e o Segundo Isaías. Tampouco — ao contrário de opinião muito
difundida — foi esta tradição rejeitada de imediato pelo cristianismo: nem todo mundo concordou com
Paulo. O mais eminente dos Padres, santo Agostinho, diz o seguinte na Cidade de Deus, escrita entre 413 e
427 d.C:

[...] este céu e esta terra cessarão de existir e um novo mundo terá início. Mas o antigo não
será consumido por completo; apenas passará por uma mudança universal [...] Então (como
disse) as qualidades corruptíveis do mundo serão calcinadas e todas aquelas que têm
correspondência com nossa corrupção serão tornadas adequadas para a imortalidade, de
modo que o mundo, sendo assim substancialmente renovado, possa se adaptar adequadamente
aos homens cuja substância também foi renovada.26


Um decreto divino pelo qual os seres humanos eram resgatados da tirania dos demônios, aliviados do
fardo do pecado, aliviados também daquelas desordens físicas e mentais que eram o sinal externo do pecado
e da possessão demoníaca, e passavam a habitar uma terra infinitamente fértil e incorruptível, dotados de
corpos imortais, etemamente jovens e gloriosos, acima de tudo reconciliados com um deus-pai amoroso e
clemente — isto, aparentemente, é o que muitos cristãos primitivos consideraram que Jesus havia
prometido.

Mas ele o havia feito apenas para uma minoria.


Capítulo 4

A Galiléia em que Jesus pregou era uma terra fértil, cultivada por lavradores prósperos. Porém,
mesmo na Galiléia havia desprivilegiados e excluídos — e foi com eles que Jesus se preocupou. Eles não
precisavam ter nenhum mérito, nem ser piedosos: bastava, em geral, o fato de serem marginalizados. Os
fisicamente enfermos e os mentalmente perturbados; aqueles que exerciam ofícios desprezados, tais como
coleta de impostos e prostituição; os pobres e os ignorantes; as mulheres e as crianças, que em geral não
contavam para nada — todos esses tinham prioridade nos relacionamentos pessoais de Jesus.

Havia também as pessoas a quem de preferência Jesus dirigia sua proclamação. Quando resume as
curas miraculosas que realizara como preparativo para o advento do reino, ele o faz em palavras que
associam três passagens de Isaías — e duas delas referem-se especificamente à redenção vindoura dos
pequenos, humildes, miseráveis, cativos, prisioneiros. Em seguida, como indício adicional da consumação
iminente, acrescenta: “Aos pobres é anunciado o Evangelho [a Boa Nova]”.27 E, de fato, para eles tratava-se
de uma boa notícia, pois eram os mais qualificados para entrar no reino: “Muitos dos primeiros serão
últimos, e muitos dos últimos, primeiros”.28 As Bem-Aventuranças apontam na mesma direção: “Bem-
aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome,
porque sereis saciados”.29

O reino também estará aberto a todos que cuidarem dos pobres — alimentando os famintos, saciando
os sedentos, vestindo os desnudos, ajudando os enfermos e os prisioneiros.30 “Vai, vende o que tens, dá aos
pobres e terás um tesouro no céu”,31 “Quando queres uma festa, chama pobres, estropiados, coxos, cegos
[...] Serás, porém, recompensado na ressurreição dos justos”.32 Jesus não era nenhum reformador social,
muito menos um revolucionário, nem considerava uma pessoa automaticamente excluída do reino apenas
por sua posição social no mundo, mas sem dúvida o reino que ele esperava não era para aqueles que se
agarravam ao próprio poder, prestígio ou riqueza.

Havia outra limitação. Jesus era judeu da cabeça aos pés e, se seus seguidores eram todos judeus, isto
correspondia às convicções que alimentava sobre sua missão: como qualquer profeta antes dele, Jesus
achava que havia sido enviado apenas para Israel.33 Dentre os evangelistas, apenas Lucas mostra Jesus
pregando às vezes tanto para os gentios como para os judeus — e Lucas, que também foi o autor dos Atos
dos Apóstolos, tinha todos os motivos para sugerir que a conversão dos gentios correspondia às intenções
originais de Jesus. Os outros dois evangelhos sinóticos revelam um quadro diferente: segundo eles,
enquanto Jesus viveu, seu ministério e o de seus discípulos restringiu-se ao povo judeu. Na verdade, a julgar
por Marcos, poderíamos pensar que nunca se esperou que a missão dos “doze” se ampliasse para além da
própria região de Jesus, a Galiléia, antes do advento do reino.

Os gentios não eram uma preocupação de Jesus. Se às vezes ele usava seu poder como exorcista em
benefício de algum gentio, tratava-se de um ato de grande condescendência. A história da mulher sírio-
fenícia sem dúvida exemplifica bem esta atitude. A mulher implorou-lhe que expulsasse o demônio que
possuíra sua filha:

Ele dizia: “Deixa que primeiro os filhos se saciem porque não é bom tirar o pão dos filhos e
atirá-lo aos cachorrinhos”. Ela, porém, lhe respondeu: “É verdade. Senhor, mas também os
cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas das crianças!”. E ele disse-lhe: “Pelo que
disseste, vai: o demônio saiu da tua filha”.34

E os gentios que ele imagina afluindo ao novo Templo fazem-no — como no I Enoque — porque
haviam se convertido ao judaísmo. Para as nações, o caminho da redenção implicava necessariamente a
assimilação a um Israel salvo.

Como arauto do reino, Jesus pensava apenas nos judeus. Além disso, ele próprio era um estrito
observante da Lei. A noção muito difundida de que ele substituiu a Lei por uma nova revelação da graça
está baseada nos ditos de são Paulo, o helenista da diáspora. O próprio Jesus disse outra coisa: “É mais fácil
passar céu e terra do que uma só vírgula cair da lei”.35 Se, como parece provável, ele predisse que o Templo
existente seria destruído e substituído por um novo Templo, isto sem dúvida terá atraído a hostilidade da
camada sacerdotal, mas em nenhum sentido significava um cancelamento da Lei: o I Enoque e o Livro dos
Jubileus também predizem essas coisas, e ali elas assinalam o fim dos tempos.36 Os habitantes do reino de
Deus deveriam ser todos judeus estritamente observantes.


Capítulo 5

Por que os discípulos de Jesus imaginavam que ele talvez fosse o Messias? E o próprio Jesus? Será
que se considerava o Messias? Nenhum aspecto de sua vida e de seus ensinamentos foi discutido mais
acaloradamente do que este e nenhuma resposta encontrará aceitação geral.

Por um lado, nada nos evangelhos sugere que em algum momento Jesus tenha alegado ser o Messias
davídico, isto é, um líder militar que iria derrotar os inimigos de Israel, restabelecer a nação como potência
política e empossar a si mesmo como rei. Por outro lado, ele de fato parece ter esperado que, com o advento
do reino, Deus reuniria as tribos dispersas de Israel em um Sião purificado, em torno de um novo Templo.37
Além do mais, a decisão de escolher doze discípulos parece ter se originado de sua expectativa de governar
todas as doze tribos. Sua promessa aos “doze” sem dúvida sugere isto: “Também eu disponho para vós o
Reino, como o meu Pai o dispôs para mim, a fim de que comais e bebais à minha mesa em meu Reino, e
vos senteis em tronos para julgar as doze tribos de Israel”.38 Na verdade, alguns de seus seguidores até
fazem reivindicações para si mesmos no futuro reino — por exemplo, quando perguntam quem será o maior
no reino39 ou quando a mãe dos filhos de Zebedeu pede: “Dize que estes meus dois filhos se assentem um à
tua direita e o outro à tua esquerda, no teu Reino”.40

Talvez a contradição seja mais aparente do que real. “Messias”, afinal de contas, significa apenas “o
Ungido”, não se referindo necessariamente a um monarca davídico.41 Quando Jesus leu a lição na sinagoga
em Nazaré, escolheu o seguinte trecho de Isaías:

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-
me para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a
liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor.42


E acrescentou: “Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura” — tanto ele como
seus ouvintes devem ter se lembrado da ameaça com que prossegue o texto de Isaías: “um dia de vingança
do nosso Deus”.

É provável, portanto, que Jesus se considerasse o Messias dos pobres. E provavelmente esperava que
o domínio romano na Palestina fosse derrubado em um futuro muito próximo, não por um levante armado
mas por intervenção direta de Deus, sendo substituído em seguida por um regime no qual ele próprio
governaria como vice-regente de Deus. Assim, a inscrição zombeteira que os romanos colocaram na cruz
parece ter sido mais apropriada do que em geral se pensa.

No entanto, há algo paradoxal na situação. Não ocorreu nenhuma das mudanças que supostamente
acompanhariam o surgimento do Messias: o reino não veio e Jesus foi executado. Se a seita não
desapareceu, mas, pelo contrário, começou a prosperar, isto se deveu ao desfecho que aparece nos
evangelhos como a ressurreição. Como notou um autor cristão em erudito estudo, a ressurreição não pode
ser verificada pelos métodos da investigação histórica:43 os relatos do aparecimento do Jesus ressurrecto na
Galiléia, em Jerusalém e nas proximidades desta divergem demais para que sejam usados como indícios
históricos de um acontecimento físico. Não há dúvida, porém, de que as histórias de um Jesus ressuscitado
logo começaram a circular e a receber crédito. Foi isto que mudou tudo.

A crença na ressurreição era o próprio núcleo da fé da Igreja primitiva: sem ela, essa Igreja
provavelmente nunca teria chegado a existir e com certeza não teria prosperado tanto. Sobre isso, temos as
evidências de são Paulo, que sem dúvida ouvira mais sobre as aparições do que está registrado nos
evangelhos ou nos atos:

[...] ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze.
Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a maioria dos quais ainda
vive, enquanto alguns já adormeceram. Posteriormente, apareceu a Tiago, e, depois, a todos
os apóstolos. Em último lugar, apareceu também a mim [...] Por conseguinte, tanto eu como
eles, eis o que pregamos. Eis também o que acreditastes. Ora, se se prega que Cristo
ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos
mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não
ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos
falsas testemunhas de Deus [...].44


No início, o Jesus ressurrecto ainda era considerado o Messias que iria redimir o povo judeu. Na
verdade, a ressurreição parecia dar sentido a um destino que, de outro modo, certamente não teria ocorrido
ao Messias. Se Jesus fracassara em realizar durante sua vida a tarefa messiânica, isto queria dizer que seu
messianismo se tomaria efetivo apenas após a morte. Graças a essa interpretação, as expectativas originais
não só sobreviveram à crucificação como foram reforçadas. Lucas não vê nada de incongruente em fazer os
apóstolos dirigirem a Jesus uma derradeira pergunta antes que subisse aos céus: “Senhor, é agora o tempo
em que irás restaurar a realeza em Israel?”.4’ Na realidade, era porque Jesus continuava a ser identificado
com o esperado Messias do judaísmo que, poucos anos após sua morte, o termo “cristão” foi cunhado na
comunidade judeu-cristã de Antióquia, onde se falava grego. Pois Christos é simplesmente o equivalente
grego do semítico “Messias”, com o significado de “o Ungido”.

Porém, o conceito de Messias, aplicado a Jesus, logo começou a se modificar.


Capítulo 6

Tradicionalmente, o Messias fora imaginado como sendo humano. Por volta do século I d.C, contudo,
determinados grupos estavam elaborando o conceito de Messias como um ser sobrenatural e transcendente
— de aparência humana, mas sendo na verdade uma segunda figura divina.

Um relato clássico dessa figura encontra-se na parte do I Enoque em geral conhecida como
“Parábolas ou similitudes”, mas intitulada pelo autor, de forma mais apropriada, como “Segunda visão”.46
As “Similitudes” constituem uma porção substancial da obra completa, estendendo-se do capítulo 37 ao 71,
de um total de 104 capítulos; mas sua relação com o restante do texto foi e continua a ser objeto de
acaloradas discussões. As “Similitudes” não se encontram nos fragmentos aramaicos do I Enoque
descobertos em Qumran, nem na fragmentária tradução grega, o que levou alguns estudiosos a considerá-las
uma obra tardia, provavelmente do século II ou mesmo do III d.C., com grande influência dos evangelhos.
No entanto, hoje a opinião prevalecente é que se trata de obra judaica, originalmente escrita em hebraico ou
aramaico durante o período romano; e, a partir de indícios internos, argumentou-se de maneira plausível que
sua composição ocorreu durante o ministério de Jesus ou logo após.47

Nas “Similitudes”, o Messias, isto é, o Ungido, também é chamado de “Filho do Homem” — talvez
uma reminiscência de Daniel 7 — e de “o Eleito”; e ficamos sabendo que ele foi escolhido — designado
para seu singular destino — antes de o sol, as estrelas e a terra terem surgido. Deus, ali chamado de “Senhor
dos Espíritos” — título só encontrado no I Enoque —, o mantém oculto até o momento da revelação, no Dia
do Juízo.

Este chegará quando um número predeterminado de eleitos for alcançado. Então, o Senhor dos
Espíritos tomará seu lugar no trono da glória, circundado pelas hostes angélicas e pela assembléia de anjos.
Os “livros dos vivos” — os registros das boas e más ações de cada indivíduo — serão abertos e haverá o
julgamento. Esta será a tarefa do Filho do Homem: sentado, como o Senhor dos Espíritos, em um trono de
glória, ele pronunciará as sentenças sobre os vivos e os mortos.48

Ele irá sobretudo condenar os grandes da terra. Confiantes em sua riqueza e dependentes de seus
deuses pagãos, “os reis e os poderosos e os exaltados, e aqueles que possuem a terra” haviam negado o
Senhor dos Espíritos — e também o Filho do Homem.49 Agora irão fitar com terror e desespero o Filho do
Homem. Irão implorar uma suspensão da pena a fim de que possam confessar seus erros e louvar o único
Deus verdadeiro — mas, impassível, o Filho do Homem os entregará aos anjos da punição. Os justos verão
com satisfação seus opressores serem levados da face da terra e lançados para sempre nas trevas
subterrâneas, entre os vermes, sem nenhuma esperança de ressurreição — ou então serem conduzidos ao
tormento eterno no causticante vale do Hinom.50

For meio de seus julgamentos, o Filho do Homem realizará uma purificação da terra. Não só os
pecadores humanos, mas também os anjos decaídos, “aqueles que desencaminharam o mundo”, serão
afastados de uma vez por todas — “e todas as suas obras serão eliminadas da face da terra”. Todo o mal
desaparecerá, vencido pela força do Messias entronizado — “e a partir de então não haverá nada sujeito à
corrupção”.51 Por fim, o Senhor dos Espíritos transformará o céu e a terra em “uma luz e uma bênção
eternas”.52
Na terra transformada, sob o céu transformado, os justos — inclusive os justos mortos, agora
ressuscitados — desfrutarão de imutável bem-aventurança. Os antigos oprimidos triunfarão “em nome do
Senhor dos Espíritos”, e a glória e a honra serão deles. Mais ainda, “a terra se rejubilará, e os justos a
habitarão, e os eleitos irão e caminharão sobre ela”.53 Neles, nos eleitos do novo Israel, a antiga profecia
sobre a posse da Palestina enfim se cumprirá, para todo o sempre.

Embora vivendo na terra, a vida dos justos irá transcender por completo as limitações normais da
existência humana. O Filho do Homem viverá no meio deles e com ele os justos irão morar, comer, dormir
e se levantar, para todo o sempre.54 Eles próprios serão transformados. O Senhor dos Espíritos lhes
proporcionará “as vestimentas de vida”, de modo que se tomem semelhantes aos anjos. E serão imortais:
“os escolhidos [permanecerão] na luz da vida eterna; e não haverá fim para os dias de sua vida [...]”.55

A conclusão das “Similitudes” é assombrosa. Enoque descreve de que modo foi transladado em
espírito até os céus, onde, na presença do Senhor dos Espíritos e de miríades de anjos, o arcanjo Miguel
assegurou-lhe: “Tu és o Filho do Homem que nasceu para a retidão”. O Messias que irá presidir o mundo
transformado e seus habitantes transformados não é outro senão o próprio Enoque. A promessa de Miguel
não poderia ser mais clara nem mais definitiva: “E todos [...] caminharão pela tua senda [...] e contigo será a
morada deles, e contigo o destino deles, e eles não se separarão de ti para sempre e sempre e sempre [...] e
haverá muitos dias com esse Filho do Homem, e os justos encontrarão a paz [...]”56

O significado da expressão “Filho do Homem” no I Enoque foi, e ainda é, objeto de muitos debates
filológicos. Aparentemente, não se tratava de um título, nem ali nem nas passagens dos evangelhos em que
Jesus o emprega referindo-se a si mesmo; na verdade, parece que não havia nenhum significado além do
básico, isto é, de “alguém como um homem” ou, simplesmente, “um homem”. Mas isto pouco importa, pois
no I Enoque a figura chamada de “Filho do Homem” é evidentemente bastante extraordinária.

Em alguns dos ditos atribuídos a Jesus nos evangelhos, o Filho do Homem não é menos
extraordinário. Também ele será enviado dos céus para julgar a humanidade, acompanhado de anjos, e a
condenação dos que o negarem será tão inevitável quanto a daqueles que negaram o próprio Deus. Nem
todos os estudiosos consideram autênticos esses ditos e, mesmo entre os que o fazem, alguns acreditam que
Jesus não se referia ao próprio destino, mas a um ser divino que ainda estava por vir. Para o nosso objetivo,
basta que a Igreja primitiva tenha levado esses ditos em alta conta e, desse modo, assegurado que as
gerações posteriores fizessem o mesmo.57


Capítulo 7

Aplicada a Jesus, a noção de um Messias sobrenatural e transcendente era de fato bem adequada para
explicar e justificar o paradoxo de sua morte miserável. Em primeiro lugar, o Jesus que estava no centro dos
ensinamentos da Igreja primitiva não era o exorcista, curandeiro e pregador que vivera na Palestina, nem o
esperado líder político, mas Jesus, o Messias transcendente, cuja vida e morte terrenas haviam sido
sobretudo o prelúdio para sua ressurreição e glorificação. Por mais extraordinária que tal idéia deva ter
parecido à maioria dos judeus e por menos que os atraísse, ela se revelou satisfatória para alguns. O
sofrimento, a humilhação e a morte de Jesus deixavam de ser um problema se fossem entendidos como
condição prévia de uma exaltação muito além daquela conhecida pelos simples mortais: “Não era preciso
que o Cristo sofresse tudo isto e entrasse em sua glória?”.58

O que as “Similitudes” anunciam de Enoque, o Novo Testamento anuncia repetidas vezes de Jesus:
ele descerá do céu para a terra como o Messias transcendente. Como são Paulo coloca em sua epístola aos
filipenses: “Por isso Deus o sobreexaltou grandemente e o agraciou com o Nome que é sobre todo o nome,
para que, ao nome de Jesus, se dobre todo joelho dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a
terra [...]”.59 Em uma passagem após a outra, nos evangelhos sinóticos, nos Atos e nas epístolas de são
Paulo, Jesus aparece como juiz do mundo — ao lado de Deus ou mesmo no lugar de Deus.

Acima de tudo, esperava-se que atuasse como plenipotenciário de Deus no


Juízo Final. Nas palavras dos Atos, Deus “fixou um dia no qual julgará o mundo
com justiça por meio do homem a quem designou, dando-lhe crédito diante de
todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos”60 — e inúmeras vezes alude-se a Jesus
como aquele que irá julgar os vivos e os mortos. Tampouco imaginava-se que
tudo isto pertencesse a um futuro remoto e imprevisível; os cristãos primitivos
estavam convencidos de que Jesus logo estaria de volta: “Eis o que vos digo,
irmãos: o tempo se fez curto”; “a noite avançou e o dia se aproxima”; “o fim de
todas as coisas está próximo”.61 A mesma certeza encontra-se na promessa que
Jesus teria feito a seus discípulos — e tanto faz se de fato disse estas palavras:
“Em verdade vos digo que estão aqui presentes alguns que não provarão a morte
até que vejam o Reino de Deus chegando com poder”.62

Não que importasse se a pessoa morresse antes. Por cerca de dois séculos,
os judeus haviam se familiarizado com a idéia de que na grande consumação os
justos iriam ressuscitar e receber corpos imortais — e embora alguns judeus,
como os saduceus, rejeitassem tal concepção, outros, como os fariseus, já a
haviam aceitado desde muito. Os primeiros cristãos não só aceitavam a idéia,
como consideravam que a ressurreição já havia começado. Embora a
ressurreição de Jesus sempre tenha ocupado um lugar central na fé da Igreja, seu
significado original foi em grande parte esquecido. Os cristãos primitivos não a
viam apenas como uma dramática intervenção de Deus para justificar seu filho,
mas como sinal e garantia de que todo verdadeiro seguidor de Jesus, mesmo os
que já haviam morrido, poderia habitar para todo o sempre o reino.

As implicações disto são elaboradas em I Tessalonicenses, o mais antigo


documento cristão ao nosso dispor, escrito por volta de 50 d.C., bem antes do
mais antigo evangelho. São Paulo está preocupado em assegurar aos cristãos de
Tessalônica que aqueles dentre eles que viverem para ver a Segunda Vinda não
ficarão separados dos entes queridos que haviam morrido antes:
Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere aos mortos se cremos que Jesus morreu e
ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua
companhia. Pois isto vos declaramos, segundo a palavra do Senhor: que os vivos, os que ainda
estivermos aqui para a Vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram. Quando
o Senhor, ao sinal dado, à voz do arcanjo e ao som da trombeta divina, descer do céu, então os
mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; em seguida nós, os vivos que estivermos lá, seremos
arrebatados com eles nas nuvens para o encontro com o Senhor, nos ares. E assim, estaremos
para sempre com o Senhor. Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras.63


Capítulo 8

Tal era a fé dos cristãos primitivos, e ela definiu o modo como viam a si
mesmos. Eles não achavam que estavam iniciando uma nova religião. Todos
eram judeus que continuavam a observar a Lei — e qualquer gentio que se
juntasse a eles também precisava tomar-se judeu. Mesmo quando pregavam
entre os gentios, davam prosseguimento à propaganda iniciada pelo judaísmo
helenístico. Assim como outros judeus, eles opunham ao politeísmo dos pagãos
a doutrina do Deus único, ao mesmo tempo criador e juiz. De modo mais
específico, seu horizonte mental ainda era o dos autores dos apocalipses
judaicos: a noção de Juízo Final, que estava no âmago de seu pensamento,
também estava no centro dos apocalipses judaicos. Entretanto, um aspecto
essencial os distinguia dos outros judeus: eles consideravam que haviam sido
encarregados por Deus da tarefa de proclamar que Jesus havia sido crucificado,
havia ressuscitado e em breve retomaria envolto em glória, a fim de encerrar a
época presente e inaugurar “a era vindoura”. A medida que a seita de Jesus
transformava-se aos poucos na Igreja cristã, essa convicção permaneceu
inseparável do seu sentimento de identidade.

A Igreja primitiva via a si mesma como a congregação dos últimos dias —


um protótipo, por assim dizer, do reino de Deus que em breve seria instaurado.64
Ela estava bem consciente de que, como parte das “tribulações” que anunciariam
a chegada da nova era, potências hostis tentariam destruir a congregação: “Não
tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do vosso Pai dar-vos o
Reino!”.65 Os próprios títulos que os membros da Igreja se atribuíam — “os
eleitos”, “os santos” — eram tradicionais no judaísmo como títulos
escatológicos. O título “congregação de Deus”, adotado pela Igreja, possuía
conotações similares, pois era um termo tradicional para os “remanescentes
redentores” que seriam revelados com a vinda do reino. Do mesmo modo, o
termo ekklesia designava, na época, o companheirismo dos eleitos no momento
em que “esta época” estava prestes a dar lugar à “era vindoura”.

Os rituais e práticas da Igreja possuíam igualmente significação


escatológica. O batismo era um banho de purificação que servia de preparativo
para a chegada do reino, um rito pelo qual o prosélito era iniciado na
congregação dos últimos dias. As refeições em comum (a “partilha do pão”)
eram realizadas em uma atmosfera de expectativa escatológica cujos ecos podem
ser notados na prece eucarística ainda recitada por volta de 120 d.C. em uma
comunidade isolada: “Lembra, Senhor, de tua Igreja, a fim de libertá-la do mal e
tomá-la perfeita em teu amor, e reuni-la em tua santidade a partir dos quatro
ventos de teu reino que tu preparaste para tanto! [...] Que o Senhor venha, que
este mundo pereça!”.66 De novo, segundo a concepção judaica, o espírito da
profecia havia abandonado Israel por um período, mas a ele retomaria no final
dos tempos. A Igreja primitiva estava convencida de que isso de fato começara a
ocorrer, de que novamente havia profetas capazes de prever o futuro.67 E o
trabalho missionário, a pregação, a cura, o exorcismo — tudo guardava o mesmo
sentido e era realizado com o mesmo sentimento de urgência existente na época
de Jesus. Com todas as suas ações os cristãos do século I declaravam, da maneira
mais clara e enfática, que por intermédio deles as esperanças dos autores dos
apocalipses estavam sendo concretizadas.

A redenção coletiva do povo eleito de Deus era uma concepção


profundamente judaica — e a Igreja primitiva de fato sentia grande afinidade
com Israel, vendo a si mesma como um prolongamento da história de Israel. Por
outro lado, a continuidade não era ininterrupta: o surgimento de Jesus, sua
ressurreição, sua glorificação, a promessa de retomo eram todos acontecimentos
escatológicos que assinalavam uma ruptura total. Ao deixar de reconhecer em
Jesus o Messias, Israel havia perdido a oportunidade de promover a
concretização da antiga promessa de redenção feita por Deus, abdicando assim
de sua condição de povo eleito. Não seria Israel que herdaria os frutos da
promessa divina e, sim, a Igreja cristã.

Enquanto isso, a Igreja tinha o dever de se manter apartada do mundo, do


reino do pecado prestes a ser abolido. O ideal ético pelo qual se guiavam os
cristãos primitivos — afastamento do mundo, pureza, ascetismo — simbolizava
a separação da comunidade escatológica, sua adequação e preparo para ingressar
a qualquer momento no reino. “Porque vós sabeis, perfeitamente, que o Dia do
Senhor virá como ladrão noturno [...] Portanto, não durmamos, a exemplo dos
outros, mas vigiemos e sejamos sóbrios”.68 Afastando-se “desta época”, os
cristãos se preparavam para a transformação por que passariam quando chegasse
o reino.
Capítulo 9

O que a Igreja primitiva oferecia era não só a participação em uma elite


escolhida por Deus, mas a garantia de que todo membro dessa elite pertenceria,
em um futuro iminente, a uma comunidade de seres transfigurados e imortais.

O próprio Cristo, retornando em glória, como juiz dos vivos e dos mortos,
distribuiria esta bem-aventurança eterna a alguns, enquanto os outros seriam por
ele condenados ao tormento eterno — terem-no aceitado ou rejeitado, a ele e aos
seus ensinamentos, seria o critério.

Considerava-se que João Batista já havia profetizado isso: “A pá está na sua


mão: vai limpar sua eira e recolher seu trigo no celeiro; mas, quanto à palha, vai
queimá-la num fogo inextinguível”.69 Inevitavelmente, também se supunha que a
mesma profecia havia sido feita por Jesus. Ditos atribuídos a ele por Mateus
comprovam isso de maneira exaustiva: “Todo aquele, portanto, que se declarar
por mim diante dos homens, também eu me declararei por ele diante de meu Pai
que está nos Céus. Aquele, porém, que me renegar diante dos homens, também o
renegarei diante de meu Pai que está nos Céus”.70 E ainda:
Quando o Filho do Homem vier em sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no
trono de sua glória. E serão reunidas em sua presença todas as nações e ele separará os
homens uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, e porá as ovelhas à sua
direita e os cabritos à sua esquerda. Então dirá o rei aos que estiverem à sua direita: “Vinde,
benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do
mundo”.

Estas são as pessoas que deram comida, bebida, abrigo e socorro de todo
tipo àqueles a quem Jesus chama de seus “irmãos”.

O destino dos que se recusaram a ajudar os seguidores de Jesus, e que agora


se encontram à sua esquerda, é terrível. A eles, Jesus declara: “Apartai-vos de
mim, malditos, para o fogo eterno preparado para o diabo e para os seus anjos”.71
Esses anjos, claro, são os que conhecemos do Livro dos Jubileus e do I Enoque.
Os anjos que não haviam caído também terão um papel a desempenhar nesses
dias:
O Filho do Homem enviará seus anjos e eles apanharão do seu Reino todos os escândalos e os
que praticam a iniqüidade e os lançarão na fornalha ardente. Ali haverá choro e ranger de
dentes. Então os justos brilharão como o sol no Reino de seu Pai.72

Sejam quais forem as restrições a respeito da autenticidade dessas


passagens, não há a menor dúvida de que refletem com Fidelidade as
expectativas das primeiras gerações de cristãos. Encontra-se exatamente a
mesma visão do futuro em uma passagem de li Tessalonicenses, que, embora
hoje se saiba não ter sido escrito por são Paulo, ainda é tão antigo quanto o mais
antigo evangelho.

Ali se diz que Jesus, quando surgir no céu, trará não só a redenção para seus
fiéis seguidores, mas também a perdição para os seus oponentes:
Justo é que Deus pague com tribulação aos que vos oprimem, e que a vós, os oprimidos, vos dê
o repouso juntamente conosco, para quando se revelar o Senhor Jesus. O castigo deles será a
ruína eterna, longe da face do Senhor e do esplendor de sua majestade, quando ele vier,
naquele Dia, para ser glorificado na pessoa dos seus santos, e para ser admirado na pessoa de
todos aqueles que creram [...].73

A apoteose de Jesus, como ser celestial e representante supremo de Deus,


seria levada um passo adiante no Livro do Apocalipse.
12 - O LIVRO DO APOCALIPSE


Capítulo 1

Os vários milhões de cristãos que hoje atribuem excepcional importância ao


Livro do Apocalipse podem reivindicar um notável precedente: nos escritos do
século II, este livro é mais citado do que qualquer outro do Novo Testamento.1

É provável que essa obra tenha sido redigida no final do reinado do


imperador Domiciano, por volta de 95-6 d.C. Seu autor é claramente um cristão
de origem judaica e palestina; além disso, o grego estranho e pouco gramatical
que utiliza indica que costumava pensar em hebraico ou aramaico. Ele chama a
si mesmo de João e era tradicional mente identificado com o apóstolo João, filho
de Zebedeu. Esta identificação, aceita por vários Padres da Igreja dos séculos I e
II, foi em parte responsável pela inclusão do Apocalipse no cânone do Novo
Testamento e mesmo hoje é defendida por alguns estudiosos. No entanto, quase
certamente é falsa. A autoria apostólica não é sequer aludida na própria obra;
além do mais, seria preciso supor que o apóstolo tivesse escrito essa obra de
grande intensidade emocional quando já completara no mínimo 85 anos de
idade. O mais provável é que o João em apreço fosse um profeta itinerante,
talvez um carismático semelhante aos profetas que, pouco antes na Síria-
Palestina, haviam escrito Q e Marcos. Ele próprio parece ter circulado pelas
igrejas da província romana da Ásia, que correspondia aproximadamente à costa
ocidental da atual Turquia.

O livro foi escrito para cristãos que ainda se consideravam judeus — na


verdade, os únicos judeus verdadeiros, pois os outros pertenciam à “sinagoga de
Satã”. Do começo ao fim, é evidente o caráter judaico da obra, assim como a
influência dos apocalipses judaicos: muitos trechos são traduções diretas da
Bíblia hebraica, além de haver mais de trezentas referências aos livros de Daniel,
Isaías, Segundo Isaías, Jeremias, Ezequiel e Zacarias.

O profeta demonstra um agudo senso de continuidade entre Israel e o ramo


cristão do judaísmo — e isso explica muitas coisas que, de outro modo, seriam
bastante enigmáticas. Com certeza são cristãos os 144 mil “servos de Deus” que
levam selos na testa, como proteção contra as catástrofes lançadas sobre o
restante da humanidade — no entanto, são descritos como integrantes das doze
tribos de Israel. Para indicar a Igreja cristã, perseguida pelos ímpios mas segura
da proteção divina, o visionário usa a imagem da Jerusalém terrena ou do monte
Sião. E quando, após o Juízo Final, a Nova Jerusalém desce dos céus,
encontram-se os nomes das doze tribos inscritos em seus doze portões, assim
como os nomes dos doze apóstolos estão inscritos nas doze pedras fundamentais
das muralhas da cidade.

A despeito disso, o Apocalipse é também, do começo ao fim, uma obra


profundamente cristã. Tudo o que aproveita da Bíblia hebraica é reinterpretado
em sentido cristão, integrando-se a uma visão de mundo cristã. As profecias e os
oráculos judaicos são evocados precisamente para mostrar que a história da
Igreja estava seguindo com fidelidade o curso previsto nas Escrituras e, de modo
inverso, que as previsões das Escrituras agora estavam sendo concretizadas. Os
profetas e o Livro de Daniel são chamados a testemunhar sobre a iminente
vitória da Igreja cristã, enquanto o próprio Livro do Apocalipse assume a
aparência de uma conclusão cristã da tradição profética de Israel.

Acima de tudo, o papel antes destinado aos judeus em geral agora é


atribuído ao ramo cristão do judaísmo. É na Igreja que a ordem estabelecida por
Deus encontra sua suprema expressão terrena. A afirmação dessa ordem,
tradicionalmente realizada pelos judeus enquanto observantes da Lei, agora
cabia aos cristãos enquanto adeptos de Jesus.


Capítulo 2

O Livro do Apocalipse inicia com uma declaração de sua natureza e


propósito. Deus revelou a Jesus o que está prestes a ocorrer, na “hora da
consumação”.

Jesus, por sua vez, transmitiu a revelação ao “seu servo João”, que agora se
apresenta como profeta, encarregado da tarefa de difundir a mensagem para a
Igreja, representada por sete igrejas nas proximidades de Éfeso. A obra toda tem
a forma de uma carta e há indícios de que se destinava à leitura litúrgica.

João recebeu a mensagem na ilha de Fatmos, em uma série de visões de


extraordinária força. Já a primeira delas apresenta o Jesus ressurrecto como um
ser transcendente de inconcebível majestade — origem e senhor das sete igrejas
e da Igreja como um todo:
No dia do Senhor fui movido pelo Espírito, e ouvi atrás de mim uma voz forte, como de
trombeta [...] Voltei-me para ver a voz que me falava; ao voltar-me vi sete candelabros de
ouro e, no meio dos candelabros, alguém semelhante a um filho de Homem, vestido com uma
túnica longa e cingido à altura do peito com um cinto de ouro. Os cabelos de sua cabeça eram
brancos como lã branca, como neve; e seus olhos pareciam uma chama de fogo. Os pés tinham
o aspecto do bronze quando está incandescente no forno, e sua voz era como o estrondo das
águas torrenciais. Na mão direita ele tinha sete estrelas, e de sua boca saía uma espada
afiada, com dois gumes. Sua face era como o sol, quando brilha com todo seu esplendor. Ao
vê-lo, caí como morto a seus pés. Ele, porém, colocou a mão direita sobre mim assegurando:
“Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente; estive morto, mas eis que estou vivo
pelos séculos dos séculos [...]”2

Em seguida há sete cartas que Jesus ditou a João, louvando e censurando as


diversas igrejas por seus respectivos méritos e falhas, bem como prometendo a
elas recompensas e punições apropriadas. Os cristãos fiéis podem esperar um
glorioso futuro:
[...] eles andarão comigo vestido de branco, pois são dignos. O vencedor se trajará com vestes
brancas e eu jamais apagarei seu nome do livro da vida. Proclamarei seu nome diante de meu
Pai [...].3 Visto que guardaste minha palavra de perseverança, também eu te guardarei da
hora da tentação que virá sobre o mundo inteiro, para colocar à prova os habitantes da terra
[...].4 Ao vencedor, ao que observar a minha conduta até o fim, conceder-lhe-ei autoridade
sobre as nações; com cetro de ferro as apascentará, como se quebram os vasos de argila [...].5

Com sua promessa de ilimitada exaltação para uma elite, essas cartas dão o
tom da obra.


Capítulo 3

Os capítulos 12 e 13 do Livro do Apocalipse apresentam uma versão cristã


bastante impressionante do antigo mito do combate.6

Sob a forma de um grande dragão vermelho com sete cabeças e dez chifres,
Satã surge no céu e começa a reduzir ao caos o mundo ordenado. Com o rabo,
arrasta de seus lugares apropriados as estrelas, esses símbolos supremos e
guardiães da ordem estabelecida por Deus, e faz com que um terço delas caia na
terra. Em seguida, enfrenta a “mulher vestida com o sol” no momento em que
esta está prestes a dar à luz e, quando nasce o filho, ele tenta devorá-lo. Deus,
porém, arrebata a criança para junto de si e de seu trono, e prepara para a mulher
um refúgio no deserto; ali ela poderá se esconder durante o período crítico
(herança do Livro de Daniel) de três anos e meio.

O providencial resgate da criança é o sinal para a guerra no céu. O arcanjo


Miguel — o mesmo que, em Daniel e em outros apocalipses figura como anjo
padroeiro de Israel — surge como o paladino da Igreja cristã. À frente de um
exército de anjos, entra em combate com Satã, que comanda igualmente uma
hoste de anjos. Miguel alcança a vitória e Satã e seus aliados são expulsos do céu
para a terra.

Como é usual nas crenças do Oriente Próximo, o que ocorre no céu


determina o que ocorre na terra. Quase certamente a “mulher vestida com o sol”
representa Israel, enquanto a criança simboliza a comunidade cristã — as
contrapartidas celestes do verdadeiro Israel e seu ramo cristão na terra. Agora a
perseguição e o resgate da Igreja precisam prosseguir no mundo dos seres
humanos, onde o dragão-Satã, expulso do céu, encontra-se em plena atividade.
Trata-se da tribulação predestinada e final, aquela anunciada nos apocalipses
judaicos e, na verdade, pelo próprio Jesus: “Ai da terra e do mar, porque o Diabo
desceu para junto de vós cheio de grande furor, sabendo que lhe resta pouco
tempo”.

Em sua perseguição aos “que observam os mandamentos de Deus e mantêm


o Testemunho de Jesus”,7 Satã conta com aliados. Ele é ajudado por duas bestas,
vindas uma do mar e a outra das profundezas da terra. À primeira Satã confere
“seu poder, seu trono” e “autoridade sobre toda tribo, povo, língua e nação”.8
Quanto à segunda besta, esta é inteiramente dedicada ao fortalecimento da
primeira: incita os homens a fazerem uma imagem em honra desta e leva à morte
todos aqueles que não adoram a imagem. Não há a menor dúvida sobre as fontes
ou sobre o significado dessas imagens no Apocalipse. A primeira besta tem
como modelo os quatro animais mencionados também em Daniel, amalgamados,
e seu papel é similar ao do blasfemo tirano mundial também em Daniel — com a
diferença de que o símbolo que antes se referia à monarquia selêucida agora
remete ao império romano. A segunda besta, também chamada de “falso
profeta”, deve muito à profecia, em n Tessalonicenses, do “homem ímpio”, cuja
vinda “será assinalada pela atividade de Satanás, com toda a sorte de portentos,
milagres e prodígios mentirosos”, mas que aqui se refere aos sacerdotes da
religião oficial romana.

No Apocalipse, o império romano e seus representantes são objeto de


desprezo e ódio — e há uma explicação corrente para isso. Os estudiosos em
geral concordam que o Apocalipse foi escrito durante o reinado de Domiciano.
Até pouco tempo atrás acreditava-se que Domiciano fora o primeiro imperador
romano a se considerar um deus vivo e a exigir que lhe fizessem sacrifícios
ainda em vida; que os cristãos viam tais sacrifícios como idólatras e se
recusavam a fazê-los; e que, por este motivo, Domiciano começou a perseguir os
cristãos, mandando executar muitos deles. No entanto, pesquisas recentes
indicam que esta explicação é completamente equivocada: Domiciano não
estabeleceu nenhum culto especial a si mesmo, nem perseguiu os cristãos.9 Na
verdade, os cristãos das cidades da Ásia — quase todos cristãos judeus— tinham
uma vida tranquila e, como outros judeus, participavam plenamente da sociedade
urbana. Tampouco existe fundamento para a suposição corriqueira de que João
foi banido para a ilha de Patmos por pregar a doutrina cristã e que por esse
motivo escreveu o Apocalipse lá.

Ao que parece, o propósito de João era estimular os cristãos a se verem em


conflito com círculos mais amplos da sociedade.

Tal como outros autores de apocalipses, ele tinha uma idéia de ordem
cósmica que se chocava inteiramente com as noções adotadas pelo mundo
helenístico em geral e pelo império romano em particular. Assim, em vez de
refletir o governo divino, o domínio de reis e imperadores era uma expressão do
poder de Satã — não por esse domínio ser “objetivamente” opressivo, mas
porque a visão obsessiva de João identificava um antagonismo radical entre a
Igreja e o mundo.10 Isto bastava para sustentar seu entusiasmo pela derrubada da
ordem estabelecida.


Capítulo 4

Nos evangelhos sinóticos, Jesus combate Satã reduzindo à impotência os


servos deste, os demônios. No Apocalipse, combate Satã destruindo sua criação,
o império romano.

Em uma das visões de João, Jesus aparece como impetuoso guerreiro num
cavalo branco, à frente de um exército de anjos:
Seus olhos são chama de fogo; sobre sua cabeça há muitos diademas [...] e o nome com que é
chamado é Verbo de Deus. Os exércitos do céu acompanham-no em cavalos brancos, vestidos
com linho de brancura resplandecente. Da sua boca sai uma espada afiada para com ela ferir
as nações. Ele é quem as apascentará com um cetro de ferro. Ele é quem pisa o lagar do vinho
do furor da ira de Deus, o Todo-poderoso. Um nome está escrito sobre seu manto e sobre sua
coxa: “Rei dos reis e Senhor dos senhores”.11

A primeira besta e sua assistente (agora chamada de “falso profeta”), mais


os reis da terra e seus exércitos, reúnem-se para lutar contra Jesus. Essa batalha
de Armagedom termina com a derrota total das potências demoníacas e seus
aliados humanos. A besta e o falso profeta são capturados e atirados vivos em
um lago de fogo. Quanto aos reis e seus exércitos, são mortos pela espada que
sai da boca de Jesus. Um anjo convoca as aves: “Vinde, reuni-vos para o grande
banquete de Deus, para comer carnes de reis, carnes de capitães, carnes de
poderosos, carnes de cavalos e cavaleiros, carnes de todos os homens, livres e
escravos, pequenos e grandes”12 — e sem demora todas as aves se fartam. A
glória de Roma chega ao fim e vozes celestes proclamam:
“Caiu! Caiu Babilônia, a Grande! Tornou-se moradia de demônios, abrigo de todo tipo de
demônios impuros, abrigo de todo tipo de aves impuras e repelentes”.13 E enquanto essa
queda será recebida com lamentos pelos mercadores da terra e do mar, os seguidores de Jesus
se rejubilarão: “Exultai por sua causa, ó céu, e vós, santos, apóstolos e profetas, pois,
julgando-a, Deus vos fez justiça”.14

Todos os que serviram ao império estão igualmente condenados. O destino


deles é anunciado por um anjo: “Se alguém adora a Besta e a sua imagem, e
recebe a marca sobre a fronte ou na mão, esse também beberá o vinho do furor
de Deus, derramado sem mistura na taça da sua ira”.15 Esses perversos serão
atormentados com feridas malignas, sua água de beber se transformará em
sangue, eles serão terrivelmente queimados. Aprisionados em trevas perpétuas,
irão morder a língua de tanta dor. E seu tormento irá durar, sem diminuir em
nada durante o dia e a noite, para todo o sempre.16


Capítulo 5

O destino do próprio Diabo não é tão definitivo. Um anjo desce dos céus,
acorrenta-o e depois o atira em um abismo, que será em seguida fechado e
lacrado com um selo — não por toda a eternidade, mas por um milênio, ao
término do qual “ele deverá ser solto por pouco tempo”.17 Durante esses mil anos
— o “Milênio” original —, os mártires cristãos, que haviam preferido a morte
para não adorar a besta, receberão uma recompensa especial: irão ressuscitar e
reinar sobre a terra com o Cristo, antes de seguir para a eterna bem-aventurança.
E não serão eles os únicos habitantes da terra: fica claro que, nesse período
intermediário, as nações do mundo terão de se submeter à autoridade de Cristo e
de seus santos, que as governarão com um cetro de ferro.

Terminado o confinamento de mil anos, Satã convoca “as nações dos quatro
cantos da terra” para cercar “o acampamento dos santos e a Cidade amada”.
Esses exércitos são descritos como as hostes de “Gog e Magog”, cujo número é
“como a areia do mar” — uma alusão à profecia em Ezequiel.18 Parece provável
que, na imaginação do vidente, essas legiões não eram for madas por seres
humanos e sim por demônios — os verdadeiros aliados de Satã, que emergiriam
com ele das profundezas da terra em um derradeiro esforço para destruir a
Igreja.19

Quando esses últimos inimigos sobrenaturais são destruídos pelo fogo dos
céus, fica desimpedido o caminho para a realização do Juízo Final. Todos os
mortos serão ressuscitados e julgados de acordo com seus registros. Aqueles
cujos nomes não estiverem no “livro da vida” serão atirados no lago de fogo para
que ali sofram tormentos por toda a eternidade; por outro lado, os justos — e não
apenas os mártires — seguirão para um lugar de bem-aventurança, onde ficarão
para sempre ao lado de Deus, como seus filhos, livres da morte, dos sofrimentos
e das tristezas: “O vencedor receberá esta herança”.20 E assim o tempo chegará à
sua consumação.

O reino de bem-aventurança é algo inteiramente novo, outra criação que


substituirá a antiga:
Vi então um céu novo e uma nova terra — pois o primeiro céu e a primeira terra se foram, e o
mar já não existe. Vi também descer do céu, de junto de Deus, a Cidade santa, uma Jerusalém
nova, pronta como uma esposa que se enfeitou para seu marido. Nisto ouvi uma voz forte que,
do trono, dizia: “Eis a tenda de Deus com os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu
povo, e ele, Deus-com-eles, será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois
nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas
antigas se foram!” O que está sentado no trono declarou então: “Eis que eu faço novas todas
as coisas”21

Com a descida da Jerusalém celeste, a terra e o céu se tornarão


indissoluvelmente unidos, um reino onde os seres humanos partilharão da
beatitude dos anjos. A nova Jerusalém é descrita em imagens de grande
concretude. A cidade é disposta como um quadrado, cada um de seus lados com
12 mil estádios de comprimento, e cercada por muralhas de jaspe com 144
côvados de altura.

A cidade em si mesma é de ouro puro, “semelhante a um vidro límpido”, e


as fundações das muralhas são adornadas com jóias de todos os tipos. Os reis e
as nações trarão a ela suas riquezas e seus esplendores. Ela se tomará uma fonte
de redenção para toda a terra: “Há árvores da vida que frutificam doze vezes,
dando fruto a cada mês; e suas folhas servem para curar as nações. Nunca mais
haverá maldições”.22 A miraculosa fertilidade das árvores é um sinal de que a
ordem estabelecida por Deus agora está recuperada, e um mundo onde já não
existe nenhum mar é um mundo para sempre imune à ameaça do caos.

O livro termina tal como começou, com a promessa de que o extraordinário


drama de que trata está prestes a ter início: “[...] o Tempo está próximo”. E o
próprio Jesus o confirma: “Eis que eu venho em breve, e trago comigo o salário
para retribuir a cada um conforme o seu trabalho [...] Sim, venho muito em
breve!”. E o vidente responde: “Amém! Vem, Senhor Jesus!”.23


Capítulo 6

O Livro do Apocalipse não é o único apocalipse cristão; o Apocalipse de


Pedro e o Pastor de Hermas, por exemplo, também são cristãos do início ao fim.
Porém, foi o único apocalipse completo incluído no cânone, onde forma, por
assim dizer, a contrapartida cristã ao Livro de Daniel. Tal privilégio talvez não
se deva apenas à sua suposta autoria apostólica. Trata-se de um poema em prosa
extraordinariamente imaginativo, repleto de imagens impressionantes,
abrangendo desde cantos de louvor até clamores de desespero, alternando entre
uma luz ofuscante e uma aterrorizante escuridão. A perseguição da “mulher
vestida com o sol” pelo dragão, o reino e a queda da besta de muitas cabeças, o
fim de “Babilônia, a Grande” — são todos símbolos poderosos e que se tornam
ainda mais fortes por serem tão enigmáticos.

As previsões específicas que o vidente comunicou a seus companheiros


cristãos revelaram-se equivocadas: não se deu nenhum dos acontecimentos que
supostamente estavam prestes a ocorrer. A despeito disso, as profecias do
Apocalipse sobreviveram: reinterpretadas inúmeras vezes de modo a se
adequarem a circunstâncias sempre mutáveis, elas iriam influenciar a percepção
das sucessivas gerações de cristãos.

Nessas profecias, reinterpreta-se de maneira radical o antigo mito do ataque


das forças do caos à ordem estabelecida por Deus e da vitória do jovem guerreiro
divino sobre aquelas forças. Deixando de se referir à repetição regular e
recorrente de acontecimentos primordiais, ele se transformou em uma profecia
do reino vindouro — de um mundo transfigurado, para sempre liberto da ameaça
do caos e habitado por uma comunidade seleta de seres humanos transformados,
para sempre imunes ao envelhecimento, às doenças e à morte.

De novo, isto nos remete a Zoroastro, e outra vez nos perguntamos:


coincidência ou influência?


13 - JUDEUS, ZOROASTRIANOS E
CRISTÃOS

Capítulo 1

O I Enoque, a Regra da comunidade de Qumran, os evangelhos sinóticos e


o Livro do Apocalipse são obras muito diferentes, mas em todas é evidente a
preocupação escatológica, ao mesmo tempo em que o mundo é visto em termos
cada vez mais dualísticos com o passar das gerações. Em vários graus, os autores
dessas obras tinham consciência de um poder sobrenatural destrutivo que sempre
agira no sentido de frustrar os desígnios divinos e continuava a fazê-lo. Também
estavam convencidos de que, em um futuro iminente, esse poder e seus
representantes humanos seriam derrubados pelos anjos de Deus e reduzidos à
impotência. Um julgamento universal seria realizado, tendo como juiz, em
algumas versões, um Messias transcendente. O tempo e a história chegariam ao
fim e dariam lugar ao reino eterno de Deus, agora instaurado na terra. Os
verdadeiros servos de Deus, dotados de corpos imortais e sempre jovens,
viveriam para sempre como habitantes desse reino, enquanto o restante da
humanidade seria lançado em um abismo abrasador. Os mortos, ressuscitados
para o Juízo, também teriam esses destinos antagônicos.

Essas idéias prosperaram com mais vigor em seitas relativamente pequenas


e é surpreendente o contraste entre elas e a antiga religião israelita. A Bíblia
hebraica menciona potências estrangeiras que ameaçam o povo de Israel e que
nesse sentido são inimigas do deus de Israel, mas não faz nenhuma referência a
uma potência sobrenatural empenhada em frustrar os desígnios divinos. Em
nenhum momento o Gênesis sugere que a serpente que tenta Eva seja um
demônio, ou qualquer coisa além do “mais sutil dentre os animais selvagens
criados por Deus Yahweh”.

O único “satã” que ela menciona é um membro da corte de Yahweh. E os


profetas do exílio e do período posterior esperam por uma época em que os
inimigos do povo eleito sejam destruídos e na qual o próprio povo eleito irá
prosperar em uma terra maravilhosamente fértil e pacífica. Mas não há nenhuma
indicação de que, nessa época, os judeus enquanto indivíduos viverão para
sempre: como as gerações anteriores, todas as gerações futuras irão para o Xeol,
ali permanecendo como pálidas sombras desencarnadas. Com exceção do Livro
de Daniel, a Bíblia hebraica não oferece nenhuma garantia de que os mortos
serão ressuscitados, muito menos de que irão ressuscitar juntos para comparecer
a um Julgamento Final e universal. Tampouco tem algo a dizer sobre um
Messias transcendente que irá realizar tal julgamento e assim levar o tempo e a
história à sua consumação. E, efetivamente, a própria concepção de um mundo
novo e eterno, existente além do tempo e da história, é estranha à Bíblia
hebraica.

Na realidade, essas noções eram inovações tão grandes que, embora


adotadas em sua totalidade apenas por um número relativamente pequeno de
judeus, desencadearam uma controvérsia na comunidade judaica que perdurou
por gerações. Elas eram evidentemente de origem estrangeira — pois, se algum
pensador judeu tivesse sido responsável por uma reinterpretação radical como
essa, com certeza saberíamos algo a respeito dele, no mínimo seu nome.
Portanto, o que dizer de uma possível influência do zoroastrismo?1

Os adeptos de Zoroastro sempre haviam acreditado em uma gloriosa


consumação futura, quando o mundo seria transformado e todos os justos,
inclusive os mortos, seriam dotados de corpos imortais e incorruptíveis. Sempre
acreditaram também que atuava no mundo uma potência sobrenatural e
destrutiva. Para se avaliar quanto o Satã/Beliar cristão e judeu deve ao
zoroastrismo, basta lembrar o que o Avesta diz de Angra Mainyu.2 Pois Angra
Mainyu também introduziu a morte no mundo e é a causa das deformidades e
aflições corporais, também é chamado de “pai das mentiras” e também é o líder
de um exército de demônios. E, no final, ele também será completamente
derrotado pelo deus supremo.

Além disso, a única grande diferença entre Angra Mainyu e o Diabo judeu-
cristão já desaparecera na época em que qualquer judeu poderia ter recebido todo
o impacto dos ensinamentos de Zoroastro.

Pois, se na concepção original Angra Mainyu era coevo do deus supremo e


quase seu igual, ele já não era visto assim no zurvanismo, a versão do
zoroastrismo conhecida no Ocidente durante a época helenística.3 Essa
heterodoxia parece ter se desenvolvido sob os últimos aquemênidas nas terras
ocidentais, sobretudo na Babilônia, e foi adotada como ortodoxia por aqueles
monarcas. O zurvanismo era um monismo: postulava um deus supremo, Zurvan
(isto é, “Tempo”), que criara tanto Ahura Mazda como Angra Mainyu. Tal
doutrina podia ser mais facilmente harmonizada com a crença judaica do que o
zoroastrismo original. Nos apocalipses e nos manuscritos de Qumran, o Diabo
também é uma criatura de Deus e submissa a ele. A Regra da comunidade de
Qumran, por exemplo, conta de que modo os espíritos da verdade e da falsidade,
da luz e das trevas, competiam pelo domínio sobre os seres humanos, ainda que
Deus estivesse acima de ambos. Também no Livro dos Jubileus o espírito
destrutivo — Mastema, Beliar ou Satã — e sua hoste demoníaca são criaturas de
Deus e agem apenas com sua permissão.

As similaridades entre as crenças zoroastrianas e aquelas disseminadas


pelos grupos judaicos apocalípticos compreendiam inclusive questões
secundárias. Os anjos protetores que auxiliam Deus no governo do mundo
lembram os Amesha Spentas: no Livro dos Jubileus, eles são até mesmo
encarregados, tal como os assistentes de Ahura Mazda, de supervisionar aspectos
específicos do cosmos. Quando, no I Enoque, os arcanjos Rafael e Miguel
derrotam respectivamente os arquidemônios Azazel e Semyaza, eles os amarram
e os enterram sob a terra, debaixo de grandes amontoados de rochas, para que
esperem ali o dia do julgamento: na legenda zoroastriana, o arquidemônio Azi
Dahaka tem exatamente o mesmo destino. Acima de tudo, a divisão do tempo
em várias eras do mundo, característica do zurvanismo, encontra-se também em
diversos apocalipses. O paralelismo é espantoso sobretudo no caso do Livro de
Daniel: o simbolismo dos quatro metais, representando as quatro eras do mundo,
tem sua contrapartida no apocalipse zoroastriano conhecido como Vahman
Yasht, composto na época da conquista macedônica.4 Até mesmo o curioso
detalhe de que a quarta e última época é simbolizada por “ferro e argila, juntos”
está presente na obra persa — e em nenhuma outra parte: não há nenhuma
menção a isto em Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, a fonte grega dessa
tradição.

Isto não quer dizer que não existam diferenças entre as expectativas
zoroastrianas (ou zurvanitas) e as expectativas judaicas. Nem o destino dos
indivíduos após a morte nem o destino do mundo após a grande consumação são
concebidos da mesma maneira. Para os zoroastrianos, até o Juízo Final as almas
individuais viviam no céu ou no inferno, desfrutando suas recompensas ou
sofrendo suas penas conforme a vida que haviam levado na terra. Após o
julgamento universal, elas poderiam se reunir a seus corpos — e então os justos
viveriam para sempre na terra tomada perfeita, ao passo que os pecadores seriam
simplesmente aniquilados. Nos apocalipses judaicos, os mortos dormiriam até o
Juízo Final e só então os pecadores seriam condenados à punição eterna. A visão
zoroastriana de um mundo vindouro plenamente bom e feliz, expurgado do mal
e do sofrimento, não tem portanto nenhum paralelo judaico: nos apocalipses, o
inferno continua a existir — imperfeição medonha num mundo perfeito em tudo
o mais. É como se os autores dos apocalipses estivessem tentando reconciliar
concepções zoroastrianas com as antigas noções israelitas/judaicas do Xeol.
A despeito disso, as semelhanças entre o zoroastrismo e as concepções
expressas nos apocalipses judaicos são por demais extraordinárias para que
possam ser explicadas por uma coincidência.


Capítulo 2

Já se objetou muitas vezes — e se continua a fazê-lo — que os judeus não


poderiam ter grande conhecimento a respeito do zoroastrismo, uma vez que o
Avesta só foi compilado no século VI ou V a.C. No entanto, esse argumento não
é válido: na verdade, os judeus tiveram muitas oportunidades para se familiarizar
com os fundamentos do zoroastrismo.5

Durante cerca de dois séculos a Judéia fez parte do vasto império


aquemênida, em cujos limites também viviam os judeus da grande diáspora.
O governo aquemênida era até certo ponto benevolente, e assim foi reconhecido pelos judeus: se, por
um lado, há abundante propaganda judaica contra a Babilônia, Grécia e Roma, não há nenhum texto
judaico, bíblico ou rabínico, contra os persas. Além do mais, já na época aquemênida havia certa afinidade
entre as religiões iraniana e judaica. Não se tratava apenas de que os judeus, tal como os zoroastrianos, viam
a si mesmos como povo escolhido para implementar no mundo os desígnios divinos — o Segundo Isaías e
seus sucessores os haviam ensinado a esperar confiantes por uma época em que, sob Deus, eles seriam
senhores de um mundo fértil, próspero e pacífico, e na qual os inimigos seriam enfim destruídos para
sempre. Ainda que relativamente modesta, essa perspectiva terá preparado pelo menos alguns judeus para
simpatizar com as concepções zoroastrianas sobre o “tomar maravilhoso”, sem dúvida muito mais
grandiosas.

Tampouco teriam os judeus dificuldades para tomar conhecimento dessas concepções. Na época
aquemênida, judeus empregados por ricas famílias zoroastrianas como escribas, representantes comerciais,
servos domésticos ou trabalhadores externos podiam facilmente ter sido expostos à religião de seus
senhores. Tal contato teria se prolongado de uma geração a outra, até que os empregados judeus chegassem
a conhecer igualmente o zoroastrismo e a fé judaica — na índia moderna, hindus e muçulmanos
empregados por zoroastrianos passaram pela mesma experiência.

Há indícios mais sólidos sobre os contatos após a queda do império aquemênida. Sabe-se que no
período helenístico os descendentes dos colonos iranianos da época aquemênida eram vizinhos de colonos
judeus em muitas aldeias da Babilônia, na área em torno de Damasco, na Lídia e na Frigia. Ambos os
grupos produziram cidadãos eminentes que serviram juntos nos conselhos das aldeias e das províncias — e,
como o grego se tomara a língua comum dos letrados, a comunicação entre eles terá sido mais fácil do que
antes. E onde quer que vivessem iranianos havia sacerdotes zoroastrianos, muitos dos quais extremamente
devotos e empenhados. Um judeu que conversasse com esses homens, demonstrasse interesse pelas crenças
deles e se dispusesse a harmonizá-las com as suas próprias não teria necessariamente a sensação de estar
traindo a fé que prezava acima de tudo. Porém, se a compreensão do zoroastrismo aumentou na diáspora,
não se limitou a isso: tudo o que resultou de tais contatos logo seria conhecido também na Palestina — pois,
devido às peregrinações e ao envio de contribuições para o Templo, os judeus de toda parte mantinham-se
em contato com Jerusalém.

Nessa época, a mensagem dos sacerdotes zoroastrianos terá ido ao encontro do que alguns judeus
desejavam ouvir. A queda do império aquemênida foi uma experiência traumática para os iranianos. Não
apenas porque um domínio que se considerava divinamente estabelecido e eterno fora obliterado de modo
abrupto e cabal: os aquemênidas foram substituídos primeiro pelas misérias da derrota, em seguida por
gerações de guerra entre os Estados sucessores. Iranianos e judeus não eram mais soberanos e súditos —
eram companheiros de sofrimento em um mundo incerto e atormentado.

Em tais circunstâncias, devem ter adquirido nova urgência as promessas escatológicas incluídas nos
ensinamentos zoroastrianos. Enfrentando os horrores da tirania de Antíoco Epifânio, quando pela primeira
vez foram perseguidos por se manterem fiéis à própria religião e, depois, ao se defrontarem com a
brutalidade do domínio romano, alguns judeus podiam encontrar naqueles ensinamentos a garantia de que o
mal não vinha de Deus mas de um grande adversário de Deus, atuando por meio de representantes
humanos. Também encontravam ali garantia de que o mal não ficaria impune. Tão grande era a
perversidade dos soberanos estrangeiros, tão esmagador o poder das forças do caos, que o próprio cosmos
estava comprometido — mas não por muito tempo: Deus, agindo por intermédio de seus anjos e de seu
Messias, estava prestes a retificar todas as coisas.

Os ensinamentos zoroastrianos eram ainda mais eficazes porque haviam encontrado um novo veículo.
Enquanto o Avesta era transmitido de forma oral, e em iraniano arcaico, agora começava a surgir uma
literatura zoroastriana — e destinada a ser lida por não-iranianos. Oráculos sibilinos persas, modelados em
protótipos gregos e escritos em grego, provavelmente já circulavam no final da época aquemênida. Depois
de o império ter sido conquistado por Alexandre, profecias mais extensas foram produzidas, vaticinando de
que modo o domínio grego seria por sua vez derrubado pelo Saoshyant e de que modo o reino eterno de
Ahura Mazda seria instaurado em uma terra perfeita. Fragmentos dessas obras sobreviveram em meio aos
escritos de apologistas cristãos; e uma delas, os Oráculos de Hystaspes (assim chamada em homenagem ao
patrono de Zoroastro, Vishtaspa), é conhecida em algum detalhe.6 Essas obras certamente terão sido
estudadas pelos eruditos judeus muito antes de existir qualquer cristão: vimos a influência de uma obra
relacionada, o Vahnian Yasht, sobre o autor ou autores do Livro de Daniel.

O apelo do zoroastrismo terá sido reforçado quando, no século II a.C, a potência iraniana reviveu sob
os partos. Quando, no século I a.C., a Judéia caiu sob o severo domínio de Roma, os judeus viram na Pártia
o inimigo mais formidável de Roma. Pompeu e, em seguida, Crasso granjearam enorme impopularidade ao
invadir o Templo — e Crasso chegou a saqueá-lo. Em 53 a.C., Crasso marchou contra os partos e, a
despeito da nítida superioridade numérica, suas legiões foram dizimadas e ele próprio foi morto. Com isso,
os partos tomaram-se ainda mais populares entre os judeus. E em 40 a.C. — quando invadiram a Síria-
Palestina, conquistaram Jerusalém e colocaram no trono um rei judeu no lugar de Herodes, o odiado
preposto romano — podiam ser considerados defensores dos judeus contra os romanos. Embora dois anos
depois Herodes tenha sido reconduzido ao poder pelos romanos, os partos persistiram no esforço de avançar
na direção oeste e expulsar os romanos. Esses acontecimentos com certeza tomaram ainda mais
convincentes as profecias zoroastrianas de redenção, Fim da tirania e chegada do reino de Deus.7

Os contatos entre partos e judeus — mais tarde, inclusive judeus cristãos — prosseguiram fora da
Palestina. A Babilônia, que possuía importante comunidade judaica, encontrava-se sob o domínio parto. E
também na Síria, na Armênia e na Anatólia, as duas culturas permaneceram em contato por inúmeras
gerações.


Capítulo 3

Algumas concepções zoroastrianas foram amplamente aceitas pelos judeus. Assim, os fariseus,
embora pertencentes à principal corrente do judaísmo, não tiveram dificuldade para “interpretar” as
Escrituras à luz das novas doutrinas que consideravam genuinamente judaicas, mas que na verdade eram de
origem zoroastriana.

E, por sua vez, alguns dos primeiros rabinos adotaram tais doutrinas. Por volta da época de Jesus, a
importante escola rabínica liderada por Bet Hillel sustentava que, após a morte, todas as almas seriam
recompensadas ou punidas, no céu ou no inferno, até o fim dos tempos — uma idéia desconhecida na Bíblia
hebraica, mas essencial nos ensinamentos de Zoroastro. E essa herança farisaica perdurou, pois foi
preservada no judaísmo normativo tal como existe hoje, ainda que na prática tenha para os judeus
importância muito menor do que para os cristãos.

Por outro lado, os fariseus nunca aceitaram a idéia de uma grande potência sobrenatural hostil a Deus
— nem mesmo um dualismo limitado lhes interessava, não mais do que ao judaísmo de hoje. A crença no
Diabo, em seu poder e em sua derrocada final permaneceu restrita a certos grupos que haviam se afastado
mais da tradição central do judaísmo. Dois desses grupos ficaram conhecidos na história: a seita de Qumran
e a seita de Jesus.

Já na época em que os Manuscritos começaram a ser divulgados, entre 1947 e 1956, os estudiosos
ficaram impressionados com a afinidade entre a Regra da comunidade, com sua doutrina dos dois grandes
espíritos antagônicos, e a doutrina de Zoroastro, sobretudo na versão zurvanita.8 E embora a seita de
Qumran tenha sido aniquilada ainda antes da queda de Jerusalém, a seita de Jesus, transformada na Igreja
cristã — e, depois, nas Igrejas cristãs —, acabaria mantendo viva ao longo dos séculos uma mescla muito
semelhante de dualismo e escatologia.

Em seguida, há a questão do agente de Deus nos últimos dias. O Messias do Livro do Apocalipse tem
muito menos em comum com qualquer figura messiânica da Bíblia hebraica do que com os guerreiros
divinos nas várias versões do mito do combate — e, dentre eles, nem Indra, nem Marduk, nem Ba’al, nem o
Yahweh primitivo permitem um paralelo tão próximo quanto o Saoshyant zoroastriano. Pois espera-se que
Zoroastro retome, ressurrecto e glorificado, no Saoshyant miraculosamente gerado de sua semente, a fim de
combater e derrotar as hostes demoníacas, trazer os mortos de volta à vida e conduzir o julgamento
escatológico — e o Apocalipse nos diz que do Cristo ressurrecto e glorificado devemos esperar as mesmas
façanhas. Além disso, em ambos os casos a volta do redentor assinala o fim dos tempos e o início do mundo
além do tempo, o reino de Deus na terra.9

Consideradas todas as coisas, dentre os grupos marginais do judaísmo aparentemente a seita que
estava mais exposta à influência do zoroastrismo era a de Jesus. Não há nada de estranho nisso. Sabemos
hoje que desde muito tempo a cultura iraniana estava firmemente estabelecida em áreas para onde seguiram
os primitivos cristãos.10 Havia, por exemplo, forte influência zoroastriana na Anatólia, região de grande
importância no desenvolvimento inicial do cristianismo. E uma região muito bem conhecida pelo autor do
Livro do Apocalipse.

Logo, evidentemente, o cristianismo transformou-se em uma religião muito diferente tanto do


judaísmo quanto do zoroastrismo. Que a morte de Jesus fora um ato redentor, por meio do qual Deus
oferecera aos homens a oportunidade de se salvar das conseqüências do pecado — isto era algo
inteiramente novo e permanece até hoje como fundamento das crenças das principais Igrejas cristãs. No
entanto, o que o cristianismo havia tomado do zoroastrismo também permaneceu, também se difundiu por
todos os continentes ao longo dos séculos, até alcançar o mundo moderno.


POSFÁCIO

Este livro trata de uma grande mudança na história da consciência humana, buscando descrever como
o destino do mundo e dos seres humanos veio a ser imaginado de uma nova maneira e de que modo se
difundiram essas novas expectativas. Uma breve recapitulação do argumento principal talvez não seja
ociosa.

Até por volta de 1500 a.C, povos como os egípcios, sumérios, babilônios, indo-iranianos e seus
descendentes hindus e iranianos, cananeus, israelitas do período anterior ao exílio, todos concordavam que,
no início, o mundo havia sido organizado, posto em ordem, por um ou por vários deuses, e que em seus
aspectos essenciais esse mundo era imutável. Para cada um desses povos, a segurança — isto é, a fertilidade
da terra, a vitória na guerra, a estabilidade das relações sociais sancionadas pelo costume e pela lei — era o
signo exterior e visível de que havia de fato uma ordem estabelecida nos céus.

No entanto, essa ordem nunca foi tranqüila, estava sempre ameaçada por forças malignas e
destrutivas — por vezes identificadas com enchentes e secas, pragas ou fome, inércia ou a própria morte,
mas, outras vezes, com povos hostis ou conquistadores tirânicos. No mito do combate, em suas várias
formulações, o conflito entre a ordem universal e as forças que a ameaçavam invadir e destruir — ou seja, o
conflito entre o cosmos e o caos — ganhou expressão simbólica. Um jovem herói ou guerreiro divino
recebia dos deuses a tarefa de manter sob controle as forças do caos; em troca, era recompensado com a
soberania sobre o mundo.

Entre 1500 e 1200 a.C, Zoroastro rompeu com essa visão de mundo estática, mas aflitiva. E o fez
reinterpretando de maneira radical a versão iraniana do mito do combate. Na concepção de Zoroastro, o
mundo não era estático nem seria sempre turbulento. Agora mesmo o mundo estava se aproximando, por
meio de incessantes conflitos, de um estado sem nenhum conflito. Chegaria um momento em que, em uma
prodigiosa batalha final, o deus supremo e seus aliados sobrenaturais derrotariam as forças do caos e seus
aliados humanos, aniquilando-os de uma vez por todas. A partir de então, a ordem divinamente estabelecida
estaria presente de maneira absoluta: as necessidades e as misérias físicas seriam desconhecidas, não
haveria nenhum inimigo ameaçador e na comunidade dos redimidos reinaria a unanimidade absoluta; em
uma palavra, a ordem do mundo jamais voltaria a ser perturbada ou ameaçada.

Desconhecida antes de Zoroastro, essa expectativa influenciou profundamente determinados grupos


judaicos, como o comprovam alguns dos apocalipses e alguns dos manuscritos encontrados em Qumran. E,
sobretudo, influenciou a seita de Jesus, com consequências incalculáveis.

Neste livro, a narrativa dessa mudança segue apenas até o final do século I d.C. — mas a história
continuou ao longo dos séculos. E que história! Muita especulação teológica; incontáveis movimentos
milenaristas, inclusive os que hoje prosperam com tanto vigor nos Estados Unidos; e até mesmo a atração
exercida pela ideologia marxista-leninista — tudo isto pertence a essa história.1 A tradição cujas origens
estudamos aqui continua viva e poderosa. Quem sabe dizer que fantasias, religiosas ou seculares, ela ainda
pode engendrar no imprevisível futuro?


NOTAS

As notas incluem tanto referências bibliográficas como questões de interesse mais acadêmico. De
maneira geral, as obras estão relacionadas segundo a ordem cronológica de sua publicação original. Na
primeira menção de uma obra são dados o título completo, a data e o local de publicação. Nas referências
posteriores que não estejam muito distantes da inicial, mas onde a indicação “op. cit.” não seria suficiente,
aparece o título resumido. Periódicos e traduções de textos são indicados da mesma maneira. Os periódicos
e as coleções citados com mais freqüência são designados por abreviações. [As referências bíblicas em
português foram extraídas de A Bíblia de Jerusalém das Edições Paulinas, São Paulo, 1991. (N. E.)]


1. EGITO (pp. 15-50)

Sobre a civilização e a concepção de mundo do Antigo Egito: J. H. Breasted, The development of religion and thought
in Ancient Egypt, Nova York, 1912, reimp. 1972; J. Baillet, Le régime pharaonique dans ses rapports avec l’évolution de la
morale en Égypte, 2 vols., Blois, 1912-3; John A. Wilson, “Egypt”, in H. Frankfort et a!., The intellectual adventure of ancient
man, Chicago, 1946, reimp. 1977 (ed. inglesa: Before philosophy, Harmondsworth, esgotado); H. Frankfort, Kingship and the
gods: A study of Near Eastern religion as the integration of society and nature, Chicago, 1948, reimp. 1978; idem, Ancient
Egyptian religion: An interpretation, Nova York, 1949; John A. Wilson, The burden of Egypt, Chicago, 1951. reimp. 1956
como The culture of Ancient Egypt* J. Cerny, Ancient Egypt religion, Londres etc., 1952; W. C. Hayes, The scepter of Egypt,
2 vols., Nova York, 1953, 1959; S. Morenz, Egyptian religion, Londres e Ithaca, N.Y., 1973 (trad. do orig. alemão de 1960);
A. H. Gardiner, Egypt of the pharaohs, Londres, 1961; C. J. Bleeker, “The religion of Ancient Egypt”, in C. J. Bleeker & G.
Widengren (eds.), Historia religionum, vol. 1, Leiden, 1969; Phillipe Derchain, “La religion égyptienne”, in H.-C. Puech (ed.),
Histoire des religions, vol. I, Paris, 1970, pp. 63-104; W. W. Hallo & W. K. Simpson, The Ancient Near East: A history, 1971,
Nova York, parte 2;

E. Homung, Conceptions of god in Ancient Egypt: The one and the rnany, 1982 (trad. do orig. alemão de 1971); idem, “Verfall
und Regeneration der Schõpfung”, Eranos 46 (1977), reed. Frankfurt, 1981,411 -49; A. R. David, Cult of the sun: Myth and magic in
Ancient Egypt, Londres etc., 1980; idem, The ancient Egyptians: Religious beliefs andpractices, Londres, Boston etc., 1982;

B. G. Trigger, B. J. Kemp, D. 0’Connor & A. B. Lloyd, Ancient Egypt: A social history, Cambridge, 1983; B. J. Kemp, Ancient
Egypt: Anatomy of a civilization, Londres e Nova York, 1989; D. B. Redford, Egypt, Canaan and Israel in ancient times, Princeton,
1992.

Essa data e as seguintes encontram-se em Kemp, op. cit., 1989, p. 14.


Trad. R. O. Faulkner, The ancient Egyptian pyramid texts, Oxford, 1969, parag. 1466b. Sobre o caos primordial, cf.
Hornung, op. cit., pp. 174-7;


H. Grapow, “Die Welt vor der Schõpfung”, Zeitschrift für âgyptische Sprache und Altertumskunde 67 (Leipzig, 1931), pp. 34-
8.

Cf. J. Assmann, Zeit und Ewigkeit im Alten Àgypten, Heidelberg, 1975, pp. 21-2, 30; Hornung, “Licht und Finstemis in
der Vorstellungswelt Altágyptens”, Studium Generale 18 (Berlim, 1965), pp. 73-83, esp. p. 78.
Cf. Hornung, Conceptions ofgod, p. 170, com referências na nota 105. Uma variante do mito cosmogônico é descrita
em Hornung, Der âgyptische Mythos von der Himmelskuh. Eine Àtiologie des Unvollkommenen, Gõttingen, 1982 (com
resumo nas pp. 96 ss.).
Sobre o demiurgo e a cosmogonia: S. Sauneron & J. Yoyotte, “La naissance du monde selon 1’Egypte ancienne”, in
La naissance du monde, Paris, 1959 (Sources orientales, vol. 1), pp. 19-91; e. de forma mais resumida, David, Ancient
Egyptians, pp. 46-9.
Trad. Bleeker, op. cit., p. 52.
Sobre o conceito de ma’at: Morenz, op. cit., cap. 6; Bleeker, “L’idée de Tordre cosmique dans P ancienne Égypte”, r
hpr 42 (1962), pp. 193-200;

W. Westendorf, “Ursprung und Wesen der Ma’at*\ in F. Comelius (ed.), Festgabe für Walter WUl, Munique, 1966, pp. 201-
25; Hans Heinrich Schmid, Gerechtigkeit ais Weltordnung, Tübingen, 1968, pp. 46-61; J. Bergman, “Zum ‘Mythus vom Staat’ im
Alten Àgypten”, in H. Biezais (ed.), The myth ofthe State, Estocolmo, 1972, pp. 80-101; L. G. Perdue, Wisdom and cult. A criticai
analysis of the views of cult in the wisdom literature of Israel and the Ancient Near East, Missoula, 1977, pp. 19-28; A. Brodie & J.
Macdonald, “The concept of cosmic order in Ancient Egypt in Dynastic and Roman times”, LAntiquité Classique 47 (Bruxelas, 1978),
pp. 106-28; L. Epsztein, La justice sociale dans le Proche-Orient Ancien et le peuple de la Bible, Paris, 1983, pp. 421-78; artigo
“Ma’at”, em l a 3, cols. 1110-9.

Cf. Bleeker, Egyptian festivais: Enactments of religious renewal,

Leidcn, 1967, pp. 54-5.

Trad. Bleeker, Hathor and Thoth: Two key figures in ancient Egyptian religion, Leiden, 1973, p. 122.
Cf. J. Spiegel, “Der Sonnengott in der Barke ais Richter”, Mitteilungen des deutschen archaologischen Instituts,
Abteilung Kairo 8 (Berlim, 1939), pp. 201-6.

(12) Cf. p. 30 fp. 28 do ms.].

Livro dos mortos, cap. 26. (Para as traduções, ver nota 61.) Cf. sobre o trecho relevante: J. Assmann, Der Kõnig ais
Sonnenpriester, Glückstadt, 1970, pp. 60-4.
Sobre Thoth: Bleeker, Hathor and Thoth.
Idem, ibid., p. 119.
Idem, ibid., p. 122.
Sobre a natureza da monarquia egípcia, ver, além dos trechos relevantes nas obras citadas na nota 1: A. Moret, Du
caractère de la royauté pharaonique, Paris, 1902; H. Goedicke, Die Stellung des Kõnigs im Alten Reich, Wiesbaden, 1960; G.
Posener, De la divinité du pharaon, Paris, 1960.
Sobre Seth: Herman te Velde, Seth, god of confusion: A study ofhis role in Egyptian mythology and religion, Leiden,
1967; E. Hornung, “Seth:


Geschichte und Bedeutung eines àgyptischen Gottes”, Symbolon. Jahrbuch für Symbolforschung, nova série, 2 (Colônia,
1974). O relato mais completo do mito de Seth e Osíris é o de Plutarco em De Iside et Osiride, mas o mito certamente é muito antigo.

Trad. Kemp, op. cit., p. 198. Cf. H. Brunner, Die Geburt des Gottkonigs, Wiesbaden, 1964.
Trad. Kemp, em B. G. Trigger et al., Ancient Egypt: A social history,

p. 74.

Ambas as traduções: Morenz, op. cit., pp. 120-1.


Ambas as traduções: Bleeker, ‘The religion of Ancient Egypt”, p. 79.
Trad. J. H. Breasted, Ancient records of Egypt, 5 vols., Chicago, 1906-7,

vol. 4, p. 228.

Idem, ibid., vol. 3, p. 119.


Idem, ibid., vol. 4, p. 26.
Trad. A. Erman & A. M. Blackman, The literature of the ancient Egyptians, Londres, 1927, pp. 278-9.
Ambas as traduções: a net, pp. 415, 417. Sobre o contexto histórico:

R. J. Williams, “Literature as a médium of political propaganda in Ancient Egypt”, em W. S. McCullough (ed.), The seed
ofwisdom: Essays in honour ofT J. Meek, Toronto, 1964, pp. 14-30, esp. pp. 14-9.

Cf. Perdue, op. cit. (ver nota 8), pp. 26-7.


Trad. Morenz, op. cit., p. 115.
Cf. Baillet, op. cit., vol. 1, pp. 276-8.
Cf. Bleeker. loc. cit.
Trad. Morenz, op. cit., p. 50.
Trad. Breasted, op. cit., vol. 3, p. 79.
Idem, ibid., vol. 2, pp. 263-6.
Cf. Homung, Geschichte ais Fest, Darmstadt, 1966, pp. 14-5, com referências na p. 55 e notas 13 e 15. Trad. do texto:
A. H. Gardiner, The Kadesh inscriptions ofRameses II, Oxford, 1960, pp. 7-14.
Ver, por exemplo, W. Helck, “Die Àgypter und die Fremden”,

Saeculum 15 (Freiburg e Munique, 1964), pp. 103-15, esp. p. 105.

O tema já está presente na “Narmer pallete”, que é pré-dinástica; ver reproduções e comentários in Kemp, Ancient
Egypt: Anatomy of a civilization, p. 42.
Cf. os artigos “Feindsymbolik”, l a 2, cols. 146-8, e “Vemichtungsrituale”, ibid. 6, cols. 1010-2; Homung. loc. cit., p.
17; Kemp, loc. cit., p. 47.
Sobre essa literatura: F. Junge, “Die Welt der Klagen”, in Fragen altügyptischer Literatur, Wiesbaden, 1977, pp. 275-
8, esp. pp. 283-4; J. Assmann, “Kõnigsdogma und Heilserwartung Politische und kultische Chaosbes-chreibungen in
àgyptischen Texten”, hell ho l m, pp. 345-77.
Trad. M. Lichtheim, Ancient Egyptian literature, 3 vols., Berkeley etc., 1973-8, vol. 1, pp. 140-4.
Trad. completa em idem, ibid., pp. 150-61.
Idem, ibid., pp. 134-5. (43) Cf. p. 37 (p. 48 do ms.).


Sobre Apófis: E. A. W. Budge, Legends of the gods, edited with translations, Londres, 1912, pp. 12 ss.; Hornung, op.
cit., pp. 158-9; artigo em l a 1, cols. 350-2.
Trad. A. J. Wilson em a net, p. 7.
O texto remanescente (no papiro Bremner-Rhind. do Museu Britânico) data apenas do século III a.C., mas seu
conteúdo é cerca de dois milênios mais antigo. Para uma tradução de toda a obra: R. O. Faulkner, in Journal of Egyptian
Archaeology 22 (Londres, 1936). pp. 221 ss.; ibid. 23 (1937), pp. 10 ss.; ibid. 26 (1938), pp. 41 ss. Para um breve relato, com
citações: Budge, From fetish to god in Ancient Egypt, Oxford, 1934, pp. 516-21.
Cf. Hornung, “Chaotische Bereiche in der geordneten Welt”,

Zeitschrift für àgyptische Sprache 81 (1956), pp. 28-32.

Cf. David, Ancient Egyptians, pp. 127-32; idem, Cult of the sun, pp.

67-70.

Cf. Derchain, “La religion égyptienne”. pp. 91 ss.


Cf. Derchain, Le papyrus Salt 825: Rituel pour la conservation de la

vie en Égypte. Bruxelas, 1965, passim, esp. pp. 17, 125; J. Leclant, “Espace et temps, ordre et chãos dans 1’Égypte
pharaonique”, Revue de Synthèse 90 (Paris, 1969), pp. 217-39.

Cf. Hornung, Conceptions of god, pp. 214-5, com reprodução do relevo de Kamak; Bergman, op. cit. (ver nota 8), esp.
pp. 83-93, com reprodução do relevo de Kom Ombo.
Cf. D. Meeks, “Génies, anges et démons en Égypte”, em Génies, anges et démons. Paris, 1971 (Sources orientales,
vol. 8), pp. 19-84.
Cf. Hornung, Geschichte ais Fe st, p. 15.
Cf. Westendorf, “Ursprung und Wesen der Ma’at” (ver nota 8), p. 223; Derchain, “La religion égyptienne”, p. 100.
Todos os estudos da religião egípcia tratam de Osíris e seu culto. Para bibliografia suplementar: David, Ancient Egyptians, p.
242.
Cf. Assmann, Zeit und Ewigkeit, p. 47.
Cf. Hornung, “Licht und Finstemis”, p. 80.
Cf. Hornung, Conceptions of god, pp. 93, 95.
Cf. Leclant, op. cit., p. 235.
Cf. o Livro dos mortos, cap. 175 (para as traduções, ver nota 61); também Hornung, Der àgyptische Mythos von der
Himmelskuh, p. 104.
Cf. C. C. McConn, “Egyptian apocalyptic literature”, Harvard Theological Review 18 (1925), pp. 357-411; G.
Lanczkowski, Altàgyptischer Prophetismus, Wiesbaden, 1960; Jonathan Z. Smith, Map is not territory, Leiden, 1978, pp. 74-
87, esp. o sumário conciso das principais características da profecia egípcia na p. 76; Assmann, “Kõnigsdogma und
Heilserwartung. Politische und kultische Chaosbeschreibungen in ágyptischen Texten”, hk ll ho l m, pp. 345-78. Nem mesmo
a “profecia escatológica”, mencionada no final da obra de Lanczkowski, fala de um futuro sem qualquer referência ao passado.
Concepções sobre a vida após a morte aparecem de maneira proeminente na maioria das obras sobre a visão de mundo
egípcia; uma delas, particularmente exaustiva, é David, Ancient Egyptians. Para estudos detalhados, ver A.


H. Gardiner, The attitude of the ancient Egyptians to death and the dead, Cambridge, 1935 (Conferência Frazer); H. Kees,
a
Totenglaube und Jenseits-vorstellungen der alten Àgypter, 2 ed., Berlim, 1956; A. J. Spencer, Death in Ancient Egypt,
Harmondsworth, 1982, esp. cap. 6. E. Homung, The valley of the kings. Horizon of etemity, Nova York, 1990 (trad. da ed. alemã de
1982), esclarece essa questão muito mais do que se poderia supor pelo tema da obra, os túmulos reais do Novo Império. Valiosas
coleções de textos traduzidos, ilustrando as concepções sobre a vida após a morte, são, para o Antigo Império e o Primeiro Período
Intermediário; S. A. B. Mercer, Thepyramid texts in transiation and commentary\ 4 vols.. Londres, Nova York etc., 1952, e R. O.
Faulkner, The ancient Egyptian pyramid texts, Oxford, 1969; para o Médio Império: Faulkner, The ancient Egyptian coffin texts, 3
vols., Warminster, 1973-8; para o Novo Império: E. A. W. Budge, The hook of the dead, 3 vols., Londres, 1898; T.

G. Allen, The book of the dead or Going forth by day, Chicago, 1974; Faulkner,

The ancient Egyptian book of the dead, Londres, 1972, ed. rev. 1985.

Cf. a inscrição no túmulo de um príncipe do Novo Império, traduzida em parte em Gardiner, The attitude of the
ancient Egyptians, pp. 29-30, e em parte em K. Sethe, Urkunden der 18. Dynastie, Leipzig, 1914, p. 58.
Cf. Westendorf, “Ursprung und Wesen der Ma’at” (ver nota 8), esp. p. 216.
Cf. Hornung, Altagyptische Hõllenvorstellungen. Berlim, 1968 (Abhandlungen der sàchsichen Akademie der
Wissenschaften, Philologisch-historische Klasse 59, 3). Para uma abordagem mais geral: J. Zandee, Death as an enemy,
Leiden, 1960, esp. pp. 14-41.
Trad. Gardiner, op. cit., p. 32.

1. MESOPOTÂMIA (pp. 51-83)

1. Sobre a civilização e a visão de mundo dos sumérios: S. N. Kramer, Sumerian mythology, Filadélfia, 1944 (Memoirs of
the American Philosophical Society 21); idem, History begins at Sumer, Londres, 1958; idem, The Sumerians: Their history,
culture and character, Chicago, 1963. Sobre a civilização e a visão de mundo da antiga Mesopotâmia em geral: T. Jacobsen,
“Mesopotâmia”, em H. Frankfort et al., The intellectual adventure of ancient man\ Frankfort, Kingship and the gods (para este
e o anterior, ver nota 1 do cap. 1) : E. Dhorme, Les religions de Babylonie et d’Assyrie, Paris, 1949 (vol. 2 da coleção Mana);
J. Bottéro, La religion babylonienne. Paris. 1952; H. W. F. Saggs, The greatness that was Babylon, Londres, 1962, ed. rev.
1988; A. L. Oppenheim, Ancient Mesopotâmia: Portrait of a dead civilization, Chicago, 1964; J. Nougaryol, “La religion
babylonienne”, em H.-C. Puech (ed.), Histoire des religions, vol. 1, Paris, 1970;

W. W. Hallo & W. H. Simpson, The Ancient Near East: A history, Nova York etc., 1971, parte 1; H. Ringgren, Religions of the
Ancient Near East, ed. ing., Londres, 1973; T. Jacobsen, The treasures of darkness: A history of Mesopotamian religion, New Haven e
Londres, 1976; Saggs, The encounter with the divine in Mesopotâmia and Israel, Londres, 1978; Joan Oates, Babylon, Londres. 1979,
ed. rev. 1986; G. Roux, Ancient Iraq, ed. rev., Harmondsworth, 1980; John Gray,


Near Eastem mythology, 2* ed., Londres, 1982, pp. 6-105; Saggs, The might that was Assyria, Londres, 1984; J. Bottéro,
Mésopotamie: Lécriture, la raison et les dieux, Paris, 1987.

Ver também os artigos de Kramer, “Mythology in Sumer and Akkad”, em Kramer (ed.), Mythologies of the ancient world,
Nova York, 1961; de Jacobsen, “Ancient Mesopotamian religion: The central concems”, em Proceedings of the American
ü
Philosophical Society 107, n 6 (Filadélfia, 1963), pp. 473-84; de W.

G. Lambert, “Destiny and divine intervention in Babylon and Israel”, em A. S. Van der Woude (ed.), The witness of tradition,
Leiden, 1972, pp. 65-72; S. N. Kramer & J. Maier, Myths ofEnki, The crafty god, Nova York e Oxford, 1989, esp. cap. 3, “Enki and
Inanna: The organization of the earth and the cultural processes”.

1. Trad. Jacobsen, Treasures of darkness, p. 57.


2. Trad. Kramer, History begins at Sumer, p. 143.
3. Sobre o princípio de retidão/correção/verdade/justiça na Mesopotâmia:

B. Geiger, Die Amesha Spentas, ihr Wesen und ihre ursprüngliche Bedeutung, em Sitzungsberichte der kaiserlichen Akademie
der Wissenschaften in Wien 176 (Viena, 1916), esp. pp. 144-7; Benno Landsberger, “The conceptual autonomy of the Babylonian
world”, originalmente uma Conferência Inaugural (Leipzig, 1926), reed. e trad. em Jacobsen et al., Monographs on the Ancient Near
East, vol. 1, fase. 4. Malibu, Cal., 1976, esp. p. 13; E. A. Speiser, “Authority and law in Mesopotamia”, ja os, suplemento 17 (1954)
(Authority and law in the Ancient Orient), pp. 10-5; J. van Dijk, “Einige Bemerkungen zu sumerischen religionsgeschichtlichen
Problemen”, Orientalische Literaturzeitung 62 (Berlim, 1967), cols. 229-47, esp. col. 231; H. Ringgren, Religions of the Ancient Near
East, pp. 43,103, 112-3. Sobre o relacionamento do sol, ou do deus-sol, com esse princípio: Geiger. loc. cit.; R. Labat, Le caractere
religieux de la royauté assyro-babylonienne. Paris, 1939, pp. 228-33; Hans Heinrich Schmid, Gerechtigkeit ais Weltordnung,
Tübingen, 1968, pp. 61-5; Ringgren, op. cit., pp. 9, 39, 44, 58-9. Para os hititas, ver O. R. Gumey, The Hittites, Londres, 1952, p. 139.
Para outras culturas: R. Pettazoni, The all-knowing g (?d, ed. ing., Londres, 1956, passim; e o cap. 1 desta obra.

1. Sobre o conceito de me: J. van Dijk, La sagesse suméro-accadienne, Leiden, 1953, p. 19; H. H. Schmid, Wesen und
Geschichte der Weisheit: Eine Untersuchung zur altorientalischen und israelitischen Weisheitsliteratur, Berlim, 1966, pp.
115-8; idem, Gerechtigkeit ais Weltordnung, pp. 61-5; G. Farber-Flügge, Der Mythos “Inanna und Enki “ unter besonderer
Berücksichtigung der Liste der me, Roma, 1973, esp. pp. 118-22, 197-9; L. G. Perdue, Wisdom and cult: A criticai analysis of
the views of cult in wisdom literature of Israel and the Ancient Near East, Missoula, 1977, pp. 85-94.
2. Para o que vem a seguir, cf. Labat, op. cit., pp. 234-5; Saggs, The greatness that was Babylon, pp. 364-9.
3. Sobre o papel do rei, além dos trechos relevantes nas obras listadas na nota 1 acima, ver: Labat, op. cit., passim; W. G.
Lambert, “The seed of kingship”, em P. Garelli (ed.), Le palais et la royauté (Archéologie et civilisation), Paris, 1974, pp. 427-
40.

1. Cf. Labat, op. cit., p. 280.


2. A partir da tradução para o alemão em A. Falkenstcin, “Sumerische religiõse Texte”, Zeitschrift für Assyriologie 16,
nova série (Berlim, 1952), pp. 79-80.
3. Cf. Labat, op. cit., pp. 232-3.
4. Trad. T. J. Meek, em a net, p. 164.
5. Trad. T. J. Meek, ibid., p. 178. Cf. os hinos régios traduzidos em Jacobsen, Treasures of darkness, p. 98, e em W. H. P.
Rõmer, Sumerische Kònigshymnen der Isin-Zeit, Leiden, 1965, p. 11.
6. Trad. Jacobsen, op. cit., p. 79.
7. Trad. Jacobsen, ibid., p. 231.
8. Trad. Jacobsen, ibid., p. 137.
9. Trad. Jacobsen, ibid., p. 238.
10. Sobre o tema do deus-herói versus o monstro do caos — o chamado “mito do combate” — na Antigüidade, ver J.
Fontenrose, Python: A síudy in Delphic myth and its origins, Berkeley, 1959; N. Forsyth, The old enemy: Satan and the
comhat myth, Princeton, 1987; e, em um nível mais popular, U. Steffen, Drachenkampf: Der Mythos vom Bõsen, Stuttgart,
1984. Também relevante para o presente capítulo: M. Wakeman, The battle of god against the monster, Leiden, 1973, esp. pp.
7-22.
11. Cf. J. Bottéro, “Le mythe d’Anzu’% Annuaire de la /V^ Section de TÉcole Pratique des Hautes Études (1970-71), pp.
116-29; e, para uma interpretação diversa, Jacobsen, op. cit., pp. 132-3. Ver também B. Hruska, Der Mythenadler Anzu in
Literatur und Vorstellungen des alten Mesopotamien, Budapeste, 1975. Para uma nova tradução deste e de outros mitos
acadianos examinados aqui, ver Stephanie Dalley, Myth from Mesopotamia, Oxford e Nova York, 1989. Para um poema que
tem como tema Ninurta, os deuses reunidos e Enlil: J. C. Cooper. The return of Ninurta to Nippur, Roma (Pontificium
Institutum Biblicum), 1978, esp. a introdução do editor, pp. 2-12.
12. A edição definitiva desse mito encontra-se agora em J. van Dijk, Lugal Ud Me-Lam-bi Nir-Gal, Leiden, 1983, que
inclui uma longa introdução e uma tradução para o francês. Para interpretações anteriores: Kramer, “Mythologies of Sumer
and Akkad”, p. 105; e Jacobsen, op. cit., pp. 130-1. Sobre a polêmica entre esses dois estudiosos, ver G. S. Kirk, Myth: Its
meaning and functions in ancient and other cultures, Cambridge (Inglaterra), Berkeley e Los Angeles, pp. 90-1. Sobre a
antigüidade do mito, ver, além de Van Dijk, W. G. Lambert, “A new look at the Babylonian background of Genesis”, Journal
ofTheological Studies 16. nova série (Oxford, 1965), pp. 285-300, esp. p. 296.
13. Trad. Kramer, Sumerian mythology, p. 81; e cf. Van Dijk, pp. 96-7.
14. Encontram-se traduções para o inglês de Enuma elish em S. Langdon, The Babylonian epic of creation, Oxford, 1923;
A. S. Heidel, The Babylonian Genesis: The story of creation, Chicago, 1946; E. A. Speiser, em a net, pp. 60-

72. Para análises exaustivas da obra: Jacobsen, op. cit., pp. 167-91; Bottéro, Mythes et rites de Babylone, Paris, 1985, pp. 113-
62. Sobre a data provável de composição: W. G. Lambert, “The reign of Nebuchadnezzar I”, em W. S. McCullough (ed.), The seed of
wisdom, Toronto, 1966; W. Sommerfeld, Der


Aufstieg Marduks. Die Stellung Marduks in der babylonischen Religion des zweiten Jahrtausends v. Chr., Neukirchen-Vluyn,
1982, esp. p. 175.

1. Trad. Jacobsen. op. cit., p. 182.


2. Trad. Frankfort, Kingship and the gods, p. 327.
3. Cf. Lambert, “The great battle of lhe Mesopotamian religious year: The conflict in the Akitu house”, Iraq 25 (Londres,
1963), pp. 189-90.
4. Cf. Roux, Ancient Iraq, pp. 104-5, 365-9. Há extensa literatura sobre

o akitu; para um relato que aponta várias interpretações equivocadas, ver J. A. Black, “The New Year ceremonies in Ancient
Babylon: ‘Taking Bei by the hand”‘, Religion 11 (Londres, 1981), pp. 39-59.

1. Trad. Jacobsen, op. cit., pp. 102-3.


2. Trad. W. G. Lambert, Babylonian wisdom literature, Oxford, 1960, p. 41.
3. Sobre o mito de Atrahasis: Jacobsen, op. cit., pp. 116-21.
4. Trad. Jacobsen, op. cit., pp. 87-8.
5. Trad. para o inglês: L. Cagni, The poem ofErra: Translated with an introduction, Malibu, Cal., 1977. Para um exame
completo da obra: Bottéro, Mythes et rites, pp. 221-61; e cf. Kramer, “Mythology of Sumer and Akkad”, pp. 127-35; J.
Roberts, “Erra — Scorched earth”, Journal ofCuneiform Studies 24 (Cambridge, Mass., 1971), pp. 11-6; D. Bodi, The book
ofEzekiel and the poem ofErra, Freiburg e Gottingen, 1991, esp. pp. 52-68. Segundo Bodi. os babilônios são apresentados
como se tivessem atraído a calamidade ao negligenciar o culto de Erra; mas ele concorda que a matança indiscriminada
efetuada por Erra deve-se à natureza violenta do deus.
6. Sobre os bons e os maus espíritos: M. Leibovici, “Génies et démons en Babylonie’*, em Génies, anges et démons,
Paris, 1971 (Sourees orientales, vol. 8). Sobre os demônios em particular: G. Contenau, La magie chez les Babyloniens et les
Assyriens, Paris, 1947, pp. 84-224; Saggs, The greatness that nas Babylon, pp. 306 ss.
7. Cf. Reginald C. Thompson, The devils and evil spirits of Babylon, 2 vols., Londres, 1903-4, para traduções das
fórmulas mágicas contra diversos demônios.
8. Bottéro, La religion babylonienne, pp. 88-9.
9. Sobre as atitudes babilónicas em relação à morte: Bottéro, “La mythologie de la mort en Mesopotamie”, em B. Alster
(ed.), Death in Mesopotamia, Copenhague, 1980.
10. Trad. Jacobsen, op. cit., pp. 203-4.
11. Idem. ibid.. p. 207.
ê
12. Trad. A. Heidel, The Gilgamesh epic and Old Testament parallels, 2 ed., Chicago, 1949, p. 121.
13. Cf. A. Tsukimoto, Untersuehungen zur Totenpflege (kispum) im alten

Mesopotamien, Kevelaere Neukirchen-Vluyn, 1985.

1. Cf. A. H. Gardiner, The attitude ofthe ancient Egyptians to death and the dead, Cambridge, 1935, pp. 16-22.
2. A abordagem mais próxima dessa expectativa talvez seja a que se encontra no documento descrito em P. Hoffken,
“Heilszeitherrschererwartungen im babylonischen Raum”, Die Welt des Orients 9 (Gottingen. 1977), pp. 57-71. Essa fanta-


sia patriótica, originária de Umk e provavelmente dirigida contra os persas, é de âmbito muito restrito. A sugestão de W. Hallo,
“Akkadian apocalypses”, Israel Exploration Journal 16 (Jerusalém, 1966). pp. 231-42, de que o Texto D em W. G. Lambert & A. K.
Grayson, “Akkadian prophecies”, Journal of Cuneiform Studies 18 (New Haven, 1964), pp. 7-30, pode indicar uma “Heilzeit final e
definitiva sob a égide de um rei-redentor” não é confirmada pelas evidências disponíveis. E a “fala profética de Marduk” mencionada
por Grayson em Babylonian historical- literary texts, Toronto e Buffalo, 1975, pp. 13 ss. (que inclui o Texto D) não passa de uma
profecia ex eventu, sem nenhuma importância escatológica.

1. ÍNDIA VÉDICA (pp. 84-108)

1. Um relato mais completo da vida nas estepes e suas vicissitudes é apresentado no capítulo 4 deste livro.
a
2. Sobre os indo-arianos e sua chegada ao vale do Indo: A. L. Basham, The wonder that was índio, 3 ed.. Nova York,
1967, pp. 1-34 ss.; S. Wolpert, A new history of índia. Nova York e Oxford, 1982, pp. 10-38.
3. Cf. B. Schlerath, Das Kõnigtum in Rigund Arthavaveda, Wiesbaden, 1960, pp. 122-6.
4. Sobre o Rig Veda: J. Gonda, Vedic literaíure, Wiesbaden, 1975 (vol. 1, fase. 1 de J. Gonda (ed.), A history of Indian
literature). Para uma extraordinária tradução de uma seleção dos hinos rigvédicos: Wendy D. 0’Flaherty, The Rig Veda: An
anthology, Harmondsworth, 1981. Traduções para o inglês completas (mas não necessariamente confiáveis) : R. T. H. Griffith,
The hymns of the Rig Veda, Londres, 1889; H. H. Wilson, Rig-Veda-Sanhita: A collection ofancient Hindu hymns, 6 vols.,
Londres, 1850-88. Uma tradução completa e confiável para o alemão é K. F. Geldner. Der Rig-Veda, 4 vols., Cambridge,
Mass., 1951-7.
a
5. Sobre a visão de mundo védica: H. Oldenberg, Die Religion des Veda, 2 ed., Berlim, 1917, reimp. 1970; A. A.
Macdonnell, Vedic mythology, Strassburg, 1897; H. D. Griswold, The religion of the Rigveda, Londres, 1923;

A. B. Keith, The religion and philosophy of the Veda and Upanishads, 2 vols., Cambridge, Mass., 1925; A. D. Pusalker, The
Vedic age, Londres, 1951 (vol. 1 de R. C. Majundar, ed., History and culture of the Indian people); W. Norman Brown, Man in lhe
universe, Berkeley, 1966, cap. 1; S. Bhattacharji, The Indian theogony, Cambridge, 1970.

1. Para breves descrições das cosmogonias védicas: W. Norman Brown, “Theories of creation in the Rig Veda”, ja os 85,
i (1965), pp. 23-34; F. B. J. Kuiper, “Cosmogony and conception: A query”, h r 10, 2 (1970), pp. 91-138, esp. pp. 99 ss.; M.
Eliade, A history ofreligious ideas, vol. 1, ed. ing., Londres, 1979, pp. 223-7; 0’Flaherty, op. cit., pp. 25-40 (hinos traduzidos e
comentados). Uma cosmogonia particularmente interessante, de origem proto-indo-européia, trata do sacrifício e
desmembramento do homem primordial. A versão védica é dada no Purusha-Sukta (r v 10.90); para tradução e comentário,
ver 0’Flaherty, op. cit., pp. 30-1. Ver também 0’Flaherty, The origins ofevil in Hindu mythology, Berkeley, 1976, pp. 139-40;
Bruce Lincoln, Myth, cosmos and society: Indo-euro-


pean themes ofcreation and destruction, Cambridge, Mass., e Londres, 1986, esp. cap. 1; idem, “The Indo-european myth of
creation”, h r 15, 2 (1975), pp. 121-45; e W. Norman Brown, “Theories of creation”.

1. Sobre Indra, além das passagens relevantes nas obras relacionadas na nota 5, ver: Usna Choudhuri, Indra and Varuna
in Indian mythology, Delhi, 1981;

M. Paliwahadana, The Indra cult as ideology: A clue to power struggle in an ancient society, reimp. de Vidoyana Journal
ofArts, Science and Letters 9 (1981) e 10 (1982). Sobre Indra como deus da fertilidade: E. W. Hopkins, “Indra as god of fertility”, ja os
36 (1917), pp. 243-68; J. Gonda, Aspects of early Visnuism, Utrecht, 1934, pp. 32-55.

1. Paliwahadana, op. cit., esp. pp. 43 ss.

(9) Idem, ibid., p. 84 (trad. do r v 10.103.4-8).

Sobre o mito de Vala, ver Hanns-Peter Schmidt. Brhaspati und Indra: Untersuchungen zur vedischen Mythologie und
Kulturgeschichte, Wiesbaden, 1968, passim\ Paliwahadana, op. cit., pp. 89-90, 95-9. Para um breve relato: Oldenberg,
Religion des Veda, pp. 143 ss. Para uma tradução comentada da fonte mais importante (r v 3.31) : 0’Flaherty, op. cit., p. 151.
Outros trechos relevantes são r v 4.3.11; 10.62.2; 10.67,2,3.
W. Norman Brown, “The creation myth of the Rig Veda”, ja os 62 (1942), pp. 85-98; idem, “Mythology of índia”, em
S. N. Kramer (ed.), Mythologies of the ancient world, Nova York, 1961, pp. 281-6.

Para uma tradução comentada do texto rigvédico mais relevante (r v 1.32) : 0’Flaherty, The Rig Veda, pp. 148-51.

(12) RV 10.124. 2,4.

Sobre rita e seu equivalente iraniano: H. Lüders, Varuna, ed. L. Alsdorf, vol. 2, Gõttingen, 1959, esp. pp. 568-84 (o
relato mais completo, embora prejudicado por uma identificação demasiado restrita de rita a “verdade”);

J. Duchesne-Guillemin, La religion de Tlran ancien, Paris, 1962, pp. 191-6 (inclui uma crítica de Lüders); M. Boyce, A history
of Zoroastrianism, vol. 1, Leiden, 1975, p. 27 (na série Handbuch der Orientalistik, ed. B. Spuler); J. Gonda, Die Religionen Indiens,
vol. 1, pp. 77-9.

Cf. Lüders, op. cit., vol. 1, 1951, pp. 13-40; I. Gershevitch (ed. e trad.),

The Avestan hymn to Mithra, Cambridge, 1959, esp. pp. 26-54 da introdução;

4
P. Thieme, “The Aryan’ gods of the Mitanni treaties”, ja os 80 (1960), pp. 301- 17, esp. p. 308; Gonda, op. cit., pp. 73-82;
Boyce. op. cit., pp. 22-37.

Cf. Boyce, op. cit., pp. 34-5. (16) r v 2.35.2.

Cf. Gonda, The Vedic god Mitra, Leiden, 1972, pp. 91, 109-10.
Cf. V. N. Toporov, “Indo-Iranian social and mythological concepts”, em J. C. Heersterman et al. (eds.), Pratidanam:
Studies presented to F. B. J. Kuiper, Haia e Paris, 1968, pp. 108-20 (Mitra, nas pp. 108-13); W. B. Kristensen, “Het Mysterie
van Mithra”, Mededeelingen der Koninklijke Akademie van Wettenschappen, Amsterdam, Aft. Letterkunde 9 (1946), pp. 25-
38, esp. pp. 3-5.
Cf. Choudhuri, op. cit., pp. 12-4, nas quais vários dos trechos relevantes do Rig Veda são traduzidos.
Sobre Soma (a bebida e o deus) : Macdonnell, op. cit., pp. 104-14;


Keith, op. cit., vol. 1, pp. 166-72; Gonda, Religionen Indiens, pp. 62-6 (ver nota 5 acima para referências completas); Boyce,
op. cit., pp. 157-62.

Cf. D. S. Flattery & M. Schwarz, “Haoma e Harmeline”, University of Califórnia Publicaiions in Near Eastem Studies
21 (Berkeley, 1984).
Sobre Agni: Macdonnell, op. cit., pp. 88-100; Keith, op. cit., vol. 1, pp. 154-62; Gonda, op. cit., pp. 67-73; Boyce, op.
cit., pp. 69-70.
Gonda, op. cit., pp. 68-9. Para uma explicação alternativa: Oldenberg, op. cit., pp. 108 ss. (resumida em Boyce, op.
cit., pp. 45-6).
Cf. W. Norman Brown, Man in íhe universe, pp. 58-64. (25) r v 8.101: 15-6 (trad. Brown, ibid., p. 62).

Sobre os sacrifícios védicos: S. Lévi, La doctrine du sacrifice dans les brahmanas, Paris, 1898, reimp. 1966; Keith, op.
cit., vol. 2, pp. 313-66; Gonda, op. cit., pp. 104-73; M. Biardeau & Charles Malamoud, Le sacrifice dans linde ancienne. Paris,
1976.
Cf. Biardeau, op. cit., pp. 7-57.
Sobre Rudra: Gonda, op. cit., pp. 85-9.
Cf. Biardeau, op. cit., p. 25; 0’Flaherty, The origins of evil, p. 79.
Cf. Macdonnell, op. cit., pp. 162-4. (31) Rv 1.104.

Cf. W. Norman Brown, “The Rig-vedic equivalem of hell’\ ja os 61 (1941), pp. 76-80, esp. p. 79.
Cf. E. Arbman, “Tod und unsterblichkeit im vedischen Glauben”, Archiv fiir Religionswissenschaft 25 (Leipzig e
Berlim, 1927), pp. 339-87, e 26 (1928), pp. 152-238; Macdonnell, op. cit., p. 166.
Idem, ibid., p. 168.

1. ZOROASTRISMO (pp. 109-44)

1. Sobre Zoroastro e o zoroastrismo no mundo antigo: H. Lommel, Die Religion Zarathustras nach dem Awesta
dargestellt, Tübingen, 1930, reimp. 1971;

R. C. Zaehner, The dawn and tnilight of Zoroastrianism, Londres, 1961, reimp. 1975; J. Duchesnc-Guillemin. La religion de
Tlran ancien, Paris, 1962 (inclui excelente bibliografia); B. Schlerath (ed.), Zarathustra, Wege der Forschung, Darmstadt, 1970
(coletânea de ensaios publicados nos cinquenta anos anteriores);

Gnoli, Zoroaster’s time and homeland, Nápoles, 1980; idem, De Zoroastre à Mani, Paris. 1985; M. Boyce, A history
of Zoroastrianism, 3 vols., Leiden, 1975, 1981, 1991 (na série Handbuch der Orientalistik, ed. B. Spuler); idem, Zoroastrians:
Their religious beliefs and practices, Londres, 1979; idem, Zoroastrianism: Its antiquity and constant vigour, Costa Mesa,
Cal., 1993. Também são relevantes partes de J. R. Hinnells, Persian mythology, Londres etc., 1973 (com introdução ilustrada),
e de G. Widengren, Die Religionen Irans, Stuttgart, 1965.

Para uma bibliografia das melhores traduções dos textos zoroastrianos, ver

Boyce, Zoroastrians, pp. 229-31; Zaehner, The teachings of the Magi, Londres, 1956, é uma antologia de fontes zoroastrianas
do período sassânida, traduzidas e


comentadas. Boyce, Textual sources for the study of Zoroastrianism, Manchester, 1984, é uma antologia de fontes de todos os
períodos, traduzidas e comentadas; exceto quando indicado de outro modo, as citações deste capítulo foram tiradas dessa obra. Outra
antologia proveitosa de trechos traduzidos é W. W. Malandra, An introduction to ancient íranian religion: Readings from the Avesta e
Achaemenid inscriptions, Minneapolis, 1983.

Para a história do Irã antigo até depois do período sassânida: R. N. Frye, The history of Ancient Iran, Munique, 1984 (na série
Handbuch der Altertumwissenschaft, ed. H. Bengton).

1. A data do século vi também foi aceita por W. B. Henning, Zoroaster, politician or witch-doctor?, Oxford, 1951, pp. 35
ss., e Zaehner, Dawn and twilight, p. 33. Sobre o seu fundamento equivocado, ver P. Kingsley, “The Greek origin of the sixth-
century dating of Zoroaster”, bso a s 53 (1990), pp. 245-64.
2. Cf. Boyce, “Persian religion of the Achemenid age”, em The Cambridge History of Judaism, vol. 1, Cambridge etc.,
1984, pp. 275-6; idem, Zoroastrianism, cap. 2; idem, History, vol. 2, pp. 1-3; Gnoli, op. cit., pp. 159 ss.;

E. Eduljee, “The date of Zoroaster”, Journal of the K. R. Cama Oriental Institute 48 (Bombaim, 1960), pp. 103-60.

1. Yasna 44.18. Yasna é a parte do Avesta que contém os textos recitados durante o ato de adoração (yasna); é dividida
em cerca de 72 seções numeradas.
2. Sobre a constituição do cânone do zoroastrismo: H. S. Nyberg, Die Religionen desAlten /rans (orig. sueco), Leipzig,
1983, cap. 8, esp. pp. 415-9.

(6) Cf. p. 95.

A única tradução completa para o inglês dos yashts encontra-se em J. Darmesteter, The Zend-Avesta, parte 2, Oxford,
1883 (reimp. Delhi, 1965), que constitui o vol. 23 da coleção Sacred books of the East. Ela é obsoleta em muitas aspectos. A
“Introdução” de Malandra (ver nota 1, acima) inclui uma generosa seleção de yashts, com notas valiosas. Para uma boa
tradução completa para o alemão, também com notas preciosas: H. Lommel, Die Yasts des Awesta, Gõttingen e Leipzig, 1927.
Certos trechos do Rig Veda (sobretudo r v 5.63.3d e 7b,c, r v 5.83.6d) foram por vezes citados como se referissem a
esse deus; ver P. Thieme, “The ‘Aryan’ gods of the Mitanni treaties”, ja os 80 (1960), pp. 301-17, esp. p. 309. Porém, esses
trechos são interpretados de maneira bem diversa por Geldner em sua tradução e comentário, e o mesmo se pode dizer da
única das três passagens (a última) incluídas na tradução de 0’Flaherty. Para as referências completas dessas obras, ver nota 4
do cap. 3.

(9) Yasna 44.3-5,7.

(10) Ibid. 30.3.

(11) Ibid. 45.2.

Texto e tradução: B. T. Anklesaria, Zxmd-Akasih, íranian or Greater Bundahishn, Bombaim, 1964. Há uma seleção de
trechos traduzidos em Boyce, Textual sources.
Cf. nota 6 do cap. 3.
Sobre a criação, por Ahura Mazda, dos Santos Imortais e do mundo físico, ver Boyce, History, vol. 1, pp. 192-5, 202-
3,220-1, 229-31. Sobre o mundo


físico como armadilha para Angra Mainyu, ver também Zaehner, Teachings of the Magi, p. 18, e Dawn and twilight. p. 265
(embora Zaehner associe as noções apenas ao zoroastrismo sassânida).

Sobre o ritual de sacrifício iraniano: Boyce, History, cap. 6; e cf. ibid., pp. 219-20.
A partir da tradução alemã do yasht 10.6 em H. Lommel, Yasts, p. 192.
Sobre o papel soteriológico dos seres humanos: N. Sõderblom, La vie future d’après le mazdéisme, Paris, 1901, pp.
240, 255-7; M. Molé, Culte, mythe et cosmologie dans Vlran ancien, Paris, 1963, p. 395.
Trad. Boyce, Textual sources, p. 100.
Vendidad 3. 23-35, cit. e trad. em M. Schwarz, “The religion of the Achemenian Iran”, em The Camhridge history of
Iran, vol. 2, Cambridge etc., 1985, p. 662.
Cf. Lommel, Religion Zarathustras, p. 238; Boyce, History, vol. 1, pp. 210-1.
Sobre a criação daévica: Lommel, op. cit., pp. 113-20; Boyce, op. cit., pp. 294-307.
Yasna 29.
Vendidad 33.39. A única tradução completa para o inglês do Vendidad está na parte 1 de Darmesteter, The Zend-
Avesta, vol. 4 de Sacred books of the East, Oxford, 1880.
Esta citação e as duas anteriores são do yasht 13, versos 13, 23, 65; trad. Boyce, History, vol. 1, pp. 125-6.

(25) Yasna 13. 12-3.

Louis H. Gray, The foundations of the Iranian religions, Bombaim, 1929 (K. R. Cama Oriental Institute Publications
n°5), e A. Christensen, Essai sur la démonologie iranienne, Copenhague, 1941, embora datados, proporcionam um panorama
compreensivo das crenças zoroastrianas e iranianas nos demônios.
Yasna 30.7.
Malandra, op. cit., p. 162; Vendidad 17. 7-10.
A partir da tradução alemã do yasht 13.57 em Lommel, Yasts, p. 119.

(30) Vendidad 10. 9-10 e 19-43; cf.Bundahishn 1.55 e 34.27.

Cf. T. Burrow, “The proto-Indo-aryans”, Journal of the Royal Asiatic Society (Londres, 1973), pp. 123-40, e Gnoli, op.
cit., pp. 73 ss.
Cf. Boyce, History, vol. 1, pp. 201, 251-2.
Trechos relevantes no Bundahishn: 1.55 e 34.27; no Dinkard: 9.9.1. Ver também, dos autores mais antigos, J.
Darmesteter, Ormazd et Ahriman, Paris, 1877, pp. 259-65; A. V. W. Jackson, “Die iranische Religion”, em W. Geiger &

E. Kuhn (eds.), Grundriss der iranischen Philologie, Strassburg, 1896-1904, vol. 2, pp. 655-7.

(34) Yasna 46.2 e Y.50.1.

(35) Para esta citação e a anterior: Yasna 29.9.


(36) Yasna 44.18.

Cf. Boyce, op. cit., p. 252. Alguns estudiosos consideram o conflito como sendo entre diferentes estratos sociais, mais
do que entre diferentes tipos de sociedade; ver Kai Barr, “Avest. dragu, drigu”, em Studia Orientalia loanni


310

Pedersen dicata, Copenhague, 1953, pp. 21-40; Bruce Lincoln, Priests, warriors and cattle: A study in the ecology of religion,
Berkeley etc., 1981, esp. caps. 5 e 6; Gnoli, op. cit., p. 185. Esses estudiosos, contudo, não levam em conta a transformação da guerra
considerada abaixo. Para uma réplica à argumentação de Lincoln, ver Boyce, “Priests, cattle and men”, bso a s 50 (1987), pp. 508-26.

Cf. A. Kammenhuber. DieArierim Vorderen Orient, Heidelberg, 1968; Boyce, Zoroastrians, pp. 2-3, 18; idem,
Zoroastrianism, pp. 37-9.
Cf. P. Friedrich, Proto-lndo-European syntax, Butto, Montana, 1975, pp. 44-6; Boyce, “The bipartite society of the
ancient Iranians’% em M. A. Dandamayev et al. (eds.), Societies and languages in the Ancient Near East: Studies in honour of
1. M. Diakonoff, Warminster, 1982, pp. 33-7. Proposta por Stig Wikander em Der arische Mannerbund (Lund, 1938) e
elaborada por Georges Dumézil em várias de suas obras, a concepção de que a sociedade proto- indo-iraniana e mesmo a
proto-indo-européia já possuíam uma classe de guerreiros profissionais não pode mais ser sustentada, pois desconsidera a
cronologia do neolítico e do início da idade do bronze nas áreas relevantes.
Boyce, Zoroastrians, p. 3. (41) Yasna 32. 11-2.

(42) Ibid. 49.4.

(43) Cf. ibid. 46.4.

Cf. Norman Cohn, The pursuit of the millennium, Londres e Nova York, 1957 etc., passim.
Para os ensinamentos zoroastrianos relativos à vida após a morte:

Lommel, Religion Zarathustras, pp. 185-204; Zaehner, Teachings of the Magi,

p. 25; idem, Dawn and rwilight, pp. 55-7, 304-7; Boyce, History, vol. 1, pp. 109- 17, 198, 236-41. Para um levantamento
detalhado dos escritos zoroastrianos sobre o tema: Jal Dastur Cursetji Pavri, The Zoroastrian doctrine of a future life from death to the
individual judgment, Nova York, 1926. Para os ensinamentos zoroastrianos relativos ao estado final do mundo, além das passagens
relevantes nas obras gerais relacionadas na nota 1 acima, ver: N. Sõderblom, op. cit. (ver nota 17); G. Widengren, “Leitende Ideen und
Quellen der iranischen Apokalyptic”, hell ho l m, pp. 77-162. O cap. 34 de Bundahishn é especialmente relevante e nele se baseia o
relato seguinte da grande consumação (ver nota 12).

As mesmas duas expectativas contrastantes persistiram entre os indo- arianos por algum tempo depois de sua chegada
à índia; cf. E. Arbman, “Tod und Unsterblichkeit im vedischen Glauben”, Archiv für Religionwissenschaft 25 (Leipzig e
Berlim, 1927), pp. 339-89, e 26 (1928), pp. 187-240.
Bundahishn, cap. 34: 4-5.
Cf. Yasna 44.15 e Yasna 51.9: Sõderblom. op. cit., p. 224; Bloyce, History, vol. 1, pp. 242-4 (com notas remetendo a
relatos mais completos no Bundahishn e outros livros pálavi).
Cf. Lommel, op. cit., pp. 219 ss.
Yasna 51.9.
Bundahishn, cap. 34: 27.
Yasna 30.9; e cf. Yasna 34.15. Cf. também Zaehner, Dawn and twilight, pp. 58-9; Boyce, History, vol. 1, p. 233.

Cf. Dinkard 7, cap. 2 (trechos relevantes traduzidos em Boyce, Textual sources, pp. 72-4).
Cf. Yasna 43.3.
O Avesta descreve o Saoshyant e seu papel nos yashts 13 e 19.
De Zand i Vahman Yasht, cap. 4. Para comentário sobre a origem da profecia, ver Boyce, “On the antiquity of
Zoroastrian apocalyptic”, bso a s 47 (1984), pp. 57-75.
Sobre a influência da conquista de Alexandre: S. K. Eddy, The Idng is dead, Lincoln, Nebrasca, 1961, pp. 10 ss.; e,
para períodos posteriores: Boyce, History, vol. 1, p. 293.
Sobre o possível papel da “heresia zurvanita” na revisão, ver Boyce,

History, vol. 2, pp. 234-5.

Cf. G. Gnoli, “Politique religieuse et conception de la royauté sous les achéménides”, Acta Iranica 2 (Leiden, 1974),
pp. 118-90, esp. pp. 162-9; K. Koch, “Weltordnung und Reichsidee im alten Iran”, em P. Frei & K. Koch, Reichsidee und
Reichsorganisation im Perserreich, Gõttingen, 1984.
Citações em Boyce, Zoroastrians% p. 55. Cf. Boyce, “Persian religion in the Achaemenid age”, pp. 286-7.

Trad. Boyce, Textual sources, p. 115.

1. DO MITO DO COMBATE À FÉ APOCALÍPTICA (pp. 145-57)

1. Que Verethraghna tenha sido um dragão foi contestado, por exemplo, por E. Benveniste & L. Renou, Vrtra et
Vrthragna: Étude de mythologie indo- iranienne, Paris, 1934, esp. pp. 81 ss.; Boyce, History, vol. 1, p. 64 e nota 280. Para as
primeiras críticas a Benveniste/Renou: A. B. Keith, “Indra and Vrtra”, em Indian culture, vol. 1, Calcutá, 1934; Lommel. op.
cit.
2. Sobre Thor: Jan de Vries, Altgermanische Religion, 2* ed., vol. 2, Berlim. 1957, pp. 107-52; E. O. G. Turville-Petre,
Myth and religion ofthe North, Londres, 1964, pp. 75-105. Há uma tradução recente dos trechos relevantes em Jean I. Young,
Prose Edda, Cambridge, 1954, e Berkeley, 1964.
3. Sobre Indra e Thor: partindo de uma breve indicação de J. Grimm em sua Teutonic mythology, escrita em 1844, o tema
foi plenamente desenvolvido em Wilhelm Mannhardt, Gennanische Mythen, Berlim, 1858, pp. 1-242. Para uma abordagem
mais recente: F. R. Schrõder, “Indra, Thor und Herakles”, Zeitschrift für deutsche Philologie 76 (Berlim, 1957), pp. 1-41; e.
para um resumo breve mas convincente: Turv ille-Petre, op. cit. (ver nota 18 do cap. 13), pp. 113-20.
4. Yasht 19.81; cf. yasht 9.11.
5. Os trechos seguintes nos yashts referem-se aos monstros eliminados por Keresaspa: 19.40; 9.11 (Sruvara); 15.28-9;
5.38-9 (Gandarva); 19.43-4 (Snavidka).
6. Sobre Thraetona e Azi Dahaka: H. Lommel, Der arische Kriegsgott, Frankfurt, 1939, pp. 59-60; Boyce, History, vol.
1, pp. 97-100.
7. Cf. S. E. Greenebaum, “Vrtrahan — Verethraghna: Indian and Iranian”,


em G. L. Larson et al. (eds.), Myth in Indo-European Antiquity, Berkeley etc., 1974, pp. 93-7, esp. p. 96.

1. Tradução inglesa de trechos do yasht 8: Boyce, Textual sources, p. 32; tradução alemã completa: Lommel, Yasts, pp.
46-57. Sobre os nomes: B. Forssman, “Apaosha, der Gegner des Tishtriia”, Zeitschrift für vergleichende Sprachforschung 82
(Gõttingen, 1968), pp. 37-61, esp. pp. 42-9.
2. Sobre as corridas de carruagem: F. B. J. Kuiper, “The ancient Aryan verbal contest”, iu 4 (1960), pp. 220-2; W. W.
Malandra, Introduction to ancient Iranian religion, pp. 141-2. Sobre o contexto ecológico original do mito de Tishtrya: E. C.
Polomé, “Indo-European culture. with special attention to religion”, em Polomé (ed.), The Indo-Europeans in the fourth and
third millennia, Ann Arbor, 1982, p. 165.
3. A afinidade entre os mitos de Tishtrya e Indra já fora observada por

A. Goetze, em Zeitschrift für vergleichende Sprachforschung 51 (1923), p. 153.

J. Darmesteter, Ormazd et Ahriman, Paris, 1877, p. 126, chega a identificar Tishtrya a Verethraghna, o que é descabido.

1. Sobre Verethraghna: B. Geiger, Die Amesha Spentas. Sitzungsbericht der Kaiserlichen Akademie der Wissenschaften,
Philosophisch-historische Klasse. Viena, 176 (1916), pp. 56-83, esp. pp. 66-83; H. Lommel, Der arische Kriegsgott, pp. 46-
76. Tradução inglesa de trechos do yasht 14: Boyce, Textual sources, pp. 30-1; tradução alemã completa: Lommel, Yasts, pp.
130-43.
2. Cf. Geiger, op. cit., pp. 69-70.
3. Sobre Vahagn: Geiger, op. cit., p. 65; Lommel, op. cit., p. 52; G. Dumézil, “Vahagn”, r h r 117 (1938), pp. 152-70;
idem, Heur et nuilheur du guerrier. Paris, 1969, pp. 116-20.
4. Cf. Geiger, op. cit., p. 65.
5. Cf. J. de Menasce, “La promotion de Vahram”, r h r 133 (1947), pp. 15-8.
6. Além de Lommel, Der arische Kriegsgott, cf. H. W. Bailey, “The second stratum of the Indo-Iranian gods”, in J. R.
Hinnells (ed.), Mythraic studies, vol. 1, Manchester, 1975, pp. 1-20, esp. p. 18.
7. Trad. Boyce, Textual sources, p. 29.
8. Yasht 10.72, trad. I. Gershevitch, The Avestan hymn to Mithra,

Cambridge, 1959.

(19) Yasht 10.70.

(20) Habent sua fata libelli! Somente após ter chegado laboriosamente à mesma conclusão foi que deparei com a seguinte
passagem em uma obra publicada há mais de um século: “Le démon qui retient les eaux du ciei fut regardé comme un type de
méchanceté et de pervcrsité. C’est ce côté religieux (...1 qui frappa surtout les Perses, donnant au myth de Vritra un développement
extraordinaire: ils en firent le cadre de leur religion. Le vritra védique devint chez eux Ahriman, et la lutte des deux êtres merveilleux
se prolongea pour les Perses à travers 1’immensité du temps et de 1’espace: lutte morale avant tout, oü chaque homme doit prendre
parti, et dont 1’avenir de tous et de chacun est le prix” [O demônio que retém as águas do céu foi considerado como um tipo de
maldade e perversidade. Foi esse aspecto religioso (...) que impressionou sobretudo aos persas, proporcionando ao mito de Vritra um
extraordinário desenvolvimento: eles o


utilizaram como o quadro de sua religião. O vritra védico tomou-se Ahriman e a luta dos dois seres maravilhosos se prolongou,
para os persas, através da imensidão do tempo e do espaço: antes de tudo, luta moral em que todo homem deve tomar partido e cujo
preço é o futuro de todos e de cada um] — Michel Bréal, Hercule et Cacus. Étude de mythologie comparée, Paris, 1863, pp. 124-5.



6. UGARIT (pp. 161-72)

Sobre a civilização e a visão de mundo dos cananeus: John Gray, The Canaanites, Londres, 1964, esp. caps. 4 e 5;
idem, The legacy ofCanaan, 2* ed., Leiden, 1965; e, de maneira mais resumida: A. F. Rainey, “The kingdom of Ugarit”, The
Biblical Archaeologist 28 (New Haven, 1965); D. Kinet, Ugarít — Geschichte und Kultur einer Stadt in der Umwelt des Alten
Testaments, Stuttgart, 1981; A. Curtis, Ugarit (Ras Shamra), Cambridge, 1985. Sobre o estado dos conhecimentos depois de
meio século de explorações arqueológicas e debates: G.

D. Young (ed.), Ugarit in retrospect: Fifty years of Ugarit and Ugaritic, Winona Lake, Indiana, 1981. Sobre a mitologia
cananéia em particular: C. H. Gordon, “Canaanite mythology”, em S. N. Kramer (ed.), Mythologies ofthe ancient world, Nova York,
1961, pp. 183-217; E. T. Mullen, The divine council in Canaanite and early Hebrew literature, Chico, Cal., 1980, parte 1, pp. 1-112; a
introdução a

A. Caquot & M. Sznycer, Ugaritic religion (na coleção Iconography of religions), Leiden, 1980; Gregorio dei Olmo Lete,
a
Mitos y leyendas de Canaan, Madri, 1981; Gray, Near Eastern mythology, 2 ed., Londres, 1982, pp. 68-102.

Sobre a irrelevância daquilo que muitas vezes foi considerado fonte secundária, ver A. I. Baumgarten, The Phoenician
history of Philo of Byblos: A commentary, Leiden, 1981.
Cf. John C. L. Gibson, Canaanite myths and legends, Edinburgh. 1978, pp. 102, 107.
Gray, “Sacral kingship in Ugarit”, Ugaritica 6 (Paris, 1969), pp. 289- 302, esp. pp. 295-8; M. Heltzer, The internai
organization of the kingdom of Ugarit, Wiesbaden, 1982, esp. pp. 178-81.
Cf. M. Liverani, “Ville et campagne dans le royaume d’Ugarit. Essai d’analyse économique”, em Societies and
languages (ver nota 39 do cap. 4), pp. 250-8.
Cf. Kinet. op. cit., p. 67. As citações traduzidas dos mitos neste capítulo foram extraídas de Gibson, Canaanite myths
and legends, que se baseou parcialmente em G. R. Driver, Canaanite myths and legends. Edinburgh, 1956. C.

H. Gordon, Ugaritic literature. Roma (Pontificium Institutum Biblicum), 1949, inclui, além de lendas e mitos, textos
religiosos, médicos e administrativos. Para detalhes de outras traduções, ver Curtis, op. cit., p. 82. Sobre o possível papel dos cantores
dos templos: Gibson, op. cit., introdução, p. 6.

O papel de El como deus supremo está presente em todos os relatos da mitologia cananéia. Ver também: J. C. de
Moor, “El, the creator”, em G. Rendsburg et al. (eds.), The Bible world, Nova York, 1980, pp. 171-87; Gibson, “The theology
of the Ugaritic Baal cycle”, Orientalia 53 (Roma. 1984), pp. 202-


19. Vários estudiosos argumentaram que, nos textos ugariticos, El aparece sendo efetivamente sobrepujado por Ba’al, mas hoje
tal concepção não encontra muitos adeptos; ver Gibson, loc. cit., p. 209; Del Olmo Lete, op. cit., pp. 68 ss.

Trad. Gibson, Canaanite myths, p. 60.


Cf. Gray, “Social aspects of Canaanite religion”, v t s 15 (1966), pp. 170-92.
Sobre o ciclo de Ba’al, além das passagens relevantes nas obras citadas

na nota 1, ver: A. S. Kapelrud, Baal in the Ras Shamra texts, Copenhague, 1952;
T. H. Gaster, Thespis. Ritual, myth and drama in the Ancient Near East, Nova York, 1961, pp. 114-29: “The Canaanite poem
of Baal”; J. C. de Moor, The seasonal pattern in the Ugarit myth of Ba ‘lu according to the version of Himiliku, Neukirchen-Vluyn,
1971; Gibson, “The theology of the Ugaritic Baal cycle” (ver nota 7). O meu texto deve muito ao artigo de Gibson.

Sobre a distinção entre os papéis criativos de Baal e El: L. R. Fisher, “Creation at Ugarit and in the Old Testament”, v t
15 (1965), pp. 313-24; Gray, “Social aspects of Canaanite religion”, esp. pp. 178, 192; Werner H. Schmidt, Kõnigtum Gottes
a
in Ugarit und Israel, 2 ed., Berlim, 1966, p. 31; Kapelrud, “Baal, Schõpfung und Chãos”, uf 11 (1979), pp. 407-12; R. J.
Clifford, “Cosmogonies in the Ugaritic texts and in the Bible”, Orientalia (1984), pp. 183-201.
Cf. De Moor, The seasonal pattern, p. 141; Gibson, “The last encmy”, Scottish Journal of Theology 32 (Cambridge,
1979), pp. 151-69, esp. p. 155; Kapelrud, “Baal, Schõpfung und Chãos”.
Trad. Gibson, Canaanite myths, pp. 43-4.

(14) Ibid., p. 66.

(15) Ibid., p. 50.

(16) Ibid., p. 68.

Sobre Mot, além das passagens relevantes nas obras relacionadas na nota 9, ver: Gibson, “The last enemy”; B.
Margalit, A matter of “life” and “death”. A study of the Baal-Mot epic, Kevelaer e Neukirchen-Vluyn, 1980, esp. pp. 201-5;
e, mais resumidamente, Margalit, “Death and dying in the Ugaritic epics”, em B. Alster. Death in Mesopotamia, Copenhague,
1980; N. Wyatt, “Cosmic entropy in Ugaritic religious thought”, uf 17 (1986), pp. 383-6.
Cf. Gibson, op. cit., pp. 68-9.
Trad. Gibson, op. cit., p. 109.
K. Spronk, Beatific afterlife in ancient Israel and in the ancient Near East, Kevelaer e Neukirchen-Vluyn, 1986, pp.
139, 204-5.
Trad. Gibson, op. cit., p. 78.

(22) Ibid., p. 80.

Para um levantamento abrangente das diversas interpretações: Mark

S. Smith, “Interpreting the Baal cycle”, UF 18 (1986), pp. 313-39; e cf. nota 10.

De maneira mais efetiva por J. C. de Moor, The seasonal pattern.


Cf. Margalit, A matter of “life” and “death “, pp. 202-3; Gibson, ‘The last enemy”, pp. 164-5.
Sobre Anat: M. H. Pope, “Anat”, em H. W. Haussig (ed.), Gõtter und Mythen im Vorderen Orient (vol. 1 de
Wõrterbuch der Mythologie), Stuttgart, 1965, pp. 235-41; W. F. Albright, Yahweh and the gods of Canaan, Londres, 1968,


pp. 112-8; Kapelrud, The violent goddess. Anat in the Ras Shamra texts, Oslo, 1969. Na colônia militar judaica, em Elefantina,
Anat aparentemente era adorada como esposa de Yahweh; para referências, ver nota 2 do cap. 8.

Trad. Gibson, Camanite myths, p. 77. Alguns estudiosos interpretaram essa passagem como se Mot fosse, além disso,
um deus-cereal que é joeirado, mas essa posição parece se basear em um equívoco de tradução; ver S. E. Loewenstamm, ‘The
Ugaritic fertility myth”, dois artigos de 1962 e 1963 reimpressos em seu Comparative studies in bihlical and ancient Oriental
literature, Kevelaer e Neukirchen-Vluyn, 1980.
O trecho encontra-se na p. 47 de Gibson, op. cit. Para um resumo das interpretações propostas por vários estudiosos:
Pope, em Haussig, loc. cit., p. 239.
Apud J. C. de Moor, em uf 7 (1975), p. 610.

1. YAHWEH EA MONARQUIA DE JERUSALÉM {pp. 173-87)

1. J. A. Soggin, A history of Israel. From the beginning to the Bar Kochba revolt (Londres, 1984; orig. italiano) contém
bibliografias para todas as fases e aspectos da história israelita e judaica no período relevante. A própria história de Soggin é
excepcional pela imparcialidade com que apresenta as opiniões conflitantes sobre temas polêmicos. G. Garbini, History and
ideology in ancient Israel (orig. italiano), Londres, 1988, e N. P. Lemche, Ancient Israel. A new history of Israelite society,
Sheffield, 1988, oferecem uma abordagem radicalmente inovadora, na qual a versão bíblica da história israelita é praticamente
posta de lado.
2. As duas opiniões são exemplificadas por N. K. Gottwald, The tribes of Israel, Nova York, 1979, e D. B. Redford,
Egypt, Canaan and Israel in ancient times, Princeton, 1992, pp. 271-5. Ver também D. Conrad, “An introduction to the
archaeology of Syria and Palestine on the basis of Israelite settlemenf’, apêndice 1 de Soggin, op. cit., pp. 357-67, esp. pp.
362-4; R. B. Coote & K. W. Whitelam. The emergence of Israel in historical perspective, Sheffield, 1987, cap. 4; W. G.
Dever, “The contribution of archaeology to the study of Canaanite and early Israelite religion”, em Ancient Israelite religion,
pp. 208-47. esp. pp. 234-6 (ver a próxima nota).
3. As obras gerais de referência sobre a religião judaica e israelita (por exemplo, as de Kaufmann, Von Rad, Eichrodt,
Rinngren, Fohrer, Clements) e as introduções para o Antigo Testamento ou a Bíblia hebraica (por exemplo, as de Eissfeldt,
Fohrer, Kaiser. Soggin, W. H. Schmidt, Rendtorff) são bem conhecidas e de fácil acesso, mesmo em tradução. Para um quadro
do estado atual das pesquisas, com a devida atenção às opiniões divergentes, ver Patrick D. Miller et al. (eds.), Ancient
Israelite religion. Essays in honor of Frank Moore Cross, Filadélfia, 1987. Sobre as duas formas de iaveísmo: E. W.
Nicholson, God and his people: Covenant and theology in the Old Testament, Oxford, 1986, esp. pp. 191 ss.; e as obras
relacionadas na nota 45 deste capítulo.

Sobre as concepções israelitas de uma ordem estabelecida divinamente: Hans Heinrich Schmid, Gerechtigkeit ais
Weltordnung. Hintergrund and Geschichte des alttestamentlichen Gerechtigkeitsbegriffs, Tübingen, 1968, esp. pp. 3-22, 65-9; idem,
Altorientalische Welt in der alttestamentlicher Theologie,


Zurique, 1974, e esp. o ensaio “Jahweglaube, altorientalisches Denken” (pp. 31- 47). Ver também S. Niditch, Chãos to cosmos:
Studies in biblical pattems of creation, Chico, Cal., 1985. Para a visão de mundo israelita no contexto do Oriente Médio: O. Keel, The
symbolism ofthe biblical world. Ancient Near East icono- graphy and the Book of Psalms, Londres, 1978 (orig. alemão, Die Welt der
alto- rientalischen Bildsymbolik und das Alte Testament: Am Beispiel de Psalmen, Neukirchen, 1972).

a
1. Cf. W. F. Albright, Archaeology and the religion of Israel, 2 ed., Baltimore. 1966, pp. 71-2; M. J. Dahood, “Ancient
Semitic deities in Syria and Palestine”, em S. Moscati (ed.), Antiche divinità semitiche, Roma, 1958, pp. 65- 94, esp. p. 70; R.
A. Oden, “The persistence of Canaanite religion”, Biblical Archaeologist 39 (1976), pp. 31-6; P. C. Craigie, “Ugarit, Canaan
and Israel”, Tyndale Bulletin 34 (Cambridge, 1983), pp. 145-67.
2. Para duas visões opostas, ver John Gray, “The god Yaw in the religion of Canaan”, Journal ofNear Eastem Studies 12
(Chicago, 1953), pp. 278-83, e Garbini, op. cit., pp. 57-8. Gray cita os estudiosos que originalmente identificaram Yaw a
Yahweh, mas rejeita a identificação. Garbini a rearfirma. Redford, op. cit.,

p. 272, sustenta que Yahweh foi adorado pela primeira vez pelos proto-israelitas em Edom.
1. Deuteronômio 33:26.
2. Salmo 29:3,10; e cf. Salmo 93. Sobre a relação entre Ba’al e Yahweh. ou sobre a luta de Yahweh com as águas do
caos: H. G. May, “Some cosmic connotations of Mayim Rabbim, ‘Many Waters’”, jbl 74 (1955), pp. 9-21; R. Rendtorff,
“Kult, Mythos und Geschichte im alten Israel” (1958) e “El, Ba’al und Yahwe” (1966), in idem, Gesammelte Studien zum
Alten Testament, Munique, 1975, pp. 121-9, 277-92; O. Eissfeldt, “Das Chãos in der biblischen und in der phõnizischen
Kosmogonie”, in idem, Kleine Schriften, vol. 2, Tübingen, 1963, pp. 258-62; idem, “Gott und das Meer”, in idem, Kleine
Schriften, vol. 3, Tübingen, 1966, pp. 256-64; B. W. Anderson, Creation versus chãos: The reinterpretation of mythical
symbolism in the Bible, Nova York, 1967 (reimp. 1987), esp. pp. 99 ss.; M. Wakeman, God’s battle with the monster, Leiden,
1973, pp. 56-138; A. Lelièvre, “yhw et la mer dans les Psaumes”. r hpr 56 (1976), pp. 253- 75; A. H. W. Curtis. “The
‘subjugation of water’ motif in the Psalms: Imagery or polemic?”, jss 23 (1978), pp. 245-56; John Gray, The biblical doctrine
of the kingdom of God, Edinburgh, 1979, esp. pp. 39 ss.; J. Day, God’s conflict with the dragon and the sea: Echoes of
Canaanite myth in the Old Testament, Cambridge. 1985, esp. pp. 18 ss.; e, para o Salmo 29 em especial: Carola Kloos,
Yahweh’s combat with the sea: A Canaanite tradition in the religion of ancient Israel, Amsterdam e Leiden, 1986. J. Jeremias.
Das Kõnigtum Gottes, Gõttingen, 1987, esp. pp. 15-45. trata de adaptações israelitas do mito de Ba’al.
3. Para um bom resumo dos argumentos sobre a entronização ritual de Yahweh — desde S. Mowinckel, Psalmenstudien
II, Das Thronbesteigungsfest Jahwüs, Kristiana, 1922 —, ver Gray, op. cit., pp. 7-38. W. R. Mi liar, Isaiah 24- 27 and the
origin of apocalyptic, Missoula, 1976, esp. pp. 91 ss. detecta uma celebração da vitória de Yahweh sobre forças hostis.
4. Gênesis 1:7,9.


(10) Salmo 74:13-4.

(11) Salmo 65:9-13.

Sobre Yahweh como deus da guerra: G. von Rad, Der heilig Krieg im alten Israel, Zurique, 1975 (trad. ing., Grand
Rapids, eu a, e Leominster, gb, 1991); R. Smend, Jahwerkrieg und Stammebund. Erwagungen zur àltesten Geschichte Israéis,
Gõttingen, 1963; F. Stolz, Jahwes und Israéis Kriege. Kriegstheorien und Kriegserfahrungen des alten Israel, Zurique, 1972;
M. Weipert, ‘“Heiliger Krieg’ in Israel und Assyrien: kritische Anmerkungen zu Gerhard von Rads Konzepl des ‘Heiligen
Krieg’ im alten Israel”, za v 84 (1972), pp. 460-93, esp. pp. 488-90; F. M. Cross, Canaanite myth and Hebrew epic: Essays on
the history of the religion of Israel, Cambridge, Mass., 1973, pp. 91-

111 (“The divine warrior”); P. D. Miller, The divine warrior in early Israel, Cambridge, Mass., 1973; Hans Heinrich Schmid,
“Heiliger Krieg und Gottesfrieden im Alten Testament”, em Altorientalische Welt in der alttestamentlicher Theologie, Zurique, 1974,
pp. 91-120; Sa-Moon Kang, Divine war in the Old Testament and the Ancient Near East, Berlim, 1987. A. van der Lingen, Les guerres
de Yahvé, Paris, 1990, sustenta que a terminologia da guerra santa remonta ao exílio, mais do que à história inicial de Israel, e foi
inspirada pela esperança de libertação. Essa reinterpretaçâo radical ainda precisa ser avaliada, mas pode se revelar fecunda.

Deuteronômio 33:2.
Habacuc 3:8 ss.; cf. Ezequiel 29:3-5; também Day, op. cit., pp. 105-9.
Sobre El em diversas culturas do Oriente Medio: F. Stolz, Strukturen und Figuren im Kult von Jerusalem, Berlim,
1970, pp. 126-80. Para várias concepções sobre o relacionamento entre El e Yahweh: O. Eissfeldt, “El and Yahweh”, jss 1
(1956), pp. 25-37; idem, “Jahwe, der Gott der Vàter”, Theologische Literaturzeitung 88 (Leipzig, 1963), cols. 482-90; F. M.
Cross, “Yahweh and the god of the patriarchs”, h tr 55 (1962), pp. 225-59; R. Rendtorff, “El, Ba’al und Jahwe”, za v 78
(1966), pp. 277-92; J. J. M. Roberts, “The Davidic origin of the Zion tradition”, jbl 92 (1973), pp. 329-44; E. Otto, “El und
Jhwh in Jerusalem. Historische und theologische Aspekte einer Religionsintegration”, v t 30 (1980), pp. 316-29; J. van Seters,
‘The religion of the patriarchs in Genesis”, Biblica 61 (Roma, 1980), pp. 220-3; M. Barker, The great angel. A study of
Israel*s second god, Londres, 1992, argumenta enfaticamente que El e Yahweh foram primeiro fundidos durante o exílio, nas
profecias do Segundo Isaías. Se isto for correto, teria de ser modificada a concepção aqui expressa e refeita a datação dos
salmos nos quais ela se baseia. A argumentação geral do capítulo, porém, não seria afetada.

(16) Salmos 46:10; 97:9; 103:19.

(17) Isaías 6:3.


(18) Salmo 95:3-5.

Salmo 68:5; e cf. Salmo 10.


Salmo 72:4. (21) Isaías 1:4,7,17.

(22) Salmos 132:13-4; 46:4.

(23) Cf. R. E. Clements, God and temple, Oxford, 1965, p. 76.

Salmo 29:10. Sobre Yahweh como rei no monte Sião: J. J. Roberts, “Zion in the theology of the Davidic-Solomonic
empire”, em T. Ishida (ed.), Studies in the period ofDavid and Solomon, Tóquio, 1982; B. C. Ollenburger, Zion, the city ofthe
great king, Sheffield, 1987. Sobre a relação entre o monte Sião e o monte Zafon: R. J. Clifford, The cosrnic mountain in
Canaan and the Old Testamento Cambridge, Mass., 1972, pp. 141 ss.
Cf. Ollenburger, op. cit., pp. 53-80; D. G. Johnson, From chãos to restoration. An integrative reading of Isaiah 24-7,
Sheffield, 1988, p. 45.
Sobre o templo de Salomão: Clements, op. cit.; Jonathan Z. Smith, “Earth and gods”, Journal of Religion 49 (Chicago,
1969), pp. 103-27, esp. pp. 111 ss.; Keel, op. cit., cap. 3 (pp. 112-76); M. Barker, The gate of heaven. The history and
symbolism of the ternple in Jerusalem, Londres, 1991. M. Haran, Temples and temple-service in ancient Israel, Oxford, 1978,
preocupa-se sobretudo com o período pós-exílio e o Segundo Templo, mas o cap. 13 (pp. 246-59) tem alguma relevância para
o templo de Salomão.
Cf. Clements, op. cit., pp. 65 ss.; H. H. Rowley, Worship in ancient Israel, Londres, 1967, p. 82.
li Samuel 7:16. (29) Salmo 89:4,36.

Salmo 89:25, trad. comentada de Cross, em Canaanite rnyth and Hebrew epic, pp. 261-2.
Sobre a relação entre a concepção israelita da monarquia e do templo e a de outros povos do Oriente Próximo, ver M.
Weinfeld, ‘*Zion and Jerusalem as religious and political capital”, em R. E. Friedman (ed.), The poet and the historian, Chico,
Cal., 1983. Sobre o rei de Judá como representante de Yahweh: S. Mowinckel, The Psalms in IsraeVs worship, vol. 1, Oxford,
1962, pp. 50-5, 67- 8; A. R. Johnson. Sacral kingship in ancient Israel, Cardiff, 1967, esp. pp. 4-29,

103 ss.; idem, The cultic prophet and Israéis psalmody, Cardiff, 1979, esp. pp.

65. 76, 83; J. H. Eaton, Kingship and the Psalms, Londres, 1976, esp. pp. 135-8, 141-9, 155-68; Keel. op. cit., cap. 5 (pp. 244-
306).

Ver R. A. Rosenberg, “The god Sedeq”, huc a 3 (1965), pp. 161-77. Trechos relevantes na Bíblia: Salmo 89:14; Isaías
45:8,19.
Para o que vem a seguir, ver Deuteronômio 8:15; Números 20:5; Isaías 34:9-15; Isaías 27:1; Salmos 46 e 89; Jeremias
4:11 ss.; e cf. Joh. Pedersen, Israel, its life and culture, vol. 2, Londres, 1926, cap. “The world of life and death” (pp. 453);
Keel, op. cit., cap. 2 (pp. 62-109); Robert Murray, “Prophecy and cult”, em R. Coggins et al., Israéis prophetic tradition:
Essays in honour ofPeter R. Ackroyd, Cambridge, 1982, pp. 200-16, esp. pp. 210-4.
Cf. K. Spronk, Beatific afterlife in ancient Israel and the ancient Near East, Kevelaere Neukirchen-VIuyn, 1986.


1. O EXÍLIO E O PÓS-EXÍLIO (pp. 188-214)

1. Sobre a tradição do “Yahweh sozinho”: Morton Smith, Palestinian parties and polities that shaped the Old Testament,
Nova York e Londres, 1971


(reimp., Londres, 1987), esp. cap. 2; M. Rose, Ausschliesslichkeitsanspruch Jahwes: Deuteronomistische Schultheologie und
die Volksfròmmigkeit der spaten Kônigszeit, Stuttgart, 1975; F. Stolz, “Monotheismus in Israel”, em O. Keel (ed.), Monotheismus im
alten Israel und seiner Umwelt, Fribourg (Suíça), 1980, esp. pp. 163-72; os ensaios de B. Lang e H. Vorlànder, em B. Lang, Der
einzige Gott: Die Geburt des biblischen Monotheismus, Munique. 1981, intitulados, respectivamente, ‘‘Die Jahwe-Allein-Bewegung”
(esp. pp. 55-7, 73) e “Der Monotheismus Israéis ais Antwort auf die Krise des Exils” (esp. pp. 98-102).

(2) Sobre o politeísmo israelita em geral, ver, por exemplo, G. W. Ahlstrom, Aspects of syncretism in Israelite religion, Lund,
1963; idem, Royal administration andnational religion in Palestine, Leiden, 1982, pp. 82-3; J. A. Soggin, “Der offiziell gefõrderte
Synkretismus in Israel wàhrend des zehnten Jahrhunderts”, za v 78 (1966), pp. 179-204; Mark C. Smith, The early history of God:
Yahweh and otherdeities in ancient Israel, San Francisco, 1990. Para o culto israelita de Asera, ver S. M. Olyan, Asherah and the cult
of Yahweh in Israel, Atlanta, 1988;

K. Koch, “Ascherah ais Himmelskõnigin in Jerusalem”, uf 20 (1988), pp. 97-

120. Para a seqüência de divindades menores relacionadas a Yahweh — as “hostes celestes” —, ver W. Herrmann, “Die
Gottersõhne”, Zeitschrift für Religions- und Geistesgeschichte 12 (Colônia, 1960), pp. 247-51, e E. T. Mullen, The divine council in
Canaanite and early Hebrew literature, Chico, Cal., 1980, esp. pp. 186 ss. Os papiros encontrados na colônia militar israelita em
a
Elefantina, no Alto Egito, também contêm indícios de politeísmo; ver E. Meyer, Der Papyrusfund von Elephantine, 3 ed., Leipzig,
1912, esp. pp. 38 ss.; A. Vincent, La religion des judéo-araméens à Elephantine, Paris, 1937, esp. pp. 562 ss.; B. Porten, Archives from
Elephantine; the life ofan ancient Jewish military colony, Berkeley, 1968. Porém, em que medida o politeísmo estava disseminado é
uma questão ainda em debate. Alguns estudiosos sustentam que os indícios onomásticos revelam que foi menos importante do que
sugere a Bíblia; ver J. H. Tigay, You shall have no other gods, Atlanta, 1986; J. D. Fowler, Theophoric personal names in ancient
hebrew, Sheffíeld, 1988 (jso t, sup. 49). Por sua vez, o significado desses indícios também foi questionado; ver Olyan, op. cit., pp. 35
ss.

(3) Oséias 11:2; 13:4.

(4) Cf. R. C. Dentan, The knowledge of god in ancient Israel, Nova York, 1968, pp. 46, 147, 179; Morton Smith, Palestinian
parties, pp. 43-4.

(5) Êxodo 34:14.

Sofonias 1:4-6.
Deuteronômio 7:6-8 e 5:7-10. Sobre a origem relativamente tardia, no Deuteronômio, da idéia de pacto: L. Perlitt,
Bundestheologie im Alten Testament, Neukirchen-Vluyn, 1969; E. Kutsch, Verheissung und Gnade. Vntersuchungen zum
sogenannten Bund’ im Alten Testament, Berlim e Nova York, 1973.

(8) Salmo 119:89-91,96.

Cf. W. Johnstone, Exodus, Sheffíeld, 1990, esp. pp. 76 ss.


Cf. B. van Iersel & A. Weiler (eds.), The Exodus —A lasting paradigm. Edinburgh, 1987, parte 3, esp. pp. 83-92:
Enrique Dussel, “Exodus as a paradigm in Liberation Theology”.
E cf. B. Albrektson, History and the gods: An essay on the idea of his-

torical events as divine manifestations in the ancient Near East and in Israel, Lund, 1967: R. Labat, Le caractère religieux de
la royauté assym-babylonienne, Paris, 1939, esp. pp. 253-74: “La guerre sainte”. Sobre este e mais pontos de contato entre Yahweh e
outros deuses do Oriente Médio, ver também Morton Smith, “The common theology of the ancient Near East”, jbl 71 (1952), pp. 135-
47, esp. pp. 144-5; H. Ringgren, “Prophecy in the ancient Near East”, em R. Coggins, A. Phillips & M. Knibb (eds.), Israéis prophetic
tradition: Essays in honour of Peter

R. Ackroyd, Londres. 1982, pp. 1-11.

Cf. W. G. Lambert, resenha de Albrektson, History and the gods, em

Orientalia 39, série nova (1970), pp. 170-7.

Para as expectativas israelitas e judaicas de uma consumação gloriosa, ver, além das obras sobre profecia relacionadas
na nota anterior: R. H. Charles (ed.), Eschatology, Nova York, 1963 (reimp. de The doctrine of a future life in Israel, in
a
Judaism and in Christianity: A criticai history, I ed., 1898-9); H. Gressmann, Der Messias, Gòttingen, 1929; J. Klausner, The
a
messianic idea in Israel (trad. da 3 ed. em hebraico), Londres, 1956; S. Mowinckel, He that cometh (trad. da ed. em sueco de
1951), Oxford, 1956; C. Ryder Smith, The biblical doctrine of the hereafter, Londres, 1958; S. Herrmann, Die prophetischen
Heilserwartungen im Alten Testament, Stuttgart, 1965; Hans-Peter Müller, Ursprünge und Strukturen alttestamentlicher
Eschatologie, Berlim, 1969; H. D. Preuss (ed.), Eschatologie im Alten Testament, Darmstadt, 1978 (coletânea de ensaios);
John Gray, The biblical doctrine of the reign of God, Edinburgh, 1979;

J. Becker. Messianic expectation in the Old Testament (trad. da ed. em alemão de 1977), Edinburgh, 1980; C. Westermann,
Prophetische Heilsworte im Alten Testament, Gõttingen, 1987 (trad. ing., Basic forms of prophetic speech, Londres, 1991). D. E.
Gowan, Eschatology in the Old Testament, Edinburgh, 1987, procura relacionar essa escatologia às expectativas de épocas posteriores,
inclusive a nassa.

H. D. Preuss, Jahweglaube und Zukunftsemartung, Stuttgart etc., 1968. oferece uma interpretação diametralmente oposta
àquela apresentada nestas páginas.

Encontra-se uma bibliografia abrangente de obras sobre profecia em

J. Blenkinsopp, A history of prophecy in Israel. From the settlement in the land to the Hellenistic period, Londres, 1984. Entre
os estudos recentes importantes incluem-se R. R. Wilson, Prophecy and society in ancient Israel, Filadélfia, 1980;

R. Coggins et al. (eds.), IsraePs prophetic tradition, Cambridge, 1982; e, sobre a recepção e rejeição da profecia, R. P. Carroll,
When prophecy failed: Reactions and responses to failure in the Old Testament prophetic traditions, Lxmdres, 1979. Para o trecho
sobre os povos e o mar: Isaías 17:12.

Jeremias 4:23-5.
Sobre a profecia em geral no período do exílio, ver, além das passagens relevantes nas obras relacionadas acima: S. B.
Frost, Old Testament Apocalyptic, Londres. 1952; P. R. Ackroyd, Exile and restoration: A study of Hebrew thought in the
sixth century BC, Londres, 1968, esp. caps. 5, 7 e 8.
Sobre as condições durante o exílio: Ackroyd, op. cit., caps. 2 e 3; E.

J. Bickerman, “The generation of Ezra and Nehemiah”, Proceedings of the American Academy for Jewish Research 45
(Filadélfia, 1978), pp. 1-18, esp. pp. 17-8. Sobre a percepção do exílio como caos: Jonathan Z. Smith, op. cit. (ver


nota 26 do cap. 7), pp. 118 ss.; A. J. Wensinck, em Verhandelingen der Koninklijke Akademie van Wetenschapen, Afd.
Letterkunde, Amsterdam, nova série, 19 (1919), esp. pp. 51 ss.

Entre os comentários relativamente recentes sobre Ezequiel incluem-se os de D. M. G. Stalker (Londres, 1968); W.
Zimmerli (Neukirchen-Vluyn, 1969); J. W. Wevers (Londres, 1969, New Century Bible); W. Eichrodt ( (trad. da ed. alemà de
1965-6] Londres, 1970); K. M. Carley (Cambridge, 1974). Para um comentário resumido: J. Muilenberg, em Peake,
Commentary on the Bible, ed. rev., 1962, pp. 568-90. Particularmente importante para a presente argumentação são: D.
Baltzer, Ezechiel und Deuterojesaja. Berührungen in der Heilsenxartung der beiden grasse n Exilspmpheten, Berlim, 1971; T.
M. Ritt, A theology of exile: Judgment/Deliverance in Jeremiah and Ezekiel, Filadélfia, 1977.
Ezequiel 20:40.

(20) Ibid. 11:19-20; cf. 36:26-8.

(21) Cf. Ezequiel 18:7-9; 22:7.

(22) Ezequiel 34:25-8. (23) Ibid. 33:27,29.

Entre os comentários relativamente recentes sobre Isaías 40-55 e 40-

66 estão os de C. R. North (Oxford, 1964); G. A. F. Knight (Nova York e Nashville, 1965); C. Westermann (trad. ing.,
Londres, 1966); R. N. Whybray (Londres, 1967, New Century Bible); J. McKenzie (Garden City, Nova York, 1968, Anchor Bible); A.
S. Herbert (Cambridge, 1975, Cambridge Commentary to the New English Bible); H. D. Preuss (Neukirchen-Vluyn, 1976). Nem todos
os estudiosos concordam que Isaías 44-55 tratava originalmente do retomo dos deportados; cf. C. C. Torrey, The Second Isaiah. A new
interpretaíion, Edinburgh, 1928; J. D. Smart, History and theology in Second Isaiah, Londres, 1965; J. M. Vincent, Studien zur
literarischen Eigenart und zur geistigen Heimat von Jesaja, Kap. 40-50, Frankfurt; J. H. Eaton, Festal drama in Deutero-lsaiah,
Londres, 1979. Suas dúvidas podem se revelar justificadas; mas, seja qual for a origem do texto, continua sendo verdade que a
interpretação hoje em geral aceita já o era também no início do período pós-exílico.

Isaías 45:4 (e cf. os três versículos anteriores); 44:28. Duas interessantes, mas controversas, interpretações do contexto
político imediato da composição de Isaías 40-55 são: Sydney Smith, Isaiah XL-LV: Uterary criticism and history, Londres,
1944; e Morton Smith, “li Isaiah and the Persians”, ja os 83 (Boston, 1963), pp. 415-21. Por outro lado, os céticos relacionados
na nota 24 consideram as referências a Ciro como interpolações.
Cf. H. Wildberger, “Der Monotheismus Deuterojesjas*’, em H. Donner et al. (eds.), Beitrüge zur alttestamentlichen
Theologie: Festschrift für Walther Zimmerli, Gõttingen, 1977, pp. 506-30; e H. Võrlander, op. cit. (ver nota 1 acima), pp. 93
ss. Até mesmo Margaret Barker, que tanto fez para demonstrar a importância do politeísmo na religião israelita, aceita o
monoteísmo do Segundo Isaías; segundo a autora, ele o alcançou ao identificar Yahweh a El (cf. The Older Testament, pp. 167
ss.; The great angel, pp. 17 ss.
Miquéias 4:5.
Juízes 11:24.


(29) Isaías 45:5; 46:10-1; cf. 43:10 e 44:6,8.

(30) Salmo 74:13-7.

(31) Isaías 48:13; cf. 51:13,16.

(32) Ibid. 49:26.

(33) Ibid. 51:9-11.

Ibid. 40:4. Cf. Wensinck, op. cit., pp. 52-3. (Ver nota 17 deste capitulo.)
Isaías 55:12.
Ibid. 40:5. Para similaridades e diferenças entre as expectativas de Ezequiel e do Segundo Isaías, ver Baltzer, op. cit.
(Ver nota 18 deste capítulo.)
Isaías 42:13. Cf. F. M. Cross, Canaanite myth and Hebrew epic: Essays in the history of the religion of Israel,
Cambridge, Mass., 1973, pp. 105-10 (no cap. “The divine warrior”); P. D. Miller, The divine warrior in early Israel,
Cambridge, Mass., 1973, pp. 135-42.
Isaías 54:10. (39) Ibid. 51:3,6.

(40) Para uma exposição intransigente da concepção tradicional, ver P.-E. Bonnard, Le Second Isaie, ses disciples e leur
édileurs, Paris, 1972. A concepção adotada nesse capítulo, isto é, a de que o Segundo Isaías não tinha objetivos ou interesses
universalistas, não é nada original. Foi defendida, por exemplo, por N.

H. Snaith, ‘The servant of the Lord in Deutero-lsaiah”, em H. H. Rowley (ed.), Studies in Old Testament prophecy, presented
to professor The odore H. Robinson, Edinburgh, 1950, pp. 186-200; P. A. de Boer, Second Isaiah’s message, Leiden, 1956. pp. 92-
110; R. Martin-Achard. Israel et les nations, la perspective missionnaire de TAncien Testament, Paris. 1959, pp. 8-31 (trad. ing., A
light to the nations, Londres e Edinburgh. 1962); N. F. Snaith, Isaiah 40-66, A study in the teaching of Second Isaiah and its
consequences, e H. M. Orlinsky, Studies on the second part of the Book of Isaiah, ambos em v t s 14 (1967); R. N. Whybray, Isaiah
40-66, Londres, 1967, introd., pp. 31-2, e no comentário passim; D. E. Hollemberg, “Nationalism and ‘the nations’ in Isaiah x l -l v ‘\ v
t 19 (1969). pp. 23-36; A. Schors. I am God Your Saviour; A form-critical study of the main genres in Isaiah XL-LV, Leiden, 1973 (v t
s 24); F. Holmgren, With wings as eagles. Isaiah 40-55. An interpretation, Nova York, 1973. As duas linhas mencionadas no presente
texto são as duas últimas de Isaías 49:6.

(41) Isaías 41:12,16; cf. 51:23.

(42) Ibid. 49:22-3.

(43) Ibid. 52:9-10.

(44) Ibid. 45:14.

(45) Ibid. 45:6.

Sobre a datação dos acréscimos e das interpolações no Livro de Isaías, além dos caps. 40-50, ver O. Eissfeldt, The Old
a
Testament: An introduction (trad. da 3 ed. alemã), Oxford, 1965, pp. 318-9, 323-7, 342-6; e G. Fohrer, introduction to the
Old Testament (trad. do alemão), Londres, 1970, pp. 369, 372, 385, 388. Snaith, Isaiah 40-66, pp. 139-46, argumenta que os
capítulos 60-2 são do Segundo Isaías. Para comentários sobre Isaías 56-66, ver Westermann, Whybray, Herbert (nota 24 deste
capítulo).
Sobre a profecia pós-exílica em geral, ver, além das obras relacionadas


a
na nota 13 deste capítulo: O. Plõger, Theocracy and eschatology, Oxford, 1968 (I ed. alemã, 1959); P. D. Hanson, The dawn
of the apocalyptic: The historical and sociological roots ofJewish apocalyptic eschatology, Filadélfia, 1975; R. P. Carroll, “Second
Isaiah and the failure of prophecy”, Studia Theologica 32 (Lund, 1978), pp. 119-31.

(48) Isaías 65:17-8.

Ibid. 11:6-9. Alguns estudiosos continuam a atribuir essa passagem ao profeta Isaías do século viu a.C, mas a posição
tomada aqui, de que se trata de uma interpolação posterior ao exílio, está se tomando cada vez mais aceita; ver, por exemplo,
a
O. Kaiser, Das Buch des Propheten Jesaja Kapitel 1-12, 5 ed., Gõttingen. 1981, pp. 240-7 (vol. 17 de Das Alte Testament
Deutsch; trad. ing., Isaiah 1-12, Londres, 1983); e Eissfeldt, The Old Testament, pp. 317-8.
Zacarias 2:5. (51) Joel 2:27-9.

(52) Isaías 65:20. (53) Ibid. 35:5-6. (54) Ibid. 61:11.

(55) Cf. ibid. 56:3 ss.; 66:21.

(56) Cf. ibid. 61:5-6; cf. 60:12.

(57) Ibid. 60:10-2,14.

(58) Ibid. 34:3. (59) Ibid. 34:8-10.

(60) Cf. ibid. 63:1-6.

(61) Ezequiel 38:20-2; 39:12,21-2.

(62) Joel 4:17,19.

(63) Segundo outra concepção, os ímpios eram, ao contrário, para aqueles que nunca haviam deixado Judá, os exilados que
retomavam — tanto os exilados em geral, como argumenta M. Barker, The Older Testament, Londres, 1987, pp. 212 ss., quanto os
sacerdotes zadoquitas em particular, como propõe Hanson em The dawn ofthe apocalyptic. Para um apoio ao argumento de Hanson,
embora com restrições, ver a resenha de R. P. Carroll, “Twilight of prophecy or dawn of apocalyptic?”, jso t 14 (1979), pp. 3-39. A
concepção expressa no presente capítulo, por outro lado, coincide com a de Ina Willi-Plein, na resenha que fez do livro de Hanson em
v t 29 (1979), pp. 122-7.

(64) Isaías 65:12,17.

1. APOCALIPSES JUDAICOS (/) (pp. 215-30)

1. Sobre a história dos judeus no período em relevo, ver E. Schürer, The history of the Jewish people in the age of Jesus
a a
Christ (175 BC—AD 135) (trad. da 3 e da 4 eds. alemãs), completamente revisado e atualizado por G. Vermes e

F. Millar, 3 vols., Edinburgh, 1973-87; e, de maneira mais resumida: D. S. Russell, The Jews from Alexander to Herod,
Londres, 1967; H. Jagersma, A history’ of Israel from Alexander the Great to Bar Kochba, Londres, 1985. Sobre o helenismo e suas
consequências para os judeus da Palestina: V. Tcherikover, Hellenistic


civilization and the Jews, Filadélfia e Jerusalém, 1959; M. Hengel, Judaism and hellenism: Studies in their encounter in
a
Palestine during the Early Hellenistic Period (trad. da 2 ed. alemã), 2 vols., Londres e Filadélfia, 1974 (o vol. 2 traz o aparato
crítico); F. Millar, “The background of the Maccabaean revolution: Reflections on Martin Hengefs Judaism and hellenism”, jjs 29
(1978), pp. 1-21;

Momigliano, Alien wisdom: The limits of hellenisation, Cambridge, 1975, e Nova York, 1976. Para um relato mais
breve: Schürer, op. cit., vol. 1, pp. 125 ss.

1. Obras sobre o pensamento apocalíptico judaico e o do início do cristianismo em geral, em ordem de publicação: H. H.
a
Rowley, The relevance of apocalyptic, 1944 (3 ed. rev., 1964); J. Bloch, On the apocalyptic in Judaism, Filadélfia, 1952; D.
S. Russell, The method and message ofJewish apocalyptic,

200 BC—AD 100, Londres, 1964; J. D. Schreiner, Alttestamentlich-jüdische Apokalyptik: Eine Einführung, Munique. 1969; W.
Schmithals, The apocalyptic movement. Introduction and interpretation, Nashville, 1975 (trad. do alemão, 1973); M. E. Stone,
Scriptures. Sects and visions, Filadélfia, 1980; G. W. E. Nickelsburg, Jewish literature between the Bible and the Mishnah, Londres,
1981;

C. Rowland, The open heaven. A study in apocalyptic in Judaism and early Christianity, Londres, 1982; J. J. Collins, The
apocalyptic imagination: An introduction to the Jewish matrix of Christianity, Nova York, 1984.

Dentre a vasta quantidade de artigos, os seguintes são especialmente relevantes: P. Vielhauer, “Apocalypsen und Venvandtes”,
introdução a E. Hennecke & W. Schneemelcher. Neutestamentliche Apokryphen, vol. 2, Tübingen, 1964. pp. 408-27 (também na ed.
ing. de 1963); W. R. Murdock, “History and revelation in Jewish apocalypticism”, Interpretation. A Journal of Bihle and Theology 21
(Union Theological Seminary, Virginia, 1967), pp. 167-87; dois artigos em R.

W. Funk (ed.), Apocalypticism (Journal for Theology and Church, vol. 6), Nova York, 1969: H. Betz, “On the problem of the
religio-historical understanding of apocalyptic” (pp. 134-56), e F. M. Cross, “New directions in the study of apocalypticism” (pp. 157-
65); P. D. Hanson, “Jewish apocalyptic against its Near East environment”, Revue Biblique 78 (Paris, 1971), pp. 31-58; idem,
“Apocalypticism” e “Apocalypse, genre”, em Interpreteis dictionary of the Bible: Supplementary volume, Nashville, 1976, pp. 27-34;
a
idem, “An overview of early Jewish and Christian apocalypticism” (apêndice da 2 ed. de The dawn of apocalyptic, Filadélfia, 1979);
Hans-Peter Müller, “Mantische Weisheit und Apokalyptik”, v t s 22 (1972) (vol. do Congresso de Upsala de 1971), pp. 268-93; dois
ensaios em J. Maier & J. Schreiner (eds.), Literatur und Religion des Frühjudentums, Gütersloh, 1973: Karlheinz Müller, “Die Ansâtze
der Apokalyptik” (pp. 31-42), e J. Schreiner, “Die apokalyptische Bewegung” (pp. 214-53); os seguintes artigos de J. J. Collins:
“Apocalyptic eschatology as the transcendence of death”, cbq 196 (1974), pp. 5-22; ‘The symbolism of transcendence in Jewish
apocalyptic”, Biblical Research 19 (Chicago, 1974), pp. 5-22; “The court-tales in Daniel and the development of apocalyptic”, jbl 94
(1975), pp. 21-234; “Jewish apocalyptic against its Near East environment”, Bulletin of the American School of Oriental Research 220
(dez. 1975), pp. 27-36; “Cosmos and salvation. Jewish wisdom and apocalyptic in the Hellenistic age”, h r 17 (1977), pp. 121-42; “The
Jewish apocalypses”, em Collins (ed.), Apocalypse: The


morphology of a genre (Semeia, 14), Missoula, 1979, pp. 21-60; dois artigos em

F. M. Cross et al. (eds.), Magnalia Dei: The mighty acts of God. Essays [...] in memory ofG. E. Wright, Garden City, NY,
1976: P. D. Hanson. “Prolegomena to the study of Jewish apocalyptic” (pp. 389-413), e M. E. Stone, “Revealed things in apocalyptic
literature” (pp. 414-52).

As contribuições em hell ho l m ajudam a situar o pensamento apocalíptico

judaico em um contexto mais amplo, tanto em termos históricos como geográficos; aquelas de J. Carmignac, J. C. H. Lebram,
M. Philonenko, K. Koch, E. P. Sanders e H. Stegemann são. além do mais, particularmente relevantes para o presente capítulo. Outros
artigos importantes serão encontrados nas seguintes coletâneas: L. Monloubou (ed.), Apocalypse et théologie de Tespérance, Paris,
1977; M. Philonenko & M. Simon (eds.), Études d’histoire des religions, vol. 3: L’apocalyptique, Paris, 1977.

O avanço dos estudos nesse campo é examinado até o final da década de 1940 em Johann M. Schmidt, Die jüdische
Apokalyptik. Die Geschichte ihren Erforschung von den Anfangen bis zu den Texfunden von Qumran. Neukirchen-Vluyn, 1969; até a
década de 1960, em Klaus Koch, Ra tios vor der Apokalyptik, Gütersloh, 1970 (trad. ing.. The rediscovery of the apocalyptic, Londres,
1972); e até o final da década de 1970, em M. Delcor, “Bilan des études sur 1*apocalyptique”, em Monloubou, op. cit., pp. 27-42; em
J. Barr, “Jewish apocalyptic in recent scholarly study”, Bulletin of the John Rylands Library 58 (Manchester, 1976), pp. 9-35; em R. J.
Bauckham, ‘The rise of apocalyptic”, Themelios, nova série, 3, 2 (Londres, 1978), pp. 10-23; e em M. A. Knibb, “Prophecy and the
emergence of Jewish apocalyptic”, em R. Coggins et al. (eds.), Israéis prophetic tradition: Essays in honour of Peter R. Ackroyd,
Cambridge, 1982, pp. 155-80, que inclui uma bibliografia abrangente. Para outras referências bibliográficas, verG. Delling (ed.),
a
Bibliographie zurjüdisch-hellenistischen und intertestamentarischen Literatur 1900-1965, Berlim, 1969 (2 ed.. 1975), e J. H.
Charlesworth, The Pseudepigrapha and modem research, Missoula, 1976, pp. 66-8. Levantamentos mais gerais do desenvolvimento
do judaísmo no período em foco, mas que dão considerável atenção ao pensamento apocalíptico, são W. Bousset, Die Religion des
Judentuns im spathellenistischen Zeitalter, 3” ed., rev. por H. Gressmann, Tübingen. 1926; P. Grélot, Lespérance juive à I ‘heure de
Jesus, Paris, 1978; D. E. Gowan, Bridge between the Testaments: A reappraisal of Judaismfrom the exile to the birth of Christianity,
a
2 ed., Pittsburgh, 1980; e o vol. 2 de Schürer/Vermes/Millar, esp. pp. 448 ss. Embora notável em sua época, P. Volz, Die
a
Eschatologie der jüdischen Gemeinde im neutestamentlichen Zeitalter, Tübingen, 1934 (I ed., 1903), é irremediavelmente obsoleta
em sua abordagem assim como em suas afirmações factuais.

1. O modo pelo qual os antigos judeus consideravam o tempo, a tradição, a personalidade e a inspiração parece ter tido
algo a ver com a questão; cf. Russell, op. cit., pp. 158-73.
2. Daniel 10:4,14. Sobre os anjos e suas funções, ver o verbete “Angels

and angelology”, Encyclopaedia Judaica, vol. 2, Jerusalém, 1971, cols. 956-77.

H. B. Kuhn, “The angelology of the non-canonical Jewish apocalypses”, jbl 67 (1948), embora superado em parte por estudos
mais recentes da problemática apocalíptica, continua sendo útil.

Cf. H. P. Müller. op. cit.; idem, “Magisch-mantische Weisheit und die Gestal Daniels”, uf 1 (1969), pp. 79-94;
Bauckham, op. cit., pp. 13-7; Collins, ‘The court-tale in Daniel”. A abordagem mais recente é também a mais exaustiva: H. S.
Kvanig, Roots of apocalyptic. The Mesopotamian background of the Enoch figure and of the Son of Man, Neukirchen-Vluyn,
1988.
É possível que os autores dos apocalipses também tenham se baseado em tradição israelita esotérica, transmitida por
meios dos quais nada sabemos; cf. M. Barker, The Older Testament. The survival of themes from the ancient royal cult in
sectarian Judaism and early Christianity, Londres, 1987.
Para a Crônica demótica: C. C. McCown, “Hebrew and Egyptian apocalyptic literature”, h tr 18 (1925), pp. 357-411,
com tradução na p. 389. Para o Oráculo do oleiro: L. Koenen, “The prophecies of a potter: A prophecy of worldrenewal
becomes an apocalypse”, em D. H. Samuel (ed.), Proceedings of the Twelfth International Congress of Papyrology, Toronto,
1970, pp. 249-54. Para os Oráculos de Hystaspes: H. Windisch, Die Orakel des Hy st aspes, Amsterdam, 1929; e cf. F.
Cumont, ‘‘La Fin du monde selon les mages occidentaux”, r h r 103 (1931), pp. 29-96, esp. pp. 64 ss. Ver também Hengel, op.
cit., vol. 1, pp. 184-6, e as referências bibliográficas no vol. 2, pp. 124-5.
Estudos relativamente recentes do Livro de Daniel e comentários sobre ele são os de E. W. Heaton (Londres, 1956); N.
W. Porteous (Londres, 1965); M. Delcor (Paris, 1971); A. Lacocque (Neuchâtel e Paris, 1976; trad. ing., Atlanta,

1979); R. Hammer (Cambridge, 1976, na coleção The Cambridge Bible Commentary); L. F. Hartman & A. A. Di Lella
(Garden City, ny, 1978, com um volume da Bíblia da Anchor); J. Lebram, ‘‘Daniel/Danielbuch und Zusàtze”, em

S. Schwertner (ed.), Theologische Realenzyklopadie, vol. 8, Berlim e Nova York, 1981, pp. 325-49. K. Koch, T. Niewisch & J.
Tubach. Das Buch Daniel, Darmstadt, 1980, fazem um levantamento do estado dos conhecimentos até a data.

Sobre a escatologia de Daniel em particular: J. J. Collins, The apocalyptic

vision ofthe Book of Daniel, Missoula, 1977; P. Grelot, ‘‘Histoire et eschatologie dans le livre de Daniel”, em Monloubou, op.
cit., pp. 63-109 (ver nota 2 deste capítulo); P. R. Davies, “Eschatology in the Book of Daniel”, jso t 17 (1980), pp. 33-53.

(9) Daniel 2:44-5 e 2:28.

Sobre a relação entre Daniel 2 e outras abordagens do tema: Eduard Meyer, Ursprung undAnfànge des Christentums,
vol. 2, Stuttgart e Berlim, 1921, pp. 189-91; H. H. Rowley, Darius the Mede and the Four World Empires in the Book of
Daniel, Cardiff, 1935; J. W. Swain, “The theory of the four monarchies: Opposition history under the Roman empire”,
Classical Philology 35 (Chicago, 1940), pp. 1-21, esp. pp. 9-11; D. Flusser, “The four empires in the Fourth Sibyl and in the
Book of Daniel”, Israel Oriental Studies, vol. 2, 1972, pp. 148-75; J.

J. Collins, “The place of the Fourth Sibyl in the development of Jewish Sibyllina”, jjs 25 (1974), pp. 365-80; idem, Apocalyptic
vision, pp. 36-46; G. F. Hasel, “The four world empires of Daniel 2 against the Near East environment”, jso t 12 (1979), pp. 17-30.
Como indica Hasel, a relevância do texto babilónico conhecido como Profecia dinástica é no mínimo duvidosa. Por outro lado, há
extraor


dinária semelhança entre o sonho de Nabucodonosor e aquele atribuído a Zoroastro em dois comentários pálavi em um texto
perdido, o Vahman Yasht. Também no sonho de Zoroastro, cada um dos quatro períodos (mas não impérios) é simbolizado por um
metal, e o quarto, “liga de ferro”, é de longe o pior. Além do mais, esse quarto período deve terminar mil anos depois de Zoroastro, ou
seja, com o aparecimento do primeiro saoshyant. Para os comentários em pálavi, ver

T. Anklesaria, Zand-i Vohuman Yasn. Bombaim, 1957, caps. 1, 3 e 4. Há tradução mais antiga em The Sacred Books
ofthe East, vol. 5, Oxford, 1880, pp. 191 -3, e vol. 37. Oxford, 1891, pp. 18 ss.

Daniel 7:7-8.
Salmo %: 12-3; Zacarias 14:5; Joel 4:12.
Cf. Collins, Apocalyptic vision, pp. 99-104; G. R. Beasley-Murray, “The interpretation of Daniel 7”, cbq 45 (1983),
pp. 44-58.
Cf. Russell, op. cit., pp. 244-9; G. B. Caird, Principalities andpowers, Oxford, 1956, pp. 4-6.

(15) Daniel 10:13-21; 11:1.

(16) Daniel 11:45; 12:1.

Daniel 8:10-1; ecf. Jó 38:7. Ver também Delcor, op. cit., p. 173; J. J. Collins, “The Son of Man and the Saints of the
Most High in the Book of Daniel”, jbl 93 (1974), parte 1, pp. 50-66.
Cf. A. S. Palmer, “The fali of Lucifer”, Hibbert Journal 11 (Londres, 1913), pp. 766-86, esp. pp. 772-3;
Bousset/Gressmann, op. cit., pp. 322-3.
Cf. O. Morkholm, Studies in the coinage of Antiochus IV of Syria, Copenhague, 1963, pp. 57 ss.; A. Hultgard,
Leschatologie des Testaments des Douze Patriarches, vol. 1, Upsala, 1977, pp. 330-1, e ilustração oposta à p. 336;

J. G. Bunge, “Antiochus-Helios.’ Methoden und Ergebnisse der Reichspolitik Antiochus’ iv Epiphanies von Syrien im Spiegel
seiner Münzen”, Historia. Zeischrift fiir alte Geschichte 24 (Wiesbaden, 1975). pp. 164-88.

Sobre o Filho do Homem em Daniel: A. Caquot, em Semítica 17 (Paris, 1967), pp. 37-71, e M. Casey, The Son ofMan,
Londres, 1979, pp. 30 ss., incluem levantamentos das várias interpretações propostas até aquelas datas. Para o Filho do
Homem como ser humano, ver, por exemplo, H. Schmid, “Daniel, der Menschensohn”, Judaica 27 (Zurique, 1971), pp. 192-
220. Hartman & Di Lella, op. cit. (ver nota 8 deste cap.), pp. 97 ss., e Casey, op. cit., pp. 25 ss., interpretam o Filho do Homem
como um símbolo para os judeus devotos. Lacocque. op. cit., e Collins, The apocalyptic vision in the Book of Daniel, em The
apocalyptic imagination, e também em ‘The Son of Man and the Saints ofthe Most High in the Book of Daniel”, jbl 93 (1974),
o identificam a Miguel. Beasley-Murray, op. cit. (ver nota 13 deste cap.), pp. 55 ss., identifica-o ao Messias.
Daniel 7:14.
Alguns estudiosos consideraram os “santos” como sendo anjos: M. Noth, “The Holy Ones of the Most High”, em The
laws ofthe Pentateuch and other essays, Filadélfia, 1967, pp. 215-28 (o original alemão foi publicado em 1955); L. Dequeker,
em Ephemerides Theologicae Lovanienses 36 (Louvain, 1960), pp. 353-92; idem, “The ‘Saints of the Most High’ in Qumran
and Daniel”, Oudtestamentische Studien 18 (Leiden, 1973), pp. 108-87; J. Coppens, “La vision

daniélique du Fils d’Homme’\ v t 19 (1969), pp. 171-82; idem, “Le chapitre v ii de Daniel. Lecture et commentaire”,
Ephemerides Theologicae 54 (1978), pp. 310-22; Collins (ver nota 19 deste cap.).

As bases para a interpretação proposta neste capítulo — segundo a qual os “santos” são os judeus devotos — encontram-se em:
C. H. W. Brekelmans, em P.

A. H. de Boer (ed.), Oudtestamentische Studien 14 (1965), pp. 305-29; A. Caquot (1967), ver nota 10 deste cap.; R. Hanhart,
em v t s 16 (1967), pp. 90-101; A. Lenglet, em Bíblica 53 (1972), pp. 169-90; G. F. Hasel, em Bíblica 56 (1975), pp. 173-92; V. S.
Poythress, em v t 26 (1976), pp. 208-13. Hartman & Di Lella, Lacocque, Casey (ver notas 8 e 20) concordam. Koch et al., Das Buch
Daniel, p. 239, sugerem que a versão masorética deve ser traduzida como “os santos dos altíssimos”. A implicação seria a de que o
domínio do mundo deve ser atribuído aos judeus (devotos) em virtude de sua estreita conexão com os anjos, que constituem a categoria
mais elevada dos santos.

Daniel 5:18. (24) Ibid. 7:27, 2:44. (25) Ibid. 12:10.

(26) Sobre o significado dessa profecia, ver G. W. E. Nickelsburg, Ressurection, immortality, and eternal life in
intertestamental Judaism, Cambridge. Mass., e Londres, 1977, pp. 18-27. Hoje parece improvável que Isaías 26:19 de fato remeta para
a passagem em Daniel; cf. D. G. Johnson, From chãos to restoration. An integrative reading oflsaiah 24-27, Sheffield, 1988, pp. 80-1.

(27) li Macabeus 14:45-6; ecf. 7:11.

1. APOCAUPSES JUDAICOS ( I I ) (pp. 231-53)

1. Duas traduções confiáveis encontram-se agora disponíveis: M. A. Knibb, The Ethiopic Book of Enoch: A new edition
in the light ofthe Aramaic Dead Sea fragments, vol. 2, Oxford, 1978; e M. Black (com J. VanderKam e O. Neugebauer), The
Book of Enoch: A new English edition with commentary and notes, Leiden, 1985. Ambas substituíram aquela que foi por mais
a
de meio século a tradução de referência: R. H. Charles. The Book of Enoch, 2 ed. rev., Oxford, 1912. As citações neste
capítulo foram extraídas de Knibb.

Estudos relativamente recentes do I Enoque, ou de aspectos ou partes do mesmo (com exceção das “Similitudes”) : P. Grelot,
“La légende d’Hénoch dans les apocryphes et dans la Bible: origine et signification”, Recherches de la Science Religieuse 46 (Paris,
1958), pp. 5-26, 181-210; idem, “L^schatologie des Esséniens et le livre d’Hénoch”, r q 1 (1958), pp. 113-31; idem, “Hénoch et ses
écritures”, Revue Biblique 82 (1975), pp. 481-500; J. T. Milik, “Problèmes de la littérature hénochique à la lumière des fragments
araméens de Qumran”, h tr 64 (1971), pp. 333-78; idem, The Books of Enoch: Aramaic fragments of Qumran, cave 4, Oxford, 1976,
introdução; J. C. Greenfield & M. E. Stone, “The Books of Enoch and the traditions of Enoch”, Numen 6 (Leiden, 1979), pp. 89-103
(inclui crítica da datação de Milik); M. Black, “The fragments of the Aramaic


Enoch from Qumran”, em W. C. van Unnik (ed.), La littérature juive entre Tenach et Mischna, quelques problèmes
(Recherches bibliques 9), 1974, pp. 15-28; idem, ‘The new creation in I Enoch”, em R. W. A. McKinney (ed.), Creation, Christ
and culture, Edinburgh, 1976, pp. 13-21; M. E. Stone, “The Book of Enoch and Judaism in the third century bce “, cbq 40
(1978), pp. 479-92; idem, “Enoch and apocalyptic origins” (cap. 5 de seu Scriptures, sects and visions, Filadélfia, 1980);

L. Hartman, Looking for a meaning: A study ofl Enoch 1-5, Gleerup, 1979; J. H. Charlesworth, “The sn t s
Pseudepigrapha seminars at Tübingen and Paris on the Books of Enoch*’, n t s 25 (1979), pp. 315-23; D. Dimant, “The
biography of Enoch and the Books of Enoch”, v t 33 (1983), pp. 14-29; O. Neugebauer, The astronomical chapters of the
Ethiopic Book of Enoch (72-82), Copenhague, 1981;

J. J. Collins, “The apocalyptic technique: Setting and function of the Book of Watchers”, cbq 44 (1982); J. C.
VanderKam, “The theophany of Enoch 1.3b-7.9”, v t 23 (1979), pp. 129-50; idem, Enoch and the growth of an apocalyptic
tradition, Washington, dc, 1984; S. Uhlig, Das üthiopische Henochbuch, Gütersloh, 1984; M. Barker, The Older Testament, 1987,
ver nota 6 do cap. 9; os seguintes artigos de G. W. E. Nickelsburg: ‘The apocalyptic message of i Enoch 92-105”, cbq 39 (1977),
pp. 309-28; “Apocalyptic and myth in Enoch 6-11”, jbl % (1977), pp. 383-405; “Enoch, Levi and Peter: Recipients of revelation
in Upper Galilee”, ibid. 100 (1981), pp. 575-600: “The Epistle of Enoch and the Qumran literature”, jjs 33 (1982), pp. 333-49;
os seguintes ensaios em P. J. Achtemcier (ed.), Society ofBiblical Literature 1978 Se minar Pape rs, vol. 1, Chico, Cal., 1978: J. J.
Collins. “Methodological issues in the study of i Enoch”; G. W. E. Nickelsburg, “Reflections upon reflections: A response to
John Collins* ‘Methodological issues

D. Dimant, “i Enoch 6-11: A methodological perspective”. B. Z. Wacholder, Eupolemus: A study of Judaeo-Greek


literature, Cincinnati. 1974, pp. 71 ss. considera Enoch como um modelo do “homem sábio”.

1. Gênesis 5:21-4.
2. Livro dos Jubileus 4:19,23.
3. Traduções confiáveis do Livro dos Jubileus são as de R. H. Charles, Londres, 1902, e de O. S. Wintermute, em J.
H. Charles (ed.), The Old Testament Pseudepigrapha, vol. 2, Londres, 1985, pp. 52-142, e introdução, pp. 32-50. As
citações neste capítulo foram extraídas da primeira. Estudos úteis: M. Testuz, Les idées religieuses du Livre des
Jubilées, Genebra e Paris, 1960; G. L. Davenport, The eschatology of the Book of Jubilees, Leiden, 1971; J. C.
VanderKam, Textual and historical studies in the Book of Jubilees, Missoula, 1977.
4. Documento de Damasco 16:3-4.
5. Para o que vem a seguir, cf. M. Limbeck, Die Ordnung des Heils. Untersuchungen zum Gesetzesverstandnis des
Frühjudentums, Düsseldorf, 1971, pp. 64-82; U. Luck. “Das Weltverstándnis in der jüdischen Apokalyptik”, Zeitschrift
für Theologie und Kirche 73 (Tübingen, 1976), pp. 283-305.
6. Livro dos Jubileus 2:2.
7. I Enoque 82:2.

(9) Ibid. 18:2; cf. 34:2-36, 1; 76:1-7.

(10) Ibid. 2:1-5; 4; cf. 69:15-33.

(11) Cf. C. Münchow, Ethik und Eschatologie, Ein Beitrag zum Vestandnis


der frühjudischen Apokaliptik mit einem Ausblick auf das Neue Testament, Gõttingen. 1981, pp. 16-64; M.-T. Wacker,
Weltordnung und Gericht: Studien zu I Henoch 22, Würzburg, 1982, esp. pp. 257, 298-305, 314-5.

Livro dos Jubileus 5:10,13.


Cf. C. A. Newsom, “The development of I Enoch 6-19: Cosmology and judgmenf, CBQ 42 (1980), pp. 310-29,
esp. pp. 322 ss.
Livro dos Jubileus 15:26-7.
Sobre o calendário solar: A. Jaubert, “Le calendrier des Jubilées et de la secte de Qumran: Ses origines
bibliques”, v t 3 (1953), pp. 250-64; idem, “Lc calendrier des Jubilées et Ies jours liturgiques de la semaine”, ibid. 7
(1957), pp. 35-61; J. Morgenstem, “The calendar of the Book of Jubilees”. ibid. 5 (1955), pp. 34-76; J. C. VanderKam,
“The origin, character, and early history of the 364- day calendar: A reassessment of JaubeiTs hypotheses”, cbq 41
(1979), pp. 390- 411; P. R. Davies, “Calendrical change and Qumran origins. An assessment of VanderKanfs theory”,
1
cbq 45 (1983), pp. 80-9; R. T. Beckwith, “The earliest Enochic literature and its calendar ’, r q 10 (1981), pp. 365-403.

(16) I Enoque 72:35-7.

(17) Livro dos Jubileus 2:9.

(18) Ibid. 6:33.

(19) Cf. P. L. Day, An adversary in heaven. Satan in the Hebrew Bible, Atlanta, 1988.

(20) Êxodo 4:24-5.

Livro dos Jubileus 48:3.


Obras recentes que tratam das primeiras versões do Diabo e de seu relacionamento com os monstros do caos de
tempos ainda mais remotos: J. B. Russell, The Devil: Perceptions of evil from Antiquity to primitive Christianity, Ithaca,
NY, e Londres, 1977; B. Teyssèdre, Naissance du Diable. De Babylone tiux grottes de la mer Morte, Paris, 1985; N.
Forsyth, The old enemy: Satan and the combat myth, Princeton, 1987.
Sobre a história inicial do mito dos observadores e de outros mitos relacionados: B. J. Bamberger. Fallen
angels, Filadélfia, 1952, esp. pp. 15-59; A. Lods, “La chute des anges”, r hpr 7 (1927), pp. 295-315. Para diversas
interpretações: P. D. Hanson. “Rebellion in heaven. Azazel, and the euhemeristic heroes in

1 Enoch 6-11”, jbl 96 (1977), pp. 195-233; G. W. E. Nickelsburg, “Apocalyptic and myth in i Enoch 6-11”, ibid., pp. 383-
405; D. Suter, “Fallen angel, fallen priest: The problem of family purity in i Enoch 6-11”, huc a 50 (1979), pp. 115- 35; Barker,
The Older Testament, esp. pp. 21 ss., 94; Forsyth, op. cit., pp. 160 ss.

I Enoque 8:2.

(25) Cf. ibid. 15:10-2.

(26) Livro dos Jubileus 10:1-9. (27) Ibid. 11:2,3 e 5;cf. 10:8-12. (28) Ibid. 10:12.

(29) Cf. ibid. 23 (30) Ibid. 12:20. (31) Ibid. 19:28. (32) Ibid. 23:25.


(33) Ibid. 23:23.

(34) Cf. ibid. 22:22.

I Enoque 11 ss.
Livro dos Jubileus 50:5.
Ibid. 23:27-8. “Nem alguém repleto de dias” é uma correção de VanderKam, op. cit., p. 269, com base nos
manuscritos etíopes.

(38) I Enoque 24-5:58.

(39) Ibid. 90:38.


(40) Sobre os Manuscritos e a comunidade de Qumran: G. Vermes, The Dead Sea Scrolls: Qumran in perspective,
Cleveland e Londres, 1978, que inclui ampla bibliografia até a data. Sobre a visão de mundo da comunidade de Qumran, ver
também: H. Ringgren, The faith of Qumran: Theology of the Dead Sea Scrolls, Filadélfia, 1963; P. von der Osten-Sacken, Gott
und fíelial: Traditionsgeschichtliche Untersuchungen zum Dualismus in den Texten aus Qumran, Gottingen, 1969; E. H. Merrill,
Qumran andpredestination, Leiden. 1975.

Sobre a escatologia em particular: Y. Yadin, The scroll of the war of the Sons of Light against the Sons of Darkness,
Oxford. 1962, esp. pp. 229-42, sobre o papel escatológico dos anjos; H. W. Kuhn, Endenvartung und gegenwartiges Heil:
Untersuchungen zu den Gemeindeliedem von Qumran, Gottingen, 1966; P. Grelot, “L’eschatologie des Esséniens et le livre
d’Hénoch”, r q 1 (1958), pp. 112- 31; J. Licht, “An analysis of the Treatise on the Two Spirits”, em C. Roth & Y. Yadin, Aspects
of the Dead Sea Scrolls, Jerusalém, 1958. pp. 88-100; idem, ‘Time and eschatology in apocalyptic literature and Qumran”, jjs
16 (1967), pp. 117- 82; J. Pryke, “Eschatology in the Dead Sea Scrolls”, em M. Black (ed.), The Scrolls and Christianity,
Londres, 1969, pp. 45-57; J. Carmignac, “La future intervention de Dieu”, em M. Delcor (ed.), Qumran. Sa piété, sa théologie et
son milieu, Paris e Louvain. 1978, pp. 119-29; A. Caquot, “Le messianisme qumranien”, ibid., pp. 231-47; J. J. Collins,
“Pattems of eschatology at Qumran”, em B. Halpem & J. D. Levenson, Traditions in transformation: Tuming points in biblical
faith, Winona Lake, Ind., 1981, pp. 351-75. Sobre o calendário em particular: E. Ettisch, “Der grosse Sonnenzyklus und der
Qumran kalender”, Theologische Literaturzeitung 88 (1963), cols. 185-94; M. D. Herr, ‘The calendar”, em Compendia Re rum
Judaicarum ad Novum Testamentum, vol. 1, parte 2, Assen. 1976, pp. 834 ss.

a
Traduções dos Manuscritos: T. H. Gaster, The Dead Sea scriptures in English translation, 2 ed., Garden City, ny, 1964;
a
A. Dupont-Sommer, The Essene writingsfrom Qumran, Oxford, 1961; G. Vermes, The Dead Sea Scrolls in English, 2 ed.,
a
Harmondsworth, 1975, e 3 ed., Sheffield, 1987. Todas as citações neste capítulo foram extraídas de Vermes (1975) e, nas notas
seguintes, os números de páginas referem-se a essa edição. Para facilitar o uso de outras traduções, as referências aos próprios
Manuscritos são dadas entre parênteses, com as abreviaturas usuais; 1q para a Caverna 1 de Qumran, s para a Regra da
Comunidade, H para os Hinos, M para a Regra de Guerra, Melch para o Documento de Melquisedeque, c d para a Regra de
Damasco e Cairo. Também aqui foram adotadas as referências bastante completas de Vermes (1975).


Após atraso de muitos anos, uma quantidade considerável de material adicional dos Manuscritos foi recentemente
posta à disposição dos pesquisadores. Esse material foi publicado, com comentários, em R. Eisenman & M. Wise, The DeacJ
Sea Scrolls uncovered, Shaftesbury, Dorset e Rockport, Mass., 1992. Suas implicações ainda estão sendo avaliadas. Porém, as
teorias que haviam sido suscitadas pelos Manuscritos anteriormente publicados permanecem praticamente as mesmas —
exceto pelo fato de agora parecer certo, e não mais provável, que havia a esperança de uma ressurreição física dos devotos.

(41) Pp. 93, 158 (Iqs 11:7-9).

(42) Pp. 92-3 (Iqs 11:6-8).

(43) P. 72 (Iqs 1:13-5).

(44) P. 188 (Iqs 12:5).

(45) Pp. 75-6 (Iqs 3:13-4:1).

(46) Apud Vermes, The Dead Sea Scrolls: Qumran in perspective, pp. 155-6.

(47) Pp. 147-8 (Iqm 19:2-8).

(48) P. 146 (Iqm 18:1-3).

(49) P. 267 (2q Melch 2: 9, 13). Cf. P. J. Kobelski, Melchizedek and Melkiresa, Washington, dc, 1981, pp. 6-57; H. G.
May, “Cosmological reference in the Qumran doctrine of the Two Spirits and in Old Testament imagery”, jbl 72 (1963), pp. 1-
14.

(50) P. 103 (CD 6:11).


(51) P. 78 (Iqs 4:25).

(52) P. 77 (Iqs 4:12-3).

(53) P. 76 (Iqs 4:7-8).

P. 172 (Iqh 6:34-5). Porém, ver Vermes, The Dead Sea Scrolls: Qumran in perspective, p. 187.
Cf. Vermes, The Dead Sea Scrolls in English, p. 158 (Iqh 3:20-2).
Sobre o zurvanismo, ver p. 289.

1. A SEITA DE JESUS (pp. 254-75)

1. A literatura sobre as origens do cristianismo é enorme. Para valiosa bibliografia das obras publicadas no século
xx até meados da década de 1980, ver

C. Rowland, Christian o ri gins. An account ofsetting and character of the most

important messianic sect of Judaism, Londres, 1985. Outros trabalhos abrangentes sobre o tema, e dos quais o presente
estudo é devedor, são H. C. Kee, Christian origins in sociological perspective, Londres, 1980; A. E. Harvey, Jesus and the
constraints of history, Londres, 1982; E. P. Sanders, Jesus and Judaism, Londres, 1983. Das inúmeras obras sobre o contexto, a
vida e os ensinamentos do próprio Jesus, duas de G. Vermes, Jesus the Jew, A historian ‘s reading of the Gospelsy Londres,
1973, e The religion of Jesus the Je\v% Londres, 1993, reve

laram-se particularmente úteis. P. Fredriksen. From Jesus to Christ, New Haven

e Londres, 1988, é esclarecedora sobre as interpretações mutantes de Jesus nos evangelhos e nos escritos paulinos.

1. Sobre os carismáticos peregrinos: Kee, op. cit., esp. cap. 3; G. Theissen,


The first followers of Jesus: A sociological analysis of the earliest Christianity,

Londres, 1978.

A importância crucial do reino de Deus no pensamento e no ensino de Jesus nem sempre foi devidamente
a
reconhecida. O primeiro estudioso a chamar atenção para isto foi Johannes Weiss, Die Predigt vom Reiche Gottes, I
ed., 1892 (62 pp.), e ed. rev., 1900 (214 pp.); trad. ing., The proclamation of the kingdom of God, Londres e Filadélfia,
1971. Albert Schweitzer escreveu uma eloqüente, mas metodologicamente falha, obra de vulgarização da descoberta de
Weiss, em Von Reimarus zu Wrede, Tübingen, 1906; a segunda edição e as posteriores foram intituladas Geschichte der
Leben-Jesu-Forschung\ trad. ing., The quest for the histórica! Jesus, Londres. 1910, Nova York, 1922; muitas edições
subseqüentes. Para uma crítica perspicaz de Schweitzer: T. F. Glasson, “Schweitzerís influence: Blessing or bane?”,
Journal ofTheological Studies 28 (Oxford, 1977), pp. 289-

302. Weiss é mais judicioso do que Schweitzer, e o seria ainda mais se usasse o termo “escatológico” em vez de
“apocalíptico”.

Por exemplo, além das obras de Rowland. Sanders e Vermes relacionadas na nota 1, W. G. Kümmel, Promise
a
and fidfilment, Londres, 1957 (trad. da 3 ed. alemã); J. Jeremias, New Testament theology, vol. 1, Londres. 1971, pp. 73
ss.; R. H. Hiers, The kingdom of God in the Synoptic tradition, Gainesville, Flor., 1970; idem, The historical Jesus and the
kingdom of God, Gainesville, Flor., 1973; B. F. Meyer, The aims of Jesus, Londres, 1979. Para levantamentos de outras
interpretações: G. Lundstrõm. The kingdom of God in the teaching of Jesus. A study of interpretations from the last
decades of the nineteenth century to the present day, Edinburgh, 1963 (trad. do sueco); N. Perrin, The kingdom of God in
the teaching of Jesus, Filadélfia e Londres, 1966. Para uma útil antologia dc interpretações: B. Chilton (ed.), The
kingdom of God, Filadélfia e Londres, 1984; e deve-se acrescentar: G. R. Beasley-Murray, Jesus and the kingdom of
God, Grand Rapids e Exeter, Inglaterra (com bibliografia exaustiva).

(5) Ver acima. pp. 238-9, 248. [308 no ms.]

Isaías 11:5-9; cf. Jeremias, op. cit., pp. 68 ss.


Cf. B. Noack, Satanas und Soteria. Untersuchungen zur neutestamentlichen Dàmonologie, Copenhague, 1948; J.
M. Robinson, The problem ofhistory in Mark, Londres. 1957, pp. 43-51; Hiers. The kingdom of God, esp. pp. 30- 9; idem,
Historical Jesus, pp. 59-64; J. Jeremias, op. cit., pp. 94-5; J. B. Russell, The Devil. Perceptions of evil from Antiquity to
primitive Christianity, Ithaca e Londres, 1977, pp. 227-39; R. Yates, “Jesus and the demonic in the Synoptic gospels”,
Irish Theological Quarterly 44 (Maynooth College, Co. Kildare, 1977), pp. 39-57; Vermes, Jesus the Jew, pp. 61 ss.;
idem, Gospel of Jesus, p. 9; H. C. Kee, Miracle in the early Christian world. A study in sociohistorical method, New Haven
e Londres, 1983, pp. 146, cap. 3; N. Forsyth, The old enemy. Satan and the combat myth, Princeton, 1987, pp. 285-7; e
ver nota 5 deste cap. Para desenvolvimentos subseqüentes: H. A. Kelly, The Devil at baptism, Ithaca e Londres, 1985.
Marcos 1:24
Cf. Lucas ll:20e Mateus 12:28.
Cf. Marcos 3:27.

Cf. sobre os sinônimos: Vermes, Jesus the Jew, p. 60.


Cf. Lucas 10:17-20; Meyer, Aims of Jesus, p. 156. (13) Cf. Marcos 13:7-10, 24-5.

(14) Cf. Hiers, Historical Jesus, pp. 25-6.

(15) Isaías 35:5-6.

Mateus 15:31.
Isaías 25:6.
Marcos 14:25.
Cf. Marcos 11:12-4; e Hiers, “Not the season for figs”. jbl 87 (1968), pp. 394-400; idem, Historical Jesus, pp. 83-
5; e, para uma crítica dessa interpretação, ver W. R. Telford, The barren temple and the withered tree, Sheffield, 1980,
pp. 206-8.
Sobre Papias: U. H. J. Kõrtner, Papias von Hieropolis, Gõttingen, 1983.
Esse fragmento foi preservado em Irineu, Adversus Haereses, liv. 5, cap. 33, § 3. Trad. do autor.

(22) Baruc u 29:5-8.


Cf. Irineu, op. cit., liv. 5, caps. 32-4.
Cf. Mateus 11:11 e Lucas 7:28.
Marcos 12:25; Mateus 13:43.
Santo Agostinho, City of God, liv. XX, caps. 14, 16, trad. John Healey, Londres e Nova York, 1945 etc.
(Everyman’s Library). Cf. Thomas E. Clarke, “St. Augustine and cosmic redemptions”, Journal of Theological Studies
19 (Baltimore, 1958), pp. 133-64; idem, The eschatological transformation of the material world according to St
Augustine, Woodstock, Maryland, 1956.
Lucas 7:22.
Mateus 19:30.

(29) Lucas 6:20-1.

Mateus 25:35.
Marcos 10:21. (32) Lucas 14:13-3.

(33) Cf. Mateus 15:24; 10:6.

Marcos 7:29.
Lucas 16:17; cf. Mateus 5:18.
I Enoque 89-90 (“Apocalipse animal”); 91:30 (“Apocalipse das semanas”); Livro dos Jubileus 1:15-7.
Cf. Sanders, op. cit., pp. 87, 106.

(38) Lucas 22:28-9; cf. Mateus 19:28.

(39) Mateus 18:1. (40) Ibid. 20:21.

(41) Cf. Harvey, op. cit., p. 141.

(42) Lucas 4:18-9; cf. Isaías 6:1-2.

(43) R. Bomkamm. Theology of the New Testament, vol. 1, Londres, 1952, p. 180.

(44) i Coríntios 15:4-8, 11-4.

Atos 1:6.
Ver nota 1 do cap. 10 para as traduções de I Enoque. Sobre outras figu


ras similares ao Enoque das “Similitudes”: J. Theisohn, Der auserwahlte Richíer, Gõttingen, 1975.

(47) Cf. G. R. Beasley-Murray, op. cit. (ver nota 4 deste capítulo), pp. 63-8 (“Excursus: The dâte of similitudes of
Enoch”).

(48) I Enoque 46:1; 45:3; e cf. 51:3.

(49) Ibid. 46:4-7.


(50) Ibid. 38:1; 46:6; 62:3-12; 54:1-2.

(51) Ibid. 69:27-9.

(52) Ibid. 50:1-2.

(53) Ibid. 51:5.

(54) Ibid. 45:4-5; 62:14.

(55) Ibid. 58:3; 51:4; 62:16.

(56) Ibid. 71:14-7.

(57) Cf. B. Lindars, Jesus Son of Man, Londres, 1983, esp. p. 14.

(58) Lucas 24:26.

(59) Filipenses 2:9-10.

(60) Atos 17:31.

1 Coríntios 7:29; Romanos 13:12; i Pedro 4:7.


Marcos 9:1.
i Tessalonicenses 4:13-8. Cf. G. Kegel, Aufesterhung Jesu —

Aufesterhung der Toten, Gütersloh. 1970.

Sobre o modo como a Igreja primitiva via a si mesma: R. Bultmann,

Theology ofthe New Testament, vol. 1, Londres, pp. 33-62.

(65) Lucas 12:32.

(66) Didnche 10:5 ss., trad. Kirsopp Lake, em The Apostolic Fathers, vol. i, 1, Londres, 1912 (Loeb Classical Library).

(67) Cf. Atos 11:28; 21:9-11.

i Tessalonicenses 5:2,6.
Mateus 3:12. (70) Ibid. 10:32-3. (71) Ibid. 25:31-4,41. (72) Ibid. 13:41-3.

(73) n Tessalonicenses 1:6-10.

1. O LÍVRO DO APOCALIPSE (pp. 276-85)


1. Obras valiosas sobre o Apocalipse: R. H. Charles, A criticai and exegetical commentary on the Revelation of St
John, Londres e Nova York, 1920; G.

B. Caird, A commentary on the Revelation of St John the Divine, Londres e Nova York, 1966; W. Harrington,
Understanding the Apocalypse, Washington, Dc,

1969; P. S. Minear, / saw a new earth. 1968; A. Yarbro Collins, Crisis and catharsis. The power of the Apocalypse,
Filadélfia, 1984; L. L. Thompson, The Book of Revelation: Apocalypse and ernpire. Nova York e Oxford. 1990.

1. Apocalipse 1:10-20. A menos que indicado de outro modo, todas as referências bibliográficas a seguir são do
Livro do Apocalipse.


(3) 3:4-5.

(4) 3:10.

(5) 2:26-7.

(6) H. Gunkel, já argumentou que o Apocalipse deve muito ao mito do combate do Oriente Próximo, Schòpfung und
Chãos in Urzeií und Endzeit, Gõttingen, 1885, numa época em que a única versão conhecida do mito era o Enuma elish. Para
uma apresentação mais atual desse argumento, ver R. Halver, Der Mythos im letzten Buch der Bihel, Hamburgo-Bergstadt,
1964.

(7) 12:12; 12:17.

(8) 13:7.

(9) Cf. Thompson, op. cit., pp. 16, 104. (10) Ibid., esp. pp. 95, 132, 171-81. (11) 19:16.

(12) 19:17.

(13) 18:2.

(14) 18:20.

(15) 14:9.

(16) 16:2-10; 14:11.

(17) 20:3.

Cf. Ezequiel 38:1-39.


a
Cf. A. Wikenhauser, Die Offenharung des Johannes, 3 ed., Regensburg, 1959 (Regenshurger Neues Testament
9); W. W. Reader, Die Stadt Gottes in der Johannesapokalypse, Gõttingen, 1971, pp. 240-1.

(20) 21:7.
(21) 21:1-5.

(22) 22:2.

(23) 22:12, 20.

1. JUDEUS, ZOROASTR/ANOS E CRISTÃOS (pp. 286-94)

1. A hipótese não é muito difundida, e eu mesmo apenas aos poucos passei a aceitá-la como correta. Por outro
lado, não se trata de uma noção nova. Entre os estudiosos, foi debatida em várias épocas (embora em níveis muito
diversos de erudição) desde a publicação de Zend Avesta. Ouvrage de Zoroastre, contenani les idées théologiques,
physiques et morales de ce législateur, Paris, 1771, pelo extraordinário lingüista e viajante Abraham-Hyacinthe
Anquetil-Duperron; para um breve estudo, ver J. Duchesne-Guillemin, The Western response to Zoroaster, Oxford,
1958, cap. 6. O desenvolvimento da discussão pode ser acompanhado em

J. G. von Herder, Erlauterungen zuni Neuen Testament aus einer neuerõffneten morgenlündischen Quelle, 1775
(Samtliche Werke zur Religion und Theologie. ed.

J. G. Miiller, vol. 9, Stuttgart e Tübingen, 1829); J. S. Semler, apêndice ao anônimo Versuch einer biblischen
Dâmonologie, 1776; Constantin-François Chasseboeuf, conde de Volney, Les ruines, ou Méditation sur les révolutions des
empires, Paris, 1791, cap. 21; J. A. L. Richter, Das Christentum und die altesten Religionen des Orients, 1819; W. Vatke, Die
Religion des Alten Testaments,


Berlim, 1835, pp. 542-51; D. G. C. von Cõlln, Biblische Theologie, Leipzig, 1836, pp. 342-52; E. Stave, Überden Einfluss
des Parsismus auf das Judentum, Haarlem, 1898, esp. parte 3, pp. 117-280; Lawrence H. Mills, Zarathustra, Philo, the
Achaemenids and Israel, Leipzig, 1904, esp. parte 2, pp. 210-460; E. Meyer, Ursprung und Anfànge des Christentums. vol.
a
2,1921; D. W. Bousset, Die Religion des Judeníums im spiithellenistischen Zeitalter, 3 ed., ed. H. Gressmann, Tübingen, 1926,
pp. 469-524; A. von Gall, Basileia tou Theou. Eine religiongeschichtliche Studie zur vorkircMichen Eschatologie, Heidelberg,
1926; R. Otto, The kingdom ofGod and the Son of Man, Londres, 1938 (trad. da ed. alemã revista); C. Autran, Mithra, Zoroastre
et la préhistoire aryenne du christianisme, Paris, 1935, parte 2. pp. 143-269; G. Widengren, “Quelques rapports entre juifs et
iraniens à Tépoque des parthcs”, v t s 4 (1957), pp. 197-241; idem, Iranische-semitische Kulturbegegnung in parthischer Zeit,
Colônia e Opladen, 1960; idem, “Iran and Israel in Parthian times with special reference to the Ethiopic Book of Enoch”,
Temenos 2 (Helsinque, 1966), pp. 139-77; S. K. Eddy, The king is dead. Studies in the Near Eastem Resistance to Hellenism,
Lincoln, Nebraska, 1961; Morton Smith, “li Isaiah and the Persians”, ja os 83 (1963), pp. 415-21; D. Winston, ‘The Iranian
component in the Bible, Apocrypha and Qumran: A review of the evidence”, h r 5, 2 (1966), pp. 183-216; J. R. Hinnells,
“Zoroastrian saviour imagery and its influence on the New Testament”, Numen 16 (1969), pp. 161-84; idem, “Iranian influence
upon the New Testament”, Commémoration Cyrus, 2, Acta Iranica, 2 (1974), pp. 271-84; idem, “Zoroastrian influence on the
Judaeo- Christian tradition”, Journal ofthe K. R. Cama Oriental Institute 65, Bombaim, 1976, pp. 1-23; A. Hultgard, “Das
Judentum in der hellenistisch-rõmischen Zeit und die iranische Religion — eine religiongeschichtliches Problem”, em H.
Temporini & W. Haase (eds.), Aufstieg und Niedergang der rõmischen Welt, vol. 2, Berlim e Nova York, 1979, pp. 512-90, com
bibliografia nas pp. 583 ss.; S. Shaked, “Iranian influence on Judaism: First century bc e to second century c e “, em
Cambridge History of Judaism, vol. 1, Cambridge, 1984, pp. 308-25; M. Boyce, “Persian religion in the Achaemenid age”, em
ibid.; idem, A history of Zoroastrianism, vol. 3, Leiden etc., 1991, cap. 11. E. Bõklen. Die Verwandtschaft der jUdisch-christlichen
und der persichen Eschatologie, Gottingen, 1902, enfatizou as inúmeras semelhanças entre as duas escatologias, mas devido à
incerteza, naquela época, quanto à datação do Avesta, deixou em aberto a questão da influência.
A influência do zoroastrismo foi negada, por exemplo, em N. Sõderblom, La vie future d’après le mazdéisme, 1901; J. H.
Moulton, Early Zoroastrianism, 1913, cap. 11; I. Scheftelowitz, Die Altpersiche Religion und das Judentum, 1920; cardeal Franz
Kõnig, Zarathustras Jenseitvorstellungen und das Alte Testament, Viena, 1964, esp. pp. 243-9. No entanto, Sõderblom apresenta
um relato equivocado das crenças zoroastrianas e Kõnig limita-se a um período da crença israelita tão inicial que não chega a
ser relevante.

1. Cf. T. H. Gaster, verbete “Satan”, em The interpreteis dictionary of the

Bible, vol. 4, Nova York e Nashville. 1962, esp. p. 226.

1. Ver acima, pp. 141-2.


2. Sobre o Vahman Yasht e sua influência em Daniel, ver Boyce, History,

vol. 3, pp. 385-6 e nota 106.

1. Para um estudo mais completo dos contatos entre o zoroastrismo e o judaísmo, ver Boyce, op. cit., vol. 3, cap.
11, esp. pp. 410 ss.
2. Sobre os Oráculos de Hystaspes: cf. Windisch, Die Orakel des Hystaspes (Verhandelingen der Konink Akadernie
van Wetenschappen te Amsterdam 28, 3 [1929]). Ver também Boyce, op. cit., vol. 3, pp. 376 ss., com bibliografia na nota
59.
3. As relações judaico-partas são examinadas nas obras de Widengren e Hinnells relacionadas na nota 1 deste cap.
4. Cf. K. G. Kuhn, “Die Sektenschrift und die iranische Religion”, Zeitschrift fiir Theologie und Kirche 49 (1952),
pp. 296-316; H. Wildenberger, “Der Dualismus in den Qumranschriften”, Asiatische Studien 8 (Berna, 1954), pp. 163-
77; J. Duchesne-Guillemin, “Le zervanisme et les manuscrits de la mer Morte”, tu 1 (1957). Para uma abordagem
diferente mas compatível: S. Shaked, “Qumran and Iran: Further considerations”, Israel Oriental Studies 2 (Tel Aviv,
1972), pp. 433-44.
5. É lamentável que alguns estudiosos pertencentes à escola alemã de “história da religião”, ou influenciados por
ela, tentem derivar o transcendente Messias cristão de um hipotético redentor celeste gnóstico, que por sua vez
supostamente se originaria de Gayomart, o homem primordial do zoroastrismo. O equívoco dessa argumentação já foi
apontado: ver K. Colpe, Die religions- geschichtliche Schule: Darstellung und Kritik ihres Bildes vom gnostischen
Erlôsermythus, Gottingen, 1961. O que não deve afastar nossa atenção da semelhança efetiva entre o Shaoshyant e o
Cristo do Livro do Apocalipse.
6. Cf. Hinnells, “Iranian influence upon the New Testament”, pp. 279-80.


POSFÁCIO (pp. 295-6)


(I) Em seu exaustivo estudo When time shall be no more. Prophecy belief in modem American culture, Cambridge, Mass.,
e Londres, 1992, Paul Boyer conclui (p. 15) que as esperanças apocalípticas e milenaristas “tomaram conta do pensamento e da
cultura dos Estados Unidos à medida que o século xx chega ao seu final”. O argumento sobre os elementos quase milenaristas
na ideologia marxista-leninista é desenvolvido em Cohn, The pursuit of the millenium, Londres e Nova York, 1957, esp. no
prefácio e na conclusão, e, de maneira mais completa, na conclusão da 2* ed. (1962). Em 1970, quando saiu a 3* ed., a noção
a
havia se tomado tão familiar que me pareceu apropriado reduzir o argumento a uma breve referência. Na 4 ed. (1993), a
passagem relevante da conclusão de 1962 foi reintroduzida, pois adquirira algum interesse histórico.

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