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Parra - Saiz - Didatica Da Matematica - Cap8

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8

A geometria, a psicogênese das


noções espaciais e o ensino da
geometria na escola primária*

Grécia Gálvez

A GEOMETRIA
A história da geometria localiza sua origem no Egito, relacionada a um
problema prático: a reconstituição dos limites dos terrenos após as enchentes do
Nilo. Dali é exportada à Grécia, possibilitando a Thales de Mileto voltar ao Egito
para calcular a altura da grande pirâmide, a partir da medição de sua sombra. A
geometria surge, então, como uma ciência empírica, em que os esforços de
Jeorização estão a serviço do controle das relações do homem com seu espaço
circundante. "O plano de Thales de Mileto é o deserto, onde a luz faz todos os
desenhos possíveis" (Serres, 1981).
Esta geometria empírica, ou física, constitui uma teoria da estrutura do
espaço físico, que "não pode nunca, logicamente, dar-se por válida com certeza
matemática, por amplas e numerosas que sejam as provas experimentais a que
seja submetida; como qualquer outra teoria da ciência empírica, só pode conse­
guir um grau maior ou menor de confirmação" (Hempel, 1974).

* Capítulo II da tese "A aprendizagem da orientação no espaço urbano. Uma proposta para o
ensino da geometria na escola primária", apresentada pela autora, para obter o grau de
Doutor em Ciências na Especialidade de Educação no Departamento de Pesquisas Educaci­
onais do Centro de Pesquisas e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, em
1985. O orientadtor da tese foi o professor Guy Brousseau.

236
Didática da Matemática 237

É sobre esta versão da geometria que está baseada uma série de atividades
humanas que requerem o controle das relações espaciais e de cuja vigência atual
ninguém duvida, entre as quais se pode mencionar o desenho e a construção de
todo tipo de objetos físicos (desde produtos e máquinas industriais até prédios,
cidades e estradas), a elaboração de mapas, o cálculo de distâncias astronômicas,
etc.
O momento culminante no desenvolvimento da geometria como ramo da
matemática se produz quando Euclides escreve Os Elementos (século III a.C.),
sintetizando o saber geométrico de sua época. Nesta obra, se parte de um núme­
ro reduzido de axiomas, postulados e definições para construir, por via de dedu­
ção, o conjunto das proposições geométricas vigentes, as que aparecem como
consequências necessárias das afirmações primitivas.
A geometria euclidiana constituiu, durante muitos séculos, um paradigma
para o resto da matemática e inclusive para o resto das ciências.1 De fato, foi a
primeira axiomatização na história da matemática.
Serres (1981) faz uma análise etimológica dos termos empregados na geo­
metria euclidiana, mostrando sua origem física e dinâmica: o triângulo isósceles
se chama assim porque possui "duas pernas iguais", diferentemente do escaleno,
cujo nome faz menção a sua inclinação, devido a que "está manco"; o rombóide
deriva sua designação de um dos objetos mais dinâmicos que é possível imagi­
nar: o pião. Haveria então uma mecânica oculta por trás do léxico utilizado por
Euclides. No entanto, o fato é que na geometria grega se raciocina rigorosamente
sobre quaisquer traçados; não se está falando de um desenho em particular, mas
de qualquer desenho que possua as propriedades consideradas no enunciado. E,
desta maneira, constitui um marco fundamental no processo de separação do
sensível, da estatização (no sentido de tornar estáticos) dos conceitos geométri­
cos. Processo que culmina já em nossa época com Hilbert, que formula os axio­
mas euclidianos e valoriza o sistema dedutivo, a sintaxe, afirmando que o
conteúdo semântico pode ser substituído por outro qualquer.
Em síntese, a contribuição da geometria euclidiana é o uso da demonstra­
ção, que se refere às propriedades de um espaço puro, formal. "A geometria da
matemática não é o estudo do espaço e de nossas relações com o espaço, mas o
lugar em que é exercido um raciocínio levado à sua excelência máxima" (Laborde,
1984). Diferentemente da física, em que se busca uma aproximação à realidade
cada vez mais exata (por exemplo, através de medições mais precisas), a mate­
mática é inexata, suas verdades são abstratas, necessárias, sem referência à reali-

1 Vinte séculos mais tarde Newton toma Os Elementos de Euclides como modelo para a orga­
nização de seus Principia, nos quais expõe sua teoria da gravitação.
238 Parra & Saiz

dade. O que não impede o emprego de modelos matemáticos na construção de


teorias físicas.
No século XVII, Descartes e Fermat substituem os pontos de um plano por
pares de números e as curvas por equações. "Desta maneira, o estudo das pro­
priedades das curvas será substituído pelo estudo das propriedades algébricas
das equações correspondentes" (Piaget e Garcia, 1982)2. A geometria se "reduz"
à álgebra e se beneficia do uso dos métodos gerais e uniformes para resolver
problemas inerentes a esta última. Uma só fórmula basta para estabelecer pro­
priedades gerais de famílias inteiras de curvas. Os raciocínios não são limitados
pelas dificuldades de imaginar ou representar figurativamente suas conseqüên-
cias.
Porém, os geômetras não estão satisfeitos e tentam utilizar os métodos pró­
prios da geometria para raciocinar a respeito de valores indeterminados, obten­
do o mesmo grau de generalidade que a geometria analítica de Descartes. São
Chasles e Poncelet, no século XIX, os que incorporam os sistemas de transforma­
ções como método fundamental da geometria com a finalidade de dotá-la da
generalidade, flexibilidade e fecundidade próprias da geometria analítica. Cin-
gindo-se ao modelo desta, aceitam, por exemplo, a existência de elementos "ima­
ginários" em geometria.
Um momento fundamental, no desenvolvimento da geometria, se consti­
tui no surgimento das geometrias não-euclidianas. Tentando demonstrar a ne­
cessidade do V postulado de Euclides3 por redução ao absurdo, aparecem corpos
teóricos coerentes que passam a constituir novas geometrias; a de Lobatchevski,
a de Riemann. A idéia de que a geometria euclidiana é o único modelo possível
do espaço físico sucumbe, e os físicos começam a aproveitar os novos modelos,
que adequam-se melhor à descrição de fenômenos que têm lugar em escala as­
tronômica. O espaço, como realidade física, escapa definitivamente do controle
de uma só teoria geométrica para cair em perversas vinculações com o tempo,
dentro da concepção einsteniana. A geometria se fragmenta em uma pluralidade
de teorias alternativas, em função dos axiomas selecionados, que podem dar conta
de diferentes classes de problemas formulados no espaço físico.
Klein (em seu Programa de Erlangen, em 1872) consegue a síntese das geo­
metrias, baseando-se na noção de grupo de transformações, que lhe permite in-

2 Em grande parte do que segue, nos guiaremos por este texto para resenhar o desenvolvi-
mento histórico da geometria.
3 Postulado que afirma que, em um plano, só se pode traçar uma paralela por um ponto
exterior a uma reta.
Didática da Matetnática_ 239

traduzir distinções precisas entre os diferentes tipos de geometrias existentes. O


gnipo principal de transformações do espaço está constituído pelo conjun o
todas as transformações que mantém invariáveis as propriedades geométricas
1 figuras. Diversos grupos de transformações caracterizam as diferentes geo
metrias, permitindo estudar os entes que as integram desde o ponto de vista das
propriedades invariáveis nas transformações de cada grupo. As geometrias -
cam subordinadas a um grupo único, do que chegam a ser casos particula­
res.
Mas, então, a geometria morreu, absorvida pela teoria das estruturas, de
natureza algébrica. Atualmente se considera que a geometria está esgotada, en­
quanto teoria matemática independente. Enquanto as relações da geometria com
o resto da matemática tiveram um status claro, não existiam problemas no ensi­
no da geometria. Freudenthal (1964), lamentando esta situação, constata um
fato:

No sistema bourbakista a geometria não existe. Nas revistas de críti­


ca bibliográfica o que se inclui sob a denominação de geometria compreen­
de menos de 5% do total dos artigos de pesquisa registrados. Nos programas
universitários do mundo todo, a palavra geometria é apenas mencionada e
os pesquisadores que poderíam chamar-se a si mesmos "geômetras" evi­
tam o termo por parecer fora de moda.

A respeito, Revuz (1971) faz uma distinção entre situação, modelo e teoria,
afirmando que muitas teorias matemáticas, importantes e em uso na pesquisa
matemática atual, têm sua origem na abstração de modelos geométricos, os quais
por sua vez constituem esquemas de situações espaciais. Abre-se, assim, uma
brecha para a justificação do ensino da geometria, ao menos na profissionalização
de novos matemáticos.
No entanto, a ausência de uma comunidade científica que identifique a si
mesma como comunidade de geômetras incide, indubitavelmente, na tomada de
decisões oficiais a respeito do ensino da geometria. Estas decisões não po­
dem ser controladas (criticadas, retificadas, apoiadas) por um grupo de pressão
que tome posição diante dos problemas do ensino em função das necessidades
de seu próprio desenvolvimento, como acontece no restante das ciências
vivas.
240 Parra & Saiz

A PSICOGÊNESE DAS NOÇÕES ESPACIAIS


Para abordar este terna nos basearemos nos trabalhos de Piaget, que entra
na velha polêmica filosófica relativa ao caráter objetivo ou subjetivo da idéia do
espaço para demonstrar, por meio de estudos psicogenéticos, como é que os con­
ceitos espaciais vão-se construindo progressivamente, a partir das experiências
de deslocamento do sujeito. Poincaré afirmara: “Para um sujeito imóvel não existe
nem espaço nem geometria", e também: “Localizar um objeto é representar-se os
movimentos que seria necessário fazer para alcançá-lo". Com estas hipóteses,
Piaget realiza um cuidadoso trabalho de observação e experimentação sobre in­
divíduos em desenvolvimento.
Em A construção do real na criança (Piaget, 1937), encontramos uma notável
descrição do desenvolvimento das categorias básicas de objeto, espaço, causa e
tempo nos primeiros anos de vida da criança, correspondentes ao desenvolvi­
mento da inteligência sensório-motora. Com respeito ao espaço, Piaget mostra
que, inicialmente, o sujeito elabora espaços específicos para cada domínio sensó-
rio-motor, heterogêneos e não-coordenados entre si. Por exemplo, a criança não
pode dirigir sua vista até os objetos que toca, nem orientar sua apreensão para os
objetos que motivam sua atenção visual. O espaço está formado por feixes
perceptivos, altamente instáveis e incontroláveis pelo sujeito, aos quais acomo­
da os escassos deslocamentos que pode realizar. Progressivamente, a criança vai
conseguindo uma maior coordenação de suas atividades no espaço: pode pegar
um objeto que deixou cair, reiniciar uma atividade interrompida, antecipar o
deslocamento de um objeto móvel oculto atrás de um biombo, diferenciar os
objetos que estão a seu alcance dos que não estão.
Piaget (1937) recorre à seguinte imagem, para ilustrar o processo de
estruturação da profundidade do espaço:

...podemos comparar o “espaço longínquo" da criança deste estágio,


quer dizer, o espaço situado além do campo da apreensão, com o que é o
espaço celeste para o adulto não-instruído ou para a percepção imediata.
De fato, o céu se apresenta para nós como uma grande cobertura esférica
ou elíptica, sobre cuja superfície se movem imagens sem profundidade que
se interpenetram e se destacam alternadamente: o sol e a lua, as nuvens, as
estrelas, assim como as manchas azuis, pretas ou cinzas que enchem os
interstícios... O “espaço longínquo" permanece análogo ao que é o céu na
percepção imediata, enquanto o “espaço próximo" se assemelha à nossa \
percepção do meio terrestre, no qual os planos de profundidade se orde­
nam em função da ação. Porém, o ciclo deve interpretar-se aqui como rode-
Didática da Matemática 241

ando de perto ao sujeito e não retrocedendo, senão muito paulatinamente.


Antes da apreensão dos objetivos visuais, a criança está no centro de uma
espécie de esfera móvel e colorida, cujas imagens o aprisionam sem que ele
se tenha apropriado delas de outra maneira que não seja fazendo-as reapa­
recer graças a seus movimentos de cabeça e dos olhos. Logo, quando come­
ça a pegar o que vê, a esfera se dilata pouco a pouco, e os objetos apanhados
se ordenam em profundidade, em relação ao próprio corpo: o "espaço lon­
gínquo" aparece simplesmente como uma zona neutra na qual a apreensão
ainda não se arriscou, enquanto que o "espaço próximo" é o domínio dos
objetos que podem ser apanhados.

Na medida que a criança progride na possibilidade de deslocar-se e de co­


ordenar suas ações, vai aparecendo o espaço circundante a estas ações como uma
propriedade delas. Inicialmente, o sujeito não concebe os objetos como sendo
dotados de trajetórias independentes de sua ação.
De maneira paulatina, a criança vai organizando seus deslocamentos: des­
cobre caminhos equivalentes, aprende a evitar obstáculos. Chega a conceber o
objeto como permanente e pode dissociar claramente seus próprios deslocamen­
tos dos do objeto. O espaço é exteriorizado, aparece como o ambiente imóvel no
qual se situam tanto o sujeito como o objeto. A seguinte observação ilustra como
a criança vai sendo capaz de elaborar sistematicamente seus deslocamentos, cons­
tituindo o que Piaget denomina um grupo objetivo:

Obs. 108
I. (1;3 [13]) está sentado, coloca uma pedrinha diante de si, em segui­
da a desloca para a direita, corrige sua própria posição para colocar-se frente
à pedrinha, desloca-a novamente para a direita e assim sucessivamente,
até descrever quase um círculo completo (Piaget, 1937).

Final mente, o sujeito chega a conceber-se como um objeto a mais, dentro de


um espaço homogêneo, podendo representar seus próprios deslocamentos em
relação aos deslocamentos e as posições dos objetos. A gênese da representação,
para Piaget, passa pela interiorização da imitação da ação pessoal a respeito dos
objetos, no processo geral de construção das operações intelectuais*por meio da
internalização das ações.
Em A representação do espaço na criança, Piaget e outros (1947) estudam a
intuição como fator na construção da geometria objetiva do espaço. Para isso,
recorrem a sua exteriorização através de representações gráficas (desenhos). A
intuição geométrica é considerada como de natureza operatória, segundo uma’
242 Parra & Saiz

distinção entre elementos figurativos (imagens) e operativos (ações internalizadas)


no curso do pensamento. São os aspectos operativos que, progressivamente, ou­
torgam mobilidade às imagens, permitindo a representação de suas transforma­
ções. Por exemplo, quando se pede às crianças que identifiquem objetos somente
mediante o tato (percepção estereognósica), a sistematicidade dos movimentos
exploratórios constitui um bom índice da qualidade da imagem que o sujeito se
forma do objeto. A motricidade (seja perceptiva ou manual) aparece como um
componente necessário na elaboração das imagens, já que a criança reconhece só
as formas que é capaz de construir com sua própria atividade: "A intuição de
uma reta surge da ação de seguir com a mão ou a visão, sem mudar de
direção".
Consequentemente a esta concepção, grande parte das situações experi­
mentais consistem em apresentar à criança uma configuração (estado inicial) e
pedir-lhe que antecipe e desenhe a configuração resultante (estado final) após a
aplicação de uma transformação determinada.
A tese fundamental de Piaget nesta obra é que, no domínio da geometria, a
ordem genética de aquisição das noções espaciais é inversa à ordem histórica do
progresso da ciência. A criança considera primeiro as relações topológicas de
uma figura, e só posteriormente as projetivas e euclidianas, que são construídas
quase de maneira simultânea1. De fato, as primeiras relações que a criança pode
reconhecer e representar graficamente são as de vizinhança, separação, ordem,
contorno e continuidade. Muito cedo consegue distinguir entre figuras fechadas
e abertas, diferenciar o espaço interior do exterior a uma fronteira dada ou deter­
minar posições relativas no interior de uma ordem linear. As relações topológicas
permitem a constituição de uma geometria do objeto, em singular.
O domínio das relações projetivas permite a constituição de uma geome­
tria do espaço exterior ao sujeito, que o contempla de certa distância. A
descentração do sujeito a respeito de sua perspectiva atual lhe permite coorde­
nar diferentes pontos de vista possíveis e construir uma representação do espaço
com o qual está interagindo e na qual os eixos adiante-atrás e direita-esquerda
deixam de ser absolutos.
A construção do espaço euclidiano, o espaço que contém tanto objetos
móveis como o sujeito, é abordada por Piaget e colaboradores basicamente em A
geometria espontânea da criança (1948). Um dos problemas fundamentais que Piaget
tenta resolver ao longo de grande parte de sua obra é o do trânsito do conheci-

4 Segundo R. Garcia esta mudança é válida somente para o domínio das relações intrafiguráveis
(de uma figura isolada) e não para os domínios das relações interfiguráveis (entre figuras)
ou transfiguráveis, no sentido em que estas são definidas em Piaget e Garcia (1982).
Didática da Matemática 243

mento experimentai, contingente, ao conhecimento dedutivo, necessário. No


caso do espaço, da indução empírica e intuitiva à generalização operatória e
iterável característica, por exemplo, dos lugares geométricos (onde se trata de
encontrar o conjunto de todos os pontos que satisfazem determinadas con­
dições).
Na base do conhecimento matemático se encontra, segundo Piaget, um
processo de abstração reflexiva, que se origina nas próprias ações do sujeito so­
bre os objetos, à diferença da abstração empírica, que permite a apreensão das
propriedades dos objetos.
Piaget distingue as operações lógicas, que envolvem a manipulação de clas­
ses e relações estabelecidas a partir de elementos discretos, e as operações
infralógicas, equivalentes às anteriores, porém, cujo ponto de partida são as par­
tes de um todo contínuo (objeto ou infraclasse). As relações espaciais são, por­
tanto, do tipo infralógicas.
A característica fundamental do espaço euclidiano, para Piaget, é a métri­
ca, que possibilita a estruturação de um sistema tridimensional de coordenadas
e, em consequência, a matematização do espaço. A métrica envolve a utilização
de duas operações que determinam a passagem da manipulação qualitativa do
espaço à manipulação quantitativa: a partição de um todo em suas partes, para
construir uma unidade de medida, e o deslocamento, para aplicar essa unidade
de medida de maneira reiterada, cobrindo a extensão do objeto (iteração). A me­
dição de distâncias no espaço euclidiano supõe que o comprimento de um objeto
se conserva quando este se desloca, já que, em caso contrário, a unidade de medi­
da perdería seu caráter de padrão estável.5
Em um volume dos Estudos de epistemologia genética dedicado à Epistemologia
do espaço (1964), Piaget alude à dificuldade para diferenciar significante e signifi­
cado no caso da i magem mental visual, já que ambos são de caráter espacial. Esta
homogeneidade entre significante (por exemplo, a imagem de um quadrado) e
significado (a idéia de um quadrado) explica a importância histórica da intuição
geométrica, cujo valor heurístico segue vigente, ainda que seu valor demonstra­
tivo tenha sido substituído pelo emprego de sistemas formais, axiomatizados.
Piaget insiste na natureza operatória da intuição geométrica, que permite supe­
rar o estatismo próprio das imagens. Por outro lado, diferencia o espaço físico,
considerando-o como abstraído dos objetos, do espaço lógico-matemático,
5 No entanto, Obujova (1972) utilizou com êxito um método para acelerar a aquisição da
conservação de comprimentos e outras dimensões físicas, ensinando as crianças a recorrer à
medição para confrontar a impressão perceptiva de igualdade ou desigualdade de duas
quantidades. Falta explicar o que significa para uma criança medir os deslocamentos na
ausência da idéia de que a dimensão que está medindo não varia.
244 Parra & Saiz

abstraído a partir das ações executadas sobre os objetos, ações que podem imitar
e ultrapassar as configurações e transformações do objeto.
No volume sobre o pensamento matemático da introdução à Epistetnologia
Genética (1949), Piaget faz um interessante paralelo entre operações lógico-arit-
méticas de classes e de relações assimétricas (seriação), que geram a noção de
número, e as operações espaciais de participação e de deslocamento, que geram
a possibilidade de medição (quantitativa) do espaço. Descreve uma vez mais o
desenvolvimento das operações espaciais, partindo do nível perceptivo, caracte­
rizado por espaços heterogêneos. Este é seguido pelo nível sensório-motor, no
qual os deslocamentos, unidos às percepções, permitem determinadas coorde­
nações, que se organizam em um espaço próximo, com conservação prática do
objeto, porém, sem espaço representativo além dos limites da ação. Em continu­
ação, temos o nível do pensamento intuitivo pré-operatório, no qual se constitu­
em imagens espaciais estáticas e a imaginação de algumas ações relativas às
possíveis transformações dos objetos, porém, sem conservação
nem reversibilidade. O nível seguinte é o das operações concretas, no qual são
organizadas as primeiras operações transitivas e reversíveis, aplicadas a objetos
presentes ou imaginados. A possibilidade de se descentrar do sujeito permite a
coordenação lógica do espaço a partir de múltiplos pontos de vista. Finalmente,
se constitui o nível das operações formais, no qual tanto as transformações espa­
ciais como as numéricas desaparecem no interior de sistemas formais, de nature­
za hipotético-dedutiva. As operações espaciais desligam-se das ações e objetos
do espaço físico, podendo abranger todo o universo de possibilidades espaciais.
O sujeito se move (intelectualmente) no âmbito possível, do hipotético, do infini­
to.
Para finalizar esta síntese faremos uma rápida referência às conseqüências
pedagógicas que o próprio Piaget deriva de sua concepção da psicogênese das
noções espaciais. Em uma intervenção sobre a educação matemática (Piaget, 1973),
depois de fazer referência a como o pensamento lógico deriva de uma fonte pro­
funda, da lógica implícita nas coordenações gerais da ação, afirmou:

Nos alunos jovens a ação sobre os objetos torna-se totalmente indis­


pensável para a compreensão, não só das relações aritméticas, mas tam­
bém das geométricas.
Didática da Matemática 245

O ENSINO DA GEOMETRIA NA ESCOLA PRIMÁRIA


Os programas oficiais para a escola primária mexicana (SEP, 1982) incluem
os seguintes temas de geometria: propriedades e localização de objetos, proprie­
dades de linhas, identificação e traçado de figuras geométricas, medição de com­
primento, área, volume e capacidade, simetria axial e de rotação, ângulo, plano
cartesiano e desenho em escala.
A breve análise que tentaremos a seguir baseia-se exclusivamente na infor­
mação obtida de textos e programas. Com certeza, a observação em aula acres­
centaria valiosos elementos, porém não teve lugar no âmbito de nossa pesquisa.
A introdução de conceitos geométricos, de acordo com os programas, deve
organizar-se em três momentos:

1. Apresentação do "novo objeto" aos alunos, os quais o vêem, o distin­


guem de outros objetos que já conhecem e aprendem sua denominação
científica (geométrica).
2. Exercitação no traçado deste novo objeto, seguindo a sequência: traça­
do sobre o piso mediante deslocamento corporal ou emprego de cor­
das, traçado sobre a classe manipulando objetos finos e compridos
(como canudinhos) e traçado com lápis sobre papel.
3. Aplicações em atividades que supõem que o objeto novo já tenha sido
assimilado.

A apresentação apóia-se nos conhecimentos prévios dos alunos (veja-se o


ensino do círculo em Ia série, Apêndice) e recorre com freqüência a analogias
(veja-se Apêndice, introdução da noção de retas paralelas, na 3a série).
A ênfase da atividade dos alunos está colocada no traçado, para o qual
recorrem a técnicas usadas pelos pedreiros na construção6 e ao uso de instru­
mentos como régua, esquadro e compasso. A seqüência sugerida, provavelmen­
te, facilite a correção do traçado no momento em que deva realizar-se sobre o
caderno, porém não garante a apropriação da significação do objeto estudado,
que fica sujeita aos "vai-véns" da experiência de cada aluno, já que o traçado não
esgota o conhecimento das propriedades de uma figura nem contribui necessari­
amente a sua adequada hierarquização.

6 As vezes, a descontextualização conduz a equívocos como na página do Livro da primeira


série que reproduzimos no Apêndice, onde parecia que, para fazer um trabalho qualquer, os
pedreiros se dão ao trabalho de marcar com "nós"..., doze comprimentos iguais!
246 Parra & Saiz

As aplicações podem consistir no uso de objetos que acabam de aprender


como elementos decorativos, nas primeiras séries, ou na resolução de proble­
mas, nas últimas séries.
Nos comentários metodológicos ao programa de primeira série (SEP, 1982),
propõe-se que a criança "chegue por si mesma a conceitos matemáticos e os ex­
presse em sua própria linguagem". A insistência posterior, ao longo do progra­
ma, no uso dos termos geométricos desde a primeira abordagem do objeto
correspondente e quase como substituto da caracterização do dito objeto segun­
do suas propriedades, nos parece contraditória com a formulação metodológica
inicial. Um breve exemplo: ao classificar objetos tridimensionais pela sua forma,
em primeira série, são sugeridas as categorias "redondo", "não-redondo", que
seguramente correspondem à linguagem cotidiana da criança. Porém, ao passar
ao plano, se impõe o termo "círculo" diante de figuras que, sem dúvida, conti­
nuam parecendo "redondas" para a criança. Com este comentário não pretende­
mos defender o uso indiscriminado da linguagem natural da criança no
tratamento das temáticas escolares, mas por sua incorporação, aceitação e
vinculação a uma linguagem técnica que, se supõe, adquirirão progressivamen­
te.
Em A epistemologia do espaço, Piaget (1964) formula que um dos problemas
básicos do conhecimento geométrico é a homogeneidade relativa entre significante
e significado. As relações espaciais são representadas por meio de imagens que
também são espaciais, coisa que não acontece, por exemplo, no terreno da arit­
mética. Esta homogeneidade leva a conceber a intuição geométrica como um
produto direto da percepção7. Durante muito tempo, tal concepção fundamen­
tou-se na organização do ensino escolar da geometria elementar, dotando-a de
uma caráter ostensivo. Basta mostrar os objetos geométricos, que os alunos os
vejam, para que os conheçam; basta enunciar suas propriedades para que os alu­
nos se apropriem delas. Porém, o que vêem as crianças quando se lhes mostra,
por exemplo, uma figura geométrica? Os psicólogos soviéticos comprovaram há
várias décadas, que os alunos incluem aspectos não-essenciais das figuras geo­
métricas ao conceitualizá-las, em função das condições em que tem lugar sua
aprendizagem. Assim, se os lados de um quadrado não são paralelos às margens
do papel ou quadro-negro em que é desenhado, a figura corre o risco de ser vista
como um losango, devido a que a orientação tenha adquirido o papel de atributo
básico. Na atualidade, estes fenômenos continuam atraindo a atenção de pesqui­
sadores interessados na didática da geometria. Gallo (1984) os encontra em uma

7 Piaget afirma, pelo contrário, que a imagem espacial se elabora a partir das imitações
interiorizadas, que são as que possibilitam a representação das transformações espaciais.
Didática da Matemática 247

situação de comunicação entre alunos de 14 anos, associando a eles a denomina­


ção de "modelo standard" dos objetos geométricos. O programa oficial mexica­
no tenta superar estes problemas apresentando as figuras geométricas em
múltiplas posições e seqüenciando sua introdução desde o geral até o particular
(primeiro o quadrilátero, então o retângulo e só depois o quadrado).
No entanto, a direção oposta está tão arraigada na tradição pedagógica, que a
finalidade da sequência do texto oficiai provavelmente se torne de difícil com­
preensão, inclusive para os professores. Por outro lado, a proposta de
utilizar a simetria axial ou de rotação como critério de classificação e de defini­
ção de classes de polígonos regulares resulta um tanto exótica, fazendo perder a
perspectiva de uma progressão harmônica na introdução das figuras geométri­
cas.
A complexa passagem a constatação empírica de propriedades até sua
integração a um sistema dedutivo, com caráter necessário, é buscada através da
reiteração de experiências de verificação de propriedades. Como exemplos, re­
metemos ao Apêndice, onde incluímos as atividades propostas para
que os alunos aprendam a constância do raio de um círculo (ver p. 253),
e as relações recíprocas entre retas paralelas e perpendiculares (p. 253).
Da mesma maneira é abordada, na 6a série, a relação entre diâmetro e circunfe­
rência.

Uma estratégia que é utilizada com frequência no texto oficial para o ensi­
no de algoritmos é a dofading ou desvanecí mento de algumas das características
do objeto em que o procedimento se apoiava originalmente. Vejamos como se
ensina a fórmula da área de um retângulo fazendo desaparecer o quadriculado
(Apêndice, p. 254), com a ilusão de que isto gera a compreensão da fórmula que
permite avaliar uma área (bidimensional), a partir da medida de dois compri­
mentos.8
Mencionaremos uma última característica dos livros didáticos mexicanos,
que consiste em substituir a experiência direta dos alunos pela leitura do relato
da experiência de outros. Por exemplo, em sexta série pretende-se ensinar por
este procedimento como medir a altura de um objeto físico de grande tamanho,
utilizando o teorema de Thales. Com isto, se busca a economia da explicação do

s Para uma análise das dificuldades conceituais dos alunos do ensino primário, no âmbito
da medição de áreas, remetemos ao trabalho de R. Dominguez (1983).
248 Parra & Saiz

professor, sob a suposição de que a comunicação autor-criança será melhor se


não for perturbada pelo "ruído" da mediação do professor. No entanto, secai na
falácia de homologar experiência vivida com experiência lida, na qual a solução
do problema surge fluidamente do texto escrito.9
Nos programas das primeiras séries, propõe-se a realização de atividades
do tipo tecnológico que bem poderíam proporcionar um contexto funcional para
desenvolver o conhecimento das figuras geométricas através de processos de
antecipação e de verificação. Entre estas, mencionaremos a de revestir uma cai­
xa, construir móveis ou brinquedos, fazer a maquete de uma casa, etc. Um caso
particularmente interessante é a construção de uma matraca, em Ia série, para a
qual a ilustração do livro sugere à criança revestir uma lata com papel colorido.
Provavelmente, será a professora quem cortará os papéis do tamanho ade­
quado, já que os alunos, segundo o programa, só poderíam fazê-lo na 6a série,
após aprender a calcular a "área total" de um cilindro.10
A reflexão sobre o ensino da geometria na escola primária levou-nos a de­
limitar uma série de problemas, que nos limitaremos a enunciar:

1. Como preparar a passagem da geometria de observação, de compro­


vação empírica de relações para a geometria dedutiva, na qual a vali­
dade das proposições é sustentada pela coerência do raciocínio? Por
exemplo, como passar da verificação de que ao justapor os três ângu-

9
Propusemos a alunos da 6a série (cours moyen 2 na França), junto com Brousscau, um pro­
blema semelhante: estimar o terceiro lado de um triângulo do qual só era possível medir
dois lados, no pátio da escola (com distâncias da ordem de 10 metros). A solução do proble­
ma não foi nada evidente. As crianças podiam conceber o translado das medidas lineares a
uma representação em escala, porem não dispunham de métodos para reproduzir ângulos.
Uma equipe conseguiu resolver este problema dobrando um papel para "medir" o ângulo
compreendido entre os lados conhecidos do triângulo, no terreno, e transladando a conti­
nuação desta medida a seu desenho em escala, procedimento semelhante aos que encon­
trou Piaget nos primeiros estágios da medição espontânea de distâncias (reprodução c
translado da distância a medir). Outra observação interessante foi a inaptidão de algumas
crianças para esquematizar em um desenho as relações espaciais percebidas no terreno
(inclusive aconteceram situações de não-conservação de traçados retilíneos).
10 Organizamos uma experiência de revestir uma lata, na Ia série, comprovando que uma
parte dos alunos era capaz de antecipar a forma retangular do forro; outros propuseram
uma forma elíptica (já que se tratava de cobrir uma superfície curva, a figura também devia
possuir um limite curvo) e, finalmente, tivemos crianças que limitaram-se a representar as
diferentes perspectivas conhecidas do cilindro. A possibilidade de confrontar a validade
destes modelos, aplicando os pedaços de papel recortado sobre a superfície da lata, consti­
tuiu um forte estímulo para fazê-las evoluir.
Didática da Matemática 249

los internos de um triângulo se obtém um ângulo de 180’ à conclusão


de que isso deve acontecer necessariamente em qualquer triângulo?
2. Como compatibilizar o caráter variável, aproximado, dos resultados
obtidos empiricamente, com o caráter único,exato, dos resultados con­
seguidos através do cálculo? Por exemplo, os valores obtidos para a
área de um triângulo contando quadrinhos, com o valor obtido apli­
cando a fórmula a partir de medidas dadas de base e altura? Dito de
outra maneira, o que aqui nos questionamos é o papel da medição na
verificação de equivalências matemáticas. Por exemplo, no texto ofici­
al (2a série) se pede às crianças que antecipem o valor de um perímetro
através de um cálculo que então o meçam para verificar a exatidão de
sua antecipação. Que acontece se os resultados do cálculo e da medi­
ção não coincidem? Que acontece se o cálculo se repete várias vezes? E
se a medição se repete várias vezes?
3. Como garantir a compreensão dos procedimentos algoritmizados que
os alunos devem aprender? E evidente que a repetição de sua execu­
ção, até memorizar a sequência de ações que contém tal procedimento,
não é suficiente. Porém, pelo que substituir esta estratégia de ensino?
4. Como coordenar a conceitualização dinâmica dos objetos geométricos
(vinculados, por exemplo, ao traçado de figuras) com sua con­
ceitualização estática (vinculada a sua apresentação ostensiva)?
5. Como organizar a passagem da linguagem natural, para referir-se às
relações espaciais, até a linguagem matemática, sem gerar rupturas
violentas e possibilitando a apropriação sintática e semântica da lin­
guagem matemática, de modo que os alunos possam utilizá-la para
expressar seus conhecimentos?
6. Como relacionar as aquisições no âmbito das relações espaciais com as
aquisições no domínio das relações numéricas? Em que medida os pro­
gressos em um destes âmbitos podem facilitar ou obstaculizar a apren­
dizagem dos outros?

Nossa revisão de textos e programas para o ensino da geometria na escola


primária mexicana nos proporcionou uma base suficiente para avaliar as formu­
lações de Brousseau, no sentido de que, na escola primária, não se ensina geome­
tria para contribuir ao desenvolvimento, por parte dos alunos, do domínio de
suas relações com o espaço, mas que se reduz a aprendizagem da geometria ao
conhecimento de uma coleção de objetos definidos como fazendo parte de um
saber cultural. Este saber cultural se opõe ao saber funcional. O primeiro, na
ausência do segundo, só serve para mostrar a outros que a pessoa sabe, supri-
250 Parra & Saiz

mindo termos, definições e até demonstrações acumuladas na memória, frente à


demanda explícita desse saber (que também pode ser um "saber fazer", não só
um "saber dizer"). O saber funcional, em troca, é aquele ao qual se recorre com a
finalidade de resolver um problema; são os esquemas ou modelos que utiliza­
mos para enfrentar uma situação e tratar de nos adaptar a ela de um ponto de
vista cognitivo (procura de explicações, tentativa de previsão de resultados, aná­
lise de fatores que intervém, esforços de controle do curso dos processos reais).
Fazem parte de um saber funcional as teorias que os cientistas aplicam para dar
conta dos fenômenos que estudam, sujeitas a reajustes periódicos a partir de sua
confrontação com o acontecer real. Fazem parte de um saber exclusivamente
cultural essas mesmas teorias, repetidas por eruditos que não recorrem a elas
para orientar sua atitude prática.

O ensino da geometria, em nossas escolas primárias, se reduz a fazer


com que nossos estudantes memorizem os nomes das figuras, os mapas
geométricos e as fórmulas que servem para calcular áreas e volumes...,

É o que afirma J. Alarcón (1978), com cujo ponto de vista concordamos


absolutamente.
Brousseau observou como, depois que os alunos estudaram as figuras geo­
métricas elementares durante vários anos na escola primária, ao lhes pedir que
descrevam, por exemplo, um determinado quadrilátero, para que outro aluno
possa, a partir dessa descrição, construir um quadrilátero que coincida com o
primeiro, ao superpô-los, se comprova que têm grandes dificuldades para levar
a cabo esta tarefa. Sabem designar os vértices por meio de letras (saber cultural),
porém, não lhes ocorre empregar este conhecimento para simplificar sua descri­
ção. Sabem definir o que é um ângulo, porém, não sabem explicar ao receptor de
sua mensagem o que é que deve fazer para reproduzir os ângulos de sua figura.
O que melhor sabem fazer é medir o comprimento dos lados (que nem sempre
são chamados de lados, em algumas ocasiões têm sido descritos como écart, isto
é, distância que separa vértices adjacentes). Com frequência, a informação que
proporcionam a respeito das medidas de lados e diagonais resulta redundante.
Os alunos, conclui Brousseau, não desenvolveram uma linguagem para descre­
ver as características das figuras, nem têm aprendido a selecionar um conjunto
de características pertinentes (necessárias e suficientes) para sua reprodução.
Brousseau afirma que esta aprendizagem da geometria puramente cultu­
ral, baseada na obtenção dos nomes e propriedades dos objetos geométricos, cons­
titui um verdadeiro escândalo, que é preciso denunciar publicamente. O escândalo
consiste em que, precisamente na época em que os alunos estão tentando adqui-
Didática da Matemática 251

rir o domínio de suas relações com o espaço, a escola não faz nada para ajudá-
los. Piaget teria dito que isso está muito bom, já que é preferível deixar que a
criança construa, através de sua interação espontânea com o meio, as estruturas
que lhe permitirão desenvolver-se com propriedade no espaço, antes que impor-
Ihe exercícios escolares que não contribuirão a fazer evoluir suas concepções e
que só servirão para gerar sentimentos de fracasso e de menosprezo nas crianças
que ainda não estão em condições de efetuá-los corretamente. Nossa hipótese é a
de que é possível, em um contexto escolar, gerar situações nas quais os alunos
formulem problemas relativos ao espaço e tentem resolvê-los baseados em suas
concepções "espontâneas", introduzindo-se em um processo no qual deverão
elaborar conhecimentos adequados e reformular suas concepções teóricas para
resolver os problemas formulados. Reconhecemos que o projeto e implementação
de tais situações não é tarefa fácil, porém por isso mesmo o formulamos como
objeto de nosso estudo experimental, como tema de uma intensa busca, antes de
dedicar-nos a fazer propostas que serão utilizadas em condições escolares abso­
lutamente fora de nosso controle.
Por outro lado, estamos convencidos de que há grande quantidade de adul­
tos que, através de sua interação extra-escolar com o ambiente, não conseguiram
desenvolver uma concepção do espaço que lhes permita um controle adequado
de suas relações espaciais, controle que lhes possibilite orientar autonomamente
seus deslocamentos em âmbitos de determinada magnitude.11

APÊNDICE
Materiais dos programas e textos oficiais da Secretaria de Educação Pública (SEP), México
(1982), sobre o ensino da geometria na escola primária.

Atividades

Deseja-se que o aluno:


Distinga e forme círculos.

— Localize na sala de aula superfícies em forma de círculo.


— Mencione outros objetos que não estejam na sala de aula e que tenham forma circular.
— Repita depois do professor o nome da figura.

11 E. Ferreiro e D. Taboada (comunicação pessoal), no contexto de um estudo sobre adultos


analfabetos, encontraram na cidade do México empregadas domésticas de meio rural que
não se atreviam a sair cm seus dias livres por temor de extraviar-se.
252 Parra & Saiz

— Recorte um círculo, cole-o em seu caderno e escreva o nome da figura.


— Faça um exercício de dobradura de papel, utilizando um círculo (R. p. 69).
— Forme um círculo deitando-se no chão junto com outros colegas.
— Desenhe círculos no pátio, com cores distintas.
— Pule dentro dos círculos da cor que indica o professor (só poderão ser colocadas três
crianças por círculo).
— Desenhe círculos alternados com figuras, colocados um em continuação de outra.
— Corra pisando unicamente nos círculos.

("Livro para o professor",


primeira série, p. 159.)

Como os trilhos do trem.

Observe nestas ilustrações os trilhos do trem e os fios de luz. Em que se assemelham?

Desenhe aqui duas retas como os trilhos do trem ou os fios da luz.


As retas como estas que você desenhou são paralelas.
Representa retas paralelas com cordas, com canudinhos ou pauzinhos.

("Livro para a criança", terceira série, p. 99)

Como se desenha um triângulo?

Brinque de pedreiro no pátio.

("Meu livro de primeira série", parte 2, p. 338)


Didática da Matemática 253

Com o compasso

Descubra algumas propriedades dos círculos fazendo o que se indica.

Trace seis raios no círculo azul. Meça esses raios com a régua e anote, sobre cada um, sua
medida. Todos esses raios têm a mesma medida?
Trace oito raios no círculo laranja e meça. Todos esses raios têm a mesma medida?
Compare os raios dos dois círculos. Medem o mesmo os raios do círculo azul que os do
círculo laranja?
Trace em um papel um círculo que tenha o mesmo raio que os dos círculos desenhados
acima. Então recorte-o c coloque-o sobre cada um deles. Os três círculos são iguais?

("Livro para a criança". Terceira série, p. 172.)

Faça em cada quadro o que se indica e depois responde às perguntas.

1. Trace uma reta paralela à reta vermelha.


2. Trace uma reta verde que seja perpendicular à paralela que você traçou
anteriormente.

A reta verde é perpendicular à reta vermelha?


Use o seu esquadro para comprová-lo.

1. Trace uma perpendicular à reta azul.


2. Trace outra perpendicular à mesma reta.

Sào paralelas as duas retas que você traçou?


Comprove-o com o seu esquadro.

("Livro para a criança". Terceira série, p. 109)


254 Parra & Saiz

Quadrinhos em colunas

Observa este retângulo. Anota as medidas de seus lados.

1
0
I I 1111 I I
centímetros

Quadricula o retângulo e pinta de cor diferente cada coluna.


Quantas colunas há?
Quantos centímetros mede a base do retângulo?
Quantos centímetros há em cada coluna?
Quantos centímetros mede a altura do retângulo?
A área deste retângulo pode ser expressa como 9 x 3, já que há 9 colunas de 3 centímetros
quadrados cada uma.
Conta os centímetros quadrados que há no quadriculado para ver se há 9 x 3 ou melhor 27.

Neste retângulo faz o mesmo que no anterior. Completa o que falta.

i:
| | I I I
| | centímetros

A área deste retângulo se pode expressar como x já que há colunas de centímetros


quadrados cada uma.
Sua área é de O x □, ou seja, centímetros quadrados.

("Livro para a criança", Terceira série, p. 202.)


Didática de Matemática 255

Quadricula os seguintes retângulos. Pinta de diferente cor cada coluna de quadrinhos. Depois
completa o que falta.

A base mede centímetros e a altura O centímetros.


Há colunas de quadrinhos cada uma.
Há x quadrinhos no total.
A área é de x □, ou seja, centímetros quadrados.

A base mede centímetros e a altura centímetros.


Há colunas de quadrinhos cada uma.
Há x quadrinhos no total.
A área é de x □, ou seja, O centímetros quadrados.

Discute com teus colegas como encontrar a área dos retângulos, sem os quadricular.

("Livro para a criança", terceira série p. 203.)

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DOAÇÃO 10/5/2011
Origem: Roselene Crepaldi

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