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O Policiamento Comunitario
O Policiamento Comunitario
O Policiamento Comunitario
MESTRADO EM DIREITO
Rio de Janeiro
2005
3
MESTRADO EM DIREITO
Rio de Janeiro
2005
4
MESTRADO EM DIREITO
____________________________
Prof. Dra. Vera Malaguti Batista
_____________________________
Prof. Dr. Pedro Paulo Gastalho de
Bicalho
Rio de Janeiro
2005
5
RESUMO
ABSTRACT
The present dissertation has the purpose of continuing the discussions and
observations among the democratization of the modern Police. In addition, the paper
intends to explain how and why the Community Police is being considered as an
alternative to bracket the Police to the others public democratic institutions, by the
academic and political means, from the Police Institution and from society since the
1970’s.
The Community Police is constituted as a new philosophy and as a set of
strategies which affirm the “society police” or the “people police”, and it also suggests
the modern police shortcomings and restraints decrease in the crime control, the
violence and the disorder.
The changes purposed by the community pattern with the intend of substituting
values and past police experiences by a new way for the Police to think, to act and to be
in this world has basic concepts: the police stations authority’s decentralization; a
greater freedom for the higher position’s police to search for a closer relationship with
the community, creating partners for the local questions identification, the hierarchizing
of these problems, the precaution strategy’s development to each particular situation and
the police activity outward accountability.
Anticipating the maintenance of the public order with the community consent and
participation, the “community” pattern declares the necessity of redrawing the Police
with its “customers”, creating the integration between the public security and
citizenship. Allowing the community to follow closer the Police work, the Community
Police intends to efficiently reach the public order preservation by pacific means.
The Police legitimacy in the democratic states depends on supplementary factors
to the legal authorization for the moderate use of power. It also turns out to be
indispensable, the policemen responsibility or “render assistance” in the presence of the
citizens, as a way to lead the appreciation and guarantee the service qualities rendered
by the “law agents”.
8
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................................... 9
no Brasil.......................................................................................................................... 77
...................................................................................................................................... 112
...................................................................................................................................... 191
Introdução
policiais perante os cidadãos é apontada como uma forma de permitir que a qualidade
dos serviços prestados pelos “agentes da lei” seja apreciada e garantida.
Nos anos de 1960 e 1970 a Polícia passou a ocupar o centro dos estudos
acadêmicos sobre a produção de segurança pública em sociedades democráticas, o que
se verificou de forma expressiva nos Estados Unidos. Naquele momento as concepções
e princípios relacionados à organização e ao papel da “Polícia” passaram a ser postos à
prova. Tratava-se de um fato novo para a Polícia norte-americana, normalmente
relutante em ter suas atividades observadas por pessoas que não integravam os
departamentos de polícia - os cientistas sociais (cf Bittner, 2003). Os estudos foram
impulsionados, principalmente, pelas pressões exercidas pela sociedade norte-
americana, em um contexto de lutas pela ampliação e consolidação dos direitos civis,
associadas às insatisfações, ao medo e à desconfiança da população - principalmente os
segmentos minoritários - em relação às práticas excessivamente violentas dos agentes
policiais e à ineficácia de suas estratégias no controle da criminalidade.
A importância das pesquisas sobre a Polícia se faz sentir quando verificados os
fatores que contribuíram para as iniciativas de reforma da instituição em diversas partes
do mundo. Os países que primeiro se preocuparam em desenvolver estudos sobre a
atividade policial foram os pioneiros no processo de reformulação de seus ideais e
estratégias, e estão hoje bem adiantados no que se refere à implantação de uma Polícia
comprometida com a preservação da paz e a proteção dos direitos e garantias
individuais e coletivos.1 No Brasil, os esforços para a obtenção de um entendimento
mais aprofundado sobre as agências policiais, seus integrantes e seu trabalho rotineiro
somente seriam deflagrados na década de 1990 (cf Muniz, 1999). Ao contrário do
observado nos Estados Unidos, onde as reformas da Polícia eram propostas
concomitantemente às pesquisas sobre as questões relacionadas à segurança pública -
que englobavam a análise detalhada dos aspectos do trabalho policial -, por aqui o tema
começaria a ser estudado de forma significativa após as iniciativas de mudança. As
idéias de reformulação da filosofia, organização e das estratégias policiais no Brasil,
através da implantação do policiamento comunitário, são amparadas, inicialmente, pelos
estudos e experimentos desenvolvidos nos EUA e Canadá.
1
Bayley (2001:28), referindo-se à escassez de documentos escritos sobre polícia, apresenta os Estados
Unidos como o país que possui o material documentário e analítico maior, não deixando de citar Grã-
Bretanha, Canadá, França, Holanda e Países Escandinavos.
11
(1999:64), em sua tese de doutorado Ser Policial é, sobretudo, uma Razão de Ser:
Cultura e Cotidiano da Polícia Militar do Rio de Janeiro”, os conflitos adquirem um
acento positivo, podendo ser compreendidos como o dispositivo para a sociabilidade
política, ou seja, como uma precondição para o provimento da ordem pública. Logo, o
reconhecimento de necessidades e interesses divergentes, e de uma série de fatores que
contribuem para a complexidade das relações sociais cotidianas, passa a pautar as
políticas de segurança pública e as atividades desempenhadas pela polícia. De acordo
com essa perspectiva, as variações de comportamento dentro da comunidade não mais
são vistas como um “desvio” ou “inadaptação” de determinados grupos sociais. Parece
mais aceitável o entendimento observado por Gilberto Velho (1981:21) no texto O
Estudo do Comportamento Desviante: A Contribuição da Antropologia Social, segundo
o qual “os conceitos de ‘desviante’ e ‘inadaptado’ estão amarrados a uma visão estática
e pouco complexa da vida sociocultural”.3 O autor (1981) afirma que, assim como a
cultura não é uma entidade acabada, mas uma linguagem em constante transformação, a
estrutura social não é homogênea em si mesma, devendo ser uma forma de representar a
ação social de atores diferentemente e desigualmente situados no processo social.4 Esse
entendimento não impede a relativização de valores pela sociedade, e a procura de
padrões de comportamento ou regularidades. Nas sociedades democráticas trata-se da
relativização de valores como os direitos humanos, a liberdade, a igualdade, a justiça
etc. O que preocupa, segundo Velho (1981:17) é a permanência da idéia de que uma
sociedade ou uma cultura estabelece um modelo rígido para seus membros e que tal
fenômeno é imprescindível para a continuidade da vida social. Os valores, assim como
os padrões de comportamento, mostram-se de grande importância para a concepção de
ordem pública em qualquer sociedade. No entanto, uma postura excessivamente rígida –
considerando as representações de alguns grupos sociais como únicas – pode levar à
simplificação da realidade e dificultar a apreensão dos conflitos sociais existentes
(Velho, 1981:27).
3
Gilberto Velho (1981:11-17) analisa as perspectivas segundo as quais pode ser visto o desvio, referindo-
se ao deslocamento de uma “patologia do indivíduo” para uma “patologia do social”. Uma delas vê um
mal que estaria localizado no indivíduo - fora da sociedade – e precisaria ser tratado, enquanto a
perspectiva social e cultural considera importância da estrutura social e cultural para o desenvolvimento
de um “comportamento socialmente desviado” (Velho, 1981). Segundo o autor (1981:17), a idéia de
desvio, de um modo ou de outro, implica a existência de um comportamento “médio” ou “ideal”, que
representaria uma harmonia com as exigências do funcionamento do sistema social.
4
Outras teorias poderiam ser utilizadas aqui para discutir a complexidade do conceito de crime e
criminoso.
20
5
O policial poderia guardar alguma semelhança, nesse sentido, ao antropólogo social. Segundo Velho
(1981:26), com a tradição de estudar sociedades de pequena escala, fazer estudos de caso, trabalhar com
comunidades, grupos de vizinhança etc., está permanentemente em contato com indivíduos concretos,
carregados de densidade existencial.
6
Parece haver uma tentativa de resgate à “sociedade disciplinar” – denominação dada por Foulcault à
sociedade contemporânea. Porém, a disciplina e a vigilância a que se refere o autor estão pautadas, agora,
nos valores democráticos. Sobre a formação da sociedade disciplinar, v. Foucault, Vigiar e Punir:
nascimento da prisão, 1987, e Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas, 2002.
21
7
Os debates muitas vezes não ultrapassam o nível da superficialidade, sendo utilizados com fins
eleitoreiros. Conforme Sento-Sé (1998:68), as políticas de segurança pública desenvolvidas no Brasil,
volta e meia, resultam de intensa propaganda eleitoral travestida de debate. Essa questão será discutida no
próximo tópico.
22
“Ela deve indicar que a comunidade está seriamente impregnada por forças
inclinadas a destruí-la e se faz necessário recorrer a esforços que reivindicam
todos os recursos disponíveis para derrotar o perigo. A mudança retórica de
‘controle do crime’ para ‘guerra contra o crime’ significa a transição de uma
preocupação de rotina para um estado de emergência. Nós não estamos mais
enfrentando perdas de um tipo ou outro através das depredações dos
criminosos; nós estamos correndo perigo iminente de perder tudo! A
percepção de tais riscos não permite um estudo paciente; como a destruição
prevista é considerada uma possibilidade real, não há necessidade de
demonstrar sua certeza iminente, nem de estimar com precisão suas
probabilidades”.
8
Baratta (2002), no livro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, traz um estudo sobre os
pensamentos criminológicos. A idéia do crime como um mal e o criminoso como um elemento negativo e
disfuncional da sociedade constitui um dos princípios da ideologia da defesa social, adotada pela
Criminologia Positivista como uma de suas premissas (Baratta, 2002:41-48).
9
Segundo Bittner (2003:141), o conceito de que o crime possa ser banido - que se identifica com o
objetivo implícito da guerra – envolve um tipo particularmente comum de sonho utópico. Bittner
fundamenta seu entendimento na teoria estrutural-funcionalista do desvio e da anomia - introduzida pelas
obras de Durkheim -, que rechaça o princípio do bem e do mal.
23
“Essa história de direitos humanos vai trazer o caos de volta. Vocês têm que
dar liberdade aos policiais. Vagabundo só entende a linguagem da força. Meu
prédio foi assaltado. Pegaram o bandido. Eu fiz questão de meter o cano do
meu revólver na boca do marginal para que ele ficasse sabendo como seria
tratado se voltasse ou mandasse algum assecla acertar as contas. Quando
aquele outro vagabundo foi morto na porta do Rio Sul, em 1995, escrevi um
artigo que a grande imprensa do Rio publicou, defendendo o cabo que
executou o marginal. Vocês têm que botar a cara na reta e defender os
policiais, para deixar muito claro de que lado vocês estão. Esse pessoal dos
direitos humanos defende bandido”.
10
Moore (2003:162-163) afirma que, em muitos departamentos de polícia, os valores legais são vistos
mais como restrições opressivas, do que com a finalidade de serem respeitados e protegidos.
11
Musumeci (2002:01) verificou, após a análise de uma pesquisa da UNESCO sobre o crescimento dos
índices de homicídio nos estados brasileiros, em 2000, a contribuição da violência policial e o fácil acesso
às armas de fogo para o crescimento desses crimes (2002:06-08). Muniz e Zachi (2004:6) analisaram a
relação entre o uso irrestrito de armas de fogo e o crescimento da criminalidade violenta.
24
O aumento das taxas de crime e violência coloca em dúvida o acerto das políticas
de segurança pública desenvolvidas a partir de uma concepção repressiva.12 As políticas
de segurança pública orientadas a partir do discurso de “guerra” ao crime vêm sendo
apontadas como incapazes de produzir resultados positivos, e responsáveis pelas crises
pelas quais passaram, e ainda passam, as instituições policiais.13
As contradições do discurso autoritário vêm levantando críticas e estimulando
debates a respeito de seus efeitos na preservação da ordem pública em sociedades
democráticas. Nos centros urbanos do Brasil a criminalidade vem alcançando patamares
cada vez mais elevados nas duas últimas décadas.14 O crescimento do crime, da
violência e da desordem, uma grande preocupação das sociedades contemporâneas –
12
Pretende-se perquirir o papel da polícia no controle do crime e da desordem, e na redução da violência
e da sensação de insegurança da população em sociedades democráticas.
13
Para uma crítica da perspectiva bélica transportada para o controle do crime, ver o artigo “Perguntas
sem Respostas” de Proença Jr. e Muniz, dirigido ao secretário estadual de segurança pública, publicado
no Jornal do Brasil, em 07/05/1996.
14
Lemgruber (2004), no artigo Violência, omissão e insegurança: o pão nosso de cada dia, analisa o
crescimento das taxas de criminalidade violenta no Brasil, entre 1980 e 2001. A pesquisadora (2004:04)
destaca que esse crescimento se deu predominantemente nas favelas e nos bairros pobres das periferias
urbanas. Ela observa, ainda, que nessas áreas, ao longo do período estudado, instalaram-se o tráfico de
drogas e os conflitos entre facções rivais, e cresceram a violência e a corrupção policiais (2004). Cano e
Santos (2000:23) destacam, no Debate sobre Violência Letal, Renda e Desigualdade no Brasil, que “o
controle social informal em particular é intenso nas pequenas comunidades onde as pessoas se conhecem
e o desvio social é imediatamente detectado e estigmatizado”. O anonimato urbano, por sua vez, diminui
o controle social e aumenta a impunidade (2000). Ressaltam os autores (2000) que essa explicação não
pode ser usada tão facilmente para explicar diferenças entre municipalidades em áreas geográficas onde
há grande mobilidade, como acontece com as áreas metropolitanas. Segundo eles, uma combinação de
fatores — urbanização rápida sem serviços sociais, pobreza, falta de controle social e anonimato,
desigualdade, falta de oportunidades para a juventude etc. — provocariam, nas cidades, altos níveis de
violência (2000).
25
15
Estudos comprovam que o crescimento do crime e da violência está associado, entre outras causas
possíveis, à ineficácia das estratégias de atuação das polícias e à própria violência e arbitrariedade que
pautam suas ações. Sobre a ligação, no Brasil, entre o aumento dos índices de crime e violência e o modo
de atuação da polícia ver pesquisas analisadas por Musumeci (2002), Lemgruber (2004) e Muniz e Zachi
(2004).
16
Moraes (2001:235), no texto Velhice, mudança social e percepção do risco, fala do medo como um
traço da vida urbana. De acordo com ela, “a possibilidade, sempre aberta na vida urbana contemporânea,
de encontro com mundos e estilos de vida diferentes toma um sentido de ameaça à integridade física e
moral do indivíduo” (2001). A noção de risco, acrescenta a autora (2001), apresenta-se como uma
gramática da vida social, classificando sujeitos, ações e contextos.
17
Sobre o estabelecimento da paz por meios pacíficos, ver Bittner (2003) e Muniz (1999).
26
Por que falar das políticas de segurança pública? Qual a importância das políticas
de segurança pública para as reformas da polícia e, principalmente, para as reformas
democráticas da polícia?
Quando são propostas reformas para a democratização da polícia, um dos
requisitos fundamentais indicados por seus idealizadores é a conformidade das políticas
adotadas pelo governo com as mudanças almejadas para a instituição policial. A
importância das políticas do governo para a viabilização de uma reforma democrática da
polícia é observada por David Bayley (2001:13-15), no texto Democratizing the Police
Abroad: What to do and How to Do It. Segundo o autor (2001:13), uma das
conseqüências do desenvolvimento de políticas democráticas para a área de segurança
pública é a reforma da polícia. A democratização da área de segurança pública
possibilita a compreensão da necessidade de orientar a polícia no sentido de adequar os
valores e as práticas de seus departamentos aos problemas e interesses dos cidadãos aos
quais deve prestar seus serviços (Bayley, 2001).
“1. Police must give top operational priority to servicing the needs of
individual citizens and private groups.
2. Police must be accountable to the law rather than to the government.
3. Police must protect human rights, especially those that are required for the
sort of unfettered political activity that is the hallmark of democracy.
4. Police should be transparent in their activities.”
18
A ditadura militar (1964-1979) implicou na suspensão dos direitos civis e políticos da população
brasileira. Inicialmente (CRFB de 1967), cabia às Polícias Militares, denominadas como “forças
auxiliares e reservas” do exército, “manter a ordem e a segurança interna”. A Constituição da República
Federativa do Brasil, outorgada pelos militares, manteve a definição das Polícias Militares como “forças
auxiliares e reservas” do exército, com a missão de “manter a ordem pública” (CRFB de 1969).
28
individual dos agentes policiais e das estratégias adotadas pela instituição policial
(Bayley, 2001:15). Ao exercer o controle sobre a polícia, o público pode verificar até
que ponto a instituição está conseguindo alcançar os resultados esperados (Bayley). Nas
sociedades democráticas, a subordinação dos cidadãos à autoridade policial – para o
monopólio do uso comedido e proporcional da força - é consentida (Muniz, 1999). Se a
legitimidade da polícia é conferida pela sociedade, a instituição torna-se responsável
perante a população, e não apenas em relação às normas legais e ao regimento interno
do departamento de polícia. Logo, o controle externo, ou a maior responsabilização da
polícia perante a sociedade civil, mostra-se como uma condição para a prática policial
em sociedades democráticas.
No Brasil, durante o regime militar (1964-1979) a discussão sobre os direitos
humanos mostrava-se como um obstáculo à finalidade de “manter a ordem e a
segurança interna” ou “manter a ordem pública”. Tratava-se de uma ordem imposta pelo
Estado, carecendo, portanto, de políticas capazes de lhe dar sustentação. Como salienta
Muniz (1999:75), “tudo parece indicar que não se tratava evidentemente de uma ‘ordem
pública’ ou de uma ‘ordem social’ constituídas com ou pela sociedade”. Não havia
interesse no consenso, mas tão somente na obediência da população, e da própria
polícia, à ordem emanada de cima (Muniz, 1999:81). Procurando se precaver de
quaisquer ameaças de enfraquecimento do poder dos militares, o Estado reafirmava o
discurso repressivo, bélico, de “guerra contra o crime”, “combate ao criminoso” e ao
“inimigo interno” - o perturbador da ordem, o dissidente político, o subversivo.19 A
filosofia da “Segurança Nacional” fundamentava-se na defesa do Estado contra ameaças
externas e internas, e para tanto a eliminação do inimigo acabava sendo uma
conseqüência necessária.
As polícias militares, definidas como “forças auxiliares e reservas do exército”,
deveriam garantir a obediência da população a essa ordem imposta, mediante o recurso
a estratégias repressivas. As forças policiais guardavam grande semelhança com o
exército no tocante à institucionalização, e à estrutura organizacional (hierárquica) de
comando e controle. Esses fatos confirmam a influência do regime militar na formação
da ideologia e das estratégias operacionais das polícias brasileiras, especialmente as
polícias militares. Carlos Magno Nazareth Cerqueira (2001:45) destaca, no artigo
19
Segundo Muniz (1999:74), “a indistinção entre o provimento local de ordem pública e as atividades de
segurança interna foi inicialmente consumada no art. 167 da Constituição de 1934”.
29
20
A militarização da segurança pública no Brasil não é fruto apenas da ditadura militar. As Constituições
brasileiras pós-República – Constituição de 1934 em diante -, indicam um quadro que somente começaria
a sofrer modificações na Constituição de 1969. Segundo Muniz (1999:77), “até o final de 1969, as
polícias militares consistiam em forças-tarefa aquarteladas”, não realizando “as atividades típicas e usuais
de policiamento que haviam justificado sua origem no Decreto de João VI em 1809”. O policiamento
ostensivo era atribuído a outras agências: as polícias civis, as guardas de vigilância, as guardas civis etc.
(Muniz, 1999).
30
21
De acordo com Hollanda (2005:47), no início dos anos 1980, ainda sob a vigência do último presidente
militar – o Gal. João Batista Figueiredo – do Brasil, o processo de abertura política do país era iniciado.
As eleições diretas para o governo do estado do Rio de Janeiro, em 1982, constituem um dos eventos
políticos que impulsionaram a redemocratização do país.
22
Após quase vinte anos de regime militar, Leonel Brizola foi um dos primeiros governadores eleitos
pelo voto direto no Brasil, e o único eleito por um partido diverso daqueles que herdaram a estrutura
partidária do regime militar.
23
Hollanda (2005:66) ressalta que os anos em que Brizola esteve fora do país - sob exílio político -
conferiram a ele a oportunidade de estabelecer contato com temas como os direitos humanos e o
32
Em 1983, Leonel Brizola, eleito governador do estado do Rio de Janeiro pelo PDT,
inaugurou o governo democrático no estado e experimentou algumas medidas de
democratização na área de segurança pública. O governo propunha uma nova concepção
de ordem pública, que não fosse mais considerada uma questão de Segurança Nacional -
de submissão da sociedade e da própria polícia aos interesses do Estado. Tratava-se de
uma ordem pública consentida, construída com base nos princípios democráticos e nos
interesses sociais divergentes, que rompia com o discurso bélico de controle da
criminalidade.24 As práticas de confronto ao criminoso seriam substituídas pela
administração ou mediação de conflitos e pelas estratégias de prevenção ao crime. Seria
preciso lançar mão de outras formas de preservação da ordem, condizentes com os
valores democráticos e, ao mesmo tempo, mais eficazes. Procurando atender a essa
dupla finalidade, entrariam em “cena” as estratégias de prevenção ao crime e à
desordem que consideravam o apoio e a participação da comunidade.
Fora modificado o quadro político-institucional das polícias (Hollanda, 2005:75),
com o intuito de começar a lhes conferir uma identidade própria, associada aos valores e
funções necessárias à preservação da ordem em sociedades democráticas.25 A Secretaria
de Segurança foi extinta, sendo criadas Secretarias de Estado, que transferiam ao
governo do estado a responsabilidade de orientar a filosofia e as estratégias das polícias
civil e militar.26 De acordo com Hollanda (2005):
socialismo, bastante discutidos nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, a concepção dos direitos
humanos fundamentou-se basicamente nos direitos civis e sociais, deslocando-se para os segmentos
menos privilegiados da população (Hollanda, 2005:67).
24
Hollanda (2005:79) denomina a formação do discurso repressivo entre as forças policiais como
“contaminação” da polícia pelo Exército.
25
Muniz (1999:67-74) destaca a busca incessante das polícias militares por uma identidade própria,
associada à prestação de serviços civis necessários à preservação da ordem pública em sociedades
democráticas.
26
Em 190 anos de existência (1809-1999), a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro foi por quase
160 anos comandada por um oficial de alta patente do Exército regular (Muniz, 1999:78). Essa
informação demonstra, em parte, o longo período de subordinação das polícias militares brasileiras ao
Exército.
33
27
A criação das secretarias para as polícias e a concessão de comando próprio a cada uma delas gerou
vários embates institucionais e jurídicos (Hollanda, 2005:79). O governo federal reagira às iniciativas
políticas de Brizola com a apresentação de “uma lei que instituiria um sistema de segurança pública para
todo o país”, com a “congregação das polícias civil e militar em uma única instância de segurança pública
estadual” (Hollanda, 2005:79). Nesse sistema único de segurança pública, as estruturas e forma de
operação das polícias seriam definidas pelo governo federal (Hollanda, 2005:79). No entanto, o projeto
não fora aprovado pelo Congresso.
34
28
Carlos Magno Nazareth Cerqueira foi o primeiro Comandante negro da história da PMERJ, e das
demais PMs brasileiras, sendo reverenciado até hoje por “ousar” implantar medidas inovadoras na
Corporação e prosseguir, mesmo após o término do segundo governo Brizola no Rio de Janeiro, na defesa
das transformações democráticas na polícia militar do Rio.
29
Muniz (1999:69) afirma que, segundo os próprios policiais, a Doutrina de Segurança Nacional
contribuiu, de forma decisiva, para “um período de desvirtuamento” das instituições policiais militares.
30
Tratava-se de uma incorporação dos direitos humanos direcionada, ou seja, destinada a suprir os
segmentos sociais em maior desigualdade comparada (Hollanda, 2005:67).
35
que pudessem contribuir para a sua promoção” (Hollanda, 2005). Não mais faria
sentido, em tempos de transição democrática, o recurso a promoções daquela espécie,
pois as mesmas representariam uma contradição entre os fins do governo e os meios
para alcançá-lo.
Foi proibida a prática usual de invasão de barracos nas favelas e demais bairros
pobres cariocas pela polícia para procurar criminosos e apreender objetos e produtos de
crime.31 A proibição dessa prática, conhecida como política do “pé-na-porta”, era uma
das metas centrais do governo, na tentativa de impedir os atos violentos e
discriminatórios da polícia contra os moradores daqueles locais. O discurso dos direitos
humanos era direcionado, principalmente, às classes sociais desfavorecidas, maiores
vítimas das ações violentas da polícia (Hollanda, 2005:67). No cenário urbano carioca,
isso significaria a priorização dos moradores das favelas. Segundo Cerqueira
(2001:166), as orientações de Brizola no tocante às intervenções policiais nas favelas
não impediam que a polícia fosse até aqueles lugares e prendesse quem tivesse que ser
preso. As diretrizes adotadas pelo governo impediam que a polícia fosse arbitrária e
violenta com a população da favela e, dessa forma, ampliasse ainda mais as divisões
sociais e estigmatizações existentes no espaço urbano carioca.32
Outra modificação, imprescindível à preservação da ordem pública em uma
sociedade democrática seria o uso legal e comedido da força pela polícia. Foi adotado o
princípio da contenção no uso da força policial (Hollanda, 2005:85). O uso concreto da
força deveria ser limitado a casos excepcionais e restritos de mediação de conflitos que
demandassem esse recurso, devendo ser observada, sempre, a proporcionalidade entre o
direito ameaçado ou violado e a ação policial consistente em preservá-lo.33 As prisões
ilegais e o recurso à tortura em interrogatório, práticas comuns no regime militar de
governo, também foram proibidos.34
31
Sento-Sé (1998:53) afirma que o repúdio à atuação policial nos anos de recrudescimento político se
estendia rapidamente ao arbítrio com que as forças policiais atuavam nas favelas e nas regiões de
concentração de pobreza.
32
Conforme adverte Bittner (2003:104), a polícia não cria as divisões existentes na sociedade, mas pode
ampliá-las se distribuir seus serviços de forma seletiva.
33
Hollanda (2005:83-84) descreve os princípios básicos da Organização das Nações Unidas (ONU) para
o uso da força policial, “incorporado aos cursos de profissionalização policial e reproduzido nas Notas de
Instrução de cada unidade de operação da polícia”. Sobre os referidos princípios ver o “Código de
conduta para funcionários encarregados de fazer cumprir a lei”, ONU (17/12/1979).
34
Sobre a proibição de qualquer meio de tortura por parte da polícia, ver art. 5º do “Código de conduta
para funcionários encarregados de fazer cumprir a lei”, da ONU (1979).
36
35
Cerqueira (2001:86) ressalta, no livro Do Patrulhamento ao Policiamento Comunitário, que no Brasil
não houve estudos ou reflexões acadêmicas sobre o policiamento comunitário anteriores à sua aplicação
pelas polícias. A questão fora tratada inicialmente pelos policiais, que se guiaram na experiência norte-
americana (Cerqueira, 2001)
36
Tratava-se de um ótimo momento para o desenvolvimento das políticas democráticas no Brasil, pois
havia enorme rejeição à concepção militarizada da segurança pública (Sento-Sé, 1998:49).
37
37
Sento-Sé (1998:49-50) refere-se aos crimes de homicídio, roubo e furto de veículo, ao tráfico de
entorpecentes etc.
38
Em novembro de 1985, cerca de 200 integrantes da polícia civil, afrontando a política de segurança
pública estadual, saíram pelas ruas da cidade “estourando” pontos de jogo de bicho e carteado (Hollanda,
2005:133). Essa operação, conhecida como “Operação Bicho”, além de não ir de encontro com as
diretrizes do governo, pautava-se em ações ilegais dos policiais (Hollanda, 2005).
39
A ousadia com que o governo inseriu o discurso dos direitos humanos nas políticas públicas do estado
lhe “custaram” muito caro. Os direitos humanos ficaram estigmatizados como “direitos de bandido”
(Hollanda, 2005:137).
38
40
Sento-Sé (1998:65) menciona um aspecto do discurso brizolista que passou a pesar contra ele: a ênfase
na oposição elites-povo. Conforme o autor, quando o discurso ganhou contornos mais agressivos,
começou a suscitar certa hostilidade das classes médias.
39
44
Eis as justificativas de Cerqueira (2001a:47) para citar a Colômbia: por se tratar de um país marcado
pela violência e pelo poderio do tráfico de entorpecentes, e por estar tentando discutir um novo modelo de
resolução de conflitos; pelo fato de o autor ter apresentado lá os princípios conceituais que modelavam a
sua concepção de segurança pública.
41
45
O projeto de policiamento comunitário de Copacabana, implementado no final da segunda gestão
Brizola no Rio de Janeiro (setembro de 1994), é considerado a primeira experiência substancial de
policiamento comunitário no país. A experiência de policiamento comunitário de Copacabana é relatada
por Musumeci et al, 1996.
46
No ano de 1994, Nilo Batista assumira o governo do estado, para que Leonel Brizola se candidatasse à
presidência da República.
47
Como observa Bayley (2001:20), no livro Padrões de Policiamento, ao distinguir a polícia de outras
formas de policiamento, quando o Exército é utilizado para a preservação da ordem (pública) dentro da
sociedade, deve ser visto como força policial. No entanto, não parece ter sido isso que ocorreu na
“Operação Rio” (1994 a 1995), por diversas razões – a filosofia combatente que estava por trás dessas
atividades, a falta de treinamento adequado dos militares etc.
48
Ressalta Sento-Sé (1998:68) que a “Operação Rio” resultou de intensa propaganda travestida de debate
sobre sua pertinência ou não.
42
49
Sento-Sé (1998:68) afirma que setores conservadores da corporação policial e da elite política
ganharam espaço crescente na mídia, ligando a política de direitos humanos à condescendência e
permissividade com o crime organizado.
50
As operações de ocupação e enfrentamento ao criminoso, nas favelas, são denominadas como
operações “enxuga gelo” (Cerqueira, 2001a:59).
43
Pelo que se infere das observações transcritas acima, volta e meia o crescimento da
violência serve de pretexto para o “endurecimento” das políticas de segurança pública,
assumindo posição privilegiada nos embates políticos, nos meios de comunicação e nos
diversos segmentos sociais. O crime e a violência fazem parte da pauta diária de
discussão em todos os setores da sociedade, sendo este um dos fatores para o aumento
do medo da população em relação ao crime. As promessas de redução da taxa de crime,
feitas com fins eleitoreiros, surgem, muitas vezes, como a melhor forma de conquistar o
44
apoio da sociedade. Com isso, a sociedade é enganada duas vezes: na primeira por ser
levada a acreditar que o crime e a violência podem ser reduzidos com as estratégias
autoritárias advindas do regime militar, aplicando ao controle do crime os mesmos
meios empregados nos campos de batalha; segundo, por acreditar que uma política de
segurança pública de controle da criminalidade produzirá resultados imediatos.
Referindo-se às discussões acerca da política pública que ele pretendia viabilizar
no período em que esteve na Subsecretaria de Segurança do governo Garotinho, o autor
(2000:81-82) afirma que nunca houve uma política de segurança no estado,
acrescentando que o que se costuma chamar “política de segurança” quase sempre se
resume a um conjunto de intervenções policiais, reativas e fragmentárias, determinadas
pelas tragédias cotidianas, acrescentando que tais intervenções são ditadas pela
visibilidade pública e pelo varejo das pressões. Seus comentários estão embasados,
certamente, na experiência vivida pelo autor quando tentou implementar uma política de
segurança pública substancial no estado do Rio de Janeiro. A política de segurança
pública pretendida por Soares (2000:65-72) preocupa-se, entre outros fatores, com o fim
da violência policial contra moradores de favelas cariocas, que cresceram de forma
gritante no governo Marcello Allencar devido a incentivos como a denominada
“premiação faroeste”, e com o fornecimento de serviço policial (igualitário) para
todos.51 O autor (2000:71-79), defendendo o discurso de direitos humanos e a
necessidade de lidar com o problema da criminalidade onde quer que ele esteja –
favelas, demais bairros pobres ou áreas nobres das cidades -, destaca a intenção de
reformular as medidas tópicas até então adotadas na área de segurança pública.52 Soares
sofreu várias resistências dentro da própria Secretaria de Segurança, por conta das
escolhas ambíguas do governador Garotinho ao formar a equipe que comporia a referida
secretaria; uma de suas maiores contradições foi a nomeação do General do Exército
José Siqueira para o cargo de Secretário de Segurança, no início do governo. Aos
poucos Soares (2000:128-130) pode notar que, na verdade, não havia a intenção de
51
A “premiação faroeste”, também denominada “premiação por bravura” ou “promoção por bravura”,
consistiu na adoção de medidas ou ações de política salarial com o fim de estimular a produtividade dos
policiais em um contexto de salários reconhecidamente baixos (Cano, 1998:205). Policiais eram
freqüentemente promovidos ou premiados por intervenções armadas que resultavam em mortos ou feridos
(Cano, 1998).
52
A intenção de expandir, para as favelas e demais comunidades da região metropolitana, o modelo de
segurança que se beneficiam os bairros nobres fez surgirem os “Batalhões Comunitários” (Soares, 2000:
287-298).
45
desenvolver uma política de segurança democrática, mas, tão somente, adotar algumas
medidas que melhorassem a imagem da segurança pública do estado sem alterar sua
essência.
Falando sobre os desafios ainda enfrentados nos tempos atuais quando se trata de
problemas que estão atrelados à essência da instituição policial no Brasil, Muniz
(1999:65) destaca que a visão militarizada das forças policiais ostensivas, por exemplo,
ainda exerce um fascínio sobre os executivos de segurança pública e no senso comum
ilustrado, sobretudo quando o tema a ser discutido é o “lado operacional da polícia” ou
o necessário “controle dos homens armados” que fiscalizam o cumprimento da lei no
espaço urbano.53 Segundo ela, argumento da sua tradição tem prevalecido nos debates,
mesmo que não tenha sido satisfatoriamente demonstrada, ao longo da história, a
rentabilidade do modelo militar no que concerne ao controle sobre o uso legal e legítimo
da força e, principalmente, à discricionariedade no mundo policial (1999:65).
As observações de Muniz (1999:65-66) resumem os fatores constituintes da
insistência em se desenvolver políticas de segurança pública que contrastam com os
princípios democráticos:
“Em suma, os diversos ajustes por que passou o sistema policial brasileiro
mantiveram sobrevivências e resíduos de outrora: o recurso excessivo aos
expedientes de disciplina como uma resposta ao real poder discricionário; a
idéia de que ofertar segurança pública equivale a uma gloriosa caçada dos
inimigos da ‘boa ordem e da paz pública’; a identificação das questões de
ordem pública com aquelas relativas à soberania do Estado; as solicitações
para que o Exército atue nos assuntos de ordem pública, foram marcantes em
nosso passado e ainda têm sido, curiosamente, uma realidade na vida
democrática brasileira”.
53
Bittner (2003:172) parece explicar esse fascínio ao se referir à origem das polícias modernas. Segundo
o autor, “todas as polícias têm sua origem ligada ao papel dos homens das armas, como, de fato, ainda
podemos observar refletido no termo gendarme [fr. lit. ‘gentes com armas’]”.
46
54
Cano (1998:205-229), analisando os índices de homicídio entre janeiro de 1993 e julho de 1996,
observou que os números dobraram no período em que foram implantadas e multiplicadas as premiações
e promoções por bravura na política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro – maio de 1995 a
julho de 1996, período em que o General Nilton Cerqueira administrou a Secretaria de Segurança do Rio
de Janeiro. Musumeci (2002:01-08) verificou, após a análise de uma pesquisa da UNESCO sobre o
crescimento dos índices de homicídio nos estados brasileiros, em 2000, a contribuição da violência
policial e o fácil acesso às armas de fogo para o crescimento desses crimes.
55
Como salienta Brodeur (2002:264), referindo-se ao entendimento de Durkheim, é inconcebível uma
sociedade sem crime e desordem. Uma das justificativas que poderiam ser dadas a essa afirmação é o fato
de o crime ser uma fenômeno político, ou seja, a delimitação dos comportamentos sociais considerados
criminosos é feita por alguns grupos sociais, e podem mudar de tempos em tempos, ou de uma sociedade
para a outra. Porém, a compreensão desse entendimento requer o abandono da crença de que o crime é
um mal ou uma doença.
56
As experiências em países como os Estados Unidos, Canadá, entre outros, mostram que isso é possível.
47
57
A morte brutal de 29 pessoas por policiais militares, em municípios da Baixada Fluminense, no dia 31
de março de 2005, denominada “Chacina da Baixada”, demonstra um traço ainda presente na realidade
social do estado. Um episódio recente de violência e ilegalidade da ação policial no Rio de Janeiro, que
teve grande repercussão nos meios de comunicação, provocando a indignação da sociedade.
48
58
Peel ocupava a função de Secretário do Interior do governo Tory do Duke de Wellington, sendo um dos
responsáveis pelo projeto de criação da Polícia Metropolitana de Londres.
50
59
Peel e seus colaboradores tinham consciência de que o projeto de uma nova força policial – moderna e
profissional – somente venceria as resistências no Parlamento inglês e na população se em nada lembrasse
a police francesa, a qual havia sido uma polícia do Estado como um instrumento de tirania (Reiner apud
Muniz, 1999:28). Segundo Muniz (1999), o modelo francês de policiamento agregava missões distintas
em uma única instituição, consistindo na união do que hoje se distinguem como: polícia de fronteiras,
polícia política, serviço de contra-espionagem, força paramilitar de ação interna e defesa territorial,
polícia de costumes, polícia judiciária, polícia investigativa e polícia ostensiva.
51
60
As características políticas e sociais da Inglaterra também contribuíram para a criação desse sistema
policial (Fyfe et alli, 1997:09). Suas características políticas consistiam em um governo central forte, com
uma aristocracia estabelecida, uma classe média, um poder judiciário independente e um serviço civil
forte (Fyfe et alli, 1997). Existia divisão de classes, juntamente com as agitações sociais, mas o país
continha uma população de certa forma homogênea e um corpo de lei estabelecido (Fyfe et alli, 1997).
52
61
O modelo de policiamento planejado por Peel e seus colaboradores não vigorou nas colônias inglesas,
nas quais os arranjos de policiamento aproximavam-se da polícia à moda de França (McCormic e Visano
apud Muniz, 1999:31).
62
Em tempos coloniais, o sistema norte-americano de policiamento empregava mecanismos privados de
provimento da ordem – xerifados, constable, guardas civis (Fyfe et alli, 1997:09).
63
Nova York, em 1845, tornou-se a primeira cidade norte-americana a estabelecer uma força policial que
se aproximava, ainda que de forma imprecisa, aos padrões londrinos de policiamento (Fyfe et alli,
1997:10).
64
No momento em que surgiam as insatisfações e críticas da sociedade em relação às estratégias
enfatizadas pelo modelo profissional surgiam as teses de defesa do modelo de policiamento comunitário.
53
eficiente, que tivesse suas atividades, assim como o arbítrio do agente policial,
controladas pela administração policial.66 Os administradores policiais rejeitavam a
política como a base exclusiva da legitimidade policial e procuraram estabelecer um
novo mandato policial baseado na lei, nos métodos científicos de investigação e na
visão que tinham de profissionalismo policial (Fyfe et alli, 1997:12-13). Havia a
intenção de substituir os departamentos de polícia politicamente conduzidos por uma
função policial consistente no controle do crime (Fyfe et alli, 1997). A instituição
policial, naquele momento, tinha suas ações pautadas pela vontade política dominante,
advindo daí sua autorização para atuar de forma ilimitada, ao sabor das conveniências
do governante, na intervenção de relações sociais, ou seja, a atuação policial pouco
respeitava os critérios de justiça e não se orientava por preceitos legais (Fyfe et alli,
1997:13). Por outro lado, em razão de sua instrumentalidade política, a polícia era
constantemente acionada para a realização de atividades que não estavam ligadas ao
controle do crime, motivo pelo qual os reformadores entenderam necessária a restrição
do mandato policial. O mandato policial deveria estar limitado ao que fosse
determinado em lei, no tocante ao controle do crime.
Albert J. Reiss Jr. (2003:72), ao tratar, em 1992, da Organização da Polícia no
Século XX, divide o processo de reforma em duas etapas. Segundo o autor, na primeira
etapa os membros estavam comprometidos com uma comunidade profissional cujas
normas de subordinação e trabalho os colocavam à parte da comunidade que
policiavam, o que se deu com a substituição do critério de indicação e promoção de
oficiais por padrões de mérito; o critério de distribuição racional, por demanda, do
serviço policial substituiu o critério que respondia a necessidades políticas. Na segunda
etapa foi reestruturada a cobertura territorial do policiamento, graças às inovações
tecnológicas presenciadas no século XX, as quais viabilizaram a substituição da
patrulha a pé pela patrulha motorizada e a centralização do comando (Reiss in Tonry e
Morris, 2003). Reiss (2003:86-88) diz que essa burocratização, parcial e seletiva, dos
departamentos de polícia, trouxe conseqüências como a neutralidade política e a
confiabilidade legal da polícia, ao estabelecer um sistema hierárquico de comando e
66
As tentativas iniciais de reforma nos departamentos de polícia municipais da América, no final do
século XIX, não alcançaram o propósito de libertar a polícia das influências políticas municipais (Fyfe et
alli, 1997:12). O Departamento de Polícia de Boston [Boston Police Department], no período de 1906 a
1918, foi um dos primeiros a se aproximar dos ideais propostos pelos reformadores (Fyfe et alli, 1997).
55
67
Vollmer foi Chefe de Polícia em Berkeley, California, entre 1905 e 1932, tendo tirado licença desse
departamento por um ano para assumir o Departamento de Polícia de Los Angeles (Fyfe et alli, 1997:13).
68
O referido autor foi Chefe de Polícia em Fullerton, Califórnia, no ano de 1925, e em Wichita, Kansas,
entre 1928 e 1939; e superintendente do Departamento de Polícia de Chicago, de 1960 a 1967 (Fyfe et
alli, 1997:13-14).
56
69
Estudos conduzidos nos anos 1970 – Kansas City, Missouri, Preventive Patrol Experiment, entre outros
- concluíram que estratégias policiais tradicionais, como o patrulhamento aleatório por uma polícia
motorizada e a resposta rápida por chamada de serviço, não são, em geral, táticas de controle do crime
muito eficazes, além de não afetarem o sentimento de medo do crime do cidadão, revelando o impacto
limitado dessas inovações (Fyfe et alli, 1997:19). No mesmo sentido os estudos patrocinados pelo
Instituto Nacional de Justiça (National Intitute of Justice) para diferenciar as estratégias de resposta
utilizadas pelos departamentos de polícia em Wilmington, Delaware, e Birmingham, Alabama (Fyfe et
alli, 1997).
57
70
Bayley (2003:539-576), no texto Comparando a organização das polícias em países de língua inglesa,
descreve o grande número de forças policiais autônomas nos EUA; o número estimado para 1987 foi de
15.118, constituído por 11.989 forças locais, 3.080 departamentos de xerife dos condados e quarenta e
nove forças estaduais. Trata-se de um sistema de forças policiais autônomas, com propósitos gerais, o que
significa dizer que elas são criadas, apoiadas e dirigidas por unidades de governo que não podem ser
controladas pelas demais unidades de governo (Bayley, 2003:541). O autor (2003:550) atenta para o fato
de que, apesar da enorme variação no tamanho das forças policiais, a estrutura formal de comando é
invariável.
58
71
Uma questão é colocada por Bayley (2001:22) ao tratar da legitimidade: Quando a força policial perde
legitimidade e não é mais aceita pelos membros da comunidade ela deixa de constituir uma força policial?
Segundo o autor, ela não deixa de ser uma força policial imediatamente, o que explica a existência de
uma força policial inaceitável, ilegítima, não-autorizada, e até mesmo ilegal.
72
A Comissão Kerner, 1967-1968, identificou entre as causas principais desses distúrbios o racismo
institucional e a ação da polícia em relação às comunidades minoritárias (Fyfe et alli, 1997:16-17).
73
Fyfe et al (1997:18-19) citam, ainda, os estudos produzidos por William Westley (1951, publicado em
1970), Wayne La Fave (1965), Jerome H. Skolnick (1966), Artur Niederhoffer (1966), Egon Bittner
(1970), James Q. Wilson (1968), e Albert J. Reiss Jr. (1971), os quais proporcionam descrições e análises
do real trabalho policial.
74
Ao falar da freqüência com que as minorias étnicas e raciais, os pobres que habitavam as favelas
urbanas e os jovens em geral eram alvos de abusos policiais, Bittner (2003:102-105) deixa claro que o
tratamento diferenciado, ou preconceituoso, dado pela polícia às pessoas pelo simples fato de pertencerem
a determinados segmentos da sociedade – confirmando que a atividade policial é muito mais direcionada
a quem a pessoa é do que ao que ela faz – coloca-se desde a criação da polícia, justificada no controle das
chamadas “classes perigosas”.
60
as quais ele se depara – foram esquecidas, gerando um grande “vazio” entre o que se
espera do policial e aquilo que ele realmente faz.
Bittner (2003:97), demonstrando estar equivocado o entendimento de que a
discricionariedade policial pode ser eliminada ou sofrer restrição significativa por meio
de um controle interno rígido, afirma que, ao invés de tentar derivar o papel da polícia
dos ideais pragmáticos, dever-se-ia procurar discernir esse papel olhando para aquelas
condições da realidade e para as circunstâncias práticas em que, presumivelmente, as
fórmulas devem ser aplicadas. A atenção às condições da realidade, de que fala o autor
(2003:97-98), teria o condão de permitir ao policial a percepção das exigências e
necessidades das comunidades as quais ele deve servir, além de facilitar a adequação de
suas práticas aos anseios morais da política democrática.
Muniz (1999:152) destaca a impropriedade da crença incondicional na capacidade
normativa dos regulamentos ao presumir que o estrito cumprimento do estabelecido
formalmente em lei seria capaz de substituir a contingência, o acaso e o imponderável,
restringindo a esfera de tomada de decisão do policial, ou seja, desautorizando o recurso
à discrição e à autoexecutoriedade essenciais à prática cotidiana do policial. No entanto,
essa desautorização, formal, ao recurso da discricionariedade, em nome da obediência e
da disciplina, não altera o dia-a-dia da atuação policial, pois não afasta a necessidade da
tomada de decisão em suas incursões no meio social – mesmo para invocar as leis
criminais o policial precisar saber se o caso concreto carece de tal intervenção, o que o
obriga a tomar uma decisão. Logo, verifica-se um antagonismo entre o que determinam
os regulamentos internos – ou melhor, o que não permitem os regulamentos internos – e
o que acontece na prática policial diária, antagonismo esse que contribui para a
formação e o fortalecimento das ações policiais de baixa visibilidade. Essas ações são
toleradas pelo comando, desde que, internamente, os policiais mantenham-se
disciplinados e obedientes aos regulamentos.
Referindo-se ao que Bittner chamou de literal police work – trabalho literal da
polícia - George L. Kelling (1999:1-2), no texto “Broken Windows” and Police
Descrition, -, teceu comentários sobre a necessidade de conhecer o verdadeiro sentido
do trabalho policial:
“Such specious thinking has been in place since the 1950s (e.g., just a little
more inservice training, a slightly tighter span of control, a few more general
62
orders or rules, more militant internal affairs units, improved rewards and
punishments, improved or more representative recruitment, greater
militarization of recruit training). Instead, police officials need to focus on the
substantive content of police work; find and delineate the means to conduct
police work morally, legally, skillfully, and effectively; then structure and
administer departments on the basis of this literal work and not a fictionalized
view of police work. In other words, a clear definition and description of
quality policing is needed around which appropriate organizations and
administrations can be developed”.
Kelling (1999:13) diz que um estudo realizado na década de 1950 pela American
Bar Foundation enfraqueceu a idéia, sustentada por autores como O. W. Wilson, de que
os agentes policiais não deveriam pensar antes de agir, mas sim seguir as ordens
contidas na lei e nos regulamentos internos dos departamentos quase que
automaticamente. O referido estudo mostrou que o trabalho policial é complexo, a
discricionariedade é o cerne da função policial e que a polícia não usa o código penal
para resolver grande parte dos problemas, sugerindo que os mecanismos de controle que
permeavam as organizações policiais – especialmente os códigos e regulamentos,
supervisão, e estrutura e treinamento militares – eram incompatíveis com os problemas
que a polícia se deparava diariamente e com a realidade dos serviços policiais
(1999:13). O autor (1999:13) afirma, também, que apesar de ter sido reduzida,
substancialmente, a influência da corrupção política sobre os departamentos, a estratégia
policial extremamente preocupada com o controle obrigou os agentes policiais a
realizarem seu trabalho por conta própria.
Analisando o quadro que se instalara naquelas décadas – 1960 e 1970 -, Fyfe et alli
(1997:20) reconhecem que os administradores de polícia, deparando-se com recursos
limitados e um número cada vez maior de solicitações de serviço, começaram, em 1980,
a modificar a orientação de seus departamentos, adotando filosofia e práticas que
enfatizam a prevenção do crime, a solução de problemas e a participação da
comunidade. A preocupação com o apoio e a cooperação do público no controle do
crime e da desordem (Fyfe et alli, 1997:20), no momento em que se constatou a
necessidade de envolver os cidadãos na produção da ordem, integra a proposta de
mudança do policiamento comunitário, resultante das exigências feitas pelas sociedades
democráticas no tocante à responsabilidade pela produção de segurança e às relações
entre polícia e sociedade. Os anos de 1980 são apontados como o marco inicial da
predisposição, dos administradores de polícia norte-americanos, para essas mudanças, o
63
que, certamente, não seria possível – ou seria bem mais difícil – se não houvesse
transformações sociais e não começassem a ser desenvolvidos estudos e pesquisas sobre
a realidade do policiamento nas décadas anteriores.
Nesse cenário de crise e contradições, começava a ser proposta a reformulação de
algumas perspectivas criadas e sustentadas pelo modelo profissional de policiamento. A
partir daquele momento – início dos anos 1960 –, tem-se o efetivo questionamento da
ênfase no controle do crime, da preocupação excessiva com a organização interna, da
centralização e do controle, do isolamento da polícia em relação à comunidade e das
arbitrariedades cometidas pelos policiais contra a população. A expansão dos ideais
democráticos fazia surgir movimentos em defesa dos direitos do cidadão. Os atos
arbitrários e violentos da polícia contra a população não poderiam ser mais tolerados,
pois a polícia, antes mesmo de fazer respeitar os direitos do cidadão, deveria ver esses
direitos como um limite às suas ações.
76
A análise das limitações do policiamento profissional ou tradicional no tocante, entre outros fatores, à
priorização do controle do crime foi iniciada no capítulo anterior. Para uma melhor compreensão das
propostas do modelo comunitário, a menção a tais limitações permeará o presente capítulo.
77
A leitura conservadora do crime, da violência e do criminoso foi questionada, inicialmente, pela teoria
estrutural-funcionalista do “desvio” e da “anomia”, ou negação do princípio do bem e do mal – Durkheim
e Merton. Esta teoria, segundo Baratta (2002:59), “se situa na origem de uma profunda revisão crítica da
criminologia de orientação biológica e caracterológica”. O posicionamento de Durkheim e Merton é
problematizado por Velho (1981:12-21). Velho (1981:24) destaca a contribuição do grupo dos chamados
interacionistas – Becker, Kai Erikson e John Kitsuse -, que perceberam o comportamento “desviante”
como um problema político.
66
relações com a mecânica do poder, etc. Tais estudos permitiram identificar limitações e
efeitos perversos derivados de uma visão de mundo centrada na eficácia de um “estado
penal máximo” e “policialesco” que, contrariando as evidências empíricas, tendia, por
um lado, a desconsiderar o consentimento e a confiança pública como condição para a
ação legal, legítima e qualificada de polícia; e por outro, desqualificar o cidadão como
um ator decisivo no processo mesmo de produção e sustentação da ordem social.
Nesse contexto de ruptura de mentalidades, de lutas e pressões pela ampliação,
preservação e consolidação dos direitos civis, sociais e políticos, de procura por
respostas cientificamente fundamentadas, surgiam os movimentos iniciais de mudanças
organizacionais nas polícias que intentavam a democratização de suas “doutrinas”,
expedientes e práticas.78 Ganha força a formulação e implantação, ainda em caráter
experimental, de programas que caminhassem rumo a uma filosofia comunitária e a
uma estratégia participativa que incluía outros atores além dos policiais na preservação
da ordem pública e no provimento de segurança pública. Todos esses fatores justificam
o surgimento de iniciativas, sobretudo na década de 1970 do século passado, nos EUA e
no Canadá, que conformariam o chamado “Policiamento Comunitário”, cujas
necessidades de adequações às realidades comunitárias distintas e singulares
possibilitaram uma infinidade de variações em torno do desenho desta alternativa.79
No Brasil, com a transição democrática, iniciada nos primeiros anos de 1980 e
consolidada pela Constituição Democrática de 1988, a filosofia e as funções policiais
passaram a ser repensadas por alguns governantes e administradores de polícia. A força
que ganhava o discurso dos direitos humanos na década de 1980, em grande parte
proveniente das pressões exercidas por segmentos políticos e pela sociedade civil,
favorecia a adoção de iniciativas dos governos estaduais no tocante à democratização do
setor de segurança pública. Como salienta Nazareth Cerqueira (2001:86), no livro Do
Patrulhamento ao Policiamento Comunitário, “no Brasil não houve estudos ou
reflexões acadêmicas sobre o policiamento comunitário anteriores à sua aplicação pelas
78
Nos EUA, em um momento (décadas de 1960 e 1970) tornava-se inadiável o desenvolvimento dos
primeiros programas de policiamento comunitário, uma proposta alternativa para a redefinição da
filosofia e das estratégias policiais. Segundo Rosenbaum (2002:29-30), no Canadá (década de 1980), as
primeiras tentativas de experimentação do modelo comunitário, apesar de não terem surgido das mesmas
condições de crise urbana verificadas nos EUA, seguiu um modelo similar de desenvolvimento.
79
A adaptação do policiamento comunitário às características e problemas específicos de cada
comunidade constitui um dos pontos cruciais do modelo. Torna-se compreensível, portanto, a utilização
de denominações variadas que o modelo assume – “Vigilância do Bairro”, “Patrulha a Pé”, “Polícia
Interativa”, “Polícia Cidadã” etc - conforme o lugar em que for implementado.
67
80
As tentativas iniciais, no sentido de adotar uma visão comunitária para as polícias militares, se deram
no primeiro governo Brizola (1983-1986) no Rio de Janeiro. Porém, somente no final de 1994 – final da
segunda gestão Brizola no estado - com a implementação do policiamento comunitário em Copacabana,
seriam verificadas mudanças substanciais. Mostrou-se decisiva a contribuição do Comandante da PMERJ
– Nazareth Cerqueira – nos dois mandatos de Brizola no estado.
68
das formas de consegui-lo. Como salientam Moore et alli (2000:247), no texto National
Evaluation of the COPS Program, o policiamento comunitário é mais do que uma
coleção de táticas, propondo-se a modificar substancialmente uma agência policial.
A expressão “comunitária” pode ser utilizada também, segundo Moore (2003),
como uma forma de redefinir tanto os fins como os meios do policiamento, no tocante à
“construção” de comunidades democráticas, seguras e tolerantes. A redução do crime
não é mais, de acordo com esse entendimento, o único objetivo da polícia, tornando-se
importante a garantia dos direitos democráticos dos cidadãos, a restauração da
civilidade nos espaços públicos e a redução do medo (Moore, 2003). Por mais que a
expressão polícia comunitária pareça redundante para alguns, não há excesso no termo,
mas sim o intuito de chamar a atenção do poder público, dos administradores de polícia
e policiais de ponta, das agências públicas e privadas, da sociedade civil para a
necessidade das mudanças na filosofia e nas estratégias do policiamento convencional.
Desde logo cabe salientar que o policiamento comunitário não surge com a
pretensão de solucionar todos os problemas relacionados à segurança pública. Ao
contrário, pode-se afirmar, nos termos do autor Moore (2003:139-144), que o modelo
ganha força mais como uma possível alternativa para lidar com algumas questões
policiais estruturais tais como a baixa confiança pública, a pouca cooperação do
público, o padrão reativo do policiamento convencional, a dissociação entre a realidade
dos crimes e violências vividos pelos cidadãos e o planejamento e alocação dos recursos
policiais, a sensação de insegurança, a precariedade ou inexistência de instrumentos de
controle social sobre a ação de polícia, etc, as quais afetam a eficácia, a eficiência e a
efetividade da ação policial no controle do crime. Em termos mais amplos, pretendia-se
com a proposta do policiamento comunitário um esforço de adequação do dever ser da
atuação policial aos anseios do Estado Democrático de Direito, ou seja, à necessidade
da percepção de uma ordem pública construída com e para a sociedade. A conformidade
do trabalho policial com as perspectivas democráticas pressupõe, portanto, uma
redefinição dos valores, das estruturas organizacionais e das funções da polícia, o que,
conforme destacara Muniz (1999:81-82), ultrapassa a esfera da inovação institucional e
envolve também a reinvenção da identidade policial. Esse processo de reconstrução da
identidade policial, tratado pela autora (1999), está relacionado à necessidade de
69
81
Sobre a discussão acerca da impossibilidade de extinguir o crime e a violência da sociedade, cf. Bittner
(2003:141).
82
Brodeur (2002:265) afirma que uma definição “objetiva” de segurança “razoável” seria possível a partir
da comparação de níveis de probabilidade empírica de uma pessoa ser vítima de crime ou desordem grave
com níveis de probabilidade de ser vítima, mas não de crimes de nenhuma ordem (e.g., riscos à saúde).
70
83
O estudo de algumas experiências de policiamento comunitário, nos Estados Unidos e no Brasil,
perquirirá quais desses prováveis efeitos foram de fato demonstrados, e com que freqüência.
71
84
A necessidade de cooperação entre os mecanismos de controle social formal e informal, essencial à
democratização das políticas de segurança pública e da polícia, discutida no capítulo anterior, permeará
todo o texto.
72
86
Ao analisar os elementos do policiamento comunitário, a compreensão dessa interdependência de
fatores poderá ser melhor compreendida.
74
Pelo que foi dito acima, pode-se considerar que as palavras iniciais sobre a
filosofia e as estratégias que vêm sendo introduzidas pelo policiamento comunitário
apontam para um novo paradigma, para o comprometimento com os valores
democráticos, a ousadia em buscar mudanças significativas no pensar e no agir das
instituições policiais modernas. Um modelo de policiamento que procura superar os
vícios existentes no policiamento convencional. O modelo comunitário propõe o
questionamento da filosofia adotada pelos departamentos de polícia tradicionais, da
priorização de estratégias repressivas e da adoção de estruturas organizacionais quase
militares, além de atentar para a limitação das atividades policiais no controle do crime
e para a responsabilização da polícia frente à sociedade – controle positivo sobre a
atividade policial. Entretanto, valores culturais arraigados na consciência coletiva por
77
87
Ao avaliarem o policiamento comunitário em dez cidades norte-americanas, Moore et alli (2000:266-
267) afirmam que muitos administradores de polícia tiraram vantagem do fato de se esforçarem para
influenciar as mudanças culturais. As contribuições dos administradores de polícia, e dos governantes,
para as mudanças efetivas serão discutidas adiante.
78
As questões trazidas pelo policiamento comunitário não são uma novidade. Tal
como revelam Skolnick e Bayley (2002:57), suas origens remontam ao início do século
XX, quando apareceu em diversos países como um meio alternativo à obtenção dos
objetivos do policiamento. Seu crescimento ocorreu, conforme os autores (2002), a
partir da concepção de que a polícia poderia responder de modo sensível e apropriado
aos cidadãos e às comunidades.
No que se refere à história das polícias americanas, cogita-se a hipótese de o
Comissário de Polícia de Nova York de 1914 a 1919, Arthur Woods, ter sido o primeiro
americano a propor uma versão comunitária do policiamento ao apresentar, em uma
série de conferências na Universidade de Yale, a idéia de se incutir nas camadas rasas
do policiamento uma percepção da importância social, da dignidade e do valor público
do trabalho do policial (Skolnick e Bayley, 2002). Tal preocupação visava o
88
O “policiamento comunitário” e “policiamento orientado para a solução de problemas” serão
mencionados no presente texto como conceitos sinônimos, tendo em vista a sua grande semelhança
prática.
79
89
Nazareth Cerqueira (2001:36), no texto Do Patrulhamento ao Policiamento Comunitário, faz menção
ao autor canadense Barry Leigton, o qual, ao estudar o policiamento comunitário no Canadá, teria visto na
Polícia Metropolitana de Londres as verdadeiras origens do policiamento comunitário.
80
90
As contribuições e limitações das “Unidades de Relações Comunitárias” serão retomadas no próximo
capítulo, quando forem estudadas algumas experiências de policiamento comunitário nos EUA.
91
Sobre as táticas utilizadas pelo policiamento em grupo, e que são encontradas no policiamento
comunitário, ver Sherman et al apud Brodeur (2002:60-61).
81
92
A análise de algumas experiências de policiamento comunitário, no capítulo 3, permitirá a identificação
dessa e outras resistências internas como um grande obstáculo à implementação e ao sucesso do
policiamento comunitário.
83
94
O “Plano de Desenvolvimento Econômico e Social para o período de 1984 a 1987” previa as medidas
essenciais à democratização das políticas de segurança pública e das polícias do estado nos tópicos “da
Justiça e dos Direitos Humanos” e “Justiça, Segurança e Direitos do Cidadão” (Cerqueira, 2001:165).
86
95
A experiência de policiamento comunitário de Belo Horizonte será analisada no próximo capítulo,
tomando-se por base a dissertação de mestrado de Elenice de Souza (1999), Polícia Comunitária em Belo
Horizonte: avaliação e perspectivas de um programa de Segurança Pública.
87
96
Texto produzido com base na segunda etapa da pesquisa realizada pelo Instituto Latino-Americano das
Nações Unidas para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Illanud), em 2001, com o
financiamento da Fundação Ford. Túlio Kahn foi o pesquisador responsável por essa etapa. O autor
coordenou o grupo de pesquisa.
97
Salienta Kahn (2002:71) que, entre setembro 1997 e maio de 2000, foram instaladas 239 bases
comunitárias de segurança no estado, sendo 44 na capital, 39 na grande São Paulo e 158 no interior.
98
Em abril de 2001 foi lançado o Concurso Polícia Comunitária Motorola, organizado pela Motorola e
pelo Conselho Nacional de Comandantes Gerais das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares,
com a finalidade de premiar algumas das inúmeras experiências desenvolvidas em vários estados
brasileiros (Policiamento Comunitário: experiências no Brasil 2000-2002 – São Paulo: Página Viva,
2002). No referido concurso, que teve os objetivos de disseminar a filosofia do policiamento comunitário
e reconhecer projetos que obtiveram resultados expressivos e promover sua divulgação como exemplos a
seguir, foram premiados três projetos: o de Vitória (ES), primeiro lugar; Macapá, segundo lugar; e São
Paulo (SP), que ficou em terceiro lugar.
88
102
Sobre as atividades adotadas nesses programas, cf Bittner (2003:208-211; 277-278).
90
103
As chamadas “Unidades de Relações Comunitárias” voltarão a ser analisadas no capítulo 3, no sentido
de apreender suas limitações e indicar que logo depois da sua criação seriam implantados programas de
policiamento comunitário nos EUA.
104
Fora observado no capítulo anterior que, no Brasil, governantes e administradores de polícia
freqüentemente apresentam propostas de mudanças para as polícias como uma forma de melhorar a
imagem da instituição, sem que, por trás disso, haja o interesse de promover mudanças substanciais na
filosofia, na organização e nas estratégias policiais. Cf. Soares (2000:128-129).
91
105
Skolnick e Bayley (2002:17) citam um seminário de executivos realizado no Departamento de Polícia
de Houston, onde os participantes identificaram trinta elementos para a definição de um “policiamento
orientado para o bairro”, que incluíam criar um sentimento de confiança entre a polícia e os cidadãos,
alterar o papel da polícia, atribuir novas responsabilidades aos policiais e defini-las, encorajar a aceitação
de responsabilidade, desenvolver intenções apropriadas, coordenar a prestação de serviços policiais e
reconhecer limitações fiscais.
92
Foram apresentadas, até aqui, algumas razões pelas quais a polícia não pode
prescindir do envolvimento da comunidade no que tange à produção de segurança
pública. A mudança significativa no papel da polícia e da sociedade no que se refere a
essa questão pode ser melhor compreendida a partir da seguinte observação:
106
Um dos fomentadores do policiamento profissional nos EUA, O.W.Wilson entendia que se a polícia
estivesse “em todo lugar”, realizando o patrulhamento motorizado aleatório, poderia atender aos
chamados da população e gerar medo nos criminosos (Fyfe et alli, 1997:14).
107
Bittner (2003:95) reporta-se a David Hume para destacar a dificuldade de se promover essa transição
do que deve existir para o que existe. Uma das preocupações dos pesquisadores, no momento – década de
1960 - em que se intensificavam os estudos, nos EUA, sobre o real papel da polícia, foi a grande lacuna
existente entre o que se esperava da polícia e aquilo que ela realmente fazia (Bittner, 2003:98).
108
Dias (2003:49) ressalta que há sempre o risco de que a polícia venha a omitir ou manipular
informações em função de seus próprios interesses.
109
De acordo com os autores (1994:85), comunidade pode significar coisas muito diferentes para pessoas
diferentes.
110
Os autores não se referem a outras instituições de controle social que parecem ser tão importantes
quanto as primeiras, quais sejam a Escola e a Igreja.
95
cada um; 2) o controle exercido pela família, importante para a formação inicial da
consciência e um contínuo reforço dos valores democráticos; 3) o controle exercido
pelos vizinhos, ao apoiarem as normas necessárias ao desenvolvimento de um
comportamento positivo (Trojanowicz e Bucqueroux, 1994:85-86). A redução da
influência exercida pela família e pelos vizinhos, nos dias de hoje, tem implicado na
dependência maior do controle externo, exercido pelo sistema de segurança pública e
justiça criminal, em detrimento do controle interno (Trojanowicz e Bucqueroux,
1994:86).
Trojanowicz e Bucqueroux (1994) destacam, ainda, a necessidade de se distinguir
a “comunidade geográfica” da “comunidade de interesse”. Esta “comunidade” pode ser
criada pelo crime, a desordem e o medo do crime, no momento em que os que residem,
ou, de alguma forma, estão presentes em determinado espaço geográfico diariamente,
trabalharem em conjunto com a polícia na tentativa de adotar medidas capazes de
melhorar a qualidade de vida local (Trojanowicz e Bucqueroux, 1994). A criação da
chamada “comunidade de interesse” torna-se essencial ao policiamento comunitário na
medida em que permite aos policiais “penetrar” na comunidade geográfica e, em
conjunto com a população, as instituições e agências locais, desenvolver estratégias
capazes de proporcionar uma melhor qualidade de vida às pessoas.
No policiamento comunitário, reafirma-se que a comunidade não é apenas um
meio para se alcançar os objetivos do policiamento – entre os quais o controle do crime,
da violência e da desordem -, passando a ser, principalmente, um objetivo a ser
alcançado pela polícia.111 Rosenbaum (2002:40) utiliza a teoria da desorganização
social para explicar que a atividade criminosa pode ser encorajada quando um bairro
está socialmente desorganizado, não conseguindo criar e sustentar instituições locais.112
Um bairro é considerado socialmente desorganizado quando se mostra incapaz de
exercer o controle social informal eficaz sobre seus residentes e demais pessoas que o
freqüentam (Rosenbaum in Brodeur, 2002). Quando a comunidade possui índices
elevados de crime e desordem ou é considerada insegura, cabe à polícia buscar parcerias
com os cidadãos locais, instituições públicas, agências privadas etc, para que seja
encorajada a reorganização social ou construção da comunidade. O policial comunitário
111
Cf. Moore (2003:140).
112
Rosenbaum (2002:40) reporta-se ao trabalho de Clifford Shaw e Henry McKay (1942) para indicar a
origem da teoria da desorganização social.
96
115
Cf. Cerqueira (2001:29); Skolnick e Bayley (2002:24).
100
116
A crença de que um patrulhamento – motorizado - freqüente e visível a toda hora, em todos os bairros
da cidade, criaria uma sensação de segurança mostrou-se inconsistente no momento em que a crise do
modelo tradicional fez surgir experimentos e pesquisas sobre o modelo comunitário (Cerqueira, 2001:8-
21).
101
117
Isso se traduz na exigência, a todos os policiais de patrulha, de interação com os cidadãos, o que
depende do convencimento no sentido de utilizarem seu tempo livre para saírem de seus carros e trabalhar
com a comunidade na identificação e solução de problemas. O treinamento se encarregará de fazê-los
compreender tal necessidade. (Trojanowicz e Bucqueroux, 1994:138)
118
Tais postos recebem nomes distintos: minidelegacias em Detroit, “shopfronts” [alojados] ou escritórios
na Austrália, postos de polícia do bairro em Cingapura, “Koban” no Japão. (Skolnick e Bayley, 2002:24).
119
Uma questão controversa, e que será discutida nos capítulos 3 e 4, é a que diz respeito à possibilidade
ou não de as “rondas a pé” reduzirem as solicitações do público pelos serviços policiais. Segundo
Skolnick e Bayley (2002:28), muitas vezes as “rondas a pé” são vistas tão somente como uma forma de
redução do medo do crime, dada a presença constante dos policiais nas ruas.
103
O autor esclarece que a teoria das “janelas quebradas” não foi desenvolvida com a
intenção de dar qualquer sustentação ao discurso de “lei e ordem” ou “tolerância zero”.
Keeling acrescenta que sustentou exatamente o contrário, por considerar que a
expressão “tolerância zero” não tem credibilidade e consiste em puro fanatismo.
Costa (2004:162) destaca a analogia feita pelos autores Wilson e Kelling às janelas
quebradas nos seguintes termos:
“Se uma janela de um prédio é quebrada e não é consertada, todas as outras
janelas logo serão quebradas também(...) Uma janela deixada sem conserto é
um sinal de que ninguém se preocupa, e de que quebrar mais janelas não
custará nada”.
A analogia às “janelas quebradas” parece ter sido feita com o intuito de destacar
que o crime e a desordem poderiam ser reduzidos se a polícia começasse a agir sobre
seus prováveis complicadores – as áreas deterioradas -, lidando com problemas que,
quando negligenciados, tendem a tornar o ambiente ainda mais favorável ao
cometimento de crimes. As patrulhas a pé poderiam reduzir os “sinais de crime” e de
desordem, entre os quais: vandalismo, pichações, comportamento agressivo e violento,
mendigos pelas ruas, bicicletas guiadas perigosamente nas calçadas, bebedeiras em
público, música muito alta e pessoas dormindo em locais públicos (Wilson e kelling
apud Skolnick e Bayley, 2002:28). Sugere-se que a polícia atente para a preservação da
ordem pública em bairros inclinados à desorganização social, tentando restabelecer o
equilíbrio e, dessa forma, evitar que as pessoas “respeitáveis” – que seguem o código de
comportamento público daquela área – desistam de viver no local (Wilson e Kelling
apud Skolnick e Bayley, 2002).
104
120
Em 1993, Rudolph Giuliani, eleito prefeito de Nova York, deturpando as idéias de Wilson e Kelling,
implantou a política de “tolerância zero”, a qual enfatizava as práticas repressivas e admitia as hipóteses
mais variadas de arbitrariedades por parte da polícia (Costa, 2004:164-166). Kelling, comentando a
questão dos direitos civis e os abusos de autoridade por parte da polícia, afirma que boa parte dos
problemas surgidos decorre da falta de normas de conduta claras que disciplinem a ação policial (Costa,
2004:164-165)
105
contidas nas leis e regulamentos. Pelo que se pode inferir das observações de Bittner,
torna-se inadiável, em sociedades democráticas, o controle da atividade policial pela
comunidade. Não se trata de substituir os mecanismos de controle interno já existentes,
mas sim de considerar a responsabilização ou accountability essencial para assegurar a
qualidade dos serviços prestados pela polícia à população. De acordo com Cerqueira
(2001:27), diferentemente do modelo tradicional, onde os policiais respondem, dentro
da hierarquia paramilitar ou militar, ao seu chefe, não respondendo à comunidade, no
modelo comunitário a lealdade devida pelos policiais aos seus superiores hierárquicos
não pode preponderar sobre aquela devida à Constituição, aos Códigos Criminais e à
comunidade.121 Além disso, o controle externo da atividade policial poderia facilitar o
controle exercido internamente, na medida em que os superiores hierárquicos
questionassem junto à comunidade, conforme salienta Dias (2002:83), como o policial
de ponta está realizando seu trabalho.
Skolnick e Bayley (2002:29-32) afirmam que, se os policiais desejam obter apoio e
cooperação da comunidade, precisam estar preparados para ouvir o que a população tem
a dizer sobre as operações – incluindo-se as críticas -, prioridades estratégicas, enfoques
táticos, e, mesmo, sobre o comportamento dos policiais enquanto indivíduos. Do
contrário, o policiamento comunitário pode ser visto como “relações públicas”, não
sendo capaz de promover a aproximação entre polícia e comunidade (SKOLNICK &
BAYLEY, 2002:29-30).122
No tocante à “supervisão do público”, Skolnick e Bayley (2002:95) entendem que,
mesmo quando o policiamento comunitário é apenas retórico, ou não pode fazer muito
em relação à prevenção do crime, oportunidade de permitir o exame público das práticas
policiais é criada. Essa afirmação é justificada pelo fato de o policiamento comunitário,
121
Um valor fundamental da polícia canadense - anos de 1990 -, citada como parâmetro no tocante à
implantação do policiamento comunitário, sugere que o policial “é responsável perante a comunidade, de
maneira formal pelos mecanismos democráticos estabelecidos, assim como de maneira informal pelos
mecanismos de debate e de consulta” (Cerqueira, 2001:27)
122
Tem-se procurado criar, entre as forças policiais, um esquadrão para contatar e cooperar com grupos
cujas relações com a polícia costumam ser turbulentas, tais como os negros nos Estados Unidos, os
aborígenes na Austrália, os coreanos no Japão, os indianos e os afro-caribenhos na Grã-Bretanha, e os
homossexuais, em muitos lugares. Há exemplos, também, de cooperação da polícia – tanto os chefes de
delegacias locais como os policiais de ponta devem estar engajados nesse apoio - com grupos
estabelecidos e instituições que têm interesse de trabalhar contra o crime e na manutenção da ordem,
destacando-se a Grã-Bretanha, a Suécia, Japão, Cingapura, Houston, Santa Ana e Detroit (Skolnick e
Bayley, 2002:30).
108
anonimato acaba desaparecendo à medida que o policial passa a prestar seus serviços de
forma permanente em uma mesma comunidade, e procura estabelecer relações mais
próximas e formar parcerias com a população local.
A maior responsabilidade do policial comunitário perante a comunidade é
argumentada, ainda, com um dos elementos que justificam a existência da polícia em
sociedades democráticas: a legitimidade. Dias (2002:82) afirma que “a legitimidade e o
prestígio do policial diminuem o número de situações nas quais ele deve recorrer ao uso
da força para estabelecer sua autoridade”. Trata-se, segundo o referido autor (2002), de
um dos princípios básicos do “policiamento por consenso”.
Uma forma de ampliar o controle do trabalho policial, incluindo a sua
responsabilização perante a comunidade a qual os policiais prestam seus serviços, é
apontada por Skolnick e Bayley. Os chamados “Comitês Consultivos” são criados pelas
agências policiais para possibilitar o acesso do público às atividades da polícia
(Skolnick e Bayley, 2002:31-32).123
4 – DESCENTRALIZAÇÃO DO COMANDO
123
Na Grã-Bretanha estes Comitês especiais tinham o intuito de mobilizar a participação do público,
avaliar a opinião do consumidor a respeito dos serviços policiais, e comunicar informações que pudessem
ajudar os policiais a realizar seus deveres com mais eficácia (Skolnick e Bayley, 2002:31).
124
Observe-se que nem toda a descentralização pode ser considerada como um degrau em direção ao
policiamento comunitário.
110
125
Skolnick e Bayley (2002:93) reconhecem que o policiamento comunitário, não obstante as
ambigüidades do conceito de comunidade e às dificuldades encontradas por aqueles que desejam
implantar o programa, consiste, em sociedades democráticas, em uma aspiração central para o
policiamento. Porém, salientam os autores (2002) que não é suficiente utiliza-lo como um slogan.
113
público municipal, motivo pelo qual o policial pode tentar servir de ligação entre a
população e o órgão público responsável. Na segunda hipótese, os policiais podem
orientar as pessoas sobre os riscos de deixarem seus veículos na rua e intensificar o
patrulhamento nas ruas. O que há em comum nos encaminhamentos dos dois casos
mencionados? Na perspectiva comunitária, os esforços de redução desses crimes são
tentados por meio de um trabalho conjunto de prevenção ao delito entre a polícia e a
comunidade. A comunidade será mais do que uma importante fonte de informação para
a polícia. Isto porque trabalhará em conjunto com os policiais na identificação dos
problemas locais e viabilizará a eficácia das medidas preventivas ao seguir suas
orientações.
Veja que nos dois exemplos dados acima, a polícia poderia optar por outro
caminho, utilizando as estratégias convencionais de policiamento. O procedimento mais
corrente nestas estratégias seria os policiais aguardarem o chamado da população por
serviço, para tentar chegar ao local do chamado no momento em que o crime estiver
ocorrendo ou logo após o término de seus atos executórios, para alcançar o objetivo de
prender o infrator. Observe que a perspectiva policial reativa de priorizar a ação
mediante solicitação tem se mostrado pouco eficaz no tocante à prevenção do crime. Ao
enfatizar o que Skolnick e Bayley (2002:24) denominam de prestação de serviços
“ambulatoriais”, a polícia tende a agir somente sobre os efeitos dos crimes, não
conhecendo os problemas mais urgentes do bairro que poderiam ser considerados como
complicadores desses crimes. Isto de tal modo que o policiamento convencional,
segundo distintas pesquisas, parece contribuir muito pouco não só para a ampliação da
confiança pública na polícia, como também para diminuir o medo da população em
relação a esses crimes.
A análise das experiências em diferentes lugares facilita a avaliação dos programas
de policiamento comunitário - seus benefícios, suas limitações, dúvidas, dificuldades, e
seus avanços. Essa avaliação, por sua vez, possibilita a compreensão dos fatores que
normalmente impedem ou retardam mudanças significativas na polícia. As experiências
representam, portanto, uma importante fonte de aprendizado para os governantes e
administradores de polícia que se interessam pelo policiamento comunitário.
A experiência internacional trazida ao presente trabalho foi o programa de
policiamento comunitário implantado na cidade de Nova York (EUA). A escolha dessa
115
126
Skolnick e Bayley (2002:41-53) destacam vários exemplos relevantes: Austrália, Canadá, Noruega,
Suécia, Dinamarca, Finlândia, Japão e Cingapura.
127
De acordo com Musumeci et al (1996:14), o material didático utilizado nos cursos de policiamento
comunitário oferecidos pela Escola da Polícia Militar, assim como os manuais e “guias práticos” que
orientam a atuação dos policiais militares, são, em sua maioria, traduções integrais da literatura norte-
americana produzida pela Police Foundation de Washington, DC, pelo Vera Institute of Justice (NY) e
pelo Departamento de Polícia da cidade de Nova York. O livro Policiamento Comunitário: como
começar, tradução de Community policing: how to get started, de Trojanowicz e Bucqueroux, é um
exemplo disso. Conforme Cerqueira (2001:86), no Brasil, ao contrário do verificado nos Estados Unidos,
não houve estudos sobre o policiamento comunitário anteriores à sua aplicação pela polícia.
128
Musumeci et al (1996) mencionam que Nazareth Cerqueira foi o principal introdutor e defensor do
policiamento comunitário no Brasil. Cerqueira (1998) no livro A Polícia e os Direitos humanos
(1998:07), refere-se ao seu interesse, despertado em maio de 1994, de realizar no Brasil um curso sobre
direitos humanos para policiais. O autor (1998), então comandante da PMERJ, foi o principal responsável
pela vinda ao Brasil, em outubro de 1994, de especialistas internacionais e profissionais do Centro de
Direitos Humanos das Nações Unidas (Genebra), com a finalidade de educar e treinar os policiais em
direitos humanos. Nessa ocasião fora traduzido para o português o manual de direitos humanos elaborado
pelo referido centro.
116
Estados Unidos
129
Bittner (2003) analisa o contexto em que as hostilidades e insatisfações da sociedade americana
chegaram a níveis insustentáveis. No início da década de 1950 a imagem da polícia já se encontrava
bastante abalada, mas nos anos 1960 “segmentos inteiros da sociedade ergueram-se para dizer ‘fora com
os azuis’” (Bittner, 2003:278).
117
131
Um dos objetivos do policiamento profissional, ao prever que todo policial pode atender a qualquer
solicitação de serviço, não importando o local da ocorrência, é evitar a aproximação entre a polícia e o
público.
119
133
Bittner (2003:277) refere-se à origem dos programas de relações públicas na Europa e nos Estados
Unidos. Segundo o autor, nos 1950 os departamentos de polícia daqueles países realizavam campanhas de
relações públicas. A intenção, em um momento de ascensão da propaganda política e da publicidade
comercial, era “vender a polícia para as pessoas”.
134
A rotina dos policiais designados para a unidade concentrava-se em ações cotidianas, como proteger
pessoas que não tinham condições de fazer isso sozinhas, ou ajudar pessoas com ficha na polícia a
encontrar emprego ou lugar para morar (2003:280).
135
Bittner (2003:282) observa que o Tenente Andreotti foi um dos líderes, nos Estados Unidos, no tocante
às relações entre a polícia e à comunidade.
121
público não faziam parte do seu trabalho. As atribuições da polícia estavam limitadas ao
aspecto criminal, ao controle do crime por meio das estratégias repressivas.
Algumas perguntas podem ser feitas sobre a finalidade das Unidades de Relações
Comunitárias. As unidades foram criadas em razão da percepção, pelos administradores,
de que estavam sendo questionados os aspectos do trabalho policial? Qual a
importância das unidades para a redefinição, ou a ampliação, do mandato policial? A
observação de Bittner ajuda a responder a essas perguntas. O autor (2003) afirmou que
“o realismo exige o reconhecimento de que ainda existe a lacuna, entre o trabalho
policial e as relações com a comunidade, que se pretendia superar”. As atividades de
relações públicas não refletiam a forma como os policiais viam sua função, ou o que
eles consideravam como atribuição da polícia. Embora houvesse o interesse de diminuir
as hostilidades sociais em relação à polícia, os aspectos ligados ao exercício da função
policial, ou a extensão do mandato policial em sociedades democráticas permaneceu
intocada.136
Se as décadas de 60 e 70 do século passado podem ser caracterizadas como de
esgotamento do modelo profissional de polícia e de iniciativas voltadas para a
valorização da relação polícia e sociedade, a década de 1980 é vista por muitos autores
(Rosenbaum in Brodeur, 2002) como um período essencial para a expansão do
policiamento comunitário nos Estados Unidos. Nesse período foram introduzidos
programas de policiamento comunitário em várias cidades norte-americanas.137 Porém,
Skolnick e Bayley (2002:53) afirmaram, na década de 1980, que a maioria das forças
policiais municipais estava utilizando o “policiamento comunitário” mais para
“enfeitar” do que para transformar os procedimentos-padrão de operação.138 Ressaltam
os autores que, não obstante grande parte dos departamentos policiais já ter incorporado
muitas lições essenciais do policiamento comunitário, a maioria da população
americana ainda estava sendo muito pouco afetada por ele.
Nesse período floresciam os ideais de uma política de segurança pública centrada
na afirmação das funções de uma Polícia efetivamente democrática, que reconhecesse a
136
Dias (2003:26) fala que os programas de relações públicas não refletiam o trabalho da polícia nas ruas,
tratando-se apenas de campanhas de relações públicas.
137
Rosenbaum (2002:29) cita alguns programas experimentais de policiamento comunitário, e a variação
de suas denominações: “policiamento a pé” em Newark, New Jersey, e em Flint, Michigan; “policiamento
orientado para a solução de problemas”, em Newport News, Virginia.
138
Os autores (2002) apresentaram algumas iniciativas que consideraram notáveis, por estarem vencendo
grandes desafios – Detroit, Houston, Santa Ana, Newport News, condado de Baltimore.
122
140
Costa (2004:146) afirma que, desde o início da década de 1970, inúmeras mudanças institucionais têm
ocorrido, no sentido de alterar esse quadro. Em 1972, o NYPD adotou, sob a iniciativa do comissário
Patrick Murphy, normas de conduta para limitar o uso da força letal (Costa, 2004:155).
141
Outro problema que preocupava as autoridades políticas e administradores de polícia em Nova York
era a corrupção (Costa, 2004, pp. 146, 147).
142
Na época em que foi solicitada a pesquisa o CPOP estava funcionando em 37 distritos policiais
(McElroy, 2002:106). A cidade possuía 75 distritos policiais. Foi designado um pesquisador de campo em
130
tempo integral para cada distrito, por seis meses, com a atribuição de observar as atividades de cada um
dos membros da unidade e as condições problemáticas na comunidade (McElroy, 2002:106).
143
O grupo de pesquisa buscava, também, respostas para as questões que os acadêmicos haviam
levantado sobre o policiamento comunitário e o policiamento para a solução de problemas.
144
A corrupção constituía um tema de grande preocupação entre autoridades políticas e administradores
de polícia, o que se explica pelos constantes casos de corrupção nos quadros policiais, e noticiados na
imprensa.
131
ele trazia demonstra que a idéia de trabalhar com a comunidade não havia sensibilizado
os quadros do departamento (Costa, 2004).
Duas questões podem ser suscitadas no que tange às resistências internas à filosofia
e às estratégias do policiamento comunitário. A primeira delas está relacionada às
influências da cultura tradicional de policiamento sobre as percepções e crenças dos
policiais. O policiamento motorizado, uma prática institucionalizada no departamento
de polícia, ainda era visto por muitos policiais como a principal estratégia a ser utilizada
pela Polícia para lidar com o problema do crime. As reações à descentralização das
decisões, para que se conferisse ao policial de ponta a liberdade requerida pelas
estratégias do modelo comunitário, também são embasadas na cultura tradicional. Outra
questão que parece ter sido decisiva para a relutância dos policiais em aderir ao modelo
comunitário foi a dificuldade de encontrar mecanismos de controle adequados às novas
funções da polícia. McElroy (2002:108) destacou o desafio real a ser enfrentado pelos
supervisores e comandantes no desenvolvimento do programa – coordenando as
atividades dos policiais de ponta. Segundo o autor (2002:108-109), embora estivesse
claro que a maioria das técnicas de supervisão convencionais não era aplicável, não se
sabia exatamente quais as técnicas e habilidades mais apropriadas para os programas
comunitários de polícia.145
Na Divisão de Pessoal do departamento foram coletados dados sobre algumas
características demográficas dos policiais do CPOP (McElroy, 2002). Essa iniciativa
tinha o intuito de verificar como, e até que ponto, os policiais da amostra pesquisada
diferiam dos demais policiais (McElroy, 2002). Os pesquisadores também coletaram
dados sobre as reclamações civis e acusações de corrupção contra os policiais
analisados.146
De acordo com Costa (2004:161), o resultado dessa avaliação mostrou que a tarefa
de identificar os problemas locais foi facilmente atendida pelo programa, por meio do
145
Por isso, os pesquisadores se dedicaram em boa medida à observação dos sargentos e à discussão com
eles sobre os desafios colocados pela nova função e as táticas utilizadas como resposta (McElroy, 2002, p.
109).
146
Esses dados foram coletados junto ao Civilian Complaint Review Board [Quadro de Revisão das
Reclamações Civis], órgão encarregado de investigar alegações de desvio de conduta envolvendo o uso
de força desnecessária, abuso de autoridade, descortesia e linguagem ofensiva (McElroy, 2002:109;
Costa, 2004:167-168). Costa (2004:168) ressalta que tal órgão não tem autoridade para impor sanções
disciplinares sobre o policial nem para processar judicialmente aquele que esteja envolvido em crime.
Caberia ao Conselho Diretor do CCRB, quando houvesse evidência de desvio de conduta policial,
encaminhar o caso ao Comissário de Polícia, recomendando as medidas disciplinares cabíveis (Costa,
2004).
132
147
Para descrever os esforços dos policiais em alcançar os objetivos do programa a pesquisa recorreu a
dois mecanismos (McElroy, 2002:106-107). O primeiro consistiu no acompanhamento das atividades
realizadas pelos policiais durante suas rondas (McElroy, 2002:107). O outro meio de análise englobava a
consideração das percepções e avaliações dos residentes da comunidade (McElroy, 2002). Além da
pesquisa de campo em cada uma das rondas, os pesquisadores entrevistavam os policiais e os líderes
comunitários de cada um dos distritos (McElroy, 2002).
133
148
Aumentavam as pressões sobre o Dinkins, primeiro prefeito negro de Nova York, eleito em 1989 com
uma proposta política que exigia uma aproximação maior entre polícia e sociedade, e sobre o comissário
de polícia Brown, o qual havia priorizado o programa de policiamento comunitário (Costa, 2004:185-
186).
134
149
McElroy (2002:111) entendeu ser recomendável pesquisas que ajudem a definir os passos que levam
aos objetivos da agência policial e a identificar os marcadores realistas provisórios que indiquem o
progresso desses passos. Essas pesquisas precisariam abordar também o que está realmente sendo feito no
campo, e explicar como e por que ela se distanciou do projeto do programa (McElroy, 2002). As
informações obtidas nas pesquisas vão permitir aos administradores do programa direcionar os recursos
para remover os obstáculos à implementação, ou revisar o projeto do programa para tornar mais viável
sua implementação (McElroy, 2002).
135
comunidades locais, e discute um enfoque apropriado para avaliar cada caso.150 Logo,
os mecanismos convencionais de avaliação mostram-se insuficientes para a busca de
respostas sobre o processo de implantação do programa.
150
Shearing propõe a construção de um processo de reflexão em que as pessoas pudessem o tempo todo
ver o que estão fazendo, como uma espécie de processo de retorno [feedback] das informações, que
permitisse a solução de problemas (McElroy, 2002:111).
151
Tal como evidencia McElroy (2002), a forma de coleta de dados – PPR – demonstrou possuir várias
limitações, tanto no que se refere à enumeração e hierarquização dos problemas identificados pelo policial
136
Enfim, para medir o desempenho real de cada policial em cada um dos problemas
identificados, os pesquisadores fizeram uso de um modelo normativo chamado de “boa
solução de problema” (McElroy, 2002:113). Esse modelo avaliava a adequação da
identificação do problema e da análise, o desenvolvimento da estratégia, a
implementação da estratégia, e o envolvimento da comunidade no processo.
de ponta, e planejamento das estratégias a serem adotadas, quanto no que tange à avaliação do
desempenho do policial comunitário.
152
Segundo McElroy (2002:114), para alguns problemas, tais como crimes de rua convencionais, os
dados que descrevem sua importância e suas características são coletados rotineiramente. Outros
problemas, no entanto, como a maioria dos problemas de qualidade de vida, não são descritos com tanta
facilidade.
137
153
McElroy (2002:116) afirma que procurou, com os demais pesquisadores, comparar as estatísticas entre
os distritos em que o programa estava operando e aqueles nos quais ele ainda não havia começado a
operar na época da pesquisa.
154
O autor (2002:116) ressalta que o grupo de pesquisa não tinha como controlar a qualidade de
implementação nos distritos com o programa, nem como controlar os fatores externos que podiam ter
138
Diante do exposto, McElroy (2002) constatou que o programa iria demorar algum
tempo antes que a implementação alcançasse um nível razoável de eficácia e antes que
seus efeitos intermediários fossem visíveis na comunidade. Segundo ele, na época da
pesquisa não estavam disponíveis nem os dados básicos nem o tempo necessário para
um teste adequado dos efeitos do CPOP sobre o volume e as formas do crime de rua.
Uma das principais preocupações da pesquisa, segundo McElroy (2002), era saber
como o programa estava sendo implantado nos bairros. Os pesquisadores preferiram
coletar informações sobre as percepções da comunidade fazendo entrevistas com os
líderes comunitários, embora considerassem importantes as percepções de comerciantes
e residentes (McElroy, 2002:116-117). Tal escolha foi justificada pelo fato de as
pessoas envolvidas com os grupos comunitários terem uma perspectiva mais ampla
sobre os problemas comunitários e conhecerem a natureza e a qualidade das operações
policiais locais (McElroy, 2002:117).
Os pesquisadores e administradores públicos queriam averiguar as mudanças nos
níveis de medo e descontentamento (McElroy, 2002). Queriam, também, perceber a
seriedade dos problemas previamente identificados e a avaliação do público sobre a
qualidade dos serviços policiais (McElroy, 2002).
As observações feitas por McElroy destacam a finalidade dos pesquisadores em
perquirir, junto à população dos bairros beneficiados pelo programa, as possíveis
mudanças no nível de satisfação do público em relação à Polícia. Este constitui,
conforme referido anteriormente, um dos pontos cruciais para a continuidade do
programa de policiamento comunitário.
afetado, independentemente, tanto os níveis de crime quanto a implementação nos distritos como tinha
sido planejada pelo CPOP.
139
155
Em 1999, a Polícia Militar de Minas Gerais planejou um programa mais amplo de policiamento
comunitário, denominado “Polícia de Resultados”, o qual é analisado por Beato (2002:118-162).
140
156
Grupo de pesquisadores do Núcleo de pesquisa do Iser que, sob a coordenação de Leonarda Musumeci
e Jacqueline Muniz, ficou com a responsabilidade de monitorar o programa durante seu primeiro ano de
funcionamento. O referido grupo de pesquisa produziu, em 1996, o relatório final de monitoramento,
Segurança Pública e Cidadania: A Experiência do Policiamento Comunitário em Copacabana (1994-95)
– relatório final de monitoramento qualitativo. Esse relatório é fonte principal do estudo da experiência
de Copacabana aqui.
157
Segundo Nazareth Cerqueira (2001:182), o programa de policiamento comunitário foi iniciado em
1991, no Grajaú, e expandido, em caráter experimental, por mais 14 bairros.
141
158
Cerqueira (2001:60-67) fala das possíveis razões para a intervenção do Exército na área de segurança
pública do Rio em 1994 – ou remilitarização. O autor (1996) cita dois fatos criminosos que teriam
acendido a discussão sobre a intervenção federal, levando a opinião pública a reclamar por mais
segurança no Rio e chamar pelas Forças Armadas. Soares (2000:112), por sua vez, menciona os
massacres da Candelária e de Vigário Geral, em 1993.
159
Cerqueira (2001:66) refere-se à ideologia militar que toma conta da opinião pública fluminense.
Segundo ele, coloca-se um impasse para a segurança pública no Rio: a violência crescente sugerindo
intervenções violentas e os recursos teóricos e ideológicos disponíveis para a definição de políticas
criminais impregnadas da ideologia da defesa social e da segurança nacional.
142
Pelo destacado por Musumeci et alli (1996) acima, percebe-se que havia a intenção
de envolver toda a unidade de polícia – 19ª BPM – nos esforços para a modificação da
organização e das estratégias usuais da polícia militar do Rio de Janeiro. Seria preciso
romper com as práticas convencionais, essencialmente repressivas, e começar a procurar
o apoio e a participação da comunidade na solução de problemas do bairro. Para tanto,
algumas crenças a respeito das atribuições e das responsabilidades dos policiais, desde
os superiores hierárquicos até os policiais de ponta, começariam a ser “desmentidas”.
O 19º Batalhão da PM, responsável pelo patrulhamento ostensivo – a pé e
motorizado – de toda a V Região Administrativa da cidade, que inclui Copacabana e
Leme, dispunha, em março de 1995, de 508 policiais para atender a um público de
aproximadamente 600 mil pessoas (Musumeci et al, 1996:18).163 Havia carência de 364
policiais de ponta e 92 sargentos, de acordo com o relatório do comandante da unidade
(Musumeci et alli, 1996). Percebe-se que uma das dificuldades encontradas pelo projeto,
desde a inauguração do programa, foi a carência de recursos, em especial os recursos
humanos. Ressalte-se que esse é um dos principais obstáculos à implantação do
policiamento comunitário no país. Normalmente, a falta de recursos acaba
interrompendo ou prejudicando a continuidade dos programas.
Os serviços externos do 19ºBPM estavam distribuídos por quatro companhias -
com um conjunto próprio de atribuições, soldados e oficiais superiores -, entre as quais
o Grupamento Especial de Turismo (GET), Cabinas da Orla e Policiamento
Comunitário (Musumeci et al, 1996:19). O bom desempenho do batalhão dependeria,
também, do suporte logístico-administrativo dado pelas divisões de serviço interno.
O 19° BPM dividiu Copacabana em seis setores, a partir dos postos da orla, mas
ordenados alfabeticamente na seqüência inversa, conforme relação abaixo:
163
Cerca de 600 mil pessoas, entre moradores, trabalhadores, consumidores e turistas, constituíam o
público-alvo do 19º Batalhão na época, segundo dados do IBGE, utilizados pelos pesquisadores
(Musumeci et al, 1996:18).
144
- Setor Alfa (Área 6), delimitado pelas ruas Francisco Sá, Bulhões de Carvalho e
Francisco Otaviano, na transição entre os bairros de Copacabana e Ipanema;
- Setor Bravo (Área 5), delimitado pelas ruas Francisco Sá e Xavier da Silveira;
- Setor Charlie (Área 4), delimitado nas ruas Xavier da Silveira e Santa Clara;
- Setor Delta (Área 3), delimitado nas ruas Santa Clara e República do Peru;
- Setor Echo (Área 2), entre a Rua República do Peru e o lado ímpar da Av.
Princesa Isabel;
- Setor Foxtrot (Área 1 – Leme), delimitado pelo lado par da Av. Princesa Isabel
e pelo Morro do Leme.
164
Posteriormente, esse número diminui para cinqüenta e quatro policiais, devido à morte de dois
policiais e a transferência de outros quatro. Isso levou a redistribuição parcial dos policiais por setor,
considerando-se as áreas mais problemáticas (Musumeci et al, 1996:20). Em maio de 1995, dois policiais
estavam trabalhando em serviços internos, permanecento cinqüenta e quatro (Musumeci et alli, 1996).
145
(Musumeci et alli, 1996). O fato de os policiais comunitários morarem longe das áreas
nas quais trabalhavam representaria um sério obstáculo à continuidade do programa.
Para o trabalho de supervisão dos policiais de ponta e administração interna do
programa foram envolvidos dois sargentos, um capitão e dois tenentes, os quais
acumulavam as funções no policiamento comunitário com outros serviços internos ou
externos (Musumeci et alli, 1996). O acúmulo de funções por esses policiais
representava mais um dos sinais da carência de recursos humanos no efetivo do
19°BPM. A carência de recursos, além de limitar a abrangência e a eficácia das
estratégias de prevenção ao crime e à desordem, foi um dos aspectos a contribuir para o
abandono paulatino do programa, em meados de 1995.
O trabalho cotidiano do policial da ronda no quarteirão deveria se concentrar no
contato com parceiros já existentes, na troca de informações, no levantamento de
problemas e na busca de novas parcerias (Musumeci et al, 1996:21). O policiamento
ostensivo continuou sendo sua atribuição, mas a interação com a comunidade deveria
representar a essência do seu trabalho. (Musumeci et al, 1996). Porém, muitas vezes o
trabalho propriamente comunitário ficava em segundo plano diante da existência de
situações emergenciais no subsetor (Musumeci et al, 1996:21-22). Além disso, os
policiais comunitários eram requisitados pelo comando para participar de “operações
especiais” fora dos seus quarteirões devido à carência de recursos humanos. (Musumeci
et al, 1996:22).165
O projeto previa a criação do sistema de pastas – para cada subsetor haveria uma
pasta -, como uma forma de monitoramento e avaliação do trabalho que estava sendo
realizado pelos policiais de ponta diariamente (Musumeci et al, 1996:22). As pastas
serviam como arquivo para as fichas, preenchidas diariamente pelo policial da ronda,
devendo conter o registro: dos problemas; dos contatos; das parcerias conquistadas; dos
recursos mobilizados externamente à PM; dos planos de ação, detalhando fins, meios e
estratégias; resultados alcançados e reações da comunidade (Musumeci et al, 1996:120-
121).
O sistema de pastas foi abandonado em poucos meses, tendo em vista uma série de
dificuldades à viabilização do seu uso (Musumeci et al, 1996:22). Entre as dificuldades
165
Um dos efeitos negativos da carência de recursos humanos era o aproveitamento dos policiais militares
alocados no programa de policiamento comunitário nas “operações especiais”. Diante das situações
emergenciais, o policiamento comunitário passaria ao segundo plano.
146
170
A experiência de Nova York, que não apenas inspirou mas também constituiu um dos elementos que
deram o suporte teórico ao desenvolvimento do projeto de Copacabana, contou com o apoio do poder
público municipal, federal e estadual.
171
Nas duas áreas – Setor Echo e Setor Delta - em que os conselhos sobreviveram por mais tempo ainda
foi possível discutir e encaminhar ações abrangentes envolvendo diversas instituições (Musumeci et ali,
1996: 27).
172
As relações de parceria entre a polícia e a comunidade eram instáveis, pois população nem sempre
estava disposta a colaborar e, quando o fazia, dificilmente participava regularmente (Musumeci et ali,
1996:28). Uma das causas que os policiais apontaram para a instabilidade dessas relações foi a
vulnerabilidade da imagem policial às oscilações da chamada opinião pública (Musumeci et ali, 1996).
151
173
Alguns vêem a presença da polícia como uma garantia da ordem pública, outros entendem sua
presença como um indício de desordem (Musumeci et ali, 1996:30)
174
Segundo Musumeci et al (1996:110), “a restrição da nova patrulha a determinados horários e
territórios também contribuiu para que grande parte da ‘comunidade’ copacabanense sequer chegasse a
tomar conhecimento da sua existência ou beneficiar-se diretamente de seus resultados”.
152
Problemas do Bairro
175
Essa discussão será retomada quando da descrição das principais dificuldades percebidas pelos
pesquisadores responsáveis pelo monitoramento e avaliação do programa.
153
176
Pretendia-se a obtenção de um material amplo e diversificado sobre as percepções da população que
residiam ou freqüentava o bairro, o que, de outra forma, somente poderia ser feito através de uma vasta
pesquisa de vitimização (Musumeci et al, 1996:60).
177
Mais de um terço desses bilhetes eram provenientes de uma única urna, que serviu de marco inaugural
do programa – dezembro de 1994 -, em evento festivo patrocinado pela Viva Rio (Musumeci et al,
1996:60).
155
número de menções aos dois grupos de problemas, pode-se afirmar que os problemas
referentes à qualidade de vida eram considerados mais urgentes pela “comunidade”
local, destacando-se entre estes a presença de população de rua. No tocante aos
possíveis agentes causadores desses problemas, a população de rua aparece em primeiro
lugar nos dois grupos – crimes e contravenções e qualidade de vida (Musumeci et al,
1996).
Um dos aspectos gerais do discurso das urnas e conselhos era a preocupação
prevalente com a profusão de “pequenos delitos” e problemas de “qualidade de vida”
(Musumeci et al, 1996:65). Os sentimentos de medo, insegurança ou exposição ao risco,
e as imagens de “abandono” do bairro, pareciam estar associados a esses problemas
(Musumeci et al, 1996). A preocupação com os “grandes crimes” contra a pessoa e o
patrimônio, salvo o furto e o roubo de automóveis, era pouco expressiva (Musumeci et
al, 1996). Segundo Musumeci et al (1996), havia uma demanda unânime pela retirada
imediata dos “mendigos” e “pivetes” das ruas do bairro, tendo em vista que a simples
presença dessas pessoas despertava sentimentos de insegurança, revolta, vergonha e
humilhação nos autores dos bilhetes. Na percepção dos manifestantes das urnas, a
população de rua representava: ataque aos valores da casa, da família e do trabalho;
exibição ostensiva da degradação humana no lugar do “cartão postal” da cidade; etc
(Musumeci et al, 1996:70). As pessoas que se faziam expressar nas urnas enfatizavam a
limpeza das vias públicas, o que incluía a retirada do “lixo humano” (a população de
rua), como um fator essencial à recuperação da segurança e da qualidade de vida no
bairro. Percebe-se que nas preocupações e demandas da “comunidade” local estava
implícito o discurso conservador, autoritário, segundo o qual algumas classes sociais
representariam uma constante ameaça à ordem pública.178 Musumeci et al (1996:73-74)
salientam que a recuperação da segurança pública e da qualidade de vida dependeria,
conforme expressavam os bilhetes, da retirada, remoção ou recolhimento da população
de rua e da “reocupação”, pela polícia, do espaço público “tomado” pelos agentes da
desordem.
178
Mostrava-se evidente a preocupação dessas pessoas com as ditas classes perigosas, o que comprova
que em uma parcela significativa da sociedade ainda tinha força a concepção do crime e da desordem
como um mal que não pertence à sociedade, devendo ser excluído imediatamente para que não pusesse
em risco a existência da própria comunidade. Sobre o discurso de eliminação do crime e da desordem, ver
Bittner (2003:140-143).
156
Principais Obstáculos
179
Ao passo que o Setor Alfa (Área 6), por exemplo, apareceu como o segundo setor mais calmo de
Copacabana – depois do Leme -, o Setor Delta (Área 3) abrangia uma das regiões mais densas e agitadas
da cidade, na qual convergiam todos os extremos e contrastes de Copacabana (Musumeci et alli, 1996:77-
91).
157
180
Na esfera municipal, foi difícil a contribuição de órgãos como CET-Rio, Guarda Municipal, Secretaria
de Desenvolvimento Social, Secretaria de Obras, Rioluz, COMLURB etc, enquanto, na esfera estadual,
órgãos como a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, a Fundação Leão XIII, a CEDAE e a
CEG, entre outros, permaneceram alheios ao programa (Musumeci et al, 1996:111-112).
181
A experiência de Nova York (CPOP) contou com o apoio da prefeitura, responsável por quase todo o
policiamento da cidade, dos governos federal e estadual, e com a assessoria da Police Foundation e do
Vera Institute of Justice (Musumeci et al, 1996).
158
182
Conforme salientara Bittner (2003:210-211) ao apontar as limitações das “unidades de relações
comunitárias”, qualquer programa que pretende promover modificações substanciais na cultura e nas
estratégias convencionais do policiamento não pode ficar adstrito a unidades especiais do departamento.
Torna-se necessário o envolvimento de todo o departamento.
159
183
No Community Patrol Officer Program [Programa de Oficiais de Patrulha da Comunidade], de Nova
York, uma das primcipais atribuições do CPO era a de organizador da comunidade (McElroy, 2002:104).
184
Salientam Musumeci et al (1996:109) que, após o fim do programa comunitário de Copacabana,
alguns dos membros dos CCAs, principalmente do Setor Delta, passaram a compor um Conselho único,
com o objetivo de discutir problemas de todo o bairro, atrair membros dos extintos CCAs e pressionar o
poder público para que o projeto fosse reativado em Copacabana.
160
debate – os policiais não tinham voz nas reuniões – e não significaram um “aval de
cúpula” para o trabalho nos subsetores (Musumeci et al, 1996:110).
Não obstante o sucesso parcial dos policiais comunitários, ao conquistar o apoio de
porteiros, comerciantes, seguranças e jornaleiros, ainda havia muitas restrições no
tocante ao envolvimento dos moradores (Musumeci et al, 1996). Esse isolamento de um
dos grupos sociais que maior interesse teria na “construção” da comunidade local
limitou a legitimidade e a eficácia do projeto, impedindo que muitas estratégias de
solução dos problemas do bairro fossem colocadas em prática ou produzissem os
resultados esperados.
A abrangência geográfica e temporal do projeto também significou uma séria
dificuldade à viabilização dos serviços policiais a toda a “comunidade” de Copacabana
(Musumeci et alli, 1996). O objetivo, previsto no projeto original, de que, após um ano
de funcionamento e avaliação, a patrulha comunitária seria expandida a outros
subsetores, com a ampliação do efetivo e flexibilização da escala de trabalho dos
policiais, não foi concretizado (Musumeci et al, 1996). Um dos motivos pelos quais não
foi possível a expansão do patrulhamento comunitário para outras áreas do bairro e a
flexibilização do horário de trabalho dos policiais de ponta, de forma a possibilitar o
acesso de toda a “comunidade” local aos serviços policiais, foi a desativação prematura
do programa. Com isso, uma das características essenciais do policiamento comunitário,
a adaptabilidade às demandas de solução de problemas, somente foi verificada em parte
(Musumeci et al, 1996). Como o programa ficou limitado aos 28 quarteirões originais e
ao período de 08:00 às 20:00 horas, destacam Musumeci et al (1996), deixou de
abranger vários focos maiores de desordem – muitos deles concentravam-se durante a
madrugada – e restringiu o acesso aos moradores e outros membros da comunidade que
poderiam constituir parcerias para a redução da violência noturna.185
Uma outra limitação foi a exclusão das favelas, pois esse fator gerou acusações de
“elitismo” e reduziu a possibilidade de criação de estratégias preventivas para lidar com
a desordem ou a articulação entre “morro” e “asfalto” no tocante à prática de alguns
crimes, principalmente o tráfico de drogas (Musumeci et al, 1996).186 Havia a intenção,
185
Entre esses parceiros em potencial destacam-se: travestis e prostitutas; porteiros, garçons, seguranças e
gerentes de bares, boates e hotéis (Musumeci et al, 1996:110).
186
Apesar de não terem autorização expressa, alguns policiais de ponta deslocavam-se de seus quarteirões
para resolver problemas em outros subsetores, ou ampliavam o território das rondas diárias – fazendo a
161
denominada “arribação” -, para abranger localidades não cobertas oficialmente pelo projeto, inclusive as
vias de acesso às favelas (Musumeci et al, 1996).
162
187
As referidas reuniões incluíam informes gerais da PM, recomendações disciplinares e breves debates
de problemas do bairro, ficando prejudicados os processos de “análise de problemas”, “planejamento” e
“avaliação”, elementos básicos para o desenvolvimento do policiamento comunitário (Musumeci et al,
1996).
188
Musumeci et al (1996:116) referem-se ao “excesso de militarismo” como uma “herança” deixada pela
ditadura militar ao regimento interno da PM brasileira.
163
189
Conforme Bittner (2003:153), o propósito geral do treinamento, nos moldes do policiamento
convencional, é “transformar novatos em soldados burocratas submissos, ao invés de transformá-los em
práticos competentes das tarefas de manutenção da paz e do controle do crime”.
164
190
Em maio de 1995 o general Nilton Cerqueira assumia a secretaria de segurança pública do estado do
Rio de Janeiro, retomando o discurso autoritário e a política de segurança pública essencialmente
repressiva.
191
No governo Marcello Alencar (1995-98) fora criada a chamada premiação “faroeste”, passando a ser
incentivadas as estratégias repressivas de combate ao crime e ao criminoso. Sobre os efeitos da
165
“premiação faroeste” ou da “promoção por bravura” nos índices de criminalidade e violência no Rio de
Janeiro, ver Cano,(1998:205-228).
192
Sobre as prováveis justificativas para o “endurecimento policial” no governo Marcello Allencar, ver
Sento-Sé (1998:45-71).
193
Os policiais de ponta que trabalhavam no programa foram sendo remanejados para outras atividades,
ou outros setores da corporação, de forma paulatina (Musumeci et alli, 1996).
194
Os pesquisadores (Musumeci et al, 1996:125) observam, ainda, que uma das dificuldades enfrentadas
pelo projeto foi exatamente a falta de mecanismos de registro e avaliação dos resultados. Logo, as
informações fornecidas aqui estariam baseadas na pesquisa qualitativa, nas entrevistas aos policiais
comunitários e aos membros da “comunidade” de parceiros com os quais entraram em contato durante o
acompanhamento das rondas.
166
195
Pesquisadores (Musumeci et al, 1996:124) ressaltam que, como as favelas não estavam incluídas nem
nas estatísticas policiais nem no projeto de patrulhamento comunitário, pouco se poderia afirmar sofre as
fontes de violência e temor que atingem seus moradores.
196
Esse discurso fora propalado pelo coronel Nilton Cerqueira, Secretário de Segurança do governo
Marcello Allencar entre maio de 1995 e julho de 1996, que afirmara que somente bairros como a Urca
teriam “características favoráveis” à implantação do policiamento comunitário no Rio de Janeiro
(Cerqueira apud Musumeci et al, 1996:124)
167
197
Os anseios e demandas da “comunidade” costumavam estar “impregnados” de visões preconceituosas
e “totalitárias” sobre o crime, a violência e a desordem. As demandas da população local concentravam-se
na urgência do recolhimento da população de rua e dos camelôs do bairro e da “reocupação” das ruas pela
polícia, ou seja, na presença de um número cada vez maior de policiais no bairro.
168
conjunto com a comunidade. Isso quer dizer que os policiais não mais se contentavam
com os mecanismos convencionais de registro e apreensão dos problemas com que se
deparavam, ou seja, passaram a se esforçar para conhecer as circunstâncias e elementos
a eles relacionados e que poderiam interferir na sua ocorrência.
No processo de “construção” da comunidade, outro fator importante teria sido o
reconhecimento e o aproveitamento dos mecanismos de contenção da desordem
existentes no bairro (Musumeci et al, 1996). Grupos sociais – “mendigos”, camelôs,
flanelinhas etc – vistos pela “comunidade” local como os principais causadores de todo
tipo de desordem e uma ameaça constante aos “cidadãos de bem” teriam passado a ser
considerados pelos policiais como “aliados” em potencial, ao menos em situações
específicas. A rede de vigilância estabelecida pelos camelôs para se prevenirem contra
furtos é um exemplo da percepção, por alguns policiais de ponta, de que esses atores
sociais também poderiam contribuir para o desenvolvimento de estratégias preventivas
de controle do crime e da desordem (Musumeci et al, 1996).
Percebendo a necessidade de resolver problemas que afetassem diretamente a
qualidade de vida no bairro, um dos objetivos básicos do policiamento comunitário, os
policiais de ponta teriam conseguido, conforme salienta o grupo de pesquisa (Musumeci
et al, 1996), identificar problemas relativos à deterioração de equipamentos e serviços
urbanos. Problemas que, a princípio, poderiam parecer de menor importância e sem
nenhuma relação direta com as atribuições da polícia – lixo acumulado nas ruas,
iluminação deficiente, má sinalização do trânsito, obstrução das calçadas por camelôs,
mendigos etc. – tornaram-se o objeto principal das demandas populares. Com isso,
observam Musumeci et al (1996), os policiais comunitários passaram a identificá-los
como a causa direta da perda de “qualidade de vida” ou como sinais de “desordem”
favorecedores de delitos, acidentes e distúrbios. Esse ponto recai sobre a discussão
acerca do entendimento de que espaços urbanos deteriorados, desprovidos de uma
conservação mínima ou abandonados pelo poder público, tornam-se ambientes
propícios a desordens, atos de violência e crime.198
198
Poder-se-ia, aqui, fazer menção à “teoria das janelas quebradas”, desenvolvida por Wilson e Kelling,
em 1982, no artigo Broken Windows: the police and neighborhood safety (Wilson e Kelling apud Kelling,
1999). Os autores discutem a relação entre a desordem e o crime utilizando a “metáfora das janelas
quebradas”.
169
199
Conforme consta no relatório de pesquisa (Musumeci et al, 1996:127), esses resultados foram obtidos
através dos depoimentos dos policiais comunitários e das pessoas do bairro que a equipe de pesquisa
entrevistou.
170
200
Mesmo quando passaram a confiar mais na polícia, alguns segmentos sociais, principalmente os
moradores, continuaram resistindo a qualquer participação na busca de soluções para os problemas do
bairro (Musumeci et al, 1996).
201
Bittner (2003:104-105) refere-se à distribuição seletiva de vigilância e intervenções policiais como um
fator complicador das tensões já existentes na sociedade.
202
Para enfatizar a importância dos CCAs, Musumeci et al (1996:131) referem-se à continuidade dada por
seus membros remanescentes às reuniões e debates sobre os problemas do bairro, mesmo após a
desativação dos referidos Conselhos. Pesquisadores (Musumeci et al, 1996) citam, ainda, uma reunião
realizada na Assembléia Legislativa do RJ (dez. de 1995), da qual participavam o Secretário de Segurança
e o Comandante-Geral da PM, para discutir o que fazer a respeito do policiamento comunitário. Durante a
reunião, ex-conselheiros e líderes de associações de moradores exigiram das autoridades a retomada do
projeto de policiamento comunitário de Copacabana (Musumeci et al, 1996).
172
pelo trabalho desenvolvido pelos policiais de ponta cotidianamente. Isso quer dizer que,
se o policial de ponta tivesse voz ativa nas reuniões dos Conselhos, para apresentar os
problemas identificados e discutir com os supervisores e representantes da
“comunidade” sobre suas possíveis soluções, o debate seria enriquecido e a eficácia das
estratégias escolhidas poderia aumentar.
Os objetivos de redução da insegurança e da melhoria da qualidade de vida da
“comunidade” de Copacabana parecem ter sido alcançados com relativo sucesso.
Musumeci et al (1996:132) afirmam que, ao menos entre os setores da população que se
envolveram diretamente no programa – “parceiros de ponta” e membros dos Conselhos
de Área – todos os depoimentos colhidos enfatizavam a “maior segurança” originária da
presença e do trabalho realizado pelos policiais comunitários nos quarteirões.203 Entre
os setores da “comunidade” que disseram se sentir mais seguros após o início do projeto
de policiamento comunitário, aparecem os comerciantes, porteiros e moradores
(Musumeci et al, 1996). A percepção de segurança foi verificada na redução de crimes
de roubo e furto e do controle das populações de rua, e na diminuição dos conflitos e
sinais de desordem durante o horário de funcionamento da patrulha comunitária
(Musumeci et al, 1996).
Ao observar o impacto positivo do programa na percepção de segurança da
população da área em fora implantado o patrulhamento comunitário, Musumeci et al
(1996) afirmam que tais benefícios poderiam ser ainda maiores se algumas dificuldades
– falta de divulgação do programa, restrições territoriais e temporais etc - enfrentadas
pelo projeto para ampliar o alcance e a participação da “comunidade” fossem
superados.204
No tocante à melhoria da qualidade de vida, destaca o grupo de pesquisa que,
excetuando-se os efeitos positivos da redução do medo e da violência, os avanços
produzidos pelo projeto mostraram-se mais restritos. Os principais motivos dessa
limitação parecem ter sido a falta de apoio dos órgãos públicos no tocante à solução de
problemas de sua atribuição (Musumeci et al, 1996).
203
Musumeci et al (1996:132) ressaltam que somente uma extensa pesquisa de vitimização, realizada
antes e depois do início do programa, permitiria medir e avaliar mais precisamente seus impactos sobre as
condições de segurança na região.
204
Os pesquisadores salientam que a limitação de recursos, apesar de ter se revelado um sério obstáculo
ao alcance das finalidades do programa comunitário, não impediria a multiplicação dos benefícios obtidos
se alguns dos obstáculos previstos acima fossem vencidos (Musumeci et al, 1996).
173
205
Para verificar se o patrulhamento comunitário reduziu as solicitações por serviços emergenciais da
Polícia seria necessária, de acordo com Musumeci et al (1996), uma avaliação técnica minuciosa, a qual o
grupo de pesquisa não se propôs a fazer.
206
Segundo Musumeci et al (1996:133), faltaram indicadores técnicos para se avaliar impactos diretos e
indiretos do programa – um exemplo seria o aumento do número de queixas registradas nas delegacias
para tipos de delitos usualmente subnotificados.
207
Durante a vigência do programa, com o estabelecimento de relações mais próximas entre os policiais
de ponta e o público, alguns fatores que também parecem ter levado à melhoria da imagem policial são
destacados: sensação de maior controle das atividades e comportamentos da Polícia; verificação direta da
existência de “bons policiais”, fazendo diminuir suspeitas e preconceitos genéricos; maior conhecimento
dos problemas existentes no interior da PM, permitindo uma visão mais realista de suas possibilidades e
limitações (Musumeci et al, 1996:133-134).
174
208
As recomendações feitas na primeira versão do relatório – agosto e setembro de 1995 –, a qual não foi
integralmente publicada, pretendiam melhorar o funcionamento do projeto e evitar que fosse abandonado
(Musumeci et al, 1996, p. 134).
175
209
Para estudar o policiamento comunitário em Belo Horizonte Souza baseou-se no trabalho de campo
por ela realizado junto à PMMG e à população da área abrangida pelo programa. A autora (1999:17)
procurou avaliar o programa de policiamento comunitário a partir da percepção dos atores diretamente
envolvidos – da organização policial e das comunidades.
176
210
O 22°Batalhão, segundo Souza (1999:85), é considerado a unidade modelo de polícia comunitária da
PMMG.
177
211
A segunda região, ou aglomerado, retratava o abandono do poder público estadual e municipal, o que
se fazia sentir pela ausência de serviços da sua responsabilidade, entre os quais pode ser citada a
urbanização.
178
estavam no local para oferecer seus serviços, de forma igualitária, a ambos (Souza,
1999). Além disso, seria preciso convencer a própria Polícia de que entraria nos
aglomerados para tentar estabelecer relações mais próximas com a população local, ou
seja, para conquistar parcerias junto à comunidade (Souza, 1999). O comando do
batalhão entendia que a melhor forma de contornar os problemas de convivência entre
os membros das duas áreas era a aproximação da polícia militar às respectivas
populações (Souza, 1999). Ao vencer essas resistências, os policiais - do 22° Batalhão -
estariam dando um passo importante para a consolidação do policiamento comunitário e
para a conquista da confiança e da credibilidade do público na polícia militar mineira.
Para que o público começasse a perceber a polícia como uma organização
preocupada com a melhoria da qualidade de vida nas comunidades e engajada na
prestação de serviços igualitários aos cidadãos, os policiais comunitários procuraram
intervir no processo de urbanização das áreas carentes, o que fizeram em parceria com
órgãos públicos e representantes das comunidades (Souza, 1999:87). No tocante ao
estabelecimento de uma política de convivência pacífica com os grupos sociais que
habitavam os aglomerados, Souza (1999) destaca as visitas feitas pelo comandante do
batalhão à favela situada na região – Morro do Papagaio.212 Com as visitas, o comando
da polícia militar no 22° BPM objetivava contactar lideranças, conhecer a população e
mapear os grupos organizados e equipamentos públicos presentes na comunidade
(Souza, 1999). Iniciava-se, através de contatos com dirigentes de creche, rádio
comunitária etc, a persuasão da população no tocante à necessidade de uma polícia mais
próxima da comunidade, para prevenir crimes e atender às demandas dos cidadãos
(Souza, 1999). Os oficiais do 22° batalhão entendiam que a simples presença dos
policiais militares nas ruas não afetava a sensação de segurança da população local,
tornando-se necessário o contato, a interação entre policiais e cidadãos (Souza,
1999:88).
Outra medida adotada pelo comando do batalhão para melhorar a imagem pública
da polícia, foi a realização, com o apoio de alguns parceiros – Lions Clube,
SESIMINAS, empresas particulares, escolas, órgãos públicos - de atividades de cunho
assistencial, denominadas ações cívicas (Souza, 1999:87). As atividades a que se refere
Souza (1999:87-88) podem ser exemplificadas como: acesso mais simples dos cidadãos
212
O coronel Antonio Caetano de Almeida Junior era responsável pelo 22° Batalhão.
179
215
Partia-se da lógica de que quanto maior a quantidade de contribuintes de uma associação, maior a
probabilidade de eficiência do policiamento local (Souza, 1999:107).
216
Souza (1999:94) refere-se às reuniões no sentido de garantir que a polícia esteja sempre aberta a
críticas e sujeita ao controle da população, pela avaliação dos resultados do policiamento e do
desempenho dos policiais.
217
Dependendo da crítica feita ao policial comunitário, desde que bem fundamentada, ele poderia ser
substituído no policiamento (Souza, 1999:108).
183
218
Dias (2002:83) destaca que há uma visão consensual de que o policiamento comunitário não pode
prescindir dos métodos tradicionais de controle. Não se trata, portanto, de abandonar os métodos de
controle existentes, mas acrescentar aquele que se mostra fundamental em sociedades democráticas.
184
219
A autora está se referindo à pesquisa de campo realizada junto aos policiais militares que trabalhavam
no policiamento comunitário, aos líderes comunitários e demais membros da população local.
185
221
A divulgação se dava, principalmente, através de eventos promovidos nas associações, do convite para
as pessoas participarem, da distribuição de jornais com esclarecimentos sobre o policiamento comunitário
etc. (Souza, 1999:122).
188
parece guardar estreita ligação com o receio dos policiais dos escalões superiores em ter
seu poder ameaçado ou reduzido. Apesar de os oficiais do comando terem adotado uma
administração mais aberta – no sentido de escutar os praças -, o trabalho de interação
dos praças com as “comunidades” normalmente ficava restrito aos locais em que os
mesmos eram designados a policiar e ficava subordinado às ordens dos superiores
hierárquicos (Souza, 1999:127). As resistências do comando em dar maior autonomia
aos policiais de ponta parece estar estreitamente relacionada à cultura tradicional
predominante nas organizações policiais brasileiras.
O estabelecimento de relações próximas entre os policiais e a comunidade também
foi prejudicado pela rotatividade dos policiais que trabalhavam no 22º batalhão.
Utilizando as palavras de Souza (1999:128), a doutrina da polícia comunitária tem como
regra fundamental a permanência do policial no bairro, para que conheça a comunidade,
seja conhecido e possa desenvolver estratégias preventivas. Para conhecer a
comunidade e seus problemas, conquistar a confiança da população e criar parcerias, o
policial necessita estar alocado de forma permanente e contínua em uma mesma área.
No entanto, não era essa a regra na área de abrangência do 22º batalhão, onde tanto os
praças quanto os oficiais no comando eram periodicamente transferidos para outros
locais de atuação (Souza, 1999). Cada vez que os policiais eram transferidos da área de
patrulhamento comunitário interrompia-se o processo de conhecimento e
estabelecimento de relações de confiança entre os mesmos e a comunidade.
Conseqüentemente, ficavam prejudicados a identificação dos problemas locais, o
planejamento e a aplicação das estratégias preventivas direcionadas à sua solução.
Além das resistências e dificuldades mencionadas acima, um dos pontos mais
polêmicos do policiamento comunitário em Belo Horizonte foi a prioridade dada ao
apoio logístico. Em meio à crise financeira que atravessava a Polícia Militar de Minas
Gerais, o policiamento comunitário teria surgido, conforme Souza (1999:130), como
uma forma alternativa e viável para canalizar recursos para a instituição policial. Não
havia, segundo a autora, a intenção de diminuir o interesse político da organização em
resgatar sua legitimidade frente aos cidadãos, através de um policiamento orientado
pelos princípios democráticos e por estratégias preventivas de solução de problemas. No
entanto, o que inicialmente parecia uma forma adequada de reduzir as limitações
financeiras da organização policial – o policiamento comunitário prevê também a busca
190
222
Conforme verificado anteriormente, as associações exerciam o controle externo sobre todas as ações
dos policiais comunitários, e sobre a destinação dos recursos angariados no bairro.
223
Beato (2002:118) acrescenta que o descrédito público em relação à primeira experiência de
policiamento comunitário em Minas Gerais foi consolidado pelo impedimento legal das parcerias
logísticas pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais.
191
224
Entre as experiências pesquisadas por Skolnick e Bayley (2002:41-55) encontram-se: EUA, na
Austrália, Canadá, Cingapura, Dinamarca, Finlândia, Grã-Bretanha, Japão etc.
192
225
Os autores citam Robert Reiner (2002:72) pelo fato de o mesmo afirmar que o policial de baixa patente
é o principal determinante do policiamento no lugar onde ele realmente é relevante, na rua. Para uma
apreciação dos aspectos que conformam a chamada “cultura de rua” das Polícias Militares ver: Muniz
(1999).
193
226
A autora (1999:119) refere-se aos guias de identificação de situações e pessoas suspeitas constantes
nos manuais de polícia.
194
cidadãos (Muniz, 1999:221). Muitas vezes os policiais suspeitam de indivíduos pelo que
eles são, e não pela forma como se comportam. Constata-se, a partir daí, que a cultura
tradicional da polícia é responsável pela intensificação das práticas discriminatórias dos
agentes policiais de ponta no seu trabalho cotidiano nas ruas, o que explica porque os
“alvos” principais da preocupação dos “agentes da lei” ainda são as consideradas
“classes de risco” ou “classes perigosas” – pobres, jovens negros, minorias sexuais, etc
(Muniz, 1999:222). Além de potencializar as tensões existentes no meio social, e entre
essas minorias e a Polícia, os estereótipos policiais tendem a ser contraprodutivos para a
finalidade de “preservação de uma ordem pública” democrática, a qual requer
eficiência, eficácia e efetividade dos policiais (Muniz, 1999:223, 224).
O perigo e a suspeita levam, de acordo com os autores Skolnick e Bayley
(2002:72-73), à terceira característica, conhecida como solidariedade ou fraternidade,
que revela a tendência dos policiais em manter relações sociais com outros policiais.
Isso se dá por inúmeras razões, dentre as quais o fato de os policiais não confiarem nas
pessoas que policiam. Para falar da falta de confiança que os policias têm nas pessoas
que policiam, que interfere negativamente no desenvolvimento do policiamento
comunitário, os autores (2002: 73) referem-se a Mark Baker. Este autor afirma que os
policiais sabem que o público em geral se ressente de sua autoridade e é inconstante em
seu apoio, tanto em relação à política policial como em relação aos próprios policiais
enquanto indivíduos (Skolnick e Bayley, 2002). Isso justifica, em parte, a resistência
dos policiais em estabelecer relações próximas com os cidadãos para os quais prestam
serviços – os policiais tendem a se “fechar” no seu “mundo” -, constituindo um dos
principais obstáculos á implementação de um programa de policiamento comunitário
real.
Considerando a cultura do atual policiamento – tradicional - o maior obstáculo à
implementação de uma nova estratégia de policiamento, Mark H. Moore (2003:168-
169) assinala três abordagens possíveis para a mudança dessa cultura. Primeiramente, a
polícia deve, conforme o autor, estar bem mais aberta à pressão externa, para que todos
dentro do departamento fiquem muito mais expostos a contatos importantes com as
comunidades (Moore in Tonry e Morris, 2003:169). Para que isso ocorra, torna-se
necessário o esforço dos executivos de polícia para “tirar os policiais de dentro de seus
carros” e os administradores médios de “trás de suas mesas” (Moore in Tonry e Morris,
195
2003). Em segundo lugar, continua Moore (2003), é preciso que os valores dominantes
da organização estejam claros, com o estabelecimento dos termos de responsabilização,
o estímulo de parcerias com grupos externos e, também, para que seja anunciado a
quem está dentro do departamento de polícia o que é esperado e os valores que devem
ser seguidos. O terceiro passo seriam as mudanças dos aspectos administrativos
incompatíveis com os novos valores, que tratariam exatamente do desenvolvimento das
medidas organizacionais características do policiamento comunitário (Moore in Tonry e
Morris, 2003). Essas três abordagens parecem corresponder às propostas do
policiamento comunitário, o que permite a constatação de que a mudança na cultura do
atual policiamento requer a insistência dos administradores de polícia na introdução de
medidas que possibilitem a adesão paulatina de todo o efetivo policial aos valores
democráticos. Logo, à medida que as estratégias do policiamento comunitário forem
colocadas em prática e os novos valores pelos quais deve se orientar a polícia passarem
a ser exigidos dentro do departamento, as expectativas de substituição e de consolidação
do “novo” do modelo podem aumentar.
A juventude dos policiais, atrelada ao treinamento e à permissão para o uso da
força, é apontada como uma resistência por Skolnick e Bayley (2002:74) pelo fato de o
policiamento comunitário demandar um grau de maturidade maior que provavelmente
vai ser encontrado em policiais mais velhos. Acredita-se que a juventude policial pode
dificultar a compreensão do papel mais amplo do policial necessário ao policiamento
comunitário. Muitas vezes esses policiais jovens, procurando seguir os mais antigos no
departamento policial, adquirem desses as maiores influências no tocante à percepção
que devem ter do público e das relações com esse mesmo público. A preocupação dos
citados autores parece fazer sentido, mas apenas em parte. Isso porque, não obstante os
policiais mais velhos normalmente possuírem maior maturidade, a juventude dos
policiais pode ser proveitosa para a expansão dos ideais comunitários. Os policiais mais
jovens comumente fazem parte do grupo de policiais que integram o efetivo da Polícia
há pouco tempo, e que ainda não adquiriram os vícios inerentes à cultura tradicional.
Pode se tornar mais fácil a adesão desses indivíduos aos valores introduzidos pelo
policiamento comunitário, desde que o departamento ofereça cursos de formação,
treinamento e reciclagem condizentes com os novos ideais.
196
227
Moore (2003:150), reportando-se a estudos realizados por autores como Kelling e Wycoff na década
de 1970, refere-se à dificuldade de, em departamentos comprometidos com a luta profissional contra o
crime, introduzir o “policiamento em equipe”, citando os departamentos de Dallas e Los Angeles como
um prova disso.
197
fato, existe o receio de que a polícia se torne muito poderosa na comunidade ao procurar
resolver todos os problemas da sociedade, problemas esses que poderiam ser resolvidos
por outras instituições. Uma preocupação comum dos críticos é a de que o policiamento
comunitário se torne uma espécie de “vigilantismo” e interfira substancialmente na
privacidade e na liberdade das pessoas.
A preocupação de impedir que a Polícia se torne uma instituição muito poderosa na
sociedade é justificada pelo entendimento segundo o qual, à medida que a polícia for
correspondendo mais às preocupações da sociedade e ficando mais hábil no uso de
técnicas de prevenção ao crime e solução de problemas, corre-se o risco da instituição
se tornar política e burocraticamente mais poderosa (Moore in Tonry e Morris,
2003:160, 161). Tornando-se mais poderosa, a Polícia poderia se intrometer mais
profundamente nos negócios dos cidadãos e de outros órgãos governamentais (Moore in
Tonry e Morris, 2003). No entanto, o autor (2003) entende ser excessiva tal
preocupação. Considerando que muitas análises das condições das cidades indicam um
colapso significativo nos mecanismos informais de controle, como as responsabilidades
da família e da comunidade, Moore (2003:161) afirma que os mecanismos formais de
controle social – entre os quais se inclui a Polícia – poderiam ser usados de forma a
criar o fortalecimento do controle social informal, sendo esta a proposta do
policiamento comunitário e do policiamento para a solução de problemas. Se a Polícia
conseguir o apoio e a cooperação de integrantes da comunidade que estão dispostos a
resolver ou diminuir os problemas que mais afetam a qualidade de vida da população, a
contribuição desses modelos para o fortalecimento das instituições informais de controle
social pode ser significativa.
A priorização do papel da polícia na luta contra o crime, através da aplicação da
lei, é justificada, ainda, pelos críticos do modelo de policiamento comunitário, pelo
receio de que relações mais próximas entre a polícia e o cidadão favoreçam o retorno da
corrupção, da parcialidade, da discriminação, e dos atos violentos da polícia.
Rechaçando esse entendimento, Moore (2003:162-163) afirma que esses medos
parecem especialmente apropriados para departamentos que nunca colocaram os valores
legais em primeiro lugar, ressaltando que, na melhor das hipóteses, a conquista do
policiamento profissional estimulando os valores legais nos departamentos de polícia
tem sido incompleta. Ele argumenta que o enfoque absoluto na eficácia de controle do
198
viatura com dois policiais possa dar origem a uma sensação de segurança e prazer no
trabalho entre aqueles que estão policiando, também pode gerar, conforme Skolnick e
Bayley (2002), um distanciamento em relação à população que está sendo policiada,
pois os dois policiais que estão percorrendo a cidade juntos, dentro de uma viatura,
tendem a restringir suas relações àquela comunidade móvel. Como demonstrado em
vários experimentos, a utilização de dois policiais por viatura não interfere na produção
policial e, com o advento de recursos tecnológicos, os policiais podem obter auxílio
rápido em qualquer situação de perigo, a adoção do patrulhamento com um policial por
viatura seria um caminho para a resolução de parte dos problemas de carência de mão-
de-obra que afetam muitos departamentos de polícia.229
A responsabilização do comando envolve a discussão acerca da centralização ou
não das organizações policiais.230 À medida que aumenta a centralização e a hierarquia
do sistema de responsabilização de determinado departamento, maior a dificuldade de
introduzir o policiamento comunitário. O policiamento comunitário possui como
pressuposto básico um certo grau de descentralização da autoridade para as
“minidelegacias” e postos de policiamento de bairro. A responsabilização da polícia, no
policiamento comunitário, passa a ser exercida também perante a comunidade, enquanto
os departamentos altamente centralizados e hierarquizados só admitem a obediência do
policial perante o comando – conforme o previsto nas leis e regulamentos. Para destacar
a necessidade de modificações nessas estruturas organizacionais altamente
centralizadas, Skolnick e Bayley (2002:85) enfatizam que o policiamento comunitário
não implica necessariamente a perda da autoridade política centralizada e, muito menos,
da responsabilização centralizada.231 Além de viabilizar a operacionalização das
atividades da Polícia, já que passa a ser imprescindível a concessão de um maior poder
de decisão e maior liberdade aos chefes e aos policiais de ponta que integram os postos
229
Os autores citam os departamentos de polícia da California como um exemplo dos benefícios da
utilização de viaturas com um policial para a questão da mão-de-obra (2002:84-85).
230
Sobre a fragilidade do controle centralizado, ver Moore (2003:164).
231
O Chefe Raymond Davis, de Santa Ana, Califórnia, citado pelos autores, delegava uma autoridade
considerável aos comandantes de área e aos sargentos na implementação de uma filosofia de policiamento
comunitário ou na escolha da estratégia geral – designando, por exemplo, um maior número de policiais
para as rondas a pé em determinados bairros ou ruas, de acordo com as necessidades de cada área -, mas
essa mesma estratégia geral colocava limites importantes no arbítrio dos comandantes e sargentos; esses
comandantes não poderiam evitar a responsabilidade pelas rondas de bairro a pé, pela “Vigilância do
Bairro”, pela educação preventiva do crime etc. (2002:86).
201
232
Os autores se referem à diversidade étnica, mas outras ainda podem ser mencionadas, como as
diversidades sócio-econômicas.
233
Para falar do território apropriado a ser considerado quando se tratar dos limites da administração no
policiamento comunitário, Skolnick e Bayley (2002:91-92) recordam-se de Gerald D. Suttles, pelo fato
deste autor definir “o bairro defendido” como “a menor área que possui uma identidade corporativa
reconhecida tanto por seus membros como pelos que estão fora dele [...] uma área para a qual as pessoas
se retiram para evitar um aumento nos riscos de insultos ou de ofensas que poderiam sofrer ao se
movimentarem para fora dali”.
205
que essas resistências aparecem depende de vários fatores, como a formação política,
social, econômica e cultural do Estado.
Os interessados no policiamento comunitário não pretendem defender sua
perfeição, muito menos afirmam que ele representa a solução para todos os problemas
envolvendo a segurança pública. Considerando as limitações e as perguntas ainda sem
resposta sobre o policiamento comunitário, demonstram os pesquisadores e todos
aqueles – governantes, administradores de polícia – que constataram a ineficácia do
policiamento estritamente repressivo nas sociedades democráticas, que o policiamento
comunitário pode modificar pontos cruciais atinentes ao policiamento tradicional. Por
outro lado, ressaltam que o policiamento comunitário não surgiu para substituir o
modelo tradicional, mas para redirecionar suas prioridades, aumentando a eficácia das
estratégias utilizadas pelos policiais na prevenção do crime, da violência e da desordem,
e produzindo muitos outros efeitos positivos já mencionados nos capítulos anteriores.
234
Skolnick e Bayley (2002:101-107) referem-se a essas dúvidas como possíveis deficiências do modelo
comunitário.
206
(2002:109), por exemplo, entendem que, como o “novo” modelo prevê mudanças
profundas nos papéis costumeiros da polícia, parece apropriado levantar algumas
questões mais amplas sobre o papel da polícia em uma sociedade livre e democrática.
Tendo em vista as discussões e questionamentos colocados em torno dos
benefícios e limitações do modelo comunitário, parece ser importante destacá-los.
Algumas dúvidas ainda persistem, por diversos motivos. Um deles é o fato de as idéias
do modelo comunitário terem recebido maior estímulo recentemente - na década de
1980. Outro motivo está ligado à “relutância” em preservar o modelo tradicional, o que,
entre outros fatores, acaba afetando o desenvolvimento de avaliações que consigam dar
conta de tais questões.235 Um terceiro motivo estaria vinculado às próprias mudanças, as
quais necessitam de métodos de aferição que atentem para os fatores que interferem no
processo de reforma.236
Na tentativa de expor as preocupações oriundas do atual período de “transição”
para o policiamento comunitário, foram selecionadas aquelas que parecem incitar
maiores polêmicas entre pesquisadores e administradores de polícia. A apreciação de
cada uma delas permite uma melhor compreensão dos diferentes graus em que o
policiamento comunitário vem se desenvolvendo.237 A seguir serão apresentadas as
questões comumente referidas por acadêmicos e reformadores de polícia, o que faremos
tomando por base o roteiro utilizado por Skolnick e Bayley (2002:101-117).
235
Sacco (2002:157) destaca a necessidade de desenvolver métodos alternativos para a avaliação do
desempenho policial no policiamento comunitário.
236
Moore et al (2000:248) mencionam uma significativa dificuldade de avaliação. Essa dificuldade deve-
se ao fato de os departamentos de polícia serem fortemente influenciados por fatores contextuais –
ambiente político, necessidades locais, a história da organização (Moore et al, 2000).
237
Moore et al, 2000, p. 248.
207
238
Bittner (2003:41-69) estuda a preservação da paz em áreas deterioradas.Wilson e Kelling criaram a
teoria das “janelas quebradas” [broken windows] para discutir os efeitos negativos da deterioração dos
espaços públicos na preservação da ordem pública. Parece que a carência de serviços públicos básicos –
iluminação pública, restauração de prédios públicos abandonados etc – contribui para a formação de áreas
deterioradas.
208
deteriorar-se para muitos que vivem nas comunidades desamparadas (Moore in Tonry e
Morris, 2003). Quando os mecanismos formais de controle se expandem para preencher
o vácuo – se a polícia, por exemplo, estabelece o toque de recolher e a limpeza das ruas
-, então as condições podem melhorar, mas somente às custas do futuro
enfraquecimento dos mecanismos de controle informais ou do aumento da dependência
e vulnerabilidade das comunidades locais ao controle do estado (Moore in Tonry e
Morris, 2003).
Melhor do que o crescimento do controle formal ou o seu enfraquecimento, afirma
Moore (2003), seria a utilização dos controles formais para criar o fortalecimento do
controle social informal. Esta abordagem é recomendada pelo policiamento
comunitário, ao lidar com problemas sociais e estimular o envolvimento dos cidadãos
na construção da “comunidade”. A filosofia do policiamento comunitário parece se
identificar com a observação do autor. O modelo comunitário não tenta justificar suas
estratégias unicamente com a necessidade de controlar o crime. A comunidade é um fim
a ser alcançado pelo fato de ser compreendida sua existência como pressuposto da
formação de mecanismos de controle social.239
2 – O policiamento comunitário, ao se libertar da preocupação estrita com a lei e
voltar a entrar em contato com as preocupações da comunidade, possibilitará o retorno
ou o aumento da corrupção e da discriminação?
O policiamento comunitário orienta-se pela necessidade de maior liberdade ao
policial para lidar com os problemas da comunidade. Skolnick & Bayley (2002:104)
questionam se o policiamento comunitário, ao providenciar a aproximação entre a
polícia e as pessoas e descentralizar o comando, implica na diminuição do controle do
departamento sobre as atividades diárias dos policiais. O menor controle daria origem às
oportunidades para a corrupção (Skolnick e Bayley, 2002). Ressaltam os autores (2002)
que pelo fato de a corrupção ser uma atividade essencialmente escondida, se realmente
houver, seguramente não vai ser relatada.
Skolnick e Bayley (2002:105) afirmam que quando a conduta dos policiais do
policiamento comunitário é exemplar, a independência de sua base de poder não vai se
239
Moore (2003:161-162) ressalta, ainda, que uma das razões para a criação de forças públicas foi a
produção de uma alternativa às vinganças particulares e, nos esforços de controle, o aumento da justiça
geral. Ele também defende a expansão do policiamento comunitário como uma forma de “frear” o
aumento do policiamento privado, o qual, certamente, será marcado pela injustiça e pelo desprezo aos
direitos humanos (2003:161).
209
240
Os autores (2002:112) deram o exemplo de delegacias policiais em lugares pouco povoados da
Austrália, onde o policiamento é feito por um ou dois policiais, e a distância em relação à delegacia de
apoio é enorme. Nesses lugares, os policiais percebem que dependem do apoio das pessoas do local para
preservar a ordem pública (Skolnick e Bayley, 2002). Esse apoio se dá por meio de uma aliança tácita
entre os policiais e os brancos da cidade, em detrimento dos aborígines (Skolnick e Bayley, 2002).
241
Conforme já foi enfatizado, Moore (2003:162-163) destaca que, na melhor das hipóteses, a conquista
do policiamento profissional estimulando os valores legais nos departamentos de polícia tem sido
incompleta. Em muitos departamentos, valores legais ainda são vistos mais como restrições opressivas,
do que objetivos importantes a serem expressos e protegidos em operações policiais (Moore in Tonry e
Morris, 2003).
212
242
Moore (2003) argumenta que o enfoque absoluto na eficácia do controle do crime encoraja a polícia a
ver os valores legais mais como restrições, do que como objetivos. Se a responsabilidade maior da polícia
fosse ordenar as relações na comunidade, ela poderia, com maior freqüência do que agora, achar que os
valores legais são guias úteis para uma conduta apropriada.
213
243
De acordo com Sherman (2003:192), usando critérios objetivos para a seleção de alvos, a estratégia
proativa pode chegar bem perto do policiamento igualitário, dando, a todos os indivíduos na mesma
situação, oportunidades iguais de serem selecionados como alvos.
244
Autores (2002:116) afirmam que em alguns programas de “Vigilância de Bairro” os policiais
destacaram a obtenção de melhores resultados em comunidades etnicamente homogêneas, relativamente
afluentes, e de classe média.
245
Skolnick e Bayley analisam, em 1986, as mudanças nas polícias de Detroit e Santa Ana, entre outras,
no livro Nova Polícia: Inovações nas Polícias de Seis Cidades Norte-Americanas, São Paulo, Edusp,
2001.
214
tecidas por diversos autores, de fato o policiamento comunitário muitas vezes não pode
ser implantado de forma redistributiva, independentemente do grupo social a que
pertence o cidadão. No entanto, essa dificuldade não está relacionada ao novo modelo,
mas constitui uma herança deixada aos tempos atuais, sendo oriunda de décadas de
tensões sociais, tratamento diferenciado, discriminações e injustiças. Uma das
finalidades do policiamento comunitário é a redução paulatina dessas divisões, para que
se possa vislumbrar a adesão dos princípios democráticos e desejada a conformidade
entre legalidade e legitimidade pela Instituição policial.
também, informações que permitem corrigir os erros e ampliar o programa para outras
áreas.248
248
Greene (2002:194) entende ser essencial o desenvolvimento de um feedback [informações] que
permita o monitoramento do processo de implantação. O monitoramento e a avaliação vão ser objeto de
análise do próximo tópico, onde serão discutidas suas dúvidas e dificuldades.
249
Os autores (1988:103) reportam-se aos problemas de controle de multidões enfrentados pela polícia
norte-americana na década de 1960, oriundos do uso excessivo da força.
219
250
Skolnick e Bayley (2002:103-104) afirmam que, quando o policial se aproxima das classes
minoritárias para tentar ajudá-las na resolução de seus problemas, as revoltas tendem a diminuir.
251
Segundo Bittner (2003:240), o policial, e apenas o policial, está equipado, autorizado e é necessário
para lidar com toda emergência em que possa ter de ser usada força para enfrentá-la. Para uma discussão
sobre o mandato do uso da força ver: Muniz (1999), Muniz e Proença Jr. (2003).
220
do uso da força às situações emergenciais, e pressupõe que esse recurso não ultrapasse o
estritamente necessário a cada situação particular. Ele não prescinde do uso da força,
mas procura utilizá-la com base nos critérios da racionalidade e proporcionalidade.
252
Para enfatizar essa necessidade, os autores (2002:94) citam a experiência de policiamento comunitário
em Cingapura, por considerarem um caso excepcional e um exemplo a ser seguido. A experiência é
221
considerada um exemplo pelo fato de o governo de Cingapura ter decidido expandir o novo sistema para a
ilha toda apenas depois de avaliar seus resultados (Skolnick e Bayley, 2002).
253
McElroy (2002:111) destaca a necessidade de enfoques menos tradicionais na avaliação dos
programas comunitários. No mesmo sentido o entendimento de Sacco (2002:157). Bennet (2002:145-146)
entende que a eficácia da polícia na prestação do serviço comunitário pode ser avaliada a partir da
observação dos três elementos principais do modelo: a filosofia; as estruturas organizacionais; as
estratégias organizacionais.
254
Moore (2003:144) afirma que há muito mais em jogo, na mudança da estratégia geral do policiamento,
do que ao mudar um programa específico ou fazer arranjos administrativos. Está envolvida uma parcela
muito maior dos recursos da organização (Moore in Tonry e Morris, 2003). A referência à necessidade de
maiores investimentos reafirma o entendimento de que, muitas vezes, as próprias avaliações não são
realizadas por carência de recursos.
222
ou a restauração da qualidade de vida, e, se isso ocorreu, como tais critérios podem ser
medidos (Moore in Tonry e Morris, 2003).
Tentando medir a intensidade das mudanças produzidas pela introdução modelo
comunitário em alguns departamentos de polícia dos Estados Unidos, na década de
1990, Moore et al (2000:254) descreveram os indicadores considerados na pesquisa:255
“1. The extent to which the commitment to change remains rooted in the
leadership of the department, and in the expectations of those in a
department’s political environment who oversee the department’s operations.
We reason that if the commitment to community policing is anchored in the
expectations of citizens, their representatives, and those who lead the police
departments—or if it is anchored in a funding source that continues to supply
funds for reforms—then the likelihood of the changes continuing over time
increases.
2. The extent to which the changes were organizationwide rather than specific
to a particular structural unit. It seemed likely that the changes wrought would
be more likely to survive and be influential if many in the organization were
caught up in the change process than if the change was isolated within a
particular structural unit.
3. The extent to which the changes were rooted in the physical and
operational infrastructure of the department—e.g., the extent to which the
changes were embodied in new physical plant, in new information
technologies, and in new operational procedures. The tighter the connection
between the changes and these underlying infrastructures, the more durable
and influential the changes were likely to be.
4. The extent to which the changes were embodied in revised administrative
systems that guide the organization’s operations. Particularly important here
are the personnel systems that police rely on to recruit, select, train, evaluate,
compensate, promote, and discipline officers. Also important are the systems
the department uses to allocate resources, monitor operations, and measure
the overall effectiveness
of a department.
5. The extent to which the changes came to redefine the cultural
understandings and commitments of the department—the extent to which
employees at all levels of the organization bought in to the idea of community
policing and understood and believed in its principles. Of particular interest
was a kind of “generational” effect that was produced by a change in the
proportion of people in a department who had grown up under the new system
rather than the old system of policing.”
255
Os pesquisadores avaliaram, em 2000, os programas de policiamento comunitário de dez cidades
norte-americanas: Albany, New York; Colorado Springs; Fremont, Califórnia; Knoxville; Lowell,
Massachusetts; Portland, Oregon; St. Paul; Savannah; Spokane.
223
delas estivesse presente, entenderiam que qualquer mudança seria totalmente vulnerável
(Moore et al, 2000).
O primeiro indicador das mudanças referia-se ao comprometimento da comunidade
e dos administradores de polícia com o policiamento comunitário. Os autores entendem
(2000) que, caso o comprometimento com o policiamento comunitário estivesse
ancorado nas expectativas dos cidadãos, seus representantes, e nos líderes dos
departamentos de polícia, as probabilidades de mudança continuariam crescendo. O
segundo critério considerava a extensão das mudanças na estrutura organizacional dos
departamentos, a fim de verificar se o modelo havia sido implantado como uma unidade
especial ou se tratava de um processo de mudança envolvendo todo o departamento. A
extensão com que as mudanças haviam sido enraizadas na infraestrutura dos
departamentos de polícia também seria considerada pelos pesquisadores. O quarto fator
verificado foi a extensão das mudanças no sistema administrativo dos departamentos, no
sentido de serem incorporadas às formas de recrutamento, seleção, treinamento,
avaliação, premiação, promoção e disciplina. Os pesquisadores procuraram verificar,
também, até que ponto as mudanças foram capazes de redefinir o entendimento e
promover o envolvimento dos membros do departamento de polícia com a filosofia do
policiamento comunitário. Perquiria-se o comprometimento dos membros dos
departamentos de polícia com as idéias e os princípios propostos pelo “novo” modelo.
Para confirmar a necessidade da criação de mecanismos de avaliação que
considerem a complexidade das mudanças propostas pelo policiamento comunitário,
mostraram-se de grande utilidade as observações de Greene (2002:175-196). Para o
autor (2002:190), não basta especificar os diferentes níveis de mudança – mudanças
individuais, no ambiente, na organização, no grupo de trabalho. Torna-se fundamental,
segundo ele, examinar como cada um completa e apóia o outro (Greene in Brodeur,
2002). Para uma estimativa completa da implementação, a adequação dessas mudanças
– e suas implicações para o departamento de polícia – devem ocupar a maior parte das
elaborações políticas e do tempo de avaliação. O autor (2002) destaca que seria
necessário, portanto, verificar os “ajustes” entre essas mudanças para se ter uma
estimativa completa da implementação do policiamento comunitário. As transformações
pelas quais vêm passando os departamentos de polícia modernos carecem do
monitoramento – o ideal seria que esse monitoramento se verificasse em tempo integral
224
256
Bennet (2002:139-155) fala do papel desempenhado pela polícia e pelo público na prestação do
serviço policial.
225
257
Sacco (2002:158) afirma, ainda, que, para alguns céticos, as próprias pesquisas são conceituadas como
pouco mais do que um exercício de relações públicas. Essas pessoas acreditam que, embora elas
propiciem uma evidência altamente visível de que a polícia está engajada em “consultas amplas”, as
pesquisas de opinião geram pouca informação que tenha valor real (Sacco in Brodeur, 2002).
227
polícia, por exemplo, ignore os direitos das minorias e ainda obtenha bons índices de
aprovação por parte de muitos membros do público (Sacco in Brodeur, 2002).
Outro aspecto dessa ambigüidade é o fato de a relação entre a satisfação e as
expectativas ser raramente explicitada (Sacco in Brodeur, 2002:162). Enquanto
pesquisas de opinião indicam como as pessoas se sentem em relação à polícia, é muito
raro que indiquem como as pessoas esperam que a polícia aja (Sacco in Brodeur, 2002).
Segundo o autor (2002:163), é razoável supor que as expectativas em relação ao
policiamento sejam contextualizadas por experiências do grupo e, portanto, reflitam
variações étnicas e de classe no modo como os papéis da polícia são entendidos. No que
diz respeito a diferenças étnicas em particular, ele afirma que as minorias que estão
tentando se tornar parte da cultura dominante podem estar muito atentas e sensíveis às
respostas da polícia que pareçam simbolizar uma falta de respeito (Sacco in Brodeur,
2002).
Referindo-se, ainda, à relação entre a satisfação e as expectativas do público, Sacco
(2002:163) afirma que a descoberta de que as vítimas de crimes (em especial as vítimas
de crimes sérios) são menos favoráveis à polícia pode demonstrar uma tendência a
terem expectativas mais altas sobre a polícia e o que ela pode realizar em situações
relacionadas ao crime. Ele se reporta às análises de Skogan, da Pesquisa Britânica de
crime, pelo fato de terem revelado que os níveis de satisfação do público eram, em
geral, mais altos no caso das solicitações de serviço definidas como menos urgentes, e
que a insatisfação era maior quando se tratava de eventos relacionados mais de perto
com a tarefa tradicional de policiamento (Sacco in Brodeur, 2002). 258
Sacco (2002:165) diz que as interpretações que membros do público fazem sobre o
comportamento da Polícia afetam o grau de satisfação que eles podem vir a expressar
sobre o contato com a Instituição. A esse respeito, as percepções de cortesia, conduta,
nível de interesse, ações praticadas, profissionalismo, e tempo de resposta influenciam
de modo muito importante a satisfação do público (Sacco in Brodeur, 2002). O autor
(2002) afirma que “níveis elevados de satisfação também estão associados ao ‘cara a
258
O autor (2002:163) afirma que as expectativas do público sobre como a polícia deve atuar são
formadas pelas imagens da mídia. Ele se refere aos entrevistados na Pesquisa Britânica de Crime,
ressaltando que aqueles que identificaram a televisão, o rádio ou os jornais como suas mais importantes
fontes de informação sobre a polícia eram mais positivos em suas avaliações e a probabilidade de
considerarem que o desempenho da polícia em suas áreas estava acima da média era maior. A polícia é
retratada pela mídia daquele país com mais freqüência e de modo mais favorável, quando comparada às
demais agências de justiça criminal (Sacco in Brodeur, 2002).
228
CONCLUSÃO
Nas décadas seguintes, com a inclusão da polícia comunitária nos projetos de reforma
para a democratização das polícias, e a intensificação dos estudos a respeito do assunto,
começava a ser compreendida a amplitude da concepção de ordem pública, não sendo
mais aceita a sua restrição às atividades de controle do crime pelos agentes da lei. A
observação de diversos autores, ao avaliarem em que se concentravam as solicitações do
público por serviços policiais – grande parte dos anseios e preocupações da sociedade
não estava relacionada à ocorrência de crimes – confirma uma questão importante
trazida à pauta de debates com o desenvolvimento de estudos sobre os aspectos do
trabalho policial. A preservação da ordem pública não se resume ao controle do crime, e
muitas vezes envolve a solução de problemas de todo tipo, os quais, em sua maioria,
não estão diretamente relacionados à prática de delitos graves, mas correspondem aos
fatores que mais afetam a qualidade de vida na comunidade. Por esse motivo, afirma-se
que o novo modelo de policiamento operou na redefinição das funções policiais, para
que fossem reconhecidas - tanto pela Polícia quanto pela sociedade – atividades
igualmente importantes para a preservação da ordem pública, as quais os policiais
sempre foram solicitados a realizar e que muitas vezes consistiam no “grosso” de seu
trabalho.
Trata-se de um momento importante, portanto, para a história do policiamento
moderno, no qual são grandes os esforços no sentido de desfazer equívocos construídos
por décadas em torno da produção de segurança pública, como a idéia de que a Polícia
somente teria a atribuição de enfrentar o crime e o criminoso. Mostrou-se infundado o
discurso – conservador, autoritário – de “guerra ao crime e ao criminoso”, dada a
impossibilidade de “eliminar” ou “banir” o crime da sociedade, a menos que se queira
por fim à própria existência humana – o crime, como as demais formas de conflitos
sociais, não constitui um fenômeno que possa ser dissociado das relações sociais. A
preservação da paz em sociedades democráticas ainda é fruto de grandes controvérsias,
e todos, o poder público, os cidadãos e a própria polícia acabam pagando pelas
orientações políticas equivocadas no campo da segurança pública. Os centros urbanos
brasileiros são uma prova de que as permanências autoritárias constituem um traço
marcante das atividades policiais em tempos de democracia.
Experimentos desenvolvidos em diversas partes do mundo evidenciam que o
policiamento comunitário é um caminho frutífero de democratização das práticas
237
policiais uma vez que procura a solução de problemas com base na comunidade, e por
meio da utilização de estratégias preventivas. Dois aspectos cruciais aqui, e que tornam
o novo modelo bem diferente do policiamento profissional, são: 1) a percepção de que a
Polícia não pode, sozinha, dar conta da produção de segurança pública; 2) ao invés de
lidar apenas com os efeitos gerados pelos crimes já ocorridos, a Polícia pode, com o
apoio e a participação da sociedade, procurar identificar as possíveis causas ou
elementos que favorecem a incidência de determinados crimes, da violência e da
desordem. O reconhecimento da imprescindibilidade dos atores sociais na construção e
sustentação de uma ordem pública democrática constitui um grande avanço para a
definição dos papéis da Polícia e da sociedade. Sob a égide do policiamento profissional
acreditava-se que somente a Polícia - composta por um grupo de indivíduos autorizados
e preparados para lidar com qualquer situação em que fosse necessário o uso ou ameaça
da força física – seria capaz de sustentar a ordem pública, e que o melhor a fazer seria
manter os policiais distantes do público e evitar possíveis problemas que poderiam
surgir a partir de um contato mais próximo entre a Instituição e as pessoas. Esse
entendimento não apenas vai de encontro aos princípios democráticos, segundo os quais
as decisões e atividades desempenhadas pela Polícia carecem do consentimento, da
aprovação e participação social, como também tenta alcançar o impossível – a produção
de uma segurança pública absoluta, através da eliminação do crime, da violência e da
desordem. A premissa segundo a qual o simples fato de os policiais se tornarem uma
presença visível nas ruas, por meio do patrulhamento motorizado aleatório, já bastaria
para prevenir o cometimento de crimes, e que isso, associado às estratégias reativas de
policiamento, garantiria a segurança da sociedade – dos “cidadãos de bem” – não mais
se sustenta.
A percepção de que a produção da segurança pública não prescinde do auxílio de
toda a sociedade envolve a compreensão de que tanto a sociedade civil quanto o poder
público, as agências públicas e privadas, as organizações não-governamentais etc
exercem papel essencial nesse processo. A união de esforços entre a Polícia e a
comunidade de parceiros significa a possibilidade de fortalecimento das estruturas de
controle social informal existentes na sociedade, o que também contribui para o
aumento da eficácia policial na solução dos problemas locais. O fortalecimento dos
mecanismos de controle informal ou organização da comunidade constitui não apenas
238
os dias na mesma rua, sendo conhecido por grande parte das pessoas que moram ou de
alguma forma freqüentam o lugar, constitui um impeditivo para a prática de atos
discriminatórios, violentos ou corruptos.
A responsabilização [accountability], também denominada “controle de qualidade”
dos serviços policiais pelos seus clientes, representa um grande avanço para a Polícia
moderna em termos de democratização de suas atividades e decisões. A supervisão
exercida pelos oficiais de alta patente, para a verificação do respeito dos policiais de
ponta às leis e aos ordenamentos internos da organização não é abandonada pelo novo
modelo, mas considerada insuficiente. O ideal seria a conformidade ou adequação das
regras de disciplina, e dos critérios de sanção, premiação ou promoção dos
departamentos de polícia, aos objetivos do policiamento comunitário: o oferecimento de
serviços policiais de forma mais justa, igualitária e, portanto, democrática. Ao invés de
pretender a obediência estrita dos policiais aos códigos disciplinares e orientar suas
atividades a partir de proibições ou enumerações sobre tudo o que os agentes da lei não
podem fazer, o policiamento comunitário preocupa-se com a importante função - dos
policiais da supervisão - de orientar e acompanhar as atividades dos policiais de ponta
no sentido de verificar sua conformidade com os princípios democráticos e as demandas
da sociedade civil. As demandas – necessidades ou interesses – da população
constituem uma prioridade para a Polícia. Logicamente, os policiais comunitários
correm o risco, nesse aspecto, de reafirmarem pontos de vista de determinados
segmentos sociais, o que significaria a reafirmação de preconceitos - estereótipos,
discriminações - para com os grupos minoritários. Esse caminho, que não se assemelha
aos objetivos do policiamento comunitário, pode ser evitado pelos policiais durante suas
interações diárias com os mais diferentes grupos sociais, desde que procurem fazer
leituras imparciais e desprovidas de valorações preconceituosas das situações de
conflito com que se depararem. O policial comunitário pode, inclusive, exercer um
papel importante na tentativa de desconstruir valores culturais arraigados na estrutura
social, e na própria Instituição policial.
Entre as questões colocadas por defensores e críticos do novo movimento de
reforma está a que se refere ao tempo necessário para a visibilidade de seus resultados.
Trata-se de uma questão delicada, por envolver interesses distintos, inclusive políticos, e
por estar associada, muitas vezes, às próprias tentativas de enfraquecer a filosofia e as
242
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