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Entre A Guerra e o Poder - Tráfico e Política Na Cidade de Ceilândia - L. L. Da Silva PDF

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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais


Departamento de Antropologia
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Entre a Guerra e o Poder: Tráfico e Política na


cidade de Ceilândia

Leonardo Leocádio da Silva

Dissertação de Mestrado

Orientador: Luis Roberto Cardoso de Oliveira

1
Universidade de Brasília
Instituto de Ciências Sociais
Departamento de Antropologia
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

ENTRE A GUERRA E O PODER: TRÁFICO E POLÍTICA NA


CIDADE DE CEILÂNDIA

AUTOR: LEONARDO LEOCÁDIO DA SILVA

Orientador: Prof. Doutor Luis Roberto Cardoso de Oliveira (DAN/UnB)

Banca: Carla Costa Teixeira (DAN/UNB)

Caetano Ernesto Pereira de Araújo (SOL/UNB)

2
Agradecimentos

Tenho uma lista imensa de pessoas a agradecer, muitos contribuírem de uma maneira ou
de outra no percurso que marcou a escrita dessa dissertação. Primeiramente, gostaria de
agradecer ao meu pai e a minha mãe que sempre apoiaram meus estudos independente
das condições ou problemas enfrentados, é a eles a quem dedico essa dissertação.
Agradeço também aos meus irmãos Joanes e Tatiane pelas ajudas em momentos difíceis
e por me aturar em qualquer situação que me encontrava.
Agradeço aos nossos amigos e a Dona Aparecida pelos conselhos e carinho. À tia
Socorro ao tio João e a Manu por me motivarem sempre.
Agradeço em especial o meu orientador professor Luis Roberto, que apesar das
múltiplas tarefas que possuía encontrou tempo para me ensinar e conversar, sendo uma
pessoa que possui o meu mais sincero reconhecimento e estima.
Agradeço também a professora Ellen Woortmann e ao professor Klaas Woortmann, que
contribuíram de forma indireta para a escrita dessa dissertação, mais de forma direta
para a minha formação me introduzindo nos estudos de campesinato.
Agradeço a professora Mariza Peirano que apesar dos problemas que enfrentei ao
realizar suas disciplinas, teve paciência, dando valorosos conselhos e ajudando a
desenvolver meu estilo de escrita.
Agradeço ao professor Gabriel Omar pela ajuda e pela amizade. Ao professor Brasilmar
Ferreira por ter me introduzindo durante a graduação nas pesquisas referentes à cidade
de Ceilândia.
À professora Antonadia Borges cujas aulas e pesquisas foram de suma importância para
esse trabalho.
Ao professor Gustavo Lins Ribeiro e Paul Little pelas discussões e conversas, dentro e
fora de aula. A Rosa, Paulo e Adriana que sempre me ajudaram de todas as formas
possíveis no departamento.

3
A minha amiga Ivanise e aos meus colegas de Corumbá, em especial aqueles que se
tornaram verdadeiros amigos durante o nosso penoso percurso Goiás, Rodrigo, Vitor,
Papa, Marcel, Débora, Thais e Danilão.
Agradeço aos meus amigos do INCRA que me apoiaram nos momentos finais, Marta,
Roberto, Alba, Leslye, Rui, Vanilton, Bruno, Julia, Guilherme, Fátima e Ivete.
E por fim, agradeço a Dona Hermelinda e a todas as pessoas que participaram grandes
amigos que fazem parte do meu dia-a-dia.

4
Resumo

Bandido, tráfico de drogas e política, palavras que possuem inúmeros significados para
diferentes sujeitos, mas que sempre estiveram presentes na experiência de vida e
etnográfica que tive na cidade de Ceilândia. Entre o estranhamento e a proximidade, esta
dissertação reflete o anseio de entender como se constroem a relação dos moradores com
duas importantes esferas da vida na região pesquisada; o tráfico e a política. Os jornais e
a opinião pública falam da violência na Ceilândia como a maior representante da
criminalidade no DF. No entanto, poucos ouviram realmente os moradores, gerando e
promovendo um mito que sustenta uma moralidade específica no qual identidades locais
são invisibilizadas. Esta pesquisa busca, sobretudo, a compreensão das significações que
surgem da interação dos moradores com mundo social, tendo como foco como a
discussão da moral e o funcionamento do sistema de classificação interacional local que
fabrica identidades constantemente. Dessa forma, ao longo dessa dissertação,
demonstrarei elementos de reconhecimento identitário que funcionam como verdadeiros
aglutinadores que possibilitam o indivíduo se ligar à sociedade, evidenciado como as
relações entre o tráfico e a política fazem parte de um sistema social que “enquadra”
todos, de forma a assegurar a integridade da comunidade e a coerência das
representações que tem sobre si mesmo e sobre o mundo.

Abstract

Bandit, traffic of drugs, politic, words with many means for different subjects, but
always been present in life and ethnographic experience that I had in Ceilândia city.
Between the estranger and the proximity, this dissertation reflects the longing of
understanding the way that build the relation of residents with two important sphere of
life on the research region; the traffic and the politic. The newspapers and the public
opinion speech of Ceilândia violence like the greater representative of criminality in DF.
Although few people have really listened the residents, making and promoting a mite
that supports a specific morality which local identities are invisibles. This research
searches, above all, to understand the significations that emerge of the interaction of the
residents with the social world, like main idea the discussion about moral and the work
of the local interactional classification system that fabric identities constantly. According
to this, along this dissertation, I will demonstrate the elements of identity reorganization
that work with true agglutinaters which provides the individual connect on society,
indicating how the relations between the traffic and the politic are part of a social system
that “frame” all people, so that to assert integrity of the community and the coherent of
the representations that they have about they self and the world.

5
Índice

Introdução ......................................................................................................................... 7
Tráfico, uma instituição local ....................................................................................... 20
Honra e reputação, aspecto de uma identidade .................................................... 22

A polícia, o terceiro da relação ............................................................................ 33

A riqueza do tráfico .............................................................................................. 35

Faces da guerra ..................................................................................................... 40

A família do tráfico .............................................................................................. 46

Aspectos morais, o dilema do tráfico ................................................................... 50

A política das identidades .............................................................................................. 67


A CJC e os tramas políticos ................................................................................. 73

Da galinhada ao milhão ........................................................................................ 87

Escondendo o jogo ............................................................................................... 95

Cadê a grana? ..................................................................................................... 101

O re-encontro ..................................................................................................... 113

Considerações finais........................................................................................... 116

Conclusão – Da política ao tráfico via identidade e cidadania................................. 121


Glossário........................................................................................................................ 128
Bibliografia ................................................................................................................... 129

6
Introdução

Esta dissertação busca, sobretudo, compreender uma experiência de vida que,


posteriormente, se transformou em uma experiência etnográfica. Não se trata de uma
etnografia sobre um grupo distante, mas de um singelo estudo sobre a vida social de uma
comunidade na qual possuo fortes ligações. A cidade de Ceilândia, local alvo dessa
etnografia, não é uma cidade desconhecida; sempre tive amigos e parentes na região,
sempre fui às suas feiras, sempre participei, de várias formas, da vida da cidade. No
entanto, em 2004 conheci Dona Hermelinda e por conseqüência a Casa de Justiça e
Cidadania, situada na QNN 07. Dona Hermelinda era, nessa época, um dos membros
dessa instituição que realizava mais atividades, uma liderança que rapidamente me
proporcionou acesso aos moradores e à sua vida. Durante quatros anos desenvolvi
trabalhos de auxílio à Casa, dei aulas, ajudei em termos organizacionais, participei de
atividades políticas, vivi um pouco do cotidiano da região.
De tanto ouvir histórias e conviver com os moradores, percebi que havia vários
pontos da vida social daquele lugar que mereciam maior esclarecimento, tanto para mim,
como cidadão, quanto pesquisador. Dessa forma, resolvi sistematizar, a partir do olhar
etnográfico, os vários eventos e discursos que presenciava diariamente. Esta
transformação de ator social para pesquisador não alterou laços e identidades sociais,
mas apenas a minha atitude reflexiva diante dos fatos do dia-dia. Não era Léo, o
pesquisador, mas sim, Léo o trabalhador da Casa. Vantagens e desvantagens ocorreram
dessa transformação, sendo que a minha escrita reflete intensamente isso.
Acredito que devido a esse tipo de inserção o acesso a informações sobre a vida
das pessoas foi amplo. Não era um estranho que vinha de um lugar distante; era uma
pessoa conhecida que, apesar de diferente, já fazia parte da paisagem local. Isso
promovia uma cumplicidade, uma confiança que permitia as pessoas me convidarem
para tomar um café em suas casas e conversarem sobre muitos assuntos delicados.

7
Acreditavam que os dados que obtive seriam usados de forma moderada, sem
comprometê-los. Sem dúvida, este foi um dos principais fantasmas que enfrentei durante
a escrita do texto. Não sabia que caminho os dados etnográficos poderiam me levar.
Como tratar de violência, drogas, assassinatos, paixões, amores, mentiras públicas,
suborno, política, pobreza, sexo, sem comprometer aqueles que falavam sobre isso?
Dessa forma, acredito que boa parte do que vi e ouvi não estão presentes nessa
dissertação1. Escrever é selecionar; algumas vezes selecionar para se tornar claro,
algumas vezes selecionar para explicar uma tese, mas outras vezes selecionar para
proteger aqueles que falam e de que se fala. Assim, apesar de muitos dados etnográficos
aqui apresentados tratarem sobre aspectos polêmicos da vida pessoal e pública dos
moradores (descritos nesta dissertação com nomes fictícios), a comunidade avaliou de
forma positiva o trabalho, principalmente pela visibilidade que traria a região,
autorizando totalmente a exposição dos dados obtidos nessa dissertação. Dessa maneira,
esta dissertação também é um instrumento político, no qual as pessoas daquela
comunidade, naquela região, falam sobre a sua vida e, principalmente, sobre as suas
batalhas, para o mundo.
Em contraposição, a minha inserção como ator social não apenas rendeu frutos
em termos de dados, ela também restringiu campos de análise. Freqüentemente me vi
entre ‘fogo cruzado’, pois tinha que me engajar, preparar um discurso e estabelecer
alianças. Em momentos de conflito, falar com alguém errado poderia significar uma
traição, resultando em uma espécie de ostracismo social, ou até em perigo físico. As
ações de pesquisas foram cuidadosamente pensadas, tinha que saber com quem falar,
como falar e aonde falar. Nesse sentido, o trabalho que desenvolvia na comunidade, bem
como as amizades já consolidadas, foi essencial para que escolhesse os caminhos da
pesquisa e pudesse ser aceito pelo grupo.

1
Os dados que não apresento nessa dissertação dizem respeito a crimes, tipos de violência e mesmo
conversas que por seu caráter ilícito, ou pela delicada situação política que caracteriza a região
etnografada, não poderiam ser relatadas, pois poderiam trazer transtornos para os informantes.

8
De toda maneira, essa dissertação representa apenas um quadro da intensa vida
social daquela comunidade. Ainda hoje, freqüento o local e observo como a dinâmica
social e o quadro analítico que desenhei durante essa dissertação continuam a se
modificar, apesar de um substrato relativamente estável. Mudanças sutis ocorrem, novos
atores, novas perspectivas, novas esperanças. Apesar disso, a relação da comunidade
com o tráfico e a política continua de forma intensa. Pouco se modificou e o desânimo
da população quanto à sua limitada condição material, assim como em relação às
alternativas que utilizam para superar as suas principais necessidades e enfrentar o
mundo, se tornam aspectos fundamentais para o desenvolvimento de uma vida social.

A cidade de Ceilândia está localizada em um antigo vazio ocupacional que no


momento da sua fundação, tinha como objetivo afastar a população pobre do Plano-
Piloto em construção. É uma cidade formada como um Centro de Erradicação das
antigas invasões do IAPI, as vilas Tenório, Esperança, Bernado Saião e Morro do
Querosone no final da década de 60. Sua fundação remonta ao início da década de 70, o
que a transforma em uma das cidades mais antigas do DF. Em termos espaciais,
Ceilândia faz limite com as cidades de Taguatinga e Samambaia, formando um grande
conglomerado urbano separado apenas administrativamente e no imaginário social.
2
Em termos populacionais as três cidades juntas somam cerca de 35% da
população do Distrito Federal, apesar de ainda estar em plena expansão por meio de
invasões localizadas em seus limites. Tal porcentagem populacional acaba por tornar
essas cidades alvos de políticos que buscam garantir sua chegada ou reprodução no
poder, atuando, prioritariamente, na tentativa de criar e sustentar verdadeiros currais
eleitorais por meio de práticas paternalistas (Palmeira e Goldman, 1996).

2
Dados PDAD 2004.

9
Na esfera estatal, o que se percebe é que a implementação de políticas sérias que
buscam uma melhoria efetiva da população da cidade ainda é uma realidade distante,
sendo que poucos equipamentos urbanos localizados na cidade encontram uma real
eficácia para a população, tornando-a extremamente dependente de Taguatinga e do
Plano-Piloto. A crise de aparelhos públicos se reflete em uma crise institucional, na qual
a polícia como, instituição mais visível localmente, é a principal representante.
Cabe ressaltar que Ceilândia, junto com Taguatinga, são as cidades que
apresentam maiores indicadores de criminalidade em todo o DF. Contudo, a
criminalidade já faz parte da construção identitária da cidade, algo tão freqüente que a
torna banalizada a ponto de a “bandidagem” manifesta pelo roubo, a sonegação e a
informalidade constituir projetos individuais (Shultz 1979) que visam oferecer
alternativas financeiras frente à irrisória oferta de postos de trabalho na cidade. Alguns
desses projetos são institucionalizados através do tráfico e, apesar de serem percebidos
como algo notoriamente negativo para a comunidade, são habituais e fornecem
alternativas de segurança e de “trabalho” aos moradores da cidade.

II

Ceilândia, berço da malandragem e da bandidagem do Distrito Federal. Essa


frase parece até uma citação de algum rapper famoso da região, entretanto, essa é a
imagem estigmatizada e carregada por seus moradores. Para quem não conhece
Ceilândia, o fato de morar na cidade implica automaticamente em uma desvalorização
identitária do interlocutor, promovendo estigmas e segregação. Não compartilhava
desses pressupostos, não sentia medo da cidade, desde pequeno a conhecia e estava
habituado com os seus moradores e com as suas paisagens. A comunidade entografada
percebeu isso, não me tornando um elemento exógeno, desde o princípio, eu era
praticamente “um vizinho”.
Para quem não a conhece, ir a Ceilândia é chegar pela sua porta principal, ou
seja, pegar a Avenida Hélio Prates, que corta Taguatinga, e seguir sempre reto. Logo

10
após o Setor M-Norte, passando o cemitério de Taguatinga, pode se ver 8° Batalhão de
Incêndio do Corpo de Bombeiros e a placa, “Bem vindo à cidade de Ceilândia”. Essa é a
principal entrada da cidade. Seguindo pela mesma pista, no sentido de quem vai de
Taguatinga para o centro de Ceilândia, tudo o que está à direita é tido como Ceilândia
Norte, e da mesma forma, tudo o que esta à esquerda é Ceilândia Sul.
Seguindo pela Hélio Prates, há algumas dezenas de metros do Corpo de
Bombeiros, já se pode observar a intensa vida social da cidade. Antigamente, naquele
local, uma multidão de barracas se amontoava, onde eram vendidos desde roupas até
artigos de informática. Aquele formigueiro de pessoas quase intransitável hoje é um
local de circulação para os que se dirigem aos centros comercias da cidade 3. ‘Ceilândia
é uma cidade de gente’ como vários moradores costumavam dizer, algo que se
diferenciava do Plano Piloto, uma cidade onde não se vê o fluxo de pessoas. Passando o
cruzamento, logo acima da feira central já se pode observar as quadras pares da QNM,
começando a partir da 02 e terminando na 10, sempre tendo como referência o centro.
Na próxima interseção da pista, já na altura do Beer House (um bar famoso da cidade) e
a loja Beth e Lily, à direita encontram-se as quadras ímpares da QNN.
Quando vinha por Taguatinga, percorria esse caminho freqüentemente. Ele não
era de forma alguma estranho pra mim, já o percorrera várias vezes antes da pesquisa.
No entanto, quando estava realizando a etnografia, sempre buscava estranhá-lo. Em
vários momentos, quando entrava já nas quadras ímpares da QNN, observava o transitar
das pessoas, buscando ‘enquadrá-las’ a partir do olhar que as narrações etnográficas me
mostravam. Mães solteiras, mulheres de bandido, patricinhas, playboys, traficantes,
trabalhadores, evangélicos, enfim, toda a sorte de categorias gerais e locais que
acompanhavam o dia-a-dia das falas dos moradores se tornavam cada vez mais o foco
para o qual direcionava meu olhar.

3
O Governo do Distrito Federal ainda promoveu recentemente a revitalização do centro da cidade,
retirando as diversas barracas e mudando-as para uma feira popular localizada próxima à administração
regional.

11
Na estrada, tinha a mesma postura classificatória: ‘carro de polícia’, ‘carro de
bandido’, ‘carro de playboy’, ‘carro de trouxa’. Classificações, que com o tempo se
tornaram ‘automáticas’, e que eram fruto da interação no espaço público que enquadrava
tão fortemente as pessoas. Classificação essa que se tornava crucial na medida em que
regulava e criava expectativas sobre a conduta dos outros, formando uma linguagem
local tão freqüente que com o tempo também apreendi a utilizá-la tal como os
moradores. Sempre os tratei como iguais, pois conhecia os impactos que o estigma
social da pobreza imprime sobre os indivíduos, mas sabia também que esse estigma era
acionado, principalmente, pela postura ostensiva de estranhos a realidade local. Eu era
um desses estranhos, contudo, com o tempo passei a me tornar familiar, a ser inserido na
própria dinâmica da comunidade, a ser um agente social, um voluntário, e depois um
amigo.

III

O foco empírico da presente dissertação se dirige às quadras 03, 05, 07 das


QNNs e 08 da QNM, no lado norte da cidade. Foi neste local que concentrei boa parte
da etnografia realizada, sendo que os demais locais e moradores, apresentados ao longo
dessa dissertação, foram introduzidos por intermédio dos moradores dessas quadras. A
escrita, bem como os aportes teóricos utilizados, ilustram de forma reduzida uma
pequena parte da complexa rede de relações que compõe o universo social do grupo. No
entanto, toda escrita foi subordinada e orientada para a análise dos dados etnográficos
considerados mais importantes para a comunidade, aqueles que possuem maior impacto
em seu imaginário e que formam e orientam condutas estandardizadas, ou seja, a opção
pelo tráfico e sua vinculação à política.
As QNNs são quadras construídas na década de 70, seguindo o plano de
erradicação das favelas do planejado Plano Piloto. Junto com as QNMs, estas são as
quadras mais antigas da Ceilândia, agregando uma grande parcela do contingente

12
populacional da cidade. As quadras 03, 05 e 07 são quadras paralelas divididas apenas
por uma pista, enquanto que a quadra 08 fica no sentido oposto, do outro lado da pista
central, junto com as demais quadras de números pares da QNM. Como a maior parte
das quadras da cidade, estas são formadas por duas áreas, as entre-quadras e os
chamados conjuntos. As entre-quadras são locais em que se concentram os comércios e
serviços coletivos, como postos de saúde, escolas e igrejas. É o local onde as pequenas
necessidades de consumo da comunidade são satisfeitas. Sendo também um espaço de
socialização, pois é nessas entre-quadras que se encontram drogarias, bares,
mercadinhos e quadras de futebol, sempre cheias, seja durante o dia ou à noite.
É na entre-quadra da QNN 05/07 que se encontra a CJC (Casa de Justiça e
Cidadania), uma instituição construída pelos moradores, que depois de legalizada passou
a prestar assistência jurídica para a comunidade. Todavia, a CJC nunca se limitou
unicamente a atender esse propósito, fornecendo diversos tipos de serviço à comunidade,
de casa espírita kardecista a um centro esportivo que reúne crianças das várias quadras
próximas 4. Logo acima da CJC se localiza o Centro Educacional 08, o principal colégio
de Ensino Fundamental da região. Do outro lado da pista que liga as quadras da QNN de
menor numeração com as de maior está localizado o Centro de Ensino Médio 07, sendo
que o conjunto das duas escolas se torna a principal referência educacional naquela
região.
O outro espaço que compõe as quadras são os conjuntos, ou ruas, como os
moradores denominam. Estes conjuntos são organizados por letras, possuindo um total
de 18 conjuntos por quadra, indo da letra A à P. Cada conjunto possui cerca de 44 casas
emparelhadas em lotes de 200 m². As casas erguidas nesses lotes foram formadas no
sistema de mutirão, onde contava a princípio com uma “habitação provisória” (barraco
de madeira) e posteriormente sendo erguidas as casas de alvenaria na parte da frente do
lote com financiamento do governo (Tavarez 2005). Esse financiamento, intermediado
pela cooperativa dos trabalhadores, junto com o planejamento do governo, fez com que

4
Descrevo as características da Casa de Justiça e Cidadania no capítulo 2.

13
as casas da QNN e QNM e quase toda a Ceilândia, assim como a maior parte de
Taguatinga, tivesses casas com arquitetura idênticas.
Ainda hoje, alguns conjuntos possuem casas com o formato original. No entanto,
o que a maior parte dos conjuntos apresenta são casas reformadas, acompanhadas por
barracos, agora não mais de madeira, mas de alvenaria. Atualmente, os barracos se
tornaram habitações permanentes, uma espécie de local diferenciado da casa onde
geralmente habita uma outra família. O tamanho desses barracos é quase sempre menor
que a casa principal, sendo comum também não haverem casas principais, apenas
5
barracos em alguns lotes. Estas construções, tais como as casas atualmente, variam
bastante no seu formato, mas pelo seu tamanho, são quase sempre fáceis de identificar.
Os barracos representam, sem dúvida, uma alternativa à subsistência material
encontrada pelas famílias para sobreviverem à situação adversa que marca a moradia no
Distrito Federal. Em sua grande maioria, os barracos são utilizados como casa para
aqueles filhos que casaram, mas não tem condição de adquirir sua própria moradia, ou
para abrigar parentes que não possuem casa, em função da migração, ou mesmo pela
dificuldade comumente encontrada para sobreviver nas ditas cidades grandes. Em certa
medida, a conduta relacionada à construção dos barracos se assemelha àquela
encontrada no campesinato brasileiro, no qual o parcelamento de terra entre os
familiares é uma das formas de manter a unidade familiar (Wortmann 1995, Moura
1978).
Ou seja, os barracos são formas de apropriação espacial que possibilitam a
reprodução da unidade familiar, se tornando uma das alternativas financeiras mais
viáveis frente ao alto custo financeiro das moradias no DF. Uma outra possibilidade de
uso dos barracos é o aluguel. Os proprietários mais abastados que possuem barracos em
seu lote os alugam de forma a conseguirem alguma renda extra. É interessante notar que
esta prática é um dos investimentos preferidos por parte dos moradores da região para os

5
Segundo Borges, (2003) referindo-se ao Recanto das Emas, o barraco reflete a própria condição da
cidade, sendo uma maneira mais dinâmica de estar no espaço ao contrário da casa, elemento mais fixo por
envolver maior investimento material.

14
quais o aluguel é a forma mais estável de investimento. “Casa ninguém toma da gente.”
Uma frase recorrente durante toda etnografia, sempre aludindo ao trauma causado pela
poupança tomada na época do governo Collor.

15
IV

A rua é a principal unidade básica de socialização para os moradores da região.


Ela é intermediária, no sentido que se difere da casa, como um lugar público, mas ao
mesmo tempo constitui um espaço que possibilita a entrada de estranhos ao mundo
familiar da casa. É interessante notar que absorção de pessoas por parte da família é
baseada, preferencialmente no casamento, contudo o pertencimento tanto na família
quanto local é algo construído essencialmente pelo tempo. A maior parte dos moradores
da região é constituída de moradores antigos, que vivem naquela localidade há mais de
30 anos, possuindo ainda os lotes doados pelo governo. Geralmente, os atuais chefes de
família formam a segunda ou terceira geração a ocupar a mesma propriedade,
implicando em um conhecimento íntimo sobre o universo privado dos seus vizinhos
apoiado na convivência diária e uma constante troca de histórias.
Por conseguinte, a vida social nas ruas é bastante intensa. Durante o dia é
possível acompanhar pessoas circulando de uma casa para a outra, jovens brincando ou
jogando “golzinho”, velhos sentados com suas cadeiras na frente das calçadas
conversando, rapazes fumando maconha ou traficando nas esquinas, bêbados
cambaleando pela rua, policiais revistando os jovens “dando bacu” 6, enfim pode-se
observar uma rica vida social em um espaço tornado familiarizado, um território que por
mais problemático que seja, é conhecido e internalizado pelos moradores. Nesse sentido,
a espontaneidade da cidade promove um contraste sensível com a “rigidez” do Plano
Piloto planejado (Brasilmar 2004, Pavini 1987).
Como suporte para a sociabilidade aparecem as diversas instituições sociais nas
quais os moradores participam em várias instâncias. As instituições religiosas como
igrejas católicas, evangélicas e centros espíritas são as mais visitadas. Com a mesma
intensidade, os botecos e bares sempre estão cheios. Contabilizando um número
significativo, em média um boteco ou bar para cada dois conjuntos habitacionais, estes

6
Ver glossário.

16
são estabelecimentos locais onde a fofoca circula. Apesar dessa vida intensa nas ruas ou
conjuntos, Ceilândia não é uma cidade capaz de gerar grandes quantidades de postos de
trabalho. É uma cidade populosa, que concentra boa parte dos empregos
disponibilizados nas feiras populares, mas ainda encontra-se subordinada,
estruturalmente e em termos de relações empregatícias à cidade de Taguatinga e ao
Plano Piloto.
Vários moradores da localidade trabalham como faxineiros, empregados
domésticos, pedreiros, cozinheiros e muitas outras profissões que permitem “tirar um
dinheirinho” para sustentar a sua família. A construção de permanentes relações
econômicas e sociais entre a Ceilândia e as demais cidades faz com que o trânsito de
pessoas seja constante na própria cidade e para além dela, gerando diversas
conseqüências para a dinâmica de afirmação e reconhecimento identitário de seus
moradores, algo vivenciado tanto pelo pai de família, quanto pelo traficante da esquina.
Contudo, nota-se que boa parte da apreensão e compreensão do mundo externo à cidade
tem como referência o espaço de socialização que compõe a rua, algo que torna a não
apenas um local, mas uma categoria explicativa do mundo, implicando noções éticas e
morais próprias, tal como evidenciado nos capítulos que seguem.

Esta dissertação pode ser dividida em dois grandes eixos analíticos que se
mostraram relevantes em meio à construção da etnografia, a saber, o tráfico e a política.
A introdução buscou contextualizar o leitor sobre aspectos da região entográfica em que
foi realizada a pesquisa, bem como problematizar o papel do pesquisador durante o
trabalho de campo e os dilemas por ele enfrentados.
No primeiro capítulo trato sobre o tráfico. Explicito as características principais
dos meios de reprodução desse sistema, bem como a sua relação com as noções de honra
e reputação. Busco interpretar o tráfico como uma instituição que promove modificações
na carreira moral dos seus participantes e que atende a um fim específico, qual seja, a

17
reprodução e continuidade dos seus mecanismos. Trato da relação entre o tráfico e
polícia, aqui interpretada como uma peça fundamental que dota o sistema do tráfico com
determinados conteúdos. Explicito aspectos sobre a riqueza do tráfico, como funciona o
acesso a bens de consumo e qual a lógica mercantil que segue a produção, para em
seguida tratar dos aspectos da “guerra” local e da traição. Na penúltima seção do
capítulo falo sobre a família enfatizando as repercussões do tráfico para a organização
familiar e os aspectos geracionais do tráfico. E na última seção concluo o capítulo
tratando do problema chave para a pesquisa: as justificativas éticas e morais da esfera
do tráfico, o que permite demonstrar como ocorre a relação de moralidades e como o
‘ser’ ou tornar-se traficante é também uma expressão de uma relação identitária.
No segundo capítulo trato sobre as relações políticas e de como estas são
percebidas localmente. O que se torna interessante no trabalho desenvolvido é como o
universo político é presente no cotidiano dos moradores, seja na forma da política
pública executada pelo legislativo/executivo, ou por meio das micro políticas realizadas
ao nível das relações sociais. A exposição dos fatos segue a relação de eventos
vivenciados durante a execução da etnografia. Nesse sentido, destaca-se o papel da
intermediação entre os políticos e a comunidade, realizado pelas lideranças, a
instrumentalização e os projetos individuais pautados em ambições políticas, a retórica
dos políticos profissionais, os dilemas morais e os tramas desenrolados nessa esfera.
No último capítulo busco relacionar as diversas percepções sobre o mundo social
por meio da relação entre o tráfico de drogas e a política a partir dos aspectos morais e
éticos. O que por fim, assume destaque nesse capítulo é a correlação entre diferentes
cenários sociais que apesar de serem complexos e estruturados a partir de pontos de
vistas particulares formam uma totalidade quase orgânica, que permite a sustentação de
várias identidades locais como de moralidade ancoradas na sustentação de vínculos
sociais.

18
Capítulo I - O tráfico

“Se você tiver na rua e um menor te abordar... Cara, entrega tudo,


principalmente se você perceber que o moleque é réu primário...Eles
não sabem “enquadrar”, qualquer coisa assustam e metem bala, sem
dó. Esses são os mais perigosos”
(Um ex-presidiário, ex-ladrão, ex-traficante, hoje apenas um morador
da comunidade)

“Para que haja um desafio é preciso que aquele que o lança


considere o que recebe digno de ser desafiado, isto é, capaz de
receber o desafio, que o reconheça, em suma, como seu rival em
honra. Desafiar alguém é reconhecer-lhe a qualidade de homem,
reconhecimento que é a condição de qualquer troca e do desafio de
honra como primeiro momento de troca; é reconhecer-lhe também a
dignidade como homem de honra porque o desafio, como tal, requere
a resposta e, por conseqüência, dirigi-se a um homem considerado
capaz de jogar o jogo da honra e jogar bem, o que pressupõe
primeiro que lhe conhece as regras e, depois, que possuiu as virtudes
indispensáveis para as respeitar. “
(Bourdieu in Perestiany 1971: 162)

19
Tráfico, uma instituição local 7

Esta frase estampada na boca de fumo na esquina do conjunto I na QNN 07 é um


signo não verbal de grande significação local. Simboliza, pelo seu caráter icônico
(Peirce 1977), toda uma gama de valores referentes ao mundo do tráfico e sua relação
com a comunidade. É um index, uma imagem que se conecta organicamente com objeto
a qual se refere; no entanto, a interpretação dos moradores não necessariamente se
vincula, literalmente, a esta conexão (Peirce 1998). Os traficantes, tanto quanto os
moradores, têm consciência que o tráfico vivenciado na região é substancialmente

7
Os trechos de entrevistas realizadas ao longo deste capítulo foram realizadas com pessoas que se
envolveram direta e indiretamente como o mundo do tráfico, alguns em vários períodos da sua vida,
mantendo uma relação de proximidade, mas não de inserção, até hoje.

20
diferente do tráfico no Rio de Janeiro. Têm consciência que a cidade de Ceilândia, e,
principalmente a localidade em que moram, não é um morro no qual a força do tráfico
compete com a força policial.
Sabem que por mais que um traficante seja poderoso, todo mundo está sujeito a
‘cair’, afinal, o tráfico é isso, um mundo perene, fulgaz que se modifica a todo instante.
A única coisa que tem certeza é que existe algo que parece que não ter fim, as guerras.
Elas acontecem diariamente, seja entre os próprios traficantes ou entre estes com a
polícia. As guerras são, dessa forma, a materialização local da violência. Contudo, o
tráfico no Rio de Janeiro, por ser evidenciado como o berço do tráfico crime organizado
brasileiro e dramatizado pela mídia por meio de filmes e noticiários, se torna uma
expressão semântica daquilo que o tráfico local pode e gostaria de ser, sendo assim uma
representação ideal que a dinâmica do tráfico tenta alcançar e reproduzir.
Sexo, drogas e dinheiro. Palavras que parecem comuns ao serem
descontextualizadas, mas que são centrais para se entender o filme de ação que todos os
dias os traficantes da Ceilândia protagonizam ao viverem perigosamente, correndo de
um lado para o outro, evitando a polícia e trocando tiros entre si. O tráfico é, sem
dúvida, uma alternativa, uma forma que o indivíduo encontra de conquistar tudo aquilo
que a sociedade de consumo o priva; o tráfico nasce e sobrevive entre os pobres, mas se
sustenta a partir de sua relação com os ricos. Na região etnografada, o tráfico é uma
instituição social, onde traficantes, bandidos, ladrões e assassinos não são gente
estranha, mas pessoas da localidade, vizinhos, parentes e irmãos, cuja escolha da forma
de vida não impede que ainda façam parte da família e da comunidade.
Ser traficante é ser reconhecido socialmente como tal. É fazer parte de uma
“galera”, de uma turma, formada preferencialmente na rua. Os integrantes do tráfico são
pessoas da comunidade, que todo mundo conhece desde pequeno, que cresceram
naquela rua, que pertencem a um território, a um “pedaço” o qual o traficante tem
obrigação de proteger, independente dos conflitos com os outros grupos ou com a
polícia (Magnani 1998). Ou seja, é ser parte de um conglomerado complexo de

21
rivalidades com outros grupos em torno de uma posse simbólica por um determinado
espaço, que também é o seu nicho de trabalho.
Essa rivalidade que se manifesta principalmente pela violência tanto a nível
material como simbólico, faz parte de uma organização social na qual a busca por
reputação por meio da honra, um dos principais mecanismos de acesso a bens materiais,
se torna o elemento essencial para a sobrevivência e sustentação do tráfico. Dessa forma,
inicio o capítulo tratando dos mecanismos sociais do tráfico e sua relação com os
indivíduos e concluo tangenciado questões referentes à ética e moralidade, como
princípios que permitem visualizarmos a reflexividade dos sujeitos no processo de
interação social, bem como de suas identidades.

Honra e reputação, aspecto de uma identidade

Tratar de honra e tráfico pode parecer, em um primeiro momento, algo


contraditório, afinal, honra, tal como significada pelo senso comum, assume um caráter
positivo em contraposição ao tráfico, por sua vez, negativo. Honra, como concebida na
modernidade8, diz respeito à dignidade. As pessoas dignas agem de acordo com um
corpo de conduta apreciado eticamente pela sociedade em que está inserido. Já o tráfico
não compartilha tais princípios éticos e diz respeito à esfera da ilegalidade, associando-
se ao roubo, ao vício e ao crime. Todavia, um olhar mais detalhado sobre o mundo do
tráfico nos permite perceber uma instrumentalização da honra a partir de uma realidade
local, interpretada pelos sujeitos etnografados como um dos mecanismos mais
importantes para o funcionamento do complexo maquinário que motiva e sustenta a
maior parte dos relacionamentos ligados ao tráfico de drogas.

8
Para maiores detalhe da noção de honra e sua relação com a noção de reconhecimento identitário e de
ofensa moral ver L. Cardoso de Oliveira (2004).

22
Dessa forma, é necessário contextualizar a noção de honra que este texto utiliza.
Honra, no sentido adotado ao longo dessa dissertação, é uma referência direta à honra tal
como percebida pelos antropólogos que trabalharam nas sociedades ditas simples do
mediterrâneo. É um conjunto analítico de valores que são centrais para orientação da
conduta dos indivíduos e para o reconhecimento e diferenciação social entre eles. É
aquilo que pode ser acumulado na forma de reputação, ligando-se diretamente ao
sistema de prestígio capaz de avaliar e ordenar diversas identidades sociais no contexto
social em que está inserida.
Ou seja, é uma forma apropriada de classificar e hierarquizar os outros em
relação a uma totalidade, algo que promove uma diferenciação de níveis, que envolve
uma relação de englobamento e complementaridade entre as partes (Dumont 1992). Por
conseguinte, na esfera do tráfico, honra é o substrato da relação e da diferenciação entre
fornecedor, traficante, cliente, polícia e morador local. Contudo, essa diferenciação não
é um fato natural absorvido de imediato pelas pessoas que participam do trafico. É algo
construído socialmente por um processo de socialização coercitivo no qual qualquer
pessoa que resolva fazer parte deste mundo é obrigatoriamente submetido.
Nesse sentido, o tráfico é uma instituição que promove mudanças significativas
em vários níveis no indivíduo de maneira a provocar mudanças na carreira moral dos
iniciados, o que configura uma transformação nas crenças que ele possui a seu respeito e
a respeito dos outros (Douglas 1998, Goffman 1974). Este processo é realizado de duas
formas; por uma violência coercitiva em relação aos seus pressupostos básicos do eu,
principalmente pela tentativa de diferenciação do universo do tráfico versus o universo
de valores familiares, e pela relação de prêmios e prebendas, manifesta por meio de
reconhecimento e admiração que, quando conectadas pela reputação, faz com que as
ações públicas demandadas ocasionem a fama do traficante.
Como toda instituição, o tráfico possui uma estrutura que permite atender o seu
objetivo primeiro, que é a venda de drogas. É uma estrutura formada essencialmente
pela sociabilização, sendo que na maioria das vezes, amigos de rua conhecidos, que já
foram absorvidos pelo tráfico, são os principais elos para recrutamento dos jovens,

23
garantindo o funcionamento da dimensão temporal do tráfico. Durante a pesquisa de
campo, uma das questões recorrentes era a escolha moral realizada pelos traficantes,
algo que implica uma escolha identitária por parte deles, marcando um momento de
várias dúvidas por parte do jovem. O trecho abaixo é a fala de um ex-traficante.

L: Mas como é que foi que você começou com isso, o pessoal te
influenciou, os amigos?
B: Sempre tem que ter alguém né, tem que ter alguém. Você tá aqui,
nunca mexeu com isso, pra você começar a mexer com isso, você tem
que andar com alguém que mexe, e se você tá andando com alguém
que mexe, se o cara não dá confiança pra você, você não vai querer
mexer. Mas se o cara, começa a dar confiança: “Ou, guarda lá pra
mim. Ou, vai pegar o negócio pra mim. Ou, pesa lá pra mim.” Ai
você começa, você começa a se envolver que nem vê, quando você vê
você já tá dentro. Tá no comboio, você já tá andando junto com os
caras. Se você não entrar lá dentro os caras falam: “Pô, esse bicho é
comédia. É avião.”
L: Avião?
B: É avião, esse bicho é comédia é avião. Então ou você entra logo,
ou sai fora. Porque ninguém respeita avião não.
L: Por que avião?
B: Avião é aquele cara que leva droga pra um lado e para o outro.
L: Só leva.
B: Só leva. Vamos supor você vai pegar ali dez latas de merla...Aqui
na Ceilândia rola mais merla... Detalhe, ai você roda e cagoeta o
cara...tá morto, tá morto. Cagoetar o cara, pode sumir do mapa. Se
pegar, Ave Maria, é mal. Então é por isso que ninguém quer ser
laranja...

Os dois mecanismos básicos da estrutura do tráfico são, em termos materiais, a


possibilidade de lucro (de dinheiro fácil, e, por conseqüência, o acesso à diversão por

24
parte dos traficantes) e, em termos simbólicos, a busca por prestígio entre aqueles que
fazem parte do comércio do tráfico e, paralelamente, dos moradores locais. Esse
prestígio baseia-se na respeitabilidade advinda da possibilidade de conquistar ou manter
uma posição ancorada no sistema de reputação local, assemelhando-se aos valores que
acompanham a noção de hombridade e masculinidade. Ou seja, são valorizações sociais
que partilham, por não serem naturalmente dadas, mas socialmente construídas, o bojo
de sanções sociais, no qual o júri são os seus colegas e a sentença é o julgamento que
fazem quanto à imagem social que o traficante tenta sustentar. Dessa forma, a reputação
do bandido é o reflexo puro da personalidade social no espelho dos ideais sociais da
comunidade local que supõe a existência de padrões de medidas capazes de estabelecer
juízos entre os seus participantes e os “de fora”, mesmo em situações em que não existe
um público ou um júri em si.

“...o valor que uma pessoa tem aos seus próprios olhos, mas também
aos olhos da sociedade. É a sua apreciação de quanto vale, da sua
pretensão a orgulho, mas também é o reconhecimento dessa
pretensão, a admissão pela sociedade da sua excelência, do seu direito
a orgulho.” (Perystiani 1986:13)

É interessante notar que a citação acima, apesar de escrita por um estudioso do


mediterrâneo, segue a mesma noção de honra tal como proposta por Weber (1974), em
que esta não possui um conteúdo substantivo, trata-se de um atribuidor relacional de
valor social que se estrutura a partir do sistema de valores de cada sociedade e que
sempre implica reconhecimento, como também alguma espécie de pertencimento 9.
Nesse sentido, a honra aqui tratada possui o seu significado construído dentro do tráfico,
mas se estende para além dele influenciando na esfera local.

9
A noção de honra encontra repercussão em várias esferas de valores na vida social. Teixeira (1997)
explica que honra é o valor central que promove a própria identidade e diferenciação da esfera de ação
política. Algo que será mais bem abordado no capítulo seguinte.

25
Contudo, tal classificação não é perfeita. Os indivíduos não se enquadram
precisamente, o que acaba por reforçar o sentimento de insegurança e incerteza do que
se pode esperar em relação ao outro, surgindo o medo e a vergonha. Até certa medida,
essa instabilidade é uma instabilidade estrutural, onde a conduta do indivíduo reflete a
conduta do corpo social no qual ele está inserido. Não obstante, essa classificação frágil
se torna mais aguda quando buscamos entender as imagens sociais, as representações
que trabalhadores possuem sobre si e em relação ao tráfico.
De um lado tem-se os trabalhadores que, na visão dos traficantes, são sempre
“otários” por não ganharem o dinheiro que poderiam ganhar mexendo com o tráfico. Do
outro lado, os trabalhadores que têm os traficantes como “covardes”, pessoas que
sempre estão de arma em punho, prontos a resolver qualquer problema na base do tiro,
não seriam homens capazes de brigar de forma limpa, digna. São moleques
irresponsáveis, utilizam menores para roubar, matar e assumirem a responsabilidade das
ações criminosas que na maioria das vezes não foram realizadas por eles.
Entretanto, em termos restritos, para aqueles que fazem parte do mundo do
tráfico, a honra é percebida como reputação, um tesouro a ser disputado a tapa pelos
traficantes, sendo aquilo que divide o seu mundo em dois: os que têm reputação e
aqueles que não a têm. Os que não têm são os “cagões”, os “aviões”, aqueles que são
feitos de otários por qualquer um, que não tem “peito” para cobrar uma dívida, que não
possuem as habilidades necessárias para ser um traficante forte, logo, aqueles que têm
menos possibilidade de ganhar dinheiro com a prática do tráfico. Já os que possuem
“peito” e conseguem conquistar essa reputação, são os que realmente fazem parte do
mundo da bandidagem, aqueles que fazem e acontecem para conseguir dinheiro e,
ironicamente, tal como os trabalhadores, conseguem se sustentar, tendo no tráfico o seu
ganha pão. Em uma das entrevistas com um ex-traficante ele me explicou como
funciona o sistema da reputação para com os “clientes” e entre os traficantes:

26
L: Mas ai, o pessoal pagava direitinho?
C: Ah, se não pagar não leva e se pegar e não pagar...Tem que ser
louco da cabeça....Porque é o seguinte, eu pego na mão do cara...O
cara lá não quer saber não, quer que pague ele....E por causa de um,
dois, eu não vou pagar o cara...É doido, dá confusão das brabas,
confusão das brabas mesmo....
L: É mesmo?
C: Dá...Por isso que é muito difícil o cara vender droga fiado,
ninguém vende não....Vende nada, porque se vender dá morte. Hoje
mesmo, tava passando de moto...O cara tava devendo 45 reais, e se
não me engano esse Jô eu conheço, ele é daqui da cinco. Perguntei
pro irmão, ele falou que tava devendo 45 reais e não pagou....e eram
dois peão, um ele matou e o outro conseguiu correr. Ai ele falou que
vai matar o outro....Por causa de 45 reais.....
L: O Marcos tava falando que tinha um pessoal ai, que matava por 1
real...
C: Mata...mata...Mas às vezes também a questão é o seguinte, tem
que ver o outro lado, muitas vezes a pessoa não morre por causa de 1
real...1 real não é dinheiro não, é por causa do desaforo, pela falta de
respeito, por que tem cara que não tem respeito. Eu pego um dinheiro
com você emprestado, pego da sua mão...Eu tenho que pagar você. Ai
os caras às vezes, vê você com dinheiro, você curtindo, você fazendo
tudo e ai você vai cobrar o cara. Quando você cobra o cara, ele fala
que não vai pagar tudo, que paga quando quiser....Quer dizer,
quando você precisou do cara, o cara tava ali pra ajudar e agora que
você tem não quer pagar o cara, você não ta fazendo favor, você tá
pagando o que tu pegou, ai é que o cara morre, mas não morre por
causa do dinheiro não, morre por causa do desaforo, entendeu? Ai,
detalhe, o cara tá nesse mundo, tá todo mundo em volta vendo ele, se
ele deixa o cara fazer isso, vai todo mundo fazer com ele, daqui a
alguns dias ele não tem moral com ninguém, com ninguém, um

27
menino tá batendo nele. Tem que cortar o mal pela raiz, tem que
mostrar que não pode brincar com ele não porque se brincar é mal,
porque se deixa amigo, virá bagunça, vira bagunça, todo mundo vai
querer fazer e acontecer...
L: Os caras são folgados....
C: “Hum...Ei C eu vou te pagar....” - Não, me paga quando quiser
não esquenta com isso não... Ah, se fosse há um tempo ele já tinha me
pagado, de um jeito ou de outro...tinha...

A aceitação da identidade social do traficante é baseada na possibilidade de


reconhecimento que se liga estritamente à reputação advinda da conquista e manutenção
dessa espécie de honra local. Nesse sentido, a manutenção e a conquista desse
reconhecimento identitário não é algo que se alcança facilmente, o bandido tem que
saber fazer a sua reputação, não pode nunca ser “trouxa”, “dar pra trás” ou deixar ser
enganado; ele “tem que ter a bandidagem como religião”. Ou seja, ser bandido envolve
uma apreciação de quanto vale a sua identidade e de como é percebida a sua pretensão a
ser “um bandido forte”, na forma de reconhecimento dessa pretensão, o que implica a
admissão pela sociedade da sua excelência.
Este esforço para conquistar uma posição materializada pela identidade social,
está subordinada a dois mecanismos essenciais para o funcionamento do tráfico: busca
pelo dinheiro e capital simbólico conquistado através da reputação. A conexão de ambos
implica a criação de um vínculo e estabelecimento de uma rede de trocas que marca a
relação entre fornecedor, traficante e cliente. O bandido que consegue sustentar esse
vínculo por maior tempo possível, sem ser preso ou ficar pobre, é um bandido esperto e
tem grandes possibilidades de ser tornar um bandido forte. Até certa medida, isto
implica um comprometimento quase total com o tráfico.
O vínculo estabelecido é essencial para o funcionamento do sistema. A quebra ou
mau funcionamento de alguns destes elos tem como resultado possível a cadeia ou a
morte. Nesse sentido, envolve grandes perdas, o que reforça a necessidade extrema de

28
cumplicidade entre os envolvidos no esquema. O elemento que faz com que esta
cumplicidade ocorra, promovendo a seletividade com quem é lícito trocar,
principalmente na relação entre traficante e fornecedor é, mais uma vez, a reputação.
Dessa forma, a reputação se torna um importante sistema relacional, sendo capaz
de amenizar um dos ‘pontos fracos’ do tráfico, a venda de drogas pelo sistema do
“fiado”. Fator comum na relação traficante-cliente e traficante-fornecedor, o “fiado” é
uma espécie de dívida, que se torna necessária para o funcionamento e circulação de
dinheiro e mercadorias no sistema do tráfico. Nem sempre o traficante que vai buscar
grandes quantidades de drogas com o fornecedor possui o dinheiro necessário para
comprá-la nesse momento firma-se um compromisso de que no período estipulado o
traficante tem que quitar a dívida contraída. Se durante este período o traficante ‘fuma’
sua parte, a polícia apreende a droga ‘melando o esquema’, ou mesmo se alguém o trai e
rouba toda a remessa de droga, como dizem os traficantes, ‘já era’. Restam-lhe três
alternativas; a morte, porque certamente o fornecedor vai atrás dele; fugir para evitar ser
morto, ou ainda, pagar a dívida contraída. Essa última é a alternativa que os traficantes
escolhem com mais freqüência. Isto significa que eles vão se arriscar em roubos de casa,
banco, carro, assaltos à mão armada, enfim, dedicar-se-ão a toda sorte de atos ilícitos
que lhes permitam ganhar dinheiro rápido.
Já na relação entre traficante e usuário, o “fiado” é tido como o principal
responsável pelos óbitos, como ilustrado pela fala acima. Se o usuário, que está sempre
em uma posição subordinada ao traficante, resolve não pagá-lo, isso é tido como uma
ofensa à sua reputação, podendo esta ofensa destruir toda a sua fama conquistada, o que
exige que a honra seja restaurada por meio do sangue derramado. Esta é uma diferença
essencial entre e o tráfico realizado no Plano-Piloto e do tráfico realizado na Ceilândia.
Segundo os entrevistados, no Plano-Piloto, o usuário é mais esperto, pois geralmente
compra a droga e paga na mesma hora, procurando não estabelecer uma relação de
dívida a ser quitada futuramente.
Contudo, isso não é regra. É muito freqüente ver vários ‘carrões’ circulando na
região. Estes ‘carrões’ nem sempre são dirigidos por usuários que vêm do Plano Piloto

29
comprar drogas. Muitas vezes quem os dirige são os próprios traficantes. A dívida
contraída por parte dos ‘playboys’, por vezes, pode somar valores exorbitantes, onde
surge a necessidade de penhorar o carro até conseguir dinheiro. Estes playboys chegam a
penhorar quase tudo o que têm; sendo assim, para os moradores que esperam uma
conduta mais reta das pessoas ricas, a droga demonstra a fraqueza das classes mais
abastadas, evidenciando a degradação humana, algo que inverte qualquer lógica,
remetendo a dignidade humana que seria universal e independente da condição de
nascimento. A fala abaixo ilustra bem essa situação. Aqui o entrevistado fala de uma
época que vendia drogas no Cruzeiro e das pessoas que eram seus clientes.

B: Moço lá era só filho de coronel, filho de tenentes, só gente forte


que comprava lata lá. Forte, forte mesmo. Eu ficava era de cara,
cada menina linda, linda. Eu olhava pra você e falava, não dá pra
acreditar que essa menina usa droga não, eu olhava pra ela....O que
é isso, pelo Amor de Deus. O cara vê cada coisa nesse mundo ai que
não acredita não, na madrugada então... Vixi, o cara vê coisa na
madrugada. Vem mulher te oferecer; “Não moço, eu transo com você
e você me dá tanto.” Mulher bonita, chega de carro você vê, só
princesa. Tu olha assim, o que que é isso. To te falando.
L: E já aconteceu assim...
B: Oxi, demais... Demais, demais mesmo. Duas três mulheres,
começam a usar droga ai param, não tem mais, não tem dinheiro pra
comprar também e ai vai dar pra usar droga.

As relações que envolvem o tráfico são relações frágeis, qualquer erro das partes
pode ser fatal. Não se trata de um sistema dadivoso em si, no qual as quatro
condicionantes básicas da dádiva (interesse x desinteresse; obrigação x liberdade)
contribuem para instaurar a ação social visando sustentar o vínculo. O que sustenta esse
vínculo é, simplesmente, o medo, o qual sempre faz referência à desconfiança e a
incerteza de uma traição. É o medo que provoca o constrangimento que induz a dar

30
continuidade ao vínculo, sendo que a única garantia de salvaguarda por parte dos
envolvidos é a fama que cada um possui no mundo da bandidagem.
Ninguém quer vender droga para “bandido mané”, já que estes são os primeiros a
serem pegos pela polícia, correndo o risco de “cagoetar” os seus parceiros.

L: Você ficava gelado assim?


C: Fica, como é que não fica...
L: Direto...
C: Oxi, todo dia é aquele ditado, você mata um Golias. Tem que
agradecer se o cara consegue passar um dia todo na rua, a polícia é
o tempo todo atrás de peão, o tempo todo, se os caras vacilar vai
preso mesmo...
L: É mesmo? Eu pensei que a polícia aqui fosse meio...
C: Nada. Ela é quando quer, tem que mostrar serviço pra sociedade.
L: Mas porque você acha que a polícia não acaba com o tráfico?
C: Tem muita polícia envolvida, não é só polícia não, tem muita gente
forte envolvida. Basta entender como essa droga chegou no Brasil.
Como é que a cocaína da Colômbia veio parar aqui e daqui virou a
pasta da merla. Porque só vem de fora, Mato Grosso, de fora. Vem
mais do Mato Grosso, o pessoal compra a pasta da cocaína mais do
Mato Grosso para eles irem fazer a merla... Você fica se
perguntando... Como é que a própria polícia não pega. Como é que
passa pelos aeroportos, passa pelas barreiras, não dá pra entender
não. Tem gente envolvida demais...
L: Mas passa assim?
C: Passa...se eles pegam cem quilos passou 3 toneladas, 4 toneladas,
mas eles tem que mostrar serviço também... Vem cá não prendeu
nada esse mês, tem alguma coisa errada com essa polícia, entendeu?
Então eles tem que prender alguém pra mostrar serviço, passa muita
droga por ai, eles sabem que passa, ganha dinheiro com isso, eles
facilitam, tudo isso tem...tem....

31
Nesse sentido a confiança baseada no medo se apresenta como a garantia do
funcionamento dessa relação. Contudo, todo traficante sabe que confiar é se expor e que
a qualquer momento pode ser traído. Afinal, o tráfico segue uma lógica de mercado,
calcado nas disputas por pontos de distribuição de drogas e por capital simbólico na
forma de reputação, o que justifica a competição constante entre os traficantes. Tal como
nas nações do mediterrâneo, onde honra conquistada é honra demandada, a honra na
forma de reputação é sempre um objeto de disputa, cuja confiança e traição se tornam
duas faces de uma mesma moeda. Ser um bom traficante é ser esperto, é sobreviver às
tentativas da polícia de ser preso, mas é, principalmente, sobreviver à “guerra” local, ou
seja, independente do que ocorra, significa sobreviver às traições, principal catalisador
das disputas que produzem a “guerra”.

... Ai eu vou e mato o cara porque o cara tá me devendo. Ai eu pego e


conto pra você e você fica sabendo, você tá querendo o meu ponto e
ai você mesmo vai e conta pra polícia... o fulano de tal matou um
cara, assim, assim, fulano de tal tem uma lombra ai que vai chegar na
casa dele tal dia. Já era, você cai, vai preso e eu que sou seu
concorrente, vou ficar na rua ganhando dinheiro. Entendeu,
aconteceu isso.....
L: É mesmo?
B: Oxi, demais...
L: Traição.
B: É, acontece demais, só que o seguinte eu to pensando que você é
meu amigo, mas eu não sei, eu não sei, entendeu? Uma vez, um
chegado meu rodou por causa disso. Chegou em mim, “Pó B vamo
pegar, vamo pegar dois quilos” - Rapaz você pega o seu que eu pego
o meu, não vou mexer contigo não - “Não o meu vai vim por tal
lugar” - Rapaz, pega o seu que eu pego o meu...Só que o seguinte eu
falei que o meu ia vim do mesmo lado do dele, só que eu botei o meu

32
pra vim do outro lado. Tava passando lá a polícia me parou, pegou o
dele todinho e o meu passou. Por que? Se eu conto que o meu tava
vindo pro mesmo lado tinha pegado o meu, entendeu? Se você fala
pro cara, eu to vindo pela norte, vai pela sul. Tem que sempre
enganar você nunca pode falar aonde você tá, senão te pega na hora.

Dessa forma, as disputas de honra são disputas por um lugar na hierarquia, na


qual quem se submete à precedência de outros reconhece a sua posição social inferior
dentro do mundo do tráfico. Por conseguinte, as disputas realizadas na busca por
hegemonia das bocas de fumo possuem uma dimensão de conquista, em que quem
atribui ou não honra ao indivíduo é o sentimento público expressado nos inúmeros
círculos sociais em que se comentam os “feitos” dos traficantes. Ou seja, adquirir uma
boa imagem frente a esse sentimento público, significa, por exemplo, ter o
reconhecimento geral que fulano de tal é O chefe da boca.

A polícia, o terceiro da relação

Nas variáveis que formam o mundo do tráfico, a polícia é terceiro elemento que
dota de sentido a relação do traficante com os clientes. É a polícia que permite a
compreensão de como se constrói os medos e as estratégias presentes em todos os
relacionamentos dessa esfera. No entanto, o seu papel é ambíguo na fala de vários
moradores da região; antes mesmo de me aprofundar na etnografia, a polícia já era vista
como bandida. Segundo os moradores, os policiais atuam de forma corrupta, aparecem
apenas quando a situação estava incontrolável quando não tem mais forma de resolver o
conflito, ou quando um crime bárbaro já havia acontecido.
Ao longo da pesquisa, conversando com policiais e traficantes, percebi um outro
ponto de vista. A corrupção da polícia existe, mas se torna menos importante em vista de

33
sua funcionalidade, algo que ameaça mais diretamente o tráfico. Por mais que se
encontre corrupção, principalmente nos níveis mais altos da hierarquia policial, como
afirmaram categoricamente os traficantes, isto é assumido como um dado a priori, pois
poucos sabem os nomes das pessoas realmente envolvidas, o que torna a corrupção algo
distante, quase invisível. Sabem, porém, que no mecanismo do tráfico tem uma grande
parcela de dinheiro que simplesmente some, na maioria das vezes, antes que a droga
realmente chegue na rua. De qualquer forma, para o traficante, a polícia ainda funciona,
e se ele der bobeira, pode acabar sendo pego por ela. Talvez essa seja a razão pela qual a
comunidade apresenta muitos receios em relação à ação policial, já que representa risco
de vida não somente a traficantes e usuários, mas aos moradores como um todo. Pessoas
que antes de fazerem parte do tráfico pertencem a algum círculo familiar local.
Tal como os traficantes, os vínculos da polícia com a comunidade são mais
estreitos do que se pode imaginar. Durante toda a etnografia pude notar que boa parte
das famílias que onde haviam pessoas envolvidas no tráfico possuíam, também, pelo
menos um policial como membro. Seguir o caminho do crime é uma opção que nem
sempre cria uma oposição que finaliza os vínculos familiares. Os bandidos sabem que
tem polícia e polícia, que nem todos são iguais e não devem ser tratados como tais. Ter
um policial na rua é mais uma forma de assegurar a integridade do seu território, é
garantir que “bandidos folgados” estranhos à comunidade não venham meter o seu nariz
aonde não foram chamados, porque “não existe coisa pior do que bandido que rouba
pobre”. De forma geral, o que os entrevistados registraram em termos de medo da
atuação da polícia se concentrava nas ações organizadas e intensivas que resultavam em
confrontos diretos com trocas de tiros e, principalmente, nos processos de investigação.
Um dos motivos do medo da população se baseia na noção de serem monitorados. “O
nosso Big Brother”, como brincavam os moradores, era algo que acontecia por meio de
investigações policiais, ou por mecanismos tecnológicos, principalmente, através de
instalação de grampos e câmeras nas ruas. Com base nestas informações, pode-se
concluir que as investigações assumem diversas formas, mas a maior parte se baseia no
elo mais fraco da corrente do tráfico, o consumidor. As investigações citadas nas

34
entrevistas funcionavam de forma simples, da seguinte maneira: um policial se disfarça
como usuário e compra drogas, pega a droga na mão de determinados traficantes, uma,
duas, três vezes. Na quarta pede uma quantidade maior, uma quantidade que dê pra
“enquadrar” o vendedor por tráfico. O traficante desatento fica empolgado com a venda
e leva a droga. A polícia pega o traficante em flagrante, leva pra cadeia “desce porrada”,
e se o traficante for fraco, libera o nome do fornecedor. Quando isso acontece, a vida do
traficante está por um fio: ou a polícia pega o fornecedor em flagrante, ou o traficante
tem que ser isolado, pois, independente do pavilhão que ficar na PAPUDA, ele será
eliminado por alguém a pedido do fornecedor.

A riqueza do tráfico

Como foi dito anteriormente, os dois mecanismos principais do tráfico são o


enriquecimento material e a reputação, sendo que essa última se torna o elemento básico
da relação entre fornecedor, traficante e consumidor. A reputação é o único princípio
capaz de fundamentar o vínculo de confiança que a ilegalidade imprime nos círculos de
relacionamento que formam o tráfico. No entanto, a reputação é apenas um dos pesos
que permitem a confiabilidade, e contrapondo-se ao princípio de traição, constitui a
balança pela qual os indivíduos concebem os outros e baseiam suas ações. Contudo,
antes de adentrar na dinâmica da traição, algo essencial para entender a guerra
promovida pelo tráfico, é necessário falar um pouco sobre a imagem que moradores e
traficantes possuem sobre si e em relação aos outros, ou seja, é necessário falar de
pobreza, da riqueza e do mercado do tráfico.
O enriquecimento material é contundente. Jovens que nunca tiveram
possibilidade de adquirir bens de consumo como tênis e roupas de "marca” passam a ter
acesso rapidamente por meio do tráfico. Alguns chegam a conhecer o valor do trabalho
subalterno no qual recebem um salário irrisório e não raro sofrem diversos tipos de

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humilhação, mas a maioria nem chega a acessar outras formas de trabalho durante a sua
infância ou adolescência. No entanto, reconhecem que a sua condição de nascimento os
coloca em um local diferenciado em relação aos ricos, sendo que o tráfico passa a ser
uma alternativa plausível para inverter essa lógica hierárquica, representando em alguns
a noção de revolta (Zaluar 1985).
Ser bandido é ter uma profissão, pelo menos é dessa forma que é percebido pelos
traficantes, como um trabalho. É uma escolha racional que envolve uma prática utilitária
baseada na possibilidade de ganhos individuais que se alia a uma justificativa moral
sustentada a partir de uma noção de “bom viver”. Trata-se de ter tudo aquilo que sempre
sonhou, mas que só os playboys do Plano têm, aquilo que permite aproveitar o mundo de
forma plena e assim superar a sua condição de nascimento. Tal situação não significa
que, no escopo de escolhas, outras alternativas não sejam importantes, que preceitos
morais que remetam à idéia de justiça e igualdade estejam alheios à realidade desses
indivíduos. Entretanto, os sujeitos avaliam cada possibilidade de escolha identitária de
acordo com os projetos que almejam, existe sempre o momento em que o paradoxo das
duas identidades em oposição, bandido X trabalhador, surge e briga o indivíduo a
escolher uma das identidades e a lidar com as conseqüências de sua escolha.
Explicar como um bandido surge, não é simplesmente atribuir falhas ao Estado,
dizer que ele é fruto da ação repressora policial, ou da ineficácia do judiciário. É antes,
explicitar certas formas de sociabilidade que encontram no tráfico uma alternativa de
vida e de sobrevivência. Sem dúvida, a rua se torna um território no qual as galeras,
grupos de jovens, dominam. É um espaço seguro, que produz noções de mundo bem
como de masculinidade e sexualidade para aqueles que nela crescem. É na rua que os
jovens aprendem a “pegar” mulheres, a brigar quando provocados e a reagir quando
desafiados.
É na rua que se apreende a ser homem e a buscar isso. Sabem que mamãe e papai
não podem lhes dar aquilo que eles querem. Apesar de muitos reconhecerem a luta dos
pais, trabalhadores honestos, que “se viram” trabalhando de “oreia seca” pra conseguir o
pão, utilizando de inúmeras estratégias para manter um emprego e trazer sustento para a

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casa, percebem que eles vão ter que “ralar” muito para conseguir uns trocados. Se eles
quiserem “pousar de gatinhos” pra dar uns “pegas” e ter alguma vida sexual, eles têm
que ter grana.
Os “gatinhos” é uma das expressões utilizadas para se referir àqueles que têm
dinheiro, os playboys do Plano Piloto. É interessante perceber que estes se tornam a
imagem da ambigüidade já que são, por um lado, aqueles viciados que não sabem nada
da vida, mas que por outro personificam o ideal de personalidade social que os
traficantes desejam, ou seja, os bon vivan da época moderna. Aqueles que aproveitam o
melhor da vida por terem dinheiro e juventude.
Dessa forma, a maior parte do dinheiro ganho é investido em farras e objetos de
consumo, como roupas e sapatos, algo que permite uma categorização de riqueza
imediata na interação social, uma mudança da fachada pessoal cujo objetivo principal é
conquistar as mulheres. Mais do que apenas um mimetismo, ou uma colagem, na forma
de difusão cultural, que nunca, entretanto, alcança à reprodução exata da versão original
(Zaluar 1997, Ortiz 1994), tal postura reproduz uma aversão ao sentimento de serem
portadores de um estigma pelo fato de morarem em lugares onde se concentra a pobreza,
a violência e problemas de toda a ordem. Esse mimetismo se apresenta como uma das
diferentes estratégias que tem como finalidade gerir este estigma espacial.
Já os “frevos” são uma das recompensas que o mundo do tráfico dá aos
traficantes. Alguns, na maioria jovens, apenas trabalham com o tráfico para os dias de
farra. É o acesso a um mundo que a necessidade econômica os privou de freqüentar. É
dessa forma que alguns justificam os exageros na noite. Um traficante pode chegar a
gastar enormes quantias, de forma que os “frevos” seriam uma maneira de ostentar a
riqueza que dificilmente alcançariam se não fosse pelo tráfico. O relato abaixo é de um
ex-traficante, ele narra a última vez que fechou um bar para beber.

...( ) A gente chegou no bar e tava quase fechando. - E ai cadê o seu


bar? “Ta ai.” - Vamos fazer o seguinte, me leva pro seu bar e tudo que

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tá lá dentro eu vou tomar. “Sério?” - Sério mesmo. Então fomo lá.
Nesse dia, eu acho que a gente levou umas cem gramas de cocaína.
L: É grana...
D: Umas oito a dez pessoas, só eu vendi pra ele uma sete, oito lata de
merla. Isso a gente ficou de cinco horas da manhã, cinco e meia até oito
horas da noite. Tudo que tinha dentro a gente bebeu, tudo, fora a
droga, eu paguei pra ele mais de 900 reais, só de bebida, eu não tava
preocupado, tava rindo, querendo caçar é mais dinheiro. E isso era de
sábado pra domingo, eu falei, “Não agüento mais não” os caras que
tava comigo ainda foram sair com a mulherada, ainda foram curtir, eu
falei, não agüento mais não. Vou pra minha casa, a gente foi e
saiu....Outro dia eu tava aqui na cinco e os caras me chamou pra uma
festa: “Ei D, vamo lá pra oito.” E ai a gente tava lá na festa, muita
mulher...Sabe aquelas bandejas grandes, o cara tava com uma pedra
deste tamanho em cima da bandeja, ai os caras chegavam quem
quisesse cheirar era só rapar. Moço, que ignorância era aquela. Ai
acabou aquela os caras trouxeram outra do mesmo tamanho. Só via
gente caindo pros lados drogado, eu falei, cerveja comendo, a
muiezada, que é isso....A pegada dos caras eram fortes, os caras não
eram brinquedo não. E só mulher filé, tudo ali do Pacato, já ouviu
falar?
L: Não.
D: Puteiro, entre a três e a quatro, lá só tem filé. Os caras fechavam e
levava a mulherada pra lá, era foda. Eu chegava a gastar assim, em
torno de uns quatro mil, cinco mil por semana, só no frevo.

O tráfico é um comércio que se torna mais atrativo em razão da grande


possibilidade de lucro, aquilo que os trabalhadores chamam de “dinheiro fácil” que se
contrapõe ao dinheiro difícil, ao dinheiro suado, aquele que o pai de família luta
diariamente pra conseguir. Essa idéia é um dos atributos mais significativos do tráfico, é

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aquilo que permite uma diferenciação identitária local e que reforça os vínculos
formados com a mesma galera que freqüenta o tráfico.
De fato, o lucro do tráfico de drogas é extraordinário. Para se ter uma idéia, um
traficante de merla que fabrica a pasta na sua casa, a situação mais comum do tráfico na
Ceilândia, compra a base da cocaína, o resto do resto da cocaína, por oito mil reais o
quilo. Para misturar a pasta com os produtos restantes, soda cáustica, fluido de bateria,
cal, entre outros, o traficante gasta no máximo mil reais e produz por volta de dez a 15
quilos no final da etapa de processamento. O lucro final do traficante gira em torno de
45 mil a 50 mil reais com a quantidade de droga produzida.
Estes valores de referência são em épocas normais de consumo. No entanto, é
comum “os grandes” prenderem a droga em determinados períodos do ano, aquilo que
os traficantes chamam de “falta”. Isso faz com que o preço da droga se torne
extremamente elevada, valendo até oito vezes a mais do que valor normal. Para se ter
uma idéia, a lata de merla custa de quarenta e cinco a cinqüenta reais, normalmente, mas
nos períodos de “falta” chega a atingir facilmente trezentos reais. Mesmo os traficantes
que não produzem diretamente a merla ganham também na compra da droga. Na “falta”
se o traficante comprar uma latinha por cem reais, este a “pica”, a divide, e pode ganhar
cerca de quinhentos reais por lata.
Com a possibilidade de manejar grandes quantidades de dinheiro, este perde o
valor que teria, caso tivesse sido ganho com “trabalho suado”, sendo gasto de forma
rápida e desordenada. Poucos traficantes adotam uma perspectiva empresarial,
acumulando o dinheiro do tráfico e revertendo-o em imóveis ou lojas de comércio.
Geralmente, quem age dessa forma se torna um “traficante forte” que, frequentemente,
apesar de manter vários comércios na praça e uma situação estável, ainda continua a
traficar, mas agora “sem botar a mão na droga.”
É interessante notar que, talvez para diminuir a concorrência e manter estável o
preço das drogas, ou mesmo por um “acaso”, as bocas de fumo da Ceilândia Norte não
concorrem entre si; cada uma se especializa na venda de determinados tipos de drogas, o
que diminui também os confrontos entre as bocas. Dessa forma, a quadra cinco vende

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prioritariamente merla, a quadra sete vende maconha, a quadra oito cocaína, as quadras
vinte e dezenove vendem cocaína também, e a quadra treze vende merla e maconha. A
quadra tida como mais forte, em termos organizacionais, é a quadra oito, sendo que
algumas pessoas falam que naquela quadra moram traficantes que chegam a negociar as
drogas em dólar.

Faces da guerra

L: Me explica a guerra entre a cinco e oito...


B: Entre cinco e a oito agora parou, morreu todo mundo da cinco,
não agüentou. Agora tá com a guerra entre a cinco e a três, o próprio
pessoal da cinco. O negocim é escroto, é esquisito.
L: Mas como é que é, a cinco é um conjunto, a guerra é com a boca
de lá? Como é que é?
B: Cara, aqui tem boca de mais... Quase toda rua tem boca por
ai...quase toda rua...O M, o N, o K, o L, o E, o E não, o H, tudo tem
boca...
L: Ai a galera briga entre si?
B: Teve o ano passado... teve uma briga, o próprio pessoal da mesma
rua, um tinha uma boca na ponta de cá, o outro na ponta de lá, ai
eles brigaram, uns irmãos até morreram. Um desses irmãos deu tiro
no cara e teve que mudar daí.

Guerra é o nome utilizado para descrever os conflitos entre traficantes de uma


área X traficantes de outra área, ou entre polícia X traficante. A primeira modalidade de
guerra é a que assume maior destaque discursivo, pois a guerra contra a polícia é
habitual, já faz parte da estrutura do tráfico. As guerras entre traficantes são lutas por

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território e por conquista de uma reputação, algo que permite a boca de fumo crescer e
assim gerar lucros. São conflitos sempre coletivos por envolverem grupos de bandidos
rivais, mas são acionadas individualmente tendo o caráter de disputa e permitindo que os
competidores desse sistema conquistem honras por seus feitos.
Quando começa uma guerra entre bocas de fumo? Quais são os principais fatores
envolvidos na guerra? Existe alguma organização hierárquica entre os traficantes? Os
donos das bocas respondem a um terceiro? Todas essas eram perguntas feitas no começo
da etnografia. Muitas delas foram bem respondidas, outras apenas parcialmente, mas o
que percebi é que as guerras funcionam como vendetas, disputas em torno de ofensas
recebidas que levam a uma espécie de vingança para se recuperar a honra.
Abaixo segue um exemplo de como esse conflito funciona. Substituo partes do
trecho original visando preservar a identidade dos interlocutores, tendo em vista que este
conflito ainda não está totalmente finalizado e é amplamente conhecido na região.

Zé tinha uma boca de fumo na quadra II e vendia droga com João, seu compadre.
Em uma rua próxima da deles, havia uma outra boca de fumo herdada, passada de pai
pra filho, essa boca era comandada por Marcos. Marcos era menor de idade e
irresponsável, meio doido. João namorava a irmã de Marcos. Um dia Marcos “folgou”,
começou a falar desaforo pra João. João bateu em Marcos que ameaçou matar ele.
Quando Zé chegou na sua casa, já à noite, recebeu a notícia que Marcos havia atirado no
braço de João. João, angustiado procurou Zé pedindo um revólver, ele falou que só tinha
o revólver de boca, não podendo tirar ele da rua, mas que ia levar ele na Estrutural pra
comprar as “máquinas”. Depois que comprou as armas, Zé falou: “Pronto, vai lá atrás do
cara. Agora você tá bem, vai atrás do cara. Mas não atira no pé do cara não, vai na
cabeça pro sangue rolar....”. Aí João vai e fica amigo de Marcos, e ainda “coloca pilha”
dizendo que Zé foi que mandou ele matar Marcos.
A partir daí Marcos, “pira”. Ameaça Zé quando este está jogando “golzinho” na
rua e atira na frente da casa dele. Um dia chega com mais três comparsas pra “meter
bala” em Zé quando este estava tomando cerveja com um cunhado na esquina. Zé e o

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cunhando escapam graças a um carro que passava na hora e distraiu a atenção de
Marcos, dando tempo para eles correrem. Zé volta pra sua casa, pega a sua arma e fica
esperando Marcos na esquina; este não aparece e Zé resolver deixar pra outro dia.
Um dia depois do acontecido, Zé estava passando na rua e encontrou um dos
seus grandes amigos, Gustavo, irmão de João. Ele estava querendo deixar o tráfico, “sair
da malandragem”, e montou uma barraca de cachorro quente na frente da sua casa.
Nesse dia, ele disse para Zé ir lá comer um cachorro mais à noite. Zé chegou na sua casa
e logo depois ouviu um barulho, correu pra rua e rapidamente chegou a notícia: um
menor mandado por Marcos havia matado Gustavo na frente da casa dele.
Dois dias depois Zé havia arranjado um emprego pra João e tava conversando
com ele e a mulher dele, quando chega um conhecido deles, desesperado, da rua de
baixo e fala: “ João, o Marcos falou o seguinte... Mandou matar teu irmão e é pra tu ficar
ligado que domingo ele veio aqui te matar, mas tu tava no Z. Ele disse que não anda no
Z, não, que os caras tem máquina, mas ele falou que vai te pegar também, qualquer dia
desses.” Nessa hora, Zé falou: “Ele disse que ia te matar, agora quem vai comprar a
bronca sou eu. Vamo apagar o moleque.”
Zé arranja três revolveres. Ele quer pegar o “pé de pano”. Explica ele com uma
analogia: “Se o cara tá preso e você vai e toma a mulher do cara, pode preparar que você
vai morrer. Não é por causa da mulher não, mas é por causa da traição, o cara tá preso,
não pode fazer nada e tu vai lá e toma a mulher do cara.” Ou seja, Marcos é considerado
“pé de pano” por ter pego na covardia uma pessoa que já estava querendo sair da
malandragem, que não podia reagir. Zé junto com seus amigos resolvem montar uma
“casinha” pra matar o cara.
Pegou um corcel e pediu para os amigos esperarem com o carro próximo à casa
de Zé. Eles estavam em três, sendo que ele disse para um dos amigos dele: “Flávio, ele
não te conhece, você chega no cara e escala ele, escala ele. Tu não chega atirando não,
escala ele.” Zé seguiu para a esquina, no entanto, Marcos não estava só, estava com
quatro mulheres, uma na frente e três atrás dele, e ele só tinha uma faca. Flávio, ao

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contrário do que era esperado, já desceu atirando, só que quando Flavio deu os primeiros
tiros Marcos foi pra trás de uma das mulheres.
“Agora fudeu” pensou Zé, “Como é que eu vou matar essa mulher, a mulher me
conhece....Porra meu !!! Eu já to aqui agora eu não volto não.” Ele e Flávio atiraram em
Marcos, alguns tiros pegaram nele, mas eles erraram a maioria. Marcos ficou com
seqüelas. Mesmo debilitado prometeu pegar Zé, mas acabou fugindo da região. Zé fez o
mesmo, mudando para uma cidade próxima, voltou apenas quando todos os “amigos” de
Marcos já haviam morrido. Atualmente, ainda busca Marcos pelas cidades próximas.
“Não pode dar as costas pra cobra.”

Até certa medida, este exemplo ilustra uma forma representativa de atuação do
mecanismo da guerra. As bocas, pela sua proximidade, são grandes concorrentes; este é
o pano de fundo. No entanto, tal proximidade não se torna um empecilho à convivência;
o problema começa a surgir quando os relacionamentos entre os representantes da boca
começam a se desgastar. O mundo da bandidagem permite que os traficantes utilizem de
recursos que em situação normal não utilizariam. Em outros contextos, a desavença seria
resolvida na “porrada”. A utilização de armas culminando com a morte reflete a essência
da disputa, onde a “ofensa” recebida por parte do traficante tem que ser lavada com
sangue 10.
A primeira ofensa não tem como justificativa o pressuposto da guerra entre as
bocas. Zé, tal como João, interpreta a ofensa como um disparate de um “menor” que
acha que em função de gozar de impunidade legal pode fazer o que quiser. A coisa se
torna complexa quando Marcos atira em João. Entretanto, brigas não levam
necessariamente a desencadear o conflito, mas, no momento em que a vida de alguém
está em jogo, a regra da rua passa a ser matar ou morrer.
A traição de João, se aliando ao inimigo dele, até o momento, não era percebida
como uma grande ofensa por parte de Zé, tendo em vista que a ofensa realizada por

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Sem dúvida a referência imediata que se pode estabelecer é a Bourdieu in Peristiany (1988), como
pontos de disputa em relação a honra.

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Marcos, um tiro em João, se configura como a ofensa máxima recebida, pois exigiria
uma reparação de honra por parte de João, para que este não se torne um “cagão”. Até o
momento, Zé ainda não foi ofendido diretamente, apesar de João ter colocado “pilha”
em Marcos. A relação entre Zé e João não está totalmente comprometida, são compadres
e amigos.
A ofensa que se configura no real conflito vem quando Marcos ameaça matar Zé
e em seguida mata o amigo dele, Gustavo. Isso desencadeia a “casinha” armada por Zé
culminando com o tiro recebido por Marcos. João recupera a sua reputação ao participar
da “casinha”, sendo uma das pessoas a acertar Marcos. O conflito ainda continua, apesar
de ter várias mortes posteriores por parte dos amigos de Marcos, o qual ainda tem a
possibilidade de se vingar, pois está vivo. No entanto, dificilmente ele irá voltar para o
local, já que além deste conflito direto com Zé, Marcos ainda carrega uma má fama. Ele
é “cabrito”, “X9”, ou seja, pessoa que entrega os parceiros de tráfico, e se ele voltar para
a região é possível que seja “apagado” por alguma desavença até anterior ao conflito
relatado.
Um outro fator essencial para se compreender os conflitos são os boatos.
Mexericos, “disse-me-disse”, papos de bar e na boca da esquina, são importantes por
representarem a opinião pública, muitas vezes, catalisando o “conflito” de forma mais
significativa do que a própria ofensa recebida durante a interação social. Ou seja, é
comum bandidos interessados em produzir conflitos para obter ganhos “fazer a caveira
de outros”, gerando ofensas que em várias situações nem sequer ocorreram.
Os boatos se tornam mais perigosos quando se relacionam com a dúvida e com o
medo, variáveis presentes no dia a dia do tráfico. O medo da traição reflete um instinto
de conservação pelo simples fato de que os traficantes sabem o que está em jogo, e caso
ocorra algum vacilo, é a sua própria vida. É esse medo que gera o “demônio” do tráfico,
ou seja, reflete aspectos de uma vida incerta, perigosa, aonde qualquer deslize é fatal.
Esta situação faz com que o traficante tenha que estar atento a todo o tipo de
movimentação, tenha que desconfiar de tudo e de todos. É nesse sentido que vida no
tráfico é a vida de quem “deve”, a qual se contrapõe à vida de quem trabalha de forma

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digna, tendo consciência que ganha pouco, mas com trabalho honesto. A fala abaixo
reflete bem essa situação.

L: Mas assim, de vez em quando não rola vontade de voltar não


(voltar para o tráfico), por causa da grana?
D: Não, quero nada. Deus me livre, Deus me defenda. É melhor ficar
o jeito que tá... é doido. Você colocar a cabeça no travesseiro e ir
dormir tranqüilo é bom demais. Ficar com medo da policia invadir o
seu barraco, ficar com medo de andar na rua...Viver com medo da
polícia te prender, não poder falar em telefone, em celular...Ave
Maria, hum é duro.
L: Você ficava gelado assim?
D: Fica, como é que não fica...
L: Direto...
D: Oxi, todo dia é aquela ditado, você mata um Golias. Tem que
agradecer se o cara consegue passar um dia todo na rua, a polícia é
o tempo todo atrás de peão, o tempo todo, se os caras vacilar vai
preso mesmo...

Dessa forma, o medo que persegue a incerteza do tráfico é também ocasionado


pela fragmentação das bocas. A guerra, em si, não é uma guerra geral em que uma
quadra como um todo se opõe a outra. Na fala dos entrevistados, o traficante é autônomo
e depende apenas do trabalho na sua boca, o que significa o não repasse do seu lucro pra
ninguém a não ser para aqueles que trabalham com ele em parceria, distribuindo a droga
por meio da boca aos “amigos da rua”. Isso faz com que a causa dos conflitos tenha
como estopim as relações pessoais, não podendo, o tráfico local, tal como se encontra
atualmente, ser considerado como uma organização criminosa complexa e organizada.
Contudo, os “traficantes fortes” existem. Geralmente, são aqueles que
prosperaram com o tráfico, o que lhes permitem assumir uma postura menos perigosa,
mais impessoal e formando uma estrutura na qual a sua relação direta com a venda não

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pode ser percebida. Ao que parece, os “grandes mesmos” estão na etapa de envio da
droga para o fornecedor e na sua produção, nunca na rua. Esses “grandes” se apresentam
quase como uma entidade abstrata, o que permite uma analogia da droga com o capital,
onde o fetiche da mercadoria faz com que o produto se torne um ente desligado das
relações de produção. No caso do tráfico, os “grandes” são os deputados, juízes,
delegados, pessoas que têm dinheiro e que ganham enormes quantias para fazer com que
o tráfico aconteça.
De vez em quando, ao longo da pesquisa, um entrevistado me falava: “Mas vem
cá, a polícia tem conhecimento de todas as bocas de fumo, sabe quem as lidera, sabe
como e onde dá o flagrante... É claro que bandido esperto não facilita, mas você não
acha que se eles realmente tivessem interesse em acabar com o tráfico eles não
acabariam?” O que acontece é que os grandes não permitem. Se o tráfico fosse
combatido com veemência, eles não iriam ganhar a parte deles. E isso não seria apenas
em relação ao produto do tráfico, a droga em sim, mas também as outras etapas que
fazem com que a droga chegue à rua, principalmente, o dinheiro destinado ao suborno e
a extorsão.

A família do tráfico

O tráfico é uma instituição que encontra a sua existência no espaço social da rua.
A rua, como foi dito, é a região que se contrapõe ao espaço doméstico, no qual o
indivíduo cresce e passa a escolher que projeto de vida pretende ter, bem como a
identidade social que melhor satisfaz os seus anseios. Contudo, o tráfico, apesar de ser
uma instituição local , para os moradores da comunidade que não estão vinculados direta
ou indiretamente a ele, o tráfico é sempre tido como algo negativo.
Nesse sentido, entre as unidades familiares que se vinculam ao mundo do tráfico,
podemos operar nossa análise a partir de duas categorias de famílias relacionadas aos

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tráfico de duas formas distintas: a família dos viciados e a família dos traficantes. A
primeira é aquela cujo tráfico sempre remete a problemas. Geralmente são famílias em
que algum filho ou filha é viciado. Nesse caso, a família sofre com as repercussões
nocivas que a sustentação do vício acarreta em sua estrutura. Trata-se de crises
sucessivas, roubos de todo âmbito para trocar por drogas, afastamento dos amigos, medo
e ameaças constante por parte dos traficantes. A fala abaixo é de uma mãe que teve seu
filho envolvido com drogas se tornando viciado na adolescência, com 14 anos e
deixando a droga com 20 anos de idade.

Eu enfrentei revolver, enfrentei boca-de-fumo tarde da noite sozinha,


sem energia, andando em cada lugar, cada quadra horrível, que não
é todo homem que tem coragem de entrar não, era eu e o meu irmão.
Às vezes ia sozinha, um pegava a moto ia para um lado, outro pegava
a moto e ia para o outro, e eu a pé, né. Eu não tinha um veículo para
me deslocar e eu entrava em vários lugares assim perigosos, às vezes
tinha tanta gente usando droga e palavrões, imagina o que já escutei.
Outra hora a gente conseguia, quando localizava ele, a gente ia e
tirava. A minha mãe, uma velhinha ela entrou em boca de fumo e
tomou coisas dos traficantes: “Se quiser buscar você vai na delegacia
dar queixa.” Então...tem aqueles (traficantes) que tem coragem pra
matar e outros não, esses que ela foi que eu fui, que a gente catou
roupa...Então...era uma luta constante nossa, procurando, buscando,
pedindo muito a Deus, mas nada tocava o meu coração mais do que
quando ele chegava e falava: “Eu quero ajuda.”

Percebe-se claramente nessa fala que a condição de viciado do filho acarretava


mobilização de toda a família para tentar de alguma forma amenizar a situação. Com o
tempo, o laço do viciado com a família se torna problemático e às vezes até perigoso.

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Em vários casos, o viciado acaba por dever ao traficante e, nesse sentido, o perigo chega
a bater a porta de casa. Todas as pessoas entrevistadas, cujas famílias tinham algum
membro na posição de viciado, relatam que os traficantes vinham bater na porta de casa,
chegando a ameaçar as mães caso os filhos não pagassem a dívida.
Fora o perigo, sustentar um vínculo com o viciado como membro de uma família
significa sacrificar outros laços.

Chegou a ponto dele pegar as roupas do filho dele, do filho dele se


desesperar porque era uma coisa que ele gostava muito, criança sabe
como é que é...Ai foi essa luta, eu não dormia, eu não vivia, eu
vegetava, eu não tinha mais....E por causa disso eu abandonei os
outros dois que é o Flávio e a Ronilda, abandonei assim...Porque eu
não tinha tempo pra cuidar deles, o momentinho que eu tinha de paz,
era um momento que eu tava em casa, fechava tudo pra ele não sair.

Até certa medida, o viciado é visto como um doente no qual a família com
diversos sacrifícios busca recuperar. Diante da comunidade, o viciado chega a estar em
um patamar inferior ao traficante em termos de prestígio social, pois o traficante ainda
produz algum bem estar com o dinheiro que acarreta; já o viciado, apenas gera
problemas.
Em outro extremo existem famílias alimentadas diretamente pelo tráfico. Na
Ceilândia como um todo, o tráfico de drogas é uma realidade com a qual os moradores
convivem desde a fundação da cidade, existindo pais, avós, filhos e netos que participam
ativamente nessa esfera. Ou seja, o tráfico para essas famílias é visto como um projeto
familiar no quais avós e pais são quem introduzem os jovens às drogas. A fala abaixo é
fruto de uma entrevista de duas mães que tiveram seus filhos envolvidos com drogas.

H: A Márcia estudou comigo e a H. Era uma família de bem, a


Lucélia se envolveu na droga porque começou a namorar com esse

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rapaz e o pai dele já era traficante, então ele começou a mexer com
as coisas por causa disso, e nisso mataram esse rapaz e Lucélia
continuou no lugar dele vendendo droga, certo dia, a polícia deu
batida na casa dela e prendeu ela e tia dela, elas ficaram 4 anos na
COMEIA e as filhas sendo criadas pela vó, pela família...
S: E as filhas traficando...
H: Ai agora que a Lucélia retornou ela não mexe mais, não tá nem ai.
Ela fala assim, que todas as privações que ela tá passando na vida é
pagando pra Deus, o tanto de adolescentes que ela desviou que ela
influenciou e levou para o caminho da droga. Ela fala que tá
pagando, entende? Hoje ela tá com duas filhas, uma é a Márcia que
presta serviço pra CJC, que foi pra PAPUDA visitar o namorado e
levou droga nos órgãos genitais na hora da revista....
S: Ai pegaram ela...
H: Pegaram, na hora da revista. Ai ela saiu, presta serviço na CJC.
Ai, a outra, a mais nova, fez da mesma forma, foi pega do mesmo
jeito. Tá na COMEIA e deve tá saindo agora. Agora a Márcia vive no
mundo de meu Deus, tá prestando serviço pra CJC, mas vive no
mundo de Meu Deus.

As famílias do tráfico são localmente conhecidas, são emblemáticas e


visivelmente “famosas”. Até certa medida, em função do tráfico de drogas constiuir um
mundo fulgaz onde seus participantes vivem sob intensa tensão, na medida em que
qualquer erro pode levar à prisão ou à morte, as famílias que se aperfeiçoam em traficar
e convivem com isso por gerações tendem a alcançar certa prosperidade. Porém, esta
realidade não é regra, tendo em vista que algumas famílias cujo pai ou a mãe são
iniciados no mundo das drogas em idade avançada (principalmente quando entram no
mundo do tráfico como “drogado”) e depois introduzem os filhos, tendem a acabar
rápido. Nesses casos a maior parte das mortes se dá por overdose de cocaína.

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Contudo, as famílias que alcançam a prosperidade no tráfico conquistam maior
riqueza material e assim, são as mais faladas. É o caso de uma vovó do tráfico, quase um
mito local. Ela mora na quadra oito e há muitos anos distribui drogas no senado e na
câmera dos deputados, principalmente cocaína. Seu filho, acompanhando a mãe, possui
clientes no Lago Sul e no Lago Norte que o procuram frequentemente pra comprar
maconha. Dizem que na casa dessa família tem de tudo, até piscina, um dos maiores
sinônimos de prosperidade local.
Cabe ressaltar que a família é sempre a referência imediata para se opor à esfera
do tráfico, o que torna paradoxal a situação moral e identitária das pessoas cujas famílias
inteiras fazem parte da instituição. No entanto, a prosperidade material relativiza as
percepções locais sobre essas famílias. Aquelas que sabem fazer do tráfico um negócio
lucrativo são “espertas”, e mesmo não sendo bem vistas na comunidade, têm certa
aceitação social. Já outras em que o tráfico destrói a estrutura familiar, principalmente
por meio do vício, rapidamente, a comunidade retoma um discurso religioso onde o
tráfico é “ferramenta do diabo” e corrompe até as coisas mais sagradas. Essas famílias
“corrompidas” e desestruturadas recebem o apoio das redes de reciprocidade da
comunidade, contudo, gozam de um estado de prestígio social que os designa como uma
família “doente”.

Aspectos morais, o dilema do tráfico

L: Mas você não se complicava com isso não? (dar fim aos clientes
que ficavam devendo ele)
B: Nada, era só saber fazer, porque policia não tem bola de cristal, se
ninguém ver, se ninguém contar...A polícia não vai meter a mão ali e
ver o que tá acontecendo, entendeu? Polícia só prende os outros por
causa que tá conversando, não sei o que, vê...entendeu? Porque se

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fizer calado, ninguém vê, ninguém sonha, ficar só pra você, morre ali.
Agora se você ficar só conversando vai chegar ao ouvido dela, e
detalhe, nesse meio, ou você ta dentro dele, ou não tá dentro dele.

Esta passagem é bem rica em significados, sendo que o ponto de vista que o
entrevistado queria enfatizar é dos perigos, medos e desconfianças que são variáveis
constantes na vida de um traficante. No entanto, tem que se considerar previamente, a
seguinte passagem: “Nada, era só saber fazer, porque policia não tem bola de cristal,
se ninguém ver, se ninguém contar...A polícia não vai meter a mão ali e ver o que tá
acontecendo, entendeu?” Confesso que quando ouvi essa frase, no meio da entrevista a
associação, que me veio a cabeça foi a da famosa obra de Dostoievski, Crime e Castigo.
No livro, o personagem principal Ródia encontra-se em uma situação financeira
difícil e depois de ponderar bastante, planeja o crime perfeito: um assassinato seguido de
roubo de uma senhora que empresta dinheiro a juros. Considera todos os pormenores
friamente e acaba realizando o latrocínio da senhora bem como de uma amiga que
apareceu repentinamente quando este estava na casa da vítima. No livro, apesar de ter
deixado poucas evidências materiais que o ligassem ao assassinato, a sua atitude mental
de culpa e a atitude inquisitiva do detetive faz com que ele confesse o latrocínio e seja
preso, encontrando consolo através da doce Sônia.
O que me permite associar Ródia com os traficantes locais são as características
sociais em que se encontram (necessidades materiais) e os dilemas morais que ambos
enfrentam de acordo com o contexto em que vivem. Porque optar pela ilicitude? Como
os atos dos traficantes repercutem na formação do seu ego e o que isto implica na
identidade social? O que os sujeitos pensam sobre as suas ações? Enfim, o que é moral?
De imediato, a associação entre Ródia e os traficantes implica uma elaboração
mental intuitiva, mas que busca entender a moralidade das ações dos sujeitos com os
quais dialoguei a pesquisa. A pergunta chave que emerge nas várias situações que
enfrentavam remetia à própria condição humana: o que leva uma pessoa a considerar a
vida da outra de forma tão leviana? Nesse sentido, talvez ao formular tal questão esteja

51
agindo como um agente moral que, tal como os traficantes, possui uma identidade social
em que considerações desse tipo são importantes e que refletem a moral como um algo
construído socialmente, mas internalizado nos indivíduos, inclusive no próprio
pesquisador, a partir de seus paradoxos e dilemas, independente do meio social em que
os agentes morais foram socializados.
No entanto, o trabalho aqui apresentado não busca entender a moral apenas como
construto que encontra plausibilidade como justificação de determinado juízo individual.
Considerar a moral como constituída apenas por diferentes condições subjetivas,
psicológicas, históricas e socioeconômicas dos sujeitos é dar um caráter pessoal e
psicologizante à moral, encerrando-a apenas nas exigências do Ego, algo que retiraria o
caráter compartilhado dos juízos morais, fazendo com que ela perdesse o que possui de
mais significativo, os julgamentos de valores sobre as ações de outros e exigência da
adequação social aos preceitos estabelecidos por ela. Dessa maneira, não caberia um
entendimento do porque do outro agir, já que a justificativa e o entendimento dela estaria
contido no sujeito, anulando a caráter recíproco da moral, um dos fundamentos da
reflexão que desenvolvo aqui.
O caso citado no começo desta seção, como todos os outros que foram expostos
ao longo deste capítulo, formam uma espécie de compêndio onde estão reunidas formas
de pensar e agir no mundo, as quais são significadas localmente pelos atores. O que me
intrigou durante todo o trabalho de campo foi a reflexão sobre os juízos morais e éticos
utilizados pelos autores em suas justificações discursivas. Dessa forma, nas linhas que
seguem, busco compreender tais juízos por meio da interseção entre a antropologia e a
filosofia, envolvendo a noção de moralidade e ética, sendo que tal seção apresenta
também as conclusões desse capítulo, conectando-o diretamente com o seguinte.
Faço assim, um percurso teórico que busca analisar não apenas o caráter
obrigatório das normas (Mauss 1981, Gluckman 1967), mas essencialmente, como os
indivíduos justificam suas ações. Nesse sentido, não ignoro as proposições da Ética
Discursiva como uma ferramenta reflexiva para abordar o universo empírico em alguns
casos mais interessantes do que as noções de moralidade propriamente dita, que, devido

52
às obras chaves de Kant, remetem a uma racionalidade transcendental como
fundamentação, fugindo do universo das relações concretas entre os sujeitos (apud L
Cardoso de Oliveira 1996).
No entanto, a noção de moralidade não está exclusivamente contida em Kant;
várias noções foram desenvolvidas por linhas filosóficas posteriores ao autor onde a
distinção entre uma esfera normativa11 e outra valorativa, baseada no “bom viver” de
Aristóteles e problematizada por Heidegger, se tornam nebulosas (apud L. Cardoso de
Oliveira 1996 105:109).
O empreendimento contido nessa seção, por ser baseado na etnografia, toma
como objeto de análise privilegiado os atos de fala dos sujeitos, partindo do pressuposto
que, tal como propõe Austin (1962), as palavras não só podem ser referências, mas
também fazem coisas por meio de seu pronunciamento. Ou seja, por mais que o discurso
dos traficantes tenha uma força assertórica que enfraquece a possibilidade de validação,
suas proposições normativas são também ações comunicativas que explicam como os
sujeitos agem sendo algo basilar para entender como os indivíduos pensam suas ações.
Ao longo desta seção faço um percurso no qual a divisão entre norma e valor,
ética e moralidade, dever e ser, não são rígidas. Tal flexibilidade se torna necessária na
busca pela interpretação adequada dos dados etnográficos, algo que possibilitaria uma
melhor compreensão das dinâmicas sociais que acompanham o tráfico, de forma a não
restringir o escopo analítico, ou seja, possibilitaria a construção de um conhecimento
hermenêutico, essencialmente reflexivo.
Em primeiro lugar, cabe observar alguns aspectos da moralidade que permitem
entendê-la como algo imperativo. Retomo assim a discussão sobre fato moral em
Durkheim (1999) no qual o autor sugere que a moral produz um sentimento de coerção,
internalizado pelos indivíduos através das instituições sociais que imprimem regras de
condutas e nos orientam a agir. Ou seja, a moral seria algo formado socialmente e que

11
Alvo da Ética Discursiva formulada por Apel e Habbermas.

53
implicaria, pela “letra”, deveres, cuja violação acarretaria em um envolvimento coletivo
de repreensão.
Dessa forma, independente do substrato cultural da sociedade ao qual o sujeito se
relaciona, a moral seria a expressão da própria sociedade, possuindo um caráter total e
imprimindo a sua força sobre os sujeitos.

“Ela não está inteiramente fora de nós: ela está também em nós. Ela
não é verdadeiramente real e viva a não ser nas consciências
particulares. Ela está em nós e fora de nós. Ela é a melhor parte de nós
mesmos. Tudo aquilo que em nós existe de verdadeiramente humano
nos vêm da sociedade, tudo o que constitui nossa consciência
enquanto homens nos vêm dela” (Durkheim 1992, p. 619, apud Weiss
2007).

Segundo Tugendhat (1997), a coerção imprimida sobre os sujeitos tenderia a se


manifestar não só de forma racional, pela “letra”, mas por componentes emocionais,
aquilo que o autor denomina afeto moral. Esse sentimento, apesar de fazer referência a
objetos predicativos distintos, hierarquizado por meio das diferentes culturas, possui
uma essência comum, sendo fator decisivo no processo de escolha dos conjuntos morais
a que gostaríamos de pertencer. É interessante notar que essa essência é o que nos
permite constatar que apesar da existência de múltiplas moralidades, como conjuntos
normativos que possuem um sentido local, é necessário considerar a relação entre esses
conjuntos. Dessa forma, aquilo que poderia ser considerado justo é aquilo que faz
sentido dentro de uma moralidade, aquilo estabelecido por uma ordem normativa
compartilhada, à qual os indivíduos estejam submetidos reciprocamente. A ordem moral
é a expressão da sociedade e cada indivíduo estaria nela inserido, sendo ao mesmo
tempo, origem da norma e objeto dela. Ou seja, se um indivíduo fere a sua própria regra,
ele fere as regras coletivas.

54
Entretanto, conjuntos normativos só são validos se o indivíduo for membro de
uma comunidade moral. Se seu ego é estruturado de forma que as normas são ao mesmo
tempo dele e da própria sociedade, significa que as normas do conjunto se encontram
justificadas para todos que a compartilham. É um sistema social cuja vigência conta com
a aceitação dos participantes, que difere do sistema normativo mantido pela forças, no
qual uma pessoa promulga as ordens a uma outra que obedece, o que faz com que seja
um sistema que tenha sentido localmente e se contraponha àquele sistema normativo
cunhado apenas a partir de leis externas. Ou seja, formam-se conjuntos no qual cada
sistema normativo possui coerência própria, mas ao mesmo tempo se liga a outros
sistemas através de pontos de intersecção possuindo o seu caráter orientado a partir da
identidade social que o indivíduo aciona no contexto em que se insere.
Pensando na lógica local e seguindo os pressupostos da operacionalização desses
conjuntos normativos, nota-se que a equidade é a condição necessária para que o
compartilhamento de um conjunto não se torne um fardo para o indivíduo. O que
implicaria que a iniqüidade consistiria na idéia de preservar um sistema em que não é
totalmente justo a partir de uma referência individual, como o sistema penal que
ilegaliza o tráfico, fazendo com que os policiais tornem-se “bandidos” por atentarem
contra a comunidade moral local ao agirem contra a instituição do tráfico. A adesão ao
sistema é a adesão a um conjunto social composto por relações sociais, o que não
implica anulação do desejo individual de que o sistema fosse tão iníquo a seu favor
quanto possível; e, se ao final produzisse certa equidade, seria o resultado da negociação
com os outros 12.
Tal princípio lembra as proposições de Rawls sobre a justiça. Ou seja, “a justiça
como equidade para o autor reflete um contrato social no qual os atores escolhem, por

12
Algo que remete à formulação de Habermas e Apel que acreditam na tese universalização da ética, na
medida em que o jogo normativo se dá pela adesão e pela própria fundamentação discursiva da norma em
si, que envolve proposições pragmáticas-transcedentais que não podem ser contraditas em termos
performativos por envolver uma incoerência lógico formal. Entre estas incoerências destaca-se a
contestação da própria existência do sujeito que, caso colocada em dúvida, estaria refutando o próprio ato
de fala (L Cardoso de Oliveira, 1996).

55
meio de uma ação conjunta, os princípios que devem atribuir os direitos e deveres
básicos e determinar a divisão de benefícios sociais.” (Rawls 1972: 11) Sendo a
estrutura “básica da sociedade” concebida pelo autor regulada pelos princípios de
justiça, promove uma distribuição de bens primários no qual cada um tem os seus
interesses, pelo menos como agentes racionais tentando assegurar os meios necessários
para atingir seus fins. Esses bens encontram-se de forma escassa, o que faz com que os
indivíduos percebam tal diferença que é posta pela condição de nascimento e busquem
acumulá-lo. Assim, seguindo a lógica desse sistema, uma pessoa acumula duas posições
relevantes, a cidadania e a estratificação social.
Destaca-se, nas formulações de Rawls, a articulação de duas teorias distintas na
sua teoria de equidade, ou seja, a da bondade e da racionalidade. A teoria da justiça deve
ser independente do conflito de interpretações a respeito do que é bom para seres
humanos. Essa separação deontológica significa para a justiça como equidade, a redução
do conceito de racionalidade à racionalidade econômica, da utilização dos meios para se
alcançar um fim e da redução correspondente dos planos da vida e do bem para meras
“propensões e inclinações”.
Cada indivíduo tem que ter, em primeiro lugar, uma razão para entrar em uma
comunidade moral e nesse primeiro passo só uma utilidade para ele pode contar. Tal
como foi abordado ao longo deste capítulo, esta escolha é baseada em várias
justificativas, formadas por projetos individuais que encontram a sua limitação dentro da
gama de possibilidades que o meio social propicia. No entanto, quando se faz parte de
uma comunidade moral, a distinção da autonomia coletiva e individual, baseada
simplesmente no caráter humano que os juízos morais contêm, implica uma relação de
equilíbrio à qual as exigências que cada um impõe para os outros é a exigência sob a
qual ele mesmo se quer ver. Algo que estaria fora da teoria da Rawls na medida em que
o desequilíbrio de recursos seria inerente ao sistema, ou seja, consideraria várias
moralidades dentro de uma comunidade, ou talvez a legitimação de posturas imorais
centradas no indivíduo egoísta que apenas busca satisfazer seus interesses subordinando
a comunidade moral a um princípio utilitário.

56
Assim, quando um indivíduo escolhe determinado conjunto moral, escolhe
também determinado corpo social, estabelecendo vínculos sociais nos quais as
exigências morais passam a ter caráter recíproco, compondo uma moralidade. Da mesma
forma, a adesão a uma moralidade pode possibilitar diferenciação entre aqueles onde
seria legítimo ter considerações morais e aqueles onde não seria legítimo tê-las. Essa
seria uma noção chave para entender a razão pela qual os traficantes “consideram”
apenas aqueles que participam desse universo como sujeitos morais dignos de alguma
relevância. Sendo assim, os outros (clientes, playboys, traficantes folgados ou policiais)
seriam pessoas de fora do seu conjunto normativo, algo que permite desconsiderá-los
moralmente e assim encontrar justificativa para ações violentas.
Enfim, trata-se de explicar a moralidade por meio do imperativo da socialização,
tal como sugere Tugendhat (1997). Ou seja, para o autor, boa parte da socialização dos
jovens baseia-se em ser bom e isso constitui um fundamento para suas identidades, o que
implica que esses atributos sejam relacionais e esvaziados de conteúdo, algo que
permite que o jovem dentro do escopo de identidades sociais passível de encontrar
justificativa moral para aderir à identidade de traficante.
Fundamentação semelhante foi sugerida por Habermas (L. Cardoso de Oliveira
1996 105:142) na qual o autor afirma que toda interação intersubjetiva supõe processos
de socialização entre membros da mesma comunidade. A dependência destes processos
produz uma insegurança crônica em relação à identidade dos sujeitos, fazendo com que
a moralidade venha atuar exatamente sobre essa insegurança. Essa atuação consiste na
possibilidade de enfatizar a inviolabilidade do indivíduo por meio da postulação ao
respeito igual pela dignidade de todos e à proteção da rede de relações intersubjetivas de
reconhecimento mútuo através dos quais os indivíduos sobrevivem como membros da
comunidade. Esse processo sugere, dessa forma, a necessidade dos pressupostos da
justiça (igualdade e respeito aos direitos) e da solidariedade (empatia e benevolência
para o bem estar do próximo) (L. Cardoso de Oliveira 2004).
Os dados de campo indicam que a moralidade se encontra impressa (mas
também se imprime) no indivíduo por meio do processo de socialização, sendo a

57
identidade social uma das expressões dessa moralidade. Esse sistema moral tem um
sentido e hierarquiza valores definindo identidades que são mais ou menos prestigiadas
segundo os seus pressupostos. Essa comunidade moral vem a definir o conteúdo para o
jovem do que é ser “bom”, algo que pode ser exemplificado no tráfico quando percebe
que “bom” é o traficante forte, aquele que tem reputação. Logo, as normas que orientam
as ações dos atores podem fixar o que é ser “bom”, sendo que tal fixação implica uma
internalização da sua sanção, sendo que aquilo que é “mau” seria representado por meio
do sentimento de vergonha. Aquilo que é “bom” se torna, nesse sentido, produzido pela
comunidade moral que o significa através de suas vontades e interesses, e fornece o
princípio identitário do “bom” ator social.
No tráfico, a sua moralidade dota a identidade social do traficante de atributos
valorativos, delegando a noção de autonomia frente às outras moralidades. A moralidade
do tráfico cria uma justiça local e o traficante delega a si mesmo um sentimento de
superioridade, de privilégio, algo que se materializa pela indexação do porte de arma,
instrumento de diferenciação social por natureza. Talvez esse seja um dos fundamentos
mais fortes da moral do traficante, que, ao mesmo tempo, encontra o seu avesso na
moral do Estado, representada pela identidade social do policial.
Nesse sentido, a violência encontra justificativa na desconsideração pelas
pessoas que não pertencem a essa comunidade, mas não de forma absoluta, pois os
traficantes percebem a contradição desta postura ao exigir respeito a outros atores
sociais, como por exemplo, a polícia, os políticos e os playboys. Agindo dessa forma,
justificam suas ações fazendo referência ao respeito à condição humana que estabelece
de maneira radical uma igualdade entre todos os seres humanos vivos, algo evidenciado
quando os traficantes, bem como os moradores, falam da degradação que o vício
acarreta, principalmente por meio da doença e da violabilidade do corpo 13.

13
É interessante notar que tais desconsiderações identitárias que justificam tratar desrespeitosamente o
outro que não faz parte da sua comunidade moral, mas ao mesmo tempo exige para si reconhecimento
daquele que agride, lembra a noção de ofensa moral tal como desenvolvida por L. Roberto Cardoso
(2002). O autor, ao falar sobre a política de reconhecimento a luz do filosofo Charles Taylor, analisa nos
EUA, Canadá e Brasil as diferentes percepções dos sujeitos advindas de situações conflituosas e define “a

58
Reconhecem que existem outras moralidades, mas agem e justificam a sua
conduta por meio da moralidade que produz a sua identidade social. Dessa forma,
interpretam as outras identidades sociais a partir de sua lógica moral, agindo de maneira
a sustentá-la quando ameaçada. Sendo assim, a possibilidade de obter coisas muitas que
fazem falta em função da situação social em que vivem justifica a conduta do traficante.
Ou seja, o nascimento que perpetua a igualdade da condição humana acaba por
diferenciá-los socialmente, o que reforça a construção de mecanismos seguros que
permitem uma reação a essa diferenciação. Os traficantes utilizam a desconsideração
para com os outros como uma forma de se considerarem privilegiados por meio do
tráfico, o que também possibilita a estes terem acesso ao dinheiro, algo que alivia a sua
condição humana, na medida em que existe a possibilidade de satisfação das
necessidades materiais, sexuais e afetivas, bem como de angariar mais prestígio social.
Tomar tal caminho, percebido por eles como o “caminho do mau”, na medida em
que existe o imperativo do “bom”, ou seja, do respeito e reciprocidade pelos outros, não
é percebido como algo natural, é antes, uma escolha do indivíduo. Não se pode pensar
que o indivíduo que está inserido no tráfico seja um desviante, apesar da sua escolha
moral. Nesse sentido, moralmente falando, aquele evangélico que busca a religião para
se sentir como predestinado a encontrar o paraíso, não é diferente do traficante que
utiliza das armas e do dinheiro para se diferenciar. Trata-se de buscar uma justificativa
moral para se diferenciar e assim diferenciar o outro, buscando o prestígio ou o
reconhecimento social a partir do prisma que o conjunto moral produz.
Os desviantes seriam indivíduos assim classificados pelo mundo do tráfico que
sofreram a mesma socialização, mas que optam por continuar pertencendo a tal mundo,
agindo de forma contraditória às normas estabelecidas. O caso abaixo ilustra bem esta
condição. O traficante que mata sem motivo é “psicopata”, “doido”, bandido que age
sem medir o perigo de suas condutas. Por conseguinte, aqueles que estão iniciando no

desconsideração, ou os atos de desconsideração, como o reverso do reconhecimento, […] falar de


desconsideração, ao invés de falta de reconhecimento, para marcar o insulto moral que se apresenta
quando a identidade do interlocutor, por vezes de maneira incisiva, não é indubitavelmente reconhecida”
(p. 118 ).

59
mundo do tráfico, que têm uma ambição maior, pouco “juízo” na cabeça, e ainda não
apreenderam de forma completa as regras do jogo, são justamente aqueles propensos a
agirem de forma mais violenta, podendo prejudicar não apenas a si mesmos como
também toda a estrutura em que estão inseridos. De forma geral, todos os entrevistados
afirmam que o perigo não está naquele traficante “das antigas”, que tem sua clientela e
sabe mexer com o negócio, mas nas crianças e adolescentes, nos menores de idade, que
não possuem um senso mais apurado de funcionamento do mundo e são amparados pela
impunidade criminal e pelo Estatuto do Jovem e Adolescente. São os menores de idade
que não sabem distinguir o que é certo do que é errado, avaliando como única verdade
aquilo que aprendem com o tráfico.

D: Hoje o Zé Cabeça é de maior, o Zé Cabeça acho que passou uns


quatro anos preso, lá no CAJE, saia e voltava, saia e voltava... não
tava nem ai, nem ai pra nada, pensa em um nego ruim. Ruim, mas é
ruim, eu nunca conheci um cara ruim como ele de menor na minha
vida não, nunca vi não. Nunca vi, nunca vi de menor não. Ruim, ruim
demais, ruim demais. Eu olhava assim, o que, que é isso, como o cara
faz isso, teve uma vez que ele matou foi dois policiais, dois polícia
civil. Rapaz a policia fechou de helicóptero a cinco atrás dele, ele
pulando telhado, a polícia atirando. A policia fechou a cinco só atrás
dele, só atrás dele....
L: Ele ainda saiu de boa?
D: O cabra é ruim moço, to te falando, depois desse dia que ele
fechou a cinco, tava lá bebendo e ele chegou, ele e o dono da boate
Houston, agora acabou a boate. Mas os donos dessas boates são
todos bandidos, só traficante...Piaco, da 17, é dono da ilha, maior
traficante de pó, cadê ele, a policia só vive na área... Ai ele chegou,
tava bebendo entre a 3 e a 5 ali e ele chega, muito doido... “E ai B
vamo cheirar?” Eu falei, ih cara, eu parei com isso. Ai ele pegou,
então eu vou cheirar, ele e o dono da boate...ai cheirando e ele com

60
um oitão aqui em cima. Ai veio um cara, e eu acho que ele não sabia
dirigir, o cara veio na contramão aqui da cinco e foi subir pelo meio
da três, só que quando o cara virou a belina ele cantou o cavalo de
pau, pra que o cara fez aquilo moço? Moço ele puxou o revolver e
começou a meter bala no cara. Nunca viu o cara na vida, mas meteu
bala no cara...Quando começou a meter bala no cara, eu falei eu vou
embora daqui, não vou ficar aqui nada, tu é doido é...”Ei B, pera
ai...” Eu falei: - Pera ai? Meu amigo... Montei na minha Kombi e dei
no pina, matou o cara de graça....
L: Matou?
D: De graça, nunca vi aquilo na minha vida não... “Que nada, o cara
fica vacilando” Ai passou pouco tempo depois ele foi preso, pegaram
ele com uma arma aqui na cinco e ele foi preso, passou uns três
meses só. Ai ele voltou, nos tava ali na cinco...nos temos um time ali
na cinco, a gente tinha ganhado o jogo e tava bebendo, ai ele chega...
Ai eu ia comprar cerveja, eu tava de moto... Ai ele falou: “Ei B,
deixa eu ir contigo...” Eu falei - Tu é doido, eu não ando contigo de
moto não neguinho. Ai um chegado meu pegou e foi, moço quando o
cara chega na esquina do conjunto G começa a dar tiro pra cima, ai
a polícia vem e prende ele de novo.
L: Do nada começa a dar tiro?
D: Tava muito doido moço, toma Rupinol e fica doido, tá preso de
novo

A percepção da ofensa moral assume atributos relacionais de acordo com a


instituição na qual o indivíduo se insere. É a instituição que dita os conteúdos simbólicos
das identidades a ela articuladas; logo, é a instituição que define que tipo de ofensa
agride o seu corpo ideológico. Dessa forma, em alguma medida, a ofensa moral como
desvalorização identitária implica uma valorização da identidade social da pessoa que
ofende, principalmente quando a instituição a que se refere é o tráfico. Logo, classificar

61
as pessoas como “cabrito” ou “cagão”, acaba sendo uma ofensa de proporções tão
significativas naquele meio quanto xingar um evangélico de “mundano” ou “pecador”.
Ao mesmo tempo, a tentativa de restituição identitária tem que reverberar com o corpo
ideológico da instituição, não podendo ser algo imoral tal como a ofensa recebida. Ao
contrário, a restituição tem que ser racionalmente explicada dentro do conjunto. Diante
disso, matar um outro traficante é algo imoral, contudo, matar um traficante em função
de ter sido ofendido, é algo racionalmente explicável à luz do conjunto moral e
perfeitamente compreensível.
Ironicamente, o traficante ao invés de agir de forma recíproca e considerar
moralmente o outro por meio daquilo que o torna igual, a possibilidade de escolhas de
diferentes moralidades que refletem a sociedade em que vivem, tenta obter apenas aquilo
que sente falta pela desconsideração do outro. É interessante notar que, nesse sentido, a
valorização de uma pretensa igualdade se torna até mais significativo do que a própria
vingança. Dessa forma, a tentativa de restauração da identidade através da disputa, do
duelo, no qual a situação de ambos os adversários seriam iguais no risco que ambos
enfrentam, é algo notoriamente moral.
Ser moral (no sentido atribuído à dignidade) é sempre uma escolha, uma opção
dentro do universo social. No entanto, ao que parece, escolher ser moral e ter
consideração pelo outro acaba sendo um vetor, contrário à própria sociedade. Fazer essa
escolha significa que a moralidade se tornaria uma espécie de “abrir mão”, de recuar um
pouco nesse apelo pela realização de vida. Ser moral seria considerar também “um
pouco” aqueles que estão fora do tráfico que não tem nada a ver com a sua opção de
vida, seria ouvir a mãe que apela para o filho para parar de traficar, seria não roubar dos
vizinhos pra compensar as dívidas do tráfico, seria respeitar aqueles que diferente deles
e que resolvem ganhar a vida de forma digna trabalhando. Seria, até mesmo,
compreender e respeitar a polícia.
Há sempre um momento facultativo no qual o ser humano “decide” (dentro de
seus limites socioculturais) se quer assumir-se ou não como pertencente a uma ordem
social de recompensas e punições e assim escolher se diferenciar do outro. Acredito que

62
essa escolha seja contínua e é neste instante em que percebo a possibilidade de
existência de qualquer moralidade, pois é nos momentos de escolha que o indivíduo
reflete sobre as instituições analisando o conjunto moral que lhe trará maiores
benefícios. Ou seja, a todo o momento o indivíduo está sujeito a ser inserido em
determinada instituição social, o que implica agir moralmente de acordo com os
preceitos estabelecidos por essa instituição de forma que o indivíduo sofra um processo
de socialização distinto e adequado para se relacionar a partir de um prisma
institucional. A simples fuga institucional, sem “quebrar o contrato social” faz com que
se crie desviantes, algo que não impede, no entanto, que o indivíduo faça parte de várias
comunidades morais dotadas de conteúdos específicos, supondo várias identidades
sociais, sendo que o único ponto comum seria a consideração e desconsideração em
relação aos outros, presentes em todas as comunidades morais. Apesar disso, existem
pontos de interseção entre os conjuntos de moralidade que permitem a comunicação
desses conjuntos bem como a sua troca de conteúdos. A fala abaixo ilustra como um ex-
traficante justifica a sua entrada para o mundo do tráfico.

É o seguinte cara, eu fiz isso porque eu quis, eu entrei porque eu quis.


Necessidade, foi...Tinha um pouquinho, mas pô....Se quisesse
trabalhar...Eu sempre trabalhei de orelha seca, há três anos atrás que
eu apreendi a profissão, de ser montador de moveis, quando eu
apreendi a profissão...Trabalhava de oreia seca, vigiando carro,
ajudante de pintor, eu não sei pintar um carro, mas eu sei preparar
um carro. Meu padrinho me ensinou...Por dia eu, por dia (no tráfico)
eu ganhava nada, nada 600, 700 não tinha frescurinha não... Isso pra
não vender nada, pra não vender nada, eu ganhava muito
dinheiro...Então, quer dizer, é muito dinheiro que rola.

A reflexividade sobre as escolhas realizadas, leva-nos a considerar aspectos da


consciência moral. Ao que parece, esta funciona como uma instância de fundamentação

63
interna da moral e que dota o sistema de capacidade de mudança. Isso significa que
qualquer que seja a moral que adotarmos e o tipo de “consciência moral” que
constituirmos socialmente, haverá uma consciência moral reagindo aos preceitos da
socialização, localizada na integridade do ego que gerência as diversas identidades
sociais, bem como avalia as suas escolhas (R. Cardoso de Oliveira 2006).
Esta resistência se manifesta especialmente na capacidade de escolha do
indivíduo. Ou seja, escolher se diferenciar dos outros a partir de uma instituição é
escolher pertencer a determinado grupo ou comunidade, desconsiderando, em alguma
medida, o outro que não pertence a esta instituição, o que significa um agir moral
relacional, onde e moralidade é justificável em um corpo social local e limitado.
De forma resumida, podemos pensar que os preceitos morais que baseiam as
ações sociais relacionadas ao tráfico, são baseados nos pontos que se seguem. O tráfico
como instituição promove uma socialização que forma e é formada pelos sujeitos,
constituindo um tipo de moralidade exclusivista, que produz identidades sociais e
permite considerar ou desconsiderar as pessoas que não fazem parte da instituição. No
entanto, a condição social da moral, que produz a coerção do sistema na forma de
“letra”, também produz o espírito....

Mas sob a letra há o espírito que o anima; há os laços de todo tipo que
ligam o indivíduo ao grupo de que ele faz parte e a tudo o que
interessa ao grupo; há todos os sentimentos sociais, todas as
aspirações coletivas, as tradições a que se têm apego e respeito, que
dão um sentido e uma vida à regra, que anima a maneira pela qual ela
é aplicada aos indivíduos (Durkheim 2002: 40).

Ligando-se à condição humana de terminalidade, a certeza da mortalidade e dos


perigos que envolvem a vida implica em uma moralidade recíproca na busca por aliviar
os “sofrimentos” e legitimar a busca pelo “prazer”. Ou seja, apesar de limitada, a
condição humana, tal como pensava Heidegger, possibilita preservar os laços sociais, no

64
qual a família do tráfico, por exemplo, significa identificar a que entes humanos se
dirige o “esquema” a que é submetido Uma espécie de estrutura motivacional-
teleológica circular, em que as coisas intramundanas, nós mesmos e os outros estamos
sempre necessariamente incluídos. Ou seja, exige-se executar um movimento circular:
partindo do ponto de aplicação, chega ao a-fim-de-quem e, no caminho de regresso,
retornar do a-fim-de-quem ao ponto inicial. Ou seja, ainda sim está presente uma
moralidade que por meio da reflexividade dos sujeitos em considerar e avaliar os
diferentes conteúdos morais apreendidos nas diferentes socializações institucionais
permite perceber que a reciprocidade é uma postura racional e assim optar por ela. Tal
noção de reciprocidade possui o seu substrato na moral que movimento dadivoso
produz, refletindo e possibilitando a própria existência da sociedade em si, como
postulava Durkheim, pois um ator pode optar por fazer parte de uma instituição ou
moralidade específica, mas não pode optar por não fazer parte de nenhuma comunidade.

65
Capítulo II – Política

All of us are identifiable as being of another


kind, to one or another degree, both
enduringly and momentarily.
(Michael Silverestein
p.11 2003)

66
A política das identidades

Se o tráfico é o principal elemento para entender o estabelecimento de redes


sociais e moralidades, a partir do processo de socialização, dando um caráter local às
identidades sociais imprimidas no bojo do substrato cultural da região, a política era a
esfera de valor, a instituição14 que assume destaque por extrapolar o nível local e
permitir um reconhecimento a nível estatal.
Nas casas dos moradores, famílias cujo tráfico não é um projeto coletivo se
reuniam por meio de igrejas e instituições de natureza humanitária ou religiosa. A Casa
de Justiça e Cidadania, CJC, ou simplesmente Casa,15 é uma dessas instituições. Este
capítulo busca entender a dinâmica da CJC e o reflexo de suas ações na esfera pública e
privada da comunidade. Ao longo das páginas que seguem, trato da organização política
interna do grupo e elucido quais os mecanismos de funcionamento e sustentação das
diversas identidades sociais e qual é o papel da moralidade nesse contexto.
A CJC foi a porta que me permitiu acesso à comunidade. Comunidade aqui
entendida como um complexo de relacionamentos que conecta várias pessoas de uma
determinada região por meio de redes sociais cuja formação está relacionada a processos
de socialização semelhantes, ligadas a mecanismos de sociabilidade formados
institucionalmente, como o tráfico e as igrejas. Na região, ser vizinho de alguém é, por si
só, estar exposto à sociabilidade que a rua promove. Contudo, estar na rua não significa
pertencer a um local determinado, sendo que a interação e o tempo são os principais
atributos que permitem o reconhecimento coletivo e a sustentação de identidades sociais
dentro da comunidade.
Como o meu acesso foi via institucional, não precisei morar na localidade
etnografada para participar da comunidade. Trabalhando na CJC, conheci a comunidade
14
A instituição no sentido adotado por Douglas, 1986.
15
Utilizo ao longo do texto mais a denominação de Casa para se referir a CJC por ser a forma no qual a
comunidade se referia a ela.

67
e fiquei conhecido por ela. Desde o primeiro dia percebi que a minha participação estaria
condicionada ao tipo de classificação que a comunidade imprimiria sobre a minha
pessoa. Esta classificação interacional é, em menor ou maior grau, um atributo
compartilhado por todos os moradores (algo que mais nítido no tráfico de drogas em
função da periculosidade que envolve os relacionamentos). É uma forma de garantir a
homogeneidade do grupo, ao mesmo tempo que funciona como mecanismo de
preservação da integridade moral e física dos moradores contra agentes externos que
podem trazer prejuízos para a comunidade.
Tais agentes prejudiciais, por incrível que pareça, estão locados no Estado,
principalmente, policiais e políticos. Os primeiros, como foi apresentando no capítulo
anterior, combatem o tráfico de forma violenta, estando presentes quando os conflitos
locais atingem grandes proporções. Pela atuação policial, moradores da comunidade que
não fazem parte da guerra do tráfico são vinculados a ela, tornando-se informantes,
vítimas ou cúmplices. As investigações, os interrogatórios e também os tiroteios,
envolvem um grande conjunto de pessoas, se inserindo em diversos círculos familiares
que mantêm alguma relação com os traficantes. São familiares, amigos, conhecidos dos
traficantes, moradores; todos passam a fazer parte do conflito. Em termos de
representações sociais, não só local como de toda cidade, o medo coletivo se articula e
dá contorno ao substrato simbólico do tráfico. Trata-se do medo de sofrer violência
policial, sempre capitalizada pelos traficantes na forma de boatos que alimentam a
opinião pública através de histórias de violência policial intensa sofrida por eles e por
conhecidos16.
Já os políticos, segundo os moradores, são os aproveitadores, aqueles que
sempre vão para a comunidade com alguma intenção. São tidos como verdadeiros atores
que já fazem parte da organização social da comunidade. São deputados, secretários de
16
Não raro, conversando com os moradores da comunidade, ouvia histórias da policia “apagando”
bandido utilizando tortura, ou de outros métodos não convencionais. Uma que ouvi com maior
recorrência, cerca de três vezes, foi “acordar com formiga na boca”. Uma história que falava sobre uma
surra que deixava a pessoa em carne viva e a depois os policiais a amarrava em um formigueiro. É
interessante notar que nessa história, como em várias outras, o bandido morria e ninguém nunca
encontrava o corpo.

68
governos, assessores parlamentares, representantes de partidos político, governadores,
senadores, enfim, todo um corpo de políticos profissionais que dialoga freqüentemente
com a comunidade por meio de discursos públicos ou por um verdadeiro aliciamento das
lideranças que guardam alguma legitimidade local.
Os políticos oferecem tudo aquilo que é possível. Saúde para as famílias,
educação de qualidade para os filhos, combate ao tráfico, empregos, programas
assistenciais, capacitação profissional, e, principalmente, esperança de uma vida melhor
para todos. As promessas são tão corriqueiras que acabam se banalizando no dia-a-dia
da comunidade, e é bastante comum encontrar um político discursando por meio de
reuniões organizadas pelas instituições locais, ou fazendo “política de cara”, que
consiste em visitas a alguns moradores da localidade. Não obstante, o que importa
localmente não é a fala, mas ações. Os moradores sabem que aquilo que os políticos
querem é o voto, sendo que para conquistá-lo, o produto a ser barganhado tem que ser
muito bom.
A política estava, dessa forma, presente em todos os momentos. Eu não era
apenas um antropólogo fazendo pesquisa, era um ator político também. Ingênuo, quando
comecei a trabalhar na Casa, achava que a minha inserção na comunidade seria dada
apenas pelos benefícios que oferecia, acreditava que a comunidade precisava de
qualquer ajuda que conseguisse. Com o passar do tempo percebi que o que mediava a
minha permanência era a intenção que tinha. Algumas vezes me perguntaram se eu fazia
parte de algum partido, ou representava algum político; as pessoas tinham curiosidade
em saber o porquê de eu estar lá. Apenas o tempo permitiu que as perguntas em relação
às minhas intenções se perdessem e gerassem uma sensação de pertencimento
condicionado, afinal, não morei no local, mas passei anos trabalhando junto à
comunidade, algo que difere das ações dos políticos, já que nenhum desenvolve um
trabalho contínuo na região, não sustentando suas promessas com ações.
Desde que comecei trabalhar na Casa, percebi a densidade das relações que eram
construídas, verdadeiras tramas se desenrolavam diretamente. Tais tramas aconteciam
na forma de rompimentos e estabelecimentos de alianças em diversos micro-universos

69
sociais, tanto na Casa como fora dela. No tráfico, essas alianças que sustentavam a rede
de distribuição drogas e dava força para as bocas em suas guerras, apesar de freqüentes,
eram sempre passageiras e perigosas, pautadas pela possibilidade de traição e pelo medo
da morte e da prisão. Na política, o dinheiro, conseqüência direta do contato com o
poder, fazia com que as tramas e alianças fossem ainda mais complexas que no tráfico,
envolvendo diferentes recursos retóricos, estratagemas e artifícios para ocultar as
verdadeiras intenções dos sujeitos. No âmbito político, a finalidade das alianças era
essencialmente diferente do tráfico. Não era produzir droga e vendê-la - um fim
concreto, quase uma relação mercantil, como é o tráfico; o fim na política era mais sutil,
quase simbólico, afinal, quase tudo era construído por meio das falas e gestos. Os
discursos retóricos, tanto quanto os apertos de mãos e os sorrisos distribuídos eram
indícios que todos utilizavam para definir identidades e assim prever condutas. Nesse
universo, o dinheiro é sempre a referência mais ampla, contudo, camuflada, distante
retoricamente dos interesses e desejos projetados pelos atores nas diversas interações
sociais, mas com certeza, algo que dota de sentido e sedimentariza as alianças.
O dinheiro, que poderia se expressar na forma de voto, fazia com que todas as
pessoas de fora da comunidade que buscassem trabalhar voluntariamente na região
fossem vistas de forma suspeita. A vinculação com interesses políticos era imediata.
Esta era uma categorização segura dos moradores, uma classificação que permitia
esperar determinados comportamentos por parte das pessoas de fora, gerando uma
segurança quanto à integridade da dinâmica social na qual o agente externo é
“enquadrado” e a conseqüência das suas ações é medida. A comunidade sabe o local de
fala dos políticos, conhece qual é o peso de suas posturas e, por conseqüência,
desenvolve reflexões sobre a sua cidadania e sobre o universo de ação tal como será
visto ao longo deste capítulo.
O que achava interessante era que não havia lugares não políticos. Da casa de um
morador até a sala de aula, eu estava participando da política. Weber sem dúvida se
tornava um referencial para pensar a situação, ali, naquele contexto, pois quase todas as
falas se conectavam direta, ou indiretamente à essa esfera política. Por mais que a

70
complexidade dos tempos modernos tenha tornado a esfera política algo quase
autônomo, promovendo a desvinculação com a religião por meio do “desencanto do
mundo”, ali política se vinculava a tudo, da religião ao carnaval e ao futebol. A relação
mais imediata era aquela que classificava as pessoas e avaliava a sua capacidade de
estabelecer articulações e promover mudanças, promovendo um sistema de prestígio
semelhante ao sistema de reputação do tráfico.
Nesse sentido, um pequeno parêntese conceitual sobre a esfera política se torna
fundamental para entendermos suas implicações locais. Teixeira (1997), ao tratar sobre
decoro parlamentar, demonstrou, a partir de Weber, que a esfera política é uma esfera de
valor cuja noção de honra se torna central e permite distinguir conceitualmente essa
esfera das demais no mundo moderno. A autora elucida que a ética, apesar de estar
fragmentada como esfera de valor, proporciona conteúdos à esfera política, mas
assumindo agora um dimensionamento individual, capaz de dotar de sentido as ações
particulares. Algo que remete a valores universalistas e igualitários para manter a
coerência dentro do escopo de ações dos sujeitos. Weber elucida que a política é o local
por excelência para visualizarmos o paradoxo da relação meio e fins, o cenário no qual o
bem e o mal são valores nebulosos.
Como a política é uma zona regida pelo poder, as ações políticas envolvem
cálculos, cujas conseqüências têm implicações diretas, positivas ou negativas, na vida
das pessoas. Esses cálculos são realizados independentemente do político ser
profissional ou não, sendo um dos mecanismos de avaliação de conduta que permitem o
reconhecimento moral daqueles que lidam com esse universo político. Todavia, os
políticos profissionais respondem publicamente por suas ações, o que remete de forma
mais intensa aos valores e responsabilidades para com os outros que advém da
representatividade eletiva, algo que implica deveres. Não obstante, preceitos normativos,
quando institucionalizados, envolvem punições para o não comprimento, algo que se
torna uma das premissas simbólicas, um dos valores culturais que sucumbem diante de

71
práticas políticas vazias, centradas apenas na promoção de uma imagem pública que
venda votos.17
Dessa forma, diferentemente do tráfico no qual a comunidade moral do traficante
tem um poder de coerção forte implicando a adesão a uma moralidade específica que se
nutre e mantêm pela interseção com outras moralidades, fora do mundo do tráfico, a
moral política é individualizada, não coagindo os indivíduos a responderem diante de
uma comunidade moral particular, com exceção nos casos de decoro parlamentar. A
coerção de vida ou de morte, tal como sentida no tráfico, está totalmente ausente do
universo da política. Por mais que um político aja de forma “imoral”, a sua punição não
será a morte, não havendo avaliações e decisões pautadas pelo medo e defesa da vida.
Boa parte das ações políticas foge do escopo público, é a política dos bastidores, algo
oculto do público mais amplo, contudo, esse jogo político obscuro é o que permite a
sustentação de uma imagem pressupostamente digna que os políticos buscam manter.
Diante disso, as ações individuais, por serem baseadas em valores próprios,
acabam por permitir uma tipificação mais ou menos precisa sobre a conduta dos sujeitos.
Lembrando Weber, o político encontra-se dividido em dois princípios valorativos de
condutas chaves dentre daquilo que chama de ética da responsabilidade: o princípio da
ética da convicção e do sucesso. O primeiro tipo de ética é aquela que remete a uma
lógica de valores, a ação é dotada de sentido próprio, é auto-suficiente por se baseada em
uma convicção, o que retira a responsabilidade das conseqüências das ações por parte do
sujeito, o tribunal que julgaria em última instância a conduta do político seria a sua
consciência.
Já o segundo princípio é aquele que permite a perpetuação do jogo político, é
aquele tipo de ética que faz com que os atores sociais sigam uma lógica de benefícios
próprios. Refiro-me a um político de resultados que busca incessantemente atingir seu

17
É por essa razão que o tempo de permanência e de trabalho contínuo se torna tão importante para a
comunidade. Por mais que a visão local dos políticos seja negativa, as pessoas querem acreditar que
existem políticos diferentes, que irão agir de forma responsável.

72
objetivo, algo que se restringe, basicamente, à manutenção de seu cargo ou à tentativa de
conquistar uma posição política mais elevada no contexto etnografado.
O político ideal, no sentido weberiano, estaria entre os dois princípios,
representando aquele que consegue ponderar a melhor forma de alcançar resultados sem
perder a sua convicção, algo que admite visualizar a política no mundo das ações
inseridas em determinada conjuntura social. Nesse sentido, retoma, mais uma vez, a
questão da publicidade da conduta do político, algo que só encontra significado
remetendo a reputação e classificação social contextual e temporal.
Sem dúvida, a esfera pública local, por meio da reputação, acaba por formar uma
dinâmica atribuidora de prestígio social, estruturada a partir de conjuntos de valor de
cada comunidade, implicando reconhecimento, e, em algum momento, pertencimento.
Dessa maneira, a adesão a determinada dinâmica atribuidora implicaria a adesão a
determinados conjuntos de valores, internalizados pela relação de sociabilidades e pela
possibilidade de sanção do sistema.

A CJC e os tramas políticos

A Casa de Cidadania e Justiça tem quase 30 anos de existência. Passou em sua


história por vários problemas políticos sendo reestruturada na década de 90. Na década
de 80, Dona Maria foi a principal responsável pela Casa. Era uma senhora negra de
origem baiana que migrou para a Ceilândia logo nos primeiros loteamentos da cidade e
se estabeleceu naquela região. Criou fortes vínculos com a comunidade pela “sua
18
natureza caridosa” e também pela extensão de sua família, pois teve cerca de oito
filhos, no qual apenas um foi morar em outra cidade. Ela e seus filhos, contando com o
auxílio da comunidade, construíram o local que hoje é chamado ambiguamente de Casa.
Naquela época o suporte principal veio do time de futebol local Dom Bosco, no qual

18
Dona Maria era umbandista e costumava “dar consultas” tendo segundo alguns moradores, uma boa
capacidade de comunicação com o mundo espiritual.

73
seus filhos participavam. Hoje, seus filhos se orgulham de terem erguido a Casa com as
suas próprias mãos, evidenciando certo sentimento de posse bastante recorrente
discursivamente por parte de toda família de Dona Hermelinda.
Dona Maria, trabalhou constantemente na Casa de Justiça e Cidadania, sendo
uma referência na mediação de conflitos familiares e na resolução de outros problemas,
principalmente aqueles ligados à fome e doença física e espiritual. Dentre os filhos de
Dona Maria, Dona Hermelinda seguiu os passos da mãe de forma mais fiel. Foi uma das
principais responsáveis pela reestruturação da Casa, contando com o auxílio do
parlamentar Chico Leite para reformá-la e legalizá-la. Diferentemente do período em
que Dona Maria tomava conta da Casa, a reestruturação promovida por Dona
Hermelinda incluiu o Estado como um agente importante capaz de sustentar
materialmente o funcionamento da instituição, o que fez com que a Casa se
transformasse em um ente jurídico que passou a dialogar diretamente com o universo da
política estatal.
Os trabalhos na Casa, após a reestruturação legal e política, foram iniciados por
meio de um serviço de orientações jurídicas na área penal e familiar. Advogados,
19
contratados por um convênio da Casa com Chico Leite , atendiam a comunidade três
vezes por semana. Rapidamente, gozando do carisma e da sustentação política que sua
mãe possuía, Dona Hermelinda se tornou uma forte líder comunitária, legitimando sua
influência através dos favores que conquistava por meio da peculiar relação que
mantinha com parlamentares.
A relação entre Chico Leite e Dona Hermelinda ocasionou-lhe uma vinculação
profissional ao passo em que ela se tornou assessora de campanha do candidato a
deputado. Em termos de política, após a campanha, a posição no gabinete conquistada
pelo agora deputado fortaleceu o vínculo de Dona Hermelinda com a poder, auxiliando
na manutenção de um curral eleitoral para o parlamentar. Já no âmbito da Casa, Dona
Hermelinda não era quem ocupava o posto mais alto, pois um outro assessor de Chico

19
No início dos trabalhos de assistência jurídica Chico Leite ainda não havia sido eleito, o que permitiu,
como procurador, firmar o convênio com o fórum de Ceilândia.

74
Leite era quem presidia os trabalhos da Casa e respondia por esta. No entanto, como
diretora, Dona Hermelinda fazia a Casa andar. Rapidamente modificou a estrutura e os
serviços que a Casa oferecia à comunidade, ampliando-os e tornando a Casa uma
referência local.
Criou, junto com os seus irmãos, uma escolinha de futebol. Fundou o grupo de
karatê e o grupo de capoeira. Na área educacional foi responsável pela implementação
do reforço escolar, da alfabetização de adultos e do grupo de artesanato para as mães.
Trouxe, junto com Miriam, o centro espírita kardecista CAMIL, que oferece
evangelização para jovens e adultos, palestras e distribuição de alimentos semanalmente.
Estes trabalhos acontecem até hoje, sendo reforçados pela atuação de voluntários que
trabalham de forma intensa para o desenvolvimento da Casa. Com o tempo, Dona
Hermelinda alcançou a tão almejada legitimidade local. Esta legitimidade foi fruto de
complexas alianças e dos resultados positivos das atividades desenvolvidas na Casa,
sendo conhecida pela sua rigidez moral e por seu auxílio direto no âmbito doméstico das
famílias, principalmente das mães. Seja pela sua atuação ou pela simples herança de uma
imagem pública positiva que sua mãe deixou, Dona Hermelinda possui o apoio local,
sendo cotada por várias pessoas para seguir uma carreira de deputada.
No entanto, a vinculação de Dona Hermelinda com a política, e a sua relação
com o deputado distrital Chico Leite, propiciou alguns conflitos entre a identidade social
que Dona Hermelinda procura sustentar (aquela que ela pensa que legitima sua
liderança) e a definição identitária que a comunidade possui dela. O discurso de caridade
religiosa foi contraposto com os interesses monetários que esta virtualmente possuía em
relação à contrapartida dada pelo deputado por seus trabalhos. Sua legitimidade, como
mediadora de conflitos e liderança, está, nessa medida, sempre posta em jogo, e novas
alianças têm que ser feitas para que consiga sustentar o seu poder localmente. Dona
Hermelinda adentrou na esfera política, sem se desvincular do discurso familiar e
religioso, no qual sua família é o exemplo prático daquilo que diz. Tal ambigüidade se
torna evidente quando Dona Hermelinda recebe políticos em sua casa. Vizinhos que
geralmente enchem a casa de Dona Hermelinda diariamente evitam ir lá quando os

75
“figurões” estão. O que está em jogo são manutenções de identidades possíveis por meio
do controle das informações, o que faz com que boa parte das relações nos bastidores de
Casa seja algo oculto para a comunidade que freqüenta o local. 20
É interessante notar que hoje em dia a Casa não possui uma vinculação político-
partidária como tinha na época de Chico Leite. Há quase um ano, Dona Hermelinda
entrou em conflito direto com o chefe de gabinete do parlamentar, acusando-o de várias
irregularidades. Segundo ela, vários assessores roubaram Chico Leite financeiramente, e
estavam empregando vários parentes em ministérios utilizando o nome do deputado.
Posteriormente, todas essas denúncias se mostraram verdadeiras. Contudo, segundo ela,
Chico Leite estava blindado por este chefe de gabinete e por sua equipe, sendo que ela
não tinha mais acesso direto a ele. Tal situação acabou pendendo para que ela, junto com
alguns líderes comunitários que trabalharam na campanha política do deputado,
acabassem sendo exonerados dos seus cargos. Entretanto, dentro da Casa, duas pessoas
ainda mantiveram os seus cargos políticos, o presidente da Casa na época, Raimundo, e
a professora de artesanato Suellen que também é servidora da câmera dos deputados.
Com a nova eleição da Casa que ocorreu em 2007, Raimundo não conquistou
nenhum cargo administrativo, mas Dona Hermelinda conquistou a presidência da Casa.
21
A partir daí começaram as negociações com políticos interessados no curral eleitoral
que a Casa oferecia. Chico Leite optou por estabelecer uma estratégia pautada pela
necessidade, pois sabia que Dona Hermelinda não o culpava pelo que aconteceu,
confiava no seu carisma e na sua suposta integridade para sustentar o seu vínculo a líder
comunitária, mesmo que ela tivesse que trabalhar para ele com um salário baixo.
Preferiu, dessa forma, não oferecer o cargo político que Dona Hermelinda precisava de

20
Não se pode negar que Dona Hermelinda, apesar de ser legitimada localmente pertencendo
condicionalmente ao jogo político estatal desenrolado nos poderes executivo e legislativo, é uma política
profissional. O que a insere em uma ética de resultados, aonde, algumas vezes, alianças com pessoas
“perigosas” têm que ser realizadas para que seus projetos alcancem resultados e ela sustente a sua
legitimidade local.
21
Raimundo ainda hoje é assessor de Chico Leite. A vinculação dele com a Casa era apenas
representativa, não possuía legitimidade local, com liderança, o que o afastou de forma total da região,
logo depois de ter perdido a eleição.

76
imediato, mas esperar que a necessidade financeira pela qual ela passava fizesse com
que ele negociasse tal cargo com menos ônus possível para si próprio e para o gabinete.
Tal atitude também fez com que ele não direcionasse nenhuma emenda parlamentar à
Casa, pois ajudar a CJC significava ajudar Dona Hermelinda.
Com o tempo a situação se tornou insuportável e a Casa entrou em colapso
financeiro; sem emenda parlamentar, a situação se tornou cada vez mais crítica. Os
ânimos estavam exaltados. Em assembléia, todos os trabalhadores da Casa concordaram
em procurar novas alternativas financeiras. Os políticos que sempre buscavam a Casa
começaram a ser aceitos para os eventos. A Casa se tornou, discursivamente, sem
partido, demonstrando que ela entrava no jogo de barganhas por alianças políticas.
Quase todos os fins de semana Dona Hermelinda mobilizava a comunidade para receber
políticos profissionais de diversos níveis, desde aqueles que já possuíam carreira no
Estado mas que almejavam cargos parlamentares, a deputados, líderes de partidos e
cooperativas, senadores...
Os deputados distritais eram os mais presentes, o que fazia com que a
concorrência a Chico Leite crescesse. Por um lado, a Casa agia com cautela, com medo
de possíveis sanções políticas por parte de Chico Leite, principalmente da sua influência
no governo. Dessa forma, nenhuma aliança poderia ser concretizada antes que os
problemas estruturais da Casa fossem resolvidos, antes que a luz, a água e o alvará
estivessem regularizados. Contudo, por outro lado, a Casa não podia ficar na situação
em que se encontrava. Assim, a melhor alternativa era estabelecer aliança com o
governo.
É neste momento que surge o deputado Raimundo Ribeiro, atual Secretário de
Justiça do governo Arruda. Ele inicia a negociação com a Casa de forma direta e
explícita. Com pouco tempo, e depois de ter passado pelo crivo classificatório local, que
o “enquadrou” como um político sério, a Casa fechou um termo de cooperação técnica
com o Governo do Distrito Federal. A partir daí o secretário passou a ser um
freqüentador assíduo de todos os eventos que a Casa promovia, falando como parceiro
da CJC.

77
É interessante que, em termos práticos, muito pouco foi feito pelo secretário, mas
tal como Chico Leite, muito foi prometido. Lembro que várias vezes Dona Hermelinda e
Cristina, assessora direta do parlamentar, falavam sobre a emenda orçamentária que este
havia feito destinando um valor de 250 mil a 500 mil reais para a Casa usar como
quisesse. Ainda houve um dia em especial que Dona Hermelinda me procurou para
tratar das novidades. Neste dia, ocorreu um almoço em que estavam presentes todos os
coordenadores do deputado Raimundo Ribeiro, como também o seu sucessor na
Secretária de Justiça, algo “bem pomposo”, segundo Dona Hermelinda. O assunto
principal foi a CJC, o fechamento da parceria política e a publicação e destinação
orçamentária da emenda. Contudo, meses se passaram e tal promessa se mostrou ser
apenas retórica.
Durante todo esse tempo, a negociação por cargos continuou. Raimundo Ribeiro
ofereceu um cargo de assessora para Dona Hermelinda, porém, nunca saiu a nomeação
no Diário Oficial. Chico Leite, sabendo da crescente oferta que a comunidade se tornou
alvo, procurou novamente Dona Hermelinda para negociar. Na verdade, a negociação de
Dona Hermelinda com Chico Leite nunca cessou, informações iam e vinham,
constantemente, por meio dos assessores do deputado. Do lado de Dona Hermelinda, o
vínculo com Chico Leite se tornava mais distante. Acreditava que nos bastidores, Chico
Leite falava que a ela tinha feito um acordo político com ele e iria apoiá-lo, algo que
atrapalhava a negociação dela com outros deputados.
Finalmente, Chico Leite a chamou para conversar no seu gabinete. Nesse dia,
Dona Hermelinda colocou na mesa os problemas pessoais que vinha passando em
função da falta de dinheiro, bem como da crise que a Casa enfrentava. No final, Chico
Leite ofereceu um cargo a ela, mas disse que iria avaliar os detalhes de como seria dado
o vínculo, prometeu visitá-la em sua casa e conversar com algumas pessoas da
comunidade. O tempo passou, mas, finalmente, Chico Leite foi à comunidade. Nesse
dia, porém, a maior parte dos irmãos de Dona Hermelinda estava lá mas o discurso foi
um só: o deputado havia abandonado a comunidade, a Casa e Dona Hermelinda.

78
Depois de ser cobrado e pressionado pela família de Dona Hermelinda, Chico
Leite foi visitar os moradores, como costumeiramente fazia. Esperava que a recepção
dos moradores fosse como sempre foi, achava que seria elogiado, teria o apoio coletivo,
o que aconteceu foi o inverso. Os vizinhos falaram a mesma coisa que os familiares de
Dona Hermelinda, que ele havia esquecido a comunidade, se tornando um político
irresponsável, daqueles que só aparecem em tempo de eleição.
Visivelmente aborrecido, Chico Leite conversou um pouco mais com Dona
Hermelinda, dando a idéia de que a culpa de tal situação era dela, na medida em que ela
não estava trabalhando a imagem dele para a comunidade. Apesar de tudo, fez uma
oferta para firmar o vínculo com Dona Hermelinda: iria lhe pagar mensalmente cerca de
600 reais, na forma de diárias que seriam transferidas por intermédio de Suellen. Isso
configurou uma grande ofensa para Dona Hermelinda, que reagiu diplomaticamente
dizendo que iria pensar.
Todos os assessores de Chico Leite ganham acima de 2.000 mil reais, sendo que
a maior parte, segundo Dona Hermelinda, “não fazem nada”. Esse não fazer nada
significa que não tem projeção política necessária, nem uma articulação de base. Ela
sabe que o principal trabalho de um assessor é servir como instrumento de captação de
votos, de forma que os parlamentares consigam se eleger ou re-eleger, gastando cada vez
menos na sua campanha. Aliança entre deputados e lideranças, tal como Dona
Hermelinda, não tem como finalidade fazer com que o Estado se torne mais presente na
vida dos cidadãos, nem aproximar os políticos aos seus eleitores; não existe diálogo, o
que motiva um deputado a procurar instituições como a CJC é bem simples, com vistas
somente a diminuir os custos de campanha por uma regra básica de economia: a relação
custo/benefício. Se o deputado irá gastar 1.000.000.000 de reais em uma campanha para
conseguir 10.000 votos, ele vai gastar em média 100 reais por voto.
Contudo, se o deputado resolve utilizar um assessor que seja uma liderança local,
a possibilidade de diminuir despesas aumenta. Pagando 1000 reais por mês para um
assessor, principalmente em período próximo de campanha, digamos por volta de dois
meses, que é um tempo médio, o deputado gastaria cerca de 2000 reais, o que na lógica

79
do voto por cabeça seria igual à cerca de 20 votos. Todavia, nenhuma liderança
consegue apenas 20 votos; Dona Hermelinda conta que na época de campanha de Chico
Leite para deputado ele tinha garantido 600 votos da comunidade. Ou seja, em termos da
contabilidade por cabeça, para chegar ao montante de 600 votos, o deputado teria que
gastar 60.000 reais. Dessa forma, ele economizaria, teoricamente, cerca de 58.000 reais
de sua campanha apenas utilizando o trabalho de uma liderança
À primeira vista, parece que Chico Leite se equivocou ao usar a estratégia de
pressionar Dona Hermelinda com uma ajuda tão irrisória. Contudo, ela não é de toda
ineficaz. O que ocorre é que apesar de Chico Leite não fechar a assessoria com Dona
Hermelinda neste momento, ele sabe que apesar do assédio que a Casa recebe,
dificilmente outros irão acertar algum acordo com Dona Hermelinda de imediato. O
período de campanha ainda não chegou e representaria um gasto desnecessário colocar
Dona Hermelinda na equipe neste momento. No entanto, quem fechar primeiro com
Dona Hermelinda ganhará a sua fidelidade, afinal, o momento que ela enfrenta é crítico,
necessidades materiais batem diariamente à sua porta. Além do mais, quanto antes um
político for apoiado pela comunidade, mais cedo Dona Hermelinda irá trabalhar
localmente a imagem dele podendo, assim, conquistar mais votos. Ou seja, por mais que
Chico Leite confie que Dona Hermelinda precisa do cargo e isso permite “cozinhá-la”
para assim pagar menos para ela, por outro lado, o parlamentar se encontra inseguro
quanto ao assédio de outros deputados e quanto à possibilidade de perder
definitivamente aquele curral eleitoral.
Para dirimir essa realidade de insegurança, o deputado utiliza contra informação,
ou seja, usa os assessores para conseguir informações e criar boatos. O que ocorre é que
nesse micro-universo político, os acordos e alianças são frutos de várias conversas, as
quais, pelo caráter retórico, são pouco substanciais, possuindo uma grande
maleabilidade. Distorcer qualquer fato e criar um boato é algo muito recorrente e eficaz,
sendo que os assessores dos políticos se tornam atores especializados na confecção de
tais boatos por serem mediadores entre as lideranças e os deputados. Essa mediação se
torna fundamental nesse processo político. Os assessores respondem diretamente por

80
Chico Leite, fazem o que ele manda. Todavia, os assessores são atores sociais, possuem
capacidade de julgamento e, pelo fato dos deputados terem um tempo reduzido, possuem
espaço de autonomia e de decisão dentro dessas micro-políticas.
Essa autonomia é também uma forma de os deputados se resguardarem contra
possíveis falhas dos seus assessores e contra possíveis denúncias de má conduta, sem
prejudicar a sua imagem. Se houve desvio de dinheiro de algum órgão público ou de
uma ONG, se algo dito ou feito inviabilizou uma aliança, se o político perdeu
popularidade, entre outras coisas, o responsável é sempre o assessor e nunca o deputado.
A “blindagem” que Dona Hermelinda se refere é exatamente isso, publicamente
(principalmente quando surge um problema) o deputado não sabia de nada, foi o
assessor que agiu daquela forma sem aval do deputado. Ironicamente, quando
conversava com Dona Hermelinda sobre o deputado, sentia que ela realmente acreditava
na boa índole dele, apesar de saber que sempre os políticos têm conhecimento das ações
de seus assessores, no caso dela, ele estava sendo mal assessorado, o que o levava a agir
dessa forma.
Suellen é um exemplo clássico desse tipo de ação. Com o apoio de Dona
Hermelinda que reuniu as mães da comunidade, Suellen se tornou a principal
responsável pelo grupo de artesanato. Dona Hermelinda e Suellen se conheceram
quando trabalhavam juntas na campanha de Chico Leite. Finalizada a campanha,
Suellen, já como assessora do deputado, foi convidada por ele para participar da Casa na
gestão de Raimundo. Ela se tornou amiga de Dona Hermelinda e um nome forte para
Chico Leite. Suellen é quem intermediava mais intensamente a relação de Dona
Hermelinda com Chico Leite. Frequentemente, conversando com a duas a ouvi falar:
“Dona Hermelinda, o Chico tava falando de você na última reunião, ele disse que tem
que arranjar um jeito de conseguir dinheiro pra te colocar de volta na equipe.” Ou “Dona
Hermelinda, o Chico não tá muito feliz com as visitas do deputado X na Casa não, ele tá
achando que você quer trair ele.”
Na época do encontro relatado acima, a relação entre Chico Leite e Dona
Hermelinda já se encontravam desgastada, algo que pesava bastante para Suellen. O

81
desgaste estava chegando ao ponto atual, ou seja, a um ponto crítico. Nesse ínterim a
atuação de Suellen se tornava mais problemática. Em meio a este cenário aparece a Elen,
melhor amiga de Dona Hermelinda. As duas são amigas de infância, sendo que Elen
também trabalha na Casa e atuou na última campanha de Chico Leite. Ela me relatou
que no dia em que ela e Dona Hermelinda foram chamadas para conversar no gabinete
de Chico Leite, havia uma verdadeira “cama de gato” armada. Suellen intermediou o
encontro, chegando a sugerir alguns valores de salário para Dona Hermelinda. Contudo,
quando começou a reunião, Suellen ficou distante e muda. Cercada por assessores de
Chico Leite, Elen e Dona Hermelinda se sentiam acuadas. Elen relata que todos olhavam
para elas de forma fria, como se fossem duas coitadas que tivessem lá para pedir
emprego. Ela me explicou que depois da ida de Chico Leite à comunidade e após sua
oferta, as duas se sentaram para conversar com Suellen, que falou: “Dona Hermelinda,
você deveria aceitar, afinal, esse é o salário que pagam para quem não tem nível
superior. Já você Elen, assim que conseguir recurso o Chico Leite vai te oferecer um
emprego, como tá fazendo com a Dona Hermelinda.”
Essa atitude, somada com outras, acabava por desgastar a imagem de Suellen na
comunidade. Um outro ponto que sempre ocasionou brigas foi o fato de Suellen vender e
se apropriar dos produtos de artesanato. Apesar de ela doar parte do material, o
artesanato é uma forma de renda importante para as famílias fragilizadas
economicamente. A comunidade reclamava, tornando dificultosa a permanência da
Suellen nessa situação. O ponto crítico que causou o rompimento da relação, no entanto,
foi no dia em que Suellen, que também possui um cargo administrativo na Casa, disse
que tinha que lavrar em cartório a ata da nova gestão da Casa, no qual Dona Hermelinda
se tornara presidente. Entregou um documento a Dona Hermelinda e pediu para que ela
assinasse.
Sem prestar muita atenção e confiando em Suellen, Dona Hermelinda assinou.
Contudo, no dia de entregar o documento no cartório, Dona Hermelinda estava em sua
casa e resolveu ler o seu conteúdo. Descobriu que essa ata, era, na verdade, um
documento que transferia todas as atribuições de Dona Hermelinda para Suellen,

82
fazendo com que Dona Hermelinda se tornasse apenas uma mera representante externa
da Casa. Tal situação se configurou como uma traição que somada a outras pequenas
coisas desencadeou o afastamento de Suellen da Casa, o que representou também o
último vínculo direto de Dona Hermelinda com Chico Leite.

****
A configuração política é o tom que predomina na maior parte das relações
públicas na Casa. Contudo, a Casa é ainda um meio essencial para minimizar vários
problemas enfrentados pelos moradores da região. Os trabalhos assistenciais que executa
se tornam os maiores propagadores de suas ações, o que acaba sendo demonstrado pelo
grande contingente de pessoas que participam dos eventos políticos promovidos.
Dentro das atividades da Casa, todas respondem em menor ou maior grau os
problemas enfrentados pela comunidade, sendo oferecidas gratuitamente e contando
com colaboração de voluntários, a maioria é de pessoas da própria comunidade. Dessa
forma, a Casa se torna uma das principais instituições locais que tentam resgatar os
jovens por intermédio do esporte, de projetos sociais e educacionais, como também pela
religião.
De forma diferente da sua mãe que trabalhava principalmente com entidades de
umbanda, Dona Hermelinda é espírita kardecista. Junto com Miriam, resolveu iniciar os
trabalhos na Casa, oferecendo palestras, evangelização e trabalho mediúnico. Dos
trabalhos que executa, e que, segundo ela, é um dos principais fatores responsáveis pela
sua legitimidade local, os conselhos familiares destinados às mulheres assumem
destaque. Os assuntos são diversos, mas sempre relacionados à família, sendo que
geralmente, tais conselhos se ligam a alguma ação, como assessoria jurídica para aquelas
que sofrem de violência doméstica, que querem se separar ou pedir pensão alimentícia
aos seus maridos. Entretanto, a atividade que mais assume destaque aos olhos da
comunidade é a distribuição de verduras realizadas todo sábado pela manhã, logo após a
evangelização dos voluntários espíritas.

83
É bem interessante observar os contrastes que convivem quase harmonicamente
na Casa. Apesar de todo fim de semana serem vistos políticos poderosos na Casa, alguns
gozando até de status de senador da república, a comunidade é extremamente carente,
sendo que boa parte das pessoas que participam das enfadonhas palestras ministradas
por esses políticos (“já que todo político fala muito!” segundo a fala local) se interessam
mais pela possibilidade de lanchar e ouvir música nesses eventos, do que prestar atenção
naquilo que os políticos dizem.
O conteúdo substancial da fala desses políticos interessa mais aos outros
políticos presentes no evento, ou seja, aos assessores e aos políticos não profissionais da
instituição. Dificilmente esses políticos abrem mão de suas falas para que a comunidade
faça perguntas a ele. Conversam muito pouco com os moradores depois ou antes dos
eventos, quando conversam, e quase sempre estão desatentos para os problemas locais.
Quem legitima ou não um político são as lideranças através das imagens formadas sobre
ele. Se o político tem apoio local, ele apenas precisa aparecer de vez em quando; o resto
a liderança local se encarrega.
Todavia, apesar de o conteúdo das mensagens ser minimizado em termos de
efeitos práticos, as atitudes e comportamentos falam mais do que palavras. “Você viu a
expressão do Cristovam, parecia que ele tava querendo ir embora e o Magela então,
aquele sorriso dele é muito falso.” Essas avaliações performáticas dos políticos são
comentadas muito tempo depois que os políticos vão embora. Quando negativas, geram
a desconfiança e corroboram para o fortalecimento da enciclopédia de classificações
locais. Quando positivos, se transformavam no cartão de entrada do político na
comunidade. Desde um sorriso mecânico em uma foto, até um aperto de mão, tudo
conta, nada passa desapercebido, tudo é registrado.

****

Um dos pontos fundamentais abordados ao longo dessa dissertação, os aspectos


da construção da identidade por via do discurso são claramente explicitado nas tramas

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sociais que seguem na próxima seção. Dessa forma, destaca-se a capacidade de o grupo
“enquadrar” as pessoas de diversas maneiras durante a interação social e após ela. Nesse
sentido, as formulações de Crapanzano (1994) articuladas com Silversteim (2003) e
Simmel (2006) se tornam essenciais para entender como são construídas as identidades e
quais as repercussões de tal construção na prática social.
Crapanzano fala de um processo dialético que consiste na internalização de
significados figurados, ou imagem da biografia do sujeito, tal como sugere Silverstein,
sendo algo que pode ser compreendido como processo de tomada de arquétipos como
orientação. O autor justifica este posicionamento a partir das noções desenvolvidas por
Simmel, onde o encontro interacional faz com que mantenhamos uma imagem
construída do outro de forma distorcida, o que gera a impossibilidade de visualização
deste como um ser individual. Ocorre assim uma generalização fragmentada do outro
que suplementa a sua individualidade. Nesse sentido, o indivíduo estaria sempre em
conflito com as categorias a priori em que é classificado pelos outros.
Porém, o conhecimento a priori que acompanha o conhecimento do outro
também faz com que este sofra uma distorção qualitativa, sendo isto um dos principais
fatores que permitem o desenvolvimento das relações sociais. O indivíduo é contido na
sociabilidade e ao mesmo tempo encontra a si mesmo no confronto com ela. O
argumento de Simmel é que vamos ao encontro do outro com um conhecimento pré-
formado que é sancionado socialmente por convenções e que se encontra de forma
incompleta na apresentação individual, mas que também é qualitativamente modificada
pela percepção individual do sujeito.
Segundo Crapanzano, na maioria dos nossos encontros, a suposição de
similaridade e dissimilaridade é aceita sem questionamentos. Apenas em encontros
excepcionais ela é questionada. Nós presumimos que podemos conhecer o outro através
da fala tomando como verdade aquilo que é dito, tendemos a absorver o outro como uma
experiência individual, ao invés de pensarmos o encontro como relação entre atores, o
que supõe uma separação.

85
Esse processo de categorização a priori é visto localmente como “enquadrar”. É
fundamental para o estabelecimento de relações sociais seguras, tanto no universo do
tráfico quanto da política. Nos tramas relatados abaixo, a análise de tais processos está
evidente nos eventos relatados e constitui algo comumente construído pelo “estilo” ou
marcadores interacionais, presentes nos discursos dos políticos.

****

Na seção seguinte, busco demonstrar quais são os valores sociais chaves para a
comunidade dentro de dinâmicas sociais observadas durante a etnografia. Nesse sentido,
analisarei encontros sociais cujo processo de apreensão do outro por meio da
similaridade e dissimilaridade se torna marcante, assumindo especial destaque o
processo interacional marcado pelo uso da fala e suas conseqüências indentitárias.
Nesse ínterim, a noção de ritual como instrumento analítico torna-se, assim,
fundamental por proporcionar um quadro de situações, sentimentos e discursos
utilizados pelos sujeitos em processo sociais. Ritual, tal como trabalhado ao longo do
texto, difere da perspectiva clássica, na medida em que trato a noção de ritual como
evento dotado de um caráter perfomativo, que reflete aspectos de uma cosmologia posta
em ação, tal como propõe Tambiah (1979). Ou seja, os eventos aqui analisados possuem
um caráter comunicativo, no qual o seu conteúdo e forma estão inscritos em um
conjunto de saberes. O que se destaca na diferenciação da perspectiva clássica de rituais
são os “efeitos perlocucionários” dos eventos, algo que permite analisa-los como mais
do que uma mera atualização de uma estrutura, podendo ocasionar transformações
sociais (Austin 1962).
Nessa perspectiva, os eventos descritos nesse capítulo são apresentados a partir
de sua correlação temporal, demonstrando aspectos seqüenciais em termos de
acontecimentos. A diferença essencial em cada evento é o contexto em que estes se
desenrolam e os resultados que ocasionam, influenciando profundamente os significados
que transmitem. Um ponto comum reforçado ao longo dos três eventos é a importância

86
da oralidade do sistema político, um dos principais atributos dessa esfera, mas que não
se desvincula dos aspectos extra-verbais, compondo a “mensagem” e o “estilo” no
discurso.

Da galinhada ao milhão

Era um sábado ensolarado, a expectativa para esse almoço era grande. Dona
Hermelinda havia pedido para que eu fosse a fim de conhecer o futuro candidato a
deputado, Zezinho, e apóia-la nesse evento. Zezinho é uma pessoa polêmica. Apareceu
na CJC quando ela mais precisava, ofereceu mundos e fundos, angariando rapidamente a
simpatia de Dona Hermelinda. A pessoa que intermediou a entrada de Zezinho na
comunidade foi Joaquim. Joaquim é um dos principais personagens que compõem as
tramas atuais mais significativas em relação à Casa. É nele que boa parte do universo de
tipificações ancorados na moralidade local encontra o seu paradoxo.
A primeira vez que eu o encontrei foi no início do ano retrasado, em 2006. Há
três anos eu já vinha trabalhando continuamente com a comunidade, mas durante o final
do ano de 2006 havia me afastado. Joaquim e Dona Hermelinda me telefonaram com a
proposta de retomar o cursinho pré-vestibular comunitário que eu havia fundando.
Joaquim seria o coordenador, pois tinha experiência de vários anos de ensino, além de
uma ampla disponibilidade de tempo, algo que não possuía.
Aceitei de pronto a proposta, procurei chamar alguns professores conhecidos e
finalmente retomamos o projeto das aulas. A personalidade de Joaquim nos pareceu
problemática. Apesar de sempre simpático, seu sorriso era dissimulado, parecendo
ocultar outras intenções. Exagerava retoricamente nos discursos sobre a possibilidade de
a educação e religião revolucionarem o mundo, tentando, a todo momento, motivar de
forma equivocada a equipe de professores. Alguns destes eram ateus e o discurso
religioso não era o motivo de realizarem aquele trabalho voluntário.

87
Com o tempo criou-se certa aversão por parte dos professores com relação a
Joaquim. Algo não baseado apenas nos equivocados discursos utópicos, mas nas
contradições discursivas que qualquer pessoa que tivesse uma visão mais analítica sobre
o conteúdo de suas falas poderia perceber. Geralmente, eram falas vazias, com uma
retórica desprovida de sentido.
Além disso, buscava legitimar seus discursos por intermédio de sua experiência.
Éramos professores com pouca experiência no comando de uma sala de aula, e falar
sobre falta de experiência acabava sendo uma forma de diminuir o profissional, afinal
todos sabiam de nossas limitações. Alguns professores se sentiam prontamente
ofendidos, reforçando a antipatia à figura de Joaquim. Era claro que Joaquim buscava se
diferenciar do grupo de professores para afirmar uma pretensa liderança, conquistada
por meio da inferiorização dos outros professores e da exaltação de sua pessoa, algo que
ele acreditava que traria confiança e admiração do grupo, pelo contraste entre ele e os
demais professores.
Em conversas com os outros professores decidimos ignorar isso, afinal,
precisávamos de um coordenador. As aulas correram bem no começo, envolvendo uma
grande quantidade de alunos, mas com o tempo, alguns problemas estruturais da CJC,
como a ausência de luz, e a evasão de alguns professores, que não mais suportavam
Joaquim, acabaram por fragilizar o cursinho. Certo dia, Dona Hermelinda me chamou
para conversar. Nesse dia estava com outro professor e previa que seria algum problema
relacionado a Joaquim e o cursinho. Ela andava meio tensa quando se referia ele,
anunciando a briga que estava por surgir.
Na sua casa, Dona Hermelinda me informou que Joaquim havia deixado o
cursinho e a Casa. Eu desconfiava que Joaquim mantinha uma relação afetiva com Dona
Hermelinda, apesar de não chegar a vê-los juntos. A proximidade e a inserção de
Joaquim na comunidade foi muito rápida, algo que só podia acontecer por um relação
mais estreita com Dona Hermelinda. Pensava que a base de tal confiança fosse um
relacionamento. Um outro fato que corroborava essa minha intuição era que sempre
encontrava Joaquim na casa de Dona Hermelinda. Sabia que ela fazia várias reuniões

88
políticas na sua casa, mas a presença de Joaquim acompanhava uma intensidade maior.
Ele transpassava a barreira simbólica da varanda, tendo amplo acesso ao interior da casa.
Além, é claro dos mexericos da comunidade, tal como Dona Hermelinda me relatou
posteriormente.
Dona Hermelinda me disse que conversou com Joaquim, e acordaram que este
iria sair da Casa. Esta decisão era baseada em alguns acontecimentos recentes. Segundo
ela, Joaquim havia se aliado a Zezinho e planejado ações sem o seu consentimento. Ele
afirmava incondicionalmente que a Casa daria apoio político a Zezinho, sendo que
várias vezes todos haviam concordado que a Casa deveria sobreviver sem uma
vinculação político-partidária. Tal afirmação e a conversa sobre a possibilidade de
finalizarem projetos fez com que Joaquim conseguisse um emprego para sua filha em
uma faculdade da Ceilândia, na qual Zezinho possuía uma longa amizade com o reitor.
Este emprego prejudicou sobremaneira a relação de Joaquim com Dona Hermelinda,
afinal, ela havia sido exonerada da equipe de Chico Leite estando sem emprego e
passando por dificuldades financeiras. Mas o que mais chateava Dona Hermelinda era
isso ter sido feito por trás dela, sem o seu consentimento, afinal, já havia tido a eleição
para a diretoria e Dona Hermelinda já era efetivamente a presidente, sendo que Joaquim
deveria sempre consultá-la sobre as decisões a serem tomadas.
É interessante notar que Joaquim gozava de toda confiança por parte de Dona
Hermelinda. Contudo, quando a relação entre os dois começou a ser abalada, tal
confiança acabou por se tornar um pretexto para o desencadeamento de conflitos.
Normalmente, Joaquim falava sobre a Casa, organizava atividades e principalmente,
fazia articulações políticas. Elen, junto com outras mães, “deduravam” as atitudes de
Joaquim, segundo elas, de técnico ele passou a se sentir dono e o responsável por todas
as ações da Casa. Isto representava um grande problema para Dona Hermelinda, afinal,
boa parte de sua imagem política na comunidade é de mãe trabalhadora, aquela que
sustenta a Casa com seu trabalho, o que permite a identificação com várias mães da
comunidade, sendo aquilo que ela acha que sustenta a sua legitimidade perante o grupo.

89
Com o tempo, Dona Hermelinda ficou sabendo que Joaquim estava denegrindo
sua pessoa para os alunos do cursinho, algo que enfraquecia a sua imagem fortemente,
tendo em visa que o cursinho agregava bastantes alunos, por volta de 80. Os problemas
que decorriam da atuação de Joaquim obrigaram Dona Hermelinda a se retratar com os
alunos do cursinho, tornando pública a briga interna que se desenrolava nos bastidores
da Casa. Mas a situação limite que causou a ruptura entre Joaquim e Dona Hermelinda
foi no dia em que uma mãe disse a Dona Hermelinda que ela era uma chifruda. Segundo
a mãe, Joaquim a traia com todas. Relatou que Joaquim cantava várias meninas e um dia
ele resolveu cantar a sua filha, uma aluna do cursinho de artesanato. Sem dúvida, um dos
fundamentos da liderança de Dona Hermelinda é sua reputação, algo que ela tenta
preservar a todo custo. Um sobrinho dela contou que na época que ela era casada com o
seu ex-marido, certo dia ela brigou com ele em função de outras mulheres, fazendo com
que jogasse as roupas dele na rua. Em várias conversas que tive com ela pude perceber
que abominava o comportamento leviano dos homens para com as mulheres,
principalmente aqueles relativos à infidelidade.
Ela me afirmou categoricamente que não tinha nada com Joaquim, mas que as
atitudes dele estavam se tornando insuportáveis. Segundo Elen, professora de artesanato
e alfabetização, Joaquim e Dona Hermelinda chegavam a ser vistos como um só. Aonde
um chegava, prontamente, as pessoas perguntavam sobre o outro. Após a ruptura de
Joaquim e Dona Hermelinda, a conversas sobre ele se tornaram freqüentes,
principalmente, aquelas que refletiam o caráter negativo de sua personalidade.
João, primo de Dona Hermelinda, sempre foi contra Joaquim e nunca simpatizou
com ele. Dona Hermelinda acredita (se referindo à opinião de João) que Joaquim,
sempre ambicionou ser presidente da CJC. Segundo ela, Joaquim queria manipulá-la, de
forma a conquistar tudo aquilo que ele almejava. Elen reforçava a mesma perspectiva
em relação a Joaquim. Relatou o dia em que houve eleição para a diretoria da CJC.
Neste dia, Elen era responsável por escrever na lista quais eram os futuros candidatos e
seus respectivos cargos. Depois de escrita a lista deveria ser exposta para o
conhecimento de todos, sendo que os votos seriam secretos e colocados em uma urna.

90
Elen não colocou o nome de Joaquim na lista, o que causou grande protesto de sua parte.
Joaquim gostaria de ser candidato a presidente. Elen e Dona Hermelinda relatam isso
afirmando que a perspectiva de Joaquim sempre foi a de tomar o poder. Sempre buscou
ludibriar e conseguir as coisas pelas suas costas.
O que me impressionava nas falas era a transformação da imagem de Joaquim;
antes dos conflitos, uma pessoa que era caracterizada positivamente, contudo, sua
imagem foi transformada negativamente como resultado das interpretações locais de
suas ações, demonstrando aspectos de uma classificação identitária fulgaz. Esta reversão
de imagem pública baseou-se na revelação das reais intenções de Joaquim, sendo que
este eixo interpretativo, que julgava todas as suas ações no passado bem como o que
previa possíveis ações no futuro, tratava-se de sua busca obstinada por assumir todo o
poder da Casa.
Neste sábado, o almoço de aniversário do Zezinho, um evento político que reunia
centenas de pessoas e pretendia lançar as bases da sua futura candidatura, Dona
Hermelinda tinha toda certeza que Joaquim estaria lá, algo que provavelmente geraria
um confronto entre os dois. No entanto, isso não ocorreu, Joaquim não foi. Dona
Hermelinda disse que era porque Zezinho queria agradá-la, que esse não era o momento
para trazer Joaquim de volta, pois Zezinho tinha uma proposta para Dona
Hermelinda...Essa foi a interpretação de Dona Hermelinda, algo que não a impediu de se
precaver contra tal encontro trazendo vários amigos, inclusive eu.
Neste almoço, eu estava diretamente vinculado a Dona Hermelinda, sendo que
ela afirmava que esta era uma boa oportunidade para que eu “avaliasse” Zezinho. Já
havia percebido, tal como aconteceu com Joaquim, que a categorização que marcava os
primeiros encontros interacionais era de suma importância para entender as intenções ou
a moralidade do sujeito, algo tão comum no perigoso mundo do tráfico, era aquilo que
marcava o tom também das relações naquela esfera política. No entanto, eu era um peixe
fora da água, não possuía a gramaticalidade simbólica dos políticos ou dos traficantes,
algo que percebi de imediato quando entrei no ginásio e vi aquele ambiente
monocromático, onde faixas e balões enfeitavam todo o recinto, sempre de cor azul.

91
De imediato, lembrei da Tese da professora Borges22, sem dúvida a vinculação
entre cor e partido é tônica na política realizada em Brasília. Peirce me veio à cabeça, o
azul era um verdadeiro ícone da vinculação política do futuro candidato. Essa, como
várias outras interpretações que saltavam à minha mente remetendo à teoria
antropológica, demonstravam que era um agente externo, apesar de fazer parte do jogo
político, minha categorização da situação era outra.
Zezinho, é um daqueles políticos em alto cargo estatal, faz parte do grupo de
pessoas que apóiam e sempre apoiaram Joaquim Roriz. Como um dos diretores da
CAESB (Companhia de Água e Esgoto de Brasília) Zezinho esteve diretamente
vinculado ao Governo Roriz, se mantendo ainda no seu cargo após a eleição do novo
governador. O governo Arruda não modificou, radicalmente, a estrutura dos cargos de
direção do antigo governo, e as alianças políticas são praticamente as mesmas; aquela
reunião evidenciava precisamente isso. De administradores a assessores, vários políticos
do governo estavam lá. Contudo se misturavam a extensa família de Zezinho e
moradores do Cruzeiro.
No ginásio havia várias mesas próximas, alinhadas lateralmente, formando um
vão que contornava o palco. No palco, uma banda de pagode preparava os instrumentos.
Encontrei com Dona Hermelinda e sentei na mesa em que ela estava. De repente, ela se
levantou, Zezinho a procurava para agradecer a sua presença. Zezinho foi à nossa mesa e
a agradeceu abraçando-a. Em seguida, Dona Hermelinda me apresentou como professor
do cursinho. Ele fez uma observação vaga sobre educação, elogiou em voz alta Dona
Hermelinda, e seguiu para a mesa seguinte. Percebi que ele já havia andado por quase
todas as mesas do ginásio, sempre acompanhado por uma mulher.
Fazendo referência a uma situação anterior, perguntei se aquela era esposa de
Zezinho, e Dona Hermelinda me respondeu positivamente. A situação a que me referi
foi uma situação na qual Dona Hermelinda confundiu “as mulheres” do futuro
candidato. Certo dia, quando a esposa de Zezinho ligou para Dona Hermelinda, esta,

22
(Borges, 2007).

92
sem saber que ela era esposa, confundiu os nomes, pensando que fosse outra mulher que
sempre andava com Zezinho e que ela acreditava que era esposa dele. Uma gafe, que
depois Zezinho justificou para Marisetela afirmando que eram apenas bons amigos.
Porém, Dona Hermelinda conhece a moça e esta disse que há vários anos ela é “amiga
especial” de Zezinho, sendo que este promete mundos e fundos para esta moça, mas não
larga a mulher.
Dona Hermelinda, mas uma vez, lembrou de Joaquim, e me disse: “Um homem
como este, que faz inúmeras promessas para ela (Dona Hermelinda), mas mantém um
relacionamento fora do casamento, magoando as duas mulheres...Não iria honrar os seus
compromissos com ela. Não se pode confiar nesse tipo de homem.” Ao que parece, nos
critérios de julgamento quanto à personalidade social das pessoas, principalmente dos
homens, o que está em jogo para Dona Hermelinda é uma não divisão de esferas morais.
Se uma pessoa age errado em alguma esfera de sua vida é bem provável que venha a agir
errado em outras também.
Já percebia que o relacionamento entre Zezinho e Dona Hermelinda encontrava-
se fragilizado, boa parte por causa de Joaquim. Apesar da atenção que era dirigida a ela
de diferentes formas (os assessores de Zezinho a todo o momento procuravam Dona
Hermelinda, uma vez ou outra o animador da festa também agradecia a presença de
Dona Hermelinda pelo microfone. Zezinho sempre que falava com ela dizia: “Minha
presidente” acreditando ser simpático). Dona Hermelinda não visualizava questões mais
promissoras e amplas para Zezinho na Casa, algo que ela tinha como um relacionamento
problemático que poderia comprometer o futuro da Casa em termos financeiros e
morais.
Logo após comermos a galinhada, Dona Hermelinda me chamou para
conversarmos do lado de fora do salão. Ansiosa, me contou da proposta milionária que
havia recebido de Zezinho dia anterior. Segundo ela, Zezinho havia perguntando quanto
ela precisava para desenvolver plenamente todos os trabalhos da Casa. Dona
Hermelinda, já entusiasmada, disse que por volta de 150 mil. Zezinho disse que eles
estavam querendo investir 7 milhões na Casa. A reação dela, segundo o que me disse,

93
foi ficar boquiaberta, quase caindo pra trás. Ele explicou que seu grupo já havia
realizado algo semelhante com uma ONG em Luziânia. Disse que chegaram a
implementar uma piscina olímpica na ONG e queriam fazer o mesmo com a Casa, o que
entusiasmou demasiadamente Dona Hermelinda. Apesar de tal oferta tentadora, Dona
Hermelinda sabia que eles iriam pedir algo em troca, o que a deixava desconfiada,
ansiosa para ver o que aconteceria na reunião que eles haviam marcado para a próxima
semana.
Estávamos ainda conversando do lado de fora do ginásio quando chegou o
principal assessor de Zezinho, nos apresentando a outro diretor da CAESB e depois ao
administrador de Brasília e do Cruzeiro. Conversaram sobre parcerias, e da necessidade
de ter o apoio político de Dona Hermelinda. Bastante deslocado, pedi licença e voltei
para a festa. Na semana seguinte, Dona Hermelinda me chamou pra conversar e foi logo
reclamando de Zezinho; rapidamente começou a descrever a reunião que eu não pude ir
na CJC, na qual ele tratou sobre os investimentos na Casa. Segundo ela, Zezinho e seus
assessores queriam transformar a Casa em um grande caixa dois para a candidatura a
deputado que Zezinho lançaria na próxima eleição. Dos 7 milhões que seriam investidos,
1 milhão iria pra Casa, o restante seria pra campanha de Zezinho, no qual gastos como
combustível, carro, panfletos, cartazes entrariam nas contas da Casa, sendo
responsabilidades de Dona Hermelinda.
“Léo, eles acham que eu sou otária, ou ladra, só pode.” Disse Dona Hermelinda,
indignada. Ela não queria ser laranja de político nenhum, sendo que tal proposta era uma
ofensa, afinal ela não era inexperiente na área e sabia que quando isso acontece e surge
um problema, a responsabilidade final é sempre do laranja. No entanto, para Zezinho,
ela disse que iria consultar os outros membros da Casa e depois daria uma resposta
definitiva. Afinal, a resposta dela era uma resposta da comunidade, algo que fazia com
que ela se comportasse sempre de forma diplomática, não fechando as portas para outros
benefícios que o futuro candidato a deputado pudesse trazer para a comunidade.

94
Escondendo o jogo

Logo que cheguei à reunião, Dona Hermelinda me apresentou João Carlos e


Demétrio, que estavam sentados na ponta extrema do círculo entreaberto formado pelas
pessoas da casa. Ao lado de João Carlos estava uma moça da associação da quadra 19,
seguida da mulher do professor de capoeira que desenvolve um trabalho junto com João
Carlos. Dona Hermelinda estava sentada do lado direito de João Carlos, seguida por sua
filha Sônia, o seu irmão Túlio, o professor de karatê, sua amiga Luana, o seu outro
irmão, Flavio Amaral e mais um outro irmão de Fortaleza, que estava apenas
acompanhando a reunião. Eu estava sentando no outro extremo da roda ao lado de Ana.
Este era o quadro de pessoas que formavam a reunião. Das pessoas que estavam
presentes, a maior parte pertencia ao quadro funcional da casa. Sônia, filha de Dona
Hermelinda, é uma adolescente de 19 anos. Túlio é o professor da escolinha de futebol,
junto com alguns outros irmãos são os herdeiros do time Dom Bosco, e, atualmente,
buscam alternativas para profissionalizar seus alunos. Luana é uma amiga antiga de
Dona Hermelinda, há anos a conhece, contudo, é uma política, possui cargo
comissionado na Secretária da Juventude, o que faz com que todos tenham um cuidado
especial ao tratar com ela, pois sua conduta na Casa está sempre sendo avaliada. Flávio
Amaral é um dos irmãos de Dona Hermelinda que assumem maior importância política.
Desde a vinculação de Chico Leite com a Casa ele vem acompanhando a situação,
chegando a trabalhar com o deputado e estando sempre presente na administração da
Casa. Ana é o braço direito da Dona Hermelinda, ela é quem mantêm Dona Hermelinda
informada sobre a rua, os boatos e mexericos e a auxilia na sustentação de sua imagem..
Ana é uma das principais responsáveis pela sustentação da legitimidade local de Dona
Hermelinda.
Os visitantes, as pessoas de fora da Casa, eram João Carlos, Demétrio, o
professor de capoeira e suas acompanhantes. Aquela reunião tinha o caráter de aprovar

95
em assembléia uma proposta de parceria sugerida por João Carlos. O que estava em
jogo, na verdade, era um ato puramente performático; Dona Hermelinda, ritualmente,
possibilita que os demais trabalhadores da Casa interfiram no jogo político. Contudo,
como será relatado a seguir, o que fazia era apenas criar uma farsa, tendo em vista que a
sua decisão já havia sido tomada.
Para iniciar a reunião, Dona Hermelinda me apresentou àqueles que não me
conheciam, dando prosseguimento à pauta. João Carlos tomou a palavra. Este fez
questão de falar que seu objetivo ao trabalhar na Casa não era político, que a questão dos
partidos políticos era na verdade uma grande sopa de letrinhas e que nada significava pra
ele. Apesar de ser do PPS e ocupar cargo na Câmera dos Deputados, ele não vinha
trabalhando socialmente para fazer política ou representar o partido. Para ele, todos os
partidos têm como função trabalhar com as idéias, diferente dos movimentos que
trabalham diretamente com as pessoas, sendo que os deputados refletem a postura do
partido. Segundo João Carlos, a importância do trabalho dos políticos não está nele
apenas, mas nas pessoas que os assessoram, tanto as que trabalham no gabinete dos
deputados, quanto aquelas que se ocupam da capiliarização do trabalho, “pegando na
massa”realmente.
Este trabalho que ele (João Carlos) está realizando se baseia diretamente na
seguinte afirmação: “Eu gosto de colocar a mão na massa, trabalhar com os movimentos
sociais”. Segundo ele, o que deve ocorrer é um trabalho direto com os projetos,
formulados a partir da experiência que ele possui, principalmente, da ONG a qual ele
fundou e trabalha no P-Norte. “Não importa quem vai ajudar politicamente; o que
importa é que as coisas aconteçam. Depois que acontecer é que se pode atribuir os
louros a quem for de direito.”
Sustentava que o projeto que a Casa deveria realizar seria aquele que promovesse
a sustentabilidade de forma que não fique dependendo de políticos que vez ou outra
aparecem oferecendo coisas miúdas como pagar a luz ou a água. As relações políticas
deveriam fazer referência a um contexto mais igualitário, de forma que as decisões
tomadas não sejam impostas de cima para baixo. Esse ponto me chamou atenção. A

96
forma e a expressão corporal até aqui usadas demonstravam, a princípio, algum receio, o
que dava um tom mais humilde às suas falas. Com a apresentação da Dona Hermelinda,
eu acabei sendo o interlocutor privilegiado, pois parecia que boa parte das falas eram
direcionadas a mim, sempre na busca de um contato direto com os meus olhos. Procurei
demonstrar um pouco de cansaço, o que foi algo fácil, tendo em vista que a fala de João
Carlos se estendia bastante.
Isso fez com que ele parasse de me encarar diretamente e direcionasse o seu
olhar para as demais pessoas em torno do círculo. Passou a falar, assim, do tipo de
política ineficaz que alguns políticos que só buscam votos praticam naquela região, uma
política baixa que possui um alcance limitado e não ajuda em nada a comunidade. Algo
para ele classificado como política pequena irresponsável, que não visa nenhuma
transformação social. “Os políticos de pára-quedas”, que o professor de karatê
aproveitou o ensejo pra rotular.
Percebi que a fala dele era condizente com a realidade atual que a Casa de Justiça
enfrentava, o que implica um conhecimento anterior contextualizado, fazendo com que
essa reunião tivesse um caráter um tanto performático. Se ele estava ali, falando daquela
forma, significava que certo arranjo anterior havia sido combinado. Dona Hermelinda já
havia legitimado o seu trabalho, algo que ela fez questão de salientar, dizendo que
aprovava a proposta de trabalho feita por ele, mas que o que fosse decidido ali era o que
realmente valia. Ou seja, dava indícios de sua posição e buscava que os demais membros
da Casa concordassem com ela.
João Carlos, já finalizando a sua longa fala, procurou dar autoridade para o seu
discurso através do seu passado. Disse que era concursado na Câmera, e que apesar de
ter vinculação total com a política, o que realmente gosta de fazer é trabalhar com o
povo. Luana, nesse momento, afirmou que ele era velho conhecido e que o pai dela, que
toda sua família havia votado nele, o que fez com que falasse um pouco sobre a sua
candidatura a deputado. Disse que só foi candidato para cumprir legenda em seu partido.
O que para ele foi algo positivo e negativo, abrindo algumas portas e fechando várias,
sendo que é por essas vagas abertas que ele hoje desenvolve trabalhos nas comunidades.

97
Demétrio, personagem pouco carismático, mas que para Dona Hermelinda era a
cabeça por trás de todas as ações de João Carlos, falou sobre a sustentabilidade das
atividades bem como da Casa. Com cálculos simples, falava sobre a relação
custo/benefício que pequenos projetos deveriam envolver, sendo que possuía know how
e, tal como João Carlos, iria apoiar a Casa em todas as suas atividades. Foi interessante a
fala de Demétrio que, apesar de discursar sobre assuntos óbvios a respeito das atividades
que a Casa já executava, apresentou as ações da ONG que fundou junto com Manuel,
possibilitando avaliarmos futuras ações.
A idéia era atuar com a CJC na forma de parceria. As atividades a serem
desenvolvidas seriam: dança de salão, quadrinhoteca e um centro de informática. As
atividades seriam implementadas no modelo que foi na sua ONG, ao passo em que Dona
Hermelinda e a Casa só forneceriam o local e organizariam as pessoas. Falou um pouco
mais sobre estreitar o diálogo com os grupos de capoeira, recebendo o apoio geral,
apesar do professor da CJC, Valmir, não ter participado da reunião. Concluiu sua fala e
em consenso aprovamos a parceria.
Nesse momento, logo após a fala de Demétrio, que deixou a palavra em aberto,
esperando que alguém comentasse sua proposta, houve um breve silêncio. Acredito que
este tenha sido o ponto alto da reunião. Dona Hermelinda esperava que alguém
assumisse a palavra e louvasse a iniciativa de Demétrio e João Carlos, mas ninguém se
pronunciou. Dona Hermelinda, assim, resolveu falar que já havia conversado com ele
antes e que aprovava a sua idéia, que era um bom trabalho e a Casa precisava disso. Tal
resposta agradou aos visitantes, no entanto, ficou um certo mal estar no ar, afinal a
legitimidade interna que o ritual daquela reunião deveria reafirmar não foi eficiente,
possivelmente, pela atitude precipitada de Dona Hermelinda, já que alguns trabalhadores
já demonstravam simpatia pelos dois visitantes.
Após a reunião, Dona Hermelinda me chamou para conversar, discutindo as
impressões e os julgamentos políticos que tinha sobre João Carlos e Demétrio. De
imediato, reafirmou que o interlocutor real era Demétrio, apesar de João Carlos ser o
político, quem pensava era Demétrio. Falou que apoiava inteiramente a parceria deles,

98
achava que os dois tinham acesso a recursos, mas não tinha mobilidade política local,
algo que ela tinha de sobra. Afinal, os dois chegaram do nada ao P-Norte, sem conhecer
ninguém. Apesar dos recursos recebidos, eles não conseguiram promover um trabalho
eficiente que só não foi um total desastre pelo apoio que João Carlos recebeu do
professor de Capoeira.
A parceria firmada entre eles seria complementar, já que Dona Hermelinda não
possuía recursos mas conseguia mobilizar fortemente a comunidade local. Contudo,
ainda tinha um pé atrás. A pergunta que sempre surgia quando um político aparecia na
comunidade inquietava os trabalhadores da Casa e Dona Hermelinda percebeu isso.
Afinal, qual era a intenção deles ao vir trabalhar com a comunidade? Ela acreditava que
a intenção dos dois era, simplesmente, lançar as bases do futuro apoio à candidatura de
João Carlos a deputado. Achava que João Carlos iria se candidatar na próxima eleição e
gostaria de se apresentar como candidato da comunidade. Ou seja, a mesma intenção que
a maioria dos políticos tinha em relação à comunidade. Apesar de não ter certeza, as
atitudes de João Carlos levavam-na considerar fortemente essa possibilidade.
Contudo, só avaliaria melhor as intenções dos dois com o tempo, como sempre
fazia. As minhas impressões eram muito vagas, sabia que Dona Hermelinda já havia
confiado a João Carlos e Demétrio valiosas informações, o que demonstrava certa
confiança por sua parte, mas não tinha uma capacidade de julgamento de personalidade
a partir do prisma local tal como Dona Hermelinda possuía. No entanto, ela buscava um
conselho meu. Antes que eu falasse ela retornou a referência a Joaquim: será que eles, se
vinculando diretamente à Casa, não queriam tomar a sua direção? Ela mesma respondeu
que isso iria depender dos termos que foram assinados na parceria e que ela deixaria isso
para João, já que ele possuía mais conhecimento técnico e administrativo.
O desdobramento dessa história não foi um dos melhores. Depois de um tempo,
as verdadeiras intenções de Demétrio foram reveladas; ele gostaria de transformar a
Casa em um centro captador de jovens para o PPS. Um devaneio, muito fora do escopo
de contrapartida que Dona Hermelinda gostaria de oferecer. Eles elaboraram um termo
para firmar a parceria, contudo, baseado no termo deles, João criou outro, restringindo a

99
parceria apenas à utilização do espaço. O resultado disso foi que não assinaram o termo
de parceria, se distanciando e perdendo prestígio de forma contínua para a comunidade e
principalmente para Casa.

João Carlos discursando em evento

100
Cadê a grana?

A expectativa era grande, não sabia a proporção de pessoas que iriam participar
da reunião, ou mesmo a finalidade dela. Conversando com Dona Hermelinda e Luana,
elas me disseram que haveria uma reunião onde vários políticos iriam aparecer e
queriam que eu estivesse lá. Acreditava que seria mais uma reunião para pressionar os
políticos na busca de conquistar uma emenda parlamentar para a casa, ou seja, mais uma
tentativa de estabelecer parcerias e fazer com que a casa encontrasse projeção. Os pontos
mais emergenciais se apresentavam pelo problema da água, pois fazia tempo que a casa
já não a possuía.
Luana estava organizando tudo. Com a sua postura pró-ativa, comandava os
diversos trabalhadores da Casa, mas de forma prática, quase fria, criava certo receio por
parte das pessoas que a auxiliavam. A preocupação dela era notória, estava mais
apreensiva que o normal, nos tratava bem, mas era extremamente perceptível o seu
nervosismo. Cheguei por volta das 08h40min e me dirigi para a casa de Dona
Hermelinda. Lá encontrei Juvenaldo e Marcelo e fomos batendo papo a caminho da
Casa.
No caminho Juvenaldo e Marcelo se desafiavam, discutindo sobre um possível
jogo de futebol. Marcelo falava que os sobrinhos dele, hoje em dia, não jogam a metade
do que os “velhos” jogam. Falou que ia chamar o time dele para jogar contra o do
Juvenaldo. Juvenaldo aceitou o desafio dizendo que só era só marcar a hora. Marcelo
relutou, disse que teria quer ver com os jogadores, já que todos trabalham e teria que ter
tempo para organizar uma partida. Juvenaldo já assumiu uma postura de chacota, era
sem dúvida uma disputa de masculinidade, onde o futebol era um pretexto para diminuir
a identidade masculina do outro aumentando a sua. Situação semelhante era bastante
comum nas discussões sobre o tráfico, onde, relatando acontecimentos do passado, como
tiroteios, ou brigas, os traficantes adotavam a mesma postura: “ O Zé, é um vacilão... O

101
cara chamou ele de corno, falou que no J só tinha bosta... Quando a gente foi lá resolver
a parada com o cara o Zé amarelou...Ai eu tive que dar um jeito, sabe como é...”
Nesse caso, como ouvinte da disputa, eu era quase um árbitro na medida em que
as minhas observações atestariam o reconhecimento identitário de um, implicando a
desvalorização do outro nessa disputa. Marcelo assumiu um tom de brincadeira, como se
estivesse zombando da ríspida tentativa de Juvenaldo de conservar sua identidade
masculina. Esta postura representava uma virtual indiferença ao seu oponente
discursivo, não levando em conta os seus argumentos, tratando-o como moleque. Por
outro lado, Juvenaldo assumiu uma postura mais séria, aumentando o tom da discussão e
começou a falar sobre força, respeito e atitude. O desafio estava posto e a hesitação por
parte de Marcelo era a munição que Juvenaldo usava para desmerecer o seu oponente. O
debate continuou quase de forma exaltada, mas cessou de imediato quando chegamos
perto da Casa. 23
A mobilização dos familiares de Dona Hermelinda para o evento salientava a
forte influência que exercia sobre a sua família. Sabia que Dona Hermelinda havia se
mudado para o lote em que vive, se tornando senhora da casa que, antigamente, era
chefiada por sua mãe. Mora com os filhos e irmãos e busca manter a todos nos eixos.
Várias vezes a vi brigando e discutindo sobre o comportamentos dos filhos. Nos cargos
de direção da Casa, e em vários outros assuntos, os irmãos dela sempre estão presentes,
participando e opinando. É difícil avaliar até que medida a presença dos irmãos dela na
Casa representa interesses particulares ou solidariedade para com ela e para com a
comunidade, e o mesmo vale para ela em relação aos irmãos.
Seguindo para a CJC logo na porta encontrei com Dona Hermelinda e João.
Nesse ínterim, Luana se aproximou de nós e, prontamente, perguntou a Dona
Hermelinda se ela tinha recepcionado o Secretário Raimundo Ribeiro. Ela falou que sim,
que ele estava visitando a associação de idosos. Dona Hermelinda seguiu a caminho de

23
Essa situação se torna interessante por refletir alguns aspectos da sociabilidade que compõe o universo
das relações sociais como um todo. Independente do interlocutor, o que importa é sustentar a identidade
masculina.

102
Raimundo Ribeiro e de seus assessores. Fui conversar com João longe dos famosos
visitantes. A primeira afirmação de João foi positiva: “É, parece que hoje sai alguma
coisa. Quando tanto político tá reunido assim em algum lugar é que interesse tem, isso é
claro.” E apontou pra mim, perguntando se conhecia o homem que atravessava a porta
de entrada da CJC. Percebi de imediato que se tratava do Deputado Federal Rodrigo
Rollemberg, seguido por um verdadeiro séqüito de assessores.
Conversei brevemente com João sobre a conjuntura interna da casa e sobre esse
interesse político. A analogia que explicava a situação era simples, segundo João “tem
que amaciar a carne antes de assar”. Ou seja, essa atenção voltada para a Casa, esse
prestígio que ela parece alcançar na sociedade mais ampla, sendo alvo até de noticiários
locais, são indícios dos interesses dos deputados em conquistar votos.
João parecia um pouco mais crente, diferentemente da primeira vez que
conversei com ele, onde demonstrava certa objetividade, mas via poucas alternativas
assistências para a Casa. João é um dos nomes fortes da Casa, talvez a pessoa que tenha
mais influência nas decisões de Dona Hermelinda. João é primo de Dona Hermelinda,
um primo afastado que se aproximou da Casa, segundo ele, por desconfiar de Joaquim.
João via que Joaquim não era verdadeiro, um mentiroso, e tinha medo que ele desse um
golpe administrativo em Dona Hermelinda, podendo até levá-la para a cadeia.
Quando Joaquim saiu da Casa a situação se modificou. João, rapidamente
cumpriu a função de Joaquim, como gerente técnico. João é contador, o que facilitou
assumir essa posição administrativa. Vendo a projeção política que a Casa poderia dar,
passou a se interessar pelas atividades desenvolvidas, mas sempre orientando Dona
Hermelinda a partir de uma lógica empresarial. Conquistou a confiança de Dona
Hermelinda, apesar de várias pessoas ainda terem certo receio da presença dele, está se
tornando conhecido na comunidade, mesmo não morando na localidade.
Nesse momento, Luana nos chamava para entrar. Dentro da Casa, na sua parte
principal, o salão encontrava-se dividido. Em um extremo do salão estava uma mesa
com várias cadeiras, aparelho de som e microfone e do lado um banner. Já havia
percebido que a presença daquele grande contingente de pessoas era atípica. Podia ver

103
vários rostos conhecidos da comunidade, mas a maioria das pessoas não era de lá, ou
pelo menos eu não conhecia. O banner dizia que aquele encontro era a prévia regional
do encontro nacional da juventude.
Isso explicava o porquê da mobilização quase frenética de Luana e a razão de ter
tomado a iniciativa para organizar o evento. Afinal, o que estava em jogo era a sua
própria carreira como funcionária comissionada da Secretária de Juventude, o seu chefe
com certeza estaria presente. Depois de formada a primeira mesa que contava com a
presença de vários deputados, deu-se início às falas. Como era esperado, Dona
Hermelinda abriu a reunião agradecendo a presença de todos, tanto os políticos quanto
os moradores, afirmando que a Casa ficava satisfeita em abrigar evento de tal porte.
Falou um pouco sobre as atividades da Casa e de como contribuem para dar sonhos e
retirar as crianças da rua. Em seguida, antes de passar a palavra para o próximo político,
pediu a concentração de todos e iniciou uma prece. Depois de finalizada a prece, passou
a palavra para os deputados.
De todas as falas do evento, que geralmente não duravam mais do que 20
minutos, as falas do secretário Raimundo Ribeiro e Fiúza foram a que mais se
destacaram. Fiúza é assessor do deputado do PPS Augusto Carvalho. Na renovada
política promovida pela Casa após Chico Leite, ele se aproximou auxiliando com coisas
pequenas, mas acabou, com o tempo, por receber forte apoio de Dona Hermelinda, que o
classifica como um político inteligente. Dos políticos que freqüentam a Casa, sem
dúvida, Fiúza possui um prestígio diferenciado.
Nesse evento, porém, antes tomar palavra, Fiúza primeiro teve que ouvir a fala
de Secretário de Justiça. Aproveitando o ensejo da prece de Dona Hermelinda,
Raimundo Ribeiro falou sobre acertos e erros dos jovens, aludindo a Jesus Cristo e a
seus exemplos, e concluiu que todas as pessoas estão em um amplo processo de
melhoria. Até aí, nada de contraditório, perfeitamente coerente com a lógica local.
Todavia Fiúza intervém, dando início à segunda fala da mesa. Segundo ele, apesar de
estarmos sempre melhorando, o que ocorre é que nem todos querem melhorar, que

104
alguns não possuem possibilidade nenhuma de mudança e que é um erro investir
dinheiro e esforço para tentar modificar positivamente a vida dessas pessoas.
A analogia que fez foi com a construção de uma casa. Por mais que a casa fique
bonita, bem acabada, se não tiver uma base, um fundamento forte, ela cai com o
primeiro vento. O que a CJC deve continuar fazendo é investir nos jovens nesse
processo de formação que, dessa forma, se tornarão adultos conscientes e dignos. Foi
uma fala que provocou vários comentários. Dona Hermelinda já havia comentado sobre
essa postura de Fiúza. Sabia que ele não acreditava na mudança das pessoas, não via
nenhuma possibilidade de reforma moral. Por mais que a Casa acreditasse na
importância da formação do indivíduo e por isso se dava maior atenção em oferecer
alternativas de sociabilidade, tirando o jovem do tráfico... Para Fiúza, qualquer tipo de
reforma moral era uma mentira. Contudo, era nessa “mentira” que a comunidade se
apegava.
Todo traficante faz parte de uma família, apesar de algumas vezes ignorá-la para
alcançar a prosperidade por meio do tráfico, mas quando este é preso e depois sai da
prisão, as prioridades e escolhas que ele pode fazer em relação ao futuro podem mudar.
A comunidade acredita nessa mudança. Não que ela acredite na instituição carcerária
como uma instituição que consegue punir os bandidos por seus crimes e ainda promover
a modificação da carreira moral de quem fica aos seus cuidados, de forma que quando
estes saiam estejam prontos para viver plenamente na sociedade, como verdadeiros
cidadãos. Pensam exatamente o oposto disso, sabem que é na prisão que se apreende a
ser bandido, o que significa quase um ritual de passagem, no qual o bandido assume um
nível mais elevado em termos de reputação quando pega cadeia.
Todavia, os familiares sabem que apesar de tudo, a cadeia pode mudar o
bandido, afinal, essa é a única esperança que possuem, a única forma que visualizam ter
de volta ao universo familiar aquele parente que se desviou. Foi bem interessante ouvir a
fala de Fiúza, pois sabia que por parte dos poucos que ouvem e avaliam os discursos de
forma mais detalhada por terem interesses diretos, ou seja, os políticos profissionais
(João e Dona Hermelinda na CJC, e os deputados e assessores que estavam presente),

105
aqueles que fazem parte da Casa não iriam aprovar, afinal era contraditório com vários
princípios locais. E foi exatamente isto que aconteceu; quando ele se pronunciou, Dona
Hermelinda me deu um cutucão e depois falou: “Fiúza tem boas intenções, mas ele não
acredita nas pessoas, parece que ele teve alguma experiência ruim com alguém”.
As falas ocorreram sem grandes novidades. Todos os políticos versando sobre
juventude e se referindo às ações que executavam em prol desse segmento. Depois das
falas da primeira banca de políticos, teve a ritual pausa para apresentações 24. Lá fora, no
estacionamento da Casa, o grupo de karatê fazia exibições utilizando armas brancas e o
grupo de capoeira gingava em uma roda. A banca foi desfeita, repentinamente, e
grupinhos agrupamentos de políticos se formaram, enquanto Dona Hermelinda tentava
compartilhar da atenção de todos. Fui chamado por ela, junto com João, pra conversar
com o Secretário de Educação do governo sobre um programa de capacitação
profissional da Casa.

24
Participei de várias outras reuniões na Casa, em todas elas o grupo de karatê se apresentou.

106
Grupo de capoeira no intervalo do evento

Logo, os grupos pararam, era hora do lanche. Lá dentro, no salão, quem ia comer
assistia a apresentação de um grupo de forró. Após o lanche, metade das pessoas já havia
indo embora, inclusive toda a primeira banca de políticos. Luana chamou todos que
ainda estavam lá para ouvirem a nova banca de políticos que ela convocava no
microfone. Entre eles, o deputado Geraldo Magela e o deputado Ulisses. Mais uma vez,
cada deputado falando sobre o trabalho que desenvolvem na câmera, mas nenhum
arriscando palpites ou falas diretas relacionadas com a realidade local.
Acabaram-se as falas, a banca foi desfeita e os políticos formaram novos
grupinhos no estacionamento, antes de se despedirem. Nesse momento, Dona
Hermelinda nos chamou para conversarmos com o deputado Magela. A idéia era
pressioná-lo para que firmasse alguma espécie de compromisso com a comunidade,

107
principalmente, relacionada com a conta de água que estava atrasada. O problema da
conta é bem antigo. Quando a Casa era apoiada por Chico Leite, ele sempre “dava um
jeito” e assim ninguém se preocupava. No entanto, quando acabou o seu apoio oficial à
Casa, a situação se tornou complexa e as contas de água e luz passaram a ser objetos de
barganha política por parte dos deputados.
Após a recusa do apoio a Zezinho, as ameaças que ele havia feito foram
concretizadas. Na semana seguinte em que a Casa repudiou as suas ofertas, chegou à
conta. A CJC devia 60 mil à CAESB. Dona Hermelinda, já conhecendo o tramite
político, sabia que o valor da conta variaria de acordo com as alianças estabelecidas. Na
época desse evento, Dona Hermelinda não sabia que rumo iria tomar, buscando apoio
em todos os políticos que tivesse alguma influência local. Resolveu, enfim, procurar o
apoio na aliança que já estava formalizada, o acordo de cooperação com a Secretária de
Justiça do DF. Essa aliança rendeu resultados e a conta diminui para apenas mil reais.
A conversa com o deputado Geraldo Magela seguiu da seguinte forma:
“Deputado, o senhor sabe que aqui as coisas são difíceis, a gente queria o apoio do
senhor pra melhorar a comunidade”, falou Dona Hermelinda. O deputado respondeu: “
- A Casa tem todo o meu apoio, foi pra isso que eu vim hoje. Eu quero participar da
Casa, ajudar a comunidade....” E voltou a falar sobre o seu trabalho na câmera, até que
comentou novamente dizendo que era presidente da Comissão de Juventude na Câmera
dos Deputados, nesse momento eu intervim: “Bom, se o senhor é presidente da
comissão, acho que é mais fácil de ser aprovado as emendas relacionadas com a temática
que o senhor propor. Porque o senhor não direciona, uma emenda relacionada com a
juventude para a Casa?”.
Ao formular essa pergunta pensei em sair do âmbito retórico oferecendo
alternativas concretas, de forma que o deputado não poderia utilizar a retórica do
“vamos ver o que eu posso fazer”. O que ele poderia fazer seria algo simples, ou seja,
coloquei a alternativa mais viável na mesa. Nesse sentido burlei algumas regras da
política do bom relacionamento, pressionei o deputado, ainda que sutilmente, o que fez
com que ele se sentisse acuado, já que não esperava que uma pergunta direta que

108
planejasse uma ação executável lhe fosse feita. Respondeu: “É...(uma breve pausa). Eu
acho melhor ao invés de usar a comissão, eu utilizar o dinheiro que tenho destinado a
emendas...Vamos ver o que eu posso fazer.... Mas vamos tirar uma foto...” Reuniu a
equipe de karatê e pediu para que eu batesse mais uma foto.

****

Os três eventos aqui descritos foram selecionados a partir da correlação temática


e de sua repercussão temporal. Todos, em menor ou maior grau se relacionam e
demonstram aspectos do funcionamento da esfera política da comunidade. Nos três
eventos, cada um sendo realizado em cenário diferente e em tempos diferentes, a pauta
principal é o jogo de alianças acompanhado pelas intenções dos políticos. No primeiro
evento, Zezinho finalmente revelou qual era sua verdadeira intenção para com a Casa.
Acreditou que uma proposta milionária poderia seduzir Dona Hermelinda, habilitando-a
pelo seu apoio e assim, utilizando o suporte financeiro que a Casa poderia oferecer à sua

109
campanha. Para chegar neste ponto, entretanto, Zezinho participou de inúmeros eventos
na Casa, foi classificado e estudado pela comunidade, o que lhe deu uma falsa confiança.
Zezinho enxergou apenas as possibilidades de projeção política que a Casa
oferecia e acreditando, principalmente, na relação amistosa que mantinha com Dona
Hermelinda, não visualizava possibilidade nenhuma de ser recusado. A proposta que ele
fez nesse evento, era apenas uma forma de preparar o terreno para a reunião que
aconteceria depois. Nessa reunião, entretanto, ele quase não falou; apenas o seu assessor
e de forma bastante técnica, disse como iria funcionar esse investimento e como este
seria usado. “Achava que com palavras difíceis iria convencer a Casa” disse Ana. Dona
Hermelinda argumenta que a motivação de tal proposta foi a classificação que ele tinha
em relação a sua pessoa. Mulher, negra, mãe, sem nível superior e com uma fala doce,
ele logo acreditou que poderia enganá-la.
Algo semelhante ocorreu com João Carlos. Acreditando na sua capacidade de
convencimento e fazendo promessas que encontravam respaldo nos problemas locais
enfrentados, ele se diferenciava dos demais políticos por ter um discurso mais preciso, e
por isso, com mais força. Contudo, como quase todos os políticos que vão à
comunidade, João Carlos ainda estava preparando o terreno para expor as suas
verdadeiras intenções. Ou seja, estava querendo conquistar a confiança da Casa, para
enfim colocar na mesa os seus projetos.
No caso de João Carlos, tal como Zezinho, a proposta era muito fora da realidade
local. O maior erro de Zezinho foi acreditar que a carência material que a comunidade
enfrenta iria levá-la a agir na irregularidade, mal sabendo que a Casa, como um todo, era
uma instituição que apesar de não entrar em conflito direto com o tráfico, se opunha a
ele avidamente, sendo que uma das principais missões da Casa era resgatar o jovem da
bandidagem. Caso Dona Hermelinda aceitasse o que ele propunha, se tornaria bandida
também, contradizendo a identidade social que busca sustentar, além de ser
deslegitimada localmente.
Já no caso de João Carlos, o seu receio em não assinar a parceria, tal como
haviam combinado, e o seu excesso de confiança ao imaginar que a Casa já estava

110
fechada politicamente com ele, o levou a se precipitar no momento certo de fazer a sua
proposta, não alcançando respaldo nenhum na Casa. Fora o fato óbvio que fazer da Casa
uma extensão do seu partido, filiando todos que participavam, era uma proposta muito
fantasiosa, muito longe das características que a Casa possui hoje. Em nenhum dos
casos, porém, as portas foram totalmente fechadas. Os dois políticos ainda possuem
interesses na Casa, estando sempre presentes por intermédio de seus assessores.
Já o último evento é simbolicamente representativo, pois apresenta diversos
políticos em várias etapas de negociação interagindo no espaço da Casa. Evidentemente,
aquele era o espaço que a Casa tinha para expor o seu principal produto, aquilo que faz
com que ela exista para os políticos, ou seja, a capacidade de reunir eleitores. Com o
sucesso, afinal, centenas de pessoas estavam reunidas naquela ocasião, houve interesse
por parte de todos os políticos em procurar a Casa.
Os que já haviam fechado acordos parciais com a Casa tiveram a oportunidade
de exibir seu potencial eleitoral para os seus adversários, buscando demonstrar que na
disputa por curral eleitoral eles largaram na frente. Contudo, as demandas públicas de
Dona Hermelinda significavam que não tinha jurado fidelidade partidária a ninguém,
dando espaço para que os diversos políticos prometessem resolver os problemas da
comunidade por meio da Casa. Todavia, a natureza retórica das promessas feitas por
esses políticos gerava simpatia das pessoas que a ouviam e, no entanto, sumiam como
fumaça, não implicando nenhuma mudança substancial na realidade local.
Um outro ponto em comum, partilhado por todos os três eventos foi, mais uma
vez, a possibilidade de classificação da personalidade dos políticos, o que implicava em
uma maior ou menor adesão às suas propostas. Nesse sentido, carisma era um
referencial, mas não era totalmente essencial. De qualquer forma, algo que se destacava
era a relação entre a esfera pessoal e sua reputação pública. Zezinho, apesar do longo
período que passou “amaciando a carne” - por volta de quatro meses - comprometeu
qualquer possibilidade de aliança com a casa antes mesmo de fazer a proposta milionária
para Dona Hermelinda. Sendo assim, seu principal erro foi relacionar a esfera privada
com a pública, deixando Dona Hermelinda saber dos reais objetivos de sua “amizade”.

111
Sem dúvida, a proposta milionária só veio confirmar a classificação anterior de Dona
Hermelinda, tornando muito difícil qualquer vínculo dele com a Casa.
O papel de Joaquim se torna mais paradoxal. Ele está sempre presente como o
terceiro (Peirce 1977) que dota de sentido a classificação dos políticos promovida por
Dona Hermelinda e pela Casa. O medo, que se apresenta como cautela em relação aos
políticos, funda-se na possibilidade de traição. Mais uma vez, saliento que a traição no
universo político é substancialmente diferente da traição no mundo do tráfico, onde o
que está em jogo é a morte ou o cárcere. A traição na política local remete à
desconsideração identitária que pode ocasionar perda de prestígio político,
deslegitimando o político e se configurando como uma forte ofensa moral.
As condições que envolvem esse tipo de ofensa remetem a informações
imprecisas que mascaram as verdadeiras intenções dos sujeitos, suscitando armadilhas.
O caso de Joaquim se torna mais emblemático porque a traição ocorreu como uma
contradição ao princípio de classificação local. A estadia de Joaquim na Casa não foi
algo momentâneo, durou meses, e de forma bem intensa. Afinal, Joaquim estava
presente em todas as situações, não só naquelas relacionadas diretamente à Casa, mas
também nos momentos que se referiam a vida pessoal de Dona Hermelinda. Foi
classificado e re-classificado várias vezes, mas sempre de maneira positiva, o que
permitia que ocupasse um papel de grande confiança na Casa, tendo livre acesso a bens
e documento, o que facilitou a sua traição.
A ofensa moral assume um tom mais intenso. No caso de Dona Hermelinda, o
acesso de Joaquim a informações de sua vida pessoal, possibilitou não somente a sua
publicização bem como a atitude de denegrir a imagem da líder comunitária dentro do
próprio espaço da Casa. Ainda hoje, quando ela busca a minha opinião para classificar
algum político, sempre diz; “Léo, é sempre bom a gente tomar cuidado, porque a traição
vem da nossa própria Casa...Se o pessoal de dentro que conhece a gente trai, imagine os
de fora.”

112
O re-encontro

Todos os eventos narrados estenderam-se por mais de um ano, desde o primeiro


evento que ocorreu em Fevereiro de 2007. Abaixo relato os desdobramento mais atuais
da problemática relação entre Dona Hermelinda e Joaquim. Tal relato não se dará como
um evento, mas sim procurando evidenciar, por via narrativa, a não distinção entre o
comportamento público e privado nas relações que se desdobram naquela localidade.
No dia das mães, Dona Hermelinda estava em sua casa, quando sua amiga Isis a
chamou para tomar um sorvete. Dona Hermelinda a acompanhou, porém, no meio do
caminho Isis disse que tinha que entregar uns documentos para Joaquim e perguntou se
tinha problema se elas fossem à casa dele. Frisou que agora ele estava namorando e
morando com duas mulheres, possivelmente uma mãe e uma filha, e perguntou para
Dona Hermelinda se estava tudo bem.
Dona Hermelinda, apesar do receio, disse que não tinha problema, afinal, ela
superou todas as pendências que tinha com Joaquim. Foram à casa dele e Joaquim estava
sozinho e morando no mesmo local de antes, apesar de ter dito a todos que iria se mudar.
O diálogo com Joaquim ocorreu de forma branda, com as perguntas padrão. Porém, em
determinado momento surgiu a pergunta chave finalmente pronunciada por Joaquim
“Como tá a Casa?”. Um pergunta perigosa, ambígua, que demonstrava certa
familiaridade e boas intenções, como quando perguntamos sobre a família de alguém ou
parentes, mas também representava a tentativa de obter informações para embasar novas
ações contra a Casa.
Dona Hermelinda respondeu que estava tudo ótimo, que a Casa estava
andando bem e que as coisas estavam nos seus devidos lugares. Perguntou se ela tinha
fechado com Chico Leite, e sua resposa foi que não, que ele não a havia nomeado e que
gostaria ela trabalhasse em troca de uma pequena ajuda de custo. Joaquim afirmou que
ela precisava do trabalho. Ela disse que sim, no entanto, o esforço seria muito para
pouca recompensa, o que fez com que ela reforçasse a perspectiva da Casa ser apenas

113
técnica e apartidária. A articulação política que é fundamental para a sobrevivência da
Casa seria realizada por outro grupo, um grupo formado por João e seus irmãos.
Este grupo político visa consolidar uma espécie de associação que reúna sobre
uma mesma organização todas as lideranças da Ceilândia, sendo um centro captador e
distribuidor de benesses políticas por toda cidade. A fundamentação de tal grupo se dá
pela possibilidade de agregar força às demandas políticas, sendo que o substrato
simbólico que move a formação de tal grupo é a influência política da família de Dona
Hermelinda e a sua própria figura política. Eles acreditam que, pelo menos na Ceilândia
Norte, será fácil formá-lo. Em termos de projetos políticos individuais, a constituição do
grupo reflete os anseios de João em se tornar o administrador da cidade, sendo também,
esta, talvez, a maior intenção de João em desenvolver os trabalhos na Casa.
Joaquim elogiou a inteligência de João, o que Dona Hermelinda tomou como
uma ironia, afinal, um dos argumentos de Joaquim sempre foi que Dona Hermelinda era
manipulada, não tinha opinião própria, algo que remetia indiretamente à ferida mais
profunda de Dona Hermelinda, que é o fato dela não ter nível superior, logo não ter, a
priori, preparação suficiente para dirigir a Casa, tal como afirmava Miriam. Dona
Hermelinda reagiu de forma energética, dizendo que essa idéia tinha surgido dela, algo
que ela tinha inclusive comentado com ele ano passado. Mudou o tom, voltando ao
passado e colocando que a prosperidade da Casa se deve à atuação de todos os
trabalhadores, nomeou várias pessoas, ressaltando o papel fundamental que as
dissidências políticas (pessoas que enfrentaram a liderança de Dona Hermelinda na
tentativa de tirá-la do poder, dar “golpes” buscando realizar os seus interesses pessoais)
tiveram ao contribuir para a prosperidade da Casa.
Como todos os conflitos políticos são conflitos retóricos, onde a verdadeira
intenção é sempre mascarada pela polidez de tratamento, essas dissidências não
acontecem pelo fato de os atores enfrentarem diretamente o comando da Casa, mas
indiretamente, algo que permite uma certa abertura na medida que a ofensa recebida seja
algo que uma explicação possa atribuir uma percepção errada das pessoas, mascarando
as intenções de quem comete a ofensa.

114
Dona Hermelinda sabia que a situação de Joaquim era exatamente esta, por mais
que ele tenha inventado coisas, mentindo e agindo nas costas de Dona Hermelinda, tudo
isso não carecia de evidências concretas. Então, Dona Hermelinda falou que, inclusive
ele era muito bem vindo na Casa, que ajudou muito, só que agora, caso ele voltasse, a
situação seria diferente. O professor Joaquim voltara como um prestador serviço,
subordinado à Casa. Ou seja, não teria peso político algum, afinal, essa era a nova
perspectiva técnica que se tornou a diretriz da Casa. Um contra golpe irônico por parte
de Dona Hermelinda, afinal, Joaquim não queria ser subordinado, seu interesse sempre
foi ter projeção política.
Nesse momento, Joaquim retomou a rédea do discurso. Disse que sua vida tinha
mudado, ele havia voltado a ser professor da fundação e agora iria trabalhar para
Edilson, secretário do governo responsável por um programa de capacitação técnica.
Segundo Joaquim, Edilson pretende fazer campanha para deputado, sendo que havia
prometido um cargo de assessor parlamentar caso ele conseguisse se eleger. Mentira!,
afirmou para mim Dona Hermelinda. Contudo, para Joaquim, ela o parabenizou. Ele a
convidou para participar da festa junina que iria fazer em sua Casa. Se despediram e
seguiram os seus caminhos.
Dona Hermelinda estava sensibilizada por tal encontro. Sabia que aquilo não era
obra do acaso, sendo mais um ardiloso plano de Joaquim. Teve certeza disso quando
uma pessoa passou na rua e complementou Isis. Esse comprimento demonstrava que ela
ia com freqüência na região, algo que permitia o seu reconhecimento por parte dos
vizinhos e negava o que ela havia dito. Era uma tentativa de armar para ela. Perguntei,
mas o que Joaquim queria com isso? Simples, voltar a trabalhar na Casa e mobilizar as
pessoas para ele a partir de Dona Hermelinda, pois ele, diferente dela, não conseguia
reunir ninguém, não era da comunidade e não tinha a capacidade de liderança que ela
tinha.

115
Considerações finais

De acordo com o sistema de ganhos e perdas e suas justificativas morais em


contraposição a uma lógica relacionada aos meios e outra aos fins, destacam-se, nesse
sentido, os casos ilustrativos em que a esfera pública se relaciona com a privada
demonstrando os conflitos e a impossibilidade de diferenciação e divisão entre os dois
planos na interação social. Política é política da família, política da comunidade, política
do político, ou seja, política é algo significado localmente, mas cujo conteúdo é bem
mais amplo, envolvendo vários tipos de relacionamentos e personalidades sociais.
De uma forma quase precisa, a política dos políticos segue a máxima weberiana
da “política do poder” (Weber 1974:140). De todos os políticos que freqüentam a Casa,
dificilmente algum não ambiciona o “culto ao poder”, o que permite categorizações
sobre as suas condutas, mais ou menos precisas, dando certa previsibilidade à substância
dos relacionamentos entre a comunidade e esses políticos. Trata-se do político de
resultados que, pela ausência de princípios ideológicos, não logra atingir outro objetivo
que não a própria perpetuação no poder ou a conquista dele a qualquer preço, como
ilustram os eventos analisados ao longo do capítulo.
É interessante notar que tal categorização por parte da comunidade e também por
parte dos políticos que visitam a Casa é uma categorização que tem o seu início na
interação social, mas que se baseia essencialmente nos atos de fala.

Our talk can cause others to reach, with us, an intersubjective


identification of things. And not just identification, but identifications
as categorized according to our particular descriptive language at a
particular moment in discourse. (Silverstein, 2003:8)

Tais atos de fala sobrevivem temporariamente pela avaliação de conteúdo e de


performances utilizadas pelos políticos profissionais. Condutas são avaliadas e re-

116
avaliadas, sendo fluidamente significadas pelos sujeitos. Tal situação é ilustrada pelas
várias vezes em que Dona Hermelinda perguntava diretamente minha opinião sobre os
políticos, ou mesmo, quando eu, João e ela nos reuníamos, especificamente para
trocarmos avaliações sobre eventos e em conversas informais com os políticos que
visitavam a Casa. Silverstein esclarece que:

Whether in a single instance of communication or even a chain of


instances, then, people can use language to construct collectively,
reached and collectively consequential knowledge, opinion, belief
about all manner of things. (Silverstein, 2003:9)

Quando nos reuníamos, notava, porém, que a avaliação da mensagem era algo
extremamente importante, mas o que mais falávamos dizia respeito ao sorriso
enigmático que Joaquim usava ao falar sobre Chico Leite, o porquê de Geraldo Magela
ter gaguejado quando foi pressionado ou por qual razão sempre que João Carlos falava
Demétrio o interrompia... Aquilo que não era dito atribuía sentido ao que era dito. Algo
que lembrava bastante Malinowoski (1935), ao dizer que o “contexto da situação”
reflete-se nas diferentes formas de linguagem, que influenciam ou informam o
significado dos signos, o que sempre me lembrava a função emotiva e enfática da
atuação dos políticos (Jackobson 1988).

It turns out that in every discourse a large number of extra-verbal


contextual factors leave their determinate traces in the forms we
use- what are termed in the trade indexical (pointing) traces. These
traces inform us about, they point to, the who-what-where-when-
why of discourse bay subtle loadings of the “how”, the actual forms,
of the discourse. (Silverstein, 2003:9)

E acrescenta:

117
These indexical factors in language seem to crosscut the
information structure always emerging via grammar and denotation
coherence as speakers add to the words and expressions in a text.
(Silverstein, 2003:10)

É importante evidenciar que o autor explica que quando estamos em


comunicação certamente confiamos nos arranjos sociais que já estão dados
contextualmente, sendo que é por ele que criamos as expectativas de julgar as formas de
falar dos indivíduos socialmente localizados na interação. Contudo, mais do que apenas
utilizar essa indexicalização situacional que dá o tom do tipo de relação estabelecida, a
conversação também é capaz de criar novos arranjos sociais e classificações do ser, algo
demonstrando no consenso alcançado na comunicação que algumas vezes viola mesmo
as expectativas normativas.
Nota-se que o sustentáculo da comunicação local, tal como propõe Silverstein,
consistiria em localizar os sujeitos por elementos indexicais que se ligam ao contexto
social e ao local de fala, tal fator cria identidades sociais. Ou seja, na multiplicidade de
canais idexicais, o que se percebe é uma espécie de “poetry of indentities-in-motion”
que projetaria forma sobre os indivíduos criando uma espécie de imagem. Nesse sentido,
a imagem não é necessariamente visual, é um retrato abstrato de identidades formadas
por uma congruência acumulativa de sinais indexicais que os indivíduos podem
experimentar imaginativamente.
É nessa projeção da identidade social, na forma de imagem, que Dona
Hermelinda e os vários políticos que freqüentam a Casa tentam sustentar criando e
mantendo boatos. Pois, apesar dessa imagem ser comunicada individualmente na
interação por meio da mensagem, é construída através de um evento ou por toda uma
biografia. A conexão direta do estilo, isto é, aquilo que transmite a mensagem com o seu
conteúdo, é que dá substância à imagem. No entanto, a mensagem, apesar de se
praticamente indissociável do estilo, está sujeita a uma avaliação quanto à eficácia, que

118
pode validar ou não a expectativa do outro. É interessante que por ter esse caráter de
eficácia e se ligar a diferentes intensidades em termos de resultado, a mensagem acaba
por ser um forte elemento da imagem pública, enfatizando o caráter temporal dos tipos
de relações que por ela são estabelecidos.
Apesar do aspecto extra verbal da imagem ser um elemento fundamental para
avaliar condutas na comunidade, não se pode excluir que a eficácia da mensagem se liga
diretamente ao conteúdo, logo esse conteúdo tem que fazer sentido localmente. Dos
eventos analisados ao longo do capítulo a construção da mensagem que alcançou maior
eficácia foi a de Manuel, pois foi direcionada à comunidade, baseada essencialmente nos
problemas que ela enfrenta. A eficácia foi garantida pelo fato de a fala se dirigir ao
contexto dos interlocutores, tendo maior força do que se remetesse a valores universais,
tal como a maioria dos políticos costuma fazer. O “problema”, dessa forma, acaba sendo
uma categoria de fala decisiva, no qual a conduta e as mensagens que os políticos
constroem tendem a ser interpretadas publicamente pela referência a esse, quando assim
o contexto manda.
A articulação entre mensagem e estilo, ligada ao “problema” e à imagem, forma
aquilo que Siverstein chama de complexo. Ou seja, um processo conceitual que permite
classificar coisas ou ações juntas, no qual a relação dessas coisas se dá pela analogia,
algumas vezes pela similaridade, sendo que é a associação que desencadeia tal cadeia
analógica. É significante que essa cadeia é algo gradual e comum não apenas na área da
política, mas também na ciência, derivando apenas a complexidade dos argumentos
desenvolvidos e os tipos de desencadeamento retóricos que o acompanham. A base
comum é a criação de um argumento dedutivo analógico que liga uma cadeia a outra, no
entanto, tal encadeamento tem que ser ancorado por um princípio classificatório, sendo
que essa cadeia de complexos argumentativos-dedutivos é aquilo que constrói um
conceito.25

25
Algo que lembra a ciência do concreto em Levi-Strauss (2007).

119
A política é a esfera que liga essa cadeia de complexos ao “problema”. Sendo
assim, os problemas seriam o material semiótico bruto, a coisa na realidade. Para que a
mensagem surja, os problemas têm que ser colocados, desencadeados por um princípio
que permita que se construa a imagem. A combinação, para encontrar maior eficácia,
tem que ser reforçada por elementos ligados a essa força ilocucionária, sendo essencial
que a forma que se apresenta o problema seja coerente com a identidade, de maneira que
o político consiga potencializar os pontos nodais da mensagem, sendo de suma
importância a coerência da “ponte lógica”. É aquilo que liga a cadeia de complexos, de
forma que mantenha uma coerência. Nesse sentido, a mensagem é apropriada e linkada
ao Eu do indivíduo, se tornando quase indissolúvel da identidade que este busca
imprimir no bojo das relações sociais.

120
Conclusão – Da política ao tráfico via identidade e cidadania

We can know, in other words, the


rhetoric of symbols, but we cannot know,
except hypothetically, how symbols are
experienced. (Cranpazano 1981:xi)

Busquei ilustrar ao longo dessa dissertação como se caracteriza os dois eixos


etnográficos que assumiram maior destaque na vida social dos moradores da região
entnografada. Destaquei, no primeiro capítulo, que o tráfico é uma instituição social
dotada de sentido e de uma moralidade específica. Essa moralidade é constituída por um
sentimento de coerção de vida ou de morte que controla a agência dos indivíduos, ao
mesmo tempo possui elementos que os ligam por meio de uma reciprocidade positiva ou
negativa, classificando as pessoas e legitimando quais identidades sociais podem ser
consideradas ou desconsideradas.
A adoção da moralidade do tráfico por parte do indivíduo é fruto de uma escolha
entre as alternativas que o meio produz e seus projetos individuais. É uma escolha
institucional que acarreta um processo de re-socialização modificando-lhe a visão do
mundo tal como a sua identidade social. Em termos de substrato cultural isto significa
escolher fazer parte de um sistema ancorado na reputação cuja finalidade é a sua própria
reprodução, custe o que custar. É a escolha de fazer um “pacto com o diabo” e assim
viver uma vida de medo, mas que ao mesmo tempo, oferece ao seu participante
possibilidade ter tudo aquilo que a sua condição de nascimento o privou.
No segundo capítulo trato da esfera política na comunidade. Demonstro que esta
possui elementos de autonomia, mas que se liga a várias esferas de vida social da
comunidade. Evidencio que a oralidade do sistema, que singulariza essa esfera, implica

121
o desenvolvimento de uma política retórica na qual os atos de fala possuem tanta força
quanto as ações. Pela análise dos eventos, demonstro que a não diferenciação entre
esferas de relacionamento, como a pública e privada, implica um forte sistema de
classificação do indivíduo, nem tão intenso como o do tráfico, mas que “enquadra” o
político como “enquadra” o bandido.
De forma diferente do tráfico que “produz” o traficante, a Casa de Cidadania e
Justiça se torna a instituição que “cria” o político local. Este é treinado a lidar com o
Estado, o que implica a incorporação de forma totalizante dos valores que este prega, tal
como, justiça, solidariedade e igualdade. Dessa forma, a esfera política acaba sendo
formada por uma moralidade que se opõe à moralidade marginal do tráfico, ao mesmo
tempo em que se relaciona com ela, implicando a construção de identidades sociais
diferenciadas que se assemelham na possibilidade de desconsideração do outro que não
pertence à mesma moralidade e na consideração geral por aquele que pertence à
comunidade.
No tráfico essa desconsideração é condizente com o sistema de reputação,
justificando a violência para a conquista desse fim. Na política, a relação entre meio e
fins é mais complexa, envolvendo tramas políticos, cujo conteúdo é ornamentado pela
retórica e acaba por nublar as verdadeiras intenções dos indivíduos. Contudo, o tráfico e
a política são instituições locais, estão inseridos dentro de um mesmo espaço social, que
apesar de concorrentes, se interligam e produzem um sentimento de pertencimento e de
reciprocidade. A figura abaixo permite visualizarmos como as moralidades se
relacionam na comunidade e produzem identidades, independente da instituição a que o
indivíduo faça referência.

122
Traficante
Tráfico

Evangélico

Religião
Política Político

É interessante notar que um indivíduo inserido na comunidade apresenta um


processo de socialização semelhante, no entanto a escolha de qual comunidade moral
que irá pertencer acaba por diferenciá-lo em termos identitários. Nesse sentido, se torna
bastante útil a contribuição de Caille (in Nunes 2004) para pensarmos os processos de
socialização e sua relação com as identidades.
Segundo o autor, a formação do indivíduo social é composta por duas etapas: a
primária, que funciona pela dádiva e pelo simbolismo que compõe as nossas primeiras
interações com os outros, sendo formada por um forte poder emotivo, e a secundária, à
qual o indivíduo se insere institucionalmente desempenhando uma identidade social
regida pela lei da utilidade funcional e moral. Na sociabilidade primeira reina um
princípio de personalização que permite afirmar que as pessoas são em princípio mais
importantes (em direito e em fato) que as funções que elas exercem. Na sociabilidade
secundária, ao contrário, a exigência de eficiência funcional é hierarquicamente primeira

123
em relação à personalidade das pessoas que desempenham as funções. A sociabilidade
primária funciona pelo interconhecimento e pela dádiva. A secundária pela
impessoalidade e pela funcionalidade.
A sociabilidade primária, no contexto etnografado, seria aquela promovida pela
família, mas também pela rua, na qual os vínculos com a comunidade são firmados (a
parte amarela mais clara da figura). Ou seja, a rua seria o espaço em que os indivíduos
conhecem os seus amigos, entendem o que é moral no local e percebem que não são
essencialmente diferentes do seu vizinho na casa ao lado. Posteriormente, quando um
indivíduo escolhe fazer parte de uma esfera moral, seja o tráfico, a política ou a religião,
ele não deixa de pertencer à comunidade, ainda possuindo um sentimento de
consideração pelos seus vizinhos, algo que restringe a violência ou ofensas morais por
parte deles para com a comunidade e da comunidade para com ele.
Cabe ressaltar mais uma vez que existem relações entre essas moralidades, sendo
que alguns indivíduos circulam entre as várias esferas, quando as identidades assumidas
não são contraditórias. Esta intersecção de moralidades (ilustrada na figura pelos pontos
coloridos) é também um fator que, aliado ao reconhecimento local, fortalece a
consideração pelo outro na comunidade. Todavia, muito foi dito sobre a relação entre
moralidade e identidade, cabe agora analisar como se dá tal funcionamento.
Como foi ilustrado ao longo da dissertação, um dos pontos fundamentais do
tráfico e da política é a capacidade de tipificar o outro, aquilo chamado localmente de
“enquadrar”. Sem dúvida, o principal agente de categorização é o ego dos indivíduos
que se relaciona com os outros, essencialmente, por meio da linguagem. Segundo
Crapanzano (1992, 1989) o movimento do ego é contínuo. É pela conversação que ego
toma consciência de si e do outro na interação social. Contudo, existem “momentos de
parada” em que o ego do outro pode ser capturado e tipificado; estes momentos,
ilustrados durante essa dissertação quando os traficantes se reuniam para contar os seus
feitos distinguindo o “otário”, o “esperto”, “o traficante forte” e o “traficante fraco”, ou
quando Dona Hermelinda reunia os membros da casa para perguntar o que nós achamos
do político X, criam realidades, essencializam identidade e constituem mecanismos mais

124
ou menos precisos para lidar de forma objetiva com o outro. Nesse sentido, a tipificação
retira a linguagem e ignora o processo de formação das identidades. Em outras palavras
tipificar confirma a máscara ideológica da circularidade e o jogo do desejo e da língua
com a resistência - o real.
É importante acrescentar que R. Cardoso de Oliveira (2006) estabelece o elo
final, que encontra respaldo em toda a pesquisa etnográfica aqui realizada. Segundo o
autor, o self pode ser percebido como “agencia estratégica da articulação de identidades
sociais frente ao mundo moral” (2006:60), um arcabouço de identidades que seria
dotado de liberdade de escolha, de acordo com o contexto social em que se insere, o que
significaria a seleção e a adoção da melhor identidade social que se amolda à situação.
Contudo, esse self constitui uma parte do indivíduo que possui uma integridade,
não sendo uma identidade autônoma e independente, mas que “possui um sentido
reflexivo que o habilita a se distinguir com absoluta consciência a si próprio da outra
pessoa ou de qualquer outra coisa” (2006:67). Parafraseando Giddens (1991), o autor
sugere que esse eu seja um “Eu social” compreendido reflexivamente pela pessoa em
termos de sua biografia. O que remete a um Eu socializado, cuja integridade só pode ser
percebia pelo reconhecimento do outro, constitui uma pessoa e como foi demonstrado ao
longo dessa dissertação, um sujeito moral.
Para finalizar gostaria de acrescentar um ponto essencial que tangencia toda a
escrita ao longo dessa dissertação, mas que não foi articulado em nenhuma ocasião de
forma mais precisa. Trata-se da relação entre as moralidades e identidades sociais
formadas localmente, por meio do tráfico e da política com a noção de cidadania. Para
tanto me inspiro, essencialmente, pelo trabalho desenvolvido exaustivamente por L.
Cardoso de Oliveira (1996, 2002, 2004 e 2006).
Analisando a cidadania como noção essencial para compreender as democracias
modernas, L. Cardoso de Oliveira percebe que seu conteúdo está estritamente ligado à
noção de igualdade. Em suas pesquisas, o autor constata que em termos jurídicos, o
Brasil articula dois princípios paradoxais; o primeiro, baseado na constituição, que atesta
a igualdade de todos perante a lei como tratamento uniforme; o segundo, baseado no

125
tratamento diferenciado, ancorado essencialmente nas máximas propostas por Rui
Barbosa presente na famosa palestra proferida intitulada Oração dos Moços.
Diante disso, o autor percebe que o tratamento desigual também é fruto da não
separação rígida da esfera pública e privada, algo que permite a convivência harmônica
entre o princípio de isonomia e de tratamento desigual. O autor assim esclarece que uma
das principais implicações do princípio do tratamento desigual é a desigualdade cívica.
Contudo, em suas pesquisas o autor verifica que:

“...o problema não estaria tanto na dimensão hierárquica da concepção


de igualdade que preconiza tratamento diferenciado ou desigual entre
atores de condição social diferente, mas de sua incompatibilidade com
os ideais de isonomia jurídica ou de tratamento igualitário, o que faria
com que o cidadão experimentasse o tratamento desigual como uma
arbitrariedade.” (Projeto de Pesquisa CNPQ : 6)

Assim, o autor sugere que:

“.... o desdobramento das duas concepções de igualdade seria a


convivência entre dois tipos de éticas, igualmente vigentes em
nosso espaço público: uma com É maiúsculo, de caráter
universalista, e outra(s) com é(s) minúsculo(s), de caráter
particularista.” (Projeto de Pesquisa CNPQ : 6)

À luz dos dados etnográficos apresentados durante essa dissertação, percebe-se


que a ética particularista não só é predominante no espaço público da comunidade, como
obscurece a própria apreensão de uma Ética universalista. Tanto o universo do tráfico
como o da política, as duas esferas se apresentam como dotadas de identidades e
moralidades próprias que possuem uma tendência à concentração e ao fechamento

126
expressado pela “letra” coercitiva e pelo “espírito” na noção de pertencimento a um
corpo social (Durkheim 2007).
Apesar de os indivíduos circularem entre as diversas moralidades, a apreensão de
uma Ética universalista implicaria a possibilidade de se igualar a outros que o
estigmatizam, algo que visualiza o Estado, essencialmente, como um ente de
manutenção e de concentração de riqueza e, principalmente, de poder por parte de uma
elite. No entanto, não se pode dizer que valores universais estejam totalmente ausentes
do universo social da comunidade. Algo que é rapidamente percebido, quando um
traficante é preso e exige os seus direitos, ou quando na Casa reclamam que pagam os
seus impostos, mas o governo não ajuda ninguém. Contudo, o universalismo,
localmente, é um espaço menor, estando subordinado a éticas locais.
Acredito que a única forma de propor uma Ética universal, mais inclusiva, para a
comunidade, seja baseada na apresentação de outras identidades sociais estatais,
diferente dos políticos e policiais, que possam promover uma mudança incisiva sobre a
precária condição material em que vive e que demonstram que o Estado não é apenas um
ente que concentra poder para uma elite, mas que a comunidade, sabendo jogar o jogo
dele, pode alcançar uma cidadania mais inclusiva.

127
Glossário

Avião = Jovem que se inicia no tráfico levando droga para o traficante


Bacu = Forma reduzida de baculejo, revista policial
Cabrito, X9 = Pessoas que fornecem informações sobre o tráfico para policiais
Cagão = Covarde
Cagoetar = Fornecer informação para a polícia
Casinha = Emboscada
Colocar pilha = Incentivar
Comboio = Bandidos que saem para algum empreendimento em grupo
Comédia = Pessoa que não deve ser levada a sério
Dar pra trás = Desistir
Falta = Época do ano em que a droga se torna escassa
Fazer a caveira = Falar mal do outro
Folgado = Aquele que falta com respeito
Folgar = Ato de faltar com respeito
Gelar = Medo
Golzinho = Jogo de futebol na rua com traves pequenas.
Laranja = Aquele que não fez, mas acaba se responsabilizando pelo ato de quem fez
Máquinas = Revólver, metralhadoras...
Melando o esquema = Quando algo não vai dar certo
Merla = Pasta da cocaína refinada com produtos químicos
Oreia seca = Trabalhador
Pé de pano = Pessoa que trai, age de forma deslear
Pega mulherada = Ter ato sexual com uma mulher, ou dependendo do caso, beijar
Pica = Dividir
Pira = Ficar louco
Pousar de gatinhos = Ficar como os playboys
Ralar = Trabalhar
Trouxa = Otário, pessoal fácil de enganar

128
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