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2e11 FUNDA)

CDU 299.6

UMBANDA, XANGÔ E CANDOMBLÉ: CRESCIMENTO OU


DECOMPOSIÇÃO?

Roberto Motta

Diversidade e pureza

Estudando há quase trinta anos as religiões afro-brasileiras,


adquiri, desde o princípio de meu trabalho de campo, uma percepção
aguçada da diversidade em que se apresentam e já escrevi vários
ensaios sobre o tema (Motta 1977; 1988b; 1999; etc). Mas com certeza
não fui o único nem o primeiro a se aperceber desse fenômeno. Edison
Carneiro, na década de trinta do século XX, formulava a distinção
entre candomblé nagá e candomblé bantu. Data na verdade dos
primeiríssimos trabalhos desse grande pioneiro da pesquisa afro-
brasileira a tese, segundo a qual a verdadeira ou, pelo menos, a boa
religião africana, trazida para o Brasil por fiéis de origem nagô e
corretamente preservada apenas nuns poucos terreiros da Bahia, só
faz "degenerar" na medida em que se espalha por terreiros de outras
origens e, em geral, pela sociedade brasileira.' E assim que chega a
dizer que Até mesmo as largas facilidades que se permitem os negros
bantus concorrem, enormemente, para a difusão do charlatanistno
(Carneiro, 1937 p.33). Porém, apesar de seus numerosos trabalhos
históricos e etnológicos, Edison Carneiro, no sentido estrito destes
termos, não era nem um teórico nem um erudito. E, de acordo com o
marxismo de sua juventude - que não consta ter jamais renegado -,
eram menos as mentalidades que lhe interessavam do que as relações
de classe social. A partir do momento em que se admitisse que
Umbanda, Xangô e Candomblé: crescimento ou decomposição?

representava a religião do povo da Bahia, o candomblé não podia


deixar de se opor ao catolicismo atribuído às elites. Tratava-se do
embrião de uma consciência de classe que era preciso proteger contra
todo sincretismo — ao qual era particularmente inclinado o lumpen
representado pelos negros bantus - que não poderia deixar de
constituir uma forma de controle social. A pureza nagô seria assim
equivalente a uma espécie de pureza ideológica.
Esse conceito de pureza foi retomado por Roger Bastide, o
qual, ao mesmo tempo em que denegria os bantus, fazia os maiores
elogios aos terreiros nagôs. Para ele

O candomblé [nagô] forma, em plena cidade da Bahia, uma


verdadeira sociedade de socorro mútuo, de ajuda fraterna,
conservando o espírito comunitário africano. A designação
de convento, às vezes atribuída a esses agrupamentos, convém
perfeitamente. [ ... ] A vida religiosa está dominada pela
reciprocidade e pela troca. Alguns brancos não o
compreendem e consideram os babalorixás e as ialorixás
como pessoas de grande habilidade, que se aproveitam da
superstição popular para enriquecer. Não negaremos que, em
certos terreiros bantus ou candomblés de caboclo, casos
dessa espécie possam ocorrer, mas se trata de seitas em plena
desagregação, veementemente repudiadas pelos verdadeiros
"africanos" (Bastide 1958 p.47-8).

Em seus trabalhos sobre o rito nagô, Bastide com freqüência


se afasta do marxismo implícito no pensamento de Carneiro. Assim é
que

...passando do sociológico ao psicológico e voltando à


explicação da religião pelo medo, o marxismo tenta refinar
uma solução ultrapassada. [ ... ] Pois a presença das forças
religiosas não é sempre uma presença de tenor, mas também
uma presença de força, de paz ou de alegria. E aqui não
fazemos apenas alusão ao cristianismo atual, mas também às
formas mais primitivas de religião (Bastide 1995 p3).

O que entretanto não o impede, mesmo quando trata das formas


mais tradicionais da religião afro-brasileira, de adotar uma teorização
inspirada pelo materialismo histórico mais convencional:

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Roberto Moita

A luta das civilizações é só um aspecto da luta das raças, ou


das classes econômicas, no interior de uma sociedade de
estrutura escravagista. O negro não tinha condições de
defender-se materialmente contra um regime no qual todos
os direitos pertenciam aos brancos. Ele então se refugiou
nos valores místicos, os únicos que não lhe podiam ser
retirados. E lutou com as únicas armas que lhe restavam, a
magia dos feiticeiros e o maná das divindades guerreiras.
[ ... I E assim a cultura africana deixa de ser a cultura
comunitária de uma sociedade global, para tornar-se a cultura
exclusiva de uma classe social - de um único grupo da
sociedade brasileira, explorado economicamente e
subordinado socialmente (Bastide 1995 p.91-2).

O nascimento da umbanda

Bastide encontra-se ainda mais próximo de um certo marxismo


quando quer explicar o nascimento de uma religião, isto é, da
umbanda, que surge no Rio de Janeiro (de onde se propaga pelo resto
do país) a partir da década de vinte do século XX. Se fosse preciso
definir a umbanda com um mínimo de palavras, podia-se dizer que
consiste na aplicação de uma teologia, derivada do espiritismo europeu
codificado por Alian Kardec, às crenças e práticas afro-brasileiras,
principalmente à macumba, típica do Rio de Janeiro:

Pelas frestas dessa nova teologia, ainda tão insegura e


hesitante, penetravam na macumba, principalmente com o
ingresso dos brancos que logo se tornariam quase tão
numerosos quanto os negros, elementos do catolicismo
popular e do espiritismo de AlIan Kardec. [ ... ] A classe
proletária em formação necessitava, para cimentar-se, de um
mínimo de homogeneidade intelectual e afetiva e, para isso,
teve de colocar em comum as experiências místicas
específicas de cada uma das raças constitutivas dessa plebe
em processo de organização dentro da nova sociedade
industrial. A macumba então reflete esse mínimo de unidade
cultural necessária à solidariedade das pessoas, em face de
um mundo que só lhes traz insegurança, desordem e
instabilidade (Bastide 1995 p.411).

Elementar, meu caro Watson. Bastide, conforme assevera num


de seus últimos trabalhos, estava persuadido de ser possível

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Umbanda, Xangô e Candomblé: crescimento ou decomposição?

...seguir historicamente, no Rio de Janeiro, a evolução que


leva dos cultos puramente africanos, ainda existentes no
princípio do século XX, primeiro à macumba e em seguida
ao espiritismo de Umbanda, a macumba correspondendo à
formação de uma classe baixa, racialmente heterogênea, e o
espiritismo de Umbanda à tomada de consciência por parte
dessa classe e à sua vontade de ascensão social no quadro da
sociedade industrial concorrencial, marcando igualmente a
transformação da maneira de pensar sob a influência da
racionalização todo-poderosa: pois esse espiritismo assinala
a passagem de um sistema simbólico a um sistema
conceptual" (Bastide 1975 p195).

Do que se deduz que, para Bastide, o campo religioso afro-


brasileiro acha-se dividido entre, de um lado, as religiões tradicionais,
representadas pelo candomblé da Bahia, seguido de perto pelo xangô
do Recife, e, do outro, pelas religiões modernizadas, das quais o
protótipo se encontra no espiritismo de Umbanda, que surge
inicialmente no Rio de Janeiro. Os próprios termos da última citação
deixam ver que a seu funcionalismo marxistizante misturava-se um
weberianismo igualmente adaptado ao entendimento da modernização,
encarada como o destino inevitável do Brasil, depois de ter sido da
Europa e da América do Norte. E, segundo Bastide, essas duas metades
do mundo afro-brasileiro jamais se encontrariam. De maneira um tanto
peremptória, afirma, em artigo datado de 1955, que

A religião africana dificilmente pode expandir-se no Brasil,


em conseqüência de suas próprias condições de existência.
Ela supõe a estabilidade dos fiéis, pois os deuses estão
"assentados" em pedras, as pedras ficam no pegi do terreiro,
o culto implica portanto a presença dos sacerdotes, a
vizinhança do axé, toda uma série de fatores que impede o
culto de emigrar. A ligação mística entre o deus do fiel e o
terreiro é de tal natureza que o fiel não poderá reconstituir,
noutro lugar, sua religião nem muito menos conseguir novos
adeptos. Apenas o babalorixá ou a ialorixá, que conhecem
todos os segredos, é que poderiam, trocando de cidade,
reconstituir a seita de origem através da iniciação de novos
membros. Mas os chefes do culto geralmente não se
deslocam. [ ... ] Apesar da chegada em São Paulo de numerosos
filhos e filhas-de-santo e deixando de lado uma única exceção
(que ainda não foi estudada), a religião africana não se
expandiu fora de seus centros tradicionais (Bastide 1955
p.3).

178 Ci. & Tróp., Recife, v. 29, n.], p. 175-187, jan.fjun., 2001
Roberto Motia

Muito diferente era o que, segundo ele, se passava com o


chamado espiritismo de Umbanda. Este,

...nascido há poucos anos, estende-se cada vez mais e,


partindo do Rio de Janeiro, atingiu primeiro Minas e o Rio
Grande do Sul, em seguida São Paulo e chega hoje em dia a
atacar a própria região originária dos candomblés, o Nordeste
do tabaco, da cana-de-açúcar e dos negros (Bastide 1955
p.3).

Ora, Roger Bastide, no Brasil e fora do Brasil, é ainda hoje o


sol em tomo do qual gravita a pesquisa afro-brasileira. Quer dizer
que suas opiniões, inclusive sobre o relacionamento do espiritismo
de Umbanda com a modernização do país - a respeito do qual sugere,
como já se destacou, a adoção de um marxismo temperado por uma
dose de weberianismo, no qual se pode reconhecer a influência das
teorias sobre a modernização associada a Talcott Parsons e a seus
discípulos - foram amplamente adotadas pelos pesquisadores
brasileiros ou brasilianistas. Em essência é a mesma teoria, ou
variedades da mesma teoria, que atravessa os trabalhos de Camargo
(1961), Fry (1982), Lapassade & Luz (1972), Ortiz (1975), Pressel
(1973) e muitos outros. Dando a essa teoria sua formulação mais
simples, ela implica uma correlação entre as formas tradicionais de
religião afro-brasileira - candomblé da Bahia, xangô do Recife, tambor
de Mina de São Luís - e a sociedade brasileira tradicional, o Nordeste
do tabaco, da cana-de-açúcar e dos negros, como, com grande
eloqüência, diz Bastide. Seguindo os princípios da mesma escola,
haveria igualmente correlação entre o Brasil modernizado e
industrializado, o qual, partindo do Rio e de São Paulo, estende-se
progressivamente por todo o país, e o espiritismo de Umbanda. Trata-
se da ligação de uma infra-estrutura a uma superestrutura, esta sendo
a transcrição daquela no mundo fantasmagórico da religião, segundo
os termos de Marx no primeiro capítulo de O Capital, ou, se se preferir
a versão weberiana da mesma teoria, da afinidade eletiva entre uma
forma de economia e uma forma religiosa de recusa ou aceitação do
mundo.

Ci. & Tróp., Recife, v. 29, n. 1, p. 175-187, jan/jun., 2001 179


Umbanda, Xangô e Candomblé: crescimento ou decomposição?

A volta da tradição

Esse paradigma se abala com a publicação do livro de


Reginaldo Prandi, Os Candomblés de São Paulo (Prandi 1991). Uma
mutação muito importante teria ocorrido, pois, diz este autor, em São
Paulo

Até o final dos anos 40 os registros acusavam a presença de


1.097 centros kardecistas, 85 centros de umbanda e nenhum
candomblé. Na década de 50 surgia nos registros apenas um
terreiro de candomblé, mas a umbanda já ameaçava
definitivamente a presença do kardecismo, disputando com
ele passo a passo o surgimento de novas casas de culto. Ao
final da década de 80 { ... ] chegaremos a cerca de 17 mil
terreiros de umbanda, 2.500 centros de espiritismo
kardecista e o mesmo número de terreiros de candomblé.
Mudanças fantásticas, O kardecismo, que representava 92%
dos registros no início, chegará a 3%. O candomblé, que nada
tinha até os anos 60, atingirá a taxa de 14% dos registros
(Prajidi 1991 p.22).

Pareceria portanto que a hipótese central de Bastide e de seus


discípulos tivesse sido refutada segundo o mais rigoroso emprego do
modus tollens, tão recomendado por Karl Popper. Não haveria
finalmente correlação entre espiritismo de umbanda e modernização.
A volta à tradição seria simultânea com um processo bastante rápido
de transformação de estruturas econômicas e sociais. Ora, é sem dúvida
o que pode existir de mais oposto a toda socioantropologia da religião,
de inspiração marxista ou weberiana, que o avanço da modernidade
possa ocorrer simultaneamente ao crescimento de uma religião na qual
muitos, e não sem boas razões, descobrem o protótipo da manipulação
mágica do mundo e das divindades. Por via de conseqüência, seria
lícito concluir - de acordo com o que Bastide dá a entender - que a
religião africana tradicional estaria destinada a desaparecer com a
racionalização generalizada decorrente do desenvolvimento econômico
e social. E é precisamente essa simultaneidade, pelo menos aparente,
da tradição afro-brasileira, com seus arcaísmos evidentes, e da
modernidade, o que eu, noutro trabalho (Motta 1994b), denominei o
paradoxo - ou um dos paradoxos — da socioantropologia da religião
no Brasil contemporâneo.

180 Ci. & Tróp., Recife, v. 29, ti.], p. 175-187, jan./jun., 2001
Roberto Morta

Para que tentemos compreendê-lo, é preciso que em primeiro


lugar concordemos a respeito do significado de um certo número de
termos. Não se haverá de contradizer os dados de Reginaldo Prandi -
que é inclusive perito em demografia e estatística - a respeito do
decréscimo pelo menos relativo do kardecismo e da umbanda, em
proveito do candomblé. O que se pode questionar, em vocabulário
mais ou menos inspirado em Peter Berger (1967), é se o que ocorreu
não tem mais a ver com a adoção de novas (ou velhas) etiquetas e
técnicas de empacotamento do que com qualquer transformação
essencial das manifestações religiosas. Há sem dúvida diferenças entre
o candomblé e a umbanda, incluindo as enumeradas por Reginaldo
Prandi. Porém, o fato é que jamais houve linha de fronteira definida
entre essas duas variedades de culto afro-brasileiro. O próprio Roger
Bastide, o pai, conforme já se destacou, da concepção da umbanda
como forma de religião ligada à modernização e à racionalização,
observa que

Se é difícil acompanhar historicamente os primeiros


momentos da umbanda, é também difícil descrevê-la. Pois
estamos em presença de uma religião que ainda não acabou
de nascer, que ainda não encontrou as suas formas; e isto ao
ponto que, quando busca uma solução na "codificação" de
suas regras pelas "tendas federadas", essas federações se
combatem entre si, chegando-se a pensar, para estabelecer
um mínimo de ordem e de coerência.., na nomeação de um
papa da umbanda2 (Bastide 1995 p.444-5).

E essa complexidade o levava, por assim dizer contra a sua


vontade, a reconhecer, ao lado da tendência que submerge a África
no ocultismo europeu, outra tendência [ ... J que prefere apegar-se à
tradição africana (Bastide 1995 p.454). Na realidade, o movimento
umbandista esteve sempre bastante afastado da uniformidade ideal-
típica que lhe atribuíram, senão o próprio Bastide (como acabamos
de ver), pelo menos muitos de seus discípulos mais antigos ou mais
recentes. A umbanda sempre existiu em versões "branca" e "negra",
sem contar com a vasta gama de cinzentas, pardas e morenas.
Sobre o Nordeste ou, mais especificamente, sobre a "região
metropolitana" do Recife, num de meus primeiríssimos textos sobre
as religiões afro-brasileiras (Motta 1977), ao lado da umbanda branca,

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Umbanda, Xangô e Candomblé: crescimento ou decomposição?

correspondendo de maneira muito aproximada ao tipo ideal


modernizado, e que, no Recife, reunia talvez 5% dos adeptos dos
cultos de influência africana, eu distinguia o que então denominei xangô
umbandizado, o qual equivale, em termos bastideanos, à tendência
[...] que prefere apegar-se à tradição africana.
Havia e continua a haver, no xangô umbandizado do Recife e
em seus equivalentes de outras regiões, um núcleo importante de
africanismos rituais e mitológicos. Na hierarquia dos terreiros dessa
variedade, nota-se um emprego acintoso da terminologia nagô referente
ao parentesco ritual, o que pareceria fazer parte de um processo de
reafricanização que, na realidade, é sobretudo uma estratégia de
legitimação. E o pesquisador atento logo percebe que essa terminologia
serve também para mascarar a orientação personalista que predomina
nesses terreiros, essencialmente orientados para um público ou um
mercado anônimo e abstrato, composto de clientes e consumidores
dos bens e serviços mágico-religiosos produzidos por pais e mães-
de-santo acentuadamente "carismáticos", que são, a seu modo, donos
de "empresas" rituais, O que, noutras palavras, implica distanciamento
do candomblé e do xangô de sua base social originária e portanto a
dissolução da comunidade étnica e emocional que, na Bahia, em
Pernambuco, no Maranhão e talvez noutros lugares, encontrava-se na
raiz da tradição afro-brasileira.

"Descomunalização", "desetuização" e "kitschficação"

Tal descomunalização da religião africana, que se acelera no


último quartel do século XX, corresponde ao que, já noutro lugar
(Motta 1994b), denominei a desetnização do candomblé. E essa
transformação fundamental acarreta outras transformações. A partir
do momento em que se obscurece a ligação direta com a comunidade,
a religião tomando-se um artigo abstrato, destinado a um mercado
igualmente abstrato, vai surgindo a necessidade de uma padronização,
isto é, de uma regulamentação que, de certo modo, implica um esforço
de eclescação. 3 Formada a princípio de grupos que admitiam, apesar
de suas especificidades, a primazia do catolicismo, praticando por
conseguinte um culto radicalmente sincrético, a religião afro-brasileira
cada vez se transforma em igreja, ou melhor em igrejas por direito
próprio, com suas teologias mais ou menos sistematizadas, seus

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Roberto Moita

códigos rituais, seus sacerdócios iniciados ou ordenados segundo


regras precisas de reconhecimento e transmissão do carisma. Na
prática, como, ao referir-se à nomeação de um papa da umbanda,
Bastide tinha perfeita consciência, aparecem vários modelos ou
projetos de igreja, em competição pelo mercado.
Observa-se também a proliferação da literatura de divulgação,
muitas vezes escritas por babalorixás mais instruídos e destinada a
outros babalorixás, aos fiéis e ao público ledor e comprador. Essa
literatura com muita freqüência se apóia nos trabalhos eruditos de
africanistas ou afro-brasilianistas. Mas o enfraquecimento do contacto
com as matrizes comunitárias implica a tendência ao kitsch, ao colossal,
ao excessivamente elaborado. A multiplicação de termos relativos ao
parentesco ritual e à hierarquia dos terreiros se acompanha da
ampliação dos mitos, do desdobramento ou da "redescoberta" das
divindades, de sua classificação em "linhas" e "falanges" com certeza
derivadas de antigas especulações sobre anjos e demônios.
O rito fundamental do candomblé da Bahia, como do xangô de
Pernambuco, que é o sacrifício sangrento de animais, passa também
por um percurso complicado. Pretendendo ser a religião de um Brasil
modernizado e europeizado, a umbanda branca rejeitava-o com ênfase,
considerando-o como rito "bárbaro". Sob a influência dessa umbanda,
o sacrifício tendia a tomar-se apenas vestigial no xangô umbandizado
do Recife e em cultos semelhantes noutras partes do Brasil. No entanto,
justamente em terreiros deste tipo, constata-se, desde meados da
década de oitenta, uma tendência à retomada em grande escala das
práticas sacrificiais, o que parece contrariar toda teoria evolucionista
dos cultos afro-brasileiros, começando pelas de Roger Bastide sob a
influência da sociologia do desenvolvimento de inspiração marxisto-
weberiana.
O sacrifício de sangue não se torna necessariamente mais
freqüente do que nos centros tradicionais, mas nem por isso deixa de
haver enormes diferenças. Ele agora assume um feitio grandioso e
teatral, resultando num espetáculo muitas vezes anunciado na imprensa
e na televisão.' Já não é mais simplesmente o rito praticado, na
intimidade dos terreiros, por uma comunidade cimentada pelo
parentesco carnal e ritual, pela origem étnica, pela solidariedade de
classe, reafirmando sua mais íntima identidade através da
"cumplicidade" na efusão do sangue. Quaisquer que possam ser as

Ci. & Tróp., Recife, v. 29, n. 1, p. 175-187,janjjun., 2001 183


Umbanda, Xangô e Candomblé: crescimento ou decomposição?

funções econômicas exercidas pelo novo tipo de sacrifício, trata-se


evidentemente de reivindicação ostensiva de fidelidade a uma África
largamente imaginária, servindo por conseguinte para legitimar o artigo
religioso endereçado a um mercado abstrato e "desetnicizado".
Embora se possa lamentar, no primeiro desses autores, o
etnocentrismo nagô e, no segundo, a confiança um tanto ingênua em
teorias da modernização, meio marxistas e meio weberianas, correntes
nas décadas de cinqüenta e de sessenta, tem-se de concluir que Carneiro
e Bastide partiam de intuições, que vieram a ser corroboradas. Tinham
razão a respeito das conseqüências da separação entre o candomblé e
sua comunidade de origem, firmada sobretudo na tradição nagô e tendo
como base territorial algumas cidades, Salvador, Recife, Maceió, São
Luís, do Nordeste do tabaco, da cana-de-açúcar e dos negros.
Efetivamente, a "nacionalização", ou mesmo a "mundialização"
das religiões afro-brasileiras, liberadas de sua ligação exclusiva com
grupos de certas origens étnicas e certas características de inserção
social e econômica, constitui um processo muito cheio de
ambigüidades e que não é fácil de interpretar do ponto de vista da
socioantropologia da religião. De um lado pareceria tratar-se do
"reencantamento" da sociedade brasileira - e isto nas cidades e regiões
mais industrializadas e modernizadas -, conquistada pela religião da
festa e do transe. Mas também se pode reconhecer, nesse processo, a
tendência à decomposição dessas religiões, que perdem suas bases
étnicas e sociais, sem que se consiga constatar a reconstituição, noutras
bases, da comunidade, deixando-se governar pela lógica do mercado
e sujeitando-se a ser colocadas, ou a ter alguns de seus elementos
colocados, no carrinho de compras dos que, baseados em cálculo de
eficácia presumida, fazem o "shopping" dos artigos mágicos.'
E isto, em última instância, parece derivar da ausência nessas
religiões, conforme já se constata em suas formas mais tradicionais,
de uma teodicéia coerente e articulada. Sem possuir uma explicação
geral do mundo, do mal, do sofrimento e da retribuição, o candomblé
e os cultos que a ele se assemelham, ou dele derivam, estruturam-se
em torno ao pacto sacrificial, que, mesmo nos casos em que a matança
desaparece, implica essencialmente um contrato de troca de dons e
serviços entre os homens e os deuses. E, afastando-se de suas raízes
na comunidade étnica, essas religiões facilmente se reduzem a sistemas
de magia marcadamente utilitária, em concorrência com outros sistemas
da mesma natureza e das origens mais diversas.

184 Ci. & Tróp., Recife, v. 29, n.1,p. 175-187, jan./jun., 2001
Roberto Morta

Notas

A respeito das opiniões de Edison Carneiro (e de Ruth Landes), pode-se consultar


Motta 1976. Sobre a influência às vezes decisiva que exerceu sobre Roger
Bastide, veja-se Motta 1994a.
2 Se esse papa, que eu saiba, nunca foi nomeado, em compensação vários
personagens foram proclamados, ou se proclamaram a si mesmos, reis da
umbanda, entre os quais o falecido José Ribeiro de Sousa, do Rio de Janeiro
(embora natural de Pernambuco), autor de numerosos trabalhos de divulgação
da religião afro-brasileira; José Paiva de Oliveira, atualmente de Brasilia (mas
igualmente originário de Pernambuco), também ele autor prolífico e dirigente
de várias associações ou federações de umbanda, xangô e candomblé; e, em
Pernambuco, o famoso Pai Edu (Edwin Barbosa da Silva), autor, além de tratados
sobre a religião, de vários romances de inspiração mística.
Sobre a eclesificação - ou antes sobre as tentativas de eclesificação das religiões
afro-brasileiras, pode-se ler Mona 1989.
Pai Edu, ao qual os serviços profissionais que prestou a uma grande família do
Recife, proprietária de jornais e estações de rádio e televisão, valeram reputação
nacional e mesmo internacional, mata 500 frangos para a festa de Exu, recebendo
por essa ocasião em sua casa a mais alta sociedade de Olinda e do Recife. Pai
Edu, aliás, é objeto de precioso estudo monográfico de Eduardo Fonseca (1999),
não me constando nenhum outro trabalho sobre um dos babalorixás mais notáveis
do Brasil. É muito instrutivo acompanhar, também na região do Recife, a evolução
do sacrifício no terreiro de Pai Raminho, o qual, ainda que menos conhecido
que Edu entre os grandes deste mundo, em nada perde para seu colega quando se
trata dos esplendores da liturgia. Muito provavelmente é a Raminho que se deve
a introdução, ou reintrodução, em Pernambuco, do sacrifício de garrotes.
Lembro-me que, no princípio da década de oitenta, ele imolava, ou fazia imolar,
para a festa do exu Seu Viramundo, um boi, dez cabras ou bodes, e 240 frangos.
Em 1989, convidou-me expressamente para assistir ao sacrifício de três bois,
acompanhados de uma multidão de caprinos e galináceos. Em 1991, ofereceu
três garrotes negros no dia 24 de agosto (em honra de Exu, festejado
no dia de São Bartolomeu) e convidou-me também para presenciar,
alguns dias depois, o abate de outro garrote, dedicado a Xangô. No
ano (1999), Raminho se declarou muito ocupado com a aquisição de
seus bovinos sacrificiais para ter tempo de conceder entrevista a um meu
orientando.
Trata-se, na terminologia de Champion e Cohen (1993), do bricolage
personnalisé, associado à busca utilitária de artigos mágicos e, a seu modo,
dessa cralïzados.

Ci. & Tróp., Recife, v. 29, n. 1, p. 175-J87, jan./jun., 2001 185


Umbanda, Xangô e Candomblé: crescimento ou decomposição?

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• 1994b "Ethnicité, Nationalité et Syncrétisme dans les
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• 1999 "Religiões Afro-Recifenses: Ensaio de Classificação".
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