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Marie-Christine Laznik 2010

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ISSN 0103-7013

Psicol. Argum., Curitiba, v. 28, n. 61, p. 135-145 abr./jun. 2010


Licenciado sob uma Licença Creative Commons

GODENTE MA NON TROPPO: O mínimo de gozo do


outro necessário para a constituição do sujeito

Godente ma non troppo: The minimum of jouissance of the other


necessary to the subject constitution

Marie-Christine Laznik

Psicanalista, Doutora em Psicologia pela Université de Paris XIII, analista membro da Association Lacanienne Internationale,
psicanalista no Centre Alfred Binet, Paris - França, e-mail: mclaznik@club-internet.fr


Resumo
A autora propõe utilizar o conceito lacaniano de gozo como operador central na clínica do autismo,
partindo da constatação de que nos bebês cujo encaminhamento se dá rumo a esse quadro clínico pode
haver presença de uma relação narcísica com os pais, mas não uma relação pulsional, que desemboque
na constituição de um sujeito desejante. Essa constatação, feita a partir da análise de filmes familiares,
permite conceber um importante lugar para o tratamento psicanalítico e uma direção de tratamento para
bebês com sinais de risco do tipo autístico, em que a questão pulsional entre a criança e seus pais vai ser
colocada em evidência.

Palavras-chave: Autismo. Bebês. Pulsão. Narcisismo. Gozo.

Abstract

This article proposes the use of Jacques Lacan’s concept of jouissance as a central operator in the clinic of the
autism, based on the observation that in babies inclined to this clinical picture may be the presence of a narcissistic
relationship with the parents, but not a drive-relationship, that would lead to the constitution of a desiring subject.
This verification, made after analyzing the family movies of the baby, allows conceiving an important place to the
psychoanalytic treatment and a direction to the treatment of babies with signs of risk to autism, in which the drive
question between the children and their parents will be placed in evidence.

Keywords: Autism. Babies. Drive. Narcissism. Jouissance.


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Do argumento de nossas jornadas1, inter- punhos. A mãe lhe diz, com uma voz envolvente:
rogarei principalmente a questão da estrutura do “Vamos ficar peladinho, peladinho, peladinho...”
grande Outro para a criança e a instauração, ou não, Enquanto profere essa frase, ela retira uma das
da estrutura de sua fantasia. Na realidade, vou par- mãos dele da boca para poder tirar uma manga,
tir da questão do lugar do gozo na constituição do mas, no temor de desagradá-lo, redobra sua sedu-
sujeito, desde os primeiros momentos de sua vida, ção e começa suavemente a fazer cócegas no peito
em seu laço com o que vai construir um Outro para de seu filho, que abre um grande sorriso. A mãe
ele. Essas reflexões provêm da comparação entre a comenta: “Você dá risadas? Cuti! Cuti! Cuti! Cuti!
clínica com bebês comuns e aqueles que já estão se Cuti!”, enuncia, sempre lhe fazendo cócegas suave
encaminhando para o autismo e cuja patologia vai e ternamente na barriga. Depois ela aproxima o pé
se revelar em seu esplendor alguns anos mais tarde. do bebê de sua boca, pé que ela vai beijar várias
Estranhamente, foi em Lacan que encontrei elemen- vezes dizendo: “Ela é safada essa mamãe? O que
tos que me permitiram perceber aí alguma coisa. ela está fazendo? Cuti, cuti, cuti, cuti!”. O bebê não
Digo estranhamente porque Lacan, contra- somente mostra sua satisfação ao se deixar fazer
riamente a alguns autores ingleses, não se interessou cócegas, tem mesmo sua mão ternamente colocada
realmente pelos bebês nem pelo autismo precoce, sobre a de sua mãe, como ainda emite um “aaah”
mas principalmente porque o conceito de gozo que de satisfação pulsional para indicar realmente seu
vou empregar – e que certamente é, por sua vez, prazer de se encontrar ali no registro freudiano da
lacaniano – geralmente é tratado apenas em sua voz passiva da pulsão. Mas, nesse mesmo semi-
dimensão depreciativa. nário O Avesso da Psicanálise, Lacan lembrava que
Entretanto, no seminário de 1970, O avesso o gozo começa com as cócegas, mas pode acabar
da psicanálise, Lacan começa a mostrar um outro lado em grelhado. O exemplo clínico trazido por
do gozo que, em pequenas doses, tem certamente Dominique Janin nessas mesmas jornadas, com o
um papel necessário. Vejamos o que ele diz em 11 desenho da menininha que se fazia assar, nem um
de fevereiro de 1970: “mãe que diz, mãe a quem se pouco suave, espetada pelos lobos, é um exemplo
demanda, mãe que ordena e que institui ao mesmo impressionante.
tempo a dependência do homenzinho. A mulher Aqui também, entre esse menininho e sua
permite ao gozo ousar a máscara da repetição. [...] mãe, a libido oral quase vai chamuscar e é interessante
Ela ensina seu pequeno a se exibir. Ela conduz ao ver como a mãe vai operar o desembaraço da situ-
mais-de-gozar, porque ela mergulha suas raízes, ela, ação. Estudemos então a sequência da cena erótica,
a mulher, como a flor, no gozo mesmo” (Lacan, já que o bebê, que se encontrava num registro mais
1970, p. 73-74). freudiano da voz passiva, vai passar ao registro laca-
niano da busca do gozo do Outro. Vejamos como.
A mãe já retirou a pequena camisa. Fabien
Primeiro tempo: Godente olha para ela em êxtase e decide levar seus pés até
a boca da mãe. Primeiramente o esquerdo, e usa
Tentemos decifrar esse texto com a ajuda até a mão para estar certo de atingir realmente seu
de uma cena da vida cotidiana entre um bebê normal objetivo, proferindo: “Bah!”
de 5 meses, Fabien, e sua mãe, que ensina o gozo A mãe se põe a dar beijinhos na planta
ao seu filhote. A criança está de fralda e veste uma desse pezinho colado à sua boca, dizendo: “Como
pequena camisa. Está deitada de costas, sobre uma é gostoso este pezinho! É gostoso este pezinho!”
toalha, num colchonete de trocas, na cama dos pais, Fabien, que não perde uma gota do prazer de sua mãe,
onde se acha sentada também a mãe. A cena parece põe então sua mão na boca da mãe, que se apressa
preceder a hora do banho. O bebê olha para a mãe, a cobri-la de beijinhos, dizendo: “A gente comeria
mas está ocupado sobretudo em chupar seus dois um bebê assim! Hum! Hum! Hum!”.

1
Trabalho apresentado nas Jornadas da Association Lacanienne Internationale “L’enfant entre désir et jouissance” (A criança entre
desejo e gozo), de 10 a 12 de março de 2006, em Paris. Publicado em: Cahiers de l’Association lacanienne internationale. Paris: ALI,
2006. Tradução: Leda Mariza Fischer Bernardino.

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Mãe e filho arrulham juntos de um mesmo provavelmente não ocorreu no meio em que vivia a
gozo: “Aaaah!”. Fabien não apenas se faz ativamente pequena paciente de Dominique Janin.
comer o pé por sua mãe, como também acompanha Enquanto a mãe terminava o beijo no pé de
no rosto dela e em sua voz a alegria que ele aí suscita. seu menininho, ele tinha agarrado muito atentamente
Então, a mãe solta a fralda sem retirá-la, o pé com a mão na intenção provável de deixá-lo
pois seu filho deseja ainda colocar seu pé na boca realmente na boca da mãe. Mas ela vai perceber a
de sua mãe, que comenta: “Um pezinho por aqui, situação e mudar completamente de registro. Ela se
eu devoro!”, dando um sonoro beijo no pé que lhe põe a admirar o desempenho esportivo de seu filho.
é ostensivamente oferecido. Ela recua, pois, da relação erótica, sem abandoná-lo,
Entretanto, se encontramos aí as condições pois ela se torna, a partir de então, sua admiradora:
para que um gozo do Outro possa vir construir este “Parabéns! Como você segura bem seus pés!”,
campo Outro e retrospectivamente o campo mesmo exclama ela. Como o filho dá uma risada de prazer
do sujeito, ainda é necessário que este outro que a diante do cumprimento, ela acrescenta, falando no
isso se presta não se engane. lugar dele: “Puxa, como eu sou grande!”.
E, com efeito, o que ela diz no lugar dele é
justo. Ele está orgulhoso – chuffed – por ter percebido
Segundo tempo: Ma non troppo que é a fonte do orgulho de sua mãe. De objeto ele
se torna sujeito. Chuffed é um termo de cavalaria. Ele
Convém que a mãe não se tome pelo demonstra o orgulho do cavaleiro que venceu um
Outro e saiba que o gozo do Outro, embora ela torneio e vai oferecer sua vitória à dama cujas cores
possa entrevê-lo, é-lhe proibido. Que ela, a mãe, é ele defende. Esse termo foi proposto por Colwyn
marcada pela castração e pela proibição do incesto. Trevarthen (2005), famoso especialista do desen-
O gozo, que vai das cócegas ao grelhado, como nos volvimento dos bebês, segundo o qual a questão do
lembra Lacan, opõe-se ao princípio do prazer. No sujeito se coloca bem mais precocemente nos bebês
ano seguinte ao seminário em que ele avança que a do que nós, psicanalistas, cremos.
mãe é aquela que ensina o gozo ao seu filhote, no Assim, a mãe opera um desembaraço,
seminário denominado De um discurso que não fosse passando da cena oral-erótica – com sua necessária
semblante, Lacan (1971) acrescenta que é necessário fantasia de devoração: “A gente comeria um bebê
o gozo, certamente, mas não demais. Que ele é assim!” – para uma dimensão narcísica fálica em
proibido por certas coisas que se articulam em torno que ela admira seu filho: “Parabéns! Como você
da questão do princípio do prazer que só pode, diz segura bem seus pés!”. Ela faz cessar o gozo, antes
ele, ter um sentido: nada de gozo demasiado. Desse de chegar ao grelhado.
ponto de vista, o desenho do caso da menininha de Quando Lacan ([1969-1970] 1992, p. 74)
Dominique Janin, fazendo-se grelhar no espeto pelos enuncia “a mulher dá ao gozo ousar a máscara da
três lobos, é exemplar. Ele mostra o quanto Lacan repetição; ela ensina seu filhote a se mostrar”, ele nos
tem razão quando avança que o estofo de todos os faz parte de suas observações de pai de família, que
gozos confina ao sofrimento e que é mesmo disso não tinha os recursos, na época, para decifrar a cena do
que reconhecemos a aparência. filme relendo-a várias vezes. Senão, ele teria facilmente
Mas voltemos a Fabien e sua mãe. Será que percebido dois tempos lógicos sucessivos: as cócegas
é ao se ouvir dizer “devorar” que a mãe desperta roçando o perigo de uma fogueira pulsional – no
de seu devaneio claramente canibalístico? Desde caso, aqui, fantasias maternas de devoração já previs-
1905 Freud previra que a sexualidade infantil oral só tas por Freud há um século – e a reorganização em
poderia encontrar as fantasias sexuais canibalísticas uma forma de admiração narcísica fálica estável em
nos pais. O fato é que a mãe, mesmo nunca tendo que a mãe vai a partir de então impulsionar seu filho
lido Lacan, mas estando perfeitamente marcada pela a se exibir. Isto pode chegar até a parada militar nos
castração simbólica, tem um justo saber inconsciente Champs Elysées, em seu uniforme de politécnico; é
sobre o fato de que o gozo oferecido ao Outro não da mesma ordem.
é para o sujeito que está em um lugar parental, e ela Clarisse, que acaba de nascer por fórceps,
vai se desembaraçar dessa cena, de modo absoluta- há alguns minutos, está ainda na sala de parto com
mente tocante, e evitar chegar ao grelhado. O que sua mãe, enquanto seu pai as contempla e filma,

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emocionado, com sua câmera digital, a primeira troca para o gozo oral de sua mãe; que seus dedinhos,
de olhares entre elas. Com efeito, a mãe a chama oferecidos para a boca da mãe experimentar, eram
ativamente, ela demonstra uma boa pulsão invocante deliciosos para devorar. Trata-se do terceiro tempo
no sentido lacaniano do termo. do circuito pulsional: o “se fazer comer”. Eu tinha
Enquanto o bebê, que carrega ainda as conseguido pedir para seu pai tirar algumas fotos
marcas do fórceps na fronte, tenta pegar o mamilo, desse manejo cotidiano que se repetia no momento
sua mãe o chama: “Opa! Olha só meu bebê! Ah! Aqui! da sesta, em que sua mamãe tinha de niná-la alguns
Aqui!”. minutos para apaziguá-la. As fotos mostram niti-
Sua voz é suave e modulada, com longas damente como Clarisse, antes de adormecer, abre
incursões. “Opa! Oh! Opa” parecem acompanhar novamente os olhos para ver que efeito seu presente
as tentativas do bebê de se apoderar do mamilo, pulsional tem sobre sua mãe. Essa, desejando acalmar
enquanto que “Olha só meu bebê” e “aqui” são apelos. sua filha, cuidava para não exprimir seu gozo de modo
O bebê não lhes fica insensível, ele volta claramente algum, todo aquecimento de gozo indo no sentido
a cabeça para o alto e busca a fonte da voz de sua oposto de seu dever de mãe apaziguadora. Mas o
mãe. E aí uma báscula completa se opera na mãe. bebê tem ainda necessidade de se assegurar de que
Não somente ela fala no lugar de seu bebê, no que ele realmente fisgou o gozo do Outro. Proposição de
é tradicionalmente descrito há mais de vinte anos, um enunciado: “meu gozo de bebê é o gozo d’Ela”.
pelos psicolinguistas, como os “turnos de fala”, mas O que dará mais tarde: o desejo é o desejo do Outro.
ela muda de língua. Ela supõe seu bebê capaz de Por que não falar já de desejo? Porque ele supõe uma
falar português, primeira língua na qual com efeito operação completa descrita por Lacan (1958-1959)
Clarisse falará fluentemente aos 2 anos. Essa mãe é no seminário O Desejo e sua interpretação, na sessão de
ela mesma francobrasileira, ela falou primeiramente 11 de fevereiro de 1959.
em francês com a filha, mas, no momento em que Ele parte de uma cena descrita por Santo
seu bebê a olha, é na língua em que ela foi falada, Agostinho (1992), no século IV de nossa era, em
a mãe quando bebê, que ela supõe que sua filha se Confissões, e comentada muitas vezes por Lacan:
expressará. Durante todo o tempo em que a mãe uma criança olha seu irmãozinho no seio da mãe. A
fala, o bebê a olha. Sabemos que uma mãe não pode criança está pálida diante desse espetáculo. “Amaro
sustentar um turno de fala sem o olhar franco de aspectu”, escreve Santo Agostinho (1992, p. 236),
seu bebê, e mais tarde sem sua participação vocal que fala certamente de si mesmo e de sua “inveja do
tampouco. espetáculo amargo de seu irmão de leite”. Lacan
[Ela diz, no lugar do bebê]: “De quem é esta diz também desse olhar “que ele faz o efeito de um
voz? Eu conheço esta voz... Eu conheço, é a voz da mamãe”. veneno”. Erik Porge (1990) escreveu um excelente
As incursões são ainda mais marcadas artigo sobre as variantes de tradução e de interpre-
devido à presença insistente do olhar do bebê. tação que Lacan pôde dar dessa cena.
Estamos aí diante de um exemplo típico de prosódia Trata-se para Lacan de uma experiência
do “manhês”. crucial, a do momento lógico fundador do desejo.
Alguns dias mais tarde, temos uma série Essa experiência, cujo alcance é totalmente geral,
de fotos adoráveis que mostram Clarisse em plena só pode aparecer através de uma formalização que
forma, usufruindo plenamente do primeiro tempo Lacan desenvolve nessa aula de fevereiro de 1959.
do circuito pulsional oral: ir até o objeto, na ocasião Trata-se de um quadrípodo que consiste
o mamilo, e se apossar dele. Vemo-la cheirar, beijar, na articulação de uma dupla metáfora.
olhar e abrir uma boca devoradora diante do mamilo,
sorrir para ele, lambê-lo. Tudo está presente para
o primeiro tempo. Mas não há sujeito da pulsão

enquanto os três tempos não se instauram. O modo
particular com que ela insistiu na questão do terceiro Vejamos então como funciona a dupla
tempo foi o que me pareceu ter valor de ensinamento. substituição.
Isso se tornou patente principalmente em
torno de seus cinco meses. Antes de pegar no sono, A primeira é representada por .
ela tinha de se assegurar de que era um bom objeto

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O sujeito cai abaixo, enquanto seu irmão o filhote de homem. Nosso Agostinho estava neste
de leite, i(a), usurpa seu lugar. ponto, diante de seu irmão de leite. Nem Fabien nem
Clarisse estavam aí ainda. Grafo completo:
A segunda substituição é representada por .

O objeto a – no caso descrito por Santo


Agostinho, o seio – vem tomar o lugar da mãe ideal,
toda Uma, primeira forma do Um, representado
aqui por I.
Essas duas operações ocorrem de modo con­
comitante, o que Lacan representa pela punção ◊.
Resta examinar duas outras relações
notáveis que resultam da operação de um quiasma:
primeiramente, (  ◊ a), onde se acha representada a
relação (proporção) do sujeito (   ) com o objeto a,
no caso o seio. O menininho Agostinho descobre
seu desejo pelo seio no momento mesmo em que é
dele privado pelo usurpador que dele goza em seu
lugar. Antes, ele não sabia que o desejava. Mas poderia
ser o olhar ou qualquer outro objeto pulsional, a voz
que se dirige ao irmãozinho, por exemplo. Em todo
caso, é apenas enquanto sujeito privado, marcado pela
falta (   ), que ele pode advir como sujeito do desejo,
de um objeto a, que só se constitui nesse momento.
Esse objeto é meu semelhante, que dele goza e assim
se constitui minha fantasia de filhote de homem.
Estamos agora em condições de ler a fór- Figura 1 - Grafo do desejo
mula como se segue: o sujeito (   ) toma consciência
Nota: Jouissance = gozo
do objeto a (aqui o seio) ao mesmo tempo em que
Signifiant = significante
toma consciência de que é dele privado por essa outra
Voix = voz
criança i(a), seu irmão de leite que usurpa seu lugar.
Em seguida: [ i(a) ◊ I ], que representa uma
completude entre o bebê ao seio i(a) e a mãe ideal, I.
Essa fórmula parece, pois, representar de No tempo primeiro da constituição do
modo conveniente o momento em que se instalam, aparelho psíquico, apenas a mãe pode ser consi-
de modo concomitante, o objeto a, o sujeito enquanto derada já constituída como sujeito do desejo. Ora,
desejante,  , e sua relação (proporção) fantasística proponho aqui ler o grafo na perspectiva do bebê.
com esste objeto (  ◊ a). Estamos aí em presença Não posso ainda falar em termos de desejo, mas
da fórmula lacaniana da fantasia. talvez em termos de um saber S1 que impulsionaria
Se olharmos o grafo do desejo (Figura “eu” – o bebê – a me interessar pelo gozo dela S( ).
1), estamos em condições de enunciar que os dois E por esse gozo, vimos que os pequenos Fabiens e
andares intermediários, que remetem à constituição as pequenas Clarisses são muito interessados, e isso
do espaço imaginário, demandam um tempo para de saída. Isso se junta ao que Trevarthen (2002,
se instaurar. Tempo que não é apenas lógico, mas p. 86)2 enunciou sob a forma de: “The baby is born
também cronológico. Eles não estão lá de saída para with a motive for the motive of the other”.

2
Quando lhe pedem uma tradução para a palavra “motive” em inglês, vêm-lhe desejo, mas ele não tem o rigor de um Lacan
quanto do conceito de desejo. Penso que poderíamos dizer “o que convém a um bebê, é o que convém ao Outro”. O que remete
à questão do gozo.

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Há no seminário O Avesso da Psicanálise, nessa dele, que ela se perguntava se ele estaria enxergando-a,
mesma aula de 11 de fevereiro de 1970, ainda uma de tal modo o olhar do rosto do bebê, que parecia
observação à margem, sobre o gozo, a mãe e o bebê, voltado para ela, era vago.
que tem um grande valor para esta clínica precoce. Do mesmo modo, ouvimos a questão
O primeiro a me fazer observar isto foi René Lew. patética de sua avó, a quem ele parecia olhar no
Eis o enunciado, mas pressupõe que filme, que lhe pergunta, rindo: “Mas o que você está
façamos algumas escolhas no modo de colocar as olhando? Mas o que você está olhando? Faça-me ver!”, de
vírgulas num texto oral3. “Os meios do gozo são tal forma os olhos de seu neto não a olhavam. Ali,
abertos pelo princípio seguinte, que ele (no caso nesse último mês, ela faz ainda a hipótese de um
que nos interessa, o bebê) tenha renunciado ao gozo sujeito nele e está mesmo pronta para compartilhar
fechado – e alheio – à mãe” (Lacan, [1969-1970] sua experiência. Por quanto tempo? Em torno dos
1992, p. 74). Poderíamos pensar que é o que Fabien 3 meses, seu pai poderá ainda lhe perguntar o que
faz, ao largar os pequenos punhos que chupa por ele quer dizer, desde o primeiro instante em que ele
preferir as cócegas de sua mãe, chegando até a se o olha e emite um som; comportamento habitual
oferecer a ela. dos bebês comuns. Ao fazermos uma microanálise
O que pude observar em cerca de 40 fil- de uma cena entre o bebê e sua mãe quando ele
mes de bebês que se tornaram mais tarde autistas, tem 1 mês e 20 dias, ouvimos a modificação na voz
e naqueles que pude atender ainda lactentes, é que materna que se cansa, na medida em que todas as
o bebê futuro autista – por razões que conviria não suas ternas e doces tentativas fracassam. Mesmo as
se precipitar em compreender (a douta ignorância pequenas carícias em torno da boca não conseguem
pregada por Nicolas de Cusa é aqui abertura a um fazer a atenção do filho se voltar para ela. O pai,
saber possível) – não renuncia a um gozo fechado que os filma, pede-lhe para tentar ainda. Ela tenta
e estranho à mãe. De repente, a possibilidade de novamente, apoiada pelo pai. Em vão. Uma parada
um gozo do Outro – a mãe fazendo essa função – na imagem, no fim dessa cena, permite perceber
torna-se impossível. Ao mesmo tempo, o lugar do uma leve ruga de amargura se desenhar no canto
Outro também. da boca materna, certamente à sua revelia. Os
pais, diante dessa ausência de resposta do bebê,
até mesmo de suas recusas ativas – quando ele se
Um gozo fechado e estranho à mãe: Jérôme volta ostensivamente para o lado oposto àquele em
que se encontra sua mãe – apoiam-se mutuamente
Para tentar captar de que se trataria esse gozo e parecem conservar a confiança.
fechado, tomemos um exemplo clínico concreto, a O caso de Jérôme nos permite ter uma
partir da análise de um filme familiar4. pequena ideia de uma das razões possíveis que pode
A decifração atenta do filme familiar de levar um bebê, em risco de autismo, a não olhar um
Jérôme, bebezinho italiano diagnosticado como dos pais. Deixo aqui toda causalidade, para interrogar
criança com autismo aos três anos, é cheio de ensi- apenas laços entre eventos simultâneos.
namentos. Foi somente escutando inúmeras vezes a Segundo os dizeres dos pais no filme
voz terna e melodiosa da mãe de Jérôme, quando ele familiar, Jérôme os teria olhado, pela primeira vez,
não tinha ainda oito dias, que acabamos por decifrar, na idade de quase três meses na situação seguinte. O
no movimento repetido de sua mãe diante do rosto pai estava deitado no sofá, com seu filhinho contra

3
Qual não foi minha admiração no seminário de verão de 2007, sobre o Seminário Avesso, justamente, ao ouvir Claude Landman
propor a mesma leitura deste parágrafo! O texto na versão estabelecida é: “que ele tenha renunciado ao gozo fechado e alheio,
à mãe” (Lacan, 1970, p. 74).
4
Esses filmes foram generosamente colocados à minha disposição pela equipe de Pisa e gostaria aqui de agradecer ao Prof. Filippo
Muratori e à Dra. Sandra Maestro. Nosso encontro se fez na base de nossa paixão comum pela detecção de sinais precoces de
autismo no primeiro ano de vida. Eles conhecem os trabalhos da escola de Tours e em particular os de Catherine Barthélémy;
eu os escutava. Eu lhes mostrava o que a identificação, a partir da metapsicologia do circuito pulsional, me permitia identificar
no contexto dos bebês que eles me mostravam.

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suas pernas dobradas. A mãe filmava e os pais fala- outro adulto, salvo em condições extremamente raras,
vam entre si, como se fala com um bebê, para se em que uma grande surpresa ocorria junto com um
dar força. De repente, suas vozes estavam bastante grande prazer. O autor não tirou disso nenhuma con-
melodiosas. Num momento determinado, sempre sequência, mas eu ficara extremamente interessada
não olhando para ninguém, Jérôme dá um sorriso por esses dois termos: surpresa e prazer. Eles vinham
para os anjos. Isso agrada aos pais e melhora a pro- recobrir as noções de espanto e de iluminação que
sódia de suas vozes, o que tem como consequência tanto tinham interessado Freud (1940) no lugar da
desencadear um olhar do bebê para o pai. Então, terceira pessoa do dito espirituoso. Eu as retomara
com a voz embargada de emoção, o pai repete várias a propósito de meus tratamentos psicanalíticos de
vezes, totalmente espantado: “Ele está me olhando! Ele uma criança autista (Laznik, 1997).
está me olhando! Ele está me olhando!”. A alegria do pai Como a mãe de Jérôme se dirige ao filho
se ouve claramente. De repente, o bebê emite um com uma voz carregada dessa prosódia, ele não
som em direção ao pai que, imediatamente, muda de pode deixar de olhá-la; isso me levou a pensar em
registro e lhe pergunta “O que você quer dizer?” Risos uma dimensão de voz de sereia na voz da mãe. Mas,
de felicidade sacodem a voz da mãe e do pai. Mas desde que esse bebê vê o rosto de sua mãe, ele se
esse último aceita muito bem quando o bebê quer põe a chorar. Por quê?
cortar a relação; ele concorda com seu filho. Quais hipóteses podemos fazer aqui?
Os risos dos pais de Jérôme, que olha para Tratar-se-ia de uma dificuldade com a intermoda-
seu pai e gorjeia, apresentam as subidas e descidas lidade, de passar do ouvido ao visto? Mas com seu
típicas da surpresa e da alegria, o que constitui a pai, dez minutos antes, o bebê não apresentou essa
curva do que se nomeia prosódia do manhês. Como dificuldade. Teria ele visto algo de tão desagradável?
posso estar certa disso? Talvez os traços do rosto materno? As preocupações
A gravação dessas vozes – como a de vários diante de um bebê que não responde se apagam
outros pais de bebês da coorte de Pisa – foi objeto talvez mais lentamente num rosto do que em uma
de uma pesquisa multidisciplinar. A psicolinguista voz. Não esqueçamos a leve ruga de amargura que
Erika Parlato5 colabora conosco. Ela estudou as começava a despontar no canto de sua boca.
gravações da prosódia das vozes dos pais de Jérôme Três dias mais tarde, a mãe conseguirá entrar
comparando-as com as de pais italianos que nossos em um longo intercâmbio com seu bebê. Os dois
colegas de Pisa lhe forneceram. Ela afirma que cada estão deitados na cama do casal e o bebê deve fazer
vez que Jérôme olha, é em presença de uma prosó- um esforço para se voltar para o rosto materno, par-
dia específica, descrita pelos psicolinguistas como o cialmente oculto pelo colchonete no qual ele repousa.
motherese ou, mais recentemente, o parentese, pois os É possível que a posição bem relaxada da mãe tenha
pais também o praticam muito bem. Em português contribuído para a qualidade de sua prosódia, mas
isso se traduz por manhês e paiês, como dizemos o pode-se pensar também que a posição do rosto
francês ou o inglês. materno impedia uma leitura muito fina de ínfimos
Dez minutos mais tarde – como está indi- traços de preocupação nesse rosto. Desde que o bebê
cado na película de vídeo – a mãe toma seu bebê lhe responde, olhando-a, a surpresa e a alegria da mãe
nos braços e se põe a falar com ele. Sua voz está irrompem, melhorando ainda sua prosódia. Ela lhe
ainda impregnada pela surpresa e pela alegria do diz um monte de palavras gentis, declarando-lhe seu
acontecimento que acabou de se produzir, o que se amor de todas as formas possíveis e ri de alegria com
traduz nas curvas prosódicas de sua voz. as respostas do filho. Mas, embora possa retomar em
Com efeito, desde um de seus primeiros eco algumas de suas vocalizações, ela não se permite
artigos sobre a prosódia do “manhês”, A. Fernald falar no lugar dele na primeira pessoa do singular.
(1982) fizera observar que esta forma particular de Ela não lhe atribui frases que se endereçariam a ela, a
prosódia em uma mãe não se encontrava praticamente mãe. Por causa disso, seria talvez necessário falar de
nunca na linguagem de um adulto se dirigindo a um pseudo protoconversação. Essa dimensão louca que

5
Ela trabalha na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e faz sua tese de Doutorado em Psicolinguística
com o Professor Dupoux do Laboratoire de Sciences Cognitives da École Normale Supérieure de Paris.

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consiste em falar no lugar do outro – no sentido de uma alegria para ela, é preocupante. Aí não estamos
Winnicott (1978), da loucura necessária das mães – mais no registro da passivação pulsional, mas no da
talvez só seja possível em condições de segurança da reversão pulsional, e é esse registro que falta nos
capacidade materna. Um bebê que não responde deve filmes dos bebês que se tornam autistas. Eu poderia
colocar sua mãe à prova duramente. mesmo dizer que a passivação pulsional é justamente
Mas, sobretudo, Jérôme não apresenta, em o que alguns demonstram.
todo o filme de que dispomos, nenhum sinal do ter- Do ponto de vista da mãe, ela não precisa
ceiro tempo do circuito pulsional. Não somente não recuar de uma posição de gozo libidinal erótico
busca se fazer ouvir como, mesmo estimulado por para uma posição mais fálica narcísica. Ela só tem
sua mãe, não procura se fazer o objeto da pulsão dela. essa última.
Uma cena instrutiva é aquela em que, no Os pais de Garance, que atendo, traduzem-
trocador, a mãe brinca de estimular seu filho. Ela lhe me sua capacidade de passivação dizendo que, quando
mostra como seu pezinho é apetitoso, chegando até bebê, ele gostava de pequenas massagens e carícias
a lho oferecer para provar, o que o bebê aceita, não após o banho, o que é bem evidente nos filmes que
sem certo prazer. Mas não lhe viria realmente à ideia eles me emprestaram. Mas não há nenhum vestígio
oferecer esse pezinho à boca de sua mãe, contudo de reversão pulsional em seus filmes. Nunca.
tão próxima. Não é um bebê que goste de se fazer De que se trata esse gozo fechado do bebê?
mordiscar pelo Outro. Ele não parece se interessar Temos esboços disso na oposição que Freud
pelo que poderia dar prazer a este outro. Citamos (1905) propõe desde os Três Ensaios para uma Teoria
mais acima Trevarthen: se os bebês nascem com a da Sexualidade entre narcisismo do Ich (sou obrigada a
motive for the motive of the other, não é o caso dos bebês deixar aqui o alemão porque moi [eu, mim mesmo], em
que se tornam crianças com autismo, que assistimos francês, remete a uma instância imaginária que supõe
nos filmes familiares. já o estádio do espelho instaurado) e narcisismo do
No plano metapsicológico, não falo mais objeto. Entretanto, há muitos anos, eu não conseguira
do terceiro tempo do circuito pulsional como sendo responder à questão colocada por um grupo de traba-
aquele da passivação pulsional. Compreendi que para lho de Denise Traunschweig (1971) sobre a distinção
Lacan há uma pequena distinção, muito útil para a entre narcisismo e pulsão em Lacan. A questão foi
clínica dos bebês que se tornam autistas. Ele fala formulada a partir do esquema ótico e do objeto a. Na
de uma “voz mediana”, como se expressa Émile época, eu não tinha clínica diferencial para colocá-la
Benveniste (2008), voz mediana entre a atividade a trabalho, apesar de transitar por esses elementos
e a passividade, não é a passivação pulsional, é o teóricos, razão pela qual tinha sido convidada para
“se fazer”, é o que permite distinguir um registro esse grupo de leitura sobre Lacan. Há cinco anos,
puramente narcísico de um registro pulsional, o um grupo lacaniano no Brasil6, discutindo um artigo
que infelizmente existe em certos casos. Jérôme é que eu escrevera sobre a pulsão em Lacan (Laznik,
um exemplo disto. Num trocador, um bebê pode se 1994), lembrava-me que eu ressaltara ali que pulsão
deixar beijar por sua mamãe e mesmo mostrar um de vida e pulsão de morte são para Lacan uma mesma
rosto completamente satisfeito com o que se passa, biface (como a banda de Moebius) e que ele coloca o
sua capacidade de passivação parece não ser ruim. dualismo do lado de uma oposição entre o campo das
Entretanto, o fato de que em nenhum momento ele pulsões (que são todas sexuais e parciais) e o campo
tenha reversão pulsional, que em nenhum momento narcísico do amor. Eles me pediam para demonstrar
ele tome as rédeas da situação, para se fazer ele clinicamente essa questão. Eu lhes disse que não era
mesmo objeto da mãe e dar seus dedos da mão para capaz de fazer isso. Pois bem, foi um pequeno Matteo,
a dama chupar – e já que estamos aí, por que não que tinha deixado minha amiga Sandra Maestro, da
os pés também – para ver se isso lhe agrada, se é equipe de Pisa7 extremamente perplexa, que me deu

6
Trata-se da Escola Lacaniana de Vitória, no Espírito Santo, que tinha trabalhado todo o ano sobre a questão da pulsão e, entre
outros, sobre meu artigo “Por uma teoria Lacaniana das pulsões” (Laznik, 1994).
7
Mas também psicanalista da IPA, aluna de Frances Tustin. Não esqueçamos que, em inglês, pulsão foi oficialmente traduzida por
instinto na Standard Edition, o que não simplifica em nada para nossos colegas anglo-saxões.

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a resposta. Este bebê não correspondia ao que ela A passagem entre os dois se faz no Seminário
via, habitualmente, nos bebês que se tornavam em XX, quando, a propósito da pulsão, Lacan fala de
seguida autistas. Ele era um magnífico caso de uma fisgamento do gozo no campo do Outro, no terceiro
construção fálica narcísica sem que, paralelamente, tempo do circuito pulsional.
se construísse a questão pulsional. Nestes casos, O que Lacan não sabia na época do Seminário
o quadro sintomático só desaba no segundo ano XI (1964) é que a semiótica de Pierce (que ele pedirá
de vida. Trata-se de uma clínica dura para analisar a Récanati para lhe expor) o levará a uma teoria da
humanamente, no plano subjetivo, transferencial. função que nos permite avançar que é no momento
Diante desses filmes, somos confrontados com um mesmo em que esse gozo é fisgado no campo do
bebê que parece responder à voz de seus pais e ser Outro (o que supõe, para que haja gozo, que um
muito sensível aos elogios narcísicos fálicos de seu outro em carne e osso queira realmente se prestar a
pai e que será, contudo, incapaz de ter um movi- ocupar esse lugar), que é apenas aí que o campo do
mento espontâneo qualquer na direção deles, desde Outro pode se constituir e, retroativamente, a função
que, tendo adquirido a marcha, eles esperarão, com sujeito propriamente dita.
razão, que o bebê se movimente na direção deles. Este último Lacan, marcado por Frege e,
Os ensinamentos metapsicológicos que se podem sobretudo, pela semiótica de Pierce, parece-me ser
colher são interessantes. As pesquisas com os recém- o único caminho metapsicológico possível para dar
nascidos de algumas horas mostram um toquinho conta do impasse em que os analistas se colocaram –
de gente de proto-sujeito com uma apetência abso- a propósito do autismo – na busca desvairada por
lutamente extraordinária para direcionar-se ao que uma causalidade no aparelho psíquico da mãe capaz
convém ao outro. Eles vão procurar o outro, por eles de dar conta do autismo do filho.
mesmos. Eles empurram para que haja Outro. Isso Além disso, no campo psicanalítico, isso
parece dar razão aos mais loucos devaneios da bruxa permite pensar uma clínica de um gozo fechado à
Dolto, mesmo que suas conceituações fiquem longe mãe, com seu corolário, a não instalação do campo
do rigor que os lacanianos têm o direito de espe- do Outro.
rar. Enquanto que os filmes dos recém-nascidos, Lew fala de
futuros autistas, mostram neles uma determinação
selvagem para recusar o contato. Pode-se trabalhar compactação do gozo no autismo [...] o sujeito
isso, mas é preciso arte e não qualquer voz, a da autista está compactado em seu narcisismo,
sereia e não outra. identificado com o Um, sem Outro distinguí-
Antes de descrever uma cena com o vel. Se há realmente um gozo para o autista, é
pequeno Matteo, vejamos sob quais aspectos da então um gozo do corpo: o interesse, quando
teoria de Lacan pude me apoiar. Lacan retomará existe, é pela comida, pela troca de roupa, pelo
esta questão de um gozo fechado à mãe enquanto movimento estereotipado... Dir-se-á então que
Outro no Seminário XX, a propósito da impossibi- o gozo corporal do autista é, contudo, fálico
lidade da relação (proporção) sexual, ligando-a ao – o corpo inteiro tendo então valor de falo?
gozo do órgão fálico. René Lew (2004), partindo Eis aí uma posição sustentável, pelo menos se
desse desenvolvimento lacaniano, proporá opor o falarmos do autismo próprio à esquizofrenia.
gozo fálico ao gozo do Outro. Desde então, para Seria possível defendê-la para o autismo infantil
ele, o autismo seria um sucesso perfeito dessa não primário? (Lew, 2004, p. 12).
relação, pois o autista estaria preso a um gozo fálico
de seu próprio corpo. Como toda hipótese, ela é Vejamos como isso se passa na clínica de
simplificadora, mas tem o mérito de reintroduzir Matteo que nos ensinou tanto. Como Jérôme, Matteo
a questão do gozo do Outro como um elemento é, nos primeiros meses de vida, um bebê bastante
constitutivo do aparelho psíquico do filhote de inexpressivo, que seus pais solicitam muito. Mas,
homem. contrariamente a Jérôme, ele não chega a prejudicar
Ela permite cruzar novamente esse gozo a prosódia de sua mãe, pelo menos quando o pai
do Outro S( ), inscrito no grafo do desejo, com o está lá. A voz de sereia da mãe tem ganho de causa.
registro mesmo da pulsão e inscrito também nas Ela consegue ultrapassar o muro da indiferença de
fórmulas da sexuação no Seminário XX. seu filho e vencer a atração dele pelo móbile das

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abelhas. Exatamente o mesmo que atrai tanto Jérôme terceiro tempo da pulsão, tempo em que o Ich – no
aos 2 meses e meio! Matteo, por sua vez, prefere a caso, o bebê – vai fisgar o gozo no campo do Outro.
voz de sua mãe. É verdade que ele já tem 6 meses O que a clínica do caso de Denys deveria
e que sua mãe tem uma voz que canta os louvores me ensinar na sequência é que não basta que o bebê
do filho adorado que, desde aquela manhã, já sabe queira ir atrás para fisgar esse gozo. É preciso que ele
rolar sozinho no berço! O que ele vai mostrar ao seja bem-sucedido, que alguém queira realmente dei-
papai, “não é, meu tesouro?” O tesouro está chuffed, xar seu gozo ser fisgado, instaurando assim o campo
como diria Trevarthen, de ser a este ponto a fonte do Outro. Mas isso será assunto de outro artigo.
do orgulho narcísico dessa mãe. E ele a acresce. Ele
repete e repete sua exibição narcísica.
Posso compreender que ao comparar REFERÊNCIAS
essas duas cenas, aparentemente tão diferentes,
que ocorrem no mesmo contexto, mesmo que com Benveniste, E. (2008). Problemas de linguística geral 1.
três meses de idade de defasagem, meus amigos São Paulo: Pontes.
de Pisa tenham chegado a falar de duas categorias
Braunschweig, D. (1971). Eros et Antéros, réflexions
distintas de autismo. Essa da qual Matteo faria parte
psychanalytiques sur la sexualité. Paris: Payot.
apresentaria distúrbios principalmente no segundo
ano de vida. Fernald, A., & Simon, T. (1982). Expanded intonation con-
Uma outra cena, entre Matteo e seu pai, tour in mother’s speech to newborns. Developmental
parece aí também lhes dar razão. Matteo tem 10 Psychology, 20(1), 104-113.
meses e meio e já é capaz de ficar de pé, sozinho em
Freud, S. (1940). Le mot d’esprit et ses rapports aec
seu berço, estimulado pelas palavras do pai, que o
l’inconscient. Paris: Folio Essais.
encoraja como um treinador faria com um campeão
esportivo. O bebê vai se levantar, se manter sobre Freud, S. ([1905] 1972). Três ensaios sobre a teoria da
suas perninhas, fazer esforços intensos para corres- sexualidade. Rio de Janeiro: Imago.
ponder à ereção narcísica fálica que o pai propõe de
Lacan, J. (1979). Seminário, livro 11: Os quatro concei-
sua imagem. Não sem prazer. Até que a dor física
tos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro:
em suas perninhas fica muito forte e ele cai. Ele se
Jorge Zahar.
regozija de ser o falo erigido, no que não é infeliz-
mente perverso – se não vai em direção ao pai, é Lacan, J. ([1972-1973] 1985). Seminário 20: Mais, ainda.
porque se trata de um gozo compacto, fechado para Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
seu pai também. Desse último, ele não tem cura. O
Lacan, J. (1992). Seminário, livro 17: O avesso da psi-
que se verá muito rápido no mês subsequente. Ele
canálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
não se direciona para ele. Nem para ninguém, aliás.
E as vozes se calam. E a ereção narcísica desaba. O Lacan, J. (2009). Seminário, livro 18: De um discurso
que meus amigos chamam de “entrada no autismo que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
no segundo ano de vida”.
Laznik, M. C. (1994). Por uma teoria Lacaniana das pul-
O que esses dois bebezinhos têm em
sões: Dicionário Freud-Lacan. Salvador: Ágalma.
comum é que tanto um quanto o outro não desen-
volveram uma sexualidade infantil em seu primeiro Laznik, M. C. (1995). Vers La parole: Trois enfants
ano de vida, no sentido freudiano do termo – e a autistes em psychanalyse. Paris: Denoël.
concepção lacaniana de uma dualidade opondo o
Lew, R. (2004). Fonction de lajouissance dans
campo das pulsões propriamente ditas ao campo
l´autisme. Texto apresentado nas Jornadas
narcísico do amor é muito útil para compreender
Préaut/ALI, Autisme, actualités des différentes
esses casos. Qual é a diferença entre Jérôme e Matteo?
recherches, Paris.
Esse último engana no primeiro ano de vida, pois
desenvolve o campo fálico narcísico graças às imensas Peirce, C. S. (1960). Collected papers. Harvard: Harvard
qualidades acústicas da voz de seus pais. University Press.
Esse gozo, fechado à mãe, esse gozo fálico
Porge, E. (1990). La frérocité. Revue Littoral, 30, 11-30.
(JΦ) compacto, remete-me ao não desdobramento do

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Santo Agostinho. (1982). Confessions, VII. Paris: Seuil.


Trevarthen, C. (2002). Autism, sympathy of motives and
music therapy. Enfance, 54(1), 86-99.
Trevarthen, C. (2005). First things first: Infants make good
use of the sympathetic rhythm of imitation, without
reason or language. Journal of Child Psychotherapy,
31(1), 91-112.
Winnicott, D. W. ([1956] 1978). Da preocupação materna
primária. In D. W. Winnicott. Da psiquiatria à psica-
nálise (pp. 491-498). Rio de Janeiro: Francisco Alves.

Recebido: 23/03/2009
Received: 03/23/2009

Aprovado: 04/05/2009
Approved: 05/04/2009

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