Béatrice Picon-Vallin - Tradições e Inovações Nas Artes Da Cena PDF
Béatrice Picon-Vallin - Tradições e Inovações Nas Artes Da Cena PDF
Béatrice Picon-Vallin - Tradições e Inovações Nas Artes Da Cena PDF
B éatrice Picon-Vallin
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ais do que nunca, em período de muta- tância da história, do estudo das tradições e da
ção e não apenas de crise que é o nosso, a inovação no interior dessas tradições e de anali-
história das artes do espetáculo é capital sar em seguida os novos caminhos que se abri-
para o artista de teatro. De modo mais ram ontem e que se oferecem atualmente às ar-
amplo, o estudo da história é capital para tes da cena, graças às invenções técnicas e àquilo
todos, pois “os países sem lenda estão conde- de hoje se chama de NTIC (novas tecnologias
nados a morrer de frio”, como dizia o poeta da informação e da comunicação).
francês Saint Pol Roux; Gabriel Garcia Marques
insiste, por sua vez, na necessidade de um co-
nhecimento aprofundado da história, tão com- A situação do teatr
teatroo
plexa e tão trágica de um país como a Colôm-
bia, e mesmo da América do Sul. Não podemos Gostaria de constatar no entanto, antes de tudo,
saber para onde vamos – nem ter uma leve idéia, que a arte, hoje tão ameaçada por políticas pú-
nem estabelecer objetivos – se não sabemos de blicas que dela se desinteressam (na França, na
onde viemos. Europa e em outros continentes), talvez ocupe
Nessa perspectiva, fazer história do teatro um lugar novo em nosso mundo. Desde 1996,
não é fazer um trabalho reacionário – cultivar a por ocasião de um congresso em Lisboa, o en-
nostalgia de uma hipotética Idade de Ouro – cenador americano Peter Sellars afirmava: “Es-
mas tentar voltar os passos sobre os passos da- tou feliz de viver numa época em que, quase
queles que nos precederam, seja para buscar a pela primeira vez no Ocidente, a arte é verda-
ruptura com pleno conhecimento de causa e com deiramente necessária. Assiste-se a uma tal der-
toda consciência, seja para continuar de outra rocada da sociedade, a uma tal crise política, que
forma, seja para ir a outro lugar. Não retornar a, as pessoas têm uma verdadeira necessidade de
mas partir novamente de, em um movimento ao comunicação (...) Graças às artes, pode-se ofe-
mesmo tempo heurístico e dinâmico. Nenhu- recer à sociedade aquilo que ela necessita e não
ma vanguarda ignorava a natureza do que des- pode mais encontrar pelo viés da política ou
truía. Trata-se portanto, aqui, de falar da impor- pela via econômica”.
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Semelhante situação de necessidade da tro, seja o teatro de rua, o teatro das salas de
arte teatral existiu sob diversos regimes totalitá- espetáculo, o teatro proveniente de projetos
rios, quando a censura, na URSS dos anos 60- interculturais, a ópera, as novas formas de tea-
70 ou na Argentina, fazia com que o teatro fos- tro nômade, aquelas provenientes da interdisci-
se, dizia-se, “tão necessário quanto o pão”. Em plinaridade – teatro-dança, teatro-circo, teatro
2008, o contexto não é mais o mesmo. Com que usa telas que parecem ameaçá-lo tanto etc.
efeito, trata-se menos de censura do que de rup- Para alguns, o teatro tornou-se, face às mídias
tura de civilização, em que os partidos políticos mentirosas, vazias e super-abundantes, um meio
perdem importância, em que o desemprego au- de informação alternativo. Assim acontece com
menta (o economista Jeremy Rifkin evocou até Sellars que, com Les Enfants d’Héraklès[Os filhos
mesmo o desaparecimento do trabalho), em que de Hércules], apresentado em Paris em 2002 e
o fosso entre ricos e pobres não cessa de se em diversas cidades da Europa, mostra, por
aprofundar. E em que se assiste, com o desen- meio da tragédia grega, a situação dos exilados,
volvimento das indústrias da comunicação, à dos imigrantes ilegais na Europa, fazendo com
absorção progressiva e cada vez mais voraz da que cada apresentação seja precedida de uma
cultura e da arte pelo entretenimento, o culto discussão entre o público, testemunhas e espe-
das “emoções”, e a imediatez, a eficácia do ins- cialistas, e encerrada com projeções de filmes.
tantâneo. A mundialização, a globalização das A encenação pode ser definida como a
indústrias culturais opõem-se à especificidade organização de um tipo de endereçamento ao
dos fenômenos essenciais que caracterizam público a quem se escolhe dirigir-se. Daí a im-
nossa época: a interculturalidade e a interdisci- portância da questão do público. A história nos
plinaridade nas quais as artes e as culturas se mostra que o teatro muda, evolui, transforma-
interrogam, se completam, se enriquecem, se se quando o público muda. O teatro revolucio-
interpenetram sem se formatar mutuamente1. nário russo foi um grande teatro porque havia
Por outro lado, observa-se que na gera- um grande público, novo, enorme, curioso e
ção jovem, fazer teatro não acompanha mais, receptivo. Na América Latina, o público poten-
como em 1968, o engajamento político, a mili- cial é imenso, como puderam perceber os atores
tância no seio de um partido, mas os substitui; de teatro de rua europeus que foram ao Festival
fazer teatro com exigências artísticas e sociais de Teatro de Bogotá em 2008, entusiasmados
tornou-se um meio de colocar em prática uma com o número impressionante de espectadores
política concreta, real, bem diferente da políti- que acompanhavam suas apresentações, inabi-
ca tagarela e separada da realidade concreta que tual para eles...
os políticos praticam. Basta ver os grupos de te-
atro que trabalham em bairros desfavorecidos,
como é o caso do Nós do Morro na favela do Fazer a história do e dos teatro(s)
teatro(s)
Rio, dirigido por Guti Fraga. Minoritário e frá-
gil diante dos gigantes da indústria do entrete- Diante desses elementos, a transmissão da his-
nimento e das TVs Globo do mundo, o teatro tória e das experiências do passado permanece
aparece como o último espaço público de encon- essencial. O saber sobre a história do teatro é
1 Prefiro esse termo a “multiculturalidade”, que evoca uma espécie de pulverização, enquanto a
interculturalidade implica uma troca, o desenvolvimento de relações recíprocas. Je préfère ce terme à
celui de “multiculturalité”, qui évoque une sorte d’éclatement, alors que l’interculturalité implique un échange,
le développement de relations réciproques.
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apropriação de uma herança comum, e todo têm acesso direto à sua arte, e à sua história, ao
engajamento no presente implica paralelamen- contrário dos pintores, músicos ou escultores,
te um diálogo com o passado e um olhar para o que têm seus museus? Porque é uma arte em
futuro, pois o contemporâneo não é, em nenhum dois tempos que implica a conservação de mui-
caso, um puro presente. A história do teatro é tos objetos diferentes e procedimentos de expo-
transmitida de diversas maneiras e a transmisão sição mais complexos, sem que a obra em si
oral é, sem dúvida, a mais importante para o mesma esteja presente? O museu é uma insti-
métier. Ela está fixada na escrita – arquivos tex- tuição necessária ao desenvolvimento do teatro.
tuais, livros, memórias, obras de encenadores, Apesar de o teatro ser efêmero por definição,
pesquisadores, notas, artigos etc. A elas se acres- não é por isso que deixa de dispor de uma me-
centam as fontes iconográficas, depois audiovi- mória: o espetáculo desaparece, mas deixa tra-
suais, imagens desenhadas, pintadas, gravadas, ços tangíveis e mnésicos. A tarefa de hoje, nesse
fotografias, filmes, videos, DVD... É sintomá- período de mutação, é de assumir o estudo do
tico ver que uma companhia como o Théâtre passado – afinar o conhecido e se interessar pelo
du Soleil, que se interessou, em seu processo de desconhecido – que pode ajudar a inventar o
trabalho, pela história do teatro, faça questão futuro do teatro.
hoje de preservar elementos de sua própria his- Porque a história do teatro é um baú de
tória, organizando arquivos, filmando os espe- tesouros. Quando S. Eisenstein salvou do de-
táculos, digitalizando documentos. O mesmo saparecimento os arquivos de Meyerhold fu-
interesse é encontrado no grupo Galpão em zilado como “inimigo do povo”, escreveu um
Belo Horizonte. poema sobre esses arquivos intitulado “O te-
Mas, por um lado, a história do teatro souro”. Graças à sua coragem, hoje é possível
está longe de ser completa. Ela tem buracos, la- estudar e analisar esse teatro essencial, que traz
cunas, devidas ao desinteresse e aos desapareci- consigo em germe todo o teatro do século XX.
mentos, como o de Meyerhold, fuzilado, depois Caso contrário, teria havido uma perda irrepa-
apagado durante vinte anos de toda a história rável. Com certeza, o teatro está sempre no
oficial e que ainda não retomou, de fato, seu hoje, no presente. Mas cada espetáculo, cada ato
lugar na memória coletiva do teatro russo, eu- teatral se situa no cruzamento das três dimen-
ropeu e mundial, com suas pesquisas e suas sões da temporalidade ( passado, presente, fu-
questões radicais. Uma história global da ence- turo), ou seja, o tempo da herança, o do vivido
nação na Europa está por ser feita; a de um ar- e o da transmissão. Ele vive da tensão entre es-
tista como Seki Sano, japonês que passou pelos ses três tempos. Citemos Eugenio Barba que
laboratórios de Meyerhold em Moscou, em se- gosta de dizer que “a história não é apenas o re-
guida teve que se exilar no México e de lá via- servatório do antigo, ela é também o reservató-
jou pela América Latina, ainda está longe de ser rio do novo”...
elucidada; e a história do teatro de certos países Todos os grandes reformadores da cena
como a Colômbia, ainda que extremamente do século XX, Appia, Craig, Fuchs, Meyerhold,
rica, também não foi realizada. No tocante a Brecht, Kantor, mas também Mnouchkine e
essas lacunas, cabe à pesquisa reunir os univer- Barba procuraram as leis do teatro, as do espaço
sitários e os praticantes do teatro, testemunhas e do movimento no estudo das grandes formas
ou atuantes. do passado teatral, do autêntico “teatro teatral”:
Por outro lado, há uma questão curiosa- commedia dell’arte, teatros asiáticos, balagan ou
mente candente no período atual. Um certo teatro de feira, formas do teatro popular refugia-
número de países, na Europa e no mundo, fun- das no circo. Mais próximo de nós, G. Strehler
daram museus do teatro – mas não a França, desde 1947 estuda a commedia dell’arte e faz re-
por exemplo. Por que as pessoas de teatro não nascer em Arlequim servidor de dois amos a más-
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mas de se reapropriar dele, integrando técnicas hold, ele pôde se dar conta de que possuía um
emprestadas de outras tradições como as do tesouro, sua tradição, e que havia encontrado
ballet clássico com suas portés,2 por exemplo. no GOSTIM, longe de seu arquipélago, os se-
Durante a turnê do espetáculo em Tóquio em gredos do teatro kabuki5.
2001, os mestres de Bunraku assistem à re-
presentação, e em cartas enviadas ao Soleil afir-
mam ter aprendido mais com o Théâtre du A inovação tecnológica
Soleil sobre sua própria técnica, suas expressões nas artes da cena
corporais e sobre essa forma dramática antiga, “Em arte não há técnicas pr oibidas,
proibidas,
do que ao estudar sua tradição pura. Assim, após há somente técnicas mal utilizadas”
utilizadas”,,
um longo e doloroso trabalho de nove meses V. Meyerhold
sem concessões, o Soleil, grupo ocidental que
reúne atores de várias nacionalidades, é capaz A inovação artística depende da personalidade
de injetar novamente em artistas japoneses de- do artista, do contexto político, social e pessoal
sejo e esperança em relação às suas formas as no qual ele vive e do contexto técnico, das in-
mais patrimoniais3. venções tecnológicas que modificam o ambiente
A experiência de Seki Sano, jovem dire- da vida e da criação artística. Sabe-se bem como,
tor japonês no Toranku gekijô, grupo militan- por exemplo, a utilização da eletricidade a partir
te, que deixou seu país para estudar em Mos- de 1880 transformou em profundidade as con-
cou o novo teatro proletário é interessante. Ele dições de criação cênica e as condições da visão
passa a ser assistant-laborantin 4 no GOSTIM, o do espectador. O cinema e as projeções na cena
teatro de Meyerhold e observa como o encena- permitirão igualmente aos espectadores ver de
dor russo se apóia nos princípios do Kabuki outro modo, com pontos de vista diferentes.
para construir um teatro russo político e con-
temporâneo. O grupo de kabuki d’Ichikawa
Sandanyi II, em turnê em Moscou em 1928, Inovação e história
aliás, reconhecerá publicamente a proximidade
entre o teatro meyerholdiano e o seu, sem que Acredita-se freqüentemente que a aparição das
tenha havido nenhuma cópia formal. E Seki telas em cena data de hoje, ou pelo menos dos
Sano poderá escrever, anos depois da tragédia anos 1980. Ora, ela data na realidade do nasci-
de 1939-1940 – a execução de Meyerhold, sua mento do cinema6. A. Appia muito cedo ima-
própria fuga da URSS, a recusa do Japão em gina o papel desempenhado por projeções que
acolhê-lo e sua instalação no México, de onde tornarão a luz realmente ativa, e A. Artaud su-
ele vai viajar por toda a América Latina e parti- gere empregos muito precisos de projeções em
cularmente na Colômbia – que, graças a Meyer- sua correspondência com encenadores, assim
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7 Erwin Piscator , “La technique, nécessité artistique du théâtre moderne”, in Le Lieu théâtral dans la
société moderne, études réunies et présentées par D. Bablet et J. Jacquot, Paris, Editions du CNRS,
1969, p. 179.
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perfícies de projeção, nas paredes e no teto, evo- ma, com suas possibilidades de montagem e
cando, ao mesmo tempo, os planos do “Teatro trucagem. Na Laterna Magika, cena mutimidia
Total” de W. Gropius e E. Piscator, também vinculada ao Teatro Nacional de Praga antes de
nunca realizado, assim como determinados dis- se tornar autônoma, Le cirque enchanteur [O cir-
positivos futuros de Jacques Polieri. co encantado] (1977) foi representado mais de
Nos anos 60 a vanguarda americana pro- 2500 vezes e ainda está em cartaz. Quanto ao
põe instalações, performances “intermidia” nas polyécran, é “um continuador audacioso” de
quais o ator e o dançarino desafiam a imagem; Napoleão, tríptico de 1925 de Abel Gance, se-
isso assume diversas formas: projeções em um gundo as próprias palavras do realizador, que
grande balão sonda, nas costas dos atores, expe- confessa nunca ter ousado sonhar com uma tal
riências de “cinema expandido”, depois de “tea- posteridade. Nele as imagens são mais numero-
tro expandido”, happenings filmicos. Em 1967 sas e as superfícies de projeção separadas, crian-
o cineasta Jonas Mekas escreve em uma revista do arquiteturas modificáveis. Tanto a Laterna
de dança: “A dança, a música, a poesia, o teatro, Magika quanto o polyécran visavam a espetácu-
a escultura, a arquitetura, o canto, o cinema es- los de entretenimento para um público amplo.
tão em um período de transição; interferem de Mas em 1965, integrando em Intolleranza [In-
tal modo que eles redescobrem de maneira nova tolerância] (ópera atonal de Luigi Nono apre-
sua verdadeira e própria identidade; todas as ar- sentada no Group Opéra em Boston) paredes
tes tornaram-se multimidia. Falamos de cine- de luz, projeções múltiplas e uma projeção
ma expandido (expanded cinéma), de escultura televisual em circuito fechado15, Svoboda efeti-
cinética, de pintura tridimensional. O cinema va um teatro político.
tem tudo a fazer com a dança. A dança tem tudo É perturbador constatar que há poucas
a fazer com o cinema”. referências na França à obra de dois grandes pre-
cursores-visionários: o tcheco Josef Svoboda e o
francês Jacques Polieri. A partir de seu mundo
Svoboda e Polieri fechado pertencente ao bloco soviético, Svobo-
da acabará sendo internacionalmente reconhe-
É em Praga em 1958 que Josef Svoboda inven- cido, mas a França o acolherá muito pouco.
ta as técnicas da Laterna Magika apresentada Polieri, por sua vez, será mais requisitado no es-
na exposição de Bruxelas e mais tarde as do trangeiro do que em seu próprio país.
polyécran14. Ele as aplicará ao teatro. A Laterna Se um, autor de cerca de 700 cenografias
Magika combina numa composição sincrônica, e inventor de procedimentos técnicos como o
plástica e sonora, a interpretação do ator ou famoso projetor “svoboda”16 e a Laterna Magi-
dançarino, a cena cinética (esteiras rolantes, tor- ka, permanece essencialmente como um arte-
nos), som estereofônico, telas móveis e o cine- são do teatro, trabalhando junto aos maiores
14 Uma tradução possível seria multitelas. Trata-se de dispositivo para representação de imagens formado
por uma série de telas constituídas por cubos que se inclinam e cujas faces se deslocam ligeiramente
umas em relação às outras, gerando imagens em constante movimento. Cf. <www.medienkunstnetz.de/
works/polyecran>. Disponível em 27/11/09 (N. da T.)
15 Em relação a esse assunto, cf. Denis Bablet, Josef Svoboda, Lausanne, L’Age d’Homme, nouvelle édition,
2004.
16 Cortina de luz constituída por uma série de lâmpadas de baixa tensão com feixes cerrados.
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a frontalidade da cena, faz explodir seu caráter vem simplesmente de didascálias, papel básico
compacto, a faz sair de sua caixa e a multiplica ilustrativo, nos fazem também penetrar em um
na platéia. Mais ainda, Polieri abala o espaço mundo mais íntimo, o mundo interior dos per-
teatral todo, de modo concreto e não metafó- sonagens. Ou elas nos fazem ver acontecimentos
rico. O palco e a platéia se tornarão móveis. ou circustâncias impossíveis de serem mostra-
Ele coloca em movimento as diversas facetas do das em cena (pornografia, operação cirúrgica),
próprio prédio, em múltiplas proposições e re- ou utilizam imagens de atores captadas direta-
alizações: “palco anular” dando a volta nos es- mente, como já faziam em 1969 muitas ence-
pectadores a 360º, “platéia giroscópica”, “palco nações na Europa da grande peça de teatro
triplo”, “platéia automática móvel”, “palco e documentário sobre o processo de Nuremberg
platéia teleguiados, rotativos e modificáveis”, de Peter Weiss, L’instruction [O Interrogatório].
palco eletronico cujas superfícies são ao mesmo Nesse lugar de aparição ao qual o palco
tempo telas e superfícies neutras, permitindo de teatro pode ser assimilado, os atores são
tanto a projeção de imagens quanto tomadas como “espectros semelhantes a corpos anima-
em estúdio. dos”, “espectros falantes” e “fantasmas vãos”,
Em um manifesto de 1955, Polieri “pre- que a arte de Alcandre faz surgir em L’illusion
dizia” o que acontece hoje quando os atores, comique [A ilusão cômica] de Corneille. Meyer-
equipados com captores sensoriais, começam a hold chama o ator de “sobrevivente do país das
ser capazes de engendrar sua própria direção lu- maravilhas”, “aquele que parece ressuscitar den-
minosa ou musical, e ele anunciava que “tudo tre os mortos”. Artaud faz dele um “mediador
(era) possível”17. Assim sendo, parece se impor entre os planos de realidade”, colocando-o “no
aos artistas-inventores, aos engenheiros-artistas cruzamento entre o ser vivo e o fantasma”. Kan-
de hoje, um mergulho nas águas profundas e tor considera que há nele “qualquer coisa do
ainda pouco estudadas da história do século XX. Dibbuck, como se um fantasma tivesse se apro-
priado dele”18. Para encerrar esse resumo, cite-
mos Lepage e seu projeto de iniciar seu último
Papel da imagem em vídeo espetáculo, Elsinor, com um negro deixando o
nas cenas do fim do século XX espectador adivinhar “a presença do ator como
a de um espectro, graças à câmera infra-ver-
Se, nos anos vinte, as imagens fixas ou filmadas melha que permite atravessar a escuridão”19.
eram muitas vezes documentárias e introduzi- Quando não constituem uma simples conces-
am em cena o mundo exterior, os vídeos das são feita à moda, as imagens-artefatos que inva-
duas últimas décadas do século, quando não ser- dem o palco – lugar de aparição, como define
17 Jacques Polieri, “Le théâtre kaléidoscopique ” in Art et architecture, Aujourd’hui N°17, mai 1958,
p. 61. Cf. também B. Picon-Vallin, “J. Polieri dans l’histoire des arts du spectacle” in Autour de J.
Polieri, scénographie et technologie, BNF, colloque, 2004, p. 33-42 (edição francesa e edição inglesa),
traduzido em português em A cena em ensaios, São Paulo, Perspectiva, 2008.
18 Cf. sucessivamente: V. Meyerhold, Ecrits sur le théâtre, Tome I, pp. 246-247 ; M. Borie, Antonin Artaud
et le retour aux sources, Paris, NRF, 1989, pp. 309-310 ; T. Kantor, in Théâtre/Public, 1991, n. 97,
p. 68. O dibbuck na cultura judaica é um morto que investe o corpo de um vivo.
19 Cf.” Robert Lepage et Elseneur”, entretien avec I. Brochard, in Nov’art, n° 20, juin-septembre 1996, p.
38. Cf.” Robert Lepage et Elseneur”, entretien avec I. Brochard, in Nov’art, n° 20, juin-septembre
1996, p. 38.
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Seria pena relegar apenas ao entreteni- mando o papel antigo do teatro que é o de pro-
mento (parques de atração, filmes em 3D, Se- por enigmas, fornecer a energia para afrontá-los,
cond Life pela internet) esses novos instrumen- e de acionar a dupla animado/inanimado – em
tos. Os canadenses avançam rapidamente nesse ação há muito tempo no funcionamento da
campo. É o caso de Robert Lepage que inter- dupla homem/marionete, boneca, fantoche
preta sozinho Hamlet, conduzindo um duelo (vide os espetáculos de marionetes com seus ma-
com seu duplo filmado com câmera infra-ver- nipuladores, O inspetor geral de V. Meyerhold,
melha. É o caso do grupo 4D Art que, em Ani- ou os espetáculos de T. Kantor).
ma, faz atuar um ator munido de captores dis- A questão que, a partir de agora parece
simulados sob um amplo casaco, que pilota essencial para todos aqueles que tratam da pro-
tecnicamente vinte figurantes virtuais que apa- jeção de imagens digitalizadas em cena, é for-
recem graças à interação entre o ator-técnico e mulada por Fabio M. Iaquone, videasta e cola-
o técnico em vídeo. Figuras nebulosas, fantas- borador de encenadores como G.B. Corsetti, R.
máticas são projetadas em paredes de vidro, Wilson. Bastante preocupado com a qualidade
ectoplasmas que permetem a irrupção do invi- da imagem vídeo em cena, ele mesmo altera os
sível em cena, ou fazem perceber uma possível parâmetros de sua câmera para otimizá-la, estu-
co-existência de dois mundos. Em Les Aveugles dando a técnica a partir do seu interior, para
[Os Cegos] de Maeterlinck, cujo subtítulo é poder melhor utilizá-la artisticamente: cada se-
“fantasmagoria tecnológica”, os doze persona- gundo de imagem vídeo no teatro é um traba-
gens da peça foram ensaiados por dois atores, lho de uma precisão exigente e de muito fôle-
um homem e uma mulher. Eles foram filmados go. A utilização de imagens em cena faz surgir a
enquanto interpretavam o texto; depois, uma questão dos artistas-engenheiros e na Itália Fa-
máscara branca de seus rostos foi fabricada, bio Iaquone trabalha em vários laboratórios,
moldada sobre eles. As imagens em vídeo fo- entre os quais o Laboratorio di Compositione,
ram em seguida adaptadas ao volume dessas Musica e Spettacolo24. Hoje diretor teatral, ele
máscaras, tecnicamente reajustadas sobre eles equaciona muito claramente a questão do su-
como uma segunda pele. A representação con- porte; se Iaquone quer e pode utilizar em suas
siste em uma projeção das imagens filmadas so- projeções a tela, o fundo de cena, o palco, as
bre as máscaras brancas na escuridão, sendo que paredes da cena, as da platéia, o tecido, diversos
cada máscara se faz presente em cinco exempla- materiais, ele considera essa experiência como
res para atingir o número previsto por Maeter- limitada. Todas essas possibilidades de hoje não
linck. A peça de Maeterlinck é assim interpre- são nada, segundo ele, comparadas ao que vai
tada a partir do princípio da presença-ausência, acontecer quando se puder, não somente como
momento fascinante: não há mais atores, mas agora, dispensar a tela, mas não mais utilizar
sim imagens “vivas” na escuridão de uma sala nenhum suporte sólido. A técnica de imagens sem
na qual estão reunidos em torno de cinqüenta suporte está quase pronta (Digital Versatile
espectadores. Nos dois casos descritos, o supor- Theatre) – utilizando o héliodisplay que possi-
te de projeção é ou um rosto humano, ou uma bilita uma projeção no ar modificado por um
parede transparente. A técnica de projeção é fluxo de hélio. Não se trata de hologramas, ape-
pré-gravada ou executada ao vivo, e nos dois sar de se ter a impressão que as imagens flutu-
exemplos ela é indetectável. Trata-se de confun- am no espaço. Vamos cair numa era de duplos,
dir, preocupar, desestabilizar o espectador, reto- aquela que Paul Valéry descreve em “A conquis-
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ta da ubiqüidade”25. E se poderá fazer aparecer tido pelos espectadores, que têm dúvidas, agra-
imagens e clones em qualquer lugar em cena e vadas pelo fato de que o dispositivo é dissimu-
na platéia. Mesmo que isso não aconteça ama- lado. Como escrevia o cineasta Abel Gance em
nhã, ocorrerá muito rapidamente, apesar de que 1962: “A junção da imagem e da realidade con-
alguns estejam longe de partilhar o entusiasmo fere à imagem e à realidade uma dimensão nova,
dos poetas ou a impaciência de F. Iaquone. uma espécie de quarta dimensão que enriquece
incontestavelmente um espetáculo. Na minha
opinião, as artes visam apenas a isso. Trata-se de
Tecnologias de ponta e inovações nas criar uma dimensão nova no espírito dos espec-
artes da cena tadores26. Sem dúvida, é preciso também lem-
brar da afirmação de Maeterlinck (cujas peças
Existem hoje muitos programas de tratamento se têm tanto prazer em montar atualmente):
da imagem e do som que possibilitam desen- “Todo ser que tem a aparência da vida sem ter
volver práticas inventivas de incrustação, apa- vida remete a poderes extraordinários”.
rição e desaparição (ver o espetáculo de H. É o poder de sugestão e do potencial ar-
Goebels, Eraridjari-djaka), que visam a um tístico dessas imagens tecnológicas que deve ser
embaralhamento de nossa percepção, a uma examinado. Ora, estamos ainda no estágio das
desestabilização de nossa maneira de sentir o experimentações, das aproximações, dos fracas-
espaço e o tempo teatrais. Transgressão dos li- sos ou das realizações incompletas. É o que
mites do íntimo, imagens enganosas, lentidões, ocorre com espetáculos que, mediante múltiplas
acelerações, transformações criadas pela proje- conexões, acontecem ao mesmo tempo em vá-
ção de rostos filmados sobre máscaras, quadros rios lugares diferentes e distantes, repercutindo
ou fotos, invenção de novas criaturas que não simultaneamente uns sobre os outros (Kilda,
pertencem nem ao teatro, nem ao vídeo, nem Théâtre Le Phénix, Valenciennes, 2005).
ao cinema, mas são criadas graças a “processos Pode ser surpreendente o fato de que,
de migração das práticas artísticas” – as modali- contrariamente ao que anunciava Piscator em
dades de utilização são infinitas. Mediante uma meados do último século, a escritura dramática
singular reviravolta, a imagem, que, segundo tenha sido até aqui pouco influenciada pela pre-
Benjamin em A obra de arte na época de sua sença das novas tecnologias e que caiba aos
reprodutibilidade técnica (1939), devia destruir encenadores optar pela sua utilização no palco.
a aura da obra de arte, talvez tenha se tornado o Em contrapartida, as tecnologias digitais trans-
último refúgio dessa aura. A reprodutibilidade formam os processos de criação. Assim, a cria-
técnica não desmerece a aura da obra, que, ao ção coletiva através da improvisação é profun-
contrário, ela contribui para reforçar. damente modificada pela possibilidade de
Assim, os personagens dos Cegos de gravar o trabalho dos atores, classificar as toma-
Maeterlinck, encenado por D. Marleau, fantas- das para ter acesso a elas facilmente em um
mas, autômatos ou mortos vivos têm uma es- computador e poder visualizá-las rapidamente.
tranha presença que contribui para reforçar a No lugar do gravador dos anos 60 que só levava
radical ausência real dos atores e o mal estar sen-
25 Paul Valéry, “La conquête de l’ubiquité” (1929), in Pièces sur l’art, Gallimard, 1962. Cf. também nú-
mero especial de Puck sobre “Les images virtuelles”, op. cit.
26 Les Lettres françaises, n° 914, 12 février 1962.
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em consideração as palavras, a câmera digital o enigma fundamental que toda arte – e antes
oferece o “texto” inteiro da improvisação (pala- de tudo o teatro, porque hoje ele ao mesmo
vras, participação gestual, relação com os par- tempo representa e apresenta a vida – deve dar
ceiros, com os objetos) e permite transformar conta, estão no coração do espetáculo, à manei-
as condições da sua reprodução (caso da criação ra de A classe morta de Kantor, mas com meios
de Éphémères no Théâtre du Soleil). diferentes dos bonecos imóveis presos no pes-
É quando tradição e inovação se encon- coço dos velhos que giram numa roda sem fim.
tram em cena que os efeitos são mais podero- Como já nos detivemos no caso dos Cegos de
sos. Assim, na encenação do Mercador de Veneza Denis Marleau, falemos ainda dos Sete afluentes
de P. Sellars, os empregados de preto, munidos do Rio Ota, espetáculo de Robert Lepage e da
de uma câmera, filmam os atores: como os seqüência na qual uma avó, emocionada diante
koken do teatro kabuki, também de preto, eles de um desfile de fotos de família (da qual todos
os ajudam em sua interpretação, trazendo ao os membros desapareceram), projetado em uma
público os closes de seus rostos retransmitidos parede, tenta desesperadamente mas em vão,
nos monitores. Assim acontece quando anima- reter a última foto, que, de modo progressivo,
do e inanimado, vida e morte, que constituem diminui e se apaga impiedosamente...
RESUMO: A autora enfatiza a importância da perspectiva histórica no que tange à análise das
chamadas novas tecnologias dentro da cena hoje, salientando o quanto o engajamento no presente
e o olhar para o futuro implicam paralelamente um diálogo com o passado. Para tanto, examina a
postura de uma série de artistas que, ao longo do século XX, lançaram mão de filmes e imagens
projetadas em suas criações. Entre outros, são destacados Eisenstein, Meyerhold, Piscator, Svoboda,
Polieri, Langhoff, Warlikowski, Marleau, Sellars e Lepage, artistas que, mediante essas inserções,
propuseram uma reflexão sobre os próprios processos de percepção.
PALAVRAS-CHAVE: novas tecnologias – interdisciplinaridade – história do teatro – intercultura-
lidade – tecnologias digitais.
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