Tempo e Patrimônio - F. Hartog
Tempo e Patrimônio - F. Hartog
Tempo e Patrimônio - F. Hartog
Tempo e Patrimônio*
FRANÇOIS HARTOG
École des Hautes Études en Sciences Sociales
54, boulevard Raspail, 75006 Paris
webmestre@ehess.fr
VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 22, nº 36: p.261-273, Jul/Dez 2006 261
François Hartog
a new regime of historicity, one based on the present, taking shape? In the
author’s view, the category of present has grown rather fast and imposed an
omnipotent present, which he names “presentism”. This condition causes
one to be torn between amnesia and the desire not to forget.
Key words Memory, Patrimony, Historicity
1 DE CERTEAU, Michel. Histoire et Psychanalyse entre science et ficition, Paris : Gallimard, 1987, p. 89. Voir Jean
LEDUC. Les Historiens et le Temps. Conceptions, problematiques, ecritures. Paris : Ed. du Seuil, 1999.
2 HARTOG, François. “Marshall Sahlins et l´anthropologie de l´histoire”. In: Annalles ESC, nº 6. Paris: EHESS, 1983,
p. 1256-1263.
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ilhas do Pacífico. Tendo por assim dizer deixado a expressão de lado, sem
a elaborar mais, eu a reencontrei, não mais nos povos autóctones do pas-
sado, mas no presente e aqui; mais exatamente, após 1989, ela se impôs
quase dela mesma como uma das formas de interrogar uma conjuntura,
onde a questão do tempo tornava-se uma questão forte, um problema: uma
obsessão algumas vezes.
No intervalo, eu me familiarizei com as categorias meta-históricas da
“experiência” e da “espera” (ou “expectativa”), tais como foram trabalhadas
pelo historiador alemão Reinhart Koselleck, com vistas a elaborar uma se-
mântica dos tempos históricos. Interrogando as experiências temporais da
história, ele pesquisava “como em cada presente, as dimensões temporais
do passado e do futuro tinham sido postas em relação”.3 É justamente aí
que era interessante investigar, levando em conta as tensões existentes
entre “campo de exercício” (“experiência” — NT) e “horizonte de espera”
e estando atento aos modos de articulação do presente, do passado e do
futuro. A noção de regime de historicidade podia assim se beneficiar de
um diálogo entre (fosse por meu intermédio) de Sahlins com Koselleck: da
antropologia com a história.
Um colóquio, concebido pelo helenista Marcel Detienne, comparatista
convicto, foi a ocasião de retomá-la e trabalhá-la em comum com um an-
tropólogo, Gérard Lenclud. Era uma forma de prosseguir, deslocando um
pouco, o diálogo, intermitente, mas recorrente, menos intenso, algumas
vezes, mas jamais abandonado, entre antropologia e história, que Claude
Lévi-Strauss tinha aberto em 1949. “Regime de historicidade”, escrevíamos
então, podia se compreender de duas formas. Em uma acepção restrita, é
como uma sociedade trata seu passado. Em uma acepção ampla, regime
de historicidade serviria para designar “a modalidade de consciência de
si de uma comunidade humana”. Como, para retomar os termos de Lévi-
Strauss, ela “reage” a um “grau de historicidade” idêntico para todas as
sociedades. Mais precisamente, a noção devia poder fornecer um instru-
mento para comparar tipos de histórias diferentes, mas também e mesmo
antes, eu acrescentaria agora, para iluminar modos de relação ao tempo:
formas da experiência do tempo, aqui e lá, hoje e ontem. Maneiras de ser no
tempo. Se, do lado da filosofia, a historicidade, da qual Paul Ricoeur traçou
a trajetória de Hegel a Heidegger, designa “a condição de ser histórico”,4
ou ainda “o homem presente a ele mesmo enquanto história”,5 aqui, nós
seremos mais atentos à diversidade dos regimes de historicidade.
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6 Por exemplo, GRASS, Günter. Toute une Histoire. Paris : Seuil, 1997; NOOTEBOOM, Cees. Le Jour des morts.
Arles: Actes Sud, 2001.
7 FRANÇOIS, Etienne. “Reconstruction allemande” In: Patrimoine et passions identitaires, sob a presidência de
Jacques Le Goff. Paris : Fayard, 1998, p.313 (para a citação de Scharoun) e Gabi Dolff-Bonekämper, “Les monu-
ments de l´histoire contemporaine a Berlin: ruptures, contradictions et cicatrices” In: L`Abus monumental, sob a
presidencia de Régis Debray. Paris : Fayard, 1999, p. 363-370.
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8 Consulta no website do Centre du Patrimoine mondial, ele recenceava 730 ao fim de 2002.
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9 L’abus monumental, sob a presidência de Régis Debray, Paris, Fayard, 1999, en particulier, R. Debray « Le monu-
ment ou la transmission comme tragédie », p. 11-32. Il y avait eu déjà Tzvetan Todorov, Les abus de la mémoire,
Paris, Arléa, 1995.
10 BOURDIER, Marc. « Le mythe et l’industrie ou la protection du patrimoine culturel au Japon », Genèses, 11, 1993,
p. 82-110.
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seu pano de fundo imaterial (sua origem divina, por exemplo).11 Interessa-se,
então, pelo patrimônio religioso (xintoísta), sobretudo. Depois, em 1919, vem
se acrescentar a lei sobre a preservação dos sítios históricos, pitorescos e
dos monumentos naturais. Enfim, a lei de 1950 sobre a proteção dos bens
culturais dá lugar, pela primeira vez, ao “patrimônio cultural intangível”.
Deste conjunto legislativo e das práticas patrimoniais que ele codifica, nós
reteremos duas particularidades somente.
Está prevista a reconstrução periódica de certos edifícios religiosos. O
fato de que eles são edificados em madeira não explica tudo, pois a recons-
trução é idêntica e se faz segundo um calendário fixado antecipadamente.
É em particular o caso do grande santuário d´Ise. O templo da deusa Ama-
terasu, ancestral mítica da casa imperial, é reconstruída de forma idêntica
em madeira de cipreste do Japão a cada 20 anos. Instaurada no século
VII, o rito continuou até hoje (sem dúvida, com períodos de interrupção). A
próxima reconstrução está prevista para 2013. Conta sobretudo a perma-
nência da forma. O dilema ocidental “conservar ou restaurar” não existe.12
Em compensação, um japonês que visita Paris será (mais exatamente teria
sido outrora) chocado pelo esforço desenvolvido para conservar os objetos
e os monumentos históricos contra o desgaste do tempo.13 De fato, a política
cultural japonesa não tinha por primeira preocupação nem a visibilidade
dos objetos nem a manutenção desta visibilidade. Ela repousava sobre
uma outra lógica que era a da atualização.
É o que permite compreender melhor a designação “tesouro nacional
vivo”, tal como foi especificada na lei de 1950. Esta designação é conferida
a um artista ou artesão, não como pessoas, mas somente enquanto ele
é “detentor de um importante patrimônio cultural intangível”. O título, que
pode recompensar um indivíduo ou um grupo, obriga o eleito a transmitir
o seu saber. Ele recebe, para isso, indenizações. Desta disposição original
fica claro que o objeto ou sua conservação conta menos do que a atualiza-
ção de um savoir-faire, que se transmite ao se atualizar. Como o templo de
madeira, a arte tradicional existe na medida em que ela está no ou dentro
do presente. Decorre daí que estas noções, tão centrais na constituição do
patrimônio do ocidente, de “original”, de “cópia”, de “autenticidade”, não
existem ou não são, em todo caso, portadoras dos mesmos valores no Ja-
pão. Seguramente, o passado contava, mas a ordem do tempo operava de
outra forma que na Europa. De um tempo que não era linear, derivava uma
11 FIÉVÉ, Nicolas. « Architecture et patrimoine au Japon : les mots du monument historique », L’abus monumental,
op. cit., Paris, Fayard, 1999, p. 333.
12 É o título de um texto do arquiteto italiano Camillo Boito, publicado em 1893, onde ele tenta definir uma posição
intermediária entre a representada por Viollet-le-Duc — « restaurar um edifício não é conservá-lo, consertá-lo ou
refazê-lo, mas restabelecê-lo de uma forma tão completa que pode não ter existido em monento algum » (Dic-
tionnaire de l’architecture) — e a representada por Ruskin — « conservar absolutamente, até a ruinificação se for
preciso » -, ver Leniaud, op. cit. p. 186-188.
13 OGINO, Masahiro. “La logique d’actualisation. Le patrimoine au Japon”, Ethnologie française, XXV, 1995, p.57-63.
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