Serrote Especial em Quarentena PDF
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julho 2020
edição especial
Sumário
Carta do editor
O vínculo da vergonha
Carlo Ginzburg
Homo bolsonarus
Renato Lessa
Símbolos sociais
No Martins
Estratégias para
ficarmos vivos
Jefferson Barbosa
Em casa
Veridiana Scarpelli
Os fins do luto
Carla Rodrigues
#imsquarentena
Créditos
O Brasil desmente a hipótese de que
sairemos melhores da pandemia. E é para
desmentir o Brasil que a serrote ganha sua
primeira versão digital. ¶ Concebida em
isolamento social, a revista interrompe
a edição impressa para, em caráter
excepcional, fazer circular o mais rápido
e amplamente possível um instantâneo
crítico de 2020. ¶ Sete ensaístas e três
artistas visuais fazem aqui uma crônica
possível do que vivemos hoje, entre a
longa duração da história e o efêmero do
noticiário, a angústia pessoal e a tragédia
coletiva. ¶ Da abjeção dos métodos da
extrema direita à delicadeza dos rituais
do luto, constatamos que o peso do que nos
oprime não esmaga a vitalidade de nossas
resistências. ¶ No ensaio que abre esta
edição, Carlo Ginzburg afirma que “o país
a que pertencemos não é, como quer a
retórica mais corrente, o país que amamos,
e sim aquele do qual nos envergonhamos”.
¶ Talvez não exista hoje no Brasil um
vínculo mais poderoso do que a vergonha.
É em torno dela que temos a chance de
nos unir – para dela nos livrarmos o mais
rápido possível. ¶ O EDITOR
Carlo Ginzburg
O vínculo
da vergonha
1
Mas será possível submeter uma paixão como a ver-
gonha à análise histórica? Em seu famoso livro Os gre-
gos e o irracional, Eric R. Dodds sugeriu, com base em
fontes literárias, da Ilíada às tragédias, que a Grécia
antiga assistira ao desenvolvimento de uma cultura
da culpa a partir de uma prévia cultura da vergonha.2
Dodds tomara essa dicotomia do livro de Ruth Bene-
dict, O crisântemo e a espada, uma análise antropo-
lógica, muito influente e muito polêmica, do Japão
como exemplo de uma cultura da vergonha.3 Essa
dicotomia era descrita nos seguintes termos: nas cul
turas da vergonha, o indivíduo se vê confrontado a
uma sanção externa, corporificada na comunidade
a que ele ou ela pertence; nas culturas da culpa, a san-
ção é introjetada.4
Mas Dodds e, até certo ponto, Benedict recu
savam-se a considerar os dois tipos de cultura co
mo incompatíveis, admitindo portanto a existência
de estágios intermediários. Outros estudos, po-
rém, deram nova forma à dicotomia numa perspec-
tiva evolucionista, de conotações potencialmen-
te racistas. Num artigo publicado em 1972 no The
American Journal of Psychiatry, Harold W. Glidden
postulava a existência de um “comportamento ára-
be” baseado numa cultura focada na vingança.5 As
implicações eram óbvias: a alternativa às culturas
da vergonha – arcaicas e atrasadas – eram as cultu-
ras da culpa, cujos traços distintivos são a interiori-
zação e um código moral maduro – em outras pala-
vras, a modernidade.
São óbvios os maus usos possíveis da dicotomia,
mas seu potencial cognitivo merece um exame mais
atento. Para os fins do meu teste, vou partir de dois
livros, ambos de 1993 e de tema coincidente: as con-
ferências Sather de Bernard Williams, publicadas
sob o título de Vergonha e necessidade, e o estudo de
Douglas L. Cairns, Aidos: a psicologia e a ética da honra
e da vergonha na literatura grega antiga. Suas abor-
dagens são muito diferentes entre si. Williams, filó-
sofo, oferecia uma “descrição filosófica de uma reali-
dade histórica” ao sugerir que as ideias gregas sobre a
ação e a responsabilidade eram tão próximas quan-
to distintas das nossas, insistindo, ao mesmo tempo,
que “o passado grego é o passado da modernidade”.6
Cairns, o classicista, reunia e analisava em minúcia
um dossiê volumoso de uma perspectiva quase et-
nográfica, enfatizando a distância entre a cultura
grega e a nossa.7
“A experiência básica relacionada à vergonha”, es-
creveu Williams, “é a de ser visto, de modo constran
gedor, pelas pessoas erradas na situação errada.”8
Essa hipótese inicial, oriunda do esforço introspec-
tivo de um filósofo britânico do fim do século 20, é
consistente com um método que explica fenôme-
nos culturais a partir de um foco voltado para o in-
divíduo. Mas partir da mesma noção de individua-
lismo que se busca demonstrar parece implicar uma
petitio principii: o risco de anacronismo é evidente.
Para evitá-lo, Williams alega “levantar-se pelos pró-
prios cabelos” (a metáfora é inspirada numa famosa
história do barão de Münchhausen), recorrendo a
um processo cognitivo que se autoalimenta e pro-
cede sem auxílio externo.9 A hipótese inicial deve
servir como um ponto de partida que novos dados
enriquecerão ou transformarão. Até que ponto essa
estratégia de pesquisa rendeu frutos?
Um teste crucial para a hipótese inicial de
Williams tem a ver com o uso frequente, na Ilíada,
do termo aidos a fim de inspirar coragem no cam-
po de batalha. Aidos! (“Vergonha!”) é uma censura
dirigida aos guerreiros, às vezes seguida de um argu-
mento compacto: “Tende vergonha uns dos outros
nos potentes combates!/ A maior parte dos homens
com vergonha não morre, mas salva-se.” Em outras
palavras, agir corajosamente é o melhor modo de
sobreviver. Essa fórmula ocorre duas vezes no poe-
ma (v, 529-532 e xv, 561-564). Contudo, numa pas-
sagem famosa (xv, 661-666), a relação face a face ga-
nha outra amplitude. Diz Nestor:
Brasília,
1º de maio,
2020
As telas de Gabriel Giucci reforçam
a dissonância cognitiva que é a
normalidade do país devastado por
pandemia e autoritarismo. Em suas
pinceladas, os profissionais de saúde
que protestam em frente ao palácio
do Planalto parecem ainda mais
solitários e desemparados. Das telas
de TVs, monitores e celulares para
a pintura, essas imagens ganham a
expressividade da qual o jornalismo
não dá conta. E prenunciam
o instante decisivo, antes que os
manifestantes fossem covardemente
agredidos pelos fanáticos que são
cúmplices no assassinato, por
descaso, de milhares de brasileiros.
Gabriel Giucci (1987) nasceu em Princeton (EUA) e
vive no Rio de Janeiro. Fez cursos de pintura na UFRJ
e na New School, em Nova York. Indicado ao Prêmio
Pipa em 2015, no ano seguinte realizou a individual
Desvio, em que reuniu retratos a óleo de alguns dos
principais envolvidos na Operação Lava Jato – parte
destas obras foi publicada na serrote #23.
O líder
fascista como
encarnação
da verdade
Homo
bolsonarus
Preâmbulo
Premissas e interlocuções
Os atributos
3. Horror à abstração
O HB é, também, um fundamentalista do caso concre
to. Embora possa abrigar alucinações paranoides –
aliás, quem não? –, como animal ativo, orienta-se
pelos inimigos e alvos a abater. No combate, dado o
horror à mediação, as abstrações não são bem-vin-
das. A bem da verdade, as duas modalidades de hor-
ror alimentam-se reciprocamente, já que mediações
são materializações de abstrações. Daí a dificuldade
em compreender como instituições desprovidas de
poder material – cortes constitucionais, por exem-
plo – podem sobrepor-se a mandatários populares e
à força das armas. Isso é virtualmente inconcebível
aos olhos do HB. Creio mesmo tratar-se de um limi-
te cognitivo a ele inerente.
4. Impermeabilidade à experiência
Tal como o “antissemita” de Sartre, o HB é portador
de uma convicção que o torna impermeável como
uma rocha.14 Há, com certeza, dogmáticos em to-
dos os quadrantes, mas quando a sensação de im-
permeabilidade se desloca do campo das crenças
políticas para os campos da refutação de evidências
científicas e da autojustificativa para a ação direta,
os danos públicos são indisfarçáveis. Não há nada
de errado no desejo à impermeabilidade. Os pro-
blemas aparecem quando se apaga a fronteira entre
as convicções privadas e a forma de agir no mundo
público. Diante da certeza do fundamento, parece
não haver inconveniente algum em seguir seus co-
rolários. Parece não haver variante moderada entre
os exemplares da especiação bolsonarus.
5. Índole libertária
O HB quer fechar o STF e o Congresso, empastelar
a imprensa, ocupar militarmente o Poder Executi-
vo e criminalizar os adversários políticos. Tudo isso
em nome da liberdade. Antes de julgá-los inconsis-
tentes, importa indagar pelo que tomam a liberda-
de. Um indício: o HB ama pescar em águas proibidas,
odeia pagar impostos e obrigações trabalhistas, de-
seja dar curso livre e inculpado a seus preconceitos
e às ações que eles autorizam e, por vezes, exigem
andar sem máscaras em plena pandemia e usufruir
do direito de se contaminar com o coronavírus. A li-
berdade natural, desejada pelo HB, exige a desativa-
ção das instituições e normas que garantem toda e
qualquer liberdade política e civil. Embora repre-
sente-se como uma rocha impermeável, o HB é, no
fundo, muito confuso. A tal índole libertária é o com-
plemento comportamental – ou momento subjeti-
vo – do desvínculo entre vida social e estrutura nor-
mativa da esfera pública.
Exortação
Símbolos
sociais
Os “símbolos sociais” que No Martins
selecionou para a serrote são variações
sobre um mesmo tema: as populações
negras marginalizadas, atacadas
e exterminadas nas grandes cidades
brasileiras. O que o cidadão branco
vive como exceção é, para o negro,
a lei perversa de um Estado racista.
Nestas pinturas, Martins interrompe
a normalização da barbárie ao fazer
de mulheres e homens negros os
protagonistas, como o perturbador
policial militar descalço, agente
e também ele vítima da violência.
Ou o menino que, carregando um
portentoso porco, marcado a ferro
com o sinistro “jb 17”, nos interpela
na obra de título eloquente: Um dia da
caça, outro do caçador.
No Martins (1987) nasceu em São Paulo, onde vive e
trabalha. Começou nas artes visuais pela pichação
e pelo grafite, passou pela gravura e a pintura e hoje
se dedica ainda ao vídeo, à performance e à criação
de objetos. Em 2019, realizou a exposição individual
Campo minado e, no mesmo ano, participou da 21ª
Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil.
Estratégias
para ficarmos
vivos
“Acará”, Os Tincoãs
Nosso
apocalipse
zumbi
Contágios
O olhar colonial
Outras imaginações
Referências
Achille Mbembe, Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições,
2018.
Achille Mbembe, Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
Elizabeth McAlister, “Slaves, Cannibals, and Infected Hyper-
-Whites: The Race and Religion of Zombies”, in: Zombie Theory:
A Reader. Mineápolis: University of Minnesota Press, 2017.
Gerry Canavan. “We Are the Walking Dead: Race, Time, and Sur-
vival in Zombie Narrative”, in: Zombie Theory: A Reader, op. cit.
John Rieder, Colonialism and the Emergence of Science Fiction.
Middletown: Wesleyan University Press, 2008.
Kara Keeling, Queer Times, Black Futures. Nova York: New York
University Press, 2019.
N. K. Jemisin, A quinta estação. São Paulo: Morro Branco, 2017.
Octavia Butler, A parábola do semeador. São Paulo: Morro Branco,
2018.
Ytasha Womack. Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fan-
tasy Culture. Chicago: Chicago Review Press, 2013.
Em casa
Aos privilegiados, o isolamento
social concede a proteção do
vírus, mas não das variadas
formas de horror trazidas pela
pandemia. Veridiana Scarpelli
flagra em cenas cotidianas
os medos reais e imaginários,
das noites insones e dos pássaros
pendurados, ao lado de máscaras,
no secador de roupa. Numa caixa
de ovos ou na pia lotada de louça,
não faltam versões domésticas
do memento mori, que há séculos
lembra criadores e criaturas
do inegociável enfrentamento
com o fim.
Veridiana Scarpelli (1978) é ilustradora e colabora-
dora da serrote. Publicou o infantil O sonho de Vitório
(2012) e ilustrou A menina do mar (2014), de Sophia
de Melo Breyner Andersen, ambos pela Cosac Naify.
Dia após
dia após dia
após dia
Os fins
do luto
Pandemia e polarização
Rodrigo Nunes
A política do amigo e do inimigo
Jason Stanley
A galeria vazia
Bea Espejo
Um Brasil em disputa
Fernanda Miranda
A devastação da desigualdade
Lizzie Wade
CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO
João Moreira Salles
Presidente
Fernando Roberto Moreira Salles
Vice-Presidente
Pedro Moreira Salles
Walther Moreira Salles Jr
Conselheiros
DIRETORIA EXECUTIVA
Flávio Pinheiro
Diretor-geral
João Fernandes
Diretor Artístico
Jânio Gomes
Diretor Executivo