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A Parabola Do Semeador PDF
A Parabola Do Semeador PDF
A Parabola Do Semeador PDF
E. Butler
A Parabola Do Semeador
Quando uma crise ambiental e econômica leva ao caos social, nem mesmo os
bairros murados estão seguros. Em uma noite de fogo e morte, Lauren Olamina,
a jovem filha de um pastor, perde sua família, seu lar e se aventura pelas terras
americanas desprotegidas. Mas o que começa como uma fuga pela sobrevivência
acaba levando a algo muito maior: uma visão estonteante do destino humano ... e
ao nascimento de uma nova fé.
Prodígio é, em sua essência, uma capacidade de adaptação e obsessão
positiva e persistente. Sem persistência, o que sobra é um entusiasmo do
momento. Sem capacidade de adaptação, o que sobra pode ser canalizado
para um fanatismo destrutivo. Sem obsessão positiva, não existe absolutamente
nada.
- SEMENTE DA TERRA: OS LIVROS DOS VIVOS
por Lauren Oya Olamina
1
Tive meu sonho recorrente na noite passada. Acho que era esperado. Ele
acontece quando eu reluto - quando me debato dentro de uma prisão pessoal e
tento fingir que nada incomum está acontecendo. Ele acontece quando tento ser
a filha de meu pai.
Hoje é nosso aniversário - o meu décimo quinto e o quinquagésimo quinto de
meu pai. Amanhã, vou tentar deixá-lo contente - ele, a comunidade e Deus.
Então, ontem à noite, sonhei com um lembrete de que tudo é mentira. Acho que
preciso escrever sobre o sonho porque essa mentira em especial me perturba
demais.
Um presente divino
Pode queimar dedos despreparados
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Há pelo menos três anos, o Deus de meu pai deixou de ser o meu Deus. A
igreja dele deixou de ser a minha igreja. E ainda assim, hoje, por ser uma
covarde, eu me permito ser iniciada naquela igreja. Deixo meu pai me batizar em
todos os três nomes daquele Deus que não é mais meu.
Meu Deus tem outro nome.
Levantamos cedo hoje porque tínhamos que atravessar a cidade para ir à
igreja. Na maioria dos domingos, meu pai realiza missas na nossa sala de estar.
Ele é um ministro batista, e apesar de nem todas as pessoas que vivem dentro
dos muros de nosso bairro serem batistas, aqueles que sentem a necessidade de ir
à igreja se satisfazem unindo-se a nós. Assim, não precisam se arriscar indo para
fora, onde as coisas são tão perigosas e malucas. Já é bem ruim que algumas
pessoas - meu pai, por exemplo - tenham que sair para trabalhar pelo menos uma
vez por semana. Ninguém mais sai para ir à escola. Os adultos ficam nervosos
quando as crianças saem.
Mas hoje foi especial. Para hoje, meu pai combinou algumas coisas com
outro ministro, um amigo dele que ainda tem uma igreja de verdade, com um
batistério de verdade.
Meu pai já teve uma igreja a poucos quarteirões do muro, do lado de fora.
Ele a abriu antes de existirem tantos muros. Mas depois de muitos desabrigados
terem dormido nela, e de ter sido roubada e vandalizada tantas vezes, alguém
despejou gasolina dentro e ao redor dela e a incendiou. Sete dos desabrigados
que dormiram ali na última noite acabaram incendiados também.
Mas, de alguma forma, o amigo de meu pai, o reverendo Robinson,
conseguiu impedir que sua igreja fosse destruída. Fomos de bicicleta até lá hoje
cedo: eu, dois de meus irmãos, quatro outras crianças do bairro que estavam
prontas para serem batizadas, além de meu pai e de alguns outros adultos do
bairro, que foram na frente. Todos os adultos estavam armados. Essa é a regra.
Saia em grupos e saia armado.
A alternativa era sermos batizados na banheira de casa. Teria sido mais
barato, mais seguro e eu não veria problema. Eu disse isso, mas ninguém me deu
atenção. Para os adultos, sair e ir a uma igreja de verdade era como voltar aos
bons tempos quando existiam igrejas em todos os lugares, além de muitas luzes,
e quando a gasolina servia para abastecer carros e caminhões, e não para atear
fogo às coisas. Eles nunca perdem uma chance de relembrar os bons tempos e de
contar às crianças como vai ser incrível quando o país se reestruturar e os bons
tempos voltarem.
Sei.
Para nós, crianças - para a maioria de nós -, a viagem era só uma aventura,
uma desculpa para sair de dentro dos muros. Seríamos batizadas por obrigação
ou por um tipo de garantia, mas a maioria de nós não liga muito para religião. Eu
ligo, mas tenho uma religião diferente.
— Por que se arriscar? — perguntou Silvia Dunn para mim há alguns dias.—
Talvez haja sentido nessa coisa toda de religião.
Os pais dela achavam que havia, por isso ela estava conosco.
Meu irmão Keith, que estava conosco, não tinha as mesmas crenças que eu.
Simplesmente não se importava. Meu pai queria que ele fosse batizado, então
que se danasse. Keith não se importava com muita coisa. Ele gosta de
passar tempo com os amigos e fingir ser adulto, evitar o trabalho, evitar as aulas
e evitar a igreja. Tem só doze anos, é o mais velho de meus três irmãos. Não
gosto muito dele, mas é o preferido da minha madrasta. Três filhos inteligentes e
um burro, e é do burro que ela mais gosta.
Keith era o que mais olhava ao redor enquanto peda-lávamos. Sua ambição,
se podemos chamar assim, é sair do bairro e ir para Los Angeles. Ele nunca fala
exatamente o que vai fazer lá. Só quer ir para a cidade grande para ganhar muito
dinheiro. De acordo com meu pai, a cidade grande é uma carcaça coberta por um
monte de vermes. Acho que ele tem razão, apesar de nem todos os vermes
estarem em Los Angeles. Há vermes aqui também.
Mas os vermes não costumam gostar de acordar cedo. Passamos por pessoas
deitadas, dormindo nas calçadas, e algumas estavam acabando de acordar, mas
elas não nos deram atenção. Vi pelo menos três pessoas que não voltariam a
acordar, nunca mais. Uma delas não tinha cabeça. Eu me peguei olhando ao
redor à procura da cabeça. Depois disso, tentei não olhar mais ao redor.
Uma mulher jovem, nua e imunda passou cambaleando por nós. Observei
sua expressão relapsa e percebi que ela estava atordoada, bêbada ou coisa assim.
Talvez ela tivesse sido estuprada repetidamente, a ponto de enlouquecer. Eu
já tinha ouvido histórias de que isso acontecia. Ou talvez só estivesse drogada.
Os meninos de nosso grupo quase caíram das bicicletas olhando para ela. Que
belos pensamentos religiosos eles teriam por um tempo.
A mulher nua não olhou para nós. Olhei para trás depois de passarmos por
ela e vi que havia se sentado no mato, encostada no muro do bairro de alguém.
Grande parte de nosso trajeto foi ao longo de um muro de bairro depois de
outro; alguns tinham o tamanho de um quarteirão, outros tinham dois, e outros
tinham cinco... Subindo em direção aos montes havia propriedades muradas -
uma casa grande e várias pequenas dependências mais simples onde os
empregados moravam. Não passamos por nada assim hoje. Na verdade,
passamos por alguns bairros tão pobres cujos muros eram feitos de pedras não
cimentadas, pedaços de concreto e lixo. E também havia as áreas residenciais
sem muros, lamentáveis. Muitas das casas estavam destruídas - queimadas,
vandalizadas, infestadas por bêbados ou drogados, ou ocupadas por famílias de
sem-teto com filhos imundos, magros e seminus. Seus filhos estavam acordados
e nos observaram enquanto passamos. Sinto pena dos pequenos, mas os da
minha idade e os mais velhos me deixam nervosa. Descemos pelo meio da rua
destruída, e as crianças saem e ficam nas calçadas para nos ver. Só ficam paradas
olhando. Acho que se só houvesse um ou dois de nós, ou se não conseguissem
ver nossas armas, talvez tentassem nos derrubar e roubar nossas bicicletas,
nossas roupas e nossos sapatos, sei lá. E depois? Estupro?
Assassinato? Poderiamos acabar como aquela mulher nua, aos
tropeços, atordoada, talvez ferida, que certamente chamaria a atenção de pessoas
perigosas a menos que roubasse algumas roupas. Eu queria que pudéssemos ter
dado algo a ela.
Minha madrasta conta que ela e meu pai pararam para ajudar uma mulher
ferida, certa vez, e que os homens que a haviam ferido pularam de trás de um
muro e quase mataram os dois.
E estamos em Robledo - a 32 quilômetros de Los Angeles e, de acordo com
meu pai, uma cidadezinha que já foi rica, verde e sem muros, da qual ele queria
sair desesperadamente quando era jovem. Assim como Keith, queria escapar da
chatice de Robledo em busca da agitação da cidade grande. Los Angeles era
melhor na época - menos letal. Ele morou lá por 21 anos. Então, em 2010, seus
pais foram assassinados e ele herdou a casa deles. Quem os matou havia roubado
a casa e destruído a mobília, mas não ateou fogo a nada. Não havia muro de
bairros na época.
Que loucura viver sem um muro como proteção. Mesmo em Robledo, a
maioria da população da rua - vagabundos, bebuns, drogados, pessoas
desabrigadas de modo geral - é perigosa. São desesperados, malucos ou as duas
coisas. É o suficiente para tornar as pessoas perigosas.
Para mim, o pior é que eles costumam ter problemas. Cortam as orelhas uns
dos outros, os braços, as pernas... São portadores de doenças não tratadas e de
ferimentos infeccio-nados. Não têm dinheiro para gastar com água para
banho, por isso até os que não estão com feridas abertas têm problemas de pele.
Não têm o que comer, por isso são malnutridos - ou ingerem alimentos
estragados e se envenenam. Enquanto eu passava, tentei não olhar para eles, mas
não deixei de ver - e de absorver - parte de seu sofrimento, de modo geral.
Consigo tolerar muita dor sem me deixar abater. Tive que aprender a fazer
isso. Mas foi difícil, hoje, continuar pedalando e acompanhar os outros quando
todo mundo que eu via fazia com que me sentisse cada vez pior.
Meu pai olhava para trás na minha direção de vez em quando. Ele diz: “Você
consegue superar isso. Não tem que se envolver”. Ele sempre fingiu, ou talvez
acreditou, que minha síndrome da hiperempatia fosse algo que eu pudesse
deixar de lado e esquecer. Afinal, o partilhamento não é real. Não é uma mágica,
nem uma percepção extrassensorial que me permite compartilhar da dor ou do
prazer das outras pessoas. É ilusório. Até mesmo eu admito isso. Meu irmão
Keith costumava fingir estar machucado só para me enganar e dividir
sua suposta dor. Certa vez, ele usou tinta vermelha como sangue falso para me
fazer sangrar. Eu tinha onze anos, na época, e o sangue ainda saía pela minha
pele quando eu via outra pessoa sangrando. Não conseguia evitar e sempre temi
que isso chamasse a atenção de pessoas de fora da minha família.
Não dividi um sangramento com ninguém desde que fiz doze anos e tive
minha primeira menstruação. Que alívio. Só queria que todo o resto também
tivesse passado. Keith só me enganou para que eu sangrasse daquela vez, e eu
bati nele demais por isso. Eu não brigava muito quando era criança porque me
doía muito. Sentia cada golpe que dava, como se tivesse atacado a mim mesma.
Então, quando decidia que tinha que brigar, eu me preparava para machucar mais
do que as crianças costumavam machucar umas às outras. Quebrei o braço de
Michael Talcott e o nariz de Rubin Quintanilla. Quebrei quatro dentes de Silvia
Dunn. Eles mereciam duas ou três vezes mais do que eu batia. Eu era castigada
todas as vezes, e me ressentia disso. Era um castigo duplo, afinal, e meu pai e
minha madrasta sabiam disso. Mas saber não os impedia. Acho que eles faziam
isso para satisfazer os pais das outras crianças. Mas quando bati em Keith, sabia
que Cory, meu pai ou os dois me castigariam por aquilo - era meu pobre irmão
menor, afinal de contas. Por isso, eu tinha que cuidar para que meu pobre
irmãozinho pagasse com antecedência. O que eu fizesse com ele tinha que valer
a pena, apesar do que eles fariam comigo.
E valeu.
Nós dois pagamos por isso com meu pai. Eu, por machucar uma criança
menor, e Keith, por arriscar levar “os assuntos da família” a público. Meu pai se
importa muito com privacidade e “os assuntos da família”. Há uma série de
coisas sobre as quais nem sequer pensamos em falar fora da família.
Primeiro, entre elas está qualquer coisa a respeito de minha mãe,
minha hiperempatia e como as duas estão relacionadas. Para o meu pai, o
negócio todo é vergonhoso. Ele é pregador, professor e deão. Uma primeira
esposa que era viciada em drogas e uma filha prejudicada por isso não são coisas
das quais ele queira se gabar. Sorte minha. Ser a pessoa mais vulnerável que
conheço certamente não é algo de que eu queira me gabar.
Não posso fazer nada sobre minha hiperempatia, independentemente do que
meu pai pense, queira ou deseje. Sinto o que vejo os outros sentirem ou o que
acredito que eles sintam. A hiperempatia é o que os médicos chamam
de “síndrome orgânica ilusória”. Bela merda. Dói, é só o que sei. Graças ao
Paracetco, ao comprimidinho, ao pó de Einstein, a droga da qual minha mãe
decidiu abusar antes de morrer em meu parto, sou louca. Sinto muita tristeza que
não me pertence e que não é real. Mas dói.
Eu supostamente compartilho prazer e dor, mas não existe muito prazer por
aí hoje em dia. O único que encontrei que gosto de compartilhar é o sexo. Sinto
o prazer que o rapaz sente e o meu. E quase gostaria de não sentir. Vivo em uma
comunidade minúscula, murada, um aquário no fim do mundo, e sou a filha do
ministro. Existe um limite real a respeito do que posso fazer quando o assunto é
sexo.
Bem, meus neurotransmissores são bagunçados e continuarão a ser. No
entanto, consigo ficar bem desde que as outras pessoas não saibam a meu
respeito. Me viro bem dentro dos muros do bairro. Mas nossos percursos de hoje
foram terríveis. Na ida e na volta, eles foram as piores coisas que já senti -
sombras e fantasmas, beliscões e socos de dor inesperada.
Se eu não passar muito tempo olhando para velhas feridas, elas não me
machucam muito. Havia um menininho nu cuja pele era coberta por marcas
vermelhas; um homem com uma casca de ferida enorme sobre o toco onde antes
ficava sua mão direita; uma menininha, nua, talvez de sete anos, com sangue
escorrendo por suas coxas. Uma mulher com o rosto inchado, surrado...
Devo ter parecido assustada. Olhei ao redor como um passarinho, sem deixar
meus olhos se demorarem em alguém além do tempo necessário para ver que ele
não estava vindo na minha direção, nem mirando nada em mim.
Meu pai deve ter percebido algo do que eu sentia em minha expressão. Tento
não deixar meu rosto mostrar o que sinto, mas ele é bom em me analisar. As
vezes as pessoas dizem que pareço séria ou brava. É melhor que elas pensem
isso do que saibam a verdade. Prefiro que elas pensem qualquer outra coisa a
deixar que saibam como é fácil me machucar.
Meu pai havia insistido em usar água fresca, limpa e potável no batismo. É
claro que ele não tinha dinheiro para comprá-la. E quem tinha? Era por isso que
havia mais quatro crianças conosco.
Silvia Dunn, Hector Quintanilla, Curtis Talcott e Drew Balter, juntamente
com meus irmãos Keith e Marcus. Os pais das outras crianças tinham ajudado
com os custos. Eles achavam que um batismo adequado era importante o
suficiente para gastarem algum dinheiro e correrem alguns riscos. Eu era a mais
velha por cerca de dois meses. Em seguida, vinha Curtis. Por mais que eu
detestasse estar ali, odiava ainda mais o fato de Curtis estar ali. Me importo com
ele mais do que gostaria. Eu me importo com o que ele pensa de mim. Tenho
medo de me revelar em público, qualquer dia, e ele ver. Mas não hoje.
Quando chegamos à igreja-fortaleza, os músculos de minha mandíbula doíam
de tanto travar e destravar os dentes, e de modo geral, eu estava exausta.
Havia apenas cinco ou seis dezenas de pessoas na missa - número suficiente
para encher as fileiras da frente em casa e fazer parecer uma multidão. Mas na
igreja, com o muro ao redor, as barras de proteção, o arame farpado, o
enorme vazio por dentro e os guardas armados, a multidão parecia uma meia
dúzia de pessoas. E tudo bem. A última coisa que eu queria era uma platéia
grande que talvez pudesse me derrubar de dor.
O batizado transcorreu conforme o planejado. Eles mandaram as crianças aos
banheiros (“ao masculino”, “ao feminino”, “por favor, não joguem papel de
nenhum tipo nos vasos sanitários”, “água para se lavar no balde à esquerda...”)
para se despirem e vestirem as túnicas brancas. Quando estávamos prontos, o pai
de Curtis nos levou a uma antessala de onde pudemos ouvir a pregação - o
primeiro capítulo de São João e o segundo dos Atos - e esperar nossa vez.
Minha vez veio por último. Acho que isso foi ideia de meu pai. Primeiro, os
filhos do vizinho, depois meus irmãos, e só então eu. Por motivos que não fazem
muito sentido para mim, meu pai acha que preciso de mais humildade.
Acredito que minha humildade biológica específica - ou humilhação - é mais do
que suficiente.
Mas que droga! Alguém tinha que ser o último. Eu só queria ter tido coragem
suficiente de fugir daquela coisa toda.
Então, “Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo...”.
Os católicos se livram dessas coisas quando são bebês. Queria que os batistas
também fossem assim. Quase queria poder acreditar que isso é importante do
jeito que muitas pessoas parecem fazer, como meu pai. Se não desse, gostaria de
não me importar.
Mas me importo. Tenho pensado muito em Deus ultimamente. Tenho
prestado atenção no que as outras pessoas acreditam - se acreditam, e nesse caso,
no tipo de Deus em que acreditam. Keith diz que Deus é só o modo que os
adultos têm de tentar nos assustar para fazermos o que querem. Ele não fala isso
perto do meu pai, mas é o que diz. Ele acredita no que vê, e independentemente
do que esteja na frente dele, não enxerga muito. Acho que meu pai diria isso
sobre mim se soubesse em que acredito. Talvez estivesse certo. Mas não
me impediría de ver o que vejo.
Muitas pessoas parecem acreditar em um Deus-paizão, em um Deus-tira-
durão ou em um Deus-rei-supremo. Elas acreditam em uma espécie de
superpessoa. Algumas acreditam que Deus é outra palavra para natureza. E a
natureza acaba sendo qualquer coisa que por acaso elas não compreendem ou
sobre a qual não sentem controle.
Algumas pessoas dizem que Deus é um espírito, uma força, uma realidade
maior. Pergunte a sete pessoas o que tudo isso significa e receberá sete respostas
diferentes. Então, o que é Deus? Só mais um nome para seja lá o que faça
você se sentir especial e protegido?
Há uma tempestade fora de temporada atingindo o Golfo do México. Ela se
espalhou, matando pessoas da Flórida ao Texas e descendo em direção ao
México. Até agora, sabe-se que mais de 700 morreram. Um furacão. E quantas
pessoas ele atingiu? Quantas vão morrer de fome posteriormente devido
às plantações destruídas? É a natureza. É Deus? A maioria dos mortos é a
população de rua que não tem para onde ir e que só sabe dos alertas quando já é
tarde demais para se proteger. Onde está a segurança para eles, afinal? Ser pobre
é um pecado contra Deus? Nós somos quase pobres. Há cada vez
menos empregos para nós, mais e mais pessoas nascem, mais crianças crescem
sem perspectiva. De um jeito ou de outro, todos seremos pobres um dia. Os
adultos dizem que as coisas vão melhorar, mas isso nunca acontece. Como Deus
- o Deus de meu pai - se comporta conosco quando somos pobres?
Existe um Deus? Se existe, ele (ela? isso?) se importa conosco? Deístas,
como Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, acreditavam que Deus foi algo que
nos criou e então nos deixou sozinhos.
— Enganados — disse meu pai quando perguntei a ele sobre os deístas. —
Eles deveriam ter tido mais fé no que a Bíblia deles dizia.
Fico me perguntando se as pessoas na Costa do Golfo ainda têm fé. As
pessoas já tiveram fé durante desastres terríveis. Leio muito sobre esse tipo de
coisa. Leio muito e ponto. Meu livro preferido da Bíblia é o de Jó. Acho que ele
diz mais sobre o Deus de meu pai em especial e sobre os deuses em geral do que
qualquer outra coisa que li.
No livro de Jó, Deus diz que criou tudo e que sabe de tudo, por isso ninguém
tem direito de questionar o que ele faz com essas coisas. Tudo bem. Pode ser.
Aquele Deus do Antigo Testamento não viola o modo que as coisas são agora.
Mas esse se parece muito com Zeus - um homem superpoderoso, brincando com
seus brinquedos como meus irmãos menores fazem com seus soldadinhos. Bang,
bang! Sete brinquedos caem mortos. Se eles forem seus, você cria as regras.
Quem se importa com o que os brinquedos pensam? Arranque a família de um,
depois lhe dê uma família nova. Crianças-brinquedos, assim como os filhos de
Jó, são intercambiáveis.
Talvez Deus seja uma espécie de criança grande com seus brinquedos. Se for,
que diferença faz se 700 pessoas forem mortas por um furacão - ou se sete
crianças vão à igreja e são mergulhadas em um grande tanque de água cara?
Mas e se tudo isso estiver errado? E se Deus for outra coisa totalmente
diferente?
3
O preço da água subiu de novo. E eu soube pelo noticiário de hoje que mais
vendedores estão sendo mortos. Os mascates vendem água aos sem-teto e aos
moradores de rua - e às pessoas que conseguiram manter suas casas, mas não
pagar as contas. Os mascates têm sido encontrados com a garganta cortada, e o
dinheiro e seus carrinhos de mão roubados. Meu pai disse que, agora, a água
custa muito mais do que a gasolina. Mas, com exceção dos incendiários e dos
ricos, a maioria das pessoas desistiu de comprar gasolina. Ninguém que
conheço usa um carro, caminhão ou uma bicicleta movida a gasolina. Veículos
assim estão enferrujando nas ruas e sendo depredados por quem procura por
metal e plástico.
É muito mais difícil abrir mão da água.
A moda ajuda. Agora, o legal é andar sujo. Se você estiver limpo, torna-se
um alvo. As pessoas acham que você está se exibindo, tentando ser melhor do
que elas. Entre as crianças, estar limpo é uma ótima maneira de se meter em
brigas. Cory não nos deixa ficar sujos aqui no bairro, mas todos temos
roupas imundas para vestir fora dos muros. Mesmo do lado de dentro, meus
irmãos jogam terra em si mesmos assim que se afastam da casa. É melhor do que
apanhar o tempo todo.
Hoje à noite, a última Parede-Janela do bairro se apagou para sempre. Vimos
a astronauta morta e Marte, rochoso e vermelho, ao redor dela. Vimos um
reservatório totalmente seco e três mascates de água mortos com suas pulseiras
azuis, parcialmente decapitados. E vimos quarteirões inteiros de construções
com tábuas nas janelas pegando fogo em Los Angeles. É claro que
ninguém desperdiçaria água tentando apagar aqueles incêndios.
E então, a Janela se apagou. O som vinha falhando há meses, mas a imagem
permanecia sempre como o prometido - era como olhar através de uma janela
ampla e aberta.
A família Yannis transformou o ato de receber pessoas para olharem pela
Janela em um negócio. Meu pai diz que esse tipo de negócio sem licença é
ilegal, mas ele nos deixava assistir de vez em quando porque não via nada de
ruim nisso e era algo que ajudava os Yannis. Muitos negócios pequenos são
ilegais, apesar de não prejudicarem ninguém, e sustentam uma ou outra família.
A Janela dos Yannis tem mais ou menos a minha idade e cobre a parede
comprida do lado esquerdo da sala de estar da família. Eles deveríam ter muito
dinheiro quando a compraram. Mas, nos últimos anos, vinham cobrando
ingresso - e só deixavam pessoas do bairro entrarem -, além de venderem frutas,
sucos naturais, pão de bolota ou nozes. O que tinham em grande quantidade na
horta, eles davam um jeito de vender. Transmitiam filmes da biblioteca
da família e nos deixavam assistir ao noticiário e ao que estivesse sendo
televisionado. Não tinham recursos para assinar as partes multissensoriais, e, de
qualquer forma, a antiga Janela deles não teria como receber a maior parte delas.
Eles não têm trajes de realidade virtual, nem anéis sensíveis ao toque ou
fones de ouvido. A estrutura de que dispunham era só uma Janela plana de tela
fina.
Tudo o que temos agora são três aparelhos de TV pequenos, antigos e
embaçados espalhados pelo bairro, alguns computadores usados para trabalhar e
rádios. Cada residência tem pelo menos um rádio funcionando. Muitas das
notícias que recebemos diariamente vêm do rádio.
Fico me perguntando o que a sra. Yannis vai fazer agora. Suas duas irmãs
foram morar com ela, e estão trabalhando, então pode ser que tudo fique bem.
Uma é farmacêutica e a outra, enfermeira. Não ganham muito dinheiro, mas a
sra. Yannis é a dona da casa. Era a casa de seus pais.
As três irmãs são viúvas e, ao todo, têm doze filhos, todos mais novos do que
eu. Há dois anos, o sr. Yannis, que era dentista, morreu voltando para casa de
bicicleta elétrica, ao sair da clínica protegida por muros, onde trabalhava. A sra.
Yannis disse que ele foi pego em uma troca de tiros, atingido das duas direções e
ainda outra vez à queima-roupa. Sua bicicleta foi roubada. A polícia investigou,
cobrou sua taxa, mas não encontrou nada. As pessoas são mortas assim o tempo
todo. A menos que aconteça na frente de uma delegacia, nunca há testemunhas.
A astronauta morta será trazida de volta para a Terra. Ela queria ser enterrada
em Marte. Disse isso quando se deu conta de que estava morrendo. Disse que
aquele planeta foi a única coisa que ela quis a vida toda, e que agora faria parte
dele para sempre.
Mas o secretário da Astronáutica disse que não. Afirmou que o corpo dela
poderia ser um contaminante. Idiota.
Será que ele acha que qualquer micro-organismo presente no corpo dela teria
a menor chance de sobreviver e se estabelecer naquela atmosfera fria, fraca e
letal? Talvez ache. Os secretários da Astronáutica não têm que saber muito sobre
ciência. Têm que saber sobre política. Possuem o departamento mais novo no
gabinete, que já está se esforçando para sobreviver. Christopher
Morpeth Donner, um dos homens concorrendo à presidência este , ano, prometeu
acabar com a secretaria se for eleito. Meu pai concorda com Donner.
— Pão e circo — diz meu pai quando surgem notícias do espaço no
noticiário. — Os políticos e as grandes corporações ficam com o pão, e nós, com
o circo.
— O espaço poderia ser nosso futuro — digo, e acredito nisso.
Até onde sei, a exploração e a colonização do espaço estão entre as poucas
coisas que sobraram do último século que podem nos ajudar mais do que nos
prejudicar. Mas é difícil fazer alguém ver isso, quando há tanto sofrimento do
lado de fora dos nossos muros.
Meu pai balança a cabeça e olha para mim.
— Você não entende — diz ele. — Não tem a menor ideia da perda
criminosa de tempo e dinheiro que esse tal de programa espacial é.
Ele vai votar em Donner. É a única pessoa que conheço que vai votar em
alguém. A maioria das pessoas desistiu dos políticos. Afinal de contas, os
políticos têm prometido trazer de volta a glória, a riqueza e a ordem do século
XX desde que me conheço por gente. É ao redor disso que gira o
programa espacial atualmente, pelo menos para os políticos. Olha, podemos criar
uma estação espacial, uma estação na Lua, e, em breve, uma colônia em Marte.
Isso prova que ainda somos uma nação ótima, voltada para o futuro e poderosa,
não é mesmo?
Pois é.
Bem, mal somos uma nação agora, mas fico feliz por ainda estarmos no
espaço. Temos que ir a algum lugar que não seja ralo abaixo.
E fico triste que aquela astronauta será tirada do paraíso que escolheu. Ela se
chamava Alicia Catalina Godinez Leal. Era química. Eu pretendo me lembrar
dela. Acho que pode ser uma espécie de modelo para mim. Alicia passou a
vida indo para Marte - ao se preparar, ao tornar-se astronauta, quando entrou
para uma tripulação rumo a Marte, ao ir de fato para Marte, quando começou a
entender como terraformar o planeta, ao criar abrigos onde as pessoas agora
podem morar e trabalhar...
Marte é uma rocha - fria, vazia, quase sem ar, morta. Mas, ainda assim e de
certo modo, é o paraíso. Nós o vemos no céu noturno, um mundo completamente
diferente, mas próximo demais, perto demais do alcance das pessoas que fizeram
da vida aqui na Terra um inferno tão grande.
A sra. Sims se matou com um tiro hoje - ou melhor, ela se matou com um tiro
há alguns dias, e Cory e meu pai a encontraram hoje. Cory deu uma pirada
depois disso.
Coitada da velha e beata sra. Sims. Ela estava no nosso salão da igreja todo
domingo, com a Bíblia grande na mão e gritando suas respostas: “Sim, Senhor!”,
“Aleluia!”, “Obrigada, Jesus!”, “Amém!”. No restante da semana, ela
costurava, fazia cestos, cuidava de seu pomar, vendia o que podia dele, cuidava
de crianças em idade pré-escolar, e falava sobre todo mundo que não era tão
santo quanto ela acreditava ser.
Era a única pessoa que já conheci que vivia sozinha. A sra. Sims tinha uma
casa grande inteira para si porque ela e a esposa de seu único filho se
detestavam. O filho e a família dele eram pobres, mas não queriam morar com
ela. Que pena.
Pessoas diferentes a assustavam de um jeito profundo, difícil e feio. Ela não
gostava da família Hsu porque eles são chineses e hispânicos, e a geração
chinesa mais velha ainda é budista. Ela vivia a algumas casas de distância
deles há mais tempo do que eu tenho de vida, mas para ela ainda eram de
Saturno.
— Idólatras — dizia para se referir a eles quando não estavam por perto.
Pelo menos, ela se preocupava o suficiente com a política da boa vizinhança
para dizer aquilo pelas costas. Eles levaram pêssegos, figos e uma boa metragem
de algodão de boa qualidade no mês passado, quando ela foi roubada.
Aquele roubo tinha sido a primeira grande tragédia da sra. Sims. Três
homens subiram no muro do bairro, cortando o arame farpado e o laminado no
topo. O arame laminado é algo horrível. É tão fino e cortante que decepa as asas
ou os pés das aves que não o veem ou que tentam parar em cima dele. Mas as
pessoas sempre conseguem encontrar uma maneira de passar por cima, por baixo
ou pelo meio.
Todo mundo levou coisas para a sra. Sims depois do roubo, mesmo ela sendo
do jeito que é. Era. Alimentos, roupas, dinheiro... Reunimos doações para ela na
igreja. Os ladrões a amarraram e a abandonaram - depois de um deles a
estuprar. Uma senhora como ela! Levaram toda a comida, as joias que tinham
sido de sua mãe, as roupas e, pior de tudo, todo o dinheiro. Parece que ela
mantinha o dinheiro - todo ele - em uma tigela de plástico azul em cima do
armário da cozinha. Pobre velha maluca. Procurou pelo meu pai, chorando e
reclamando depois do roubo, porque agora não podia comprar a comida de que
precisava para suplementar o que plantava. Não podia pagar suas contas, nem os
impostos da propriedade que iam vencer. Ela acabaria sendo jogada na rua,
despejada de casa! Morrería de fome!
Meu pai lhe disse, muitas vezes, que a igreja não permitiría que isso
acontecesse, mas ela não acreditou nele. Falava sem parar sobre ter que
mendigar, e meu pai e Cory tentavam acalmá-la. O engraçado é que ela também
não gostava de nós porque meu pai tinha se casado com “aquela mexicana Cory-
ah-zan”. Não é tão difícil assim dizer “Co-razon”, se quiser chamá-la assim. A
maioria das pessoas a chama de Cory ou de sra. Olamina.
Cory nunca deixou transparecer que se ofendia por isso. Ela e a sra. Sims
eram um doce uma com a outra. Um pouco mais de hipocrisia para manter a paz.
Na semana passada, o filho da sra. Sims, os cinco filhos dele, a esposa, o
irmão dela e os três filhos do irmão dela morreram em um incêndio doméstico -
um incêndio criminoso. A casa do filho ficava em uma região sem muros a
nordeste de onde estávamos, mais perto da base das montanhas. Não era uma
área ruim, mas era pobre. Nua. Certa noite, alguém ateou fogo à casa. Talvez
tenha sido um incêndio por vingança, causado por algum inimigo de um membro
da família, ou talvez um maluco o tenha causado por diversão. Eu soube que
existe uma nova droga ilegal que faz as pessoas quererem causar incêndios.
Enfim, ninguém sabe quem fez isso com as famílias Sims/Boyer. Ninguém
viu nada, é claro.
E ninguém saiu da casa. Estranho isso. Onze pessoas, e nem uma saiu.
Então, há uns três dias, a sra. Sims atirou em si mesma. Meu pai soube pelos
policiais que foi há cerca de três dias. Isso seria só dois dias depois de ela saber
da morte do filho. Meu pai foi visitá-la hoje cedo porque ela não foi à
igreja ontem. Cory se forçou a acompanhá-lo porque achou que deveria ir. Eu
queria que ela não tivesse ido. Para mim, cadáveres são nojentos. Eles fedem e
têm vermes, se estiverem muito velhos. Mas e daí? Estão mortos. Não estão
sofrendo, e se você não gostava deles quando estavam vivos, por que ficar tão
chateado quando morrem? Cory fica chateada. Ela me repreende por
compartilhar a dor dos vivos, mas tenta dividi-la com os mortos.
Comecei a escrever isso sobre a sra. Sims porque ela se matou. E o que me
chateia. Ela pensava, como meu pai, que se você se mata, vai para o inferno e
arde para sempre. Acreditava em uma aceitação literal de todas as coisas da
Bíblia. Mas quando as coisas se tornaram pesadas demais, decidiu trocar a dor
mundana pela eterna no além-mundo.
Como ela pôde fazer isso?
Será que acreditava em alguma coisa mesmo? Ou era só hipocrisia?
Ou talvez tenha enlouquecido porque seu Deus estava exigindo demais dela.
Ela não era Jó. Na vida real, quantas pessoas são?
Sábado, 17 de agosto de 2024
Não consigo me esquecer da sra. Sims. De algum modo, ela e seu suicídio se
misturaram com a morte da astronauta e sua expulsão do paraíso. Eu preciso
escrever sobre as coisas em que acredito. Preciso começar a unir os versos
espalhados que tenho escrito sobre Deus desde que tinha doze anos. A maioria
deles não é muito boa. Eles dizem o que eu preciso dizer, mas não o fazem muito
bem. Alguns são como deveriam ser. Eles também me pressionam, como as duas
mortes. Eu tento me esconder em todo o trabalho que há para ser feito aqui em
casa, para a igreja de meu pai, e para a escola que Cory mantém para lecionar às
crianças do bairro. A verdade é que não me importo com nenhuma dessas coisas,
mas elas me mantêm ocupada e me deixam cansada e, na maior parte do tempo,
eu durmo sem sonhar. Além disso, meu pai se ilumina quando as pessoas dizem
a ele que sou muito esperta e trabalhadora.
Eu o amo. Ele é a melhor pessoa que conheço, e me importo com a opinião
dele. Queria não ligar para isso, mas me importo.
De qualquer forma, aqui estão as coisas em que acredito. Demorei muito
tempo até entender, e muito tempo com um dicionário normal e outro de
sinônimos para me expressar direito - exatamente como tem que ser. No último
ano, esse texto passou por 25 ou 30 reedições incoerentes. Esta é a versão certa,
a verdadeira. É a que sempre releio:
Deus é Poder:
Infinito,
Irresistível.
Inexorável,
Indiferente.
E, ainda assim, Deus é maleável:
Trapaceiro.
Professor,
Caos,
Argila.
Deus existe para ser moldado.
Deus é Mudança.
Esta é a verdade literal.
A Deus não se pode resistir nem parar, mas ele pode ser moldado e
concentrado. Isso quer dizer que não devemos orar a Deus. As orações só
ajudam a pessoa que está orando, e só se fortalecerem e direcionarem a
determinação dessa pessoa. Se forem usadas desta forma, podem nos ajudar em
nosso único relacionamento de verdade com Deus. Elas nos auxiliam a moldar
Deus, e a aceitar e a trabalhar com as formas que Ele impõe a nós. Deus é poder
e, no fim, Deus prevalece.
Mas podemos virar o jogo a nosso favor se compreendermos que Deus existe
para ser moldado, e que assim o será, com ou sem nosso planejamento, com ou
sem a nossa intenção.
É o que eu sei. Uma parte do que sei, pelo menos. Não sou como a sra. Sims.
Não sou uma espécie de Jó em potencial, sofredora, de pescoço tenso e, por fim,
tornada humilde ou destruída diante de um todo-poderoso onisciente. Meu Deus
não me ama, não me odeia, nem me observa e me conhece, e eu não sinto amor
nem lealdade por meu Deus. Meu Deus simplesmente é.
Talvez eu seja mais como Alicia Leal, a astronauta. Como ela, acredito em
algo que julgo necessário a meu povo morrendo, negando e agindo de modo
retrógrado. Ainda não tenho tudo. Nem sei como passar adiante o que
possuo. Preciso aprender a fazer isso. Me assusta pensar nas tantas coisas que
tenho que aprender. Como vou aprendê-las?
Alguma delas é real?
Pergunta perigosa. Às vezes, não sei a resposta. Eu duvido de mim mesma.
Duvido do que acho que sei. Tento esquecer. Afinal, se é real, por que mais
ninguém sabe sobre isso? Todo mundo percebe que a mudança é inevitável.
Desde a segunda lei da termodinâmica até a evolução darwiniana, da
insistência do budismo de que nada é permanente e de que todo o sofrimento
resulta de nossas ilusões de permanência, até o terceiro capítulo de Eclesiastes
(“Tudo tem o seu tempo”), a mudança faz parte da vida, da existência, da
sabedoria comum. Mas eu não acredito que estejamos lidando com tudo o que
isso significa. Nem sequer começamos a tratar disso.
Concordamos da boca pra fora, como se a aceitação bastasse. Depois,
criamos superpessoas - superpais, super-reis e rainhas, superpoliciais - para
serem nossos deuses e cuidarem de nós - para ficarem entre nós e Deus. Ainda
assim, Ele esteve aqui o tempo todo, nos moldando e sendo moldado por nós
de nenhuma maneira particular ou de muitas de uma vez, como uma ameba - ou
como um câncer. Caos.
Ainda assim, por que não posso fazer o que os outros têm feito: ignorar o
óbvio? Viver uma vida normal. Já é bem difícil fazer isso neste mundo.
Mas essa coisa (Essa ideia? Filosofia? Nova religião?) não me deixa em paz,
não me deixa esquecer, não me larga. Talvez. .. Talvez seja como o meu
compartilhar: mais uma esquisitice; mais uma ilusão maluca e arraigada à qual
estou presa. Eu estou realmente presa a isso. E, com o tempo, terei que fazer
algo a respeito. Apesar do que meu pai me dirá ou fará comigo, apesar da
podridão venenosa para além do muro, para onde poderei ser exilada, terei que
fazer algo a respeito.
Essa realidade me assusta demais.
Alguns primos da velha sra. Sims herdaram a casa dela. Eles têm sorte por
ainda terem uma casa para herdar. Se não fosse o nosso muro, ela teria sido
derrubada, tomada por invasores ou incendiada assim que fosse esvaziada. Mas
o que as pessoas fizeram foi tomar de volta coisas que tinham dado à sra. Sims
depois de ela ter sido roubada e levarem a comida que tinha em casa. Não fazia
sentido deixar que apodrecesse. Não levamos seus móveis, tapetes ou
eletrodomésticos. Poderiamos, mas não os levamos. Não somos ladrões.
Wardell Parrish e Rosalee Payne pensam diferente. Os dois são pessoas
pequenas e bronzeadas, com cara de poucos amigos, como a sra. Sims. São
filhos de uma prima de primeiro grau com quem ela tinha conseguido manter
contato e boas relações. Ele ficou viúvo duas vezes, não tem filhos, e ela
enviuvou uma vez e tem sete filhos. Eles não só são irmão e irmã, mas gêmeos.
Talvez isso os ajude a se darem bem um com o outro. Certamente não o farão
com mais ninguém.
Eles vão se mudar hoje. Já estiveram aqui algumas vezes para ver o lugar, e
acho que gostaram mais dele do que da casa dos pais, que dividiam com outras
dezoito pessoas. Eu estava ocupada no escritório com minha turma de alunos
mais novos, então só os conheci hoje, apesar de ter ouvido meu pai falando com
eles - eu os ouvi sentar na nossa sala de estar e insinuar que tínhamos “limpado”
a casa da sra. Sims antes de eles chegarem.
Meu pai manteve a calma.
— Vocês sabem que ela foi roubada um mês antes de morrer — disse ele. —
Podem checar essa informação com a polícia... se ainda não checaram. Desde
então, a comunidade tem protegido a casa. Não a usamos, nem a pilhamos.
Se quiserem viver conosco, devem entender isso. Nós ajudamos uns aos outros,
e não roubamos.
— Não esperaria que você dissesse que rouba — grunhiu Wardell Parrish.
A irmã dele interrompeu antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa.
— Não estamos acusando ninguém de nada — mentiu ela. — Só ficamos
pensando... Sabíamos que a prima Marjorie tinha algumas coisas boas... Joias
que ela herdou da mãe... Muito valiosas...
— Falem com a polícia — rebateu meu pai.
— Sim, eu sei, mas...
— Somos uma comunidade pequena — disse meu pai. — Todos conhecem
uns aos outros aqui. Dependemos uns dos outros.
Fez-se silêncio. Talvez os gêmeos estivessem entendendo a mensagem.
— Não somos muito sociais — declarou Wardell Parrish. — Cuidamos da
nossa vida.
Mais uma vez, a irmã entrou no meio antes que ele pudesse continuar.
— Tenho certeza de que tudo vai ficar bem — disse ela. — Tenho certeza de
que vamos nos entender.
Eu não gostei deles quando os ouvi. Gostei ainda menos quando os conheci.
Olham para nós como se fedéssemos, e eles não. É claro que não importa se eu
gosto deles ou não. Há outras pessoas no bairro de quem não gosto. Mas não
confio nos Payne-Parrish. As crianças parecem boas, mas os adultos... Não iria
querer confiar neles. Nem mesmo para coisas pequenas.
Payne e Parrish. Que belos nomes.
Encontramos uma matilha de cães ferais hoje. Fomos aos montes praticar tiro
ao alvo - eu, meu pai, Joanne Garfield, seu primo e namorado Harold “Harry”
Balter, meu namorado Curtis Talcott, seu irmão Michael, Aura Moss e seu
irmão Peter. Outro de nossos guardiões adultos era o pai de Joanne, Jay. Ele é
um homem bom e sabe atirar. O meu gosta de trabalhar com ele, apesar de às
vezes existirem problemas. Os Garfield e os Balter são brancos, e o resto de nós,
negros. Isso pode ser perigoso hoje em dia. Na rua, espera-se que as pessoas
temam e detestem todo mundo, menos seus semelhantes, mas com todos nós
armados e atentos, todos olhavam, mas nos deixavam em paz. Nosso bairro é
pequeno demais para fazermos esse tipo de jogo.
De início, tudo correu normalmente. Os Talcott entraram em uma discussão,
primeiro uns com os outros, e então com os Moss. Estes estão sempre culpando
outras pessoas por tudo o que fazem errado, por isso tendem a ter
conflitos duradouros com a maioria de nós. Peter Moss é o pior porque está
sempre tentando ser como seu pai, que é um idiota completo. O pai tem três
esposas. De uma só vez, Karen, Natalie e Zahra. Todas têm filhos dele, mas até
agora, Zahra, a mais nova e mais bonita, tem um só. Karen é a que tem a
certidão de casamento, mas permitiu que ele trouxesse a primeira, depois outra
mulher, para dentro da casa, e que as chamasse de esposas. Acredito que pelo
jeito como as coisas são, ela não achou que poderia se virar sozinha com três
crianças quando ele acolheu Natalie, e cinco quando encontrou Zahra.
Os Moss não frequentam a igreja. Richard Moss criou a própria religião, uma
combinação do Antigo Testamento e das práticas históricas da África Ocidental.
Ele diz que Deus quer que os homens sejam patriarcas, dominadores e protetores
de mulheres, e pais do máximo de crianças possível. É engenheiro das grandes
empresas de água comercial, por isso consegue escolher mulheres bonitas,
jovens e sem teto, vivendo com elas em relacionamentos poligâmicos.
Ele poderia escolher vinte mulheres como essas se pudesse pagar pela
alimentação delas. Ouço dizerem que tem muita coisa desse tipo acontecendo em
outros bairros. Alguns homens de classe média provam que são homens tendo
muitas mulheres em relacionamentos temporários ou permanentes.
Alguns homens de classe alta provam que são homens tendo uma esposa e um
monte jovens servas lindas e descartáveis. Nojento. Quando as moças
engravidam, se seus empregadores ricos não as protegerem, as outras esposas
deles as colocam para fora e elas passam fome.
Fico me perguntando se é assim que as coisas serão. Será esse o futuro?
Muitas pessoas presas ou na versão de escravidão do presidente eleito Donner,
ou na de Richard Moss.
Subimos a Rua River de bicicleta, passando pelos últimos muros de bairro,
pelas últimas casas em ruínas e sem muro, pela última parte de asfalto
esburacado, trapos e cabanas fracas de sem-teto, e moradores de rua que nos
encaram daquele jeito horrível, vazio, e subimos mais ainda os montes ao
longo de uma estrada de terra. Finalmente, descemos das bicicletas e as levamos
a pé pelo caminho estreito até um dos cânions que nós e outros usamos para
praticar tiro. Estava tudo bem dessa vez, mas sempre temos que ter cuidado. As
pessoas usam os cânions para muitas coisas. Se encontramos cadáveres em
um, ficamos longe dele por um tempo. Meu pai tenta nos proteger do que
acontece no mundo, mas não consegue. Sabendo disso, ele também tenta ensinar
a nos protegermos.
A maioria de nós pratica em casa com armas de pressão em alvos caseiros e
em esquilos e aves. Já fiz tudo isso. Minha mira é boa, mas não gosto de praticar
com animais. Foi meu pai quem insistiu que eu aprendesse a atirar neles. Ele
dizia que alvos móveis seriam bons para a minha mira. Eu acho que havia outras
intenções. Acho que queria ver se eu conseguiría - se atirar em uma ave ou em
um esquilo acionaria minha hiperempatia.
Não acontecia, não exatamente. Eu não gostava, mas não era doloroso.
Parecia um golpe leve, estranho e fantasmagórico, como ser atingida por uma
bola enorme de ar, mas sem frieza, sem a sensação do vento. O golpe, apesar de
ainda ser leve, era um pouco mais forte com esquilos, e às vezes com ratos do
que com aves. Mas os três tinham que ser mortos. Ou eles comiam nossa
comida, ou a estragavam. As árvores frutíferas eram suas vítimas especiais:
pêssegos, ameixas, figos, caquis, castanhas... E plantações, como morangos,
amoras, uvas... Independentemente do que plantássemos, se eles conseguissem
alcançar, atacariam. As aves são as piores porque podem voar, mas gosto delas.
Invejo a capacidade que têm de voar. Às vezes, eu me levanto e saio de
madrugada para poder observá-los sem que ninguém os assuste ou atire neles.
Agora que tenho idade para sair para atirar aos sábados, não pretendo matar mais
nenhum pássaro, não importa o que meu pai diga. Além disso, o fato de eu
conseguir atirar em uma ave ou um esquilo não quer dizer que poderia atirar em
uma pessoa -um ladrão como aqueles que roubaram a sra. Sims. Não sei
se poderia fazer isso. E se eu o fizesse, não sei o que aconteceria comigo. Será
que eu morrería?
É culpa de meu pai o fato de prestarmos muita atenção a armas e tiros. Leva
uma pistola automática de nove milímetros sempre que deixa o bairro. Ele a
carrega no quadril, onde as pessoas podem vê-la. Meu pai diz que isso
desestimula os erros. Pessoas armadas são mortas, sim - principalmente em troca
de tiros ou por atiradores mas as desarmadas morrem com ainda mais
frequência.
Meu pai também tem uma metralhadora nove milímetros com silenciador.
Ela fica em casa com Cory, para o caso de alguma coisa acontecer enquanto ele
estiver fora. As duas armas são alemãs - Heckler ôc Koch. Meu pai nunca contou
onde conseguiu a metralhadora. É ilegal, é claro, não o julgo por isso. Deve ter
custado muito caro, e a tirou de casa poucas vezes, para que ele, Cory e eu
pudéssemos senti-la e manuseá-la. Fará a mesma coisa com os meninos quando
forem mais velhos.
Cory tem um velho revólver Smith & Wesson .38 e é boa com ele. Ela o tem
desde antes de se casar com meu pai. Cory me emprestou o revólver hoje. As
nossas armas não são as melhores nem as mais novas no bairro, mas funcionam.
Meu pai e Cory as mantém em boas condições. Preciso ajudar com isso agora. E
eles passam o tempo que precisam praticando e gastando dinheiro em munição.
Nas reuniões da associação do bairro, meu pai insistia para que os adultos de
todas as famílias possuíssem armas, as guardassem e soubessem como usá-las.
— Saibam usá-las bem — disse ele mais de uma vez —, a ponto de serem
capazes de se defender às duas da manhã, tão bem quanto às duas da tarde.
No começo, alguns vizinhos não gostaram - os mais velhos que diziam ser
trabalho da polícia protegê-los, os mais jovens que temiam que seus filhinhos
encontrassem as armas, e os religiosos que não concordavam com um
ministro precisar de armas. Isso foi há muitos anos.
— A polícia — meu pai disse a eles — pode conseguir vingá-los, mas não
pode protegê-los. As coisas estão piorando. E quanto a seus filhos... Bem, é
verdade, existe esse risco. Mas vocês podem deixar as armas fora do alcance
deles enquanto forem muito pequenos, e treiná-los conforme crescerem. É o que
pretendo fazer. Acredito que terão mais chance de crescer se vocês puderem
protegê-los. — Ele fez uma pausa, olhou para as pessoas e então continuou: —
Tenho esposa e cinco filhos. Rezarei por todos eles. Também cuidarei para que
saibam se defender. E, por quanto tempo puder, eu me colocarei entre minha
família e qualquer invasor. — Ele pausou mais uma vez. — É o que preciso
fazer. Vocês todos façam o que têm que fazer.
Agora há pelo menos duas armas em cada família. Meu pai diz suspeitar que
algumas delas estejam tão bem escondidas - como a arma da sra. Sims - que não
estariam disponíveis em uma emergência. Ele está cuidando disso.
Todas as crianças que frequentam a escola em nossa casa recebem instruções
sobre como lidar com armas. Quando passam por essa fase e completam quinze
anos, dois ou três vizinhos adultos começam a levá-las aos montes para
praticar tiro ao alvo. É meio como um rito de passagem para nós. Meu irmão
Keith tem implorado para ir junto sempre que alguém organiza um grupo de tiro,
mas a regra da idade é rígida.
Eu me preocupo ao ver que Keith quer pegar em armas. Meu pai não parece
se preocupar, mas eu sim.
A fé
Inicia e guia ações...
Ou não faz nada.
— Semente da Terra: o livro dos vivos
Está chovendo.
Ontem à noite, ouvimos no rádio que uma tempestade vinha chegando do
Pacífico, mas a maioria das pessoas não acreditou.
— Vai ventar — disse Cory. — Vento e talvez umas gotas de chuva, ou quem
sabe um pouco de frio. Seria bom. E o que teremos.
E o que vem acontecendo há seis anos. Eu me lembro da chuva de seis anos
atrás, a água batendo na varanda dos fundos, não abundante o suficiente para
entrar na casa, mas forte a ponto de atrair meus irmãos, que queriam brincar
nela. Cory, sempre preocupada com infecções, não permitiu. Ela disse que eles
estariam enfiados em uma sopa de todos os germes de água suja com a qual
vínhamos regando nossas hortas há anos. Talvez ela estivesse certa, mas as
crianças do bairro todo se cobriram de lama e minhocas naquele dia, e nada de
terrível aconteceu com elas.
Mas aquela tempestade fora quase tropical - uma chuva forte e quente de
setembro, o fim de um furacão que atingiu a costa do Pacífico no México. A de
agora era uma tempestade mais fria, de inverno. Começou pela manhã enquanto
as pessoas estavam vindo à igreja.
No coral, cantamos músicas antigas acompanhadas pelo piano de Cory e
raios e trovões vindos de fora. Foi maravilhoso. Algumas pessoas perderam
parte do sermão, no entanto, porque foram para casa a fim de colocar para fora
todos os barris, baldes, bacias e panelas que conseguiram encontrar com a
intenção de coletar a água gratuita. Outras voltaram para colocar panelas e
baldes dentro de casa, onde havia goteiras no teto.
Não consigo me lembrar de quando um de nós chamou um profissional para
consertar o telhado. Todos os nossos são de telhas espanholas, e isso é bom.
Suspeito que um telhado desse material seja mais seguro e duradouro do que
peças de madeira e de asfalto. Mas o tempo, o vento e os terremotos causaram
estrago. Galhos de árvore também geraram certo prejuízo. Mas ninguém tem
dinheiro extra para algo tão irrelevante quanto um reparo do telhado. No
máximo, alguns dos homens do bairro sobem com qualquer material que
consigam recolher e criam retalhos improvisados. Ninguém tem feito nem isso
ultimamente. Se só chove uma vez a cada seis ou sete anos, por que se importar
com isso?
Nosso telhado está aguentando até agora, e os recipientes que colocamos
para fora depois da missa de hoje cedo estão cheios ou se enchendo. Água boa,
limpa e gratuita do céu. Podia vir com mais frequência.
Andei na chuva de novo hoje cedo. Estava fria, mas foi bom. Amy já tinha
sido cremada. Fico me perguntando se a mãe dela está aliviada. Não parece.
Nunca gostou de Amy, mas agora está chorando. Não acho que esteja fingindo.
A família gastou um dinheiro que não tinha para envolver a polícia no caso e
tentar encontrar o assassino. Acho que a única coisa boa nisso vai ser afastar as
pessoas que vivem nas calçadas e nas ruas mais próximas ao nosso muro. Isso é
bom? Os sem--teto voltarão, e não vão nos adorar por colocar os policiais atrás
deles. É ilegal acampar na rua como eles fazem - como precisam fazer -, então
os policiais os atacam, roubam o que houver de valor, e os mandam embora ou
os levam para a cadeia. Os miseráveis ficam ainda mais miseráveis. Nada
disso pode ajudar Amy. Mas acho que fará com que os Dunn se sintam melhor
sobre como a trataram.
No sábado, meu pai vai pregar na missa de Amy. Eu queria não precisar estar
presente. As missas de falecimento nunca me incomodaram antes, mas esta sim.
— Você se importava com a Amy — disse Joanne Garfield quando reclamei
com ela.
Nós almoçamos juntas hoje. Comemos no meu quarto porque ainda chove e
para toda hora, e o resto da casa estava cheio com todas as crianças que não
tinham ido para as delas almoçar. Mas meu quarto ainda é meu. É o único lugar
no mundo aonde posso ir sem ser seguida por quem eu não convidar. Sou a única
pessoa que conheço que tem um quarto para si. Hoje em dia, até mesmo meu pai
e Cory batem antes de abrir minha porta. É uma das melhores coisas em ser a
única filha da família. Tenho que expulsar meus irmãos daqui o tempo todo, mas
pelo menos posso fazer isso. Joanne é filha única, mas divide um quarto com três
primas menores - Lisa, a chorona, sempre exigindo e reclamando; Robin, esperta
e risonha, com seu QI quase de gênio; e Jessica, a invisível, que sussurra e olha
para os pés, e chora quando olhamos para ela de cara feia. As três são da família
Balter - as irmãs de Harry e os filhos da irmã da mãe de Joanne. As duas irmãs
adultas, seus maridos, os oito filhos, e seus pais, o sr. e a sra. Dory, se apertam
todos em uma casa de cinco quartos. Não é a casa mais cheia do bairro, mas fico
feliz por não ter que viver assim.
— Quase ninguém se importava com Amy — continuou Joanne. — Mas
você se importava.
— Depois do incêndio, passei a me importar — comentei. — Fiquei
assustada por ela naquela vez. Antes disso, eu a ignorava como todo mundo.
— Então agora você está se sentindo culpada?
— Não.
— Está, sim.
Olhei para ela, surpresa.
— Estou falando sério. Não mesmo. Detesto o fato de ela estar morta e sinto
falta dela, mas não causei sua morte. Só não posso negar o que isso tudo diz
sobre nós.
— O que diz?
Eu me senti prestes a contar para ela sobre coisas que nunca tinha falado
antes. Eu havia escrito sobre elas. Às vezes faço isso para não enlouquecer.
Existe um mundo de coisas sobre as quais não me sinto livre para falar com
ninguém.
Mas Joanne é uma amiga. Ela me conhece melhor do que a maioria das
pessoas e tem discernimento. Por que não conversar com ela? Mais cedo ou mais
tarde, tenho que falar com alguém.
— O que houve? — ela perguntou. Ela tinha aberto um recipiente plástico de
salada de feijão e o colocou sobre minha mesa.
— Nunca ficou pensando que talvez Amy e a sra. Sims tenham tido sorte? —
perguntei. — Sei lá, nunca se perguntou o que vai acontecer com o restante de
nós?
Ouvimos um trovão seco e abafado, e então uma pancada de chuva forte. A
previsão do tempo no rádio diz que a chuva de hoje será a última da série de
quatro dias de tempestades. Espero que não.
— Claro que já pensei — respondeu Joanne. — Com pessoas atirando em
crianças pequenas, como não pensaria?
— As pessoas têm matado criancinhas desde que o mundo é mundo —
comentei.
— Aqui, não. Não antes.
— Pois é, não é isso mesmo? Recebemos um sinal de alerta. Outro.
— Do que você está falando?
— Amy foi a primeira de nós a ser morta assim. Não será a última.
Joanne suspirou, e percebi um leve tremor em seu suspiro.
— Então você também acha.
— Acho. Mas eu não sabia que você pensava nisso.
— Estupro, roubo e, agora, assassinato. É claro que eu penso nisso. Todo
mundo pensa. Todo mundo se preocupa. Eu queria poder sair daqui.
— Para onde você iria?
— É isso, não é? Não temos para onde ir.
— Pode ser que tenhamos.
— Não para quem não tem dinheiro. Não se você só souber cuidar de bebês e
cozinhar.
Balancei a cabeça, negando.
— Você sabe muito mais do que isso.
— Talvez, mas nada disso importa. Não vou conseguir pagar uma faculdade.
Não vou conseguir um emprego nem sair da casa de meus pais porque nenhum
que eu pudesse ter me sustentaria e não há lugares seguros para os quais nos
mudarmos. Mas que inferno, meus pais ainda moram com os pais deles.
— Eu sei — falei. — E por mais ruim que seja, tem mais.
— Quem precisa de mais? Já chega!
Ela começou a comer a salada de feijão. Parecia gostosa, mas achei que
estava prestes a acabar com o apetite dela.
— A cólera está se espalhando no sudeste do Mississippi e de Louisiana —
falei. — Fiquei sabendo pelo rádio ontem. Há muitas pessoas pobres...
analfabetas, desempregadas, desabrigadas, sem saneamento decente ou água
limpa. Elas têm muita água lá, mas grande parte dela está poluída. E sabe
aquela droga que faz as pessoas quererem causar incêndios?
Ela assentiu, mastigando.
— Está se espalhando de novo. Estava na costa leste. Agora, em Chicago. As
notícias dizem que ela faz com que observar um incêndio seja melhor do que
sexo. Não sei se a condenam ou fazem propaganda dela. — Respirei fundo. —
Os tornados estão acabando com Alabama, Kentucky, Tennessee, e dois ou três
outros Estados. Trezentas pessoas mortas até agora. E uma geada está
congelando o norte da região central, matando ainda mais gente. E, em Nova
York e New Jersey, uma epidemia de sarampo está matando pessoas. Sarampo!
— Eu ouvi sobre o sarampo — comentou Joanne. — Estranho. Mesmo que
as pessoas não pudessem pagar pelas vacinas, essa doença não deveria matar.
— Essas pessoas já estão meio mortas — eu disse a ela. — Passaram pelo
frio do inverno, famintas e já acometidas por outras doenças. E não, é claro que
elas não podem pagar pelas vacinas. Temos sorte que nossos pais
tiveram dinheiro para pagar todas as nossas imunizações. Se nós tivermos filhos,
não sei como conseguiremos fazer nem mesmo isso por eles.
— Eu sei, eu sei. — Ela parecia quase entediada. — As coisas estão ruins.
Minha mãe espera que esse homem novo, o presidente Donner, comece a nos
levar de volta ao normal.
— Normal — murmurei. — Fico tentando imaginar o que é isso. Você
concorda com sua mãe?
— Não. Donner não tem chance. Acho que ele consertaria as coisas, se
pudesse, mas Harry diz que as idéias dele são assustadoras. Ele diz que Donner
vai fazer o país voltar cem anos no tempo.
— Meu pai diz algo assim. Estou surpresa por saber que Harry concorda.
— Concorda. O pai dele acha que Donner é Deus. Harry não concorda com
ele em nada.
Eu ri, distraída, pensando nos conflitos de Harry com seu pai. Fogos de
artifício do bairro - muita fumaça, pouco fogo.
— Por que você quer falar sobre isso? — Joanne perguntou, me levando de
volta ao fogo de verdade. — Não podemos fazer nada a esse respeito.
— Temos que fazer.
— Temos que fazer o quê? Temos quinze anos! O que podemos fazer?
— Podemos nos preparar. É o que temos que fazer agora. Precisamos nos
preparar para o que vai acontecer, nos preparar para sobreviver a isso, para
construir uma vida depois. Temos que nos concentrar em conseguir sobreviver
para poder fazer mais do que sermos comandados por pessoas loucas,
desesperadas, bandidos e líderes que não sabem o que estão fazendo!
Ela apenas me encarou.
— Não sei do que você está falando.
Eu falava sem parar - depressa demais, talvez.
— Estou falando deste lugar, Jo, deste beco com um muro ao redor. Estou
falando do dia em que um grupo grande de pessoas famintas, desesperadas e
malucas de fora decidirem entrar. Estou falando do que temos que fazer antes de
isso acontecer para podermos sobreviver e reconstruir, ou pelo menos sobreviver
e fugir para nos tornarmos algo diferente de mendigos.
— Alguém vai simplesmente derrubar nosso muro e entrar?
— É mais provável que estourem o muro ou o portão para entrar. Vai
acontecer algum dia. Você sabe disso tão bem quanto eu.
— Ah, não, não sei — protestou.
Ela sentou-se com as costas retas, quase rígida, esquecendo-se de almoço por
um momento. Mordi um pedaço de pão de bolota cheio de frutas secas e
castanhas. É um dos meus preferidos, mas acabei mastigando e engolindo
o pedaço sem sentir o gosto.
— Jo, estamos com problemas. Você já admitiu isso.
— E claro — disse ela. — Mais tiros, mais invasões. Era a isso que eu me
referia.
— E é o que vai acontecer por um tempo. Gostaria de saber até quando.
Vamos ser atacados, atacados e atacados, e então o grande ataque virá. E se não
estivermos prontos para ele, será como Jericó.
Ela ficou tensa, rejeitando a ideia.
— Você não sabe disso! Não pode prever o futuro. Ninguém pode.
— Você pode — respondi —, se quiser. É assustador, mas depois que vencer
o medo, fica fácil. Em Los Angeles, algumas comunidades muradas maiores e
mais fortes do que a nossa não existem mais. Não sobrou nada além de
ruínas, ratos e invasores. O que aconteceu com eles pode acontecer com a gente.
Vamos morrer aqui se não nos ocuparmos agora e encontrarmos maneiras de
sobreviver.
— Se você acha isso, por que não diz a seus pais? Alerte-os e veja o que eles
dizem.
— Pretendo fazer isso assim que conseguir pensar em uma maneira que os
afete. Além disso... acho que eles já sabem. Acho que meu pai sabe, pelo menos.
E que a maioria dos adultos sabe. Não querem saber, mas sabem.
— Minha mãe pode estar certa a respeito de Donner. Pode ser que ele faça
algo de bom.
— Não, não, Donner não passa de um tipo de corrimão humano.
— Um o quê?
— Quero dizer que ele é como... um símbolo do passado ao qual podemos
nos segurar enquanto somos empurrados para o futuro. Ele não é nada. Não tem
conteúdo. Mas tê-lo ali, o mais novo em uma série de dois séculos e meio de
presidentes americanos, faz as pessoas sentirem que o país, a cultura com a qual
cresceram, ainda existe. Que todos passaremos por esse período ruim e
voltaremos ao normal.
— Nós poderiamos — rebateu ela. — Seria possível. Acho que um dia
faremos isso.
Não, não achava. Ela era esperta demais para tirar qualquer coisa exceto o
conforto mais superficial de sua negação. Mas penso que até mesmo o conforto
superficial é melhor do que não ter algum. Tentei outra tática.
— Você já leu sobre a peste bubônica na Europa Medieval? — perguntei.
Ela assentiu. Joanne lê muito, assim como eu, lê coisas de todos os tipos.
— Grande parte do continente foi despovoada — disse ela. — Alguns
sobreviventes achavam que o mundo estava acabando.
— Sim, mas quando perceberam que não era o caso, também notaram que
havia muita terra não ocupada disponível para ser tomada e, se tinham um
negócio, que podiam exigir um pagamento melhor por seu trabalho. Muitas
coisas mudaram para os sobreviventes.
— O que quer dizer?
— Estou falando das mudanças. — Pensei um pouco. — Foram mudanças
lentas se comparadas a qualquer coisa que possa acontecer aqui, mas foi
necessário que uma praga se espalhasse para algumas pessoas perceberem que
as coisas podiam mudar.
— E daí?
— As coisas também estão mudando agora. Nossos adultos não foram
dizimados por uma praga, por isso ainda estão presos ao passado, esperando pela
volta dos bons tempos. Mas as coisas mudaram muito, e mudarão mais. Estão
sempre mudando. Este é só um dos grandes saltos e não as pequenas mudanças
passo a passo, mais fáceis de fazer. As pessoas mudaram o clima do mundo.
Agora, esperam pela volta dos bons tempos.
— Seu pai diz não acreditar que as pessoas mudaram o clima, apesar do que
os cientistas dizem. Ele diz que só Deus poderia transformar o mundo de modo
tão significativo.
— Você acredita nele?
Ela abriu a boca, olhou para mim, e voltou a fechá-la. Depois de um tempo,
disse:
— Não sei.
— Meu pai tem seus pontos cegos — falei. — É a melhor pessoa que
conheço, mas até mesmo ele tem seus pontos cegos.
— Não faz nenhuma diferença — disse ela. — Não podemos fazer o clima
voltar ao que era antes, independentemente do motivo que o tenha levado a se
alterar. Você e eu não podemos. O bairro não pode. Não podemos fazer nada.
Perdi a paciência.
— Então vamos nos matar agora e acabar com isso!
Ela franziu o cenho, com o rosto redondo e sério demais beirando a ira.
Arrancou pedaços da casca de uma tangerina pequena.
— O que fazer, então? — perguntou. — O que podemos fazer?
Engoli o último pedaço de pão de bolota e dei a volta por ela até minha mesa.
Peguei vários livros da última gaveta funda e os mostrei a ela.
— É isso que tenho feito: estou lendo e estudando estas coisas nos últimos
meses. Estes livros são velhos como todos os outros nesta casa. Também tenho
usado o computador de meu pai quando ele permite, para conseguir coisas
novas.
Franzindo o cenho, ela os analisou. Três livros sobre sobrevivência
selvagem, três sobre armas e tiro, dois de cada sobre como lidar com
emergências médicas, plantas nativas e naturalizadas da Califórnia e seu uso, e
sobre coisas básicas da vida: construir casas de madeira, criar gado,
cultivar plantações, fazer sabão - coisas assim. Joanne não hesitou.
— O que você está fazendo? — ela perguntou. — Tentando aprender a viver
com o que a terra dá?
— Estou tentando aprender tudo o que puder do que talvez me ajude a
sobreviver lá fora. Acho que todos nós deveriamos estudar livros como estes.
Acho que deveriamos enterrar dinheiro e outras necessidades no chão, onde os
ladrões não os encontrem. Acho que precisamos fazer pacotes de
emergência, malas prontas com nossas coisas, para o caso de termos que
sair daqui depressa. Dinheiro, alimento, roupas, fósforos, um cobertor. .. Acho
que deveriamos estabelecer pontos lá fora onde podemos nos encontrar no caso
de sermos separados. Mas que droga, acho muitas coisas. E eu sei... eu sei! Que
independentemente de quantas coisas eu ache, não vai ser o suficiente. Sempre
que saio, tento imaginar como deve ser viver lá fora sem muros, e percebo que
não sei nada.
— Então por que...
— Pretendo sobreviver.
Ela só ficou me olhando.
— Quero aprender tudo o que puder enquanto puder — declarei. — Se eu
acabar lá fora, talvez o que aprendi me ajude a viver o suficiente para aprender
mais.
Ela me deu um sorriso nervoso.
— Você tem lido muitos livros de aventura — disse ela.
Franzi o cenho. Como poderia convencê-la?
— Não é piada, Jo.
— O que é, então? — Ela comeu a última parte da tangerina. — O que quer
que eu diga?
— Quero que você leve isso a sério. Entendo que não sei muito. Nenhum de
nós sabe. Mas todos podemos aprender mais. E então, ensinar uns aos outros.
Podemos parar de negar a realidade ou esperar que ela desapareça por mágica.
— Não é o que estou fazendo.
Olhei para a chuva por um momento, me acalmando.
— Certo, certo. O que vai fazer?
Ela pareceu desconfortável.
— Ainda não tenho certeza de que podemos fazer algo.
— Jo!
— Me diga o que posso fazer que não me cause problemas ou faça todo
mundo me achar maluca. Diga alguma coisa.
Finalmente.
— Você leu todos os livros de sua família?
— Alguns deles. Não todos. Nem todos valem a pena ser lidos. Os livros não
vão nos salvar.
— Nada vai nos salvar. Se não nos salvarmos, estaremos mortos. Agora, use
sua imaginação. Tem alguma coisa nas estantes de sua família que poderia ajudar
se você ficasse presa lá fora?
— Não.
— Você responde depressa demais. Vá para casa e olhe de novo. E como eu
disse, use sua imaginação. Qualquer informação de sobrevivência em
enciclopédias, biografias, qualquer coisa que te ajude a aprender a viver fora
daqui e a se defender. Até mesmo um pouco de ficção pode ser útil.
Ela me olhou de canto de olho.
— Ah, claro.
— Jo, se você nunca precisar dessas informações, elas não serão prejudiciais.
Você só vai saber um pouco mais do que antes. E daí? A propósito, você faz
anotações enquanto lê?
Olhar defensivo.
— As vezes.
— Leia isto.
Entreguei a ela um dos livros sobre plantas. Era sobre os índios da
Califórnia, os vegetais que eles usavam e como os usavam — um livrinho
interessante e divertido. Ela se surpreendería. Não havia nada nele que a
assustasse, ameaçasse ou pressionasse. Eu achava que já tinha feito muito disso.
— Faça anotações — disse a ela. — Vai se lembrar melhor se fizer.
— Ainda não acredito em você — comentou ela. — As coisas não precisam
ser tão ruins quanto diz que são.
Coloquei o livro nas mãos dela.
— Cuide das suas anotações — falei. — Preste bastante atenção às plantas
que crescem entre aqui e a costa, e entre aqui e Oregon, pela costa. Eu as
marquei.
— Eu disse que não acredito em você.
— Não me importo.
Ela olhou para o livro e passou as mãos pela capa preta de tecido e cartolina.
— Então aprendemos a comer grama e a viver nos arbustos — murmurou
ela.
— Aprendemos a sobreviver — falei. — É um bom livro. Cuide bem dele.
Você sabe como meu pai é em relação aos livros dele.
A chuva parou. Minhas janelas ficam do lado norte da casa, e consigo ver as
nuvens se abrindo. Elas são sopradas em direção às montanhas para o deserto. É
incrível como se movem depressa. O vento está forte e frio agora. Pode ser que
isso nos custe algumas árvores.
Fico me perguntando quantos anos se passarão até vermos a chuva de novo.
6
Joanne contou.
Ela contou à mãe, que contou ao pai, que contou ao meu pai, que teve uma
dessas conversas sérias comigo. Maldita. Maldita!
Eu a vi hoje na missa que fizemos para Amy e ontem na escola. Não disse
nada a respeito do que havia feito. Ela contou para a mãe na quinta. Talvez
devesse ser um segredo entre elas ou algo assim. Mas, ah, Phillida Garfield
estava tão preocupada comigo, tão apreensiva. E ela não gostava de me ver
assustando Joanne. Joanne estava assustada? Não o suficiente para usar a cabeça,
ao que parece. Ela sempre pareceu tão sensível. Será que achava que me colocar
em apuros faria o perigo ir embora? Não, não é assim. E só mais negação: um
joguinho idiota de “Se não falarmos sobre as coisas ruins, talvez elas não
aconteçam”. Idiota! Nunca mais vou conseguir dizer coisas importantes para ela.
E se eu tivesse sido mais receptiva? E se tivesse falado de religião com ela?
Eu queria. Como vou conseguir falar com alguém sobre isso?
O que eu disse teve efeito contrário comigo hoje. O sr. Garfield conversou
com meu pai depois do velório. Foi como um telefone sem fio. A mensagem foi
de “Estamos em perigo aqui e teremos que nos esforçar para nos salvar” para
“Lauren está falando de ir embora porque tem medo de que pessoas de fora se
revoltem, derrubem os muros e matem todos nós”.
Bem, eu tinha dito parte daquilo, e Joanne havia deixado claro que não
concordava comigo. Mas eu não havia feito só previsões ruins: “Vamos morrer,
ai, ai”. De que adiantaria? Mesmo assim, só as coisas negativas voltaram para
mim.
— Lauren, o que você disse para a Joanne? — meu pai exigiu saber.
Ele entrou no meu quarto depois do jantar, quando deveria estar terminando
o sermão do dia seguinte. Ele se sentou na única cadeira do cômodo e olhou para
mim como se dissesse: “O que você tem na cabeça, menina? Qual é o
seu problema?”. Aquele olhar mais o nome de Joanne me mostraram o que tinha
acontecido, sobre o que era aquela conversa. Minha amiga Joanne. Maldita!
Eu me sentei na cama e olhei para ele.
— Eu disse a ela que enfrentaríamos momentos ruins e perigosos —
respondi. — Avisei que deveriamos aprender o que pudéssemos agora para
podermos sobreviver.
Foi quando ele me contou como a mãe de Joanne estava chateada, como
Joanne estava chateada, e as duas achavam que eu precisava “conversar com
alguém” porque pensava que nosso mundo estava acabando.
— Você acha que nosso mundo está acabando? — perguntou meu pai e,
inesperadamente, quase comecei a chorar.
Tive que me esforçar muito para me controlar. O que pensei foi: “Não, eu
acho que o seu mundo está acabando e talvez você esteja acabando junto com
ele”. Aquilo era terrível. Não tinha pensado nisso de modo tão pessoal antes.
Eu me virei e olhei pela janela até me sentir mais calma. Quando voltei a olhar
para ele, respondi:
— Acho. Você não acha?
Ele franziu o cenho. Acho que ele não esperava aquela resposta.
— Você tem quinze anos — disse ele. — Não entende muito bem o que está
acontecendo aqui. Os problemas que temos agora têm se acumulado desde muito
antes de seu nascimento.
— Eu sei.
Ele ainda franzia a testa. Fiquei tentando imaginar o que queria que eu
dissesse.
— O que você estava fazendo, então? — perguntou. — Por que disse aquelas
coisas a Joanne?
Decidi que continuaria dizendo a verdade enquanto fosse possível. Detesto
mentir para ele.
— O que eu disse era verdade — insisti.
— Você não tem que dizer tudo o que acha que sabe — disse ele. — Ainda
não se deu conta disso?
— Joanne e eu éramos amigas — falei. — Pensei que pudesse conversar com
ela.
Ele balançou a cabeça.
— Essas coisas assustam as pessoas. É melhor não falar sobre elas.
— Mas, pai, é como... como ignorar um incêndio na sala de estar porque
todos estão na cozinha e, além disso, os incêndios domésticos são assustadores
demais para serem abordados.
— Não alerte Joanne, ou nenhuma de suas amigas — disse ele. — Não
agora. Sei que você acha que está certa, mas não está ajudando ninguém. Só está
deixando as pessoas em pânico.
Consegui controlar a onda de ódio mudando um pouco de assunto. As vezes,
a melhor maneira de tocar meu pai é atacá-lo de várias direções.
— O sr. Garfield devolveu seu livro? — perguntei.
— Qual livro?
— Emprestei a Joanne um livro sobre plantas california-nas e os modos que
os índios as usavam. Era um de seus livros. Sinto muito por tê-lo emprestado a
ela. É tão neutro que não achei que poderia causar problemas. Mas acho que
causou.
Ele pareceu assustado, e então quase sorriu.
— Sim, vou precisar pegar esse de volta, sim. Você não teria o pão de bolota
de que tanto gosta sem aquele, sem falar de algumas outras coisas que não
valorizamos.
— Pão de bolota...?
Ele assentiu.
— A maioria das pessoas neste lugar não usa bolotas, sabia? Elas não têm a
tradição de comê-las, não sabem prepará-las e, por algum motivo, consideram
que comê-las é nojento. Alguns de nossos vizinhos queriam cortar todos
os carvalhos e plantar algo útil. Você não acreditaria no quanto sofri fazendo
com que mudassem de ideia.
— O que as pessoas comiam antes?
— Pão feito de trigo e outros grãos: milho, cevada, aveia... coisas assim.
— Caro demais!
— Não era. Pegue aquele livro de volta com Joanne. — Ele respirou fundo.
— Vamos sair da estrada lateral e voltar para a principal. O que você estava
planejando fazer? Tentou convencer Joanne a fugir?
Eu suspirei.
— E claro que não.
— O pai dela disse que você tentou.
— Ele está enganado. Isso tinha a ver com continuar viva, aprender a viver
do lado de fora para conseguirmos se um dia fosse necessário.
Ele me observou como se pudesse ler a verdade em minha mente. Quando eu
era pequena, achava que ele era capaz.
— Está bem — disse ele. — Sua intenção pode ter sido boa, mas não quero
mais que aborde coisas assustadoras.
— Não foi assustador. Precisamos aprender o que pudermos enquanto
tivermos tempo.
— Isso não depende de você, Lauren. Não pode tomar decisões por esta
comunidade.
Ah, mas que inferno. Se ao menos eu conseguisse encontrar um equilíbrio
entre controlar demais e forçar, pressionar.
— Sim, senhor.
Ele se recostou e olhou para mim.
— Conte-me exatamente o que disse a Joanne. Tudo.
Eu contei. Tomei o cuidado de manter a voz tranquila e sem alarde, mas não
deixei nada de fora. Queria que ele soubesse, entendesse no que eu acreditava. A
parte não religiosa daquilo, pelo menos. Quando terminei, parei e aguardei. Ele
parecia esperar que eu dissesse mais. Ficou sentado ali olhando para mim por um
tempo. Não entendi o que ele sentia. As outras pessoas não conseguiam entendê-
lo quando ele não queria, mas eu consigo, na maior parte do tempo. Porém,
naquele momento eu me senti deixada de fora, e não havia nada a fazer a
respeito. Esperei.
Por fim, ele soltou a respiração como se a estivesse prendendo.
— Não fale mais sobre isso — disse com uma voz que não deixava espaço
para argumentação.
Olhei para ele, sem querer prometer algo que seria uma mentira.
— Lauren.
— Pai.
— Quero que prometa que não vai mais falar sobre isso. O que dizer? Não
prometeria. Não podia prometer.
— Poderiamos fazer malas para terremotos — sugeri. — Kits de emergência
que poderiamos pegar no caso de termos que sair de casa depressa. Se nós os
chamarmos de malas para terremotos, a ideia pode não perturbar tanto as
pessoas. Elas estão acostumadas a se preocupar com terremotos — disse tudo de
uma vez.
— Quero que você prometa, filha.
Eu me sobressaltei.
— Por quê? Você sabe que estou certa. Até mesmo a sra. Garfield deve saber.
Então, por quê?
Pensei que ele fosse gritar comigo ou me castigar. Sua voz trazia um tom de
alerta que meus irmãos e eu tínhamos passado a chamar de chocalho - era como
o chocalho de uma cobra. Se ele fosse além do “chocalho” com alguém, era sinal
de problema. Se ele nos chamasse de “filho” ou “filha”, estaríamos quase em
apuros.
— Por quê? — insisti.
— Porque você não faz ideia do que está fazendo — disse. Franziu e coçou a
testa. Quando voltou a falar, sua voz estava mais calma. — É melhor ensinar as
pessoas do que assustá-las, Lauren. Se assustá-las e nada acontecer, elas perdem
o medo e você, parte da autoridade com elas. É mais complicado assustá-las uma
segunda vez, mais difícil recuperar a confiança delas. É melhor começar
ensinando. — Ele entortou os lábios em um sorrisinho. — E interessante que
você tenha escolhido começar seus esforços com o livro que emprestou a
Joanne. Já pensou em lecionar com aquele livro?
— Lecionar... para minhas crianças de jardim de infância?
— Por que não? Faça com que comecem com o pé direito. Vocês poderiam
até mesmo organizar uma aula para crianças maiores e para adultos. Algo
parecido com a aula de entalhe do sr. Ibarra, a de costura da sra. Balter e as
palestras sobre astronomia de Robert Hsu. As pessoas estão entediadas.
Não desprezariam uma aula informal agora que perderam a televisão dos Yannis.
Se conseguir pensar em maneiras de divertidas e ensiná-las ao mesmo tempo, vai
passar a informação. E tudo sem fazer ninguém olhar para baixo.
— Olhar para baixo...?
— Para o abismo, filha. — Mas eu não estava mais em apuros. Não naquele
momento. — Você acabou de notar o abismo — continuou ele. — Os adultos
nesta comunidade têm se equilibrado à beira dele desde antes de você nascer.
Eu me levantei, fui até ele e peguei sua mão.
— Está piorando, pai.
— Eu sei.
— Talvez esteja na hora de olharmos para baixo. Hora de procurar algo em
que nos segurarmos antes de sermos empurrados para lá.
— É por isso que temos treino de tiro toda semana, além de uma cerca
elétrica e nosso sino de emergência. Sua ideia de malas de emergência é boa.
Algumas pessoas já as têm. Para terremotos. Outras as organizarão se eu sugerir.
E, é claro, algumas não farão nada. Sempre há pessoas que não fazem nada.
— Você vai sugerir?
— Sim. Na próxima reunião da associação de bairro.
— O que mais podemos fazer? Nada disso é rápido o suficiente.
— Terá que ser. — Ele ficou de pé, era um homem alto e de costas largas. —
Por que não pergunta para as pessoas, a fim de ver se alguém no bairro sabe
alguma coisa sobre artes marciais? É preciso de mais do que um ou dois livros
para aprender a combater bem sem armas.
Hesitei.
— Está bem.
— Veja com o velho sr. Hsu e com o sr. e a sra. Montoya.
— Com o senhor e com a senhora?
— Acho que sim. Converse com eles sobre aulas, não sobre o Apocalipse.
Olhei para ele, que parecia mais alto do que nunca, como um muro, parado,
esperando. Ele tinha me oferecido muita coisa. Tudo o que eu poderia ter,
acreditava. Suspirei.
— Está bem, pai, prometo. Tentarei não assustar mais ninguém. Só espero
que as coisas se mantenham normais por tempo suficiente para fazermos as
coisas do seu jeito.
Ele também suspirou.
— Finalmente. Ótimo. Agora, saia comigo. Há algumas coisas importantes
enterradas no quintal em caixas fechadas. Está na hora de você saber onde elas
estão... só para garantir.
Domingo, 9 de março de 2025
Joanne me procurou depois da igreja e disse que sentia muito por toda a
loucura.
— Tudo bem — falei.
— Ainda somos amigas? — perguntou ela.
E eu respondi:
— Pelo menos não somos inimigas. Devolva o livro de meu pai. Ele o quer
de volta.
— Minha mãe está com ele. Não sabia que ela ficaria tão irritada.
— Não é dela. Quero ele de volta. Ou faça seu pai devolvê-lo. Não me
importo. Mas ele quer o livro.
— Está bem.
Eu a observei sair da casa. Parece tão confiável - alta, de postura ereta, séria
e inteligente - que ainda me sinto inclinada a confiar nela. Mas não consigo. Não
confio. Ela não faz ideia de como poderia ter me ferido se eu tivesse dado a ela
apenas mais algumas palavras para usar contra mim. Acho que nunca mais vou
confiar nela de novo, e detesto isso. Ela era minha melhor amiga. Agora não é
mais.
Quarta-feira, 12 de março de 2025
É oficial.
Agora temos rondas no bairro: um apanhado de pessoas, de todas as famílias,
que têm mais de dezoito anos, que sabem mexer com armas - com as próprias e
com outras - e são consideradas responsáveis por meu pai e pelos que já estavam
fazendo a ronda pelo bairro. Como nenhum deles foi policial ou guarda,
continuarão atuando em pares, cuidando uns dos outros e também do bairro.
Usarão apitos para chamar ajuda se precisarem. Além disso, vão se encontrar
uma vez por semana para ler, discutir e praticar artes marciais e técnicas de tiro.
Os Montoya darão as aulas de artes marciais, certo, mas não pela minha
sugestão. O velho sr. Hsu está com problemas nas costas e não vai ensinar nada
por um tempo, mas os Montoya parecem bastar. Eu pretendo assistir às aulas
sempre que conseguir tolerar compartilhar das dores da prática de todo mundo.
Meu pai pegou todos os livros dele que estavam comigo hoje cedo. Agora só
tenho minhas anotações. Não me importo. Graças aos ladrões de hortas, as
pessoas estão se preparando para o pior. Eu quase me sinto grata a eles.
A propósito, eles não voltaram - nossos ladrões. Quando voltarem,
poderemos dar a eles algo que não estão esperando.
Sábado, 29 de março de 2025
Somos todos Semente de Deus, mas não mais nem menos do que qualquer
outro aspecto do universo, a Semente de Deus é tudo o que existe - tudo o que
Muda. A Semente da Terra é tudo o que espalha a Vida da Terra a novas terras. O
universo é Semente de Deus. Mas nós somos Semente da Terra. E o Destino
da Semente da Terra é criar raízes entre as estrelas.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
As vezes, dar nome a algo - dar nome ou descobrir seu nome - ajuda uma
pessoa a começar a entendê-lo. Saber o nome de uma coisa e saber para que essa
coisa serve me dá ainda mais noção a respeito dela.
O sistema de crença Deus é Mudança que me parece certo será chamado de
Semente da Terra. Já tentei dar um nome a ele antes. Não consegui, e tentei
deixá-lo sem. Nenhum dos esforços me deixou confortável. Nome mais
propósito é igual a foco, para mim.
Bem, hoje eu encontrei o nome, encontrei enquanto estava tirando as ervas
daninhas do quintal de trás e pensando em como as plantas espalham suas
sementes, por meio do vento, dos animais, da água, longe de suas plantas-mães.
Elas não têm a habilidade de percorrer grandes distâncias por vontade própria,
mas ainda assim, elas viajam. Nem mesmo elas precisam ficar paradas em um
lugar esperando serem extintas. Há ilhas a milhares de quilômetros de todos os
lugares - as ilhas havaianas, por exemplo, e a Ilha de Páscoa - para onde as
plantas espalharam suas sementes e cresceram antes da chegada dos seres
humanos.
Semente da Terra.
Eu sou Semente da Terra. Qualquer pessoa pode ser. Um dia, acho que
seremos muitos. E acho que teremos que espalhar nossas sementes cada vez
mais longe deste lugar moribundo.
Nunca senti que estava inventando nada disso - nem o nome, Semente da
Terra, nem nada relacionado. Ou seja, nunca senti que fosse algo diferente da
realidade: descoberta em vez de invenção, exploração em vez de criação.
Gostaria de poder acreditar que tudo foi sobrenatural e que tenho recebido
mensagens de Deus. Mas não acredito nesse tipo de Deus. Só observo e faço
anotações, tentando organizar as coisas de modos que sejam tão fortes, simples e
diretos quanto eu os sinto. Não consigo fazer isso. Tento, mas não consigo. Não
sou tão boa assim como escritora nem poeta, nem com nada que preciso ser para
isso. Não sei o que fazer a esse respeito. Às vezes fico desesperada. Estou
melhorando, mas muito devagar.
A verdade é que mesmo com meus problemas de redação, sempre que
entendo um pouco mais, me pergunto por que demorei tanto - por que já houve
um momento em que eu não entendia algo tão óbvio, real e verdadeiro.
Aqui está o único mistério nisso tudo, o único paradoxo, ou raciocínio
ilógico e circular, ou o que quer que seja:
Por que há universo?
Para moldar Deus,
Por que há Deus?
Para moldar o universo.
Não consigo me livrar disso. Já tentei mudar ou largar, mas não consigo. Não
consigo. Parece ser a coisa mais verdadeira que já escrevi. É tão misteriosa e
óbvia quanto qualquer outra explicação de Deus ou do universo que já li, mas
para mim, as outras parecem inadequadas, no máximo.
Todo o resto da Semente da Terra é explicação — o que Deus é, o que Ele
faz, o que somos, o que deveriamos fazer, o que não conseguimos parar de
fazer... Pense: Seja você um ser humano, um inseto, um micróbio ou uma pedra,
este verso é verdadeiro.
Tudo o que você toca
Você Muda.
Tudo o que você Muda
Muda você.
A única verdade perene
É a Mudança.
Deus
É Mudança.
Vou reler meus antigos diários e reunir os versos que escrevi em um único
volume. Vou colocá-los em um dos cadernos de exercícios que Cory entrega às
crianças mais velhas agora que temos poucos computadores no bairro. Escrevi
muitas coisas inúteis naqueles cadernos, fazendo minha lição do ensino médio.
Agora, vou usar um deles para algo melhor. E então, um dia, quando as pessoas
conseguirem prestar mais atenção ao que eu digo do que à minha idade, usarei
esses versos para libertá-las do passado apodrecido e talvez consiga impulsioná-
las para que se salvem e construam um futuro que faça sentido.
Isso se tudo aguentar mais alguns anos.
Tracy Dunn desapareceu. Ela estava deprimida desde que Amy foi morta.
Quando falava alguma coisa, era sobre morrer, querer morrer e merecer morrer.
Todo mundo esperava que ela vencesse seu pesar - ou a culpa - e seguisse com
a vida. Talvez não tenha conseguido. Meu pai conversou com ela várias vezes, e
sei que estava preocupado. A família maluca dela não ajudou. Eles a tratam
como ela tratava a Amy: eles a ignoram.
O boato é que ela saiu ontem em algum momento. Um grupo de filhos dos
Moss e dos Payne disse que a viram sair pelo portão assim que eles saíram da
escola. Desde então, ninguém mais a viu.
Aqui está o presente de aniversário que surgiu em minha mente hoje cedo
quando acordei. Só duas frases:
O Destino da Semente da Terra
É criar raízes entre as estrelas.
Era isso que eu estava buscando há alguns dias, quando a história da
descoberta dos novos planetas chamou minha atenção. É claro que é verdade. É
óbvio.
No momento, também é impossível. O mundo está horrível. Nem mesmo os
países ricos estão se dando tão bem quanto a história diz que os países ricos se
davam bem. O presidente Donner não é o único que está fechando e vendendo
projetos científicos e espaciais. Ninguém está expandindo o tipo de exploração
que não traga lucro imediato, ou que pelo menos prometa grandes lucros futuros.
Não há clima agora para fazer qualquer coisa que pudesse ser considerada
desnecessária ou ineficaz. E ainda assim:
O Destino da Semente da Terra
É criar raízes entre as estrelas.
Não sei como vai acontecer nem quando vai acontecer. Há muito a se fazer
antes de tudo sequer poder começar. Acho que isso é de se esperar. Sempre há
muito a se fazer antes de merecer chegar ao paraíso.
8
Tracy Dunn não voltou para casa e não foi encontrada pela polícia. Não acho
que será. Ela está desaparecida há apenas uma semana, mas do lado de fora deve
ser como uma semana no inferno. As pessoas desaparecem do lado de fora. Elas
passam pelo nosso portão, como o sr. Yannis passou, e todo mundo espera por
elas, mas elas não voltam nunca - ou voltam dentro de uma urna. Eu acho que
Tracy Dunn morreu.
Tivemos prática de tiro hoje, e pela primeira vez desde que matei o cachorro,
encontramos outro corpo. Todos nós o vimos dessa vez - uma senhora, nua,
cheia de vermes, já meio devorada e mais do que nojenta.
Para Aura Moss, isso foi a gota-d'água. Ela diz que não vai mais praticar tiro
ao alvo. Nunca mais. Tentei conversar com ela, mas diz que é tarefa dos homens
nos proteger. Diz que as mulheres não deveriam ter que mexer em armas.
— E se você tiver que proteger suas irmãs e seus irmãos mais novos? —
perguntei. Ela tem que cuidar deles com frequência.
— Já sei o suficiente para fazer isso — disse ela.
— Você fica enferrujada se não praticar — falei.
— Não vou sair de novo — insistiu. — Isso não é da sua conta. Eu não sou
obrigada a ir!
Não consegui convencê-la. Ela estava com medo, e isso a tornava defensiva.
Meu pai disse que eu deveria ter esperado a lembrança do cadáver sumir, para
depois tentar convencê-la.
Acho que ele está certo. É a atitude dos Moss que me incomoda. Richard
Moss deixa suas esposas e filhas fazerem coisas assim. Ele as trata como
escravas em suas hortas, na criação de coelhos e nos serviços de casa, mas deixa
fingirem ser “mocinhas” quando se trata de algum esforço comunitário. Se elas
não querem fazer a sua parte, sempre as apoia. Isso é perigoso e burro. É terreno
fértil para o ressentimento. Nenhuma mulher da família Moss participou das
rondas de vigia. Não fui a única pessoa a perceber isso.
Os dois filhos mais velhos dos Payne foram conosco pela primeira vez.
Muita falta de sorte. Mas não ficaram assustados, Doyle e Margaret. Eles são
durões. São bacanas. O tio deles, Wardell Parrish, não queria que eles fossem.
Ele havia feito comentários desprezíveis sobre o ego de meu pai, sobre exércitos
e vigilantes particulares, e sobre seus impostos -como havia pagado o suficiente
na vida para ter o direito de depender da polícia para protegê-lo. Blá, blá, blá.
Ele é um homem estranho, solitário, resmungão. Já ouvi dizer que era rico. Meu
pai concorda comigo que ele não é confiável. Mas ele não é o pai de Doyle, nem
de Margaret, e a mãe deles, Rosalee Payne, não gosta de ninguém dizendo como
ela deve criar seus cinco filhos. O único poder que ela tem no mundo é sua
autoridade sobre os filhos e sobre o dinheiro. Ela tem um pouco de dinheiro,
herdado de seus pais. Seu irmão perdeu o dele. Por isso, o fato de tentar dizer a
ela o que deveria ou não fazer e deixar seus filhos fazerem foi uma atitude
tola. Ele deveria ter pensado melhor - mas, pelo bem das crianças, ainda bem
que não pensou.
Meu irmão Keith implorou para ir conosco, como sempre. Ele vai completar
treze anos daqui a alguns dias - 14 de agosto -, e pensar em esperar mais dois
anos até fazer quinze deve parecer impossível para ele. Compreendo. Esperar é
terrível. Esperar para ficar mais velho é pior do que outros tipos de espera
porque não há nada a fazer para acelerar o processo. Coitado do Keith. Coitada
de mim.
Meu pai pelo menos o deixa atirar em pássaros e em esquilos com a arma de
pressão da família, mas Keith ainda assim reclama. “Não é justo”, disse ele hoje
pela vigésima ou trigésima vez. “A Lauren é menina e você deixa ela ir. Sempre
deixa ela fazer as coisas. Eu poderia aprender a ajudar na proteção de vocês e a
afastar os ladrões...”
Certa vez, ele cometeu o erro de oferecer ajuda para “atirar em ladrões” em
vez de assustá-los e meu pai praticamente fez um sermão por causa disso. Ele
quase nunca bate na gente, mas sabe ser assustador sem precisar levantar um
dedo.
Keith não foi hoje, é claro. E nosso treino foi bom até encontrarmos o corpo.
Não vimos nenhum cachorro dessa vez. O mais chato para mim, no entanto, foi
encontrar mais choças feitas com trapos, gravetos, papelão e folhas de palmeira
pelo caminho da Rua River. Sempre parece haver mais. Os moradores de rua
nunca nos perturbam além de pedirem esmolas e xingarem, mas sempre nos
encaram. Fica cada vez mais difícil passar por eles. Alguns são esqueletos vivos.
Pele, ossos e alguns dentes. Eles comem o que conseguem encontrar ali.
Às vezes sonho com o modo com que eles nos encaram.
Em casa, meu irmão Keith fugiu do bairro - pelos portões da frente e se foi.
Roubou a chave de Cory e partiu sozinho. Meu pai e eu só soubemos quando
chegamos. Keith ainda não tinha voltado e, naquele momento, Cory sabia que
ele devia ter ido para fora. Ela havia perguntado às pessoas no bairro e os dois
filhos gêmeos dos Dunn, Allison e Marie, de seis anos, disseram tê-lo visto sair
pelo portão. Então Cory foi para casa e descobriu que sua chave tinha sido
levada.
Meu pai, cansado, irritado e com medo, decidiu sair de novo para procurá-lo,
mas Keith chegou em casa quando ele estava saindo. Cory, Marcus e eu
tínhamos ido para a varanda da frente com meu pai, nós três tentando
descobrir para onde Keith tinha ido, e Marcus e eu nos oferecemos para ir com
meu pai e ajudar na busca. Estava quase escuro.
— Voltem para dentro da casa e fiquem lá — disse meu pai. —Já é bem ruim
que um de vocês esteja lá fora.
Ele conferiu a submetralhadora, verificou se ela estava carregada.
— Pai, olha lá — avisei.
Eu tinha visto algo se mexer três casas para baixo - um movimento rápido
perto da varanda dos Garfield. Não sabia que era Keith. Fui atraída por sua
discrição. Havia alguém se esgueirando, tentando se esconder.
Meu pai foi rápido o bastante para ver o movimento antes de ele ser
escondido pela casa dos Garfield. Ele se levantou de uma vez, pegou a arma e
foi conferir. Nós ficamos observando e esperando.
Momentos depois, Cory disse ter ouvido um barulho estranho na casa. Eu
estava concentrada demais no meu pai e no que estava acontecendo do lado de
fora para ouvir o que ela escutou ou para prestar atenção nela. Cory
entrou. Marcus e eu ainda estávamos na varanda quando ela gritou.
Marcus e eu nos entreolhamos, e então para a porta da frente. Marcus foi em
direção à entrada. Eu gritei chamando meu pai, que estava fora de vista, mas
ouvi quando ele respondeu ao meu grito.
— Venha depressa — falei, e corri para dentro da casa.
Cory, Marcus, Bennett e Gregory estavam na cozinha ao redor de Keith, que
estava deitado, ofegante, no chão, apenas de cueca. Estava arranhado e cheio de
hematomas, sangrando e imundo. Cory se ajoelhou ao lado dele, examinando-o,
questionando-o e chorando.
— O que aconteceu com você? Quem fez isso? Por que você saiu? Onde
estão suas roupas? O que...?
— Onde está a chave que você roubou? — meu pai interrompeu. — Eles a
tomaram de você?
Todos se sobressaltaram, olharam para meu pai e, então, para Keith.
— Não tive como evitar — disse Keith, ainda ofegante. — Não consegui,
papai. Eram cinco caras.
— Então eles pegaram a chave.
Keith assentiu balançando a cabeça, evitando olhar nos olhos de meu pai.
Meu pai se virou e saiu da casa, quase correndo. Era tarde demais agora para
fazer George ou Brian Hsu trocarem a tranca do portão. Isso teria que ser feito
no dia seguinte, e chaves novas teriam que ser feitas e distribuídas. Achei
que meu pai tinha saído para avisar as pessoas e colocar mais vigilantes em
ronda. Eu quis me oferecer para ajudar a alertar as pessoas, mas não fiz isso.
Meu pai parecia bravo demais para aceitar ajuda de um de seus filhos naquele
momento. E, quando voltasse, Keith entraria numa fria. E das piores. Tinha
perdido uma calça, uma camisa e um par de sapatos. Cory nunca nos deixava
sair descalços como muitas crianças faziam, só dentro de casa. Suas definições
de ser civilizado não envolvia pés sujos e cheios de calos, assim como não
envolvia pele suja e doente. Sapatos eram caros, e sempre os perdíamos porque
nossos pés cresciam, mas Cory insistia.
Cada um de nós tinha pelo menos um par de sapatos bons para calçar, apesar
do preço deles, que era alto. Agora, teríamos que encontrar dinheiro para
conseguir mais um par para Keith.
Meu irmão estava deitado no chão, sujando o azulejo com sangue que
escorria do nariz e da boca, envolvendo o corpo com os braços e chorando agora
que meu pai não estava mais ali. Cory precisou de dois ou três minutos
para fazer com que ele se levantasse e para levá-lo ao banheiro. Eu tentei ajudar,
mas ela olhou para mim como se eu o tivesse agredido, por isso os deixei em
paz. Eu não queria ajudar, na verdade. Só achei que deveria. Keith estava
sentindo muita dor, e era difícil para mim aguentar o compartilhamento.
Eu limpei o sangue para que ninguém escorregasse nele, nem o espalhasse
pela casa. Depois fiz o jantar, comi, alimentei os três meninos menores e deixei o
resto para meu pai, para Cory e para Keith.
Hoje cedo, Keith teve que confessar o que fez na igreja. Teve que ficar de pé
na frente de toda a congregação e contar tudo, incluindo o que os cinco caras
tinham feito com ele. Depois, teve que se desculpar - com Deus, com seus pais, e
com a congregação toda a quem colocou em risco e causou transtornos. Meu
pai o obrigou a fazer tudo isso, apesar das objeções de Cory.
Meu pai não bateu nele, apesar de provavelmente ter sentindo vontade na
noite passada.
— Por que você fez isso? — ele não parava de perguntar. — Como um filho
meu pode ser tão burro? Onde está seu cérebro, menino? O que pensou que
estava fazendo? Estou falando com você! Responda!
Keith respondeu, respondeu e respondeu, mas as respostas pareciam não
fazer nenhum sentido para meu pai.
— Não sou mais um bebê — dizia ele, chorando. Ou: — Eu queria mostrar
para vocês. Só queria mostrar para vocês! Você sempre deixa a Lauren fazer as
coisas! — Ou: — Sou um homem! Não deveria estar escondido dentro de casa,
escondido atrás do muro. Sou um homem!
E não terminava nunca porque Keith se recusava a admitir que tinha feito
algo errado. Queria mostrar que era um homem, não uma menina medrosa. Não
era sua culpa que um grupo de caras o tivesse atacado, agredido e roubado.
Ele não fez nada. Não era sua culpa.
Meu pai olhou para ele em completo desgosto.
— Você desobedeceu — disse ele. — Você roubou. Você colocou em risco a
vida e a propriedade de todos aqui, incluindo sua mãe, sua irmã e seus irmãos
menores. Se você fosse o homem que pensa que é, eu arrancaria seu couro!
Keith ficou olhando para a frente.
— Ladrões entram mesmo sem chave — murmurou ele. — Eles entram e
roubam coisas. Não é minha culpa!
Meu pai demorou duas horas para fazer Keith admitir que a culpa era dele,
sim, sem desculpas. Ele tinha feito algo errado. Não faria de novo.
Meu irmão não é muito esperto, mas ele compensa na teimosia. Meu pai é
esperto e teimoso. Keith não tinha chance, mas fez meu pai suar para vencer. Na
manhã seguinte, meu pai se vingou. Não acho que ele pensou na
confissão forçada de Keith como vingança, mas estava na cara de meu irmão que
ele achava que era, sim.
— Como faço para sair dessa família? — murmurou Marcus enquanto
assistíamos.
Eu me solidarizei. Ele tinha que dividir um quarto com Keith, e os dois, com
uma diferença de apenas um ano de idade, brigavam o tempo todo. Agora as
coisas seriam piores.
Keith é o preferido da Cory. Se você perguntasse, ela diria não ter um filho
preferido, mas tem. Ela o trata como bebê e deixa que não faça as tarefas, que
minta um pouco, que roube um pouco... Talvez seja por isso que Keith pense que
não tem problema fazer besteiras.
O sermão de hoje de manhã foi sobre os dez mandamentos, com ênfase em
“Honrar pai e mãe” e “Não roubarás”. Acho que meu pai extravasou muita raiva
e frustração durante aquele sermão. Keith, de pé, expressão séria, parecendo
mais velho do que seus treze anos, manteve a raiva que sentia. Podia ver que ele
a mantinha guardada, presa, engasgada.
9
Todas as lutas
São essencialmente
Lutas por poder.
Quem governará,
Quem liderará,
Quem definirá.
refinará,
confinará,
criará,
Quem dominará.
Todas as lutas
São essencialmente lutas por poder.
E a maioria não é mais intelectual
do que dois carneiros
batendo suas cabeças.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
O bom senso costumeiro dos meus pais falhou esta semana, no aniversário de
meu irmão Keith. Eles lhe deram uma arma de pressão. Não era nova, mas
funcionava, e parecia muito mais perigosa do que de fato era. E era dele. Ele não
tinha que compartilhá-la. Acho que a intenção era fazer com que se sentisse
melhor em relação aos dois anos que ainda tinha que esperar até conseguir pegar
uma Smith & Wesson, ou melhor ainda, a Heckler & Koch. E, claro, era para
ajudá-lo a superar seu desejo idiota de escapar e a humilhação de sua confissão
pública.
Keith atirou em mais alguns pombos e corvos, ameaçou atirar em Marcus -
que me contou isso hoje à noite - e então, ontem, ele partiu para lugares
inexplorados. Levou a arma de pressão consigo, é claro. Ninguém o vê há cerca
de dezoito horas, e não resta muita dúvida de que ele saiu de novo.
Meu pai saiu para procurar Keith hoje. Ele até chamou a polícia. Diz que não
sabe como vai pagar a taxa, mas está com medo. Quanto mais tempo Keith
passar longe, maiores são as chances de ele se ferir ou ser morto. Marcus acha
que ele saiu à procura dos caras que o agrediram. Não acredito nisso.
Nem mesmo Keith sairia à procura de cinco caras - nem mesmo de um cara -
com nada além de uma arma de pressão.
Cory está ainda mais preocupada do que meu pai. Está assustada e
sobressaltada, com o estômago embrulhado e não para de chorar. Eu a convenci
a se deitar e dei as aulas dela em seu lugar. Já fiz isso quatro ou cinco vezes
antes, quando ela ficou doente, por isso não foi muito esquisito para as crianças.
Usei o planejamento de aula de Cory, e, durante a primeira parte do dia, juntei os
alunos maiores com a minha sala de alunos do jardim de infância, em pares, e
deixei que todos tivessem um gostinho de como é ensinar ou aprender com
alguém diferente. Alguns de meus alunos são da minha idade e mais velhos,
e dois deles - Aura Moss e Michael Talcott - se levantaram e foram embora. Eles
sabiam que eu entendia o trabalho. Fiz meus últimos trabalhos e as últimas
provas do ensino médio quase dois anos atrás. Desde então, tenho feito trabalhos
universitários sem crédito (gratuito) com meu pai. Michael e Aura sabem de
tudo isso, mas são grandes demais para aprender alguma coisa com alguém
como eu. Que se danem. É uma pena, no entanto, que meu Curtis tenha um
irmão como Michael -não que alguém possa escolher os irmãos que terá.
Nem sinal de Keith. Acho que Cory começou a entrar em luto por ele. Eu dei
as aulas de novo hoje, e meu pai saiu para procurá-lo outra vez. Voltou para casa
com cara de exausto essa noite, e Cory chorou e gritou com ele.
— Você não tentou! — disse ela na minha presença e na de meus irmãos.
Tínhamos vindo ver se meu pai havia trazido Keith de volta. — Você poderia tê-
lo encontrado se tivesse tentado!
Meu pai procurou se aproximar dela, mas Cory se afastou, ainda gritando.
— Se fosse a sua Lauren preciosa lá fora, sozinha, você já a teria encontrado!
Você não se importa com o Keith.
Ela nunca disse nada parecido com isso antes.
Quero dizer, sempre fomos Cory e Lauren. Ela nunca me pediu para chamá-
la de “mãe” e eu nunca pensei em fazer isso. Sempre soube que ela era minha
madrasta. Mas ainda assim... eu sempre a amei. Sempre fiquei um pouco
desconcertada por achar que Keith era seu preferido, mas isso não me fazia amá-
-la menos. Eu era filha dela, mas não era. Não exatamente. Não realmente. Mas
sempre achei que ela me amasse.
Meu pai mandou todos nós irmos para a cama. Ele acalmou Cory e a levou
de volta ao quarto deles. Alguns minutos atrás, ele veio falar comigo.
— Ela não estava falando a sério — disse ele. — Ela te ama como se você
fosse filha dela, Lauren.
Apenas o encarei.
— Ela quer que você saiba que está arrependida.
Assenti, e depois de mais algumas palavras de conforto, ele se foi.
Ela está arrependida? Acho que não.
Ela estava falando sério. Estava. Ah, mas estava mesmo. Merda.
Keith saiu de novo. Ele se foi ontem à tarde. Cory só admitiu à noite que ele
não só levou a chave dela, dessa vez, mas também a arma. Ele levou a Smith &
Wesson.
Meu pai se recusou a sair à procura dele. Dormiu no escritório a noite
passada. Está dormindo lá de novo hoje.
Nunca gostei muito do meu irmão. E agora o odeio pelo que está fazendo
com a família - pelo que está fazendo com meu pai. Eu o odeio. Droga, eu o
odeio.
Keith voltou para casa hoje à noite enquanto meu pai estava visitando a casa
dos Talcott. Desconfio de que tenha ficado por perto, observando a casa,
esperando até meu pai sair. Ele tinha vindo para ver Cory. Trouxe a ela muito
dinheiro num rolo gordo.
Ela ficou olhando para o rolo e depois o pegou, atordoada. —Tanto dinheiro,
Keith — sussurrou. — Onde conseguiu? — É para você — disse ele. — Tudo
para você, não para ele. Ele pegou a mão dela e a fechou em volta do dinheiro -
e ela permitiu que ele fizesse isso, apesar de saber que só podia ser dinheiro
roubado, de drogas ou coisa pior.
Keith deu a Bennett e a Gregory barras grandes e caras de chocolate ao leite
com amendoim. Só sorriu para Marcus e para mim - um sorriso óbvio de “vão se
foder”. E então, antes que meu pai pudesse voltar para casa e encontrá-lo
aqui, ele se foi de novo. Cory não tinha percebido que estava partindo de novo, e
quase gritou e se agarrou a ele.
— Não! Você vai ser morto lá fora! Qual é seu problema? Fique em casa!
— Mãe, não vou deixar que ele me bata de novo — disse ele. — Não preciso
que ele me bata, nem que me diga o que fazer. Em breve, vou conseguir ganhar
mais dinheiro num dia do que ele consegue em uma semana, talvez em um mês.
— Você vai ser morto!
— Não vou, não. Sei o que estou fazendo. — Ele a beijou e, com grande
facilidade, afastou os braços dela. — Volto para te ver. Trarei presentes.
Ele desapareceu pela porta dos fundos, e foi embora.
A civilização é para os grupos o que a inteligência é para os indivíduos. É
uma maneira de combinar a inteligência de muitos para conseguir constante
adaptação do grupo, A civilização, como a inteligência, pode cumprir bem,
cumprir de modo adequado em sua função adaptativa ou falhar. Quando a
civilização deixa de servir, deve se desintegrar a menos que ajam sobre ela,
unificando forças internas e externas.
- SEMENTE DA TERRA: OS LIVROS DOS VIVOS
10
Keith voltou para casa ontem, maior do que nunca, alto e esguio como meu
pai é alto e largo. Ele ainda não tem 14 anos, mas já parece ser o homem que
tanto quer ser. Nós, os Olamina, somos assim - altos, fortes e crescemos
depressa. Exceto Gregory, que só tem nove anos, todos somos mais altos do que
Cory. Ainda sou a mais alta, e isso parece incomodá-la atualmente. Mas
ela adora o tamanho de Keith - seu filho grande. Só detesta o fato de ele não
morar mais conosco.
— Consegui um quarto — ele me disse ontem.
Conversamos, nós dois. Cory estava com Dorotea Cruz, que é uma de suas
melhores amigas e acabou de ter outro bebê. Os outros meninos estavam
brincando na rua e no canteiro. Meu pai tinha ido para a faculdade e passaria a
noite fora. Agora, mais do que nunca, é mais seguro sair apenas quando
amanhece e só tentar voltar para casa no amanhecer do dia seguinte. Isso se for
mesmo preciso sair, o que meu pai faz uma vez por semana. Os piores parasitas
ficam à espreita à noite e dormem até tarde. Mas Keith mora do lado de fora.
— Consegui um quarto em um prédio com algumas outras pessoas — disse
ele.
Tradução: ele e seus amigos tinham invadido um prédio abandonado. Quem
eram os amigos dele? Uma gangue? Um grupo de prostitutas? Um monte de
astronautas, saindo de órbita com as drogas? Uma quadrilha? Todas as
opções? Sempre que chegava para nos visitar, ele levava dinheiro para Cory e
presentinhos para Bennett e Gregory.
Como ele conseguia o dinheiro? Não existe um jeito honesto.
— Seus amigos sabem quantos anos você tem? — perguntei. Ele sorriu.
— Claro que não. Por que eu diria a eles?
Assenti.
— Às vezes ajuda quando parecemos ser mais velhos — completou ele.
— Quer comer alguma coisa?
— Você vai cozinhar para mim?
— Já cozinhei para você centenas de vezes. Milhares.
— Eu sei. Mas antes era sua obrigação.
— Não seja idiota. Você acha que eu não poderia agir como você agiu?
Escapar de minhas responsabilidades se quisesse? Não estou com vontade. Quer
comer ou não quer?
— Com certeza.
Fiz ensopado de coelho e pão de bolota - o suficiente para Cory e para todos
os meninos quando chegassem. Ele ficou por perto e me observou trabalhar por
um tempo, e então começou a falar comigo. Nunca fez isso antes. Nunca, nunca
gostamos um do outro, nós dois. Mas ele tinha informação que eu queria, e
parecia querer falar. Eu devia ser a pessoa mais segura com quem ele podia
conversar. Não tinha medo de me chocar. Não se importava muito com o que
eu pensava. E não temia que eu contasse a meu pai nem a Cory as coisas que me
diria. É claro que eu não contaria. Por que causar dor neles? Nunca fui muito de
fofocar com as pessoas, de qualquer modo.
— É só um prédio velho e feio por fora — disse ele sobre a casa nova. —
Mas você precisa ver como é lindo por dentro.
— Prostíbulo ou nave espacial? — perguntei.
— Tem coisas que você nunca viu — disse ele, fugindo da pergunta. —
Janelas de TV pelas quais dá para passar em vez de só assistir. Fones de ouvido,
cintos e anéis... Você vê e sente tudo, faz qualquer coisa. Qualquer coisa! Há
lugares e coisas nas quais é possível entrar com esse equipamento, e elas são
demais! Não precisa sair na rua para nada, só para comprar comida.
— E o dono dessas coisas aceitou abrigar você? — perguntei.
— Isso.
— Por quê?
Ele olhou para mim por muito tempo, e então começou a rir.
— Porque sei ler e escrever — disse, por fim. — E nenhum deles sabe. São
todos mais velhos do que eu, mas nenhum consegue ler nem escrever nada. Eles
roubaram todas essas coisas incríveis e nem sabiam usar. Antes que eu chegasse,
eles até quebraram parte das coisas porque não conseguiam ler as instruções.
Cory e eu tínhamos nos esforçado muito para ensinar Keith a ler e a escrever.
Ele se entediava, impaciente, tudo menos disposto.
— Então você lê para ganhar a vida, para ajudar seus novos amigos a
aprenderem a usar o equipamento roubado — falei.
— Isso.
— E o que mais?
— Mais nada.
Como mentia mal. Sempre mentiu mal. Ele não tem consciência.
Simplesmente não é esperto o bastante para contar mentiras convincentes.
— Drogas, Keith? — perguntei. — Prostituição? Roubo?
— Eu disse que não tem mais nada! Você sempre acha que sabe tudo.
Suspirei.
— Você não se cansa de causar dor no pai e na Cory, não é? Nunca se cansa.
Ele fez uma cara como se quisesse gritar comigo ou me atacar. Talvez tivesse
feito uma dessas coisas se eu não tivesse falado da Cory.
— Não estou nem aí para ele — disse ele, com a voz baixa e feia. Ele já tinha
voz de homem. Tinha tudo, menos um cérebro de homem. — Faço mais por ela
do que ele. Trago dinheiro e coisas bacanas para ela. E meus amigos...
meus amigos sabem que ela mora aqui, e deixam este lugar em paz. Ele não é
nada!
Eu me virei, olhei para ele e vi o rosto de meu pai, com a pele mais clara,
mais jovem, mais magro, mas era o rosto de meu pai, inconfundível.
— Ele é você — sussurrei. — Sempre que olho para você, eu vejo ele.
Sempre que você olha para ele, você vê a si mesmo.
— Besteira!
Dei de ombros.
Demorou muito para ele voltar a falar. Por fim, perguntou:
— Ele já bateu em você?
— Não bate há cerca de cinco anos.
— Por que ele bateu em você... antes?
Pensei na resposta e decidi contar. Ele já tinha idade suficiente.
— Ele me pegou no arbusto com Rubin Quintanilla.
Keith gritou e riu de repente.
— Você e o Rubin? Sério? Você estava transando com ele? Não pode ser.
— Tínhamos doze anos. O que tem de demais?
— Você teve sorte por não ter engravidado.
— Eu sei. Os doze anos são uma idade idiota.
Ele desviou o olhar.
— Aposto que ele não bateu em você tanto quanto bateu em mim!
— Ele mandou vocês para brincarem com os Talcott.
Servi a ele um copo de suco de laranja gelado e enchi outro para mim.
— Não me lembro — disse ele.
— Você tinha nove anos — falei. — Ninguém te contaria o que estava
acontecendo. Eu me lembro de ter dito a você que caí da escada dos fundos.
Ele franziu o cenho, talvez se lembrando. Meu rosto tinha sido inesquecível.
Meu pai não tinha batido em mim tanto quanto bateu em Keith, mas eu fiquei
pior. Ele deveria se lembrar disso.
— Ele já bateu na mãe?
Neguei com um gesto de cabeça.
— Não. Nunca vi sinal disso. Acho que ele não a agrediría. Ele a ama, sabia?
Ama de verdade.
— Desgraçado!
— Ele é nosso pai, e é o melhor homem que conheço.
— Você pensou nisso quando ele bateu em você?
— Não. Mas depois, quando me dei conta de como tinha sido idiota, fiquei
feliz por ele ter sido tão rígido. E quando aconteceu, fiquei feliz por ele não ter
me matado.
Ele riu de novo - duas vezes em poucos minutos, e em ambas de coisas que
eu tinha dito. Talvez estivesse pronto para se abrir um pouco.
— Conte sobre lá fora — falei. — Como você vive lá?
Ele tomou o resto do segundo copo de suco.
— Já disse. Eu vivo muito bem lá fora.
— Mas como viveu assim que saiu... Quando saiu de vez?
Ele olhou para mim e sorriu. Sorriu dessa forma anos antes, quando usou
tinta vermelha para me enganar e me fazer sangrar em solidariedade a um
ferimento que ele não tinha. Eu me lembro daquele sorriso especialmente
malvado.
— Você quer sair, não quer? — perguntou ele.
— Um dia.
— Em vez de se casar com Curtis e ter um monte de bebês?
— Sim, em vez disso.
— Eu estava justamente imaginando por que você estava sendo tão legal
comigo.
Pelo cheiro, a comida parecia estar pronta, por isso me levantei, peguei o pão
do forno e as tigelas dos armários. Senti vontade de dizer que ele deveria se
servir sozinho, mas sabia que pegaria toda a carne do ensopado e só deixaria
batatas e legumes para nós. Então, servi a comida para ele e para mim, tampei a
panela, deixei o fogo aceso no mínimo e estendi um pano sobre o pão.
Deixei que ele comesse em paz por um tempo, apesar de achar que os
meninos entrariam a qualquer momento, morrendo de fome.
Então, senti medo de esperar mais.
— Fale comigo, Keith. Quero muito saber. Como você sobreviveu quando
saiu pela primeira vez?
Dessa vez, seu sorriso foi menos malvado. Talvez a comida o tivesse
sensibilizado.
— Dormi em uma caixa de papelão por três dias e roubei comida — disse
ele. — Não sei por que ficava voltando para aquela caixa. Poderia ter dormido
em qualquer canto. Alguns meninos levam um pedaço de papelão sobre o
qual dormir, para não terem que se deitar diretamente no chão, sabe? Depois,
peguei um saco de dormir de um senhor. Era novo, como se ele nunca o tivesse
usado. Então, eu...
— Você o roubou?
Ele olhou para mim com escárnio.
— O que você acha que eu faria? Eu não tinha dinheiro. Só estava com
aquela arma, a .38 da mãe.
É verdade. Ele a havia trazido de volta para ela três visitas atrás, junto com
duas caixas de munição. Claro que nunca contou como conseguiu a munição - ou
a arma que a substituiu: uma Heckler & Koch nove milímetros como a de
meu pai. Ele simplesmente aparecia com tudo e dizia que se você tivesse
dinheiro, poderia comprar qualquer coisa do lado de fora. Nunca admitiu como
conseguiu a grana.
— Certo — eu disse. — Então, você roubou o saco de dormir. E continuou
roubando comida? E de surpreender que não tenha sido pego.
— O velho tinha um pouco de dinheiro, que eu usei para comprar comida.
Depois, comecei a caminhar em direção a Los Angeles.
Seu antigo sonho. Por motivos que só fazem sentido para ele, Keith sempre
quis ir para Los Angeles. Qualquer pessoa em sã consciência se sentiria grata
pelos 32 quilômetros que nos separam daquela ferida aberta.
— Tem gente na estrada toda fugindo de Los Angeles — disse ele. — Tem
até gente saindo de San Diego. Elas não sabem para onde estão indo. Eu
conversei com um cara que disse estar indo para o Alasca. Minha nossa. O
Alasca!
— Boa sorte para ele — falei. — Ele tem muita arma para enfrentar até
chegar lá.
— Ele não vai chegar lá. O Alasca deve ficar a dois mil quilômetros daqui!
Assenti, concordando.
— Mais do que isso, e com barreiras e fronteiras hostis por todo o caminho.
Mas boa sorte para ele, de qualquer modo. É um objetivo que faz sentido.
— Ele tinha 23 mil dólares na mochila.
Eu não disse nada. Só fiquei parada, olhando para ele com nojo e com uma
repulsa renovada. Mas era óbvio. Obvio.
— Você queria saber — disse ele. — É assim que as coisas são lá fora. Com
uma arma, você é alguém. Sem arma, você é um merda. E muitas pessoas lá fora
não têm armas.
— Pensei que a maioria delas tivesse, menos as pobres demais que não têm
nada para ser roubado.
— Também achava isso. Mas armas são muito caras. E é mais fácil consegui-
las se você já tiver uma, sabe?
— E se aquele cara do Alasca tivesse uma? Você estaria morto.
— Eu o ataquei enquanto ele dormia. Meio que o segui até ele sair da estrada
para dormir. E então o peguei. Mas me afastou de Los Angeles.
— Você atirou nele?
O sorriso malvado de novo.
— Ele conversou com você. Ele foi simpático. E você atirou nele.
— O que eu poderia fazer? Esperar que Deus viesse e me desse dinheiro? O
que eu poderia fazer?
— Vir para casa.
— Merda.
— Você não se importa nem um pouco com o fato de ter tirado a vida de
alguém... de ter matado um homem?
Ele pareceu pensar naquilo por um tempo. Em seguida, balançou a cabeça.
— Não me incomoda — disse. — Senti medo no começo, mas depois...
depois que eu fiz o que fiz, não senti nada. Ninguém me viu. Eu só peguei as
coisas dele e o deixei ali. Além disso, talvez ele não estivesse morto. Nem
sempre as pessoas morrem quando levam um tiro.
— Você não conferiu?
— Eu só queria as coisas dele. E ele era louco, de qualquer modo. Alasca!
Eu não disse mais nada para ele, não fiz mais nenhuma pergunta. Falou um
pouco sobre ter encontrado uns caras e ter se unido a eles, e depois descobrir que
apesar de eles serem mais velhos, nenhum sabia ler nem escrever. Ele os ajudou.
Tornou a vida deles mais agradável. Talvez por isso não esperaram que dormisse
para matá-lo e tomar para si os pertences dele.
Depois de um tempo, notou que eu não estava dizendo mais nada, e riu.
— E melhor você se casar com Curtis e ter bebês — disse ele. — Lá fora,
você não duraria um dia. Essa merda de hiperempatia que você tem te destruiría
mesmo que ninguém fizesse nada contigo.
— Você acha isso — falei.
— Olha, eu vi um cara tendo os dois olhos arrancados. Depois disso, atearam
fogo nele e o observaram correr de um lado a outro, gritando e se incendiando.
Você acha que aguentaria ver isso?
— Seus novos amigos fizeram isso? — perguntei.
— Claro que não! Malucos fizeram isso. Os tintas. Eles raspam os cabelos,
até as sobrancelhas, e pintam a pele de verde, azul, vermelho ou amarelo.
Comem fogo e matam pessoas ricas.
— Eles fazem o que?
— Usam uma droga que faz com que gostem de ver incêndios. Às vezes, um
incêndio em um acampamento, no lixo ou numa casa. E às vezes eles pegam um
cara rico e ateiam fogo nele.
— Por quê?
— Não sei. Eles são loucos. Ouvi dizer que alguns eram meninos
endinheirados, então não sei por que detestam tanto os ricos. Mas aquela droga é
ruim. Às vezes, os tintas gostam tanto do fogo que se aproximam demais dele. E
seus amigos nem sequer o ajudam. Simplesmente o observam queimar. É tipo...
não sei, é como se eles estivessem transando com o fogo e como se fosse a
melhor transa do mundo.
— Você nunca experimentou?
— Claro que não! Eu já disse. Aqueles caras são loucos. Até as garotas
raspam a cabeça. Nossa! Elas ficam feias!
— A maioria deles é adolescente, então?
— Isso aí. Da sua idade até uns vinte anos. Há alguns velhos, de vinte e
cinco, até trinta. Mas eu soube que a maioria deles não vive tanto tempo.
Cory e os meninos entraram naquele momento, Gregory e Bennett animados
porque seu time no jogo de futebol tinha vencido. Cory estava feliz e animada,
falando com Marcus sobre a bebezinha de Dorotea Cruz. As coisas mudaram
quando eles viram Keith, obviamente, mas a noite não foi tão ruim. Ele deu
presentes para os meninos, como sempre, e dinheiro para Cory, mas nada para
mim e para Marcus. Porém, dessa vez, ele estava meio sem jeito comigo.
— Talvez eu traga alguma coisa para você da próxima vez — disse ele.
— Não, não traga — falei, pensando no viajante rumo ao Alasca. — Não
precisa. Não quero nada.
Ele deu de ombros e se virou para conversar com Cory.
Keith chegou para me ver hoje um pouco antes de escurecer. Ele me viu
saindo da casa dos Talcott onde Curtis estava me desejando feliz aniversário.
Temos sido muito cuidadosos, Curtis e eu, mas ele conseguiu pegar um estoque
de preservativos de algum lugar. São antigos, mas funcionam. E tem um quarto
vazio e escuro no canto da garagem dos Talcott.
Keith me assustou, me tirando de um estado de espírito muito tranquilo. Ele
saiu de trás de duas casas sem fazer qualquer barulho. Já tinha quase me
alcançado quando notei a presença de alguém e me virei para encará-lo.
Ele levantou as mãos, sorrindo.
— Trouxe um presente de aniversário para você — disse ele. Colocou algo
em minha mão esquerda. Dinheiro.
— Keith, não, dê isso a Cory.
— Você que entregue a ela. Se quer dar o dinheiro para ela, dê. Eu dei para
você.
Fui com ele até o portão, com receio de que um dos vigilantes o visse e
atirasse nele. Ele estava muito mais alto do que era quando vivia conosco. Meu
pai estava em casa, por isso ele não entraria. Agradeci pelo dinheiro e disse que
o entregaria a Cory. Fiz questão de que soubesse disso porque não queria que me
desse mais nada, nunca mais.
Ele não pareceu se importar. Beijou meu rosto e disse:
— Feliz aniversário.
E saiu. Ainda estava com a chave de Cory, e apesar de meu pai saber que ele
a tinha, não havia trocado a tranca de novo.
Hoje, meus pais tiveram que ir ao centro da cidade para identificar o corpo de
meu irmão Keith.
Não consegui escrever nada desde quarta-feira. Não sei o que escrever. O
corpo era de Keith. Eu não o vi, obviamente. Meu pai disse que tentou impedir
Cory de vê-lo. As coisas que alguém fez a Keith antes de ele morrer... Não quero
escrever sobre isso, mas preciso. Às vezes, escrever sobre algo faz com que
fique mais fácil suportá-lo.
Alguém havia cortado e queimado a maior parte da pele de meu irmão. O
corpo todo, menos o rosto. Queimaram seus olhos, mas mantiveram o resto do
rosto intacto - como se quisessem que ele fosse reconhecido. Cortaram e
cauterizaram, cortaram e cauterizaram... Alguns dos ferimentos eram de dias
atrás. Alguém sentia um ódio sem fim pelo meu irmão.
Meu pai nos reuniu e descreveu a todos o que tinha sido feito. Ele contou
tudo em um tom de voz sério, baixo. Queria nos assustar, queria assustar
Marcus, Bennett e Gregory, principalmente. Queria que entendéssemos como lá
fora é perigoso.
A polícia disse que os traficantes de drogas torturam as pessoas como Keith
foi torturado. Eles torturam as pessoas que roubam deles e as que competem com
eles. Não sabemos se Keith fazia alguma dessas coisas. Só sabemos que ele
está morto. Seu corpo foi jogado do outro lado da cidade, na frente de um prédio
antigo que já tinha sido uma casa de repouso. Foi largado na calçada de concreto
quebrada e abandonado várias horas depois de Keith morrer. Poderia ter sido
desovado em um dos cânions e só os cachorros o teriam achado. Mas
alguém queria que ele fosse encontrado, queria que ele fosse reconhecido. Será
que um parente ou um amigo de uma das vítimas dele tinha conseguido dar o
troco, finalmente?
A polícia parecia achar que sabíamos quem o havia matado. Senti, pelas
perguntas que fizeram, que ficariam felizes em prender meu pai, Cory ou ambos.
Mas os dois possuem vidas muito públicas, e nenhum deles têm ausências não
explicadas nem outras mudanças na rotina. Dezenas de pessoas podiam servir
como seus álibis. É claro que eu não contei nada a respeito do que Keith tinha
me dito que andava fazendo. De que adiantaria? Ele estava morto, e de
uma maneira horrorosa. Por acidente ou de propósito, todas as vítimas dele
estavam vingadas.
Wardell Parrish achou que deveria contar à polícia sobre a briga enorme que
meu pai e Keith tiveram no ano passado. Ele tinha escutado, é claro. Metade do
bairro tinha escutado. Brigas de família são as novelas do bairro - e justamente
com meu pai, o ministro!
Sei que foi Wardell Parrish quem contou à polícia. Sua sobrinha mais nova,
Tanya, deixou esse fato escapar. “O tio Ward disse que detestava contar, mas...”
Ah, aposto que ele detestou contar isso. Desgraçado! Mas ninguém o apoiou.
Os policiais saíram investigando pelo bairro, mas ninguém mais admitiu saber
algo sobre a briga. Afinal, eles sabiam que meu pai não tinha matado Keith. E
sabiam que os policiais gostavam de resolver casos “descobrindo” evidências
contra quem quer que decidissem que podia ser culpado. Era melhor não dar
nenhuma informação a eles. Nunca atendiam quando as pessoas pediam ajuda.
Vinham mais tarde e, com frequência, tornavam uma situação ruim ainda pior.
A missa foi realizada hoje. Meu pai pediu ao seu amigo, o reverendo
Robinson, para cuidar dela. Meu pai ficou sentado com Cory e conosco,
parecendo triste e envelhecido. Muito envelhecido.
Cory chorou o dia todo, a maior parte do tempo sem fazer barulho. Ela chora
de tempos em tempos desde quarta--feira. Marcus e meu pai tentaram consolá-la.
Até mesmo eu tentei, mas ela me olhou de um jeito... Como se eu tivesse algo a
ver com a morte do Keith, como se quase me detestasse. Eu continuo tentando
me aproximar dela. Não sei o que mais fazer. Talvez, com o tempo, ela consiga
me perdoar por não ser sua filha, por estar viva enquanto seu filho está
morto, por ser a filha de meu pai com outra pessoa...? Não sei.
Meu pai não chorou nem uma vez. Nunca o vi chorar na vida. Queria que
chorasse. Queria que ele pudesse chorar.
Curtis Talcott meio que ficou por perto hoje, e conversamos muito. Acho que
eu precisava conversar e Curtis estava disposto a me ouvir.
Ele disse que eu deveria chorar. Disse que não importava a situação ruim em
que as coisas estavam entre Keith e eu, ou entre o Keith e a família, eu deveria
me permitir chorar. Esquisito. Até ele dizer isso, eu não tinha pensado na
minha ausência de lágrimas. Não tinha chorado nada. Talvez Cory tivesse
notado. Talvez meu rosto seco fosse mais uma coisa que ela tinha contra mim.
Eu não estava me controlando, tentando ser durona. E que eu detestava o
Keith com a mesma intensidade que o amava. Ele era meu irmão - meio-irmão -,
mas também era a pessoa mais sociopata que conheci. Ele teria se transformado
num monstro se tivesse vivido até se tornar adulto. Talvez já fosse um. Ele nunca
se importava com o que fazia. Se quisesse fazer algo e isso não fosse causar dor
física imediata a ele, ia lá e fazia, e o mundo que se fodesse.
Ele bagunçou nossa família, transformou-a em algo menos do que uma
família. Ainda assim, eu nunca desejaria que ele morresse. Nunca desejaria que
alguém morresse daquele jeito horrível. Acho que ele foi morto por monstros
muito piores do que ele próprio. Está além da minha compreensão como um ser
humano pode fazer aquilo com outro. Se a síndrome da hiperempatia fosse algo
mais comum, as pessoas não fariam essas coisas. Elas poderiam matar, se fosse
preciso, e aguentariam a dor disso ou seriam destruídas por ela. Mas se todos
pudessem sentir a dor um do outro, quem torturaria? Quem causaria qualquer
dor desnecessária a alguém? Nunca antes pensei em meu problema como algo
que poderia fazer bem, mas do jeito que as coisas estão, acho que ajudaria. Eu
queria poder dar isso às pessoas. Não podendo, gostaria de encontrar outras
pessoas que sofrem da mesma coisa, e viver entre elas. Uma
consciência biológica é melhor do que nenhuma consciência.
Mas quanto ao choro, se eu fosse chorar, acho que o teria feito quando meu
pai bateu no Keith - quando a surra acabou e ele viu o que tinha feito, e todos
vimos como Keith e Cory o olharam. Eu soube naquele momento que
nenhum dos dois o perdoaria. Nunca. Aquele foi o fim de algo precioso na
família.
Queria que meu pai pudesse chorar por seu filho, mas não sinto necessidade
nenhuma de chorar por meu irmão. Que ele descanse em paz - em sua urna, no
céu, onde for.
11
Aos 13 anos, meu irmão Marcus se tornou a única pessoa na família que eu
diria ser bonito. As meninas da idade dele o admiram quando pensam que ele
não está vendo. Soltam muitos risinhos perto dele e o perseguem como loucas,
mas ele não larga de Robin. Ela não é nada bonita - pele, osso e cérebro -, mas é
engraçada e sensata. Daqui a um ou dois anos, ela vai começar a ganhar corpo e
meu irmão terá beleza junto com inteligência. E então, se os dois ainda
estiverem juntos, a vida deles se tornará muito mais interessante.
Mudei de ideia. Costumava esperar pela explosão, pela batida, pelo caos
repentino que destruiría o bairro. Em vez disso, as coisas estão se desdobrando,
se desintegrando pouco a pouco. Susan Talcott Bruce e seu marido se
candidataram para ir a Olivar. Outras pessoas estão falando sobre se candidatar,
pensando no caso. Há uma pequena faculdade em Olivar. Existem equipamentos
de segurança letais para manter os bandidos e os mendigos longe. Há mais vagas
sendo abertas...
Talvez Olivar seja o futuro - uma face dele. Cidades controladas por grandes
empresas são velhas conhecidas na ficção científica. Minha avó deixou para trás
uma estante cheia de romances desse tipo. O subgênero da cidade operária
sempre pareceu apresentar um herói que era mais esperto e que vencia ou
escapava “da empresa”. Nunca vi nenhuma em que o herói lutava muito para ser
aceito e mal pago por ela. Na vida real, é assim que será. E assim que é.
E o que eu deveria estar fazendo? O que posso fazer? Em menos de um ano,
completarei 18 anos, uma adulta -uma adulta sem perspectiva exceto viver em
nosso bairro que está se desintegrando. Ou na Semente da Terra.
Para começar a Semente da Terra, terei que sair. Sei disso há muito tempo,
mas a ideia me assusta tanto quanto sempre assustou.
Ano que vem, quando fizer 18 anos, eu irei. Isso quer dizer que tenho que
começar a planejar como vou lidar com isso.
Vou para o norte. Meus avós viajavam muito de carro. Eles nos deixaram
mapas antigos de estradas de todos os condados do estado, além de várias outras
partes do país. O mais novo deles tem 40 anos, mas não importa. As estradas
ainda estarão onde estavam. Só que em condições piores do que quando meus
avós dirigiram um carro movido a gasolina por elas. Coloquei mapas dos
condados da Califórnia ao norte e os poucos que consegui encontrar de condados
de Washington e Oregon em minha mala.
Fico me perguntando se haverá pessoas lá fora dispostas a me pagar para
ensiná-las a ler e escrever - coisa básica - ou pessoas que me pagarão para ler ou
escrever para elas. Keith começou a me fazer pensar nisso. Pode ser que eu até
lhes ensine alguns versículos da Semente da Terra com a leitura e a escrita. Se
pudesse, escolhería lecionar. Mesmo que eu tenha que realizar outros tipos de
trabalho para ter o suficiente para comer, posso lecionar. Se eu fizer isso direito,
as pessoas serão atraídas a mim - à Semente da Terra.
Toda vida bem-sucedida é
Adaptável,
Plural.
Obstinada,
Interconectada e Fecunda.
Compreenda isso.
Use isso.
Molde Deus.
Escrevi esse versículo há alguns meses. É verdadeiro como todos os outros.
Parece mais verdadeiro do que nunca agora, mais útil para mim quando sinto
medo.
Finalmente encontrei um título para o meu livro de versículos - Semente da
Terra: os livros dos vivos. Os tibetanos e os egípcios têm Livros dos Mortos.
Meu pai tem exemplares deles. Nunca ouvi nada chamado livro dos vivos, mas
não me surpreendería em descobrir que há algum. Não me importo. Estou
tentando falar - ou escrever - a verdade. Estou tentando ser clara. Não estou
interessada em ser bacana, nem mesmo original. A clareza e a verdade serão
abundantes, se eu conseguir alcançá-las. Se acontecer de haver outras pessoas lá
fora em algum lugar pregando a minha verdade, vou me unir a elas. Caso
contrário, vou me adaptar onde for preciso, aproveitar as oportunidades que
encontrar ou criar, seguir em frente, reunir alunos e lecionar.
12
Meu pai não voltou para casa hoje. Ele tinha que ter voltado de manhã.
Não sei o que isso quer dizer. Não sei o que pensar. Estou morrendo de
medo.
Cory ligou para a faculdade, para os amigos dele, para os ministros, seus
colegas de trabalho, para os hospitais...
Nada. Ele não foi preso, não está doente, nem ferido, nem morto - pelo
menos não até onde as pessoas saibam. Nenhum de seus amigos ou colegas o viu
desde que ele saiu do trabalho hoje cedo. A bicicleta estava funcionando
normalmente. Ele estava bem.
Ele havia ido em direção à nossa casa com três colegas de trabalho que
viviam em outros bairros em nossa região. Cada um deles disse a mesma coisa:
que eles haviam se separado dele, como sempre, na Rua River, no
cruzamento com a avenida Durant. Fica a apenas cinco quarteirões daqui.
Estamos no fim da avenida Durant.
Então onde ele está?
Hoje um grupo nosso, todo armado, foi de bicicleta de casa até a Rua River e
a descemos até a faculdade. Oito quilômetros no total. Conferimos ruas laterais,
vielas, prédios vazios, todos os lugares em que conseguíamos pensar. Eu fui
junto. Levei Marcus comigo porque se eu não tivesse levado, ele teria saído
sozinho. Eu estava com a Smith 8c Wesson. Marcus estava apenas com sua faca.
Ele é rápido e ágil com ela, e forte para sua idade, mas nunca a usou em nada
vivo. Se alguma coisa tivesse acontecido com ele, não acho que teria ousado
voltar para casa. Cory já está morrendo de preocupação. Tudo isso depois de
perder Keith... Não sei. Todo mundo ajudou. Jay Garfield vai partir em breve,
mas isso não o impediu de liderar a busca. Ele é um bom homem. Fez tudo o que
pode pensar para encontrar meu pai.
Amanhã vamos para os montes e para os cânions. Temos que ir. Ninguém
quer, mas o que mais podemos fazer?
Quarta-feira, 18 de novembro de 2026
Nunca vi mais imundície, restos humanos e mais cães ferozes do que vi hoje.
Tenho que escrever. Tenho que despejar isso no papel. Não posso guardar dentro
de mim. Ver os mortos me perturbou antes, mas isso...
Estávamos procurando o corpo de meu pai, obviamente, mas ninguém dizia
isso. Eu não podia negar essa realidade, nem evitar pensar nela. Cory checou
com a polícia de novo, com os hospitais, com todo mundo em quem
conseguíamos pensar que conhecia meu pai.
Nada.
Então, tivemos que ir até os montes. Quando saímos para praticar tiro ao
alvo, não olhávamos ao redor, só o suficiente para garantir a segurança. Não
procurávamos o que prefeririamos não encontrar. Hoje, em grupos de três ou
quatro, varremos a área mais próxima à parte de cima da Rua River. Mantive
Marcus comigo - o que não foi fácil. O que há com os garotos mais jovens que
faz com que eles queiram sair andando sozinhos e serem mortos? Eles têm dois
pelos no queixo e ficam tentando provar que são homens.
— Você me protege e eu te protejo — falei. — Não vou permitir que você se
machuque. Não me decepcione.
Ele abriu um quase sorriso que indicava que sabia exatamente o que eu
estava tentando fazer, e que faria o que quisesse. Fiquei brava e o agarrei pelos
ombros.
— Mas que inferno, Marcus, quantas irmãs você tem? Quantos pais você
tem?! — Nunca falava nem profanidades leves perto ele, a menos que as coisas
fossem muito sérias. E, assim, consegui sua atenção.
— Não se preocupe — disse ele. — Vou ajudar.
Então, encontramos o braço. Foi Marcus quem o viu -algo escuro para fora
do caminho pelo qual seguíamos. Estava pendurado nos galhos baixos de um
carvalho.
O braço estava inteiro - uma mão, a parte de cima do braço e o antebraço. O
braço de um negro, da cor do braço de meu pai, onde era possível ver cor. Estava
marcado e tinha cortes em toda sua extensão, mas ainda parecia forte - ossos
compridos, dedos longos, mas com músculos e grande... Familiar?
O osso liso e branco saía na ponta que fazia ligação com o ombro. O braço
tinha sido cortado com uma faca afiada. O osso não estava quebrado. E sim,
poderia ser dele.
Marcus vomitou quando o viu. Eu me obriguei a observar, procurar algo
familiar nele, para ter certeza. Jay Garfield tentou me impedir, e eu o empurrei
para longe e disse para ele ir pro inferno. Sinto muito por isso, e pedi desculpas
mais tarde. Mas eu tinha que saber. E, mesmo assim, ainda não sei. O braço tinha
muitos cortes e estava coberto por sangue seco. Eu não sabia ao certo. Jay
Garfield colheu as impressões digitais em seu caderno de bolso, mas deixamos o
braço ali. Como poderiamos levar aquilo para Cory?
E continuamos procurando. O que mais poderiamos fazer? George Hsu
encontrou uma cobra cascavel. Ela não mordeu ninguém e não a matamos. Acho
que ninguém estava no clima de matar.
Vimos cães, mas eles se mantiveram distantes. Vi até um gato nos
observando por baixo de um arbusto. Os gatos correm demais ou se abaixam e
ficam paralisados. Eles são interessantes de se observar, de certo modo. Ou, em
qualquer outro momento, seriam interessantes.
Então, alguém começou a gritar. Nunca havia ouvido gritos como aquele
antes - sem parar. Um homem, gritando, implorando, rezando.
— Não! Chega! Ah, meu Deus, chega, por favor. Jesus, Jesus, Jesus, por
favor! — E então, ouvimos gritos sem palavras, altos, e berros estridentes,
horríveis.
Era a voz de um homem, não como a do meu pai, mas não muito diferente da
dele. Não conseguimos determinar de onde vinha. Os ecos se espalhavam pelo
cânion e nos confundiam, primeiro nos mandando em uma direção, depois em
outra. O cânion estava cheio de pedras soltas e de plantas cheias de espinhos que
nos mantinham nos caminhos onde havia caminhos.
Os gritos pararam, e então começaram de novo como um barulho terrível de
gargarejo.
Nesse momento, eu já ocupava o fim da linha que havíamos formado. Eu não
estava em apuros. O barulho não aciona meu compartilhamento. Tenho que ver
outra pessoa sofrendo para sentir sua dor. E quem emitia aquele barulho era o
tipo de pessoa que eu faria qualquer coisa para evitar ver.
Marcus se posicionou ao meu lado e sussurrou:
— Você está bem?
— Sim — respondo. — Só não quero saber de nada do que está acontecendo
com aquele homem.
— Keith — disse ele.
— Eu sei — concordei.
Levamos nossa bicicleta atrás dos outros, observando o caminho dos fundos.
Kayla Talcott voltou ao fim do grupo para ver se estávamos bem. Ela não queria
que estivéssemos ali, mas como estávamos, ela também estava, e ficava de
olho em nós. Ela é assim.
— Não parece ser seu pai — disse ela. — Não parece mesmo.
Kayla é do Texas, como minha mãe biológica. As vezes falava como se
nunca tivesse saído de lá, e às vezes parecia que ela nunca tinha estado perto de
nenhuma parte do sul. Parecia capaz de ligar e desligar o sotaque. Ela
costumava ligá-lo para confortar as pessoas e para ameaçar matá-las. As vezes,
quando estou com Curtis, eu a vejo no rosto dele e me pergunto que tipo de
parente - que tipo de sogra - ela seria. Hoje acho que Marcus e eu estávamos
felizes por ela estar ali. Precisávamos ficar perto de alguém com o tipo de
força maternal que ela tinha.
Os barulhos terríveis cessaram. Talvez o pobre homem estivesse morto e
livre de seu sofrimento. Espero que sim.
Não o encontramos. Encontramos ossos de pessoas e de animais.
Encontramos cadáveres em decomposição de cinco pessoas espalhados entre as
rochas. Encontramos um incêndio já apagado e um fêmur e dois crânios
humanos entre as cinzas.
Por fim, voltamos para casa, adentramos o muro da comunidade ao nosso
redor e nos consolamos em nossas ilusões de segurança.
Não há fim
Para o que um mundo vivo
Exigirá de você.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Hoje o reverendo Matthew Robinson, em cuja igreja fui batizada, veio para
realizar o funeral de meu pai. Cory organizou tudo. Não havia corpo, nem urna.
Ninguém sabe o que aconteceu com meu pai. Nós não fomos capazes de
descobrir, nem a polícia. Temos certeza de que está morto. Ele encontraria uma
maneira de vir para casa se estivesse vivo, por isso temos certeza de que está
morto.
Não, não temos certeza. Não temos nenhuma certeza. Ele está doente em
algum lugar? Ferido? Preso contra sua vontade por sabe-se lá que razão, sabe-se
lá por quais monstros?
É pior do que quando Keith morreu. Muito pior. Por mais horrível que tenha
sido, nós sabíamos que ele estava morto. Independentemente do que tenha
sofrido, sabíamos que não estava sofrendo mais. Não neste mundo, de qualquer
modo. Nós sabíamos. Agora, não sabemos de nada. Ele está morto. Mas nós não
sabemos!
Os Dunn devem ter sentido isso quando Tracy desapareceu. Por mais
malucos que sejam, por mais maluca que ela fosse, eles devem ter sentido isso.
O que sentem agora? Tracy não voltou. Se ela não está morta, o que deve
estar acontecendo com ela do lado de fora? Uma garota sozinha só encontra um
tipo de futuro lá. Eu pretendo me passar por homem, quando sair.
Como eles se sentirão quando eu me for? Morrerei para eles - para Cory, para
os meninos, para o bairro. Eles torcerão para que eu esteja morta, considerando a
suposta alternativa. Agradeço a meu pai por ser alta e forte.
Não terei que deixar meu pai agora. Ele já me deixou. Ele tinha 57 anos. Por
quais motivos pessoas desconhecidas manteriam um homem de 57 anos vivo?
Depois que o roubassem, deixariam que ele fosse embora ou o matariam. Se o
deixassem ir, ele voltaria para casa, caminhando, mancando, rastejando.
Então, ele está morto.
É isso.
Tem que ser.
É noite de Natal.
Ontem à noite, alguém ateou fogo à casa dos Payne--Parrish. Enquanto a
comunidade tentava apagá-lo e depois impedi-lo de se espalhar, três outras casas
foram roubadas. A nossa foi uma das três.
Os ladrões levaram toda a nossa comida da despensa: farinha de trigo,
açúcar, enlatados, os pacotes de alimentos... Levaram nosso rádio - nosso último
rádio. O maluco nisso tudo é que, antes de nos deitar, ouvimos um noticiário de
meia hora sobre o aumento dos incêndios criminosos. As pessoas têm causado
mais incêndios para encobrir crimes - apesar de não saber por que elas se dão a
esse trabalho hoje em dia. A polícia não representa ameaça aos criminosos. As
pessoas têm iniciado incêndios para fazer o que nosso incendiário fez a noite
passada - induzir os vizinhos vítimas do incêndio a deixarem as próprias casas
sem proteção. Causam incêndios para se livrarem de quem elas não gostam,
desde inimigos pessoais a qualquer um que pareça estrangeiro ou etnicamente
diferente. As pessoas têm causado incêndios porque estão frustradas, bravas,
sem esperança. Não têm poder para melhorar a vida, mas conseguem deixar os
outros ainda mais arrasados. E o único modo de provar a si mesmo que você tem
poder é usando-o.
E também tem aquela droga de fogo com sua dezena de nomes: Blaze, fuego,
flash, fogo do sol... O nome mais popular é piro - abreviatura de piromania. São
todas a mesma droga, e existem há um tempo. Pelo que Keith disse, está
se tornando cada vez mais popular. Faz com que observar as labaredas de um
incêndio seja melhor, mais intenso e dê um barato mais duradouro do que o sexo.
Assim como o Para-cetco, a droga usada por minha mãe biológica, a piro
estraga a neuroquímica das pessoas. Mas o Paracetco surgiu como um remédio
de verdade para ajudar as vítimas de Alzheimer. A piro foi um acidente. Era uma
droga caseira - inventada em casa por alguém que estava tentando conseguir uma
das mais caras da rua. O inventor cometeu um erro químico muito pequeno, e
acabou conseguindo a piro. Isso aconteceu na costa leste e causou um aumento
imediato no número de incêndios criminosos sem motivo, grandes e pequenos.
A piro seguiu seu caminho em direção ao oeste sem causar tanto estrago
quanto poderia ter causado. Agora, sua popularidade está aumentando. E no sul
da Califórnia, um lugar muito seco, ela pode causar uma verdadeira orgia
incendiária.
— Meu Deus — disse Cory quando o noticiário acabou. E com uma voz
baixa, sussurrada, ela citou uma passagem do Apocalipse. — “Caiu, caiu, a
grande Babilônia, e se tornou morada de demônios...”
E os demônios atearam fogo à casa dos Payne-Parrish.
Aproximadamente às duas da madrugada, acordei com o som do sino:
Emergência! Terremoto? Fogo? Invasores?
Mas não havia tremor, nenhum barulho não conhecido, nada de fumaça. Eu
me levantei, vesti uma roupa, pensei se deveria pegar minha mala de
sobrevivência ou não, e a deixei onde estava. Nossa casa não parecia estar
correndo perigo imediato. Minha mala de emergência estava segura no armário,
em meio a cobertores e trouxas de roupas velhas. Se tivesse que pegá-la, voltaria
em segundos.
Corri para fora para ver como precisavam de mim, e vi tudo. A casa dos
Payne-Parrish estava totalmente envolvida e cercada pelo fogo. Um dos
vigilantes de plantão ainda tocava o alarme. As pessoas saíram de todas as casas
e devem ter visto, como eu vi, que a casa dos Parrish estava totalmente avariada.
Os vizinhos já molhavam as casas dos dois lados. Um carvalho vivo - um dos
enormes, antigos - pegava fogo. Uma brisa leve soprava, agitando pedaços de
folhas incendiadas e galhos, espalhando-os. Eu me juntei às pessoas que estavam
batendo e molhando as coisas.
Onde estavam os Payne? Onde estava Wardell Parrish? Alguém tinha
chamado os bombeiros? Uma casa cheia de pessoas, afinal, não era como uma
garagem em chamas.
Perguntei a várias pessoas. Kayla Talcott disse que havia chamado os
bombeiros. Eu me senti grata e envergonhada. Não teria perguntado se meu pai
ainda estivesse conosco. Um de nós teria chamado. Agora, não podíamos pagar
pela ligação.
Ninguém tinha visto nenhum dos Payne. Encontrei War-dell Parrish no
quintal dos Yannis, onde Cory e meu irmão Bennett o envolviam em um
cobertor. Ele tossia tanto que não conseguia falar, e estava vestindo só a calça do
pijama.
— Ele está bem? — perguntei.
— Ele inalou muita fumaça — disse Cory. — Alguém chamou...
— Kayla Talcott chamou os bombeiros.
— Ótimo. Mas não tem ninguém no portão para deixar que eles entrem.
— Eu vou. — Eu me virei para sair, mas seguraram meu braço.
— Os outros? — sussurrou ela. Estava se referindo aos Payne, claro.
— Não sei.
Ela assentiu e me soltou.
Fui até o portão, pegando a chave de Alex Montoya emprestada no meio do
caminho. Ele sempre parecia estar com a chave do portão no bolso. Foi por
causa dele que não voltei para dentro de casa na possibilidade de interromper um
assalto e ser morta por causar problema.
Os bombeiros chegaram sem muita pressa. Eu os deixei entrar, tranquei o
portão em seguida e observei enquanto eles apagavam o incêndio.
Ninguém tinha visto os Payne. Concluímos que eles não tinham saído. Cory
tentou levar Wardell Parrish para a nossa casa, mas ele se recusou a ir até
descobrir o que havia acontecido com sua irmã gêmea, com suas sobrinhas e
seus sobrinhos.
Quando o fogo estava quase apagado, o sino começou a tocar de novo. Todos
olhamos ao redor. Caroline Balter, a mãe de Harry, estava empurrando e
balançando o sino, gritando.
— Invasores! — gritou. — Ladrões! Eles invadiram nossas casas!
E todos corremos sem pensar para as casas. Wardell Parrish acompanhou
minha família, ainda tossindo e es-pirrando, e tão impotente - e desarmado -
como o restante de nós. Poderiamos ter sido mortos, correndo daquele jeito. Mas
tivemos sorte. Assustamos nossos ladrões.
Além da comida da despensa e do rádio, os ladrões levaram algumas
ferramentas e equipamentos do meu pai -pregos, fios, parafusos, porcas, coisas
assim. Não levaram o telefone, o computador nem nada do escritório. Na
verdade, nem entraram no escritório de meu pai. Acredito que nós os tenhamos
assustado e eles fugiram antes de conseguir vasculhar a casa toda.
Eles roubaram roupas e sapatos do quarto de Cory, mas não entraram no
meu, nem no dos meninos. Pegaram um pouco do nosso dinheiro - o dinheiro da
cozinha, como diz Cory. Ela o havia escondido em uma caixa de sabão em
pó. Pensou que ninguém roubaria algo assim. Na verdade, os ladrões podem ter
roubado a caixa para revender sem se dar conta de que não havia só sabão em pó
ali. Podia ter sido pior. O dinheiro da cozinha era apenas cerca de mil
dólares para emergências pequenas.
Os ladrões não encontraram o resto do dinheiro, uma parte dele escondido
perto de nosso limoeiro, e outra parte com nossas duas armas sob o piso do
armário da Cory. Meu pai se esforçou muito para conseguir fazer uma espécie de
cofre no chão, não trancado, mas totalmente escondido embaixo de um tapete e
de uma cômoda velha cheia de apetrechos de costura: retalhos, botões, zíperes,
ganchos, coisas assim. A cômoda podia ser afastada com uma mão. Ela deslizava
de um lado do armário ao outro se fosse puxada do jeito certo, e em segundos
dava para pegar o dinheiro e as armas. O truque para esconder não teria
despistado alguém que tivesse tempo para fazer uma busca minuciosa, mas havia
despistado nossos ladrões. Eles tinham jogado algumas das gavetas no chão,
mas não pensaram em olhar embaixo da cômoda.
Os ladrões levaram a máquina de costura de Cory. Era antiga, compacta e
resistente com uma caixa na qual ficava guardada. A caixa e a máquina foram
levadas. Isso nos abalou muito. Cory e eu a usamos para fazer, alterar e costurar
roupas para a família. Até pensei que podia ganhar um dinheiro com a máquina,
costurando para as outras pessoas do bairro. Agora, ela foi levada. A costura das
roupas terá que ser feita à mão. Vai demorar muito mais e pode não ficar do jeito
com que estamos acostumados. Ruim. Muito ruim. Mas não foi um golpe fatal.
Cory chorou a perda da máquina, mas podemos nos virar sem ela. Ela só está
sendo afetada pelos golpes que acontecem um atrás do outro.
Vamos nos adaptar. Temos que nos adaptar. Deus é Mudança.
É estranho o quanto lembrar disso me ajuda.
Curtis Talcott acabou de vir à minha janela para contar que os bombeiros
encontraram corpos chamuscados e ossos nas cinzas da casa dos Payne-Parrish.
A polícia está aqui, fazendo um relatório dos roubos e do incêndio criminoso.
Contei a Cory. Ela pode contar a Wardell Parrish ou deixar que os policiais
contem. Ele está deitado em um dos sofás da nossa sala de estar. Duvido que
esteja dormindo. Apesar de eu nunca ter gostado dele, sinto pena. Ele perdeu a
casa e a família. É o único sobrevivente. Como deve ser isso?
Não sei quanto pode durar, mas de algum modo que suspeito ser legal, Cory
assumiu parte do trabalho realizado por meu pai durante muito tempo. Ela
ministrará as aulas que ele dava. Com os computadores que já temos, passará
lição de casa, receberá as tarefas e permanecerá disponível para reuniões por
telefone e conferências via computador. A parte administrativa do trabalho de
meu pai será feita por outra pessoa que vai se beneficiar do dinheiro extra e que
esteja disposta a aparecer na faculdade com mais frequência do que uma ou duas
vezes por mês. Será como se meu pai ainda estivesse lecionando, mas tivesse
passado as outras responsabilidades a um terceiro.
Cory organizou isso pedindo, implorando, chorando, insistindo e recorrendo
a todo amigo em quem conseguiu pensar. As pessoas na faculdade a conhecem.
Ela lecionou lá antes de Bennett nascer, antes de ver a necessidade de ensinar as
crianças do bairro e criar a escola aqui em casa. Meu pai foi totalmente a favor
de Cory abrir mão da faculdade por não querer que ela ficasse saindo e voltando
para cá, exposta a todos os perigos envolvidos. Os vizinhos pagam uma taxa por
criança, mas não é muito. Ninguém conseguiria manter a família com esse
dinheiro.
Agora, Cory vai ter que sair de novo. Já está convocando homens e garotos
maiores do bairro para escoltá-la quando tiver que sair. Há muitos homens
desempregados aqui, e Cory vai pagar um pequeno valor a eles.
Então daqui a alguns dias o novo semestre será iniciado e Cory fará o
trabalho de meu pai - e eu farei o trabalho dela. Vou cuidar da escola com a
ajuda dela e de Russel Dory, o avô de Joanne e Harry. Ele já foi professor de
matemática do ensino médio. Está aposentado há anos, mas ainda é esperto.
Não acredito que precisarei de sua ajuda, mas Cory precisa, e ele está disposto,
então é isso.
Alex Montoya e Kayla Talcott assumirão a pregação de meu pai e outros
trabalhos da igreja. Nenhum dos dois foi ordenado, mas ambos já substituíram
meu pai em outras ocasiões. Os dois têm autoridade na comunidade e na
igreja. E, é claro, conhecem bem a Bíblia.
E assim que sobreviveremos e nos manteremos juntos. Vai dar certo. Não sei
quanto tempo vai durar, mas por enquanto, vai dar certo.
Wardell Parrish finalmente voltou para sua gente - para a parte da família
com quem vivia antes de ele e a irmã herdarem a casa dos Sims. Ele estava
morando conosco desde que sua irmã e todos os filhos dela foram mortos. Cory
deu a ele algumas das roupas de meu pai, que eram grandes demais para ele.
Grandes demais mesmo.
Ele andava por aí, sem falar, não parecendo ver nada, sem comer o
suficiente... Então ontem ele disse, como um menininho:
— Quero ir para casa. Não posso ficar aqui. Detesto isto tudo. Todo mundo
morreu! Tenho que ir para casa.
Então, hoje, Wyatt Talcott, Michael e Curtis o levaram para casa. Coitado.
Ele envelheceu anos na última semana. Acho que não deve viver por muito mais
tempo.
Somos Semente da Terra. Somos matéria - consciente, direcionada, que
resolve problemas. Somos aquele aspecto da Vida da Terra mais capaz de moldar
Deus conscientemente. Somos a Vida da Terra amadurecendo, Vida da
Terra preparando-se para abandonar o mundo-mãe. Somos a Vida da Terra
preparando-se para criar raízes em solo novo. Vida da Terra cumprindo seu
propósito, sua promessa, seu Destino.
- SEMENTE DA TERRA: OS LIVROS DOS VIVOS
14
Para ressurgir
Das próprias cinzas
Uma fênix
Deve
Primeiro
Queimar.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Tenho que escrever. Não sei o que mais fazer. Os outros estão dormindo
agora, mas não está escuro. Estou montando guarda porque não conseguiria
dormir nem se tentasse. Estou agitada e atordoada. Não posso chorar. Quero me
levantar e sair correndo e correndo... Fugir de tudo. Mas não há fuga.
Tenho que escrever. Não há nada de familiar para fazer além de escrever.
Deus é Mudança. Detesto Deus. Tenho que escrever.
Não havia casas não incendiadas no bairro, apesar de algumas terem sido
mais atingidas do que outras. Não sei se a polícia ou se os bombeiros apareceram
aqui. Se vieram, foram embora antes da minha chegada. O bairro estava
totalmente aberto e cheio de saqueadores.
Fiquei parada na frente do portão, observando enquanto desconhecidos
fuçavam entre as estruturas enegrecidas de nossas casas. As ruínas ainda
soltavam fumaça, mas os homens, as mulheres e as crianças estavam por todos
os lados, mexendo nelas, pegando frutas das árvores, despindo nossos mortos,
discutindo e brigando pelas novas aquisições, reunindo as coisas em trouxas ou
pilhas... Quem eram aquelas pessoas?
Levei a mão sobre a arma em meu bolso - ainda havia quatro balas nela - e
entrei. Eu estava suja por ter passado a noite deitada na terra e nas cinzas. Talvez
não fosse notada.
Vi três mulheres de uma parte sem muros da Rua Durant escavando entre os
restos da casa dos Yannis. Elas riam e jogavam punhados de serragem e gesso
umas nas outras.
Onde estavam Shani Yannis e suas filhas? Onde estavam suas irmãs?
Caminhei pelo bairro sem olhar para os vermes humanos, tentando encontrar
algumas das pessoas com quem eu tinha crescido. Encontrei alguns mortos.
Edwin Dunn estava caído no lugar onde eu havia pegado sua arma, mas agora
sem camisa e sem sapatos. Seus bolsos tinham sido esvaziados.
O chão estava coberto com cadáveres cobertos de cinzas, alguns queimados
ou parcialmente estourados por balas de armas automáticas. Sangue seco e quase
seco havia se empoçado na rua. Dois homens estavam soltando nosso sino de
emergência. A luz forte da manhã ensolarada tornava o cenário todo menos real,
de certa forma, mais parecido com um pesadelo. Parei na frente de nossa casa e
olhei para os cinco adultos e para a criança que estavam mexendo nas ruínas.
Quem eram aqueles abutres? O fogo os havia atraído? É isso que fazem os
desabrigados? Correm para onde há fogo e torcem para encontrar um cadáver
que possam despojar?
Havia alguém pintado de verde na nossa varanda. Subi os degraus e fiquei
parada olhando para ele - para ela. O pintado era uma mulher - alta, esguia,
careca, mas do sexo feminino. E do que ela tinha morrido? Qual era o sentido de
tudo aquilo?
— Deixe-a em paz. — Uma mulher que segurava um par de sapatos de Cory
se aproximou de mim. — Ela morreu por todos nós. Deixe-a em paz.
Nunca na vida senti tanta vontade de matar outro ser humano.
— Saia da porra da minha frente — falei. Não ergui a voz. Não sei como
estava minha cara, mas a ladra se afastou.
Passei por cima da cara verde e entrei nas ruínas de nossa casa. Os outros
ladrões olharam para mim, mas nenhum deles disse nada. Um par deles, pude
ver, era formado por um homem e um menininho. O homem estava vestindo
uma calça jeans de meu irmão Gregory no menino. A calça era grande demais,
mas o homem apertou o cinto e enrolou a bainha.
E onde estava Gregory, meu irmão menor, engraçado e espertinho? Onde
estava? Onde estava todo mundo?
O teto de nossa casa tinha caído. A maioria das coisas tinha se incendiado - a
cozinha, a sala de estar, a sala de jantar, meu quarto... Não era seguro andar
naquele piso. Vi um dos saqueadores cair, dar um grito surpreso, e então subir
de volta, sem ferimentos, apoiando-se em uma viga.
Nada que restara em meu quarto pôde ser recuperado. Cinzas. Uma cabeceira
de metal da cama distorcida pelo calor, metal entortado e restos de cerâmica de
meu abajur, montes de cinzas do que tinham sido roupas ou livros. Muitos livros
não estavam totalmente queimados. Eles estavam inutilizados, mas tinham sido
empilhados tão unidos que o fogo havia queimado profundamente a partir das
margens e das lombadas. Restaram círculos de papel imaculado, cercado por
cinzas. Não encontrei uma única página inteira.
Os dois quartos do fundo tinham aguentado melhor. Era onde estavam os
saqueadores, e para onde eu fui.
Encontrei pares de meias enroladas de meu pai, shorts e camisetas dobrados,
e um coldre extra que eu poderia usar para a .45. Tudo isso eu encontrei dentro
ou embaixo dos
restos que não pareciam nada promissores da cômoda e das gavetas de meu
pai. A maioria das coisas estava queimada a ponto de não poder ser recuperada,
mas enfiei quase tudo do que encontrei na bolsa. O homem com o menino se
aproximou para vasculhar ao meu lado e, de algum modo, talvez por causa da
criança, porque aquele desconhecido em trapos imundos era o pai de alguém
também, eu não me importei. O menininho observava nós dois, com o rostinho
negro inexpressivo. Ele se parecia um pouco com Gregory.
Peguei um damasco seco de minha bolsa e o ofereci ao menino. Ele não
devia ter mais do que seis anos de idade, mas só pegou o alimento quando o
homem o instruiu para que assim fizesse. Boa disciplina. Mas assim que o
homem deu permissão, ele pegou o damasco, deu uma mordidinha para
experimentar e enfiou todo o resto na boca.
Então, na companhia de cinco desconhecidos, saqueei a casa de minha
família. A munição embaixo do piso do armário no quarto de meus pais havia se
incendiado, sem dúvida explodido. O armário estava muito chamuscado. Não
teria como reaver o dinheiro escondido ali.
Peguei fio dental, sabonete e um pote de vaselina do banheiro de meus pais.
Todo o resto já tinha sido levado.
Consegui pegar mudas de roupas para Cory e para meus irmãos.
Principalmente, encontrei sapatos para eles. Havia uma mulher procurando entre
os sapatos de Marcus, e arregalou os olhos para mim, mas não disse nada. Meus
irmãos tinham saído da casa vestindo pijamas. Cory havia vestido um casaco por
cima. Eu tinha sido a última a sair porque havia arriscado parar para pegar uma
calça jeans, uma blusa de moletom e sapatos, além de minha bolsa para
emergências. Eu poderia ter sido morta. Se tivesse pensado no que
estava fazendo, se tivesse pensado, sem dúvida teria sido morta. Reagi do modo
como havia me treinado a reagir - apesar de meu treinamento estar longe de
atualizado -, e fui mais pela lembrança do que por qualquer outra coisa. Há
muito tempo não treinava à noite. Apesar disso, esse
treinamento autoadministrado havia funcionado.
E se conseguisse levar aquelas roupas para a Cory e para meus irmãos, talvez
compensasse pela falta de treinamento deles. Principalmente se pudesse pegar o
dinheiro embaixo das pedras perto do limoeiro.
Coloquei as roupas e os sapatos dentro de uma fronha esfarrapada, procurei
cobertores ao meu redor e não encontrei nenhum. Provavelmente tinham sido
retirados dali antes. Mais um motivo para pegar o dinheiro do limoeiro.
Fui até o pessegueiro e, por ser alta, consegui alcançar dois pêssegos quase
maduros que os outros catadores não tinham visto. Em seguida, olhei ao redor
como se procurasse mais alguma coisa para levar, e me surpreendí ao quase
chorar quando vi a horta grande e bem cuidada de Cory, nos fundos do quintal,
toda destruída. Pimentões, tomates, abóboras, cenouras, pepinos, alface, melões,
girassóis, feijão, milho... Grande parte ainda não estava madura, mas o que não
tinha sido roubado fora destruído.
Peguei algumas cenouras, punhados de sementes de girassol de vasos do
chão, e alguns brotos de feijão de vinhas que Cory tinha plantado para subir
pelos galhos de girassol e pelas plantações de milho. Peguei o que havia
sobrado, como achava que um catador atrasado faria. E caminhei em direção
ao limoeiro. Quando me aproximei dele, pesado com os limões pequenos,
procurei algum que tivesse uma parte amarela, por menor que fosse. Peguei
alguns da árvore e do chão. Cory havia plantado flores de sombra na base da
árvore, e elas tinham se desenvolvido ali. Ela e meu pai tinham
espalhado pedrinhas redondas entre as flores de um jeito que parecesse nada
além de decoração. Algumas delas tinham sido reviradas, amassando as flores
por perto. Na verdade, a pedra com o dinheiro embaixo dela tinha sido virada.
Mas os cinco ou oito centímetros de terra em cima do pacote de dinheiro
(enrolado em três camadas de plástico) estavam intactos.
Peguei o pacote no mesmo tempo em que tinha colhido alguns limões pouco
antes. Primeiro, encontrei o esconderijo, então peguei o pacote de dinheiro com
um punhado de terra. Depois, na pressa de ir embora, mas morrendo de medo de
chamar atenção, peguei mais alguns limões e procurei mais comida.
Os figos estavam duros e verdes e não roxos, e os caquis estavam verde-
amarelados e alaranjados. Encontrei uma única espiga de milho na plantação e a
usei para enfiar o pacote de dinheiro ainda mais fundo na bolsa. Em seguida, fui
embora.
Com a bolsa nas costas e a fronha no braço esquerdo, apoiada no quadril
como se fosse um bebê, eu desci até a rua. Mantive minha mão direita livre para
segurar a arma ainda em meu bolso. Não tivera tempo para colocá-la no coldre.
Havia mais pessoas dentro dos muros do que quando eu tinha chegado. Tive
que passar pela maioria delas para sair. Outras estavam saindo com suas cargas,
e eu tentei segui-las sem me unir a nenhum grupo em especial. Isso significava
que eu me movimentava mais devagar do que gostaria. Tive tempo de olhar para
os cadáveres e ver o que eu não queria ver.
Richard Moss, totalmente nu, caído em uma poça de seu próprio sangue. A
casa dele, mais próxima do portão do que a nossa, tinha sido destruída pelo fogo.
Só a chaminé se destacava, escurecida e nua em meio aos destroços. Onde
estavam as duas esposas sobreviventes, Karen e Zahra? Será que tinham
sobrevivido? Onde estavam todos os seus vários filhos?
A pequena Robin Balter, nua, imunda, com sangue entre as pernas, fria,
magricela, entrando na puberdade. Ela poderia ter se casado com meu irmão
Marcus um dia. Poderia ter sido minha irmã. Sempre tinha sido uma
criança ótima e muito esperta, toda séria e sabida. Doze anos, mas alma de trinta
e cinco, Cory costumava dizer. Ela sempre sorria quando Cory dizia isso.
Russell Dory, o avô de Robin. Somente seus sapatos tinham sido levados.
Seu corpo tinha sido quase destroçado por tiros de armas automáticas. Um
senhor e uma criança. O que os pintados tinham ganhado com toda a matança?
“Ela morreu por nós”, dissera a catadora sobre a pintada de verde. Um tipo
de movimento maluco de “incendiar os ricos”, Keith dissera. Nunca tínhamos
sido ricos, mas, para os desesperados, parecíamos ricos. Estávamos
sobrevivendo e tínhamos nosso muro. Nossa comunidade morrera para que os
viciados pudessem fazer um apelo político e ajudassem os pobres?
Havia outros cadáveres. Não olhei com atenção para a maioria deles. Eles
enchiam os quintais da frente, a rua e o canteiro. Não havia sinal de nosso sino
de emergência agora. Os homens que o quiseram o haviam levado embora -
talvez para ser vendido por seu metal.
Vi Layla Yannis, a filha mais velha de Shani. Como Robin, ela tinha sido
estuprada. Vi Michael Talcott, com um lado da cabeça afundado. Não procurei
por Curtis. Estava amedrontada de encontrá-lo ali perto. Naquela situação, eu
já estava quase sem controle, e não podia chamar atenção. Não podia ser nada
mais do que outra catadora levando tesouros.
Corpos passaram sob meus olhos: Jeremy Balter, um dos irmãos de Robin,
Philip Moss, George Hsu, sua esposa e o filho mais velho, Juana Montoya,
Rubin Quintanilla, Lidia Cruz... Lidia tinha só oito anos. Também tinha sido
estuprada.
Atravessei o portão de volta. Não me descontrolei. Não tinha visto Cory nem
meus irmãos na carnificina. Isso não significava que eles não estavam ali, mas
eu não os havia visto. Podiam estar vivos. Curtis podia estar vivo. Onde poderia
procurá-los?
Os Talcott tinham parentes morando em Robledo, mas eu não sabia onde. Em
algum lugar do outro lado da Rua River. Eu não podia procurá-los, mas Curtis
era capaz ter ido atrás deles. Por que ninguém mais tinha ficado para salvar
o que fosse possível?
Dei a volta pelo bairro, sempre por onde pudesse ver o muro, e então fiz um
círculo maior. Não vi ninguém - ou pelo menos, ninguém que eu conhecia. Vi
outros desabrigados que ficavam me encarando.
E então, por não saber mais o que fazer, voltei em direção à minha garagem
destruída pelo fogo na Rua Meredith. Não podia telefonar para a polícia. Todos
os telefones que eu conhecia eram pó. Nenhum estranho me deixaria usar seu
telefone se tivesse um, e eu não conhecia ninguém a quem pudesse pagar para
fazer uma ligação e confiar que a pessoa a faria. A maioria das pessoas me
evitaria ou acabaria tentada a ganhar meu dinheiro e não ligar. E de
qualquer modo, se a polícia ignorou o que foi feito em meu bairro até agora, se
um incêndio desses e tantos cadáveres podem ser ignorados, por que eu a
procuraria? O que eles fariam? Me prenderíam? Levariam meu dinheiro como
taxa? Não me surpreendería. O melhor era me manter longe deles.
Mas onde estava minha família?!
Alguém chamou meu nome.
Eu me virei, com a mão no bolso, e vi Zahra Moss e Harry Balter - a esposa
mais jovem de Richard Moss e o irmão mais velho de Robin Balter. Os dois
eram um casal improvável, mas estavam juntos, sim. Conseguiam, mesmo sem
encostar um no outro, aparentar que faziam tudo menos se apoiar. Os
dois tinham manchas de sangue nas roupas rasgadas. Olhei para o rosto inchado
e machucado de Harry e me lembrei de que Joanne o amara - ou pensara amar -
e que ele não se casou com ela e não a acompanhou até Olivar porque acreditava
no mesmo que meu pai a respeito daquele lugar.
— Você está bem? — perguntou ele.
Assenti, lembrando de Robin. Ele sabia? Russell Dory, Robin e Jeremy...
— Eles bateram em você? — perguntei, sentindo-me tola e deslocada. Não
queria contar a ele que seu avô, seu irmão e sua irmã estavam mortos.
— Tive que brigar para sair ontem à noite. Tive sorte de eles não terem
atirado em mim. — Ele se remexeu, olhou ao redor. — Vamos nos sentar na
calçada.
Zahra e eu olhamos ao redor, atentas à presença de outras pessoas. Nos
sentamos com Harry entre nós. Eu me sentei em cima da fronha com as roupas.
Zahra e Harry estavam totalmente vestidos, apesar da camada de sangue e
sujeira, mas não carregavam nada. Será que não tinham nada ou deixaram as
coisas em algum lugar - talvez com o que havia sobrado de suas famílias? E
onde se encontrava Bibi, a filhinha de Zahra? Ela sabia que Richard Moss estava
morto?
— Todo mundo está morto — sussurrou Zahra como se falasse para os meus
pensamentos. — Todos. Aqueles imbecis pintados mataram todos eles!
— Não! — Harry negou balançando a cabeça. — Nós saímos! Há outros.
Ele se sentou apoiando o rosto nas mãos, e me perguntei se ele podia estar
mais ferido do que tinha pensado. Eu não estava compartilhando nenhuma dor
grave dele.
— Vocês viram meus irmãos ou Cory? — perguntei.
— Mortos — sussurrou Zahra. — Como minha Bibi. Todos mortos.
Eu me sobressaltei.
— Não! Não todos eles. Não! Você os viu?
— Vi a maioria da família Montoya — disse Harry. Ele não estava falando
comigo, estava mais falando sozinho. — Nós os vimos ontem à noite. Disseram
que Juana estava morta. O resto deles ia caminhar até Glendale, onde seus
parentes vivem.
— Mas... — comecei.
— E eu vi Laticia Hsu. Ela foi esfaqueada quarenta ou cinquenta vezes.
— Mas você viu meus irmãos? — Eu tive que perguntar.
— Estão todos mortos, já falei — disse Zahra. — Eles saíram, mas os
pintados os pegaram, levaram de volta e os mataram. Eu vi. Um deles me
dominou, e ele... eu vi.
Ela estava sendo estuprada quando viu minha família ser arrastada de volta e
morta? Era isso que estava dizendo? Era verdade?
— Voltei hoje cedo — falei. — Não vi os corpos deles. Não vi nenhum deles.
— Ah, não. Ah, não. Ah, não...
— Eu vi. Sua mãe. Todos eles. Eu vi. — Zahra envolveu o corpo com os
braços. — Eu não queria ver, mas eu vi.
Permanecemos sentados sem falar. Não sei quanto tempo ficamos ali. De vez
em quando, alguém passava por nós e nos olhava, uma pessoa suja com trouxas
de roupa. Pessoas mais limpas em pequenos grupos passavam por nós
de bicicleta. Um grupo de três passou de moto, com o zunido elétrico e o ronco
esquisito na rua silenciosa.
Quando me levantei, os outros dois olharam para mim. Sem qualquer motivo
que não fosse por hábito, peguei minha fronha. Não sei o que eu queria fazer
com as coisas dentro dela. Tinha me ocorrido, no entanto, que eu deveria
voltar para a minha garagem antes que outra pessoa entrasse ali. Eu não estava
pensando muito bem. Era como se aquela garagem fosse minha casa agora, e eu
só queria estar ali.
Harry se levantou e quase caiu de novo. Ele se curvou para a frente e
vomitou no meio-fio. Vê-lo vomitar mexeu comigo, e eu só consegui desviar o
olhar a tempo de não vomitar junto. Ele terminou, cuspiu, virou-se de frente
para Zahra e para mim e tossiu.
— Eu me sinto péssimo — disse ele.
— Eles o acertaram na cabeça ontem à noite — Zahra explicou. — Ele me
tirou do cara que estava... Bom, você sabe. Ele me tirou de perto, mas o feriram.
— Há uma garagem incendiada onde eu dormi ontem à noite — falei. —
Fica longe daqui, mas ele pode descansar lá. Todos podemos descansar lá.
Zahra pegou minha fronha e a levou. Talvez algo ali dentro pudesse fazer
bem para ela. Caminhamos, uma de cada lado de Harry, e impedimos que ele
parasse, saísse do caminho ou tropeçasse demais. De alguma maneira,
conseguimos levá-lo para a garagem.
15
Harry dormiu a maior parte do dia. Zahra e eu nos revezamos para ficar com
ele. Ele está com uma concussão, no mínimo, e precisa de tempo para se curar.
Não conversamos sobre o que faremos se ele ficar pior em vez de melhorar.
Zahra não quer abandoná-lo porque ele lutou para salvá-la. Não quero abandoná-
lo porque o conheço desde sempre. Ele é um cara bacana. Quero saber se existe
uma maneira de entrar em contato com os Garfield. Eles dariam uma casa a ele,
ou pelo menos cuidariam para que recebesse assistência médica.
Mas ele não parece estar piorando. Sai do quintal dos fundos cercado para
urinar. Come os alimentos e bebe a água que dou. Sem necessidade de discutir,
estamos comendo e bebendo do meu suprimento. Ele é tudo o que temos.
Em pouco tempo, vamos ter que arriscar sair para comprar mais. Mas hoje,
domingo, é dia de descanso e cura para nós.
A dor da cabeça de Harry e seu corpo agredido e cheio de hematomas são
quase bem-vindos para mim. São distrações. Juntamente com o falatório e o
choro de Zahra por sua filha morta, eles preenchem minha mente.
A tristeza deles diminui a minha, de certo modo. Ela me dá momentos em
que não penso na minha família. Todo mundo está morto. Mas como podem
estar? Todo mundo?
Zahra tem uma vozinha tranquila de menina que eu achava forçada. É real,
mas ganha um toque áspero quando ela fica contrariada. Parece dolorida, como
se arranhasse sua garganta quando ela fala.
Ela tinha visto sua filha morta, viu o cara azul que atirou em Bibi enquanto
Zahra corria com ela no colo. Achou que ele estava se divertindo, atirando em
todos os alvos móveis. Disse que a expressão dele fazia com que ela se
lembrasse de um homem fazendo sexo.
— Eu caí — sussurrou ela. — Pensei que estivesse morta. Pensei que ele
tivesse me matado. Vi sangue. Depois, vi a cabeça de Bibi tombar para um lado.
Um cara vermelha a arrancou de mim. Não vi de onde ele veio. Ele a pegou e a
jogou dentro da casa dos Hsu. A casa estava totalmente incendiada. Ele a jogou
no fogo. — Eu enlouquecí naquele momento. Não sei o que fiz. Alguém me
segurou, e então eu me livrei, depois alguém me empurrou para baixo e caiu em
cima de mim. Não consegui respirar, e ele rasgou minhas roupas. Em seguida,
ele estava em cima de mim e eu não consegui fazer nada. Foi quando vi sua
mãe, seus irmãos... Aí, Harry chegou e tirou o maldito de cima de mim. Mais
tarde, ele me disse que eu estava gritando. Não sei o que estava fazendo. Ele
estava batendo no cara que tinha tirado de cima de mim quando um outro
pulou em cima dele. Eu agredi o novo cara com uma pedra e Harry derrubou o
primeiro. Então, fugimos. Simplesmente corremos. Não dormimos. Nós nos
escondemos entre duas casas sem muros no fim da rua, longe do fogo, até
um cara aparecer com um machado e nos espantar dali. E então ficamos vagando
até encontrar você. Nós nem nos conhecíamos antes. Você sabe, o Richard nunca
gostou que tivéssemos muito contato com os vizinhos - principalmente os
brancos.
Eu assenti, lembrando de Richard Moss.
— Ele morreu, sabia? — disse. — Eu o vi.
Quis retirar as palavras assim que as disse. Não sabia como dizer a alguém
que seu marido tinha morrido, mas devia existir um modo melhor e mais
delicado do que aquele.
Ela olhou para mim, abalada. Eu quis me desculpar por minha maneira
abrupta, mas achei que não ajudaria. “Sinto muito”, eu disse em um tipo de
desculpa genérica por tudo. Ela começou a chorar, e eu repeti:
— Sinto muito.
Eu a abracei e deixei que chorasse. Harry acordou, bebeu um pouco de água,
escutou enquanto Zahra contava como Richard Moss a havia comprado de sua
mãe sem teto quando ela tinha apenas quinze anos - mais jovem do que eu
pensei - e a levou para morar na primeira casa que ela conhecera. Ele dava o
suficiente para comer e não a agredia, e mesmo quando as outras esposas, suas
companheiras, a tratavam mal, era mil vezes melhor do que viver do lado de fora
com a mãe e passar fome. Agora, estava do lado de fora de novo. Em seis anos,
ela tinha passado do nada para nada.
— Vocês têm para onde ir? — perguntou para nós, finalmente. — Conhecem
alguém que ainda tem uma casa?
Olhei para Harry.
— Pode ser que você entre em Olivar se conseguir andar até lá. Os Garfield
abrigariam você.
Ele pensou um pouco no que eu disse.
— Não quero — disse ele. — Acho que não tem mais futuro em Olivar do
que havia em nosso bairro. Mas pelo menos lá tínhamos as armas.
— Que não nos serviram de nada — murmurou Zahra.
— Eu sei. Mas elas eram nossas armas, não atiradores contratados. Ninguém
podia colocá-las contra nós. Em Olivar, pelo que Joanne disse, ninguém pode
portar arma, só os seguranças. E quem são eles?
— Pessoas da empresa — falei. — Pessoas de fora de Olivar. Ele assentiu.
— Foi o que ouvi, também. Talvez tudo fique bem, mas não parece certo.
— Parece melhor do que passar fome — disse Zahra. — Vocês nunca
pularam uma refeição, não é?
— Estou indo para o norte — falei. — Planejei ir assim que minha família se
restabelecesse. Agora não tenho mais família, então vou.
— Onde no norte? — perguntou Zahra.
— Em direção ao Canadá. Pelo modo com que as coisas estão agora, pode
ser que eu não consiga chegar tão longe. Mas encontrarei algum lugar onde a
água não custa mais do que a comida e onde o trabalho rende um salário. Mesmo
que seja pequeno. Não vou passar a vida como um escravo do século XXI.
— Eu também estou indo para o norte — disse Harry. — Não tem nada aqui.
Já tentei por mais de um ano conseguir trabalho por aqui, qualquer um que renda
dinheiro. Não tem nada. Quero trabalhar para ganhar dinheiro e para fazer uma
faculdade. Os únicos empregos que pagam dinheiro de verdade são aqueles que
nossos pais tinham, aqueles que exigem diploma universitário.
Olhei para ele, querendo perguntar algo, mas hesitando, demorando.
— Harry, e seus pais?
— Não sei — disse ele. — Não os vi mortos. A Zahra disse que também não
viu. Não sei onde todo mundo está. Nós nos separamos.
Engoli em seco.
— Não vi seus pais — falei —, mas vi alguns de seus outros parentes...
mortos.
— Quem? — perguntou ele.
Acho que não existe uma maneira de contar às pessoas que seus parentes
próximos morreram, exceto dizendo - por mais que a gente não queira.
— Seu avô — falei. — E Jeremy e Robin.
— Robin e Jeremy? Crianças? Crianças pequenas?
Zahra segurou a mão dele.
— Eles matam criancinhas — disse ela. — Aqui fora no mundo, eles matam
crianças todos os dias.
Ele não chorou. Ou talvez tenha chorado quando adormecemos. Mas
primeiro, ele se retraiu, parou de falar, parou de responder, parou de fazer
qualquer coisa até quase escurecer. Naquele momento, Zahra tinha saído
e voltado com a camisa de meu irmão Bennett cheia de pêssegos maduros.
— Não perguntem onde eu os peguei — disse ela.
— Imagino que você os tenha roubado — falei. — Não de ninguém aqui,
espero. Não faz sentido deixar os vizinhos irritados.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Não preciso que você me diga como viver aqui fora. Eu nasci aqui. Coma
seus pêssegos.
Comi quatro deles. Estavam deliciosos e maduros demais para serem
levados.
— Por que não experimenta algumas daquelas roupas? — perguntei. —
Pegue o que servir.
A camisa de Marcus e a calça jeans dele serviram nela -apesar de ter tido que
enrolar as pernas —, e os sapatos dele também serviram. Sapatos são caros.
Agora, ela tem dois pares.
— Se você deixar, vou trocar esses sapatinhos por comida. Eu assenti.
— Amanhã. O que você conseguir, vamos dividir. E então eu vou embora.
— Para o norte?
— Isso.
— Só para o norte. Sabe alguma coisa sobre as estradas, cidades e onde
comprar coisas ou roubá-las? Tem dinheiro?
—Tenho mapas — falei. — São velhos, mas acho que ainda servem.
Ninguém tem construído novas estradas ultimamente.
— Não mesmo. Dinheiro?
— Um pouco. Mas não o suficiente, desconfio.
— Não existe dinheiro suficiente. E ele? — Ela fez um gesto em direção à
costas de Harry, que não se mexia. Ele estava deitado. Não sabia se estava
adormecido ou não.
— Ele tem que decidir sozinho — falei. — Talvez queira ficar por aqui
procurando a família antes de partir.
Ele se virou lentamente. Parecia doente, mas totalmente consciente. Zahra
colocou os pêssegos que tinha guardado para ele a seu alcance.
— Não quero esperar nada — disse ele. — Seria bom se pudéssemos
começar agora. Detesto este lugar.
— Você vai com ela? — perguntou Zahra, fazendo um gesto com o polegar,
apontando para mim.
Ele olhou para mim.
— Pode ser que consigamos ajudar um ao outro — disse ele. — Pelo menos
nós nos conhecemos, e... Consegui pegar algumas centenas de dólares ao sair da
casa.
Ele estava oferecendo confiança. Queria dizer que podíamos confiar um no
outro. Isso não era pouca coisa.
— Eu estava pensando em viajar vestida de homem — disse a ele.
Ele parecia estar controlando um sorriso.
— Vai ser mais seguro para você. Pelo menos, tem altura suficiente para
enganar as pessoas. Mas vai ter que cortar os cabelos.
Zahra resmungou.
— Casais de etnias diferentes enfrentam um inferno, sejam héteros ou gays.
Harry vai incomodar os negros e você vai incomodar os brancos. Boa sorte.
Eu a observei dizendo isso e percebi o que queria dizer.
— Você quer ir conosco? — perguntei.
Ela fungou.
— Por que deveria ir? Não vou cortar meus cabelos!
— Não precisa — respondi. — Podemos ser um casal negro e o amigo
branco deles. Se Harry conseguir um bom bronzeado, talvez possamos dizer que
é um primo.
Ela hesitou, e então sussurrou:
— Sim, eu quero ir. — E começou a chorar. Harry olhou para ela surpreso.
— Você achou que íamos simplesmente largar você? — perguntei. — Você
só tinha que dizer para sabermos.
— Não tenho dinheiro nenhum — disse ela. — Nem um dólar.
Suspirei.
— Onde pegou esses pêssegos?
— Você tinha razão. Eu os roubei.
— Você tem uma habilidade útil, então, e informações sobre como viver aqui
fora. — Olhei para Harry. — O que você acha?
— Não se incomoda por ela ter roubado? — perguntou ele.
— Pretendo sobreviver — respondi.
— Não roubarás — disse ele. — Anos e anos, uma vida inteira de “Não
roubarás”.
Tive que controlar a raiva antes de conseguir responder. Ele não era meu pai.
Não tinha direito de citar as escrituras para mim. Não era ninguém. Não olhei
para ele. Não falei nada até ter certeza de que minha voz sairia normal. Então:
— Eu disse que pretendo sobreviver. Você não?
Ele concordou.
— Não foi uma crítica. Só estou surpreso.
— Espero que isso nunca signifique ser pego, nem deixar alguém morrer de
fome — falei. E, para minha surpresa, sorri. — Já pensei nisso. É como me
sinto, mas nunca roubei nada.
— Está brincando! — disse Zahra.
Dei de ombros.
— É verdade. Cresci tentando dar um bom exemplo a meus irmãos e
satisfazer as expectativas de meu pai. Aquilo parecia algo que eu deveria estar
fazendo.
— Filho mais velho — disse Harry. — Eu sei.
Ele era primeiro filho de sua família.
— Mais velho o caramba — disse Zahra, rindo. — Vocês são dois bebês
chorões aqui fora.
E isso não foi ofensivo, de algum modo. Talvez porque fosse verdade.
— Sou inexperiente — admiti. — Mas posso aprender. Você vai ser uma das
minhas professoras.
— Uma? — perguntou ela. — Quem você tem além de mim?
— Todo mundo.
Ela pareceu desdenhar.
— Ninguém.
— Todo mundo que está sobrevivendo aqui sabe de coisas que eu preciso
saber — eu disse. — Vou observá-las, ouvir o que dizem, aprender com elas. Se
eu não fizer isso, serei morta. E como eu disse, pretendo sobreviver.
— Eles venderão um monte de merda para você — disse ela.
Assenti.
— Eu sei. Mas vou comprar o mínimo possível.
Ela olhou para mim por muito tempo, e então suspirou.
— Gostaria de ter te conhecido melhor antes de tudo isso acontecer — disse
ela. — Você é uma filha de pastor esquisita. Se ainda quiser se disfarçar de
homem, posso cortar seu cabelo para você.
Estamos indo.
Hoje cedo, Zahra nos levou a Hanning Joss, o maior complexo de lojas em
Robledo. Poderiamos conseguir tudo o que precisamos lá. Os vendedores de
Hanning vendem de tudo, desde comida gourmet a hidratante, próteses a kits
de parto em casa, de armas até o que há de mais moderno em anéis de realidade
virtual, fones e gravadores. Eu poderia passar dias só andando pelos corredores,
olhando para todas as coisas que não consigo comprar. Eu nunca tinha ido a
um Hanning, nunca tinha visto nada desse tipo pessoalmente.
Mas tínhamos que entrar no complexo um de cada vez, deixando duas
pessoas para cuidar de nossas coisas - incluindo minha arma. Hanning, como eu
tinha ouvido muitas vezes no rádio, era um dos lugares mais seguros da cidade.
Quem não gostava dos farejadores, detectores de metal, das restrições em
relação a bolsas, dos guardas armados e da disposição para revistar qualquer
pessoa a quem julgasse suspeita, podia fazer compras em outro lugar. A loja era
cheia de pessoas dispostas a lidar com inconvenientes e invasão de privacidade
se pudessem comprar as coisas de que precisavam em paz.
Ninguém me revistou, mas tive que provar que não era uma morta de fome.
— Mostre-me seu cartão da Hanning ou dinheiro — um guarda armado
exigiu nos portões enormes. Eu fiquei morrendo de medo de que ele roubasse
meu dinheiro, mas mostrei as notas que eu pretendia gastar, e ele assentiu.
Não chegou a tocá-las. Sem dúvida, nós dois estávamos sendo observados, e
nosso comportamento foi registrado. Uma loja tão preocupada com a segurança
não deixaria os guardas roubarem o dinheiro de seus clientes.
— Faça suas compras em paz — disse o guarda sem qualquer indício de
sorriso.
Comprei sal, um frasco pequeno de mel, e as comidas secas mais baratas -
aveia, frutas, castanhas, farinha de feijão, lentilhas e um pouco de carne
desidratada - tudo o que eu achei que eu e Zahra conseguiriamos carregar. E
comprei mais água e alguns outros itens: tabletes de purificação de água - para
garantir - e um protetor solar, que até mesmo Zahra e eu precisaríamos usar,
alguma coisa para picadas de insetos e uma pomada que meu pai usava para
dores musculares. Teríamos muitas dores musculares. Comprei mais papel
higiênico, absorventes e manteiga de cacau para os lábios. Comprei um novo
caderno, duas canetas e munição cara para a .45. Eu me senti melhor depois
dessa aquisição.
Comprei três dos sacos de dormir baratos e de várias utilidades - sacos
grandes e resistentes para guardar coisas, e as roupas de cama preferidas dos
desabrigados mais abastados. O país estava cheio de pessoas que podiam
comprar ou roubar comida e água, mas que não conseguiam alugar nem
uma cama. Elas dormiam na rua e em casebres improvisados, mas se podiam,
colocavam um saco de dormir entre seus corpos e o chão. Os sacos, com suas
alças, podem ser dobrados e servir como mochilas durante o dia. São leves,
resistentes e conseguem aguentar a maioria dos desgastes. São quentes
mesmo quando é preciso dormir no concreto, mas finos - mais úteis do que
confortáveis. Curtis e eu costumávamos fazer amor em - cima de um
monte deles.
E eu comprei três jaquetas de tamanho grande do mesmo tecido sintético fino
e respirável dos sacos de dormir. Elas completarão a tarefa de nos manter
aquecidos à noite enquanto seguirmos para o norte. São baratas e feias, e isso
é bom. Provavelmente não serão roubadas.
E assim acabou meu dinheiro - o que eu tinha guardado em minha bolsa de
emergência. Não toquei no que peguei da base do limoeiro. Esse dinheiro eu
dividi em dois bolos e coloquei em duas meias de meu pai. Eu as mantinha
presas dentro de minha calça jeans, invisíveis e indisponíveis para batedores de
carteira.
Não é muito dinheiro, mas é mais do que já tive na vida - mais do que
qualquer pessoa imaginaria que tenho. Eu o enrolei, cobri com plástico e enfiei
nas meias em uma noite de sábado, quando tinha acabado de escrever e ainda
não conseguia parar de pensar e de me lembrar, sabendo não haver nada que eu
pudesse fazer a respeito do passado.
Então, eu me lembrei de ter pegado o pacote de dinheiro e um monte de
terra, e de ter enfiado tudo em minha bolsa. Eu tinha muita energia nervosa que
estava se consumindo em tremedeira. Minhas mãos tremiam a ponto de eu
mal conseguir encontrar o dinheiro - pelo tato, na escuridão. Exercitei a
concentração procurando-o, e também as meias e os alfinetes, dividindo o
dinheiro na metade, ou o mais próximo da metade que consegui sem olhar, enfiei
as partes nas meias e as prendi no lugar. Conferi quando fui urinar na manhã
seguinte. Tinha feito um bom trabalho. Os alfinetes não apareciam por fora. Eu
os havia passado pelas barras perto dos tornozelos. Sem nada à mostra, não
havia problema.
Levei minhas várias compras até o lugar onde já tinha sido o primeiro andar
de um estacionamento, e que no momento era uma espécie de mercado de pulgas
semifechado. Muitas das coisas retiradas de montes de cinzas e de lixões acabam
à venda aqui. A regra é que se você comprar na loja, pode vender algo de valor
parecido na estrutura. Seu recibo, com código e data, é a sua licença de mascate.
A estrutura era patrulhada, mas mais para checar as licenças do que para
manter todo mundo em segurança. Ainda assim, a estrutura era mais segura do
que a rua.
Encontrei Harry e Zahra sentados em cima de nossas coisas, Harry esperando
para entrar na loja e Zahra, a licença. Eles tinham se encostado em uma parede
da loja em um lugar longe da rua e do grupo maior de vendedores
e compradores. Dei o recibo a Zahra e comecei a separar e a guardar nossas
novas compras. Partiriamos assim que Zahra e Harry terminassem as compras e
vendas.
Semente da Terra
Lançada em solo novo
Deve primeiro notar
Que não sabe nada.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Aceite a diversidade.
Una...
Ou seja dividido,
roubado,
dominado,
morto
Por aqueles que o veem como presa.
Aceite a diversidade
Ou seja destruído.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
No fim do dia, vimos o mar. Nenhum de nós tinha visto antes, e tivemos que
nos aproximar, olhar para ele, acampar perto dele, ouvir seu som e sentir seu
cheiro. Quando decidimos fazer isso, caminhamos sem sapatos pelas ondas, com
as pernas das calças enroladas. Às vezes, apenas ficávamos parados observando
o Oceano Pacífico - o maior e mais profundo corpo de água na Terra, quase meio
mundo de água. E, mesmo assim, não podíamos bebê-la.
Harry ficou só de cueca e entrou até a água fria chegar a seu peito. Não sabe
nadar, é claro. Nenhum de nós sabe nadar. Nunca vimos água suficiente dentro
da qual pudéssemos nadar. Zahra e eu observamos Harry com muita
preocupação. Nenhuma de nós se sentia livre para acompanhá-lo. Eu tenho que
agir como homem e Zahra atrai atenção do tipo errado o suficiente mesmo
totalmente vestida. Decidimos esperar até depois do pôr do sol e entramos de
roupa mesmo, para tirar um pouco da sujeira e do fedor. Então,
poderiamos trocar de roupas. Nós duas tínhamos sabão e estávamos ansiosas
para usá-lo.
Havia outras pessoas na praia. Na verdade, a faixa estreita de areia estava
cheia de pessoas, mas elas conseguiam cuidar de suas coisas. Haviam se
espalhado e pareciam muito mais tolerantes umas com as outras do que tinham
sido durante nossa noite nos montes. Não ouvi nenhum tiro nem briga. Não
havia cães, não houve roubos relatados, nenhum estupro. Talvez o mar e a brisa
fria os envolvessem. Harry não foi o único a se despir e entrar na água. Algumas
mulheres tinham entrado também, vestindo quase nada. Talvez aquele fosse um
lugar mais seguro do que qualquer outro que tínhamos visto até então.
Algumas pessoas montaram barracas e muitas tinham feito fogueiras. Nós
nos assentamos contra as ruínas de uma pequena construção. Estávamos sempre,
ao que parecia, procurando muros para nos proteger. Era melhor tê-los e
talvez ficar encurralados ali ou acampar a céu aberto e ficar vulnerável de todos
os lados? Não sabíamos. Mas parecia melhor ter pelo menos um muro.
Peguei uma tábua de madeira da construção, me aproximei alguns metros do
oceano e comecei a cavar na areia. Cavei até encontrar areia úmida. E então,
esperei.
— O que deveria acontecer? — perguntou Zahra.
Até aquele momento, ela havia me observado sem dizer nada.
— Água potável — falei para ela. — De acordo com alguns livros que li, a
água deve passar pela areia com a maior parte do sal filtrada.
Ela olhou para dentro do buraco úmido.
— Quando?
Cavei um pouco mais.
— Vamos esperar — falei. — Se der certo, saberemos. Pode salvar nossa
vida, um dia.
— Ou nos envenenar e fazer com que fiquemos doentes — disse ela. Olhou
para a frente e viu Harry vindo em nossa direção, pingando. Até mesmo seus
cabelos estavam molhados. — Ele não fica feio nu.
Ele ainda estava de cueca, claro, mas entendi o que ela quis dizer. Ele tinha
um corpo bonito e forte, e acho que não se importava por estarmos olhando. E
estava limpo, não fedia.
Eu me sentia ansiosa para entrar na água.
— Podem ir — disse ele. — O sol está se pondo. Vou cuidar de nossas
coisas. Podem ir.
Pegamos nossos sabões, demos a arma para ele, tiramos os sapatos e as
meias, e fomos. Foi maravilhoso. A água estava fria e era difícil se manter de pé
com as ondas e a areia que não parava de escapar sob nossos pés. Mas jogamos
água uma na outra e lavamos tudo - roupas, corpos e cabelos -, deixamos as
ondas nos derrubarem e rimos como loucas. Foi o melhor momento que tive
desde que saímos de casa.
Bastante água tinha entrado no buraco que cavei quando voltamos para perto
de Harry. Eu a experimentei - peguei um pouco dela na mão enquanto Harry me
criticava.
— Vejam todas essas pessoas deste maldito lugar! — disse ele. — Estão
vendo algum banheiro? O que acham que elas fazem por aqui? Você tinha que
ter a noção de pelo menos usar um tablete purificador de água.
O que ele disse bastou para que eu cuspisse a água que tinha colocado na
boca. Ele tinha razão, obviamente. Mas experimentar tinha me mostrado o que
eu precisava saber. A água tinha ficado um pouco salobra, mas não ruim -
bebível. Deveria ser fervida ou tínhamos que acrescentar um purificador, como
Harry dissera, e, antes disso, de acordo com meu livro, poderia ser passada pela
areia para que mais sal saísse. Isso significava que se permanecéssemos perto da
costa, poderiamos sobreviver mesmo que ficássemos sem água. Era bom saber
disso.
Ainda tínhamos nossas sombras. O casal com o bebê havia acampado perto
de nós, e a mulher agora estava sentada na areia amamentando enquanto o
homem estava ajoelhado ao lado de sua mochila enorme, procurando por algo
dentro dela.
— Você acha que eles querem tomar banho? — eu perguntei a Harry e a
Zahra.
— O que você vai fazer? — perguntou Zahra. — Vai se oferecer para cuidar
da criança?
Balancei a cabeça, negando.
— Não, acho que isso seria demais. Vocês se incomodam se eu convidá-los
para ficarem conosco?
— Você não tem medo que eles nos roubem? — perguntou Harry. — Você
tem medo de todo mundo.
— Eles têm equipamentos melhores do que os nossos — respondi. — E não
têm aliados naturais por aqui além de nós. Casais ou grupos mistos são raros
aqui. Não tenho dúvida de que foi por isso que eles ficaram perto de nós.
— E você os ajudou — disse Zahra. — As pessoas não ajudam muito os
desconhecidos por aqui. E você devolveu a água deles. Quer dizer que tem o
bastante para não ter que roubar deles.
— Então, vocês se incomodam? — perguntei de novo. Eles se entreolharam.
— Não me importo — disse Zahra. — Desde que fiquemos de olho neles.
— Por que você quer que eles venham? — perguntou Harry, me observando.
— Eles precisam mais de nós do que precisamos deles — falei.
— Isso não é motivo.
— São possíveis aliados.
— Não precisamos de aliados.
— Agora, não. Mas seríamos muito idiotas se esperássemos e tentássemos
nos aproximar deles quando precisarmos. Até lá, pode ser que eles não estejam
por perto.
Ele deu de ombros e suspirou.
— Tudo bem. Como a Zahra disse, desde que fiquemos de olho neles.
Eu me levantei e fui até o casal. Vi que se endireitaram e ficaram tensos
quando me aproximei. Tomei o cuidado de não me aproximar demais, nem
muito rápido.
— Olá — falei. — Se vocês quiserem se revezar para tomarem banho,
podem vir ficar conosco. Assim fica mais seguro para o bebê.
— Ficar com vocês? — perguntou o homem. — Está pedindo para nos
unirmos a vocês?
— Convidando.
— Por quê?
— Por que não? Somos aliados naturais: o casal misto e o grupo misto.
— Aliados? — repetiu o homem, e riu.
Olhei para ele, tentando entender por que tinha rido.
— O que você realmente quer? — perguntou ele. Suspirei.
— Fiquem conosco se quiserem. São bem-vindos e, numa situação difícil,
cinco é melhor do que dois.
Eu me virei e me afastei para que eles pudessem conversar e decidir.
— Eles virão? — perguntou Zahra quando eu voltei.
— Acho que sim — respondi. — Mas talvez não essa noite.
Acho que Travis Charles Douglas é meu primeiro convertido. Zahra Moss é
minha segunda. Zahra tem ouvido conforme os dias passam, e conforme Travis e
eu vamos conversando aqui e ali. Às vezes, ela fazia perguntas ou dizia o que
via como inconsistências. Depois de um tempo, ela disse:
— Não me importo com o espaço sideral. Pode ficar com essa parte. Mas se
quiser criar uma espécie de comunidade na qual as pessoas cuidam umas das
outras e não têm que enfrentar pressões, estou com você. Tenho conversado
com Natividad. Não quero viver como ela teve que viver. Também não quero
viver como minha mãe teve que viver.
Fiquei me perguntando a diferença que havia entre o ex--empregador de
Natividad, que a tratava como se fosse dono dela, e Richard Moss, que comprava
garotas para compor seu harém. Era tudo uma questão de análise pessoal, sem
dúvida. Natividad havia se ressentido de seu empregador. Zahra havia aceitado e
talvez amado Richard Moss.
A Semente da Terra está nascendo bem aqui na U.S.101 - naquela parte da
101 que já foi El Camino Real, a estrada da realeza do passado espanhol da
Califórnia. Agora é uma estrada, um rio de pobres. Um rio que transborda ao
norte.
Comecei a pensar que deveria estar pescando naquele rio enquanto sigo seu
fluxo. Deveria observar as pessoas não só para saber as que podem ser perigosas
para nós, mas para encontrar aquelas poucas como Travis e Natividad, que
se uniriam a nós e seriam bem-vindos.
E depois? Encontrar um lugar para dominar? Agir como um tipo de gangue?
Não. Não bem como uma gan-gue. Não somos pessoas de gangues. Não quero
pessoas assim, com sua necessidade de dominar, roubar e aterrorizar. E, ainda
assim, talvez tenhamos que dominar. Talvez tenhamos que roubar para
sobreviver, e até aterrorizar para assustar ou matar inimigos. Teremos que tomar
cuidado com o modo com que permitiremos que nossas necessidades nos
moldem. Mas devemos ter terra arável, um fornecimento certo de água e
liberdade suficiente para podermos nos estabelecer e crescer.
Talvez seja possível encontrar um lugar isolado dessa forma na costa e fechar
um acordo com os habitantes. Se fôssemos um grupo um pouco maior, se
estivéssemos mais bem armados, poderiamos oferecer segurança em troca de
espaço para viver. Poderiamos também oferecer educação e serviços de leitura e
escrita a adultos analfabetos. Poderia haver um mercado para esse tipo de coisa.
Tantas pessoas, adultos e crianças, são analfabetas hoje em dia... Talvez
conseguíssemos fazer isso - cultivar nossos alimentos, prosperar para que nós e
nossos vizinhos nos tornemos algo novo em folha. A Semente da Terra.
19
Mudanças.
As galáxias se movem pelo espaço.
As estrelas se inflamam,
queimam
envelhecem,
esfriam,
Evoluindo.
Deus é Mudança.
Deus prevalece.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Terremoto hoje.
Ele aconteceu hoje cedo enquanto começávamos a caminhada do dia, e foi
forte. O chão roncou baixo e forte, como um trovão abafado. Ele tremeu e
chacoalhou, e então pareceu cair. Tenho certeza de que caiu, mesmo sem saber
até onde. Quando o tremor parou, tudo parecia igual - exceto por partes
repentinas de poeira aqui e ali nos montes de terra ao nosso redor.
Varias pessoas gritaram durante o tremor. Algumas, carregando mochilas
pesadas, perderam o equilíbrio e caíram na terra ou no asfalto destruído. Travis,
com Dominic em seu peito e uma mochila pesada nas costas, quase foi
uma delas. Ele tropeçou, se desequilibrou, mas conseguiu se endireitar. O bebê,
que não se feriu, mas assustado pelo tremor repentino, começou a chorar, se
juntando ao barulho de duas crianças mais velhas caminhando por perto, ao
falatório repentino de quase todo mundo e às arfadas de um senhor que havia
caído durante os tremores.
Deixei de lado minhas suspeitas de sempre e fui ver se o senhor estava bem -
não que eu pudesse ter feito muito para ajudá-lo, caso ele não estivesse. Peguei o
cajado para ele - que havia caído além de seu alcance - e o ajudei a se levantar.
Ele era leve como uma criança, magro, desdentado e com medo de mim.
Dei um tapinha em seu ombro e fiz com que seguisse caminho, conferindo,
quando ele virou as costas, se não tinha pegado nada. O mundo era cheio de
ladrões. Idosos e crianças costumavam ser batedores de carteira.
Nada estava faltando.
Outro homem próximo dali sorriu para mim - um homem negro mais velho,
mas ainda não idoso, que ainda tinha dentes e levava seus pertences dentro de
duas bolsas de couro penduradas na estrutura de metal resistente de um
carrinho. Ele não disse nada, mas eu gostei de seu sorriso. Sorri em resposta.
Então, eu me lembrei que deveria ser um homem, e fiquei me perguntando se é
possível que ele tenha percebido meu disfarce. Não que isso tivesse importância.
Voltei para meu grupo, onde Zahra e Natividad confortavam Dominic, e
Harry pegava algo da beira da estrada. Fui até ele, e vi que tinha encontrado um
trapo imundo amarrado bem apertado em formato de bola ao redor de alguma
coisa. Harry rasgou o trapo podre e um rolo de dinheiro caiu em suas mãos.
Notas de cem dólares. Duas ou três dúzias delas.
— Guarde isso! — sussurrei.
Ele enfiou o dinheiro dentro de um bolso fundo da calça.
— Sapatos novos — sussurrou ele. — Dos bons, e outras coisas. Precisa de
alguma coisa?
Eu havia prometido comprar a ele um par novo de sapatos assim que
chegássemos a uma loja de confiança. Os deles estavam desgastados. Agora,
outra ideia me ocorria.
— Se tiver o suficiente — sussurrei — compre uma arma. Comprarei seus
sapatos. Você deve comprar uma arma! — E então, falei com os outros,
ignorando a expressão de surpresa dele. — Todo mundo está bem?
Todo mundo estava bem. Dominic estava feliz de novo, nas costas da mãe e
mexendo em seus cabelos. Zahra reorganizava a bolsa e Travis estava analisando
a pequena comunidade a sua frente. Estávamos na zona rural. Não
tínhamos passado por nada além de cidades pequenas e
moribundas, comunidades problemáticas de beira de estrada e fazendas durante
dias. Parte da mata estava sendo trabalhada, parte estava abandonada e
acumulava mato.
Caminhamos em direção a Travis.
— Fogo — disse ele quando nos aproximamos.
Uma casa na base do monte, descendo pela estrada, soltava fumaça de várias
de suas janelas. As pessoas da estrada já tinham começado a caminhar em
direção ao fogo. Problema. Os donos da casa podiam conseguir apagar o
incêndio e ainda assim seriam atacados por vasculhadores.
— Vamos sair daqui — falei. — As pessoas ali ainda estão fortes, e se
sentirão sitiadas em breve. Vão retrucar.
— Pode ser que encontremos algo que possamos usar — Zahra contra-
argumentou.
— Não há nada ali embaixo que valha a pena os tiros que podemos tomar —
falei. — Vamos!
Liderei o caminho para além da pequena comunidade e estávamos quase fora
dela quando os tiros começaram.
Ainda havia pessoas na estrada conosco, mas muitas tinham corrido para a
pequena comunidade para roubar. A multidão não daria atenção apenas à casa
em chamas, e todas as famílias teriam que resistir.
Ouvimos mais tiros atrás de onde estávamos - primeiro individuais, depois
uma saraivada estranha de tiros trocados e, depois, o som inconfundível de
armas automáticas. Caminhamos mais depressa, torcendo para estarmos fora do
escopo de qualquer coisa que fosse mirada em nós.
— Merda! — Zahra sussurrou, me acompanhando. — Eu deveria ter
imaginado que isso aconteceria. As pessoas aqui fora, no meio do nada, têm que
ser duronas.
— Mas acho que o fato de serem duronas não fará com que se salvem —
falei, olhando para trás.
Havia muito mais fumaça subindo naquele momento, e subia de mais de um
lugar. Gritos distantes se misturavam aos tiros. Que lugar ruim para assentar uma
pequena comunidade desprotegida. Eles deveriam ter escondido suas casas nas
montanhas, onde poucos desconhecidos os veriam. Isso era algo de que eu
deveria me lembrar. Tudo o que as pessoas daquela comunidade poderiam fazer
seria levar alguns dos perturbadores embora junto com elas. Amanhã, os
sobreviventes daquele lugar estariam na estrada com alguns dos pertences nas
costas.
É estranho, mas não acho que alguém na estrada pensaria em atacar aquela
comunidade em massa daquele jeito se o terremoto - ou outra coisa - não tivesse
dado início a um incêndio. Um pequeno incêndio era a fraqueza que dava aos
vasculhadores permissão de devastar uma comunidade - que, sem dúvida, era o
que eles estavam fazendo naquele momento. Os tiros podiam assustar alguns,
matar ou ferir outros, e tornar os demais muito irados. Se as pessoas da
comunidade escolhiam viver em um lugar tão perigoso, deveríam ter armado
grandes defesas - uma fileira de explosivos e incendiários, coisas assim. Só um
poder muito forte, muito destrutivo e muito repentino assustaria os agressores e
os afastaria com um pânico maior do que a ganância e a necessidade que os
havia atraído, para começo de conversa. Se as pessoas da comunidade
estivessem sem explosivos, deveríam ter pegado seu dinheiro e seus filhos e
fugido como loucos assim que viram a multidão se aproximando. Eles
conheciam os montes melhor do que os saqueadores migrantes
jamais conheceríam. Deveríam ter esconderijos já preparados ou pelo menos ser
capazes de se embrenhar nos montes enquanto os vasculhadores saqueavam suas
casas. Mas não tinham feito nada disso. E agora grandes nuvens de fumaça
subiam atrás de nós, atraindo ainda mais vasculhadores.
— O mundo todo enlouqueceu — disse uma voz perto de mim, e eu soube,
antes de olhar, que era o homem com o carrinho.
Nós tínhamos diminuído a velocidade um pouco, olhando para trás, e ele
havia nos alcançado. Também tivera o bom senso de não sair vasculhando a
pequena comunidade. Não aparentava ser um saqueador. Suas roupas eram sujas
e simples, mas serviam bem nele e pareciam quase novas. A calça jeans ainda
era azul-escuro e tinha pregas pelas pernas. A camisa vermelha, de mangas
curtas, ainda tinha todos os botões. Usava sapatos caros e havia cortado os
cabelos, não muito tempo antes, com um corte profissional. O que ele estava
fazendo ali na estrada, empurrando um carrinho com bolsas de couro? Um pobre
rico - ou pelo menos, um pobre que já tinha sido rico. Ele tinha a barba curta,
cheia, grisalha. Concluí que gostava da aparência dele tanto quanto antes. Que
senhor bonito.
O mundo havia enlouquecido?
— Pelo que eu soube — eu falei para ele — o mundo enlouquece a cada três
ou quatro décadas. O segredo é sobreviver até ele ficar são de novo.
Eu estava exibindo minha educação e meu histórico, admito. Mas o senhor
pareceu não se impressionar.
— Os anos 1990 foram malucos — disse ele —, mas eram anos de riqueza.
Não tão ruim como agora. Acho que nunca foi tão ruim. Essas pessoas, esses
animais lá atrás...
— Não acredito que eles possam agir assim — disse Natividad. — Gostaria
de poder chamar a polícia, seja a polícia quem for por aqui. Os donos das casas
ali deveríam chamar.
— Não resolvería nada — falei. — Ainda que os policiais viessem hoje e não
amanhã, eles só aumentariam o número de mortes.
Continuamos caminhando, e o desconhecido caminhava conosco. Parecia
satisfeito em nos acompanhar. Poderia ter ficado para trás ou seguido à nossa
frente, já que não tinha que carregar sua carga. Contanto que permanecesse
na estrada, poderia avançar mais rápido. Mas ficou conosco. Conversei com ele,
me apresentei e soube que seu nome era Bankole — Taylor Franklin Bankole.
Nossos sobrenomes nos uniram no ato. Nós dois somos descendentes de homens
que assumiram sobrenomes africanos durante os anos 1960. O pai dele e o meu
avô tinham mudado de sobrenome legalmente, e ambos escolheram substitutos
iorubá.
— A maioria das pessoas escolhia nomes suaílis em 1960 — disse Bankole.
Ele queria ser chamado de Bankole. — Meu pai teve que fazer algo diferente.
Durante toda a vida, ele tinha que ser diferente.
— Não conheço os motivos de meu avô — falei. — Seu sobrenome era
Broome antes de ele mudá-lo, e não foi problema. Mas por que escolheu
Olamina...? Nem mesmo meu pai sabia. Fez a mudança antes de ele nascer, por
isso meu pai sempre foi Olamina, e nós também.
Bankole era um ano mais velho do que meu pai. Ele tinha nascido em 1970 e
era, de acordo com ele mesmo, velho demais para estar numa estrada com tudo o
que tinha dentro de duas bolsas de couro. Tinha 57 anos. Eu me peguei
desejando que ele fosse mais jovem para que pudesse viver por mais tempo.
Velho ou não, ele ouviu, antes de nós, as duas garotas pedindo ajuda.
Havia um caminho, mais terra do que asfalto, correndo abaixo e
paralelamente à estrada, e afastava-se dela monte acima. Subindo esse caminho,
havia uma casa meio caída, com a poeira de seu colapso ainda alta ao seu redor.
Não devia ser uma casa muito boa antes do colapso. Agora, eram só destroços. E
assim que Bankole nos alertou, passamos a ouvir gritos abafados vindos dela.
— Parecem mulheres — disse Harry.
Suspirei.
— Vamos lá para ver. Talvez precisemos apenas empurrar algumas madeiras
para libertá-las, ou coisa assim.
Harry me segurou pelo ombro.
— Tem certeza?
— Sim. — Peguei a arma e a entreguei a ele para o caso de uma dor alheia
me deixar incapacitada. — Fique de olho no que acontece atrás de nós.
Entramos atentos e hesitantes, sabendo que um pedido de ajuda poderia ser
falso, poderia atrair as pessoas a seus agressores. Algumas outras pessoas nos
acompanharam quando saímos da estrada, e Harry ficou mais atrás, pondo-se
entre eles e nós. Bankole levava seu carrinho, mantendo-se ao meu lado.
Havia duas vozes chamando de dentro dos destroços. Ambas pareciam ser de
mulheres. Uma estava pedindo socorro e a outra, xingando. Nós as localizamos
pelo som de suas vozes e então Zahra, Travis e eu começamos a tirar os
destroços - madeira seca e quebrada, gesso, plástico e tijolos de uma
chaminé antiga. Bankole permaneceu com Harry, observando e parecendo
imponente. Ele tinha uma arma? Eu esperava que sim. Estávamos atraindo uma
pequena platéia de vasculhadores com cara de famintos. A maioria das pessoas
observava para ver o que estávamos fazendo, e seguiam em frente. Algumas
ficavam e olhavam. Se as mulheres ficaram presas desde o terremoto,
era surpreendente que ninguém tivesse chegado para roubar seus pertences e
incendiar os destroços, deixando-as lá dentro. Eu torcia para que conseguíssemos
libertá-las e voltar para a estrada antes que alguém nos surpreendesse. Sem
dúvida já teriam feito isso se houvesse algo de valor à vista.
Natividad falou com Bankole, e então colocou Dominic em uma de suas
bolsas de couro e pôs a mão sobre o bolso para ver se o canivete ainda estava ali.
Não gostei muito disso. Era melhor que ela continuasse carregando o bebê
para que pudéssemos sair correndo, se fosse preciso.
Encontramos uma perna pálida, machucada e sangrando, mas não quebrada,
presa embaixo de uma viga. Uma parte inteira da parede e do teto, além de parte
da chaminé, tinha caído em cima daquelas mulheres. Tiramos as partes soltas e
então, juntos, trabalhamos para erguer as pesadas. Por fim, arrastamos as
mulheres para fora pelos membros expostos - braço e perna de uma, duas pernas
da outra. Eu, assim como elas, não gostei de fazer isso.
Por outro lado, não foi tão ruim. As mulheres tinham perdido um pouco de
pele aqui e ali, e uma sangrava pelo nariz e pela boca. Ela cuspia sangue e alguns
dentes, xingava e tentava se levantar. Deixei Zahra ajudá-la a ficar de
pé. Naquele momento eu só queria dar o fora dali.
A outra, com o rosto banhado em lágrimas, ficou sentada nos observando.
Estava calada de um modo inexpressivo, pouco natural. Quieta demais. Quando
Travis tentou ajudá--la a se levantar, ela se retraiu e gritou. Ele a deixou em
paz. Não parecia muito ferida, tinha só alguns arranhões, mas podia ter batido a
cabeça. Podia estar em choque.
— Onde estão suas coisas? — perguntava Zahra à moça ensanguentada. —
Teremos que sair daqui depressa.
Esfreguei minha boca, tentando me livrar de uma certeza irracional de que
dois de meus dentes tinham caído. Eu me sentia péssima - arranhada, machucada
e com dor latejante, mas inteira, sem nada quebrado, sem piores danos, mas
queria me esconder em algum lugar até me sentir menos mal. Respirei fundo e
fui até a mulher assustada e retraída.
— Você consegue me entender? — perguntei.
Ela olhou para mim e então ao redor, viu a companheira secando o sangue
com a mão suja e tentou se levantar e correr até ela. Tropeçou, começou a cair,
mas eu a segurei, contente por ela não ser muito grande.
— Suas pernas estão bem — falei —, mas vá com calma. Temos que sair
daqui depressa, e você precisa conseguir andar.
— Quem é você? — perguntou ela.
— Um desconhecido — respondí. — Tente andar.
— Houve um terremoto.
— Sim. Ande!
Ela deu um passo trêmulo para longe de mim, e então mais um. Caminhou
incerta até a amiga.
— Allie? — disse.
A amiga a viu, ergueu-se na direção dela e a abraçou, sujando-a de sangue.
— Jill! Graças a Deus!
— Aqui estão as coisas dela — disse Travis. — Vamos tirá-las daqui
enquanto ainda podemos.
Fizemos as duas caminharem um pouco mais, tentamos fazer com que elas
vissem e entendessem o perigo de permanecer onde estávamos. Não podíamos
arrastá-las conosco, e qual seria o propósito de tirá-las e então deixá-las à mercê
de saqueadores? Elas tinham que caminhar conosco até estarem mais fortes e
serem capazes de cuidar de si mesmas.
— Certo — disse a ensanguentada.
Era a menor e mais forte das duas, não que houvesse grande diferença física
entre elas. Duas mulheres brancas, de estatura mediana e cabelos castanhos, na
casa dos vinte anos. Podiam ser irmãs.
— Certo — repetiu a que estava suja de sangue. — Vamos sair daqui.
Ela já estava caminhando sem mancar nem tropeçar agora, mas sua
companheira estava menos firme.
— Me dê as minhas coisas — disse ela.
Travis fez um gesto em direção a duas mochilas empoeiradas com sacos de
dormir. Ela colocou uma nas costas, e então olhou para a outra e para sua
companheira.
— Consigo levar — disse a outra mulher. — Estou bem.
Não estava, mas tinha que carregar suas coisas. Ninguém carregaria duas
mochilas por muito tempo. Ninguém conseguia lutar carregando duas mochilas.
Havia uma dúzia de pessoas ao redor olhando para nós quando saímos com
as mulheres. Harry caminhava à nossa frente, com a arma na mão. Algo indicava
claramente que ele mataria. Se fosse pressionado, ainda que pouco, mataria.
Eu nunca o vira assim antes. Era impressionante, assustador e errado. Certo para
a situação e para o momento, mas errado para Harry. Ele não era o tipo de cara
que deveria dar essa impressão.
Quando eu tinha começado a pensar nele como um homem e não mais como
um garoto? Que inferno. Somos todos homens e mulheres agora, não mais
crianças. Merda.
Bankole caminhava atrás, parecendo ainda mais imponente do que Harry,
apesar dos cabelos e da barba grisalhos. Segurava uma arma. Eu havia olhado
para ela ao passar por ele. Outra automática - talvez uma nove milímetros.
Esperava que ele fosse bom com ela.
Natividad empurrava o carrinho à frente dele com Do-minic ainda em uma
das bolsas. Travis caminhava ao lado, cuidando dela e do bebê.
Eu andei com as duas mulheres, temendo que uma delas caísse, ou fosse
pega por um tolo. A moça chamada Allie ainda sangrava, cuspia sangue e
limpava o nariz ensanguentado com o braço também ensanguentado. E a moça
chamada Jill ainda parecia perdida e trêmula. Allie e eu mantivemos Jill entre
nós.
Antes de o ataque começar, eu sabia que ele aconteceria. Ajudar as duas
mulheres presas havia nos tornado alvos. Poderiamos já ter sido atacados se a
comunidade da estrada não tivesse matado tantas das pessoas mais violentas e
desesperadas. Os fracos seriam atacados hoje. O terremoto havia criado o clima.
E um ataque podia acionar outros.
Podíamos apenas tentar estar prontos.
Do nada, um homem agarrou Zahra. Ela é pequena e, além de bonita, deve
ter parecido fraca.
Um instante depois, alguém me agarrou. Fui virada para trás, tropecei e
comecei a cair. Foi idiota assim. Antes que pudessem me bater, eu tropecei e caí.
Mas como meu agressor havia me puxado em direção a ele, caí em cima dele. Eu
o puxei para baixo comigo. De algum modo, consegui pegar meu canivete. Abri
e o enfiei de baixo para cima no corpo de meu agressor.
A lâmina de quinze centímetros entrou inteira. E então, com um desespero
empático, eu o puxei de volta.
Não consigo descrever a dor.
Os outros me contaram depois que eu gritei como eles nunca tinham ouvido
ninguém gritar. Não me surpreende. Nada nunca me doeu tanto quanto aquilo.
Depois de um tempo, o desespero em meu peito diminuiu e passou. Ou seja,
o homem em cima de mim sangrou e morreu. Só então comecei a perceber algo
além da dor.
A primeira coisa que ouvi foi o choro de Dominic.
Entendi naquele momento que também tinha ouvido tiros - muitos tiros.
Onde estava todo mundo? Estavam feridos?
Mortos? Estavam sendo feitos reféns?
Mantive meu corpo imóvel embaixo do morto. Ele era muito pesado como
peso morto e o odor de seu corpo, nauseante. Ele havia sangrado em cima de
meu peito e, se meu olfato estivesse certo, havia urinado em mim ao morrer.
Ainda assim, não ousei me mexer até entender a situação.
Abri um pouco os olhos.
Antes que eu conseguisse entender o que estava vendo, alguém tirou o morto
fedorento de cima de mim. Eu me vi diante de dois rostos preocupados: Harry e
Bankole.
Tossi e tentei me levantar, mas Bankole me manteve no chão.
— Está com algum machucado? — perguntou ele.
— Não, estou bem — falei. Vi Harry olhando para o sangue todo e
acrescentei: — Não se preocupe. O cara sangrou, não eu.
Eles me ajudaram a levantar, e eu descobri que tinha razão. O morto tinha
urinado em mim. Eu estava quase desesperada, precisando arrancar minhas
roupas imundas e me lavar. Mas isso teria que esperar. Por mais nojenta que
estivesse, não me despiria à luz do dia onde eu pudesse ser vista. Já tivera
problemas suficientes para um dia.
Olhei ao redor, vi Travis e Natividad confortando Dominic, que ainda
gritava. Zahra estava com as duas moças novas, de pé e de guarda ao lado delas,
ambas sentadas no chão.
— As duas estão bem? — perguntei.
Harry assentiu.
— Estão assustadas e abaladas, mas estão bem. Todo mundo está bem,
menos ele e seus amigos. — Ele fez um gesto na direção do morto. Havia mais
três mortos caídos ali perto.
— Havia alguns feridos — disse Harry. — Deixamos que fossem embora.
Eu assenti.
— É melhor vasculharmos esses mortos e partirmos também. Ficamos em
evidência aqui para quem nos vê da estrada.
Fizemos um trabalho rápido e meticuloso, revistando tudo, menos as
cavidades dos corpos. Ainda não éramos necessitados o suficiente para fazer
isso. E então, por insistência de Zahra, fui para trás da casa destruída para trocar
de roupa depressa. Ela pegou a arma de Harry e montou guarda para mim.
— Você está toda suja de sangue — disse ela. — Se as pessoas pensarem que
você está ferida, podem te atacar. Hoje não é um bom dia para aparentar
fraqueza.
Desconfiei de que ela estivesse certa. De qualquer maneira, foi um prazer
deixar que ela me convencesse a fazer algo que eu já queria muito fazer.
Coloquei minhas roupas imundas e molhadas em um saco plástico, fechei e
as enfiei em minha bolsa. Se algum dos mortos tivesse roupas que me servissem
e que ainda estivessem em boas condições para serem usadas, eu teria jogado as
minhas fora. Mas, naquele caso, eu as guardaria para lavar na próxima vez em
que chegássemos a uma estação de água ou a uma loja onde fosse possível fazer
isso. Tínhamos pegado dinheiro dos cadáveres, mas seria melhor usá-lo para
outras necessidades.
Tiramos cerca de 2.500 dólares, ao todo, dos quatro corpos — com dois
canivetes que podíamos vender ou passar para as duas meninas, e uma arma
puxada por um homem em quem Harry tinha atirado. A arma era uma Beretta
vazia e suja de nove milímetros. Seu dono não tinha munição, mas podemos
comprar - talvez de Bankole. Para isso, gastaremos dinheiro. Eu havia
encontrado algumas joias dentro do bolso do homem que me atacou - duas
alianças de ouro, um colar de pedras azuis polidas que pensei serem lápis-lazúli,
e um brinco que na verdade era um rádio. Ficaríamos com o rádio. Ele poderia
nos dar informações a respeito do mundo para além da estrada. Seria bom não
estar mais sem contato.
Fiquei tentando imaginar quem meu agressor tinha roubado para conseguir
aquilo.
Todos os quatro cadáveres tinham caixinhas plásticas de comprimidos
escondidas em algum lugar deles. Duas caixas continham dois comprimidos
cada. As outras duas estavam vazias. Então, essas pessoas que não levavam
alimentos, nem água, nem armas adequadas levavam comprimidos quando
conseguiam roubá-los ou roubar dinheiro suficiente para comprá-los. Viciados.
Fiquei tentando imaginar qual droga usavam. A piro? Pela primeira vez em dias,
eu me peguei pensando em meu irmão Keith. Será que ele tinha vendido
os comprimidinhos redondos e roxos que sempre encontrávamos em quem nos
atacava? Sua morte tinha sido causada por eles?
Alguns quilômetros depois, mais adiante na estrada, vimos alguns policiais
dentro de carros, seguindo para o sul em direção ao que agora podia ser uma
massa incendiada de uma comunidade com muitos cadáveres. Talvez os policiais
prendessem alguns saqueadores atrasados. Talvez fossem vasculhar um pouco
para si mesmos. Ou talvez eles dessem uma olhada e saíssem de perto. O que os
policiais tinham feito pela minha comunidade quando estava pegando fogo?
Nada.
As duas mulheres que tiramos dos escombros querem ficar conosco. Se
chamam Allison e Jillian Gilchrist. São irmãs, têm 24 e 25 anos, são pobres,
fugindo de uma vida de prostituição. O cafetão era o pai delas. A casa que
havia desabado estava vazia quando elas se abrigaram lá na noite anterior.
Parecia abandonada há muito tempo
— Construções abandonadas são armadilhas — disse Zahra para elas
enquanto caminhávamos. — Aqui, no meio do nada, elas são alvos para todos os
tipos de pessoas.
— Ninguém nos incomodou — disse Jill. — Mas então a casa desabou em
cima de nós, e ninguém nos ajudou também, até vocês chegarem.
— Vocês tiveram muita sorte — Bankole disse. Ele ainda estava conosco, e
caminhava ao meu lado. — As pessoas não ajudam muito umas às outras aqui.
— Sabemos disso — Jill admitiu. — Somos gratas. Quem são vocês, afinal?
Harry abriu um sorriso esquisito para ela.
— Semente da Terra — disse ele, e olhou para mim. É preciso ficar atento
com Harry quando ele sorri desse jeito.
— O que é Semente da Terra? — perguntou Jill, na mesma hora. Ela havia
deixado Harry direcionar seu olhar para mim.
— Compartilhamos algumas idéias — falei. — Pretendemos seguir para o
norte, e fundar uma comunidade.
— Onde no norte? — perguntou Allie.
Sua boca ainda doía, e eu sentia mais quando prestava atenção nela. Pelo
menos o sangramento já tinha quase parado.
— Estamos procurando empregos que paguem salários e de olho nos preços
da água — falei. — Queremos nos assentar onde a água não seja um grande
problema.
— A água é um problema em todas as partes — disse ela. E então: — O que
vocês são? Um tipo de seita ou coisa assim?
— Acreditamos em algumas das mesmas coisas — falei.
Ela se virou para olhar para mim com o que parecia ser hostilidade.
— Eu acho que religião é uma pilha de merda — disse ela. — É tudo mentira
ou loucura.
Dei de ombros.
— Vocês podem viajar conosco ou podem ir embora.
— Mas o que vocês defendem, afinal? — perguntou ela. — Para que oram?
— Para nós mesmos — falei. — O que mais haveria?
Ela me deu as costas, enojada, e então virou-se para mim de novo.
— Temos que entrar em sua seita se viajarmos com você?
— Não.
— Então, ótimo!
Ela virou as costas e caminhou na minha frente como se tivesse ganhado
alguma coisa.
Falei mais alto, o suficiente para sobressaltá-la. Eu disse:
— Nós nos arriscamos por vocês hoje.
Ela se retesou, mas se recusou a olhar para trás. Continuei.
— Vocês não nos devem nada por isso. Não é algo que poderíam comprar de
nós. Mas se viajarem conosco, e se tivermos problemas, vocês ficarão conosco,
nos defenderão. Concordam ou não?
Allie se virou, tensa de raiva. Parou na minha frente e ali ficou.
Não parei, nem me virei. Não era o momento de ceder. Eu precisava saber o
que seu orgulho e sua raiva podiam levá-la a fazer. Quanto daquela aparente
hostilidade era real, e quanto podia ser devido à sua dor? Ela daria mais
trabalho do que valia?
Quando notou que eu pretendia passar por cima dela, se fosse preciso, e que
faria isso, me deixou passar e caminhou ao meu lado como se sua intenção
tivesse sido essa desde o começo.
— Se não tivessem nos retirado, não nos preocuparíamos com vocês. — Ela
respirou fundo, controlando-se. — Sabemos nos cuidar. Podemos ajudar nossos
amigos e lutar contra nossos inimigos. Fazemos isso desde a infância.
Olhei para ela, pensando no pouco que ela e a irmã tinham nos contado sobre
sua vida: prostituição, pai cafetão... Uma baita história, se fosse verdade. Sem
dúvida, os detalhes seriam ainda mais interessantes. Como elas tinham
escapado do pai? Teríamos que ficar de olho, mas talvez elas tivessem algum
valor.
— Bem-vindas — falei.
Ela olhou para mim, assentiu e caminhou à minha frente com passadas
rápidas e amplas. A irmã, que havia passado a caminhar perto de nós enquanto
conversávamos, agora caminhava mais depressa para acompanhá-la. E Zahra,
que havia ficado atrás para ficar de olho na outra irmã, sorriu para mim e
balançou a cabeça. Ela se uniu a Harry, que liderava o grupo.
Bankole apareceu ao meu lado de novo, e vi que ele havia saído de perto
assim que viu uma tensão entre Allie e eu.
— Uma briga por dia basta para mim — disse ele quando viu que eu o
observava.
Sorri.
— Obrigada por nos proteger lá atrás.
Ele deu de ombros.
— Fiquei surpreso ao ver que mais alguém se importava com o que acontecia
a duas desconhecidas.
— Você se importou.
— Pois é. Esse tipo de coisa ainda vai me matar, qualquer dia. Se não se
incomodar, eu também gostaria de viajar com seu grupo.
— Está viajando. É bem-vindo.
— Obrigado — disse ele, e sorriu para mim.
Tinha olhos claros com íris castanho-escuras - olhos atraentes. Já gosto
demais dele. Terei que ser cuidadosa.
No fim do dia chegamos a Salinas, uma cidade pequena que parecia ter sido
pouco afetada pelo terremoto e por suas consequências. O solo estremeceu de
tempos em tempos durante o dia. Além disso, Salinas parecia não ter sido
afetada pelos montes de vasculhadores que tínhamos visto desde a
primeira comunidade em chamas de hoje cedo. Isso foi uma surpresa. Quase
todas as comunidades menores pelas quais passamos tinham sido incendiadas e
estavam lotadas de vasculhadores. Era como se o terremoto tivesse dado aos
pobres calados e vagarosos de ontem uma permissão para se tornarem ferozes e
atacarem aqueles ainda vivem em uma casa.
Eu desconfiava que a maior parte dos vasculhadores predadores ainda estava
atrás de nós, ainda matando e morrendo, brigando pelos restos. Nunca me
esforcei tanto para não ver o que acontecia ao meu redor como fiz hoje.
A fumaça e o barulho ajudaram a encobrir essas coisas para meus olhos. Eu já
estava bem ocupada lidando com a mandíbula e a boca latejantes de Allie, e
também com a situação de miséria da estrada.
Estávamos cansados quando chegamos a Salinas, mas decidimos continuar
caminhando depois de nos reabastecermos e de nos lavarmos. Não queríamos
estar na cidade quando o maior número de vasculhadores chegasse. Eles podiam
estar calmos e cansados depois do dia de incêndios e de roubos, mas eu
duvidava. Achava que eles estariam embriagados de poder e famintos por mais.
Como Bankole disse: “Quando as pessoas passam a achar que não há problema
em pegar o que querem e destruir o resto, como saber quando elas vão parar?”.
Mas Salinas parecia bem armada. Os policiais tinham parado ao longo da
beira da estrada, olhando para nós, alguns segurando suas armas ou fuzis
automáticos parecendo que adorariam ter uma desculpa para usá-los. Talvez
eles soubessem o que estava por vir.
Precisávamos nos reabastecer, mas não sabíamos se teríamos permissão para
isso. Salinas parecia uma cidade do tipo “mantenha-se na estrada” - daquelas que
queriam que as pessoas não residentes da região partissem até o pôr do sol.
Naquela semana e na anterior, tínhamos visto algumas cidadezinhas assim.
Mas ninguém nos impediu quando saímos da estrada em direção a uma loja.
Só havia algumas pessoas na estrada, e os policiais conseguiram observar todos
nós. Percebi que eles olhavam principalmente para nós, mas não nos
pararam. Estávamos quietos. Éramos mulheres, um bebê e também homens, e
três de nós eram brancos. Acho que, pela visão deles, nada disso nos
prejudicava.
Os seguranças das lojas estavam tão bem armados quanto os policiais -
revólveres e fuzis automáticos, algumas metralhadoras em tripés em cubículos
acima de nós. Bankole disse que se lembrava de uma época em que os
seguranças tinham revólveres ou nada além de cassetetes. Meu pai dizia essas
coisas.
Alguns dos guardas também não eram muito bem treinados - ou eram quase
tão sedentos por poder quanto saqueadores. Eles apontaram as armas para nós.
Foi maluco. Dois ou três de nós entramos em uma loja e duas ou três armas
foram apontadas na nossa direção. A princípio, não soubemos o que estava
acontecendo. Ficamos paralisados, olhando e esperando para ver o que
aconteceria.
Os caras portando as armas riram. Um deles disse:
— Comprem alguma coisa ou caiam fora daqui!
Saímos. Aquelas eram lojas pequenas. Havia muitas delas entre as quais
escolher. Dentro de algumas, havia guardas normais. Eu não conseguia parar de
imaginar quantos acidentes os guardas malucos causavam com suas armas.
Acho que, depois do ocorrido, todo acidente virava um assalto à mão armada e a
vítima, um assaltante com tendências homicidas claras.
Os guardas na estação de água pareciam calmos e profissionais. Mantinham
as armas abaixadas e se limitavam a xingar as pessoas para fazer com que
andassem depressa. Nos sentimos seguros o suficiente não só para comprar
água e para lavar e secar nossas roupas depressa, mas também para alugar alguns
cubículos - separados por gênero - a fim de podermos nos lavar em uma bacia
com esponja. Isso pôs fim a qualquer especulação entre as pessoas novas que
ainda não sabiam qual era meu sexo.
Por fim, mais limpos, reabastecidos com alimentos, água, munição para as
três armas e, a propósito, preservativos para meu futuro, saímos da cidade.
Enquanto seguíamos, passamos por uma pequena feira de rua à beira da cidade.
Havia apenas algumas pessoas com suas mercadorias - a maioria era lixo -
espalhadas sobre mesas ou trapos imundos estendidos no asfalto. Bankole viu o
rifle em uma das mesas.
Era antigo - um Winchester, vazio, obviamente, com capacidade para cinco
balas. Seria, como Bankole admitia, lento. Mas ele gostou da arma. Analisou o
objeto com os olhos, e os dedos, e pechinchou com o homem e a mulher bem
armados que o colocaram à venda. Eles tinham uma das mesas mais limpas, com
produtos expostos de modo organizado - uma máquina de datilografar pequena e
manual; uma pilha de livros; algumas ferramentas manuais, usadas, mas limpas;
dois canivetes em bainhas de couro; algumas panelas e o rifle com alça e
telescópio.
Enquanto Bankole conversava com o homem sobre o rifle, eu comprei as
panelas da mulher. Eu as daria para Bankole levar em seu carrinho. Eram
grandes o suficiente para preparar sopa, ensopado ou cereal quente para
todos nós de uma vez. Éramos nove pessoas agora, e fazia sentido comprar
panelas maiores. Então, me aproximei de Harry diante da pilha de livros.
Não havia nenhum de não ficção. Comprei uma antologia volumosa de
poesia e Harry comprou um romance de faroeste. Os outros, ou por falta de
dinheiro ou por falta de interesse, ignoraram os livros. Eu teria comprado mais,
se pudesse carregá-los. Minha mochila já estava bem pesada para o que eu me
julgava capaz de carregar e, ainda por cima, caminhar o dia todo.
Nossa negociação terminou e nos afastamos da mesa para esperar por
Bankole. E ele nos surpreendeu.
Ele conseguiu um preço que o senhor parecia julgar justo, e então nos
chamou.
— Alguém de vocês sabe como lidar com uma relíquia dessas? — perguntou.
Bem, Harry e eu sabíamos, e ele pediu que analisássemos o rifle. No fim,
todo mundo o analisou, alguns com estranheza clara e outros com familiaridade.
No bairro, Harry e eu tínhamos praticado com as armas de outras famílias -rifles
e pistolas, além de revólveres. Tudo o que era legal foi dividido, pelo menos nas
sessões de treino. Meu pai queria que nos familiarizássemos com todas as armas
que podiam estar disponíveis. Harry e eu éramos atiradores bons e competentes,
mas nunca tínhamos comprado uma arma usada. Eu gostei do rifle. Gostei da
aparência e de manuseá-lo, mas isso não significava muita coisa. Harry pareceu
gostar também. Mesmo problema.
— Venham aqui — disse Bankole. Ele nos afastou para que o casal idoso não
nos ouvisse. — Vocês deveriam comprar essa arma. Conseguiram dinheiro
suficiente daqueles quatro viciados para pagar o preço com o qual eu disse
ao senhor que concordava. Vocês precisam de pelo menos uma arma certeira de
longo alcance, e essa é boa.
— Com esse dinheiro, compraríamos muita comida — disse Travis.
Bankole assentiu.
— Sim, mas só pessoas vivas precisam de comida. Se vocês comprarem a
arma, ela se pagará na primeira vez em que precisarem usá-la. Se alguém não
souber como, posso ensinar. Meu pai e eu costumávamos caçar veados com
armas como essa.
— É antiga — disse Harry. — Se fosse automática...
— Se fosse automática, vocês não poderiam comprá-la. — Bankole deu de
ombros. — Esta é barata porque é antiga e legal.
— E é lenta — disse Zahra. — E se acha que o preço do velho é baixo, está
louco.
— Sei que sou nova aqui — disse Allie —, mas concordo com Bankole.
Vocês são bons com suas armas, mas, mais cedo ou mais tarde, vão encontrar
alguém que esteja fora do alcance do revólver e que vai derrubar vocês. Vai
derrubar todos nós.
— E esse rifle vai nos salvar? — perguntou Zahra.
— Duvido que nos salvaria — falei. — Mas com um atirador decente
manuseando-a, pode nos dar uma chance. — Olhei para Bankole. — Você
acertou algum veado?
Ele sorriu.
— Um ou outro.
Não sorri para ele.
— Por que você mesmo não compra o rifle?
— Não tenho dinheiro para isso — disse ele. — Tenho dinheiro suficiente
para me manter e cuidar das necessidades por um tempo. Todo o resto que eu
tinha foi roubado de mim ou incendiado.
Eu não acreditava muito nele. Mas, na verdade, ninguém sabia quanto
dinheiro eu tinha. De certo modo, acho que ele estava perguntando sobre nossa
situação financeira. Tínhamos dinheiro suficiente para gastar uma grana
inesperada em um rifle antigo? E o que ele pretendia fazer se tivéssemos?
Não pela primeira vez, torci para que ele não fosse apenas um ladrão charmoso.
Mas gostei da arma, e precisamos dela.
— Harry e eu também sabemos atirar — falei ao grupo. — Gosto de
manuseá-la, e é o melhor que podemos comprar no momento. Alguém viu algum
problema nela?
Eles se entreolharam. Ninguém respondeu.
— Só precisa ser limpa e de balas calibre 30-06 — disse Bankole. — Está
guardada há um tempo, mas parece ter sido bem mantida. Se vocês a
comprarem, acho que consigo comprar um kit de limpeza e um pouco de
munição.
Quando ele disse isso, eu falei antes que outra pessoa falasse.
— Se comprarmos, estamos combinados. Quem mais sabe usar o rifle?
— Eu sei — disse Natividad. E quando as pessoas olharam para ela com
surpresa, ela sorriu. — Eu não tive irmãos. Meu pai teve que ensinar alguém.
— Nunca pudemos atirar — disse Allie. — Mas podemos aprender.
Jill assentiu.
— Eu sempre quis aprender — disse ela.
— Terei que aprender também — Travis admitiu. — Onde eu cresci, as
armas eram trancadas ou portadas apenas por guardas contratados.
— Vamos comprá-lo, então — falei. — E sair daqui. O sol vai se pôr em
breve.
Bankole cumpriu sua palavra e comprou material para limpar a arma e muita
munição - insistiu em comprá-la antes de sairmos da cidade porque, como ele
disse:
— Ninguém sabe quando vamos precisar dela, nem quando encontraremos
pessoas com munição para vender.
Depois de tudo ser acertado, deixamos a cidade.
Enquanto partíamos, Harry levava o rifle novo e Zahra, a Beretta, ambas
vazias e precisando de cuidados antes de receberem munição. Só Bankole e eu
tínhamos armas totalmente carregadas. Liderei o grupo e ele foi na
retaguarda. Estava escurecendo. Atrás de nós, a distância, ouvimos tiros de
armas de fogo e o ressoar abafado de explosões pequenas.
20
Passamos por Hollister antes do meio-dia. Nós nos reabastecemos ali, sem
saber quando veriamos lojas bem equipadas de novo. Já tínhamos descoberto
que várias das comunidades pequenas mostradas nos mapas não existiam mais -
havia anos. O terremoto causou muitos danos em Hollister, mas as pessoas não
tinham se tornado animais. Pareciam estar ajudando umas às outras com reparos
e cuidando de seus desabrigados. Imagine só.
21
O Eu deve criar
Seus próprios motivos para ser.
Para moldar Deus,
Molde o Eu.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Ainda há um pouco de água no reservatório San Luis. E mais água doce que
já vimos em um lugar só, mas pelo tamanho do reservatório, dá para perceber
que é pouco comparado com o que deveria ter - o que costumava ter.
A estrada passa pela área recreativa por vários quilômetros. Isso nos deu uma
chance de seguir até vermos uma área que poderia ser um bom lugar para
passarmos um dia acampados, descansando, e que não estava ocupado.
Havia muitas pessoas na região - pessoas que montaram acampamentos
permanentes com todo tipo de material, desde barracas de trapos e plástico até
casebres de madeira que parecem quase adequados para moradia. Onde tantas
pessoas vão ao banheiro? A água do reservatório é limpa? Sem dúvida, as
cidades que a usam purificam a água quando ela chega. Se fazem isso ou não,
acho que está na hora de usar os tabletes purificadores de água.
Ao redor de várias das barracas e tendas, há jardins pequenos e irregulares -
novos plantios e restos de hortas de verão. Há poucas coisas que restaram para
cultivo: abobrinhas grandes, alguns tipos de abóbora, cenouras,
pimentões, verduras e um pouco de milho. Alimentos bons, baratos
e substanciais. Não era proteína suficiente, mas talvez as pessoas cacem. Deve
haver animais de caça por aqui, e vi muitas armas. As pessoas as usam em
coldres ou levam rifles ou pistolas. Os homens em especial saem armados.
Todos eles nos encararam.
Conforme passávamos, as pessoas paravam de cuidar de suas hortas, de
cozinhar ao ar livre e de fazer o que estivessem fazendo para nos observar.
Tínhamos nos esforçado, estávamos ansiosos para chegar antes da multidão que
acredito que logo virá da região da baía. Então, não chegamos com o mesmo rio
de pessoas de sempre. Mas, apesar disso, só nós já formamos um grupo grande
suficiente para deixar os invasores intranquilos. No entanto, eles nos deixaram
em paz. Exceto naquelas maluquices induzidas pelo desastre como as que
passamos depois do terremoto, a maioria das pessoas fica na sua. Acho que
Dominic e Justin estão facilitando as coisas para que nos adaptemos. Justin,
agora amarrado ao punho de Allie, corre por aí olhando para os sem-teto até
ficar incomodado. Em seguida, ele corre de volta até Allie e exige ser carregado
no colo. É um menininho muito bonitinho. Pessoas magras de rosto sujo
costumam sorrir para ele.
Ninguém atirou em nós, nem nos desafiou enquanto caminhávamos.
Ninguém nos incomodou mais tarde quando deixamos a estrada e seguimos por
dentro das árvores em direção ao que pensávamos que seria uma boa
área. Encontramos acampamentos antigos e locais para usarmos como banheiro,
e os evitamos. Não queríamos ficar visíveis para quem estivesse na estrada, nem
para quem nos visse de alguma tenda ou barraco. Queríamos privacidade, não
muitas pedras para podermos dormir e uma maneira de chegar à água que não
nos deixasse tanto em exposição. Procuramos por mais de uma hora até
encontrarmos um acampamento antigo e isolado, abandonado há muito, e em um
ponto mais inclinado do que os outros que havíamos visto. Era bom para todos
nós. E então, com ainda algumas horas de luz do dia, descansamos com muito
conforto e preguiça, sabendo que tínhamos o resto do dia e o seguinte todo para
não fazer quase nada. Natividad alimentou Do-minic e os dois adormeceram.
Allie seguiu seu exemplo com Justin, apesar de ter sido um pouco mais
complicado preparar uma refeição para ele. As duas mulheres tinham mais
motivos para estarem cansadas e precisarem dormir do que o resto de nós, por
isso as deixamos de fora ao organizar nosso cronograma para a guarda - um para
o dia e um para a noite. Não deveriamos ficar confortáveis demais. Além disso,
estabelecemos que ninguém deveria partir para explorar ou pegar água sozinho.
Pensei que logo os casais começariam a se afastar juntos - e achei que já estava
na hora de Bankole e eu termos aquela conversa.
Eu me sentei com ele e limpei nossa pistola enquanto ele limpava o rifle.
Harry estava de guarda e precisava de minha arma. Quando me aproximei para
entregá-la, ele me disse que via o que estava rolando entre Bankole e eu.
— Cuidado — sussurrou ele. — Não dê um ataque cardíaco no velho.
— Direi a ele que você está preocupado — falei.
Harry riu, e então passou a falar mais sério:
— Cuidado, Lauren. Bankole provavelmente é bacana. Parece ser. Mas
bem... Grite se algo der errado.
Pousei a mão no ombro dele por um momento e disse:
— Obrigada.
O mais bacana de se sentar e trabalhar ao lado de alguém que não
conhecemos muito bem, alguém que gostaríamos de conhecer melhor, é que
podemos falar com essa pessoa ou ficar em silêncio. Podemos ficar à vontade
com ela e com a consciência de que logo faremos amor.
Bankole e eu ficamos em silêncio por um tempo, um pouco tímidos. Olhei de
relance para ele algumas vezes e o flagrei olhando de relance para mim. Então,
para minha surpresa, comecei a conversar com ele sobre a Semente da Terra -
sem pregar, só conversando, acho que eu o estava testando. Precisava ver sua
reação. A Semente da Terra é a coisa mais importante da minha vida. Se Bankole
riria disso, eu precisava saber agora. Não esperava que ele concordasse ou que se
interessasse muito. Ele é um homem velho. Eu acreditava que provavelmente
estivesse satisfeito com a religião que tinha. E me ocorreu enquanto eu falava
que não fazia a menor ideia de qual religião era. Perguntei a ele.
— Nenhuma — disse ele. — Quando minha esposa era viva, frequentávamos
uma igreja metodista. A religião era importante para ela, por isso ia junto. Via
que a confortava e eu queria acreditar, mas nunca consegui.
— Éramos batistas — falei. — Eu não conseguia acreditar, e não contava a
ninguém. Meu pai era o ministro. Fiquei quieta e comecei a entender a Semente
da Terra.
— Começou a inventar a Semente da Terra — comentou ele.
— Comecei a descobrir e a entendê-la — corrigi. — Encontrar a verdade não
é a mesma coisa que inventar coisas.
Eu me perguntava quantas vezes e de quantas maneiras eu teria que dizer isso
às pessoas novas.
— Parece uma combinação de budismo, existencialismo, sufismo e não sei o
que mais — disse ele. — O budismo não endeusa a mudança, mas a
impermanência de tudo é um princípio budista básico.
— Eu sei — falei. — Fiz muitas leituras. Algumas outras religiões e
filosofias têm idéias que se encaixariam na Semente da Terra, mas nenhuma
delas é a Semente da Terra. Elas seguem uma direção própria.
Ele assentiu.
— Certo. Mas diga, o que as pessoas têm que fazer para serem bons
membros da Comunidade da Semente da Terra?
Uma boa pergunta para abrir portas.
— O básico — respondi — é aprender a moldar Deus com premeditação,
cuidado e trabalho; educar e beneficiar sua comunidade, sua família e a elas
mesmas; e contribuir com a realização do Destino.
— E por que as pessoas deveríam se preocupar com o Destino, improvável
como é? O que espera por elas?
— Uma vida unificadora e com propósito aqui na Terra, e a esperança de
paraíso para elas e para seus filhos. Um verdadeiro paraíso, não mitologia nem
filosofia. Um paraíso que seja delas para que moldem.
— Ou um inferno — disse ele. Entortou os lábios. — Os seres humanos são
bons em criar infernos para si, mesmo com riquezas. — Ele pensou por um
momento. — Parece simples demais, sabe?
— Você acha que é simples? — perguntei, surpresa.
— Parece simples demais.
— Parece complexo demais para algumas pessoas.
— Quero dizer que é muito... direto. Se conseguir fazer com que as pessoas
aceitem, elas a tornarão mais complicada, mais aberta à interpretação, mais
mística e reconfortante.
— Não enquanto eu estiver por perto! — falei.
— Com ou sem você por perto, elas farão isso. Todas as religiões mudam.
Pense nas grandes. O que você acha que Cristo seria hoje em dia? Um batista?
Um metodista? Um católico? E o Buda, você acha que ele seria um budista
agora? Que tipo de budismo ele praticaria? — Ele sorriu. — Afinal, se “Deus é
Mudança”, com certeza a Semente da Terra pode mudar, e se durar, mudará.
Desviei o olhar porque ele estava sorrindo. Isso tudo não era nada para ele.
— Eu sei — eu disse. — Ninguém pode parar a Mudança, mas todos A
moldamos quer tenhamos a intenção ou não. Pretendo guiar e moldar a Semente
da Terra no que ela deve ser.
— Talvez. — Ele continuou sorrindo. — Até que ponto você leva isso a
sério?
A pergunta me fez mergulhar fundo em mim mesma. Eu falei, quase sem
saber o que diria.
— Quando meü pai... desapareceu — comecei —, foi a Semente da Terra que
me fez continuar. Quando a maior parte de minha comunidade e o resto de
minha família foram levados e eu fiquei sozinha, eu ainda tinha a Semente da
Terra. O que eu sou agora, tudo o que eu sou agora é a Semente da Terra.
— O que você é agora — disse ele depois de um longo silêncio — é uma
jovem muito incomum.
Passamos um tempo sem conversar depois disso. Fiquei me perguntando o
que ele estava pensando. Ele não parecia estar achando engraçado demais. Não
mais do que eu havia esperado. Ele havia sido capaz de acompanhar as
necessidades religiosas de sua esposa. Agora, no mínimo, permitiría as minhas.
Fiquei pensando na esposa dele. Ele não havia falado dela antes. Como ela
tinha sido? Como tinha morrido?
— Você saiu de casa porque sua esposa morreu? — perguntei.
Ele largou uma haste fina e comprida de limpeza e recostou-se na árvore
atrás dele.
— Minha esposa morreu há cinco anos — disse ele. — Três homens
invadiram nossa casa: viciados, traficantes, não sei. Eles a agrediram, tentaram
fazê-la dizer onde estavam as drogas.
— Drogas?
— Eles decidiram que nós devíamos ter algo que pudessem usar ou vender.
Não gostaram das coisas que ela pôde dar a eles, por isso continuaram com as
agressões. Ela tinha um problema de coração. — Ele respirou fundo, e então
suspirou. — Ainda estava viva quando cheguei em casa e conseguiu me contar o
que tinha acontecido. Tentei ajudá-la, mas os desgraçados tinham levado seus
remédios, tinham levado tudo. Liguei para uma ambulância, que chegou uma
hora depois de ela morrer. Tentei salvá-la, e então reanimá-la. Eu tentei tanto,
mas tanto...
Olhei monte abaixo a partir de nosso acampamento onde só um brilho de
água estava visível a distância em meio às árvores e aos arbustos. O mundo está
repleto de histórias dolorosas. Às vezes, parece que são o único tipo de histórias
que existe e, ainda assim, me peguei pensando em como era linda aquela gota de
água entre as árvores.
— Eu deveria ter seguido em direção ao norte quando a Sharon morreu —
disse Bankole. — Pensei em fazer isso.
— Mas você ficou. — Eu desviei o olhar da água e olhei para ele. — Por
quê?
Ele balançou a cabeça.
— Eu não sabia o que fazer, então, por um tempo, não fiz nada. Os amigos
cuidaram de mim, cozinharam para mim, limparam a casa. Fiquei surpreso por
terem feito isso. A maioria dessas pessoas era da igreja. Vizinhos. Mais amigos
dela do que meus.
Pensei em Wardell Parrish, arrasado depois de perder a irmã e os filhos... e
sua casa. Será que Bankole tinha sido uma espécie de Wardell Parrish da
comunidade?
— Você morava em uma comunidade murada? — perguntei.
— Sim. Mas não era rica. Nem perto de ser rica. As pessoas mantinham seus
pertences e alimentavam suas famílias. Nada muito além disso. Não tinham
empregados. Nem segurança particular.
— Parece meu antigo bairro.
— Acho que parece muitos bairros antigos, que não existem mais. Eu fiquei
para ajudar as pessoas que tinham me ajudado. Não podia me afastar delas.
— Mas você se afastou. Você partiu. Por quê?
— Fogo... e saqueadores.
— Você também? Sua comunidade toda?
— Sim. As casas foram incendiadas, a maioria das pessoas foi morta... O
resto se espalhou, procurou familiares ou amigos em outros lugares.
Vasculhadores e invasores tomaram tudo. Eu não decidi ir embora. Eu fugi.
Familiar demais.
— Onde você morava? Em qual cidade?
— San Diego.
— Longe assim?
— Pois é. Como eu disse, deveria ter partido anos atrás. Se tivesse feito isso,
poderia ter conseguido dinheiro para um voo e para me restabelecer.
Dinheiro para um voo e para se restabelecer? Talvez ele não considerasse
isso como ser rico, mas nós teríamos considerado.
— Aonde está indo agora? — perguntei.
— Para o norte. — Ele deu de ombros.
— Qualquer lugar do norte ou algum lugar específico?
— Qualquer lugar onde eu possa receber por meus serviços e viver entre
pessoas que não queiram me matar por causa de minha comida ou da minha
água.
Ou por drogas, pensei. Olhei para o rosto barbado e juntei as pistas que tinha
reunido hoje e nos últimos dias.
— Você é médico, não é?
Ele pareceu um pouco surpreso.
— Eu era, sim. Clínico geral. Parece que faz muito tempo.
— As pessoas sempre precisarão de médicos — falei. — Você vai ficar bem.
— Minha mãe costumava me dizer isso. — Ele me deu um sorriso torto. —
Mas cá estou.
Sorri de volta porque, olhando para ele, não consegui evitar, mas ao falar,
concluí que ele tinha me dito pelo menos uma mentira. Ele podia estar tão
deslocado e atormentado quanto parecia, mas não estava simplesmente
caminhando em direção ao norte. Não estava procurando só um lugar
qualquer onde pudesse receber por seus serviços e não ser roubado nem morto.
Ele não era o tipo de homem que vagava. Sabia aonde estava indo. Tinha um
porto seguro em algum lugar - a casa de um parente, outra casa de sua
propriedade, a casa de um amigo, alguma coisa - algum destino definido.
Ou talvez simplesmente tivesse dinheiro para comprar uma casa em
Washington, no Canadá ou no Alasca. Ele tivera que escolher entre fazer uma
viagem de avião, rápida, segura e cara, e ter dinheiro para se estabelecer
quando chegasse aonde estava indo. E escolhera ter dinheiro para se estabelecer.
Nesse caso, eu concordava com ele. Estava correndo o tipo de risco que
permitiria que tivesse um novo começo o mais rápido possível - se sobrevivesse.
Por outro lado, se eu tivesse razão em alguma dessas coisas, talvez ele
desaparecesse numa noite qualquer. Ou talvez ele fosse mais sincero em relação
a isso - talvez simplesmente se afastasse de mim um dia, entrando em uma rua
paralela, acenando em despedida. Eu não queria que isso acontecesse. Depois
que dormisse com ele, quereria muito menos.
Mesmo agora, eu queria mantê-lo comigo. Detestei que ele já estivesse
mentindo para mim - ou eu achar que estava. Mas por que ele deveria me contar
tudo? Ainda não me conhecia muito bem e, como eu, ele pretendia sobreviver.
Talvez eu pudesse convencê-lo de que poderiamos sobreviver bem juntos.
Enquanto isso, era melhor aproveitar sua presença, mesmo sem confiar muito
nele. Talvez eu estivesse enganada acerca de tudo isso, mas acho que não. Uma
pena.
Terminamos de limpar as armas e de carregá-las, e fomos até a água para nos
lavarmos. Era possível ir até a água, pegar um pouco dela em uma panela e levá-
la embora. Era gratuita. Eu não parava de olhar ao redor, pensando que
alguém viria nos impedir, nos cobrar, alguma coisa assim. Achei que poderiamos
ser roubados, mas ninguém prestava atenção em nós. Vimos outras pessoas
pegando água em garrafas, cantis, panelas e sacos, mas o lugar parecia tranquilo.
Ninguém nos incomodava. Ninguém prestava atenção em nós.
— Um lugar assim não vai durar — eu disse a Bankole. — Uma pena. A vida
poderia ser boa aqui.
— Acho que é proibido viver aqui — disse ele. — Esta é uma Área
Recreativa Estadual. Deve haver algum tipo de limite no tempo em que se pode
permanecer. Tenho certeza de que deveria haver, ou costumava haver, um grupo
policiando o local. Fico me perguntando se oficiais de alguma organização vêm
cobrar propina de vez em quando.
— Não enquanto estivermos aqui, espero. — Sequei as mãos e os braços e
esperei que ele secasse os dele. — Está com fome?
— Ah, sim — disse ele. Olhou para mim por um tempo, e então esticou os
braços para me alcançar. Ele me segurou pelos dois braços, me puxou para perto,
me beijou e disse em meu ouvido: — Você não está?
Eu não disse nada. Depois de um tempo, segurei a mão dele e voltamos ao
acampamento para pegar um de seus cobertores. E então fomos a um lugarzinho
isolado que nós dois tínhamos notado mais cedo.
Pareceu natural e simples me deitar com ele e explorar seu corpo macio,
firme e grande. Ele havia se mantido em forma. Sem dúvida, caminhar centenas
de quilômetros nas últimas semanas havia queimado qualquer gordura que
ele tivesse. Ele ainda era grande - o peito era largo e alto. O melhor foi ele ter
sentido muito prazer simplesmente com meu corpo, e eu pude compartilhar com
ele. Não é sempre que eu consigo aproveitar o lado bom da minha hiperempatia.
Deixei a sensação tomar o controle, intensa e selvagem. Talvez eu corresse mais
perigo de ter um ataque do coração do que ele. Como eu tinha passado tanto
tempo sem isso?
Houve um momento esquisito, nada romântico, em que nós dois procuramos
os preservativos no meio das roupas amassadas. Foi engraçado pelo modo com
que nós dois pensamos nisso ao mesmo tempo, e rimos, e então nos entregamos
ao trabalho sério de amar e de dar prazer um ao outro. Aquela barba penteada e
aparada com a qual é tão vaidoso faz muitas cócegas.
— Eu sabia que não deveria ter me metido com você — disse ele para mim
depois de fazermos amor duas vezes e ainda não estarmos com disposição para
nos levantarmos e nos unirmos aos outros. — Você vai me matar. Sou velho
demais para isso.
Eu ri e apoiei a cabeça em seu ombro.
Depois de um momento, ele disse:
— Preciso falar sério sobre um assunto, garota.
— Está bem.
Ele respirou fundo, soltou o ar, hesitou.
— Não quero abrir mão de você — disse ele.
Eu sorri.
— Você é uma menina. Eu não deveria estar fazendo isso. Quantos anos tem,
afinal?
Eu disse a ele.
Ele se sobressaltou e então me afastou de seu ombro.
— Dezoito? — Ele se afastou como se minha pele queimasse seu corpo. —
Meu Deus! Você é um bebê! Sou um pedófilo!
Eu não ri, mas senti vontade. Só fiquei olhando para ele.
Depois de um tempo, ele franziu o cenho e balançou a cabeça. Depois de
mais um tempo, voltou a se aproximar de mim, tocando meu rosto, meus
ombros, meus seios.
— Você não tem só dezoito anos — disse ele.
Dei de ombros.
— Quando você nasceu? Em qual ano?
— Dois mil e nove.
— Não. — Ele disse, e depois prolongou a palavra:—Nããão.
Eu o beijei e disse no mesmo tom de voz:
— Siiim. Agora pare de bobagem. Você quer ficar comigo e eu quero ficar
com você. Não vai se afastar por causa da minha idade, certo?
Depois de um tempo, ele balançou a cabeça.
— Você deveria ter um jovem legal como o Travis — disse ele. — Eu
deveria ter o bom senso e a força de mandar você procurar um assim.
Com isso, pensei em Curtis, e me retraí por pensar nele. Eu vinha pensando o
mínimo possível em Curtis Talcott. Ele não é como meus irmãos. Pode ser que
esteja morto, mas nenhum de nós viu seu corpo. Eu vi o irmão dele, Michael.
Morria de medo de ver Curtis, mas nunca vi. Talvez ele não estivesse morto.
Ele está perdido para mim, mas espero que não esteja morto. Deveria estar aqui
comigo, na estrada. Espero que esteja vivo e bem.
— De quem você se lembrou? — perguntou Bankole, com a voz suave e
profunda.
Balancei a cabeça.
— De um garoto que conheci no bairro. Nós íamos nos casar este ano. Não
sei se ele ainda está vivo.
— Você o amava?
— Sim! íamos nos casar e sair de casa, caminhar em direção ao norte.
Tínhamos decidido ir nesse outono.
— Que coisa maluca! Vocês pretendiam caminhar por essa estrada mesmo
sem terem que fazer isso?
— Sim. E se tivéssemos saído mais cedo, ele estaria comigo. Gostaria de
saber se ele ficou bem.
Ele se deitou de barriga para cima e me puxou para deitar ao lado dele.
— Todos nós perdemos alguém — disse ele. — Parece que você e eu
perdemos todo mundo. É um laço, acredito.
— Um laço terrível — falei. — Mas não é o único.
Ele balançou a cabeça.
— Você tem mesmo dezoito anos?
— Sim. Completei mês passado.
— Você parece mais velha e age como se fosse mais velha também.
— Eu sou assim — falei.
— Você era a irmã mais velha na sua família, certo? Assenti.
— Tive quatro irmãos. Todos estão mortos.
— Sim — ele suspirou. — Sim.
Passei o dia todo falando, escrevendo, lendo e fazendo amor com Bankole.
Parece um grande luxo não ter que levantar, fazer malas e caminhar o dia inteiro.
Todos ficamos espalhados pelo acampamento descansando os músculos
doloridos, comendo e não fazendo nada. Mais pessoas chegaram até ali vindas
da estrada e fizeram seus acampamentos, mas ninguém nos incomodou.
Comecei a aula de leitura de Zahra, e Jill e Allie pareceram estar
interessadas. Eu as incluí como se esta fosse minha intenção desde o começo. No
fim das contas, elas conseguiam ler um pouco, mas não tinham aprendido a
escrever. Na parte final da aula, eu li alguns versículos da Semente da Terra para
elas, apesar de Harry reclamar. Mas quando Allie disse que nunca oraria para
nenhum deus da mudança, foi Harry quem a corrigiu. Zahra e Travis sorriram
quando escutaram isso, e Bankole nos observou com aparente interesse.
Depois disso, Allie começou a fazer perguntas em vez de fazer afirmações
sarcásticas e, na maior parte do tempo, os outros responderam a ela - Travis e
Natividad, Harry e Zahra. Bankole respondeu uma vez, falando mais sobre
algo que disse a ele ontem. Então, ele se interrompeu e pareceu um pouco
envergonhado.
— Eu ainda acho muito simples — disse a mim. — Grande parte disso é
lógica, mas nunca vai funcionar sem um toque de confusão mística.
— Deixarei isso para os meus descendentes — falei, e ele se ocupou, tirando
um saco de amêndoas da bolsa, despejando algumas na mão e passando o resto
para as outras pessoas.
Um pouco antes de anoitecer, um tiroteio teve início em direção à estrada.
Não conseguimos ver nada de onde estávamos, mas paramos de conversar e nos
deitamos. Com balas voando, parecia melhor nos manter abaixados.
O tiroteio começou e parou, foi para longe e voltou para perto. Eu estava de
guarda, por isso tive que me manter alerta, mas naquela barulheira, nada se
aproximou de nós, exceto as árvores à brisa da noite. Parecia tão calmo, mas as
pessoas ali tentavam matar umas às outras mesmo assim e, sem dúvida, estavam
conseguindo. É estranho como tem se tornado normal para nós deitar no chão e
ficar prestando atenção enquanto, não muito longe, as pessoas tentam se matar.
22
Como vento.
Como água,
Como fogo,
Como vida,
Deus
É criativo e destrutivo,
Exigente e generoso,
Escultor e argila.
Deus é Potencial Infinito:
Deus é Mudança.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Seus professores
Estão todos ao seu redor.
Tudo o que você percebe,
Tudo o que você vivência,
Tudo o que lhe é dado
ou tirado de você,
Tudo o que você ama ou detesta, precisa ou teme
Ensinará você...
Se quiser aprender.
Deus é seu primeiro
e seu último professor.
Deus é o professor mais rígido: sutil,
exigente.
Aprenda ou morra.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Tivemos outra dificuldade para tentar dormir direto até antes do amanhecer
hoje cedo. Começou ao sul de onde estávamos, perto da estrada, e subiu na
nossa direção e depois se afastou de nós.
Conseguíamos ouvir pessoas atirando, berrando, xingando, correndo... A
mesma coisa de sempre - cansativa, perigosa e idiota. Os tiros continuaram por
mais de uma hora, aumentando e diminuindo. Houve uma saraivada final que
pareceu envolver mais armas do que nunca. E então, o barulho parou.
Consegui dormir por um tempo enquanto tudo acontecia. Superei o medo,
superei até a raiva que senti. No fim, só fiquei cansada. Pensei: “se os imbecis
vão me matar, não vou conseguir impedi-los me mantendo acordada.” Ainda que
isso não fosse totalmente verdade, não me importei. E dormi.
E de algum modo, durante ou depois da batalha, apesar da guarda, duas
pessoas entraram em nosso acampamento e se deitaram entre nós. E dormiram
também.
Acordamos cedo como sempre para que pudéssemos começar a andar
enquanto o calor não estivesse muito forte. Aprendemos a acordar sozinhos à
primeira luz da manhã. Hoje, nós quatro acordamos quase ao mesmo tempo. Eu
estava saindo de meu saco de dormir para poder urinar quando vi as pessoas a
mais - dois montes cinza à lua da alvorada, um grande e um pequeno, um
encostado no outro, dormindo no chão duro. Braços e pernas finos se estendiam
como gravetos de dentro de trapos e montes de roupas.
Olhei ao redor para os outros e vi que eles também estavam olhando para
aquilo - todos eles, menos Jill, que tinha que estar de guarda. Começamos a
confiar nela para a guarda noturna desde semana passada, com um parceiro.
Aquela era sua segunda guarda solitária. E para onde ela estava olhando? Para as
árvores. Nós duas teríamos que conversar.
Harry e Travis já estavam reagindo às pessoas no chão. Em silêncio, os dois
saíram de dentro do saco de dormir em roupas de baixo, e ficaram de pé. Mais
vestida, eu os acompanhei a cada movimento e nós três cercamos os dois
invasores.
O maior dos dois acordou de uma vez, sobressaltado, levantou-se e deu dois
ou três passos na direção de Harry, e então parou. Era uma mulher.
Conseguíamos vê-la melhor agora. Ela tinha a pele negra e cabelos lisos,
compridos e despenteados. Era tão escura quanto eu, mas toda cheia de partes
pontudas - uma mulher magra, de rosto sério como uma águia, que precisava de
umas boas refeições e um bom banho. Ela se parecia com muitas pessoas que eu
via andando na estrada.
O segundo invasor acordou, viu Travis de pé perto, em sua roupa íntima, e
gritou. Isso chamou a atenção de todo mundo. Era o grito estridente e alto de
uma criança - uma menininha que parecia ter cerca de sete anos. Ela era uma
cópia pequena e esquelética da mulher - sua mãe ou irmã, talvez.
A mulher correu de volta até a criança e tentou pegá-la no colo. Mas a
pequena estava em uma posição fetal e a mulher, tentando erguê-la, não
conseguiu segurá-la. Tropeçou, caiu e, em um instante, também estava no chão.
Nesse momento, todo mundo já tinha se reunido para vê-las.
— Harry — falei, e esperei que ele olhasse para mim. — Você e Zahra
podem ficar de guarda... para garantir que nada mais nos surpreenda?
Ele assentiu. Ele e Zahra se afastaram das pessoas, separados, e assumiram
posições de lados opostos do acampamento, com Harry mais perto do acesso à
autoestrada e Zahra no acesso da estrada menor e mais próxima. Nós tínhamos
nos escondido da melhor maneira que conseguimos em uma área deserta que
Bankole disse que devia já ter sido um parque, mas não precisávamos nos
enganar achando que estávamos sozinhos. Nós tínhamos seguido pela 1-5 até
uma cidade pequena perto de Sacramento, longe da pior parte do local, mas
ainda havia muitas pessoas pobres por ali - pobres da região e refugiados como
nós. De onde haviam surgido aquelas duas pessoas desgrenhadas, assustadas e
imundas?
— Não vamos machucar vocês — disse a elas enquanto ainda estavam
deitadas e encolhidas no chão. — Levantem--se. Vamos, levantem-se. Vocês
entraram em nosso acampamento sem pedir. Podem pelo menos conversar
conosco.
Não encostamos nelas. Bankole parecia querer fazer isso, mas parou quando
eu segurei seu braço. Elas já estavam muito assustadas. Um homem
desconhecido tocando-as poderia deixá-las histéricas.
Tremendo, a mulher se desenrolou e olhou para nós. Notei, naquele
momento, que ela parecia ser asiática, apesar de sua cor. Ela abaixou a cabeça e
sussurrou algo para a criança. Depois de um momento, as duas se levantaram.
— Não sabíamos que este lugar era de vocês — sussurrou ela. — Vamos
embora. Nos deixem ir embora.
Suspirei e olhei para o rosto assustado da menininha.
— Podem ir — falei. — Ou se quiserem, podem comer conosco.
Elas queriam fugir. Pareciam cervos, paralisados de terror, prestes a correr.
Mas eu havia dito a palavra mágica. Duas semanas atrás, eu não a teria dito, mas
disse naquele dia para as duas pessoas com cara de famintas: “Comer”.
— Comida? — sussurrou a mulher.
— Sim. Vamos dividir um pouco de comida com vocês. A mulher olhou para
a menininha. Tive certeza, naquele momento, de que elas eram mãe e filha.
— Não podemos pagar — disse ela. — Não temos nada.
Percebi isso.
— Peguem o que estamos oferecendo e nada além do que dermos a vocês —
falei. — Isso será pagamento suficiente.
— Não vamos roubar. Não somos ladras.
Claro que eram ladras. De que outra maneira conseguiam viver? Roubando
um pouco, vasculhando, talvez se prostituindo... Elas não eram muito boas nisso
ou teriam uma aparência melhor. Mas pela menininha, eu quis ajudá--las ao
menos com uma refeição.
— Esperem, então — falei. — Vamos fazer uma refeição.
Elas ficaram sentadas onde estavam e nos observaram com olhos muito
famintos. Havia mais fome naqueles olhos do que éramos capazes de saciar com
nossos alimentos. Pensei que provavelmente tinha cometido um erro. Aquelas
pessoas estavam tão desesperadas que eram perigosas. Não importava nem um
pouco que parecessem inofensivas. Ainda estavam vivas e fortes o bastante para
correrem. Não eram inofensivas.
Foi Justin quem acalmou um pouco da tensão daqueles olhos famintos e
profundos. Totalmente nu, ele deu passi-nhos até a mulher e a menina e as
observou. A menininha só olhou de volta, mas depois de um momento, a
mulher começou a sorrir. Disse algo a Justin, e ele sorriu. Em seguida, ele correu
até Allie, que o manteve perto dela por tempo suficiente para conseguir vesti-lo.
Mas ele havia feito seu trabalho. A mulher nos observava com olhos diferentes.
Observou Natividad amamentando Dominic, e então Bankole penteando a barba.
Isso pareceu engraçado para ela e para a criança, porque as duas riram.
— Você é um sucesso — disse a Bankole.
— Não sei o que tem de tão engraçado em um homem penteando a barba —
disse ele, e guardou o pente.
Tirei peras doces de minha bolsa e dei uma à mulher e outra à menina. Eu as
havia comprado dois dias antes, e tinha só mais três. Outras pessoas entenderam
a ideia e começaram a dividir o que podiam. Nozes com casca, maçãs, uma
romã, laranjas, figos... coisas pequenas.
— Guardem o que puderem — Natividad disse à mulher ao entregar a elas as
amêndoas embrulhadas em um pedaço de tecido vermelho. — Enrolem as coisas
aqui e amarrem as pontas.
Todos compartilhamos a broa de milho feita com um pouco de mel e ovos
cozidos e duros que compramos e cozinhamos ontem. Assamos a broa nas brasas
da fogueira da noite passada para que pudéssemos parti-la hoje cedo. A mulher e
a menina comeram como se a comida simples e fria fosse a melhor coisa que já
tinham provado, como se não conseguissem acreditar que alguém a havia dado a
elas. Se curvavam sobre o alimento como se tivessem medo de que o
arrancássemos de suas mãos.
— Precisamos ir — falei por fim. — O sol está esquentando.
A mulher olhou para mim, com o rosto estranho e magro, faminto, mas agora
com uma fome que não era de comida.
— Deixe-nos ir com você — disse ela, as palavras se sobrepondo. — Vamos
trabalhar. Vamos pegar lenha, fazer fogueira, limpar os pratos, qualquer coisa.
Levem-nos com vocês.
Bankole olhou para mim.
— Imagino que você já estava esperando.
Assenti. A mulher estava olhando de um para outro de nós.
— Qualquer coisa — sussurrou ela. Ou choramingou. Seus olhos estavam
secos e esturricados, mas as lágrimas corriam dos olhos da menininha.
— Esperem um pouco para decidirmos — falei. Eu queria dizer “Vão
embora para que meus amigos possam gritar comigo em particular”, mas a
mulher pareceu não entender. Ela não se mexeu.
— Esperem ali — falei, apontando na direção das árvores mais próximas da
estrada. — Vamos conversar. Depois, vamos falar com vocês.
Ela não queria fazer isso. Hesitou, e então se levantou, ergueu sua filha ainda
mais relutante e seguiu para as árvores que eu tinha indicado.
— Ah, Deus — murmurou Zahra. — Vamos levá-las, não vamos?
— É o que temos que decidir — falei.
— E aí? Nós a alimentamos e então dizemos para irem embora e morrerem
de fome? — Zahra fez um barulho indicando que não concordava.
— Se ela não for uma ladra — disse Bankole. — E se não tiver nenhum
outro hábito perigoso, podemos conseguir levá-las. Aquela menininha...
— Sim — falei. — Bankole, tem espaço para elas na sua casa?
— Na casa dele? — perguntaram os outros três.
Eu não tivera chance de contar. Tampouco tivera coragem.
— Ele tem muita terra no norte e perto da costa — falei. — Tem uma casa de
família na qual não podemos morar porque a irmã dele e a família dela vivem lá.
Mas tem espaço, árvores e água. Ele disse... — Hesitei, olhei para Bankole, que
estava sorrindo um pouco. — Ele disse que podemos iniciar a Semente da Terra
ali, construir o que pudermos.
— Há empregos? — Harry perguntou a Bankole.
— Meu cunhado mexe com jardinagem e tem empregos temporários. Está
criando três filhos assim.
— Mas os empregos rendem dinheiro?
— Sim, ele recebe dinheiro. Não muito, mas recebe. É melhor esperarmos
um pouco para falar sobre isso. Estamos torturando aquela jovem ali.
— Ela vai roubar — disse Natividad. — Ela diz que não, mas vai. Dá para
saber só de olhar para ela.
— Ela apanhou — disse Jill. — Dá para saber pelo modo com que se
encolheram quando as vimos. Estão acostumadas a serem agredidas, chutadas,
derrubadas.
— Sim. — Allie parecia assombrada. — As pessoas tentam evitar pancadas
na cabeça, tentam proteger os olhos e... o rosto. Ela pensou que nós as
agrediriamos. Ela e a criança também.
Era interessante que Allie e Jill compreendessem tão bem. Que pai terrível
tinham tido. E o que havia acontecido com a mãe delas? Nunca falaram sobre
ela. Era incrível que tivessem escapado com vida e sãs o suficiente para viver.
— Devemos deixar que ela fique? — perguntei a eles.
As duas moças assentiram.
— Mas acho que ela vai ser um problema por um tempo — disse Allie. —
Como Natividad disse, ela vai nos roubar. Não vai conseguir se controlar. Vamos
ter que observá-la muito bem. Aquela menininha também vai roubar. Vai roubar
e fugir como louca.
Zahra sorriu.
— Faz com que eu me lembre de mim mesma nessa idade. As duas serão um
baita problema. Sou a favor de testarmos. Se elas tiverem modos ou se puderem
aprender a ter, nós permitiremos que fiquem. Se forem burras demais
para aprender, nós as mandaremos embora.
Olhei para Travis e para Harry, juntos.
— O que vocês dizem?
— Digo que você está ficando mole — disse Harry. — Você teria feito da
nossa vida um inferno se tivéssemos tentado ajudar uma mendiga e seu filho há
algumas semanas.
Assenti.
— Tem razão. Teria mesmo. E talvez seja essa a atitude que deveriamos
manter. Mas essas duas... Acho que elas podem valer alguma coisa, e não penso
que sejam perigosas. Se eu estiver enganada, podemos expulsá-las.
— Pode ser que elas não aceitem serem deixadas de lado — disse Travis. E
então, deu de ombros. — Não quero ser a pessoa responsável por mandar aquela
menininha embora para que se torne mais uma ladra-mendiga-prostituta. Mas
pense, Lauren. Se permitirmos que elas fiquem e se não der certo, pode ser
muito difícil nos livrarmos delas. E se no fim das contas elas tiverem amigos por
aqui, amigos para quem estejam fazendo um reconhecimento, podemos ter que
matá-las.
Harry e Natividad começaram a reclamar. Matar uma mulher e uma criança?
Não! Não era possível! Nunca!
O restante de nós deixou que eles falassem. Quando terminaram, eu disse:
— Pode ser que chegue a ficar ruim assim, acho, mas não acredito que ficará.
Aquela mulher quer viver. Acima de tudo, quer que a filha viva. Acho que ela já
lidou com muita coisa pelo bem da menina, e não acho que a colocaria
em perigo agindo para uma gangue. As gangues são mais diretas aqui fora, de
qualquer modo. Não precisam de ninguém fazendo reconhecimento por elas.
Silêncio.
— Vamos testar? — perguntei. — Ou vamos recusá-las agora?
— Não sou contra elas — disse Travis. — Deixem que fiquem, pelo bem da
menina. Mas vamos voltar a colocar dois guardas por vez durante a noite. Como
aquelas duas entraram aqui, do nada, por falar nisso?
Jill se retraiu um pouco.
— Elas poderiam ter entrado a qualquer momento ontem à noite — disse ela.
— A qualquer momento.
— O que não vemos pode nos matar — eu disse. —Jill, você não as viu?
— Talvez elas estivessem ali quando eu comecei a montar guarda!
— Ainda assim, você não as viu. Elas poderiam ter cortado seu pescoço. Ou
o de sua irmã.
— Mas não cortaram.
— Mas pode acontecer da próxima vez. — Eu me inclinei para ela. — O
mundo está cheio de pessoas malucas e perigosas. Vemos sinais disso todos os
dias. Se não tomarmos cuidado e não nos cuidarmos, eles vão nos roubar,
matar e talvez nos comer. É um mundo perdido, Jill, e só temos uns aos outros
para nos mantermos longe dele.
Silêncio ressentido.
Estiquei o braço e peguei a mão ela.
-Jill.
— Não foi minha culpa! — disse ela. — Vocês não podem provar...
-Jill!
Ela se calou e olhou para mim.
— Olha, ninguém vai te agredir, pelo amor de Deus, mas você fez algo
errado, algo perigoso. E sabe disso.
— E então o que você quer que ela faça? — perguntou Allie. — Que fique de
joelhos e peça perdão?
— Quero que ela ame a vida dela o bastante e a sua também para não ser
descuidada. É o que eu quero. É o que vocês deveríam querer, agora mais do que
nunca. Jill?
Jill fechou os olhos.
— Ah, droga — disse ela. — Certo, certo! Eu não as vi. Não mesmo. Vou
vigiar melhor. Ninguém mais vai passar por mim.
Segurei a mão dela por mais um momento, e então soltei.
— Certo. Vamos sair daqui. Vamos pegar aquela mulher assustada e a
filhinha aterrorizada dela e sair daqui.
Tori Solis encontrou mais dois companheiros para nós hoje: Grayson Mora e
sua filha Doe. Doe era só um ano mais nova do que Tori, e as duas menininhas,
indo juntas pelo mesmo caminho, tornaram-se amigas. Hoje, viramos a oeste na
rodovia estadual 20 e estávamos seguindo de volta em direção à U.S.101.
Passamos muito tempo falando sobre nos estabelecermos na terra de Bankole, a
respeito de empregos e plantações, e o que poderiamos construir ali.
Enquanto isso, as duas menininhas, Tori e Doe, estavam fazendo amizade e
unindo seus pais. Eles eram suficientemente parecidos para chamar minha
atenção. Tinham aproximadamente a mesma idade - o que significava que
o homem havia se tornado pai quase tão jovem quanto a mulher havia se tornado
mãe. Isso não era incomum, mas ele tomar conta de seu filho, sim.
É um latino negro, alto e magro, calado, protetor em relação ao filho, mas
atencioso, de alguma maneira. Gosta de Emery. Percebi isso. Ainda assim, de
certo modo, ele queria se afastar dela - e de nós. Quando deixamos a estrada para
montar acampamento, ele seguiria em frente se sua filha não tivesse implorado e
depois chorado para que ficassem conosco. Ele tinha os próprios alimentos,
então eu disse que poderia acampar perto de nós, se quisesse. Duas coisas
me ocorreram enquanto eu conversava com ele.
Primeiro, ele não gostou de nós. Isso era óbvio. Não gostou nada, nada de
nós. Pensei que pudesse se ressentir de nossa presença porque éramos unidos e
estávamos armados. Costumamos nos ressentir das pessoas que tememos.
Eu disse a ele que fazíamos guardas, e que se ele pudesse lidar com isso, era
bem-vindo. Ele deu de ombros e disse de seu modo suave e frio:
— Ah, sim.
Ele vai ficar. Sua filha quer e uma parte dele também, mas tem algo errado.
Algo além da cautela do viajante comum.
A segunda coisa é apenas minha desconfiança. Acredito que Grayson e Doe
Mora também eram escravos. Mas Grayson agora é um indigente rico. Ele tem
dois sacos de dormir, comida, água e dinheiro. Se eu estiver certa, ele os pegou
de alguém - ou do cadáver de alguém.
Por que eu acho que ele era escravo? Aquela estranha hesitação dele se
parece muito com a de Emery. E Doe e Tori, apesar de não serem nada
parecidas, entendem uma à outra como irmãs. Crianças pequenas conseguem
isso às vezes, sem que queiram dizer qualquer coisa. Simplesmente ser crianças
juntas basta. Mas nunca vi nenhuma, além de essas duas, mostrar a tendência de
cair no chão e rolar em posição fetal quando assustadas.
Doe fez exatamente isso quando tropeçou e caiu, e Zahra se aproximou para
ver se ela estava ferida. O corpo de Doe virou uma bola trêmula. Será que era
isso, como Jill e Allie imaginavam, o que as pessoas faziam quando esperavam
ser agredidas ou chutadas? Uma postura de proteção e submissão de uma vez?
— Tem alguma coisa errada com aquele cara — disse Bankole, olhando para
Grayson enquanto nos deitávamos lado a lado. Tínhamos comido e ouvido mais
sobre a história de Emery, e conversado um pouco, mas estávamos cansados. Eu
tinha que escrever, e Travis e Jill estavam de guarda. Bankole, que tinha que
montar guarda logo cedo com Zahra, só queria conversar. Ele se sentou ao meu
lado e falou em meu ouvido com uma voz tão baixa, que se eu me afastasse dele,
perderia suas palavras.
— Mora é muito assustado — disse ele. — Ele se retrai quando alguém se
aproxima.
— Acho que é outro ex-escravo — falei com a voz igualmente baixa. —
Pode ser que esse não seja o único problema dele, mas é o mais óbvio.
— Então, você também percebeu isso. — Ele passou o braço ao redor do me
corpo e suspirou. — Concordo. Tanto ele quanto a criança.
— E ele não nos ama.
— Ele não confia em nós. E por que confiaria? Teremos que vigiar os quatro
por um tempo. Eles são... esquisitos. Podem ser tolos o bastante para tentar pegar
algumas de nossas coisas e fugir qualquer noite dessas. Ou pode ser só uma
questão de coisas pequenas começarem a desaparecer. É mais provável que
crianças acabem fazendo isso. Mas se os adultos ficarem, será pelo bem delas.
Se pegarmos leve com as crianças e as protegermos, acho que os adultos serão
leais conosco.
— Então nos tornamos a versão moderna de um grupo de underground
railroad1 — comentei.
Escravidão de novo - pior ainda do que meu pai pensava, ou pelo menos
mais cedo. Ele acreditava que demoraria um pouco.
1 Rede clandestina pela qual escravizados fugiam para o norte dos Estados
Unidos ou para o Canadá com o auxílio de abolicionistas. Posteriormente o
termo se tomou emblemático na militância afroamericana. (N. da E.)
— Nada disso é novo. — Bankole se acomodou contra mim. — No inicio
dos anos 1990, enquanto eu estava na faculdade, ouvi a respeito de casos de
agricultores fazendo isso: prendendo as pessoas contra sua vontade e forçando-as
a trabalhar sem receber salário. Latinos na Califórnia, negros e latinos no sul...
De vez em quando, alguém ia preso por isso.
— Mas a Emery disse que há uma nova lei... que diz que forçar as pessoas ou
seus filhos a trabalharem para pagar dívidas que eles não conseguem evitar é
legal.
— Talvez. É difícil saber em que acreditar. Eu acho que os políticos podem
ter aprovado uma lei que poderia ser usada para apoiar a escravidão por dívida.
Mas não soube nada a esse respeito. Qualquer pessoa suja o suficiente para ter
escravos é suja o bastante para contar um monte de mentiras. Você percebe que
os filhos daquela mulher foram vendidos como gado, e sem dúvida
foram vendidos para prostituição.
Concordei.
— Ela também sabe.
— Sim. Meu Deus.
— As coisas estão ruindo cada vez mais. — Eu fiz uma pausa. — Mas
garanto que se conseguirmos convencer ex-escravos de que eles podem ter
liberdade conosco, ninguém vai lutar mais para mantê-la. Mas precisamos de
armas melhores. E precisamos tomar muito cuidado... Não para de ficar cada vez
mais perigoso aqui fora. Será ainda mais perigoso com aquelas menininhas por
aí.
— Aquelas duas sabem ser quietas — disse Bankole. — São coelhinhas,
rápidas e silenciosas. E por isso que ainda estão vivas.
24
Respeite Deus:
Ore trabalhando.
Ore aprendendo,
planejando, fazendo.
Ore criando,
ensinando, ajudando.
Ore trabalhando.
Ore para focar seus pensamentos, parar seus medos, fortalecer seu propósito.
Respeite Deus.
Molde Deus.
Ore trabalhando.
— Semente da Terra: os livros dos vivos
Não chegamos a Clear Lake na manhã seguinte. Para dizer a verdade, já era a
manhã seguinte quando fomos dormir. Estávamos cansados e doloridos demais
para acordar ao amanhecer - que chegou depressa no segundo turno. Só
a necessidade de encontrar água nos fez partir naquele horário - às onze horas de
uma manhã quente e esfumaçada.
Encontramos o cadáver de uma jovem quando voltamos para a estrada. Não
havia nenhuma marca nela, mas estava morta.
— Quero as roupas dela — sussurrou Emery.
Ela estava perto de mim, caso contrário eu não a teria ouvido. A mulher
morta tinha aproximadamente o tamanho dela e usava uma camisa de algodão e
uma calça que pareciam quase novas. Estavam sujas, mas bem menos do que
as roupas de Emery.
— Tire as roupas dela, então — falei. — Eu te ajudaria, mas não estou me
sentindo muito bem hoje.
— Vou ajudá-la — sussurrou Allie.
Justin estava dormindo em seu carrinho com Dominic, por isso ela ficou livre
para ajudar com as coisas comuns e indizíveis que agora fazíamos para viver.
A mulher morta não tinha nem sequer defecado ao morrer. Isso tornou o
trabalho menos nojento do que poderia ter sido. Mas o rigor mortis já havia
acontecido, e despi-la foi uma tarefa para duas pessoas.
Não havia ninguém além de nós naquele trecho da estrada, por isso Emery e
Allie puderam fazer as coisas com calma. Não havíamos visto outros andarilhos
naquela manhã.
Emery e Allie pegaram todas as peças de roupa, incluindo meias, roupas de
baixo e botas, apesar de Emery achar que ficariam grandes nela. Não importa. Se
ninguém pudesse usá-las, ela poderia vendê-las.
Na verdade, foram as botas que renderam a Emery o primeiro dinheiro que
ela já tinha conseguido na vida. Na fazenda onde tinha sido escrava, ela apenas
recebia em moeda da empresa, que só tinha valor na fazenda, e mesmo assim
quase nenhum.
Costuradas do lado de dentro da língua de cada bota da mulher morta havia
cinco notas de cem dólares - mil dólares no total. Tivemos que dizer a ela que
aquilo era muito pouco. Se ela fosse cuidadosa e só fizesse compras nas lojas
mais baratas, sem comer carne, trigo ou derivados de leite, talvez conseguisse se
alimentar por duas semanas. Talvez alimentasse a ela e a Tori por uma semana e
meia. Ainda assim, parecia uma fortuna para Emery.
Mais tarde naquele dia, quando chegamos ao Clear Lake - um lago muito
menor do que eu esperava - encontramos uma loja bem pequena e cara,
funcionando na parte de trás de um caminhão antigo perto de um monte de
casebres meio incendiados e tombados. Vendia frutas, legumes, castanhas
e peixe defumado. Todos tínhamos que comprar algumas coisas, mas Emery
gastou muito em peras e castanhas para todo mundo. Ela se alegrava distribuindo
esses itens, por poder ser capaz de nos dar algo em troca. Ela é bacana. Vamos
ter que ensinar sobre compras e sobre o valor do dinheiro, mas ela tem valor, a
Emery. E decidiu que é uma de nós.
Temos discutido a semana toda se devemos ou não ficar aqui com os ossos e
as cinzas.
Encontramos cinco crânios - três no que sobrou da casa e dois do lado de
fora. Havia outros ossos espalhados, mas não um esqueleto completo. Os cães os
atacaram - cães e canibais, talvez. O incêndio aconteceu há tempo suficiente para
que as ervas daninhas começassem a aparecer nos destroços. Dois meses atrás?
Três? Alguns dos vizinhos distantes poderiam saber. Alguns dos vizinhos
distantes podiam ter ateado o fogo.
Não havia como ter certeza, mas eu imaginei que os ossos pertencessem à
irmã e à família de Bankole. Acho que ele pensou a mesma coisa, mas não
conseguia simplesmente enterrar os ossos e esquecer a irmã. Um dia depois de
nossa chegada, ele e Harry foram a Glory, a cidadezinha mais próxima pela qual
tínhamos passado, para conversar com os policiais da região. Eles eram, ou
diziam ser, policiais da delegacia. Fico me perguntando o que é preciso fazer
para se tornar policial. Fico me perguntando o que é um distintivo, além de uma
licença para roubar. O que já tinha sido, para fazer com que pessoas da idade de
Bankole quisessem confiar nele. Eu sei o que os velhos livros dizem, mas, ainda
assim, fico em dúvida.
Os policiais praticamente ignoraram a história e as perguntas de Bankole.
Não anotaram nada, disseram não saber nada. Trataram Bankole como se
duvidassem que ele tinha uma irmã ou que ele fosse quem dizia ser. Tantas
carteiras de identidade roubadas hoje em dia. Eles o revistaram e pegaram o
dinheiro que ele levava. Taxas dos serviços da polícia, segundo eles. Ele tomara
o cuidado de levar apenas o que pensava ser suficiente para mantê-los
simpáticos, mas não o suficiente para deixá-los desconfiados ou mais
gananciosos do que já eram. O resto - um pacote considerável - ele deixou
comigo. E confiava o suficiente em mim para fazer isso. A arma ele deixou com
Harry, que tinha ido fazer compras.
Prisão para Bankole podia ter significado ser vendido para um período de
trabalho árduo e sem pagamento - escravidão. Talvez, se ele fosse mais jovem,
os policiais poderíam ter pegado seu dinheiro e o prendido de qualquer
modo, inventando uma acusação qualquer. Eu havia implorado para ele não ir,
para não confiar em nenhum policial ou oficial do governo. Para mim, essas
pessoas não eram melhores do que as gangues que roubavam e escravizavam.
Bankole concordou comigo, mas insistiu em ir.
— Ela era minha irmã menor — disse ele. — Tenho que pelo menos tentar
descobrir o que aconteceu com ela. Preciso saber quem fez isso. Mais do que
tudo, preciso saber se um de seus filhos pode ter sobrevivido. Um ou mais
daqueles crânios podem ser dos incendiários. — Ele olhou para a coleção de
ossos. — Tenho que correr o risco de ir à delegacia — continuou. — Mas você,
não. Não quero você comigo. Não quero que eles tenham idéias quando te virem,
e podem acabar descobrindo, por acidente, que você é uma compar-tilhadora.
Não quero que a morte de minha irmã custe sua vida ou sua liberdade.
Brigamos por causa disso. Temi por ele, ele temeu por mim, e nós dois
ficamos bravos como nunca um com o outro. Eu estava morrendo de medo de
ele ser morto ou preso, e de que nunca descobríssemos o que havia acontecido.
Ninguém deveria viajar sozinho nesse mundo.
— Olha — disse ele por fim —, você pode ajudar aqui com o grupo. Você
ficará com uma das quatro armas restantes aqui, e sabe como sobreviver.
Precisam de você aqui. Se os policiais decidirem que me querem preso, você não
vai conseguir fazer nada. Pior, se decidirem que querem você, eu não poderei
fazer nada além de me vingar e ser morto por isso.
Aquilo fez com que eu me acalmasse - o pensamento de que eu podia causar
sua morte em vez de lhe dar suporte. Eu não acreditava muito nisso, mas me
acalmou um pouco. Harry se intrometeu naquele momento e disse que iria.
Queria ir, de qualquer forma. Podia comprar algumas coisas para o grupo
e queria procurar emprego. Queria ganhar uma grana.
— Farei o que puder — disse ele para mim antes de partirem. — Ele não é
um velho ruim. Vou trazê-lo de volta para você.
Os dois trouxeram um ao outro de volta, Bankole voltou algumas centenas de
dólares mais pobre, e Harry ainda sem emprego - mas trouxeram de volta
suprimentos e algumas ferramentas de mão. Bankole não sabia mais do que
antes, quando deixara sua irmã e a família dela, mas os policiais disseram que
viriam investigar o fogo e os ossos.
Ficamos preocupados pensando que, mais cedo ou mais tarde, eles poderiam
aparecer. Ainda estamos de olho para ver se chegam, e escondemos - enterramos
- a maior parte das coisas de valor que temos. Queremos enterrar os ossos, mas
não ousamos fazer isso. Isso está incomodando Bankole. Incomodando muito.
Sugeri que fizéssemos um funeral para enterrar os ossos. Que se danem os
policiais. Mas ele se negou. Disse que é melhor provocá-los o menos possível.
Se eles viessem, cometeríam danos o suficiente com os roubos. Era melhor não
dar a eles motivo para fazer mais.
Eis que um semeador saiu a semear. Enquanto lançava a semente, parte dela
caiu à beira do caminho; foi pisoteada, e as aves do céu a devoraram. Outra parte
caiu sobre as rochas e, quando germinou, as plantas secaram, pois não havia
umidade suficiente. Outra parte ainda, caiu entre os espinhos, que com ela
cresceram e sufocaram suas plantas. Todavia, uma outra parte caiu em boa terra.
Germinou, cresceu e produziu grande colheita, a cem por um.
I
A Bíblia
Versão King James atualizada
Lucas 8: 5-8
UMA CONVERSA COM OCTAVIA E. BUTLER
Conto histórias para mim mesma desde que tinha quatro anos. Eu era filha
única, tímida e frequentemente sozinha. Contar histórias para mim mesma era o
meu jeito de me manter entretida. Nunca pensei em colocá-las no papel até os
meus dez anos, quando percebi que estava esquecendo algumas das minhas
primeiras histórias. Um dia, enquanto minha mãe penteava meu cabelo,
fiquei escrevendo em um caderno meio usado. Ela me perguntou o que eu estava
fazendo. Quando disse que estava escrevendo uma história, ela respondeu “Oh.
Talvez você se torne uma escritora”.
Esse foi absolutamente o meu primeiro sinal de que as pessoas podiam ser
“escritoras”, mas entendi a ideia e a aceitei de uma só vez. As pessoas podem se
sustentar escrevendo histórias. Pessoas foram pagas para escrever os livros
que eu gostava de ler. A Biblioteca Pública de Pasadena foi um dos meus lugares
favoritos por anos. Eu não amava apenas ler livros, mas estar cercada por eles.
Pela primeira vez na vida, considerei seriamente que talvez pudesse
trabalhar com algo que gostava - e eu realmente gostava de escrever. Minhas
histórias eram terríveis, mas me divertia com elas. Até aquele dia, “trabalho” era,
para mim, algo cansativo que os adultos me forçavam a fazer. Trabalho adulto
era
algo ainda mais cansativo que um chefe mandava os adultos fazerem.
Trabalho era, por definição, desagradável. Mas se escrever fosse o meu
trabalho...!
Eu nunca contei histórias comuns para mim mesma. Nunca estive interessada
em fantasiar sobre o mundo no qual estava presa. Na verdade, fantasiava sobre
fugir daquele mundo limitado e sem graça. Eu era uma menininha “de
cor” naquela era de conformidade e segregação, os anos 1950, e não importava o
quanto eu sonhasse em ser escritora, não podia deixar de ver que meu futuro real
parecia sombrio. Deveria me casar e ter filhos, e se tivesse sorte, meu marido me
sustentaria e eu poderia ficar em casa, lavar o chão e cuidar das crianças. Se
tivesse um pouco menos de sorte, teria que conseguir um trabalho, mas um que
me deixasse vestir bem e ficar limpa o dia todo. Me tornaria uma secretária,
talvez. Minha mãe, a quem só foram permitidos três anos de estudo, era uma
empregada doméstica. Cuidar de casas era tudo o que sabia fazer. O sonho dela
era que eu me tornasse secretária. Minha tia, uma enfermeira, achava que eu
tinha que ser enfermeira. As outras duas profissões mais abertas a mulheres
naquela época eram professora de ensino primário e assistente social. Eu
conhecia crianças que queriam ser assistentes sociais, mas eu sequer sabia o que
uma assistente social faz. Mas conhecia o suficiente sobre secretárias,
enfermeiras e professoras para concluir que, para mim, essas profissões seriam
como uma prisão perpétua no inferno.
Eu fantasiava sobre viajar e ver algumas das coisas que encontrava nas
revistas National Geographic de segunda mão que minha mãe trazia para casa.
Fantasiava sobre viver vidas impossíveis, mas interessantes - vidas mágicas em
que eu podia voar como o Super-homem, me comunicar com animais, controlar
a mente das pessoas. Me tornei um cavalo mágico em uma ilha de cavalos. Meus
amigos cavalos e eu enganávamos os homens que vinham nos pegar.
Então, quando eu tinha doze anos, descobri a ficção científica. Me atraia
ainda mais que a fantasia, porque exigia mais reflexão, mas pesquisa sobre as
coisas que me fascinavam. Eu estava desenvolvendo interesse em geologia e
paleontologia - a origem da Terra e o desenvolvimento da vida. O programa
espacial tripulado estava começando, e fiquei fascinada com ele. O que
mais gostei de estudar na escola foi Ciências na oitava série: outros planetas,
evolução biológica, botânica, microbio-logia... Eu não era uma aluna
particularmente boa, mas era ávida. Queria saber sobre tudo, e enquanto
aprendia, queria brincar com o conhecimento, explorá-lo, pensar no que queria
dizer, ou para onde podia levá-lo, escrever histórias com ele.
Nunca perdi esse fascínio.
E a ficção científica e a fantasia são tão vastas que eu nunca tive que deixá-
las para poder lidar com outras coisas. Não parece ter nenhum aspecto da
humanidade ou do universo ao nosso redor que eu não possa explorar.