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José Honórigo Rodrigues História Da História Do Brasil PDF

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HISTÓRIA DA HISTÔRIA DO BRASIL

1/ PARTE

Historiografia Colonial
BRASILIANA
(GRANDE FORMATO)
Volume 21

Direção de
AMllRICO JACOBINA LACOMBE
. l 1osE HONÓRIO R0DRIGUE$
~~
i
/'
História da História
do Brasil
t.• PARTE
Historiografia Colonial

Em convênio com o
INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO
MINISTJlRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA

COMPANHIA EDITORA NACIONAL/MEC


CIP. Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP

Rodrigues, José Honório, 1913·


R613h História da história do Brasil / José Honório Rodrigues. - São
v.1 Paulo : Ed. Nacional ; 1 Brasília 1 : INL, 1979.
(Brasiliana : Série grande formato ; v. 21)
Bibliografia.
Conteúdo: pt. 1 . Historiografia colonial.
1. Brasil - História - Até 1821 - Historiografia 2 . Brasil -
História - Historiografia I. Instituto Nacional do Livro. II. Título.
III. Série.

CDD-981.0077
-981 .021
CDU-981
CCF/CBL/SP-78-1401

lndices para catálogo sistemático:


1. Brasil : Período colonial : História 981.021
2. Brasil-colônia : História 981. 021
3. Historiografia : Brasil 981 . 0077

Direitos autorais desta edição reservados à


COMPANHIA EDITORA NACIONAL
Rua dos Gusmões, 639
01212 São Paulo, SP

1979
Impresso no Brasil
OBRAS DO AUTOR

Livros

Civilização holandesa no Brasil. I .º Prêmio de Erudição da Academia Brasileira de


Letras. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1940. (Em colaboração com
Joaquim Ribeiro.)
Teoria da História do Brasil. São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1949; 2." (:dição,
São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1957, 2 vols. (Brasiliana Grande); 3.ª
edição, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1969; 4.• e 5." eds., id., id., 1978.
Historiografia e bibliografia do domínio holandês no Brasil. Rio de Janeiro, Instituto
Nacional do Livro, 1949.
As fontes da História do Brasil na Europa. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1950.
Notícia de vária história. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1951.
A pesquisa histórica no Brasil. Sua evolução e problemas atuais. Rio de Janeiro,
Instituto Nacional do Livro, 1952; 2." edição, São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1969; 3.ª ed., id., id., 1978.
Brasil. Período colonial. México, Instituto Panamericano de Georgrafia e História, 1953.
O continente do Rio Grande. Rio de Janeiro, Edições São José, 1954.
Historiografía dei Brasil. Siglo XVI. México, Instituto Panamericano de Geografia e
História, 1957.
A situação do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, Ministério da Justiça e Negócios
Interiores, 1959.
Brasil e A/rica. Outro horizonte. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1961;
2.ª edição id., id., 1964, 2 vols.
Aspirações nacionais. Interpretação histórico.política. São Paulo, Editora Fulgor, 1963;
2.ª edição, id., id., 1965; 3.ª edição, id., id .. 1965; 4." edição, Rio de Janeiro,
Editora Civilízação Brasileira, 1969.
Historiografia dei Brasil. Siglo XVII. México, Instituto Panamericano de Geografia
e História, 1963.
Conciliação e reforma no Brasil. Interpretação histórico-política. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1965.
História e historiadores do Brasil. São Paulo, Editora Fulgor, 1965.
Interesse nacional e política externa. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1966.
Vida e História. Rio de Janeiro, Editora Civilízação Brasileira, 1966.
História e Historiografia. Petrópolis, Editora Vozes, 1970.
O Parlamento e a evolução nacional. Introdução histórica, 1826-1840. Brasília, Senado
Federal, 1972. I.º vol. da série "O ParÍamento e a evolução nacional. Seleção
de textos parlamentares··. 3 vols. em 6 tomos, e l vol. de "lndice e Personalia".
(Organizados com a colaboração de Lêda Boechat Rodrigues e Octaciano No-
gueira.)
A Assembléia Constituinte de 1823. Petrópolis, Editora Vozes, 1974.
Independência: revolução e contra-revolução. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves
Editora, 1976, 5 vols.
História, corpo do tempo. São Paulo, Editora Perspectiva, 1976.

V
Livros traduzidos

Brazil and A/rica. Traduzido por Richard A. Mazzara e Sam Hileman. "Introduction"
por Alan K. Manchester. Berkeley e Los. Angeles, University of California Press,
19~. .
The Brazilians. Their character and aspiration. Traduzido por Ralph Edward Dim-
mick. "Foreword" e "Additional Notes" por E. Bradford Burns. Austin e Lon-
dres, University of Texas Press, 1967.

Opúsculos

"Capitalismo e protestantismo. Estado atual do problema." Sep. de Digesto Econó-


mico, São Paulo, 1946.
"Alfredo do Vale Cabral." Rio de Janeiro, 1954. Traduzido para o inglês. Sep. da
Revista Interamericana de Bibliografia, Washington, 1958.
"Capistrano de Abreu, ein Freund Deuteschlands." Sep. do Staden Jahrbuch, São Paulo,
1958.
"Antônio Vieira, doutrinador do imperialismo português." Sep. da Revista Verbum,
Rio de Janeiro, 1958.
"La Historiografía Brasilefia y e! actual processo historico/' Sep. do Anuario de Estu-
dios Americanos, Sevilha, 1958, t. XIV.
"Algumas idéias políticas de Gilberto Amado." Sep. da Revista Brasileira de Estudos
Politicos, Belo Horizonte, 1959.
"D. Henrique a abertura da fronteira mundial." Sep. da Revista Portuguesa de Histó-
ria, Coimbra, 1961.
"Nueva actitud exterior dei Brasil." Sep. do Foro Internacional, México, janeiro e
março de 1962.
"The influence of Africa on Brazil and of Brazil on Africa." Sep. de Journal of A/ri•
can History, Londres, 1962, vol. 3.
"The Foundation of Brazil's Foreign Policy." Sep. de International Affairs, Londres,
1963, vol. 3.
"Alfredo de Carvalho. Vida e obra." Sep. dos Anais da Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro, 1963, vol. 77.
"Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras." Sep. da Revista de História,
São Paulo, 1970, n.º 81.
"O livro e a civilização brasileira." Sep. da Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, abril
de 1971, vol. 67, n.º 3.
"O liberalismo no Brasil". Sep. dos Discursos Acadêmicos. Rio de Janeiro, Academia
Brasileirá de Letras, 1972, vol. 20.
"O clero e a Independência." Sep. da Revista Eclesiástica Brasileira, junho de 1972,
vol. 32, fase. 126.
"Mattoso Câmara." Sep. da Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, junho/julho de 1973,
vol. LXVII.
"O sentido da História do Brasil." Sep. da Revista de História, São Paulo, 1974, n.º 100.

Colaboração em livros coletivos

"Webb's Great Frontier and the Interpretation of Modern History." ln A. R. Lewis e


T. F. McGann (eds.), The New World looks at its History. University of Texas
Press, 1963.
"Brazil and China. The Varying Fortunes of Independent Diplomacy." ln A. M. Hal-
pern (ed.), Policies toward China. Views from Six Continents. Nova York, Council
on Foreign Relations, 1965.
"Brazilian Historiography, Present Trends and Research. Requirements." ln Manuel
Diégues Júnior e Bryce Wood (eds.), Social Science in Latin America. Nova York
e Londres, Columbia University Press, 1967.

VI
"As tendências da historiografia brasileira e as necessidades da pesquisa." ln Centro
Latino-americano de Pesquisas em Ciências Sociais, As Ciências Sociais na Amé-
rica Latina. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1967.
"Problems in Brazilian History" e "Capistrano de Abreu and Brazílian Historiography".
ln Perspectíves on Brazílian Hístory. ("Introduction" e "Bibliographical Essay"
por E. Bradford Bums.), Nova York e Londres, Columbin Universify Press, 1967.
"History belongs to our own Generation." ln Lewis Hanke (ed.), History of Latin
American,Civilízation. Little Brown, 1967, vol. li (The Modern Age).
"José Bonifáéio et la direction du mouvement d'Indépendance." ln Etudes offertés à
Jacques Lambert. Paris, :Édition Cujas, 1975.

fndiccs anotados

"fndice Anotado" da Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, Imprensa Universit_á ria


do Ceará, 1959,
"1ndice Anotado" da Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Per-
nambucano. Recife, 1961.

Edições criticas
Johan Nieuhof. Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil. Confronto com a
edição holandesa de 1682. Introdução e nota, crítica bibliográfica e bibliografia.
São Paulo, Livraria Martins, 1942.
Capistrano de Abreu. Capítulos de História Colonial. 4 .ª edição, Revisão, Notas e Pre-
fácio. Rio de Janeiro, Livraria Briguiet, 1954; 5.ª edição, Brasília, Editora da Uni-
versidade de Brasília, 1963; 6.ª edição, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasi-
leira, 1976.

Direção e Prefácio de publicaç_õ es oficiais

Os holandeses no Brasil. Prefácio, notas e bibliografia. Rio de Janeiro, Instituto do


Açúcar e do Alcool, 1942.
Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1948-1963, vols.
66 a 74.
Documentos históricos da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional,_
1946-1955, vols. 71 a 110.
Catálogo da Coleção Visconde do Rio Branco. Rio de Janeiro, Instituto Rio Branco,
Ministério das Relações Exteriores, 1953.
José Maria da Silva Paranhos. Cartas ao amigo ausente. Rio de Janeiro, Instituto Rio
Branco, Ministério das Relações Exteriores, 1953. '-
Correspondência de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro,
1954-1956, 3 vols.
Publicações do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1960-1962,
vols. 43 a 50.
O Parlamento e a evolução nacional. Seleção de textos parlmentares, 1826-1840. Bra-
sília, Senado Federal, 1972, 3 vols., 6 tomos, 1 vol. de Indice. (Com a colaboração
de Lêda Boechat Rodrigues e Octaciano Nogueira.)
•Atas .do Conselho de Estado. Brasília, Senado Federal, 1973, vols. 1, 2 e 9.

Prefácios

J.E. Pohl. Viagem ao interior do Brasil empreendida nos anos de 1817 a 1821. Rio
de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1951.
Daniel de Carvalho. Estudos e depoimentos. l.ª série. Rio de Janeiro, Livraria José
Olympio Editora, 1953.

Vil
Guilherme Piso. História natural e médica da lndia Ocidental. Rio de Janeiro, Instituto
Nacional do Livro, 1957 (Prefácio e bibliografia).
J. Capistrano de Abreu. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. 4." edição. Rio de
Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1975. ,
J. Capistrano de Abreu. Ensaios e estudos. t.• série. 2.• edição. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1976. ,
J. Capistrano de Abreu. Ensaios e estudc,s. 2.• série. 2.• edição. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1976. '
J. C~pistrano de Abreu. Ensaios e estudos. 2.• série. 2.• edição. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1976.
J. Capistrano de Abreu. Ensaios e estudos. 4." série. 2." edição. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1976.
J. Capistrano de Abreu. O descobrimento do Brasil. 3." edição. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1976.

Em preparo:

História da História do Brasil, 2." parte - A Historiografia Nacional (séculos XIX


e XX).
História da História do Brasil, 3." parte - Historiografia e ideologia.

VIII
JOSI! HONÓRIO RODRIGUES

O Professor José Honório Rodrigues nasceu no Rio em 1913. Foi


educado na Escola Deodoro, no Externato Santo Antônio Maria Zacarias,
no Ginásio de São Bento, no Instituto Superior de Preparatórios, na Fa-
culdade de Direito da então Universidade do Brasil.
Começou a escrever na Faculdade de Direito, na revista A Epoca,
órgão estudantil, e ao terminar o curso, em 1937, recebeu o Prêmio de
Erudição da Academia Brasileira de Letras.
Com bolsa de estudos e pesquisa da Fundação Rockefeller, passou
um ano nos Estados Unidos (1943-1944), onde freqüentou cursos na
Universidade de Columbia e fez pesquisas históricas. Graduou-se na Esco-
la Superior de Guerra em 1955. Foi sempre servidor público, jornalista e
professor. Começou no Instituto Nacional do Livro, com Augusto Meyer,
trabalhando na Seção de Publicações, dirigida, então, por Sérgio Buarque
de Hollanda. Foi diretor interino da Biblioteca Nacional e diretor efetivo
do Arquivo Nacional. Foi professor do Instituto Rio Branco (História do
Brasil e História Diplomática do Brasil) e é professor do ensino superior
do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense. Tem
dado cursos na Universidade Católica e tem feito muitas conferências pa-
ra padres nacionais e estrangeiros em cursos de aperfeiçoamento promovi-
dos por instituições religiosas (Centro Intercultural e Conferência dos Bis-
pos). Foi conferencista da Escola Superior de Guerra de l957 a 1964.
Tem ensinado em universidades norte-americanas.
:e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, de Institu-
tutos históricos estaduais, da Academia Portuguesa da História, da The
Hispanic American Society (Estados Unidos), da Royal His~orical Society
(Inglaterra) e da Sociedade Histórica de Utrecht (Holanda). Tem parti-
cipado de várias conferências, congressos, seminários, nos Estados Uni-
dos, Europa e América Latina, e tem feito pesquisas no estrangeiro. Tem
vários livros traduzidos para o inglês e para o espanhol, e sua obra tem
merecido muitas notas e estudos críticos nos Estados Unidos e Europa,
nas revistas especializadas. Tem sido e é membro da direção de várias
revistas internacionais de História, como a Hispanic American Historical
Review (Estados Unidos), a Revista de História (México), o Historical

IX
Abstracts (Alemanha e Estados Unidos), e os Cahiers d'Histoire Intema-
tionale (França). Tem colaborado também em várias revistas de política
internacional, como International Affairs (Inglaterra), Forum Internacio-
nal (México) e Política (Venezuela). Foi diretor do Instituto Brasileiro
de Relaçõês Internacionais e dirigiu a Revista Brasileira de Política Inter-
nacional (1963-1968).
A bibliografia completa do Autor figura neste volume. E sua obra
foi objeto de tese de doutoramento na Universidade de São Paulo: Raquel
Glezer, O fazer e o saber na obra de José Honório Rodrigues: um modelo
de análise historiográfica, 1977.

X
SUMARIO

Prefdcio, XV
Abreviaturas, XXI

INTRODUÇÃO

_A historiografia Colonial

LIVRO PRIMEIRO

HISTORIOGRAFIA DA CONQUISTA

Capítulo 1. CARTAS E RELAÇOES .PRIMITIVAS. 1. A Carta de Pero Vaz.


de Caminha, 1. 2. As Cartas de Américo_ Vespúcio, 5. 3. A Relação do Piloto
Anônimo, 7. 4. O "Livro da Nau Bretoa" e a Nova Gazeta da Terra do Brasil
(1514), 8. 5. Didrio da Navegação de Pero Lopes de Sousa, 9. 6. Narração
de Cabeza de Vaca, 11. 7. Viagem de Ulrico Schmidel, 13. 8. Aventuras de
Hans Staden, 14.
Capítulo II. A CONQUISTA DA COSTA LESTE-OESTE. 1. Padre Luís Figueira,
16. 2. Martim Soares Moreno, 19. 3. Diogo de Campos Moreno. 20. 4. Manuel
de Sousa de Sá e Alexandre de Moura, 22. 5. Pero Rodrigues, 23. 6. Manuel
Gomes, 24.
Capítulo III. A DESCOBERTA DO AMAZONAS. 1. A Relação de Gaspar de
Carvajal, 25. 2. A Relação de André Pereira (Temudo), 26. 3. As Relações so-
bre a Viagem de Pedro Teixeira, 27. 4. A Relation de Blaise François Pagan,
31. 5. Didrio de Samuel Fritz, 31. 6. O Amazonas e os franceses, 33.

LIVRO SEGUNDO

HISTORIOGRAFIA DAS INVASOES

Capítulo I. AS INVASOES FRANCESAS. 1. Constderações Gerais, 37. 2. As


Singularidades de André Thévet, 40. 3. A História de Jean de Léry, 41. 4.
Claude d' Abbeville, 42. 5. Yves d'Evreux, 45.
Capítulo II. A HISTORIOGRAFIA GERAL DO D0M1NI0 HOLANDE.S. 1.
Considerações Gerais, 48. 2. A historiografia geral espanhola, portuguesa e ho-
landesa, 50. 3. A historiografia dos holandeses do Brasil, 54.

XI
Capítulo Ili. A HISTORIOGRAFIA EPISóDICA DOS HOLANDESES NO BRA-
SIL. 1. A invasão da Bahia (1624-1625) e a conquista de Pernambuco (1630-
1635), 59. 2. O Período Nassoviano (1637-1644) e a luta contra os holandeses
(1645-1654), 64.
Capítulo IV. A HISTORIOGRAFIA ESPECIAL DOS HOLANDESES NO BRA-
SIL. 1. A historiografia diplomática, 73. 2. A historiografia social é econômica,
7íl. 3. A historiografia regional, n11tural e etnográfica, 75.

LIVRO TERCEIRO

HISTORIOGRAFIA DO MARANHÃO
Capítulo 1. A CRIAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO. 1. Considerações gerais,
81. 2. Simão Estácio da Silva, 81 . 3. Bento Maciel Parente, 82. 4. Maurício
- Heriarte, 84. 5. Manuel Guedes Aranha, 85. 6. João de Sousa Ferreira, 86. 1.
Francisco Teixeira de Morais, 87. 8. Cristóvão de Lisboa, 89. 9. "Aditamentos"
de Anselmo Eckart, 90. 10. Frei Domingos Teixeira, 91. lL Bernardo Pereira
Berredo, 92.
Capítulo II. HISTORIOGRAFIA DA AMAZôNIA. 1. João Daniel e o Tesouro
Descoberto, 95. 2. Frei João de São José e o Grão-Pará,· 100. 3. Francisco Xa-
vier Ribeiro Sampaio e o Rio Branco, 103. 4 . José Monteiro de Noronha, 105.
5. Francisco José de Lacerda e Almeida, 106. 6 . Manuel da Gama Lobo d'Alma-
da e o' Rio Negro, 107.

LIVRO QUARTO

A HISTORIOGRAFIA DO BANDEIRISMO SEISCENTISTA


Capítulo 1. A HISTORIOGRAFIA BANDEIRANTE. 1. Considerações gerais, 113.
2. Relações de Entradas, 116. 3. Antônio de Araújo (1566-1632), 116. 4. João
de Souto Maior, 117. 5. Padre Miguel do Couto, 118.
Capítulo II. RELATOS MONÇOEIROS E SERTANISTAS, 120.
Capítulo III . A CONQUISTA ESPIRITUAL. 1. Antonio Ruiz de Montoya, 124.
2,. Nicolas dei Techo, 125.

LIVRO QUINTO

A HISTORIOGRAFIA REGIONAL
Capítulo 1. A HISTORIOGRAFIA PAULISTA. 1. História e Nobiliarquia de Pedro
Taques, 129. 2. Gaspar de Madre de Deus, 142. 3. Marcelino Cleto Pereira, 151.
4. Manuel Cardoso de Abreu, 152. 5. José Arouche de Toledo Rendon, 157.
6 . Roque Luís de Macedo Paes Leme e Melo e Castro, 159. 7. Francisco de
Oliveira Barbosa, 161.
Capítulo II. A HISTORIOGRAFIA DE MINAS GERAIS. 1. Relações e Descri-
ções, 162. 2. Cláudio Manuel da Costa, 177. 3 . José Joaquim da Rocha, 179.
4 . Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, 182. 5. "Reflexões sobre a Capitania
de Minas Geraes", .184.
Capítulo III. A HISTORIOGRAFIA DE MATO GROSSO. 1. Relatos e Informa-
ções Mato-grossenses, 188. 2. Os "Anais da Câmara de Vila Bela", 191. 3. "No-
tícia da Situação de Mato Grosso e Cuiabá", 193. 4. Os escritos de José Bar-

XII
bosa de Sá, 195. 5. As "Memórias" de Nogueira Coelho, 197. 6. O "Compêndio"
e as "Crônicas" de Costa Siqueira, 198. 7. O "Diário Histórico" de Antônio
Pires da Silva Pontes Leme, 200. 8 . Francisco José de Lacerda e Almeida, 20J.
9 . A obra de Ricardo Franco de Almeida Serra, 202.
Capítulo IV . A HISTORIOGRAFIA DE GOIAS. 1. Informações e Relatos, 208.
2. Francisco José Rodrigues Barata, 209. 3. José Manuel Antunes da Frota, 210.
Capítulo V. A HISTORIOGRAFIA RIO-GRANDENSE-DO-SUL. 1. "Relatos-'' é
"Informações", 212. 2. José Custódio de Sá e Faria, 215. 3. Sebastião Xavidr
dà Veiga Cabral Câmara, 216. 4. "Notícias" e "Memórias", 219. 5 . Sebastião
Francisco Bettamio, 220. 6. Francisco João Roscio, 221. 7. A "Descrição" de
Francisco Ferreira de Souza e o "Diário" de José de Saldanha, 223. 8 . Domingos
Alves Branco Moniz Barreto, 225. 9. Domingos José Marques Fernandes, 225.
10. Manuel Antônio de Magalhães, 226. 11 . Diogo Arouche de Moraes Lara, 228.
Capítulo VI. HISTORIOGRAFIA PERNAMBUCANA. 1. "Memórias" e "Informa-
ções", 229. 2. Domingos do Loreto Couto, 231.
Capítulo VII. HISTORIOGRAFIA REGIONAL VARIA.r l . Historiografia baiana,
236. 2. João Vasco Manuel de Braun e o Amazonas e Pará, 240. 3. João da Silva
Feijó e o Ceará, 241. 4. O Rio Grande do Norte e Joaquim José Pereira, 242.
5. A Paraíba, 243. 6 . Espírito Santo, 243. 1. Santa Catarina e Paraná, 244.

LIVRO SEXTO

HISTORIOGRAFIA RELIGIOSA
Capítulo I. OS JESUITAS. 1. Considerações gerais, 249. 2. Padre Manuel da Nó-
brega, 256. 3. Padre José de Anchieta, 258. 4. As Cartas Avulsas, 262. 5. Fer-
não Cardim, 265. 6. A Crônica Missionária Jesuítica, 272. 7. A Crônica Jesuítica
Geral Menor, 277. 8. A Crônifa Jesuítica Geral Maior, 283.
Capítulo II. Os FRANCISCANOS. 1. Considerações gerais, 297. 2. Manuel da
Ilha, 298. 3. Martin de Nantes, 300. 4. Frei Fernando da Soledade e Frei Apo-
linário da Conceição, 302. 5. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, 302.
Capítulo III . OS AGOSTINIANOS, 306.
Capítulo IV . OS BENEDITINOS, 308.
Capítulo V . OS CARMELITAS, 310.
Capítulo VI. HISTóRIA DA IGREJA EM GERAL, 311 .

LIVRO SETIMO

HISTORIOGRAFIA DAS REBELIÕES


Capítulo I. HISTORIOGRAFIA SANGRENTA. 1. História Sangrenta, 319. 2 . A
historiografia sobre e/ou contra os índios, 320. 3. A historiografia sobre e/ou
contra os· negros, 322.

LIVRO OITAVO

A HISTORIOGRAFIA MILITAR
Capítulo I. José de Mir~les, 359. 2. As guerras contra os franceses, 361. 3. As guer-
ras no Sul. A Colônia do Sacramento, 363. 4. As guerras contra os índios; a
conquista espanhola do Rio Grande e de Santa Catarina, 366.

XIII
LIVRO NONO

A HISTORIOGRAFIA ECONÔMICA E SOCIAL


Capítulo 1. A HISTORIOGRAFIA ECONOMICA GERAL. 1. Os Diálogos das
Grandezas do Brasil, 371. 2. A Arte de Furtar, 374. 3. A Economia Cristã, 377.
4. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, 379.
Capítulo li. A LITERATURA AÇUCAREIRA. 1. Padre Estêvão Pereira, 390. 2.
Padre Simão de Sotomaior, 392. 3. Antonil e a Cultura e Opulência do Brasil,
393. 4. A Literatura econômica em geral; 405.
Capítulo Ili. A HISTORIOGRAFIA SOCIAL E DOS CAMINHOS. 1. Ribeiro da
Rocha e a liberdade negra, 416. 2. João Pereira Caldas, 417.

LIVRO D~CIMO

A CRONICA GERAL COLONIAL


Capítulo 1. A CRONICA GERAL. 1. A Crônica geral, 425. 2. Pero de Magalhães
Gândavo, 426. 3. Gabriel Soares de Sousa, 433. 4. Diogo Gomes Carneiro, 439.
5. Manuel de Morais, 442. 6. Antônio Maria Bonucci, 444. 7. Inácio Barbosa
Machado, 445. 8. Francisco José da Serra Xavier, 446.
Capítulo li. AS RELAÇÕES GERAIS. 1. Considerações gerais, 448. 2. O "Sumá-
rio das Armadas", 448. 3. O "Sumário" de Domingos d'Abreu de Brito, 451.
4. A Rezão do Estado do Brasil, 455. 5. André de Almeida, 457. 6. O "Memo-
rial do Estado do Brasil para S. Majestade", 457. 7. A "Decripción dei Brasil",
457. 8. A "Relação das Capitanias do Brasil", 459. A Relação das Capitanias da
Repartição do Sul, 459. 10. Antônio Pereira de Berredo, 460. 11. A "Informa-
ção do Estado do Brasil", 460. 12. A Relação e Notícia de vários sucessos no
Brasil, 461. 13. "Máximas propostas" por D. Rodrigo José de Menezes e Castro,
462.
Capítulo Ili. OS INSTRUMENTOS DO TRABALHO. 1. Os instrumentos do tra-
balho histórico, 463. 2. Diogo Barbosa Machado, 463. 3. Antônio Caetano de
Sousa, 465. 4. Jaboatão, 468. 5. Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca,
469.
Capítulo IV. A HISTORIOGRAFIA GERAL. 1. Considerações gerais, 474. 2. An-
tônio Vieira, 475. 3. Frei Vicente do Salvador, 489. 4. Rocha Pita, 494. 5. Luís
dos Santos Vilhena, 503. 6. Alexandre de Gusmão, 509.

XIV
PREFÁCIO

A história da história nunca teve tratamento independente no mundo


da língua portuguesa. Era na história da literatura, único ramo de histo-
riografia intelectual exercido no Brasil e em Portugal, que se buscava, e
se encontrava a análise e critica da evolução do pensamento e da forma
do escrito histórico. Naturalmente não era nem podia ser satisfatória,
porque nela só entravam alguns cronistas e historiadores, examinados
segundo critérios literários, estiUsticos e estéticos. Quase sempre os poucos
selecionados eram os melhores exemplares da historiografia, mas a crítica
que se lhes fazia não bastava aos estudiosos de história, que nela buscavam
mais informações históricas que literárias. Além disso, faltavam muitos que
haviam trazido não pequena contribuição ao escrito e estudo histórico.
Outros, que haviam realizado obra literária e histórica, eram analisados
pelo mesmo critério, sem um conhecimento histórico ·mais exato. Daí
resultavam análises como, por exemplo, a de Sílvio Romero sobre Pereira
da Silva, aplaudido como historiador, sem a necessária reserva aos seus
erros e enganos de compilador, e censurado na sua obra literária, quando
Joaquim Nabuco e Capistrano de Abreu o criticaram, rigorosamente, do
ponto de vista histórico.
. A obra histórica deve ser vista e examinada como obra histórica, pelo
seu valor intrínseco, como contribuição ao desenvolvimento de sua disci-
plina. O critério literário e formal não é o definitivo. Se o autor escrevia
muito bem, tanto melhor. Mas Varnhagen, que não é padrão da língua.
é, incontestavelmente, o maior historiador brasileiro, pela contribuição
prestada.
O estudo da historiografia representa, assim, a libertação da disci-
plina da história literária. Este o primeiro aspecto que se deseja acentuar,
pois a história da história do Brasil só reconhece realmente três precursores:
Capistrano de Abreu, que escreveu a primeira e mais aguda análise da
evolução da historiografia brasileira, nos dois escritos de 1878 e 1882 (1);
Alcides Bezerra, "Os Historiadores do Brasil no Século XIX" (2), apreciação
(1) "Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen, Visconde de Porto Seguro", fornal do
Comércio (Rio), 16 e 20 de dezembro de 1878, transcrito ln História Geral do Brasil, 3.• ed., t. 1,
502,508 e • Apenso sobre o Visconde de Porto Seguro•, Gàzeta de Noticias (Rio), 21, 22 e 23 de
novembro de 1882, transcrito ln História Geral do Brasil, · 3.• ed., 3 vols., •3S-4+4.
(2) Separata do Rela/6rlo anual da diretoria do !arquivo Nacional referente a 1926, Rio, 1927.

XV
crítica muito valiosa, e Sérgio Buarque de Hollanda, que em 1951 estudou
com extraordinária visão critica o pensamento histórico durante os últimos
cinqüenta anos (3). São esses três estudos os verdadeiros pioneiros da
história da história do Brasil (4).
A tentativa de escrevê-la desde a primeira crônica do seu nascimento
até as tendências atuais significa um esforço de anos de pesquisa e de
leitura infatigáveis. Desde 1946, quando iniciamos os trabalhos que resul-
taram na Teoria da História do Brasil (l.ª ed. 1949, 5.ª 1978), escrevemos
as primeiras lições de historiografia brasileira lecionadas no Instituto Rio
Branco. Com o tempo acumulou-se o material recolhido dos próprios
livros de história e dos manuscritos de arquivo que dos autores e sobre
eles reuníamos. Outros trabalhos, aos poucos publicados, impediram-nos
de reescrever, aproveitando o material colhido, o esboço de 1946. O adia-
mento deu oportunidade a leituras e pesquisas que fizeram crescer o mate-
rial a ser utilizado ou preencheram lacunas e deficiências. Isso não impediu,
naturalmente, , que muitas continuassem existindo, mas evitou que outras
tantas fossem assinaladas pelos próprios leitores mais cuidadosos. Além
disso, em vários livros, publiquei trabalhos historiográficos <5 >.
Foi a oportunidade da publicação da Historiografia em espanhol, ofe-
recida em 1948, por Sílvio Zavala, em nome da Comissão de História do
Instituto Panamericano de Geografia e História, no seu programa de His-
toriografía General de America - decidido pela resolução I da Primeira
Reunião Panamericana de Consulta sobre História, celebrada em outubro
de 1947 - , que nos estimulou a preparar o trabalho, cujo primeiro
volume apareceu em princípios de 1957 e o segundo em 1963 (6).
Desde logo há de se notar e estranhar a divisão secular, adotada
mais por comodidade do que por princípio, apesar das interpretações de
Ottokar Lorenz, segundo o qual, o século é uma medida objetivamente
fundada de todos os acontecimentos históricos. Não se pretendeu adotar
tal preceito, como se verá nas páginas iniciais da historiografia seiscentista.
O que houve foi a dificuldade de dividir tematicamente tão vasto material,
tão pouco tratado. Talvez, mais tarde, depois desta e de outras experiên-
cias, se possa classificar, independentemente da cronologia, os vários grupos
de temas, ou as várias direções espirituais que caracterizam a evolução da
historiografia.
Também o critério de admissão de autores e escritos nesta historio-
grafia não foi rlgido e sistemático. Adotou-se, de princípio, uma distinção
entre documento histórico e. historiográfico, e somente este e seu autor
entraram neste estudo. A distinção não é fácil de se fazer, pois todo
documento historiográfico é histórico, mas nem todo documento histórico

(3) Correio da Manhit (Rio), 15 de Junho de 1951.


(4) Astroglldo Rodrigues de Mello escreveu ·os Estudos Históricos no Brasil•, Revista a,
História, n.• 6, 1951, 381-390.
(5) História e Historiadores do Brasil, São Paulo, 1965; Vida e História, Rio de Janeiro, 1966,
e História e Historiografia, Petrópolis, 1970.
(6) Historiografia dei Brasil. Slglo XVI, México, 1957; e Historiografia dei Brasil. Slglo
XVIII, México, 1963.

XVI
é historiográfico. Desde que se considere a historiografia como a história
da história, só aqueles escritos acabados na forma da descrição ou da inter-
pretação podem ser considerados historiográficos, relatem ou não fatos do
passado, ou se limitem ao seu presente. Mas esta •distinção tão simpÍ~
não pode ser facilmente aplicada quando nos defrontamos com uma histo-
riografia tão rudimentar e pobre, salvo poucas exceções, como a dos
séculos XVI e XVU. Então não podemos ser tão rigorosos e devemos
admitir as relações, formas primitivas da crônica, as descrições, os cha-
mados "descritivos" pelos espanhóis e algumas exposições políticas, como
as de Bento Maciel Parente, porque são formas narrativas da atualidade
histórica. Não se teria uma idéia da evolução da historiografia brasileira
daqueles séculos, se essas narrações não fossem estudadas. Acreditamos
que a partir do século XVIII elas já estarão incorporadas nas Histórias e
Crônicas e assim poderão ser abandonadas, assinalando-se apenas as for-
mas mais superiores.
J;; evidente também que tal dificuldade não se apresenta quando a
obra é um livro de História, como a de Frei Vicente do Salvador, ou uma
crônica contemporânea, como a Jornada do Maranhão de Diogo de Campos
Moreno. De modo geral, todo documento, tenha o titulo de Crônica,
Relação, Descrição, Memorial, Narração, que descreva os acontecimentos
e os episódios de uma época, história in statu nascendi, merece figurar na
historiografia, mesmo que seja primitivo, rudimentar, na forma e no con-
teúdo. Trata-se de descrições contemporâneas, documentos históricos e
historiográficos na acepção lata da palavra, pois o escrito histórico clássico
nasceu como história da atualidade. Não há que separar o joio do trigo,
quando se quer ver exatamente ~ bom e o ruim nesta evolução. Será
obra de síntese ou lição didática retirar o que não presta. Nem se pode
eliminar porque a forma não é elegante ou simples, rebuscada ou compli-
cada, pois esta não é tarefa de uma historiografia.
Há, no entanto, documentação oficial (legislação, por exemplo), há
documentos históricos, como correspondência, representações, autos, re-
querimentos, petições, certidões, consultas, etc., que estão logicamente
eliminados de qualquer historiografia, mesmo que a informação neles
contida, acabada e perfeita, correta e exata, os classifiquem como a fonte
principal do aconteciment9. A diferença principal está em que o documento
histórico forma-se no momento exato do acontecimento, enquanto o histo-
riográfico pode ser concebido em várias épocas sucessivas ou contempo-
râneas.
A História de Frei Vicente do Salvador é, por exemplo, um documen-
to histórico, fonte principal de certos períodos, porque seu autor a escreveu
enquanto os fatos se sucediam, e é documento historiográfico, com uma
construção elaborada do passado e do seu presente.
Há que considerar ainda as diferenças entre a Crônica e a História,
sobre as quais escrevemos algumas palavras nas considerações gerais do
primeiro capítulo da historiografia geral. Elas guardam sempre uma estrita

XVII
conexão com a realidade e são sempre narrativas. A primeira é um
gênero menor, sem pretensão de obra acabada, e por ser escrita por quem
presenciou os acontecimentos é sempre testemunhal, viva, atual. :É por
seu intermédio, como fonte de apreensão da realidade viva dos sucessos
e episódios diários, que os fatos menores penetram nas histórias mais
densas, construídas post mortem dos acontecimentos. A crônica é sempre
escrita in statu nascendi, quase sempre é limitada a uma missão, a um
episódio, enquanto a história generaliza, na particularidade do sucesso, os
motivos da ação, as ligações com outros fatos, as conseqüências. Não
está na seleção dos fatos maiores ou menores chamados a compor a nar-
ração, a característica dos dois gêneros de composição historiográfica, por-
que aquela escolha pertence à formação do historiador e à sua concepção
do mundo. A primeira é conjetural e a segunda estrutural.
Com a evolução da historiografia nos últimos séculos, quase todos
os documentos historiográficos não são contemporâneos aos sucessos, antes
representam opiniões posteriores, juízos ulteriores e, como tais, s~o consi-
derados na metodologia histórica como obras secundárias, isto é, conheci-
mentos indiretos, derivados, na melhor das hipóteses, de fontes diretas.
São muito raras, raríssimas mesmo, as narrações contemporâneas, as histó-
rias diretas; comuns são as memórias, diários, autobiografias e correspon-
dências, documentos históricos, e como tais não devem figurar numa
historiografia.
Convém ainda lembrar que a historiografia holandesa sobre o Brasil
mereceu um tratamento mais concentrado, porque a própria existência da
nossa Historiografia e Bibliografia do Dr:,mínio Holandês no Brasil (Rio,
1949) nos facilitou a redução. O domínio espanhol no Brasil (1580-1640),
que abrange a historiografia da conquista do Maranhão, parte da invasão
holandesa (1624-1625, 1630-1654) e as viagens pelo Amazonas, é ainda
muito mal representado na própria bibliografia brasileira, cujo modelo
inexcedível é o Catálogo da Exposição de História do Brasil <7>.
Também deve ser registrada, desde já, a contradição entre a criação
histórica bandeirante e a improdutividade historiográfica. Ele não alme-
ja a aprovação presente, não cuidava do julgamento histórico futuro
ao contrário dos jesuítas, cuja consciência histórica sugeria narrador, ao
lado do ou, no próprio missionário. C~mpare-se a produtividade da
historiografia jesuítica e a improdutividade bandeirante.
As descrições econômico-sociais da atualidade, como os Diálogos das
Grandezas, as exposições sobre a corrupção política, administrativa e
comercial, como a Arte de Furtar e sobre a situação do negro, como a
Economia Cristã, figuram como narrativas críticas da época.
Finalmente decidimos retirar os viajantes, tal como apareciam na
historiografia quinhentista, em espanhol, e por várias razões: 1 ) porque
sua admissão se fizera na base da pobreza da matéria historiográfica pro-
(7) Rio de Janeiro, 1881·1883, 3 vais.

XVIII
priamente dita e não porque fosse acertada sua- inclusão; eles pertencem
a uma história dos viajantes; 2) porque nos séculos seguintes, embora
ainda pobre, a historiografia já não precisa recorrer aos viajantes para
oferecer-nos um produto mais apresentável; 3) porque, quando entrás-
semos no século XIX, a história dos viajantes constituiria um tomo sepa-
rado, e ainda assim só faríamos repetir o que já fez' Rodolfo Garcia na
sua "História das Expedições Científicas no Brasil" (8).
Foram estas as normas que nos guiaram, nos séculos XVI, XVII e
XVIII, quando muitos documentos históricos se confundem com os histo-
riográficos e é preciso muita atenção para impedir que uma historiografia
não acabe se transformando numa história da documentação histórica. 8
possível, e até muito provável, que algumas vezes não tenhamos sabido
respeitar os limites de separação e as águas das duas fontes se tenham
misturado neste oceano historiográfico. No século XVIII e especialmente
no XIX, o historiador não é mais um testemunho, uma vox viva interes-
sada, que quer produzir efeitos imediatos; é uma voz noturna, que se
manifesta com intenções mediatas e indiretas. A narrativa histórica, seja
a crônica conjuntural, seja a história estrutural, é um produto final do
empreendimento histórico de cada geração, e por isso serve também para
esclarecer as opiniões das minorias intelectuais e para compreender os
trabalhos e sacrifícios da gente brasileira.
Depois da divulgação de nossa primeira historiografia no México foi
publicada a primeira Historiografia Portuguesa de Joaquim Veríssimo
Serrão <9 >, ampliada em A Historiografia Portuguesa em 3 volumes, o
primeiro sobre os séculos XII a XVI, o segundo sobre o XVII, e o tercei-
ro sobre o XVIII (10), A. H. de Oliveira Marques preparou uma Antologia
da Historiografia Portuguesa (11), e a Academia Portuguesa da História
promoveu um colóquio sobre A Historiografia Portuguesa anterior a
Herculano <12 >.
Na historiografia brasileira a única exceção, depois dos precursores
citad9s, era a obra de Oliam José, Historiografia Mineira. Esboço u 3 >. De-
pois publicaram-se biografias de historiadores como a de Gilberto Freyre
sobre Oliveira Lima, Don Quixote Gordo (14), a de Maria de Lourdes Mo-
naco Jannoti, João Francisco Lisboa: contribuição para o estudo da his-
toriografia brasileira <15 >, o estudo igualmente biográfico-historiográfico
de Fernando da Cruz Gouvêa, Oliveira Lima - Uma biografia <16 >.

(8) Dlcclonarlo Hlstorlco e Geographlco Brasileiro, Rio de Janeiro, 1922, J, 856·910.


(9) Lisboa, 1962.
(10) Lisboa, 1972·1974.
(11) Lisboa, 1975.
(12) Lisboa, 1977.
(ll) Belo Horizonte, 1959.
(14) Recife, 1968.
(15) (Tese de doutoramento, São Paulo, 1971) Ática, São Paulo, 1977.
(16) RecÍfe, 1976.

XIX
Os estudos de José Roberto do Amaral Lapa, A História em Questão.
Historiografia Brasileira Contemporânea (17), e o de Carlos Guilherme Mo-
ta, / deologia da Cultura Brasileira <18 >, todos sobre o período nacional da
historiografia brasileira, fora do alcance desta historiografia, serão objeto
de exame nos próximos volumes "A Historiografia Nacional" e "Historio-
grafia e Ideologia".

JOSE HONÓRIO RODRIGUES

Rio, 16 de ;aneiro de 1978

(17) Petrópolis, 1976.


(18) São Paulo, 1977.

XX
ABREVIATURAS

AAPB - Anais do Arquivo Público da Bahia


ABN - Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
ABPP - Anais da Biblioteca Pública do Pará
AMP - Anais do Museu Paulista
BB - Biblioteca Brasiliense, de José Carlos Rodrigues
BHB - Bibliografia de História do Brasil, Ministério das
Relações Exteriores
BL - Biblioteca Luzitana, de Diogo Barbosa Machado
CEHB - Catálogo da Exposição de História do Brasil
CNHGNU - Coleção de Notícias para a História e Geografia das
Nações Ultramarinas
DBB - Diccionario Bibliographico Brazileiro, de Sacramen-
to Blake
DBP - Diccionario Bibliographico Portuguez, de Innocencio
Francisco da Silva
DBSB - Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas do Brasil,
de Francisco de Assis Carvalho Franco
DHBC - Documentos para a História do Brasil e especial-
mente a do Ceará, pelo Barão de Studart
DHBN - Documentos Históricos da Biblioteca Nacional
DHGB - Dicionário Histórico e Geográfico Brasileiro, do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro
DIHCSP - Documentos Interessantes para a História e Costu-
mes em São Paulo
Ed. Acad. - Edição da Academia Brasileira de Letras das Cartas
Jesuíticas
Ed. Monumenta - Monumenta Brasiliae, de Serafim Leite
Ed. São Paulo - Edição de Serafim Leite das Cartas Jesuíticas
Fuentes - Fuentes de la Historia Espanhola e Hispano Ameri-
cana, de B. Sanchez Alonso
HAHR - Hispanic American Historical Review
HCJB - História da Companhia de Jesus no Brasil, de Sera-
fim Leite
HCPB - História da Colonização Portuguesa no Brasil, diri-
gida por Carlos Malheiros Dias
Historiografia - Historiografia e Bibliografia do Dominio Holandês
no Brasil, de José Honório Rodrigues

XXI
JHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
JB - Jornal do Brasil (Rio de Janeiro)
JC - Jornal do Comércio (Rio de Janeiro)
MBEB - Manual Bibliográfico de Estudos Brasileiros, de Wil-
liam Berrien e Rubens Borba de Morais
PAN - Publicações do Arquivo Nacional
RABL - Revista da Academia Brasileira de Letras
RAMSP - Revista do Arquivo Municipal de São Paulo
RAPM - Revista do Arquivo Público Mineiro
RH - Revista de História (São Paulo)
RHA - Revista de Historia de America
RIAGP - Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico de
Pernambuco
RIC - Revista do Instituto do Ceará
RIHGA - Revista do Instituto Histórico e Geográfico de
Alagoas
RIHGB - Revista do Instituto Histórico· e Geográfico do
Brasil
RIHGBa - Revista do Instituto Histórico e Geográfico da
Bahia
RIHGRGN - Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Norte
RIHGRGS - Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Sul
RIHGSP - Revista do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo
RSPHAN - Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional

XXII
LIVRO PRIMEIRO
Historiografia da Conquista
CAPITULO I

CARTAS E RELAÇÕES PRIMITIVAS

1. A Carta de Pero Vaz de Caminha. 2. As Cartas de Amé-


rico Vespúcio. 3. A Relação do Piloto Anônimo. 4. O "Li-
vro da Nau Bretoa" e a Nova Gazeta da Terra do Brasil
(1514). 5. Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa. 6.
Narração de Cabeza de Vaca. 7. Viagem de Ulrico Schmi-
del. 8. A venturas de Hans Staden.

1 . A Carta de Pero Vaz de Caminha

A Carta de Pero Vaz de Caminha, o auto oficial do nascimento do


Brasil e da própria crônica brasileira, inaugura a primeira fase e a corrente
dos cronistas, apaixonados divulgadores das grandezas do Brasil. Pertence,
como escreveu Cortesão, ao gênero das narrativas de viagens. A singulari-
dade dos acontecimentos, a vivacidade da observação, o profundo sabor
humanista tornam a Carta um clássico pela pureza de língua e de gosto.
A biografia do nosso primeiro cronista [Porto? 1450? - Calecute
1500] não está escrita. Pertencente à classe média letrada, Caminha foi
Cavaleiro das Casas de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel. Em 1476,
herdou de seu pai, Vasco Fernandes de Caminha, a posição de mestre da
Balança da Moeda, no Porto, cargo de responsabilidade em sua época. Em
1497 foi escolhido para redigir os capítulos da Câmara do Porto a serem
apresentados às Cortes em Lisboa.
Caminha aceitou ser escrivão da Armada de Pedro Alvares Cabral
e navegou na capitania com o comandante e Aires Correia. Não parecia
muito interessado em política e navegação, mas sim no comércio. Morreu
no massacre de Calecute, em dezembro de 1500, presumivelmente aos 50
anos de idade.
O único documento que dele conhecemos é a Carta dirigida a D.
Manuel em 1500. Havia sete escrivães na Armada, distribuídos em vários
navios, mas Caminha ocupava posição preeminente, como se vê na sua
própria Carta. Greenlee aventa a hipótese de que, tendo sido mandado de-
sembarcar por Cabral, junto com Nicolau Coelho, indica sua escolha para
escrever a relação da estada no Brasil.
A preservação da Carta, um dos sete únicos documentos que foram
conservados sobre a viagem, é devida ao fato de não tratar da navegação
à lndia. Caminha não falou uma vez sequer no pau-brasil. A carta come-
çou a ser escrita em forma de Diário desde o dia 26 de abril até 1. 0 de
maio, exceto o dia 29, quando deve ter estado ocupado com Cabral no
navio de mantimentos, que voltaria vazio, levando a carta para dar a
notícia da descoberta.
Ela narra a descoberta, a ancoragem, a primeira visita, o encontro
com os indígenas e a impossibilidade de entendimento em face da barreira
da língua. "A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de
bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma.
Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso
têm tanta inocência como em mostrar o rosto". Desde logo distin-
guiu-se para os contactos "Diogo Dias, almoxarife, que foi de Sacavém,
que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com
sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles
folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita". O
objetivo era amansá-los, mas os índios se esquivavam; faziam troca de
arcos por qualquer coisa e alguns portugueses já "estavam com moças e
mulheres".
Já a 28 de abril, alguns dos índios, cerca de duzentos, misturados
com os portugueses, começaram a ajudar a carregar lenha e a metê-la nos
batéis. Desde então, alguns "bem agazalhados, assim de vianda, como de
cama", outros servindo como pajens e outros ainda ajudando no trabalho,
Caminha sente que a domesticação começa a se revelar com uma semana
de contactos. "Andayam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós
andávamos entre eles".
O desejo de dizer a verdade e só a verdade, sem aformoseá-la ou
afeiá-la, com objetividade e exatidão, é afirmado de início: "Tome Vossa
Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo
que, para alindar nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e
me pareceu" <1 >.
Como primeira crônica oficial ou semi-oficial do nascimento do Bra-
sil, escrita à beira da terra, a Carta é fundamental, rica de reflexões sobre
a gente e seus costumes. Caminha foi o primeiro a ver bem nítida a pos-
sibilidade da cristianização e europeização daquela gente. "Se os degreda-
dos", diz ele, "que aqui hão de ficar, aprenderem bem a sua fala e os
entenderem, não duvido que eles, segundo a Santa intenção de Vossa
Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa Santa fé, à qual praza a
Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa
simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes
quiserem dar" (2).
Ele vira, assim, na cristianização a possibilidade de amansar o indí-
gena, de destruir sua cultura, dissolver sua vida, para integrá-lo nos pro-
cessos europeus. Esta é, talvez, uma das mais penetrantes observações fei-
tas por Caminha nos sete dias que passou em Vera Cruz. Realmente, a
solução do conflito entre o .povo primitivo e o europeu vai ser realizada
primeiro pelo desmoronamento econômico do indígena e depois pela obra

(1) Jaime Cortesão, A Carta de Pero Vaz de Caminha, Rio de Janeiro, Livros de Portugal,
1943, 199.
(2) /d. Idem., 233.
da catequese, especialmente jesuítica. São os degredado;, os náufragos e os
desertores que iniciam a obra pela exploração do trabalho indígena no
comércio do pau-brasil. Mas nem todos. Porque, como observou com muita
perspicácia Capisfrano de Abreu, os primeiros colonos que ficaram no
Brasil subordinaram-se a dois tipos extremos: uns sucumbiram ao meio,
ao ponto de furar lábios e orelhas, matar os prisioneif0s segundo os ritos
e cevar-se em sua carne; é o caso daquele castelhano de que nos fala
Gabriel Soares, encontrado em Pernambuco com os beiços furados como
os Potiguares, entre os quais andava havia muito tempo. Outros insurgiam-
se contra eles e impunham-lhes sua vontade, como o bacharel de Cana-
néia (3). Havia ainda um tipo intermediário. :8 o Caramuru, Diogo Alva-
res, que nem descia ao batoque, nem se alçava no poderio, e conseguia
viver bem com o natural d~ terra e com o europeu. Influía pouco e sofria
pouca influência (4).

O ORIGINAL E AS EDIÇOES DA CARTA


O original da Carta de Pero Vaz de Caminha guarda-se na Torre do Tombo,
em Lisboa. Quem primeiro assinalou sua existência foi José Seabra da Silva e quem
pela primeira vez a publicou foi Manoel Aires do Casal, em 1817 em sua Corogra-
phia Brasilica. Foi depois publicada em 1826, no tomo IV da da Coleção de Notícias
Históricas e Geográficas das Nações Ultramarinas.
Grandes nomes brasileiros procuraram fazer uma edição limpa e crítica da
carta. ~ assim que em 1853 João Francisco Lisboa a publica no seu Jornal de Timon
(Maranhão, 1852-53, 195-216) e nas Obras (Maranhão, 1865, t. II, 428-45). Varnha-
gen, na RIHGB, 1877, vol. 55, João Ribeiro no Fabordão (Rio de Janeiro, 1910).
Ao lado dessas edições brasileiras, deve-se lembrar, entre as portuguesas, depois
daquela de 1826, a de 1892, feita sob a responsabilidade de José Ramós Coelho,
publicada em Alguns documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo acer-
ca das navegações e conquistas portuguesas (Lisboa, 1892), a edição de Carolina
Michaelis, no vol. 2 da História da Colonização Portuguesa no Brasil, editada por
Malheiros Dias (Porto, 1923, 86-89), e a de Antônio Baião, no volume Os sete únicos
documentos de 1500 conservados em Lisboa referentes à viagem de Pedro Alvares
Cabral (Lisboa, 1940).
A Carta foi traduzida em diversas línguas, desde 1821, por Ferdinand Denis,
até 1938 por William Brooks Greenlee. A resenha bibliográfica das várias edições
estrangeiras e nacionais de 1817 a 1877 foi feita por Vale Cabral (ABN, 1878, vol.
IV, 7-14) e depois por Manuel de Sousa Pinto em dois estudos "A Carta de Pero Vaz
de Caminha, edições e IeiturasK, no vol. XI da Revista da Universidade de Coimbra
(1933) e Pero Vaz de Caminha e a Carta do 'achamento' do Brasil (Lisboa, 1934).
Merece citação à parte a edição crítica feita por Jaime Cortesão, A Carta de
Pero Vaz de Caminha, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1943. Os estudos mais
sérios que sobre ela se fizeram são os de Capistrano de Abreu (RIHGB, 1908, t. 71,

(3) Não se apurou até hoje quem era esse' bacharel de Cananéla. Pensou-se em Duarte Peres
e sobretudo em João Ramalho, atribuição esta devida a Cândido Mendes de Almeida. Capistrano
de Abreu não aceitou a,· atribuição, baseado em boa ar-gumentação. A bibliografia sobre João
Ramalho é abundante. Yeia'se a nota II, pp. 114· i 16 de Varnhagen e de Caplstrano de Abreu na
Hlst6rfa Geral do Brasil, 4.• ed. Integral, 1948, vol. i, bem como os estudos de Cândido Mendes,
"Quem era o bacharel de Cananéla" e "João Ramalho, o bacharel de Cananéla precedeu Cristóvão
Colombo na descoberta da América•, ambos na RIHGB, 40, t.• parte, 163-247 e 277-373 respecti-
vamente, e os de Teodoro Sampaio, Pereira Guimarães, Horácio de Carvalho, Campos Andrade
e Ernesto Young, RIHGSP, 1, 1902, e o de Washington Luís, idem, 9, 1904. A Comissão do Ins-
tituto Histórico de São Paulo, tendo como relator Teodoro Sampaio, opinou que João Ramalho
era analfabeto. Teodoro Sampaio aventou a hlpótes; de ser o bacharel Cosme , Fernandes Pessoa.
(4) Caplstrano de Abreu, O Descobrimento do Brasil, edição da Sociedade Caplstrano de
Abreu, Rio de Janeiro, Livraria Brlguiet, 1929, 82'. 83.

3
parte 2.•, 109-122, e O Descobrimento do Brasil, Rio de Janeiro, 1929, reedição, Rio
de Janeiro, 1976), o de Jaime Cortesão acima referido, e o de W. B. Greenlee, onde
também se encontram a melhor biografia de Caminha, os vários documentos e a
resenha bibliográfica postçrior à levantada por Vale Cabral e Manuel de Sousa
Pinto. ·
As biografias anteriores de Francisco Marques de Sousa Viterbo, Pero Vaz de
Caminha e a primeira narrativa do descobrimento do Brasil (Lisboa, 1909) e a de
A. de Magalhães Basto, O Porto e a era dos descobrimentos (Barcelos, 1932), e
"Pero Vaz de Caminha", (in O Primeiro de /aneiro, jornal do Porto, de 16 de agosto
de 1940), ajudaram Greenlee e Cortesão a oferecer informações desconhecidas.

Esses tipos e esses processos de adaptação do europeu à nova terra


são o natural desenvolvimento da fácil assimilação ou da difícil resistência
aos contactos culturais, logo tão bem entrevistas na admirável Carta de
Caminha. Com agudeza e penetração, ele espreita e anota as singularida-
des e semelhanças da terra e da gente: o louvor pela terra, de muito bons
ares, "assim frios e temperados"; o entusiasmo pela gente, "o melhor
fruto que dela se pode tirar será salvá-la".
A poHtica colonial lusitana já transparece na Carta. Um indígena e
seu irmão "foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda,
como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar". A conta que
Caminha prestou ao Rei alongando-se pelo miúdo, com sua Carta, é um .
testemunho inigualável de primeiro contacto entre indígenas e europeus e
da força e capacidade portuguesa de impor aos povos primitivos o estilo
europeu por processos de dissolução e amansamento. Ferdinand Denis
escreveu que "graças ao raro talento de observação de que era dotado
Caminha, graças sobretudo à fácil ingenuidade do seu estilo, o Brasil teve
um historiador no próprio dia do seu descobrimento".
A Carta é uma história por uma testemunha ocular, um participante
que não se incompatibiliza com a objetividade histórica e que ilumina a
obscuridade inicial. ~ pena que se não possa conhecer a emoção, os senti-
mentos e a vida inicial daqueles dois grumetes fugidos e dos dois degreda-
dos deixados chorando entre os índios, para lhes aprender a língua, ensinar
a fé e domesticá-los. Esta página branca da História do Brasil impede-nos
um conhecimento precioso. ·

AUTENTICIDADE DA CARTA

Em 1897, um historiador argentino, Luiz F. Domingues ("Primeros


Descubrimientos en el Nuevo Mundo", La Biblioteca, julho, 1897, 75-
93), levantou suspeitas sobre a autenticidade da Carta. Eram dúvidas que
.Capistrano de Abreu chamou de aéreas e respondeu magnificamente em
seu estudo O Descobrimento do Brasil (Rio de Janeiro, ed. da Sociedade
Capistrano de Abreu, 1929, 304-306). O documento original existia e
não podia haver qualquer desconfiança quanto aos elementos extrínsecos,
letra e papel do tempo. A argüição principal de Domingues fundava-se
em que a carta continha informações a respeito dos índios que não teria
sido possível colher em tão poucos dias. Capistrano redargüiu acertada-

4
mente que não tinha razão o crítico, porquanto os portugueses daquele
tempo, "familiarizados com as singularidades da costa d'Ãfrica, já inicia-
dos na observação da costa de Malabar, conhecedores dos índios encon-
trados por Colombo e Corte-Real, deviam gozar de uma acuidade etno-
gráfica rara, exatamente porque as diferenças golpeavam logo ao primeiro
encontro".

2 . As Cartas de Américo Vespúcio


Américo Vespúcio (Florença 1454 - Sevilha 1512) foi agente da
casa bancária dos Mediei, em Sevilha, e participou de duas viagens à
América, em 1499-1500 e 1501-1502, a primeira a serviço de Portugal.
Seu nome batizou o novo continente, iniciativa do cosmógrafo Waldsee-
muller, na sua Cosmographiae lntroductio (1507).
Da passagem de Américo Vespúcio pelo Brasil também se colhe al-
guma informação curiosa sobre a terra e a gente que pertencem a esta
fase inicial da historiografia. Não apresentam suas observações o mesmo
valor das contidas na Carta de Caminha, apesar de por aqui ter perma-
necido dez meses, sendo que 27 dias viveu entre indígenas. Não se deve
atribuir a pobreza da notícia deixada à incapacidade de atenção de Ves-
púcio. O problema é outro. É que das cartas de viagens de Vespúcio con-
sideradas autênticas pela crítica moderna, só uma trata do Brasil. f: a
dirigida a Lorenzo di Pier Francesco de Mediei, de Lisboa, 1502.
Nela se louva a terra, agradável, temperada, sadia e muito amena,
tão abundante de árvores, flores, frutas e animais que o piloto-mor se
julgava perto do Paraíso Terrestre. Descreve a casa, a alimentação e os
costumes indígenas. Tudo era comum, não havia propriedade privada, nem
leis, e a promiscuidade sexual era geral. Não conheciam o ferro ou outro
qualquer metal e não sabiam contar o tempo. Guerreiros e cruéis, comiam
carne humana.
A expedição não teve proveito, mas Vespúcio acreditava que a terra
poderia produzir toda espécie de utilidades, devido à maravilhosa natureza.
Para Vespúcio, como antes para Caminha, a terra ainda era de pouca uti-
lidade: pau-brasil e canafístula <5 >.

AS CARTAS E SUA AUTENTICIDADE


Os documentos das viagens de Vespúcio são: 1) Mundus Novus, em forma de
carta latina, dirigida a Lorenzo di Pier Francesco de Mediei, relação de uma presu-
mida terceira viagem, empreendida à costa do Brasil a serviço de Portugal. A l .'
edição é de 1504. Sobre as edições, cf. Alberto Magnaghi, Américo Vespucci, Roma,
1924, vol. 1, p. 51 e seguintes). 2) Lettera di Amerigo Vespucci delle isole nuova-
mente trovate in quattro suai viaggi, datada de Lisboa, 4 de setembro de 1504 e

(5) Na Carta a Caminha, como na de D. Manuel aos Reis de Espanha, diz-se que a terra
servia como pousada. A Carta de Pero Vaz de Caminha, ed. <le Jaime Cortesão, ob. clt., 240. A
carta de Vespúcio aqui referida foi pela primeira vez publicada por Francesco Bartolozzi, Ricerche
istorico-criliche circa alia scoperla d' Amerigo Vespucci con l'aggiunta di una relazioni dei medesimo
fin ora lnedila. Flrenze, 1789. Reproduzida por A. Magnaghl, ob. cit .. vol. 2, 323-333 e por Mar-
condes de Souza, Amerigo Vespucci e suas Viagens, São Paulo, 1949, 271-276.

5
dirigida a Pedro Soderini, conhecida pelo nome de Quattro Viaggi (Cf. Magnaghi,
ob. cit., vol. 1, p. 99 e seguintes). 3) Lettera de 18 (ou 28) de julho de 1500 a
Lorenzo di Pier Francesco de Mediei, de Sevilha, que conta a primeira e segunda
viagens ao serviço de Espanha, descritas como uma só viagem. 4) Lettera a Lorenzo
di Pier Francesco de Mediei, em continuação à carta do Cabo Verde (vide n.º 5), de
Lisboa, dos fins de 1502, contando a expedição de 1501. 5) ~ettera do Cabo Verde,
4 de junho de 1501 a Lorenzo di Pier Francesco de Mediei, contendo a narração da
terceira viagem, na qual Vespúcio encontrou alguns navios da frota de Cabral,
no Cabo Verde.
Das cinco cartas, as duas primeiras, Mundus Novus e Quattro Viaggi, são con-
sideradas pelo Professor Alberto Magnaghi (ob. cit., vol. 1, 3, 34, 43, 51 e seguintes)
e por Marcondes de Sousa, as melhores autoridade,s sobre Vespúcio, como forjadas.
Esta opinião, partilhada por vários estudiosos no mundo, vem contradizer o parecer
longamente sustentado por Vamhagen, que editou na RIHGB exatamente as duas
cartas "Mundus Novus" e "Quattro Viaggi" (t. 41, parte 1.ª, 1878, 5-31) (6). Como
escreveu Magnaghi, Vamhagen deixou-se guiar por um preconceito fundamental: as
cartas publicad.as em vida do autor seriam autênticas, porque ele nunca as contestou,
e as outras três, publicadas dois ou três séculos depois de sua morte, sem original,
seriam forjadas (7). :É preciso lembrar que delas existem cópias manuscritas. O fato
é que a obra e as conclusões de Varnhagen tiveram tal influência (8), que a Raccol-
ta Colombiana, monumento de erudição, editou exatamente as duas cartas "Mundus
Novus" e "Lettera a Soderini", hoje consideradas forjadas.
Das três cartas restantes, únicas consideradas autênticas (9), a primeira, de 18
de julho de 1500, diz respeito à viagem com Pinzón, em dezembro de 1499 (10).
Não tem, portanto, quase nenhum interesse para nós, já que pouco se refere à
terra e à gente, embora seja valiosa para a história da alegada prioridade espanhola.
Foi publicada pela primeira vez por Ângelo Maria Bandini (Vita e lettere di Amerigo
Vespucci, Florença, 1745, 64-86). A segunda, de 4 de junho de 1501, publicada pela
primeira vez por G. B. Baldelli-Boni (1l millione di Marco Polo, Florença, 1827),
relata o encontro em Bezeguiche com dois navios da frota de Cabral, o Anunciada
e o navio de Diogo Dias (11). A referência ao Brasil também é de pouca significação
para o nosso objetivo. Resta, po11anto, a terceira carta, de Lisboa, 1502, relativa à
viagem empreendida ao Brasil em 1501. No encontro no Cabo Verde já estava
Vespúcio a caminho do Brasil. Ele havia deixado Lisboa no 13 de maio (Magnaghi,
ob. cit., t. 2, 171). O objetivo era reconhecer a terra de Cabral e procurar um cami-
nho S.O. para as Molucas. Vespúcio retorna aos 22 de julho de 1502. São desta
viagem as observações que transcrevemos. A expedição era dirigida por D. Nuno
Manuel (Varnhagen, História Geral, vol. t, 93) ou por André Gonçalves (Vamha-
gen, História Geral, vol. 1, 114 e Capistrano de Abreu, Descobrimento do Brasil, 71),
ou por Gaspar de Lemos (Greenlee, The voyage of P. A. Cabral, p. XX; e Alberto

(6) Os melhores estudos sobre Américo Vespúclo, suas viagens e cartas são: Alberto Magnaghl,
Amerlgo Vespuccl, Roma, 1924, 2 vols.; F. J. Pohl. Amerlgo Vespuccl, New York, Columbla
Unlv. Press., 2.• ed., 194S; T. O. Marcondes de Sousa, Amerlgo Vespuccl e suas viagens, São
Paulo, 1945; ed. revista e ampliada, São Paulo, 1954.
(7) Magnaghl, ob. clt., vol. 1, 41-43 e 115. Cf. G. Berchet, Fontl Italianl per la Storla
de/la scoperta dei Nuovo Mundo. Roma, 1894, pp. 11·150, textos latino e Italiano. Rodolfo Garcia
cita a edição da carta de Soderlnl feita pelo Prof. G. T. Northrup (Letter to Plero Soderlnl,
Prlnceton. N. Y., 1915), sem tomar conhecimento de que este a considerava falsa. Cf. Vamhagen,
História Geral, vol. 1, 89, nota X.
(8) As obras que Varnhagen escreveu sobre Américo Vespúcio encontram-se arroladas por
Armando Ortega Fontes, Bibliografia de Varnhagen, Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exte-
riores, 1945.
(9) 11 Interessante lembrar que estas três foram consideradas por Varnhagen como forjadas.
Cf. RIHGB, t. 41, li, e também Magnaghl, t. 2, p. 115.
(10) A disputa sobre esta primeira viagem não está de todo decidida. Para Vamhagen,
a primeira viagem teria se realizado em 1497.
(11) Varnhagen editou-a também, in Amerigo Vespuccl, Lima, 1865, 78, 82, o mesmo
fazendo William Brooks Greenlee, The voyage of Pedro Alvares Cabral to Brazil and Indla,
London, Hakluyt Society, 1938, 151-161. Admite-se ser o porto de Bezeguiche o da Ilha Goréla,
porém modernamente sua identificação com Dakar tem maior número de adeptos. Vide HCPB,
2 vols., 177, nota 12.

6
Lamego, "Quem foi ó comandante do navio que levou ao Rei de Portugal a notícia
do descobrimento do Brasil", Jornal do Comércio, 8 de junho de 1941). Atingido o
Cabo de S. Roque, navegaram para o sul, até S. Vicente. (Varnhagen, História Ge-
ral, vol. 1, 93-94). Há, ainda, uma suposta terceira viagem ou quarta, segundo Var-
nhagen, que teria partido de Lisboa, em meados de 1503, e nela, sob o comando de
Gonçalo Coelho (Varnhagen, História Geral, t. l, 96-97), Vespúcio teria alcançado
Cabo Frio, onde fundara uma feitoria. Como critica Magnaghi, não há documento
algum que prove esta viagem e os historiadores portugueses e brasileiros baseiam-se
sempre na Carta a Soderini, que ficou provado não ser autêntica. (Magnaghi, ob. cit.,
vol. 2, 227 e 234.)

3. A Relação do Piloto Anônimo


Afora os documentos de Caminha e Vespúcio, fazem parte desta li-
teratura de viagem, dest~ pré-historiografia, a Relação do Piloto Anônimo
e algumas outras cartas da época.
A Relação do Piloto Anônimo é um documento fiel, muito inferior à
Carta de Caminha. Suas observações sobre a terra, a gente e os seus cos-
tumes são apressadas e rápidas. Declara que ninguém entendia a língua,
o que não impediu Caminha de fazer e anotar uma infinita variedade de
observações. Não sabiam que gente era essa, que os imitava, como na
missa, que negociou arcos e flexas por guizos e folhas de papel, pedaços
de pano ou papagaios e mandioca. Eram pardos, os homens com a pele
raspada, e as mulheres com os cabelos longos. A terra era grande, abun-
dante de árvores, com boa água, mandioca e algodão. Não havia animais.
O ar era bom, os homens tinham redes e eram grandes pescadores. Foram
deixados dois homens degredados que começaram a chorar quando a es-
quadra iniciou a partida e foram consolados pelos homens da terra.
A carta que Giovanni Matteo Cretico escreveu aos 27 de julho de
1501 de Lisboa para Veneza, tratando da descoberta da nova terra, pela
primeira vez chamada de terra de papagaios <1 2 >, é, como a Relação do Pi-
loto Anônimo, muito inferior à Carta de Caminha.

O TEXTO E AS EDIÇÕES
Existem quatro manuscritos da Relação do Piloto Anônimo. Um deles, com as
cartas de Ângelo Trevisan, encontra-se na Sneyd Collection, em Newcastle-on-Tyne.
Dois outros manuscritos reunidos num mesmo códice e conhecidos como Contarini
A e B, e outro em forma condensada, encontram-se na Biblioteca Marciana. De todos
os manuscritos, o Sneyd parece ser o mais velho. A primeira edição da Relação foi
publicada nos Paesi nouamente retrouati et Novo Mondo da Alberico Vesputio
Florentino intitulato, 1507. Existe uma excelente reprodução fac-similar feita pela
Princeton Uníversity Press, 1916. Boa edição, confrontada com os originais, é a de
William Brooks Greenlee, ob. cit., 53-94. A primeira tradução portuguesa, ("Relação
anônima de um piloto português da esquadra de Cabral"), foi publicada na CNHGNU,
t. 2 e 3, 107-139, e não merece confiança, pois é baseada na retradução de G. B.

(12) A carta é dirigida por Domênlco Plsanl ao doge veneziano, mas transcreve a carta
de Cretlco. Foi esta publicada pela primeira vez nos Paesl nouamente retrouatl Et Novo Mondo
da Alberlco Vespuclo Florentino lntltulato (Vlcenzla, 1507) e nas subsequentes edições e tradu-
ções. Várias edições encontram-se relacionadas em Greenlee, ob. clt., p. 116. O texto Italiano
encontra-se em Berchet, ob. cll., parte Ill, vol. 1, pp. 43-45. Boa tradução, segundo o texto
dos Paesl, comparada com o, originais manuacritos, encontra-se cm Greenlee. ob. clt., 119-123.

y
Ramusio. Boa edição italiana é a de G. Berchet, Fonti italiani per la storia della
scoperta dei Nuovo Mundo, Roma, 1892, parte III, vol. 1, 83-87. Há também a
edição impressa na HCPB, vol. 2, 113-117, reproduzida da edição de CNHGNU.
Marcondes de Sousa oferece duas traduções: a primeira baseada na primeira edição
dos Paesi, exemplar da Biblioteca Nacional (0 Descobrimento do Brasil, Rio de Ja-
neiro, 1946, 168-74) e a outra da segunda edição dos Paesi (1508), ob. cit., 302-330.

A AUTORIA
A autoria da obra é assunto ainda não resolvido. Não há dúvida, diz Greenlee,
que seja um português, de educação e inteligência acima do· comum. Deve ter sido
um dos tripulantes da frota, declara a HCPB. Berchet não chegou a nenhuma con-
' clusão definitiva a respeito. O que se sabe é que o cronista de Veneza, Domenico
Malipiero, interessado nas navegações e descobertas portuguesas, pedira a seu ex-
secretário Ângelo Trevisan, então auxiliar do Embaixador de Veneza em Espanha,
Domenico Pisani, que procurasse obter informações especialmente sobre a viagem
de Cabral. Pela correspondência trocada entre Trevisan e Malipiero, publicada na
Racco/ta Colombiana e citada no estudo de Berchet, vê-se que Giovanni Camerino,
também chamado Giovanni Matteo Cretico, núncio em Lisboa (Cretico porque passara
vários anos na ilha de Creta), fazia "una opereta" ou compunha "un tractato".
Esta é a base da crença que Cretico teria compilado, ou ao menos traduzido, a
narrativa anônima que foi enviada a Malipiero e da qual existe uma cópia entre as
cartas deste, hoje na coleção Sneyd. Pensa Greenlee que talvez João de Sá seja o
autor (ob. cit., 55).
Os principais argumentos contra a autoria de Cretico são: 1) é incerto que ele
soubesse o português; 2) o estilo da narrativa não se coaduna com o de um professor
de grego e não contém expressões latinas, que poderíamos esperar fossem usadas
por Cretico, ex-professor de retórica grega em Pádua e considerado homem de grande
saber em grego e latim (Greenlee, ob. cit., 54 e 114, n.º 2).
Substancialmente, a Relação Anônima é um documento fidedigno,
que se coloca, no tocante à Descoberta do Brasil, logo abaixo da Carta de
Caminha e de Mestre João.

4. O Livro da Nau Bretoa e a Nova Gazeta


da Terra do Brasil (1514)
O Livro da Nau Bretoa, de 1511 <1 a,, · e a Nova Gazeta da Terra
do Brasil, de 1514 <14 l, são também documentos importantes da primitiva
(13) O Livro da Nau Bretoa, encontrado na Torre do Tombo, foi publicado pela primeira
vez por Vamhagen, na t.• edição da História Geral, (nota 13, pp. 427-32), e depois reproduzido
na 4.• ed. do Diário da Navegação de Pero Lopes (Rio de Janeiro, 1868), na Corografla Histórica,
de Melo Moraes, (Rio de Janeiro, Tip. Americana, 1858-60), e na RIHGB t. 24, 1861, pp. 96-111.
Mais recentemente, na HCPB, t. 2, pp. 343-347, onde se encontram várias notícias sobre a
Nau e seus armadores.
(14) Da cópia de Newen Zeltung aus Preslllg Landt conhecem-se três edições: a t.• não
traz lugar e data; a 2.• foi Impressa em Augsburgo, por Erhart Oglln, e a 3.• é uma contrafração
da 2.•, com erros tipográficos. Em 1895, Konrad Haebler descobriu um original manuscrito no
Arquivo dos Fugger, em Augsburgo. Boa descrição bibliográfica encontra-se em José Carlos Rodri-
gues, BB, 179-183. A melhor edição crítica é a de Clemente Brandenburger, a Nova Gazeta da
Terra do Brasil, São Paulo, Livraria Edanee, 1922. Na HCPB, t. 2, 365-372, encontra-se em fac•
símile a primeira página e um resumo das várias opiniões sobre a Gazeta. Existe ainda uma edição
da Editora Record (Rio de Janeiro. s.d.), traduzida por C. Brandenburger, nota etnográfica de J.
Ribeiro, bibliografia de R. Schüller e notas críticas de F. M. Esteves Ribeiro. A obra é extre-
mamente rara, só existindo t I exemplares: um em Leipzig, um em Dresden, dois em Munique,
um em Nuremberg, dois em Nova Iorque, um em Providence, R. 1. (EUA), um em Paris e
outro na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, esta provinda da coleção de José Carlos Rodri-
gues. Ernesto Feder, num artigo, "Chegou da Terra do Brasil um Navio" (Diário de Noticias, 7
de janeiro de 1951), anunciou a existência de outro exemplar trazido pelo jornalista Frank Amau,
cujo destino atual desconheço.

·s
crônica. As viagens de exploração e comércio, realizadas pouco depois da
descoberta da terra, reconhecem novos trechos da costa e iniciam o tráfico
do pau-brasil. O Livro da Nau Bretoa é escrito pela mão de Duarte Fer-
nandes e registra a carga conduzida e as condições de resgate e troca admi-
tidas pelo Rei.
O Livro descreve a viagem desde a partida de Lisboa aos 22 de
fevereiro de 1511 até a chegada aos 6 de abril no Rio São Francisco, se-
guindo depois para a Bahia de Todos os Santos, e logo para Cabo Frio, de
onde retomaram. O livro contém o Regimento do Capitão, o Regimento
Geral, os nomes do capitão Cristovam Pires, do escrivão Duarte Fernandes,
autor, Fernando Vaz, mestre, e João Lopes de Carvalho, piloto; seguem-
se os nomes dos marinheiros, dos grumetes, dos escravos, o livro dos gatos
( maracajás) e papagaios, livro da ferramenta que se furtou na Bahia. :E: o
primeiro espécime de um documento deste tipo nos Quinhentos .. :E:_ uma
viagem comercial e apesar da recomendação de não trazer gente da terra,
levaram para Portugal trinta e tantos índios cativos, afora cinco mil toros
de pau-brasil, animais e pássaros.
A Nova Gazeta da Terra do Brasil é um precioso documento, o
primeiro em língua alemã sobre o Brasil, que relata a viagem portuguesa
de D. Nuno Manuel em 1514 e tem enorme interesse para a história pri-
mitiva, a geografia e a etnografia do Brasil. Pelas primeiras palavras da
Gazeta, palavra que nesta época tem o sentido de notícia ou relação, "Sa-
bei que aos 12 de outubro de 1514 chegou aqui da terra do Brasil um
navio", se infere que deve ter sido escrito na Ilha da Madeira, por
um agente alemão de alguma casa comercial alemã ali mantida para nego-
ciar com os novos países descobertos.

5 . Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa


A biografia de Pero Lopes de Sousa foi traçada por Varnhagen
(RIHGB, t. 5, 353-354, e t. 6, 118-122) e sumariada por Eugênio de
Castro na edição de seu Diário. Desconhece-se a data de seu nascimento
e os dias de sua infância. Foi navegador experimentado, capitaneou ar-
madas e combateu corsários. Morreu moço, no mar, em 1542, de volta
da fndia, chefiando expedição.
O Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim
Afonso, que o acompanhou durante a sua expedição ao Brasil, em 1530-
32, é também uma fonte de grande importância. Trata-se de uma relação
ou narrativa baseada num diário de bordo, contendo excelentes informa-
ções geográficas e históricas. Do ponto de vista geográfico, o Diário nos
dá o contorno da costa brasileira, a toponímia mais conhecida, o reconhe-
cimento, reconquista ou descobrimento de ilhas, cabos ou pontas, sonda-
gem de certos lugares, observações próprias sobre correntes marinhas,
cursos de ventos, detalhes técnicos importantes para os antigos navega-
dores.

9
Do ponto de vista puramente histórico, como acentuou Varnhagen,
quando o reimprimiu em 1861, o seu simples aparecimento rasgou, de um
jato, páginas e páginas de intermináveis conjecturas de Frei Gaspar da Ma-
dre de Deus e de Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão e aboliu dúvidas
acerca da existência de Caramuru. Nenhum outro documento lançou mais
luz sobre várias questões intrincadas da primeira época da nossa história,
porque serviu para esclarecer um período de vinte anos, quando a Carta
de Pero Vaz de Caminha era apenas a revelação do que se passara durante
dias.
Do ponto de vista etnográfico, o Diário revela uma vez ou outra
contribuições interessantes sobre o aborígene brasileiro, tanto da Costa do
Pau-brasil como da costa do Prata.

A CRITICA DO TEXTO
Para a primeira edição examinou Varnhagen três cópias, decidindo-se, depois
de várias hesitações, pela que possuía, pondo de lado a pertencente ao Bispo Conde
D. Francisco de S. Luís e a da Biblioteca da Ajuda (15). Foi somente na 3~· edição,
já que a segunda foi feita sem sua consulta, que Varnhagen se cingiu à cópia da
Ajuda, considerada como original. As outras edições seguiram o texto da terceira,
feitos certos confrontos com o original. Coube a Jordão de Freitas fazer excelente
crítica do texto usado na primeira edição e mostrar que o códice da Ajuda, usado na
terceira, não era original, mas apógrafo (16>.

AS VARIAS EDIÇÕES
Para a primeira edição, serviu-se Varnhagen de três cópias, as únicas de cuja
existência teve conhecimento. Na advertência preliminar à primeira edição, descreve
Varnhagen minuciosamente os três códices encontrados e explica as principais regras
que seguiu para a sua edição.
A obra foi publicada sob o título de Diário da Navegação da armada que foi
à Terra do Brasil em 1530 sob a capitania-mor de Martim Affonso de Souza, escrito
por seu irmão Pero Lopes de Souza. Publicado por Francisco Adolfo de Varnhagen.
Lisboa, Tip. da Sociedade Propagadora de Conhecimentos úteis, 1839. Esta edição
é precedida de uma biografia de Martim Afonso de Souza, de uma notícia do autor
e da advertência crítica a que já nos referimos. E também recheada de excelentes
notas de Varnhagen. A 2.ª edição foi feita em São Paulo, em 1847. A 3.ª edição é
de 1861, na RIHGB, t. 24, 1861, 9-103. E precedida de uma carta acerca da reim-
pressão do Diário, na qual Varnhagen critica a 2.ª edição, feita em São Paulo, e
queixa-se de que não fora avisado desta publicação, quando, desde a advertência
à primeira edição, pedira que o futuro editor de outra lhe comunicasse esta resolução,
de vez que ele poderia ter, porventura, algumas retificações. juízos ou observações
a fazer que, se lhe não trouxessem bem, decerto nunca poderiam fazer-lhe mal.
Quanto à terceira edição, diz Varnhagen na mesma carta, que longe de repetir
a primeira, reproduzida servilmente na segunda, cumpria-lhe primeiro cingir-se mais
no texto ao códice original da Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, e em seguida eliminar
não só muitas notas como as biografias dos dois navegantes irmãos, que já haviam
sido publicadas na RIHGB.
A 4.ª edição foi também feita por Varnhagen, sob o título de Diário da nave-
gação de Pero Lopes de Sousa pela costa do Brasil até o Rio Uruguay (de 1530 a
(15) Sobre Isto, cf. José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, São Paulo,
Companhia Editora Nacional, 4.• ed., 1978, 394-396.
(16) Jordão de Freitas, "A expedição de Martim Afonso de Souza", HCPB, t. 3, 97-164. Tanto
Jordão de Freitas como Eugênio de Castro (5.• ed. do Diário, S. Paulo, 1927) disseram que Var-
nhagen, na I .• edição, seguiu o códice da Ajuda, quando ele claramente afirma ter seguido a
cópia que possufa. Cf. José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, ob. clt .. 607, nota 50.

10
1532), Rio de Janeiro, tip. de D. L. dos Santos, 1867, precedida de noticioso prólogo,
conforme lhe chamou. Publicam-se juntos outros documentos e notas e o "Livro da
Nau Bretoa ao Cabo Frio (em 1511) por Duarte Fernandes". ·
A 5.ª edição apareceu em 1927, na série Eduardo Prado, comentada por Eugênio
de Castro.
A 6.ª edição, finalmente, foi uma reedição da 5.ª, feita em comemoração aos
~ çentenários de Portugal, em 1940.
' Eugênio de Castro realizou nessa obra uma das mais eruditas edições críticas
jamais publicadas no Brasil. Assim, a 5." e 6.ª edições devem ser consideradas como
definitivas. Eugênio de Castro serviu-se do texto da 3." e da 4." edições, anotando-o
por completo e juntando numerosos mapas gravados na Imprensa Militar.
Capistrano de Abreu foi quem indicou a Afrânio Peixoto o nome de Eugênio
de Castro, oficial de marinha, quando aquele estava dirigindo a coleção de estudos
brasileiros. "Foi bom para o Diário, porque o meu amigo aplicou-se à parte técnica
e dará, um livro como não temos igual" (17). Em 1925 estava o trabalho terminado,
aguardando apenas que Jordão de Freitas concluísse seu estudo (18). Se Jordão
separar os Pero Lopes enumerados por Frei Luís de Sousa terá feito obra de va-
queano", escrevia Capistrano de Abreu (19). Eugênio de Castro ocupava-se com o
Diário desde 1923, estudando as manobras, rumos e sondagens (20).

6. Narração de Cabeza de Vaca


Alvar Nuiíez Cabeza de Vaca, descobridor, governador e aventureiro
(Jerez 1500 - Sevilha 1560), era homem de família aristocrática. Tendo
participado da desastrada expedição à Flórida (1527-1536), foi um dos
quatro sobreviventes dos quatrocentos homens que a compunham. Sua
Relação da expedição (1542) criou na Espanha a noção da riqueza do
Novo México. Retornou à Espanha em 1537 e em dezembro de 1540
partiu para Cádiz, desembarcando na ilha de Santa Catarina em março de
1541. Seguiu por terra até Assunção do Paraguai em março de 1542.
Cabeza de Vaca vinha como adelantado ou governador da Província
do Rio da Prata. Foi destituído e aprisionado em conseqüência de um
motim, durante um ano. Em março de 1545 foi enviado à Espanha, pro-
cessado, condenado, desterrado para Oran, indultado e nomeado juiz em
Sevilha, onde terminou seus dias.
Os Comentários de Alvar Nuiíez Cabeza de Vaca, escritos por Pero
Hemandez e publicados em Valladolid em 1555, a Narración general que
Alvar Nuiíez Cabeza de Vaca hizo ai Consejo de las lndias em 1552 e a
Relación de las cosas sucedidas en el Rio de la Plata, composta em 1545,
recordam a viagem através das selvas do Brasil, as peripécias e os sucessos
de sua govemança, atribulada por desordens que culminaram na sua prisão
aos 25 de abril de 1544 .e seu retomo J1os 24 de abril de 1545.

(17) Carta de Capistrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo, de 10 de fevereiro de 1925.


Correspondência de Caplstrano de Abreu, edição organizada por José Honório Rodrigues, Rio de
Janeiro, 1954, vol. 2, 320, 2.• ed., 1977, ld., id ..
(18) Correspondência de Caplstrano de Abreu, ob. clt., carta c.ltada. o· estudo de Jordão
de Freitas é o já citado. ·· '
(19) Correspondência, ob. cit., vol. 2, 315. Carta de 10 de fevereiro de 1925, de Caplstrano
de Abreu a João Lúcio de Azevedo.
(20) Carta de Caplstrano de Abreu a João Lúcio de Azevedo, de 17 de janeiro de 1925.
O livro estava pronto em outubro de 1927 e Caplstrano observa que certas descaídas se davam
quando o editor abordava cousas estranhas à sua profissão. Vide na mesma Correspondência, db. clt.,
as cartas' de Caplstrano de 16 de abril, 30 de maio e 17 de outubro de 1927, a João Lúcio de
Azevedo.

11
Para o Brasil interessa especialmente a viagem efetuada entre 1541
e 1542, desde as praias de Santa Catarina até o interior do Paraguai. Os
estudiosos da expansão territorial, da conquista e do povoamento, das
origens das primeiras bandeira~. encontram neste relato muita informação
preciosa.
Mais importante foi ainda a reconstituição deste percurso para prova
do título brasileiro ao território de Palmas, disputado à República Argen-
tina. Rio Branco esclareceu definitivamente a questão, ao traçar o exato
caminho seguido pela autoridade espanhola em território brasileiro. Este
caminho figurava em Atlas argentinos, ora pela margem setentrional do
Iguaçu, ora representado pela margem meridional, passando pelo território
então em litígio.
Percorrendo os capítulos VI e XI dos Comentários, diz Rio Branco,
vê-se que a expedição partindo do rio ltabucu, hoje Itapucu, no litoral de
Santa Catarina, subiu a cadeia marítima chamada Serra do Mar, entrou
pelos campos do planalto de Curitiba, passou da margem esquerda para
a direita do Iguaçu, atravessou o Tibagi e continuou pela margem esquerda
deste afluente do Paranapanema no rumo N.N.O. Depois atravessou outros
rios no rumo do sul, paralelamente ao curso deste último rio, alcançou a
margem direita do Iguaçu, logo acima do seu Salto Grande. Desceu então
o Iguaçu até a sua confluência no Paraná, transpôs este rio e prosseguiu
através do Paraguai (21 l.
A expedição espanhola de 1541, acrescenta Rio Branco, não avistou
sequer o território de Palmas, e nos próprios comentários encontra-se men-
ção dos Portugueses que dez anos antes por ali haviam passado, descendo
o Igúaçu, quando, a mandado de Martim Afonso de Sousa, iam ao desco-
brimento do Interior (22).
Deste modo, o território a leste do rio Pequiri ou Pepiri, depois Pe-
peri Guaçu, foi descoberto por paulistas e não por Cabeza de Vaca. O certo
é que o Governo espanhol transmitiu dez anos depois a notícia de que
Francisco Chaves e seus companheiros, que de Cananéia haviam seguido
em direção do Paraguai, haviam sido trucidados pelos indios nas margens
do Iguaçu <23 >.

AS EDIÇÕES
A primeira edição.. da Relación e dos Comentarios, sob o título La Relacíón y
Comentaríos dei Governador Alvar Nuiíez Cabeza de Vaca, é de Valladolid, por
Francisco Fernandez de Cordova, 1555 (Vide descrição em José Carlos Rodrigues,
Catálogo de livros sot,re o Brasil, Rio de Janeiro, 1907, n.º 483, e Maggs Bros, Bi·
bliotheca Brasiliense, Londres, s.d., n.º 39. A Biblioteca Nacional possui um exemplar
desta raríssima edição). Há uma tradução francesa por H. Ternaux Compans, Paris,
1837 (Vide José Carlos Rodrigues, ob. cit., n.° 484), uma tradução inglesa por Luis

(21) Rio Branco, Exposição que os Estados Unidos do Brasil apresentaram ao Presidente dos
Estados Unidos da América como Arbitro, New York, 1894, vol. 11, 223, e o Itinerário de Cabeza
de Vaca, ln vol. V, Mapa n.0 31, da edição das Obras do Barão do Rio Branco, Questões de
Limites, Rio de Janeiro, Ministério das Relações Exteriores, 1945, 199.
(22) Rio Branco, Exposição, ob. clt., p. 225 e ed. 1945, 200-201.
(23) Comentérlo, J.• ed., foi. LVlll verso, e Madrid, 1906, 185.

12
L. Dominguez, Hakluyt Society, l.' série, vol. 81, 1891, e uma tradução portuguesa,
segundo a francesa, por Tristão de Alencar Araripe (RIHGB, t. 56, 1883, 193-344). Esta
tradução não se recomenda, não só pelo texto que lhe serviu de base, como pela
ortografia própria do tradutor. Boa edição é a da Collección de libras y documentos
referentes a la historia de Ametica. Relación de los Naufragios y Commentarios de
A. N. Cabeza de Vaca. Madri. 1906, t. V e VI, feita de acordo com a primeira edi-
ção.

7 . Viagem de Ulrico Schmidel


O relato da viagem empreendida por Ulrico Schmidel (Straubing
1510 - Ratisbona ?) <24 > aos 26 de dezembro de 1552 de Assunção a
São Vicente, onde chegou a 13 de junho de 1553, representa para a his-
toriografia brasileira um documento de extraordinârio significado pela
revelação do caminho seguido e das peripécias sucedidas. Ele completa
a visão do quadro da penetração e comunicação interior, que então jâ se
fazia entre o Brasil e o Paraguai <25 >.
Ulrico Schmidel esteve em Piratininga, onde dominava João Rama-
lho <2 6J, e depois em São Vicente, jâ entregue à faina açucareira com o
engenho dos Schetz <2 1>. Gastara seis meses na viagem e permanecera onze
dias em São Vicente, partindo aos 24 de junho de 1553, com destino a
Lisboa.
Chegado a Buenos Aires com o Governador Pedro Mendonza, em
1553, Ulrico Schmidel fora um dos seus fundadores e explorara ativamente
o território paraguaio.
Para o conhecimento da conquista e ocupação espanhola daqueles
territórios, sua obra é das primeiras, na procedência e no valor da con-
tribuição. Objetivo, imparcial, espontâneo, narra seca e concisamente os
fatos. Para o conhecimento de enorme trecho do território brasileiro do
século XVI, ainda pouco desbravado, e de comunidades ainda primitivas,
o relato de Schmidel tem, também, um valor documental extraordinário.

AS EDIÇÕES
A obra de Schmidel foi primeiramente editada em 1567, por Sebast. Franck
von Word. :e uma edição raríssima (28). Conhecem-se várias traduções em latim,
inglês, holandês, espanhol e francês. A edição francesa é a da coleção de Ternaux
Compans, Voyages, Relations et Mémoires, t. V; a edição inglesa é excelente: faz
parte da l.ª série das Publicações da Hakluyt Society, sob o título The conquest of
La Plata, 1535-1555, l. Voyage of Ulrich Schmidt to the Rivers La Plata and Para-
guay, tradução com notas e introdução de H. E. Don Luis L. Dominguez, 1889. As

(24) A biografia de Schmldel encontra-se ln J. O. Mondeschelm, Ulrlco Schmldel von Strau-


blng und seine Relsebeschrelbung, 1881; Enrlque Arana, Boletln dei Instituto de Jnvestlgaclones His-
torias de la Universldad de Buenos Aires, t. XII, 193, e seguintes: João Coelho Gomes Ribeiro,
"Ulrlch Schmldel, Notícia biográfica", R/HGSP, 1905, vol. X, 29-38.
(25) Cf. sobre isto, Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral, t. I, 324-325, e W. Kloster
e F. Sommer, Ulrlco Schmidel no Brasil Quinhentista, publicação da Sociedade Hans Staden, São
Paulo, 1942.
(26) Afonso Taunay serviu-se dos relatos de Schmldel para escrever Na Era das Bandeiras,
São Paulo, Companhia Melhoramentos, 1922.
(27) Sobre este engenho, cf. Alcibíades Furtado, " Os Schetz na capitania de São Vicente",
PAN, 1914, vol. XIV.
(28) Veja-se a descrição da 1.• e 2.• edições e das edições em coleções de viagens na edição
Mitre, 6-13.

13
edições mais recomendadas são as da Junta de Historia y Numismática Americana,
t. I, sob o título Viaje de Ulrich Schmidel al Rio de la Plata, 1534-1535, 1903, tra-
dução e anotações por Samuel A. Lafone Quevedo, notas bibliográficas e biográ-
ficas de Bartolomé Mitre, e a do Instituto Social (Universidad Nacional dei Litoral),
sob o título Derrotero y Viaje a Espaíia y las Indias, traduzida e comentada por
Edmundo Wernicke, Santa Fé, 1938).

8. Aventuras de Hans Staden


Hans Staden (c. 1520-?) é um admirável aventureiro da Hessia, dis-
posto a enfrentar as mais ousadas aventuras para conhecer o novo mundo.
Engajado num navio português que comerciava pau-brasil, como artilheiro,
vem pela primeira vez ao Brasil em 1547, onde alcança Pernambuco. Ai
participa de lutas contra indígenas na vila de Igaraçu, vai à Paraíba e
volta a Lisboa, em 1548. Depois de passar cerca de um ano naquela ci-
dade, delibera acompanhar os espanhóis em suas víagens, na expedição de
D. Meneia Calderon de Sanabria, que devia fundar dois povoados, um na
costa de Santa Catarina e outro na embocadura do Rio da Prata. Staden
parte da Ilha de Palma a 15 de junho de 15 5O e a 16 de dezembro deste
mesmo ano atinge Santa Catarina. Depois de várias peripécias, alcança
São Vicente, onde se emprega como arcabuzeiro, na ilha de Santo Amaro,
em frente a Bertioga. Aprisionado pelos índios tupinambás, por volta de
janeiro de 1554, permanece entre eles nove meses e meio, libertando-se
em outubro de 1554. Aos 20 de fevereiro de 1555, chega à França, vai
a Londres, à Antuérpia e retorna a sua pátria <2 9l.
O LIVRO

Seu livro, Warhaftige Historia und Beschreibung eyner Landtschafft


Wilden, Nacketen Grimmingen Monsshfresser Leuthen, in der Newenwelt
America gelegen, etc. (Marburg, Andres Kolben, 1557), descreve espe-
cialmente suas aventuras nos nove meses que passou aprisionado entre os
fndios tupinambás, inimigos dos portugueses e aliados dos franceses. Este
livro é, assim, uma página importante da História do Brasil, porque é a
primeira descrição da vida e dos costumes selvagens. Até então nenhum
europeu, cujas reminiscências tenham chegado até nós, convivera entre
indigenas não aliados. O comércio de pau-brasil promovera a primeira
ligação entre indigenas e europeus. Os grupos indígenas em constante hos-
tilidade separaram-se entre aliados dos franceses ou dos portugueses. Mas
nenhum conseguia sobreviver e escrever, quando aprisionado pelo adver-
sário.
Hans Staden, vivendo entre portugueses, conseguiu, com extraordiná-
ria habilidade, fazer-se passar por francês, tal como acontecerá alguns

(29) Os dados biográficos de Hans Staden encontram-se na sua própria obra, na Introdução
de F. A. Carvalho Franco à edição da Sociedade Hans Staden (São Paulo, 1942) e no estudo de
R. Lehmann Nitsche, "Hans Staden arcabucero alemán de la expedlclón Sanabrla ai Rio de La
Piata (1550-1553)·, Bolet/n dei Instituto de lnvestlgaclones Hlstorlcas, ano V, n.• li, Buenos Aires,
Janeiro-março de 1927, 425-460. Algumas retificações a este estudo foram feitas por E. A. Coni,
sob o mesmo título, no mesmo Boletin; 684-688. Veja-se também a contribuição de Helmut Andr6,
"Hans Staden e sua época•, Revista de História, n.• 42, abril-Junho 1960, 289-307.

14
anos mais tarde com Anthony Knivet. Seu livrinho conta tudo o que co-
nheceu e viu, mas especialmente o cativeiro, e, como dele se salvara pela
proteção de Deus, decidira tomar público seu louvor e agradecimento. A
relação do cativeiro é também a descrição ·dos povos indígenas.
Deste modo, a obra de Hans Staden tem sido mais apreciada pelos
etnólogos e tupinólogos do que pelos historiadores. Ele trata de tão dife-
rentes aspectos da cultura tupinambá que seu livro já assume o caráter
de uma monografia tribal.. Refere-se também a várias outras tribos (30).
Mas é preciso considerar que ela é também um documento valioso para a
história das relações e dos contatos culturais dos povos europeus com os
indígenas e da história do comércio do pau-brasil. Quando, por exemplo,
o francês que recomendara aos índios que o comessem volta a Ubatuba
e promete ajudá-lo, ao verificar que ele não era português, diz que estes
"eram celerados tão nefandos que os franceses enforcavam todo aquele
que conseguiam apanhar na província do Brasil". E acrescentou que de-
viam os franceses adaptar-se aos selvagens, tinham que admitir o modo
pelo qual tratavam os seus contrários, pois eram os franceses também os
inimigos jurados dos portugueses (31).
Os conflitos entre os dois povos no Brasil e seus aliados indígenas
rebentaram por toda a costa, numa disputa feroz de caráter econômico.
A Relação de Hans Staden é um testemunho precioso destas invasões dos
entrelopos franceses nos domínios ultramarinos portugueses. Como acen-
tuou Vamhagen, ela nos dá uma clara idéia da freqüência com que visi-
tavam os navios franceses estas paragens, principalmente o Rio de Ja-
neiro <32 >.
AS EDIÇÕES
A obra de Hans Staden teve um sucesso incomum. Suas aventuras e peregri-
nações, o caráter romanesco e legendário, a audácia e coragem do personagem, a
revelação da gente bárbara, nova para o europeu, atraiu a atenção de um público
cada vez mais numeroso. Desde a primeira edição, em 1557 até a edição brasileira
de 1942, foram feitas várias versões em diferentes idiomas, reproduzindo as exce-
lentes xilogravuras da primeira edição (33). A primeira tradução portuguesa foi feita
por T. A. Araripe da tradução francesa de Ternaux Compans (Paris, 1837). ~
uma tradução de tradução, sem notas e em ortografia própria do tradutor. A segunda,
promovida pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, foi feita por Alberto
Lõfgren (34) da segunda edição de Marburgo e com excelentes notas de Teodoro
Sampaio. Monteiro Lobato fez a tradução em texto livre da primeira parte (São
Paulo, J925, 1926 e 1927). A melhor .edição brasileira é a da Sociedade Hans Staden,
segundo a transcrição em alemão moderno de Karl Fouquet (São Paulo, 1941, n.º
3 das Publicações da Sociedade Hans Staden), e em português por Guiomar de
Carvalho Franco, com introdução e noías de Francisco de Assis Carvalho Franco.

(30) H. Baldus, nota crftlca n. 0 2.077, MBEB, 250.


(31) Cf. ed. Sociedade Hans Staden, 11 t.
(32) Varnhagen, História Geral, vol. 1, 357.
(33) Sobre as várias edições, cf. ed. Sociedade Hans Staden, 1942, 19-24, e J. Sabln, A
Dictlonary of Books relating to America, New York, 1932-33, vol. XXIII, 114 e seguintes. Sobre
o Impressor e Ilustrador, cf. F. Somer, "Quem foi o Impressor e quem foi o Ilustrador da edição
primitiva de Hans Staden", RAMSP, 88, 209.
(34) Sobre A. Lõfgren, botânico sueco formado em Upsala e que chegou ao Brasil em 1874,
cf. RIC, t. 25, 129, e t. 32, 191; Rodolfo Garcia, História das Explorações Cientificas, ln DHGB,
t. 2, 209; e Alfredo de Carvalho, Biblioteca Exótico-brasileira, Rio de Janeiro, Pongettl, 1930,
t. 3, 242-243.

15
CAPITULO II

A CONQUISTA DA COSTA LESTE-OESTE


1 . Padre Luís Figueira. 2. Martim Soares Moreno. 3. Dio-
go de Campos Moreno. 4. Manuel de Sousa de Sá e Ale-
xandre de Moura. 5. Pero Rodrigues. 6. Manuel Gomes.

1 . Padre Luís Figueira

Antes de iniciar-se a fornada do Maranhão, processa-se a conquista


de Sergipe e Paraíba, por expedições partidas da Bahia, e a do Rio Grande
do Norte, por expedição organizada de Pernambuco. Sobre esta última
conquista, a primeira "Relação das Cousas do Rio ''Grande, do sítio e dis-
posição de terra" foi escrita em 1607 e atribuída ao ·Padre Gaspar de
Samperes, por Serafim Leite, que a publicou (tl.
Gaspar de Samperes (1551-1635), nascido em Valência, entrou para
a Companhia em 1587 e serviu no Brasil até ser desterrado pelos holande-
ses, falecendo em Cartagena (Colômbia). O padre revela toda sua simpatia
pelo Rio Grande, que parecia capitania melhor que a da Paraíba. "Porque
as várzeas todas servem para engenhos, os campos todos para criação de
gado e neste particular por comum parecer de todos é a melhor terra do
Brasil, porque não tem passo de terra que não aproveite para isso, com
excelentes águas; não faltam tampouco muitos matos para fazer roçarias,
tem os ares muito sãos, e, com estar tão perto da linha, não é muito
quente. Tinha esta capitania quando os da Companhia entraram nela 164
aldeias, mas como este gentio do Brasil facilmente se some entre os por-
tugueses, agora terá como seis mil almas ... "
O avanço para o Norte continua e o primeiro ponto a se reduzir ao
domínio português é o Ceará. Samperes é quem mais tarde vai buscar
Luís Figueira, já na costa, depois do desastre de Ibiapaba, conforme conta
o próprio Figueira. Pero Coelho em 1603-1604 atingiu o Camocim, pene-
trou no sertão e se dirigia· _;ao Parnaíba projetando seguir ao Maranhão
quando se viu obrigado a· retroceder, malogrando sua tentativa, apesar
dos auxílios que voltou a buscar. Foi uma empresa árdua e difícil, rtgis-
trada nos documentos e relatada pelos cronistas, como Frei Vicente.
O mais antigo documento e a mais importante crônica sobre a primi-
tiva história da expansão portuguesa para o Norte e a conquista do Mara-
nhão é a "Relação do Maranhão", escrita pelo padre jesuíta Luís Figueira.

(1) HC/8, 1, 557-559 (texto) e IX, 112 (biografia).

16
Nascido em Almodóvar, em 1574 ou 75, alistou-se na Companhia de
Jesus aos 22 de janeiro de 1592. Em 1602 passou ao Brasil, com o Padre
Francisco Pinto, destinado a anunciar o Evangelho aos tapuias, no Mara-
nhão. Durante vinte anos missionou no sertão, voltando depois a Portugal.
Aos 30 de abril de 1643, acompanhado de 15 religiosos, retornou ao
Brasil, chegando ao Maranhão, então dominado pelos holandeses, a 15
de junho. Dirigiu-se para o Amazonas, onde naufragou, sendo morto pelos
índios na ilha de Marajá a 3 de julho de 1643 (2 ).
A "Relação do Maranhão", datada de 26 de março de 1608 (3 ), foi
dirigida ao Geral Padre Cláudio Aquaviva, e relata a missão que de ordem
de Fernão Cardim, então Provincial, os padres Francisco Pinto e Luís
Figueira ali realizaram, "com intenção de pregar o Evangelho àquela de-
samparada gentilidade e fazer com que se lançasse da parte dos portugue-
ses, deitando de si os franceses corsários que lá residem, para que indo os
portugueses, como determinado, os não avexassem nem cativassem" (4). A
propaganda da fé estava, assim, ligada à propaganda política, que prepa-
raria o terreno para a conquista portuguesa. Para que não houvesse suspeita
de engano, não levaram com eles portugueses, partindo sozinhos por mar
com 60 índios. Depois de descrever o Ceará, que atravessou do Jaguaribe
à serra da lbiapaba e daí, na volta, até um porto que não nomeia, mas
abaixo do rio Ceará, descreve a fertilidade de suas terras, os seus animais,
o sertão, expõe os trabalhos e esforços com que ele e o padre Francisco
Pinto diligenciaram a conversão indígena ao cristianismo e ao domínio
português. As informações sobre os costumes dos indígenas são muito
ricas. A empresa era temerária e Francisco Pinto (5 ) foi martirizado pelos
índios, conseguindo Luís Figueira pôr-se a salvo (6 ).
A Relação foi pela primeira vez publicada pelo Barão de Studart segundo uma
cópia que lhe foi enviada de Limburgo holandês pelo Padre Van Meurs (7), prece-
dida de uma introdução do editor em que se encontram valiosas informações histó·
ricas, biográficas e bibliográficas, que estão a revelar seus enormes conhecimentos das
fontes da história do Ceará (8). Nessa publicação ocorre, a seguir, ainda, uma carta

(2) Barbosa Machado, BL, t. 3. 0 , 94, e Barão de Studart, "Francisco Pinto e Luís Figueira.
O mais antigo documento existente para a história do Ceará", RIC, t. 11, 51-96. O Barão de Studarl
publicou vários documentos sobre o padre Luís Figueira quando era superior da Casa do Maranhão,
depois de expulsos os franceses. Esses documentos dizem respeito às suas atividades em 1638-39 e
foram publicados, entre outros, sob o titulo de "Documentos para a história do Brasil, especialmente
do Ceará" (Coleção Studart), RIC, t. 14, 215-399, vide os documentos 27-34. Sua vida e bibliografia
ln Serafim Leite, Luís Figueira, Agência Geral das Colônias, Lisboa, 1940, HCJB, t. VIII, 234-240.
(3) A Relação inclui fatos posteriores a agosto de 1608, donde conclui o padre Serafim
Leite que "ou não é exato o mês de março ou não é certo o ano de 1608". No texto se observa
que Luís Figueira deixou uma aldeia no rio Ceará a 19 de agosto de 1608.
(4) RIC, t. 14, 97.
(5) Sobre Francisco Pinto, vide Serafim Leite, HCJB, ob. clt. IX, 56-57, a Carta Ãnua de
Gaspar Alvares, ibld. VIII, 11 e Paulino Nogueira Borges da Fonseca, "0 Padre Francisco Pinto
ou a primeira catequese de índios no Ceará", RIC, vol. XVIII, 5-49.
(6) Vide resumo descritivo da viagem in Serafim Leite, HCJB. II, 4· 12.
(7) RIC, t. 11, 97-138 e DHBC, 1608-1625. Fortaleza, 1904 I, 1-42. Na Relação Annual das
Cousas que fizeram os padres da Companhia de fesus . .. , do Pe. Fernão Guerreiro (Lisboa, Pedro
Craesboock, 1609), faz-se um resumo da missão dos padres Francisco Pinto e Luís Figueira. O
trecho em questão foi transcrito pelo Barão de Studart na RIC, t. 16, 249-254, sob o titulo "Da
missão que fizeram o padre Francisco Pinto e o padre Luís Figueira ao rio do Maranhão". Também
a transcreveram Rafael Gallantl, História do Brasil, 2.• ed., São Paulo, 1911, I, 436, 63, e Serafim
Leite (Luís Figueira, HC/B, 107-152), que dá a melhor edição.
(8) RIC, t. 17, 51-96.

17
do Padre Luís Figueira escrita aos 26 de agosto de 1609, da Bahia, onde ele fala
das dificuldades da missão do Maranhão dizendo ser então impossível efetuá-la por
diversas razões, as quais menciona(9).

O Padre Luís Figueira é também autor de um Memorial sobre as ter-


ras e gente do Maranhão, Grão-Pará e Rio Amazonas <10 >. Trata-se de
um valioso e importante documento sobre o Maranhão. Contém excelentes
dados para a história religiosa, econômica e social. A princípio, e como
todos os cronistas de sua época, Luís Figueira louva as grandezas do
Maranhão, dizendo que "as terras são mui férteis e se podem fazer infi-
nitos engenhos de açúcar porque se dão nelas mui formosas canas e a
experiência tem mostrado que as canas do Maranhão rendem dobrado
que as do Brasil". Diz, porém, que faltam homens de posse que façam
fazendas, mas que existem quatro engenhos e muitos principiados, e que
far-se-ão muitos mais se S. Majestade fizesse mercê aos homens que lá
quisessem fazer engenhos, como se fez a Antônio Barreiros. Fala das lar-
guezas da terra e do inumerável gentio desamparado em extrema neces-
sidade espiritual, pedindo que o Maranhão seja provido de um prelado
bispo e que se enviem mulheres portuguesas para o Grão-Pará, onde deve
haver duzentos soldados sem mulheres. Pede 200 padres jesuítas e que o
administrador fosse o Superior da Ordem, com poderes episcopais iguais
aos dos Administradores do Rio de Janeiro.
Esse Memorial foi reimpresso pelo Barão de Studart numa transcrição
entre vários pareceres, inclusive do Conselho de Estado, datados de 1O
de agosto de 1637, sob o título geral de "Sobre um memorial que fez
Luís Figueira religioso da Companhia de Jesus sobre as cousas tocantes
à conquista do Maranhão" <11 >. Num desses pareceres se diz que os jesuí-
tas eram os únicos bons missionários, pois os padres de Santo Antônio e
Carmo não acudiam às suas obrigações ou não se saíam bem porque o
êxito "depende de uma mecânica que só se· acha nos Padres da Compa-
nhia de Jesus" (12).
O Padre Luís Figueira escreveu também uma Relação de vários suces-
sos acontecidos no Maranhão e Gram Pará assim de paz como de guerra,
contra o rebelde Olandes Ingreses & Franceses & outras nações <13 >. Nesta
pequena crônica descreve os esforços dos soldados portugueses que arranca-
vam do solo brasileiro os "hereges franceses, holandeses e ingleses"; conta os
sucessos do governo de Francisco Coelho de Carvalho e a chegada de
Manuel de Sousa de Sá em 1626, as lutas no Pará contra os holandeses

(9) A carta ocorre da p. 138 à 140. Seguem-se vários excertos de diferentes autores, que se
referem à vinda dos padres Jesuítas Francisco Pinto e Luls Figueira ao Ceará, pp, 141-175.
(10) Lisboa, por Mathlas Rodrigues, em 1637.
(11) RIC, t. 20, 324-338; reproduzido, com Introdução por Rodolfo Garcia, "Memorial de
Luls Figueira•, RIHGB, t. 94, 423-442; Serafim Leite (Luls Figueira, ob. clt., 207-11) dá a melhor
edição.
(12) RIC, t. 20, 332. Por essas opiniões exclusivistas e por atiçar os índios e colonos contra
os frades, Luls Figueira é multo criticado por Frei Cristóvão de Lisboa. Vide carta de 2 de
outubro de 1620, ABN, vol. 26, 397.
(13) Lisboa, Mathlas Rodrigues, 1631, sem nome do autor, foi publicado, com incol1'Cções,
nos ABPP, 1, (1902), 15,25 e nos DHBC, Fortaleza, 1909, 11, 243-253; Serafim Leite (Luls Figueira,
Agência Geral das Colônias, Lisboa, 1940; 167-177) publicou edição corrigida.

18
que exploravam o tabaco, a ação de Pedro Teixeira e reafirma sua fé em
Deus, que favorece estas conquistas, solicitando apoio de S. Majestade
para evitar o comércio de tabaco dos estrangeiros e domesticar os índios;
lembra que no Rio Grande e na Paraíba só as aldeias que possuíam assis"i
tência religiosa não se inquietaram e não se passaram para os holandeses.
Os inconfortáveis trabalhos que sofriam os religiosos para o universal bem
espiritual e da fazenda real não eram devidamente considerados pelos se-
nhores dos Conselhos, diz ele. Descreve a atualidade dos sucessos e pro-
cessos da conversão do Maranhão ao mundo ibérico, numa fase crítica
das lutas entre forças francesas e holandesas contra as portuguesas e espa-
nholas.

2 . Martim Soares Moreno


Martim Soares Moreno, nascido em 1586, prossegue a jornada de
reconhecimento e conquista. Fora companheiro de Pero Coelho pisando
pela primeira vez a terra cearense aos 17 ou 18 anos e em 1611, com 25
anos, voltara a mando de D. Diogo de Menezes, como capitão do Ceará,
iniciando o domínio português. Em 1613 serviu a Jerônimo de Albuquer-
que, reconhecendo a costa e verificando quais as posições ocupadas pelos
franceses. Na volta da viagem, escapando dos franceses, foi arrastado pelos
ventos e correntezas à Ilha de São Domingos e chegcm em 1614 a Sevilha.
Em 1615 voltou· de Lisboa acompanhado de Diogo de Campos Moreno,
seu tio, que fora a Portugal, de acordo com as tréguas assinadas entre
franceses e portugueses no Maranhão, e de Bento Maciel Parente. Retorna
à luta neste mesmo ano contra os franceses.
Alexandre de Moura, que impusera o domínio português no Mara-
nhão, tomando posse do forte de São Luís lhe dá, em 1616, o regimento
de capitão das terras do Cumá e Caeté. Pouco ficou nessas terras e saindo
da barra do Cumá foi novamente arrastado a São Domingos, donde partiu
comandando um dos navios que iam à Espanha. Atraído pelos franceses
foi aprisionado e conduzido a Dieppe, depois de sangrenta luta, onde
morreram 19 dos 21 homens que conduzia, recebendo 23 ferimentos e
perdendo uma das mãos. Libertado, veio para Portugal e daí voltou com
a mercê da capitania do Ceará, por dez anos, desde 1619. Seu governo
estendeu-se até 1631, tendo em 1624 e 25 derrotado corsários holandeses.
De 1631, quando veio socorrer Pernambuco, tão poderosamente atacado,
até 1648, quando lhe deram um substituto, combateu os holandeses, como
"um dos campeões da restauração" daquela capitania, como mesti;e de
campo das forças militares. Ou porque as fadigas da guerra o trouxessem
alquebrado ou porque repugnasse ao seu caráter de soldado a hipocrisia
das autoridades superiores, que estavam a fomentar e a atiçar a reação
pernambucana e, ao mesmo tempo, a renegá-la perante o inimigo diante
das Cortes Européias, o fato é que Martim Soares Moreno, que se gabava
de ter degolado mais de 200 vidas francesas e holandesas, abandonou o
campo de ação antes de finalizar a luta, escreveu o Barão de Studart.

19
"E assim desapareceu da cena uma das figuras de guerreiro mais heróicas
da História brasileira", como disse Rodolfo Garcia.
Mas esse homem tão bravo nas lutas contra os estrangeiros soube
compreender e realizar cabalmente as idéias de D. Diogo de Menezes, de
que a conquista da terra e do gentio "não se devia fazer pelas armas,
mas por invenção e manha; o gentio se defendia fugindo de nós, fazendo
que a falta das cousas nos desbaratasse; fosse moderada a força para não
espantá-lo". Ele soube sempre conservar a amizade indígena, aprendeu
a língua, adaptou-se a seus costumes e hábitos. Por tudo isso cresce de
valor a Relação do Ceará, escrita por volta de 1618, quando relatava ao
Rei seus serviços.
Martim Soares não se ufana da terra, onde "tudo são areais desertos",
mas reconhece que ela "tem muito sal de salinas que a natureza cria,
muita abundância de ostras, muitos mariscos, tem muita caça, como é
veados, toda a costa muito peixe, a melhor madeira, o melhor pau de
tinta amarela e muitas frutas, as melhores do Brasil". Descreve as aldeias
indígenas, as 22 nações tapuias de diferentes línguas e propõe as medidas
necessárias ao bem e à conservação da colônia. :8 pena que a Relação de
Martim Soares seja anterior ao seu governo estável de 1619 a 1631, quan-
do, melhor conhecedor da terra, da gente e do desenvolvimento de sua
obra, poderia ter-nos deixado uma descrição mais exata e completa <14 >.

3 . Diogo de Campos Moreno


Diogo de Campos Moreno era natural de Tanger, possessão portu-
guesa, cedida à Inglaterra pelo Tratado de 1661, e nasceu provavelmente
em 1566, pois em 1603 declarava ter 37 anos <15 l. Militou nas guerras
de Espanha contra os Países Baixos e veio para o Brasil, chegando a Per-
nambuco em 1602. Logo depois do ataque de Paulo van Caarden à Bahia,
de 20 de· julho a 28 de agosto de 1604, foi incumbido de tratar em Espa~
nha da defesa da Bahia, da fortificação de Pernambuco e da conquista da
costa leste-oeste (Maranhão). Partiu nesse mesmo ano e voltou em 1606
com ordem para as fortificações, mas sem que lhe deferissem as propostas
do Maranhão. Em 1611 foi ao Rio Grande para informar sobre o que
convinha à jornada e em 1612, em Madrid, recebia ordem de el-rei de
embarcar para Lisboa. Em 1613 recebeu novas ordens e seguiu para o
Recife, onde chegou a 26 de maio de 1614, no governo de Gaspar de
Sousa. Obrigado a lutar na campanha, o que procurava evitar por motivo

(14) A "Relação do Ceará" foi primeiramente publicada pelo Barão de Studart, no volume
Tricentenário do Ceará, Martim Soares Moreno. Documentos para a sua História. Fortaleza, 1903,
XIV-XXI, e reimpresso pelo mesmo autor in Documentos para a História do Brasil e especialmente
do Ceará, 1608-1625, Fortaleza, 1904, 133-140. Os principais documentos sobre Martim Soares· en-
contram-se nestes dois volumes e nos Documentos para a biografia do Fundador do Ceará, Forta·
leza, 1895. Vide 1ambém a História Geral de Varnhagen, 3.• ed., veis. II e III, e as notas de
Rodolfo Garcia, especialmente, II, 205-208; a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, que
o conheceu pessoalmente, e os prolegômenos de Caplstrano de Abreu a essa edição, pp. 262-263.
Escreveu-lhe a biografia baseado nestas fontes, que também seguimos, Afrânlo Peixoto, Martim
Soares Moreno, Lisboa, Agência Geral das Colônias, 1940.
(15) "Correspondência de Diogo Botelho, Governador do Estado do Brasil, 1602-1608", RIHGB,
t. 73, t .• parte, 90.

20
de divergência com Jerônimo de Albuquerque, , nomeado chefe, Diogo de
Campos Moreno escreveu a crônica da "Jornada do Maranhão" de ja-
neiro a março de 1615, durante a viagem empreendida do Maranhão a
Lisboa, a fim de levar à Espanha a notícia da trégua dos franceses no
Maranhão.
O relato do soldado e escritor é minucioso nas particularidades das
providências governamentais, nos detalhes das dificuldades da luta, dos
recursos econômicos e militares. As divergências entre os chefes, as aco-
modações com os índios, as sugestões de comando, a carestia da terra
agreste, as críticas a Jerônimo de Albuquerque, as apostas sobre vitória e
auxílio indígena, suas profecias, avisos, altercações e despeitos, os do-
cumentos oficiais franceses e portugueses dos primeiros e últimos con-
tactos, as relações de índios e franceses, se reúnem numa narrativa viva,
humana e real que, apesar de todas as ridicularias das divergências entre
Campos Moreno e Jerônimo de Albuquerque, tornam esta relação um dos
mais importantes documentos sobre a definitiva conquista do Maranhão e
a expulsão dos franceses.
Bernardo Pereira de Berredo <16) e Southey <17l seguiram essa história
da conquista do Maranhão dirigida por Jerônimo de Albuquerque sem repa-
rar nos exageros ou ressentimentos com que Diogo de Campos Moreno
procurou diminuir a glória de Albuquerque. Campos Moreno revelou, na
verdade, certa inveja em relação a Jerônimo de Albuquerque, seu chefe
na conquista, pois se julgava superior a este, não só por ter participado
de campanhas famosas como pelo conhecimento do castelhano e do fran-
cês, o que lhe dava um certo ar de superioridade impaciente. Apesar da
importância incontestável da Jornada de Campos Moreno, ela arranha em
muitos passos a verdade histórica e por isso deve ser lida com certa pre-
caução e comparada com os testemunhos de Manuel de Sousa e Frei Vi-
cente, como queria Capistrano de Abreu (18) .
A Jornada do Maranhão primeiro publicada em Lisboa, em 1812 <19 >,
foi reproduzida por Cândido Mendes de Almeida, em 1874 <2 º>, e pelo
Barão de Studart, em 1907 <21 >. Em todas essas edições o texto aparece bas-
tante viciado, conforme notou Capistrano de Abreu <22 >.
Atribui-se a Diogo de Campos Moreno a autoria da Razão do Estado
do Brasil, obra que será examinada mais adiante.
Diogo de Campos Moreno, principal co-autor da suspensão das hos-
tilidades, partiu em janeiro de 1615 para a Espanha, para consulta às
Cortes respectivas. Em junho desse ano voltava com Martim Soares More-

(16) Annaes Historicos do Estado do Maranhão, Lisboa, 1749, 2.• ed., Maranhão, 1849, 3.•
ed., Florença, 1905.
(17) History of Brazil, London, 1810-13, 3 vols. trad. port., Rio de Janeiro, 1862, 6 vols.
(18) "Prolegômenos• ao livro V da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, ob. cit. ,
431.
(19) Na CNHGNU, t. I, n.• 4, 113.
(20) Nas Memórias para o extinto Estado do Maranhão, Rio de Janeiro, Tipografia do
Comércio, de Brito e Braga, 1874, 2.0 t., 159-265.
(21) RIC, t. 21, 209-330.
(22) "Prolegômenos• ao livro V da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, 3.• ed.,
São Paulo, 1918, 431.

21
no e Bento Maciel, obedecendo aos pareceres do Conselho de Estado de
Espanha, que decidira não castigá-lo, mas prender o francês Mathieu
Maillar, que o acompanhara. Moreno faleceu durante o Governo de D.
Luis de Sousa (1617-1621), sem passar de sargento-mor.

4 . Manuel de Sousa de Sá e Alexandre de Moura


A história da conquista da costa léste e da expulsão dos franceses
conta com variada bibliografia, muito bem estudada pelos Barões de Stu-
dart e Rio Branco e por Capistrano de Abreu <23 >. Entre as principais
descrições contemporâneas sobre o Maranhão merecem maior destaque o
"Relatório" de Alexandre de Moura <24 >, o chefe que pôs fim ao dominio
francês no Maranhão, e a "Breve Relación de la Jornada de la Conquista
de Maraiíon" <25 > de Manuel de Sousa de Sá ou .d'Eça, como aparece al-
gumas vezes <26 >. A versão dos acontecimentos feita por este último é
mais concisa e sem as parcialidades da de Diogo de Campos Moreno. Ela
coibe, como disse Capistrano, os excessos do sargento-mor.
Manuel de Sousa de Sá, natural das Ilhas e provedor dos defuntos e
ausentes em Pernambuco, foi à jornada do Maranhão aos 27 de maio de
1614 e chegou ao porto de Macaripe, presídio do Ceará, a 9 de junho. Aí
ficou como capitão, repelindo ataques franceses, e retirou-se quando che-
gou a força comandada por Campos Moreno. Descreve Sousa de Sá a
partida para o Maranhão, a luta de Guaxinduba e a assinatura das tréguas,
contra a qual "dixo em publico, que todos le fuesen testigos de lo que el
capitan mayor le dezia, y que si firmaba el auto era por redimir su vexa-
cion, y no se descomponer con su general, de lo qual sacá sertificacion
dei escrivano publico que presente estava, por quanto el dicho Capitan
siempre fue contra el hazerse las pazes, por entender eran en deservicio
de su Magestad" (27).
Partiu para Pernambuco a dar noticia dos sucessos ao governador,
mas foi ter a Porto Rico e dai seguiu para a Espanha, de onde voltou com
novas ordens de el-rei, determinando que se despejassem os franceses da
terra, de acordo, aliás, com sua opinião tão veementemente manifestada.
De seu retorno na nova frota que, sob a direção de Alexandre de Moura,
expulsou os franceses, nada diz sua Relação, que termina com sua chegada
a Madrid. De lá voltou com Diogo de Campos Moreno e acompanhou
Alexandre de Moura na definitiva expulsão; retomou ao reino, foi provido

(23) Studart divulgou peças fundamentais nos 4 volumes do DHBC, Fortaleza, 1904-1921. Rio
Branco cedeu a documentação que reunira na sua pesquisa sobre a questão de limites com a
Guiana Francesa à Biblioteca Nacional, que a publicou no vai. 26 (1904) dos ABN, editado em
1905. Capistrano de Abreu fez lúcida crítica historiográfica de toda a documentação nos Prolegô-
menos ao livro V da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, Rio de Janeiro, 1918, 3.• ed.,
428-463.
(24) Relatório de Alexandre de Moura, ABN, vai. 26, 193-203.
(25) ABN, ob. clt., 281-287; DHBC, I, 184-191.
(26) Caplstrano de Abreu, • Proiegômenos", ob. cit., 459.
(27) ABN, vai. 26, 286. O documento, escrito em português, foi traduzido em castelhano por
Thomas Graclan Dantesco, a mandado do Rei, e o original encontra-se no Arquivo Geral das 1ndlas,
Patronato 2. 5. 1/27.

22
no cargo de provedor da fazenda real e mais tarde, a 6 de outubro de
1626, nomeado para o governo do Pará; ai permaneceu até 1629, quando
foi preso por Francisco Coelho de Carvalho. Morreu no cárcere. Sua
"Breve Relación" é considerada por Capistrano de Abreu como um jorro
de luz. Escreveu ainda um "Memorial" sobre medidas necessárias ao bom
desempenho do governo <2 8>.
O magnífico Relatório de Alexandre de Moura conta oficialmente a
empresa de destruição final dos franceses <29 >. Parte a 5 de outubro de
1615 numa armada de mais de 600 soldados em nove caravelas e a 17 de
outubro entra na barra, determinado a pôr fim às conversas com os fran-
ceses e aos tratos com que estes entretinham tempo na esperança de socor-
ro. Revela sua disposição, a imposição da ordem hispânica à região, enu-
mera o que achou nos fortes, elege capitão a "Martim Soares Moreno,
homem grande lfngua e muito experimentado em seus tratos e o pri-
meiro que descobriu o Maranhão pela banda de Leste". Decidiu enviar
uma força que conquistasse o Pará e Amazonas, pela facilidade que tinha
de gente e "por me dizer o Ravardiêre e todos os franceses que tudo o
que havia de bom no Maranhão estava naquelas partes".
Francisco Caldeira de Castello Branco foi nomeado capitão da Jorna-
da que partiu a 25 de dezembro de 1615, fundando Feliz Lusitânia, logo
Belém, a 11 de janeiro do ano seguinte. Solicita do rei que mande povoar
a grande província do Maranhão e descobrir os segredos que dizem encer-
rar; desta e de outra sugestão, de que "seja cada hum deles governo per
si", pelas distâncias que separam Brasil do Maranhão, mais próximo do
Reino, originou-se a decisão de estabelecer, em 1621, o governo do Estado
do Maranhão, separado do Estado do Brasil. "São terras que V. M. deve
mandar povoar e aproveitar para assim tirar ao Demônio tantas almas que
ali possui" <30 >.

5. Pero Rodrigues
Mestre de artes e pregador, esteve o Jesuíta Pero Rodrigues em Ango-
la como visitador e, vindo ao Brasil, tomou-se Provincial ( 1594-1603). Fa-
leceu em Pernambuco aos 86 anos, como confessor. Escreveu cartas, ânuas
e a "Vida de José de Anchieta", em 1607 <31 >. De interesse para a historio-
grafia deste século é a "Informação do Rio Maranhão e do Grande Rio
Pará" <32 >, escrita a 8 de fevereiro de 1618, do Colégio da Bahia e na qual
sumaria as tentativas de descoberta e a posse do Maranhão e do Pará, até

(28) Caplstrano de Abreu, "Prolegômenos•, ob. clt., 459-460. O Memorial está transcrito ln
ABN, vol. 26, 345·348.
(29) "Relatório" loc. clt., 200. No vol. 26 dos ABN e no vol. 1, dos DHBC, encontram-se
vários documentos sobre Alexandre de Moura.
(30) Todas as referências são da edição dos ABN, ob. clt., 197, 200, 201, 202. O principal
exame do • Relatório" e das atividades de Alexandre de Moura e de Capistrano de. Abreu, "Prole-
gõmenos• a Frei Vicente, ed. 1931, 432, 438-439.
(31) Blobibllografla ln Serafim Leite, HC/B, IX, 91-98, e como Provincial, li, 496-498; a
"Vida" foi publlcada ln ABN, XXIX, 183-286.
(32) Publicado por Serafim Leite, HC/B, Ili, 425-426.

23
a fundação da fortaleza por Francisco Caldeira de Castelo Branco. Numa de
suas cartas narra uma entrada ao sertão pelo Rio Doce (33).

6 . Manuel Gomes
Dominado o Maranhão pelos portugueses, a primeira relação das ati-
vidades jesuíticas é escrita pelo Padre jesuíta Manuel Gomes (1570-
1648) <34 >. Alexandre de Moura levara em sua armada os padres Gomes e
Diogo Nunes, que cuidaram de estabelecer a primeira Missão dos Jesuítas.
A 2 de julho de 1621, em forma de carta, resume seus trabalhos desde a
partida de Pernambuco, a 5 de outubro de 1615, seus dois anos e meio no
Maranhão, até sua chegada a Lisboa. "Pediu-me V . R. desse alguma rela-
çam de nossa missão", começa o Padre Gomes, que descreve o Maranhão,
o Grão-Pará, a obra de Franci~co Pinto, as proezas de Alexandre de Mou-
ra, os exercícios da catequese, os costumes indígenas, as maldades do cati-
veiro, tantas que os índios "creriam ser verdade o que lhes dizem os es-
trangeiros, que el Rei de Espanha e o Papa eram os dois piores homens
do mundo que mandavam a seus soldados e capitães cometer tantas injus-
tiças, pois só no rio Pará cativaram e mataram mais de trinta mil almas
injustamente e depois de terem assentado pases".
Acusa S. Majestade e seus conselheiros, "em despovoarem os cárceres
de homens facinorosos e mandá-los para aquelas partes, porque se em
Portugal não podiam com eles nem as Justiças os podiam fazer bons, que
fará aonde não há quem os castigue, e os que tem o mando com o ruim
exemplo os movem a ser piores". Defende os índios, condena os insultos e
ofensas dos soldados portugueses, pleiteia a guarda das leis proveitosas pas-
sadas por Filipe III e mostra as dificuldades de adaptação dos primeiros
portugueses ao meio, em geral, e à alimentação. Obrigado a comparecer à
Congregação Provincial a realizar-se na Bahia, Padre Gomes embarca
para este Estado, acaba aportando em Santo Domingo, e parte para a Es-
panha aos 10 de março de 1620. Aí assina, a 2 de julho, a Carta-relação
que não encerra sua obra pela gentilidade, cuja língua conhecia, pois retor-
na ao Brasil, falecendo no Rio.

(33) Carta ao Pe. Assistente João Alvares, Bahia, 15 ou 13 de Junho de 1597, ln Serafim
Leite, HC]B, IX, 92.
(34) Blobibllografla ln Serafim Leite, HCJB, VIII, 270-271. Sobre sua atividade, vide ob. clt.,
III, 99-104. Vide também a certidão de seus serviços passada de Setúbal a 20 de outubro de 1620
por Alexandre de Moura, Idem, 101-102. A carta foi publicada por Studert, DHBC, I, 273-288.

24
CAPITULO III

A DESCOBERTA DO AMAZONAS
1 . A Relação de Gaspar de Carvajal. 2. A Relação de An-
dré Pereira (Temudo). 3. As Relações sobre a Viagem de
Pedro Teixeira. 4. A Relqtion de Blaise François Pagan. 5.
Diário de Samuel Fritz. ~. O Amazonas e os franceses.

1 . A Relação de Gaspar de Carvajal


Para as bandas do Norte operava-se, nos meados do século dezesseis,
a descoberta do Rio Amazonas que, pelo Tratado de Tordesilhas, pertencia
quase todo à Espanha. Iniciou-se em fevereiro de 1541, em Quito, a expe-
dição que pela primeira vez desceu o Amazonas até sua desembocadura.
Composta de 320 soldados e 4 mil índios, fora imaginada e organizada
por Gonzalo Pizarro, ansioso pelo comércio de canelas. Francisco de Orel-
lana, entusiasmado, ofereceu-lhe seus serviços e sua fazenda <1 >.
Tendo chegado a Quito depois da partida da expedição, Orellana
encontrou-se com Pizarro no vale do Zumaco, provavelmente no fim do
mês de março, não se sabendo ao certo o dia. Viajaram incertos e desorien-
tados durante dez meses, até que nos fins de dezembro de 1~41 Orellana
separou-se do corpo expedicionário de Pizarro e iniciou sua marcha vitorio-
sa, ponto culminante de sua vida e origem de sua glória, nas palavras de
Toribio Medina (2).
Penetrando no Amazonas a 12 de fevereiro de 1542, Orellana e os que
o acompanhavam chegaram à desembocadura do Rio em 24 de agosto. f: o
relato do ocorrido entre dezembro de 1541 e 11 de setembro de 1542,
quando chegaram a Nova Cádiz, na Ilha de Cubagua, que constitui o tema
da Relación de Frei Gaspar de Carvajal (1504-1584), dominicano que
acompanhou Orellana e relata, como testemunha de vista, os sucessos da
viagem.
A Relación de Carvajal, "escrita sem arte", é o reflexo fiel de suas
próprias impressões e do que presenciou, e o único documento que até agora
se conhece daquele admirável sucesso" (3). Consciente de que se tratava de
(1) EI descubrlmiento dei Rio de las Amazonas según la Relaclón hasta ahora lnedlla de Fr.
Gaspar de Carvafal. Editado por José Torlblo Medina, Sevilha, 1894, LXIV-LXV.
(2) /d., ld., LXXXI.
(~) ld., ld., XXIX.

25
uma viagem de descoberta, Carvajal foi anotando as peripécias do caminho
e navegação, para informar a verdade da arriscada peregrinação.
A Relación foi primeiramente editada pelo cronista Gonzalo Fernan-
des Oviedo, na sua Historia General de las lndias <4 >. A 2.ª edição, prepa-
rada pelo erudito historiador e bibliógrafo chileno José Toribio Medina, em
1894, segundo uma cópia manuscrita da época, pertencente ao Duque de
T'Seclaes de Tilly, é acompanhada de valiosas noticias sobre o descobridor
do Amazonas, sobre o cronista e os companheiros de expedição. :8 magní-
fico trabalho de erudição, que esclarece as mais minuciosas questões da
viagem. Toribio Medina reproduz também toda a documentação encontrada
nos Arquivos Espanhóis, inclusive a Carta de Gonzalo Pizarro denunciando
Orellana e as peças justificativas deste último <5 >. :8 também recomendável
a edição de Clements R. Markham, Expeditions into the Valley of Amazons,
1539, 1540, 1639 <G>, contendo a expedição de Pizarro e Orellana.

2 . A Relação de André Pereira (Temudo)


Assegurada a posse do Maranhão e posto fora o inimigo, mandou Ale-
xandre de Moura que Francisco Caldeira de Castello Branco fosse, com 150
homens, fundar outra capitania, a do Pará. O Capitão André Pereira (Te-
mudo) foi o cronista desta jornada e o autor da "Relaçam do que ha no
grande Rio das Amazonas novamente descoberto" (7). Descreve o rio, a fer-
tilidade de suas terras em madeiras, refere-se à existência de franceses, in-
gleses e holandeses, e às mercadorias de troca destes últimos com os , indí-
genas. André Pereira, alentejano, foi mandado de volta a avisar a S. 'Ma-
jestade e em Madrid fez esta Relação solicitando socorro. Voltou em 1617
e no ano seguinte foi a Pernambuco levar ao governador geral a noticia
da deposição de Francisco Caldeira. Voltou ao Pará em companhia .de
Jerônimo Fragoso de Albuquerque, que ia tomar posse do governo e con-
duzir preso para Lisboa Caldeira e os sediciosos de 1618. Foi nomeado
capitão-mor do. Rio Grande do Norte em 1621 e depois passou a servir
na guarnição de Olinda. Ali morreu quando do ataque dos holandeses em
1630 (8 ).

<•> Madrl, Imprensa de la Real Aéademla de la Historia, 1851 . t. IV, _5.-1.s1•.


(5) Descubrlml,mto dei Rio de las Amazonas según la Relacl6n hasta ahora lnedlta d,· Dr.
Gaspar Carva/al con oiros documentos referentes a Francisco de Orellana y sus compalleros etc.
Sevilha, Imprensa de E. Rasco, 189•. Esta edição foi reproduzida em Quito, Imprensa Municipal,
1953, com mais algumas notas de D. Jullo Gulllen.
(6) Londres, Hakluyt Society, 1859. Há edição mais acessfvel e Igualmente recomendável,
feita sob a direção de Jorge Hemandez Mlllares, M6xlco, Pondo de Cultura Economlca, 1955.
Biblioteca Amerkana.
(7) Foi Vamhagen o primeiro a conhecer o documento e segui-lo, segundo cópia que possufa
da Biblioteca de Madrl . Vide Hlst6rla Geral, 11, 21"; sobre o original, vide Jullán Paz, Catdlogo
de Manuscritos de América existentes en la Biblioteca Nacional, Madrl, 1933, n .• t.OH, pp. •16-.-11 .
A Relação fot primeiro publicada por Marcos Jlmenez de la Espada, Via/e dei Capltdn Pedro Tei-
xeira aguas arriba dei Rio de las Amazonas, Madrl, 1889, 115·119, reproduzido ln ABPP (Pará,
1902), 1, 5·8 e ABN, vol. 26, ·255·259. Ernesto Cruz descobriu novo original, mais completo, que
1er4 editado brevemente no Pará.
(8) Manuel Barata, A Jornada de Francisco Caldeira de Castello Branco, Bel6m, 1916, 17-19.

26
3. As Relações sobre a Viagem de Pedro Teixeira
A Relación dei General Pedro Teixeira dei Rio de las Amazonas (9l,
dirigida ao presidente da Audiência de Quito, é uma simples descrição
corográfica do rio, sem maiores pretensões, embora revelando entusiasmo
pelas suas possibilidades futuras. "La fertilidad de este rio increhible por-
que tiene muchos pescados de diferentes suertes, muchas carnes dei Monte,
muchissima yuca e mas muchissimas frutas de cast.as diferentes ... " <10 >
Para Jaime Cortesão o documento é de excepcional valor, por-
que a expedição ordenada por Jácome Raimundo de Noronha teve cará-
ter político e nacionalista, pois visava fixar os limites da soberania portu-
guesa no Amazonas, evitando a expansão dos espanhóis de Quito e tam-
bém possibilitando um comércio vantajoso <11 >. Contra essa tese, extre-
mamente conjetural, insurgiu-se Júlio César de Faria 0 2 >, negando o as-
pecto político de conspiração a bem da restauração de Portugal. De qual-
quer forma, o fato significativo que dá a esta viagem importância política
é a fundação, por Pedro Teixeira, da povoação de Franciscana, limite do
domínio português (13).
A decisão de Jácome Raimundo de Noronha foi tomada após a che-
gada de dois frades franciscanos: Domingos de Brieva e Andrés de To-
ledo, que repetiram a façanha de Orellana <14 > e cuja relação é conhecida
na historiografia espanhola, como a Viaje de los /egos Franciscanos <15 >.
Da viagem destes e de Pedro Teixeira, que contou com a experiência do
Frei Domingos de Brieva, existem várias descrições, especialmente a man-
dada imprimir por Frei José Maldonado, natural de Quito, comissário Geral
da Ordem Franciscana e filho do governador de Quijos, D. José de Villa-
mor Maldonado, a anônima "Relación dei Descubrimiento de Rio de las
Amazonas y sus Dilatadas Províncias", a de Frei Laureano de la Cruz e,
finalmente, a mais conhecida de todas, a de Cristóbal de Acuíia.
A primeira, peça de extrema raridade <16>, protesta que a Compa-
nhia de Jesus queria alçar-se com as glórias alheias, ocultando injus-

(9) Manuscrito na Blblloteca da Ajuda, vide Carlos Alberto Ferreira, Inventário, ob. cit., n.•
830. O texto foi reproduzido por Jaime Cortesão, •o significado da expedição de Pedro Teixeira à
luz de novos Documentos", Anais do IV Congresso de História Nacional (1949), 3.0 vol. (1950),
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 169-204. Esta não é a única descrição portuguesa. Existe
no Arquivo da Casa de Cadaval uma Informação prestada pelo sargento-mor Filipe de Matos
Cotrlm. Cf. Vlrglnla Rau e Maria Fernanda Gomes da Silva, Os Manuscritos do Arquivo da Casa
de Cadaval respeitantes ao Brasil, Coimbra, 1956, n.• 80, 40-41.
(10) Ob. clt., 103.
(11) Jaime Cortesão, artigo citado, 188 e 191. Vide também, do mesmo Autor, exposição
mais ampla da tese ln Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrl, Instituto Rio Branco, parte 1,
t. li, p. 135 e seguintes.
(12) O significado da expedição de Pedro Teixeira à luz de novos documentôs, Rio de
Janeiro, Jornal do Comércio, 1949.
(13) Vide reprodução do documento in Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrl, parte
Ili, Antecedentes do Tratado, t. li, 17-20.
(14) Vide Frei Laureano de la Cruz. Nuevo Descubrimlento dei Rio Maranon //amado
de /as Amazonas hecho por la Re/iglón de S. Francisco, Prato, 1878.
(15) Marcos Jlmenez de la Espada, Viaje dei Capitán Pedro Teixeira aguas arriba dei Rio
de las Amazonas, Madrid, 1889.
(16) A Relaclón dei descubrlmlento dei rio de las Amazonas, por outro nombre, dei Maranon,
hecho por la Re//glón de nuestro Padre San Francisco por media de /os Religiosos de la Provlncia
de San Francisco de Quito. Para informe de la Catolica Magestad dei Rey y Su Real Canse/o de
las lndlas. s. J., s. ano. (1641). Descritas por Marcos Jlmenez de la Espada. Via/e dei Capitán Tel-

27
tamente as proezas dos outros, enganando a S.M. e a seus reais conse-
lheiros com falsos informes. Refere-se à relação de Cristobal de Acuiía
que exaltava, em detrimento dos franciscanos, os serviços dos jesuítas. A,
réplica jesuita ao escrito de Maldonado aparece na "Relación Apologética,
asi del antiguo como dei nuevo descubrimiento dei rio de las Amazonas ó
Maraíi.on. . . escrita por D. Rodrigo de Bamuevo, provincial de Nuevo
Reino" <17 >.
A segunda é anônima e Jimenez de Ia Espada, sem querer fazer atri-
buição, pensa que seu autor é o Padre Alonso de Rajas, da Companhia de
Jesus. A relação "Descubrimento dei Rio Amazonas y sus Dilatadas Pro-
1
vindas", cuja publicação se deve ao erudito estudioso espanhol, é extre-
mamente valiosa, pois descreve muito sumariamente a viagem, deten-
do-se no bosquejo de algumas povoações e cidades do Pará, seus costumes
e hábitos dos indígenas (18).
A crônica de Frei Laureano de la Cruz <1 9 > não se limita a descre-
ver uma viagem: compreende a façanha dos "legos franciscanos" (1636-
37), a jornada de Pedro Teixeira (1637-38), de ida e volta, várias en-
tradas e missões de franciscanos junto aos índios, e sua viagem de
1647 a 1651, quando alcançou o Pará. Frei Laureano lastima que os fran-
ciscanos que tomaram parte na viagem de descida, e que com o Frei Do-
mingos Brieva subiram o Amazcmas, não tivessem participado mais efeti-
vamente da viagem de volta de Pedro Teixeira. "Salen ultimamente de
Quito el General Pedro Tejeira y toda su gente, menos algunos compa-
íi.eros que se le quedaram. Salen los Padres de la Companhia de Jesus y
otros Padres de nuestra Seíi.ora de la Merced, que a pedimento de los Por-
tugueses fueran a fundar ai Gran Pará; solo de la Religión de San Fran-
cisco, siendo la más interessada, no salen más que el Padre Fray Au-
gustin de la Llagas, Capellán de la Armada" (20).
Na verdade Frei Laureano lamenta que não tenha sido incluído, o
que testemunha Sánchez Alonso (21) ao escrever: "se duele de que no se
les hubiese designado a los franciscanos para hacerlo en la expedición de
Teixeira a que assistió Acuíi.a. Fray Laureano escribe corretamente, pero
com menos detalle que éste, siendo mui breve su relación". Frei Laureano
participara da primeira expedição e não se aventurara com os demais a
xelra aguas arriba dei Rio de las Amazonas, Madri, 1889, 16-17; reimpressa por B. Izagulrre, Historia
de las Missiones Franciscanas y Narraclón de los progressos de la geografia en el Oriente de Peru.
Lima, 1922, e na Revista de Historia, Lima, t. V. O original se conserva na Biblioteca da Univer•
sidade de Salamanca, cf. R. Vargas Ugarte, Historia dei Peru, Fuentes, 2.• ed., Lima, 1945, 182.
(17) Cf. Marcos Jimenez de ia Espada, ob,. clt., nota 1 da p. 16-17; e Rubem Vargas Ugarte,
Ob. c/1., 186.
(18) Ob. clt., 65-95. A obra de Jlmenez de Ia Espada é Indispensável como análise e exame
geral dos principais "descritivos". Sobre a autoria, vide p. 53-55. Sobre o ofertante do manuscrito,.
D. Martin de Saavedra y Gusman,. vide nota A, p. 97-101. Vargas Ugarte, ob. clt., p. 185, segue a·
atribuição de Jlmenez de ia Espaaa.
(19) Nuevo Descubrlmlento dei Rio de Maraiíon, llamado de las Amazonas hecho por la Rell-
glón de San Francisco, Prato, 1878. O Manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Madri, e
foi editado por Fr. Marcelino de Civezza. Vide Jullán Paz, Catálogo de Manuscritos de América
existentes en la Biblioteca Nacional, Madri, 1933, n. 1202, p. 543. Reeditado por Jimenez de Ia
Espada, Boletln de la Sociedad Geográfica de Madrid, 1900, e em separata, vide Vargas Ugarte,
ob. cit., 186. Esta viagem vem também exposta nos relatórios de Gedeon Morris de Jonge, regis-
trado no capítulo sobre a historiografia regional dos holandeses no Brasil.
(20) Ob. clt., 23.
(21) Historia de la Historiografia, II, 428.

28
partir com Frei Domingos de Brieva e Andrés de Toledo. Deixara-se ficar
nas praias das ilhas dos Encabelados. Seu relato é de testemunha presen-
te até este ponto e daí em diante deve ter contado com as descrições dos
companheiros das jornadas, sendo que lhe coube prestar os serviços reli-
giosos a Pedro Teixeira e seus aventureiros quando chegaram a Encabe-
lados.
Ao se organizar a expedição de volta, o Vice-Rei de Lima determinou
que duas pessoas de consideração acompanhassem a "armada portuguesa
hasta el Gran Para y viesen con cuidado y consideración todo aquello
de que lhe habia hecho relación, y que pasassen de ali a Espafia y diesen
cunta de ello à su Real Magestad y Sefiores de su consejo". Frei Laureano
escreve logo em seguida que "supe también que el Reverendo Padre Pro-
vincial de la Compafiia de Jesus habia ofrecido por una petición para tal
Misión al Padre Cristoval de Acufia y al Padre Andrés de Artieda, per-
sonas de mucha cuonta en aquella província y muy grandes siervos de el
Sefior" (22 >.
A mais importante relação e a mais divulgada, traduzida e citada, é
a do padre jesuíta Cristóbal de Acufia. Logo depois de chegados ao Pará,
Acufia, Artieda e Brieva, obedecendo ordens, seguiram para Madrid a in-
formar ao Rei. Brieva deu conta, por escrito e pela palavra, ajudado por
D. José Maldonado, comissário geral, diz Frei Laureano de la Cruz, da
navegação que ele por três vezes empreendera; regressou a Quito três
anos depois e trouxe, com data de 18 de setembro de 1641, uma cédula
real mandando que se fizesse a pacificação dos índios do Amazonas.
Os padres Acufia e Artieda, aquele irmão do General D. José de
Acufia, corregedor de Quito, deram iguais satisfações a el-rei e seu conse-
lho. A 20 de março de 1641, Acufia entregava ao conselho uma relação
e mais tarde publicava o "Nuevo Descubrimiento dei Gran rio de Ias Ama-
zonas" (23 >.
Cristóbal de Acufia, nascido em Burgos, entrou para a Companhia
em 1612. Designado para as missões do Chile e Peru, era, segundo infor-
ma Frei Laureano de la Cruz, homem de boa opinião quando foi escolhido
pela Companhia para acompanhar a viagem de Pedro Teixeira. Deve ter
sabido, na Corte, agitar a opinião, pois desde fevereiro de 1641, antes de
publicar sua relação, já sua vida e suas notícias eram divulgadas pela im-
prensa (24 >. A obra inicia-se com um certificado de Pedro Teixeira, afir-
mando que Acufia o acompanhara e notara e advertira "todo lo necesario
para dar entera y cumplida cuenta dei descubrimiento, a que se deve
dar entero crédito, mejor que a otro ninguno, de los que fueren en la dicha
jornada".

(22) Ob. clt., 22-23.


(23) Madrl, 1641, reimpressão moderna ln Colecclón de llbros que tratan de America raros e
curiosos, Madri, 1891, 2 t.; trad. francesa, Paris, 1682; trad. inglesa ln coleção Voyages and Dlsco-
verles in South America, Londres, 1698; outra ed. inglesa ln coleção Hakluyt Society, Expedlctlons
lnto the Valley of the Amazons, 1539, 1540, 1630, traduzido e editado por Clements R. Markham,
1859; reproduzido em espanhol por Cândido Mendes de Almeida, Memórias, ob. clt., II, 57-151;
tradução portuguesa RIHGB, 1865, 28, !.• parte, 163-265.
(24) Vide B. Sánchez Alonso, Historia de la Historiografia, II, 426 e Jimenez de la Espada,
Via/e dei Capltdn Pedro Teixeira, ob. clt., 50-51.

29
Acuiía relata muito brevemente a expedição de Orellana, sem citar
Pizarro, resenha tentativas sem êxito, as iniciativas de Bento Maciel, Fran-
cisco Coelho de Carvalho, os "franciscanos /egos", e finalmente a viagem
de Pedro Teixeira, de ida e volta, do Pará a Quito, e de Quito ao Pará.
Descreve o nascimento do rio, seu curso, suas ilhas, fertilidade e frutas, os
pescados e modos indígenas de pescar, o clima, as drogas e riquezas, as
gentes indigenas, as várias entradas para o rio, alguns outros rios afluen-
tes, as lendas, especialmente a das Amazonas, em que acredita, e termi-
na com o "memorial apresentado en el real Consejo de las Indias, sobre
el dicho descubrimiento, después de la rebelión de Portugal", na qual,
além de enumerar os proveitos que a Coroa tiraria desta descoberta, plei-
teava fossem proibidos o trato e as comunicações com os portugueses,
a fim de evitar o comércio, prejudicial ao Peru.
Escrevendo depois de 1640, quando já se fizera a restauração de Por-
tugal e o Nordeste -Brasileiro continuava dominado pelos holandeses,
Acuiía revela sua antipatia pelos Portugueses, ao relembrar no 8. 0 pará-
grafo do Memorial que "si sucediese que los Portugueses que están en
la boca deste rio ( que todo se puede presumir de su poca Christianidad
y menos lealtad) quisiesen ayudados de algunas naciones belicosas que tie-
nen sugetas [indígenas], penetrar por él arriba hasta llegar a lo poblado
dei Peru, ó nuevo Reyno de Granada aunque es verdad que por algunas
partes hallarán resistencia, por otras muchas la hubiera muy poca, por
salir à pueblos mui faltos de gente, y en fin pisarán aquellas tierras va-
sallos desleales de Vuestra Magestad, que en Reynos tan distantes, pudiera
solo este nombre de desleales, causar gravíssimos danos" c2s>.
A seguir revela não só seu ódio aos portugueses, talvez disfarçado
junto a Pedro Teixeira, ou não manifestado antes de 1640, como sua in-
compreensão ao imaginar portugueses unidos a holandeses ou ao propor
a posse do Pará por Espanha, pois assim se evitaria a grande viagem das
frotas desde Cartagena. "·Pués si unidos com el Olandés como lo están
muchos dei Brasil, intentassen semejante atreuimento, ya se ve el cuydado
que pudiera dar" <26 >. Seu intuito era pleitear a posse e colonização do
Amazonas por espanhóis, agora impedidos de navegar para o Pará.
O livro teve, como se deduz de suas várias edições e traduções, boa
acolhida e é, sem dúvida, a mais importante relação deste empreendimen-
to. Varnhagen e Sánchez Alonso consideram-no obra de estimável valor,
dizendo o primeiro que "é importante por nos dar uma. idéia suficiente
do estado do rio Amazonas de 1639, tanto com respeito aos índios que
que o povoaram como aos novos colonos das três capitanias do Pará,
Gurupá e Cabo Norte <27 >, e o segundo que "Acuiía escribe bien, con no-

(25) "Memorial•, Anexo ao Nuevo Descubrlmlento, ed. 1641, ed. 1891, 215-216.
(26) Ob. clt., ed. de 1891, 216. Recentemente ofereceu o antiquário Kraus (Americana, Llst,
185) um manuscrito contendo dois memorandos de Cristóbal de Acufia, traduzidos para o francês
e seguidos de reflexões por um francês. O documento contém 22 ff. e deve ser do começo do
século XVIII. O original do Memorial encontra-se no Arquivo de lndias em Sevilha.
(27) Francisco Adolfo de Vamhagen, História Geral, 111, 190.

30
table concisión y claridad, y distribuye su escrito en numerosos capitulas
muy breves" <28 >.

4. A Relation de Blaise François Pagan


O Conde de Pagan, Blaise François Pagan (1604-1665), engenheiro
militar francês, foi designado em 1642, dois anos depois da restauração
de Portugal, para servir neste país como marechal-de-campo. f: provável
que aí tenha obtido as informações e dados de que se utilizou para sua
Relation Historique et Geographique de la Grande Riviere des Amaza-
r.es dans l'Amérique <29>. A obra descreve o rio, seu comprimento e curso,
a longitude e latitude, profundeza e navegação, as nações indígenas, a ex-
pedição de Orellana, de Lope de Aguirre, dos leigos franciscanos e de
Pedro Teixeira. Como os demais, o autor louva a qualidade do ar, a fe-
cundidade das terras e águas e a riqueza do comércio para os estrangei-
ros. Acreditava-se que Pagan parafraseara a obra de Acuíia, mas o confron-
to dos dois textos mostra que aquele em vários pontos contesta e corrige
Acuíia <30 >.

5 . Diário de Samuel Fritz


Joaquim Nabuco escreveu, ao defender o direito do Brasil ao terri-
tório disputado pelos ingleses, na questão da Guiana Inglesa, que nada
nas conquistas de Portugal é mais extraordinário que a conquista do Ama-
zonas. Fundada Belém, navegado o grande rio, subido e descido, explo-
rados seus afluentes, criada a capitania do Norte, aos poucos, passo a
passo, estendia-se o domínio português sobre esse imenso território, que
hoje representa 3 milhões de quilômetros quadrados. Os portugueses, bra-
sileiros e indígenas aliados tiveram de enfrentar e vencer os vários assal-
tos e tentativas de posse de franceses, ingleses e holandeses e, com malícia
e ~udácia, dilatar a fronteira no caminho ocidental contra os espanhóis.
Basta lembrar que, "antes de 1580, a meridiana imaginária de Tor-
desilhas cortava a costa rente ao cabo do Norte, através da ilha do Marajá;
a Espanha tinha o senhorio de todo o curso do rio-mar, conforme aos
cálculos mais favoráveis à coroa portuguesa, como os de Diego Ribeiro e
dos cartógrafos sevilhanos, depois de I 640, a linha divisória infletia-se

(28) Historia de la Historiografia, li, 427. Acuila plagiou os § 2.0 , l .•, 5.•, 7.0 e 8.0 da
"Relaclón dei Descubrlmlento dei Rio de las Amazonas y sus Dilatadas Provlncias•, atribuída ao
Padre Alonso de Rajas (vide seus n.as XX, XXI, XXII e XXII!). O Padre Manuel Rodrigues,
procurador das províncias jesuístlcas da América Espanhola (16ll-1701), no seu EI Maranon >'
Amazonas, Historia de los descubrimientos, entradas >' reducl6n de naclones... (Madri , 1687),
reproduziu, suprimindo algumas passagens, o texto de Acuila. Cf. R. Vergas Ugarte, ob. cit., 185
e 187; B. Sánchez Alonso, Historia de la Historiografia , II, 190-191.
(29) Paris, Chez Cardln Bcsongne, 1656, trad. Inglesa por William Hamilton, An Hlstorlcal
and Geographlcal Descrlptlon of the Great Country and River of lhe Amazons in Amerlca, l..on·
don, 1661. A obra é dedicada ao Cardeal Mazarino.
(30) Segundo Francisco Adolfo de Vamhagen (ln cd. Maurlclo Herlarte, ob. c/1. , p. 72),
Pagan parafraseou. Em sentido contrário vide Rodolfo Garcia, nota I da seção XXXVII, p. ll9,
da História Geral, l.0 t .

31
para Oeste, recuando para além da confluência do rio Negro e Portugal
dispunha da maior força da imensa baixada amazônica" c31).
Vê-se, assim, a extraordinária importância da viagem de Pedro Tei-
xeira e a posse de Franciscana, dilatando a linha de demarcação do rumo
ocidental, apesar do poder das forças estranhas que perturbavam a costa
e da resistência espanhola que se opunha do ocidente para o oriente e se
personificou na figura do Padre jesuíta Samuel Fritz.
Natural da Boêmia, nasceu Samuel Fritz a 9 de abril de 1654 e em
1673 ingressou na Gompanhia. Passou às lndias Ocidentais em 1685/86,
com destino a Quito (32) de onde foi apostolar os Omáguas, que se locali-
zavam um pouco abaixo do Napo até a barra do Rio Negro, por espaço
de 250 léguas. Fritz desceu a aldeia dos Jurimáguas em janeiro de 1689
e depois ao Pará, escrevendo o Diário <33 >, traduzido em várias línguas
pela sua importância etnográfica e histórica. No Pará, onde chegou a 11
de setembro de 1689, permaneceu 22 meses, sempre discutindo e debaten-
do com as autoridades o reconhecimento dos direitos da Coroa espanhola
sobre os territórios onde se situavam suas missões (3 4 ).
Permitida pelo Rei a volta do Padre às suas missões, partiu em julho
de 1691. No seu Diário relata todos os sucessos da volta, as dificuldades
com a tropa que o acompanhava e que tinha por dever chantar o marco
divisório das possessões de Portugal e Espanha. Suas conversas com o
Vjce-rei, quando voltou a Quito e expôs os avanços portugueses, de _nada
adiantaram, vendo o Padre, assim sem resultado, os seus esforços.
O Diário relata os acontecimentos de 1689 a 1723, mas nada regis-
tra de 1707 a 1723 sobre as relações luso-brasileira-espanhola-peruanas
nas suas missões, claramente defendidas no famoso mapa de 1707 <35 >.
Para a história da expansão e posse de grande parte da Amazônia, inicia-
da com a viagem de Pedro Teixeira, é o Diário uma fonte de minuciosa
informação, e como tal tem seu destaque na historiografia Amazônica.
(31) H. Harrlsse, The Dlplomatlc Hl8tor; o/ Amerlca; lts /lrst chapter, 1452-1494, London,
1897, 92. Mapa em que a linha de demarcação de Ribeiro fica a 49'> 45' W. de Greenwich. Cf.
nota de Rodolfo Garcia, •o Diário de Samuel Fritz", RIHG8, 1918, t. 81, 397-455.
(32) Seguimos Rodolfo Garcia, art. clt., 355-374, que sumaria especialmente as Informações
das "Noticias Auténtlcas dei famoso Rio Maraí\on ... • Manuscrito da Real Academia Espanhola
de Ia Historia, de Madrid, publicado por D. Marcos Jlmenez de la Espada, ln 8oletln de la Socle-
dad Geogrd/lca, de Madrl, tomos 26 a 33, 1889·1892. Faleceu em 1725, segundo nota de Jaime
Cortesão. As datas de nascimento e entrada para a Companhia diferem das registradas aqui. Cf.
Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri (1750). Parte III. Antecedentes do Tratado. T. I.
Rio de Janeiro, Instituto Rio Branco, s.d., 190-191, nota 2.
(33) O original existia nos Arquivos do Colégio da Companhia de Quito. Foi publicado ln
8oletin clt., t. XX, 206-221. Existe tradução Inglesa Journal o/ the Traveis and Labours o/ Father
Samuel Fritz ln the rlver o/ the Amazons between 1686 and 1723, trad. de Georg Edmundson,
London, Hakluyt Society, 1922. O tradutor declara que se baseou em manuscrito de l!vora, mas
o Catálogo de Cunha Rlvara, ob. clt., não o cita. Samuel Fritz é autor também de famoso mapa
registrado em várias Bibliografias (cf. José Carlos Rodrlaues, 88, n. 0 1044; Alfredo Carvalho,
Biblioteca Exdtlca, li, 182). Nas Lettres Sdl/iantes et Curleuses, Paris, 1780-1783, 26 vols., trad.
alemã Der New Welbott wlt allerhand Nachrichten dern Mlsslonarlorum. Soe. Jesu ... , Augsburg
und Griitz, 1728-1755, 36 vols., reproduzem-se várias cartas e o mapa de Samuel Fritz. Sobre as
várias edições, cf. P. A. Carayon, Blbliographle Hlstorlque de la Compagnle de Jesus, Paris,
1864, 56-~7.
(34) Vide as razões de cada lado ln Dldrlo clt., ed. R. Garcia, 384-385.
(35) Republicado ln 80/etin clt., t. 72•73, e estudado por Rodolfo Garcia, art. clt., 368-374.

32
6. O Amazonas e os franceses
Criada em 1639 a capitania do Cabo Norte (hoje Território do Ama-
pá) e ocupada efetivamente a margem esquerda do Amazonas, tendo como
limite sententrional o Rio Vicente Pinzón ou Oiapoque, os franceses, que
desde 1626 se apossaram de Caiena, começam a tentar infiltrar-se para o Sul,
apesar da resistência oferecida pelos luso-brasileiros, que consolidavam a
posse da parte amazônica da Guiana.
O plano político-militar de expansão para o Sul foi organizado e
executado por Lefbure de la Barre e Pierre Eleonor de la Ville de Ferrolle.
Duas figuras distinguem-se, então, de um lado e doutro pelos estudos que
apresentam: o Marquês de Ferrolle e o padre jesufta Aloisio Conrad
Pfeil. O primeiro escreveu uma "Memória" (36) sustentando as razões fran-
cesas para a posse da região, e o segundo alegando os direitos portugue-
ses. A "Memória" é mais um documento polftico, escrito por um gover-
nador, cuja importância para a história é incontestável como fonte, mas é
menos um marco da historiografia especializada, como se revela o segundo.
Aloisio Conrado Pfeil (163 8-1701 ) , nascido em Constança, entrou
para a Companhia de Jesus em 1654 e a seu pedido foi destinado ao Ma-
ranhão, onde se distinguiu nas questões ·de limites com a França, pois
sabia pintar e era "insigne nas matemáticas e fortificações" (37 >.
Afora várias cartas ao Padre Geral da Companhia e mapas da re-
gião, escreveu Pfeil a "Anotaçam contra Huns Incoherentes Pontos ... " <38 >
e o "Compêndio das mais substanciais razões e argumentos que evidente-
mente provam que a Capitania chamada Norte situada na boca do Rio
das Amazonas legitimamente pertence à Coroa de Portugal" (39J, Na pri-
meira, que é a mais importante, quer escrever no papel "a verdade que à
primeira vista desta pública justificação (sobre o incidente com Buenos
Aires, impressa em 1681) achei em partes, ou oculta ou maculada". O Pa-
dre, que contra Castelá jurava não ofender nunca, esquivou-se de represen-

(36) "Mémolre écrlt et signé à Cayenne, le 20 Juin 1698 par le Marquis de Ferrolie, Gou,
verneur de la Ouyane Française•, ln Rio Branco, Mémolre présenté par les .lltats Unis du Brlsll
au Gouvernement de. la Confédération Sulsse, Arbitre, Paris, 1899, 2. 0 tomo, Documento n.• 4,
47,Sl. A cópia ··se encontra na Biblioteca Nacional de Paris. Pequeno trecho ln. 2.• Memdrla, 2.• t.,
idem, 195,198. Esta questão, debatida p<>r séculos e só resolvida com a sentença favorável ao
Brasil de 1.0 de dezembro de 1900, é matéria de história diplomática e foi examinada na obra de
Caetano da Silva L'Oyapoc et l'Amazone (Rio de Janeiro, 1893) e nas duas Memórias de Rio
Branco (Paris, 1899, I.• Memdrla com S tomos, sendo que o Ili é constituído dos Protocolos e Con,
ferênclas de I8SS·S6, tendo como defensor brasileiro Paulino José Soares de Sousa, Visconde do
Uruguai, e o IV e V tomos e um Atlas. Veja as duas Memdrlas francesas e os estudos de Artur
César Ferreira Reis, Limites e Demarcações na Amazônia Francesa, Rio de Janeiro, 1947, 1.0 tomo
(A Fronteira Colonial com a Guiana Francesa) e Portugueses e Franceses na Guiana Francesa,
Rio de Janeiro, 19Sl.
(37) Serafim Leite, Hlstdrla, ob. cit., IX, 48·S2. AI toda a bibliografia que seguimos.
(38) • Anotaçam contra huns lncoherentes Pontos no Tratado da Justificação, formado pelot
plenipotenclarios na Corte Real de Lisboa & Impressa no Anno de 1681 sobre os Limites do
Brasil ... •. Códice original da Biblioteca da Ajuda de 211 ff.. Ver bibliografia deste códice ln
Serafim Leite, ob. clt., IX, 48-S3 e Inventário dos Manuscritos da Blblloteca da Ajuda, Coimbra,
1946, n.• 1172.
(19) •compêndio das mais substanciais Razões e Argumentos, que evidentemente provam
que a Capitania chamada Norte situada na boca do Rio das Amazonas legitimamente pertence à
Coroa de Portugal, e que El Rey de França para ela como nem ao Pará, ou Maranhão tem, ou
teve Jus algum•. Original na Biblioteca da Ajuda.

33
tar igual papel quando das disputas com a América Espanhola. Sua ano-
tação começa praticamente em 1677, quando ele parte ·para o Maranhão,
onde chega em 31 de março de 1679.
O livro se divide em três partes: a 1. ª com quatro capítulos; nos
quais refuta os pontos da justificação e se estudam os limites, as bulas,
o ,grau e léguas, e se houve ou não a prescrição dos direitos reais; a 2.ª,
também com quatro capítulos, estuda os contratos de parte a parte, o úl-
timo ponto da demarcação, o "limite de direito do Canal do Rio Amazo-
nas para o Sul", a meridiana divisória pelo norte, as ilhas Molucas, extre-
mo limite do oriente; a 3.ª, de quatro capítulos, trata dos pontos onde
acabam as terras de Portugal e as de Castela, se Portugal possui mais ter-
ras para o ocidente do que as determinadas pela antiga linha divisória, a
posse de Franciscana, a viagem de Pedro Teixeira. Trata-se, assim, de um
estudo detalhado dos limites entre as terras de Portugal e de Espanha, com
um epílogo sobre a capitania do Norte, que é de D. Pedro II de Portu:.
gal contra o Governador de Caiena.

34
LIVRO SEGUNDO
Historiografia das Invasões
CAPITULO I

AS INVASÕES FRANCESAS

l . Considerações gerais. 2. As Singularidades de André


Thévet. 3. A História de Jean de Léry. 4. Claude d'Abbe-
ville. 5. Yves d'Evreux.

1. Considerações gerais

A crônica estrangeira, francesa, alemã e inglesa, trata das investidas


dos corsários ou das excursões de aventureiros atraídos pelo contrabando
ou movidos de curiosidade pela proeza ultramarina, ou ainda seduzidos
pela idéia de estabelecer no Novo Mundo uma colônia.
A obra das primeiras décadas, como se sabe, resume-se ao pau-brasil,
cuja primordial qualidade consistia numa tinta largamente empregada du-
rante muito tempo. Sua distribuição geográfica vinha do Amazonas a São
Paulo e os nativos chamavam-no Ibirapitanga, igual a "ibira", pau, e "pi-
tanga"., vermelho. O comércio português que vai presidir às relações en-
tre Portugal e o Brasil é um monopólio exclusivo do Estado. :e preciso
distingui-lo do comércio da lndia, que é um sistema absoluto de monopó-
lio e especulação, que caracteriza um verdadeiro capitalismo de Estado.
O Rei de Portugal é, em relação ao comércio Indico, um capitalista
autêntico de sua época <t >. O comércio colonial português com a lndia,
pelo menos até 1577, desenvolve-se por conta e risco do Rei, com navios
de propriedade da Coroa e, portanto, sem libertar a iniciativa privada,
que será o grande propulsor do capitalismo comercial de alguns anos de-
pois.
Já no Brasil, a iniciativa privada desempenha algum papel. A exclu-
sividade na exploração comercial continua do Estado, mas a Coroa esti-
mula os traficantes, vendendo o monopólio sobre determinado artigo pro-
duzido ou atribuindo-lhes direitos exclusivos para comerciar com determi-
nada região. Os riscos não são mais do Rei nem os navios propriedade da
Coroa. Como o empreendimento era dispendioso e a licença régia cara, for-
maram-se companhias ou associações que juntavam seus capitais. As vezes,
grandes capitalistas europeus, especialmente italianos, alemães e flamen-
gos, forneciam os capitais necessários. :e assim o caso de Giovani Francisco

(1) Vide sobre Isto J. A. Gorls, Etude sur les Colonles Marchandes Merldlonales (Portugais,
Espagnols, Itallens) à Anvers de 1488 a 1567. Louvaln, 1925.

J7
Affaitadi, de Bartolomeu Marchioni, de Antonio Welser, de Jacob Fug-
ger <2 >.
Em 1506, por exemplo, o Brasil foi arrendado a Fernão de Noronha
e outros cristãos-novos. Produziam-se então 20.000 quintais de madeira ver-
melha, e vendia-se a dois e meio e três ducados o quintal. Cada quintal
custava meio ducado, posto em Lisboa. Os arrendatários pagavam 4.000
ducados à Coroa.
Estas relações econômicas eram estabelecidas pelos traficantes de pau-
brasil (portugueses e franceses) e os índios. Os traficantes eram agentes
de mercadores que possuíam licenças régias para o embarque do pau-brasil.
A principal fonte relativa aos traficantes é o Livro da Nau Bretoa,
a que já nos referimos, e a principal fonte da atividade dos guarda-costas
limita-se ao Diário da Navegação de Pero Lopes de Sousa, também .já
referido <3 >.
A missão de Cristóvão Jacques foi a de expulsar os franceses que
então dividiam com os portugueses os lucros do comércio do pau-brasil,
que não eram poucos, pois rendiam a S.M. no contrato de arrendamento
por dez anos, vinte mil cruzados por ano <4l. Estivera no Brasil em 1516
e 1519, fundara uma feitoria junto a Itamaracá, e aqui voltara em 1526-29.
Era tal a importância do comércio francês do pau-brasil, que durante al-
gum tempo, como disse Capistrano de Abreu, não se soube se o Brasil
ficaria pertencendo aos Peró, como chamavam os indígenas aos portugue-
ses, ou aos Mair, franceses, segundo os indígenas.
Um dos maiores progressos que tem feito o estudo da nossa história
no século XVI tem sido exatamente o de recuar a época da chegada dos
franceses. A princípio, só se noticiava a expedição de Villegaignon, em
1555. A publicação do Diário da Navegação de Pero Lopes recuou-a
para 1531; as informações de Cristóvão Jacques, para antes de 1526; e,
finalmente, os documentos publicados por D'Avezac denunciam a pre-
sença francesa em 1504 <ã). Tal é a viagem do capitão Bínot Paulmier
de Gonneville, no navio L'Espoir, que, partindo do Honfleur, deve ter
atingido a Bahia e Pernambuco 16 ) ou Cabo Frio (7)_

(2) Sobre os capitais e as finanças Internacionais desta época. vide Richard Ehrenberg, Das
Zeltalter der Fugger. Gddkapital und Kreditverkehr im 16. fahnhundert, 1896, 2 vais.; tradução
Inglesa de H. M. Lucas, Capital and Finance in the Age of lhe Renaissance. A Study of lhe Fuggers
and thelr Connections. New York, s.d.; tradução francesa, Le siecle des Fugger. Paris, 1955;
Jacob Strleder, facob Fugger the Rlch, New York, 1931, traduzido do alemão; León Schlck, facob
Fugger, Paris, 1957.
(3) Cristóvão Ja~-iues não deixou nada escrito. Sobre ele, cf. HCPB, t. 2, 361-364.
(4) Vide Pedro Mariz, Diálogos de Vária História, J.• ed., Lisboa, 1806, 72.
(5) Campagne du navlre L'Espolr de Honfleur, 1503-1505. Relalion authentique du voyagP
du capltalne de Gonnevi/Ce es nouvelles terres des /11des. Paris. Challamel Ainé, 1869. Foi prlmelr•,
publicado nas Nouvelles Annales des Voyages, 1869, II e III, junho e julho de 1869. Reeditac·,
por Charles A. Jullen, Les Françals en Amérique pendant la premiere moitié du XV/e.
siecle. Paris, 1946, 87-115. Tradução portuguesa de Tristão de Alencar Ararlpe in RI HGB, 18116,
t. 49. 2 .• parte, 333-360.
(6) Segundo Rodolfo Garcia, as Incursões na Bahia e Pernambuco provam-se com as refe-
rências de Anchieta e um Jesuíta anônimo. Nota V, 119-120, ln Varnhagen, História Geral,
t. t. 4.• ed.
(7) A dedução de ter sido Cabo Frio um dos pontos atingidos é de D'Avezac, ob. cit., e
Considérations géographiques sur I' Histolre du Brésil, Paris. 1851, 88.

38
Esta Relação, como escreveu o Professor Charles Verlinden, "apre-
senta ao mesmo tempo interesse para a história das civilizações indígenas
antes de sua aculturação, para a história da descoberta e para aquela mes-
ma história da colonização ulterior com todas as suas conseqüências" <8 >. A
informação sobre a viagem, a terra encontrada em 1504, seus habitantes
- dois dos quais Essomeric filho de um cacique e Namoa <9 > foram leva-
dos à França - consta da declaração que Gonneville e dois armadores
fizeram em 19 de junho de 1505 no Almirantado de Ruão <10>.
Outro documento importante sobre as atividades econômicas dos fran-
ceses no Brasil é o relativo à captura de uma nau francesa, La Pellerine,
comandada pelo capitão Duperet, que aqui esteve em 1530-1531, e foi
capturada por portugueses no Mediterrâneo <11 >.
Apesar de serem muito escassos os documentos relativos à vida eco-
nômica entre 1500 e 1530, pode-se dizer que os portugueses usaram sempre
a troca ou a permuta quando quiseram obter o braço indígena, víveres e
pau-brasil. A princípio, limitam-se a trocar as suas bugigangas pelo pau-
brasil, propriamente. Depois passam a exigir também o trabalho dos indí-
genas na derrubada das árvores, no corte dos toros e no transporte até a
feitoria. Não tardaram a chegar à conclusão de que além da troca da bu-
giganga pelo pau-brasil ou pelos víveres podiam usar a permuta apenas
para obter o trabalho. Inicia-se, assim, novo período da exploração do
trabalho indígena.
O contrabando francês do pau-brasil alimentara suas contínuas in-
cursões ao território brasílico. As lutas pela sua redução nas praias do
Norte já foram referidas. O Diário de Pero Lopes é obra de guarda-costa,
que corre a costa para limpá-la de corsários, que teimavam em aproveitar-
se do comércio de tinturaria. A princípio, os franceses continham-se entre
o Cabo de Santo Agostinho e a Bahia <12>. Repelidos de Pernambuco pela
energia e bravura de Duarte Coelho, afastados da Bahia e suas vizinhanças
por força da nova cidade, passaram à capitania de Pero de Góis (Paraíba do
Sul) e à terra de Martim Afonso (Rio de Janeiro), onde seus amigos fiéis,
os tupinambás, facilitavam-lhes o comércio do pau-brasil que ali existia
em abundância.
Eram navios corsários de aventureiros que faziam sem método e sem
plano a exploração mercantil de pau-brasil. Com o povoamento que se de-

(8) Paulmier de Gonnevllle e os índios do Brasil em 1504, separata da RH, n.• 39, 14.
(9) Esses índios, o primeiro de quinze anos e o segundo de 35 a 40 anos, foram dos
primeiros brasis a chegar à França, tendo partido daqui a 3 de Julho de 1504. Foram levados
•porque é costume entre os que chegam a novas terras das lndlas trazer prova à cristandade de
alguns lndlos•, diz a declaração (edição de Ararlpe, 345). Não é assim de estranhar a festa bra-
sileira de Ruão em 1550, com 50 índios brasileiros. Vide Ferdlnand Denis, Une Fête Bréslllenne
célébrée a Rouen en 1550, Paris, 1850.
(10) Além dos estudos de D'Avezac, Jullen e Verllnden, Já citados, vide P. Gaffarel, Hlstolre
du Brésll Français, Paris, 1878, e Tristão de Alencar Ararlpe, "Primeiro Navio Francês no Brasil",
R1HGB, 1886, t. 49, 2.• parte, 315-331.
(11) Foi publicado por Varnhagen na I.• edição de sua História Geral, t. 1, n . 33, e no
Diário da Navegação de Pero Lopes, edição de Eugênio de Castro, Rio de Janeiro, 1940, 378,
385-386.
(12) Carta de Luís de Góis, escrita de Santos a D. João Ili, 12 de março de 1548. HCPB,
III , 259.

39
senvolvia cada vez mais, o estabelecimento de fortalezas em vários pontos
da costa e a freqüência dos navios portugueses tornava-se progressiva-
mente mais difícil e mais perigosa a exploração do contrabando. Foi então
que se organizou uma empresa com recursos particulares e em parte for-
necidos pelo Rei.
Os episódios do estabelecimento francês no Rio de Janeiro resumem-
se em poucas palavras: instalados em novembro de 1555 na ilha que até
há pouco recordava o seu nome, Villegaignon armou-se, fez-se querido
dos indígenas, explorou o pau-brasil e, afinal, desiludido com o futuro da
Colônia ou com as brigas religiosas trazidas da Europa, embarcou para a
França em 1559. Seu sobrinho Bois le Conte substituiu-o sem conseguir
melhorar a situação da França Antártica. O fato é que apenas em três
dias, em 1560, conseguiu Mem de Sá destroçar os franceses que durante
anos se haviam mantido ali. As lutas de 1565 e 1567 são apenas episódicas;
já não havia mais, desde 1560, intenção colonizadora.

2. As Singularidades de André Thévet


Dois são os cronistas deste episódio. André Thévet ( 1504-1592) <13 >
e Jean de Léry (1534-1611) (14>. Thévet era homem já viajado, de melhor
formação cultural, e autor de uma Cosmografia (l5) quando acompanhou
Nicolas Durand de Villegaignon ao Brasil. Este projetara fundar aqui
uma colônia francesa, a França Antártica. Thévet permaneceu no Brasil
três meses, de 10 de novembro de 1555 a 31 de janeiro de 1556. Dessa
permanência na terra e de suas observações, especialmente etnográficas,
deixou uma crônica valiosa, testemunho dos fatos históricos e registo da
vida. dos grupos indígenas aliados dos franceses.
Les singularités de la France Antartique <1 6 1 de Thévet é história
mais natural que civil, mais singular que geral. ~ inteiramente consagrada
aos costumes e particularidades dos indígenas e às singularidades da flora
e fauna. A história da colônia francesa, sua instituição, é quase inteira-
mente relegada a um papel secundário. Thévet, de volta à França, foi
nomeado cosmógrafo e historiógrafo e escreveu vários outros trabalhos <17 >.
(ll) L'Abbé Valentln Dufour, Jntroductlon à La Grande et Excellente Clt4 de Paris.
Paris, 1881, IV e XV. Até Gaffarel (1880) considerava-se o ano de 1502 como o do nascimento
de Thévet.
(14) Sobre a llteratura francesa relativa ao Brasil, vide R. Rlcard, "Le Brésll dans la lltté-
rature françalse au XVUme sl~cle", RH, 1922, n.• 9, n.os 41-44, 121-134. São documentos e
não crõnlcas: o Dlscours sur la navlgatlon du chevaller de Villegalgnon en Am4rlque de Nicolas
Barre (Paris, 1558) e o Brlef recuell de l'affliction de l'Egllse des fldeles du pays de Br4sll (s. 1.
1566), e as cartas publicadas por Martin Le Jeune (Paris, 1557), reproduzidas na Histolre du
Br4sll Françals de P, Gaffarel (Paris, 1878).
(15) Cosmographle du Levant, Lyon, 1554-1556.
(16) I.• ed., Paris, 1558; 2.• ed., Antuérpia, 1558; l.• ed., Paris, 1878, preparada por P.
Gaffarel, com uma Introdução blbllográfica e notas. Esta é a melhor edição. Há uma tradução
portuguesa, Singularidades da França Antdrtlca, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1944,
com notas e Introdução de Estevão Pinto (Brasiliana, vol. 219); nov. ed. Itatiaia, B. Horizonte, 1978.
(17) Cf. a l.• cd. de Gaffarcl, Introdução biográfica, e a Introdução do Abade Dufour,
ob. cll.

40
3. A História de Jean de Léry
O outro cronista é Jean de Léry, autor da Histoire d'un voyage fait
en la Terre du Brésil <18 >, que aqui i,.portou aos sete de março de 1557,
voltando a 4 de janeiro de 1558. Calvinista de formação muito modesta,
com vinte e dois anos veio ~o Brasil acompanhando os quatorze genebrinos
enviados por Calvino e como narrador desta expedição sua história conta
os sucessos da mesma e as lutas religiosas da colônia. :e documento etno-
gráfico, de história natural e civil. ·
Thévet editou suas Singularidades vinte anos antes da Narrativa de
Léry, ou cinco, se aceitarmos a declaração deste de que redigira sua obra
em 1563. O fato é que Léry foi o primeiro a imputar a Thévet faltas graves
e erros grosseiros, iniciando assim, a campanha contra a credibilidade do
testemunho histórico deste. Desde então, ele foi sempre tido como superior
ao capuchinho francês pelos autores brasileiros e estrangeiros. O próprio
Gaffarel, que editou as melhores edições de Thévet e Léry e escreveu ele
próprio um estudo sobre a história do Brasil Francês no século XVI (19),
censura a fidelidade e o estilo de Thévet, considera sua erudição nem
sempre sólida, louvando-o apenas como o primeiro ou mais antigo dos
historiadores franceses da América.
Coube a Heulhard reivindicar para Thévet o crédito merecido. Thévet,
diz ele, não é um polemista; ele se engana, mas não mente como Léry.
Thévet é o historiógrafo da expedição e Léry nunca foi mencionado até
1578. Ele surge inopinadamente com uma relação de viagem, onde se
atribui um papel importante e demonstra memória fantástica, transcrevendo
discursos inteiros de Villegaignon. Léry aparece quando todas as perso-
nagens já morreram, Calvino, Villegaignon e Coligny, e o que ele deseja
é evitar que Thévet fixe a história da colônia francesa no Brasil. O pla-
giário torna-se o censor do que ele pilhou e a história torna-se prisioneira
da legenda c20>.
Heulhard era uma voz dissonante na unanimidade com que se con-
siderava Thévet um mentiroso, imaginativo e infidedigno. Mas a melhor
crítica, crítica de textos, bem informada e erudita, invalidando o acordo
de tantos, restaurando senão a total credibilidade, mas, pelo menos, a pri-
mazia e a completa originalidade de Thévet, é a de Rodrigues Leite c:;1 1 >.
Para ele, quase tudo que Léry conta, outros viajantes já contaram. Frases

(18) !.• ed. Rochelle, 1578; 2.•, Gen~ve, 1580, e várias outras edições e traduções. A
melhor, baseada na segunda, é de Paul Gaffarel, Paris, 2 vols., com notas e notícias bloblbllográfl,
cas. A primeira tradução brasileira, segundo a edição tle Gaffarel, de 1880, é de T. Alencar Ararlpe,
RIHGB, LI!, 2.0 , 11-372. A melhor tradução portuguesa, feita também segundo a edição de Gaffarel,
é de Sérgio Milliet, Viagem il Terra do Brasil, São Paulo, Livraria Martins, 1941. A obra de
Léry conserva permanente interesse público. Anne Marie Chartler editou lndlens de la Renalssance.
Hlstoire d'un voyage fait en la terre du Brésll, Paris, Epl, 1973, e Jean-Claude Morlsot promoveu
edição fac-similar da de 1580, mais completa que a primeira e menos desordenada que a terceira,
repleta de novos dados por ele introduzidos (Gen~ve, Droz, 1976).
(19) Hlstoire du Brésil Français au selzlême slecle, Paris, Malssonneuve et Cle., 1878.
(20) A. Heulhard, Villegalgnon-, Rol d'Amérique. Un homme de mer au XVle. slecle, 1510-1572,
Paris, E. Leroux, 1897, 311·313.
(21) Francisco Rodrigues Leite, fean de Léry, Via/ante de Singularidades, Separata da Rev.
do Arquivo Municipal (São Paulo), n.• 108, São Paulo, 1947.

41
inteiras que usa, outros já usaram. Entre Thévet e Léry há uma fonte. A
fonte direta não é Léry, é o outro. :e uma lição, senão nova, já que
Heulhard a defendera em 1897, pelo menos explicada com método, os
textos à vista e em comparação. Para que esta tese seja inteiramente
esclarecida só falta que Rodrigues Leite faça um confronto mais completo,
não se limitando a alguns exemplos <2 2> .
:e interessante resumir a opinião de Claude Lévi-Strauss <23>, que obser-
va que as qualidades excepcionais de Léry não se devem meramente, como
ele próprio escreveu, à bela matéria, que " esta quarta parte do mundo
desconhecido dos antigos" lhe oferecia a ele, um jovem estudante de teo-
logia. Lévi-Strauss relembra que Léry perdeu o texto escrito e reescrito
duas vezes e finalmente conseguiu reconstruí-lo e publicá-lo em 1558.
Para Lévi-Strauss é o primeiro exemplo de uma etnografia participatória,
cuja vivacidade e frescura são inigualáveis até o aparecimento de Mali-
nowski. Léry aprendeu a Hngua, foi de localidade em localidade e des-
creveu tudo: a paisagem, os animais e as plantas. Ele não somente viu os
índios como e!es nunca mais foram vistos, mas elaborou seu livro na
ordem em que seria subseqüentemente a das monografias: primeiro antro-
pologia física, depois ornamentos, alimentação, instituições como a guerra,
a religião, as relações de família, o sistema político e finalmente a língua.
Louva sua descrição dos ritos do canibalismo, que para ele figura entre as
obras primas da literatura etnográfica de todos os tempos, superior mesmo
à de Hans Staden, que escreveu de experiência própria, pois ele mesmo
esteve para ser comido pelos índios. Como protestante ele :-:ampara os
católicos e os índios, e sente-se que ele está dividido entre seus preconceitos
religiosos e a sedução irresistível exercida sobre ele pelos índios. Ao con-
trário de seus contemporâneos - alemães, franceses e portugueses que
viveram no Brasil - , ele trouxe de volta de sua estada de dez meses um
trabalho cujas qualidades literárias e filosóficas são tão comprometidas que
correram o risco de empurrar para trás seus méritos etnográficos. O im-
portante nesta nota crítica de Lévi-Strauss que sumariamos, é confessar
que os autores que maior influência exerceram sobre ele foram Jean de
Léry e Ferdinand Saussure <2 4>.

4. Claude d'Abbevilie
Sabia-se em Portugal e Espanha que os franceses haviam se estabe-
lecido no Maranhão, fundando S. Luís em 1612. Por isso Gaspar de Sousa
(1612-1617), novo Governador Geral, recebeu ordens de ir a Pernambuco
organizar a força que deveria expulsar os franceses. As primeiras histórias
são, portanto, dos franceses e por elas começa a historiografia do século

(22) José Honório Rodrigues, nota critica sobre o opúsculo acima ln BHB, L• e 2. 0 se-
mestres de 1947, Ministério das Relações Exteriores, 1947, 66-67.
(23) Claude Lévi-Strauss, • An ldyll among the Tndians", Times Lilerary Supplement, 6 de
agosto de 1976, p. 970.
(24) Jd. Ibidem.

42
dezessete. Quando se travaram as lutas no Norte entre as forças hispânicas
e as francesas, a França não era ainda um grande poder naval. Só passou a
ocupar posição dominadora depois do declínio de Espanha e do esfacela-
mento do Império Espanhol.
Suas investidas são feitas, assim, antes que possuísse, como conseguiu
no fim do século, junto com os Países Baixos, um terço do poder naval,
ficando outro terço com a Inglaterra e outro com a Espanha, Portugal,
Rússia, Dinamarca e Suécia <25 >. Deste modo a luta colonial no Mara-
nhão é um jogo de poder, realizado um pouco antes de atingir a França
sua superioridade tão evidente em 1659, quanto termina a guerra com a
Espanha. Talvez por isso e pelo manifesto interesse europeu da França,
se compreendam a falta de socorros e a pequena resistência que ofereceram
os franceses do Maranhão.
Na historiografia francesa contemporânea cabe a primazia a Claude
d'Abbeville, com sua Histoire de la Mission des Peres Capucines en l'lsle
de Maragnan <26 >.
"A Histoire de la Mission pode dividir-se em três partes: os dez pri-
meiros e os oito últimos capítulos narram a vinda ao Maranhão e a volta
à França; os capítulos 35 a 43 interessam à corografia e à história natural;
nos outros predomina a etnografia" <27 >. Claude d' Abbeville permaneceu
quatro meses no Maranhão e suas observações excedem tudo quanto se
escreveu naquela época inclusive os de seu continuador Yves d'Evreux,
especialmente no campo da geografia e etnografia do Maranhão <2 8).
"Frei Cláudio narra os primórdios da empresa na França, a viagem
e chegada ao Maranhão, as negociações com os naturais, a fundação da
fortaleza, a volta para a terra natal. Descreve as plantas, os animais, dá
curiosas notícias sobre os Tupinambás" <29>. Os capítulos XXVII (Como
se ergueram na Ilha do Maranhão os estandartes de França), XXVITI (Leis
Fundamentais decretadas na Ilha do Maranhão) e XXIX (Petição apre-
sentada pelos franceses ao Sr. de Rasilly) resumem aspectos históricos
principais do rápido domínio francês do Maranhão. A obra contém no
final extratos de cartas de Yves d'Evreux, de Arsene de Paris, companheiros
de Missão, e do Sr. Pezieux dirigidas a Abbeville.
Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia exaltam a importância da
contribuição etnográfica e lingüística americana de Abbeville, sendo que

(25) G. N. Clark, The Seventeenth Century, Oxford, 1931, 121.


(26) A Hlstolre é de Paris, L'lmprlmerle de François Huby, 1614; Les Frults de la Mlsslon
des Reverends Peres Capuclnes en l'Isle de Maragnan... Lllle, De l'lmprlmerle de Chrlstofle
Beys, 1614.
(27) Caplstrano de Abreu, Prefácio à reprodução fac-similar da Hlstolre, Paris, 1922. O
prefácio pode ler-se ln Ensaios e Estudos, 2.• série, ed. Sociedade Caplstrano de Abreu, Rio, 1932,
231-240. Este prefácio é uma obra-prima no gênero e sabe-se hoje quanto custou a Caplstrano
escrevê-lo. Vide Correspondência de Capistrano de Abreu, ed. de José Honório Rodrigues, Insti-
tuto Nacional do Livro, 1954-1956, 2. 0 vol., 105, 110, 128, 132, 138; 2.• ed. Rio de Janeiro, 1977 •
...(28) Rodolfo Garcia, Prefácio, ed. bras. da Coleção Biblioteca Histórica Brasileira, São
Paulo, Livraria Martins, 1945, em trad. de Sérgio Mllllet.
(29) Caplstrano de Abreu, "Prolegômenos" ao livro V da História de Frei Vicente do Sal-
vador, 3.• ed., 429.

43
o primeiro solicitou ao segundo que recolhesse as palavras tupi e formasse
um glossário (30). ,

A Histoire foi traduzida por César Augusto Marques para o portu-


guês em 1874 e reeditou-se por iniciativa de Capistrano de Abreu, sob o
patrocinio de Paulo Prado, em Paris, em 1922. Sérgio Milliet fez nova
tradução em 1945 (31l.
A tradução de César Marques era considerada como deplorável. "Em
casa só tenho a tradução de César Marques, muito pior do que imaginava.
Nous ne pouvons nous passer d'esclaves: não podemos passar a escravos!
Grand-pêre: pai grande! Felizmente não há mal que sempre dure. Ainda
poderemos ler o original francês, sem ir à Biblioteca ou desembolsar 400
e 500 francos" (32 l. "Agora tenho de escrever a introdução do Claude
d'Abbeville que Paulo Prado vai imprimir, libertando quem não é rico ou
dispõe das grandes bibliotecas públicas da deplorável tradução de César
Marques" (3 3 l.
A edição fac-similar de 1922 vem acompanhada de um excelente
prefácio de Capistrano de Abreu que, reunido aos prolegômenos da edição
de Frei Vicente do Salvador, constitui a melhor síntese geral da questão,
satisfazendo assim sua aspiração de fazer "uma revista geral dos franceses
desde a sua aparição até a chegada de Jerônimo de Albuquerque". Como
Capistrano achava que "a história geral dos franceses no Maranhão ainda
não fora escrita" e que ele trataria "de suprir essa lacuna" (3 4l, vê-se
que o prefácio publicado nesta edição não foi o que pretendeu fazer,
pois limitou-se ao exame da obra de Abbeville e na nota de Frei Vicente do
Salvador estuda as fontes gerais do problema (35).
De Abbeville existem outros escritos menores, como L'Arrivée des
Peres Capucins <36 >, que representam na historiografia o mesmo papel da
(30) Correspond2ncla, ob. clt. , vai. li, 128, vai. Ili, 103 e 262. V. Rodolfo Garcia, Glossário
das Palavras e Frases da Llngua Tupi, contidas na • Histoire de la Mlsslon des Peres Capuclnes
en l'Isle de Maragnan et Terres Clrconvoisines" do Padre Claude d' Abbevllle, Rio de Janeiro,
Imprensa Nacional, 1926.
(31) História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Maranh4o e suas circunvizi-
nhanças, Maranhão, Tlp. do Frias, 1874; a reprodução fac-similar na série Eduardo Prado,
1922, foi limitada a cem exemplares; História da Missão etc., trad. de Sérgio Mllliet e Introdução
e notas de Rodolfo Garcia, Biblioteca Histórica Brasileira, São Paulo, Livraria Martins, 1945.
(32) Caplstrano de Abreu, Correspondência, ob. cit., li, 105.
(33) Correspondência, II, 128. A edição de 1922, limitada a 100 exemplares, não libertou
o leitor modesto, pois esta Já era Inacessível em sua época. Basta dizer que a Impressão foi
contratada por 12 mil francos. "Não f!quei satisfeito: parece coisa mais de bourgeols gentllhomme
que de amigo da História•. Correspond2ncia, li, 158.
(34) Correspondência, 11, 1 to, 132.
(35) O livro de Paul Garfarei, Hlstoire du Bréstl Français au seizieme slecle (Paris, 1878),
"que tanto nos Instruiu, quando apareceu•, diz Cap!strano de Abreu, "é supcrr!clal e cheio
de erros• (Correspond2ncia, li, 185). A obra teve realmente grande aceitação no Brasil, mas
aos poucos foi-se desvalorizando. cr. Ramiz Gaivão, • O Novo Livro do Sr. Paul Garfarei",
Revista Brasileira, t. !, 1879, 56-69, 181-193, 275-284, e Gabriel Gravler, "Examen critique de
l'Hlstolrc du Brésll Français au sclzleme slecle", Extralt du Bulletin de la Société de Géographle,
Parls, novembro, 1878.
(36) L'Arrivée des Peres Capuclns, la conversion des Sauvages 4 nostre Salncte Foy.
Declarée par R. P. Claude Abbevllle. Predicateur Capucin, Paris, chez lean Nigaut, MDCXIII;
outra ed., Lyon, Grlchard Pallly, MDCXIII; e a trad . alemã da ed. Nlgaut, Die Ankunfft der
Vaetter Capuciner Ordens in dle Neuen Indien Mt1ragnon genannt. Augsburg, Chrysostomum
Dabertzhofer, 1613; Discours et congratulalion 4 la France sur l'arrlvée des peres Capucins en
l'lnde nouvelle de l'Amérique Meridionale en la terre du Brésil, Paris, Denys Lang!oys, 1613;
outra ed. A. Toumon, Claude Mlchel, 1613.

44
Carta de Caminha, embora lhe seja muito inferior, na capacidade de
apreensão e observação da terra e da gente nova. L'Arrivée contém a
carta de 20 de agosto de 1612, em que Abbeville conta a viagem, a
chegada a 26 de julho, a primeira missa e sua impressão dos selvagens:
"c'est un peuple tout acquis et gaigné". A viagem e a chegada estão mais
bem descritas na própria História.

5. Yves d'Evreux
Frei Yves d'Evreux (1577?-1620?) presidiu o grupo de capuchinhos
que se uniram à aventura francesa no Maranhão, aqui se demorando dois
anos. Escreveu a Suite de l'histoire des choses plus mémorables advenues
en Maragnan, les années 1613 et 1615 <37 >, logo destruída "par fraude et
impetié, moyennant certaine somme de deniers entre les mains de François
Huby, imprimeur" <38 >, salvando-se um exemplar mutilado, que serviu a
Ferdinand Denis para publicar a Voyage dans le Nord du Brésil <39l. Dez
anos depois publicou César Augusto Marques a tradução portuguesa do
texto organizado por Ferdinand Denis (40l. Conta este que François Huby
tomou-se o intrumento mesquinho de uma ação política que tinha por fim
evitar qualquer aborrecimento à Espanha, desde que foi feita, pelo casa-
mento de Luís XIII com uma princesa espanhola, a união das duas coroas.
Assim, qualquer projeto de conquista na América deveria ser abandonado,
e esquecida qualquer relação que descrevesse empreendimento anterior
ou da época.
A obra do capuchinho d'Evreux estava condenada. Salvou-a François
de Razilly, recolhendo as folhas, na própria tipografia, excetuados alguns
fragmentos, constituindo lacunas tão importantes que não foi possível
reunir um exemplar completo. O exemplar depositado na Biblioteca
Nacional foi totalmente esquecido até que em 1835 o reencontrou Denis,
que dele deu notícia na Revue de Paris, em uma série de artigos. D.
Pedro II mandou copiá-lo e o único exemplar da Biblioteca Imperial foi
desde então conhecido de autores brasileiros como Vamhagen, Pereira da
Silva, João Francisco Lisboa e Caetano da Silva, que o citam <41 >. Perdi-

(37) Paris, De l'lmprlmerle de F. Huby, MCDXV. Cf. descrição do livro ln J. Ch. Brunet,
Manuel du Llbralre, li, 87 e Strell, Blbllqtheca Mlsslonum, li, 2.378-2.379.
(38) Yves d'Evreux, nota Denis, 930.
(39) Leipzig e Paris, Llb. A. Franck, 1864. Um dos três únicos exemplares da Suite se
encontram na Biblioteca Nacional de Paris. Capistrano de Abreu, "Prolegélmenos•, ob. clt., 430.
(40) Viagem ao Norte do Brasil feita nos anos de 16/J a 1614, pelo padre ... com Introdu-
ção e notas de M. F. Denis, trad. por . . . Maranhão, Tlp. de Frias, 1874. Há ulI)a reedição
da tradução de Ci!sar Augusto Marques com uma explicação desvaliosa de Humberto de Campos.
Cesar Augusto, depois da tradução, escreveu pequena memória lida em 16 de Julho de 1886 no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, presente D. Pedro II (" A obra histórica do reverendo
capuchinho francês Ivo de Evreux e M. Ferdlnand Denis", RIHGB, 1893, t. LVI, parte 1.•,
185-187). Nela descreve a destruição dos exemplares, a salvação do exemplar então considerado
único, a cópia mandada fazer por D. Pedro, sua correspondência com F. Denis, a descoberta
por este de outro exemplar com mais três folhas do que o da Biblioteca Nacional de Paris, per,
tencente ao bibliógrafo francês Dr. Court, a aquisição por Denis deste exemplar depois do
falecimento do mesmo. Nada se sabe sobre o destino do exemplar que pertenceu a F. Denis.
(41) Introdução de Ferdlnand Denis, ln Voyage cit., p. XXVI. AI também sua bioblbliografla.
A Biblioteca Nacional do Rió de Janeiro possui cópia em dois volumes do exemplar da Biblioteca
de Paris, usado por F. Denis para a edição de 1864.

45
nand Denis tinha a obra na mais alta conta, considerando-a um documen-
to de importância real para a história do Brasil, destinado a constatar os
fatos que sucederam à fundação de São Luís; julga, ainda, que pela inge-
nuidade e cor do seu estilo e pela finura de suas observações, Yves
d'Evreux pertencia à série dos escritores franceses que continuam a
época de Montaigne e pressagiam o grande século. '
Capistrano de Abreu escreveu primeiro "que pouco se aproveita para
a história ( do Maranhão) no livro de Yves d'Evreux, que preferia per-
der-se em considerações teleológicas, metafísicas e místicas. As informações
etnográficas são valiosas" (42 >. Mais tarde, ao escrever o prefácio da
edição de Claude d'Abbeville, dirá que "a mais de um respeito Yves d'Evreux
completa o antecessor: seu cabedal ·lingüístico é muito mais abundante e
instrutivo, pois sua assistência na ilha durou mais tempo, mas a observação
sabia-lhe menos que a introspecção, e muitas vezes os fatos afogavam-se
em considerações teleológicas e místicas, que nos revelam sua psicologia
sem alargar os horizontes" <43 >. A opinião atual parece aceitar a tese de
tJ.ue para a lingüística e a etnografia americanas a obra é fundamental, mas
não para a história <44 >. Quem a ler notará muitas observações curiosas sobre
costumes da gente, colonos e índios, e os processos de povoamento.

A obra é raríssima, talvez das mais raras da Brasiliana. Denis encontrou o


exemplar incompleto da Biblioteca Nacional de Paris e depois adquiriu outro exem-
plar com mais três folhas, pertencente ao bibliógrafo francês Dr. Court. Capistrano
de Abreu já sabia, em 1906, que existia um exemplar em Chartres e pedia a missi-
vista não mencionado que copiasse lá o que faltava no exemplar de Paris, cujas
páginas indicava, segundo a informação de Denis. Dizia mais não saber se o exem-
plar de Chartres estava completo e informava da existência de um exemplar em
Nova Iorque, pertencente ao Sr. Kalbfleisch, o qual possuía folhas inexistentes no
de Paris. Sabia ainda Capistrano da existência de um exemplar em Roma, então já
desaparecido, supondo tratar-se do mesmo do Dr. Court e depois existente em Nova
Iorque (45) •
Sabemos que o exemplar do Dr. Court foi parar nas mãos de F. Denis e
pudemos supor que este é o exemplar do Dr. Kalbfleisch, depois adquirido pela New
York Public Library. Em 1918, Capistrano escreveu ao Professor John Casper Bran-
ner pedindo-lhe obtivesse cópia do exemplar da Biblioteca de New York, comuni-
cando esta providência a João Lúcio de Azevedo (46) ,
Em 1970. estando em Nova Iorque, examinei o exemplar da Biblioteca desta
cidade e um de meus alunos na Universidade de Colúmbia, Daniel Raposo Cordeiro,
copiou as páginas em falta. Comuniquei isto ao meu amigo Professor Carlos Mo-
reira, antropólogo e muito interessado em brasiliana e ele pediu a sua Senhora, Ana
Lúcia, que confrontasse na Biblioteca de Nova Iorque as páginas copiadas com o
original, para maior segurança do texto. Em 1971 escrevi para o Embaixador Aurélio

(42) "Prolegõmenos•. ob. clt., 430.


(43) Prefácio da edição fac-similar de 1925. Vide reprodução ln Ensaios e Estudos, 2.• série,
1932, 240.
(44) Ferdlnand Denis dizia , no que discorda de Caplstrano de Abreu, que Yves d'Evreux
era •um observador ciarivldente dos costumes de uma raça por assim dizer extinta•. Introdução
cit., XXIX . Outros escritores menores franceses como os François de Bourdemard (Bourdemer
ou Bourdemare) e Archange de Pembroke achaqi-se perdidos (v. Ferdlnand Denis, introdução ,
ob. clt., XVI, XIX-XX) e Capistrano de Abreu, "Prolegômenos•, ob. clt., 430, e outros como o
Discours, Já citado ou as cartas que se encontram nas obras de Abbevllle e d'Evreux , Já citadas,
apresentam detalhes curiosos.
(45) Correspondlncia de Caplstrano de Abreu, ob. clt., I, 65.
(46) Correspondência de Caplstrano de Abreu, ob. clt., II, 110.

46
de Lyra Tavares solicitando-lhe apurasse se era possível conseguir cópias das páginas
do exemplar de Chartres inexistentes em Paris. Incumbido o serviço cultural da Em-
baixada de realizar a pesquisa, a informação desoladora era a de que o exemplar
de Chartres havia desaparecido na 2.• Guerra Mundial. Apesar disso é possível fazer
atualmente uma edição mais completa.

A Histoire véritable de ce qui s'est passé de nouveau entre les !rançais


et portugais en l'isle de Maragnan au pays de Toupinambous narra do
ponto de vista francês a batalha de Guaxinduba <47 l, na qual foram os
franceses derrotados por Jerônimo de Albuquerque, que daí em áiante
adicionou ao seu nome o de Maranhão. Saiu anônima, mas trata-se de
carta de um cirurgião francês ao seu pai, e como se vê em Diogo de Campos
Moreno que este se chamava Lastre, Rio Branco atribuiu-lhe a autoria <48 l.
A carta, escrita no forte de Santa Maria na ilha do Maranhão e dirigida
a seu pai, descreve minuciosamente a batalha e suas conseqüências, lasti-
mando bastante "le sang répandu des Français et des Portugais représen-
tant la double alliance de nos Rois que nous doivent maintenir en bonne
paix les uns envers les autres" <49l.

(47) Paris, 1616; descrito ln J. Ch. Brunet, Manuel, ob. ctt., Paris, 1878, Suplemento, t. 1,
648; 2.• ed. fac-similar, Lyon, 1876, descrito tn José Carlos Rodrigues, BB, 205; reproduzido
ABN, vol. 26, 321, 327. Deve ser comparado com o Interrogatório dos prisioneiros franceses do
combate de Guaxlnduba, ABN, vol. 26, 263, 276, documento do Arquivo Geral de 1ndlas, tradução
do português em espanhol.
(48) Jornada, ob. cit., 258, Yves d'Evreux, ob. cit., 392, Rio Branco, "Esqulsse de l'Histolre
du Brési!", in Le Brésil en 1889, Paris, 119 e ed. da Esquisse, feita pelo Instituto Rio Branco,
orientada e prefaciada por J. H. Rodrigues, Rio de Janeiro, 1958, 141, nota 3.
(49) Edição de Lyon, 1876, 13.

47
CAPITULO II

A HISTORIOGRAFIA GERAL
DO DOMfNIO HOLANDÍS
t. Considerações gerais. 2. A historiografia geral espa-
nhola, portuguesa e holandesa. 3. A historiografia dos
holandeses no Brasil.

1 . Considerações gerais
Expulsos os franceses do Maranhão (1615), fundada Belém (1616),
criado o Estado do Maranhão ( 1621), antes de processar-se seu desenvol-
vimento e de empreender Pedro Teixeira a viagem que expandiria o domí-
nio português pelo Amazonas, sofriam os Estados do Brasil [desde a Bahia
(1624) e Pernambuco (1630) até o Rio Grande do Norte] e o do Mara-
nhão [desde o Ceará (1637) até São Luís (1641)] a invasão, conquista e
dominio dos holandeses. :É um episódio que não interfere na expansão
portuguesa pelo Amazonas, na conquista do sertão e na marcha bandei-
rante, que constituem, realmente, como disse Capistrano de Abreu, a
história interna do Brasil, porém perturba a vida baiana, libertada desde
1625, mas sempre ameaçada, e o Maranhão, desde 1644, recuperado e de
cuja historiografia já se tratou. Na verdade esse episódio, que durou trinta
anos e alcançou, em 1640, seu auge, com o domínio de 7 das 19 capita-
nias <1 > brasileiras, tem exercido grande atração sobre os estudiosos brasi-
leiros e produziu uma das mais ricas seções da nossa historiografia.
A origem do interesse holandês pelo Brasil é anterior ao primeiro
assalto em 1624, três anos depois de formada a Companhia das 1ndias
Ocidentais, como tão bem demonstrou Engel Sluiter <2 >. O poder marí-
timo holandês, nascido da revolta contra Espanha e da guerra dos oitenta
anos (1568-1648), estreou em 1599, quando se apresentou em La Coruõa,
atacou as ilhas Canárias, capturou a ilha de São Tomé (Guiné) e pretendia
investir contra o Brasil. A trégua dos doze anos e as várias proibições
espanholas de comércio e navegação com os Países Baixos entre 1591 e
(1) No século XVI foram criadas 18 capitanias, mas só 11 sobreviveram; no século XVII fo.
ram formadas mais 11, 5 no Estado do Brasil (Rio Grande, Campos, ltanhaém, llha de Santa Ca-
tarina e Rio da Prata} das quais somente 2 sobreviveram até o século XVIII (Campos e ltanhaém),
uma foi recriada (Santa Catarina), e outra sobreviveu até hoje (Paraíba); e 6 no Estado do
Maranhão (Cumá, Caeté, Cametá, Cabo do Norte, Marajó, Xingu), todas desaparecidas. No
século XVII havia apenas 19 capitanias, porque as doações da Ilha de Santa Catarina, Rio da
Prata e a do Xlngu não surtiram qualquer resultado prático.
(2) "Os holandeses no Brasil antes de 1621 ", tese mimeografada apresentada ao Congresso
de História do Tricentenário da Restauração de Pernambuco (1957), cujos Anais ainda não foram
publicados. Vide também Engel S!uiter, "Dutch Maritime Power and the colonial status quo,
1585-1645", reprinted from The Pacific Historical Review, vo!. XI, n. 0 1, março, 1942.

48
1605 não impediram o crescimento do poder ofensivo holandês, numa
fase de grande desenvolvimento açucareiro do Brasil. Desde 1605 até o
fim da trégua, em 1621, "estava claro que o intento holandês era o de
fazer o comércio com um braço e, com outro, levar a guerra ao mundo
colonial ibérico". As intenções manifestam-se nos assaltos de 1599, 1604,
1614, 1618, na rede de agentes mercadores holandeses em Portugal, Ma-
deira, Açores e Canárias, nas atividades dos cristãos-novos de Amsterdã,
"instrumentos dos capitalistas neerlandeses", que "construíam de 10 a 15
navios para a carreira brasileira, freqüentemente em sociedade com os
cristãos novos locais". A invasão e o domínio foram, portanto, conclui
Engel Sluiter, "o produto de um profundo, estabelecido e, na realidade,
compelido interesse, largamente econômico, desenvolvido durante o espaço
de uns quatro decênios. Cerca de 1621 esse interesse foi o poder soberano
para uma influente parte dos negócios holandeses. Quando ficou evidente
a esse grupo, fortemente representado na nova Companhia das lndias
Ocidentais, que a renovação da guerra não só lhes fecharia outra vez a
Península, mas também os privaria do acesso ao açúcar brasileiro, eles
aconselharam a conquista da colônia". Foi assim, por interesses econô-
micos, que o poder holandês, agressivo como todo poder, com predomi-
nante força naval, decidiu atacar e dominar o Brasil, para que o surto
de Amsterdam, principal centro europeu de refinação e distribuição de
açúcar, não sofresse interrupção, e o Brasil, um dos maiores centros de
interesse da economia hispânica, não deixasse de nutri-lo. Era um ataque
de duplo sentido; fortalecia-se a economia dos Países Baixos e se enfra-
quecia a economia portuguesa e espanhola.
A historiografia sobre os holandeses no Brasil é, talvez, um dos mais
ricos e numerosos capítulos de nossa historiografia colonial. Quase todos
os aspectos desta fase histórica têm sido estudados, formando um dos mais
belos conjuntos de obras raras e preciosas. A assinalada importância que
concederam ao acontecimento os historiadores e cronistas contemporâneos
e o crescente interesse com que a matéria vem sendo tratada, no correr
dos séculos, pelos estudiosos, deu ao domínio holandês um singular destaque
na historiografia brasileira. Não seria possível examiná-la, tal a riqueza
bibliográfica, sem adotar um plano de classificação, que tentasse distribuir
os livros e opúsculos segundo a generalidade, os fragmentos episódicos e
a especialidade da matéria <3 >. O primeiro conceito significa o tratamento
total da matéria; o segundo, a exposição de partes ou capítulos, e o ter-
ceiro, a narração tópica ou temática. A primeira parte é a mais pobre
e a segunda a mais rica.
A historiografia geral compreende não só as histórias gerais dos
holandeses no Brasil, como a de Rafael de Jesus, mas também as histórias
gerais dos países envolvidos, como a de Aitzema, que se constitui, aliás,
numa exceção, pois não há uma. história de Espanha e Portugal contem-
porânea que descreva toda a expansão, conquista e domínio dos holan-
deses no Brasil.
(3) A divisão aqui adotada Inspira-se na nossa Historiografia, Rio de Janeiro, 1949. A
diferença principal consiste, naturalmente, em que neste capitulo só entram as obras contemporâneas .

..J9
2 . A historiografia geral espanhola,
portuguesa e holandesa
Na historiografia espanhola não é de se estranhar tal omissão, pois em
1640, no auge da força holandesa no Brasil, libertando-se Portugal de
Espanha, esta desinteressava-se de sua antiga colônia. O cronista D.
Gonçalo de Céspedes y Menezes (1585-1638), na sua Historia de Dom
Felipe el lll, Rey de las Espanas <4 >, descreve os anos de 1621 a 1626
e o nascimento e morte de Felipe III (1578-1621).
A historiografia portuguesa do século dezessete revela grande declí-
nio <5 l, especialmente quando comparada com as expressões mais altas
dos quinhentos, como João de Barros (1496?-1570) e Diogo de Couto
( 1542-1616), e se excetuarmos Francisco Manuel de Melo, cuja obra
parcial será aqui mencionada.
Na verdade, nenhuma história geral dá conta adequada da história
interna e externa de Portugal, e os próprios cronistas oficiais, desde Ber-
nardo de Brito (1569-1617) <6> até Frei Manuel dos Santos (1672-1740),
só trouxeram a história até a batalha de Aljubarrota (1385). :e verdade
que entre esses se coloca Frei Rafael de Jesus (1614-1693), autor da
7.ª parte da Monarquia Lusitana (1633) e do Castrioto Lusitano, história
geral dos holan~eses no Brasil, de que adiante trataremos, mas nenhuma
história geral de Portugal ajusta todo· o acontecimento particular da colônia
no quadro geral da Metrópole ou no universal.
As obras de Manuel Severim de Faria (1583-1655), Discursos Vá-
rios Políticos (1624) e Noticias de Portugal (1655), não cuidam da
América Portuguesa, que aparece referida na Relação Universal do que
sucedeu em Portugal ... <7 l, limitada aos anos de 1621 e 1626, ou na
História Portuguesa <8 >, registro anual de pequenas notícias desde 1610
a 1640. A História é uma fonte primordial, generosa em notícias miúdas
e grandes, com alguns silêncios, temporalmente limitada, sem as caracte-
rísticas descritivas e interpretativas do gênero histórico. :e antes uma
coleção de efemérides, valiosa pela fidedignidade da informação direta, mas
sem narração seguida e una, logicamente estruturada, numa interpretação
de motivos e conseqüências. :e
uma fonte direta para os sucessos parti-
(4) Lisboa, 1631; Barcelona, 1634. Sobre ele vide B. Sánchez Alonso, Historia de la Histo-
riografia, ob. clt., ·II, 310-11.
(5) Aubrey F. G. Bell atribui à sujeição à Espanha e à Influência da Inquisição a deca-
dência do século XVII. A Literatura Portuguesa, Coimbra, 1931, 333-334. Hemanl Cidade acentua
o caráter autonomista e pragmático desta historiografia, destacando Frei Luls de Sousa (1555-1632),
de certo modo quinhentista, e Francisco Manuel de Melo (1608-1666). Lições de Cultura e Literatura
Portuguesa, 2.• ed., Coimbra, 1942, 1.0 vol. ,
(6) Vide Elogio de Manuel Severlm de Faria, Noticias de Portugal, Lisboa, 1655, 278-305.
(7) Lisboa, 1626.
(8) Editada pelo Barão de Studart (Fortaleza, Ceará, 1903) que anotou a obra. No Arquivo
da Casa de Cadaval encontram-se outros originais de Severim de Faria. Cf. Virgínia Rau e Maria
Fernanda Gomes da SIiva, Os Manuscritos do Arquivo da Casa de CadtÍval .. . , Coimbra, 1956,
n.• 492.
(9) Madrl, 2 tomos, 1628, reeditado postumamente com o tliulo Europa Portuguesa, Lisboa,
1678-1680. e no capitulo 21 da parte IV qué se coniém. a. liisfürla de 1605 a 1628. Há uma edição
de Bruxelas, 1677. A Europa Portuguesa (Lisboa, 16711-1680, 3 vols.) amplia e corrige o Epltome,
segundo o editor, mas realmente não ultrapassa o mesmo ano de 1628, exceto na edição da
Historia dei Reyno de Portugal, (Amberes, 1730), onde a narrativa segue até 1730, sem declaração
do Autor.

50
culares até 1640, como não o é o Epítome de las Historias Portuguesas <9 >
de Manuel de Faria e Sousa (1590-1640) ou a Europa Portuguesa, alta-
mente louvadas por Barbosa Machado <10 > e pelo seu biógrafo D. Fran-
cisco Moreno Porcel <11 >. O prestígio de Faria e Sousa tem declinado
com o tempo e hoje seria impossível aceitar sua própria afirmação de
que "acordaranse tan tarde los escritores portugueses de poner en volumes
dignos de duracion las Hazafias de suas naturales Heroes" <12 >, ou ainda
a de Porcel: "não pode negar-se que são as Histórias de Manuel de Faria
as únicas que tem Portugal reduzidas a um corpo perfeito, e ordenado,
menos difusas que as antigas, mais largas que os Epítomes, melhor distri-
buídas que as crônicas, não tão secas como os Comentários, nem tão
floridas como os Panegíricos" (13J.
Faria e Sousa foi um historiador incansável, escrevendo como Fran-
cisco Manuel de Melo nas duas linguas, embora seja mais reconhecido pelos
espanhóis, desde Porcel a Sánchez Alonso <14 >, que pelos portugueses, que
sempre o maltrataram, talvez devido à posição política por ele assumida
durante a Restauração, o que não invalida o amor ao seu país, expresso
em tantas obras consagradas aos feitos dos seus heróis.
Se Severim de Faria, do mesmo modo que Faria e Sousa, pela certeza
da inlormação e generalidade da notícia, não escreveu história geral em
que se possa colher o quadro total português ou universal do acontecimento
holandês no Brasil, D. Luís de Menezes, Conde de Ericeira (1652-1690),
soldad1) e historiador, com sua História de Portugal Restaurado <15 > abran-
gendo de 1640 a 1668, isto é, do auge do domínio à fase posterior ao
Tratado de paz, restaura, apesar do estilo ornado e rebuscado ao gosto da
época, a historiografia portuguesa desta segunda metade do século. Sua
história é pura descrição contemporânea, imitando nisso e no modelo de
Tito Lívio, a historiografia clássica. Poucos se aventuraram a escrever tão
somente os sucessos de sua época, e quando os atingiam, as origens, as
mais longínquas, ocupavam grande parte do livro. Por isso estava cons-
ciente das dificuldades a que "se sujeita quem se resolve a escrever uma
história, que pela opinião comum dos historiadores costuma ser de séculos
passados, em que mais desafogados os ânimos entram a descobrir a verdade
dos sucessos. Porém quais serão os inconvenientes, quais os perigos quase
invencíveis, a que se arroja quem tomou a temerária resolução de imprimir
em sua vida a história do seu tempo?" Ericeira gastou dez anos no preparo
do primeiro volume, e, antes de começar a escrever, levou dois anos lendo

(10) BL, Ili, 253, 260. Nesta se diz que Faria e Sousa escreveu a "América Portuguesa",
que descreve o Brasil desde seu descobrimento até 1640, mas que entregue o manuscrito a
Duarte de Albuquerque Coelho este pediu licença liO secretário Diogo Soares, que o ocultou,
perdendo-se o original.
{11) Retrato de Manuel de Faria y Sousa, Lisboa, 1738. A obra é dedicada ao Quinto
Conde de Ericeira, D. Luís de Menezes, Vice-Rei das índias. ~ uma bloblbllografla com extratos
de numerosas opiniões e elogios de Manuel de Faria e Sousa.
(12) Prólogo do Epltome e da Europa Portuguesa.
(13) Porcet, ob. cit., 98.
(14) Historia de la Historiografia, 11, 342.
(15) Lisboa, 1679-1698, 2 tomos. Vide Barbosa Machado, BL. 111, 115-119. Transcreve opi-
nião do Journal des Scavans (13 de janeiro de 1681): "Tout est grand dans cette hlstolre, le
sujei, Ia manlere de I'écrlre, et l'Auteur même".

51
as histórias mais seletas para assentar o estilo. Sujeitou a obra toda a
pessoa inteligente e douta que se animasse a lê-la e emendou o que se adver-
tia. Por isso mesmo era muito sensível às queixas e aos ódios dos que se
julgavam omitidos, e que, muitas vezes, se desafogando "pelos caminhos do
delírio, transformavam o Autor em Réu". :e admirador de Manuel de Faria
e Sousa, o "moderno Lívio" português, e julga que o Epítome e a Europa
Portuguesa ficam com a sua "história enfiada à de Portugal até a paz
celebrada entre esta Coroa e a de Castela, que é o assunto que compreen-
dem estes dois volumes". Sua obra trata especialmente das lutas com os
castelhanos entre 1640 e 1668, mas compreende toda a história dos holan-
deses no Brasil, desde 1624 a 1654. Seu censor acredita, como ele, que
"com este trabalho do conde e com o que já teve o grande historiador
Manuel de Faria e Sousa, temos conseguido a história portuguesa do ins-
tante em que se criou o Mundo até o feliz governo de V. A.". Não queria
Ericeira "maior recompensa que o conhecimento, de que até agora saiu
ao Mundo história mais verdadeira, pois sem afeição, ódio, esperança ou
temor não perdoei a requisito algum necessário para a história, que me
ficasse por escrever".
Ericeira enfrentará todas as dificuldades do escrito da história con-
temporânea: a reação dos vivos, que formaram sua própria opinião, vive-
ram os debates e conflitos e pessoalmente são parte da experiência direta
que o autor interpreta. O primeiro a confundir a posição do historiador
e a do político e a fazer-lhe sérias restrições foi Vieira, mencionado na
questão da embaixada à França, na qual não tivera êxito (16l. Vieira
nada disse, calou fundo seu ressentimento, como escreveu João Lúcio de
Azevedo (l7l e esperou de 1679, quando saiu a História de Portugal Res-
taurado, até 1688, quando Ericeira publicou seu livro sobre a vida de
Jorge de Castrioto (18 > e lhe ofertou um exemplar. Vieira, que estava no
propósito de não ler o Portugal Restaurado, agradeceu-lhe a oportunidade
e escreveu (19 > que "em ambos admiro o método, a ordem, a disposição,
a felicidade, a facilidade, a altiloqüência do estilo e pureza da linguagem,
a arte sem afetação, a discrição, o juízo, e todas as outras excelências de
que se pode compor no grau sumo o mais perfeito historiador". E logo
acrescentava que "sendo as informações dos sucessos sempre várias, e na
mesma variedade incertas, é força que, em muitas cousas, os que do ano
quarenta e mais atrás vivem até agora achem alguns reparos". E continua:
"E assim sucede no primeiro sucesso do Brasil, que é a restauração da
Bahia, em que não concorda com muitas circunstâncias o que V. Ex.ª refere
com o que vimos os que ainda agora vivemos". Era uma restrição mínima
em face do elogio, especialmente considerando que ele ouvira dizer que a
(16) Hist6rla de Portugal Restaurado, ed. 1670, I, 633.
(17) Hist6rla de Antonio Vieira, 2.• ed., 1931, 11, 258-261.
(18) Exemplar de virtudes en la vida de forge de Castrloto, Ilamado Scanderberg, prlnclpe
de los Epirotas y Albanezes, Lisboa, 1688.
(19) Carta CCXXVIII, de 18 de agosto de 1688, ln Cartas do Padre Antônio Vieira, ed. de
João Lúcio de Azevedo, Ili, 552-554. No Arquivo da Casa de Cadaval encontra-se outra carta
de 19 de Julho de 1689, e pelo resumo do verbete parece fazer Vieira o mesmo elogio a
Hist6ria e a mesma restrição a respeito da restauração da Bahia em 1625. Cf. Virgínia Rau
e Maria Fernanda Gomes da Silva, Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval, Coimbra, 1956,
n. 0 423.

52
História de Ericeira o "louvava com descrédito", ou "descreditava com lou-
vores" , e talvez por isso não se aplicasse a lê-la, ou porque, corno escrevia,
"parte dela que pertence ao Brasil vi-a com os olhos e a outra parte das em-
baixadas passou-me pelas mãos". Mas Vieira nada dissera sobre a proposi-
ção de Ericeira relativa à embaixada à França, na qual, louvando-o "corno
um sujeito em que concorriam todas as partes necessárias para ser contado
corno o maior pregador do seu tempo", o desacreditava, pois, "corno o
seu juízo era superior e não igual aos negócios, muitas vezes se lhe desva-
neceram, por querer tratá-los mais sutilmente do que o compreendiam os
prlncipçs e ministros com que comunicou muitos de grande importância",
como se lia na História. Não lhe respondera à carta de 3 de abril de 1688,
pedindo-lhe que dissesse por que estava queixoso da sua História, nem
mesmo agora, dez anos depois. Mas a 23 de maio de 1689 <20 > Vieira
escrevia a Ericeira e lhe dizia em longa carta por que estranhara aquela
sentença. Vieira rememora os negócios em que participou quando serviu
ao Rei, na França e na Holanda: o da proposta de formação de duas
companhias de comércio, o da transplantação das drogas da 1ndia para o
Brasil, e o socorro para a ajuda da Bahia, novamente atacada em 1638.
Não eram propostas desvanecidas e por isso pedia-lhe que indicasse negó-
cio ou conselho que se desvanecesse. Não o da entrega de Pernambuco,
que não fora dele, mas do próprio Rei. E com rigorosa capacidade de
argumentação e de lógica, Vieira declara que "não era bem que V. Ex. ª
escrevesse que como seu juízo era superior e não igual aos negócios, esses
muitas vezes se desvaneceram, porque os príncipes e ministros não per-
cebiam as suas sutilezas".
Ericeira foi o único a compor a história geral, como testemunha con-
temporânea; apenas na parte relativa ao Brasil não foi espectador e só um
exame especial pode revelar de que fontes se serviu (21).
Do lado holandês destaca-se especialmente Leeuw van Aitzema
(1600-1669), autor de numerosa bibliografia histórica e sobretudo da
compilação Saken van Staet en Oorlogh. ln ende omtrent de Vereenigde
Nederlanden <22 >. Esta História dos Negócios de Estado e de Guerra vale,
sobretudo, pelas numerosas peças oficiais, instruções, tratados, memórias,
resoluções reunidas pelo autor e que a tomam um dos mais importantes
trabalhos holandeses sobre o século XVII. Muitos episódios da dominação
holandesa, como a capitulação da Taborda, e a rendição final (26 de
janeiro de 1654) <2 3), estão nele muito bem documentados. Várias outras
obras holandesas da época, como as de N. Wassenaer, G. Baudartium, E.
van Meteren, Johan Tjassens, Antonius J. C. Thysius contêm mais que as

(20) Carta CCXXX, ob. cil. , 556,511. A carta de Ericeira, de 3 de abril de 1688, é
referida nesta. ·
(21) r necessário comparar sua história com os livros e folhetos da época para uma
melhor apreciação, pois escrevendo entre 1668 e 1678 estava a obra de Rafael de Jesus impressa
e a de Diogo Lopes Santiago redigida. Arnold Wiznitzer mostrou recentemente seu equívoco quanto
ao número de judeus no Brasil, que Ericeira calculava em 5.000 em 1654 e era apenas de cerca
de 654. Cf. The Number o/ fews ln Dutch Brazil (1630-1654). Conference o/ fewish Relations,
rep. fewlsh Social Studies, vol. XVI , n.0 2 .
(22) Haia, 1669-1672. Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n.0 116.
(23) Charles Boxer, The Dutch in Brazi/, Oxford, 1957, 296.

:33
histórias gerais portuguesas e espanholas sobre os acontecimentos, mas
não se destacam pela nqueza documental contemporânea, como a de van
Aitzema <24 >.

3 A historiografia dos holandeses no Brasil


Já a História Geral dos holandeses no Brasil compreende, especial-
mente, Diogo Lopes Santiago, Rafael de Jesus, Frei João de Santa Tereza
e D. Francisco Manuel de Melo ..
Diogo Lopes Santiago, natural do Porto e professor de Gramática
em Pernambuco, é, segundo Barbosa Machado, o autor da História da
Guerra de Pernambuco <25 >, obra cuja única cópia manuscrita, em letra do
século XVII, não contém o nome do autor <26 >. Deve ter sido redigida a
partir de 1634, sendo a primeira edição de 1875 <27 >, e baseia-se, segundo
mostrou Gonçalves de Melo, Neto, no Valeroso Lucideno de Manuel
Calado, e foi a fonte de Rafael de Jesus. Lopes Santiago escreveu a nar-
rativa de 1630 a 1649, deu muitas informações valiosas desconhecidas em
outras fontes, corrigiu enganos de Calado e é dele a mais completa des-
crição das duas Batalhas de Guararapes (1648-1649) <28 >. Uma segunda
edição recentemente impressa não evitou erros e incorreções e não se au-
torizou na colação rigorosa com o manuscrito do Porto <29 >.
Rafael de Jesus (1614-1693), beneditino, foi nomeado cronista-mor
do Reino em 1681, um pouco depois da publicação do Castrioto Lusitano,
onde conta a história da invasão e da restauração de Pernambuco <30 >.
Nunca esteve no Brasil, e seu livro, concluido em 1675 em Braga, foi
escrito com base em Manuel Calado (3t), abrangendo apenas a primeira
parte da biografia de João Fernandes Vieira até 1654; a segunda foi ini-
ciada e não concluida <32 l. Continua a ser considerado pela historiografia
atual (3 3 ) como um compilador enfático e insípido. Despido de interesse
humano, sem paixão ou amor, sem ódios ou sofrimento, na carne como
Calado, e nos bens como Duarte de Albuquerque Coelho, relatou, de modo
enfadonho, os sucessos que feriram a colônia. Escritor de pouco mereci-

(24) Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 105-111.


(25) Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, 1, 669, Pereira da Costa, RIAGP, 1907, n. 0 67,
175, e J. A. Gonçalves de Melo Neto, Manuel Calado do Salvador, Recife, 1954, 19, acrescentaram
novos dados biográficos.
(26) O manuscrito que serviu de texto para a edição da História foi mandado copiar por
João Francisco Lisboa, no Porto, em 1861. Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n.0 219.
(27) Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, 14 e n. 0 219. O Autor já se refere à obra
sobre D. Felipe IV escrita por Céspedes y Menezes em 1634.
(28) José Antônio Gonçalves de Melo Neto, ob. cit., 20.
(29) J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 220, Jos6 Antônio Gonçalves de Melo, Neto,
verificou recentemente que quatro capítulos desta obra foram omitidos do original existente na
Biblioteca e Arquivo Municipal do Porto nas edições de 1883 e 1934. Vide "Missão nos arquivos•
Diário de Pernambuco, 15-Vll, 19-58.
(30) A 1.• ed. é de 1679. Vide sobre as várias edições J. H. Rodrigues, Hlstoriogta/la,
n. 0 • 215 e 216. O manuscrito da Torre do Tombo parece ser o original.
(31) Ibld., n. 0 215.
(32) Carlos Alberto Ferreira, Inventários dos Manuscritos da Biblioteca da Ajuda referentes
à América do Sul, Coimbra, 1946, 294.
(33) José Antônio Gonçalves de Melo, Neto, ob. clt., 22-23.

54
mento, muito criticado por F. A. Varnhagen e H. Wãtjen, dele se pode
dizer o que ele mesmo escreveu quando, como cronista-mor, elaborou a
Monarquia Lusitana: há histórias cujos tomos são túmulos (34).
Menor apreço na historiografia sobre os holandeses no Brasil merece
ainda Giovanni Gioseppe di Santa Tereza, nome do carmelita descalço
português João de Noronha Freire (1658-1733) que estava em Portugal em
1698, quando se publicou a sua lstoria delle Guerre del Regno del Brasile.
A obra é uma compilação pouco estimada <35 > e responsável pela criação
de algumas lendas como a da morte do Almirante Adriaen J anszoon Pater
envolto numa bandeira e declarando que o mar era o único túmulo digno
de um Almirante batavo. O primeiro livro contém uma espécie de intro-
dução, que trata desde o descobrimento até a dominação portuguesa. Já
no segundo se descreve a captura da Bahia ( 1624) e, no sétimo, com
que termina, a expulsão dos holandeses.
D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666) foi um dos maiores es-
píritos de sua época. Soldado no começo da vida, que nasceu nobre, dado
às leituras, amigo de grandes escritores da Península como Quevedo, de
quem se tornou íntimo e com quem tanto se carteou, D. Francisco apren-
deu com D. Manuel de Menezes, almirante e cronista-mor do Reino, que
lutou em 1625 contra os holandeses na Bahia e escreveu-lhes a breve vi-
tória, a combater e as primeiras lições literárias (3 6 ).
Vivendo em Madrid, foi D. Francisco Manuel representante de D.
João de Bragança junto à Corte, e na revolta de 1?.vora de 1637, precursora
da restauração de 1640, veio a Portugal representando, com o Conde de
Linhares, o Conde Duque de Olivares. Desde então tornou-se suspeito de
espanholismo. D. Francisco, apesar de português, foi chefe do Estado-Maior
das tropas reais que combateram o movimento revolucionário da Catalu-
nha em 1640, sobre a qual escreveu uma monografia clássica, louvada na
própria historiografia espanhola (3 7 >.
Com o movimento da restauração portuguesa, apesar de seus servi-
ços, apresentando na Inglaterra uma armada de 24 navios, que trouxe ao
Tejo, e da campanha, como simples soldado, na guerra com a Espanha,
caiu em desgraça, ficou suspeito de hispanofilia e foi preso em 1644, sob
suspeição de mandante de assassínio. Condenado em 1652 ao degredo
perpétuo no Brasil e a penas pecuniárias, atribui-se a severidade da sentença
quer à rivalidade com D. Jç,ão IV em caso galante, quer à conspiração
contra o Reino (38). Na prisão, D. Francisco escreveu grande parte de sua
obra literária e histórica, como o Ecco Polytico Responde en Portugal A
la Voz Castilla (39) e a Vida e Morte, Dittos E Feytos de El-Rei Dom João

(34) Aubrey Bell, A Literatura Portuguesa, Lisboa, 1931, 273.


(35) J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 217-218.
(36) Vide Edgard Prestage, D. Francisco Manuel de Melo, Coimbra, 1914; com o mesmo
título, resumo biográfico, Oxford, 1922; trad. portuguesa, Coimbra, 1933.
(37) Historia de los Movimientos, Separaclón Y Guerra de Cataluiia, 1.• ed. Lisboa, 1645.
Existem 17 edições. Sobre seu papel na Historiografia espanhola vide B. Sánchez Alonso, Historia
de la Historiografia, ob. cit., li, 316-318.
(38) Este resumo baseia-se em Edgar Prestage, ob. clt.
(39) Lisboa, 1645. Vide J. H Rodrigues, Historiografia, n. 0 90.

55
IV <4º>. Na primeira revela seu lusitanismo, melhor que sua hispanofilia,
como diz Sánchez Alonso <41 J, retrata os desentendimentos entre as duas
nações e responde e argumenta a favor de Portugal; na segunda, inaca-
bada, pinta "para os tempos a imagem de hum Rey" D. João IV. "Nem
sangue, nem Pátria, nem rea:peitos se interpoem entre my e a Verdade"
escreve D. Francisco, no começo da obra, e talvez por isso, pelas indis-
crições e inconveniências expostas e comentadas pelo autor, a obra não
se publicou, dela existindo apógrafos nas bibliotecas portuguesas e um na
do Rio de Janeiro.
Evitando as prolixas crônicas, que são "pasto de vulgaridade", e en-
riquecendo a obra dos "feitos ainda que pequenos encaminhados a grandes
fins, ou opulentos de alta doutrina", D. Francisco Manuel expôs as razões
profundas do levantamento português contra o senhorio espanhol, mani-
festando as origens da restauração. Com seu estilo retórico censura a
notória declinação da Espanha, o realismo absoluto, e descreve a história,
como "húa creatura proporcional de rigorosa simetria: sua alma a ver-
dade, seu corpo a narração, a cabeça o Herói, de que se escreve, braçes o
episódio, que dela tem dependência", e quer com suma brevidade pintar
para os tempos a imagem de um Rei, cuja história não recearia competição
com os grandes do Mundo.
Como escritor conceituoso, Francisco Manuel faz reflexões históri-
cas em outras obras. No "Apólogo Dialogal Quarto", chamado de "Hos-
pital das Letras", explica as duas maneiras com que se pode escrever a
história: "A primeira quiseram os antigos fosse austera e incorrupta, sem
que o historiador pusesse de sua casa mais que o estilo". Deste modo de
escrever foram grandes Tucídides e Tito Lívio. "A segunda não só con-
sente, mas requer no historiador que entreponha seu juízo, quando se refe-
re às ações e sobre elas levante discursos, como não sejam alheios ou pro-
lixos." Deste foram ilustres Xenofontes, Políbio e Tácito. Para uma, expõe
-Francisco Manuel, a história se havia de escrever pura, para outros ornada;
ele, porém, afirma ser lícito e obrigatório salpicar de sentenças, observa-
ções e juízos a história, mas "com ciso e mesura, a fim de não degenerarem
os historiadores em discursantes" <42 >.
Se a Historia de los movimientos, Separación y guerra de Catalufia é
uma monografia magistral que nada tem a invejar às mais belas da antigui-
dade nem às dos nossos tempos, como diz o historiador da historiografia
espanhola <43 >, não são o Ecco Polytico, ou a Vida e Morte, os contra-
pontos da historiografia portuguesa. São apenas vozes mais modestas da
sua composição historiográfica, que refutam as acusações do espanholismo,
ou melhor, reafirmam a lealdade de D. Francisco à sua Pátria, antes
confundida no grande quadro hispânico. Neste sentido a Declaración que

(40) Escrita em 1650 e publicada pela Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1940.
Descrição bibliográfica in J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 91. Sobre a edição vide J. H. Ro-
drigues, Teoria da História do Brasil. 5.• ed., 1978, 403.
(41) Historia de la Historiografia, II, 372.
(42) Apólogos dialogais, Rio de Janeiro, 1920, 448,449.
(43) Sánchez Alonso, Historia de la Historiografia. li, 318.

56
el Reyno de Portugal agora offrece el Doctor Geronymo de Santa Cruz <44 1,
publicada três anos antes de morrer, exalta as glórias lusitanas e defende
o Rei D. Afonso VI.
D. Francisco partiu para o Brasil a 17 de abril de 1655, como exilado,
na armada da Companhia Geral do Comércio, comandada por Francisco
de Brito Freire, aqui chegando a 1.º de agosto. Apesar de degredado, D.
Francisco teve o comando de parte da esquadra, e sua viagem foi narrada
na Relação da viagem que fez ao Estado do Btasil a Armada da Compa-
nhia anno de 1655, escrita por Brito Freire. Na Bahia escreveu os Apólo-
gos Dialogais, considerados por Alexandre Herculano como "a balisa que
marca o ponto mais alto a que subiu o talento de D. Francisco Ma-
nuel" (45l. Observa e ironiza os costumes da sociedade e castiga a cor-
rupção. Menendez y Pelayo notou em relação aos Apólogos (46) e à Carta
de Guia de Casados (4 7 l, também escrita na Bahia, que "en Melo se dió
un fenomeno contrario al que generalmente se observa en nuestros escri-
tores de aquella edad. Empezó por el culteranismo y por el conceptismo,
y acabó por el decir mas Bano y popular y por la mas encantadora y
maliciosa sencillez" (48 l. Escreveu ainda na Bahia parte de suas Epanáfo-
ras, o "Diario dei Brasil" nunca publicado e cujo original se perdeu, al-
guns sonetos das Obras Métricas <49) e a "Descripção do Brasil", intitu-
lada: "Paraíso de Mulatos, Purgatório de Brancos e Inferno de Negros",
noticiada pelos bibliógrafos desde Barbosa Machado (1741-59), e repe-
tida, pela originalidade do achado, por Antonil, no começo do século
XVIII.
Passou dois anos e meio no Brasil e é digno de nota, como escreveu
Edgar Prestage, que não faça uma simples alusão às belezas naturais
dos trópicos, e seja um dos raros escritores portugueses que não se reve-
lou animado pelas grandezas ou bondade da terra. A sua descrição pito-
resca e depreciativa da gente o coloca entre os primeiros descrentes do
Brasil. Partindo em 1658, e se estabelecendo em Lisboa em 1660, com
pequena permanência na ilha da Madeira, foi perdoado em 1662, serviu
em missões diplomáticas e faleceu aos 24 de agosto de 1666.
Foi durante sua estada, na volta, em Portugal, que escreveu a narrati-
va da epopéia da restauração de Pernambuco ao domínio português. As-
sinada de Alcântara (23 de dezembro de 1659), a "Epanáfora Triunfan-
te", 5.ª e última das Epanáforas de Vária. História (50l, reúne-se à Rela-
çam dos sucessos da Armada ( 165 O), como as duas únicas peças da extensa
bibliografia de Francisco Manuel que trataram do domínio holandês no
Brasil. Se juntarmos a esses dois o Ecco Polytico e a Vida e Morte de El
Rei, Dom João IV, teremos a obra geral histórica do autor que interessa

(44) Lisboa, 1663.


(45) Panorama, 1840, 173-294.
(46) Lisboa, 1721, e várias outras edições.
(47) Lisboa, 1651, e várias outras edições.
(48) Historia de las ideas estéticas en Espaiía, Madrl, 1884, li, 416.
(49) Leão de França, 1665.
(50) Lisboa, 1660. Vide descrição bibliográfica ln J. H. Rodrigues, Historiografia, n.• 564-567.

57
sob vários aspectos à historiografia brasileira. A "Epanáfora Triunfante
Quinta" relata, em língua retórica, particularidades e sucessos da restauração
de Pernambuco. Francisco Manuel declara que pretendeu escrever em
brevíssimo modo os sucessos que tiveram as armas portuguesas restau-
rando a perdida liberdade em toda a província de Pernambuco e outras
vizinhas, pois até então ninguém publicara em forma decente um só vo-
lume <51 >.
Como vemos, a historiografia geral dos holandeses no Brasil raramen-
te contém a generalidade da história, limitando-se a um ou outro aspecto,
tratados no conjunto da obra, como em Francisco Manuel, ou em uma
única história, como a de Rafael de Jesus, que mais parece uma prestação
de contas de autoridades e majestades. Raros são os que aguardam o de-
senrolar completo e sucessivo das várias fases . As histórias gerais das
metrópoles dão pouca importância aos acontecimentos coloniais e as his-
tórias gerais da colônia são raríssimas.

(51) As Memorias Dlarlas de Duarte de Albuquerque Coelho são de 1654 e o Valeroso


Lucldeno de Manuel Calado do Salvador de 1648 (edição apreendida). Provavelmente Francisco
Manuel não considerava decente o estilo dos dois cronistas que, como fontes , são hoje consi-
derados superiores ao clássico português.

58
CAPITULO III

A HISTORIOGRAFIA EPISÓDICA
DOS HOLANDESES NO BRASIL
1. A invasão da Bahia (1624-1625) e a conquista de Per-
nambuco (1630-1635). 2. O período Nassoviano (1637-1644)
e a luta contra os holandeses (1645-1654).

1 . A invasão da Bahia ( 1624-1625)


e a conquista de Pernambuco (1630-1635)
A historiografia episódica é aquela que examina os aspectos parciais
ou os sucessos da invasão e domínio holandês no Brasil. É certamente a
mais rica de todas, pois a literatura histórica se ocupou de fases e não
de temas e, estes somente por espírito didático foram mais tarde assim
classificados. A historiografia episódica pode dividir-se em duas grandes
fases: a primeira abrangendo a Invasão da Bahia e a conquista de Per-
nambuco, e a segunda o período nassoviano ( Conde João Maurício de
Nassau-Siegen, 1637-1644) e a Restauração do Brasil português (1645-
1654).
Na extensa bibliografia sobre a invasão e recuperação de Salvador (tl,
a historiografia só pode ocupar-se de um ou outro escrito, pois os demais
são documentos, peças oficiais, fontes de informação. A historiografia co-
meça realmente com a restauração baiana; seus autores, como os comba-
tentes, são especialmente espanhóis e portugueses, tais como Francisco de
Avendagno y Villela, Jacinto de Aguilar y Prado, Bartolomeu Guerreiro,
Fadrique de Toledo, Bartolomeu Rodrigues de Burgos, Tomas Tamayo de
Vargas, Manuel de Menezes, Juan de Valencia y Guzman, Eugenia Nar-
bona y Zuniga, e Johann Gregor Aldenburgk. De todos distinguem-se <2 l,
do lado espanhol : Tomas Tamayo de Vargas, Juan de Valencia y Guzman
e Eugenia Narbona y Zuniga; e, do lado português, Vieira, cuja Ânua é
fonte primordial e será tratada adiante, Bartolomeu Guerreiro e Manuel
de Menezes.
Tomas Tamayo de Vargas ( 158 8-1641) (3l, cronista do Rei de Es-
panha, foi dos homens eruditos de sua época, cultivando a biografia e a

(1) Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, ob. cit. , 190-209.


(2) Francisco Avendagno y Vlllela e Bartolomeu Rodrigues de Burgos não estão registrados ln
B. Sánchez Alonso, Fuentes ou Historia de Ia Historiografía . As obras de Aguilar y Prado estão
mencionadas ln Fuentes, 7.222, 7.637. As Relações e Cartas atribuídas a Fadrique de Toledo são
de caráter militar. Vide José H . Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 350-352.
(3) Vide B. Sánchez Alonso, Historia de la Historiografía, II, pp. 215-232, 237, 423.

59
crítica histórica. Nesta crônica Tamayo de Vargas revela o ponto de vista
oficial espanhol do acontecimento, a defesa da colônia e as repercussões
em Espanha. A Restauraci6n de la ciudad dei Salvador ( 1628) foi tradu-
zida para o português em 1847 <4 >.
Juan de Valencia y Guzman <5 > e Eugenio de Narbona y Zuniga (6)
apresentam outros aspectos da invasão e recuperação. O primeiro, como
soldado, assistiu aos acontecimentos e, assim, como testemunha presencial,
seu depoimento vale mais que o de Aguilar y Prado e o do Bispo de To-
ledo, D. Eugenio de Narbona y Zuniga, pois ambos compilaram de notí-
cias orais, cartas e relatórios transmitidos pelos aventureiros espanhóis que
vieram restaurar a Bahia. Valencia y Guzman acresceu seu relato de des-
crição anterior sobre o Brasil, para leitores espanhóis que o desconheciam.
Tamayo de Vargas, porque exercita mais o ofício e recebe e colhe
todos ou quase todos os dados oficiais, é realmente o melhor dos cronistas
espanhóis. Nos outros não há grandes novidades, nem substanciosas são
as narrativas, que omitem várias particularidades. Ao seu lado figuram, no
mesmo plano, Manuel de Menezes e Bartolomeu Guerreiro.
D. Manuel de Menezes, herói dos acontecimentos, que narra de
forma seca e fiel, foi cronista-mor do Reino, professor de astronomia, cos-
mógrafo-mor e dos que melhor reuniu, naquela época, a profissão literária
à militar. Foi o comandante português da esquadra restauradora da Bahia
e escreveu a Recuperação da cidade do Salvador <7 >, que é urna singular
notícia, pela consciência e pelo caráter oficial de que vinha revestido. Cuidou
de escrevê-la, segundo ele próprio diz, não pela nobre ocupação de ser
cronista, mas para que, com mais cômodo sucesso, pudesse referir-se aos
Ministros diante de quem se justificava.
Bartolomeu Guerreiro (1578-1642) nasceu no Alentejo e aos 18 anos
entrou para a Companhia de Jesus. A Jornada dos Vassalos da Coroa de
Portugal <8 > é a primeira e uma das mais importantes narrativas da restau-
ração da Bahia. Relata os acontecimentos do assalto, a tomada da cidade
pelos holandeses e descreve os sucessos posteriores, as repercussões em
Portugal, o preparo para a jornada de reconquista até a entrada, a 30 de
abril de 1625, e as comemorações pela vitória. A Jornada é obra de ex-
trema raridade e tem merecidamente "como todas as demais deste autor" <9 >
a estimação dos eruditos, "bem que o estilo por demais empolado, se res-
sinta um pouco do gongorismo daquela época" ,1o).

(4) Vide José H. Rodrigues, Historiografia, n ... J57-358.


(5) S6nchez Alonso, Historia de la Historiografia, 11, 422-423.
(6) Vide nota bloblbllogrllflca ln ABN, 1950, vol. 69, 9-11.
(7) RIHGB, 1859, XII . Sobre a vida e as ações de D. Manuel de Menezes o melhor
relato é o de D. Francisco Manuel de Melo Epan4foras de vária hist6rla portuguesa, Lisboa, ed.
de Edgar Prestage, 1931, 170. Vide também J. H . Rodrigues, Historiografia, clt. , n .• 365.
(8) Jornada dos Vassalos da Coroa de Portugal para as recuperar a Cidade do Salvador .. . ,
Lisboa, 1625. Cf. J. H. Rodrigues, Historiografia, n.• 341.
(9) Gloriosa Coroa d'esforçados reUglosos da Companhia de Jesu mortos polia fé Cathollca
nas Conquistas dos Reynos da Coroa de Portugal. Lisboa, 1624, opinião de Inocêncio Francisco
da Silva, Dicionário Bibliográfico Português, Lisboa, 1858, l, 332.
(10) F. Rodrigues. Hlst6ria da Companhia de Jesus na Asslst2ncia de Portugal, Porto,
1944, t. 3, vol. !, 157. Padre Serafim Leite considera seu estilo puro e direto, cf. Hist6ria, V, 60.

60
:E: evidente que Vieira e Frei Vicente do Salvador escreveram as me-
lhores narrativas da conquista e restauração da Bahia, pois viviam e co-
nheciam a terra e a gente antes dos ataques. Suas obras constituem capítu-
los à parte, sem desmerecer a de Bartolomeu Guerreiro.
Finalmente a narrativa mais importante do lado holandês foi escrita
pelo oficial alemão a serviço da Companhia das 1ndias Ocidentais, Johann
Gregor Aldenburgk (11J.
De 1624 até 1636 coube a Johannes de Laet (1539-1649), com sua
Historie o/te laerlijck Verhael van de West-Indische Compagnie (12 >, es-
crever o mais autêntico documento historiográfico. Nascido em Antuérpia,
Laet foi diretor da Câmara de Amsterdam da Companhia das lndias Oci-
dentais e membro do Conselho dos XIX. Teve à mão papéis oficiais muitos
dos quais ele próprio redigiu. Homem de extraordinária erudição, partici-
pou do Sínodo de Dordrecht, quando se discutiu o dogma da predestinação,
debateu com as maiores figuras da época a origem dos índios americanos
e escreveu várias descrições geográficas <13>.
Expulsos da Bahia, refeitos com a captura da frota de prata, animados
e seduzidos pela riqueza açucareira de Pernambuco, pela sua posição geo-
gráfica e administrativa (capitania hereditária e não real) (14 >, os holande-
ses capturam Olinda em 1630 e ampliam aos poucos seu domínio. Até
1635 enfrentam a resistência pernambucana, que se abate nesta época e se
desfaz praticamente em 1637, quando chega a Pernambuco o Governador
João Maurício de N assau-Siegen.
As principais obras históricas são, do lado holandês, as de Joannes
Baers e Ambrósio Richshoffer; e, do lado português, as de Duarte de Al-
buquerque Coelho e Francisco de Brito Freire, se descontarmos, pela sua
menor significação historiográfica, a literatura de folhetos, as advertên-
cias e relatórios descritivos da atualidade, que são especialmente documen-
tos históricos (15) e não historiográficos.
Joannes Paschasius Baers ( 15 80-1653), predicante calvinista e cape-
lão militar do coronel D. van Waerdenburgh, que dirigia as tropas de de-
sembarque, escreveu a narrativa da conquista, Olinda Conquistada 0 6 >.
Ambrosius Richshoffer, natural de Strassburgo, soldado da Companhia
publicou suas aventuras de 1630 a 1632 (17 >. A historiografia holandesa
desta fase não tem a mesma categoria da portuguesa, pois os dois trabalhos

(11) Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 354-356. A obra publicada em alemão foi


traduzida para o português.
(12) Leyden, 1644; sobre as várias edições e a tradução portuguesa, vide J. H. Rodrigues,
Historiografia, n. 0 • 43-46.
(13) Vide sobre as várias edições, J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 43-46.
(14) Vide sobre esses vários aspectos históricos Charles Boxer, The Dutch ln Brazll,
1624-1654, Oxford, 1957.
(15) Vide José Honório Rodrigues, Historiografia, pp. 215-226. Adriano Verdonck, que
vivia em Pernambuco desde 1618 e escreveu uma descrição das capitanias, não é um autor da
conquista. Ele as descreve para conhecimento do Conselho Político. Vide n. 0 395 da Historio-
grafia citada.
(16) Olinda, Ghelegen int Landt van Brasil, Amsterdam, 1630; trad. port. de Alfredo de
Carvalho, Olinda Conquistada, Recife, 1898. Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n.•• 390-391.
(17) Brazlllanlsche und Westindlsche Relsse Beschreibung, Strassburg, 1677; trad. Alfredo de
Carvalho, Dldrio de um soldado da Companhia das fndias Ocidentais, Recife, 1897. Vide J. H.
Rodrigues, Historiografia, n.os 415,417.

61
de Duarte de Albuquerque Coelho e de Francisco de Brito Freire são dos
melhores produtos da historiografia de língua portuguesa não só do domí-
nio holandês no Brasil, mas de todo o século XVII.
Duarte de Albuquerque Coelho (1591-1658), quarto donatário de
Pernambuco, chegou à Bahia na armada que vinha restaurá-la do poder
holandês em 1625. Voltou a Portugal e em julho de 1631 retomava ao
Brasil na armada de D. Antônio de Ocquendo, que vinha combater os ho-
landeses que assaltaram Pernambuco. Desde então até a grande retirada
dos pernambucanos para a Bahia, finda a resistência com a queda do ar-
raial de Bom Jesus, lutou como simples soldado. Participou da defesa da
Bahia' em 1638 e no fim do ano voltava para a Espanha onde se estabe-
leceu, ficando-lhe fiel, quando, dois anos mais tarde, Portugal se libertou
do domínio espanhol.
Suas Memorias Diarias de la Guerra dei Brasil <18), escritas em estilo
fluente e agradável, constituem, ao lado de Valeroso Lucideno, de Frei
Manuel Calado do Salvador, um dos mais importantes estudos de história
social desta época, abrangendo de 1632 a 1638, e junto a mais dois ou
três compõem a historiografia essencial sobre os holandeses no Brasil. Es-
tavam redigidas em 1644, mas sua publicação foi adiada por uma década
em face dos protestos de críticos hostis. Uma das objeções consistia na
glorificação do caráter e da habilidade militar de Matias de Albuquerque,
que chefiara toda a campanha de resistência dos luso-pernambucanos de
1630 a 1635 e mais tarde, em 1644, fora o chefe militar das forças por-
tuguesas no Alentejo, distinguindo-se extraordinariamente na Guerra da
Restauração de Portugal ( 1644-1646) .
Seus interesses e sua paixão na defesa da religião e da capitania toma-
ram-no partidário, sectário, intolerante, mas um intérprete fiel dos senti-
mentos hispano-luso-brasileiros, embora mais tarde fosse infiel a Portugal
e à sua própria capitania brasileira pela oposição voluntária ou forçada à
causa portuguesa da libertação. Duarte de Albuquerque Coelho deixou, em
manuscrito, outros trabalhos, inclusive o "Compendio de los Reis de Por-
tugal", escrito em 1625.
Francisco de Brito Freire (c. 1625-1692) <19 > desde cedo começou sua
carreira militar, servindo ao Rei e a Portugal. Rico, possuindo por he-
rança de seu avô engenhos no Brasil, já em 1641, aos quinze ou dezesseis
anos, embarcava na armada que foi a Cádiz; logo depois foi socorrer a
Ilha Terceira, serviu no exército do Alentejo nas lutas contra a Espanha,
especialmente na batalha de Montijo. Assinalou seu valor nestas e em
outras campanhas contra os castelhanos, e foi promovido a capitão de
infantaria, capitão-de-mar-e-guerra e, finalmente, Almirante da Armada
da Companhia Geral que saiu de Lisboa a 3 de outubro de 1653, para
recuperar Pernambuco.

(18) Madri, 1654. Vide outras edições e trad. in J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 409-412.
Sobre o Compêndio, vide n, 0 409.
(19) Edgar Prestage, baseado na referência que a si próprio faz Brito Freire em sua
Relação de Viagem (1656), como "hum general tão moço, que ainda não contava trinta annos
de idade", conclui que este nascera depois de 1625. Francisco Manuel de Meio, ob. clt., 271, nota,

62
A vitória obtida a 26 de janeiro de 1654 foi contada pelas vanas
H.elações e pela Epanáfora Triunfante Quinta, de seu amigo Francisco Ma-
nuel. A segunda viagem ao Brasil vem descrita na Relação de Viagem que
o próprio Almirante escreveu. Nesta ocasião conduziu 139 embarcações,
carregadas de 53.221 caixas de açúcar, além de tabaco, marfim, âmbar,
negros e jacarandá. Foi a maior e a mais rica frota que em número de
naus e cabedal de fazenda entrou até aquela época nos portos de Portugal.
Fez ainda uma terceira viagem ao Brasil, depois de governar a praça mili-
tar de Jerumenha, em 1660, pois a 26 de janeiro de 1661, tomava posse
do governo de Pernambuco, que dirigiu até 5 de março de 1664.
Sua obra principal, a Nova Luzitania ou História da Guerra Brasí-
/ica (2°>, relata os sucessos decorridos entre 1624 e 1638, que já haviam
sido contados pelo donatário da capitania, Duarte de Albuquerque Coelho.
Se é verdade que não teve participação direta nos acontecimentos que
descreve, utilizando-se de papéis, correspondência e de descrições orais,
não é menos autêntico e seguro. Não copiou o trabalho de Duarte de Al-
buquerque Coelho, como escreveu Varnhagen, pelo mero fato de ambos
terem terminado sua obra em 1638. Seria muito fácil verificar-se o plágio
em obras de data de publicação tão aproximada; além disso, a crítica inter-
na e a comparação dos textos, assim como o fato conhecido de Brito Frei-
re só haver publicado a Primeira Década, e haver falecido antes de com-
pletar a Segunda, que abrange os anos de 1638-1655, revelam a improce-
dência da acusação de Varnhagen.
Menos procedente, ainda, é a sua crítica ao estilo de Brito Freire, que
por outros mais competentes em crítica literária foi julgado autor da maior
estimação e escritor que se exprimia com propriedade e correção. Foi, tal-
vez, dos primeiros a manifestar, ao se referir a Calabar, sentimentos patrió-
ticos em relação ao Brasil, e é de se lamentar, isso sim, que a Segunda Déca-
da, em manuscrito e incompleta, não tenha sido encontrada, pois pela sua
participação e encargo oficial poderia ter à mão documentos e papéis que
dessem à sua descrição autoridade e fidedignidade incontestáveis. Produtor
de História e historiador, Brito Freire deixou documentos historiográficos
e históricos, como a "Relação sobre a Capitulação de Recife" em 1654 <21 >,
narração de extraordinária fidedignidade, redigida com grande espírito de
síntese, e a Viagem da Armada da Companhia do Comércio, e Frotas do
Estado do Brasil <22 >, relativa a 1655, importantíssima porque a Companhia
de Comércio teve grande parte na restauração de Pernambuco.

(20) Lisboa, 1675. Vide também Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana. F. A. Pereira da
Costa escreveu uma Biografia de Brito Freire, na RIAGP, 1901, vol. 9, n .0 55, 167-168. Os
melhores subsídios biográficos são os de M. Lopes de Almeida, O Historiador da Nova Luzltanla,
Francisco de Brito Freire, Coimbra, 1952 e "Novos subsídios para a biografia de Francisco de
Brito Freire•, Brasllla, voi. IX, Coimbra, 1555, 133-197. Estes dois documentos publicados (1, de
23 de Julho de 1651 e L!I de 8 de setembro de 1665) são duas breves biografias.
(21) Virgínia Rau, Relação Inédita de Francisco de Brito Freire sobre a Capitania do
Recife, Coimbra, 1954. Trata-se de documento do Arquivo Cadaval, cód. 976, fl . 73v., regis-
tado ln V. Rau e M. F. Gomes da Silva, Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval respei-
tantes ao Brasil. Coimbra, 1956. doe. 1974.
(22) Lisboa, 1657. Há várias outras edições; vide J. H. Rodrigues, H istoriografia, n.0 413.

63
Apesar de todos os seus grandes serviços Brito Freire sofreu o infor-
túnio político, quando da deposição de D. Afonso VI. Tendo-lhe sido or-
denado que conduzisse o rei às Ilhas Terceiras, Brito Freire "não aceitou
tal encargo, por julgar que nessa missão perigava a sua fidalgaria e hon-
ra" <2 3). Por isso, foi preso e só aos poucos conseguiu restaurar sua liber-
dade. A 24 de junho de 1691, Vieira escrevia-lhe que a Bahia estava
"muito acrescentada e enobrecida de casas, mas totalmente despovoada de
homens. Todos os que V. S. na sua ilustre Historia canonizou de heróis
acabaram, e também não existem já as memórias daquela arte ou descon-
certo militar com qpe defendemos esta praça e restauramos tantas de Per-
nambuco" <24 l. A lembrança de suas vitórias, do seu governo, dos seus
serviços, do seu patriotismo eram um consolo para o velho militar e his-
toriador.

2. O período Nassoviano (1637-1644)


e a luta contra os holandeses (1645-1654)
O período Nassoviano (1637-1644) e a restauração de Pernambuco
( 1645-1654) constituem duas fases extremamente ricas na historiografia
sobre os holandeses no Brasil. Barleus, Calado, Moreau, Francisco Manuel
de Melo e Nieuhof são os mais representativos, e se a eles juntarmos Pedro
Cadena e Matheus van den Broeck, teremos um quadro completo, sem os
documentos históricos como o "Machadão do Brasil" e a "Bolsa do Bra-
sil", que melhor figuram numa bibliografia <25 l.
Se Calado é a melhor expressão da historiografia portuguesa desta fa-
se, Gaspar Barleus é a figura mais destacada da crônica holandesa sobre
o Brasil. N asei do em Antuérpia, Gaspar van Baer\~ ( 15 84-1648) <2 6> foi
filólogo, historiador, um dos maiores poetas latinos de sua época e muito
conhecido e afamado como erudito de formação clássica. Assim se explica
sua escolha por João Maurício de Nassau, que o incumbiu de escrever a
história dos seus feitos nos oito anos de administração do Brasil. A Rerum
per Octennium in Brasilia <27 >, apesar do tom panegírico, é obra de ex-
cepcional valor, como narrativa contemporânea, pois o autor teve acesso às
fontes oficiais e particulares. Como descrição da obra administrativa de
João Maurício de Nass 9u, deve ser considerada uma das mais representa-
tivas da literatura sobre a experiência colonial holandesa no Brasil e a

(23) M. Lopes de Almeida O Historiador da "Nova Luzltanla" Francisco de Brito Freire,


Coimbra, 1952, II. AI se registam as duas cartas de Vieira, a de 28 de fevereiro de 1671, que
fala no alivio da prisão, Isto é, na transferência da Torre de Belém para S. Julião, e a de
12 de julho de 1678, quando, como soldado, saiu em fragata a correr a costa, a fim de se
Introduzir de novo no serviço e se habllltar ao Almirantado.
(24) Cartas do Padre Antônio Vieira, coordenadas e anotadas por J. L. de Azevedo, Coimbra,
1928, 609-610.
(25) J. H. Rodr,gues, Historiografia, n. 0 • 524 e 525.
(26) O melhor estudo bibliográfico é de J. A. Worp, "Gaspar van Baerle", Oud Holland, t. 3
a 7, 1885-1889. Outras Indicações bibliográficas in J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 449.
(27) !.• ed. Amsterdam, 1647. As várias edições alemã, holandesa, portuguesa, descritas ln
J. H. Rodrigues, Historiografia, n.0 • 449-453 . Vide também, de J. H . Rodrigues, • A edição brasl·
leira de Barleus", "Suplemento Literário" de A Manhã (Rio), 10 de agosto de 1941, reproduzido na
Rev/$ta do Arquivo Municipal de São Paulo, LXXVII, 272-277 .

64
principal autoridade impressa. Começa onde terminava o livro de Laet, e,
como este, baseia-se nas fontes, embora exalte sempre a figura do Conde.
Apesar disso, Barleus dá a palavra a vários inimigos e desafetos de Nassau,
como Arciszewski. Trata-se, como observou Charles Boxer, do primeiro
trabalho europeu em que o cenário tropical foi representado diretamente em
desenhos feitos por um artista profissional no próprio local (28).
Terminada a fase de Nassau (1644), que sempre procurara contem-
porizar, o descontentamento atinge ao máximo e em 1645 os povos de
Pernambuco iniciam o movimento de expulsão dos holandeses. Dos cronis-
tas desta fase, ou melhor ainda, de toda a época dos holandeses no Brasil,
destaca-se singularmente Frei Manuel Calado do Salvador, português nas-
cido em Vila Viçosa (1584 ?), que viveu no Brasil (Pernambuco) de 1624
(?) a 1646, quando voltou a Portugal a fim de solicitar de D. João IV
apoio para Pernambuco, que sofria as aperturas da guerra <29). Morreu em
1654, quando terminara a invasão holandesa, sem ter conseguido sua gran-
de aspiração de ser o administrador eclesiástico da capitania.
Calado escreveu de setembro de 1645, aproximadamente, a julho de
1646, em plena luta, uma das mais simples e humanas histórias dos seis-
centos, saborosa pela vivência, pela simpatia e antipatia com que tratou
episódios e pessoas, no Valeroso Lucideno e Triumpho da Liberdade <3 0>,
que abrange o período de 1630 a 1646. A ingenuidade e simplicidade com
que Calado escreveu, no meio do vozerio, das trombetas, dos assobios de
balas, dão ao seu livro um alto índice de autenticidade. :e certo que foi
parcial, mas nem de outro modo poderia proceder quem por tantas vezes
declarou, no correr de suas páginas vivas e coloridas, tomar partido pelos
da facção da liberdade católica e lusitana. O seu d,esejo de ver o Brasil livre
dos holandeses, e o zelo em batalhar para restituir Pernambuco ao Impé-
rio de D. João IV conduziram-no muita vez ao erro, à parcialidade, à
falsidade. Muitas vezes estava escrevendo a sua obra que com tanto sabor
denominou de Triunfo da Liberdade, quando chegavam à sua casa feridos
de guerra que lhe pediam agasalho e absolvição (31).
. Entrara em Pernambuco antes da invasão, a fim de adquirir esmolas
para seu velho pai e sua tia. Solidarizando-se com os sofrimentos dos afli-
tos moradores, embrenhou-se pelo mato, onde rezava missa, consolava os
enfermos, pregava a fé católica, abominava a malicia herética e confortava
os pusilânimes. Veio mais tarde, no governo de Nassau, viver entre os
holandeses, residindo no Recife, no bairro de Santo Antônio. Aí aprendeu
algumas palavras holandesas que transcreve na sua obra. Conversava em
latim como João Maurício de Nassau, Arciszewski, von Schkoppe e Lich-

(28) The Dutch ln Brazll, ob. clt., 293-294.


(29) A principal biografia é de José Antônio Gonçalves de Melo Neto, Frei Manuel Calado
do Salvador, Universidade do Recife, 1954.
(30) t.• ed., Lisboa, 1648; 2.• ed ., Lisboa, 1668; 3.• ed., Recife, 1942 . Descrição bibliográfica
in J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 538-540.
(31) O Valeroso Lucldeno, 2.• ed., Lisboa, 1668, 43.

65
thardt (32). Ficou apelidado de Frei Manuel dos óculos (33), naturalmente
pela raridade dos que os usavam naquela época.
O julgamento crítico de Calado sofreu grande variação no pensamen-
to historiográfico. Para Robert Southey ele foi um homem extraordinário,
soldado, poeta e historiador. Muitos anos mais tarde, o alemão Hermann
Wãtjen (3 4 > desconsiderou Calado, julgando-o tendencioso e merecedor de
posição muito baixa entre os autores contemporâneos.
Foi com o artigo de Capistrano de Abreu, publicado no fim do século
passado e divulgando largos trechos da obra de Calado, que se iniciou ver-
dadeiro processo de revalorização do filho de Vila-Viçosa como cronista.
Na correspondência ultimamente publicada, nas cartas a João Lúcio de
Azevedo, Paulo Prado e outros contemporâneos, Capistrano de Abreu louva
Calado como essencialmente verídico e acrescenta que sua obra se lê com
muito prazer. Os autores atuais têm também salientado a sua capacidade de
observação, embora muitas vezes preconcebida e apaixonada. Ele escreveu
não só com o coração quente, mas também com a cabeça inflamada enquanto
se desenvolvia a luta, durante os anos de 1645 e 1646. Charles Boxer, no
seu livro sobre os holandeses no Brasil, considera a obra de Calado a mais
viva do primeiro ano da insurreição pernambucana e seu autor como cor-
respondente de guerra. Ele nos dá, diz Boxer, uma descrição muito viva
da Colônia nos dias de João Maurício de Nassau (35 l.
Calado partiu para Portugal para conseguir o apoio oficial e popular
para a causa pernambucana e um ano depois de sua chegada terminava sua
obra. E evidente que não podia ser imparcial, pois se engajara na guerra,
uma espécie de guerra santa, contra os hereges holandeses. Muitas vezes
torce a verdade, como notou Boxer, ao descrever a vitória de Lichthardt
em Tamandaré, outras vezes é anti-semita. Mas apesar de seus amores e
:e
desamores, o seu livro é de leitura indispensável. um livro gostoso, fluen-
te, apesar das excessivas demonstrações de má poesia e de certos trechos
monótonos. Calado não escondeu sua admiração por Maurício de Nassau,
embora não ocultasse as faltas do Governador, e pintou às vezes com
malícia os retratos de algumas figuras importantes, como Bagnuolo, Gas-
par Dias Ferreira, o cristão-novo, e Gaspar Ferreira, o vigário da Várzea.
Para José Antônio Gonçalves de Melo Neto, o livro de Calado não
é um história: é um depoimento que procura influir também no moral
dos combatentes e que retrata ao vivo a sociedade do Brasil nordestino
seiscentista Transcreve documentos, alguns autênticos, outros inventados,
especialmente algumas cartas e discursos, tão na moda na historiografia
de sua época (36). E importante observar, como apontou Gonçalves de Melo
Neto, que a obra de Calado foi a fonte de mais de 40% das obras do
historiador oficial Rafael de Jesus e de Diogo Lopes Santiago.

(32) /d. Ibidem.


(33) Inventário dos prédios edificados ou reparados até 1654, Recife, 1940, 167.
(34) Das hol/andische Kolonlalretch in Brasilien, Haia, 1921, trad. port. O Domlnlo Colonial
Holandês no Brasil, São Paulo, 1938.
(35) Charles Boxer, The Dutch ln Brazll, Oxford, 1957, 298-299.
(36) J. A. Gonçalves de Melo Neto, Frei Manuel Calado do Salvador, ob. cll., 11-16.

66
Como cronista do tempo não é de se admirar que o zelo em batalhar
para restituir Pernambuco ao domínio de D. João IV o conduzisse a erros
e parcialidades. Seu livro é um retrato vivo e autêntico dos sofrimentos e
da rebeldia dos aflitos moradores do Nordeste e, sem dúvida, a melhor
crônica da época, pelo sabor das coisas seiscentistas que transmite ao lei-
tor. As várias críticas que fez à Companhia de Jesus, ao Bispo do Brasil
D. Pedro da Silva e ao Vigário Geral Manuel de Azevedo devem ter pro-
vocado a queixa ou queixas de que resultou a proibição do livro e sua
inclusão no Index librorum prohibitorum <37 >.
José Gonçalves Salvador trouxe novidades que José Antônio Gonçal-
ves de Melo Neto desconheceu. Baseadas em pesquisas próprias nos ar-
quivos portugueses, mas sobretudo servindo-se das investigações de Anita
Novinsky <38 >, mostrou que Frei Manuel Calado era opulento senhor de
terras, escravos e gado, sendo acusado de procedimento ruim e de se ligar
aos holandeses, querendo ir para a Holanda com o Padre Manuel de Mo-
rais. Foi preso pelo Bispo d. Pedro da Silva, mas fugiu e voltou para o
Recife, aconselhando os luso-brasileiros a aceitarem a lei holandesa. Sendo
proibido de realizar atos religiosos pelo Bispo, não atendeu as ordens e por
isso foi excomungado pelo padre vigário Gaspar Ferreira. As informações
da Devassa, principalmente, remodelam a imagem do padre, mas a verdade
é que, como a grande maioria, ele acabou aceitando o domínio holandês
e depois, na luta, ficou do lado luso-brasileiro.
Frei Manuel Calado é o principal cronista da história dos primeiros
anos da insurreição pernambucana contra o domínio holandês.
Do ponto de vista holandês, Laet contara a história até 1636, Barleus
até 1644 e Johan Nieuhof retoma a narrativa, não em 1644, mas em 1640,
ano em que chega ao Brasil. Nascido na Alemanha (1618-1672), entrou
para o serviço da Companhia das tndias Ocidentais em 1640, e em Outu-
bro era enviado ao Brasil, onde chegou a 11 de dezembro, aqui permane-
cendo 9 anos. Quando voltou, Nieuhof levava escrita a Memorável Viagem
Marítima e Terrestre <39 > que se tomou a mais completa, curiosa e indis-
pensável fonte holandesa sobre o movimento luso-brasileiro que restaurou
o Nordeste ao domínio português. Descreve, a princípio, a situação geográ-
fica, a história natural, as populações indígenas e negras, e resume os epi-
sódios de 1640 a 1644. Este trecho não tem maior significação, pois as
obras dos naturalistas holandeses Marcgrave e Piso superaram tudo o que

(37) A !.• ed. do livro de Calado é de 1648. A 24 de novembro de 1655, por um decreto
apostólico, foi incluído no fndice dos Livros Proibidos, até que fosse corrigido. Em 1667, por
decreto de 28 de março, foi levantada a proibição, autorizando-se que o mesmo pudesse correr
livremente. A 2.• ed. saiu em 1668. Vide lndex Llbrorum Prohibltorum, Pelela, 1862, 101.
(38) José Gonçalves Salvador, "O enigmático frei Manuel Calado", Estado de S. Paulo, 28
de novembro de 1970, e "Uma Devassa do Bispo Dom Pedro da Silva, 1635-1637", Anais do Museu
Paulista, São Paulo, 1968, t. XXII, 215-285, com Introdução de Anita Novlnsky, onde revela
desconhecer a biografia de Calado e a bibliografia sobre os holandeses no Brasil, não só a obra
de José Antônio Gonçalves de Melo Neto como a minha Historiografia e Bibliografia do Domfnlo
Holandês no Brasil, Rio. 1949, Sua introdução é por isso Inócua. O único livro sobre holandeses
no Brasil que conhece é o de C. R. Boxer, que é de pouca valia para o caso.
(39) A !.• ed. é holandesa: Gedenkweerdige Brasiliaense Zee-en Lant Relze, Amsterdam, 1682.
Há várias outras edições. Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 568-570. A edição brasileira
aqui referida (São Paulo, Martins, 1942) é anotada por J. H. Rodrigues.

67
se escreveu antes ou durante a fase holandesa; o resumo sobre os anos de
1640 a 1644 é deficiente em face da narrativa de Barleus.
A obra de Nieuhof, abundantemente documentada nas fontes originais
e rica da correspondência oficial entre as autoridades holandesas e portu-
guesas, torna-se a mais valiosa exposição dos anos de 1645 a 1649, em-
bora decresça de exatidão entre 1648 e 49, talvez porque não tenha dado
forma definitiva à obra, finalmente editada por seu irmão. Nieuhof partiu
de volta para a Holanda a 23 de julho de 1649 e em setembro desse ano
chegou a Flissingen, de onde empreendeu outras viagens ao Oriente. Habi-
tou Batávia entre 1670-72 e desapareceu em 1672 na Ilha de Madagáscar.
Foi um observador inteligente, e sua Memorável Viagem figura, com jus-
tiça, entre os melhores documentos historiográficos dos holandeses no
~rasil. É, dos historiadores da rebeldia luso-brasileira, o que melhor relata
a situação política econômica, os equívocos e defeitos da política colonial
holandesa.
Matheus van den Broeck e Pierre Moreau, que descreveram, respecti-
vamente, os erros de 1645-46 e 1646-47, suplementam e completam, como
testemunhas e com obras trabalhadas como produtos de historiografia, a
Memorável Viagem de Nieuhof.
O Diário ou Narração Histórica de Matheus van den Broeck <40 > é
um quadro muito vivo da luta, escrito por um combatente aprisionado a
17 de agosto de 1645. Relata as traições, os combates e rudezas da cam-
.panha, as particularidades curiosas da gente e da terra. Tendo partido da
Bahia a 1 de abril de 1646 e chegado a Portugal a 5 de julho, Matheus van
den Broeck faz suspeitar muito da veracidade de sua narrativa quando afirma
que em Alcântara conseguiu falar pessoalmente com o Rei e obter seu
passaporte, com o qual partiu e alcançou Texel, na Holanda, a 9 de agosto.
Se o Diário ou Narração Histórica é apenas um relato de lutas, pre-
cioso pelas miúdas informações reunidas relativas aos processos de com-
bate, aos costumes das gentes e às localidades e fortes, a Histoire des Der-
niers Troubles au Brésil <41 ) é uma crônica curiosa e interessante, de leitura
agi:adável, mas imprecisa e omissa, sumária, vaga e conjetural nas expli-
cações e esclarecimentos. Do autor pouco ou quase nada se sabe, e ele
mesmo pouco diz de si. Devorado pela doce paixão de ver, dirigiu-se à
Holanda, aprendeu a língua, exercitou-se nas armas e demonstrou tanto
entusiasmo em participar da frota que conduziu, em 1646, os reforços e
os membros do Alto e Secreto Conselho do Brasil, que foi admitido como
secretário de um dos conselheiros. Não diz a quem serviu, relata a viagem,
descreve sumariamente o Brasil e seus habitantes, a formação da Compa-
nhia das fndias Ocidentais, a administração holandesa e seus abusos, e a
conspiração e revolta portuguesa de 1646 a 1647.

(40) l.• ed. holandesa, .fournael o/te Historische Beschri/vingen, Amsterdam, 1651. Vide J.
H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 • 559-560. •
(41) Paris, 1651. Descrição bibliográfica e tradução holandesa in J. H. Rodrigues, Historio-
grafia, n. 0 • 557-558. Tradução portuguesa de Leda Boechat Rodrigues será brevemente publicada.

68
Durante um ano, de sua chegada a 11 de agosto de 1646 até sua
partida a 4 de setembro de 1647 (42), Pierre Moreau, impressionado com
tantas desordens, ruínas, calamidades, homicídios e pilhagens praticadas
pelos portugueses e holandeses, aplicou seus cuidados em instruir-se sobre •
as origens e o começo de tantas desgraças, anotou tudo que julgou conve-
niente à compreensão das lutas que ocorriam no Brasil. Desejava, em
suas próprias palavras, comunicar ao público "esta parte da história do
nosso século que me pareceu considerável e bastante pouco conhecida".
Quis depressa livrar-se desta terra que lhe pareceu malfadada: "A verda-
de é que jamais se conseguiu ali estabelecer a paz e pode dizer-se do Brasil
que é como·certos lugares da terra: impossíveis de serem satisfatoriamente
fortificados, não pelo defeito da arte, dizem os arquitetos, mas pela má
situação em que se encontram. Se esta adorável filha do céu e fiel tutora
da felicidade dos homens não pôde encontrar residência firme nesta bela
e fértil região, isso não decorreu da falta de conhecimento de seu valor e
importância, capaz de proporcionar uma vida de perpétua felicidade; foi,
talvez, conseqüência de alguma secreta e maligna disposição do ar que aí
se respira, infectado pelos demônios que corrompem o natural de seus
habitantes." Esta citação serve para mostrar a vacuidade de algumas das
dissertações de Moreau e revelá-lo, ao contrário dos primeiros cronistas,
como um descrente da terra e da gente. "Esta rica parte da América, em
vez de gozar tranqüilidade, parece estar destinada apenas à carnificina e
à crueldade, que sempre viu executadas pelos descendentes dos naturais e
dos que a nossa Europa aí conduziu, os quais, dir-se-ia, só foram atraídos
ao seu seio para regá-la com seu sangue."
Se interpretações como essas destoam do rosário de louvores, que
portugueses, espanhóis e mesmo holandeses recitaram da terra, certas pre-
visões formuladas, ainda em 1650 ou 1651, quando a guerra não terminara
e os esforços holandeses se faziam para recuperá-la totalmente, são tão
certeiras que sua capacidade conjetural se revela extraordinária. "Todavia,
se é lícito julgar o futuro pelo raciocínio apoiado em conjeturas das coisas
do passado, em relação às do tempo presente, parece-me não ser possível
que os holandeses jamais se possam restabelecer e restaurar no Brasil como
antes. Ainda mesmo que a sua frota derrotasse a portuguesa e se mandasse
outro socorro igual ao último, eles não farão jamais senão perder homens
e esgotar todos os tesouros sem lucrar coisa alguma ... "
Sua ligação com os holandeses não o impediu de ser imparcial ao
recriminar justamente as opressões, as usuras, os excessos de tributo e os
objetivos sumamente comerciais da política administrativa holandesa, que
acabavam com a nata e a substância dos cristãos luso-brasileiros. Mas os
serviços que prestou aos holandeses, movido pela paixão de ver o mundo
novo, animaram-no a acreditar nos elevados e grandes objetivos que os
Estados Gerais, vaidosos da prodigiosa felicidade de que se viam cumula-

(42) Diz o A. que a sua viagem demorou dois anos. Não passou, porém, de um ano e
vinte e cinco dias, segundo se lê no Diário de Haecx . Moreau partiu da Holanda a 9 de maio
de 1646, voltando com a delegação que velo solicitar reforços, sob a chefia de Haecx, partida do
Recife a 4 de setembro de 1647.

69
dos nos Países Baixos e nas lndias, pretendiam realizar no Brasil, desc~e-
vendo-os minuciosamente em suas últimas páginas. Essas aspirações não
coincidiam com a prática do Governo, nem com os fins mercantis da
Companhia.
Pierre Moreau é um cronista de espírito francês, na construção rápida
e ligeira de sua narrativa, que não se prende às exigências cronológicas;
divaga e interpreta segundo impressões pessoais e não consulta ou não
divulga os documentos da época, que, como secretário, podia ter facil-
mente à mão: mas possui, também, s1, capacidade francesa de síntese e
previsão.
Para precisar a narrativa contemporânea e reatar o elo final da cadeia
holandesa de Laet, Barleus e Nieuhof, o Diário de Henrique Haecx, mem-
bro do Alto Conselho do Brasil, é o principal documento histórico e his-
toriográfico entre 1645 e 1654 e de grande valor para a história política
dos últimos anos da dominação holandesa, excetuados certos períodos, co-
mo de 19 de agosto de 1646 a 3 de setembro de 1647, ou de 5 de outubro
de 1650 a 25 de fevereiro de 1652, que não estão registados e comenta-
dos <43 >. O Diário é particularmente detalhado nos negócios do Brasil de
3 de setembro de 1647 até a primeira batalha de Guararapes, em 19 de
abril de 1648, e muito valioso sobre a gestão dos órgãos governamentais
na Metrópole, revelando as rivalidades dos membros da Companhia, o ·
desprezo mútuo entre civis e soldados, conluios dos aproveitadores da
guerra, fatores que, entre outros, explicam o declínio do poder holandês
no Brasil. Descreve extensamente a penúria do Recife e a agonia da colônia
(dezembro de 1653 a janeiro de 1654).
Segundo Naber, a catástrofe holandesa no Brasil deve atribuir-se an-
tes de tudo à primeira guerra anglo-holandesa ( 1652-54) que, se não cor-
tou as relações entre as Províncias Unidas e o Brasil holandês, impediu
que se mantivesse a vigilância nas próprias águas territoriais brasileiras;
além disso, na ausência de uma frota auxiliar holandesa, a fortaleza prin-
cipal viu-se forçada a arriar bandeira, em conseqüência da superioridade
portuguesa naquelas águas <44 >, conseguida com o envio de 17 navios. Essa
Armada, a 20 de dezembro de 1653, alarmou os defensores e praticamente
decidiu a questão <45 >. A inação estratégica holandesa facilitou o domínio
dos mares, e, por isso mesmo, as Relações sobre as Armadas portuguesas
e suas vitórias ocupam agora as páginas da historiografia seiscentista. Al-
gumas destas Relações, prestigiadas pelo renome de seus autores, narram,
em estilo cuidado, o tema do predomínio marítimo, no grande quadro ge-
ral da história das lutas.
A primeira delas é de Francisco Manuel de Melo, um clássico das
línguas portuguesa e espanhola, de cuja obra geral já tratamos. A Relaçam

(43) "Het Dagboek van Hendrlk Haecx. Lid van den Hoogen Rad van Brazilie (1645-1654)",
Bl/dragen en Mededeelingen van het Historische Genootschapte Utrecht, vol. XLVI, 1925, 126-311.
O Didrio foi encontrado e publicado com anotação por S. P. L'Honoré Naber, que anotara a edi-
ção holandesa de G. Barleus. Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n.• 573. Há tradução portu-
guesa de Frei Agostinho Kcizers, com notas suplementares de José Honório Rodrigues, ln ABN,
vol. 69, 19-153.
(44) S. P. L'Honoré Naber, Introdução cit., ABN, vol. 69, 35.
(45) Charles Boxer, The Dutch in Brazli, Oxford, 1957, 235-239.

70
dos Sucessos da Armada que a Companhia Geral do Comércio expediu ao
Estado do Brasil o ano passado de 1649 de que foi Capitão Geral o Conde
de Castel Melhor <46 > descreve a batalha que se feriu nas costas de Per-
nambuco e relata os socorros pedidos e concedidos aos rebeldes pernam-
bucanos pelo Conde, bem como a situação dos holandeses em Pernambu-
co, que em nada se avantaja à dos portugueses.
Com os navios que a Companhia Geral forneceu para enfrentar a cri-
se marítima nem um só pataxo dos comboios se perdeu aos corsários fla-
mengos e assim, como dizia o Padre Vieira, se sustentou a guerra com
Castela, se conservou o Reino e se restaurou Pernambuco <47 >.
Seguem-se as relações sobre a vitória final em 1654, que contou para
sua obtenção com o apoio do General da Armada da Companhia Geral,
Pedro Jacques de Magalhães, e do Almirante da mesma, Francisco de
Brito Freire, no cerco e sítio, por terra e mar, da forte praça do Recife,
ainda dominada pelos holandeses. A primeira e mais completa, Relaçam
Diária do Sítio, e Tomada da forte praça do Recife, recuperação das Ca-
pitanias de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande, Ilha de Fernão de Noronha,
por Francisco Barreto, Mestre de Campo General do Estado do Brasil e
Governador de Pernambuco (48>, atribui-se, sem muita convicção e menos
parecença, a Antonio Barbosa Bacelar ( 1610-1663) , poeta gongórico que
nunca veio .. ao Brasil, ao contrário do que se diz no fim, que "esta é a
Relação verdadeira da restituição de Pernambuco, escrita por quem se
achou presente a ela" (49).
A Breve Relaçam dos últimos sucessos da Guerra do Brasil, restitui-
ção da cidade de Maurício, Fortalezas do Recife de Pernambuco, e mais
praças que os Olandeses ocupavam naquelle Estado c5oi é menos desen-
volvida e minuciosa que a Relaçam Diária, na parte das lutas até a derrota
dos holandeses, embora precisa e detalhada nos fatos posteriores à capitu-
lação holandesa. Descreve as manifestações em Portugal e inclui a se-
gunda e quinta capitulações holandesas. É posterior à Relação Diária, atri-
buindo-se sua autoria a João de Medeiros Correia (? - 1674), mais pela
autoridade dos bibliógrafos que pela veracidade do argumento <51 >.
A Relación Verdadeira de la recuperación de Pernambuco, sitio de su
Recife, entrega suya, i de las Capitanias de Itamaracá, Paraíba, Rio Grande,
Ciará e lsla de Fernando de Noronha <52 l é uma versão castelhana anônima
de toda a Relaçam Diária, com acréscimo de alguns trechos novos extrai-
dos da Breve Relaçam, e, conseqüentemente, posterior a ambas.

(46) Lisboa, 1650, Vide Descrição bibliográfica e autoria in J. H . Rodrigues, Historiografia,


n.0 556.
(47) C. R. Boxer, "As Primeiras Frotas da Companhia do Brasil à Luz de Três Documentos
Inéditos, 1648-1652", Anais do IV Congresso de História Nacional, 1950, vol. V, 305-359.
(48) Lisboa, 1654. Descrição bibliográfica in J. H. Rodrigues, H istoriografia, n. 0 686; repro-
dução do texto in ABN, (1889), vol. 20, 187-205, e nota critico-bibliográfica de Antônio Jansen
do Paço, idem, 205-212 .
(49) Sobre a autoria vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n.0 686.
(50) Lisboa, 1654, Descrição bibliográfica em J. H . Rodrigues, Historiografia, ob. cil.,
n. 0 688, Cf. também a nota crítico-bibliográfica de A. J. do Paço, ABN , (1899), vol. XX, 185-186.
(51) Vide Antônio Jansen do Paço, nota citada, 185, e J. H . Rodrigues, Historiografia,
n. 0 688.
(52) Lisboa, 1654. Descrição bibliográfica ln Historiografia, 687, e nota crítico-bibliográfica
de Antônio Jansen do Paço, ABN, 1899, vol. XX, 186 e especialmente 209-210.

71
Atribui-se sua autoria também a João de Medeiros Correia, e se expli-
ca no final que "Esta Relación verdadeira del ultimo, y mayor sucesso de
la Guerra del Brasil (tan maravilloso, como todos los otros, con que Diós
ha testificado, que es voluntad suya estabelecer esta Corona de Portugal
en la persona, i sucession del Rey D. Juan el IV nuestro Seõor) escrive
(sic) un Portugues en lengua castellana, para que nuestros enemigos la
entiendan, i para que tenga mucho de notoria, pues tiene todo de verda-
dera" (53).
Foi ainda publicada a Brêve Relatione Dell'insigne Vittoria, che i
Portoghesi riportarono degli Olandesi n·ello Stato dei Brasile, impatronen-
dosi delle Fortezza Reale detta Recife nella Capitania di Pernambuco, que
se assemelha à Breve Relaçam de João de Medeiros Correia e mais à Rela-
çam Diária, atribuída a Bacelar. É um consciencioso e excelente resumo
em italiano desta última (54).
Para completar a visão da derrota holandesa no Recife e em todo
Brasil e mostrar a utilidade para a defesa do Reino da Companhia Geral
do Comércio, que assegurou, em 1653, com seus 64 navios, o domínio dos
mares e obrou a liberdade do Brasil, dispomos da relação do sucesso de
Francisco de Brito Freire, almirante da armada e escritor da História da
Guerra Brasílica <5 5). Escrita sem tempo, ao estrondo das armas e assistin-
do o Autor às suas obrigações militares, a Relação de Brito Freire foi
assinada aos 29 de janeiro de 1654 para ser apresentada ao Rei. Completa
as várias descrições do acontecimento.
Vitoriosas as armas luso-brasileiras e vencidas as holandesas na guer-
ra com a Grã-Bretanha, o domínio dos mares do Atlântico Sul continuava
a cargo das armadas da Companhia Geral do Comércio, a qual, em 17
de abril de 1655, enviava, sob o comando do mesmo Almirante Francis-
co de Brito Freire, que além da obrigação do posto satisfazia a curiosidade
geral "aparando a pena com a espada", uma armada de 36 naus das
maiores que jamais se viu, e das mais ricas em cabedal da fazenda, a pri-
meira que passava às províncias do Brasil, depois de recuperadas as praças
de Recife. Francisco de Brito Freire, que se fazia acompanhar de Dom
Francisco Manuel, "sujeito conhecido da nossa e das nações estrangeiras",
escreveu uma relação da viagem, concluída a 28 de julho de 1656, quando
chegaram à Corte carregados de riquíssimas fortunas em. açúcar, tabaco,
couros, marfim e pau-brasil <56 >. A descrição de Brito Freire é militar e
econômica, fornecendo valiosas- informações sobre a produção, os com-
boios, as necessidades mercantis dos moradores e senhores de engenho.

(53) Cf. Relaclón Verdadera, ob. cit., 38.


(54) Vide descrição bibliográfica ln J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 689 e nota crítico-
bibliográfica de Antônio Jansen do Paço in ABN, (1899), voi. 20, 206-212.
(55) Virgínia Rau, Relação Inédita de Francisco de Brito Freire sobre a Capitulação do
Recife, Coimbra, 1954. 6-17.
(56) Viagem da Armada da Companhia do Comércio e Frotas do Estado do Brazil, a cargo
do General Francisco de Brito Freire, Lisboa, 1655. Descrição bibliográfica ln J. H. Rodrigues,
Historiografia, n. 0 • 756-757.

72
CAPITULO IV

A HISTORIOGRAFIA ESPECIAL
DOS HOLANDESES NO BRASIL

1 . A historiografia diplomática. 2. A historiografia social


e econômica. 3. A historiografia regional, natural e etno-
gráfica.

1. A historiografia diplomática

Toda a historiografia nacional deveria alargar-se em nomear, com intei-


ra notícia, as vicissitudes da luta, as ocasiões e episódios destituídos de
glória, mas preciosos no conhecimento da vida comum, quotidiana, social
e econômica, de seus habitantes que interessadamente contribuíram para
assegurar o comércio e a produção e evitaram, apesar da guerra, o declí-
nio, sem remédio, à última ruina. Relatórios e descrições da época recriam
o esforço dos que não se esterilizaram nas batalhas e venceram a desgraça
com a diligência e o trabalho. Os cronistas e narradores da energia dos
naturais, dos merecimentos da terra e das fortunas da produção merecem,
pelo menos, igual registro que o dado aos vencedores das ocupações mili-
tares.
Antes de chegarmos à historiografia econômica e social que se ocupou
destas empresas pacíficas, é necessário lembrar que há horas em que a
palavra dos diplomatas substitui a dos militares, embora nem sempre con-
siga, com seus argumentos, evitar as vicissitudes bélicas.
A historiografia diplomática da época holandesa no Brasil compõe-se
especialmente de folhetos de contingência, escritos para estorvar a ação,
ou para justificar os ânimos empenhados nas refregas <1 >. Os relatórios e
discursos de embaixadores extraordinários portugueses aos Estados Ge-
rais das Províncias Unidas, como os de Antônio de Sousa Tavares, Fran-
cisco de Andrade Leitão, Francisco de Sousa Coutinho e Antônio de Sousa
de Macedo <2 > são mais documentos históricos que historiográficos, isto é,
não representam a evolução do escrito histórico, mas apenas fontes diretas
dos acontecimentos. Já a Razam da Guerra entre Portugal e as Províncias
Unidas dos Países Baxos (sic); com as noticias da causa de que proce-
(1) Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, 292-344. Naturalmente estão Incluídas nestas os
folhetos e documentos oficiais da época e os atuais.
(2) Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, n.°' 611-617 , 619, 620, 633, 640, 644, 658, 660.

73
deo (3) além de documento é também uma reconstrução histórica muito
substanciosa dos fatores das lutas luso-holandesas.
Relata as primeiras negociações e a missão dos vários embaixadores
que procuraram negociar a paz e compor as relações internacionais entre
os dois países, numa tentativa de chegar ao conhecimento das razões e
das ameaças de guerra, quando estas atingem o auge na Europa. A obra
saiu anônima, mas os principais bibliógrafos atribuem-na a Antônio de
Sousa de Macedo (1606-1682) <4 >, provável autor de um dos mais memorá-
veis livros portugueses deste século, A Arte de Furtar <5 >.
Escreve também que serviam de materiais à sua obra os "avisos, car-
tas e informações dos cabos que obraram a empresa". Nas 13 primeiras
páginas sumaria a história até a revolta de 1645, e em 23 a luta de 1645
a 1654. Para as primeiras serviu-se dos inúmeros folhetos que então di-
vulgavam os sucessos; para as segundas utilizou-se realmente daquelas fon-
tes e das Relações a que nos referimos, especialmente a Relaçam Diária
e a Breve Relaçam ( ambas de 165 4), com as quais muito se parece, e da
"Relação Inédita" de Brito Freire ( 1654), já aqui registrada. Deve tam-
bém ter ouvido muito as estórias dos cabos de guerra "com os quais
(igualmente que com seus êmulos) esteve naquela desejada igualdade, ra-
ras vezes conseguida de outro, que haja escrito história de homens viven-
tes". Para contar "os casos como eles foram, pela pauta da verdade . . .
não tomarei ( como costumam os historiadores) por conta de meu Juízo
os Secretos dos Príncipes". A história do domínio holandês, entre 1635,
quando o sossego permite a atividade econômica e a expansão do Estado
pelas circunvizinhanças, e 1645, que fora largamente contada nos livros
latinos e holandeses, ficou esquecida. "He larga, e alhea de meu propósito,
a relação destes progressos, que a fortuna sempre foi dispondo favoráveis
aos Olandezes."

2 . A historiografia social e econômica


A historiografia econômica e social, mais livre da pura enumeração
cronológica, é sempre muito valiosa pela revelação da estrutura que atraiu
esse apetite de domínio e originou toda a luta. São poucos os documentos
holandeses de história econômica e social que pelas suas características
devem ser registrados numa historiografia. Merecem citação a memória
apresentada ao Conselho Político do Brasil por Adriano Verdonck, a 20
de maio de 1630, e conhecida como "Descrição das capitanias de Pernam-
buco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande", onde se encontram informações
sobre os engenhos, seus números, produção, transportes, o gado e os man-
timentos de cada distrito (6); o "Breve Discurso sobre o estado das quatro

(3) Vide J. H . Rodrigues, Historiografia, n.•• 662.


(4) Id. Ibidem.
(5) A obra foi escrita em 1652, mas só publicada em 1744 . Sobre sua autoria cf. Afonso
Pena Jr. , A Arte de Furtar e o seu autor, Rio, 1946.
(6) Traduzido do original holandês por Alfredo de Carvalho, RIAGP, n.• 55, 215-227.
Vide J. H. Rodrigues, Historiografia, ob . cit., n. 0 722.

74
capitanias conquistadas, de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande
situadas na parte setentrional do Brasil", datado de 14 de abril de 1638
e assinado por João Maurício de Nassau, Mathias van Ceulen e Adriaen
van der Dussen·, mas atribuída ao último, no qual são descritas as quatro
capitanias e sua organização política, enumerados seus engenhos e pro-
prietários, e noticiados a vida religiosa e os problemas da colonização <7 l ;
e o Relatório sobre as capitanias conquistadas no Brasil pelos holandeses,
assinado aos 1O de dezembro de 1639 por Adria~n van der Dussen, onde
o A. descreve as várias capitanias, seus engenhos e proprietários, a popu-
lação nativa, negra, portuguesa e holandesa, a fabricação do açúcar, o
pau-brasil, as mercadorias, o governo e seus conselhos, a religião reforma-
da e a católica, os judeus, as fortificações, guarnições, navios, e dá alguns
conselhos finais. Esta é, talvez, uma das importantes descrições politico-
econômicas do Brasil holandês <8 l. Van der Dussen, depois de exercer
funções administrativas na Companhia das índias Orientais, foi comissio-
nado, em 1636, para exercer o cargo no Alto e Secreto Conselho no
Brasil, tendo tomado posse em 1637. Voltou a Holanda em 1639 <9 l .
Vários outros documentos históricos, como a carta assinada por João
Maurício de N assau, Mathias van Ceulen e Johan Gijsseling, de 2 de
março de 1640, a correspondência e o "Testamento Político" de João
Maurício de Nassau, as Atas das reuniões e dos sínodos da Igreja Refor-
mada do Brasil, o "Machadão do Brasil ou Diálogo sobre a decadência
do Brasil", e a "Bolsa do Brasil" (lO) fornecem excelentes informações so-
bre as atividades econômicas e soc1a1s desse período, mas, na realidade,
não pertencem à historiografia, isto é, não são documentos da evolução
do escrito histórico.

3 . A historiografia regional, natural e etnográfica


A historiografia regional destaca, especialmente, as seguintes crônicas
e descrições:
Os Relatórios de Gedeon Morris de Jonge "Breve Descrição . . . so-
bre os lugares situados no Brasil setentrional denominados Maranhão,
Ceará, Cametá, Grão Pará e outros rios compreendidos na bacia do famoso
rio do Amazonas, onde os portugueses têm assento, com toda a disposição
e circunstâncias respectivas, como o deixei no último de novembro de
1636" <11 >, assinado a 22 de outubro de 1637, e o "Breve Relatório acerca
do Maranhão apresentado a 3 de fevereiro de 1640", escrito com a cola-
boração de Johan Maxwell c12J.

(7) Traduzido do original holandês por José Hlglno Duarte Pereira, RIAGP, n.0 34,
139-196. Vide José Honório Rodrigues, Historiografia, n. 0 732.
(8) Traduzido por José Antônio Gonçalves de Melo Neto, com Introdução e notas, e pu-
blicado pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, Rio de Janeiro, 1947.
(9) Cf. José Antônio Gonçalves de Melo Neto , introdução à ob. cit., 14-16.
(10) Vide J. H . Rodrigues, Historiografia, n."' 482, 425, 444, 783, 784 , 526, 746, 524 e 749.
(11) RIHGB, 1895, t. LVIII, parte I, 238-250.
(12) RJHGB, lbid., 250-263.

75
De Jonge, aventureiro flamengo, fora aprisionado no Amazonas em
1628 e detido no Maranhão durante oito anos. Conseguiu repatriar-se e
apresentou aos diretores da Companhia esses relatórios, a fim de movê-
los a conquistar o Estado do Maranhão. Descreve as várias capitanias,
suas cidades e populações, os grupos indígenas e as riquezas em drogas
e frutos, especialmente o açúcar, madeiras, algodão, fumo, óleos e bálsa-
mos. "Em parte alguma do mundo inteiro", pergunta, aconselhando, "se
poderia conquistar com mil homens terra tão grande, bela, rica e fértil,
entrecortada e regada de formosíssimos rios e angras, cercada e cheia de
tantas ilhas proveitosas, habitada por tantos milhares de índios, que em
mui breve tempo submissamente trabalhariam para VV. SS.?"
Seu colaborador .também passara 1O anos no Maranhão e o segundo
relatório já trata da viagem dos "legos Franciscanos" e da de Pedro Tei-
xeira. Examina a disposição e fertilidade das terras e os proveitos da
conquista de 250 léguas de costa (assim a julgavam) de terras ricas e
informa que 900 portugueses dominavam 7 .000 escravos e 14.000 índios
livres. Em 1641, os holandeses se apossavam do Maranhão e cabia a Ge-
deon Morris de Jonge o comando dos índios, primeiro no Maranhão e
depois só no Ceará. A empresa faliu porque não dominou também o Pará
e o Amazonas.
A "Descrição da Capitania da Paraíba" <1 3l, escrita em 1639, por
Elias Herckmans (1596-1644 ), poeta, historiador, soldado e, nessa época,
governador da Capitania <14>, noticia os fortes, igrejas, conventos, cidades,
organização administrativa e judiciária, engenhos. Contém, no final, uma
"Breve Descrição dos costumes tapuias".
O "Relatório sobre o estado das Alagoas em outubro de 1643", apre-
sentado ao Supremo Conselho, por Johannes van Walbeeck e Henrique
de Moucheron, descreve os aspectos geográficos, a vida econômica, os
engenhos e seus proprietários, a criação de gados, e discute os problemas
de colonização (15).
A "Breve, verdadeira autêntica Relação das últimas tiranias e cruel-
dades que os pérfidos Holandeses usaram com os moradores do Rio Gran-
de" <16>, de Lopo Curado Garro, natural da Paraíba, foi escrita em 23 de
outubro de 1645 para provocar a luta contra os holandeses. O autor,
depois da expulsão destes, foi um dos três governadores da capitania
(1645-1655). Trata-se de narrativa parcial e tendenciosa do martírio de
Uruaçu e da matança de Cunhaú, em que se infamou Jacob Rabbi, judeu
alemão, intérprete e amigo dos tapuias! inimigos dos portugueses.

(13) "Beschrljvlnge van de Capltanle Paralba", Bijdragen en Medeellnge van hei Historische
Genootschap te Utrecht, 1879, vol. 2, traduzida para o português por José Hlglno Duarte Pereira,
RIAHGP, n.0 31, 1886, 239-288.
(14) Sobre o autor, vide Informação bibliográfica in J. H. Rodrigues, Historiografia, n.0 194.
(15) Publicado na RIAGP, 1886, n. 0 33, 152-165.
(16) A Relação foi primeiramente publicada no Valeroso Lucldeno de Calado (1648, 277-280)
e em separata do vol. XXVI das Publicações do Arquivo Nacional, 1929. Vide sobre as edições,
J. H. Rodrigues, Historiografia, n. 0 181, e sobre o autor o prefácio de Alcldes Bezerra in separata
citada.

76
A Reiaçam breve e verdadeira da memorável vitória, que houve o
capitão-mor da Capitania da Paraíba Antonio de Albuquerque, dos Rebel-
des de Holanda . .. , escrita por Frei Paulo do Rosário, da ordem benediti-
na (cerca 1575-1655), que presenciou o combate pela posse da Paraíba,
em abril de 1631, foi publicada em 1632 <17 >. Saíram vencidos os holan-
deses, que só dominaram a capitania em 1634.
A historiografia natural e médica e a etnográfica encontram em Gui-
lherme Piso, Jorge Marcgrave e Roulox Baro suas melhores expressões
contemporâneas. Os dois primeiros acompanharam João Maurício de Nas-
sau e foram os dois grandes naturalistas e médicos de sua expedição cien-
tífica. Piso (1611-1678) e Marcgrave (1610-1644) escreveram em cola-
boração a Historia Natura/is Brasiliae <18 >. A excelência do livro não re-
pousa somente nos aspectos naturais e nas utilizações médicas das plantas
brasileiras, mas também nas suas informações etnográficas. Trata-se de
um repositório precioso da história natural brasileira e de um documento
da medicina histórica da América.
A Relation du Voyage de Roulox Baro (19J, é um documento etno-
gráfico em que o autor descreve a cultura material e social dos grupos ta-
puias que visitou e conheceu como intérprete da Companhia Holandesa
das lndias Ocidentais.

(17) Descrição bibliográfica in J. H. Rodrigues, Historiografia, n.• 191. O opúsculo de


32 pp. é extremamente raro e o único exemplar no Brasil encontra-se no vol. V da coleção
Barbosa Machado da Biblioteca Nacional do Rio de J anelro Intitulado "Noticia dos cercos
heroicamente sustentados pelos portugueses nas quatro partes do mundo".
(18) I.• cd. Lelde, 1648; trad. bras., São Paulo, 1942. Piso reformou a t.• ed. e com
matéria nova publicou a De lndlae Utriusque Re Naturalt et Medica Llbrl quatuordecln, quorum
contenta pagina sequens exhlbet, Leide, 1658; trad. bras., Rio de Janeiro, 1957. Vide dados
bibliográficos de Piso e de Marcgrave nas respectivas traduções brasileiras.
(19) Publicado na mesma coleção de viagens, em que saiu a obra de Moreau, Pari~. Courbé,
1651, Cf. J. H. Rodrigues, Historiografia, n.• 844. Brevemente será publicada uma tradução por·
tuguesa de Lêda Boechat Rodrigues, Belo Horizonte, Itatiaia.

77
LIVRO TERCEIRO
Historiografia do Maranhão
CAPITULO I

A CRIAÇÃO DO ESTADO DO MARANHÃO


1 . Considerações gerais. 2. Simão Estácio da Silveira. 3.
Bento Maciel Parente. 4. Maurício Heriarte. 5. Manuel
Guedes Aranha. 6. João de Sousa Ferreira. 7. Francisco
Teixeira de Morais. 8. Cristóvão de Lisboa. 9. "Aditamen-
tos" de Anselmo Eckart. 10. Frei Domingos Teixeira. 11.
Bernardo Pereira Berredo.

l . Considerações gerais

Criado por decreto de 13 de junho de 1621 o governo do Estado do


Maranhão, impulsionada a colonização com a vinda de casais açorianos
desde 1619, reformada a legislação de modo a enviar-se para este Estado
os degredados ( cartas régias de 4 de maio e 17 de julho de 161 7), o cres-
cimento logo se acentuou. Como no resto do Brasil, a raridade de mulhe-
res européias foi suprimida pelo mulherame indígena facilitando a misci-
genação, que é a fonte de que descende a primitiva população maranhense.
O Estado do Maranhão era o nome conjunto com que se designavam as
capitanias do Maranhão, Pará e Rio Negro.

2 . Simão Estácio da Silveira


Foi especialmente com a chegada dos colonos açorianos, entre os quais
se encontrava Simão Estácio da Silveira, que começou a prosperar o Ma-
ranhão. Com o fim de animar a imigração açoriana, publicou este uma
curiosa Relação Sumária das Coisas do Maranhão <1 >, na qual apresentava
as terras deste como muito superiores às do Brasil.
Silveira chegou ao Maranhão em 11 de abril de 1619, como capitão
de uma nau da expedição de Jorge Lemos Bitencourt, acompanhado de
cerca de 300 pessoas. Entusiasmou-se tanto com as grandezas da terra
que decidiu publicar a Relação Sumária especialmente dirigida aos pobres
do Reino, a fim de que viessem viver nas terras do Maranhão. Depois de
noticiar a demarcação, os primeiros descobridores, os índios, as jornadas da
conquista, as lutas entre portugueses e franceses, o descobrimento do Grão-
Pará, faz a descrição das coisas do Maranhão, seus produtos, comodidades
e sua administração.
Como obra de propaganda imigratória a Relação Sumária dá, como
as dos outros cronistas do século XVI, especial relevo às excelências da

(1) Lisboa, Geraldo da Vinha, 1624; 2.• ed. Lisboa, 1911.

81
terra, entre as quais a salubridade do céu, a pureza das águas, a fertilidade
do solo. Receoso de que se argüisse que no Brasil faltavam pão e vinho,
dedica dois capítulos especiais para mostrar como a mandioca e os substi-
tutos do vinho, tais como o vinho de mel e o caju poderiam facilmente
fazer com que se passasse sem os primeiros. Como não houvesse então
criação de gado no Maranhão dizia que seria fácil iniciá-la rapidamente e
enumerava as várias aves, pescados, mariscos, legumes, hortaliças, árvores
e frutas com que se podiam manter os homens que para lá fossem.
Logo depois de sua chegada ficou assentado que se instalasse a Câ-
mara, e Simão Estácio da Silveira foi eleito juiz. Em 1624 estava de volta
a Lisboa e aí, aos 7 de março, assinava o prólogo de sua Relação, obra
de extrema raridade <2 >, reimpressa três vezes: por Cândido Mendes de
Almeida, o Barão de Studart e Ernesto do Canto <3 l.
Simão Estácio da Silveira escreveu também os "Intentos da Jornada
do Pará" <4 > e é autor conhecido de uma petição dirigida ao Rei no sentido
de que a prata do Pará, em lugar de descer a Lima e ser transportada por
via do Panamá, fosse trazida por um dos rios do Maranhão, o que se
podia fazer em quatro meses. É datada de Madrid, de 15 de junho de
1626. Nela, Simão Estácio da Silveira se intitula Procurador Geral da
Conquista do Maranhão. O original encontra-se no Museu Britânico, de
onde foi extraída a cópia oferecida ao Instituto Histórico por Rodolfo
Schüller e utilizada por Rodolfo Garcia para sua publicação na Revista
do Instituto Histórico (5 ). Ele pretendia escrever uma História do Brasil,
como declara três vezes na Relação, mas não consta que houvesse reali-
zado tal projeto.

3. Bento Maciel Parente


Bento Maciel Parente é uma das figuras mais destacadas da história
amazônica. Pelos relatos que deixou de seus serviços e pelos planos que
propôs a El-Rei para o bem do Pará e do Maranhão, seu nome figura na
construção histórica e na elaboração historiográfica. Natural de Viana do
Castelo <6 >, nascido por volta de 1584 (7 >, criou-se desde cedo em Pernam-
(2) O exemplar da Blblloteca Nacional encontra-se na Coleção Barbosa Machado no
volume Noticias Históricas e Ml/ltares de América. Descrição por Ramiz Galvão, ABN, 1880,
vol. VIII, n.0 1564, 372; outro se encontra na Biblioteca Oliveira Lima de Washington. O ma-
nuscrito se encontra em Evora, cf. J. H. da Cunha Rlv11ra, Catálogo da Biblioteca Pública Eborense,
Lisboa, 1850-71, vol. II, 26; há uma cópia na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
(3) Memórias para o Extinto Estado do Maranhão, Rio de Janeiro, 1874, li , 1-31; RIC, t.
XIX, 124-154; Lisboa, 1911, edição limitada a 60 exemplares.
(4) Reproduzido in ABN, vol. 26, 361-366. O original in Biblioteca Nacional de Madrid, vide
Jullán Paz, Catálogo de Manuscritos de América existentes na Biblioteca Nacional, Madrid, 1933,
n.0 1075, 477. Sua existência foi assinalada por Joaquim José Ferreira Gordo, ln "Apontamentos
para a história econômica e literária de Portugal", Memória da Literatura Portuguesa, Academia
das Ciências de Lisboa, 1792, t. III, 49 e seguintes.
(5) Manuel de Oliveira Lima, Relação dos Manuscritos portugueses e estrangeiros de Inte-
resse para o Brasil existentes no Museu Britânico de Londres. Rio de Janeiro, 1903, 48. A edição
foi feita pela RIHGB, t. 83, 91-99.
(6) Pinto Leal, Portugal Antigo e Moderno, Lisboa, 1882, 10 e 432.
(7) "Nombramiento de personas para el Goblemo dei Marafion", Madrid, 5 de junho de
1636, ln ABN, separata do vol. 26, 222. Aí se diz: B. Maciel natural do Brasil e com 50 anos
de idade. A fonte, apesar do equivoco da naturalidade, é melhor no cálculo da idade que
Berredo, cujos Anais Históricos do Maranhão, publicados em 1749, afirmam ter o autor falecido
em 1642, com 75 anos de idade.

82
buco, onde tinha muitos parentes e conhecia bem a língua indígena <8 >.
Serviu como soldado, capitão, sargento-mor em muitas ocasiões, pelejou
contra corsários ingleses em Pernambuco, devassou terras no sertão da
Bahia, lutou contra índios na Paraíba e no Rio Grande do Norte, tentou
descobrir minas em São Paulo, conquistou, com Alexandre de Moura, o
Maranhão aos franceses, fazendo entradas pelos rios, governou como ca-
pitão-mor o Pará, de 1618 a 1621, combateu corsários holandeses e ingle-
ses no Amazonas, foi à Espanha, onde defendeu os interesses do Pará e
do Maranhão e apresentou planos de governo, voltou para descobrir ter-
ras no Norte e eram tantos os seus serviços que depois de receber, em
1625, o hábito de Santiago, representava a S.M. que "bien considerados
ecedem en muchas cosas a los que hizo Fernandes Cortes en la conquista
de la Nueva Espaiía, para que por unas y otros huelgue V.M. de honrarle,
y hazer la merced correspondinte a lo mucho que tiene seruido" <9 >. Vol-
tando à Península, combateu depois os holandeses em Pernambuco em
1631 e em 1637 governava o Maranhão <10 >, permanecendo no governo
até 1641, quando os holandeses ocuparam São Luís <11J. Embarcado e con-
duzido para o Recife, Nassau mandou-o recolher-se à Fortaleza do Rio
Grande do N arte, falecendo ele na viagem, no princípio de 1642 (1 2 ).
Quando estava em Espanha aceitou ser "procurador do Estado, o
que lhe daria mais fácil acesso e certa representação" <13 l, e, aproveitando
a oportunidade, escreveu quatro relações, todas em castelhano. A primeira,
o "Memorial de 1630", expõe os seus serviços durante 36 anos e serve não
só para sua biografia como para reconstituição de trabalhos de descobri-
mento e exploração que fez no Maranhão, no Pará e no Amazonas, antes
e depois da oferta (20 de abril de 1625) que fizera nesse sentido à Coroa
e da aceitação e ordem desta ( 8 de agosto de 1626) "de desalojar os es-
trangeiros dos portos em que estiverem o descobrimento que quer fa-
zer" <14 l. A segunda, o "Memorial para conservar y aumentar la conquista
y tierras del Maraiíon, y los lndios que en ellas conquistá el Capitan Maior
Benito Maciel Parente" <15 >, apresenta um plano para a divisão das terras
novas em capitanias hereditárias; serviu de base à repartição feita pouco
depois pelo governador Francisco Coelho de Carvalho, tendo sido Bento

(8) Duarte de Albuquerque Coelho, Memórias Diárias da Guerra do Brasil, Recife, 1944·, 42.
(9) "Memorial" (1630?), in F. A. Vamhagen, História Geral, II, 269.
(10) Cf. Vamhagen, História Geral, II, 400-401, e nota VII de Rodolfo Garcia, 432,
Bento Maciel é muito acusado, por Frei Cristóvão de Lisboa, de vários agravos à Igreja e aos índios;
Cf. carta de 2 de outubro de 1626, ABN, vol. 26, 395-396.
(11) Vide Gedeon Morrls de Jonge no capítulo da historiografia regional holandesa sobre
o Brasil.
(12) Sua nomeação, tendo-o S.M. escolhido entre vários recomendados, mostra o valor
dos seus serviços. Cf. "Serviços e prestações de Bento Maciel Parente", ABN, separata do vol.
26, 221-223. A posse deu-se a 27 de janeiro de 1638. Varnhagen, História Geral, III, 185.
(13) Vamhagen, ob. cit., II, 255.
(14) Varnhagen dá estas datas, mas antes de 1633 Bento Maciel Já as fizera, como se
vê no documento publicado por R. Schüller e reproduzido na mesma História Geral, II, nota X,
218-221. Em 1626, discutia-se no Conselho de Estado esta oferta, Cf. "Serviços e prestações de
Bento Maciel Parente", ABN, separata do vol. 26, 219-223.
(15) Publicado s.l. e s.d. Esta primeira edição, extremamente rara, encontra-se no vol.
Notícias Históricas e Militares da América, coligidas por Diogo Barbosa Machado, coleção única
na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Foi depois reproduzida por Cândido Mendes de Almeida,
Memórias para a História do Extinto Estado do Maranhão, Rio, 1874, II, 38-44, e sumariada por
Varnhagen, História, ob. cit., II, 257-258.

83
1
Maciel contemplado, a 14 de junho de 163 7, com a Capitania do Cabo
Norte, que ia deste ao rio de Vicente Pinzón ou Oiapoque (16). Propunha
Bento Maciel que o Estado do Maranhão, começando na Capitania do
Pará e Maranhão, e acabando no rio Vicente Pinzón, fosse dividido em 11
capitanias. Pleiteia várias providências para o sustento e defesa do Es-
tado, navios, colonos da ilha Terceira, privilégios, padres e a "encomien-
da" <17) dos índios, a exemplo do que se praticava na América Espanhola
e que os índios, cativos de índios, fossem, quando resgatados do poder de
seus inimigos, cativos dos brancos.
A Petição <18 > declara seus serviços na descoberta e conquista de mais
de quatrocentas léguas de terras, propõe a EI-Rei como procurador do
Estado do Maranhão várias medidas para o bem comum, tais como: a
criação de um Bispado, a "encomienda" dos índios, a franquia da imigra-
ção, o envio de religiosos, com que se tratasse de reduzir e catequizar as
gentílicas nações à fé cristã.
Finalmente, na "Relação do Estado do Maranhão" <19l Bento Maciel
representa ao Rei, que o encarregara do governo daquele Estado, pedindo-
lhe as coisas necessárias para a sua defesa e boa conservação. Descreve a
província e suas principais cidades e fortes, pleiteia reforços de gente e
armas, defende a "encomienda" e a repartição e doação de terras e enu-
mera a população de São Luís, Belém e Ceará. Dos quatro é este o do-
cumento mais historiográfico, embora todos sejam, na verdade, exposições
políticas sobre o melhor governo para o Estado.

4 . Maurício Heriarte
Maurício Heriarte <20 > foi um dos companheiros de Pedro Teixeira e
assinou o auto de posse de Franciscana a 16 de agosto de 1639. Era ou-
vidor geral, provedor-mor e auditor do Maranhão, onde morava. A Des-
crição do Estado do Maranhão, Pará, Corupá e Rio das Amazonas foi
escrita, como diz o próprio título, por ordem do governador e capitão
geral Rui (não Diogo) Vaz de Sequeira ou Serqueira (1662-1667). Pu-
(16) Sobre a realização do plano, cf. Vamhagen, História, ob. cit., li, 182·186, e sobre
a concessão a Bento Maciel, cf. Cândido Mendes, Memórias, ob. cit., 45-57. Vamhagen argumenta,
éom razão, que a doação feita de preferência a um guerreiro distinto e a nomeação de governador
geral em 1637 e 1638, respectivamente, mostra que o governo queria opor-se à companhia fundada
em França, desde 27 de Janeiro de 1633, para colonizar a própria Guiana com a denominação
de terras do Cabo Norte. A questão com a França Inicia-se nesta época e só termina por obra
de Rio Branco. Vide Questões de Limites, Guiana Francesa, t.• e 2.• "Memórias". Berna, 1899,
10 tomos e 2 Atlas.
(17) Sobre a "Encomienda", cf. R. Altamira y Crevea, Dicclonario Castellano de Palavras
Jurldlcas e Técnicas, México, 1947.
(18) A Petição Dirigida pelo Capitão-mor Bento Maciel Parente ao Rei de Portugal D. Philippe
III foi publicada s.1. e s.d. e um exemplar raríssimo encontra-se no volume Noticias Históricas e
Militares da América, coligidas por Diogo Barbosa Machado, coleção única da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. Foi depois publicada por Cândido Mendes de Almeida, Memórias, ob. clt.,
II, 35-37, e por Vamhagen, traduzido para o português, in História, ob. clt. II, 255-258.
(19) Publicada ln ABN, 26, 195-199. A "Relação" é assinada em Madrid, 4 de agosto de
1636, e os acréscimos sobre a população de Lisboa são de 4 de fevereiro de 1637.
(20) Seguimos a nota li da História Geral de Varnhagen, Ili, 211-237.

84
bicou-se pela primeira vez em Viena <21 > e mais tarde foi reproduzida no
Brasil (22). O Autor descreve todo o antigo Estado do Maranhão come-
çando pela cidade de São Lufs, os ataques franceses e holandeses, seus
conventos, produtos e criação, seus rios e índios, sobre os quais manifesta,
como era comum a todos os moradores, profundos ressentimentos: "são
falsos, cobardes, traidores, carniceiros, cruéis, amigos de novidades: seu
Deus he a gula e a luxuria". Descreve, a seguir, a capitania do Pará, a
cidade de Belém, a Capitania do Cametá, a do Corupá, o Rio Amazonas,
o Paranaíba, a província Corupatuba e Tapajós, o Rio Trombetas, a pro-
víncia dos Tupinambaranas, os rios Madeira e Negro, a província das Agoas,
dos Sorimões, o rio do Ouro, a província de Carapunas, dos Cambebas, o
Lago Negro, a provinda dos Rombos, dos Icaguates e Quixos. Como
sempre, um espírito de exaltação domina a obra: "Todo este rio Amazo-
nas he abundantíssimo de sustento, assim de carne como de infinito peixe,
de diversas castas, muita mandioca, milho, arroz, diversidade de frutas,
assim silvestres, como cultivadas". Escrita antes dos sucessos e das lutas
entre moradores e jesuítas, o autor só se refere a esta ordem: "Os Padres
da Companhia de Jesus têm começado a estender a fé nestas partes com
grandíssimo cuidado; e com tudo não entrarão em uma mínima parte do
canto, respeito da multidão que há".

5 . Manuel Guedes Aranha


A questão da liberdade dos índios continua a perturbar a marcha do
Estado. Em 1661 a Câmara do Pará reclama de Antônio Vieira entradas
no sertão para fazer escravos e Vieira se opõe, sendo preso, mandado ao
Maranhão e daí a Lisboa. Estes acontecimentos têm em Vieira o cronista
da Companhia e como tal sua narração deve ser controlada pelas outras
histórias <23 >.
:S somente depois da segunda metade do século que a historiografia
registra novos trabalhos sobre o Maranhão. Em 1685, Manuel Guedes Ara-
nha, procurador do Estado, em nome da Câmara, apresenta a D. Pedro II
de Portugal o "Papel político sobre o Estado do Maranhão" (24). O autor,

(21) Descrição do Estado do Maranhão, Pará, Corupá e Rio das Amazonas, feita por Maurí-
cio Herlarte. Ouvidor Geral, Provedor-mor e Auditor, que foi, pelo Governador D. Pedro Melo,
no ano 1662, por Mandado do Governador Geral Diogo Vaz de Siqueira. Dada à luz por !.•
vez em Vienna D'Austria. Imprensa do filho de Carlos Gerold, 1874, in 12.0 , 84 pp. com prólogo
de Francisco Adolfo de Varnhagen . O Manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional de Viena.
(22) História Geral, ob. cit., Ili, 211-237. •
(23) A versão de Vieira aparece na Carta de 12 de fevereiro de 1661, in Obras Várias,
Lisboa, 1856, vol. 1, 1856, 137-140, e Cartas, ed. J. L. de Azevedo, vol. J, 1925, 579-582. Mais
importante ainda é a "Relação dos Sucessos do Maranhão", publicada, por Serafim Leite in Novas
Cartas Jesuíticas, São Paulo, 1940, 312-319. Continua inédita a "Breve e Sumária notícia das cou-
zas, sucesso e estado presente da Província do Maranhão. Autora a Verdade", datada de São
Luís, 8 de agosto de 1662, e guardada na Biblioteca da Universidade de Coimbra. Vide Francisco
Morais, Catálogo dos Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra Relativos ao
Brasil. Coimbra, 1941, n. 0 582, p. 64.
(24) Encontrado na Biblioteca Pública Nacional de Lisboa, por Antônio Henriques Leal,
num códice intitulado "Obras de vários autores". Oferecido ao Instituto Histórico, foi publicado
na RIHGB, t. 46, !.• parte, 1-60. Além do manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundo
Geral, Cód. 1.570, ff . 221-297, encontra-se outro na Biblioteca da Ajuda, 51, VI-46, n.0 5, 54
pp., sob o título de "Notícias do Maranhão, seu descobrimento, situação e costumes de seus na-
turais e governadores que nele havia enviado pela Câmara do Estado por seu procurador Manuel

85
natural do Pará, assentou praça como alferes aos 12 anos e depois foi
sargento-mor em 1663, incumbido da administração das aldeias dos ín-
dios <25>, capitão do forte do Gurupi <26) e capitão-mor da capitania do Pará
em 1667 <27 >. Pouco modesto, declara que os moradores daquele estado o
chamam o "Pai da Pátria" porque "para bem daquela terra gastou a maior
parte de seus cabedais em procurar e requerer o modo, que devia ter o gover-
no militar e político, que podia trazer a conservação daquele estado". Des-
creve sua situação, a cidade e seus mil e tantos vizinhos, sua pobreza, suas
drogas, e as dificuldades econômicas do Maranhão e do Pará; trata da con-
quista, do governo e governadores desde 1623 até 1685, da liberdade e
cativeiro dos índios, tema de tanta agitação maranhense, e transcreve leis
e regimentos relativos ao Estado. As lutas entre governos, Câmaras e or-
dens religiosas não são esquecidas e o autor, eleito como vereador mais
velho, procurador dos povos, faz este Papel Político como uma represen-
tação política em defesa deles, solicitando a criação de audiências e suge-
rindo medidas para o melhor governo. Argumenta, perde-se em divagações
e comparações históricas, trata dos negócios, da familia, do ensino, do
sertão, das jornadas ao Amazonas. :e uma curiosa relação que defende os
moradores contra os jesuítas na tese capital do cativeiro dos índios. Gue-
des Aranha, embaraçado com os jesuítas, solicita e obtém a vinda dos
missionários franciscanos <28>. Esta relação, como a "Crônica da Missão"
de Betendorff, conclui muitas vezes "sem certeza alguma, assim pela varie-
dade dos autores, como pela dificuldade de um novo mundo, achado sem
arquivos, papel, nem tinta, donde se pudesse inferir notícia certa" <29 >.
Era muito amigo dos jesuítas (30), servidor submisso do governo, por
isso mesmo, para Berredo (3t), "sujeito benemérito dos maiores empre-
gos".

6. João de Sousa Ferreira


O padre secular licenciado <a2 > João de Sousa Ferreira, presbítero da
ordem de São Pedro, era natural da Vila do Basto. Foi provedor da Fa-
zenda dos Ausente dos Grão-Pará durante trinta anos, como diz na dedi-
catória da América Abreviada, assinada de Lisboa, aos 20 de maio de

Guedes Aranha" . Vide Carlos Alberto Ferreira, Inventdrlo dos Manuscritos da Biblioteca da Ajuda
referentes à América do Sul. Coimbra, 1946, n. 0 1.566, p. 460, e sobre o da Biblioteca Nacional
de Lisboa, Mathias Kieman, The Indlan Policy of Portugal ln the Amazon Region, 1614-1693.
Washington, 1954-1956. No primeiro Manuscrito reproduzido está 1665, quando o autor trata de
ratos de 1685. •
(25) B. P. Berredo, Annaes Hlstorlcos, 3.• ed., Florença, 1905, 182,
(26) Vide "Livro Grosso", ABN, vol. 66, I, 109.
(27) B. P. Berredo, ob. clt., 201-202.
(28) Vide "Livro Grosso•, ob. cit., I, 122; Kleman, ob. cit., 174 e Serafim Leite, HC/B,
Ili, 345, 350, 35 t.
(29) Papel Polltlco, loc. cit., p. 50.
(30) João Felipe Bctendorf, "Crônica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus no
Estado do Maranhão", RIHGB, t. 12, parte 1, 527, 554, 555.
(31) Bernardo Pereira Berredo, Annaes Hlstorlcos, 3.• ed . 182-183.
(32) Serafim Leite, História da Companhia de Jesus, ob. cit., t. 3, 248 e 382, Foi o
Padre João Ferreira que deixou a primeira fazenda de gado na ilha de Joanes para o colégio
jesuíta do Pará e um dos que escaparam à cilada dos índios Aruaquis.

86
1639 <33 >. Esta obra plagia, corrigindo e aumentando, o Papel Político de
Manuel Guedes Aranha <34 ). Os capítulos I e II, que tratam da América
em geral e do Brasil, são novos; é do terceiro capítulo em diante, quando
começa a parte relativa ao Maranhão, que o autor plagia totalmente o
Papel Político, com variações de forma e acréscimos de reflexões. Todas
as divagações de Guedes Aranha são aproveitadas para maiores especula-
ções de Sousa Ferreira, e por isso mesmo, alguns capítulos são maiores, os
documentos de um são reproduzidos em outros. A maior divergência, pelo
floreio da língua e pelo conteúdo esparramado, nota-se do § 31 do capítulo
IV até o § 9 do capítulo V, quando novamente o texto se igualiza ao do
Papel Político <35 >.
A brevidade e concisão do texto de Guedes Aranha torna mais indi-
cada sua leitura, pois os acréscimos pouco adiantam factual e interpreta-
tivamente.
João de Sousa Ferreira é autor, também, do Noticiário Maranhense,
que não é senão outra forma da América Abreviada e portanto plágio do
Papel Político (36). Aqui limita-se o autor a reproduzir os capítulos 3, 4 e 5
da América Abreviada, com pequenas variações (37 ). O principal texto
continua a ser o do Papel Político, que deve, de preferência, ser utilizado.

7. Francisco Teixeira de Morais


Em 1692 escrevia Francisco Teixeira de Morais (38), natural da vila
de Alenquer, a "Relação histórica e política dos tumultos que sucederam na
cidade de S. Luís do Maranhão", publicada pela primeira vez em 1877 <39 >,
segundo o manuscrito da Biblioteca Pública de Lisboa, oferecido por cópia
ao Instituto Histórico por Antônio Henriques Leal.
Extremamente pedante, como acentuou Varnhagen <40 >, Teixeira de
Morais reconheceu expressamente que esses tumultos tinham causas efi-
cientes muito antigas e por isso foi forçado a descrever o descobrimento,
o território, suas conquistas e as guerras, já com os naturais e com os es-
trangeiros. Diz que elegeu o estilo mediando entre o vulgar e o esquisito,
por não ser sua intenção historiar para muitos, senão para os melhores,
não por jactância, porém por mais decência. Sua finalidade era inteira-
(33) Original na Biblioteca Pública Eborense, Cf. J. H. Cunha Rlvara, Catálogo, ob. cll.,
1, 26; reproduzido ln RIHGB , t. 57, parte I, 5-163.
(34) Nota 34 de Rodolfo Garcia in História Geral, de Varnhagen, III, 313.
(35) Vide Papel Político, ob. cit., 49-51, e América Abreviada, 83-107. Deste moóo, as 49
primeiras páginas do Papel Político são iguais, com pequenas variações, às 83 primeiras da
América Abreviada, que oferece de original 24 páginas (83-107); as páginas 51 a 56 do Papel
Político são Iguais às páginas 107 a 109 da América Abreviada; da página 109 a 145, novamente
se liberta João de Sousa Ferreira da cópia textual embora se inspire em Guedes Aranha.
(36) O manuscrito encontra-se na Biblioteca Pública Eborense. Vide J, H. da Cunha RI·
vara, Catálogo, ob. clt., I, 27. Foi oferecido ao Instituto Histórico por João Lúcio de Azevedo.
RIHGB, 1919, t. 81, 289-352.
(37) As vezes o Noticiário Maranhense mais se aproxima do Papel Político que a América
Abreviada. Vejam-se, por exemplo, p. 336 e 50 do primeiro e segundo quando se fala de que
o autor não se aparta da doutrina do autor da Crônica da Companhia de Jesus, o que se lê
na América Abreviada. Há também grandes omissões de texto no "Noticiário"; comparem-se as
páginas 90-98 da "América" com as 331-332 do "Noticiário".
(38) Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, t. 2, 274, chama-o de Francisco Teixeira Chaves.
(39) RIHGB, 1877, t. 40, t.• parte, pp. 67-155 e 303-410.
(40) História Geral, t. 3, p. 311·12.

87
mente pragmática. Escreveu sobre o motim do Maranhão para dar exem-
plo aos bons, "para que não prevariquem, antes na bondade se melhorem
e qualifiquem"; e aos maus, "porque não empiorem, antes em sua malícia
retrocedam e contra ela animosos conspirem" <41 >.
Depois de descrever o Estado do Maranhão, sua importância, con-
quista, guerras com os franceses e índios, a invasão dos holandeses e sua
expulsão, noticia os governantes que dirigiram aquele Estado até Fran-
cisco de Sá e Menezes (1682-1685). Trata-se, na realidade, de uma rela-
ção pedante, de linguagem rebuscada, de leitura difícil, excessivamente
mal ordenada, disseminada, no dizer tle João Francisco Lisboa, em longas
e difusas páginas, sobrecarregadas de indigestas citações.
Ainda assim é, incontestavelmente, como já apontamos, juntamente
com os oficios de Gomes Freire de Andrade, que subjugou o tumulto com
a biografia de Gomes Freire escrita por Frei Domingos Teixeira, a "Crô-
nica da Missão dos Padres da Companhia de Jesus", do Padre J. F. Bet-
tendorff, e os Anais de Berredo, uma das principais fontes para a história
dos sucessos do Maranhão, anteriormente e durante as lutas de Bequimão,
pois foi contemporâneo dos sucessos (42 >.
"Zeloso do bem público", segundo Berredo <43>, faccioso adversário
de Bequimão, sua obra, inspirada no ódio e na baixeza, como escreveu João
Francisco Lisboa, esboçou um retrato vil da vítima, quando ainda era re-
cente o sacrifício do revolucionário, "precioso sobretudo", acrescenta ainda
o grande Lisboa, "porque presumindo de infamá-lo, o detrator apenas con-
seguiu atestar a imensa superioridade que o ofuscava, e sem dúvida o inci-
tava a carregar as suas tintas. Cúmplice ele mesmo da revolta, senão por
espontâneo movimento, ao menos por cobardia e servilismo, o cortesão
arrependido agradecia o esquecimento e o perdão do seu crime, ultrajando
e caluniando o infortúnio e vingando-se talvez ao mesmo tempo das hu-
milhações e adulações passadas, filhas não menos da sua própria índole
que das circunstâncias. A sua retórica e erudição pedantesca impunha-lhe
por outra parte certas necessidades imperiosas, a cuja satisfação não lhe
era possível esquivar-se, e no curso da narração vemos a cada passo os
obscuros incidentes da vida daquela pobre colônia comparados aos acon-
tecimentos mais grandiosos da história antiga" <44 >.
A obra de Teixeira de Morais, como a de Bettendorff e Berredo, não
consegue ocultar as virtudes cívicas de Bequimão, sua identificação popu-
lar, seu idealismo, sua simplicidade na vitória, a pureza da sua bravura ao
enfrentar a morte. Não consegue também ocultar a violência, a fúria, a
inclemência oficiais, nem esconder o caráter colonialista desta espécie de
historiografia (45).

(41) RIHGB, t. 40, 69.


(42) João Francisco Lisboa, Obras, Lisboa, 1901 , vol. 2, 95. Af se encontra a melhor
descrição dos acontecimentos de 1684 (p. 81 e seguintes).
(43) B. P. Berredo, ob. cit., 239.
(44) J. F. Lisboa, Obras, Lisboa, 1901, vol. 2. 95-96.
(45) Existe na Biblioteca da Ajuda, assinada por Miguel da Rosa Pimental (Lisboa, 4 de
setembro de 1692), a "Informação do Estado do Maranhão", inédita até hoje. Cf. Carlos Alberto
Ferreira, lnventdrio dos Manuscritos da Biblioteca da Ajuda referentes à América do Sul, Coimbra,
1946, n. 0 1.666, p. 496.

88
8 . Cristóvão de Lisboa
Frei Cristóvão de Lisboa (? - 1652), irmão de Manuel Severirn de
Faria, foi um dos grandes pregadores da Corte de D. João V e primeiro
custódio da Província do Maranhão. Frei Cristóvão partiu de Lisboa a 25
de março de 1624 <46 > e durante doze anos viajou e visitou várias regiões
do Brasil, especialmente o Maranhão, dedicando-se à conversão dos gen-
tios e à instrução dos cristãos (47). Tinha grande amizade e profundo respei-
to pela opinião de Manuel Severirn. Escrevia-Ih~ dando informações, rela-
tando as curiosidades da terra e advertindo-o contra as noticias falsas.
Criticou Bartolomeu Guerreiro e louvou Frei Vicente do Salvador, que lhe
solicitara informes sobre as atividades missionárias no Maranhão. Dizia
em urna de suas cartas que o irmão só acreditasse nos relatórios que ele
lhe enviara, pois era muito zeloso da credibilidade: estou escrevendo a
"história destas partes não me fica original mais que as relações escritas e
ouvidas e o estilo limarei vós lá, que não tive tempo para isso e guardai-
mo. Este original vai muito ajustado com a verdade ... " (48)
Em 1637, Frei Cristóvão já voltara a Lisboa com sua história na-
tural <49), que andou perdida três séculos, até que em 1934, o Arquivo
Histórico Ultramarino comprou, de urna livraria lisboeta, o códice intitu-
lado "História dos animais e árvores do Maranhão", contendo 30 páginas
de texto e 163 de desenhos a pena, sombreados a lápis. Os que o exami-
naram e estudaram, como Luís de Pina, declaram que "o livro de Frei Cris-
tóvão, em matéria de História Natural, não sobranceia os que no século an-
terior escreveram outros portugueses. Os desenhos são valiosíssimos e só eles
dariam reputação de grande observador ao artista que teria sido Frei Cris-
tóvão. A parte literária não acompanha a iconografia em valor e rigor.
Algumas descrições são muito incompletas e reduzidas, e muitas indicações
demasiadamente sabidas já no século anterior. Não se encontra disciplina
na ordenação da matéria, parecendo ter sido escrita em ocasiões diversas.
Infelizmente, ·a linguagem, muito descuidada, não realça as descrições" (50).
Seu valor principal, como disse Robert Smith, "está em conter algumas das
mais primitivas e autênticas ilustrações que se conhecem sobre a flora e a

(46) Vide notícia biográfica in Barbosa Machado, t. J, Lisboa, 1747; Robert Smith, "0
códice de Frei Cristóvão de Lisboa", RSPHAN, 1941, vol. 5, 121-126; Luís de Pina, "Para a
história da História Natural do Brasil", Brasllia, vol. t, 1942, 307-330; Luís da Fonseca,
"Frei Cristóvão de Lisboa, O. F. M., Mlsslonary and natural hlstorlan of Brazil", The Amerlcas,
vol. VIII, janeiro, 1952, n. 0 3, 289-303. A data da partida é dada por Bernardo Pereira de
Berredo, Anais Históricos do Estado do Maranhão, t.• ed., Lisboa, 1749, 222-223.
(47) Frei Cristóvão de Lisboa, Santoral de vários sermões de Santos, Lisboa, 1638, t. VI,
273. Sobre suas obras, vide Inocêncio Francisco da Silva, Dlcclonarlo Bibllographlco Portuguez,
Lisboa, t. li, 69-70, e t. IX, 67.
(48) Cartas de Frei Cristóvão de Lisboa, ABN, vol. 26, 395-41 t (vide p. 409), e "Três Cartas
de Frei Christovam de Lisboa dirigidas ao Irmão Manoel Severlm de Faria", R. J. C., t. XXIII,
316-333.
(49) Luísa da Fonseca, ob. clt., p. 297. A primeira referência à história fora feita em carta
a M. S. de Faria, a 20 de janeiro de 1627, art. cit., Robert Smith, ln ob. cit., declara que o có-
dice deu entrada em 1939.
(50) Luís de Pina, art. clt., 315. D. Francisco Xavier de Menezes, 4.° Conde de Ericeira,
dando notícia das conferências de t t de maio e t. 0 de junho de 1724, ln Coleção de Documentos
e Memórias da Academia Real de História Portuguesa (Lisboa, 1724), refere-se aos "Tratados pre-
dicativos" e ao "Diálogo do Justo e devido sentimento nas adversidades", de Frei Cristóvão de
Lisboa.

89
fauna do Brasil". A precedência sobre Marcgrave e Piso nas observações
diretas não deu à obra do franciscano maior valor. Se seu livro tivesse sido
divulgado no próprio século XVII, logo se manifestaria sua inferioridade
diante do trabalho dos dois sábios naturalistas neerlandeses, mais prepa-
rados para a tarefa. Frei Cristóvão, bispo eleito de Angola ( 1644), faleceu
a 25 de setembro de 1652.
Em 1967, o Arquivo Histórico Ultramarino publicou a História dos
Animais e Arvores do Maranhão <50.
9 . "Aditamentos" de Anselmo Eckart
Anselmo Eckart (Moguncia 1721 - Polosk 1809) entrou para a
Companhia de Jesus em 1740; em 1752 chegava a Lisboa, e em 1753 a
São Luís, para servir às missões no Pará e Maranhão, acompanhado de
outros padres e irmãos. Missionou até 1757, quando foi deportado para o
Reino, aprisionado de 1759 a 1777. Neste ano partiu para sua terra e foi
servir na Rússia.
Eckart foi missionário de Trocano (17 5 5) e Caeté ( 175 6), dedicou-se
às línguas indígenas, tendo viajado muito pelo antigo Estado do Maranhão.
Encontrava-se na Alemanha em 17 81, quando foi consultado por Cristó-
vão Gottlieb Murr, polígrafo alemão, sobre a edição que Lessing e Chris-
tian Leiste fizeram do manuscrito de Pedro Cadena de Villasanti, "Des-
crição da Terra do Brasil", encontrado na biblioteca de Wolfenbüttel <52 >,
no qual Leiste acrescentara notas e adições, as primeiras à obra de Cadena,
e as segundas compondo uma descrição do Brasil. Consciente da insufi-
ciência de suas fontes, Leiste resolvera consultar Murr, pensando na hi-
pótese de uma nova edição. Murr sabia que o jesuíta vivera no Estado
do Maranhão, e havia publicado no seu "Jornal da História da Arte e da
Literatura Geral" várias contribuições sobre perseguições aos jesuítas em
Portugal e sobre as línguas indígenas no Brasil. Enviou-lhe o livro de Leis-
te, na expectativa de notas que atualizassem o trabalho deste. Mas os
"Aditamentos" de Eckart, quer sobre a edição de Cadena, quer sobre a
descrição de Leiste, pareceram-lhe tão importantes, que decidiu publicá-
las numa coleção de viagens que editou (5 3 ).
(51) Vide _Frei Cristóvão de Lisboa, História dos Animais e Arvores do Maranhão. Estudo
e notas do Dr. Jaime Walter. Prefácio de Alberto Iria. Lisboa, 1967.
(52) G. E. Lessing, "Beschreibung des portuguieschen Amerika von Cadena. Eln Spanlsches
Manuscript ln der Wolfenbüttel'schen Bibliothek, herausgeben vom Herrn Gotthold Lessing. Mit
Anmerkungen und Zusatzen begleltet von Christian Lelste•. Braunscheig, 1780, Reeditado no vol.
6 das Obras Completas de Lesslng.
(53) "Des Heern P. Anselm Eckart, ehemallngen Glaubens predigers der Gesellschaft Je-su
ln der Capitania von Pará ln Braslllen, Zusi!tze zu Pedro Cadena's Beschreibung der Llinder von
Brasllien und Heem Rectors Christian Leiste Anmerkungen ln sechsten Lessingischen Beytrage zur
Geschichte und Litteratur, aus den-Schi!tzen der Herzcglichen Bibliothek zu Wolfenbüttel." (" Adi-
tamentos• do Sr. P. Anselmo Eckart, outrora pregador da Sociedade de Jesus na Capitania do
Pará, no Brasil, à Descrição das terras do Brasil de Pedro Cadena e às notas do Sr. Reitor Chris-
tian Leiste na sexta contribuição de Lessing para a História e a Literatura, dos tesouros da
Biblioteca Ducal de Wolfenbüttel.) Os aditamentos estão lncluldos na Relsen elnlgen Mlssionarlen
der Gesellschaft Jesu ln Amerlka aus lhren elgenem Aufsi:ltzen herausgeben von Chr. G. von Murr.
(Viagens de alguns missionários da Companhia de Jesus à América, segundo suas próprias relações,
editadas por C. G. von Murr.) Foram ainda reeditadas pelo Padre Franz Zavler Velgl nas Grundllch
Nachrlchten über dle Verfassung der Landschaft von Mayanas ln Süd Amerlka bis zum Jahre 1768,
nebst des Herrn P. Anselm Eckart Zusiitzen zu Pedro Cadena's Beschrelbung der Liinder. (Noticias
fundamentadas sobre a situação das terras dos Mayanas na América do Sul até o ano de 1768,
com as adições do Sr. P. Anselmo Eckart à Descrição das terras de Pedro Cadena.) Nuremberg, 1798.

90
Foi Ernest Feder quem apontou o caráter circunstancial da obra de
Eckart e o valor próprio de seus "Aditamentos" <54 >. Neles, Eckart não
constrói uma narrativa coerente, mas fornece curiosas informações para
a história do Pará e do Maranhão, e notas importantes colhidas em várias
missões jesuíticas sobre vários grupos indígenas (55).
Eckart escreveu outros trabalhos, todos registrados por Sommervogel
e o Padre Serafim Leite (56) sobre a perseguição da Companhia de Jesus
em Portugal, o diário de suas prisões em Portugal, o "Elogio Póstumo do
P. David Aluísio Fay" <57 > e especialmente as "Nachrichten von den Spra-
chen in Brasilien" (Notícias sobre as línguas no Brasil) <58)

10. Frei Domingos Teixeira


Frei Domingos Teixeira nasceu na vila de Celorico do Basto, no ar-
cebispo de Braga (1675-1726), aprendeu humanidades e estudou teologia
em Coimbra, professou a ordem de Santo Agostinho, e faleceu em 1726 <59 >.
Sua obra é pequena, biográfica e adulatória, e não é representativa da his-
toriografia portuguesa dos setecentos. Foi acusado de aproveitar-se de ma-
nuscrito de Jacinto Freire de Andrade Pereira ( 1723), e de imitar-lhe o
estilo. :e. a Vida de Gomes Freire de Andrade <60 l, governador do Maranhão
(1685-1687), escolhido para extinguir o movimento revolucionário diri-
gido por Manuel Beckman, o Bequimão (1684-1685), que o alista na
historiografia brasileira. Julgava-se um autor de boa consciência, estimu-
lado pelo crédito da pátria ofendida por alguns filhos ingratos (rebeldes),
cuidadoso da feição literária da sua prosa, descuidado da pesquisa do-
cumental, forjando à pressa um retrato de elevação senhorial, pomposo,
artificial e enfático. Domingos Teixeira escrevia ser mais fácil ressuscitar
um morto de sessenta e sete anos do que descobrir um vivo, com que
compor uma obra que, a seu juízo, qualquer um, de mediano entendimen-
to, pudesse fazer. As duas regras essenciais da história, para que ela não
seja má, são a verdade e a clareza, que ele pensa ter cultivado no seu livro.
Seus censores, para a publicação deste, louvam muito sua erudição, pro-
priedade e "elegantíssima sublimidade de estilo". :e. um elogio, uma apo-
logia às proezas do general' que impôs aos colonos revoltados contra os
excessos oficiais a dureza do castigo, exemplificado no enforcamento do
Bequimão e dois outros companheiros.

(54) "Uma viagem desconhecida pelo Brasil. Lessing, Pedro Cadena e os Jesuítas•, Cultura
Polftica, Rio de Janeiro, fevereiro, 1945, 113-128.
(55) As mais importantes são as relativas aos Manao, Junina e Gamela. Vide Herbert Baldus,
Bibliografia critica da etnologia brasileira, São Paulo, 1954, n.• 426.
(56) Carlos Sommervogel, Bibliotheque de la Compagnie de Jesus, Bruxelas, vol. III, 330-331,
e Serafim Leite História da Companhia de Jesus no Brasil, t. VIII, 204-207.
(57) Traduzido para o português por Paulo Rónal e publicado ln ABN, LXIV, 199-244.
(58) Publicadas no Journal zur Kunstgeschlchte und zur allgemelnen Lltteratur (Jornal da
História da Arte e da Literatura Geral), dirigido por Chrlstoviio G. de Murr, e reeditadas por
Julius Platzmann, Speclmen Llnguae Braslllcae Vulgarls Edllionem separatam lmmutatom, Curavlt
J. Platzmann. Llpslca, ln aedlbus B. G. Teubneri, 1890, 20 páginas.
(59) Diogo Barbosa Machado, BL, Lisboa, 1741, t. 1, 716; Inocêncio Francisco da SIiva,
DBP, Lisboa, 1859, t. II, 199.
(60} 1.• parte, Lisboa, 1724; 2.• parte, Lisboa, 1727. Há extratos publicados na RJHGB,
11!41, t. Ili, 457-468, e t. XLIV, parte !.•, 187-221.

91
Sua obra fria e insensível, seu desamor à "gentalha do povo", à er-
rada gente, à plebe sempre inquieta, adversária da voz da liberdade, in-
compreensível à sublevação, baseia-se em fontes oficiais, desconhece a
gente e a terra, desama e não desculpa, condena a frouxidão dos governos
passados, deseja maior rigor no castigo aos "depravados com liberdade
maior na falta de obediência".
Domingos Teixeira forma, com Francisco Teixeira de Morais, as duas
fontes primárias da revolta do Bequimão, e os dois, acrescidos de Bernardo
Pereira Berredo, os modelos da mais abjeta historiografia colonialista.
Bettendorff estava ausente na hora do sacrifício de Bequimão, cuja história,
idealismo e bravura ficaram, assim, à mercê de dois áulicos do poder, da
brutalidade e do terrorismo coloniais. Mas nenhum dos dois pôde esconder
a farsa apressada do julgamento e o heroísmo do chefe, cujas palavras fi-
nais, "pelo Maranhão dou satisfeito a vida", ocultas por Domingos Tei-
xeira, não foram esquecidas por Francisco Teixeira de Morais.
Não foi um liberal como João Francisco Lisboa quem mostrou a
unanimidade da revolta, a raridade do caráter de Bequimão; foi Varnha-
gen, pouco afeito a perdoar revoltas populares, quem escreveu que "a
história por sua parte não pode simpatizar com estas almas generosas, tra-
tadas tão cruelmente. Manuel Bequimão subiu ao patíbulo como verdadeiro
herói" (61 ) •

11 . Bernardo Pereira Berredo


Bernardo Pereira Berredo nasceu em Serpa, no Alentejo, e faleceu a
13 de março de 1748. Pouco se conhece de sua formação <62>, sabendo-se
apenas que tendo seguido a carreira militar distinguiu-se na guerra da
Sucessão ( 171 O) . Como a maioria dos cronistas e historiadores coloniais,
sua vida e obra não fazem parte da descuidada historiografia portuguesa,
ou mesmo da historiografia literária. São autores secundários, preocupados
com assuntos inferiores, discriminatoriamente afastados. Foi membro do
Con·selho do Rei D. João V e nomeado governador do Maranhão em 14
de julho de 1722 <63 ). Berredo permaneceu mais de um ano em São Luís,
consultando documentos, e em Lisboa continuou a preparar a obra Anais

(61) Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil, vol. 3, 311.


(62) Durante algum tempo adotou o nome de Lacerda, de seu pai Antônio Pereira de
Lacerda (a Gazeta de Lisboa noticia sua chegada ao Maranhão como Bernardo Pereira de La
Cerda. Varnhagen, História Geral, vol. V, 340. Era sobrinho do Cardeal D. José Pereira de La·
cerda, Bispo do Algarve. A Gazeta de Lisboa noticia aos 22 de janeiro de 1750 a salda do livro
"elegantemente escrito", enumera entre seus tltulos o de governador do Mazagão. Vide Noticias
Históricas de Portugal e Brasil, 1715-1750, Coimbra, 1961, p. 284.
(63) A Carta patente de sua nomeação encontra-se na coleção Manuel Barata do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, lata 278, manuscrito 14.741. Na mesma coleção encontram-se também
duas cartas ao Conde da Ribeira Grande, D. Luls da Câmara, e a D. João V, datadas de São
Luls, 20 de junho de 1720, dando notícia do Estado do Maranhão. Ambas foram publicadas por
Jaime Cortesão ln Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrl (1750). Parte Ili, Antecedentes do
Tratado, Rio de Janeiro, t. I, Documento XXXVI, 191-192 e Documento XXXVII, 193-205. No
mesmo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro encontra-se o "Regimento pelo qual o governa-
dor da capitania do Maranhão ... mandou descobrir o curso do rio Tocantins", 1719; lata 175,
manuscrito n. 0 4.060.

92
Hist6ricos (1.ª ed., Lisboa, 1749; 2.ª ed., Maranhão; 3.ª ed., Florença,
1905).
Ele mesmo declara que "neste trabalho tão custoso gastei perto de
um ano, que me dilatei naquele Estado, depois de aliviado do governo
dele e restituindo-me a Lisboa, entrei então em maiores fadigas, porque
para haver de assentar um estilo, que ficasse sendo menos fastidioso à
pureza da lingua, sem faltar aos preceitos dos Mestres da História, fiz uns
largos estudos nos mais celebrados, assim vulgares, como latinos". Afirma
ainda que consultou relações impressas, serviu-se do Arquivo do Estado,
dos manuscritos do Dr. Antônio Alvares da Cunha, consultou Frei Cris-
tóvão de Lisboa, e lastima a esterilidade de todos os escritores da América
Portuguesa <64 >.
Trata-se de uma crônica que abrange do descobrimento ao fim do seu
governo, repleta, como observou João Francisco Lisboa, de acontecimentos
militares, religiosos e políticos, e despida de informação econômica e social.
Seu fim, escreve João Francisco Lisboa, era escrever uma história gran-
diosa, "e à mingua de acontecimentos magníficos e verdadeiramente his-
tóricos enche-os de palavras turgidas e balofas, perfeito contraste dos casos
e ações insignificantes a que elas se aplicam".
O primeiro crítico da obra, a mais elaborada no padrão literário,
na pesquisa documental e na estrutura orgânica de quantas se escreveram
até aquela época sobre o Maranhão, foi Gonçalves Dias. Na edição de
1849 ele escrevia que Berredo era português e só escrevia para portugue-
ses; "não escrevia a história do Maranhão, escrevia uma página das con-
quistas de Portugal, daí seu principal defeito. Não é um verdadeiro his-
toriador, é um simples cronista; não explica, expõe os fatos, enumera-os,
classifica-os pelas datas e julga que nada mais lhe resta fazer. Justiça lhe
seja feita, a exposição é quase sempre verdadeira, as numerações exatas,
as classificações justas; mas falta-lhe a cor, o movimento, a vida, e por
isso sua obra é tão fastidiosa". "O que lhe importa", acrescenta mais
adiante, "é a conquista, o que lhe interessa são aquelas insignificantes co-
moções de urna cidade dividida em classes tão disparatadas, são as repre-
sentações da Câmara e do Senado, as exigências dos colonos, as ordens da
Metrópole, os comboios ânuos, as digressões dos governadores, os resgates
de índios. O que é estrangeiro é vil e infame. Assim vê, nos índios, bár-
baros; nos franceses, piratas; nos holandeses, heréticos e sacrílegos; é um
misto de patriotismo exclusivo e de cego fanatismo, porque Berredo é o
órgão dos colonos portugueses com todas as suas crenças, com todos os
seus prejuízos porque ele não enxerga senão o presente" <65) .
A critica de Gonçalves Dias não passou em julgado, pois João
Francisco Lisboa escrevia que "Berredo tinha razão. E, em verdade, sol-
dado e escritor português, pertencente à raça e à sociedade portuguesa,
corno todos nós lhe pertencemos, pelos usos, costumes, linguagem e idéias,
(64) Introdução, 2.• ed., 1849.
(65) •Reflexões sobre os Anais Históricos do Estado do Maranhão, por Bernardo Pereira
Berredo", ln Guanabara (Rio de Janeiro, t . I, 1849, 25-28, Incompleto, e reproduzido completo,
como Introdução à 2.• edição dos Anais Históricos, Maranhão, 1849.

93
havia ele de preterir os assuntos pátrios para se ocupar com a história dessa
pretendida Judéia do novo mundo, criada só pela imaginação poética e
fantasiosa do nosso crítico? que mais interesses, podiam oferecer essas
obscuras e sanguinolentas guerras de tribos, seguidas de banquetes de carne
humana, de danças burlescas, e de brutal embriaguês? porque é enfim que
a história da civilização européia, em seu nascimento e nos seus progressos,
se há de ter como coisa de somenos que a história dos povos selvagens, de
sua decadência e extinção. Timon (J. F. Lisboa) ousa confessar que faria
como Berredo ... " (66). Acreditava João Francisco Lisboa quase sem res-
trições no exemplo e consciência de Berredo, embora fosse visível a des-
figuração histórica causada pelo pedantismo e afetação. Recomenda sua
obra e, refazendo seu juízo, chega à conclusão que "Berredo pois não fez
mais do que compilar, e compilar mal, e apesar do muito que revolveu os
arquivos, como alardeia não poucas vezes desfigurou a história por omis-
sões inexplicáveis, por ignorância, certeza de vistas, afetação e pedantismo.
Talvez mesmo a parcialidade não estranha aos defeitos da sua obra, porque
enfim Berredo, desculpando ou dissimulando os erros e crimes dos seus
antecessores, fazia por antecipação a apologia dos próprias atos".
Acusa-o Lisboa de ter sido um déspota vulgar, igual em tudo aos
demais e enumera várias acusações e desmandos por ele praticados e as
providências tomadas pelo Conselho Ultramarino <67 >.
Varnhagen, que escreveu antes de João Francisco Lisboa, considera
precioso o livro de Berredo e o autor "um espírito nobre, grave e geral-
mente caridoso"; seu mal consistiu no estilo empolado, escuro, enganoso, e
na ilusão de que engrandeceu fatos miúdos <68 >.
Capistrano de Abreu não o tinha em apreço, por julgá-lo "ora ine-
xato, ora impreciso, todo enlevado nas louçanias de seu estilo rebusca-
do" <69 >. Manuel Barata, o historiador do Pará, limitou-se a aceitar a opinião
retificadora de João Francisco Lisboa <70 >.
A carta de Berredo como governador ao Conde da Ribeira Grande
sobre os limites do Maranhão com a França não merece maior atenção
nem crédito, face às críticas tão definitivas feitas por João Francisco Lis-
boa <71>. A informação de Bernardo Pereira de Berredo a D. João V
sobre os limites do Estado, as capitanias respectivas, suas produções, rios
principais e suas margens, povoações mais notáveis, com número dos mora-
dores e suas necessidades mais instantes <72 >, escrita dois anos depois de
empossado, adianta sua obra terminada antes de sua posse. :e, assim, uma
brevíssima descrição, crônica da atualidade do antigo Estado do Maranhão.
(66) • Apontamentos, Notícias e Observações para servirem à História do Maranhão", /ri
Obras, Lisboa, 1901, voi. 1, 250.
(67) • Apontamentos•, ob. clt., vol. II, 241-244.
(68) Hlst6rta Geral do Brasil, 3.• ed., t. 4, 42-43.
(69) "Prolegômenos ao livro v•, História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, 3.• ed., 461.
(70) "Apontamentos para as Efemérides Paraenses•, RIHGB, t. 90, vol. 144, 50.
(71) A carta vem publicada ln Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrl, Parte III,
Antecedentes do Tratado, t. I, Rio de Janeiro, Instituto Rio Branco, s. d., 191-192. São duas
cartas datadas de S. Luís, de 20 de junho de 1720, originais mss. pertencentes à coleção Manuel
Barata do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Lata 278, Mss. 14.741).
(72) Ob. clt., 193-205.

94
CAPITULO II

HISTORIOGRAFIA DA AMAZÔNIA
1. João Daniel e o Tesouro Descoberto. 2. Frei João de
São José e o Grão-Pará. 3. Francisco Xavier Ribeiro Sam-
paio e o Rio Branco. 4. José Monteiro de Noronha. 5. Fran-
cisco José de Lacerda e Almeida. 6. Manuel- da Gama
Lobo d'Almada e o Rio Negro.

1. João Daniel e o Tesouro Descoberto


João Daniel (Travaçós, Portugal, 1722 - cárcere São Julião da
Barra, 1776) entrou em 1739 para a Companhia de Jesus em Lisboa,
veio para o Maranhão em 1741, onde concluiu seus estudos, fez sua pro-
fissão solene em Ibirajuba, em 1757, e missionou em Camaru até 1776.
Ia ser o cronista da Companhia, mas foi desterrado e enviado a Portugal,
aprisionado nas cadeias de Cárquere e São Julião da Barra, onde escreveu
seu livro Tesouro Descoberto do Máximo Rio Amazonas, e faleceu.
João Daniel foi um dos quinze expulsos e presos durante a persegui-
ção pombalina contra os jesuítas. Mendonça Furtado, irmão de Pombal
e capitão general do Maranhão e Pará, descrevendo "os abomináveis ex-
cessos" cometidos pelos jesuítas, um a um, assim se refere a João Daniel:
"O sétimo é o Padre João Daniel, que depois de em uma sexta-feira da
quaresma tomar a liberdade na minha presença, e na do Bispo de fazer
uma exclamação, dizendo que Anás e Caifás faziam a sua vontade, e os
apóstolos de Cristo estavam a dormir seguindo esta idéia com expressões
bem claras do fim a que se dirigiam, passou depois ao excesso de andar
dizendo por esta cidade que não sabia como havia quem me absolvesse,
chegando a tomar a liberdade de ir tomar satisfação ao meu confessor,
dizendo-lhe que não compreendia, o como ele me absolvia, quando eu es-
tava fazendo violências públicas às comunidades, a cuja ousadia lhe res-
pondeu aquele religioso com a modéstia e a gravidade que devia" (tl.
Sua biobibliografia foi escrita por Serafim Leite <2 1.
Preso e desterrado com outros jesuítas e franciscanos, João Daniel
saiu do Pará a 28 de novembro de 1757. Serafim Leite sintetiza-lhe a
vida na prisão: primeiro no forte de Almeida, onde, privado de papel, apro-
(1) Comunicação de Mendonça Furtado, de 22 de outubro de 1757, ln ABPP (1906), t. 5,
284.
(2) A primeira blobib!lografla escreveu-a S. Leite na RABL, Anais de 1942, Janeiro a
Junho, ano 41, vol. 63; aparece também na sua Hlst6ría da Companhia de Jesus no Brasil, t. 8,
325-329, Rio de Janeiro, 1943; t. VII , 353, Rio de Janeiro, 1949; 1. VIII, 190-192, Rio de
Janeiro, 1949.

95
veitava-se do de embrulho, das folhas brancas dos Breviários, para es-
crever sua grande obra, a única distração que lhe restava, motivado pelo
desejo de deixar um escrito da imensidade e do valor do Amazonas. Assim
se passaram quatro anos, escrevendo diante das maiores dificuldades, ba-
seado nas notas, lembranças e projetos. Aos 3 de dezembro · de 1762 foi
transferido para a Torre de S. Julião da Barra, em Lisboa, de onde só saiu
morto.
Escreve Serafim Leite que como beirão João Daniel tinha admirável
fortaleza de ânimO' para, encerrado nos cárceres, prosseguir sua missão, es-
crevendo o grande monumento que é o Tesouro Descoberto do Máximo
Rio Amazonas. Pensa aquele que, com o tempo, aliviou-se o rigor com o
qual era tratado e ele teve papel e tinta para acabar seu livro. Como todos
os grandes jesuítas, João Daniel deixaria para a posteridade a revelação
da obra missionária e das riquezas, frutos, drogas e planos do grande Ama-
zonas. Esteve preso dezoito anos, até sua morte aos 19 de janeiro de 1776.
Foi sepultado na Igreja de São Julião.
O Tesouro Descoberto do Máximo Rio Amazonas só foi inteiramente
publicado em 1976. Dividido em seis partes, os originais manuscritos das
cinco primeiras encontram-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
e o da sexta na Biblioteca Pública de f:vora. A primeira iniciativa de pu-
blicação coube ao Bispo Jo_sé Joaquim de Azeredo Coutinho, responsável
pela localização dos manuscritos e pela impressão da Quinta Parte do
Tesouro Descoberto do Máximo Rio Amazonas (3). Varnhagen patrocinou
a publicação da "Parte Segunda" <4 > e em 1878 o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro publicava a "Parte Sexta" <S> .
O Tesouro Descoberto, segundo o próprio autor, contém na primeira
parte a notícia geográfica; na segunda, a descrição dos índios e seus cos-
tumes; na terceira a notícia da grande fertilidade e riqueza de suas terras
e matas; na quarta, aponta o modo de agricultura que usam seus habi-
tantes; na quinta e sexta, indica os meios e métodos de poder melhor e
com brevidade povoar e desfrutar o Amazonas. E, assim, uma obra noti-
ciosa sobre a atualidade amazônica de sua época, bem como um plano
metódico e prático de politica econômica, de reforma agrícola, de enge-
nhosa invenção para a navegação comum e comunicação dos rios amazô-
·nicos. :e a mais importa.JCe fonte para o estudo do Amazonas no século
XVIII.
Seu primeiro critico foi Antônio Ladislau Monteiro Baena, achando
que a publicação do manuscrito (Parte Segunda) exigia anotações, porque
continha incorreções, levantando dúvidas sobre a credibilidade de certas
passagens. Lembra que o autor escreveu nos cárceres sem seus apontamen-
tos, baseado em suas reminiscências, o que o levou a misturar involuntaria-
(3) Rio de Janeiro, Impressão Régia, 1820.
(4) RIHGB, 2.• ed., 1840, t. li, 321-364, 447-500; 3.• ed. , 329•374, 459-512, e t. 111, 39,52,
IS8, J83, 282,297, 422-444.
(S) RIHGB, t. XLI, parte J, 33·142, baseado no original de l!vora.

96
mente objetos diversos. São vinte e duas notas, apontando falhas, inexati-
dões e confusões <6 l .
Vamhagen, que soube avaliar sua significação, acrescentou na His-
tória Geral do Brasil que havia nesta obra "muitos fatos, muitas idéias,
mas pouco decoro no estilo" <7 l. Serafim Leite estranha também o "pouco
decoro" e atribui a observação ao seu estilo desenfastiado e não raro hu-
morístico. A crítica de Baena não merece muita atenção, já que o autor
nem foi bom escritor e historiador, nem primou pelo caráter, áulico como
sempre foi. Euclides da Cunha, no ensaio de 1907 "Entre o Madeira e o
Javari", examinando o progresso desta região amazônica nos últimos trinta
anos, escrevia: "O que dele se conhecia bem pouco adiantava às linhas de-
sanimadoras do padre João Daniel no seu imaginoso Tesouro Descoberto".
"Entre o Madeira e o Javari, em distância de mais de duzentas léguas, não
há povoação alguma nem de brancos nem de tapuias mansos ou missões.
Q._!iizer é do século XVIII e poderia repetir-se em 1866 na~!i_<;;de Tavares
Bastos: "O Amazonas é uma esperança; deixando as vizinhanças do Pará
penetra-se no deserto" (8).
Para Serafim Leite é "notável, em particular, a sagacidade e instrução
que dá para a agricultura amazônica, hoje ultrapassadas, mas verdadeiro
tratado de economia agrícola, bem superior às idéias do tempo, refere-se
já à indústria, hidráulica aplicada, utilização dos ventos"; trata dos índios,
das crendices populares, da etnografia de inúmeras tribos. "Além disso,
indicações locais, geográficas e históricas que, ao menos no tocante aos
fatos do seu tempo, se constituem genuínas fontes para a história geral
do grande Rio." João Daniel é, ainda segundo Serafim Leite, a coroa de
todos os escritores ligados até então à história do Amazonas <9 l.
A edição completa pela Biblioteca Nacional OO) é um empreendimento
cultural do maior valor e significação, sobretudo para o conhecimento do
Amazonas e da historiografia brasileira. O livro começa pela descrição
geográfico-histórica, o descobrimento e navegação do Amazonas, a origem
de seu nome, os principais rios que recebe, a pororoca e coisas notáveis
do rio, qualidade das águas, o clima saudável, ilhas, lagos e penínsulas,
povoações, pescaria, anfíbios, caça das aves, as várias pragas, cobras e os
antídotos; na parte segunda, dá notícia geral dos índios e particular de algu-
mas tribos, da fé, costumes e coisas mais notáveis de sua rusticidade, os
venenos, a ingratidão, a antropofagia, os resgates, as guerras, a habilidade
e aptidão, a fecundidade indígena, as grandes fomes e doenças que sofre-
ram; a parte terceira informa da muita riqueza nas suas minas, nos seus
haveres e da fertilidade de suas margens; a mandioca, o trigo, legumes,
(6) "Observações e notas lluslrallvas dos três primeiros capflulos da Parle 2.• do Tesouro
Descoberto do Rio Amazonas•, RIHGB, 1843, 1. 5, 252-287.
(7) 3.• ed., t. IV, 178.
(8) Contrastes e Con/rontos, 6.• ed .• Porto, 1923, 155. t.• ed., Porto, 1907.
(9) HCJB, Rio de Janeiro, 1943, 1. IV, 328.
(10) AdN, vols. 95, 1 e li, 1976. ll pena que esta edição contenha deílclênclas Inaceitáveis,
tal como a falta do sumário da matéria, a falta de índice e uma introdução multo inferior ao
livro, que revela não conhecê-lo, nem ter-se dado ao prazer de olhar, ainda que por cima, o
original de Impressão. As notas limitam-se à tradução de expressões latinas, mas nenhuma é
hlslórlco-geográflca e antropológica.

97
frutos e frutas, as madeiras, plantas, ervas, cocos, e ao tratar de preciosida-
de de seus haveres dá-lhes forma dicionarizada alfabética, prosseguindo
na descrição dos vários gêneros. A quarta parte é sobre a agricultura, o
uso dos vários índios, os engenhos de açúcar e as feitorias de aguardente,
as embarcações, as missões, o regime dos missionários, as missões espa-
panholas, o método de pastorar o gado, a pescaria e seus usos e indústria,
os mercados, a fabricação de louça. A quinta parte trata de um método
novo de agricultura, o meio mais útil para extrair suas riquezas, e mais
breve para desfrutar seus haveres e efetuar sua povoação e comércio.
Este é um tratado prático que expõe providências, mostra a diferença
das terras incultas do Amazonas e as cultivadas no mundo, a agricultura
praticada que dá mais dano que proveito, propõe se desterre a cultura
da maniba e da farinha de pau e a introdução dos grãos, de várias searas,
milho, arroz, e defende que só com as searas da Europa poderá haver
fartura no Amazonas, as providências que devem tomar os novos povoa-
dores; declara que abolida a maniba os escravos são inúteis aos senhores,
trata daqueles no ultramar, e da serventia do Amazonas; cuida dos barcos
necessários, o meio fácil de haver feiras e mercados, e extrair as riquezas
do sertão, os inconvenientes das canoas do sertão, verdadeiro estorvo ao
seu aumento, propõe meio de extrair as riquezas do Amazonas, como fazer
as hortas, o método prático de principiar um sítio, como fazer as canoas e
embarcações, e trata da pesca ordinária no Amazonas e das providências
que usam outras nações e as que devem ser usadas ali. Volta a tratar das
missões no Amazonas e nos seus estados, da repartição dos índios, dos
senhores e missionários, defendendo que os índios "são senhores da sua
liberdade, estão nas suas terras, povoações e casas, e não basta a razão
de serem rústicos para se obrigarem a servir" (tt>. Trata da economia que
se deve observar nas missões, da língua que se deve falar, defendendo que
os missionários aprendam a língua dos índios. Este é um capítulo de imensa
utilidade aos estudos lingüísticos, pois mostra que há 30 a 40 nações di-
versas com idiomas diferentes, mas que há uma língua comum que é a
geral, que na sua época já andava muito corrompida. Na época de Men-
donça Furtado, irmão de Pombal, ele se empenhara para que se introdu-
zisse nas missões a língua portuguesa, e defende seja esta o melhor meio
de comunicação, havendo- tão diversas nações e as suas Hnguas, e não
conhecendo muitos grupos e estando a geral já corrompida.
Propõe sejam as escolas o meio mais proporcionado para civilizar ín-
dios e discute se devem ser seculares ou regulares. Trata do descimento
dos índios selvagens, do modo de erigir povoações e de povoãr o Amazo-
nas, dos lugares a escolher. Seu poder de descrição geográfica, natural
e etnográfica é imenso e preciso. Acredita no paraíso do Amazonas, um
tesouro de riquezas, sujeito, como o Paraíso celeste, às serpentes e pragas.
Não há seguimento da matéria, há soltura, devido provavelmente às
dificuldades das condições em que esctevéu. Sua língua é rica de espanho-
lismos, de neologismos e sobretudo do registo da variedade de sentido.
(11) Ob. c/1., vol. 2, 218.

98
Limonada, por exemplo, é refrigerante. O Brasil ainda é uma república de
macacos ou de formigas. Reconhece serem os índios os mais sofridos e po-
bres habitantes do Brasil. Não esconde as epidemias de bexigas, sarampo,
as várias doenças e as fomes que todos sofreram, sobretudo índios; condena
a escravidão indígena. Relembra o cálculo feito por Vieira de que entre 1615
e 1652, em 37 anos, morreram dois milhões de índios. Cita vários auto-
res e muitas sentenças latinas de cor, porque na prisão não contava com
livros. Anchieta, Nóbrega, Vieira, Acosta, Manuel Rodrigues, Bettendorff,
Berredo, Bernardo de Brito, Samuel Fritz, Simão de Vasconcelos, Gumila,
autor do E/ Orinoco Ilustrado <12 l, muito conceituado em sua época e hoje
desconhecido.
Defende - e este é um ponto importante - a organização de uma
economia sem escravos. Ele próprio aparece várias vezes no seu livro,
cujo intento principal foi "dar aos novos povoadores, que para lá mudam,
um método de cultivar aquelas terras o mais fácil e útil para eles e para
todo o Estado" 1lJ), e é claro e consciente ao escrever que "não é meu
intento aqui questionar, ou resolver, se a economia usada na reparticção
dos índios das missões aos brancos europeus é lícita, ou ilícita; nem se se
pode em boa consciência obrigar os índios nas suas mesmas terras a servir
aos brancos sem l!'ais causa do que sair dos matos, e fazerem-se cristões;
prescindo desta matéria, por saber que é muito odiosa, e bastaria a qual-
quer missionário para ser apedrejado pelos brancos se dissesse que isto é
injustiça" <14 >.
f; atento à estrutura social ao escrever que "os brancos ou não estão
afeitos a remar (nem a nenhum outro trabalho) ou se sentem por muito
injuriados e vis se pegarem no remo, querendo ser tidos por graves e
fidalgos". Mas, como em outras oportunidades, defende a liberdade indí-
gena ao escrever claramente que "estando estes nas suas terras, e muito
livres, e senhores do seu nariz parece fazer-lhes injustiça o obrigá-los ao
serviço dos brancos sem mais título do que o estabelecimento e serviço
dos forasteiros, os quais antes com mais razão se deviam obrigar ao ser-
viço dos índios do que os índios ao serviço dos brancos. Como se viessem
os índios a estabelecer-se no nosso Portugal seria uma grave injúria, e
manifesta injustiça obrigar aos portugueses a servi-los" <15 l .
Ele viu a grandeza do Amazonas, ao escrever que "não é Portugal
(nem ainda tãobé Castela) corpo suficiente para poder povoar e tomar
tanto terreno, como tem no Rio Amazonas, e mais rios colaterais que
nele deságuam que se o fossem podia naquele Estado fazer o maior, e
mais rico império do mundo" (10).
Sustenta que o clima e os ares do Amazonas são muito sadios, que
os índios são senhores da sua liberdade, combate a escravidão e as bar-
baridades brancas, propõe uma nova economia. f; uma obra enciclopédica,
(12) Madrl, 1741.
(13) Ob. cit., vol. li, 124.
(14) Ob. ctt., vol. li, 180.
(15) Ob. cit., vol. II, 152.
(16) Ob. cit., vol. II, 273.

99
um tratado, um tesouro de todo o Amazonas, tudo o que sobre ele se sabia,
e como se devia aproveitá-lo.

2. Frei João de São José e o Grão-Pará


Frei João de São José Queirós (no século João da Silveira Queirós;
Matozinhos, Portugal, 11 de agosto de 1711 - Lisboa, 15 de agosto de
1764). Entrou para a Ordem de São Bento, adquiriu titulo de teólogo,
sendo nomeado aos 48 anos por D. José I, Bispo do Pará, onde chegou a
31 de agosto de 1760 <17 > (4. 0 Bispo do Pará, 1760-1763). Conflitos com
outras ordens e colonos obrigaram-no a recolher-se à Corte, embarcando
de volta a 24 de novembro de 1763. Morreu no convento de São João de
Penduraba, entre o Douro e o Minho, onde o Monarca o mandara con-
finar em 15 de agosto de 1764 (18).
Escreveu memórias e visitas pastorais, estas muito valiosas pelas no-
ticias que dá sobre a vida no Pará. A "Viagem e Visita do Sertão em o
Bispado do Gram-Pará em 1762 e 1763" <19 > foi especialmente utilizada
para reconstituir a vida e os costumes do Pará. Em 1868, Camilo Castelo
Branco publicou as Memórias de Frei João de São José <20 >, contendo mis-
celânea, memórias e as duas visitas, a de 1761, inédita, e a de 17 62-17 63
publicada pela Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (re-
editadas em 1961 com prefácio e notas de Basílio de Magalhães e notas
de Cândido Jucá Filho sob o título Visitas Pastorais. Memórias. 1761 e
1762-1763) <21 >.
Escreveu Inocêncio da Silva, que Frei João era homem muito ins-
truído, de caráter independente e veia satírica, não poupando amigos e
inimigos. Camilo Castelo Branco louvou-lhe a severidade episcopal, mos-
trou o entusiasmo que possuía pelo Pará, "um verdadeiro retrato do
Paraíso", baseado em cartas e notícias que encontrou em arquivos portu-
gueses, sendo que em :Évora se acha o original da segunda viagem. Era
homem de reputação literária em Portugal quando foi nomeado Bispo e
partiu para o Brasil. Camilo juntou à primeira viagem, as "Miscelâneas",
não publicando algumas páginas do original, em favor da memória do Bispo
e em respeito ao leitor, começadas quando ele tinha apenas vinte anos,
continuadas em Lisboa e Belém e suspensas no derradeiro ano de vida
do autor. A amostra escolhida por Camilo não o favoreceu, embora reve-
lasse a extensão e variedade de suas leituras literárias e filosóficas. São
notas e reflexões miúdas, curiosas algumas, mas sem profundidade. No
prefácio à Primeira Visita de 1760, até então inédita, escreveu Camilo que
ele remeteu quatro cópias para Portugal, sendo que três dirigidas ao mos-
(17) A. L. M. Baena, Compêndio das Eras da Provlncia do Pará, Universidade Federal
do Pará, 1969, 174.
(18) Baena, ob. clt., 188, e Francisco Inocêncio da Silva, Dicci onarlo 8/oblbllographlco
Portuguez, t. X, 284.
(19) RIHGB, 1847, t. 9, 43-107, 199-227, 328-375 e 476-527.
(20) Porto, 1878. Também publicadas em folhetim do Jornal do Comércio de Lisboa, a
começar em 9 de janeiro de 1867, e em extrato no Brasil Histórico, 1864, t. 1.
(21) Rio de Janeiro, Editora Melson S/A.

100
teiro beneditino do Porto e outra a frei Manuel do Cenáculo, e supõe que
deve ter pesado no ânimo de seus inimigos os juízos do prelado sobre coisas
que não diziam respeito à sua missão. Frei João de São José, escreveu
Camilo, era uma vocação errada. "Estava ali um excelente político, um
grande reformador. . .. A mitra pesou-lhe mortalmente na cabeça, porque
lhe minguava no peito coração robusto de fé com que ajudar o entendi-
mento". O mérito de escritor não é recomendável pois faltavam-lhe as
condições de que careceram todos os seus coetâneos, e que não sendo as
Memórias e Viagens livros indicados como seleta de vérnaculidade, serviam
pelo merecimento das notícias válidas para os estudiosos.
A primeira viagem começa em Belém, aos 19 de dezembro de 1761, em
grandes canoas. Visitou várias localidades, tirou devassa, batizou, crismou e
pregou ao povo. Na viagem conheceu Agostinho Domingos, o primeiro que
teve a planta do café, mandada vir de Caiena pelo governador do Mara-
nhão, João da Maia da Gama ( 1722-1728) e trazida por Francisco de
Melo Palheta. Criticou fortemente a política portuguesa "Hei de dizê-lo
porque gasta mais do que tem no supérfluo, por isso falta para o necessário.
Se o Sr. D. João V não gastara em Roma cento e quatro milhões na
sua vida, se não fizesse um convento de arrábidos com tão enorme dis-
pêndio, se não gastasse . . . podia o seu filho Sr. D. José ter com que
comprasse negros cativos em justa guerra, com as condições mais benignas
da escravidão, e receber por este modo a inocente usura dos seus crescidos
dízimos, e seus vassalos nas conquistas, principalmente do Pará, viverem
em menos vexações; visto que a providência de se aplicarem índios à
soldada sai pouco mais que inútil, pois os índios que conhecem a liberdade,
e são de natureza preguiçosos não há quem os meta a caminho: fogem
do trabalho para ociosidade; não param em casas particulares, exceto
enquanto andam divertidos com as índias e mamelucas" <22 ). E repete a
crítica ao escrever: "Os gastos de superfluidades sendo evitados poderão
ser origem de que sobeje com que se mandem transplantar d' África para
a América colonos bastantes a ajudar os novos povoados, daqui resultará
ficarem bem pagos os negros sem se venderem, como a mim, a 115$000
réis e haver dinheiro com que fazem os reis maior pompa, isto é, boas
naus, milícia bem paga, boas esmolas a pobres e inválidos, fábricas reais
e na paz fazer reserva e tesouro para a guerra futura possível" <23 ).
Visitou Ourém, Bragança, Amarante, São-Miguel-do-Gumá e outras
vilas. Fala brevemente da cultura do cacau, conta que em Berém há muitas
casas inacabadas, que os donos deixam assim para não serem pedidas em-
prestadas pelos ministros ou militares que vêm de Portugal, diz que o
sarampo matou mais de 600.000 pessoas, critica os que buscavam índios
para os cativar, sob o pretexto de os fazerem cristãos, e que o Pará se arrui-
nou muito, e iria a pique se o Rei não lhe acudisse com providências fortes,
nomeadamente a extinção dos jesuítas <24 ). Já nesta primeira Viagem seu
antijesuitismo é forte e faccioso.
(22) Visitas Pastorais, ob. cit., 159·160.
(23) Ob. cit., 162.
(24) Ob. cit., 170-171.

101
A Segunda Viagem começa aos 10 de novembro de 1762. Frei João
de São José revela conhecer muitos autores, entre os quais os que escre-
veram sobre o Brasil, como Thévet, Rocha Pita, Berredo, Manuel Rodri-
gues, afora coleções de viagens, e autores outros de variada inspiração lite-
rária e filosófica.
As viagens e visitas são ricas de informação histórica, social e econô-
mica, sobre a introdução do café, sobre o cacau, guaraná, seus preços; a
pesca e caça, os engenhos de açúcar; revela costumes sociais, a escravidão
indígena, os grandes descimentos, abusos dos diretores de índios, o uso
da língua geral, o descobrimento da língua portuguesa, o trabalho femi-
nino, os nomes próprios mais comuns, e lamenta que "a raiz dos vícios no
Brasil é a preguiça para que con<torre muito o clima". A pobreza era
geral, e "uma pouca de farinha com uma banana é jantar de muitos".
Descreve as grandes vilas e suas principais características: "Em Vila Franca
não se fala a lingua portuguesa, mas só a geral, e muito mal"; em Monte
Alegre, a gente é mais civilizada; em Outeiro são vários os vícios domi-
nantes; em Souzel "a gente é pouco menos que bárbara, de vida ociosa e
com ódio aos brancos bem notável". Sua visita era, diz ele, "para tem-
perar vigários e não destemperar diretores".
Há muitas informações sobre os índios em geral, sobre a população
indígena, o índio e sua repugnância ao trabalho. Em geral ele é precon-
ceituoso e discriminatório contra os índios. Estes, diz ele, só trabalham
quando têm consigo um branco zeloso. Defende os descim~ntos e a con-
seqüente escravização indigena. "Não há perigo de cobra, jacaré, arraia
e outros muitos que intimide a moradores do Pará e a índios para se
absterem de meter n'água." Os índios são preguiçosos e em geral todos
os moradores do Amazonas, pois os que não são índios, são mestiços,
sendo poucr,s os brancos. Fala várias vezes da ociosidade e da preguiça:
"Havendo rede, farinha e cachimbo, está o índio e o morador em geral
em termo", e reproduz a trova que é expressão vulgar desta atitude, e
que já foi acentuada por Capistrano de Abreu:
Vida do Pará,
Vida de descanso:
Comer de aremesso,
Dormir de balanço.

Por isso reproduz a sugestão do padre Montenegro que aconselha


que aos índios se dê moderadíssirno trabalho ao principio, porque sendo
eles frouxos, preguiçosos e mal acostumados, se excetuarmos para um remo,
em que são os primeiros do mundo e incansáveis, e se de repente se acham
em trabalhos que não experimentaram, desanimam-se e fogem. O estado
geral da população, dizimada em várias oc~iões pelo sarampo e pelas
bexigas, é da maior pobreza e sofrem de grandes fomes. Lendo suas pá-
ginas sobre os índios tão pobres de compreensão, não será surpresa ver
que ele descobre que os índios são racionais. O tom dominante do livro
é seu profundo antijesuitismo, à matéria nele mais tratada, afora a visão
deformada dos índios em geral e dos costumes da população mestiça.

102
O livro contém matéria variável, um pouco de geografia, de zoologia,
de botânica, de antropologia. Descreve as primeiras ligações entre o Mato
Grosso e o Maranhão, entre Mato Grosso e Minas. Os grandes rios
afluentes do Amazonas merecem um tratamento especial. Revela muita
observação, muita novidade, mas é bem inferior ao do jesuíta João Daniel.

3 . Francisco Xavier Ribeiro Sampaio e o Rio Branco


Francisco Xavier Ribeiro Sampaio (Mirandela 1741 - Lisboa
1813-1814?), filho do capitão Luís Ribeiro de Sampaio e de D. Leonor
da Costa, fez seus estudos na Universidade de Coimbra de 1757 a 1762,
formando-se em leis. Foi nomeado em 1767 juiz de fora e provedor da
Fazenda da capitania do Pará, onde serviu até 1772, quando passou para
Ouvidor da Capitania do Rio Negro, onde serviu também outros seis
anos, com duas viagens de ida e vinda a Portugal, fazendo assim 13 anos
empregados neste serviço. Foi despachado como provedor da Comarca
de Miranda, trabalhando sete anos, e depois Desembargador da Relação
do Porto, onde serviu por cinco anos, renovados por outros cinco anos,
e daí passou a Desembargador da Casa da Suplicação, na qual tomou
posse em 1800; em 1802 foi para a vara dos Agravos, onde ficou até
1809. Na petição em que pede sua aposentadoria (25 > mostra seus servi-
ços e traça sua biografia. Declara que serviu todos estes lugares com zelo,
préstimo e aprovação dos governos reais. Defendeu no Pará e Rio Negro
a fazenda real e utilizou sua inteligência e seus conhecimentos no serviço
público. Tinha, como declara, grandes conhecimentos geográficos e hidro-
gráficos, no que respeita aos Rios Negro e Branco, o que mostrou
escrevendo a história e a situação de ambos. Enumera os serviços em
Miranda, na Relação do Porto, nos Agravos da Casa de Suplicação, com
préstimo, atividade e prontidão, e grande trabalho. Defendeu a restau-
ração do Reino quando da invasão francesa, e seus dois filhos combate-
ram na guerra. Em maio de 1808 foi acometido por uma doença do peito,
retirando-se para os subúrbios de Lisboa, e depois para sua Província de
Trás-os-Montes. Voltou em 1809 e logo lhe sobrevieram os males, que
lhe impediam o trabalho ativo, declarando que sentia a falta de vigor aos
sessenta e sete anos, quarenta e quatro empregados no serviço público e
assim pedindo sua aposentadoria em outubro de 1809.
Como se disse na biografia publicada na Revista do Instituto His-
tórico e Geográfico Brasileiro, ele mostra a lição dos bons livros, dos
clássicos, do latim, estudos regulares e bom critério na elaboração de
suas obras. Em 1779, como ouvidor intendente geral fez parte da junta
governativa de São José do Rio Negro.

(25) Sua biografia foi primeiro encontrada por Vamhagen na Biblioteca do Porto e por
ele oferecida ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; que a publicou na RIHGB, 1845,
t. 7, 404-406; Inocêncio Francisco da Silva, no DBP, 1859, t. Ili, 95-96, escreveu sua bloblbllo-
grafla. Seguimos especialmente suas Petições pedindo aposentadoria, encontradas nos ªDocumentos
Biográficos•, da Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (718-1 e C148-4),
acompanhadas de a:~stado de Francisco de Melo Franco, médico da Câmara, de S. A. Real.

103
-Escreveu o Diário da viagem que em visita e correição das povoações
da capitania de São José do Rio Negro fez o ouvidor e intendente geral
da mesma, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio no ano de 1774 e 1775,
exornado com algumas notícias geográficas e hidrográficas da dita capi-
tania <2 6> e a "Relação que dá noticia do seu descobrimento e dos pro-
gressos dos estabelecimentos que lhes foram posteriores até o ano de
1778" (27>, reproduzida também por Joaquim Nabuco (28),
No Diário <2 0>, trata da flora, fauna, dos índios e seus costumes,
transcreve providências governamentais, descreve vários rios, discute ques-
tões de limites com o Peru, Nova Granada e Guiana. :8 no Apêndice que
Ribeiro Sampaio trata das matérias relativas às obrigações do oficio, das
leis e da instrução para o governo. As observações sobre "os casamentos
dos brancos que tanto persuadiu a lei de 4 de abril de 175 5 ( concedendo
privilégios aos que na América casarem com (ndias naturais do País) têm
sido pela maior parte pouco afortunados; porque em lugar de as índias
tomarem os costumes dos brancos, estes têm adotados os daquelas" <30 >.
Refere-se também aos continuas descimentos, isto é, à transmigração dos
índios dos matos para nossas povoações. Divide a sociedade do Pará e
do Maranhão .em três classes: 1) as pessoas que vieram para esta capitania
e ali ficaram como negociantes; 2) as que vieram na diligência dos limites,
ali ficaram casando-se com índias, as mais bem estabelecidas; e 3) os
soldados, introduzidos na mesma ocasião, casaram-se com índias, e dada
a baixa transformaram-se em moradores. Não houve no Pará, acrescenta,
como em outras capitanias, a introdução de casais. :8 um ensaio de lúcida
argumentação defendendo a posse brasileira do rio e refutando La Con-
damine.
A Relação Geográfica-Histórica do Rio Branco é uma obra mais
elaborada que o Diário. Descreve o Rio Branco, seu território e limites,
sua natureza, clima e temperatura, o descobrimento do Rio Branco, o
seu uso consecutivo até sua época, as tentativas espanholas de estabele-
cimento e invasão efetiva dos espanhóis no território, as negociações de
limites sobre o domínio do rio, faz a apologia do direito de Portugal sobre
o território impugnando as pretensões espanholas, descreve os estabeleci-
(26) Lisboa, 1825, e extrato ln RIHGB, 1839, t. !, 85-95, e Anexos da Primeira Memória
dos Limites entre o Brasil e a Guiana Inglesa, de Joaquim Nabuco, 1903, vol. 2, 1-83, seguido
do Apêndice ao D14rlo, CNHGNU, !856, vol. VI. Existe apógrafo na Biblioteca da Ajuda. Ver
C. A. Ferreira, lnventdrlo, p. 593, n. 0 1.981.
(27) RIHGB, 2.• ed., 1872, t. XIII, 200-273.
(28) Joaquim Nabuco, ob. cll.. 5,58.
(29) Ob. cit., 5-58. A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro possui vArlas cópias do "D14rlo"
(1· 5, I, 59 e J. 31, 19, 26) e da "Relação• (1- 5, !, 63; I· 2, 2, 42; 1- 4, 3, 13; J. 6, 2, 12; J. 32, 18, 2,
n.• 3; 1- 2, 2, 42; I- !, 2, 29; J. !, 2; 1- 2, 2, 41); e também da "Memória sobre o governo do
Rio Negro" (1- 5, 1, 59, n. 0 3), da "Noticia da Ilha Grande de Joanes" (1- 5, !, 59 n.• 2), e da
"Noticia da Ilha Grande de Joanes dos Rios e Igarapés" (1- 2, 2, 41 n.0 10). Havia uma cópia
da "Relação" na Secretaria do lm~rlo, segundo carta de Gonçalves Dias a Varnhaaen, de 10 de
setembro de 1851 (Biblioteca Nacional, Secção de Manuscritos, 1- 5, !, 6). Há um apógrafo na
Biblioteca Pública Municipal do Porto (vide Catdlogo, 1938, pp. 152-154).
(30) As páginas citadas referem-se à reedição de Joaquim N abuco, 88. Nabuco reproduziu
a obra, como já apontamos, e comentou Xavier Ribeiro como historiador tanto no Direito do
Brasil, Primeira Memória, especialmente capitulo Ili, do vol. I da Terceira Memória, sob o
titulo La Constructlon des Mémolres Anglalses, 1904, 159-211, bem como no vol. IV da Terceira
Memória, 1.• capitulo, p. 420.

104
mentos portugueses, os grupos indígenas e seus costumes, levanta a nomen-
clatura de animais, plantas e minerais do território. Conclui, refletindo sobre
as utilidades que podem resultar a Portugal dos estabelecimentos do Rio
Branco. Este último é um capítulo de grande visão política e econômica,
revelando um espírito prático e, como é natural, o caráter colonialista da
sua obra, ao mostrar que a conservação das colônias é indispensável às
metrópoles, e publica um mapa dos indios das povoações do Rio Branco <31 >.
Branco (3t >.
A importância desta Relação (32) se pode bem avaliar pelo uso que
dela fez Joaquim Nabuco ao defender o direito do Brasil na questão de
limites com a Guiana Inglesa, e na crítica da Memória inglesa muito severa
à autoridade de Ribeiro Sampaio, "um historiador completamente inexato
nos fatos como nas deduções", tal a força de sua obra na destruição dos
argumentos ingleses. Joaquim Nabuco, na nota intitulada "Crítica sobre Ri-
beiro Sampaio como historiador" c33 >, replica satisfatoriamente, mostrando
que não há infidelidade nos pequenos erros materiais de tradução ou não
citação correta de seus escritos.

4. José Monteiro de Noronha


José Monteiro de Noronha (Belém 1723 - Belém 1794) foi edu-
cado em humanidades pelos jesuítas que procuraram atraí-lo para a Ordem.
Foi advogado e vereador do Senado da Câmara de Belém, juiz de fora, e
exerceu funções na magistratura no cível, no crime e nos órfãos. Enviuvou e
decidiu entrar na vida eclesiástica, ordenando-se sacerdote. D. Frei Miguel
de Bulhões, terceiro Bispo do Pará (1749-1760), conhecedor de seus es-
tudos e de sua aplicação às letras religiosas, o nomeu para vigário geral do
Rio Negro, que ele recentemente criara. Era uma vasta comarca, e Noro-
nha dedicou-se à catequese indígena, visitando as igrejas de sua jurisdição,
afrontando privações e incômodos nas viagens às povoações mais remotas;
foi seu trabalho que lhe deu a idéia de escrever um "Roteiro" que ensinasse
os caminhos, registrasse as distâncias, descrevesse as povoações e seus
moradores, dando destaque às populações indígenas. Esse "Roteiro" (34),
sua reputação e seu trabalho fizeram com que o quinto Bispo do Pará,
D. Fr. João Evangelista Pereira da Silva (1722-1782) o transferisse para
(li) Id., 90, nota b.
(32) A Relaçllo foi publicada no CNHGNU, Lisboa, 1856, t. VI, e na RIHGB, 1872, 13,
200-273, e no 2. 0 vol. dos Anexos da J.• Memória de Joaquim Nabuco sobre a Questllo com a
Guiana Inglesa. O original encontra-se na Biblioteca Publica Municipal do Porto: vide Magalhães
Bastos, Catálogo dos Manuscritos Ultramarinos da Biblioteca Púb/li:a Municipal do Porto, Lisboa,
1938, Códice 538, pp. 148-152. Há uma cópia na Secretaria do Pará. Cf. Carta de Gonçalves
Dias a Varnhagen, de 10 de setembro de 1851, in Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro, 1- 5, J, 6.
(33) Joaquim Nabuco reproduziu a obra, como Já apontamos, e comentou Xavier Ribeiro
como historiador tanto no Direito do Brasil, Primeira Memória, especialmente capítulo III e no
1 vol. da Terceira Memória, sob o título "La Constructlon des Mémoires Anglalses•, 1904, 159-211,
bem como o vol. IV da 3.• Memória, 1.0 capitulo, p. 420.
(34) "Roteiro da Viagem da cidade do Pará at~ as últimas Povoações dos Domfnlos Por-
tugueses em os rios Amazonas e Negro Ilustrado com algumas noticias que podem Interessar à
i:urlosidade dos navegantes e dar mais claro conhecimento das duas capitanias do Pará e de São
José do Rio Negro•, primeiro publicado por dlJigêncla de Felipe Alberto Patronl Maciel Parente
n.o Jornal de Coimbra, n.• 87, parte J.• 87 e seguintes, e depois na CNHGPU, t. VI, n. I, e
finalmente na RIHGB, 67, parte 1.•, 281-289, sem declaração de autoria.

105
a Vigararia do Parã, para assim tê-lo ao seu lado. Neste exercício pregou
muitos sermões, que o consagraram como orador sacro, mas só um deles
escapou de perda <35 >. Com o falecimento do Bispo D. João Evangelista
(14-5-1782), foi José Monteiro de Noronha eleito Vigãrio Capitular
(21-5-1782) e no ano seguinte (16-4-1783) tomava posse como Arcipreste
( chefe dos presbíteros, logo abaixo do Bispo). Quando D. Fr. Caetano da
Anunciação Brandão foi nomeado sexto Bispo do Pará ( 1782, tendo
tomado posse a 21 de outubro de 1783), conferiu-lhe a função de Vigário
Geral, e quando aquele foi nomeado Arcebispo de Braga, ficou Monteiro
Noronha governando o Bispado (36).
Varnhagen considerou valioso seu "Roteiro" <3 7). Na verdade, quem o
ler verá que seu estudo revela o íntimo conhecimento da navegação, das
povoações, das etnias dos Rios Amazonas, Negro, Xingu, Tapajós. Informa
os vários roteiros, o número de povoações, observa a fisionomia geográfica
e hidrográfica, aponta a abundância indígena, as tribos perigosas, os ventos
gerais que influíam na navegação fluvial, a riqueza em drogas. Retrata as
vilas na época, indica que é pelo Xingu que se desce às minas do Sul, as
cachoeiras, repara no aspecto aprazível dos montes bem configurados e
finaliza com o índice das povoações pertencentes ao bispado do Pará (38).

5. Francisco José de Lacerda e Almeida


Francisco José de Lacerda e Almeida (São Paulo 1753 - Cazembe,
Africa, 1798) foi educado em São Paulo e formou-se em matemática
pela Universidade de Coimbra em 1777. Nomeado astrônomo da terceira
partida dos demarcadores da fronteiras de Mato Grosso (Tratado de
1777), fez Lacerda e Almeida várias explorações e estudos de rios de que
resultaram vários Diários sobre o Rio Negro, Mato Grosso e São Paulo
que o tornaram um dos pioneiros das grandes expedições de caráter cien-
tífico, como escreveu Sérgio Buarque de Hollanda (39).
Um dos mais diligentes astrônomos da comissão, como acentuou
Rodolfo Garcia <40l, seu Diário da Viagem. . . pelas capitanias do Pará,
Rio Negro, Mato Grosso, Cuiabá e São Paulo nos anos de 1780 a 1790< 41 >
é um dos mais lúcidos documentos geográficos do fim do século dezoito.
Toda sua obra é de difícil leitura, seca e árida, objetiva e factual, dirigida
às autoridades políticas e às instituições científicas.
(35) Sermão pregado no dia 24 de Julho de 1787 no Tr/duo, com que o Bispo D. Fr.
Caetano Brandão festejou a abertura do hospital de caridade, s.l., s.d., segundo Inocêncio Fran-
cisco da SIiva, Dlcclonarlo Blbllographlco Portuguez, vol. 13, 145-146, e Sacramento Blake, Dlc-
clonarlo Blblioghaphlco Brazlletro, vol. 5, 100-101, é de sua autoria. Sacramento Blake registra
também a "Marginação dos Estatutos do cabido do Pará dados por seu primeiro bispo D. F.
Bartolomeu do PIiar, encarregado de os fazer pelo Papa D. Clemente XI".
(36) Sua biografia foi escrita por J. da Cunha Barbosa, ln RIHGB, 1840, 2, 259-260, e
leiam-se os resumos Já citados de Inocêncio Francisco da · SIiva e Sacramento Blake.
(37) Varnhagen, História Geral do Brasil, vol. 4, 328 e nota 97.
(38) Com um adendo registra o novo não Incluído no Sum4rlo anterior, e acrescenta uma
lista dos nomes naturais dos lugares e vllas.
(39) Didrlos da Viagem de Francisco fosé de Almeida. Prefácio de Sérgio Buarque de
Hollanda, Instituto Nacional do Livro, 1944.
(40) "Explorações Científicas", DHGB, vol. 1. 873-874.
(41) São Paulo, 1841.

106
Sérgio Buarque de Hollanda escreveu que o valor de sua obra é con-
siderável, levando-se em conta que o "autor percorreu duas estradas fluviais
da maior importância no sistema de comunicações do Brasil setecentista:
a que ligava Belém do Pará às partes centrais do continente, através do
Amazonas e dos rios da bacia amazônica, e famoso caminho das monções."
Seu "Diário de Vila Bela a São Paulo" constitui um depoimento único
para quem pretenda saber o que era a áspera navegação das canoas do
comércio procedentes do Cuiabá (42).
Seus Diários de Viagem de Lisboa a Barcelos, na capitania de São
José do Rio Negro (1780), desta vila ao forte de São José de Marabitanas
( na margem setentrional do Rio Negro, 1781-17 82), de Barcelos a Mato
Grosso (1781-1782), de Vila Bela e Cuiabá (1786), de Vila Bela a São
Paulo (4 3 > contêm excelente informação geográfica e histórica, sendo que
os dois últimos constituem matéria do capítulo sobre a historiografia regio-
nal de São Paulo e Mato Grosso.
Depois destas viagens, Lacerda e Almeida partiu em 1790 para
Santos, e desta cidade para Portugal. Em Lisboa apresentou à Academia
das Ciências, que o admitiu como sócio, o "Diário de Vila Bela a São
Paulo". Residiu alguns anos em Lisboa e não se conformando com a vida
inativa e monótona da cidade propôs a D. Rodrigo de Sousa Coutinho
desempenhar algum lugar no Ultramar e este o incumbiu de empreender
a jornada por terra entre Moçambique e Angola (4 4 > na qual veio a falecer.

6 . Manuel da Gama Lobo d'Almada e o Rio Negro


Pouco se sabe da biografia de Manuel da Gama Lobo d' Almada.
Não consta seu nome nas principais biobibliografias, inclusive na de Ino-
cêncio Francisco da Silva. Artur Gésar Ferreira Reis reuniu os elementos
principais do homem já feito que tanto se distinguiu nas capitanias do Pará
e sobretudo na de São José do Rio Negro <45 >. Em 1769 era comandante
da fortaleza do Gurupá, aliás, da Praça de São José do Macapá e de toda
região circunvizinha, durante o governo de Fernando da Costa de Ataíde
Teive de Sousa Coutinho, governador do Maranhão, Grão-Pará e Rio
Negro (1763-1772). Foi logo encarregado pelo governador do arranja-
mento dos casais de Mazagão, que vinham dedicar-se à agricultura. Foi
depois governar a própria vila de Mazagão, fundada em 1770, onde cam-
peava a desordem entre os novos colonos.
Promovido a sargento-m~r (tenente-coronel), em 1733 regressava a
comandar o forte de Macapá, sentinela avançada contra as incursões es-
trangeiras, sobretudo espanholas. Em conseqüência do Tratado de S. Ilde-
fonso, de 1777, na comissão lusitana demarcatlora no Norte, chefiada por

(42) Sérgio Buarque de Hollanda, Prefácio clt., XVI-XVII.


(43) "Diário da Viagem feita de Vila Bela até a cidade de São Paulo pela ordinária derrota
dos Rios no Ano de 1788", RIHGB, vol. 62, 2.• parte, 35-59. '
(44) Francisco Adolfo de Vamhagen, "Dr. Francisco José de Lacerda e Almeida", RIHGB,
vol. 36, t.• parte, 177-184.
(45) Lobo d'Almada, Manaus, 1940.

107
João Pereira Caldas, governador e capitão-geral da capitania do Grão-Pará
e do Rio Negro (1772-1780) - suposto autor de importante "Roteiro"
de que trataremos mais tarde - Lobo d'Almada prestou como engenheiro-
militar auxiliar de Pereira Caldas grandes serviços na exploração do Rio
Negro, do qual foi um dos maiores conhecedores. Coube-lhe o governo
militar do alto Rio Negro.
Deixou o comando de Macapá e veio dirigir com seu zelo e autori-
dade, a exploração do rio e canais, e embora não contasse com matemáticos
e engenheiros - ele próprio engenheiro militar - contou com bons prá-
ticos. De 1784 a 1786 fez muito, explorando a selva, seguindo rios,
cartografando toda a região, fazendo reconhecimentos, procurando comu-
nicações e passagens, preparando relatórios, descrevendo toda sua área,
descobrindo as comunicações por terra entre o Rio Negro e o Japurá, e
toda a rede potomográfica desses dois rios. Em 1786 regressava a Barcelos
e, nesse mesmo ano, tomava posse, em outubro, do governo da capitania
de São José do Rio Negro, nele permanecendo até 1799, quando faleceu.
Seu governo foi considerado um dos maiores da fase colonial, pelo seu
descortino e empreendimento. Subsistiu Pereira Cardas não só no go-
verno como também na chefia da comissão demarcadora de limites.
Mudou em 1790 a sede do governo de Barcelos para o forte que
fica na entrada do Rio Negro, a chamada Vila da Barra, futura Manaus.
Era sua convicção antiga de que "por todas as razões militares e políticas
e econômicas, considerava utilíssimo de não só passar a Capital da Capi-
tania para junto da foz deste Rio, como igualmente se fortificar tão vanta-
josa e importante passagem". Sua obra de governo é unánimemente
louvada pelos seus contemporâneos e historiadores da Amazônia <46 >, e
sua obra de explorador aparece na "Descrição relativa ao Rio Branco e
seu Território" !47).
A Descrição, como ele próprio resume, pretende fazer primeiro uma
relação do Rio Branco, suas principais vertentes ou cabeceiras, e fontes;
descrever a grande e unida cordilheira de montes, que borda o alto desta
fronteira, tratar das nações estrangeiras confinantes e como estas se comu-
nicam com o domínio português, demonstrando com documentos autên-
ticos as injustas pretensões dos espanhóis ao Rio Branco e o direito que
Portugal tem ao rio e seus confluentes, indicar seus produtos naturais, a
propriedade da sua éultura e do seu comércio, o estado da população na
época, os vários grupos gentios, os meios de trazê-los à civilização, as
fortificações, suas vantagens e defeitos. A importância de suas observa-
ções e anotações, defendendo o direito do Brasil àquela região, foi reco-
nhecida por Joaquim Nabuco, que delas se serviu. Ele quis mostrar "a
radical e pacifica posse em que sempre se coseram estes reais domínios.".
(46) Artur César Ferreira Reis, História do Amazonas, Manaus, 1931, especialmente 133-140;
do mesmo autor, Lobo d'Almada, Manaus, 1940; e Luciano Pereira da Silva, "Estado do Ama-
zonas" ln DHGB, 1922, 2 vols., 5-83.
(47) Há três edições desta Descrição: na RIHGB, 1861, t. 24, 539-616; ln PAN, 1931, t. XIII,
41-85; e em Joaquim Nabuco, Limites entre le Brésil et la Guyenne Anglaise, Annexes au Premter
Mémolre du Brésil, 1, 253 e seguintes. As duas últimas são melhores edições, sobretudo por con-
terem os vários mapas demográficos.

108
Ao lado do valor geográfico de sua descrição, seu sentido histórico está
nos capítulos sobre os produtos naturais, o comércio, a agricultura e a
população indígena do Rio Negro, com suas caracterlsticas principais, nas
diferentes aldeias.
Português, ele serviu, com todo o zelo, à consolidação do domínio
colonial, de Portugal naquela zona. No conjunto de documentos originais
e inéditos reunidos por Artur César Ferreira Reis vê-se como ele se iden-
tificou com os interesses do seu país, que então eram os do futuro Brasil.
A Descrição examina a posse e propriedade daquele território, a integração
daquela imensidade de índios, a humanidade com que sempre ele os tratou
e achava que deviam ser tratados <48 >, a experiência que adquiriu daque-
les sertões. Numa nota realista reconhece: "Tenho para mim que todo
o mal que se lhes fizer nunca os afugentará de todo; eles matarão e nós
mataremos sem outro proveito que dar sangue por sangue" <49 >. Coube-lhe
defender a autonomia da capitania pela sua extensão e rendimentos, por
ser "extensa, rica e fértil".

(48) Vide Documento CX. pp. 218-222 de Lobo d'Atma;Ja de Artur César Ft:rrelra Reis .
(49) Ob . clt. , 230.

109
LIVRO QUARTO
A Historiografia do Bandeirismo
Seiscentista
CAPITULO I

A HISTORIOGRAFIA BANDEIRANTE
1 . Considerações gerais. 2. Relações de entradas. 3. An-
tônio de Araújo (1566-1632). 4. João de Souto Maior. 5. Pa-
dre Miguel do Couto.

1 . Considerações gerais
O bandeirismo foi o maior movimento de penetração no interior,
que só em sua fase final, motivada pela procura de minerais, se estabilizou,
criando vilas, povoando o interior, cultivando o gado. Toda a expansão
geográfica no Brasil fez-se em torno das bandeiras. As entradas são
conseqüências da fase das expedições geográficas e têm, assim, objetivos
de reconhecimento do território e de seus recursos minerais. As bandeiras
não tinham, inicialmente, nenhum fim político de alargamento do terri-
tório. Iam os bandeirantes buscar homens, aonde os achavam e não para
ocupar a terra e povoá-la. Ligam-se umas às outras, numa cadeia una
e indissolúvel, porque reconheciam a terra, e caçavam o índio, indispen-
sável como mão-de-obra, onde o negro ainda não fora importado suficien-
temente, ou procuravam o ouro e os diamantes, sedução que sempre os
impulsionou, desde as primeiras horas. Os caçadores de homens desven-
daram o sul, desandaram pelo oeste, rumaram para o norte, transforma-
ram-se em criadores de gado, devassaram os sertões da Bahia e do Nor-
deste, seguiram para as Minas, fixaram-se, criaram uma sociedade e uma
cultura original. "Partidas de homens empregados em prender e escravizar
o gentio indígena" <1 >, as bandeiras até 1640 mais devastam, depredam e
despovoam que fixam, povoam e incorporam.
O movimento geográfico e econômico ganha consistência política,
alargando a fronteira, que se torna o ponto de encontro entre a selvageria
e a civilização. Só muito mais tarde, com o chamado c~clo do ouro, é
que se vê a possibilidade da construção de uma sociedade nova nas terras
conquistadas. O primeiro objetivo do bandeirante é econômico, caça
indígena e descoberta mineral. Sua tarefa era comt•Jter a natureza e os
que se opunham à escravidão indígena, isto é, os jesuítas. Mais adiante,
quando do seu apogeu, a bandeira será uma forma de sociedade em mo-
vimento, determinada pelas reações entre o sertão e o extremo do povoa-
mento móvel, e, com seu avanço, o fator da mais rápida e efetiva incor-
(1) Caplstrano de Abreu, Capltulos de História Colonial, 4.• ed., preparada por José Ho·
nórlo Rodrigues, Sociedade Capistrano de Abreu, Rio, 1.954, 178. Reproduzida Brasília, 196l; Rio.,
de Janeiro, 1976.

113
poração territorial do Brasil. Ela é, assim, um deslocador de fronteiras, re-
pleto de espírito de aventura, como acentuou Sérgio Buarque de Hollanda,
e comparável, como epopéia, à expansão ultramarina, como observou
Taunay.
A fase da caça ao índio e das lutas com os espanhóis e jesuítas
mereceu o mais severo julgamento de Capistrano de Abreu e Serafim
Leite <2 ). A expansão territorial e a descoberta do ouro e diamantes alte-
raram profundamente a evolução da América do Sul e da Grã-Bretanha,
diz o Prof. Paul Vanorden Shaw (3 ), modificando de alguma forma a vida
total do mundo, pois o bandeirismo é um movimento de significação
histórico-universal. A dispersão muito precoce do povoamento pela
bandeira, sustenta o Prof. Jacques Lambert (4), isolou os bandeirantes e
povoadores, que foram incapazes de manter os contactos necessários à con-
servação da civilização, não podendo senão devastar o território sem va-
lorizá-lo. Uma grande parte do território foi assim ocupada antes de
poder ser explorada. Hoje é necessário reconquistá-la a uma população
meio indígena, meio européia, empobrecida e ignorante. Dessa conse-
qüência atual não são as bandeiras e os paulistas culpados, mas, antes, as
gerações sucessivas, que não souberam manter os elos e os contactos
civilizadores.
A obra paulista de dilatação e incorporação do território colonial é
sem paralelo na história americana. O espantoso crescimento físico da
nação é um resultado do seu esforço, de sua desordenada cobiça, de sua
extraordinária iniciativa. Seus atores são almas incendiadas de iniciativa,
de ambição, de responsabilidade, de paixões, e não só sitiadas pelas neces-
sidades.
Quanto à bibliografia do século XVII, como disse Alice Canabrava,
é ela "extremamente pobre em depoimentos de fonte particular sobre o
bandeirismo. A lacuna é considerável, pois foi durante o século XVII que
se realizou a primeira expansão extratordesilhana sobre os domínios de
Castela. Estamos longe de possuir documentação similar àquela deixada
pelos conquistadores espanhóis, surpreendente pela abundância e pela
minúcia das informações. Nenhum dos grandes sertanistas do seiscentismo
deixou o relato de suas jornadas de penetração" (5 ). As razões desta defi-
ciência, anotada por outros estudiosos <6 l, encontra-as Alice Canabrava no
patrocínio oficial espanhol que exigia completas satisfações e no livre em-
preendimento bandeirante, que não ordena a prestação de contas às autori-
dades metropolitanas ou coloniais. E a história é, como dizia Huizinga,
uma prestação de contas. Era também tão primitiva a comunidade de

(2) Caplstrano de Abreu, ob. cít., 184; Serafim Leite, HCJB, Rio, Instituto Nacional do
Livro, 1945, t. VI, 251.
(3) "Novo Conceito das Bandeiras". O autor obsequiou-nos com uma cópia deste excelente
e original estudo, sem referir-se ao local e data da publicação.
(4) Jacques Lambert, Le Brésil. Structure Sociale et Jnstitutions Politiques, Paris, Collln,
1953; 71/73; trad. bras. Os Dois Brasis, Rio de Janeiro, 1959.
(5) Alice Canabrava, "Bandeiras" in MBEB, Rio de Janeiro, 1949, 493.
(6) Afonso d'E. Taunay, História Geral das Bandeiras Paulistas, São Paulo, 1950, 11 vols.,
192, ou História das Bandeiras Paulistas, São Paulo, 1952, 2 vols.; Magnus Mi:irner, The Political
and Economic Activities of the fesuits in the La Plata Region, Stockholm, 1953, 18.

114
São Paulo que não houve quem quisesse memorizar os seus feitos, ou quem
quisesse guardar os papéis que contavam as proezas paulistas.
:e assim espantoso que a história mais ativa, mais original e efetiva,
mais rica de futuro, mais nacional, seja aquela que menos historiografia
tenha produzido. O esforço, especialmente paulista, indesviável no seu ca-
minho destrutivo e construtivo foi necessário, legitimado historicamente,
mas demorado e silencioso, sem o aparato da luta externa contra invasores.
Deixou de produzir historiografia não porque resultasse da iniciativa pri-
vada, mas, especialmente, porque a primitividade <7 > do produtor, cons-
ciente embora dos efeitos históricos de sua obra, como quando Antônio
Raposo Tavares declara que a região do Guairá (atual Paraná) pertencia
à Coroa portuguesa, não reconhece indispensável à eficácia de sua ação o
registro histórico. Além disso, a obra de mazombos, índios e mestiços, não
seduzia a historiografia oficial, demasiado encantada com os aspectos
externos da defesa de Portugal, na América, contra a Holanda. A historio-
grafia colonial não podia ou não queria exaltar a obra feita contra ordens
expressas da Coroa, por iniciativa de colonos, especialmente quando a
seduzia a magnificência das batalhas holandesas no Brasil.
Deste modo, a iniciativa privada, que não devia prestar contas ao
Governo, não produz a documentação que falta; a primitividade colonial
não faz nascer a consciência da produção historiográfica, ao contrário do
que aconteceu em Pernambuco, mais adiantado culturalmente e entregue
a uma obra mais vistosa e de maior interesse contemporâneo. Não se po-
diam alugar apenas européias caras e reputadas como fez o Conde de Nas-
sau, governador do Brasil Holandês, ao contratar o escritor Gaspar Barleus
para escrever a história do seu governo, ou João Fernandes Vieira, que
pagou ao cronista-mor de Portugal para que escrevesse a revolta que ele
achava ter dirigido contra os holandeses. São Paulo é pobre, é primitivo,
e, naquela época, São Paulo era mais Marta que Maria: servia e traba-
lhava mais que contemplava (vide S. Lucas, 10, 38).
Por isso não há documentação senão oficial, judiciária, como os tes-
tamentos; como não há historiografia, nem a mais rudimentar forma de
crônica. As peças documentais das grandes coleções espanholas, de Pablo
Pastells <8> e de Pedro de Angelis <9 >, não chegam a constituir relatos
historiográficos. A historiografia do bandeirismo reduz-se às expressões
antibandeirantes de Montoya e del Techo.
Se a expansão bandeirante não encontrou cronistas que a descreves-
sem, também o movimento oficial da fundação da Colônia do Sacramento
(20 de janeiro de 1680), primeiro passo para assegurar o Continente do
Rio Grande e defender o comércio marítimo que se fazia nas margens do

(7) Afonso Taunay anota: "daquele ambiente de extrema rudeza ... pouquíssimos documentos
civilizados subsistem das artes, da mais sumária dconografla". A Grande Vida de Fernão Dias
Pais, Rio de Janelro, José Olímpio. 1955, 37.
(8) Historia de la Compaiila de Jesus en la Provlncla dei Paraguay, Madrid, 1912-1923,
4 vols.
(9) A Coleção Pedro de Angelis pertence ao acervo da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro e foi por ela publicada sob a direção de Jaime Cortesão, Manuscr-'tos da Coleção De
.4ngelis, 1951-1969, 7 vols., todos com subtítulos dlrerentes relativos à documentação selecionada.

115
Prata, tem que esperar até 1737 para que Simão Pereira de Sá escreva
sua História Topográfica e Bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio
da Prata <10 >. A mesma pobreza historiográfica se verifica no tocante à
Guerra dos Bárbaros, título genérico com que se denomina a ofensiva de
uma confederação dos índios contra os luso-brasileiros do Nordeste, que
durou 20 anos, e em relação ao ciclo , do ouro, que se concretiza em
1696 (11).

2 . Relações de Entradas
Assim, para esse mundo novo, sem tinta e sem papel, sobram poucos
documentos historiográficos, pois os vários informes, relações e cartas
ânuas de origem espanhola <12 i ficam, como vários outros documentos que
aqui têm sido apontados, numa espécie de área intermediária entre a
simples fonte e a elaboração histórica. Também se incluem nesta classifi-
cação as duas entradas jesuíticas de 1613 e 1656 pelos padres Antônio
de Araújo e João de Souto Maior, o chamado "Roteiro dos Sete Capitães"
e a Descrição do Padre Miguel do Couto.

3. Antônio de Araújo (1566-1632)


N asei do na Ilha de São Miguel, nos Açores, entrou para a Companhia
em 1608 e logo se distinguiu pelos conhecimentos da língua indígena (tu-
pi), de que foi um mestre 0 3>. Não é pela sua obra de evangelizador de
índios e conhecedor do tupi que Antônio de Araújo merece aqui seu re-
gistro. Sabia-se que nas duas primeiras décadas do século dezessete uma
grande bandeira saída de São Paulo andara pelo sertão cerca de 300
léguas e os velhos cronistas do século XVIII como Pedro Taques ou os
historiadores atuais como Alfredo Biis e Afonso Taunay noticiavam o fato;
coube a Serafim Leite encontrar a narração dos feitos de Pero Domingues
e seus vinte e nove companheiros que de São Paulo se encaminharam pelo
sertão ao Pará, realizando um dos mais importantes feitos bandeiran-
tes <14 > antes de fundada Belém em 1616. A narrativa encontrada no Ar-
quivo da Sociedade de Jesus em Roma é assinada por Antônio de Araújo
e foi redigida por volta de 1625. Com o titulo de "Relação dada pelo

(10) A "Informação" de Francisco Ribeiro, por outro lado, é de 1704. Cf. Luís Ferrand
de Almeida, Informação de Francisco Ribeiro sobre a Colônia do Sacramento, Coimbra, 1955.
(li) Caplstrano de Abreu observou a obscuridade que cercava os sertanistas Domingos
Jorge Velho, Matias Cardoso de Almeida, João Amaro Maciel Parente e Manuel Álvares Morais
Navarro, sobre os quais só neste século se encontrou documentação. Vide Cartas de Caplstrano
de Abreu a Lino de Assunção, Lisboa, 1946.
(12) Vide como exemplo alguns documentos da Coleção de Angelis, preparada por Jaime
Cortesão, Biblioteca Nacional, 1951-1954, 3 vols., e AMP, dirigidos por Afonso Taunay, 1.0 e 2.•
tomos.
(13) Blbllografia ln Serafim Leite, HC/B, VIII, 60-62 . As várias edições do Catecismo na
Llngua Braslllca estão descritas por Vale Cabral, Bibliografia, art. cit. ABN, VIII, 1881 , n.••
40-41 e ed. de 1898 ln Serafim Leite, HC/B, VIII, 62.
(14) "Informação da entrada que se pode fazer da Vila de São Paulo ao Grande Pará, que
é o verdadeiro Maranhão, chamado também Rfp das Amazonas , cuja barra está na costa do Mar
de Pernambuco contra as Antilhas 340 léguas;• e da Bahia do Salvador 440", ln Serafim Leite,
Pdglnas da História do Brasil, Brasiliana, São Paulo, 1937, vol. 93, 103-110, precedido e seguido
de notas sob o titulo aeral "Uma grande bandeire paullsta Ignorada" (99-111).

116
mesmo (Pero Domingues) sobre a viagem que de São Paulo fez ao Rio de
S. Francisco, chamado também Pará", publicou Serafim Leite o roteiro
escrito por Antônio de Araújo, na terceira década do século XVII, de
grante interesse histórico e etnográfico <15 l, e especialmente como documen-
to do bandeirismo.

4. João de Souto Maior


O professor e missionário jesuíta João de Souto Maior (1623-1656)
nasceu em Lisboa e entrou para a Companhia em 1637, fazendo excursão
apostólica com o Padre Antônio Vieira <16 l. Em 1652 arribou no Mara-
nhão e como os jesuítas não tinham no Pará residência, pois os colonos
se opuseram, abriram aula de latim e doutrina para os filhos dos brancos,
e Souto Maior para lá foi enviado, assinando "Termo na Câmara de que
não havia de intrometer-se com os escravos dos colonos; nem pretendia a
administração dos índios forros; como missionário contentar-se-ia de ins-
truir a uns e outros nas verdades da Fé" <t 7l. Acompanhado de Gaspar
Fragoso, desembarcou em Belém a 5 de dezembro, data que inicia a obra
missionária no Pará. Participou de duas expedições: a primeira contra os
selvagens nheengaíbas da ilha de Joanes, composto de 11 O portugueses e
todos os índios disponíveis, que se frustrou, com grandes perdas portugue-
sas; e a segunda ao rio Pacajá, de onde, diz João Lúcio de Azevedo, "ha-
via muito chegava a fama de tesouros. O governo de Lisboa, interessando-
se pela tentativa, mandara mineiros de profissão e as ferramentas neces-
sárias" <18 l.
Em seu "Diário de Jornada que fiz ao Pacajá entre o Tocantins e o
Xingu no ano de 1656" (19l, conta Souto Maior: "Aos 11 de fevereiro de
1656 partimos de Belém para o descobrimento do ouro. Pouco depois de
entrarmos pela grande boca do rio, demos em uma baía, que o rio faz den-
tro de si, com muitas ilhas: aqui antigamente em tempo de Francisco
Caldeira (1616-1618), veio Paulo da Rocha com 40 canoas a castigar
uma aldeia, por os índios dela ignorantemente terem lançado por terra
uma cruz e umas armas de Portugal que os nossos ali tinham levantado".
Descreve, então, os massacres que deixaram por muito. espaço o rio tinto,
o próprio rio Pacajá, "um dos mais alegres da América", a construção da
igreja e seus esforços na conversão do gentio e no persuadi-los de que
mudara a ação portuguesa no trato com eles. "A maior escolta que pode
levar um padre da Companhia entre estas nações bárbaras é não levar
consigo nenhum branco: e se o mesmo padre pudera trocar a pele, ainda
fizera mais efeito com sua doutrina." Andou o padre dez meses pelas flores-

(15) Descrição bibliográfica ln Serafim Leite, HCJB, Vlll, 62, e transcrição textual ln
Serafim Leite, Pdginas de História do Brasil, Brasiliana, São Paulo, 1937, vol. 93, 113-116.
(16) Bibliografia ln Serafim Leite, HC/B, ob. cit., IX, 140.
(17) João Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão Pard, 2.• cd., Coimbra, 1930, 37.
(18) João Lúcio de Azevedo, ob. cit. , 84-85 .
(19) RIHGB, 1916, t. LXXVIII, 2.• parte, 163-179. Do originai de ~vora, fez-se nova edição
nos "Descobrimentos do Ouro•, Documentos dos Arquivos Portugueses que importam ao Brasil,
Seção de Intercâmbio Luso-Brasileiro do Serviço de Imprensa , Lisboa, . 1945 , n.0 8, considerada
pelo Padre Seraíim Leite como a mais completa.

117
tas, batizando e convertendo aqueles e os demais índios de outras aldeias,
até que sucumbiu às privações, fadigas e doenças. "Triste jornada foi esta
para mim", escreve, porém mais triste foi o desastroso fim da entrada por-
tuguesa, pois enquanto o padre conseguia antes da morte os frutos da
evangelização, debandaram os portugueses, pondo fim à Viagem do Ouro,
uma das entradas mais audaciosas pelas densas florestas amazônicas <2 º>.
Outro exemplo de entrada é o famoso "Roteiro dos sete capitães",
documento assinado pelo capitão Ayres Maldonado, da cidade do Rio de
Janeiro, aos 21 de fevereiro de 1661. O autor informa como obteve uma
grande sesmaria nas terras compreendidas entre o rio Macaé e o cabo de
São Tomé e descreve a jornada como empreendida para o reconhecimento
da região entre 1631 e 1632, o estabelecimento dos primeiros currais en-
tre 1633 e 1634 e como o despojaram do território. Tudo faz crer que se
trata de uma relação apócrifa e forjada, tais os evidentes anacronismos nela
existentes <21 >.

5 . Padre Miguel do Couto


Padre Miguel do Couto fora enviado por Frei Francisco de Lima <2'.!l,
Bispo de Pernambuco, aos sertões do Piau[, a fundar a freguesia de N.S.
da Vitória. Depois de passar quatro anos em contínuas viagens, visitando
os moradores e suas fazendas, escreve a "Descrição do certão do
Peauhy" <2 3), assinada aos 2 de março de 1697, quando largava o Piauí
em direção ao Rio Grande do Norte, a fundar a Igreja de S. Francisco.
Antes, em missão com Filipe Bourel (24), já atravessara aquele território.
O papel que servia de notícia do distrito da nova freguesia se não é tão
claro como fora necessário é porque "falta termos para explicar-me e não
de ciência dos distritos", pois não havia rio, riacho, fazenda ou parte
nele nomeada que não tivesse visto e andado. Realmente, poucos cronistas
poderiam vangloriar-se de notícia mais rica e minuciosa que esta, descre-
vendo a localização, as 129 fazendas, os 605 moradores, os costumes, os
caminhos e as distâncias dos lugares mais conhecidos e o comércio. O au-
tor relembra que este sertão fora descoberto em 1682 e suas terras per-
tenciam a Domingos Afonso Certão e Leonor Pereira Marinho, "que as
partem de meias" e, afora suas fazendas, " arrendam a quem quiser meter
gado, por 10 réis de foro, cada sítio." Descreve o comércio de trocas de
gado piauiense com panos de algodão, redes e cuias maranhenses, a com-
posição das fazendas, quase todas dirigidas por um só branco, acompa-

(20) O "Testamento do P. João de Souto Maior, antes da Jornada do PacaJá" existe na


Biblioteca de ~vora (cód. CXV/2·11, fls. 326-327) e foi reproduzido por Domingos de Araújo,
"Chronlca da Companhia de Jesus da Missão do Maranhão". Vide Serafim Leite, HC/B, IX, 140,
e J. H. da Cunha Rlvara, Catálogo, 1, 32-34.
(21) Coube a Caplstrano de Abreu suspeitar de sua veracidade e a Vieira Fazenda demons-
trar sua falsidade, em seu estudo " Roteiro de Maldonado", RIHGB, 1909, t. XXI, parte 1, 7-21.
Vide também José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 5.• ed., São Paulo, Brasiliana,
1978, 329-331.
(22) Bispo de Pernambuco de 1696 a 1704. Cf. F. A. de Varnhagen, ob. clt., V, 384.
(23) Publicado ln Ernesto Ennes, As Guerras nos Palmares, São Paulo, Brasiliana, 1938,
vol. 127, doe. 65, 370-389.
(24) Sobre Filipe Bouret (1659-1709), cf. Serafim Leite, HC/B, VIII, 121-122.

118
nhado de um ou mais negros, raras vezes por negras ou índias. Menciona
o único homem branco casado com branca, bem como os casados ou atnan-
cebados, negras e mulatas, raras nos sertões. A história social e econômica
dos sertões do Brasil aparece nesta crônica simples, onde se vê a luta pela
terra, a falta de gente, de mulheres, as guerras indígenas, o sistema das
fazendas: "Vivem estes moradores de arrendamento destas fazendas de
gado; de 4 cabeças que crião lhe toca hfía ao depois de pagos os dízimos;
são obrigados ·quando fazem a partilha a entregarem ao sr. da fazenda tan-
tas cabeças como acharão nela quando entrarão e o mais se parte ao
quarto; comem estes homens só carne de vaca com laticínios e algum mel
que tirão pellos paus; a carne ordinariamente se come assada, porque não
ha panellas em que se coza; bebem agoa de poços, e lagoas, sempre turba,
e muito asalitrada; os ares são muito groços e pouco sadios; desta sorte
vivem estes mizeraveis homens vestindo couros e parecendo tapuyas".
:É esta, talvez, a primeira descrição, rude e bárbara no estilo, da ru-
deza e barbaridade desta época que foi mais tarde, por Capistrano de
Abreu, denominada a "época do couro". Capistrano seguiu na reconstru-
ção da vida dos primeiros ocupadores do sertão relatos posteriores ao au-
tor anônimo do Roteiro do Maranhão a Goiás, e de André João Antonil,
na sua Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas, ambos do
século XVIII. Se o autor se revela naquele trecho descrente dos ares, ao
tratar das plantas e frutos do sítio de Santa Catarina, escreve "que tudo
se dá com grande abundância, mostrando a fertilidade da terra e incúria
dos moradores que por sua preguiça não tem frutos de que vivão". A fer-
tilidade da terra, com as mangabas, jenipapos, araticus e ananases é louvá-
da em outro trecho. O rol do tapuias bravos em guerra com os moradores
registra os· nomes, as moradias e as particularidades guerreiras, o que
lhe dâ enorme interesse etnográfico.

119
CAPITULO II

RELATOS MONÇOEIROS E SERTANISTAS

Escreveu Afonso Taunay que "no conjunto das vias de penetração do


Brasil ignoto e selvagem, nenhuma tem tão longínqua significação quanto
a que ao Tietê tão notável realce empresta. Está o nome do grande rio
de São Paulo, tributário do Paraná, indestrutivelmente ligado à história da
construção territorial do imenso Brasil Ocidental". Taunay afirma com
convicção, rebatendo assim a opinião estabelecida de que a navegação do
Tietê era menos antiga e freqüente do que a do S. Francisco e do Amazo-
nas. O grande tronco das expedições além Paraná foi o Tietê, e se Minas
e Goiás foram devassados por via terrestre, Cuiabá foi descoberto, co-
nhecido e explorado pela via fluvial do Tietê.
A procura dos índios e depois do ouro atrai os paulistas que, com as
bandeiras, apossam-se de grandes regiões interiores, mineram e se enri-
quecem, embora obrigados a dividir os frutos do seu trabalho com os lu-
sitanos recém-chegados. Depois das Minas, de Goiás, é em 1719 que Pas-
coal Moreira Cabral encontra o ouro de Cuiabá, seguindo pela via fluvial
do Tietê. :e uma jornada gigantesca, como já acentuamos, na qual o Tietê
representa papel capital.
Coube a Taunay levantar o monumento de sua História Geral das
'Bandeiras Paulistas <1 > e preparar a edição dos Relatos Monçoeiros <2> e os
Relatos Sertanistas (3l onde se encontram em forma de Relações, algumas
crônicas do bandeirismo. Taunay na erudita introdução estuda vários as-
pectos da historiografia primitiva paulistana, as primeiras navegações flu-
viais para oeste, e aponta a principal bibliografia monçoeira. A mais
antiga é a "Relação verdadeira da derrota e viagem que fez na cidade de
São Paulo para as minas de Cuiabá o Exmo. Sr. Rodrigo César de Mene-
zes, governador e Capitão-general da Capitania de São Paulo e suas Minas,
descobertas no tempo de seu governo e nele mesmo estabelecidas" <·O, na
qual se descrevem sobretudo os vários rios navegados e os riscos, sustos
e medos que embaraçaram a comitiva. Seguem-se as "Notícias Práticas das
Minas de Cuiabá e Goyazes na capitania de São Paulo e Cuiabá, que dá
ao R. P. Diogo Soares o Capitão João Antonio Cabral Camelo sobre a
(1) São Paulo, 1924-1950, li vols. Vide meu estudo "Afonso Taunay e o Revisionismo
Histórico", Separata da RH, São Pauto, 1958, n.• 35; publicado tamb~m na RHA, junho de 1961,
n.0 51 , e o necrológio in HAHR, agosto de 1958, vol. XXXVlll , n.• 3.
(2) Livraria Martins Editora, São Paulo, 1953.
(3) Livraria Martins Editora, São Paulo, 1953.
(4) Relatos Monçoeiros, 101 -105.

120
viagem que fez às minas do Cuiabá no ano de 1727" <5 > redigida, segundo
Taunay, provavelmente em 1734 <6 >. Trata-se de uma viagem às minas
de Cuiabá, seu roteiro, perigos e riscos, descrevendo a navegação do Tietê,
do Rio Grande, do Camapuan, do Coxim, do Taquari, do Paraguai-mirim e
do Paraguai-assu, do Porrudos e do Cuiabá. Ao lado das informações sobre
o curso do rio e suas dificuldades se anotam as peculiaridades dos gentios e
se descreve a própria vila de Cuiabá e suas conveniências. A "Relação da
viagem que fez o Conde de Azambuja, Dom Antonio Rolim de Moura,
da cidade de São Paulo para a vila de Cuiabá em 1751" <7 > é dirigida ao
seu primo e começa de forma muitQ interessante: "Quanta terra e quanta
água tenho passado, depois que vos escrevi! Rios tão caudalosos, matos
tão espessos, e campos tão distantes, que fazem a admiração, principalmen-
te a quem vem de uma terra tão apertada, como o nosso Reino". Não é
uma relação geográfica descritiva de todos os pontos principais do cami-
nho, mas contém informações sobre caça e indios que não são comuns
nestes documentos historiográficos.
O "Diário da Navegação do rio Tietê, Rio Grande Paraná e rio Egua-
temi, escrito pelo Sargento-mor Theotonio José Zuzarte" <8 > é um dos
documentos mais curiosos e ricos de informação geral geográfica, etnográ-
fica e zoológica que se conhece. A navegação de setecentos e tantos ho-
.mens, mulheres, rapazes, crianças de todas as idades, acompanhados de
criações e animais para a produção e estabelecimento futuro no rio Igua-
temi, com a- gente da mareação e a equipagem das embarcações, trinta sol-
dados, formando cerca de oitocentas pessoas ao todo, foi feita em trinta
e seis embarcações, na verdade, canoas. No "Diário" registra-se como se
navegavam os rios, como se vivia, se dormia, se alimentava uma população
desta extensão, numa verdadeira migração cujos efeitos a tomam histórica.
Começa aos dez de abril de 1769 e termina em janeiro de 1771. Navega-
ram o Tietê, passaram para o Paraná e entraram no lguatemi até chegarem
à praça em que se localizava a fortificação, onde encontraram uma guar-
nição nua, morta de fome, e sem comunicação para parte alguma, pois a
mais próxima capital ficava a mais de duzentas léguas, e era dependente
do Rio de Janeiro. Sofreram ataques de bichos, de indios e grandes fomes,
a tal ponto que em fevereiro de 1770 eram somente quarenta sãs, morren-
do todo dia muita gente; em maio do mesmo ano eram só onze pessoas
sãs. Lá ficaram os que sobraram até a guerra de 1777 quando os espa-
nhóis entraram na Praça, tomaram o que sobrava de munições e apetre-
chos, conduziram os que quiseram e o mais povo fugiu, dando assim fim
ao estabelecimento de lguatemi.
O "Diário da viagem que fez o brigadeiro José Custódio de Sá e
Faria da cidade de São Paulo à praça de Nossa Senhora dos Prazeres do
(5) RIHGB, IV, 487-500, e Relatos Monçoelros, 114-123.
(6) Relatos Monçoelros, 19.
(7) RIHGB, 1845, 7, 469-497. Publicada de uma cópia enviada de Lisboa por P. A. de
Vamhagen, e ln Relatos Monçoelros, 182-202.
(8) AMP, t. 1, parte II, 41-118, e Relatos Monçoelros, 217-273. O original pertence ao
Museu Paulista.

121
Rio Iguatemi, 1774-1775" (9 l tem também grande riqueza de informação,
utiUssima ao historiador. O brigadeiro José Custódio de Sá e Faria (lOJ ser-
viu na demarcação de fronteiras e foi governador do Rio Grande do Sul
(17 64-17 68) ainda como coronel. :É o autor do plano e desenhos para a
igreja da Cruz dos Militares no Rio de Janeiro (Rua l.º de Março) e de
vários Diários, Plantas topográficas e de fortalezas, Cartas, projetos de
fortes, Viagens (11 l, e sobretudo da "Continuação do Diário da Primeira
Parte de Demarcação. Demarcação do Rio lbicui feita desde a confluência
dos dois braços questionados até a sua boca do Rio Uruguay'' 0 2 l, do
"Diário da Terceira Partida de Demarcação da América Meridional" 0 3l,
do "Diário e Planos do Caminho que da cidade de Assumpção do Paraguay,
se dirige até o passo do R.º Iguatemy" 0 4i, da "Viagem das terceiras par-
tidas desde a cidade de Assumpção do Paraguay até o Salto Grande do
Paraná, 17 54" (15 l, em colaboração com outros demarcadores.
Seu importante papel na demarcação de limites promovida pelo Tra-
tado de 1777 (16 l permitiu-lhe, como engenheiro militar, preparar valiosa
documentação utiUssima à história das questões de limites, bem como a
geografia histórica das regiões demarcadas. O coronel José Custódio, quan-
do governador do Rio Grande, foi um dos autores e responsáveis pela re-
conquista da capitania assaltada e dominada pelos espanhóis. Seu ofício
ao Vice-Rei D. Antônio Rolim de Moura Tavares (1767-1769), Conde de
Azambuja, retrata com realismo a situação difícil da província que ele
conhecia havia dezessete anos. O Vice-Rei Conde da Cunha (1763-1767),
ao enviá-lo a governar a capitania, dissera-lhe "que entre as importantes
dependências, que naquele tempo se moviam no Estado do Brasil, eram
as de maior dificuldade as do Rio Grande, e que estas só as fiava da minha
conduta, ordenando-me que fosse a primeira fase do meu governo a dili-
gência que devia fazer, por fazer felizes e abundantes estes aflitos povos,
que tantas misérias haviam padecido por causa da guerra, e pelos descui-
dos de quem os havia governado" 07).
O "Diário da Viagem de São Paulo ao rio Iguatemi" não é um sim-
ples documento geográfico, escrito por um engenheiro militar interessado
apenas nos aspectos técnicos. :É também uma relação social, econômica,
política e estratégica. Nas ordens que junto se transcrevem do Rei ao go-
vernador de São Paulo, D. Lufs Antônio de Sousa Botelho e Mourão
(Morgado de Mateus, 1765-1775), se escreve: "em primeiro lugar, que
S.M. estima muito mais a perda de uma só légua na parte meridional da
América Portuguesa, que cinqüenta léguas de sertão descobertas no in-

(9) RIHGB, 1876, t. 39, 217-29!. Publicado também em separata, Rio de Janeiro, 1877.
(10) Brasil, s.l. e s/a; depois s.1., 1779.
(li) Bibliografia extensa ln CEHB, 1881, vários números.
(12) CEHB, n. 0 10.429.
(13) CEHB, n. 0 10.432.
(14) CEHB, n. 0 10.433.
(15) CEHB, n. 0 10.434.
(16) "Documentos sobre a demarcação de limites, ln Meto Moraes, Corographla Hlst6rlca,
Chronographica, Genealógica, Nobiliárla, e Polltlca do Império do Brasil, Rio de Janeiro, 1858-
1860, IV, 464.
(17) Ofício ao Conde de Azambuja, de 10 de Janeiro de 1768, RIHGB, XXXI, 280-291.

122
terior desta capitania", e "em segundo lugar, que ainda que os ditos des-
cobrimentos do sertão fossem de inestimável valor, a todo o tempo se po-
diam e podem prosseguir, e que a parte meridional da América Portuguesa
uma vez perdida nunca mais se poderá recuperar", e, por último, não di-
vertir nada que não seja para conservação do lguatemi, para defesa, pre-
servação e segurança do Viamão e Rio Grande de São Pedro. Como se
vê, a fronteira sul sobrepujava qualquer outro interesse estratégico e re-
velava o desapreço que pela bandeira, na conquista do sertão, tinha o
governo real (18).
Para se fazer uma idéia precisa das distâncias, das dificuldades, do
modo de vencê-las, das praças necessárias, do número de canoas, do ar-
mamento, das munições, dos petrechos, do tempo próprio de viajar, deve~
se ler o "Plano para uma expedição a Y guatemy" escrito por Cândido
Xavier de Almeida e Sousa, dirigido ao Vice-Rei D. Luís de Vasconcelos
e Sousa (1778-1789) (19).
As extensas viagens fluviais, que superavam grandes obstáculos, atra-
vessavam milhares de quilômetros, terras habitadas por gentio hostil e beli-
coso, não foram a via predileta do movimento expansionista, c~mo obser-
vou primeiramente Alfredo Ellis Junior e acentuou Sérgio Buarque de Hol-
landa. A via predileta foi, a princípio, a terrestre c2o>.
Nos Relatos Monçoeiros reuniu Taunay os descritivos da penetração
e conquista pela via fluvial, desde 1726 até 1785, assim como nos Relatos
Sertanistas ajuntou outras Notícias Práticas de viagens a Cuiabá, Goiás,
Curitiba, Belém e à Colônia do Sacramento, descontando os relativos a
Minas Gerais, que serão examinados na historiografia regional mineira.

(18) Ob. clt., RIHGB, t. 39, p. 286. Palácio da Ajuda, 22 de abril de 1774.
(19) DIHCSP, São Paulo, 1915, vol. 44, 268-276.
(20) O Bandeirismo Paulista e o Recuo do Meridiano, de Alfredo Ellls Junior, 2.• ed., São
Paulo, 1924; Brasiliana, 1934, p. 44; e Monções de Sérgio Buarque de Hollanda, Rio de Janeiro,
1945, p. 22.

123
CAPITULO III

A CONQUISTA ESPIRITUAL
1. Antonio Ruiz de Montoya. 2. Nicolas dei Techo.

1 . Antonio Ruiz de Montoya

Ruiz de Montoya, nascido em Lima, entrou para a Companhia em


1605, dedicou-se à missão no Paraguai, estudando a lingua e os costumes
guaranis <t> e convertendo numerosos indígenas. Foi um dos maiores co-
nhecedores da língua guarani, publicando vários trabalhos como a Arte,
y Bocabulario de la lengua Guarani, O Tesouro de la lengua Guarani e o
Catecismo <2 >.
A obra de maior interesse para este capítulo é a Conquista Espiri-
tual <3 >. O censor do livro, o prelado do Rio de Janeiro ( 1653), Dr.
Lourenço de Mendonça <4 >, diz·que nele se vê o muito que obraram os
religiosos na domesticação, redução e conversão dos gentios daquelas pro-
víncias. Ruiz de Montoya, que foi o superior de Guairá e muito se distin-
guiu nas lutas contra os paulistas, as quais narra com muita paixão, começa
sua obra descrevendo o Paraguai e sua fauna, a entrada da Companhia,
fundação da província do Paraguai e entrada no Guairá, sua missão, os ritos
dos índios, seus costumes e hábitos, lendas, a invasão dos bandeirantes
(XXXV-XXXIX) e as várias reduções. Mistura o real e o milagroso e
muitas vezes suas informações são valiosas, mas vagas, ou omissas, quando
necessárias, como quando brevemente conta a primeira entrada de jesuí-
tas no Paraguai, feita por padres portugueses, tendo à frente o Padre Ma-
noel Ortega (5).

(1) Cf. Sánchez Alonso, Historia de ia Historiografia, li, 392. Sua biografia ln Francisco
Jarque, Ruiz de Montoya en /ndias (1608-1652) ts. XVI -XIX da Colecclon de Llbros raros o
curiosos que tratan de América, Madrid, 1900, 4 vols., e especialmente do mesmo autor, /nslgnes
Mlsioneros de la Compaííia de fesus en . . el Paraguay, Pamplona. 1687.
(2) Vide descrição bibliográíica destas peças ln Alfredo do Vale Cabral, "Bibliografia das
Obras Tanto Impressas como Manuscrlptas relativas à Llngua Tupi ou Guarani também chamada
Llngua Geral do Brasil", ABN, 1881 , VIll, n.<>s 11. 12. 13, 23, 24, 25, 26, 27 , 28, 42 e 43. A
Biblioteca Nacional publicou no vol. VII (1879) o Vocabulário das palavras guaranis usadas pelo
tradutor da "Conquista Espiritual" do padre A. Ruiz de Montoya (não registrado por Vale
Cabral) e no vol. VI (1879) o "Manuscrlpto guarani da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
sobre a primitiva catequese dos índios das Missões. . • que trata da •catequese dos índios das
Missões", e foi composto em castelhano, vertido para o guarani e dai para o português por
Batista Caetano.
(3) Hecha por los Religiosos de la Compaíila de Iesus, em . . . las Provlncias dei Paraguay,
Paranil, Uruguay, y Tape, Madrl, 1639.
(4) Vide "Lourenço de Mendonça", presbítero de S. Pedro, RIHGB, XXI, 123 e II, 183.
(5) Serafim Leite estranha a falta de relevo dada a esses primeiros missionários, Lisboa,
1938, I, 354/55, nota 3. A Interpretação de Jaime Cortesão é multo conjetural. Vide prefácio, vol.
1, da Coleção de Angelis, p. 64, Serafim Leite, HC/8, VI, 251.

124
Fui somente em 1612 que Ruiz de Montoya chegou ao Guairá, do qual
se tornou superior em 1620, tendo enfrentado os ataques paulistas com
inusitada valentia e os descrito com apaixonado rancor, como caçadores
de homens, escravagistas e portugueses, mas não puramente por antilusi-
tanismo. Em 1638 foi à Europa, buscando proteção contra os assaltos em
Roma e depois em Madri e escrevendo a Conquista para explicar os fa-
tos (6l. Conseguiu licença para que os índios usassem armas de fogo en-
frentando os paulistas. Como figura principal das reduções jesuíticas do
Guairá, Montoya foi, com o Padre Techo, o cronista da expansão bandei-
rante no sul (7 l. Sua obra, como já dissemos, é vaga na cronologia e to-
pografia, e sua linguagem sofre da falta de intimidade com o castelhano,
mas é de "inegável valor histórico como depoimento escrito por testemu-
nha ocular do desenvolvimento das reduções do Guairá, desde sua funda-
ção até sua ruína" (8 l. A obra de Montoya, excelente na descrição geográ-
fica e etnográfica e na exposição histórica do lado espanhol e indígena, pe-
ca pela parcialidade com que julga os paulistas "molequeros" e na intole-
rância com que, acusando-os de judeus e hereges, aponta-os ao julgamento
pelo Santo Ofício (9 l.

2. Nicolas dei Techo


O missionário belga Nicolas dei Techo (du Toit) (1611-1685) (10)
chegou ao Paraguai em 1640 e sua obra, publicada em latim em
1673 (11 l, se inicia com breve not{cia da América no conjunto e uma re-
senha dos esforços colonizadores, a partir da primeira tentativa portugue-
sa. Inspira-se em Montoya para a primeira fase; descreve a província de
Guairá e a invasão paulista, trata da fundação das aldeias de Itatim, dos
ataques bandeirantes e dos assaltos ao Tapes. O autor se excede em des-
crições lendárias e miraculosas e, como disse o padre Furlong, mais se in-
teressa pelos homens que pelos fatos "y desgraciadamente consignó un
exceso de noticias intrascendentes sobre los mismos". Nicolas dei Techo
elogia a obra da Companhia de Jesus da assistência espanhola sem espírito
crítico e peca pela demasia dos detalhes, que não se ligam sistematica-
mente. Não gradua, assim, a extensão dada aos pormenores e pela sua
prolixidade perde em consistência e vigor (12 >.

(6) Serafim Leite, HCJB, VI, 250. A "Cópia de um memorial" (doe. LX da Coleção P. de
Angells) mostra que, afora a Conquista, Rulz de Montoya apresentou este "Memorial".
(7) Vide documentos citados do vol. I da Coleção P. de Angelis (XL, LIX, LX).
(8) B. Sánchez Alonso, Historia de la Historiografia, li, 392.
(9) Vide Jaime Cortesão, "Da Veracidade no Padre Montoya", A Manhã, Rio, 25 de abril
de 1948. Vide sobre Montoya, Afonso d'E. Taunay, História Geral das Bandeiras Paulistas, 1924,
t. 1, 327-335.
(10) Pierre Delattre e Edmond Lamalle, "Jesultes Vallons, flamands, français, mlsslonalres
au Paraguay, 1607-1767", Archlvum Historlcum Socletatls lesu, Roma, 1947, vol. 16; Gulllermo
Furlong Cardlff, "Nicolas dei Techo, autor de la prlmera Historia Jesuítica dei Paraguay, 1611·
1685", Estudios de la Academia Llterarla dei Plata, Buenos Aires, 1950, vol. 83.
(11) Historia provlnclae Paragualae Socletalls Jesus, Leodle (Llege), 1673, trad. esp. de
Manuel Serrano y Sanz, com prólogo de B. Garay, História de la Provlncla dei Paraguay de la
Compaiíia de Jesus, Madrid, 1897. Existe tradução abreviada Inglesa, na Coleção Churchlll A
Collectlon of Voyages and Traveis, Londres. 1704, vol. IV.
(12) B. Sánchez Alonso, Historia de la Historiografia, II, 392-394 .

125
LIVRO QUINTO
A Historiografia Regional
CAPITULO I

A HISTORIOGRAFIA PAULISTA

1. História e Nobiliarquia de Pedro Taques. 2. Gaspar


da Madre de Deus. 3. Marcelino Cleto Pereira. 4. Manuel
Cardoso de Abreu. 5. José Arouche de Toledo Rendon.
6. Roque Luís de Macedo Paes Leme e Melo e Castro. 7.
Francisco de Oliveira Barbosa.

1. História e Nobiliarquia de Pedro Taques

1 . 1 . Pedro Taques. Sua vida


Pedro Taques de Almeida Paes Leme (São Paulo, s.d.m. 1714 - São
Paulo 3-3-1777) é uma das maiores figuras do século dezoito pela novida-
de que sua obra traz à historiografia brasileira. Foi o segundo filho de
Bartolomeu Paes de Abreu (167 4-1738) e Leonor de Siqueira Paes. Foi
educado pelos jesuítas no colégio de São Paulo. Aos 24 anos incompletos,
antes de falecido o pai, em 1737, obtinha a patente de sargento-mor do
Regimento de auxiliares das Minas de Parapanema e Apiaí, tomando posse
em Santos. Passando para Goiás na busca de melhoria econômica, já que
o pai deixara a família cheia de dívidas, foi encarregado pelo governador
capitão-general D. Marcos de Noronha, Conde dos Arcos (1749-1755),
de criar a intendência para a cobrança da real capitação nos arraiais de
Pilar, Crixás, Guarinos e Papuari em 1750, lugar que serviu com proveito,
aumentando o rendimento da fazenda real. Serviu também nesses lugares
como provedor de defuntos e ausentes, sendo-lhe revalidadas as comissões
até 1754, quando decidiu voltar a São Paulo. Ele se casara em 1745 com
Maria Eufrásia de Castro Lomba e deste casamento teve seis filhos entre
1747 e 1755.
Desde cedo revelara sua vocação para os estudos históricos e genealó-
gicos e em 1742, escrevera o primeiro trabalho sobre o título genealógico
dos Buenos de Ribeira. Quando voltou para São Paulo já vinha com a
intenção de reencetar seus estudos, como de viajar ao Reino à busca de
fontes nos arquivos portugueses. Já nessa época possuía a reputação de
conhecedor da história e genealogia paulista, tanto que o prelado da Basí-
lica Patriarcal de Lisboa, D. João de Faro, querendo defender os direitos
do sobrinho do Conde de Vimieiro, descendente de Martim Afonso de
Sousa, à capitania de São Vicente, a ele recorreu para justificá-los. Em-
barcado na frota que saiu do Rio em meados de 1755, Pedro Taques iria
estudar não somente a questão da posse da capitania, na disputa Monsan-

129
to-Vimieiro, ou Marquês de Cascais e a Condessa de Vimieiro, mas também
tentar imprimir o que já escrevera da sua "Nobiliarchia Paulistana" e con-
tinuar suas pesquisas para conclusão da mesma. Mal chegado, deu-se o
-terremoto de 1.0 de novembro de 1755, e Pedro Taques perdeu vários
documentos copiados dos arquivos de cartórios de São Paulo, como os
originais dq que escrevera da "Nobiliarchia". Oito meses permaneceu em
Lisbôa, durante os quais tentou refazer seu trabalho.
Aí conheceu Antônio Caetano de Sousa, o grande genealogista, e
Diogo Barbosa Machado, o grande bibliógrafo, ambos utilíssimos aos seus
estudos, e que devem ter facilitado suas pesquisas na Torre do Tombo e
no Conselho Ultramarino. Com suas boas relações conseguiu Pedro Ta-
ques a nomeação para o cargo de tesoureiro da Bula da Cruzada, cujo
objetivo era coletar dinheiro destinado a promover a defesa dos lugares
santos, ameaçados pelos infiéis, propagar o Evangelho nas novas conquis-
tas, e resgatar cristãos cativos. O Tribunal arrecadava o produto da venda
das bulas, cuja aquisição permitia aos fiéis certos privilégios, tais como a
dispensa de alguns jejuns obrigatórios, muito rigorosos naquele tempo, a
permissão de comer carne em dias de preceito, e outros favores semelhan-
tes, como precedência em cerimônias públicas e a isenção de convocação
militar. No Brasil havia tesoureiros-mor nas sedes das capitanias, e te-
soureiros-menores em todas as localidades (l). Pedro Taques foi nomeado
tesoureiro-mor nas capitanias de São Pauló, Goiás e Mato Grosso. Como
escreveu Rodolfo Garcia, não era emprego fácil de se adquirir e exercer;
Pedro Taques teve que oferecer dois fiadores e de hipotecar todos os seus
bens (2 >.
Sua mulher falecera a 20 de agosto de 1757, deixando-o com três
filhos e duas filhas, dos quais o mais velho tinha dez anos. Pedro Taques
casou-se pela segunda vez em 1.0 de maio de 1761, união que durou pou-
co, pois sua esposa, Ana Felizarda Xavier da Silva, faleceu do primeiro
parto.
A estada em Portugal se lhe causara o grande prejuízo de perder
documentos, papéis e livros, permitira-lhe desenvolver suas pesquisas nos
meses seguintes ao terremoto e lhe incentivara o pendor pelos estudos
nobiliárquicos e genealógicos. Desde então ele passa a ser um defensor
da aristocratização das minorias dirigentes paulistas e brasileiras, a exigir e
buscar a clareza da ascendência. Seus preconceitos aristocráticos acen-
tuam-se e ele recrimina a miscigenação, defende a limpeza de sangue de
toda a mácula judia, moura, negra ou índia. Desde então é com orgulho
que exalta as justificações de nobreza, e condena inflexivel, cheio de

(1) Sobre o Tribunal da Bula da Cruzada, vide Rodolfo Garcia, Ensaio sobre a Hlst6rla
Polltlca e Administrativa do Brasil (1500·1800), Rio de Janeiro, 1950, 233-234.
(2) Estamos seguindo a biografia magistral escrita por Afonso d'E. Taunay, Pedro Taques e
seu tempo. Estudo de uma personalidade e de uma época. São Paulo, 1923. Prêmio de Erudição
da Academia Brasileira de Letras de 1924. As biografias do mesmo: "Pedro Taques de Almeida
Paes Leme•, RIHGB, Congresso de História Nacional, 1914, t. esp., parte V, 1917, 813-843;
RIHGB, t. esp. Nobillarchia Paulistana, Hist6rica e Geneal6glca, vol. I, 1926, 9-87; e o escorço
biográfico do Autor da Hist6rla da Capitania de São Vicente, 5-58, são incompletas em relação ao
estudo de 1923, que é um grande e completo desenvolvimento do de 1917 e que nos serve de base.

130
preconceitos, as misturas raciais julgadas inferiores. Ele anima parentes e
amigos a requerer justificações de "nobilitate probanda" e se toma, com
outros, como Jaboatão e Borges da Fonseca, o defensor da linhagem da
pequena nobreza portuguesa que constituiu os troncos de famílias já com
duzentos anos no país.
Para Taunay ele era, com Frei Gaspar, a pessoa mais culta de São
Paulo, sendo consultado pelo próprio governador Luís Antônio de Sousa
Botelho e Mourão (o Morgado de Mateus) sobre questões de limites entre
São Paulo e Minas. Em 1765, como procurador das câmaras de São Paulo
e das vilas de Pindamonhangaba e Cananéia, tomou parte da junta, presi-
dida pelo Govemad9r, que expôs ao Rei a situação miserável de São Paulo.
Ele esperava muito do seu novo encargo, com sua vida assentada
em bases sólidas, e a posse de avultados bens que lhe permitissem viver
com largueza.
Taunay mostra como nessa época prosperou sua situação financeira
e de sua família, somada ao prestígio social de que gozava.
Sua paixão pela genealogia e história nunca o abandonou nas horas
boas, nem nas infelizes. Continuava a coligir os documentos para sua obra
e seus informantes eram os tesoureiros-menores espalhados pelos vários
arraiais e localidades. Os cobradores das vilas das três capitanias manda-
vam-lhe informações para suas exaustivas pesquisas na elaboração da "No-
biliarchia". Foi nesse período que deu maior desenvolvimento aos títulos
do livro. Taunay conseguiu reconstituir os titulas elaborados em diferentes
anos: em 1766 preparou os Taques Pompeos e os Laras; em 1767, os Le-
mes, Campos, Chassins, Bicudos, Carneiros, Mendonças e Toledos Pizas;
em 1768 os Buenos de Ribeira; em 1769 os Prados, Rendons, Alvarengas
Monteiros, Penteados, Pires e Godoy. Esse ano foi grandemente produtivo,
apesar de estar em precárias condições de saúde, sendo que Taunay acre-
dita terem sido feitos nessa época os setent, e quatro títulos perdidos.
Entre 1770 e 1772 escreveu os titulas sobçé os Costas Cabrais, Gaias,
Pedrosos, Vazes e Barros.
Para Taunay, foi devido ao emprego dos tesoureiros e dos auxilia-
res, que Pedro Taques pôde avultar a "Nobiliarchia", e 1760-70 foi a
década fecunda de sua atividade.
Desde 1767 começaram as dificuldades financeiras de Pedro Taques,
acusado de desfalcar o Tesouro Real de vultosa quantia. Suspenso de suas
funções, agravou-se sua situação pela má gerência financeira da tesouraria
da Bula, sendo, afinal, em 1769, determinado o seqüestro de seus bens.
Apesar da doença e do seqüestro de bens, casou-se em 1769 pela terceira
vez com Inácia Maria da Anunciação e Silva, mais jovem que ele quase 40
anos, pois ela tinha 19 anos e ele 55.
Sua fama de estudioso e profundo conhecedor da história de São
Paulo era reconhecida em São Paulo, no Rio, em Minas e em Lisboa.
Para ele, se lhe seqüestraram os bens não fora por dissipar dinheiro à
sua guarda confiado, mas sim pela perseguição do arcediago Mateus Lou-

131
renço de Carvalho e seus inimigos. Sua falência, dizia, era falsa e seus
tesoureiros-menores o haviam lesado.
Sua situação e a da sua família tornou-se angustiosa, e nem assim, cheio
de dividas, Pedro Taques abandonou suas pesquisas e seus estudos. Já
sabemos, segundo Taunay, que em 1770 compunha os títulos dos Gaias,
dos Pedrosos, dos Vazes e Barros, em 1771 os Costa Cabrais e em 1772
os Chassins. Trabalhando sob penosas condições era natural que a obra
apresentasse senões.
O avanço da paralisia, a impossibilidade de sentar, as grandes dores
que sofria, impediam-no de escrever. Desde 1770 ele dita todos os seus
escritos. Desejava voltar a Portugal, na esperança de recuperar a saúde ou
minorar seus sofrimentos, realizar novas pesquisas e refazer sua situação
financeira. Partiu e chegou a Lisboa nesse mesmo ano, levando a "Nobiliar-
chia" que seu parente, o Desembargador João Pereira Ramos, pedira para
ver e ler. O desembargador era também guarda-mor da Torre do Tombo.
Procurou liquidar a questão com o Tribunal da Bula, dirigindo ao Marquês
de Pombal uma exposição recapitulando a história e lembrando os serviços
de seu pai e os seus. Taques era tão respeitado como conhecedor da his-
tória paulista, que o próprio Pombal o consultou várias vezes durante sua
permanência em Lisboa. Aproveitou seu tempo preenchendo lacunas e
tomando notas para o acerto e a terminação de sua obra capital, a "No-
biliarchia". Em agosto de 1776 - ele partira em 28 de junho de 1774 -
voltava, sem melhora na saúde, com a promessa de que Pombal resolveria
seu caso concedendo-lhe quinze mil cruzados, e com várias notas de suas
pesquisas históricas. Os originais da "Nobiliarchia" deixou-os em Portu-
gal nas mãos do desembargador João Pereira Ramos, e foi dela que Diogo
Ordonhes copiou o manuscrito que viria servir para a edição do livro quase
um século depois, editado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
As cópias da obra haviam-se multiplicado, pois eram vários os interessa-
dos em sua leitura. Em princípios de 1777 sentiu Pedro Taques que seus
dias estavam contados e fez seu testamento <3>, vindo a falecer em São
Paulo, aos 3 de março de 1777.
1 . 2. Pedro Taques e suas obras
Pedro Taques se distingue como historiador regional ( ou de capita-
nia), como nobiliarquista e genealogista, e sobretudo por ser dos primeiros
que investigou nos arquivos públicos e de cartórios, dando à história ca-
ráter mais documental e fidedigno.
Escreveu a História da Capitania de São Vicente (4 >, obra feita de
encomenda pela famOia do Conde de Vimieiro defendendo seus direitos
à posse da Capitania, disputada pelo Conde de Monsanto. Foi terminada
a 3 de janeiro de 1772, quando o cronista sofria todos os incômodos da
doença que o paralisava.

(3) Afonso d'E. Taunay, "Documentos Intdltos sobre Pedro Taques•, RIHGB, 1915, XX,
747°790.
(4) Primeiro editada na RIHGB, 1847, IX, 137-178, 293-328, e 44S-476, foi depois publicada
com escorço biográfico por Afonso d'E. Taunay, São Paulo, Melhoramentos, s.d.

132
O manuscrito foi oferecido ao Instituto pelo Visconde de Uruguay,
Paulino José Soares de Sousa, que o encontrara no Arquivo do Ministério
dos Estrangeiros <5 >.
Escreveu também a "Informação sobre as Minas de São Paulo e dos
sertões da sua capitania desde 1597 até 1772" <6 >, da qual existem dois
exemplares, o do Instituto Histórico, que serviu para sua edição, e o da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, que parece ser cópia (7).
A "Notícia Histórica da expulsão dos jesuítas do Colégio de São
Paulo em 1640" <8 >, escrita em 1768, foi oferecida ao Instituto por Manuel
de Araújo Porto Alegre, que a copiara do original existente na biblioteca
do Convento de São Francisco do Rio de Janeiro <9 >.
A "Nobiliarchia Paulistana" foi obra de cinqüenta anos da vida de
Pedro Taques. Da "Nobiliarchia" só foram publicados vinte e quatro tí-
tulos, embora se refira a setenta e três inéditos, que, somados, perfazem
noventa e sete títulos OO). A publicação na Revista do Instituto Histórico
foi feita baseada nos originais que Pedro Taques deixara nas mãos do
desembargador João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho, copiada por
Diogo de Toledo Lara e Ordonhes. Com o falecimento deste, as cópias
passaram às mãos do Marechal José Arouche de Toledo Rendon, e a
viúva deste cedeu a José Feliciano Fernandes Pinheiro, ofertando-as o
filho deste ao Instituto Histórico 0 1 >. Esta edição, muito dividida, dificul-
tava sua consulta e mostrava a necessidade de uma edição autônoma. Ten-
tou-a Antonio de Toledo Piza, sem consegui-lo. Foi somente em 1926,
com uma introdução de Afonso d'E. Taunay que se publicou a Nobiliarchia
Paulistana, Historica e Genealogica (12 >. A edição só contém os Buenos de
Ribeira, os Taques Pompeus, os Almeida Castanhos, os Laras e os Prados,
o que a toma incompleta, pois não saiu o 2. 0 volume (13 >. A terceira edi-
ção <1 4 > foi a única a publicar toda a obra conhecida de Pedro Taques,
afora a perdida, como já anotamos. Na primeira (1869-1872) se chegava
à "Segunda Adenda à família Paes Leme", na segunda (1926) alcançam-se
somente os Prados, e na terceira aparecem mais os Costas Cabrais, os
Mesquitas, os Penteados e os Alvarengas Monteiros.
1 . 3 . História da Capitania de São Vicente
Já sabemos que a obra é um escrito de encomenda, um arrazoado
histórico-jurídico para servir aos interesses do Conde de Vimieiro. Ela con-
tém um prefácio de Taunay, que é a reprodução da conferência pronuncia-

(5) Vide Afonso d'E. Taunay, Pedro Taques e seu tempo, ob. cit., 235, que cita o relatório
de Januário da Cunha Barbosa de 1843, R/HGB, V, Suplemento p. 17.
(6) RIHGB, LXIV, !.• Parte, 3-84.
(7) Afonso d'E. Taunay, Pedro Taques, ob. cit., 236.
(8) RIHGB, XII, 5-40.
(9) RIHGB, 1848, X, 308.
(10) RIHGB, XXXII, 175-200, 209-261, XXXIII, 5-112 e 157-242 e 2.• parte, 27-185;
XXXIV, 5-115 e 143-253; XXXV, 5-112, 243-384, 2.• parte, 5-79.
(11) Vide noticia, nota e carta do Visconde de São Leopoldo a José Rodrigues de Oliveira
e de Benedito Antônio da Luz a destinatário desconhecido, RIHGB, 1869, XXXII, !.• parte, 177-178.
(12) RIHGB, Rio de Janeiro, 1926, 1. especial, 434 páginas.
(13) Na anterior edição do Instituto foi publicada até a parte 2.• do t. XXXIII.
(14) Biblioteca Histórica Paulista, Livraria Martins , 1953, 3 vols.

133
da no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, em 2 de julho de
1914, comemorativa do segundo centenário natalício de Pedro Taques <15 >.
A dedicatória a D. João de Faro revela bem os intuitos de Taques, mais
de advogado do que de historiador. Diz ele que lhe fizeram em 1754 vá-
rias perguntas sobre a fundação da capitania de São Vicente e indo a
Portugal em 1755 foi incumbido de fazer "o necessário exame do ar-
quivo da Câmara desta cidade para se descobrirem os documentos que
tirassem toda a dúvida do legítimo senhor e donatário da dita capitania".
Enviou primeiro uns apontamentos, mas, como se carecia de maior infor-
mação fundamental desde o princípio da fundação até sua incorporação à
Coroa em 1714, realizou pesquisas no copioso cartório da Provedoria da
Fazenda. Declara ter sic;lo obrigado a ler livros com letras totalmente des-
figuradas, gastando horas em sua versão. Além disso mandou fazer nas
vilas desta comarca diligências sobre a fundação de cada uma delas, por-
que estavam todas dentro das cem léguas da doação feita a Martim Soares
de Sousa. "Agora achará V. Excia. clara, perceptível e indisputável a ver-
dade pela demonstração cronológica que aqui ofereço, formada dos do-
cumentos que tiram toda a dúvida, e descobrem o engano que tem laborado
desde o ano de 1624, em que o Conde de Monsanto se introduziu nas
vilas de São Vicente, Santos, São Paulo e Mogi das Cruzes." Declara, fi-
nalmente, esperar que seu gostoso e excessivo trabalho seja de utilidade ao
Conde de Vimieiro, para que "haja este de aparecer tão avultado que em
todo o reino de Portugal não admita competências com outro algum por
muito grande que seja o rendimento, porque na verdade esta capitania
pela natureza da doação e foral excede ao nome de morgado, que bem
merece o do reino pelas rendas que ao donatário pertencem" (l6).
A ôbra reconstitui os donatários da capitania, a doação a Martim
Afonso e Pero Lopes, a provisão de Pero Lopes, a posse dada ao Conde
de Monsanto, e a posse do Conde da Ilha do Príncipe, a incorporação de
São Vicente à Coroa, as cidades e vilas da capitania de São Vicente e os
dois forais de Martim Afonso de Sousa e da capitania de São Paulo. Ela
tornou-se a fonte primária fundamental da história da capitania de São
Paulo.
1.4. A "Informação sobre as Minas de São Paulo"< 17 >
Foi escrita e assinada em São Paulo, aos 13 de outubro de 1772 e
oferecida ao governador de São Paulo, Luís Antonio de Sousa Botelho e
Mourão (Morgado de Mateus - 1765-1775), que lhe pedira para seu co-
nhecimento e uso. Pedro Taques já andava sofrendo a moléstia que o im-
pedia de sentar-se e tornava difícil a escrita. Disse ele ao Governador que
lhe fora necessária uma grande aplicação, lendo e revendo os apontamen-
tos de sua copiosa coleção posta em ordem cronológica. Dela retirou as
notas que serviam para essa informação, mas os documentos que apontava
não padeciam da mínima falta de verdade.

(15) RIHGB, 1914, XIX, 235-261, e RIHGB, 1917, parte V, 817-847.


(16) A capitania, com 247.320 km2 era multo maior que o Reino 89.106 km2).
(17) RIHGB, 1901, t. LXIV, parte 2, 1-84.

134
Da "Informação" registrada no Catálogo da Exposição de História
do Brasil <18 > e no "Catálogo de Manuscritos sobre São Paulo existentes
na Biblioteca Nacional" (1 9 ) existiam duas cópias, uma no Instituto His-
tórico, e outra na Biblioteca Nacional. Coube ao Barão Homem de Melo,
sempre bem associado a essas iniciativas histórico-culturais, pedir ao com-
petente bibliotecário Antônio J ansen do Paço, chefe da seção de manus-
critos da Biblioteca Nacional, que examinasse os dois manuscritos. Jansen
do Paço declarou que o do Instituto Histórico era o primeiro original
contendo o pensamento primitivo do autor na sua primeira forma, depois
modificado por numerosos acréscimos, alterações e transposições de tre-
chos e frases e de não poucas supressões. Este era autógrafo, isto é, escrito
pelo próprio punho do autor e por ele assinado com suas iniciais: P. T.
de A.P.L.; o da Biblioteca Nacional era o original limpo ou definitivo do
trabalho, não sendo um autógrafo, mas passado a limpo por outra mão,
e subscrito por P. T. de A.P.L. Para Jansen do Paço, o da Biblioteca fora
copiado do códice do Instituto, depois de ter este sofrido as modificações
assinaladas <20 >.
Baseado neste parecer, publicou-se a "Informação" (21), que é um his-
tórico das entradas no sertão à busca de ouro, prata e pedras preciosas,
baseada nos autores da época, como Simão de Vasconcelos e Sebastião
da Rocha Pita, e sobretudo nos documentos do arquivo da Câmara de
São Paulo, do Cartório da Fazenda, dos cartórios de notas, do livro de
registo da Câmara, dos papéis da Ouvidoria de São Paulo, do registo
de ordens da Secretaria do Governo de São Paulo. Pedro Taques historia
as várias tentativas, as nomeações reais para esse fim, as providências de
vários governadores da Bahia, do Rio de Janeiro e de São l>aulo, ligado
ao das Minas em 1709 até 1720, e nesta data tomado independente. Re-
gistra a descoberta das esmeraldas por Fernão Dias Pais, o primeiro en-
genho dos Schetz, resume a legislação, os regimentos, alvarás, cartas-ré-
gias, o levante no Rio de Janeiro contra Salvador de Sá e Benevides, no-
meado governador e administrador das Minas de São Paulo, o uso dos
índios nas tropas que penetravam os sertões por diferentes rumos, as
esperanças de maiores riquezas dos paulistas, a decisão de "S. M. de fazer
mercê das terras minerais a seus vassalos, para eles a beneficiarem à sua
custa e do ouro extraido delas só pagarem tão somente o real quinto".
Há censura quando diz que enquanto os paulistas andavam entranhados
pelos diversos sertões na diligência de descobrimentos, D. Pedro II de
Portugal enviava o castelhano D. Rodrigo de Castel Branco, que se incul-
cou de grande mineiro de ouro e prata, e que como administrador das
Minas do Brasil consumiu grosso cabedal sem o menor efeito de utilidade.
Transcreve, a seguir, a Instrução do Regimento que se deu a D. Rodrigo
de Castel Branco de 1673 (31-37), o alvará de D. Rodrigo de 1677 (37-

(18) Rio de Janelro, 1881, n.• 5.SJ7.


(19) ABN, 1953, vol. 74, n.• 52, p. 92.
(20) Vide Parecer de Antônio Jansen do Paço dirigido ao Barão Homem de Melo, assinado
aos 25 de abril de 1902, ln RIHGB, 1901, t. LXIV, parte t.•, 1-3.
(21) RIHGB, t. LXIV, parte t.•, 3·84.

135
39), a carta patente de Jorge Soares de Macedo de 1677 (39-41) e, fi-
nalmente, o Regimento das terras minerais de 27 de abril de 1680 ( 49-
52), o Regimento de 13 de agosto de 1679 (52-55), a Instrução de 1679
(55-56); menciona as várias descobertas em várias regiões, a da primeira
faisqueira de ouro de lavagem de Garcia Rodrigues Paes em 1. 0 de maio
de 1697, e das já mencionadas esmeraldas por seu pai Fernão, as de
Carlos Pedroso da Silveira e de Bartolomeu Bueno de Siqueira. Indica o
novo caminho a abrir do Rio de Janeiro a Minas por Garcia Rodrigues
Paes, comenta as desordens já havidas em Minas, a necessidade de minis-
tros de letras (juízes) com amplíssima jurisdição e de guarda-mor das
Minas de São Paulo, a carta a Garcia Rodrigues Paes para que pudesse
nomear guardas-substitutos, a criação de vilas e dos ministros de letras,
a descoberta de ouro por Pascoal Moreira Cabral em Cuiabá, e a sepa-
ração das capitanias de São Paulo e Minas Gerais em 1720. Registra a
nomeação de um superintendente-geral das minas, e a instrução de regi-
mento aos exploradores que saíssem de São Paulo a descobrir minas de
ouro e prata nos sertões dos Goiases, o que se descobriu em 1725.
Esta é uma preciosa relação das descobertas paulistas e por isso mes-
mo se diz as Minas de São Paulo. Não usa Pedro Taques nem uma vez a
palavra bandeira e bandeirante, embora, segundo as pesquisas de Afonso
d'E. Taunay, a palavra bandeira fosse pela primeira vez empregada num
documento do Conselho Ultramarino, de 1676, e bandeirante tomou-se
corrente mais tarde em 1740 (22l.
Resta ainda acrescentar que Taunay comunicou a existência de um
terceiro apógrafo vindo na Coleção Félix Pacheco e hoje existente na
Biblioteca Municipal de São Paulo <2 3l. E, finalmente, diz que as Minas
eram dos paulistas como o título sugere, e que esta é uma forma histórico-
descritiva das descobertas das Minas.
1. 5. "Notícia Histórica da Expulsão dos Jesuítas
do Colégio de São Paulo em 1640"
Foi Manuel de Araújo Porto Alegre quem ofereceu ao Instituto His-
tórico esta "Notícia", por ele copiada do original existente na biblioteca
do Convento de São Francisco do Rio de Janeiro <2 4l.
Pedro Taques começa relatando como a vila de São Vicente foi fun-
dada, e a entrada nela, dos jesuítas, subindo depois a serra, chegando a
Santo André da Borda do Campo e parando em Piratininga. Aumentando
a vila de Piratininga veio a tomar o nome de São Paulo, para onde já
tinham transmigrado os moradores de Santo André. Cabia aos jesuítas a
administração espiritual dos gentios, "aqueles concebendo maior ambição
de domínio se fizeram senhores de todo o governo temporal dos ditos gen-
tios". Nesta frase descobre-se que Pedro Taques toma o partido dos mora-

(22) História Geral das Bandeiras Paulistas, ed. em 2 tomos, t. 2. 0 , 310.


(23) Afonso d'E. Taunay, "Fernão Dias Paes e Pedro Taques", Tornai do Comércio, Rio de
Janeiro, 5 de junho de 1949.
(24) RIHGB, 1874, t. Xll, 2.• ed., 5-40.

136
dores de São Paulo contra os jesuítas e neste sentido desenvolve sua his-
tória. Us paulistas sofriam os danos que recebiam da falta do serviço dos
índios e "foram depois experimentando e recebendo ofensas dos jesuítas,
que tinham arrogado a si o governo temporal de todo o gentio". Foi para
atalhar este pernicioso dano que procuraram os povos uma providênçia
reunidos na Câmara e a qual seria a de só se entenderem os jesuítas com
os índios que haviam trazido do sertão, e que se pusesse um capitão ao
qual os moradores pediriam os índios de que precisassem. Foi assim feito
um termo de ajuntamento pelos povos aos 10 de junho de 1612, declaran-
do que sendo as aldeias da capitania sujeitas aos capitães e justiças da ca-
pitania, havia agora introduzido um rumor dizendo que o gentio só reco-
nhecia aos padres como superiores, e estes afirmavam que as aldeias eram
suas no espiritual e temporal e que o Papa era a cabeça; coisa nova e
desacostumada e nunca fora reconhecido pelo povo esse direito aos padres
desde que a capitania se fundara, só se lhes consentindo a administração
espiritual. Aí está o germe da desafeição aos padres jesuítas pelos mora-
dores de São Paulo.
Rebate Taques os autores pró-jesuítas e transcreve documentos co-
mo a escritura da transação e amigável composição e renunciação que
fizeram os padres da Companhia com o povo das capitanias do Rio de
Janeiro. Antes de chegar aos moradores de São Paulo a notícia desta
transação, os mesmos, aos 13 de julho de 1640 expulsaram dali os jesuí-
tas, achando que eles se tinham tornado muito arrogantes com a bula
de Urbano VIII libertadora dos índios. Apelaram para o Marquês de Mon-
talvão, governador geral da Bahia e primeiro Vice-Rei do Brasil. A res-
posta de Montalvão concluía propondo que os jesuítas fossem logo res-
tituídos e exercitassem pacificamente seus ministérios; transcreveu Pedro
Taques o alvará de 3 de outubro de 1643 para serem os jesuítas restituídos
ao seu colégio de São Paulo, a carta de D. João IV para Luís Barbalho
Bezerra, o alvará de 7 de outubro perdoando os moradores de São Paulo,
a çópia do assento da transação e amigável composição entre os padres
jesuítas e os moradores das vilas da capitania de São Vicente (14 de maio
de 1653), a carta do Rei D. João IV sobre a boa aceitação que os mora-
dores de São Paulo mostravam aos jesuítas, a carta da conta que deram os
oficiais da Câmara de São Paulo, em 18 de julho de 1670, sobre o estado
em que se achavam as aldeias do padroado. A no~ícia foi escrita em São
Paulo, aos 9 de setembro de 1768, e ainda que seja objetiva e factual mos-
tra ser favorável aos paulistas e contrária aos jesuítas, uma tendência geral
da época; sobretudo durante o domínio pombalino <2 5).
1 . 6. A Nobiliarchia Paulistana, Histórica e Genealógica
Esta é a maior obra de Pedro Taques, pela importância social do
tema, pela riqueza da informação, pelo esforço da pesquisa, pela vastidão
do trabalho. Quem tiver a paciência de lê-la por inteiro, linha por linha

(25) Sobre a questão do ponto de vista jesuítico, vide Serafim Leite, HC/B, Rio de Janeiro,
1945, t. VI, 227-293.

137
- o que sobrou ou sobreviveu de seu trabalho de cinqüenta anos - verá
o valor excepcional deste livro, um dos maiores da brasiliana colonial,
sobretudo porque historia os bandeirantes e suas proezas tão decisivas na
formação territorial do Brasil. O espírito nobiliárquico não exclui, antes
acentua, o papel preponderante de um grupo de aventureiros, saídos de
camadas modestas, que conquistaram terras, gente e riquezas, criaram
nomes históricos, e ampliaram o território nacional.
Embora coexistissem bandeiras outras, foram as paulistas as mais
importantes pelo número de bandeirantes, pela extensão e significado da
obra. Por isso Pedro Taques identificava São Paulo e as bandeiras: "e
eu nos escritos a que dei princípio ( emendado agora depois da crise de
V. Rma.) com o título de "Nobiliarchia Histórica e Genealógica dos Le-
mes da Capitania de São Paulo" faria ver ao mundo pelo benefício da
imprensa, quase a mesma "História de Piratininga", que se me pede, por
incluir os sucessos da mesma História pertencentes aos paulistas, socor-
rendo, conquistando e descobrindo" (2 6 ).
Na verdade, o bandeirismo constitui a parte mais importante da No-
biliarchia Paulistana, estudo dos troncos originais dos primeiros povoado-
res de São Paulo. É uma exaltação dos feitos do passado em face do ma-
rasmo do presente paulista nesta segunda metade do século dezoito. Ele
recolhe a mística bandeirante conservada pela tradição oral, cheia de
preconceitos aristocráticos e idéias de casta, cultivando um tradicionalismo
que compensava a pobreza de sua época. Ele é o historiador das bandeiras,
passado o movimento, quando os bandeirantes se transformaram em po-
voadores e criadores.
Como sempre acentuou Afonso d'E. Taunay, do imenso repertório
que era a Nobiliarchia só escaparam à destruição vinte e dois títulos, ten-
do Antonio de Toledo Piza encontrado referências a cinqüenta e três,
cujos originais desapareceram. Revendo a obra, Taunay descobriu mais
vinte e um títulos igualmente perdidos. Assim, ao todo, a obra deveria
conter noventa e seis títulos, dos quais sessenta redigidos, segundo Tau-
nay, em 1771, o que significa que se perderam dois terços da obra. O
linhagista possuía uma biblioteca de duzentos livros, o que era extraordi-
nário na sua época (27).
Nas horas difíceis por que passou na vida, Pedro Taques poucas
vezes perdeu a fé na sua obra e a esperança de concluí-la. Num momento
de depressão, ele escreveu a Frei Gaspar, seu amigo e seu companheiro de
estudos, que "assim vai traçando o destino para verificar-se o próprio
prognóstico, de que por minha morte hão de ter os rapazes, nas noites de
São João, papel para treques, se antes disto não produzirem as melanco-

(26) Carta de Pedro Taques ao Rvmo. Pe. Me. Dr. Frei Gaspar da Madre de Deus, DIHCSP,
Archlvo do Estado de São Paulo, 1894, vol. IV, 11; outras cartas do autor foram publicadas por
Afonso d'E. Taunay, "Documentos Inéditos sobre Pedro Taques", RIHGSP, 1915, XX, 747-790, e
no Instituto Histórico se encontra (Lata 332, Mss 32) "Obrigação do Sargento-mor Pedro Taques
de Almeida de oito mil e duzentos réis", de 25 de Janeiro de 1774.
(27) Afonso d'E. Taunay, "Uma Carta de Pedro Taques a Cláudio Manuel da Costa", /C,
12 de Junho de 1949.

138
lias da minha pobre vida a resolução de reduzir tudo a cinzas, desenga-
nando assim aos meus próprios inimigos, que eu mesmo reconheço, que
os meus escritos são mais dignos de fogo que da luz" (28).
A Nobiliarchia é um livro arredio, de difícil leitura, pela secura e ari-
dez das infinitas genealogias. Mas é ao mesmo tempo uma das maiores
fontes de informação do Brasil e de São Paulo desde o descobrimento aos
anos setenta do século XVIII. Sobre as pessoas ele não se limita a notas
secas, biográficas; conta como viviam, o que faziam, seus casos amorosos,
o número de filhos ou a falta de filhos, os grandes e grossos negócios, os
cabedais que possuiam, o caráter dos paulistas e dP. outros brasileiros.
Registra as atividades de tupis, mamelucos e negros. Menciona os cargos
ocupados na república, e usa sempre pátria apenas como lugar de nasci-
mento. Fala nas lutas contra estrangeiros franceses e holandeses e a ajuda
paulista, nas rebeliões negras, nas guerras contra índios, a chamada guer-
ra dos bárbaros, nas lutas familiares, na conquista do gentio, na guerra
dos emboabas, nas lutas no Sul pelo domínio do Rio Grande. Lamenta as
grandes epidemias, trata das relações da Igreja com o Estado, registra os
grandes crimes na sociedade, aponta os régulos, os grandes bandidos, os
filhos bastardos, condena a miscigenação, defende que se procure o reco-
nhecimento do puritate sanguinis, a pureza do sangue das raças malvistas,
judeus, índios, negros. Menciona os grandes bandeirantes e sertanistas, as
grandes bandeiras, os sertões conquistados, as grandes descobertas de ouro
e pedras, as dificuldades das conquistas. Retrata a sociec;lade, os grandes
e ricos senhores, as grandes fortunas, os que podiam ter criado brancos
ou mulatos, aponta as grandes belezas femininas de São Paulo, que ele soube
apreciar. Dá alcunhas curiosas, critica a carestia da vida em algumas vilas.
Cita fontes primárias, censura Rocha Pita, não se esquece de registrar os
títulos universitários, os licenciados, os doutores, os teólogos e filósofos,
as bibliotecas e livros existentes em São Paulo.
Entre os Taques Pompeos aparecem seu avô, seu pai e ele próprio,
sem mencionar o dia do nascimento, mas o do batismo. A grande figura
é Guilherme Pompeo de Almeida, que fez os melhores estudos de gramá-
tica, de história sacra e profana, de filosofia e teologia, e foi doutor por
bula pontifícia. Era um homem poderosamente rico, uma das maiores
fortunas da época colonial, cuja casa possuía cem camas para os hóspedes
e cuja hospedagem era sem igual na mesa, na conveniência, na organiza-
ção, na ordem. Escreve que em vida foi "o herói dos paulistas, o famoso,
o saudoso, o apetecido Guilherme Pompeo de Almeida, porque a memória
do seu nome durará sempre na notícia que se estabelece nos vindouros de
uns para os outros".
Várias outras figuras da época colonial aparecem no livro, descritas
não só genealogicarnente, mas nos seus feitos, nas suas riquezas, na sua
ação, nos seus insucessos. :e um livro rico para estudos lingüísticos, pela
grande abundância vocabular, pelo valor semântico que registra, pelo uso
(28) Carta de Pedro Taques a Frei Gaspar da Madre de Deus , ob. clt., p. 11.

139
de umas e outras palavras caídas em desuso, e pelo sabor do estilo, apesar
da secura factual genealógica.
A Nobiliarchia Paulistana Historica e Genealogica não é nem mera-
mente paulista, nem simplesmente genealógica. S uma enciclopédia dos
sertanistas, dos bandeirantes, da sociedade, dos costumes, do sertão e das
vilas de São Paulo, Goiás, Mato Grosso e do Brasil todo. S um dos maio-
res livros da brasiliana, apesar do aspecto restritivo de seu título, que
esconde a profusão de notícias sociais, econômicas, políticas, religiosas,
etnográficas.
1 . 7 . A Opinião historiográfica
Escreveu Taunay com razão que o livro foi esquecido e permaneceu
inédito até 1869, quando a Revista do Instituto Histórico começou sua pu-
blicação. Foi, portanto, o Instituto Histórico que o retirou do olvido, um
pouco também pelo interesse e cuidado de Fernandes Pinheiro, o Visconde
de São Leopoldo, que guardou o manuscrito. Em 1883, por influência de
Capistrano de Abreu fundava-se uma sociedade sob a inspiração de seu
nome, cujo fim seria coligir materiais para a história do bandeirismo.
Fora Capistrano de Abreu quem dera nos seus Capítulos de História Co-
lonial <29 > ênfase especial ao "Sertão", um dos capítulos mais importantes
de seu livro, que tem como uma das fontes principais a Nobiliarchia. Na
sua Correspondência <30 l ele se referiu várias vezes a Pedro Taques. Em
carta a Antônio Joaquim Macedo Soares, em 1883, Capistrano comunica-
va: "Estou tratando da fundação de uma sociedade histórica, menos pom-
posa e menos protegida que o Instituto Histórico, porém quero ver se
mais efetiva. Há de intitular-se Clube Taques, em honra de Taques Paes
Leme, e deve ocupar-se quase que exclusivamente das bandeiras e bandei-
rantes, caminhos antigos, meios de transporte e história econômica do
Brasil" <31 l. Em 1900 diz a Guilherme Studart que "o primeiro trabalho
que desejaria publicar é uma memória ainda inédita de Taques sobre o
descobrimento das minas", embora a seguir declare dar preferência aos
Diálogos das Grandezas do Brasil, deixando Taques para depois. Na sua
correspondência com Taunay, vê-se como o estimulou e lhe fez sugestões
sobre a edição da obra de Taques. Em carta de 1917, quando Taunay
preparava a edição de Taques, ele lhe escreveu: "Bravo! Excelente idéia
de fazer a concordância do Taques com Silva Leme. Não haverá capítulos
inéditos da Nobiliarchia a publicar agora? Isto é que seria excelente, dan-
do maior realce ao trabalho. O seu estudo prefácio desenvolvendo a con-
ferência do centenário! disse-me você que será extenso à vista da do-
cumentação nova. Parabéns pelo que me conta. Sobretudo se é tão exten-
sa e tão cheia de novidades sobre a biografia do genealogista. A descober-
ta do testamento representou um belo achado, como já lhe disse mais de

(29) Rio de Janeiro, 1907.


(30) Correspondência de Capistrano de Abreu, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro,
1954-1956, 3 vols.; 2.• ed. Rio de Janeiro, 1977.
(31) Correspondência, ob. clt., III, 2.

140
uma vez. Parabéns! Vamos! macte puer! Taques merece um estudo apro-
fundado" <32 >.
Em carta também de 1917, a João Lúcio de Azevedo, Capistrano
escreveu: "Taques estava em Lisboa quando houve o terremoto. Provavel-
mente levara seus manuscritos e não é impossível se encontre alguma cópia
por aí, na descendência de João Pereira Ramos. Não sei se ainda andará
por lá M. E. Gomes Carvalho, autor de D. João III e os Franceses e Os
Deputados Brasileiros na Constituinte de Lisboa. :E: parente de Afonso
Taunay, que anda tratando de nova edição da Nobiliarchia para o Institu-
to Histórico; escrevi-lhe que o encarregasse das pesquisas; não sei se as
terá feito, e se terão dado resultado. Taques, como todos os genealogistas,
merece confiança limitada; mas revolveu os arquivos que ainda estavam
intactos, percorreu os cartórios da Capitania, foi até Goiás, suas notícias
biográficas de tecido ralo (pragmático) têm muita novidade" (33).
Em 1924, em carta a Paulo Prado, Capistrano dizia: "aprovo cor-
dialmente a impressão do Mss. [Manuscritos] de Taques, bem diferente do
esqueleto dado na Revista do bistituto. Dar o texto só, não vale; é preciso
acompanhá-lo de documentos" (34).
Taunay, no seu livro sobre Taques, reuniu a opinião de historiadores
como Antônio Toledo Piza, Azevedo Marques e Machado de Oliveira para
mostrar que ou foram injustos ou incompletos ou o desconheceram. Colige
depois o que aparece nas histórias da literatura bra;,;ileira de Sílvio Romero
e João Ribeiro que lhe fizeram plena justiça e José Veríssimo que conside-
rou sua obra insignificante para as boas letras; e finalmente de um histo-
riador como Basílio de Magalhães, que soube louvar e aproveitar-se bem dos
seus estudos (3 5 ).
Varnhagen tinha-o em boa conta. "Devemos aqui advertir", diz ele,
"que Taques é sempre autoridade mui superior a Frei Gaspar: não arrazoa
tanto, mas tem mais crítica, e é mais seguro" (3 6 ).
Encontrar toda sua Nobiliarchia e republicá-la é um dever da historio-
grafia brasileira (37).
Escreveu Sílvio Romero que Pedro Taques introduziu na historiogra-
fia brasileira um elemento novo: o povo. Não era ainda o povo brasileiro
na sua totalidade, mas escolhido, representado, "nobiliarquizado" nas suas
principais famílias (38).
Na verdade essa era uma novidade: a de incorporar à história brasi-
leira a gente que teve sucesso durante a colônia. Com ela vinha outra
gente, mais modesta, os índios, os negros, os mestiços, cuja história, a
história do Brasil escrita por mãos brancas, ainda não integrou.

(32) Correspondência, ob. clt ., I, 280.281.


(33) Correspondlncla, ob. clt., II, 75•76.
(34) Correspondência, ob. clt., II, 456.
(35) Afonso d'E. Taunay, Pedro Taques e seu tempo, ob. clt., 241·243.
(36) Hlstdrla Geral do Brasil, II, 196, n. 0 80.
(37) À edição se deveria unir todas as cartas existentes na Biblioteca Nacional. Vide
"Catailogo de Manuscritos sobre São Pauto existentes na Biblioteca Nacional", ABN, vol. 74, p. 64,
n.• 1969; e p. 65, n.• 212; p. 74, n. 0 • 107 e 108; p. 75, n.•• 133, 146, 147; p. 78, n. 0 236.
(38) Hlstdrla da Literatura Brasileira, 4.• edição, Rio de Janeiro, 1949, t. 2, 247.

141
Foi ainda inovador pela investigação em arquivos que procurou sis-
tematicamente e pelo caráter regional que imprimiu a seu livro, sem que
ele perdesse sua generalidade nacional.

2. Gaspar da Madre de Deus


2.1. Sua Obra
Gaspar Teixeira de Azevedo, filho de Domingos Teixeira de Azeve-
do e de Ana de Siqueira e Mendonça (9 de fevereiro 1715 - 28 de janeiro
1800), nasceu no sítio de Santo Antonio da freguesia de Santos, e adotou
o nome de Gaspar da Madre de Deus ao entrar para a Ordem de São Bento
e dela receber o hábito em 1731. Filho de proprietários de terras, gente
rica e da pequena nobreza vinda de Portugal, sua carreira se fez toda na
mesma Ordem. Perdeu seu pai cedo e entrou para a clausura beneditina
aos dezessete anos. Foi levado para a Bahia a educar-se no Mosteiro de
São Bento, onde fez os estudos de filosofia e teologia. Pela sua aplicação
foi nomeado lente de teologia e graduou-se doutor aos 18 de junho de
1749. Foi pregador de renome e em ocasiões solenes, como nos festejos
pelo casamento da infanta D. Maria, depois Rainha (1761), no Te-Deum
pelo nascimento do Príncipe da Beira, e na cerimônia pela morte de Gomes
Freire de Andrada. Em 1777 pronunciou seu último sermão fazendo o pa-
negírico de D. José I, que falecera.
Sua carreira na Ordem foi reveladora de seus méritos pessoais: Abade
do Mosteiro de São Bento de São Paulo (1752), Definidor (1756), Aba-
de (1763) do Mosteiro do Rio de Janeiro, e em 1766 Abade Provincial,
fazendo, como tal, todas as visitas canônicas às cinco abadias, três priora-
dos e seis presidências, que contava a Ordem no Brasil, de Santos à Pa-
raíba. Não sendo de .praxe as reeleições, foi Frei Gaspar eleito prelado do
Mosteiro de São Bento em Salvador (1768), mas renunciou ao encargo,
escolhendo viver no Mosteiro de Santos ( 1769). Como desde cedo revela-
ra sua vocação pelos estudos históricos, dedicou-se inteiramente às pesqui-
sas em Santos e São Paulo, reunindo assim grande documentação à reco-
lhida em Salvador e sobretudo no Rio de Janeiro.
Fora escolhido desde 1774 cronista-mor da Ordem e sucessivamente
reeleito até 1798. Faleceu em Santos, aos 28 de janeiro de 1800, aos 85
anos incompletos por um mês (39).
Sua origem social e a posição econômica da sua famHia muito influí-
ram na formação de seus visíveis preconceitos. Mantinha como seu amigo
e colega Pedro Taques a mania nobiliárquica, porque ambos provinham da
(39) Sua biografia foi escrita por Afonso d'E. Taunay no estudo biográfico que acompanha
a 3.• edição das Memórias para a História da Capitania de São Vicente, hofe chamada de São
Paulo e Noticia dos Anos em que se descobriu o Brasil, São Paulo, 1920, na qual nos baseamos,
Juntamente com o "Extrato do Dletárlo do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro relativo à
administração de Frei Gaspar da Madre de Deus", ln RIHGSP, 1915, vol. XX, 229-248. A biogra-
fia feita em 1914 foi primeiro publicada na RIHGB, 1916, t. LXXVII, parte II, e republicada
nos AMP, 1925, t. 2, 115-199.

142
pequena nobreza do Reino e aqui se haviam enriquecido como senhores
de terras e de escravos.
Foi, assim, um cronista que se preocupava muito com a limpeza de
sangue dos cristãos-velhos, livres da mestiçagem com qualquer raça infec-
ta, como eram considerados os judeus, índios e negros. Como membro das
mais antigas famílias paulistas era cheio de preconceitos de classe, e não
é raro vê-lo chamar ao povo de gentalha <40 >.
Era um vassalo fiel e leal ao domínio português e nunca expressou
qualquer crítica aos excessos do colonialismo lusitano. Sua Oração Fúne-
bre nas Exéquias de D. José I (4t) tem caráter bajulatório, além da lin-
guagem empolada, que torna um sacrifício sua leitura. A adulação o leva
a dizer o que nenhuma pessoa esclarecida em São Paulo, como ele e Pedro
Taques, poderia afirmar: "privou-nos (a morte de D. José I) de um
soberano que gastou somas muito importantes no transporte de soldados,
armas, munições e outros apetrechos bélicos, atendendo a segurança da
Nossa América", como se o Brasil não tivesse pago tudo aqui e lá em
Portugal. Não mede com discrição os louvores ao Rei e a Portugal: "Já
sabeis que falo do tempo do terremoto, então viu o nosso Monarca num
instante abatida a sua Corte, e sem majestade a Capital que desde o Oci-
dente ao Oriente dava leis a todo o mundo".
Não era preciso ser Rei para merecer sua lisonjaria. Ao governador
de São Paulo, Bernardo José de Lorena ( 1788-1797), depois Conde de
Sarzedas e Vice-Rei da lndia, escreveu uma carta que o rebaixa pelo in-
censório e pelo empolamento da linguagem : "Vou aos pés de V. Ex.ª a
beijar-lhe as mãos agradecido pelo gosto, que me occazionou com seo
preceito; e também lhe manifestar o Juízo, que formo do utilíssimo, e ex-
celente concerto novamente executado na serra por Ordem de V. Ex.ª"
( empedramento do caminho pela serra do Cubatão, ligando Santos a São
Paulo) . . . . "Sábio governo, tu, que és, senão a época de nossa boa ven-
tura? Assim te chamamos nós, assim se apelidão nossos vizinhos cheios
de inveja, os quaes nesta parte merecem mais crédito. . . . Eles, e nós co-
nhecemos, que com V. Ex.ª vierão aqui morar a prudência, a brandura, e
ambas as justiças assim a distributiva, como a punitiva. . . . Que ventura
podíamos nós desejar maior, do que sermos governados com tanta doçura,
e tamanha eqüidade?" Defende na carta o tráfico de escravos, "sem o
qual não pode ter aumento considerável a nossa Capitania". Afirma que
"se a inação, a incúria, o ócio, e mais vícios contrários à lavoura, já se au-
sentaram da maior parte do sertão povoado, na costa ainda não se retiraram
por ser a marinha ( exceto a ilha de São Sebastião) o viveiro da preguiça,
aquele animal brasílico tão lânguido . . . com efeito não é igual o progres-
so da agricultura emcima, e embaixo das serras", e termina com uma lou-
vação de suas tantas virtudes que coraria qualquer cidadão que se respei-
tasse <42 >.

(40) Vide "Chronlcas do Rio de Janeiro", Documentos Interessantes para a História e Cos-
tumes de São Paulo, Arquivo do Estado de São Paulo, São Paulo, 1915, vol. 44.
(41) Afonso d'E. Taunay, "Inéditos de Frei Gaspar da Madre de Deus e documentos sobre
o historiador", RIHGSP, Sio Paulo, 1918, 194-206.
(42) M. Lopes de Almeida, Uma Carta de Fr. Gaspar da Madre de Deus, Coimbra, 1952.

143
2 . 2. A pesquisa e a história locais
Aplicado aos estudos teológicos, filosóficos e históricos, Frei Gaspar
da Madre de Deus deixou uma obra de relativa significação, embora só
aos oitenta anos tivesse visto publicada sua obra principal, as Memórias
para a História da Capitania de São Paulo 143 >. Foi membro das Acade-
mias criadas no Brasil oitocentista, como a Academia Brasileira dos Es-
quecidos e a dos Renascidos. Nesta foram seus colegas o Rev. P. Frei An-
tônio de Santa Maria Jaboatão, cronista-mor da Ordem Seráfica, José
Antonio Caldas, baiano, autor da Notícia Geral desta Capitania da Bahia
desde seu descobrimento até o presente ano de 1759, D. José de Miralles,
tenente-coronel, autor da História Militar do Brasil, embora Frei Gaspar,
como Cláudio Manuel da Costa, Domingos do Loreto Couto, e Antônio
José Vitoriano Borges da Fonseca fossem todos sócios supranumerários.
Convidado a associar-se à Academia, Frei Gaspar escreveu longa car-
ta, na qual se descreve como homem de "limitado talento e pouca capaci-
dade", um pigmeu cujo favor recebido era excessivo para sua incapacida-
de. Declarava-se disposto a "escrever as Memórias do Bispado de São
Paulo como me foi mandado", mas logo afirma não saber se poderia dar
conta de seus estudos, sem ir a São Paulo (vivia então no Mosteiro do
Rio) examinar alguns arquivos e sem esquecer de lembrar-se de seu gran-
de. amigo e companheiro de estudo Pedro Taques, que se fosse sócio "aju-
dar-me-ia muito, ainda mais que escreveu as Memórias para a História
Secular da dita capitania, pois além de ter grande capacidade e gênio la-
borioso, examinou quase todos os cartórios de São Paulo e da sua co-
marca, com um fim de escrever uma História Genealógica que compôs,
das famílias nobres da mesma Capitania, a qual estava escrito que estava
feito com muito trabalho e exação, queimou-se em Lisboa na ocasião do
grande terremoto" (44).
Como estudioso da história, o que distinguiu Frei Gaspar foi sua in-
cansável pesquisa nos arquivos e cartórios de São Paulo, de Santos, do Rio
e de Salvador. Aos poucos tornou-se uma das grandes figuras intelectuais
de São Paulo e do Rio, muito solicitado, ouvido e consultado. No Rio,
organizou o arquivo do Mosteiro de São Bento, cuidou da biblioteca, dei-
xando principiada, segundo Taunay, "uma história cronológica de todos
os documentos pertencentes às propriedades do mosteiro" (45).
Seu conhecimento l.:.;tórico permitiu-lhe ganhar grandes vitórias em
questões judiciais do Mosteiro de São Bento do Rio, como o caso com os
Viscondes de Asseca sobre enormes latifúndios em Campos. Quando visi-
tou Pernambuco em visita canônica, pesquisou nos arquivos da capitania,
no das Câmaras Municipais, e nos da própria Ordem. Pesquisou, quando
retornou a Santos, nos arquivos de S. Sebastião, Itanhaém, lguape e Ca-
(43) Lisboa, 1797.
(«) Alberto Lamego, A Academia Braslllca dos Renascidos. Sua Fundação e Trabalhos
ln/ditos, Paris, 1923, 108.
(45) "Frei Gaspar da Madre de Deus·, estudo biográfico ln M emórias para a História da
Capitania de S. Vicente ho/e chamada de São Paulo e Noticia dos anos em que se descobriu o
Brasil, 3.• ed., S!o Paulo, 1920, p . 36.

144
nanéia. Manteve sempre com Pedro Taques uma amizade sólida, consoli-
dada pelo interesse histórico e da pesquisa histórica. Diz Taunay que os
dois permutavam informações e submetiam seus trabalhos à crítica um do
outro <46 >.
Frei Gaspar e Pedro Taques imprimiram à historiografia de sua épo-
ca um caráter novo ao se dedicarem com tanto empenho às pesquisas nos
arquivos e cartórios, sobretudo locais. Esta foi uma tendência duplamente
nova da historiografia setecentista, a pesquisa documental e a regionaliza-
ção dos estudos.
Escrito seu estudo sobre São Vicente, baseado em investigações
novas e próprias, Frei Gaspar dera-lhe o titulo de "Fundação da Capitania
de São Vicente e ações de Martim Afonso de Souza", e foram Diogo de
Toledo Lara e Ordonhes e seu irmão, o Marechal Arouche Rendon, que
apresentaram a obra ao exame da Academia Real das Ciências, pois Diogo
fora eleito sócio em 1795. Mudado o título, atendidas pequenas exigências
formais da Academia, fora a obra aprovada e impressa pela mesma em
1797 <47 >.
Era a consagração da historiografia regional e da pesquisa histórica
de caráter local por uma instituição oficial metropolitana.
2 . 3 . Suas Obras
Além das Memórias, sua obra principal, escreveu Frei Gaspar as "No-
tícias dos Anos em que se descobriu o Brasil e das entradas das Religiões
e suas fundações" <48 >; a "Relação dos capitães loco-tenentes da Capitania
de São Vicente, uns nomeados pelos verdadeiros donatários e outros pelos
intrusos" (4 9 >; as "Notas Avulsas sobre a História de São Paulo" <5 º>; a "Dis-
sertação e explicação sobre terras de contenda entre o Mosteiro de S. Bento
e o Convento do Carmo em Santos" <51 ); a "Oração Fúnebre nas exéquias
que, pelo sereníssimo Sr. D. José Primeiro, Rey Fidelíssimo de Portugal,
mandou celebrar a Câmara da Villa do Porto de Santos, aos 14 de Julho
de 1777" (5 2 >; o "Catalogo dos Governadores da Cidade do Rio de Ja-
neiro, formado por documentos de sesmarias e escripturas, conforme aos
annos em que se fizeram e outras noticias" <5 3).
2. 4 . As Obras Várias
As "Notícias dos Anos em que se descobriu o Brasil e das entradas
das Religiões e suas fundações" é a obra que suscitou maior contestação,

(46) Estudo in Memórias citadas, pp. 50-52.


(47) Memórias para a história da Capitania de São Vicente, hoje chamada de São Paulo,
do Estado do Brasil, publicadas por ordem da Academia Real das Ctenclas por fr . Gaspar da
Madre de Deus, Lisboa, 1797.
(48) RIHGB, t. 2, 439-458, republicada na 3.• edição das Memórias, 1920. O manuscrito
encontra-se no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Lata 23, Mss. 503.
(49) RJHGSP, V, 159-176.
(50) R'éíGSP, V, 180-195.
(51) RIHGSP, XVI, 277-294.
(52) RIHGSP, XX, 187-206. O manuscrito encontra-se no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, L. 41. Mss. 785.
(53) DJHCSP, Arquivo do Estado de São Paulo, 1915 , t. XLIV, 27-75 .

145
por sustentar que não foi Colombo o primeiro europeu a entrar na Amé-
rica. Pela leitura do testamento de João Ramalho, do qual dizia possuir
uma cópia, se podia deduzir que este contava 90 anos em 1580, seguindo-
se que entrara no Brasil em 1490. Conseqüentemente, somente depois de
habitar João Ramalho dez anos no Brasil, Pedro Alvares Cabral descobrira
Porto Seguro.
Cândido Mendes de Almeida, homem de grande saber histórico e
jurídico, em artigo especial "Notas para a História Pátria" <54 ), critica se-
veramente o tropel de fábulas criado pela imaginação de Frei Gaspar: "A
ignorância da verdadeira história de sua terra fez com que este religioso e
Pedro Taques criassem uma lenda, para que a de Caramuru não fosse úni-
ca, e assim se tem deturpado nossa história nesta parte do Brasil, que aliás
é tão rica de fatos verdadeiros de subida importância, e de muita
glória para nossa pátria". A principal prova do asserto da vinda de João
Ramalho ao Brasil é seu testamento em 3 de maio de 1580. Para Cândido
Mendes tudo cheira a falso, a começar pelo testamento. Ele deteve-se no
exame minucioso das afirmações de Frei Gaspar; e investiu contra a prio-
ridade da descoberta da Améríca pelo pretenso náufrago de Santos, e cri-
ticou as contradições entre as "Notícias" e as Memórias.
Para Cândido Mendes de Almeida, o testamento não existia. "O avaro
mas venturoso cronista de Santos guardou somente para si o supremo gozo
do arqueólogo, a ninguém mais deixou ver sua preciosidade pré-colombia-
na, com o risco de passar depois da sua morte, a mãos menos zelosas e
profanas, privando assim a posteridade de conhecê-lo na sua íntegra."
Para Cândido Mendes não bastava "termos a certeza de que semelhante
testamento era impossível, e que não passava de uma pia e patriótica fraude
da lembrança do seu invento. É necessário que a condenemos de modo a
que nunca mais seja invocada nos nossos anais, e que se reprove semelhan-
te escândalo histórico. A história do país só ganhará com o culto inteiro
da verdade".
Coube a Washington Luís Pereira de Sousa esclarecer a questão do
testamento, tendo descoberto um manuscrito entre os papéis de José Bo-
nifácio, escrito do punho do Patriarca, mas parecendo não ser de sua la-
vra, mas uma cópia por ele feita, cujo autor seria um sobrinho de João
Teixeira de Carvalho. Para Washington Luís, que transcreve o manuscrito,
Cândido Mendes, convencido e indignado da impostura de Frei Gaspar,
tratou-o duramente, mas este não merecia o rigor c8fn que ele o fustigara.
"Ele não foi um fabricante de documentos, não engendrou o testamento
de João Ramalho."
A publicação de Washington Luís mostrava que mais uma pessoa lera
também o testamento "no livro de notas rubricado por João Soares, tt.
Abril, 1580, fl. 10". As particularidades tão precisas - rubrica, ano, mês,
folhas - indicam que o autor dõ êsêfitô; pertencente ao arquivo de José

(54) "Terceiro Artigo, João Ramalho, o bacharel de Cananéia, precedeu Colombo na


descoberta da América", R/HGB, 1877, XL, parte 2, 277-373.

146
Bonifácio, leu o testamento, não em um traslado, mas no próprio livro de
notas em que ele foi lavrado. E conclui: "O testamento de João Ramalho,
pois, existia; a interpretação que se lhe deu é que foi falsa. Enquanto Frei
Gaspar leu alguns noventa anos, o sobrinho de João Teixeira de Carvalho
leu alguns setenta anos" (5 5l.
Tanto a "Relação dos capitães loco-tenentes que governaram a capita-
nia de São Vicente", quanto o "Catálogo dos Governadores da Cidade do
Rio de Janeiro" constituem obras úteis de referência e consulta, sendo que
o segundo pode ser comparado com o organiz_ado por D. Marcos de No-
ronha (8.° Conde dos Arcos) <56 l. As "Notas Avulsas", tal como o título
informa, reúnem anotações colhidas nas pesquisas que serviram para seu
livro.
2. 5 . As Memórias
Já vimos que sua primeira edição data de 1797, quando o autor pos-
suía oitenta anos <57 l. Elas são divididas em três livros, mas o terceiro não
foi escrito ou não foi publicado. O qae se pensou constituir o terceiro
volume não passava de uma mixórdia de textos mal copiados e resumos
da História da Capitania de São Vicente de Pedro Taques, afora a trans-
crição de diversos documentos do Arquivo da Câmara de São Paulo e uma
lista de ouvidores de São Paulo, vários posteriores ao falecimento de Frei
Gaspar, segundo afirma Afonso d'E. Taunay, que melhor lhe estudou a
obra <58 l. A "Continuação" foi oferecida ao Instituto pelo brigadeiro Rafael
Tobias de Aguiar e publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro <59 l.
As Memórias foram plagiadas por Manuel Cardoso de Abreu, que
deu outro título ao livro, "História da Capitania de São Paulo" e dedicou-o
ao Visconde de Balsemão, Luís Pinto de Sousa Coutinho <60l.
As Memórias foram divididas em dois livros, sendo que o primeiro
contém quatro capítulos: "Fundação de São Vicente, Fundação de Santos,
Fundação da cidade de São Paulo e Fundação da Vila de N. S. da Con-
ceição de Itanhaém". O primeiro capítulo é o maior e melhor, fundamen-
ta-se em pesquisas de arquivos e cartórios; cita vários autores nacionais
como Gândavo, Sebastião da Rocha Pita, a quem muito critica, apontan-
do-lhe várias falhas, Frei Vicente do Salvador, Jaboatão, o próprio ma-
nuscrito da Nobiliarchia de Pedro Taques, Simão de Vasconcelos, Frei
Agostinho de Santa Maria, o Anno Histórico de Frei Francisco de Santa

(55) Washington Luís, •o testamento de João Ramalho", RIHGSP, 1904, IX, 563-569. Sobre
João Ramalho analfabeto, vide vários estudos na RIHGSP, 1901, IX.
(56) "Catálogo dos governadores que tem havido no Rio de Janeiro, tempo em que tomaram
posse de seus governos, tirado do livro das Ordens Reais do Senado da Câmara e de algumas
outras noticias que se puderam descobrir com bastante diligência por D. Marcos de Noronha,
DIHCSP, 1915, 66-75.
(57) 2.• ed., Rio de Janeiro, 1847, 2 ts. em 1 volume, editada por Francisco Adolfo de
Vamhagen; 3.• ed., São Paulo, 1920, preparada por Afonso d'Escragnolle Taunay.
(58) Estudo biográfico, precedendo a 3.• ed. das Memórias citadas, p. 70.
(59) L. 129, Mss. 2239; RIHGB, 1861, 539-616.
(60) Afonso d'E. Taunay, Estudo ln Memórias, p. 64.

147
Maria <61 >, Manuel Pimentel <62 >, Antonio Caetano de Sousa, P. F. X. de
Charlevoix <63 >. e deu muita importância a um historiador beneditino da
fase d.a erudição da Congregação de S. Mauro, cuja obra, escrita em fran-
cês, foi muito lida e citada na sua época, José Vaissette. Ele se tinha em
boa conta ao afirmar "a boa fé com que escrevo" e criticava as fábulas que
se introduziram na história destas capitanias, uma das quais já sabemos -
a de João Ramalho - deve-se a ele <64 >. "Muitas vezes tenho advertido,
que as fábulas respectivas à Capitania de São Vicente, publicadas pelos
estrangeiros nas suas histórias (Charlevoix e companhia, antipaulistas),
todas, ou a maior parte delas, se originaram de algum fato verdadeiro, vi-
ciado pelos escritores. A esta classe pertence a impostura, de que os ma-
melucos sacudiram o jugo da autoridade divina e humana, como explicou
Charlevoix" (o caso da aclamação de Amador Bueno, 1640). Ele celebra
Martim Afonso de Sousa, "os louros com que sua fortuna e seu mereci-
mento lhe teceram as coroas; outro havia de ser o teatro das suas proezas
e a campanha onde conseguisse o respeitável nome de Herói, com maior
glória, triunfando das Nações mais belicosas, e Reis principais da tn-
dia" <65 >.
Põe sempre em destaque a nobreza dos povoadores de São Vicente,
da qual ele e Pedro Taques descendiam. Ela fora a primeira vila regular
de portugueses no Mundo Novo, que das ilhas da Madeira e dos Açores
tinham se transferido para São Vicente. "Todos viam casas muito opulen-
tas e ilustres possuídas por descendentes de nobres e fidalgos que a po-
breza levou para as tais Ilhas nos primeiros anos da sua povoação." Depois,
esperando descobrir e conseguir ouro, vieram para o Brasil, "onde a todos
se dava de graça mais terra, do que lhes era necessário, e quanta os mo-
radores pediam, ninguém teria necessidade de lavrar prédios alheios". "A
experiência tem mostrado que discorrerão optimamente; pois neste Estado
vive com suma indigencia, quem não negocêa, ou carece de escravos." (66)
Indica que a primeira mulher branca que passou à Nova Lusitânia fora a
de João Gonçalves, por volta de 1536-1537, e, apesar de seu interesse pela
nobiliarquia, declara não se ter aplicado ao estudo da genealogia (6 7 ).
Não sabe ou quer distinguir entre o verdadeiro e o falso, pois
parece acreditar no Roteiro de Maldonado, documento forjado <68 >••trata
da questão de limites entre as capitanias de São Vicente e Santo Amaro,
da questão judiciária e da disputa Monsanto & Vimieiro, do resultado, da
reversão de Santo Amaro à Coroa em 1709, por compra, e o preço de
quarenta mil cruzados por ela pagos.

(61) Anno Histórico. Dldrlo Poriuguez, noticia abreviada de pessoas grandes e cousas no-
táveis de Portugal, Lisboa, 1714, !.• tomo.
(62) Arte de Navegar . .. Roteiro das Viagens, 1 lsboa, 1699; 2 .• ed., 1714.
(63) Hlstoire du Paraguay, I.• ed., Paris, 1756, e Paris, 1757.
(64) Memórias, ed. de Taunay, 127, 128.
(65) Memórias, ob. clt. , 130.
(66) Memórias, ob. clt ., 167.
(67) Memórias, ob. clt., 144-145.
(68) Memórias, 149. Vide sobre falsificação José Honório Rodrigues, Teoria da História do
Brasil, 4.• ed., 1978, 329.

148
Sua empresa "só tem por objeto o expurgar a História da Capitania
de S. Vicente e Santo Amaro" (69). De quê? Do falso, e do fabuloso?
Neste caso se misturam um e outro na urdidura do seu texto.

2 . 6 . Sua obra filosófica


'
Sabia-se que ele se graduara e lecionara teologia e filosofia, e Taunay
já na 3.ª edição mostrara que o sub-bibliotecário D. Wolfgang Kretz, da
Biblioteca da Abadia de São Paulo, achara entre os manuscritos o curso
de filosofia professado por Frei Gaspar, no Rio de Janeiro, em 1748, e
logo em seguida verificou-se que outro manuscrito encontrado pelo biblio-
tecário D. Bonifácio Jansen é a continuação do tratado.
A leitura do manuscrito era difícil, mas inteligível, e Taunay, caute-
losamente, declarara que à primeira vista Frei Gaspar se filiava ao esco-
tismo (doutrina de Duns Scott, 1265? - 1308), que se opõe ao tomismo
(Tomás de Aquino, 1227?-1274), e afirmou que seria interessante estudar
as lições de Frei Gaspar para se conhecer o ensino da filosofia na fase
colonial. Transcreve, então, o Proêmio e o todice. Já no Manual Biblio-
gráfico de Estudos Brasileiros <70 > se registraram "As Lições de Filosofia",
conhecida sua existência pela divulgação de Taunay na edição das Me-
mórias.
Em 1970, Carlos Lopes de Mattos investiu contra Taunay, acusando-o
de ter açodada e fantasiosamente classificado a filosofia de Frei Gaspar de
escotismo e antitomista. O artigo, uma pequena nota de três páginas, insis-
tiu no erro, no engano de Taunay, quando este não teve pretensões filo-
sóficas e apenas escreveu o que à primeira vista parecia se filiar ao es-
cotismo C71l.

2 . 7 . A opinião dos historiadores


Frei Gaspar foi muito amigo de Pedro Taques e ambos se ajudaram
e colaboraram mutuamente. Pensavam de modo muito parecido, eram aristo-
cráticos, nobiliárquicos e distinguiam bem as classes sociais, a que perten-
ciam, e a outra, a grande maioria, a gentalha. Um viu o trabalho do outro,
criticou e colaborou, e sobrou a carta de Pedro Taques a Frei Gaspar,
mas infelizmente, nenhuma deste a Pedro Taques <72 >. Foi realmente Frei
Gaspar, que teve sua obra principal publicada ainda em vida, as Memó-
rias, quem chamou a atenção dos historiadores para a obra de Pedro Ta-
ques e nelas o intitula de eruditíssimo e o melhor genealogista do Bra-
sil (73).

(69) Memórias, 253.


(70) Ed. por Rubens Borba de Moraes e William Berrlen, Rio de Janeiro, 1949, p. 671,
n.o 4.566.
(71) "Documentário de filosofia no Brasil", Revista Brasileira de Filosofia, abrll·Junho 1970,
78, 222·225.
(72) Vide Afonso d'E. Taunay, Pedro Taques e seu tempo, São Paulo, 1923, 172-179.
(73) A. d'E. Taunay, ob. clt., 232.

149
Amabilíssimo amigo, senhor de toda sua veneração, declarou em car-
ta de Lisboa, que de Santos só lhe fazia falta o obséquio honroso das letras
de Frei Gaspar (74).
O parecer da Academia Real das Ciências de Lisboa não teve dúvidas
sobre o valor da obra e decidiu que se imprimisse debaixo do seu privilé-
gio, ou seja por conta da mesma Academia, desde que obedecesse fazendo
sete correções que a comissão, por ela nomeada, apontou <75 >.
Monsenhor Pizarro, nas suas Memórias Históricas do Rio de Janei;.,
ro <76 >, chama-o de douto e declara que vendo o seu catálogo manuscrito
dos governadores, quase desistiu de tratar da matéria, mas depois obser-
vou que para ser perfeito precisava de correção, e assim foi procedendo
ao longo da obra <77>. :e uma referência simples, sem maior admiração,
limitada ao adjetivo "douto".
Baltazar da Silva Lisboa relembra apenas os Sermões recitados quan-
do do falecimento de Gomes Freire de Andrada, mas utilizou-se do seu
catálogo dos governadores (7 8 >.
Varnhagen escreveu que ele era pouco fidedigno; devia ser lido sem-
pre com cautela <79>. Alberto Lamego mostrou Frei Gaspar convidado pa-
ra a Academia Brasilica dos Renascidos, transcreveu-lhe a carta-resposta
ao convite, e fez-lhe pequena nota biográfica (80). Ramiz Galvão referiu-
se com louvor aos seus Sermões (81).
Capistrano de Abreu conheceu bem o velho frade-cronista, apontan-
do-lhe as histórias que andou inventando, pesquisando na Biblioteca Na-
cional para Taunay, aconselhando este como fazer a edição de Frei Gas-
par, diz~ndo-lhe que na Biblioteca Nacional de Lisboa ele descobrira pelo
catálogo uma carta de Frei Gaspar, cuja cópia não chegaria a tempo para
a obra de Taunay. Relembrou-lhe que Varnhagen editara-lhe a segunda
edição, em seguida ao Diário de Pero Lopes de Sousa, e perguntou-lhe:
"Por que não convence você o seu amigo abade de São Bento de mandar
imprimir a obra filosófica de Frei Gaspar, cujos manuscritos o Padre Kretz
descobriu no arquivo do Convento? Seria uma excelente contribuição para
a nossa história intelectual e uma bela cousa para a história de sua Or-
dem". Desde 1916, em carta a Pandiá Calógeras, alertara o plágio que
Manuel Cardoso de Abreu no seu "Divertimento Admirável" fizera das
Memórias de Frei Gaspar <82>.

(74) "Carta de Pedro Taques ao Rvmo. Snr. P. M. Dr. Frei Gaspar da Madre de Deus•,
DIHCSP, Arquivo do Estado de São Paulo, São Paulo, 1894, lV, 21·22.
(75) "Parecer sobre a obra de Frei Gaspar•, ob clt. na nota anterior, 25-26.
(76) Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1945-1948, 9 vots.
(77) Memórias Históricas, l.• vot., 15; 2.• vol., 45, 99, 201; 3.• vol., 150, 266; 4. 0 vol., 197,
204, 206.
(18) Annaes do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1934-1935, 7 vols.
(79) História Geral do Brastl, 3.• ed. Integral, São Paulo, s.d., n. 0 15, 224, 227 e 325.
(80) Academia Braslltca dos Renascidos, Paris, 1923, 107-111.
(81) •Apontamentos . Históricos sobre a Ordem Beneditina em Geral e em particular sobre
o Mosteiro de N. S. do Monserrate", RJHGB, XXXV, parte 2, 338, 340, 342, 344.
(82) Co"espondlncla de Caplstrano de Abreu, organizada por Jos~ Honório Rodrigues, Ins ·
tltuto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1954, vol. I, 62, 277, 302, 303, 314, 317, 347, 350 e 450.

150
Vieira Fazenda, em carta a Capistrano de Abreu <83 >, pede-lhe que
recorde a Taunay a promessa feita de lhe enviar as Atas do Conselho de
São Paulo, mas "ele esqueceu, graças a Pedro Taques e Frei Gaspar, que
lhe não deixam pôr o pé em ramo verde".
Na verdade, foi Taunay o descobridor e valorizador da obra dos dois
cronistas da história de São Paulo.

3 . Marcelino Cleto Pereira


Não se conhece nada sobre Marcelino Cleto Pereira, exceto que ser-
viu em Santos desde 1779, como juiz de fora, e foi ouvidor e corregedor
do Rio de Janeiro e enviado como escrivão a Minas na Devassa contra
os conjurados de 1789. Ele realmente aparece nos Autos da Devassa da
Inconfidência Mineira (84).
Nas biobibliografias de Inocêncio Francisco da Silva e Sacramento Bla-
ke nada aparece sobre ele; é referido por Vamhagen igualmente como
ouvidor do Rio de Janeiro, enviado para a Devassa em Minas Gerais da
Conjuração Mineira <85 >, não lhe apontando nenhuma obra.
Marcelino Cleto Pereira escreveu o "Catálogo dos Governadores da
Capitania de ltanhaém" <86 > e sobretudo a "Dissertação a respeito da Ca-
pitania de São Paulo, sua decadência e modo de restabelecê-la, escrita
... em 25 de outubro de 1782" <87 >, que é um estudo político-econômico
da atualidade paulista. A capitania de São Paulo, escreve ele, antes chamada
de São Vicente, a mais antiga da América Portuguesa, foi, pelo seu povo,
a que melhor serviu a S. Majestade porque à custa da sua própria fazenda,
com grande utilidade para a Coroa, descobriu "as Minas de Cuiabá, Mato
Grosso, Vila Rica, Sabará e Goiases", e no entanto encontrava-se em
1782 na maior decadência. Ela floresceu no tempo destes descobrimentos,
de que resultaram as várias capitanias e todo o negócio se movia pela
capitania de São Paulo e o porto de Santos, porque todos os descobri-
mentos pertenciam à Capitania de São Paulo e por ela se fazia o trânsito
de todo o ouro. Separaram-se as capitanias, fizeram-se diferentes caminhos
para as Minas, e em todas se estabeleceram inumeráveis paulistas, ficando
São Paulo sem a maior parte do negócio e falta de povoação, "o que era
bastante para inteiramente a destruir, a não ser o seu terreno abundante
de gêneros de primeira necessidade".
Desde que romperam as lutas com os espanhóis no Sul enviaram-se
para São Paulo governadores generais, como D. Luís Antônio de Sousa
(83) CorrespondOncla, ob. clt., 1956, Ili, p. 211.
(84) Ministério da Educação, Rio de janeiro, 1936, vol. 1, 235, 240·241; melhor edição,
acompanhada de notas e índice, Câmara dos Deputados, Governo do Estado de Minas Gerais.
Brasflla-Belo Horizonte, 1976 (publicado em 1977), vol. 1, 224, 226, 248. Em nota desta edição
denomina-se Cleto de desembargador, quando ele era ouvidor e escrivão da Devassa. Vide t.• ed.,
vol. 1, 240-241, Ili, 476, 479, IV, 24 e 2.• ed., vol. !, 282-283.
(85) Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil, J.• ed., s.d., t. IV, 413.
(86) RIHGSP, 1901, vol. V, 177-179.
(87) ABN, 1900, vol. XXI, 183-254. O original manuscrito encontra-se na Biblioteca Nacional.
Vide "Catálogo de Manuscritos sobre São Paulo existentes na Biblioteca Nacional", ABN, 1953,
vol. 74, n.• 60, p. 95.

151
Botelho e Mourão (Morgado de Mateus, 1765-1775) sem dependência do
Rio de Janeiro, e Martim Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782), gover-
nador, quando ele escrevia sua "Dissertação". O primeiro intentara o des-
cobrimento do Tibagi, para o qual obrigou o povo a ir, o que provocou
grande mortandade. O segundo veio fazer o preparo para a guerra, e seus
cuidados se aplicaram a criar os Voluntários Reais, o que mais esvaziou
a capitania, quando era no Rio Grande "aonde sempre tem sido e serão
as nossas contestações com os espanhóis". Ele divide São Paulo além da
Serra, em uma Marinha e um Sertão, ambos muito frutíferos, e era na pri-
meira que se produzia açúcar, arroz, e podia cultivar-se café, anil, farinha
de mandioca, milho, feijão e algodão. Descreve cuidadosamente toda a
produção desde São Vicente a Paranaguá, e a do Sertão. Afirma que a
agricultura em São Paulo sempre foi mais lucrosa na Marinha que no
Sertão, quer dos gêneros que se consomem na América, ou dos que se
transportam para a Europa.
Nas terras de Serra acima, além de nelas se consumir o que se pro-
duzia, a dificuldade dos transportes era grande, por ser áspero o cami-
nho que divide a Marinha do Sertão. Desenvolve o tema da agricultura na
Marinha e no Sertão, fala na liberdade de se criarem novas vilas, quer
que se anime a produção da costa, e sobretudo pensa que "a terra natu-
ral e própria da Capitania de São Paulo para o estabelecimento do Gover-
no . . . é a Vila de Santos".
Trata muito das péssimas condições dos caminhos internos do Sertão
e sobretudo do caminho de S. Paulo a Santos.
Traça um quadro da decadência de São Paulo, os motivos, e aponta
os remédios convenientes. Condena o crescimento das imposições e su-
gere seja a capitania comprada pela Coroa. Fala das tropas em São Paulo,
aconselha que sejam aquarteladas em Santos, onde há acomodações, e des-
creve a organização da Justiça em São Paulo, com três Ministros, um ou-
vidor em Paranaguá, outro em São Paulo, e um juiz de fora em Santos.
Condena a dependência de São Paulo ao Rio de Janeiro e conclui apon-
tando os meios de restabelecê-la economicamente. Contém cinco mapas
com relações de dízimos, de subsídios velhos e novos, de novo imposto na
Alfândega de Santos, e das rendas reais da Capitania, do donativo que no
momento pagavam os Oficiais na Capitania de São Paulo, e de algumas
despesas que nela se faziam.
As considerações feitas por Afonso Taunay no estudo sobre Frei Gas-
par à "Dissertação" de Marcelino Cleto Pereira são sarcásticas e inferiores
ao real merecimento da obra do Ouvidor.

4 . Manuel Cardoso de Abreu

4 . 1 . Sua vida

Manuel Cardoso de Abreu (Araraitaguaba, Porto Feliz, São Paulo


1750 - São Paulo 1804) era filho do português Domingos da Rocha de

152
Abreu (falecido em 1784) e da paulista Francisca Cardoso de Siqueira
(falecida em 1775), sendo o primeiro dos dez filhos do casal. Ele mesmo
afirmou ter recebido instrução muito limitada porque nos sertões de São
Paulo não havia escolas de ensino secundário. Deve ter sido um homem
de inteligência desenvolvida a julgar pela narrativa das suas viagens aos
sertões de São Paulo e Cuiabá e pelos plágios que cometeu das obras de
Frei Gaspar e de Pedro Taques.
No próprio "Divertimento Admirável" disse que "quem como eu, igno-
rando a geografia e por conseqüência os seus termos, teve animosidade de
escrever os treze capítulos do Divertimento" que oferecia a Martinho de
Melô e Castro (Secretário de Estado), não queria "faltar a aqueles precei-
tos que a retórica, verdadeira arte de persuadir, ensinua". Acredita ter re-
cebido graça do Altíssimo porque nos sertões que habitou não havia escola
que o instruísse na ciência e na melhor letra.
Nos autos do inventário de seu pai, processado em ltu ( 1 784), ele
aparece como solteiro, ausente, e como "guarda-mor", que não era um
posto, mas um título. Não existia esse título na milícia, mas havia no
regime das minas tal graduação e exerceram esse cargo homens como Pas-
coal Moreira Cabral e Bartolomeu Bueno da Silva. Pensa Antônio Toledo
Piza que ele não teria exercido essas funções correspondentes, pois esteve
sempre ocupado em viagens ao sertão e disso presume que o título lhe
veio pelos serviços prestados por ocasião da marcha dos 6.000 homens
para o Rio Grande do Sul, quando foi encarregado de angariar manti-
mentos e meios de transporte para aquela tropa (88).
Ele empreendeu diversas vezes a longa e penosa viagem de São Paulo
a Cuiabá; em 1767 voltava de Cuiabá; em 1768 tomou a ir, e nesse mesmo
ano regressou. Durante oito anos fez esta mesma viagem. A guardamoria
foi em ltapetininga e também comandou uma expedição de socorro a lgua-
temi, bem como teve a direção da expedição militar ao Rio Grande do
Sul. Foi em 1773 que obteve a provisão de guarda-mor de ltapetininga,
dada pelo general Luís Antônio de Sousa Botelho e Mourão (governador
de São Paulo).
O cargo só tinha valor quando se descobrissem jazidas minerais, e o
novo governador Martim Lopes Lobo de Saldanha (1775-1782) teve de
socorrer o presídio de lguatemi, criado pelo antecessor com grandes sacri-
fícios de homens e recursos, e a Cardoso de Abreu coube o comando, já
que possuía prática de sertanista daquela região. O bom resultado de sua
missão fez com que o mesmo governador o incumbisse em 1777 de ser
feitor-comissário do provimento das tropas que iam de São Paulo para o
Rio Grande do Sul, ameaçado de invasão pelos hispano-argentinos. Orga-
nizado o comboio com todos os víveres e recursos seguiu em direção do
Viamão, onde se concentrava a tropa luso-brasileira. Estabelecido o armis-

(88) Nota sobre Manuel Caetano (Cardoso) de Abreu por Antônio Toledo Piza na RIHGSP,
1901, vol. VI, 291-293; e Afonso d'E. Taunay, "Manuel Cardoso de Abreu", in "Escriptores
Coloniais" nos AMP, 1925, vol. 2, 203-234.

153
tício e recebendo ordens de voltar, Cardoso de Abreu continuou sua vida
habitual de tropeiro, trazendo do Sul gado e muares para São Paulo, Minas
, e Rio.
Sua vida é bastante aventureira e em 1779 era preso por contraban-
dear diamantes. Todos os seus serviços não lhe valeram nà oportunidade
e Cardoso de Abreu foi para a cadeia de São Paulo. Sempre protestou ter
sido vítima de enorme injustiça e foi na cadeia que escreveu, em 1783,
seu "Divertimento Admirável". Neste mesmo ano conseguiu a reparação,
o reconhecimento da sua inocência. Voltou a São Paulo e logo tentou uma
ação de danos contra injúria e calúnia, feita por um capitão-mor de So-
rocaba, causa totalmente diferente da que o levara à prisão. Moveu o pro-
cesso contra o capitão-mor de Sorocaba, Cláudio de Madureira Calheiros,
perdeu a demanda e conseguiu finalmente ser nomeado em 1789 escritu-
rário da Secretaria do governo de São Paulo e em 1792 era efetivado
como oficial-maior, cargo que ocupou durante doze anos.
Cardoso de Abreu era invejoso e sempre procurou o apoio dos pode-
rosos, como Luís Pinto de Sousa Coutinho (governador do Mato Grosso,
1769-1772, depois Visconde de Balsemão), cuja carreira em Portugal foi
um grande sucesso, alcançando os mais elevados cargos, pois era também
o tipo acabado de bajulador.
Sabendo do sucesso de Luís Pinto, que conhecera em Mato Grosso,
quis Cardoso de Abreu homenageá-lo de modo a merecer o apoio para
suas pretensões. A maneira que encontrou foi servir-se das Memórias de
Frei Gaspar, copiando, com pequenas modificações, a começar pelo nome
- "História de São Paulo" - e dedicá-la ao grande figurão português.
Taunay comparou sua "História" com as Memórias e cuidadosamente
reparou as pequenas variações do plagiário. Este resumiu trechos, cortou
outros, modificou levemente alguns e copiou ainda, para tomar mais difí-
cil a descoberta do plágio, trechos da "Notícia Histórica da Expulsão dos
Jesuítas do Colégio de São Paulo de Pedro Taques, sobre a qual já escre-
vemos. Para Taunay, afora as ligeiras modificações, só um trecho é original
em todo o livro I da "História de São Paulo", aquele em que reproduziu
tópicos do "Divertimento Admirável" e enumerou as igrejas e capelas de
São Paulo.
Ele desejava lisonjear o Visconde de Balsemão pretendendo um car-
go elevado no Brasil ou em Portugal. Assim fez novo furto da História
da Capitania de São Vicente de Pedro Taques, manipulando os trechos,
deformando-os e com esta parte disfarçou a cópia das Memórias.
A outra parte original é a que enxerta documentos relativos à paz da
Holanda, à fundação da Colônia de Sacramento, aos descobrimentos das
minas e à fundação da ouvidoria de São Paulo. Ampliou a obra com re-
cursos, em parte, supomos nós, buscados na obra de Marcelino Cleto Pe-
reira, e assim tratou do governo de Luís Antônio de Sousa e especialmente
de Luís Pinto, a quem queria bajular.
Deu um título pomposo à grande compilação plagiada de Frei Gas-
par, sobretudo, mas também de Pedro Taques: "Memória Histórica da Ca-

154
pitania de São Paulo e de todos os seus memoráveis sucessos desde o ano
de 1531 até o presente de 1796". Na dedicatória declarava querer rea-
bilitar os paulistas, denegridos pelos espanhóis, e defender a honra de
São Paulo, lembrando seu trabalho nos arquivos, sua atividade pedindo
memórias de outros, enfim, uma coleção de lembranças fundamentais de
São Paulo. Ao final declarava tê-lo conhecido em Mato Grosso e apro-
veitava para reproduzir a correspondência dos dois governadores com o
fim de louvar Luís Pinto.
Sua plagiada "História" em grande parte extraída de Frei Gaspar,
um pouco de Pedro Taques e menos ainda de notas e observações suas,
ficaria inteiramente desmoralizada quando, em 1797. eram publicadas, em
Lisboa (sua "História" fora feita até 1796 e enviada à Metrópole) as Memó-
rias de Frei Gaspar, que revelavam sua falcatrua.
Aos 14 de julho de 1804 morria em São Paulo, deixando viúva Es-
colástica Maria Joaquina e suas duas filhas, além de completamente desi-
ludido de suas altas aspirações.
Falecendo no mesmo ano o Visconde de Balsemão, o manuscrito da
"História" desapareceu e acabou incorporado à biblioteca do Barão do
Rosário, João José do Rosário, e com a morte deste, foi adquirida e agre-
gada ao Arquivo do Estado de São Paulo, por Altino Arantes.

4 . 2 . Seus plágios
Além da "História de São Paulo", Cardoso de Abreu é, segundo Tau-
nay, o plagiador da "Continuação das Memórias de Frei Gaspar" (8 9 ). Na
verdade, Taunay, examinando a "Continuação das Memórias", en.controu
uma frase no texto que revelava a autoria da mesma: "Não descrevi nada
a respeito dos três generais primeiros antes do referido Rodrigo César por-
que nesta secretaria de São Paulo (onde sirvo como oficial-maior dela) não
existem os livros de seus governos". O oficial maior era Cardoso de Abreu
e a "Continuação" não era mais que as últimas 44 folhas da "História da
Capitania de São Paulo", com acréscimos feitos pelo copista da lista de
ouvidores, em exercício depois da morte de Cardoso de Abreu até a posse,
em 1823, do 24. 0 , João de Medeiros Gomes. A "Continuação" vai até a
posse do governador Antônio Manoel de Melo Castro e Mendonça ( 1797-
1802), o que coincide com a "História" plagiada já apontada <90 ).
Sílvio Romero já denunciara que a '~Continuação" não era obra de
Frei Gaspar, mas acreditava que a verdadeira continuação, o esperado ter-
ceiro livro, estivesse na Biblioteca Nacional <91 >. Taunay, consultando Ma-
nuel Cícero, diretor da referida instituição, foi informado de que a cópia
existente na Seção de Manuscritos, registrada na Exposição de 1881 <92 >,
em letra do século XVIII, não alcançava, como as próprias Memórias, além

(89) RIHGB, 1861, t. 24, 539-616.


(90) Ver "Continuação ... ", RIHGB, 1861, t. 24, trecho Identificado, p. 582, lista de ouvido-
res, 573-574, último governador, p. 616.
(91) História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, 1949, t 4, 256.
(92) CEHB, 1881, 5540.

155
do segundo livro, e confrontando-se o manuscrito com o impresso ( edição de
Varnhagen de 1847) se verificavam algumas variantes, na numeração e
na falta de trechos, em geral pouco importantes <93 ). Tanto Capistrano de
Abreu, corno Antônio de Toledo Piza já haviam anotado que a "Conti-
nuação" era de Cardoso de Abreu <9 4 ).
Cardoso de Abreu é, assim, autor de dois grandes plágios, a "História
da Capitania de São Paulo" e a "Continuação das Memórias", mas Taunay
acredita que o códice de autoria de Cardoso de Abreu que Eduardo Prado
tentou comprar em Londres sobre a genealogia paulista poderia ser outra
ladroíce literária, desta vez de Pedro Taques. Acrescenta que, ao casar-se,
Cardoso de Abreu desconhecia os apelidos de seus avós maternos <95 ).
4. 3. O "Divertimento Admirável"
A idéia de seu talento e de sua capacidade se revela no "Diver-
timento Admirável", escrito em 1783 <96 ). O manuscrito foi oferecido em
1899 ao Instituto Histórico de São Paulo por Eduardo Prado, que trouxe
cópia do original de Lisboa.
O "Divertimento Admirável para os Historiadores observarem as má-
quinas do Mundo reconhecidas nos Sertões da Navegação das Minas de
Cuyabá e Matto Grosso" era, corno seguia seu subtítulo, "extraído pela
curiosidade incansável de um sertanista paulista que os calculou sucessivos
nuns poucos de anos".
Corno um contumaz adulador, Cardoso de Abreu dedica sua descri-
ção da viagem pelos rios paulistas a Martinho de Melo e Castro, então
Secretário de Estado da Marinha e dos Domínios Ultramarinos.
Abre a narrativa com urna dedicatória ao leitor dizendo-lhe que lhe
parecera "própria a resolução de satisfazer o desejo destes curiosos com
as notícias de um dilatado sertão, corno é o da navegação das minas de
Cuiabá e Mato Grosso, declarando toda a diversidade dos efeitos que nele
se encontram, corno são a produção das frutas, a criação das aves, as
nações dos gentios que habitam na sua extensão e, finalmente, tudo o mais
que pode compreender a curiosidade das notícias". O relato possui treze
capítulos e urna advertência final. A viagem começa em Araraitaguaba
(Porto Feliz), mostra as coisas notáveis que se encontram na extensão cjo
Tietê, a diversidade de animais. aves, peixes e frutas, e os rios que nele
fazem barra. Descreve nos dois primeiros capítulos a caça, os pássaros,
os vários animais, as cobras, as frutas silvestres, os rios afluentes, os peixes.
No terceiro, trata da navegação do rio Grande e suas circunstâncias; no
quarto, do rio Pardo; no quinto, da situação da fazenda de Carnapuan;
no sexto, da navegação do rio Carnapuan; no sétimo, da navegação do rio
Coxim e suas particularidades; no oitavo, do rio Taquari; no nono, do
rio Paraguai; no décimo, do rio Porrudos; no décimo primeiro, do rio

(93) Afonso d'E. Taunay, "frei Gaspar Madre de Deus", in "Escritores Coloniais", AMP,
1925, t. 2, 186.
(94) Taunay, ob. cit., 229.
(95) Taunay, Pedro Taques e seu tempo, ob. cit., 239.
(96) RIHGSP, 1900-1901, t. VI, 253-290, e RIHGB, 1916, t. 77, 2.• parte, 125,256.

156
Cuiabá; no décimo segundo, do Iguatemi; e no décimo terceiro, das no-
tícias particulares da cidade de São Paulo, sua extensão, nome, povoação e
negociação de seus habitantes. Historicamente este é o capítulo mais im-
portante, pois fala dos habitantes, das ruas, dos templos, das estradas, dos
negócios e da miséria de várias cidades paulistas, inclusive Castro, Santo
Antônio da Lapa, Lages e Curitiba, todas sob a influência paulista. Adverte
o leitor que não se admire da vastidão das notícias, pois tinha experiência
e conhecimento delas, pois navegara para Cuiabá de 1765 a 1777, em
1776 fora ao presídio de Iguatemi, e em 1777 fora aprontar e pagar os
mantimentos, gado e cavalgaduras para o transporte e sustento de 6.000
homens que foram de Minas Gerais para São Paulo, em socorro do exército
do Sul, na ocasião em que os espanhóis tomaram Santa Catarina.

5 . José Arouche de Toledo Rendon


5.1. Sua Vida
José Arouche de Toledo Rendon (São Paulo 14/3/1756 - São
Paulo 26/7/1834) era filho de Agostinho Delgado de Toledo Arouche e
de D. Maria Thereza Laura de Araújo, ambos descendentes dos mais
velhos troncos paulistas, embora tivessem mestiçagem indígena guaianá. Es-
tudou em São Paulo e foi mandado aos 18 anos à Universidade de Coim-
bra, onde recebeu o grau de bacharel em leis, em julho de 1779. Ao voltar
a São Paulo, foi advogado e exerceu vários cargos da magistratura, juiz de
medição, juiz ordinário, juiz dos órfãos, procurador da Coroa.
Quando se organizaram os regimentos de milicia de São Paulo, assen-
tou praça como capitão agregado do l.º Regimento de Infantaria <97 l. Na
carreira militar prestou vários serviços, chegando aos postos de Marechal e
Tenente-General em 1829. Foi encarregado pelo governador general Antônio
Manuel de Mello e Castro Mendonça (1797-1802) da direção das aldeias
de índios, sobre as quais escreveu uma monografia de fins reformistas <98>.
Aderiu francamente ao movimento da Independência e fez parte, com
José Bonifácio, o coronel Antônio Leite Pereira da Gama Lobo e o padre
Alexandre Gomes de Azevedo, da deputação que veio trazer a D. Pedro I
o apoio de São Paulo ao Fico, representando a Câmara de São Paulo, en-
quanto José Bonifácio e Gama Lobo representavam conjuntamente o Go-
verno e a Câmara, e o padre apenas o Clero <9 9>.
:ede sua letra a carta de 21 de janeiro de 1822 assinada pelos três,
excetuado o padre, a Martim Francisco sobre a entrada de José Bonifácio
no Ministério e outros passos para a Independência <100 >.
(97) Vide Dr. Manuel Joaquim do Amaral Gurgel, "Biografia de brasileiros Ilustres por
Armas, Letras, Virtudes, etc. Tenente-General José Arouche de Toledo Rendon•. RJHGB, 3.• ed.,
1885, 5, 522-526, e A. de Toledo Piza, "O Tenente-General Arouche Rendon", RIHGSP, 1901,
vol. V, 105-134. Este último transcreve toda sua fé de ofício extraída do Estado Maior do
Exército.
(98) "Memórias sobre as aldeias de índios da província de S. Paulo, segundo as observações
feitas no ano de 1798", RIHGB, 1842, t. 4, 295-317.
(99) Obras Cientificas, Pollticas e Sociais de /o:;é Bonifácio de Andrada e Silva, São Paulo,
1965, 237-240.
(100) Documentos para a Hlst6rla da lndependincia, Rio de Janeiro, Blbllotcca Nacional,
1923, 371-373.

157
De volta a São Paulo, foi nomeado comandante das armas; foi eleito
deputado por São Paulo para a Assembléia Constituinte, onde teve atuação
destacada, embora prudente e moderada <1 01 ). Foi eleito deputado por São
Paulo na legislatura ordinária de 1826-1829, mas não quis tomar assento,
por se considerar velho e adoentado, mas foi decidido adversário da monar-
quia absoluta. Criada a Academia de Direito, foi seu organizador com José
Maria de Avelar Brotero e seu primeiro diretor, de 1827 a 1833, mas não
lecionou nenhuma cadeira, pois havia já trinta e nove anos que trocara o
direito pelas armas.
Era urn homem cheio de iniciativas, acionista da Fábrica de Ferro de
S. João de Ipanema, criou uma fábrica de tecidos e iniciou o- cultivo do
chá em São Paulo. Quando faleceu, sua plantação de chá excedia 54.000
pés, que produziam 40 arrobas por ano. Acumulando tantos afazeres, deixou
fortuna razoável nas várias propriedades que possuía. Foi protetor da Santa
Casa da Misericórdia, e de seu casamento com D. Maria Tereza Rodrigues
de Moraes não deixou descendência 002). Faleceu com 78 anos, em São
Paulo, aos 26 de julho de 1834.

5.2. Sua Obra


Sua bibliografia encontra-se registrada em Inocêncio Francisco da
Silva <103 ) e Sacramento Blake (t04).
Na sua "Memoria sobre as Aldeas de Indios na Provinda de São
Paulo" <1osi, começa dizendo que estamos na época feliz de não sermos
colonos, sendo o Brasil um Império Constitucional. Condena os erros pal-
mares cometidos pelos nossos avós na civilização dos índi_os e crê que, corri-
gidos tais erros, os índios seriam úteis ao Estado. Seu objetivo no ensaio
é achar as bases seguras para determinar um plano geral de civilização e
catequese dos índios. Faz um histórico das aldeias em São Paulo e conclui
indicando quatro princípios: "1.º Convém extinguir para sempre o bárbaro
costume de, atacar os índios como inimigos, exceto em defesa; eles nos
temem e desejam a nosa amizade; 2.° Convém em toda a ocasião tratá-los
bem a fim de que pelo seu próprio interesse procurem o nosso auxílio, ou
seja contra as suas precisões, ou quando se vêem atacados por outras hordas
mais poderosas; 3.° Convém aldeá-los um pouco perto das nossas povoa-
ções, obrigando-os por boas maneiras a cultivar a terra e a criar animais
domésticos; 4.° Convém separar-lhes os filhos, ou parte deles, sem os escan-
dalizar, logo que se achar conveniente, entregando-os a boas famílias, que
os saibam educar, e que em prêmio lucrem seus serviços até certa idade,
marcada pela lei regulamentar".

(101) JOSI! Honório Rodrigues, A Assembléia Constituinte de 1823, Petrópolis, Vozes, 1974.
(102) Na biografia feita por Antônio de Toledo Piza transcrevem-se documentos, cartas e
trechos de suas memórias, e se aponta que o Arquivo do Estado possui muitos documentos oficiais
relativos aos serviços prestados pelo General.
(IOJ) DBP, Lisboa, 1884, t. 12, 241-242.
(104) DBB, Rio de Janeiro, 1898, v. 4, 317-318.
(105) Primeiro publicado no Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1824, JS páginas, e depois
na RIHGB, 1842, t. 4, 295-317.

158
Como se ,vê, o. ~l~no se enquadra nas preocupações da época, a co-
meçar por J ~se Bomfac10, ,e. oferece soluções que lhe parecem corretas. Es-
creve~ tam~eJ? uma Memoria sobre a plantação e cultura do chá: sua pre-
faraçao ate fic__ar. em estado de entrar no comércio (106), que revela seus
interesses econom1cos, sua capacidade de iniciativa, a atualidade do seu pen-
samento político-econômico (107).
Os bibliógrafos desconheceram as "Reflexões sobre o Estado em que
se acha a Agricultura na Capitania de São Paulo" e o "Ofício que acompa-
nha as Reflexões sobre a Agricultura de São Paulo" (108).
As "Reflexões" foram escritas em 1788, quando São Paulo passava por
uma grande crise, que se iniciara pelos meados do século dezoito. Ele con-
sidera a capitania em estado "miserável" e "deplorável", e procurava iden-
tificar seus males e apontar as soluções. :E: uma obra da atualidade político-
econômica de sua época e de sua capitania, refletindo a história então
presente. Peca sobretudo por crer que o povo não quer trabalhar, que a
maioria é vadia, sem notar que isso não é senão um sintoma de causas
mais profundas. -e, portanto, um dos precursores da velha tese antibrasileira
de que a origem dos males brasileiros está na vadiação do povo brasileiro.
Retratava a sociedade em crise, apontando o meretrício, o jogo, a dança,
a vadiação e o furto, como os males que atrasam a agricultura. Ao mesmo
tempo condenava os velhos que se opunham às inovações e aplicava suas
observações mais à marinha (costa) que à serra acima (sertão). :E: uma
contribuição importante ao estudo da situação da capitania, da agricultura
paulista e do caráter brasileiro em geral e em particular do paulista.

6. Roque Luís de Macedo Paes Leme e Melo e Castro


Não conhecemos dados biográficos de Roque Luís de Macedo Paes
Leme, apenas que era primo de Pedro Taques 0° 9 > e que deixou uma obra
genealógica: "Nobiliarchia Brasiliense ou Colesam de todas as familias no-
bres do Brasil, de todas as suas capitanias, principalmente daquella de S.
Paulo. Com a notícia certa donde sam oriundas, mortes e jazigos. Extraída
dos Manuscritos que várias pessoas curiosas e fidedignas e a maior parte das
Memórias do Sargento-Mor Pedro Taques de Almeida Paes Leme, que com
excessiva curiosidade, revolvendo todos os cartórios da cidade de S. Paulo e
suas villas, pôde ajuntar ... ", assinada em Lisboa, aos 5 de fevereiro de
1792 (110).

(106) Rio de Janeiro, 1833, 29 págs.


(107) No CEHB, n.• 6.867, aparece ainda o Ofício de vários brigadeiros sobre o aviso régio
de 24 de outubro de 18 J7, em que se ordena faça embarcar para Santa Catarina 200 praças do re-
gimento de caçadores, e em cópia moderna no Instituto Histórico, o "Plano em que se propõe o
melhoramento da sorte dos índios reduzindo-se a freguezias as suas Aldeias e extinguindo-se este
nome e esta antiga separação, em que têm vivido há mais de dois séculos•. CEHB, n. 0 14.875 .
(108) DIHCSP, vol. 44, 195-213 e 214-215 respectivamente.
(109) Afonso d'E . Taunay, Pedro Taques e ·seu tempo, ob. clt., 201.
(110) O original autógrafo pertence à Biblioteca do Rio de Janeiro e está descrito no
CEHB, n .• 15.263, no "Catálogo de Manuscritos 50bre Pernambuco•, ABN, v. 71, p . 226, n.• 293,
e no •catálogo de Manuscritos sobre São Paµlo" , ABN, v . 74 , p. 98, n.0 75.

159
A obra continua inédita e seria de interesse compará-la com a de
Pedro Taques para ver se é valiosa sua publicação. Capistrano de Abreu,
em carta a João Lúcio de Azevedo sobre Fernão Dias, diz que "a Biblio-
teca Nacional possui o manuscrito de um parente, Roque Lemos, que con-
sultei em tempo e voltarei a examinar. Ele esteve em Lisboa nos fins do
século dezoito e pareceu-me ter aí aproveitado um exemplar da Nobiliarchia
de Taques. Haverá notícias dela? Quem sabe se não estará em Coimbra
no arquivo episcopal? Taques foi hóspede de João Pereira Ramos" <111 >.
Como da obra de Taques se perderam muitos títulos, como já apon-
tamos, o manuscrito de Roque Lemos ou a descoberta do original da
"Nobiliarchia" por ele consultada em Lisboa poderia completar a Nobi-
liarchia de Pedro Taques, já publicada.
A "Memória apresentada ao Governador de São Paulo Antônio José
da França e Horta (1802-1811) pelo seu antecessor Antônio Manuel de
Mello Castro e Mendonça (1797-1802), a 28 de dezembro de 1802" <11 2 >,
é uma relação importante, de caráter oficial, que já defende a liberdade de
comércio e a abertura dos portos, não só de Santos, mas de S. Sebastião e
Ubatuba.- Registra que a navegação do porto de Santos para o de Lisboa
será diminuta enquanto a cultura do café e do algodão não chegarem ao
seu auge; o crescimento do comércio de animais vindos do Rio Grande
do Sul, e pleiteia embarcações próprias para fazerem o comércio com
Lisboa. Anota que, enquanto as vilas de São Sebastião e Ubatuba estavam
em decadência, as vilas serra acima haviam mandado para Santos, afora
outros efeitos, 83.435 arrobas de açúcar em 1797. Condena a falsificação
do· açúcar e pleiteia o estabelecimento das Mesas de Inspeção. Para a
primeira contribuía a má fé dos senhores de engenho que não purificavam
o açúcar como deviam, por terem vendido adiantado a sua safra. A faci-
lidade com que se aprendia a trabalhar no açúcar - "qualquer negro
novo, que em uma safra se ocupou na sua manipulação, já na seguinte
pode servir de mestre na direção de semelhantes trabalhos" - causava-lhe
espanto. Descreve o processo de fabricação, as melhorias introduzidas,
quando o açúcar estava em ascensão em São Paulo, substituindo a cultura
nordestina <113 >.
Trata da conservação das estradas, da agricultura em particular, da
introdução do arado, descreve o estado da literatura da capitania, assim
entendida como o exame e consulta dos livros (censura), o ensino, latim,
retórica e filosofia, os professores, a licença para lecionar, e a pena de
degredo de cinco anos paca quem ensinasse sem a competente licença, a
proibição que fizera aos mestres não licenciados, as novas cadeiras de
aritmética, geometria e trigonometria, as necessidades de engenheiros, to-
pógrafos e de médicos, cirurgiões e contadores, os novos cursos de ma-
temática, fortificação, artilharia e desenho, de cirurgia, farmácia, botânica
e química. Nele aparece, creio que pela primeira vez, num documento
(111) Correspondência de Caplstrano de Abreu, preparada por José Honório Rodrigues, Rio,
1954, vol. Jl, 167.
(112) D/HCSP, Arquivo do Estado de São Paulo, vol. 44, 129-157.
(113) Vide José Honório Rodrigues, "Agricultura e economia açucareira no século XVIII",
Brasil Açucareiro, Junho-setembro, 1945.

160
oficial, Martim Francisco de Andrade Machado e Silva pleiteando a cadeira
de matemática. Ele era formado pela Universidade de Coimbra e não con-
seguiu a cadeira, tendo ainda sido perseguido pelo sucessor França e Horta.
A "Memória" tem um indiscutível valor histórico pela descrição da
atualidade paulista nos começos do século dezenove.

7 . Francisco de Oliveira Barbosa


Astrônomo do serviço real no Rio de Janeiro, soc10 correspondente
da Academia Real das Ciências de Lisboa, eis o que se sabe sobre Oliveira
Barbosa <114 >.
A obra de Francisco de Oliveira Barbosa, "Notícias da Capitania de
São Paulo, da América Meridional escriptas do Anno de 1792" <115 >., é intei-
ramente idêntica ao "Divertimento Admirável" de Manuel Cardoso de
Abreu. As intitulações, os capítulos, as palavras, com variações mínimas e
pequenas supressões, tudo se iguala, com exceção da entrada principal,
até o capítulo X (Oliveira Barbosa), e XI (Cardoso de Abreu) sobre a
navegação do rio Cuiabá e suas particularidades. O capítulo XI em Oliveira
Barbosa intitula-se "Dos rios que deságuarn no Rio Grande ou Paranan,
desde a barra do Rio Pardo até a barra do Rio lguaterni, onde houve um
presídio, que durou de 1767 até o de 1777, quando foi tornado pelos
Castelhanos", enquanto em Cardoso de Abreu o capítulo XII intitula-se
"Da navegação do lguaterni, sua fertilidade e particularidades", mas em
ambos se trata da navegação do rio Pardo para baixo até o Iguaterni, sendo
que em Cardoso é bem mais desenvolvido o capítulo, pois, corno se sabe,
ele empreendeu essa viagem, e nele acrescenta-se um capítulo (XIII) "No-
tícias particulares da cidade de São Paulo, da extensão da sua capitania,
nome da povoação e negociação dos seus habitadores" e a "Advertência"
final.
À primeira vista parece que Oliveira Barbosa, cujo trabalho é de 1792,
enquanto o de Cardoso de Abreu é de 1783, tenha plagiado o segundo. Mas
se considerarmos que Oliveira Barbosa era um nome respeitável, astrônomo
oficial, membro da Academia das Ciências de Lisboa e autor de outro tra-
balho <116), e que Cardoso de Abreu era plagiário contumaz, corno provou
Taunay, tem-se a obrigação de suspeitar que, apesar da divergência de data,
sendo a de Cardoso de Abreu anterior, seria talvez outra tramóia deste, e
que o trabalho de Oliveira Barbosa estaria com data posterior ao real ano
em que a compusera.
Urna crônica sem autor conhecido que deve ter servido aos cronistas
Pedro Taques e Madre de Deus é "Para o Registro e Dietário do
Mosteyro" <117 >.
(114) Inocêncio Francisco da SIiva, DBP, Lisboa, 1870, 1. IX, 352; nenhuma referência em
Sacramento Blake, DBB, Rio de Janeiro, 1895, 3 volumes.
(J15) RIHGB, 1886, 1. 5.0 , 3.• ed., 22-36.
(116) "Latitudes e longitudes calculadas em 1791, por Francisco de Oliveira Barbosa, as
quais ele me comunicou em São Paulo em 1808", ln "Taboadas de Longitudes e Latitudes de
Grande Parte do Brasil observadas pelos astrônomos empregados na Demarcação", RIHGB, 1882,
1. 45, parte 1, p. 147. Há uma nota dizendo que a taboada de Oliveira Barbosa está escrita pela
letra de João Carlos Augusto d'Oyenhausen (depois Marquês de Aracatl).
(117) RIHGSP, 1911, Tours, 1914, vol. XVI. 279-294.

161
CAPITULO II

A HISTORIOGRAFIA DE MINAS GERAIS

1 . Relações e Descrições. 2. Cláudio Manuel da Costa. 3.


José Joaquim da Rocha. 4. Diogo Pereira Ribeiro de Vas-
concelos. 5. "Reflexões sobre a Capitania de Minas Geraes".

1 . Relações e Descrições

1 . 1 . Notícias dos Primeiros Descobridores. Bento Fernandes

O grande acontecimento da descoberta das Minas Gerais, que revolu-


cionou as formas sociais e econômicas da vida brasileira, que fortaleceu
a consciência nacional, não poderia deixar de inspirar uma historiografia
nova e original. Naturalmente, a repercussão da nova vida econômica na
renovação da historiografia não seria imediata e repentina. A grande época
da mineração se estende de 1696 a 1770 e tal como no bandeirismo, do
qual é movimento aliado e conseqüente, só aparecem algumas relações e
descrições, formas primitivas da criação historiográfica. :É preciso que passe
algum tempo para que se inicie o processo de correspondência entre a
pujança do acontecimento político, econômico e social da descoberta e
exploração das Minas e a nova historiografia que vai fixá-la mais madu-
ramente.
A historiografia mineira começa com "Os Primeiros Descobridores
das Minas de Ouro na Capitania de Minas Gerais" O), que aparece na
sua primeira forma como notícia compilada pelo Coronel Bento Fernan-
des Furtado de Mendonça e resumida por Manuel Pires da Silva Pontes.
Como se vê, uma edição que não merecia muita confiança. Orville Derby
acentuou a importância extraordinária da relação e lamentou tivesse apa-
recido em forma resumida <2 >. Diz Taunay não saber por que Silva Pon-
tes não a copiou, resumindo talvez à metade do que era e nesta forma foi
publicada na Revista. Pensa ainda que Silva Pontes calcou-a sobre fragmen-
tos, que completou arbitrariamente, fiado no "Fundamento Histórico" de
Cláudio Manuel da Costa (3l. Orville Derby julgava que o autor desta me-
mória era simplesmente o próprio Cláudio Manuel da Costa, pois "o estilo
da memória atribuída ao Coronel Bento Fernandes acusa antes um literato

(1) RAPM, 1899, ano IV, fase. I e II, 83-98.


(2) "Os prlmelros descobrimentos de ouro em Minas Gerais", RIHGSP, vol. 5, 240-278.
(3) História Geral das Bandeiras Paulistas, São Paulo, 1948, t. 9, 91-97.

162
do que um sertanejo e tendo em vista as relações conhecidas entre o velho
mineiro e o poeta é de se suspeitar que a redação deste documento fosse
também de Cláudio Manuel". Taunay pensava do mesmo modo: "Não
parece nada provável que um homem rústico como Bento Fernandes haja
sido capaz de escrever tão escorreita e, por vezes, tão elegantemente quanto
se nos deparam as páginas do seu relato". Anota ainda Taunay que se os
papéis de Cláudio Manuel da Costa não tivessem desaparecido na voragem
da Devassa da Conjuração Mineira seria fácil atribuir a cada um o que
era seu.
De qualquer modo há grandes coincidências entre a "Memória" de
Bento Fernandes e as relações de Cláudio Manuel e de José Joaquim da
Rocha.
Lê-se no texto da edição de Silva Pontes que Bento Fernandes, em
1702-1703 fora, por ordem do pai, o Coronel Salvador Fernandes, explorar
o sertão meridional, interposto ao Ribeirão do Carmo e ao Rio Guara-
piranga e que a exploração fora obra de muitos meses <4 >;. Salvador
Fernandes Furtado de Mendonça fora o descobridor do próprio Ribeirão
do Carmo, e fizera vários outros descobrimentos de ouro. Era um dos
poucos bandeirantes que possuía livros, não sendo assim de se estranhar
tivesse seu filho alguma formação literária. Nunca se fez uma critica de
atribuição que decidisse a dúvida sobre a autoria e as primazias de uns
e outros.
Coube a Afonso d'E. Taunay encontrar novo texto na íntegra, no
códice Costa Matoso da Livraria do Conde de Ameai, comprado por Felix
Pacheco e após a morte deste, incorporado à Biblioteca Municipal de São
Paulo, e dar este texto à publicidade <5 >.
Segundo Taunay, o resumo de Silva Pontes adapta-se maravilhosa-
mente ao apógrafo que pertenceu a Felix Pacheco, embora haja por vezes
inversão de assuntos, o que em nada prejudica a fidelidade do transunto.
Para ele é possível que o erudito mineiro se haja valido de outro apógrafo,
já que existiam, como contou Teixeira Coelho, múltiplas cópias. A cali-
grafia é magnífica e a letra soberba, enfeitada. A existência possível de
várias cópias pode levar à conclusão de que essa memória foi uma das fon-
tes inspiradoras dos vários autores que se seguem.
Bento Fernandes Furtado de Mendonça (Taubaté? 1690 ? - Serro
Frio 1765) era o quarto filho do Coronel Salvador Fernandes Furtado de
Mendonça, e casou-se com sua prima D. Barbara Moreira de Castilhos
e desta união teve 9 filhos <6 >. Bento Fernandes noticiou os descobrimentos
auríferos dos quais foi testemunha. l:. na verdade a história das desco-
bertas desde a primeira entrada de Antônio Rodrigues Arzão à frente de
50 homens, e de seu cunhado Bartolomeu Bueno de Siqueira, homem forte,
intrépido e ativo, de vários bandeirantes e suas descobertas, das dificuldades

(4) " Primeiros Descobridores•, ob. cit., 89.


(5) Relatos Sertanistas, Coletanea, Introdução e notas de Afonso d'E. Taunay, São Paulo,
1953, 21-57,
(6) Diogo de Vasconcelos, História Antiga das Minas Gerais, 4.• ed. com prefácio de
Francisco lgléslas e Introdução de Baslllo de Magalhães, Belo Horizonte, 1974, vot. 1, 237-239.

163
sofridas no sertão, assaltados por indígenas, mordidos pelas cobras, estro-
piados pela fadiga. Relata a entrada de Fernão Dias aos 80 anos, acompa-
nhado de seu genro Manuel Borba Gato, a descoberta das esmeraldas, o
conflito com D. Rodrigo de Castel-Branco e sua morte por gente de Borba
Gato, a retirada deste para o sertão do Rio Doce, o perdão que obteve
sob a promessa de descobrir novas minas de ouro, o progresso da popu-
lação, do comércio, a dissolução imoral, as tentativas de monopolizar o
tabaco e a carne verde. Descreve, finalmente, a crescente rivalidade entre
forasteiros e paulistas, as discórdias que desde 1707 perturbaram a socie-
dade nascente e darão como conseqüência a Guerra dos Emboabas.
1 . 2 . Os Relatos Sertanistas
Modernamente, Afonso Taunay reuniu em Relatos Sertanistas <7 ) al-
guns documentos históricos e historiográficos sobre o descobrimento das
Minas <8 ). São ao todo cinco: 1) "Notícia - 1.ª Prática que dá ao R. P.
Diogo Soares, o capitão Luís Borges Pinto, sobre os seus descobrimentos
da célebre Casa da Casca compreendidos nos anos de 1726-27-28, sendo
Governador e Capitão General D. Lourenço d'Almeida" (9); 2) "Notícia
- 2.ª Prática dada pelo Alferes ... Moreira ao P. M. Diogo Soares das
suas bandeiras no descobrimento do Celebrado Morro da Esperança em-
preendido nos anos de 1731 e 1732, sendo general D. Lourenço d'Almei-
da" <10 ); 3) "Relação do princípio descoberto destas Minas Gerais e os
sucessos de algumas coisas mais memoráveis que sucederam de seu prin-
cípio até o tempo que a veio governar o Exmo. Sr. Dom Braz da Sil-
veira" <11 >; 4) "Notícia - 3.ª Prática que dá ao R. P. Diogo Soares, o
Mestre de Campo José Rebeilo Perdigão, sobre os primeiros descobrimen-
tos das Minas Gerais do Ouro" (12); 5) "Notícia - 4.ª Prática que dá
ao R. P. Diogo Soares o Sargento-mor José Matos sobre os descobrimentos
do famoso Rio das Mortes" (13).
O Padre Diogo Soares era um jesuíta, matemático-astrônomo, que
junto ao padre também jesuíta e matemático-astrônomo Domingos Capassi
veio ao Brasil por ordem da Metrópole com o intuito de fazer mapas
dos novos descobrimentos. Eram muitos hábeis e a eles se devem muitas
das primeiras observações de latitude e longitude do sertão <14 >. O Alvará
de 18 de novembro de 1729 declarava que para seu serviço e por ser
conveniente ao governo e defesa do Estado, à boa administração da Justiça,
arrecadação da Fazenda, e para se evitarem as dúvidas e controvérsias que
se têm originado dos novos descobrimentos, que se têm feito nos sertões
do Brasil de uns poucos anos a esta parte, para fazerem-se mapas das
terras, não só pela marinha, mas pelos sertões, para que melhor se assi-

(7) Livraria Martins Editora, São Paulo, 1953.


(8) Grande parte destes Relatos haviam sido publicados na RIHGB, 69, !.• parte, 217-309.
Vide CEHB, 941.
(9) Ob. cit., 161-166.
(10) Ob. cit., 167-169.
(11) Ob. clt., 61-81.
(12) Ob. clt., 171-175.
(13) Ob. cit., 177-179.
(14) Visconde de Porto Seguro, História Geral ,1o Brasil, 3.• ed., t. 4, 25-26.

164
nalassem e se conhecessem os distritos de cada bispado, governo, capitania,
comarca ou doação, era necessário o serviço dos dois padres. Aos dois
religiosos, peritos nas matemáticas, mandou dar ajuda de custo, dois criados
que os assistiriam enquanto durasse a diligência, e seriam pagos por conta
da Fazenda Real, determinando que se lhes desse tudo o que fosse neces-
sário para sua subsistência e bom efeito da diligência; determinando tam-
bém que as despesas corriam por conta da provedoria do governo em que
entravam e assim nos mais em que fossem entrando; deveriam ser atendidos
na requisição de guardas e guias para fazerem as jornadas pelo sertão, tanto
de homens brancos, como de índios; todos deveriam prestar-lhes ajuda e
favor e eles tinham instruções sobre a forma de fazerem os mapas, nos
quais acrescentariam à descrição da terra tudo o que a sua especulação e
zelo lhes ditassem c1s).
Mateus Saraiva, membro da Academia dos Felizes (1736) e dos
Renascidos ( 1759), físico-mor <16 >, em carta a Diogo Barbosa Macha-
do <17), afirmou que Diogo Soares andava no Brasil para escrever De Re
Naturali, enquanto Capassi escreveria De Re Astronomica, mas fez Capassi
as observações astronômicas, a carta do Rio de Janeiro e do Rio a Minas
Gerais exatíssimas e comunicadas às academias européias e à Corte, enquanto
o Padre Soares fez, afora essas notícias sobre caminhos e descobrimentos,
várias cartas do Rio da Prata e da Nova Colônia do Sacramento, e muitas
outras, e sobretudo escrevia uma História N aturai dos rios, montes, árvores,
ervas, frutos, animais e pássaros do Estado do Brasil c1s>.
Foi, portanto, para suas cartas que o padre Diogo Soares colheu essas
informações práticas, a primeira iniciativa de história oral no Brasil, com
perguntas e respostas, com dados fornecidos pelos participantes e teste-
munhas das andanças pelo Brasil, exatamente quando ele se expandiu até
tomar a figura física que possui hoje.
Não conhecemos os dados de todos os informantes ou abridores de
caminhos, mas sabemos que José Rebelo Perdigão foi secretário do gover-
nador Artur de Sá e Menezes (1697-1700) e assistiu à ereção da vila do
Ribeirão do Carmo e dela foi eleito Juiz ordinário ( 4 de julho de 1711).
Por ocasião do levante de Vila Rica de 1720 prestou bons serviços ao
governador, que em carta ao Rei escreveu que "me parecia também que
Vossa Majestade devia mandar agradecer na mesma forma ao marechal
(mestre) de campo José Rebelo Perdigão o zelo com que se houve neste
particular, porque, logo que o chamei, veio com bastante número de armas
de seu partido, cuja prontidão não experimentei nos outros". Quando
forneceu as informações ao Padre Soares era mestre de campo e morador
em Minas e no Ribeirão do Carmo havia trinta anos <19 >.
(15) Alvará in Barão Homem de Melo, "Documentos relativos à história da Capitania",
RIHGB, vol. 40, !.• parte, 193-195. A tabuada das latitudes e longitudes vem na RIHGB, t. 45,
1:• parte, 125· 126.
(16) Vide sua bloblbliografla ln Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil, ob. cit.,
vol. 4, 72-73, e Alberto Lamego, Academia Brasillca dos Renascidos, Paris, 1923.
(17) RIHGB, 1865, 6, 2.• ed., 365-369.
(18) Nota 83 de Rodolfo Garcia in Visconde de Porto Seguro, História Geral do Brasil,
ob. cit., t. IV, p. 26.
(19) Vide nota 13 ln Visconde de Porto Seguro, ob. clt., t. IV, p. 120.

165
1 . 3 . Memórias e Informações
Martinho de Mendonça de Pina e Proença ( Guarda, Portugal, s.d.
- ? 1743) foi fidalgo da Càsa Real, deputado no Conselho Ultramarino,
guarda-mor da Torre do Tombo, e acadêmico da Academia Real de His-
tória <20 >, escreveu um histórico da descoberta dos Diamantes, enviado ao
Conde de Sabugoza, assinado de Vila Rica aos 23 de setembro de 1734 (21 >.
Na nota que acompanha a edição da Revista do Arquivo Público Mineiro
se diz que anteriormente à cópia de Antonio Olyntho de que se serviram,
já conhecia a direção outra cópia feita por Capistrano de Abreu, que desde
1896 dava notícia dessa memória em carta escrita a Xavier da Veiga.
Declara Augusto de Lima saber por intermédio de Orville Derby que a
Capistrano de Abreu se devia a cópia e o importante serviço de reunir as
duas partes da memória que estavam separadas, além de ter descoberto o
autor da memória <22 >. Já na edição da Revista do Instituto· Histórico e
Geográfico Brasileiro se transcrevia o trecho definidor: "Exmo. Snr. Meu
Senhor. Da relação inclusa verá V. E. o que tem passado acerca dos limites
do Cerro Frio, segundo a informação de pessoas as menos apaixonadas,
pedindo a V. Ex. perdão de lhe mandar escrito de minha péssima letra".
A história é bem contada e começa em 1714, quando primeiro se
achou o diamante, e reúne a legislação com que se procurou fiscalizar a
descoberta e evitar o descaminho. Foi em 1733 que se tiraram os me-
lhores diamantes, tantos que "se começou a conhecer que estava já tudo
exausto e alguns mineiros pediram cartas de datas para ouro e começaram
a fazer lavras em que ocupar os seus escravos e publicando-se bando para
a capitação de 1734 foram muito poucos os que registraram". Este bando
é de 2 de dezembro, e nele se põe o mais exato cuidado em "evitar o
luxo das mulheres públicas como já se tinha feito no antecedente e agora
se mandaram sair de toda a comarca". Informa haver quem pense que
"nunca a fazenda real poderá tirar dos diamantes do Cerro a despesa que
com a intendência, destacamento e capitães do mato há de fazer na guardá.
dos diamantes, porque os rios e córregos· estão todos exaustos, menos em
algumas raras paragens impossíveis de lavrar". E acrescenta ao final:
"Não se duvide que desta informação discordem quase todos quanto ao
estado presente, porque quase todos por paixão ou interesse desejam se
ignore o estado presente das minas dos diamantes e muitos que se igual-
mente oculte o passado".
A "Informação sobre as Minas do Brasil" <2 31 compõe-se na verdade
de quatro códices da Biblioteca da Ajuda, mandados copiar por Luís
Camilo de Oliveira Neto e publicados por Rodolfo Garcia nos Anais da
Biblioteca Nacional. Apresenta a "Informação" unidade temática apesar
de composta de quatro diferentes documentos e por isso se pôde reuni-los

(20) Inocêncio Francisco da Silva, DBP, Lisboa, 1862, t. 6, ISS, e t. 17, 7.


(21) "Diamantes. Histórico de sua Descoberta", RIHGB, 1901, t . 63. parte I, 307·319, e
RAPM, 1902, ano VII, fase. 1 e 2, 251·263 .
(22) Ed. da RAPM, nota 1, p. 2SI.
(23) ABN, 1939, vol. S7, 159-186.

166
e dar-lhes um título geral que não possuía na Biblioteca da Ajuda. Escre-
veu Rodolfo Garcia, na explicação que antecede o documento, que ele é
anônimo e deve datar dos últimos anos do século XVII e primeiros do
seguinte, porque não se refere à guerra dos Emboabas ( 1708-1709). No
primeiro códice reproduzido, no qual se diz que "os interessados nas Minas
de São Paulo" (note-se a insistência com que se escreve nos documentos
"as Minas de São Paulo", por terem sido os paulistas seus descobridores)
"as avaliam por mais do que são e outros por menos do que mostram",
afirma-se que o papel é o próprio que foi feito e se deu ao Conde de
Atouguia, que parece ser mais D. Jeronyrno de Ataíde, o 6.° Conde de
Atouguia, governador da Bahia (1654-1657) que o 10.° Conde de Atou-
guia, D. Luís Pedro Peregrino de Carvalho de Menezes e Ataíde, gover-
nador e 6.0 vice-Rei do Brasil (1749-1754), pelas referências do texto aos
ataques dos holandeses, que acabavam de ser derrotados. Nele se escreve
que é necessário um grande ministro "para atrair com o agrado ou com a
força os ânimos daqueles sediciosos e turbulentos, porque é a Rochela do
Sul, a Capitania de São Paulo" (24).
O documento parece, assim, ser da segunda metade do século dezes-
sete, tal corno o segundo, que é datado de Lisboa, 16 de novembro de
1662, e que descreve corno se deve tirar o ouro; refere-se também ao episó-
dio holandês tão próximo, declara que "vão a tirar este ouro na maneira
sobredita os moradores de São Paulo, e mais vilas circunvizinhas que têm
cabedal de escravaria para o poderem fazer, que os pobres de três e quatro
até dez escravos é impossível pela distância que se alongam de suas
vivendas". Mostra por que não se povoaram tanto as capitanias do Sul
corno as do Norte e afirma, peremptório: "é esta povoação do Rio de
Janeiro, pouco atrás nada; hoje é a segunda praça daquele Estado (do
Brasil), na estimação vulgar e própria para os interesses e aumento
desta monarquia"; refere-se a que os moradores de São Paulo faltos de
escravaria de Guiné, que não têm, buscam as dos índios. Trata depois
de como assentar as Minas e fazê-las rendosas, ainda quando se. as pro-
curavam e não haviam sido descobertas, baseando-se principalmente nas
pesquisas de Marcos de Azeredo, descobridor da chamada Serra das
Esmeraldas. Propõe meios de evitar as dificuldades para a descoberta,
e corno melhor fazê-la.
O terceiro códice é datado de 15 de setembro de 1693, e dirigido
por Mendo F oyos Pereira a Antonio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho,
governador na Bahia ( 1690-1694), o que deu a base para a data dada ao
conjunto por Rodolfo Garcia. Ele trata dos caminhos para o sertão,
inclusive do novo aberto nesta época por Garcia Rodrigues Paes, filho
de Fernão Dias Paes, e dos caminhos para a Bahia, Pernambuco e
Maranhão e os da costa para o sertão e explica os três caminhos com

(2'4) Veja-se a comparação, que multo desvanece São Paulo, comparada àquela verdadeira
Repíibllca autônoma na França, bastião dos protestantes e que com tar,ta valentia resistiu ao
assédio de Rlchelleu (1627-1628).

167
que se entram no sertão (25l. Nesta parte o documento mostra ter sido
escrito depois da revelação do ouro ( 1694), quando já tratava do gado
conduzido pelo caminho do S. Francisco, que ia para sustentar o povo
das Minas, já que São Paulo e Rio não o possuíam e discute a impos-
sibilidade de vedar este caminho, sendo um dos motivos o de que os
moradores das minas são absolutos e qualquer vaqueiro ou paulista entra
e sai pelos sertões sem que todos os exércitos da Europa sejam bastantes
para os impedirem. Como impedi-los, pergunta-se. "Com preceitos?
Não obedecem. Com força? A maior não basta. Com indústria? Não
se descobrem eficazes, porque a qualquer supera a sua malícia." Propõe
a vedação das Minas aos frades, pois era grande a multidão deles que as
procuravam, aos estrangeiros, e os havia de todas as nações, e a limitação
dos negros e escravos que cada Senhor podia levar. O final revela o
respeito que se tem aos paulistas pelo seu destemor às leis, e o apreço que
possuem pelas. honras e fazendas. Como se vê, esta "Informação" é mais
um conjunto de documentos bem elaborados, que uma relação única,
embora seja una e coerente.
Não pertence à historiografia mineira o folheto Prodigiosa Lagoa
descuberta nas Congonhas das Minas do Sabará, que tem curado a varias
pessoas dos achaques, que nesta Relação se expõem (26), nem são pro-
priamente documentos historiográficos as várias Instruções que governa-
dores deixaram aos seus sucessores, embora sejam valiosos documentos, de
grande peso para a história política, administrativa, social e econômica.
São assim a "Instrução e Norma que deu o Illmo. e Exmo. Sr. Conde de
Bobadela a seu irmão o preclaríssimo Sr. José Antônio Freire de Andrade
para o governo de Minas, a quem veio suceder pela ausência de seu
irmão, quando passou ao sul" (2 7 l, que é um primoroso guia, cheio de
reflexões sobre como governar, de informações sobre a gente principal e
seus interesses, sobre os que merecem fé e os que merecem vigilância.
"Ouvi muito, escrevei e falai o que basta", e adverte que as partes nas
audiências estão sempre queixosas das insolências dos outros ou questio-
nando terras. Fala de ouvidores, desembargadores, intendentes, seus
interesses e paixões. Tudo é dito com brevidade, e "vos afirmo tenhais
por certo que nelas só o que se não faz é o que se não sabe". As
instruções do próprio Ministro de Estado para o governador nomeado são
documento do mesmo gênero, conhecendo bem o que o governo colonial
deve fazer para satisfazer o governo real. Não tem o conhecimento da
gente e dos costumes, que o governador passado transmite ao novo.
As "Instruções para D. Antônio de Noronha, governador e capitão
general da capitania de ·Minas Gerais" (28l, assinadas pelo secretário de

(25) Capistrano de Abreu nos Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, Rio de Janeiro,
1930, p. 70, desconhecendo este documento, com base em outros, descreve os três caminhos. O
artigo de Capistrano, publicado neste volume editado pela Sociedade Capistrano de Abreu, é de
1889.
(26) Lisboa, 1749, descrito por Ramlz Gaivão, "Diogo Barbosa Machado. Catálogo de suas
Coleções•, ABN, 8, n .0 1583, p. 377.
(27) RIHGB, t. XVI, 366-376 e RAPM, julho e dezembro de 1899, Belo Horizonte, 1900,
Ano IV, Fase. III e IV, 727-735; a segunda é reprodução da primeira.
(28) RIHGB, 1865, t. 6, 2.• ed., 215-221.

168
Estado Martinho de Melo e Castro, aos 24 de janeiro de 1775, começam
afirmando sua principal finalidade: "é a que tem por objeto a defensa,
conservação e segurança de todos, e cada um deles" ( os domínios).
"Todas as colônias portuguesas são de Sua Majestade, e todos os que
as governam são vassalos seus", determinando que uma atacada deve ser
socorrida com todas as forças. A principal instrução consiste em examinar
e pôr em estado de ser útil a tropa paga, a regular, e depois a irregular
formada pelas milicias "e mais habitantes, compreendidos os mulatos e
negros, para deles poder escolher os moços mais fortes, robustos e desem-
baraçados". Não se deve permitir que as regulares sejam maíores que
as auxiliares, porque estas são as que "em tempo de paz cultivam as
terras, criam os gados e enriquecem o país com o seu trabalho e indústria,
e em tempo de guerra são os que com as armas na mão defendem os seus
bens, as suas casas e as suas famílias, das hostilidades e invasões inimigas".
Aponta os abusos dos privilegiados das igrejas, conventos, Santo Ofício
e bulas, que os isentam do serviço militar, de que toda a América se
acha inundada, particularmente a capitania de Minas Gerais, onde tem
mais que tirar, e adverte para que se despreze esses privilégios e isenções,
sempre que se precisar, pois sem tropa não se podem conservar e subsistir
as nações, já "que a segurança e saúde dos povos e dos Estados é e foi
sempre a suprema lei".

Martinho de Melo e Castro, nas "Instruções a Luís de Vasconcelos


e Sousa acerca do governo do Brasil" <29 >, adverte ao 4. 0 Vice-Rei do
Brasil ( 1779-1790) aos 27 de janeiro de 1779 que "entre as muitas e
muito importantes obrigações do governo de V. Ex. são as principais, as
que têm por objeto a conservação, e aumento da religião, a exata, imparcial
e pronta administração da justiça aos povos, a boa arrecadação, e admi-
nistração da real fazenda, a conservação da tropa, e forças do Estado, a
cultura das terras, a navegação, e o comércio, um vigilante cuidado em
evitar os contrabandos, e tudo quanto respeita à polícia da capital do
Brasil, que V. Ex. vai governar". E logo adiante admite que "a conser7
vação das tropas na América, particularmente no Rio de Janeiro, é tão
indispensavelmente necessária, como é demonstrativamente certo, que sem
Brasil, Portugal é uma insignificante potência; e que o Brasil sem
forças é um preciosissimo tesouro abandonado a quem o quiser ocupar".
O próprio Martinho de Melo e Castro noutra Instrução (30J, de 29
de janeiro de 1788, revela um conhecimento muito mais amplo que o
Secretário de Estado comum e não se reduz a poucas reflexões sobre as
intenções da política colonial portuguesa no Brasil. Abre a Instrução de-
clarando que a capitania de Minas Gerais "é, pela sua situação, e pelas
suas produções, uma das mais importantes de todas as outras capitanias
de que se compõem os domínios de Brasil e América Portuguesa".

(29) RIHGB, 1862, t. 25, 479-483.


(30) •instrução para o Visconde de Barbacena Luís Antônio Furtado de M,ndonça•, RIHGB,
1865. t. 6, 2.• ed. 3-59.

169
Descreve-lhe a posição geográfica, sua produção e comercio, interno
e externo, e reafirma ser uma colônia vantajosamente situada, que pode
no tempo de guerra contribuir poderosamente para a defesa e segurança
das outras capitanias e "em tempo de paz fertiliza com o seu ouro os
campos e terras de todo aquele continente, de que se tiram copiosos frutos,
que vêm ultimamente enriquecer os vassalos deste reino, e igualmente o
Real Erário". Estabelece os pontos fundamentais para um sólido, ativo e
prudente governo e para que assim floresça e prospere esta importan-
tíssima colônia.
Acusa os párocos de oprimirem os povos, que têm feito representa-
ções e clamores contra as extorsões de que são vítimas e imputa aos
juízes abusos e prevaricações. Queixa-se de que "entre todos os povos
de que se compõem as diferentes capitanias do Brasil nenhuns (sic) talvez
custaram mais se sujeitar e reduzir à devida obediência e submissão de
vassalos ao seu soberano, como foram os de Minas Gerais", e conta as
dificuldades para aquietar os aventureiros de São Paulo que se tinham
estabelecido lá e os forasteiros, que vieram de várias partes. Divide os
habitantes entre os úteis e laboriosos, os ociosos e vadios, e deseja que
se animem os primeiros e se desterrem os segundos.
Afirma, às vésperas da conjuração mineira, que os habitantes "não
satisfeitos -::om os tesouros que a terra lhes oferece, menos com o útil
comércio que deles resulta, estendendo sua vista a outros objetos, se
determinaram a estabelecer em Minas Gerais diferentes fábricas e manufa-
turas", e relembra uma carta do ex-governador D. Antônio de Noronha,
de 1775, na qual dizia: "Lembro-me que V. Ex. me falou a respeito das
fábricas estabelecidas nesta capitania, as quais eu encontrei em um au-
mento considerável, que se continuassem nele, dentro de muito pouco
tempo ficariam os habitantes desta capitania independentes das desse
reino (Portugal) pela diversidade de gêneros que já nas suas fábricas se
trabalhavam". Mas como se soube que em outras partes do Brasil se
haviam erigido diferentes manufaturas com gravíssimo prejuízo, expediu-se
o alvará de 1785 que proibiu as fábricas. Fala ainda do extravio e con-
trabando do ouro que tem crescido, e das tropas e forças de Minas, que
reorganiza e expande para que o domínio se estabeleça com força. Essa
parte e a da administração da Fazenda Real, sobretudo o fisco, isto é, o
quinto do ouro e o contrato das entradas, são as mais minuciosas e prag-
máticas. Trata, ainda, da cobrança da entrada para os gêneros comestí-
veis molhados e secos, e historia todos os contratos e imposições, deter-
minando que se acabe com a deplorável situação a que se acha reduzida
a capitania de Minas.
Mas nenhuma Instrução tem o valor documental e a significação
historiográfica daquela escrita pelo desembargador da Relação do Porto,
José João Teixeira Coelho (31 >, uma descrição geográfica e histórica, uma
análise da administração, uma compilação das leis que a governavam, e

(31) "Instrução para o Governo da Capitania de Minas Gerais", RIHGB, 1888, t. 15, 2.• ed.,
255-481, reproduzida ín RAPM, janeiro a junho de 1903, ano II, 399-581; em Extrato, na RIHGB,
1844, t. 6; 2.• ed., 1865, 292-304.

170
um conjunto de reflexões sobre o estado político, eclesiástico e econômico
da Capitania de Minas Gerais. Sua história abrange desde o descobri-
mento do ouro (1694) até o governo de D. Antônio de Noronha
(1775-1780), portanto, quase um século. Ele residiu onze anos em Minas,
viajou muito, serviu a três governadores, e pôde, assim, escrever um dos
mais importantes estudos sobre a capitania no século dezoito. Neste caso,
a "Instrução" adquire pleno caráter historiográfico, pelas valiosas infor-
mações que coligiu em ordem coerente e reflexiva.
Já escrevi ser necessário não esquecer que o primeiro grande trabalho
sobre administração colonial é este de José João Teixeira <32 >. Hoje (1978)
diria que a "Instrução" é uma verdadeira enciclopédia sobre as Minas
no seu primeiro século. Ela contém tudo que se busque: descrição geo-
gráfica, vila por vila, com seus dados estatísticos e econômicos, religiosos
e sociais. Trata dos limites da capitania, faz as reflexões sobre o estado
poUtico, enumerando os vários abusos, compila a legislação, trata dos
cargos e instituições, passa para as reflexões eclesiásticas, e depois histo-
ria, governo por governo, desde Antônio Paes de Sande (1693-1694) até
D. Antônio de Noronha (1775-1780); examina as revoltas, os bandidos
que infestavam sítios remotos, e diz que em Minas "a virtude é sufocada
pela ambição, pela soberba e pelo orgulho, e a riqueza é que faz a honra e
a veneração pública". Depois de estudar os governos, abre capítulos sobre
o quinto do ouro, calcula os rendimentos do mesmo de 1700 a 1777,
trata da extração do ouro, da pobreza dos mineiros, da falta de negros,
das demandas sobre as terras mineiras, do mau método de minerar; aponta
os vários direitos que se pagavam, cuida das rendas reais dos contratos,
da moeda corrente, dos contratos e dízimos; calcula o rendimento das
entradas, das passagens pelos rios das Mortes e Grande, de vários
outros rios, de 1718 a 1776, enumera os vários ofícios da justiça e da
fazenda nas várias comarcas; analisa o subsídio voluntário e seu rendi-
mento pelas Câmaras; propõe meios para destruir os extravios dos dia-
mantes, fala da entrada de mascates e negociantes e negros supérfluos no
distrito diamantino, e da piedade para com os negros extraviadores, e,
enfim, das esmeraldas, dos topázios e de outras pedras preciosas; reflete
sobre o problema das sesmarias, dos engenhos de açúcar e da aguardente
de cana, da tropa paga e auxiliar, e da falta de polícia (costumes).
Esqueceu-se dos povoadores paulistas com suas pretensões nobiliár-
quicas que descobriram as minas e só se lembrou dos forasteiros, dos
emboabas. "Os povoadores da dita capitania ou são, ou procedem dos
Europeus que se transportaram a ela excitados pela esperança dos seus
interesses. A maior parte deles eram ou réus de delitos, ou pessoas que
nas suas terras não tinham mais do que aquilo que ganhavam pela enxada,
ou pelos ofícios vis que exercitavam. Estes homens, que cá no reino eram
a escória do povo e o desprezo dos bons, vendo-se em um país extenso
e cheio de liberdade, fazem-se insolentes, e querem ser fidalgos." Declara
que os brancos e brancas não querem servir pois se persuadem de que lhes

(32) Teoria da História do Brasil, 4.• ed., 1978, 399·402.

171
fica mal um emprego que entendem só competir aos escravos. A oc1os1-
dade dos brancos se transportou aos mulatos e negros forros que não
querem trabalhar nem servir. Os mulatos ociosos se empregam no exer-
cício da música, "os quais são tantos que certamente excedem ao número
dos que há em todo o Reino. Mas que interessa ao Estado esta aluvião de
músicos?" <33 >.
Segue-se o "Diário da Jornada que fes o Exmo. Senhor Dom Pedro
desde o Rio de Janeiro athé a Cid.e de São Paulo, e desta athé as Minas,
Anno de 1717" <3 4>. Trata-se de Dom Pedro de Almeida (1688-1756),
3. 0 governador da capitania independente de São Paulo e Minas do Ouro
( 171 7-1721 ) , 3.° Conde de Assumar, depois 1. 0 Marquês de Alorna e
Vice-rei da fndia, um dos administradores cuja politica foi das mais con-
trovertidas, e a prova está na rebelião de 1720.
Como escreveu Luís Camilo de Oliveira Neto, na excelente intro-
dução que antecede o "Diário", são numerosos os juízos desfavoráveis a
Dom Pedro de Almeida, mas que ainda assim ele se inclui na galeria dos
administradores com que contava Portugal para o exercício de sua política
colonial. Nomeado aos 26 de fevereiro de 1717, sua viagem não de
Portugal ao Rio e deste a São Paulo, mas daí a Minas, é relatada dia a
dia, por um autor anônimo, provavelmente amigo do governador, consti-
tuindo o "Diário da Jornada" (35J.
Chegado ao Rio aos 24 de julho, seguiu por mar para Santos, gastou
dois dias subindo a serra, permaneceu quase um mês em São Paulo e
somente a 4 de setembro tomou posse do governo. Como acentuou Luís
Camilo, há um salto de 9 a 26 de setembro, e quanto ao roteiro ele
não difere do de Antonil, que lhe é anterior; chega a Vila Rica em de-
zembro de 1717. Afora as noticias de caráter geográfico, o "Diário da
Jornada" contém muitas informações históricas, sociais e econômicas, e
sobretudo da atualidade que presenciou. Grandes fazendas, com nume-
rosa escravaria e avultada criação de gado, os alimentos nativos, o velho
caminho Ilha Grande, Parati, Guaratinguetá, Santos, Bertioga e a subida
a São Paulo.
Para o autor, a pobreza está sempre ligada à preguiça, vícios sociais,
de que são sempre acusados os brasileiros. Ridiculariza a vestimenta 'dos
paulistas por ocasião da chegada a São Paulo, aponta as belezas das
numerosas capelas, conta as casas que possuía São Paulo ( 400), Mogi
(200) e Taubaté (500), a maior de todas, e registra a alimentação.
Acusa os naturais de São Paulo de violentos e assassinos, e afirma que
São João dei Rey, apesar de ser uma das vilas mais bem plantadas, é
uma das piores por ter quase todas as casas de palha e muito separadas.
A recepção da chegada a Vila Rica é descrita com muita atenção, não
sem observar que há grande carestia de oficiais de qualquer ofício mecâ-
nico. "A Vila de Ouro Preto, ou por outro nome Vila Rica é uma das
(33) "Instrução" citada RIHGB, 458, n. 0 6.
(34) RSPHAN, Rio de Janeiro, 1939, vol. l, 295-316, com Introdução de. Luls Camilo de
Ollvelra Neto.
(35) O original encontra-se na Academia das Ciências de Lisboa e foi copiado por Rollln
de Macedo do antigo Arquivo Histórico Colonial de Lisboa.

172
de maior comerc10 das Minas, porque fica sendo uma barra de todas,
aonde continuamente estão entrando carregações do Rio de Janeiro e da
cidade de São Paulo" (36).
O Itinerário geográfico com a verdadeira descrição dos caminhos,
estradas, roças, sítios, póvoações, lugares, vilas, rios, montes e serras, que
há da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro até as Minas do Ouro(37>
teve sua primeira edição em Sevilha, no ano de 1732.
Capistrano de Abreu, em carta a Lino de Assunção em 1895 (38),
depois de escrever que "um dos problemas capitais da história do Brasil
é o estudo dos bandeirantes, no qual nada quase há feito ou antes tudo
está por fazer", e que este era o assunto a que se entregava com predi-
leção, pede que lhe mande "cópia de um livro que foi publicado em Se-
vilha em 1732, mas que é raríssimo tanto que apenas são conhecidos
dele três exemplares". Era o Itinerário Geográfico, cuja raridade dava-lhe
- importância", e a sua data não lhe dava menos - porque excetuando-se
a de Antqnil, aliás, muito resumida, as outras descrições são do século
atual, por conseguinte quando os caminhos já deviam ter sofrido altera-
ções <39 >.
O Itinerário Geográfico tinha esse valor, o de reconstituir os antigos
caminhos para Minas. "Eu empreendi ordenar e descrever um Itinerário
Geográfico em que se incluíssem os limites do governo de São Paulo e
Minas, não só por persuasão de algumas pessoas curiosas, que desejavam
semelhantes notícias, mas para que saibam os incógnitos espaços daquele
País, e desterrar os incertos conceitos de todos os que o não têm versado, e
porque colhi de tudo verdadeiras notícias, razão será que se me dê inteiro
crédito a tudo neste Itinerário referido, pois é filho de uma notícia muito
individual" (40).
Confessa achar a matéria prolixa e embaraçada, mas a considera útil
e proveitosa às coisas civis dos negócios do Príncipe, e às facções militares. O
Itinerário descreve a costa marítima a partir de Santos, as ilhas, as povoa-
ções marítimas, o caminho para as Minas partindo de Santos, os sítios e
roças do caminho, o caminho velho e o novo, a série de rios, a descrição
do Rio da Prata, do S. Francisco, do Paraíba do Sul, do Espírito Santo, do
rio Doce, as Serras, as Lavras, as Comarcas e as vilas, segundo a antiguida-
de, Vila do Carmo, Vila Rica, Vila Real, Vila de S. João dei Rey, Vila
Nova da Rainha, Vila Nova do Príncipe e Vila da Piedade.
(36) Ele deixou uma • Instrução ao seu sucessor no vice-reinado da fndia, Marquês de
Távora". Ver Inocêncio, DBP, Lisboa, 1862, t. VI, 383, e t. XVII, 176.
(37) Sevilha, 1732, reproduzido sem nome de autor por Orvllle Derby, "Um mapa antigo
das partes das capitanias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro•, ln RIHGSP, 1896-97,
vol. 2, 197-219; e sob o titulo "Documentos Interessantes. O Itinerário do Rio de Janeiro até as
Minas de Ouro de 1732, por Francisco Tavares de Brito•, RIHGSP, 1898-1899, vol. 4, 449-452;
e RIHGB, 1956, 230, 428-441.
(38) Cartas de Capistrano de Abreu a Lino de Assunção, Lisboa, 1946, 25-28, incorporadas
à 2.• ed. da Correspond2ncia, 1977, 3. 0 vol.
(39) Não foi a cópia pedida por Capistrano a que serviu à edição do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, nem o próprio livro, mas uma outra •extraída de uma certidão notarial
verbum ad verbum junto aos autos de um processo de reivindicação de terras", pertencente a
um conjunto de documentos de Francisco Marques dos Santos, explica Clado Ribeiro Lesse na
nota que precede a reedição.
(40) RIHGSP, ob. cit., 430.

173
A "Informação do capitão-mor de Mogy das Cruzes sobre as Minas
de Sapocahy" (4t) trata da descoberta das Minas da Campanha do Rio
Verde, realizada entre 1746 e 1747. Foi Gomes Freire de Andrada quem
mandou o ouvidor Tomás Rubi tomar posse contra os moradores que
quiseram impedir a passagem. Trata-se de uma narrativa dos aconteci-
mentos de Santa Ana do Sapucaí, feita, ao que parece, em 1765, a pedido
de D. Luís Antônio de Sousa Botelho e Mourão (governador de São
Paulo, 1765-1775). Mostra completo conhecimento dos fatos e documen-
tos da época, inclusive que nenhum dos moradores assinou o auto prepa-
rado por Tomás Rubi. Essa é a versão paulista; a mineira está na carta
de Gomes Freire de 1749 <42 >. Relata também as determinações de Gomes
Freire para evacuação "dos negros quilombados que infestam com avul-
tadas correrias, roubos, mortes e outros insultos toda a extensão do Cam-
po Grande". Trata também das usurpações de São Paulo das Minas que
pertenciam legitimamente à Capitania de Minas Gerais.
A "Informação da Capitania de Minas Gerais" de Basílio Teixeira de
Cardoso Sá Vedra Freire <43> foi dada em carta datada de Sabará, de 30
de março de 1805 (44).
"A Capitania de Minas Gerais", começa o Autor, "que fez as gran-
des riquezas dos feiices Reynados do Snr. D. João o 5.0 , e do Snr. D. José
I. 0 de feliz memoria, se acha em estado de pobreza e de mizeria; a abun-
dancia das suas minas se fez sensível no abatimento do valor da moeda
da Europa inteira, fvi inveja de muitas nações, e este Paiz se acha agora
n'hum extremo de mizeria". Explica que o direito do quinto do ouro "exce-
deu alguns anos a 100 arrobas e deu a quantia de um milhão e meio de
cruzados; os direitos de entrada, os direitos dos ofícios da Justiça, o sub-
sídio, os dízimos produziram somas imensas; os negociantes dos portos
do mar do Brasil se fizeram ricos com o comércio de Minas" e os habitado-
res destas julgavam que o ouro se lhes não acabaria, porém toda esta bri-
lhante face se transtornou. Relata a decadência, com a diminuição pro-
gressiva do quinto, dos outros rendimentos e que os negociantes dos portos
do mar têm perdido muito com os devedores falidos em Minas; a dívida
da Comarca de Sabará era de dois milhões só à Real Fazenda, sem contar
outro tanto a outros credor:!s, e o mesmo acontecia em Vila Rica, Rio das
Mortes e Serro Frio. "Toda a capitania ( exceto poucas pessoas) é povoada
de negociantes, mineiros, e fazendeiros falidos ou quase a falir, conservada
por indústria ou manha e uma multidão de povo de mulatos, e pretos,
forros sem ofício, e sem aplicação, vadios, e com os mais vícios, que a este
andam unidos."
As causas deste mal se acham na riqueza achada de repente, e com
facilidade, não nascida da indústria ou do trabalho "fará sempre o mesmo
dano, tanto mais violentamente quanto for a abundância do ouro, e depois

(41) DIHCSP, 1896, vol. XI, 50-51.


(42) DJHCSP, 1896, vol. XI, 49-50.
(43) RAPM, 1897, ano II , fase. IV, 673-683.
(44) Cópia extraída da cópia contemporânea existente na Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, e registrada no CEHB, n .0 6.559.

174
a sua falta; porém a esta tendência natural se têm juntado alguns motivos
particulares para acelerar a decadência". Depois enumera causas sociais.
"Os casamentos, e mais ainda as mancebias dos proprietários com mulhe-
res pretas e mulatas têm feito mais de três partes do povo de gente liberta,
sem criação, sem meios de alimentar-se, sem costumes e com a louca
opinião de que a gente forra não deve trabalhar." Critica a extensão de
terras que muitos têm acumulado, o que impede a outros minerar ou cul-
tivar grande parte delas. Atribui ao extravio de negros para as possessões
espanholas um grande prejuízo, pois faltam negros escravos e os que che-
gam alcançam preços exorbitantes. As autoridades civis e militares têm
permitido o crescimento da devassidão, e os arrendamentos dos ofícios da
justiça e dos direitos reais têm caído em homens incapazes.
As palavras são fortes, o retrato é negro, a decadência é extraordiná-
ria, mas "o principal defeito é a falta de indústria, ociosidade, vícios da
plebe, luxo sem meios, bazófia mesmo da maior parte dos particulares";
como se vê, causas morais. Outro grande prejuízo é a ocupação de terreno
incomensurável pelos Botocudos às margens do Rio Doce "que é constan-
temente reputado por muito rico de ouro e muito fértil em todos os
gêneros".
Os remédios ele os aponta: lei proibindo aos mulatos a sucessão le-
gítima dos brancos, só podendo obter alimentos; que se assinasse certa
porção de terreno, certo número de datas, para que eles (os mulatos) não
pudessem possuir maior extensão, e fossem obrigados a se empregar nos
ofícios e artes liberais "para que costumam ter muita habilidade". Os pre-
tos forros, filhos do País, chamados crioulos, merecem muita atenção;
principalmente proibir que uns pretos possam ter outros em escravidão e
nem os mulatos a outros mulatos e menos que os mulatos sejam escravos
de negros, pois tem-se chegado ao abuso de filhos comprarem os pais, irmãos
e irmãs, não lhes deixando gozar plena liberdade. Quer que se tome provi-
dência contra os abusos das crueldades contra os escravos, o trabalho dema-
siado, "sem ver que por ele perdem anos de serviços", que os escravos
yiveriam mais, a falta de alimentos, o uso de maus alimentos, a falta de
tratamento nas doenças, alforrias quando os escravos nem podem ganhar
para alimentar-se e a falta de instrução em religião e moral.
Sá Vedra é preconceituoso, e revela uma posição social de classe
média, parece ser um funcionário elevado. Se tem tanta preocupação com
a posição social das raças e as relações raciais é, de certo modo, menos
regressista quando pleiteia a repartição das terras, e das águas minerais'.
Quer uma ordem jurídica para julgar os crimes de mulatos e pretos até no
caso de morte, e, quanto aos brancos, que sejam julgados pela Relação do
Distrito, pelas más culpas, mas não sejam obrigados os culpados a ir a ela.
Recrimina o peso dos tributos, e deixa em silêncio o Distrito Diamantino
que diz ignorar inteiramente. Idéias e propostas são apresentadas na con-
vicção da utilidade das mesmas para a restauração mineira.

175
O "Compêndio das Bpocas da capitania de Minas Geraes desde o
Anno de 1694 até o de 1780" <45 > contém seletiva informação dos princi-
pais acontecimentos anuais que não se limitam às descobertas ou a medidas
administrativas, mas incluem preços de gêneros, as rebeldias dos brancos
e os quilombos dos negros.
As "Considerações sobre as duas classes mais importantes de povoa-
dores da capitania de Minas Geraes, como são as de Mineiros e Agricul-
tores, e a maneira de as animar" <4 6) começam registrando a decadência de
Minas, onde só se vêem ruínas e despovoação. "Uma gente degenerada de
costumes, que eles ou seus pais foram escravos . . . servindo de peso ao
Estado, pois vivem ou do furto ou esmola, gente de cor chamada, formam
os habitantes destes lugares, enquanto os filhos dos antigos e ricos minei-
ros, caídos em pobreza, se ocultam nas roças. Alguns mineiros, a maior
parte deles empenhados ou falidos, ainda sem esperança nas suas minas."
/

Trata das dificuldades de minerar, das contribuições que pagam os


mineiros, historia as formas de tributos, dá preços de escravos e gêneros
e lastima o desprezo pela agricultura, limitada à de subsistência. Aponta
as causas da ruína, a primeira devida ao Estado, que, desaparecida a ri-
queza mineira, não deu aos povos a direção para a agricultura, pelo con-
trário, proibiu até a construção de engenhos. A outra causa era a aspereza
dos caminhos. "A agricultura é a mãe das artes, e fundamento da subsis-
tência e riqueza das nações, e sempre em toda parte foi um objeto digno
das maiores atenções." Defende que se ensine os povos a agriculturar a
terra e se lhes infunde o gosto e gênio para esta maneira de vida. Pleiteia
que se procure animar a mineração e a agricultura. Fala dos sertões de Mi-
nas, da extensão e fertilidade de seu terreno, do Rio S. Francisco, que corre
pelo centro, do clima e da importância das salinas para Minas e Goiás.
A "Memória sobre a utilidade pública em se extrair o ouro das minas
e os motivos dos poucos interesses que fazem os particulares, que mine-
ram igualmente no Brasil" <47) representa também o esforço sugestivo para
a reconstrução de Minas, em completa decadência. Foi escrita por Antônio
Pires da Silva Pontes Leme (Minas 1750? - Rio de Janeiro 1805), for-
mado em matemática pela Universidade de Coimbra, colega de Francisco
José de Lacerda e Almeida e depois companheiro deste e de Ricardo Franco
de Almeida Serra na comissão demarcadora de limites do Tratado de
1770. Fez várias explorações pelos rios Branco, Guaporé, Tapajós e Jauru,
sobre os quais escreveu Diários <48 >.
No prolegômeno cita um artigo de uma Enciclopédia, que afirmava:
"quanto for maior a massa de ouro na Europa, tanto mais Portugal será
pobre, tanto mais tempo será ele uma Província de Inglaterra, sem que
por isso ninguém seja mais rico", e acrescenta "que o ouro e os diamantes
(45) RIHGB, 1846, t. 8, 53-64. A cópia do manuscrito foi oferecida por D. Pedro II,
mas sem declaração de origem.
(46) RIHGB, 1862, t. XXV, 421-435.
(47) RAPM, julho a setembro de 1896, Ano I, fase. 3, 417-426.
(48) Sacramento Blake, DBB, 1883, vol. I, 292-294, onde se registra sua bloblbllografla,
excetuada a "Memória" aqui referida.

176
do Brasil têm feito de Portugal o país mais árido e um dos menos habitá-
veis". Critica essas teses e declara que "as Minas Gerais são hoje no con-
tinente da nossa América o país das comodidades da vida, e só o ouro o
fez assim; não se encontram em outras Capitanias mais que a riqueza dos
gêneros em bruto, algodão, arroz, açúcar, cacau e café". Condena que, sendo
as Minas Gerais quase todas de ferro, importasse ferro da Biscaia e da
Suécia. Ele quer que se promova a indústria dos habitantes nos outros
artigos fora do ouro.
Tanto na Biblioteca Pública do Porto, como na da Ajuda, existem
descrições inéditas sobre as Minas, que deveriam ser copiadas e publicadas,
como o "Discurso sobre o Estado Atual das Minas do Brasil, dividido em
duas partes. Na primeira mostra-se como as Minas de Ouro são prejudi-
ciais a Portugal não só pelo muito que já hoje o Estado perde nelas, mas
também pelos muitos braços que elas tiram da agricultura; na segunda
apontam-se os meios de se aproveitar a agricultura do Continente das
Minas que aliás é já perdido para o Ouro" <49 >, e a "Descrição Geografica,
Topographica, Historica e Política da Capitania das Minas Gerais, seu
descobrimento, estado Sível, e Político e das Rendas Reaes" c50 >.

2 . Cláudio Manuel da Costa


Nascido em Vargem do Itacolomi, aos 5 de junho de 1727, Cláudio
Manuel da Costa foi sobretudo um poeta arcadiano que escreveu as Obras
Poéticas (5t) e o poema épico Vila Rica <52 >, o qual é precedido de um
Fundamento Histórico (53). A biografia e bibliografia de Cláudio Manuel
da Costa é muito estudada <54 >, mas foram sobretudo Ramiz Galvão (55),
Alberto Lamego <56> e Rodrigues Lapa <57 > os que trouxeram novidades so-
bre sua poesia, biografia e bibliografia <58 >. Seu envolvimento na Con-

(49) Catdlogo dos Manuscritos Ultramarinos da Biblioteca Pública Municipal do Porto,


Lisboa, 1938, 212-214.
(50) Inventdrlo dos Manuscritos da Biblioteca da Afuda Referentes d América do Sul,
Coimbra, 1946, p . 597, n.0 1.997.
(51) Coimbra, 1768, reeditadas por João Ribeiro, Rio de Janeiro, 1903, 2 vais.
(52) Ouro Preto, 1839. ·
(53) Primeiro publicado n'O Patriota, abril de 1813, 40-60, depois no Correio Brazlllense,
1819, vol. 2, 302-313 e na edição de João Ribeiro das Obras Poéticas, t . II, 151-179.
(54) Vide para a bibliografia sobre ele, Otto Maria Carpeaux, Pequena Bibliografia Critica
da Literatura Brasileira, 2.• ed. revista e aumentada, Rio de Janeiro, 1955, 48-49; as histórias
da literatura de Sflvfo Romero e João Ribeiro (Compêndio), e a História de Sllvlo Romero, a
de José Verlsslmo, de Ronald de Carvalho e a editada sob a direção de Afrânlo Coutinho,
dedicam-lhe páginas especiais sobre sua poesia.
(55) Revista Brasileira, 1896, II, 65-73.
(56) "Autobiografia de Cláudio Manoel da Costa", RABL, Janeiro, 1912.
(57) Subsídios para a biografia de Ctdudlo Manoel da Costa, separata da Revista do Livro,
março 1958, 7-25.
(58) Na RIHGB foram publicadas as biografias por J. M. Pereira da Silva, vai. XII,
529-549; por J. C. Fernandes Pinheiro, vai. XXXII, parte 2, 113-124; por J. Norberto de
Sousa e Silva, vol. Lili, 118; nos ABN, "Cláudio Manoel da Costa", 1876-1877, 1, 373-378;
1876-1877, li, 113-114; na RAPM "Cláudio Manoel da Costa, Noticia biográfica", 1896, I, 373-390;
Fernando Lobo, "Cláudio ManoeÍ da Costa", 1897, li, 536-538; " Cláudio Manoel d a Costa•, XIV,
577-587; "Cláudio Manoel da Costa", por Afrânio ~e Melo Franco, 1929, vol. XXII!, 41-67,
publicada também na RIHGB, 1930, t. 106, vol. 160, 292-321; Afonso Mendonça de Azeved~,
" Conferência", RAPM XXIII, 25-39; "Poetas de Villa Rica. Dr. Cláudio Manoel da Costa ,
RAPM, XXV, 395-414; Lúcio José dos Santos, "Onde Morreu Cláudio Manoel da Costa", RAPM,
Julho 1937, Ano XXV, 451-466 .

177
juração Mineira, sua pnsao e seu suiddio ou assassinato podem ser bem
estudados nos próprios Autos da Devassa da Inconfidencia Mineira (59).
Sua morte foi considerada misteriosa <60l, ocorrida na Casa dos Contos (6t)
e possivelmente assassinado pela polícia <62>.
O melhor texto da "Memoria Historica e Geographica da Descoberta
das Minas" é o do Patriota, que tem este titulo mudado para "Funda-
mento Histórico" na edição do poema Vila Rica <63 >. As variantes que se
notam num e noutro texto foram observadas primeiro por Teixeira de
Melo na crítica citada, atribuindo a melhor apresentação formal a Manuel
Teixeira de Araujo Guimarães, que dirigia o Patriota, e depois por José
Honório Rodrigues, que anotou as principais diferenças entre um e outro
texto <64 >.
Também não está devidamente ap11rado se Cláudio Manuel se valeu
das informações dos "Primeiros Descobridores das Minas Geraes" de Ben-
to Fernandes Furtado, ou se ele mesmo teria redigido esta noticia, segundo
as informações de Bento ~emandes, que depois reaparecem na sua "Me-
moria". A relação entre o texto de Bento Fernandes, Cláudio Manuel da
Costa e a "Memoria historica" de José Joaquim da Rocha é evidente ao
se compararem os textos. Suspeita-se que a relação de Bento Fernandes
seja de autoria de Cláudio, seu amigo, e pode-se notar os plágios de José
Joaquim da Rocha da "Memoria" de Cláudio Manuel, embora seja justo
lembrar que o texto do primeiro é mais fundado e mais longo.
A "Memoria" de Cláudio Manuel da Costa é a mais bem feita, a
mais sintética, a mais fluente. f: uma obra histórica concisa, que começa
revelando como os paulistas, tidos como homens sem sujeição até mesmo
ao Soberano, faltos de conhecimento e de respeito "são os que nesta Amé-
rica têm dado ao mundo as maiores provas de obediência, fidelidade, e
zelo pelo sêu Rey e pela sua Pátria". Os trabalhos, as dificuldades, a am-
bição pelo cativeiro dos índios e pelo ouro fizeram com que os conquista-
dores avançassem pelo sertão, atravessassem as Minas, reduzissem à escra-
vidão inumeráveis índios e descobrissem o ouro. Conta as primeiras inves-
tidas e descobertas, aponta os primeiros bandeirantes, já usa a palavra
bandeira, e mostra como elas foram até o mais recôndito das Minas,
menos pelos índios, que pela diligência do ouro. O grande número de con-
correntes, a emulação entre os moradores de São Paulo e os de Taubaté,
esta a primeira vila à entrada do sertão, concorreram para a grande
busca e as grandes descobertas. Diz Cláudio Manuel que "como seria
sumamente extensa uma relação individual de todos os nomes, da multipli-
(59) Rio de Janeiro, 1936, vols. I, II, V, VII contendo o Acórdão (129), os embargos
(159), o acórdão definitivo (171), no qual se reconhece o defeito de se não lhe dar o Juramento
quanto a terceiros, e a sentença final (195).
(60) "Notícia ·Biográfica• , RAPM, abril-Junho 1896, Ano 1, fase 2, 375.
(61) Lúcio Jos6 dos Santos, "Onde morreu Cláudio Manoel da Costa", RAPM, XXV,
451-460.
(62) José Alexandre Teixeira de Melo, "Cláudio Manoel da Costa•, RAPM, Julho-setembro
1897, Ano II, rase . 3, 536,538.
(63) Ouro Preto, 1839.
(64) "Historiografia das Minas", Teoria da História do Brasil, I.• ed ., 1949, 232; 3.• ed.,
1969, 399-400; 4.• ed., 1978, 399-402.

178
cidade dos que se gloriam de descobridores, bem como dos rios, córregos
e serras, que por sua ordem se foram descobrindo; ainda que de tudo isto
tenhamos uma verídica e suficiente informação, contentar-nos-emos de fa-
zer ver ao leitor pelas datas dos tempos, quais foram aqueles que deram ao
manifesto, as mais ricas faisqueiras, em que hoje se acham criadas as
vilas de Ouro Preto, do Sabará, da cidade de Mariana, as vilas do Caeté,
de São João d'El Rei, do Príncipe no Serro Frio, que fazem as cabeças
das quatro comarcas da capitania de Minas Gerais".
Trata a seguir, uma a uma, da vila do Carmo, então cidade de Ma-
riana, de Ouro Preto ou Vila Rica, de Sabará, de Caeté, ou Vila da Rainha,
de Serro Frio, Vila do Rio das Mortes, vilas de São João e de São José;
da série de governadores, desde a anexação da nova conquista com São
Paulo e São Vicente ao Rio de Janeiro, até o governo do Conde de Vala-
dares, José Luís de Menezes Abranches (1763-1768). Ao descrever a
obra destes governos, os principais fatos, figuras e feitos estão sucinta-
mente anotados. A "Memoria" é uma construção histórica, rara pelo seu
tratamento sintético, valiosa pela temática de tanta influência no destino
de Minas e do Brasil, e fluente e limpa pelo seu tratamento.

3. José Joaquim da Rocha


Pouco ou quase nada se sabe de José Joaquim da Rocha (Aveiro,
Port. 1749 - ?) , que era sargento-mor de ordenança das Minas Novas;
vivia de negócios, e serviu como testemunha no processo da Conjuração
Mineira. No seu primeiro depoimento (25 de junho de 1789), não indigno
como o foram os de tantos outros, declarou ter visto na ópera do Rio de
Janeiro o oficial Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha Tiradentes,
sofrer uma pateada, que soube ser devida a ter ele espalhado que havia de
fazer feliz a América, e muito mais aquela cidade, e que todos se riram. José
Joaquim da Rocha atribuiu essa asserção ao requerimento que este fizera
para introduzir água no Rio de Janeiro, mas que a respeito do levante que
se pretendia fazer no Rio ou em Minas, ele nunca ouvira falar nem do
dito Alferes, nem outra pessoa alguma. Afirmou ainda que ao hospedar-se
em casa do sargento-mor Manuel Antônio de Moraes, nas Congonhas do
Serro Frio, a quem visitava algumas vezes, em uma delas achou ali o
Alferes, uma única vez, mas não estava lembrado da conversação que
mantivera com Manuel Antônio e Joaquim José denunciada pelo segundo
denunciante da Conjuração, o Tenente-Coronel Basílio de Brito Malheiro
do Lago, na qual o Alferes manifestara suas intenções revolucionárias <65 >.
Seu segundo depoimento (1. 0 de agosto de 1789), na Segunda Devassa,
não do Governador de Minas Gerais, Visconde de Barbacena, D. Luís
Antônio Furtado de Mendonça, mas na determinada pelo Vice-Rei D.
Luís de Vasconcelos e Sousa, já acrescentou que na pateada na Casa da
ópera lhe disseram que o Alferes era um louco, opinião pela qual era tido

(65) Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, Mlnlstl!rlo da Educação, Rio de Janeiro,


1936, vol. I, 117-119.

179
por pretender canalizar para a cidade do Rio as águas do Andaraí e do Ma-
racanã. Só agora, preso o Alferes, acusado de aliciar gente para sedição, ele
pensava que a pateada se devia a ele estar falando do dito motim. Ofere-
ceu, então, no depoimento, um dado muito importante para sua identifi-
cação. Diz ter ele emprestado ao Alferes o mapa da população -da capitania
( de Minas?) sem malícia alguma, "por ter sido incumbido pelos Ilmos. e
Exmos. Generais desta Capitania de o fazer" (66).
José Joaquim da Rocha é o autor do "Mapa da Capitania de Minas
Gerais", feito em 1777, do "Mapa da Comarca do Rio das Mortes" (1778),
do "Mapa da Comarca de Vila Rica" (l 778), do "Mapa do Julgado das
cabeceiras do rio das Velhas e parte da capitania de Minas Gerais" ( 1796),
do "Mapa da comarca do Serro Frio" <6 7 ). Trata-se, assim, de um sargento-
mor ( equivalente a major) da milícia não paga, de um negociante e car-
tógrafo, um dos primeiros do Brasil e de Minas. Não se pode assim con-
fundi-lo nem com José Joaquim da Rocha, pintor mineiro (1737-
1807), que trabalhou mais de 40 anos na Bahia, muito menos com o
conselheiro -do mesmo nome, nascido em Mariana ( 1777 - Rio de J anei-
ro 1848), um dos promotores do Fico, fiel aliado de José Bonifácio <68 >.
Assim, José Joaquim da Rocha, com esses estudos preliminares, geo-
gráficos e cartográficos, achava-se em condições excelentes para compor
a "Memoria Historica da Capitania de Minas Geraes" (69), ou "Geogra-
phia Historica da Capitania de Minas Geraes" <7º>, ou "Descripção geo-
graphica, topographica, historica e politica da Capitania das Minas Geraes,
seu descobrimento, estado civil, politico e das rendas reaes" (1781) (71 >, e,
finalmente, de uma edição fac-similar, limitada a cinco ou seis exemplares
de cópia existente no Ministério das Relações Exteriores, com o mesmo
nome de "Geografia historica da Capitania de Minas Gerais" <72 >.
Já escrevi que se trata da mesma obra várias vezes editada por dife-
rentes instituições, e que seu autor f José Joaquim da Rocha. O melhor
estudo sobre os vários textos é o de Francisco Lobo Leite Pereira, na in-
trodução que escreveu para a edição do Arquivo Nacional. Salvo peque-
nas diferenças no texto, fruto de várias cópias, trata-se da mesma obra na
forma e no fundo; as mesmas matérias, quase na mesma soma, os mesmos
documentos expostos do mesmo modo, o mesmo singular plano de coorde-
nação, as mesmas idéias com a mesma concatenação, o mesmo modo de
enunciá-las, e em geral as mesmas palavras. Esta edição parece ser aquela
em que o texto foi mais cuidadosamente examinado e editado.

(66) Autos de Devassa da Incon/ldêncla Mineira, ob. clt., vol. Ili, 329-331.
(67) CEHB, respectivamente n. 0 • 3157, 3182, 3184, 3185, 3196.
(68) Hello Gravatá, "Contribuição Bibliográfica para a História de Minas Gerais", RAPM,
dezembro 1876, XXVII, p. 191; nos Documentos Biográficos da Biblioteca Nacional aparecem
vários José Joaquim da Rocha.
(69) RAPM, julho a setembro de 1897, li, 425-517, cópia do manuscrito da Biblioteca
Nacional feita por Antônio Jansen do Paço, chefe da Seção.
(70) PAN, 1909, IX, 13-100, cópia manuscrita do próprio Arquivo Nacional.
(71) RIHGB, 1909, t. 71, !.• parte, 117-197, ;ópia da Biblioteca da Ajuda, trazida para
o Instituto Histórico por Ncrivai Soares.
(72) Baseado no manuscrito oferecido ao Barão do Rio Branco por Manuel Jacinto F.
da Cunha, datado de Lisboa, 7 de setembro de 1910. O despacho do Ministro Afrânlo de Melo
Franco para reprodução é de 1933, e a edição deve ser posterior a 1935:

180
, Na introdução que escreveu para a publicação do texto de José Joa-
quim da Rocha pelo Arquivo Nacional, Francisco Lobo Leite Pereira diz
que o autor, depois de compor a Geographia historica da capitania de Mi-
nas Geraes, ao pretender dedicá-la ao governador, a refez, melhorando-a e
abreviando-a, transpondo algumas vezes a matéria, suprimindo algumas
partes, acrescentando uma extensa narração relativa ao governo de D. Ro-
drigo José de Menezes e Castro (1780-1783). Mudou, então, o titulo para
Historia Corográfica. Outra cópia, com pequenas diferenças, omissão do
nome do autor e dedicatória, com título mudado para Memória Históri-
ca, foi a trazida por Norival Soares, de Portugal. Lobo Pereira sustenta
que a Descrição Geográfica é a segunda forma da Geografia Histórica,
modificada em vários pontos e diminuída em algumas partes. Conclui que
a Descrição, salvo diferenças de redação e substituições de palavras, é a
História Corográfica referida por Pizarro duas vezes nas suas Memorias
Historicas do Rio de Janeit10 e das províncias annexas á jurisdicção do vice-
rei do Estado do Brasil <73l.
A Geografia Histórica é a forma anterior da História Corográfica. A
Memória Histórica é outra forma, contendo apenas transposições de pe-
ríodos, intercalações de tábulas, abreviações de narrativas. Do confronto dos
textos, parece, diz ele, que a Memória Histórica, a Geografia Histórica e a
Descrição Geográfica são a mesma obra, na forma e no fundo, salvo pe-
quenas diferenças (74).
Presume-se que José Joaquim da Rocha serviu-se do Fundamento
Histórico de Cláudio Manuel da Costa, embora tivesse dado outra feição
ao seu livro, quer na forma, quer na extensão. Era comum usar-se com
liberdade das cópias que então corriam de mão em mão.
Ele diz ter escrito "sem alterar a verdade, o que a nossa inteligência
alcançou nas exatas diligências que fez por si, e por pessoas de conhecida
razão podemos conseguir sobre fatos, que ou a tradição conserva na me-
moria, ou os escreveu raramente algum gênio que os testemunhou de vista".
Na Geografia Histórica, Rocha descreveu a situação geográfica, as
descobertas, "os ódios entre filhos de São Paulo e os naturais de Portu-
gal" e afirmou que "foi Albuquerque [Antônio de Albuquerque Coelho
de Carvalho, 1.º governador da capitania independente (do Rio de Ja-
neiro) de São Paulo e Minas, 1710-1 713] o primeiro que sustentou com
desembaraço as rédeas do governo; que pisou as Minas com luzimento, e
firmeza de caráter que El-Rei o pusera, que promulgou as leis do Sobera-
no, e fez respeitar neste continente o seu nome".
O livro, segundo o texto editado pelo Arquivo Nacional, se divide
em capitulas sobre o estabelecimento e criação das vilas, sobre Mariana,
Vila Rica, Sabará, o governo de Antônio de Albuquerque Coelho de Carva-
lho (1709-1713) até o de D. Rodrigo José de Menezes e Castro ( 1780-
.. (73) Rio de Janeiro, 1820-1822, 9 ts , em 5 vols,; 2,• ed., Instituto Nacional do Livro,
RJo de Janeiro, 1945· 1948, 9 vols.
(74) José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil; 3.• ed ., 1969, pp . 400-401 :
4.• ed ., 1978, 400.401.

181
1783), a descrição dos rios, dos capitães-mores e coronéis, a divisão das
comarcas, o relato das pedras, das tintas, dos animais silvestres, aves, ren-
dimentos, folha eclesiástica, várias listas de despesa, e tábulas de oficios nas
várias vilas, a folha militar, uma recapitulação geral sobre os rendimentos
e despesas, as propinas que venciam o General e os oficiais da administra-
ção, e o mapa de habitantes (319.769, somando brancos, pardos e pretos,
homens e mulheres, sempre mais pretos e pretas, e tantos mulatos e mu-
latas quanto brancos e brancas), o quinto do ouro, o rendimento das
Câmaras, as paróquias, e o valor comparativo entre os quilates e os réis <75 >.

4 . Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos


Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos nasceu na freguesia de Santo
Ildefonso e morreu no Rio de Janeiro, como Juiz criminal do distrito de
São José, aos 19 de setembro de 1812 <76>. Estudou no Seminário de Ma-
riana, pois veio para Minas muito cedo com seu avô materno Jacinto Pe-
reira Ribeiro, que residia em Ouro Preto e tinha lavras em Congonhas do
Campo. Formou-se em leis em Coimbra em 1783, casou-se com Maria do
Carmo Barradas tendo 11 filhos, sendo o sexto e o sétimo Bernardo Pe-
reira de Vasconcelos e Francisco Diogo, ambos Senadores, e ainda o pri-
meiro, um dos maiores parlamentares do Império. Ocupou vários cargos,
tendo sido procurador da Fazenda, Caixa dos Diamantes do Abaeté ou
Lorena, criador da administração de lndaiá e juiz do crime <77 >.
Na primeira Devassa, mandada fazer pelo governador Visconde de
Barbacena, ele foi chamado, aos 29 de maio de 1789, para responder às
perguntas que lhe foram feitas. Disse que não sabia a causa de sua prisão,
nunca ouvira queixas contra o governador, e havia sabido da prisão de
Tiradentes e ouvia ser devido ao "Alferes espalhar umas parvoices, dizen-
do que queria fazer uma República", não sabia o motivo das prisões, atri-
buía-as a extravio de Ouro ou Diamantes. Sendo instado a não ocultar a
verdade, pois "constava que ele havia contado ao desembargador Antônio
Gonzaga, poucos dias antes da prisão do mesmo, que em certa noite
entrara um vulto que parecia rebuçado pelo quintal do Doutor Cláudio
Manoel da Costa, e batendo-lhe na janela, lhe fizera aviso debaixo de todo
segredo que estavam para se fazerem nesta Vila várias prisões, e que ele
o dito Doutor e seus parciais se acautelassem". Diogo respondeu que nun-
ca ouvira .falar em semelhante matéria a pessoa alguma, e que ele não
contara tal sucesso a ninguém, e muito menos ao dito desembargador <78 >.
Na Devassa processada no Rio por ordem do Vice-Rei D. Luis de
Vasconcelos e Sousa, ele aparece, fazendo novo depoimento. Diz-se sol-

(75) O texto publicado pela RI HGB não contém os dados estatísticos.


(76) Diogo L. A. P. de Vasconcelos, "Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos. Notas Genea·
lógicas•, RAPM, Julho a dezembro de 1902, VII, 751-7S6, e "Diogo de Vasconcelos" ln Diogo
L. A. P. de Vasconcelos, Histdria Média de Minas Geraes, Belo Horizonte, 1974, 4.• ed., 303-3ll.
A I.• edição é de 1918. Nas "Notas• dá a data de 19 de setembro de 1812, e na Hlstdrla escreve
junho de 1812.
(77) Vide "Regimento da Provisão do Caixa e Administrador Geral... dos Diamantes
de Abaeté", RAPM, janeiro a Junho de 1904, IX, 379-386.
(78) Autos da Devassa, ob. clt. ed . 1936, II 201-204.

182
teiro com 30 anos, e advogado. Perguntado sobre o que dissera o Coronel
Francisco de Paula Freire que estando ele em casa do Doutor Cláudio
Manuel da Costa, e·ste estava agoniado e "sua aflição nascia de lhe terem
dito que o tinham denunciado, por fazer figura na Sublevação e Motim,
que se pretendia fazer; porém não declarou, ele testemunha, quem lhe
tinha feito este aviso; depois desta conversa entrou em casa do dito Dou-
tor Cláudio Manuel da Costa o desembargador Tomás Antônio Gonzaga,
e tomando o dito Cláudio a repetir a conversa, mostrou o dito desembar-
gador ter já a mesma noticia ao que ele testemunha acrescentou que tinha
ouvido dizer a Joaquim de Lima que no Rio de Janeiro estavam presos o
Coronel Joaquim Silvério dos Reis e o Alferes Joaquim José da Silva
Xavier, ·o que já nesta Vila era público e notório, assim como era público
e notório que nesta Vila tinham denunciado ao Coronel Inácio José de
Alvarenga e ao Cônego Luís Vieira da Silva, o que ele testemunha, além
da dita publicidade, tinha ouvido dizer ao mesmo Joaquim de Lima, e nesta
forma só, que é verdadeiro o referimento" (79).
Como se vê, o procedimento de Diogo Pereira de Vasconcelos é cor-
reto, sem delatar ninguém, confirmando apenas fatos já sabidos.
Seus estudos "Descobrimento de Minas Geraes" <8 º>, ou "Breve Des-
crição Geográfica, física e política da capitania de Minas Gerais" <81 > per-
petuam-lhe a memória mais do escritor que o depoimento da testemunha,
português aliado do colonialismo lusitano.
A edição da "Breve Descrição" feita pelo Instituto Histórico, saiu sem
nome de autor, e a do Arquivo Mineiro indica como autor Diogo Perefra
Ribeiro de Vasconcelos. A crítica de atribuição feita pelo autor da nota
introdutória recorreu à publicação da parte inédita, o capítulo 12, "Pes-
soas ilustres da Capitania" <82 >, publicado depois da edição do Instituto,
mas antes da edição do Arquivo para identificar o autor.
No parágrafo 6 ele declarou ser cunhado de Bernardo de Souza Bar-
radas, irmão de sua mulher Maria do Carmo Barradas, e no parágrafo 20
afirmou que João de Souza Barradas era pai de sua mulher e avô de seus
filhos, e mais no parágrafo 34 referiu-se ao dr. José Pereira Ribeiro como
seu tio <83 >.
Escreveu o introdutor da edição do Arquivo que "além dessas indi-
cações que são positivas, algumas circunstâncias deporiam no mesmo sen-
tido, e entre elas o estilo da obra, personalíssimo do Dr. Diogo, o achar-se
este em Vila Rica ao tempo em que foi escrita, os seus sentimentos de
gratidão para com o governador, as suas idéias legitimistas", afora as ini-
ciais lançadas no prefácio D.P.R.V. Este último argumento devia ser o
primeiro e o decisivo.
(79) Autos da Devassa, ob. clt., ed. 1936, vai. III, 394-395.
(80) RIHGB, 1866, t. 29, parte 1. 5-115.
(81) RAPM, Janeiro a março de 1901, VI, 761-965.
(82) RAPM, Julho a setembro de 1896, I, 443-452.
(83) Sobre essas relações ver de Diogo L. A. P. de Vasconcelos, "Dr. Diogo Pereira
Ribeiro de Vasconcelos•, RAPM, Julho a dezembro de 1902, VII, 752-756.

183
Na verdade, as idéias realistas, governistas, colonialistas, sua naturali-
dade portuguesa, a dedicatória ao governador Pedro Maria Xavier de Ataí-
de e Melo (1801-1803) é que o levaram ao discurso oficial na festa pú-
blica celebrada aos 22 de maio de 1792 <8 4>, ao poema dedicado ao go-
vernador Pedro Maria <85 >, e finalmente à ocultação do nome de Cláudio
Manuel da Costa na referida lista das personalidades da Capitania. Seu
bisneto Diogo de Vasconcelos, no capítulo especial sobre seu bisavô, justifi-
cou a falta dizendo que mesmo que ele o colocasse, a censura o eliminaria
por ter sido Cláudio Manuel declarado infame e também porque teria que
aceitar o suicídio, a versão oficial da sua morte. Além disso ele citou Luís
Vieira da Silva, também inconfidente, mas que como réu eclesiástico fora
afastado do processo geral e incluído num especial <8 6).
A defesa do bisneto é bem argumentada e procura justificar o bisavô
com seus atributos de português, magistrado, cheio de interesses, ligado
ao meio oficial, mas nada disso elimina a baixeza da exclusão de Cláudio
Manuel da Costa criticada primeiro por Ramiz Galvão (87), e por Xavier
da Veiga na própria Revista do Arquivo Público Mineiro, imputando-lhe o
medo e a subserviência com que omitiu o nome do grande poeta (8 8 ).
Quanto ao texto, fizemos graves reparos à edição do Instituto Histó-
rico, suas omissões, bem como à edição do Arquivo, reproduzindo o texto
da Revista do Instituto, com omissões de algumas partes e do famoso ca-
pítulo sobre as personalidades da capitania, publicado em número anterior
da Revista do Arquivo (89).
A "Breve Descripção Geographica, Physica e Política" é uma fonte
primordial da história de Minas Gerais e das três comentadas a mais com-
pleta, embora o estudo da história de Minas não dispense os ensaios de
Cláudio Manuel da Costa e de José Joaquim da Rocha. :e uma narrativa
completa com a descrição geográfica, os descobrimentos, a descrição
política, as .cidades e suas dioceses, dados estatísticos e econômicos, a agri-
cultura, as manufaturas e o comércio de cada cidade ou vila, a navegação,
as forças militares, a povoação e os costumes, as Minas e os Quintos, as
casas de fundição e moeda, a capitação e Ó restabelecimento das casas de
fundição, os diferentes sistemas de arrecadação dos quintos, e a tábua esta-
tística do rendimento do Real Quinto.

5. "Reflexões sobre a Capitania de Minas Geraes"


As "Reflexões sobre a Capitania de Minas Geraes" <90 >, assinadas da
vila de Paracatu, a 1. 0 de setembro de 1818, por Antônio da Costa Rocha
(84) Sobre a festa, vide • Arrematação da Música para o Te Deum em ação de graças
pelo malogro da Inconfidência", RAPM, janeiro-março de 1897, 1, 39-41, e Diogo de Vascon-
(85) "Bibliografia Mineira. Um ciméllo preciosíssimo•, RAPM, janeiro-março 1896, J, 156.
(86) Vide Ernesto Ennes, A Inconfidência Mineira e o Processo dos Réus Eclesldstlcos,
celos, •o Dr. Diogo Pereira de Vasconcelos•, ln História Média de Minas Gerais, ob. cit., 308.
Lisboa, 1950, 32-38.
(87) "Cláudio Manoel da Costa•, Revista Brasileira, 1896, II, 65-73.
(88) "Cláudio Manoel da Costa (Noticia biográfica)", RAPM, 1896, 1, 373-397.
(89) José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 3.• ed., 1969, 401; 4.• ed.,
1978, 401.
(90) Correio Braziliense, Londres, 1819, vols. XXII-XXIII, n. 0 132, 527-528; 628-633 e
63-69.

184
Pita, é uma análise critica rigorosa, desconhecida, tanto quanto seu autor.
Criticam as observações feitas na Gazeta da Bahia ( 13 de março de 1818)
sobre uma carta de G. H. de Langsdorff, Barão de Langsdorff, encarregado
de negócios do Império Russo no Brasil, que havia sido transcrita no n. 0
6 da mesma Gazeta, contendo suas considerações sobre a capitania de
Minas. Langsdorff foi um escritor importante sobre o Brasil e sua obra,
publicada em alemão, foi em parte traduzida para o francês e o portu-
guês <91 >.
O autor das "Reflexões" declara ser mineiro e não tomar o partido
patriótico que anima o redator, pois quando se fala ao público deve pre-
valecer a verdade, e não se deve encobrir os defeitos nacionais. Afirma
não conhecer o conselheiro Langsdorff, mas pelo que sabe da capitania
de Minas, ele por ela viajou com os olhos bem abertos e próprios de um
naturalista que ao primeiro golpe tudo descortina. Achava que se não
devia revoltar contra ele por dizer que o vício reinante em Minas é a pre-
guiça, e que se não cultivam as terras pela grande sede do ouro. Rocha
Pita acha que o mineiro não é só preguiçoso nos trabalhos da terra, mas
"afirmo que são preguiçosos para todo e qualquer trabalho". E que pre-
tende, no quadro fiel e exato das qualidades morais e físicas de todas as
classes dos habitantes de Minas, tirar a conclusão sobre o seu caráter.
Começa afirmando que Minas tem 400.000 habitantes, dos quais
250.000 são livres e 150.000 escravos. Não examina os últimos porque
são meros instrumentos e executores empregados pelos primeiros à força
dos chicotes. Os livres são brancos, pardos e pretos, e os "vermelhos"
são apenas 9.000; os brancos são 87.000, os pardos 109.000 e os pretos
48.000. Ele não distingue classe e raça e a estrutura social para ele se
divide nestes três grupos brancos, pardos e pretos. Acentua ser em todas
as três raças maior o número de mulheres que homens, perfazendo a me-
tade da população, e da outra metade, dois terços são crianças. Em conse-
qüência, os brancos ficam com 16.000 adultos, os pardos 18.000 e os pretos
8.000, dando 42.000 para o sexo masculino e outro tanto para o femi-
nino, o que soma 84.000 no total. Todos estes, com poucas exceções de
uns "mui poucof, alfaiates, e sapateiros ignoram o que é trabalhar e vivem
na mais escandalosa ociosidade, sustentando-se à custa do suor dos seus
escravos, ou à custa da fazenda alheia".
Os brancos são funcionários públicos, mineiros, fazendeiros e nego-
ciantes; os lugares que dão honra e dinheiro são· por eles ocupados e ricos
são os mineiros, num número de meia dúzia de casas que tenham 200.000
cruzados de fundo ou trezentos escravos. Com os funcionários, neles in-
cluídos os militares e os comerciantes, se forma a porção distinta de Mi-
nas. Como são dominados por pensamentos de nobreza os primeiros têm
por baixeza empregar-se por mais de duas horas por dia; os demais
aproveitam-se de todos os dias santos e todos os feriados para se subtraírem

(91) CEHB, n.°' 1053 e 1111 em alemão; 1122-1125 e 19897 em francês; a tradução por•
tuguesa é a Memória sobre o Brasil para servir de guia àqueles que nele se deseiam estabelecer,
trad. de A. M. de Sampaio, 1822; todas as obras foram publicadas entre 1807 e 1828.

185
ao pequeno trabalho que fazem, lançando mão das mais insignificantes
enfermidades para fugirem de suas obrigações, o que permite afirmar que
durante todo ano trabalham somente 30 dias a seis horas por dia. Por isso
é S. M. tão mal servida, apesar do grande número de funcionários; mas
este mal é o mais geral e endêmico no Brasil.
O estudo, a leitura, a escrita, o passeio, a sociedade são detestados
pela classe dos brancos. Descreve então como a ociosidade se liga aos
grandes e pequenos vícios, a miúda indagação da vida alheia, as men-
tiras, as infidelidades e intrigas. "A divisa geral dos negociantes é
lesar a todos os homens" e nisso tiram mais lucros que os judeus polacos.
Não param aí seus defeitos: "levantar-se tarde, comer demasiado, dormir
longuíssimas sestas, procurar uma mui particular conversa à noite, na
companhia de seus mais íntimos, não com o intento de se instruírem, mas
só na mira de forjar mentiras, e dar princípio às novas intrigas que no dia
seguinte devem aparecer, e até para se regozijarem com os males alheios.
Eis o esboço do que são os homens brancos de Minas".
Langsdorff, acrescenta Rocha Pita, não se desviou da verdade quan-
do escreveu: "Que se faltar por oito dias a importação nestes lugares todos
padecerão de fome, tendo muitas vezes bastante ouro nas gavetas".
Aos mineiros e roceiros, subdivisão da classe branca, "espalhados pe-
las suas fazendas e lavras e entretidos com esse trabalho, não sobra tanto
tempo, para que possam cair nos mesmos defeitos, a que são propensos
os moradores das povoações grandes; em conseqüência são por necessida-
de menos viciosos. Contudo o seu estado em muitas cousas é o mesmo
que o dos outros; sujeitos igualmente à preguiça, os seus próprios interes-
ses não os espoream a mais atividade; abandonam as suas lavras e as suas
roças a feitores, que a exemplo de seus amos as administram, em geral,
com tanto desmazelo, e igual preguiça e ignorância".
Quanto aos pardos, "poucos há que sejam empregados no Real Ser-
viço, e poucos fazendeiros e mineiros que tenham mais de doze escravos,
por conseqüência ocupam os lugares de pouca honra e de pouco interesse.
Os oficiais mecânicos se encontram entre eles, pois que os brancos aban-
donam aqueles ofícios". "A moral desta classe, escória do gênero humano,
e com apurado talento para a maldade, é a mais abominável. Com todos
os defeitos dos brancos, com menos polidez, e nenhuma educação, eles os
sobrepujam nos vícios." Atribui-lhes ainda um gênio vingativo, uma vida
escandalosa, vícios horrorosos, moral depravada, sendo "todos os senten-
ciados por crimes atrozes sessenta até oitenta pessoas de classe dos pardos,
e dos pretos".
Os indivíduos da terceira classe, os pretos (forros), não ocupam nem
lugares de honra, nem os de proveito, não possuem lavras, nem fazendas,
submergidos na maior miséria; trabalham só quanto exige sua subsis-
tência, ou em ofícios mecânicos, ou como faisqueiros, ou alugando-se a
outros, ou plantando algum espaço de terreno pertencente a outrem. Como é

186
menos apta aos conhecimentos, que ilustram os homens, possuem menos
velhacaria, e não contribuem para o aumento da felicidade de um país.
Vivem na maior preguiça, deixam de trabalhar logo que têm o que comer,
têm menos vkios refinados, mas em contraposição são mais insensíveis às
vozes da humanidade, sendo capazes de maior barbaridade.
Remata dizendo que as três classes são inconstantes no pensar e no
agir e afirma : "o que previne para que ninguém se fie na palavra de um
Mineiro; imprimindo-se desde a mais tenra idade esta inconstância nos
seus filhos". Esse reparo feito em 1819 lembra imediatamente as famosas
palavras de José Bonifácio a D. Pedro I: "Não se fie V .A .R. em tudo
que disserem os mineiros, pois passam no Brasil pelos mais finos e trapa-
ceiros do Universo, fazem do branco preto e do preto branco".
Sobre o sexo feminino das três classes escreve não ter o que expor,
senão que entregam o governo das suas casas às mucamas e às escravas
de sua confidência.
Para diminuir os efeitos deste retrato moral tão depressivo, remata
Rocha Pita dizendo que pode haver exceções à regra geral em todas as
classes, tal qual José Bonifácio acrescentou a D. Pedro I: "contudo, se-
gundo o ditado francês, há honrados até na Normandia".
Nega que os mantimentos do Rio venham de Minas e São Paulo,
pois estes só exportam para o Rio algum toucinho, queijo e algum gado,
vindo todo o artigo em grão ou do Rio Grande ou de pafses estrangeiros,
e diz que para vergonha dos agricultores do Brasil no ano passado (1817)
veio trigo de Trieste.
Declara, enfim, que se tem calculado que a classe trabalhadora tra-
balha no Norte da Europa toda a sua vida dez anos; na França nove, na
Espanha e Portugal sete e "no Brasil os brancos em toda a sua vida não
têm um só dia de trabalho corporal". "Toda a exportação das Minas resul-
ta, por conseqüênda, dos trabalhos dos 150.000 escravos; um só queijo não
resulta dos trabalhos e da indústria de 88.000 forros". "A gente de Minas",
finaliza, "é mais preguiçosa e o caráter deles é não ter caráter algum".

187
CAPITULO III

A HISTORIOGRAFIA DE MATO GROSSO


1 . Relatos e Informações Mato-grossenses. 2. Os "Anais da
Câmara de Vila Bela". 3. "Notícia da Situação de Mato
Grosso e Cuiabá". 4. Os escritos de José Barbosa de Sá.
5. As "Memórias" de Nogueira Coelho. 6. O "Compên-
dio" e as "Crônicas" de Costa Siqueira. 7. O "Diário His-
tórico" de Antônio Pires da Silva Pontes Leme. 8. Francis-
co José de Lacerda e Almeida. 9. A obra de Ricardo Franco
de Almeida Serra.

l . Relatos e Informações Mato-grossenses

Os primeiros relatos sobre o Mato Grosso possuem forma bem pri-


mitiva. A "Breve Notícia que dá o Capitão Antônio Pires de Campos do
gentio bárbaro que há na derrota das viagens das Minas de Cuiabá e seu
recôncavo na qual declara-se os reinos, a que chegou e viu por maior,
sendo em tudo diminuto, porque seria processo infinito, se quisesse nar-
rar as várias nações, nos mesmos usos e costumes, trajos e vantagens que
fazem, e menos numerá-los, por se perder o algarismo, principalmente no
dilatado reino dos Parecizes, tão extenso e dilatado, e seus habitadores
por extremo asseadíssimos e estáveis, e tão curiosos que podem competir
com as mais das nações do mundo no seu tanto, e dos que aqui não faz men-
ção, o farão outros mais curiosos que ele. Se o faz, do que a experiência
lhe tem mostrado no decurso de tantos anos, até o dia 20 de maio de
1723" Ol começa no Tietê e termina em Cuiabá, e o título imenso dá
uma idéia do relato. Ele trata da gente indígena na sua variedade, dos ali-
mentos que usavam, das guerras que lutaram, do caminho que seguiram pelos
rios, dos assaltos indígenas praticados pelos brancos; enumera as primeiras
vítimas desde 1725, de suas armas, dos animais, destaca os Pareeis, que
dominam larga região, registra a descoberta das minas de Cuiabá em 1719-
1720 por Pascoal Moreira Cabral, a primeira vila criada em 1. 0 de
janeiro de 1727, chamada Vila Real do Sr. Bom Jesus, registra que
"todos estes sertões e gentios de que noticia foram descobertos pelos paulis-
tas". Comunica que em 1739 abriu, como piloto da navegação, um cami-
nho para as minas de Cuiabá. Transcreve o Roteiro feito por ele mesmo
e dado ao capitão-mor Luís Rodrigues Vilares, procurador do povo da
Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá para descobrimento de grandes

(1) RIHGB, I.• ed., 1862, t. 25, 437-449, e reeditado por Afonso d'E. Taunay, Relatos
Sertanistas, São Paulo, 1953, 183-200.

188
haveres para as aldeias dos gentios Araés, tirado do "erudito autor das
Memórias Goianas". Antônio Pires de Campos é um bandeirante paulista
dos primeiros que foi à conquista de Cuiabá. Aos quatorze anos já partici-
pava das aventuras sertanejas de seu pai Manoel de Campos, que era cabo
e governava a tropa armada que fora conquistar o gentio habitante da
serra dos Martírios. Nesta mesma bandeira também andara com ele Bar-
tolomeu Bueno da Silva, da idade de seu pai, conforme as "Notícias de
Antônio Pires de Campos, dadas por Antônio do Prado Siqueira no ano de
1769" (2 ).
Outro roteiro histórico é a "Demonstração dos diversos caminhos de
que os moradores de São Paulo se servem para os Rios Cuiabá e Provinda
de Cochiponé" <3 J. A ida é explicada com muita atenção e cuidado, adver-
tindo sobre os perigos e dificuldades, e a volta é muito sumária e, como
sempre, voltando para as matas de Botucatu e daí para Sorocaba, a grande
porta de penetração ao sertão.
As "Notícias das Minas dos Martírios oferecidas ao Governador e
Capitão General Luís D'Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres" (1772-
1791), por João Leme do Prado <4 l são muito curiosas, pois contam as
proezas e dificuldades que enfrentou Bartolomeu Bueno da Silva na des-
coberta das minas de Cuiabá e em Goiás <5 l .
O "Divertimento Admirável" de Manuel Cardoso de Abreu é uma
narrativa da navegação para as minas de Cuiabá e Mato Grosso, de que já
tratamos no capitulo sobre a historiografia paulista.
A Relação da Chegada que teve a gente de Mato Groço, e agora se
acha em companhia do Senhor D. Antonio Rolim desde o porto de Arari-
taguaba, até a esta Villa Real do Senhor Bom Jesus do Cuyabá <6 > conta
a viagem que fez Gomes Freire de Andrada, governador da Capitania do
Rio de Janeiro, e de grande parte do Brasil em 1748 (Minas Gerais, São
Paulo, Goiás, Mato Grosso, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Colônia
do Sacramento), ao juntar-se a seu primeiro governador, nomeado em
1748 e que só tomara posse em 1751. Gomes Freire partiu com grande
gala e acompanhamento de canoas, gente e mantimentos e teve que enfren-
tar os índios e vencê-los. O trecho final dá uma idéia do objetivo da
Relação: "Esta he a noticia, que dá a conhecer quem he Gomes Freire, e
o que fora, se tivera as occasioens como os espíritos, seja-lhe objeto esta
lembrança, com que se divulga a sua gloria, e authoriza igualmente a nos-
sa Patria". Apesar do tom bajulatório, a Relação trata apenas da viagem
e das dificuldades para alcançar Cuiabá, e nada tem sobre o governo de

(2) Relatos Sertanistas, ob. cit., 197; sobre Pires de Campos vide Diciondrio de Bandei-
rantes e Sertanistas do Brasil, São Paulo, 1953, 97.
(3) Relatos Sertanistas, ob. clt., 201-207.
(4) Relatos Sertanistas, ob. cit., 213·214.
(S) Veja sobre Bartolomeu Bueno da SIiva, Francisco de Assis Carvalho Franco, DBSB,
São Paulo, 1953, 366-370.
(6) Lisboa, 1754; está incluída na coleção de folhetos de Barbosa Machado, reunida sob
o título Notícias Históricas e Militares da América, vide descrição in Ramlz Galvão, "Diogo
Barbosa Machado", ABN, VIII, p. 378, n. 0 1.585.

189
Antônio Rolim de Moura Tavares, conde de Azambuja, primeiro gover-
nador da capitania geral de Mato Grosso, criada em 1748, mas que tomou
posse em 1751 e a governou até 1762.
Em 1797, o dr. Francisco Maurício de Sousa Coutinho, governador
do Pará (1790-1803) e irmão do Conde de Linhares, D. Rodrigo, e do
Conde de Funchal, D. Domingos, escreveu a "Informação sobre o modo
por que se efetua presentemente a navegação do Pará para o Mato Grosso
e o que se pode estabelecer para maior vantagem do comércio, e do Es-
tado" <7>, que debate a comunicação do Pará para Mato Grosso efetuada
pela navegação dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé, a única, pois não
se tentaram outras, nem se procuraram abrir estradas por terras. Sousa Cou-
tinho aponta as dificuldades, trabalhos e perigos que encontravam os que a
faziam, a extraordinária mortandade de índios, cuja vida e conservação
se consideravam pouca cousa, e a alimentação que se adquiria da caça e da
pesca. As embarcações eram as canoas, as menores com porte de 400 e
500 arrobas, que exigiam 40 a 60 homens para se moverem, e para que se
varasse a terra quando fosse necessário. Para ocupar tanta gente era preciso
possuir várias embarcações e a carga devia proporcionar recursos que inde-
nizassem as despesas, e somente negociantes de cabedal grosso e de crédito
podiam-na realizar.
O subido preço dos gêneros em Ma.to Grosso compensava o emprego
e empate de cabedal ou crédito, mas prevalecia sempre a falta de gente.
Aos índios, os mais próprios para essas viagens, repugnava empregarem-se
nelas, por terem sido muitos os que nelas se empregando se tinham sa-
crificado, sem que respeitassem em relação a eles os direitos que as leis
concediam aos homens livres, pois eram tratados como se tratavam es-
cravos, ou pior, porque quando chegavam ao ponto de não poderem tra-
balhar, que morressem ou que vivessem pouco importava, pois não custa-
vam o que custavam os escravos. A repugnância dos índios pelo trabalho
pesado e contínuo fazia com que, quando chegavam a Mato Grosso, aban-
donassem o serviço, enquanto os pretos escravos custavam grande trabalho
para se conseguirem, pela limitada importação e pelo custo de grandes somas
que por eles se exigiam.
Os comboios que serviam aos negociantes eram servidos .por índios
ou por negros, os primeiros mais difíceis, os segundos mais caros. Já quan-
do o autor escrevia, estava em abandono o caminho para o Mato Grosso,
desviado para o Rio. Pensava ele que por um impulso do governo podia se
estabelecer o comércio das nações que têm cabedal e população, mas "nas
colônias não sucede o mesmo, porque ainda havendo cabedal falta popu-
lação, e falta nos indivíduos dela a indústria, o espírito de especulação, a
vontade de trabalhar".
Criticava a Companhia do Pará pois se frustraram as benéficas inten-
ções com que foi instituída.

(7) RIHGB, 1840, t. 2, 291-314.

190
A navegação pelo espaço que ocupam as cachoeiras não é de instantes,
nem de horas; é violenta, é mui prolongada, exige demora de meses, exige
estação própria, exige averiguações e reconhecimentos que não têm havi-
do, pois cada um só trata de passar como passaram os demais e é necessá-
rio um corpo de gente propriamente destinada para este fim.
Expõe os princípios que deviam ser seguidos para o êxito dessa na-
vegação, e sugere para o trabalho prático da navegação, no espaço das
cachoeiras, um oficial, e aponta como capaz de executar a diligência o
Tte. ce1. Ricardo Franco de Almeida Serra. Adverte que se previna todo
o pretexto às contestações dos vizinhos castelhanos, afirmando que "a mar-
gem oriental do Madeira até a sua junção com o Mamoré, e a oriental até
se incorporar com o Guaporé, são nossas sem contestação".
Finaliza lembrando que "em muitas situações dos vastíssimos domí-
nios de S. M. sem o fim de beneficiar os povos, e de promover o comércio
e riqueza deles, mas só pela conservação dos mesmos domínios tem sido
indispensável o sacrifício de muitas e mui consideráveis despesas da sua
Real Fazenda".

2 . Os "Anais da Câmara de Vila Bela"


Pizarro escreveu que por ordem do Conselho Ultramarino de 20 de
julho de 1782, o segundo vereador da Câmara de Cuiabá era obrigado
"a escrever cronologicamente os fatos mais notáveis que no seu ano acon-
teceram". Como não havia então pessoa alguma do tempo antigo que pu-
desse organizar o Anal "desde o princípio fundamental de Cuiabá, existia
apenas um relatório de memórias que José Barbosa de Sá, advogado da
vila escrevera até o ano de 1765, com o qual, e com outras notícias, dadas
por habitantes mais longevos da província, começou o sobredito vereador
a compor a história do descobrimento, e sucessos respectivos de Cuiabá,
cujo escrito corrigiu o douto juiz de fora Diogo de Toledo Lara e Ordenhez,
tendo presentes os livros primeiros de vereanças, e registros, que existiam
no Arquivo da mesma Câmara, à vista dos quais ficaram notados alguns
anacronismos, e erros essenciais da história escrita até o ano de 1787. Daí
em diante ficou estabelecido que, apresentada a memória dos fatos de cada
ano em Câmara, por ela, com seu presidente, fosse notada, aprovada e as-
sinada para ter a precisa qualidade de verídica". O mesmo aconteceu com
os "Anais de Mato Grosso", à vista dos quais Pizarro escreveu sua obra <8 >.
A transcrição foi longa, mas ela nos fornece três informações: 1) que
havia um Anal feito pelo segundo secretário da Câmara de Cuiabá; 2)
que ele é posterior à obra de José Barbosa de Sá; 3) que Pizarro se baseou
nos dois para escrever sua parte sobre Mato Grosso.
Coube a Taunay publicar o Anal <9>, atribuído por ele a autor anô-
nimo e copiado de manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Lisboa
e dele se aproveitou na sua História Geral das Bandeiras Paulistas <10 >.
(8) J. S. A. P!zarro e Araújo, Memórias Históricas do Rio de Janeiro, !.• ed., Rio de
Janeiro, 1820-1822.
(9) AMP, 1940, X, 13-42.
(!O) São Paulo, 1949, X, 325-343 ou resumo, Cll, !0!-106.

191
O general Silveira de Mello <11 > escreveu que o "Anal de Vila Bela"
não é mais que uma porção dos "Anais da Câmara de Vila Bela", como
se verifica nas crônicas de Nogueira Coelho, que foi um de seus redatores.
Para ele, este tipo de registro e essa primeira parte enviada à Metrópole
teria sugerido à Corte a idéia de que as Câmaras recordassem suas efe-
mérides. Foi introduzido em Cuiabá em 31 de dezembro de 1786 com o
nome de "Anais do Senado da Câmara de Cuiabá". e lá existiu seu original
no Arquivo Histórico. Mostrou Silveira de Mello que Nogueira da Gama
dá notícias deste documento em vários pontos das suas "Memórias Chro-
nológicas", chegando a afirmar que os Anais "são um verdadeiro monu-
mento do arquivo da Câmara, sendo lavrado pelos ditos (vereadores) e
assistência dos primeiros mineiros e habitadores de Mato Grosso". Declara
a seguir Nogueira Coelho, reproduzido por Silveira de Mello, que veio a
ordem do Conselho Ultramarino para que o segundo vereador fizesse a
memória e anotou que "se todas as capitanias tivesem tido esta boa adver-
tência não padeceria tanto a história de Portugal, e não se experimentaria
a falta que nos registros encontraram corregedores e provedores, quando
por ordem régia expedida r~la Academia Real da História Portuguesa fo-
ram mandados informar dos fatos antigos e memoráveis do seu objeto e
que constariam dos registros das Câmaras". Silveira de Mello teve a pa-
ciência de recolher todas as referências que Nogueira Coelho fez dos Anais,
para provar sua existência maior e não reduzida a um "Anal".
Conclui Silveira de Mello que o documento publicado por Taunay
é parte, e não um todo, e que não é anônimo porque foi redigido pelos
vereadores da Câmara de Vila Bela, sob o nome não de "Anal", mas de
"Anais da Câmara de Vila Bela". Para ele, as outras partes poderão ser
encontradas em arquivos portugueses ou brasileiros, públicos ou particula-
res. Vários autores modernos, como João Severiano da Fonseca <12 > e o
Visconde de Taunay se referiram aos Anais, tendo o último afirmado que
conhecera o documento por meio do general Francisco Rafael Melo Rego,
governador de Mato Grosso (1887-1889), que como homem culto e de-
votado à história militar teve oportunidade de consultar o documentário
histórico que neste tempo fazia parte do arquivo do Palácio. O certo é
que desde aí não se viu mais o documento, fosse o original ou cópia.
Lembra Silveira de Mello que se poderia perguntar como os Anais de Vila
Bela foram parar em Cuiabá, pois Castelnau afirmou que os documentos
guardados no Palácio de Vila Bela foram consumidos .pelo cupim <13 >, mas
ele mesmo informou que "soube mais tarde que, por ocasião da transferên-
cia da sede do Governo para Cuiabá, para lá tinham sido levados todos
os documentos administrativos, ficando em Mato Grosso (Vila Bela) tudo
quanto se referia especialmente a essa parte da província. Para o general
Silveira de Mello merece fé esta referência de Castelnau, pois ele encontra-
ra no Arquivo Histórico de Cuiabá grande quantidade de documentos de

(11) "Anais da Câmara de Vila Bela de Mato Grosso", /C, 20 de julho de 1952.
(12) Viagem ao redor do Brasil 1875-1878, Rio de Janeiro, 1880, 2 voJs.
(13) Castelnau, Francis, Expedições às regiões centrais da América do Sul. São Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1949. Brasiliana, vots. 266,266A.

192
Vila Bela, e acreditava que teriam sido levados na transferência em 1820
da capital, pois o governo não poderia ficar sem seu arquivo.
Não sabe o general Silveira de Mello o destino que o general Melo
Rego teria dado ao valioso documento, sendo certo que não voltou ao
Arquivo da Secretaria do Palácio de Cuiabá. Ali o teria encontrado João
Severiano da Fonseca, uns quinze anos antes. Diz ainda que Afonso Tau-
nay, ao prefaciar a 2.ª edição do livro de seu pai A Cidade de Ouro ... e
das ruínas. Mato Grosso - antiga Vila Bela; o rio Guaporé e a sua mais
ilustre vítima <14 > afirmou que o Visconde de Taunay submetera esse seu
livro à apreciação do Governador General Melo Rego, seu amigo, grande
conhecedor da história mato-grossense, que lhe fornecera as informações
sobre os Anais. Morto o General e logo depois sua viúva, sem descenden-
tes, não sabia Afonso Taunay onde teria ido parar o arquivo de Melo Re-
go. E assim não se conhece o paradeiro dos Anais, mas tão-somente do
Anal, publicado, como citamos, por Afonso Taunay.
Taunay, ao publicá-lo pela primeira vez, disse tratar-se de documento
da Coleção Pombalina sob o título "Anal de Vila Bela dês o primeiro
descobrimento deste sertão de Mato-Grosso, no ano de 1734", e ser anôni-
mo, abrangendo um período de vinte anos. Começa descrevendo a jornada
de Artur e Fernando Pais de Barros, ambos naturais de Sorocaba <1 s>, que
conquistaram vastas campanhas antes pertencentes aos Pareeis. O texto for-
necido por Taunay não merece nenhuma confiança, pois não corre ínte-
gro, antes é recortado de comentários e divagações do próprio Taunay. A
história, em resumo, conta a descoberta de novas minas de ouro em Mato
Grosso e a arremetida de gente de Cuiabá para o local. Taunay transcreve
trechos de 1737 a 1754, mas sem a publicação integral do texto é impos-
sível bem avaliá-lo.

3. "Notícia da Situação de Mato Grosso e Cuiabá"


Quase nada se sabe sobre José Gonçalves da Fonseca. Nem Inocêncio
Francisco da Silva nem Sacramento Blake conheceram-lhe a naturalidade.
Registram suas obras, a "Navegação feita da cidade do Grão-Pará até a
boca do rio da Madeira pela escolta que por este rio subiu às minas de Ma-
to-Grosso, por ordem muito recomendada de Sua Majestade Fidelíssima
no ano de 1749, escrita no mesmo ano" <16 >. Afirma Inocêncio possuir um
códice de boa letra contemporânea, com 131 folhas ou 262 páginas, enca-
dernado, contendo a "Navegação", sem nome do escritor, e que pertenceu
a Francisco Antônio Marques Giraldes Barba, que o trouxe em 1821 do
Brasil, onde o adquirira (17). Mais tarde, Brito Aranha (l8), continuador
de Inocêncio, acrescentaria que o Instituto Histórico e Geográfico Brasilei-
ro possuía uma cópia da "Navegação do rio da Madeira", reproduzido por

(14) São Paulo, 2.• ed., 1958.


(15) Sobre ambos, vide F. de Assis Carvalho Franco, DBSB, 54-55.
(16) CNHGNU, Lisboa, 1826, t. 4, 143 páginas.
(17) DBP, Lisboa, 1860, t. IV, 365.
(18) DBP, cit., XII, 350,352.

193
Cândido Mendes de Almeida <19), que fora traduzida para o inglês <2 º>, e
enumerava seus outros trabalhos: a "Notícia da Situação de Mato-Grosso
e Cuiabá: estado de uma e outras minas e novos descobrimentos de oiro
e diamantes" <21 >, e uma "Carta hydrographica, em que se descreve as ori-
gens de vários e grandes rios da América Meridional portuguesa; muito
especialmente o nascimento do rio da Madeira e rumos da sua direção,
com os rios que lhe são colateraes, até entrar no famoso rio das Amazo-
nas: observado tudo exatamente por ordem de Sua Majestade Fidelíssima
no anno de 1750" (22).
:e a "Notícia da situação de Mato-Grosso e Cuiabá" que contribui para
a história mato-grossense. Nela se contam as descobertas de ouro, os aven-
tureiros das expedições ao sertão e se dedica um capítulo sobre "a qua-
lidade dos moradores do Mato-Grosso, seu número e estado em que ao
presente se acha". Havia sete casas de brancos e oitenta brancos, seis de
mesclados, que o autor explica ser gente mestiça de branco e tapuia, cha-
mados mamelucos em outras províncias; a maioria era a plebe ínfima cons-
tituída de bastardos, mulatos, e pretos libertos; negros da Guiné, escravos
eram mil e cem, mas destes somente seiscentos podiam se empregar em
faisqueiras e lavras, e os demais em lavouras de mantimentos. Apesar do
pequeno número dos operários das faisqueiras, extraíam-se daquelas mi-
nas, um ano por outro, cinqüenta mil oitavas em capitação e dízimos.
O autor distinguiu, como seus contemporâneos, Mato Grosso de
Cuiabá, e registra as remessas da primeira para a segunda, procedentes do
Rio de Janeiro, bem como a exorbitância dos preços, a carestia dos gêne-
ros, o sustento ordinário, que consistia em feijão, toucinho e farinha, o
governo espiritual feito por um vigário, cuja jurisdição lhe fora conferida
pela diocese do Rio de Janeiro, o que não impediu a luta entre o vigário
de Cuiabá e de Mato Grosso. Fala dos arraiais, das ruas, da administração
da Justiça, trata com desenvoltura dos "descobrimentos de ouro, que se
espera haver na chapada do Mato Grosso, e na sua planície da parte orien-
tal e vertentes do Rio Aporé", dos "descobrimentos de ouro e diamantes
que tem havido a leste da chapada do Mato Grosso, impedidos pelas Jus-
tiças de Cuiabá". Menciona as zonas mais atacadas pelo gentio Payaguá e
Guaycurus, os assaltos de índios e os castigos infligidos pelos luso-brasi-
leiros. Registra a decadência de Cuiabá já em 1739. Mostra como já havia
comunicação entre Mato Grosso e Pará, as várias explorações pelos rios,
o padecimento da fome pelo abandono das lavouras. Revela "os descobri-
mentos de ouro que se esperam concluir no Aporé a oeste e novo este da
chapada de Mato Grosso".
A parte mais importante é o capítulo "Noticia da situação da Vila
Real do Senhor Bom Jesus de Cuyabá", no qual trata do descobrimento do
ouro entre 1721-1722, do clima mais benéfico que o de Mato Grosso,
(19) Memórias para a História do Extinto Estado do Maranhão, Rio de Janeiro, 1874,
t. 2, 269-289.
(20) Explorations made ln the Valley o/ the River Madeira, /rom 1749 to 1868, 1875.
(21) RIHGB, t. 29, parte 1, 352-390.
(22) CEHB, n. 0 t.715; Sacramento Blake, ob. clt., vol. 4. 447, nada acrescenta ao dito por
Inocêncio e Brito Aranha.

J,94
informa a existência de mil fogos, as dezesseis engenhocas de fabricar
aguardente, os três mil escravos de Guiné, os índios libertos e revela que
as casas de Cuiabá eram as únicas que tinham alvenaria, com fábrica pró-
pria, sem o socorro do reino. Era a vila-cabeça da Comarca, nela residin-
do o capitão-mor das ordenanças, o ouvidor letrado, o Senado da Câmara,
a intendência geral e outros mais oficiais da real fazenda.
A decadência da vila se deu quando houve uma grande epidemia, o
que provocou seu despovoamento. Abre depois um capítulo "Informa-
ções sobre os vizinhos confinantes com Cuiabá e Mato Grosso", quando
enumera as várias vilas, aldeias, e conclui com a descrição da jornada que
se costuma fazer de São Paulo para Cuiabá, noticiando a abertura do ca-
minho de Goiases para Cuiabá, e os caminhos para o Madeira e o Para-
guai, do primeito dos quais recorda o seu diário de navegação e a carta
geográfica que fizera.

4. Os escritos de José Barbosa de Sá


De José Barbosa de Sá pouco se sabe. Supõe-se ser brasileiro e sabe-
se que exercia a advocacia em Vila Bela e que em 1723 fizera uma viagem
ao sertão para examinar notícias sobre a existência de ouro. Escreveu os
"Dialogos geograficos, cronologicos, politicos e naturais", cujo origi-
nal se encontra na Biblioteca Municipal do Porto <23 >, inéditos até hoje,
apesar da existência de uma cópia no Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro. Magalhães Bastos, que preparou o Catálogo da Biblioteca do Porto,
descreve o autógrafo com toda minúcia. Escrito em 1769 e oferecido ao
segundo governador da capitania de Mato Grosso (1769-1772). Pela de-
dic~tória parece realmente ser brasileiro "mínimo filho". Os "Dialogos"
pretendem descrever a América (Portuguesa), o lugar e assento que ocupa,
as províncias em que se divide, a descrição das costas, portos marítimos,
gentes, leis, costumes, produções minerais, animais e plantas. O livro se
divide em duas partes, cada uma contendo onze Diálogos que se travam
entre duas personagens, "Felino, provecto e experiente varão, que tudo
sabia das cousas do mundo e dos sucessos dos tempos" e "Polivio, jovem
academico, atraido pela fama do admiravel e admirado sabio".
Magalhães Bastos descreve os vários diálogos; o primeiro começa
perguntando "Quem é Deus", e somente no IV se trata da descoberta e
exploração da América e se faz a descrição da América setentrional; no
V descreve a América meridional (parte espanhola); no VI, a América
portuguesa; no VII noticia coisas que diz não andavam escritas (fundação
de povoações, nomes dos fundadores, limites) ; no VIU, as gentes da terra,
sua origem, divisão em línguas, modo de falar de alguns povos, a civiliza-
ção mexicana de Yucatan, o Império peruano do lnga (Inca), os costu-
mes dos Bororos, dos Payagoates (Paiaguás?); o IX trata dos gigantes,
pigmeus e amazonas, e do que há nisso de verdade; das diversas leis portu-

(23) Catdlogo dos Manuscritos Ultramarinos da Biblioteca Pública Municipal do Porto,


Lisboa, 1938. p. 130.

195
guesas contra o cativeiro dos índios e em favor da sua cristianização e civi-
lização ; no X, dos povos que se introduziram nas Américas depois das
descobertas (franceses, ingleses e espanhóis) e de seus costumes; o XI
estuda os portugueses no Brasil, seus costumes, religião, prisão de judeus
no princípio do século XVIII, o governo, as rendas e despesas, as minas,
escravos, "prejuízos que desta escravatura resultavam, um dos quais era
fazer com que os brancos se considerassem fidalgos e não trabalhassem,
os dízimos, a Inquisição, e os motivos pelos quais o Brasil não teve Mesas
( deste Tribunal), como as teve a América Espanhola" (parece desconhe-
cer os tribunais da Inquisição nos séculos XVI e XVII). A parte segunda
tem a mesma feição prolixa. Começa no Diálogo I com os elementos, o
fogo, o ar, a água e segue no segundo com os produtos brasileiros, do
reino mineral, e no III continua a matéria, mas passa para Nova Espa-
nha, México, Peru, e retorna ao Brasil tratando da variedade das pedras
preciosas e seu descobridores no Brasil, delas e das pérolas. No IV ocupa-
se dos produtos do reino animal ( terrestres e domesticáveis), indomesti-
cáveis e depois do VI ao XI, dos animais voláteis, aquários, os produtos
do reino vegetal, as flores, os frutos e os aromas.
Este livro, que Magalhães Bastos qualifica de importantíssimo, mere-
cia ser editado.
A outra obra de José Barbosa de Sá é a "Relação das povoações do
Cuiabá e Mato Grosso de seus princípios até aos presentes tempos" <24 >.
Uma notícia resumida cronológica do que ocorreu entre 1719 e 1779
na conquista de Cuiabá e Mato Grosso começa louvando a primazia paulista
que enfrentou índios, venceu grandes extensões de terra, criou arrai:iis,
descobriu ouro. Aos 8 de abril de 1719, Pascoal Moreira Cabral func
Arraial de Cuiabá e o povo o elegeu em voz alta seu guarda-mor rege.. ,c:
até que viessem ordens reais. Divulgada a notícia do ouro, foi enorme o
movimento de gente das Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de São Paulo,
"deixando casas, fazendas, mulheres e filhos botando-se para esses ser-
tões como se fora a terra da promissão ou o Paraíso encoberto".
Os comboios, as esquadras, as bandeiras que navegavam os rios até
chegarem a Cuiabá perderam muita gente, atacados pelos índios, esgotados
pela fome, extintos pelas doenças, ou vencidos por animais ferozes.
As histórias dessas primeiras aventuras têm muito sabor pela
novidade da matéria, pela riqueza da lavra "que foi a mancha de ouro
mais copiosa que se tem achado em todo o Brasil". As dificuldades da vida
no sertão, as fomes que padeceram devido à falta de alimentos, a carestia
de vida, tudo está anotado pelo advogado-cronista. Houve comboio em
que morreram todos, achando os que vinham depois "as canoas com fa-
zendas podres, corpos mortos pelos barrancos dos rios e redutos". Os
índios Paiaguás ofereceram muita resistência à invasão de suas terras. Des-
creve a multiplicação da criação de gado, o clima cálido, os frutos do que

(24) ABN, 1904, 23, S-S8.

196
se plantava. Muitos índios bororos e pareeis foram escravizados e, assim
como os brancos atacavam os índios, estes os matavam em lutas impie-
dosas.
A descrição ano a ano é em si uma forma rudimentar de historiogra-
fia. A história não é orgânica e unida, antes feita de pedaços de aconteci-
mentos, de porções de fatos, uns históricos, outros individuais. Os índios
Paiaguás, Aicurus, Bororos, Pareeis lutaram ferozmente, mataram e fo-
ram mortos. As primeiras relações com as missões jesuíticas do Paraguai
estão aqui registradas. Lutas pessoais de vigários, ouvidores, juízes, de
régulos e amotinadores encharcaram de mais sangue a terra já cruenta pela
violência da luta entre índios, brancos, negros levados para as minas. Se-
cas, miséria, epidemias ainda mancham mais a primitiva história de Cuia-
bá, de Mato Grosso, de Vila Bela. O autor registra o "invento da navegação
do Pará", por volta de 1742, e registra a ida e vinda de Mato Grosso ao
Pará, e termina assim: "tenho dado notícia destas conquistas de seus prin-
cípios até hoje dezoito de Agosto de mil setecentos e setenta e cinco, daqui
por diante dá-la-ão aqueles a quem morte der lugar que de presente não
me é permitido fazê-lo".

5. As "Memórias" de Nogueira Coelho


Felipe José Nogueira Coelho, natural da Vila Real, na província de
Trás-os-Montes, formou-se em direito pela Universidade de Coimbra e
serviu no Brasil nos cargos de ouvidor, provedor e intendente da capitania
de Mato Grosso. Ele é autor dos Princípios de Direito Divino, público,
universal e das gentes (25 >, mas foram suas "Memorias Chronologicas da Ca-
pitania de Mato-Grosso principalmente da provedoria da Fazenda Real e
Intendência do Ouro" (26 > que lhe deram um lugar na historiografia brasi-
leira. "Escrevo nestas Memórias como principal objeto à história da pro-
vedoria da fazenda real e da intendência do ouro desta Capitania de Mato
Grosso."
Essas "Memórias" são muito mais bem compostas que a "Relação"
de José Barbosa de Sá. O autor tem grande conhecimento, pelo exercício
do cargo, dos regimentos, leis e ordens relativas à arrecadação e às finanças
e crê que para este fim é indispensável o socorro da história. Relembra
que os novos estatutos da Universidade de Coimbra prescrevem aos juris-
tas a instrução da história, preceito que "bem deixa ver quanto ela é inte-
ressante e necessária, já na teoria, já na prática das leis".
Para tratar do fim a que se propunha, tinha que tratar da fundação das
vilas de Cuiabá e Vila Bela, e para isso não só recorreu à "Relação" de
Barbosa de Sá, como fez "um exato e escrupuloso exame" nos arquivos da
provedoria e ouvidoria, tomando assim autênticas essas memórias pela sua
fé pública e incontestável. E antes de começar coloca como epígrafe o dito

(25) Lisboa, 1773. novas edições, 1776 e 1777. citadas por Inocêncio Francisco da Silva,
DBP, ob. cit., t. 2, 299-300.
(26) RTHGB, XIII, 137-199.

197'
de Cícero, transcrito dos Estatutos da Universidade de Coimbra, que "é a
história mestra da vida e luz da verdade". Começa em 1718 e vai até 1780,
dando sempre muita ênfase à posse e substituição de governadores, ouvi-
dores, provedores e intendentes do ouro. Inclui-se no livro, dando a data
de sua posse como provedor e intendente em 1776, a reforma de seus
ordenados em 1779, sua nomeação como ouvidor. Quando trata da guerra
que fizeram ao Mato Grosso os espanhóis e jesuítas da província de Moxos
em 1763, diz não poder deixar em silêncio as ações do general governador
e de seus soldados.
As "Memorias" contêm matéria econômica e social, a legislação vi-
gente, a comunicação e comércio com o Pará, as lutas com espanhóis e
jesuítas, a paz de 1763, e a nova guerra de 1773, a destruição de um grande
quilombo às margens do rio Galera, a promoção da agricultura pelo quarto
governador Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, a franquia
do comércio através da navegação de pequenos rios que possibilitavam a
ligação do Amazonas ao Paraguai e o benefício que receberam Vila Bela e
Cuiabá com essa navegação. Refere-se à tomada da ilha de Santa Catarina
pelos espanhóis e a Companhia Geral do Pará, cujo monopólio comercial
prejudicara a capitania.

6. O "Compêndio" e as "Crônicas" de Costa Siqueira


Joaquim da Costa Siqueira, capitão reformado do regimento de milícias
das minas de Cuiabá, guarda-mor das mesmas e fiscal dos diamantes, era
vereador do Senado da Câmara de Cuiabá e, como segundo vereador, ca-
bia-lhe escrever a crônica da vila. Sabe-se pouquíssimo dele, apesar de
referir-se a si próprio nas "Crônicas de Cuiabá", nenhum bibliógrafo re-
gistra-lhe a vida, nem Inocêncio, nem Sacramento Blake.
Na verdade, os dois trabalhos que dele aparecem, o "Compendio his-
torico chronologico das notícias de Cuyabá, repartição da capitania de
Mato-Grosso, desde o princípio do anno de 1778 até o fim do anno de
1817" <27 >, como o que foi publicado posteriormente "Chronicas de Cuya-
bá" <28 >, constituem um mesmo livro, uma crônica, ano por ano, à imita-
ção de anais, mas desconchavada e desarticulada. Na primeira, abrangendo
de 1778 a 1817, que na verdade constitui a segunda parte, seu nome
aparece como autor, enquanto na segunda, que começa em 1719 e vai até
1781, o próprio subtítulo diz muito sobre a autoria, ao afirmar que a "Re-
lação Chronologica", seu subtítulo, era feita pelo segundo vereador do Se-
nado da Câmara de Cuiabá, de acordo com a determinação do Conselho
Ultramarino de 20 de julho de 1782. Declara, ainda, que Joaquim da
Costa Siqueira "por não achar outras algumas lembranças antigas, nem
também pessoas daquele primeiro tempo, para os poder mendigar, se viu
obrigado a escrever fielmente tudo o que havia escrito José Barbosa de
Sá, advogado que foi dos auditórios desta vila e seu republicano, que ainda

(27) RIHGB 1850, t. XIII, J.• parte; 2.• ed., 1872, 5-124.
(28) "Chronlcas de Cuyabá", RIHGSP, 1898-99, t. IV, 4·217.

198
neste tempo pôde conseguir algumas notícias antigas, e as mais que pre-
senciou e sucederam, estando ele nessas minas até o ano de 1765, corri-
gindo unicamente aquilo que pôde achar contrário e acrescentando as que
se omitiram, talvez por falta de lembranças, e prosseguindo do dito ano
de 1765 em diante com os mais fatos que ocularmente presenciou e ou-
tros que são constantes e praticando o mesmo sistema que teve aquele
primeiro escritor de relacionar também os ministros e párocos que se têm
seguido do dito ano para cá".
A declaração formal revela que a autoria até 1765 é de José Barbosa
de Sá, e ao começar o ano de 1743 se fala no próprio Barbosa de Sá fa-
zendo a diligência pelo ouvidor recomendado. Quando se abre o ano de
1755 se escreve que "até aqui foi unicamente o que noticiou José Barbosa
de Sá sobre os fatos do presente ano; mas eu, que por ocasião desta mes-
ma escrita, tive de passar pelos olhos os livros das vereanças e registros do
Senado da Câmara desta vila". Vê-se, assim, que no título se diz que a
autoria de Costa Siqueira começa em 1765, e em 1755 se data o início
da atribuição de Costa, e em 1765 não se faz nenhuma referência espe-
cífica.
A "Relação" é uma ânua de lutas e guerras contra os vários grupos
indígenas que viviam naquelas regiões, registra a posse dos govemador_es
desde o primeiro Antônio Rolim de Moura Tavares, Conde de Azambuja
(1751-1762) até o quarto Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáce-
res (1772-1791 ), os ouvidores, os vigários, os juízes, enfim, toda a his-
tória oficial administrativa, e mais os vários descobrimentos, a ação domi-
nadora do fisco, as ameaças e lutas com os espanhóis da fronteira, já de-
finida, mas não reconhecida.
Jos~ Barbosa de Sá, o autor da primeira parte, escreveu sobre os pri-
meiros anos cerca de setenta anos depois, mas tanto ele como Costa Si-
queira são escritores-testemunhas e participantes que acompanham a evo-
lução histórica da nova capitania. Não possuem como é natural uma razoá-
vel intuição histórica, e por isso selecionavam de cambulhada o histórico e
o não-histórico, pessoal, acidental, circunstancial. Mas ainda assim con-
tém história econômica e social, a luta dos grandes senhores da terra, a
pobreza, a carestia, a fome e as pestes, o sofrimento das grandes maiorias,
índios e negros, e até a representação de comédias, as festas, sobretudo
comemorativas de santos, da chegada de autoridades, dos fatos pessoais da
família real portuguesa. Os autores não esquecem de registar as aberturas
de caminhos para Goiás e para o Pará, a chegada de animais domésticos,
especialmente bovinos e cavalares, a contribuição do povo para a construção
de igrejas, as velhas missões jesuíticas na fronteira, e as extorsões dos
reais donativos, como o da reconstrução de Lisboa após o terremoto.
O "Compendio Historico Chronologico" é uma continuação da "Re-
lação" retomada em 1778 e levada até 1817 tendo como autor o segundo
vereador Costa Siqueira. No prólogo ele declara: "Se achares nele falta
de notícias peculiares do distrito de Mato-Grosso, sabe que as não relato,
porque as ignoro, e também porque a brevidade do tempo não me deu

199
lugar para indagá-las. O que escrevi neste Compendio foi unicamente o
que pude colher dos anais das memórias cronológicas da câmara desta
vila. Se não te agradar a leitura por falta de eloqüência e erudição, nem
por isso te faças Aristarco, porque eu não desconheço a fraqueza do meu
talento. Se te parecer fastidioso o método, não deixes por isso de o ler,
porque assim mesmo adquires o proveito de saber notícias deste novo
mundo, que certamente ignoras".
Anotando que as notícias da Europa, pelas quais suspiravam e eram
para a substância delas que olhavam, embora chegassem menos verdadei-
ras, acrescentava: "Esta circunstância não acharás nas deste Compendio,
porque são extraídas das memórias do Senado, que são atestadas com
juramento pelo presidente mais senadores em cada época". Revela que
a passagem contando que Joaquim Geraldo Tavares fora despejado da
capitania, por intrigas, "foi escrita, assinada e atestada pelo mesmo Joa-
quim Geraldo Tavares, a quem competia escrevê-las como segundo verea-
dor então do Senado; tal a veracidade com que se escrevem na dita câ-
mara os seus anais".
Por aí se vê que os anais do Senado da Câmara, escritos pelo se-
gundo vereador, são a fonte direta, quase única, afora a observação pes-
soal, ou o testemunho oral buscado pelo cronista, para a elaboração da
Relação e do Compendio.
A seleção factual, o método de exposição e a composição são iguais,
não se podendo distinguir uma da outra. Como já acentuei, há no Com-
pendio muita matéria a-histórica, fatos pessoais sem conseqüências na cons-
trução do futuro, e domina sempre a mesma rotina de uma crônica des-
conexa e episódica. Sua concepção histórica nem é seletiva, nem tem acui-
dade. Sobre 1788 ele escreve que "sem embargo, que neste ano, não houve
cousa digna da história, contudo darei notícia do que aconteceu nestas
minas, com as parreiras, e é que tantas vezes se podam no ano, quantas
vezes dão frutos no mesmo ano". Costa Siqueira cita a si próprio algumas
vezes como vereador do Senado da Câmara e como capitão do regimento
auxiliar, e juiz de fora.
Há algumas referências a representações teatrais, sobretudo comédias
e dramas e a festas populares, e como na "Relação", à chegada dos gover-
nadores e autoridades civis, militares e eclesiásticas. Trata igualmente da
luta com os espanhóis e da defesa do forte de Coimbra, que teve papel
tão importante na defesa da integridade territorial naquela fronteira, che-
fiado então por Ricardo Franco de Almeida Serra. Registra em 1808 a
chegada da notícia da vinda de D. João para o Brasil e as festas que se
fizeram, e o novo caminho mais cômodo que o capitão Bento Pires de
Miranda descobrira para ligação pelo rio Arinos do Mato Grosso com Pará.

7. O "Diário Histórico" de Antônio Pires


da Silva Pontes Leme
Antônio Pires da Silva Pontes, nascido em N. S. do Rosário, Minas
Gerais, depois dos estudos no Brasil foi para Coimbra, onde se formou em

200
matemática, em 1777, tendo como seu colega o Dr. Francisco José de
Lacerda e Almeida. Ambos foram nomeados astrônomos da demarcação
de limites de 1777 e em 1780 chegaram ao Pará e logo ao Rio Negro, vin-
dos de Lisboa. Com Ricardo Franco de Almeida Serra explorou o Rio
Branco. Em setembro de 1781 embarcou em Barcelos e ao fim de seis
meses de viagem chegou a Mato Grosso e aí, ao lado de Ricardo Franco,
explorou todo o terreno até as cabeceiras daquele rio.
Em 1786, com seus companheiros, fez o reconhecimento do alto Pa-
raguai até Baia Negra de onde voltou a Cuiabá. Estudou mais os rios
Verde e Capivari, afluentes do Guaporé, e Sararé, Tapajós e Jauru.
Regressou a Portugal com Lacerda e Almeida, foi nomeado professor
da Academia da Marinha em 1791 e sócio da Academia Real das Ciências.
Em 1797 foi nomeado governador do Espírito Santo, tomou posse em
1798 e nele permaneceu até 1804, falecendo no Brasil antes de 1807 <29 >.
Como matemático e astrônomo, a contribuição de Silva Pontes Le-
me é geográfica e cartográfica e se encontra registrada no Catálogo da
Exposição de História do Brasil (30).
Só o "Diário Histórico e Físico da Viagem dos Oficiais da Demarca-
ção que partiram do quartel general de Barcelos para a capital de Vila
Bela da capitania de Mato Grosso em l.º de setembro de 1781" (3t) contém
alguns elementos históricos sobre a vida, a miséria, as doenças, as dificul-
dades da gente do interior explorado, e os constantes conflitos com os
grupos indígenas. Para ele, o Brasil era o mais caro país do universo. His-
toricamente é uma contribuição muito limitada.

8. Francisco José de Lacerda e Almeida


Já tratamos deste notável matemático e explorador científico no ca-
pítulo sobre a historiografia amazonense. Na historiografia mato-grossense
o dr. Francisco José de Lacerda e Almeida contribui com a sua "Memória
a respeito dos rios Baurús, Branco, da Conceição, de $. Joaquim, ltono-
mas e Maxupo e das três Missões qa Magdalena, da Conceição e de S.
Joaquim" <32 >.
Na verdade, é das missões que a "Memória" trata. :e um estudo his-
tórico-geográfico-antropológico, noticiando os costumes, miséria e fome dos
índios e o papel dominante que exerciam os curas, que "são uns pequenos
régulos, e o seu tratamento corresponde a este titulo. Têm ao seu serviço
(29) "Dr. Antônio Pires da Silva Pontes Leme•, pelo Visconde de Porto Seguro (F. A. de
Vamhagen), RIHGB, 36, I.• parte, 184-187, baseada cm Porto Seguro a mesma biografia
in Joaquim Manuel de Macedo, Anno Blographlco, Rio de Janeiro, 1876, 3.0 vol., 553-554; a
biografia em Inocêncio Francisco da Silva é Inferior à de Varnhagen: DBP, Lisboa, 1858, t. 1,
239; 1867, t. VIII, 287, e 1911, t. 20, 260.
(30) Rio de Janeiro, 1881, vol. 1, n."' 148-149, 183, 197, 207, 242, 650, 663, 995, 1016-1017,
1024-1025, 1411, 1669, 1683, 1684, 1686, 24907, 9377, 19642. Vide também Sacramento Blake,
DBB, vol. 1, 292-294.
(31) RIHGB, v. 262, 344•406.
(32) RIHGB, 1849, t. 12, 106-119. Manuscrito oferecido ao Instituto por Jos~ Silvestre
Rebello.

WJ
um grande número de fndios e índias. Todos os sábados entram de semana
novos mordomos, copeiros, dispenseiros, jardineiros, cozinheiros e outros
muitos oficiais. Todos os dias se mata uma vitela para o padre e sua fa-
mília. Certo sinal, que se dá em um sino, indica a necessidade que o cura
tem de galinhas, frangos ou ovos; e a este reclamo cada cabeça de casal
está obrigado a trazer o tributo que se lhe pede, ou um ovo . .. " Mostra
como se usavam o trabalho e os recursos dos índios, não somente na oferta
de alimentos, como na cozinha, e nas serenatas ou concertos. "Mas o po-
bre índio que tanto trabalha passa a vida miseravelmente", vivendo de
minhocas, pouquíssima carne e tendo como base fundamental a bebida
chamada chixa, que fazem de um milho denominado pururuca. As notas e
observações sobre os padres, verdadeiros régulos, e os fndios, sobre sua
vida e costumes, constituem uma contribuição valiosa de Lacerda e
Almeida.

9 . A obra de Ricardo Franco de Almeida Serra


Ricardo Franco de Almeida Serra (Porto, ,Portugal 1748- Forte de
Coimbra, Mato Grosso 1809), oficial de infantaria e do Real Corpo de
engenheiros, fez parte da terceira divisão que devia demarcar a fronteira
da foz do Jauru à do Japurá. O Tratado de 1777 determinou várias explo-
rações geográficas para a definição dos limites entre os domfnios de Por-
tugal e de Espanha na América. Essas explorações geográficas trouxeram
muito bons resultados no reconhecimento geográfico e científico em ge-
ral e, conseqüentemente, uma extraordinária documentação histórica e his-
toriográfica. Ricardo Franco faria durante dois anos (1780-1781) o le-
vantamento geográfico e cartográfico do Pará, Rio Negro (Amazonas) e
Maranhão, e sobretudo do Rio Branco; depois, durante 27 anos trabalha-
ria em Mato Grosso na paz e na guerra.
Realizou estudos geográficos, cartográficos e etnográficos no Mato
Grosso, onde chegou a fazer parte do governo interino, como militar mais
graduado, juntamente com o ouvidor Antônio da Silva do Amaral e o
vereador mais velho, Marcelino Ribeiro ( 1796).
Quando houve o rompimento entre Portugal e Espanha, na fase na-
poleônica, comandando o Forte Coimbra resistiu e repeliu com 40 homens
militares e civis os 800 hispano-paraguaios comandados por D . Lázaro
Ribera.
Joaquim da Costa Siqueira, no seu "Compendio historico-chronolo-
gico das notícias de Cuyabá", já citado várias vezes, refere-se aos seus ser-
viços e às observações astronômicas, à sua bravura no combate acima men-
cionacto. Em 1804, o governador de Mato Grosso, Manuel Carlos de Abreu
e Menezes (1804-1805) publicou as mercês que S. A. Real lhe fizera
de promovê-lo de tenente-coronel a coronel do corpo de engenheiros com
o hábito de Aviz e uma tença de 300$000 réis. Em 1806, ele era nomeado
coronel chefe das fronteiras com o Paraguai. Morreu aos 21 de janeiro de
1809 no Forte Coimbra, sendo transferidos seus restos mortais para Vila

202
Bela em 1810 e restituídos solenemente ao Forte de Coimbra em 1954.
Prestou grandes serviços como geógrafo, cartógrafo, escreveu bibliografia
especializada e comandou com dignidade a defesa das fronteiras com o
Paraguai.
Sua obra publicada e inédita é grande e acha-se registrada no Catálo-
go da Exposição de História do Brasil (33 ). Ainda existem trabalhos inédi-
tos na Biblioteca Nacional, no Arquivo do Exército e no Arquivo do Insti-
tuto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Sua obra serviu muito na defesa da fronteira com a Guiana Inglesa
elaborada por Joaquim Nabuco (3 4).
De toda sua bibliografia alguns trabalhos têm importância historio-
gráfica, pela contribuição à história do seu tempo e à reconstituição das
áreas exploradas.
O "Diário do Rio Madeira, Viagem que a expedição destinada à De-
marcação de Limites fez do Rio Negro até Vila Bela, capital do governo de
Mato Grosso" (35) começa na vila de Barcelos, em 1.º de setembro de
1781 e termina na chegada a Vila Bela aos 28 de fevereiro d{: 1782, de-
pois de percorrerem 770 léguas.
O "Diário" registra, anota e comenta todas as peculiaridades geográ-
ficas e a atualidade dos rios, regiões e vilas. Ao tratar das cachoeiras pro-
põe se funde na do Salto uma povoação, o que já se tentou por duas ve-
zes, e acrescentava: "Uma povoação neste lugar será por todas as faces
com que se pode olhar, um estabelecimento vantajoso a si mesmo, útil ao
Estado, preciosíssimo para a urgente e necessária navegação, que desde a
cidade do Pará se faz pela capitania de Mato Grosso. Este estabelecimen-
to ficaria no centro de um vasto e abundantíssimo sertão, rico em todos os
efeitos que do Estado do Pará se transportam para a Europa ... " (36)
Enumera as vantagens do estabelecimento desta povoação. Primeiro,
ela evitaria a fuga de índios e escravos que desertam do Pará e subindo o
rio Madeira, passam pelas suas cachoeiras, entram pelo Mamoré até as
missões espanholas de Moxos, onde estavam muitos. Só nesta cachoeira
do Salto para não se perderem são os desertores obrigados a passar pelo
lugar onde ele aconselha deveria existir a povoação. Outra vantagem
seria polir e catequizar as bárbaras nações que ali vivem, sem as quais é
impossível manter a navegação, especialmente por estarem as povoações
do Amazonas exaustas de gente. "Utilíssima, enfim, para assegurar e vi-
giar a extrema portuguesa com os domínios espanhóis conflitantes, sendo
a posse privativa deste importante lugar, não só um ponto de apoio para
se ajudarem e socorrem mútua e brevemente as duas capitanias do Pará
e Mato Grosso."

(33) Rio de Janeiro, 1881, n. 0 • 246-248, 665-671, 992, 1015-1019, 1026-1027, 1450, 1669,
1696-1699, 1717, 3228, 3246-3247, 6580, 6583, 11.441, 14.551, 19.638, 19640, 19892.
(34) Ver Anexos da 1.• Memória. Frontieres du Brésil et de la Guyanne anglaise. Roma,
1903-1904, 9 vols.
(35) RIHGB, 1857, t. XX, 397-432.
(36) Ob. cit., 405.

.W.3
Escreve Ricardo Franco que "pela via do Rio de Janeiro, com seis
meses de marcha por terra com bestas, nem com triplicado preço se podem
vender a respeito dos vindos pela carreira do Pará". Aponta e compara ca-
racterísticas de nações indígenas, como os Caripuna e os Mura. Todos os
pontos de navegação são anotados cuidadosamente, e ricos de observações
utilíssimas. "São as margens do rio da Madeira, principalmente desde a sua
desembocadura no Amazonas até a confluência no Mamoré, formadas por
terreno sólido e o mais próprio para uma grande cultura, coberto de gran-
des arvoredos, dos quais se podem tirar as melhores e mais finas madeiras
e óleos do Brasil. Todos os afluentes que deságuam no Madeira são nave-
gáveis e no Madeira se encontram todos os recursos que fazem a grandeza
do Amazonas, mas como era infestado pena nação Mura e outros índios
cruéis e matadores, foi abandonado pelos portugueses que nele faziam gran-
des culturas e colheitas."
Descreve o Mamoré, o Guaporé, manifesta a importância do Forte
da Conceição e sua posição estratégica.
Ao chegar a Vila Bela, fundada pelo Conde de Azambuja, Antônio
Rolim de Moura Tavares, seu primeiro governador, louva a vila e seus re-
cursos e a ação do quarto governador, Luís de Albuquerque de Melo Pe-
reira e Cáceres ( 1772-1789). Faz um resumo das distâncias de alguns luga-
res mais notáveis dos três rios Madeira, Mamoré e Guaporé, e continua
a relatar a viagem do Guaporé e de Vila Bela para cima, descreve sumaria-
mente as províncias espanholas de Moxos e Chiquitos, anota a pouca dis-
tância pelo rio Paraguai para chegar-se a Assunção, e conclui dizendo que
"a pequena digressão que faço além do Guaporé é para ligar de alguma for-
ma os pontos essenciais da importante capitania do Mato Grosso, como
chave e segurança que é do vastíssimo interior de todo o Brasil" (37 >.
O "Extrato do Diario da Diligencia ao reconhecimento do Rio Para-
guay, desde o lugar do Marco, na boca do Rio Jauru, pelo capitão de
engenheiros Ricardo Franco de Almeida Serra, comandante da Expedi-
ção" (38) não tem o mínimo interesse histórico.
O estudo "Mato Grosso. Navegação do Rio Tapajós para o Pará pelo
Tenente Coronel Ricardo Franco de Almeida Serra, escrita em 1799, sen-
do governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro" <39 > é, como se
escreve no subtítulo, uma memória geográfica do rio Tapajós, formada
por informações combinadas que ele adquiriu. Descreve o Tapajós, um
dos grandes confluentes do Amazonas, cuja foz está perto da vila de
Santarém, as nações indígenas que habitam suas margens, os recursos em
peixes e aves, declara que se gastavam 28 dias navegando o rio até sua
confluência com o Arinos e o Juruena, sendo necessários mais doze para
passar as cachoeiras, e mais vinte de navegação do Pará até a foz do Ta-
(37) Na coleção Manuel Barata, no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
L. 278, Mss. 14.747, se encontra o "Novo Diário de Viagem dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé
até a Vila Bela de Mato Grosso, 1790*.
(38) RIHGB, 1862, t. XXV, 319-345; a parte de R. Franco vai até a p. 329. As páginas
seguintes, até a 345, são de autoria de Augusto Leverger.
(39) RTHGB, 1847, t. 9, 1-10.

204
paJOS no Amazonas, o que somava dois meses de navegação segura até
o Juruena. Depois descreve o rio Juruena, o Guaporé, o Jauru, o Sumi-
douro, o Sipotuba, o Negro, e o Arinos.
Para ele, a maior dificuldade da navegação do Tapajós é não se
conhecerem presentemente aqueles vastos sertões, "porém o que se pôde
fazer por aqueles sertanistas há 100 anos, não é impossível que ainda hoje
se faça, havendo as notícias que eles deixaram, e que eles não tinham, e
franqueando-se pelos anos de 1791 livre a comunicação e comércio desde
o Pará para as Minas de Goiás e Cuiabá, pelos rios Tocantins, Xingu e
Tapajós, cuja navegação é mais breve". Mais adiante, afirma Ricardo
Franco: "A navegação do Tapajós, olhada pelas diversas faces, parece a
mais natural, útil e cômoda para a capitania de Mato Grosso, e vantajosa
para as minas de Cuibá, sendo-o igualmente para a do Pará, a que só falta
um comércio ativo com as minas, o que poderia igualá-la ao Rio de Janeiro
e Bahia, que florescem em razão do comércio das minas".
Achava, com sua experiência, que "para Vila Bela, ainda que a nave-
gação pelo Madeira, Mamoré e Guaporé seja mais extensa, compensa-se
pelos grandes botes de 2.000 arrobas de carga, que pelo caudaloso daque-
les rios chegam até a dita vila".
Para ele, os efeitos que abundavam os largos terrenos do Tapajós,
salsa, cravo, cacau, e outros, podem concorrer muito para o seu comércio,
além das minas de Arinos e Rio, mas era necessário franquearem-se as
minas, pois só assim "se fará aumentar a população e força daquela capi-
tania, que tem de defender-se dos espanhóis, e fazerem-se respeitáveis' até
aos do Peru e Paraguai". O ensaio é acompanhado de roteiros da capitania
de Mato Grosso e de tábuas de latitudes, longitudes, rumos e léguas dos
mais notáveis lugares que se navegam desde a cidade do Pará até Vila
Rica, e o mesmo para a navegação de Cuiabá ao Rio de Janeiro.
A sua obra mais histórica é a "Descripção Geographica da Capitania de
Mato Grosso. Ano 1797" <40 >. Começa definindo: "A capitania de Mato
Grosso, a mais remota e mais ocidental de todo o Brasil, compreende um
vasto terreno no centro da América Meridional, da qual a superfície é
maior do que a de toda a França e das Espanhas unidas". Dá seus limites,
declara possuir ela mais de trinta rios e diz que "a capitania de Mato
Grosso, sempre foi considerada como o seu propugnáculo, atendendo a
esta sua natural e geográfica posição, não só por cobrir as capitanias in-
teriores desta vasta proporção do novo continente, nascendo nela os seus
maiores rios, em numerosos braços que guardam em si grandes e ainda
não toucados tesouros, mas também porque pelo dito figurado e extenso
fosso se podem igualmente os Portugueses concentrar até os mais ricos
estabelecimentos espanhóis do populoso Peru".
Trata, a seguir, dos vários rios, o Araguaia, o Xingu, o Tapajós, o
Paraguai, o Guaporé, o Mamoré, o Madeira, as várias cachoeiras deste, e
sobre cada um informa suas riquezas e suas nações indígenas, defende a

(40) RIHGB, 1857, XX, 185·292, páginas não numeradas, tabelas e estatísticas.

205
criação "de uma povoação na cachoeira do Salto no rio Madeira para fa-
cilitar o utilissimo e indispensável comércio, que pela carreira do Pará se
deve fomentar para Mato Grosso, de que resultará a prosperidade de ambas
as capitanias, dá as distâncias dos lugares mais notáveis da navegação da
cidade do Pará, até Vila Bela, as latitudes e longitudes dos lugares mais
notáveis da sua descrição geográfica, e escreve uma "notícia resumida do
tempo da fundação da capitania do Mato Grosso", isto é, Forte Príncipe
da Beira, Cagalvasco, Insua, J auru, Vila Maria, Povoação de Albuquerque,
Presidio de Coimbra, Presídio de Miranda, Ribeirão, Palmela, Cuiabá,
Vila Bela, S. Pedro d'El-Rei, Vizeu, S. Luís, Guimarães, a ordem crono-
nógica da fundação, a demarcação, o mapa da população, a notícia cro-
nológica das pessoas que governaram a capitania de Mato Grosso, desde
17 51, e data de sua criação; faz um catálogo cronológico dos governadores
e capitães-generais, revela cinco roteiros, mostra numa tabela comparativa
as distâncias que pouco mais ou menos por terra vão desde Vila Bela à
Bahia, Rio de Janeiro, Santos, a força militar, oferece informações sobre
obras pias, e alinha os empregados desde o governador aos mais modestos,
com seus vencimentos e os dos vigários, professores, oficiais de justiça, dá
uma descrição estatística da população da capitania de Mato Grosso· em
1818 e o mapa da população da mesma em 1817 <4tl.
Sua "Memoria· ou Informação dada ao Governo sobre a capitania
de Mato Grosso" <42 l, escrita em 31 de janeiro de 1800, é um parecer
sobre a defesa de Mato Grosso dado ao governador Caetano Pinto de Mi,.
randa Montenegro (1796-1803). Nela Ricardo Franco encara não somente
o estado atual da capitania como seu futuro aumento e sua vizinhança com
os domínios espanhóis, dez vezes mais povoados que ela e considera que
"ela cobre o interior do vastíssimo Brasil, guardando nos seus vastos sertões
sabidos e grandes tesouros e contendo na sua superfície de 48 mil léguas
quadradas, os nascimentos e a maior parte do corpo de grandes rios, que
com trezentas léguas de curso vão confluir no máximo rio das Amazonas
e o total de outros muitos rios, que dão livre entrada para o centro das
Capitanias de São Paulo e de Goiás". Declara valer-se da experiência de
19 anos de residência na capitania e inicia sua opinião com a noção geo-
gráfica dos rios Madeira, Mamoré, Guaporé, as várias missões da fronteira
de Chiquitos, o Paraguai, como na "Descripção" o mais estudado, assim
como o Guaporé. Trata da população portuguesa, cerca de 24 mil pessoas,
sendo 18.000 em Cuiabá e seis mil em Vila Bela, e calcula em 120 mil a
população espanhola das províncias espanholas de Chiquitos, Moxos, Santa
Cruz de la Sierra, Cochabamba, Misque e Tarata. Cuida em especial da
capitania do Paraguai com 113 mil pessoas, e afirma que o total da
população de todas as províncias espanholas conflitantes com Mato Grosso
corresponde a duzentos e quarenta mil habitantes.
(41) Um resumo da Descrição, sob o Utuio de "Extracto da Descrlpção geographica da
província de Mato Grosso" havia aparecido na RIHGB, 1865, t. 6, 156-196, e antes n'O
Patriota, 1813-1814, li, 1, 47•57; II, 2, 50-62; II, 5, 32·42; li, 6, 38·48,
(42) RlHGB, 1840, t. 2; 3.• ed., 1860, 19-49.

206
Seu "Parecer sobre o aldeamento dos índios Uaicurús e Guanás, com
a descripção de seus usos, religião, estabilidade e costumes" <43), dado em
Cuiabá aos 5 de abril de 1803, é um exemplo de estudo etnográfico feito
com seriedade e um mínimo de compreensão, apesar de sua discriminação,
tão comum aos chefes portugueses da época. :e. acompanhado da "Resposta
do General Caetano de Miranda Montenegro", o governador que lhe pe-
dira o parecer (44).
Resta, finalmente, seu segundo ensaio geográfico, político-estratégico,
de grande significação histórica, que são as "Reflexões sobre a Capitania
de Mato Grosso" <45 >, escritas de colaboração com Joaquim José Ferreira,
outro engenheiro, companheiro da terceira divisão demarcadora, autor de
mapas geográficos quase todos feitos como colaborador de Ricardo Franco
e Francisco José de Lacerda e Almeida <46 >. As "Reflexões" eram ofere-
cidas ao governador João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres
(1789-1796); examinam a situação geográfica, uma das mais importantes
tanto pela sua extensão como pelas riquezas e por ser fronteira do "vasto,
populoso e rico Peru". Trata dos limites, da população, dos rios e dos
possíveis ataques espanhóis, da defesa brasileira, cuida com muita atenção,
como nos outros estudos, do Paraguai, rio e governo, e sugere medidas,
como aumentar a povoação, o comércio e navegação com o Pará, e re-
lembra a criação da povoação de Salto, já referida, como um ponto de
apoio. Só assim "fará S. M. respeitar a larga fronteira desta capitania,
exposta por tantos lados ao populoso Peru, enfim garante das outras capi-
tanias extremas do Brasil".

(43) RIHGB, 1845, t. 7, 204-213.


(44) RIHGB, ob. clt., 213-218. O original do "Parecer sobre o aldeamento" e o da
• Memória sobre o aldeamento" encontram-se no Arquivo do Instituto Histórico e Ge0gráflco
Brasileiro, L. 17, Mss. 379, e L. 42, Mss. 807, respectivamente.
(45) RIHGB, 2.• ed ., 1874, t. XII , 377-399.
(46) CEHB, 665 (Reflexões) , 1450, 1699 (com Ricardo Franco), 1728 (feito sozinho),
e 1729 (com a colaboração de Lacerda e Almeida).

207
CAPITULO IV

A HISTORIOGRAFIA DE GOIÁS
1. Informações e Relatos. 2. Francisco José Rodrigues
Barata. 3. José Manuel Antunes da Frota.

1 . Informações e Relatos

A historiografia goiana antecede de pouco a mato-grossense. Nasceram


ambas devido ao bandeirismo e logo se singularizaram. Já Afonso d'E.
Taunay nos seus Relatos Sertanistas <1> incluíra entre os primeiros do-
cumentos históricos a "Notícia - 1. ª Prática que dá ao P. M. Diogo Soares
o Alferes José Peixoto da Silva Braga, do que passou na Primeira Bandei-
ra que entrou no descobrimento das Minas de Guayases até sair na cidade
de Belém do Grão Pará" <2 >, escrito por José Peixoto da Silva Braga,
contando sua saída de São Paulo aos 3 de julho de 1722 em companhia
do capitão Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera de alcunha, um dos
maiores bandeirantes paulista·s <3>.
A "Notícia Prática" é um roteiro da tropa que, com 39 cavalos, três
religiosos, e 20 índios cedidos pelo governador Rodrigo César de Menezes
(1721-1730?), e composta de brancos originários de Portugal, cinco ou
seis paulistas e cada um com seus índios e negros, marchou sempre por
campos e matos grossos. A bandeira enfrentou dificuldades com os "am-
boabas (emboabas), assim chamam aos reinóis", e as desordens travaram
a marcha, logo retomada com ódio aos mesmos. A expedição teve muitas
perdas, mais de 40 pessoas morreram, e se desorientou do rumo para Goia-
ses, padeceu fome e moléstias e lutou com indios. :e uma história breve
e viva dos embaraços, contratempos e riscos que a bandeira teve de afrontar.
José Peixoto da Silva relata, como ele próprio diz, "os trabalhos, as mi-
sérias, e as grandes conveniências das novas Minas dos Guayazes" <4 >.
Francisco Adolfo de Vamhagen ofereceu ao Instituto Histórico as
"Notícias Práticas das Minas do Cuiabá e Goyases, na Capitania de São
Paulo e Cuiabá, que dá ao Rev. Padre Diogo Soares, o capitão João An'."
tônio Cabral Camello, sobre a viagem que fez às Minas de Cuiabá no anno
de 1727" <S>.

(1) Coletânea. Introdução e notas de Afonso d'E. Taunay. São Paulo, Martins, 1953.
(2) Relatos Sertanistas, ob. cit., 121-137.
(3) Biografia ln Francisco de Assis Carvalho Franco, DBSB, São Paulo, 1953, 366-370.
(4) A "Notícia Prática• foi publicada por Caplstrano de Abreu sob o título • A Bandeira
do Anhangüera a Goyaz em 1722, segundo José Peixoto da Silva Braga•, ln Gazeta Lltterarla,
1883-1884, t. 1, 62-65, 110-113.
(5) RTHGB, 1842, t. 4, 487-500.

208
Como os outros, este documento é prático pois procura informar o
caminho seguido, as dificuldades encontradas, os riscos que correram e os
proveitos ou perdas que tiveram. Do capitão Camello sabe-se apenas que
empreendeu essa viagem de Sorocaba a Cuiabá <6 >. "Não poderei informar
a V. Rev. com a individuação que pretende, e eu desejo sobre a viagem
que fiz às minas do Cuiabá, mas o farei na melhor forma que me for
possível, porque os contínuos perigos e riscos desta derrota não dão lugar
a se atender a nada."
A "Notícia" é repleta de informação sobre os índios da região e ba-
sicamente ensina pela experiência o roteiro, seus problemas e as soluções
improvisadas. Viaja pelo Rio Grande, Camapuan, Quexim (Coxim), Ta-
quari, Paraguai-Mirim, Paraguai-Assu, Porrudos, Cuiabá onde chega a 21
de novembro de 1727. Fala da vila de Cuiabá com suas oito ou nove
casas de telha, e as mais de capim, que se vendiam caro, e mais tarde
caíram muito de preço, como as roças, quando as desampararam os donos,
retirando-se para São Paulo.
No fim, faz uma espécie de inventário, resumindo as conveniências
e inconveniências gerais de Cuiabá. "Verdade é que favoreceu a fortuna
mais a alguns, mas foram muito poucos os que tiveram de livrar o prin-
cipal com que entraram. Eu saí de Sorocaba com quatorze negros e três
canoas minhas, perdi duas no caminho, e cheguei com uma e com sete-
centas oitavas de empréstimo, e gastos de mantimento que comprei pelo
caminho; dos negros vendi seis meus, que tinha comprado fiado no Soro-
caba, quatro de uns oito que me tinha dado meu tio, e todos dez para
pagamentos de dívidas. Dos mais que me ficaram morreram três e só me
ficou um único, e o mesmo sucedeu a todos os que fomos ao Cuiabá.
Enfim, de 23 canoas que saímos de Sorocaba, chegamos só quatorze ao
Cuiabá; as nove perderam-se, e o mesmo sucedeu às mais tropas, e sucede
cada ano nesta viagem."
:É a soma destas pequenas contribuições históricas que possibilitam
a elaboração historiográfica, e foi assim pensando que o Instituto Histórico
as fez publicar na sua Revista.

2 . Francisco José Rodrigues Barata


Sabe-se que nasceu no Pará nos meados do século XVIII, foi militar
e faleceu no posto de sargento-mor. Foi nomeado pelo governador e capi-
tão-general D. Francisco Maurício de Sousa Coutinho (1789-1970) para
ir à colônia holandesa de Suriname <7 >. Sobre essa viagem escreveu o
"Diário da Viagem que fez à colônia holandesa de Suriname o porta ban-
deira da sétima Companhia do Regimento da cidade do Pará, pelos ser-
tões e nos deste Estado, em diligência do Real Serviço" (8).

(6) Francisco de Assis Carvalho Franco, DBSB, ob. cit., 96.


(7) A. V. A. Sacramento Blake, DBB, ob. cit., vol. 3, 15; Inocêncio Francisco da Silva,
DBP, ob. cit., t. 9, 317.
(8) RIHGB, 1846, t. 8, 1-53.

209
Para a historiografia de Goiás escreveu a "Memória em que se ·mos-
tram algumas providências tendentes ao melhoramento da agricultura e
comércio da capitania de Goyaz" (9 ), na qual estuda a decadência da ca-
pitania desde 1776 e propõe medidas para sua recuperação. Rodrigues
Barata começa defendendo os direitos da Metrópole sobre as colônias, cujo
"efeito primário e comum é certamente o de enriquecer a metrópole e au-
mentar-lhe o poder". Relembra os deveres das colônias, revelando-se assim
um colono convicto da sua sujeição.
Descreve a situação geográfica da colônia, os gêneros de sua produção,
a pobreza em que vivem seus habitantes e a falta de comércio com as
capitanias vizinhas, como Mato Grosso, São Paulo, Minas, Bahia, Mara-
nhão e Pará. Defende o desenvolvimento da navegação e comércio pelos
rios Tocantins e Araguaia, embora reconheça a necessidade das embarcações
e equipagens, o apoio nas margens dos rios de modo a terem mantimentos,
a dificuldade da passagem das cachoeiras, e a precisão de tropa que repila
o assalto indígena. Pleiteia o descimento e catequese dos índios, submeten-
do-os ao mando dos senhores brancos, e propõe e sugere que o governo
crie incentivos para animar os povos a irem para Goiás. Declara que
delimitou a decadência da capitania em 1776 fundado no mapa da receita
e despesa entre 1762 e 1802, onde se, mostrava a grande dívida do governo.
Em resumo, capitula como causas da decadência da capitania a diminuição
da produção de ouro, o decréscimo da população e a falta de comércio, e
termina fazendo um apelo para que se tomem providências ou as que
sugeriu ou outras mais acomodadas.

3 . José Manuel Antunes da Frota


Os dicionários biobibliográficos de Inocêncio e Sacramento Blake não
registram Antunes da Frota. Ele foi inspetor da Real Feitoria do Linho
Cânhamo da capitania de São Pedro do Rio Grande do Sul e serviu na
capitania de Goiás na criação do horto botânico. Foi cirurgião-mor da
Frota, efetivo do Primeiro Regimento de Lisboa e da Praça da Bahia
(1813) . Antes, em 1803, ele prestara serviços contra epidemia em Ca-
choeira (1807), e o governador D. João Manuel de Menezes (1800-1804)
atestou-lhe os serviços, com que obteve a mercê de cirurgião honorário da
Câmara e se incumbiu de organizar o horto botânico selecionando diversas
qualidades de plantas (10) .
Ele escreveu os "Extractos da Historia da Capitania de Goyaz" (ll).
Conta a história das entradas paulistas em Goiás e para ele foi Francisco
de Sousa Coutinho, governador do Grão-Pará, quem conciliou o gentio
Carajá no Araguaia e principiou a navegação do mesmo rio para as minas
de Goiás e se dedicou à domesticação do gentio Apinajé, que dificultava a
navegação do Tocantins e Araguaia. Estabeleceu um grande registro com

(9) RIHGB, 1848, t. XI, 336-365.


(10) Documento biográficos, C563-5, Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro.
(11) O Patriota, Rio de Janeiro, 1814, Ili, subscrição n.• 2. 24·25.

210
tropa, 300 homens, conseguindo impor a paz aos Apinajés. Ordenou tam-
bém a perseguição ao índio Mura, impondo com o terror, a paz.
Manuel Correia. um homem da plebe, foi o primeiro que, no ano
de 1719, vendo-se oprimido pela indigência em São Paulo, como escre-
veu, penetrou no sertão em demanda do gentio, que aterrados com o es-
trondo das armas compravam a vida ao preço da liberdade. Afirma que
Correia não deixou uma idéia perfeita de sua jornada, pois os papéis
escritos pela sua mão, com o roteiro, estavam tão desarranjados e confusos
que nada se pôde conhecer dele. Sabe-se que foi grande a presa de gentios
que fez e que vendeu em São Paulo e vizinhanças, com lucro não pequeno.
Esperavam todos que ele trouxesse grande porção de ouro, e ele apareceu
com apenas 1O oitavas. A notícia inflamou o ânimo daqueles habitantes,
e indagado onde o havia extraído, para que pudessem ter parte nos lucros
e nos trabalhos, afirmou que o extraíra do rio Araes, em um prato de es-
tanho, e que para ir a este rio passara por outro muito grande.
Deste modo, não marcou o rio e altura em que o tirara, e assim se
recolheu como saíra. Esta foi a primeira notícia que vagou de haver ouro
em Goiás. Afirma que nas memórias deste homem se encontram muitas
incoerências que declara para desabuso de muitos que julgavam as minas
melhores do que eram.
Sua história, cheia de alusões lendárias, afirma que quando D. Ro-
drigo César de Menezes governava São Paulo (1721-1727) pôs todo o
cuidado em aumentar os domínios da Coroa Portuguesa e para isso con-
vocou à sua presença os moradores mais dignos e que estavam em melhor
estado de tentar uma jornada que, sem dispêndio da Real Fazenda, fosse
proveitosa à Coroa. Bartolomeu Bueno se ofereceu e em 1721 se despediu
do governador e de seus amigos. Levando um seu filho, procurou descobrir
novo caminho mais fácil e direto. Foi devido aos gentios goiases que a
capitania tomou esse nome.
Quando voltou, trazia tantos índios quantos seriam bastante para a
população de uma vila mediana e foi recebido com clamores de vivas, e
logo os lavradores queriam trocar mantimentos por escravos.
José de Almeida Vasconcelos Soveral e Carvalho (1772-1778), que
chegou a Goiás com o título de Barão de Mossamedes e foi depois Visconde
da Lapa, foi o primeiro que deu acertadas providências para catequizar
naquela capitania o gentio. Formou uma aldeia, S. José de Mossamedes,
que chegou a ter 800 a 900 acres, sujeitando o índio. Sua história vai
até esse governo, acrescentando apenas que seus substitutos se esforçaram
no mesmo sentido. Termina dizendo: "Parece-me não ter faltado à verdade
nesta minha narração singela e desalinhada, como promete minha igno-
rância" <12 >.

(12) Pizarro e Araújo, Memórias Históricas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1948, vol.
8, 338-339. Plzarro aproveitou-se do eittrato publicado n'O Patriota.

211
CAPITULO V

A HISTORIOGRAFIA RIO-GRANDENSE-DO-SUL
1. "Relatos" e "Informações": 2. José Custódio de Sá t
Faria. 3. Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara. 4. "No-
tícias" e "Memórias". 5 . Sebastião Francisco Bettamio. 6.
Francisco João Roscio. 7. A "Descrição" de Francisco Fer-
reira de Souza e o "Diário" de José de Saldanha. 8. Do·
mingos Alves Branco Moniz Barreto. 9. Domingos José
Marques Fernandes. 10. Manuel Antônio de Magalhães. 11.
Diogo Arouche de Moraes Lara.

1. "Relatos" e "Informações"

A historiografia rio-grandense-do-sul conta com um estudo de Gui-


lhermino César <1 > que não só examina as fontes primárias, acompanhando-
as de textos originais, como esboça a própria história da história do Rio
Grande do Sul. Os textos não são publicados na íntegra, mas em trechos
seleéionados, e revelam a primeira forma rudimentar da historiografia, os
relatos, as informações e até mesmo cartas.·
Como acentuou Guilhermino César, convivem neste quadro figuras
como Antônio Vieira e homens de poucas letras como os vereadores de
Câmaras, todos irmanados pela mesma classificação de cronistas, isto é,
aqueles que registram os acontecimentos in statu nascendi, e só vêem os
aspectos conjunturais, e não os estruturais, que pertencem à história.
A primeira relação é a de Jerônimo Rodrigues (1552-1631), mis-
sionário jesuíta que passou ao Brasil em 1575, dedicou-se ao gentio apren-
dendo-lhe a língua <2 >. A narrativa original completa, abrangendo de 1605
a 1607, foi publicada por Serafim Leite (3), que a considerou extraordinária
por tratar de uma fase de transição entre o século XVI e o XVII, tão
pouco estudada, na qual se falava das terras do atual Rio Grande do Sul <4>.
Ela constitui não somente a primeira referência jesuítica mas a pri-
meira sobre aquelas terras, antes tratadas como espanholas, e é escrita
(1) Primeiros cronistas do Rio Grande do Sul, 1605-1801. Faculdade de Filosofia, UFRGS,
1969.
(2) Serafim Leite, Hlst6rla da Companhia de Jesus no Brasil, Rio de Janeiro, 1949, IX,
86-87.
(3) Novas Cartas /esultlcas (De Nóbrega a Vieira), Companhia Editora Nacional, Brasiliana,
São Paulo, 1940, vol. 194, 196-246; reproduzida por Múclo Leão ln Autores e Livrqs, X, n.0 10,
10-10-1948, e um pequeno trecho por Guilhermlno César, ob. clt., 23-25. ; ,.
(4) Novas Cartas /esultlcas, ob. clt., 134.

212
num estilo animado, contendo preciosas informações sobre a etnografia e
a vida social daquela gente, por uma testemunha ocular e ativa participante.
Jerônimo Rodrigues conta sua viagem de Santos a Cananéia por terra,
de Cananéia a Paranaguá por mar, a estada de três semanas nesta última,
e desta ao Porto de Dom Rodrigo ou de Embitiba, já na terra dos Patos,
ou melhor, na ilha de Santa Catarina. Viveu quase dois meses nela, na
terra dos Carijós, e partiu depois para Ararunguá, que é um rio onde
esteve com o afamado índio Tubarão, "grande ladrão. salteador de brancos,
vendedor de parentes", gozando da fama de ser "feiticeiro e de ter três
ou quatro irmãos, todos feiticeiros, e todos são grandíssimos tiranos e ven-
dedores. e de quem os brancos fazem muito caso", pois era um grande
ladrão de índios para os brancos. Trata, depois, dos costumes dos índios,
"a mais pobre gente que cuido há no mundo", da vida social, da falta de
limpeza, da escravidão e antropofagia, das casas e insetos, das qualidades
boas, dos adornos, das superstições, e do modo dos brancos submeterem
os fndios e vendê-los aos brancos.
Na "Annua ou Annaes da Província do Brasil dos dous annos de
1624 a 1625", escrita pelo Padre Antônio Vieira e assinada na Bahia aos
30 de setembro de 1626 <5 >, este descreveu a Missão dos Patos, que se
entendia como Laguna, tendo como superior o Padre Antônio de Araújo,
que acabara de publicar o Catecismo da Língua Brasílica <6 >, e como com-
panheiro o Padre João de Almeida, que ficou famoso com a obra que lhe
dedicou Simão de Vasconcelos <7 >, mas que pediu logo para se retirar. A
Missão foi realmente exercida pelos dois padres Antônio de Araújo e
Pedro da Mota, tentando evitar a atividade escravizadora dos brancos de
São Vicente <8 ), e pouca notícia nos deu sobre a terra e o Rio Grande,
pois se limitaram aos contactos com os índios e chegaram até a aldeia
de Caibi, que Guilhermina César identifica como localizada nas cercanias
da atual Porto Alegre.
A primeira tentativa de povoamento foi escrita por Manuel Jordão da
Silva, numa carta escrita a S.M., datada do Rio de Janeiro, de 10 de
junho de 1698. :E: um documento histórico e não historiográfico; "Agora,
meu Senhor, digo que, suposto sou bisavô de oito bisnetos, avô de 55
netos, pai de 25 filhos, me ofereço a V.M. para ir povoar o Rio Grande,
que, se há terra de primição (promissão) do mundo é aquela, e nele fazer
a cidade de São Pedro, e no rio de Taramandi (Tramandaí) que está perto
para parte do norte, fazer uma vila, por ser muito abundante de oiro." (9J
Esta carta foi enviada a S.M. pelo governador do Rio de Janeiro,
Sebastião de Castro e Caldas (1695-1697), que dizia não querer depreciar
coisa alguma que pudesse resultar em utilidade ao serviço, e que "o autor
era um homem de idade com tanto rigor e esperteza como se fosse de vinte

(5) ABN, XIX, 175-217, especialmente o capítulo "Missão dos Patos", 204-207.
(6) Lisboa, 1618; 2.• ed., 1686.
(7) Continuação das Maravilhas que Deus é servido obrar no Estado do Brasil, por inter-
cessão do mui religioso e penitente servo P. /oão de Almeida da Companhia de /esus, Lisboa, 1662.
(8) Serafim Leite, História da Companhia de /esus no Brasil, ob. cit., t. VI, 481.
(9) Luís Ferrand de Almeida, A Diplomacia Portuguesa e os Limites Meridionais do
Brasil, Coimbra, 1957, vol. 1 (1493-1700), 555-557.

213
e cinco anos, o qual tem gasto nestas diligências, muita fazenda, pelo que
o avaliaram de louco, e não tinha nada disso, e dizia que esta ânsia e
desejo de fundar colônia procedia da fertilidade que achara naquelas ter-
ras, que tinha fazenda com segurar o que pedia" (10J.
Coube a Capistrano de Abreu publicar o "Roteiro por onde se deve
governar quem sair por terra da Colônia do Sacramento para o Rio de
Janeiro ou vila de Santos", escrito por Domingos da Filgueira, em
1703 <11 >. Esse curioso ·"Roteiro", como outros que tenho comentado, é
um documento da primitiva história e historiografia rio-grandense. Do-
cumento do mesmo gênero é o "Itinerário feito desde os confins septen-
trionais da Capitania do Rio Grande de S. Pedro do Sul até a cidade de
São Paulo, no qual se marcam os pontos de divisão de uma e outra
capitania, e os rios que atravessam o caminho geral da primeira para a
segunda, trabalho enviado pelo governador daquela Capitania" <12 >, assi-
nado da vila do Rio Grande aos 26 de dezembro de 1797, e contando
minuciosamente o caminho de Porto Alegre a São Paulo, de 235 léguas,
e dando destaque à vila de Curitiba, a única descrita.
Deste mesmo gênero são as várias "Notícias Práticas" que aparecem
sobre o Rio Grande do Sul, como apareceram para Minas Gerais e Goiás,
e irão surgir para o Paraná e Santa Catarina.
As "Notícias Práticas da Costa e Povoações do Mar do Sul" e a
"Resposta que lhe deu o sargento-mor da Praça de Santos, Manuel Gon-
çalves de Aguiar, às perguntas que lhe fez o governador e capitão general
da cidade do Rio de Janeiro e capitanias do Sul Antônio de Brito e Mene-
zes, sobre a costa e povoação do mesmo nome" <1 3l indicam o caminho
até Santa Catarina e daí até o Rio Grande da Lagoa de S. Pedro, tratam
da entrada no porto do Rio Grande de São Pedro, até então dificultosa,
e informam sobre o gentio que habitava essa marinha até Montevidéu;
falam, ainda, da possibilidade da existência de prata e na abundância de
gado, e mostram em que parte se devia fundar uma povoação, que sirva
para o aumento da nova Colônia do Sacramento, e de prontidão para seu
socorro, dentro do porto do Rio Grande, ou fora da costa do mar, ou
perto da ilha de Santa Catarina.
A "Notícia" assinada de Santos, aos 26 de agosto de 1721 por Manuel
Gonçalves d'Aguiar, é valiosa .porque mostra o que ele viu, correu e exa-
minou desde Laguna até o Rio Grande e a campanha de Buenos Aires,
informado, neste caso, por pessoas fidedignas, que cursaram aquelas cam-
panhas muitos anos.
A "Notícia. 2.ª Prática que dá ao -P. M. Diogo Soares, o capitão
Cristóvão Pereira, sobre as campanhas da Nova Colônia e Rio Grande ou

(10) DHBN. Consultas do Conselho Ultramarino, Rio de Janeiro, 1687-1710. Biblioteca Na·
clonai do Rio de Janeiro, 1951, XVIII. 68.
(11) Ensaios e Estudos, J.• série. l.• ed., Sociedade Caplstrano de Abreu, Rio de Janeiro,
1938, 103-105; 2.• ed., Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1975; e Gullhermlno César, Primeiros
Cronistas, ob. clt., 55-60.
(12) RIHGB, 1858, t. XXI; 2.• ed., 1930, 309-315.
(13) RTHGB, 1908, LXIX, parte !.•, 288-303.

214
Porto de S. Pedro" <14 > começa informando da capacidade das terras que
ele conhece há onze anos. "Compõe-se este País d'um clima muito ameno,
saudável e criador de riquíssimas e férteis terras em que produz em grande
maneira, e com ventagem mui crescida todos os frutos da Europa, assim
trigos, como vinhos, linho e toda a casta de frutas, que pode causar in-
veja as de qualquer parte do mundo, com perto de cento e cinqüenta
léguas de Campanha ... "
A historiografia rio-grandense não é mais rica do que as outras já
tratadas, e oferece, como essas, a característica de ser sobre uma região
nova, que vai aos poucos ser incorporada ao Brasil.

2. José Custódio de Sá e Faria


José Custódio de Sá e Faria (Portugal 1710 - Buenos Aires 1792)
fez o curso da Academia Militar de Fortificações e se formou em enge-
nharia em 1745. Depois de exercer a superintendência de obras reais, foi
nomeado capitão engenheiro em 1749 e em 1750 enviado ao Brasil. Foi
nomeado chefe da terceira Partida de Demarcação, e escreveu vários tra-
balhos geográficos e cartográficos. Em 1755, Gomes Freire enviou-o à
Colônia do Sacramento e daí ao Rio Grande, onde se uniu à expedição
para incorporação dos 7 Povos. Foi governador interino do Rio Grande
do Sul ( 1764-1768), sendo tenente-coronel, e em 1767 atingia o posto de
coronel. O fracasso da expedição ordenada por ele para desalojar os es-
panhóis do Rio Grande em 1767 resultou na destituição do 1. 0 Vice-Rei
(Conde da Cunha, 1763-1767) e a prisão de Sá e Faria, com ordens de
voltar ao reino. Em 1771 era promovido a brigadeiro, o que prova que
sua ação não fora do desagrado do Rei.
Em 1775, vindo de São Paulo para o Rio, "por ter justificado seu
procedimento" é empregado nas fortificações de Santa Catarina. Durante
seis anos andara Sá e Faria pelo interior de São Paulo e Mato Grosso e
sobre ele escreveu seus vários trabalhos. Em 1776, ante a invasão de Santa
Catarina pelo general Pedro Cevallos, ele foi enviado para lá e capitulou
com os demais chefes. Mantido como refém, teve como residência Monte-
vidéu e depois Buenos Aires. Daí em diante passa-se para o inimigo, é
reconhecido desde 1788 como brigadeiro espanhol, recebe soldo e opina
sobre questões geográficas e militares. Depois da rendição de Santa Catarina
todos os seus bens foram embargados, vendidos em hasta pública e apli-
cados ao fisco. Em 12 de janeiro de 1792, o Vice-Rei do Prata D. Nicolás
de Arredondo participou à Corte espanhola seu falecimento <15 >.
Sua obra está registada em Sacramento Blake <16 >, mas coube a Abeil-
lard Barreto levantar-lhe igualmente e de maneira exaustiva sua biblio-
grafia <17 >, composta de mapas, cartas, pareceres, diários, exemplos geo-

(14) RIHGB, 1908, LXIX, parte t.•, 304-309.


(15) Biografia resumida da escrita por Abelllard Barreto, Bibliografia Sul Rlo-grandense,
Rio de Janeiro, 1973, vol. I, 486-491. Esta é a única biografia correta de Sá e Faria. Somente
nela aparece toda sua atuação e traição, nebulosas em Varnhagen e Rio Branco.
(16) DBB,· vol. 4. 0 , 401-402.
(17) Bibliografia cit., 491-510.

215
gráficos de terreno, plantas, instruções planos de vilas, que não pertencem
à historiografia. Mas no seu "Diário da viagem que fez o brigadeiro José
Custódio de Sá e Faria da cidade de São Paulo à praça de Nossa Senhora
dos Prazeres, 1774-1775" <18 > encontra-se, como nos demais "Diários"
que têm sido mencionados, matéria histórica e geográfica de grande valia
para a historiografia rio-grandense-do-sul. Está também publicada a "Conti-
nuação do Diário da primeira partida de demarcação, 1759" <1 9>.

3 . Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara


Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara era coronel quando D.
Luís de Almeida Portugal Soares de Alarcam Eça e Melo Silva e Masca-
renhas, Marquês de Lavradio, 3. 0 Vice-Rei do Brasil (1769-1779) man-
dou-o chefiando as tropas que partiram do Rio para enfrentar os espanhóis
no Rio Grande de São Pedro. Dele escreveu: "este oficial é de muita
honra, valor e inteligência, tem muito cuidado na disciplina daquele corpo
que comanda (terceiro regimento da Europa), não só no que pertence à
presteza e prontidão das evoluções, mas na parte que pertence à disciplina
interior do regimento; é um oficial muito digno do posto que ocupa, e dos
mais com que S. M. o quiser honrar" <20 >.
Coube-lhe chefiar a primeira demarcação da fronteira no Sul, em
cumprimento do tratado de 1777 <2 1 >.
Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara foi governador do Rio
Grande de São Pedro do Sul (1780-1801) substituído por vários gover-
nadores interinos no desempenho de primeiro comissário das demarcações
no Sul <22 >. Sua obra registrada no Catálogo da Exposição de História do
Brasil <23 > compõe-se de planos topográficos, corográficos, plantas de terreno,
de representações, ofícios, e das "Reflexões sobre o estado atual do Con-
tinente de São Pedro", obra principal que verdadeiramente o inclui na
historiografia rio-grandense-do-sul.
A "Representação dirigida a S.A.R. o Príncipe Regente em 24 de
agosto de 1801 pelo Governador Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câ-
mara sobre a conveniência de criar um bispado no Continente" <24 > · e a
"Representação feita em 24 de agosto de 1801 por Sebastião Xavier da
Veiga Cabral Câmara, ex-governador da capitania do Rio Grande de S.

(18) RJHGB, 1876, t. XXXIX, parte t.•, 219-273. Compreende de 3 de outubro de 1774
a 30 de novembro de 1775. Da página 275 à 291 transcrevem-se documentos relativos à matéria.
(19) CNHGNU, vol. 7, 81-123.
(20) RIHGB, vol. 27, parte !.• 432.
(21) Encontra-se na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional uma coleção de vários
papéis de sua autoria. No 1- 28, 28, 36 contém uma pública-forma da carta do governador
Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara a D. Fernando José de Portugal, depois Conde e
Marquês de Aguiar, 6. 0 Vice-Rei (1801-1806), bem como o 1- 31, 35, 1, com seis cópias sobre
a demarcação, na parte relativa ao art. 8 do Tratado Preliminar, dirigida ao Conde de
Rezende, D. José de Castro, 5. 0 Vice-Rei (1790-1801). O 1- 31, 36, 5 é também sobre a demar-
cação da 2.• Divisão. Contém ainda uma carta a Francisco João Rosclo; Igualmente Importante
é o 1- 31, 34, 9.
(22) F. A. de Vamhagen, História Geral do Brasil, vol. V, 366-367.
(23) Rio de Janeiro, 1881, n.•• 1936-37, 1940, 1946, 1947-48, 1958, 9075-76, 10499-500.
(24) CEHB, ob. cit., 9075.

216
Pedro do Sul, sobre a necessidade de separar aquele território, como
também o da ilha de Santa Catarina da jurisdição do Bispado do Rio de
Janeiro" <25 > são exemplos de seu desvelado interesse pela boa adminis-
tração eclesiática da capitania aos seus cuidados. Na segunda declarava
já haver informado S.A.R. "do atual estado em que a capitania se achava,
pelo que toca à religião, e agora tomo a fazer diretamente a V.A. repre-
sentando-lhe que este continente do Rio Grande de S. Pedro do Sul e
departamento da ilha de Santa Catarina, distando do bispado do Rio de
Janeiro dez gráos de mar longo e tormentoso, metendo-se ainda de permeio
o bispado de São Paulo, não podem de forma alguma aqui chegar aos
cuidados episcopais em toda a sua devida inteireza, e por isso o clero aqui
posto em suma descuida da prática de seu ministério, e os povos sem
terem quem os instrua naqueles princípios religiosos, pelos quaes se apren-
de que obedecer e amar os príncipes é não só uma obrigação de justiça,
mas sim um dever de consciência, vão pouco a pouco afrouxando d'aqueles
sentimentos tão essenciais, e únicos, que portanto podem fazer bons cristãos
como fiéis vassalos" (26).
Ele faleceu aos 5 de novembro de 1801 na vila do Rio Grande, cuja
capitania dirigia desde 1780, e quando comandava as operações de guerra
começadas a 4 de julho de 1781, em que as armas luso-brasileiras vito-
riosas alargavam os limites da parte sul do Brasil, fixadas pelo Tratado d~
1777 (2 7>. Dele escreveu o Visconde de São Leopoldo, José Feliciano
Fernandes Pinheiro: "Morreu, mas sua memória será duradoura neste pa!s
que ele soube governar 21 anos com tanta dignidade: a pátria lhe deve
reconhecimentos pelos serviços militares e pelos expendidos na espinhosa
comissão de demarcação de limites; sobretudo o que forma o seu título
de glória é o valor e ingênita constância, com que sua alma guerreira
sem sucumbir à ruina e desfalecimento do seu corpo, como indiferente às
leis da humanidade, traçou do leito de morte cada uma das operações e
com suas mãos moribundas susteve o peso desta dificílima conjuntura" (28 >.
A "Memória do antigo Governador da Colônia Sebastião da Veiga
Câmara sobre a legitimidade dos direitos de Portugal às terras da parte
oriental do Rio da Prata e sobre os limites do Brasil em geral" (29 >, é um
estudo que o próprio autor subintitula de Geografia da América, pro-
curando provar que pertencem à Coroa de Portugal as terras da parte
oriental do Rio da Prata. Na realidade, a atribuição de autoria é feita por
Jaime Cortesão, mas acho estranho o caráter erudito, repleto de citações
e transcrições de geógrafos, cartógrafos e historiadores, de trechos em
latim, de discussão acadêmica sobre as descobertas nas Américas, de exame
de bulas pontifícias, de tratados, indicando rica bibliografia sempre pro-
curando fundamentar o direito de Portugal às terras ao oriente do Rio da

(25) CEHB, ob. clt. , 9.076, publicada na RIHGB, 1853, 347-365.


(26) RIHGB, XVI, 354.
(27) O Inventário de todos os seus papéis oficiais in RIHGB, 1848, XI, 445-486.
(28) Anais da Provlncla de S. Pedro, I." ed., 1839. 2.• ed., 1888, 3.• ed., 1946, p . 209.
(29) ln Jaime Cortesão (ed.), Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrl . Parte III.
Antecedentes do Tratado, t. I, Rio de Janeiro, s.d. 157-187 .

217
Prata. Conclui discutindo as terras que devem ser pedidas e com as quais
pode Portugal se acomodar, que se resumem em defender os limites do
rio Amazonas ao Prata.
Se se pode pôr em dúvida essa autoria, já a mesma não existe
quanto às "Reflexões sobre o estado atual do continente do Rio Grande
de S. Pedro" (30). Ao encaminhá-las ao Vice-Rei, aos 10 de dezembro
de 1783, declara que as reflexões não se propõem senão ao adianta~
mento do próprio continente e descoberta da verdade, alcançada durante
os três anos e meio em que a governava.
As "Reflexões" são políticas, econômicas e práticas pelas sugestões
que oferecem. Tratam do clima, das produções, do comércio, da agri-
cultura, da navegação, dos povos, da magistratura. O terreno é próprio
para qualquer estabelecimento, mas a abundância de carne leva ao "re-
gime de se conservar no maior descuido a agricultura e em particular a
preguiça". A conseqüência é o abandono do trabalho, a decadência e
fraqueza do comércio. Os homens são robustos devido aos exercícios
que fazem no domínio do gado, mas a multiplicidade dos crimes procede
"em grande parte da ignorância crassa que tem feito necessária e absoluta
falta de mestres, e de ensino das artes e das ciências". Condenam o
contrabando que prolifera no continente e declaram que "os chamados
contrabandos do Rio Grande raras vezes deixam de consistir em tomar
o alheio por força sem despender um vintém, espancar e matar a quem
pretende estorvar semelhantes desordens".
A falta de juízes letrados, "a poderosa influência que exercitam os
párocos em um povo tão destituído de indústria, artes e justiça", os
padres relaxados e ambiciosos que servem menos de edificação que de
ruína, a falta de eqüidade com que se distribuem os terrenos, o abuso
de fantásticas vendas e cavilosos traspassos são desordens que só o
braço forte dos Vice-Reis são capazes de extinguir.
Consideram os índios prejudiciais ao continente, pois são sujeitos
aos vícios em extremo e principalmente preguiçosos. "Dos costumes e
propensões dos moradores do Rio Grande é fácil inferir que o bem
comum lhes deve menor interesse que a outro qualquer povo mais
civilizado." Reconhecem que "construir vilas ou freguesias, e povoar ao
mesmo tempo campanhas vastas e desertas, isto é o que se tem preten-
dido, e jamais alcançado no Rio Grande", e o autor afirma "com con-
vicção" que "as novas fábricas e plantações que se pretendem estabelecer
e propagar por todo o continente, correspondem aos grandes interesses
que delas se pode esperar; é necessário, além da existência de meios
proporcionados, desterrar antes a preguiça e miséria em que vive a
maior parte dos lavradores, a quem de muitos anos se estão devendo
porções consideráveis do fruto da sua indústria".
Lembra que "a povoação do Rio Grande princ1p1ou a menos de
cinqüenta anos, tempo em que sofreu por duas vezes com a guerra as
calamidades que lhe são anexas".

(JO) RIHGB, 1877, t. XL, parte 1.•, 25!-261.

218
4 . "Notícias" e "Memórias"
Ainda ao fim de sua administração, se escrevia a "Notícia dos acon-
tecimentos pela presente guerra nos Sete Povos de Missões e nesta fron-
teira do Rio Grande do Sul" (3tl, que deu à capitania seu contorno
fisiográfico atual. A "Notícia" foi escrita em forma de efemérides desde
15 de junho até 21 de dezembro de 1801 e se tomou uma das fontes
primánas mais importantes sobre a conquista das Missões.
Essa "Notícia" dá o arremate final às campanhas, pela definição
do território rio-grandense, mas encontra seu legítimo precedente no
"Diário da Expedição de Gomes Freire de Andrade às Missões do
Uruguay" <32>, escrito pelo Capitão Jacinto Rodrigues da Cunha, que se
intitula testemunha presencial. O "Diário", que se diz abreviado da expe-
dição e derrota (rota, caminho) para efeito das demarcações da América
Meridional na parte do Sul do Brasil, começa em janeiro de 1752 e
termina em julho de 1756, não se limitando às conferências e discussões
sobre limites, mas contendo muito material valioso para a história,
sobretudo a militar, destes quatro anos e meio do Rio Grande do Sul.
A "Memória sobre a Província de Missões" <33 >, oferecida ao Conde
de Linhares, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, por Thomaz da Costa Corrêa
Rabelo da Silva, nativo, ao que supõe Sacramento Blake <34 >, do próprio
Rio Grande do Sul, começa com o mais grave pessimismo: "A prov{ncia
de Missões, aquela parte da capitania de S. Pedro, que, sendo a mais
agradável, tem as maiores proporções para dar vantagens aos seus habi-
tantes, e fazer interesses ao Estado, é na situação atual um teatro de
misérias; os seus principais povoadores, os índios Guaranis, são por todos
os princípios os entes mais desgraçados, e de tão dilatado espaço de
terreno não resulta ao Estado a mais pequena utilidade". :e urna des-
crição geográfica, etnográfica e econômica e sobretudo uma história da
opressão sofrida pelos guaranis da parte de espanhóis e portugueses.
A "Memória sobre a Tomada dos Sete Povos de Missões da Amé-
rica Espanhola", pelo furriel Gabriel Ribeiro de Almeida, foi escrita em
1806 e o manuscrito foi ter às mãos de Hemetério José Veloso da Silveira,
que a publicou na obra As Missões Orientais e seus Antigos Domínios <35>.
Gabriel Ribeiro de Almeida participou com José Borges do Canto,
Manuel dos Santos Pedroso e Luís Francisco e Felipe de Carvalho da
Silva, da conquista das Missões Orientais com a submissão dos povos
missioneiros. Gabriel Ribeiro de Almeida foi o principal auxiliar de
Borges do Canto, "não só pela sua capacidade militar como pelos conhe-
cimentos que tinha da língua dos indígenas" (3 6 >.
(31) RIHGB, 1894, XVI, t. 3, da 3.• série, 329-353, copiada de um manuscrito da Biblioteca
do Palácio Episcopal fluminense.
(32) RIHGB, 1894, t. xvr, t. 3, da 3.• série, 139,328.
(33) RIHGB, 1840, t. 2; 3.• ed., 1916, 157.
(34) DBB, vai . 7, 1902, 285.
(35) Porto Alegre, 1909, trecho citado e transcrito ln Guilhermina César, Primeiros Cro•
nistas tto Rio Grande do Sul, 1605-1801, ob. clr., 191-205.
(16) E. F. de Sousa Docca, História do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, 1954, 184-186,
com resumo histórico do acontecimento e curtas biografias dos · chefes da luta .

219
A narrativa de Gabriel Ribeiro de Almeida situa a gravidade das
relações entre Portugal e Espanha, conta as primeiras iniciativas de
guerra no sul do Brasil, e relata finalmente como "José Borges do Canto
e eu, com quarenta homens, fizemos a conquista dos 'Sete Povos das
Missões' do modo que vou referir" (37).

5 . Sebastião Francisco Bettamio


Nenhuma monografia se equipara pelo valor descritivo e a análise
sócio-econômica à "Notícia Particular do Continente do Rio Grande do
Sul" <38), escrita por Sebastião Francisco Bettamio, e assinada no Rio
de Janeiro, aos 19 de janeiro de 1780. O Autor foi secretário da Junta
da Fazenda no governo do Marquês de Lavradio na Bahia, incumbido
de introduzir novos processos de contabilidade em 1769 (39). Em 1775
ele auxiliava o general João Henrique Bõhm, comandante das forças
luso-brasileiras na guerra do Sul, organizando as linhas de suprimento(40).
Foi na época do governo de Manuel Jorge Gomes Sepúlveda
(1773-1780) que se começou a organizar a contabilidade do Rio Grande
do Sul sob a direção de Bettamio. Ele viera para o Brasil em 1767 para
introduzir os novos métodos de contabilidade fiscal e foi na Bahia que
começou, conseguindo logo diminuir a dívida da capitania. Foi depois
enviado a São Paulo, por volta de 1774, onde orientou o uso do novo
sistema; veio em seguida para o Rio de Janeiro a fim de organizar uma
junta da fazenda para a guerra no Rio Grande do Sul, e tornou-se secre-
tário da mesma junta e um dos poucos funcionários reais na capitania
a merecer aplausos do General Bõhm <41 >.
Foi nessa oportunidade que ele preparou a "Notícia Particular do
Continente do Rio Grande do Sul", uma das mais importantes fontes
históricas relativas à vida econômica e social do Rio Grande do Sul.
Nela ele conta como e por que se localizou a capital em Porto Alegre
e descreve, afora o Viamão e Rio Pardo, as aldeias e freguesias e se
concentra na vila de S. Pedro, que fora a capital, e a ela pertencia a
Câmara então em Porto Alegre. Ele pleiteia que a capital volte a ser
a Vila de S. Pedro, e prevê também a mudança para Pelotas, o que
desaconselha. Propõe providências minuciosas sobre a mudança, e sobre
a organização econômica e social da capital; trata, a seguir, das estâncias
reais, das cavalhadas e boiadas reais, a cavalhada dos dragões, a cavalhada
para o serviço que não for da tropa, a boiada, os armazéns gerais, os

(37) Reproduzida por Gullhermlno César, ob. c/t., 196.


(38) O título completo é o seguinte: "Notícia Particular do Continente do Rio Grande
do· Sul segundo o que vi no mesmo continente, e notícias que nele alcancei, com as notas
que me parecem necessárias para aumento do mesmo continente e utllldade da Real Fazenda.
Dada no ano de 1780 por ordem do Illmo. Exmo. Sr. Luls de Vasconcellos e Sousa do Conselho
de. Sua Majestade, Vice-Rei e Capitão General de mar e terra do Estado do Brasil", RIHGB,
1858. t. XXI; 2.• ed., 1930, 219-270.
(39) Dauril Alden, Royal Government in Colonial Brazil, Berkeley, 1968, 25.
(40) Ob. cit., 156.
(41) Ob. cit., 314-315.

220
gêneros dos armazéns, as munições de guerra, de boca, os dízimos reais, a
tropa do continente, os consertos de armamentos, do tesoureiro e almoxarife
dos armazéns, do gado do continente, do gado pertencente à Coroa,
das despesas da Fazenda Real. Propõe que se unam algumas freguesias
pequenas a outras igualmente pequenas para fazê-las menores em número
e maiores em povo. :E:, provavelmente, uma das mais completas notícias
sobre o Rio Grande do Sul no fim do século dezoito.

6. Francisco João Roscio


Francisco João Roscio <42 > veio para o Brasil em 1767 como aju-
dante de ordens do Marechal-de-campo engenheiro militar sueco Jacques
Funk, que fora recrutado para o serviço militar na Inglaterra, em
1764 <43 >. Funk, com o general João Henrique Bõhm, comandante do
Exército no Sul, e o capitão Roscio, ajudante de ordens do militar sueco,
constituíram o tripé militar em que se baseou o Marquês de Lavradio,
tanto nos trabalhos de remodelação e reequipamento das fortalezas e
outros edifícios públicos do Rio de Janeiro, como na organização e
comando das forças que lutaram no Rio Grande do Sul e na ilha de
Santa Catarina contra os castelhanos. Os três participaram da grande
vitória de 2 de abril de 1776, quando se reconquistou o Rio Grande.
O Marquês de Lavradio tinha Roscio em grande consideração, e
sobre ele disse: "Talvez seja ele o único em toda a capitania de quem
se possa acreditar as cartas e plantas que ele tem feito porque não põe
em papel senão o que ele viu, mediu, e examinou, o que os outros
fazem pelo contrário, riscando a maior parte das vezes, por estimação
ou informação" <44>. Lavradio procurou sempre promover Roscio e a
carta acima citada protesta contra o ato do Conselho Ultramarino por
não tê-lo promovido a sargento-mor. Na véspera de sua partida escreveu
carta louvando a capacidade do engenheiro <45 >. Roscio partiu para Por-
tugal depois de Lavradio e retornou ao Brasil três anos depois como
tenente-coronel, uma promoção provavelmente devida à intervenção do
Vice-Rei (4 6 >.
Foi em parte devido aos serviços militares e científicos, geogrMicos
e cartográficos, às suas viagens de observações e planos de defesa que
Roscio escreveu o "Compêndio noticioso do continente do Rio Grande
de São Pedro" em 1781, dois anos após o fim do governo de Lavradio
(1769-1779).

(42) Gullhennino César escreve nota especial para mostrar que se escrevia Rosclo, e alguns
pronunciavam Rósclo, mas a grafia é Rossio e a pronúncia Rossio.
(43) Francisco Marques de Sousa Viterbo, Dlcclonário histórico e documental dos architectos,
engenheiros e constructores portugueses, Lisboa, 1899, 400-401, e Clado Ribeiro Lcssa, "Breve
noticia sobre Jacques Funk e seus trabalhos de engenharia civil e militar no Brasil (1768-1781),
in RIHGB, IV Congresso de História Nacional, 1949, X, 383-402.
(44) Lavradio a Melo e Castro, 21 de Junho de 1776, RIHGRGS, 1939, XIX, 2, 20-22.
(45) lbid., 17-19.
(46) Daurll Alden, ob cit., 222, nota 122.

221
Em 1784, Roscio era coronel engenheiro e segundo comissário
demarcador de limites para a execução do Tratado de 1777 <47 ). Gover-
nou interinamente o Rio Grande do Sul de 8 de janeiro de 1801 a 30
de janeiro de 1803, substituindo o brigadeiro Sebastião Xavier da Veiga
Cabral Câmara, e coube-lhe o comando das nossas forças nos últimos
meses da guerra de 1801 com os hispano-argentinos, até a proclamação
da paz. O Brasil guardou suas conquistas, como a Espanha conservou,
na Europa, a praça de Olivença, que ganhara durante a mesma guerra,
ficando assim anulado o Tratado de 1801 (48).
O "Compêndio Noticioso do Continente do Rio Grande" <49) é assi-
nado de Lisboa aos 21 de junho de 1781. Para ele, o continente do
Rio Grande era um país agradável, sadio, fértil e temperado. Fala dos
índios que vieram das Sete Missões, gente forte, com aptidão e habilidade.
"Servem de grande socorro a este Continente em todos os trabalhos gros-
seiros e fortes, mas são inconstantes e acostumados a fugir, tanto homens
como mulheres, nem se afligem de viver quase nus e no mato como
bichos." Na segunda parte descreve o terreno com os olhos de geógrafo,
e afirma que nele está a povoação ou capela do Viamão. "A terceira
parte são os campos de cima da serra chamados de campos de Vacaria,
que é uma extensão de terreno vasto e longo, cortado e banhado para
os seus lados meridional e septentrional." Louva a fertilidade do terreno,
"que não conhece ano estéril".
Vem depois a descrição da gente. "O modo com que esta gente
e povoadores costumam viver e habitar estas terras é bastante rústico e
agreste. As casas são umas pobres cabanas sem cômodo nem agasalho.
Em muitas delas serve de porta um couro cru de boi dependurado como
cortina. Os mantimentos de que geralmente se servem são a carne de
vaca e o leite sem exceção da quaresma ou d'\a de jejum. O seu tráfico
é com bois e cavalos de que tiram os maiores interesses tanto para os
particulares como para os direitos reais."
Como nas outras partes do Brasil, nenhum morador se contenta
cotn poucas léguas de terras, querem mais, ainda que se sirvam de uma
insignificante parte junto de sua cabana e deste modo toda a campanha
está deserta, todos os campos estão dados e têm senhorio.
Cultivam um pouco de trigo, em uns cercados ou grandes hortas;
descreve o modo de criação dos bois e cavalos, tal qual a natureza
permite. Embora não queira fazer uma relação fastidiosa e insuportável,
procura declarar todas as circunstâncias e infere "que um tal povo, cria-
do com estes prejuízos, ou criado na forma declarada segundo suas
inclinações e estudo da natureza, onde geralmente todos entendem não
ser praticável mudar nem melhorar, será difícil reduzi-lo a melhor
forma sendo tão arraigados e constantes nos seus costumes"; diz que
(47) F. A. Varnhagen, História Geral do Brasil, IV, 351. Há na seção de Manuscritos da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro o "Jornal ou Diário do trabalho e observações que fizeram
os facultativos portugueses na campanha de 1784", J. 31, 3, 4, 9 e 22- 1, 48 n. 0 1.
(48) Vide, sobre sua chegada à vila de São Pedro vindo de Porto Alegre para tomar as
providências de guerra e sobre sua recepção pelo povo, a "Noticia dos Acontecimentos pela
presente guerra nos Sete Povos de Missões", RIHGB, reed. 1894, XVI, 347.
(49) RIHGRGS, ano XXII, lll e IV Trimestres de 1942, n. 0 87, 29-56.

222
"este país, ainda cuidando-se na sua melhoração e população não pode
em poucos anos ou talvez em séculos, sem um vigor extraordinário e
arriscado, ser capaz de ter e fornecer aquelas forças que precisa uma
tão extensa raia". E conclui com bastante visão: "se uma vez chegasse
a pôr-se no estado de se retirarem as vantagens de que é capaz certa-
mente faria respeito e veneração a qualquer Potência".
Roscio é também autor da "Breve Notícia da extensão de terreno,
que ocupam os Sete Povos das Missões Guaranis, chamados comumente
Tapes Orientais do Rio Uruguay, conquistado o ano passado ( 1801) a
favor da Coroa de Portugal" c50>. :e uma excelente e resumida notícia
geográfica e etnográfica de grande valia para a história da região e da
época <51 >.

7. A "Descrição" de Francisco Ferreira de Souza e o "Diário"


de José de Saldanha
A "Descrição à Viagem ao Rio Grande" foi escrita em 1777 por
Francisco Ferreira de Souza e publicado pequeno trecho por Guilhermino
César <52> . Em 1789 ele tinha 64 anos e 30 de serviço como cirurgião-
mor do Primeiro Regimento do Rio de Janeiro. A "Descrição" faz um
extenso relato das atividades bélicas no Rio Grande e contém um inte-
ressante trecho sobre os costumes rio-grandenses, transcrito na citada
obra de Guilhermino César.
O "Diário Resumido" do dr. José de Saldanha <531 não é um livro
de história, mas, como acentuou Rodolfo Garcia, enriquecem-no "além
das observações geográficas e astronômicas em que é calcado, notas pre-
ciosas sobre vários aspectos da história civil, da história natural e da
etnografia indígena, assaz desenvolvidas, tornando-o um repositório va-
lioso para os que se dedicam a esses estudos". Louva-lhe Garcia a etno-
grafia e acentua que foi ele "o primeiro a registar étimos regionalistas
do Sul, mais tarde incorporados ao linguajar sul-rio-grandense" <54 >. :e
bem verdade que o título geral, "Diario Rezumido e Historico, ou Relação
geographica das marchas e observações astronomicas com algumas notas
sobre a história natural do Paiz", define-lhe os objetivos.
Escreve a biografia de Saldanha, que antecede o "Diario", Aurélio
Porto, erudito estudioso do Rio Grande do Sul. Saldanha nasceu em
Lisboa, provavelmente em 1758, formou-se em matemática em Coimbra,
especializando-se em geografia e astronomia. Veio para o Rio de Janeiro
em 1782 em companhia do tenente-coronel Francisco João Roscio e
fez parte como astrônomo da comissão brasileira demarcadora de limites

(50) RIHGB, 1858, t. XXI, 2.• ed., 271-274.


(51) !! assinada de Porto Alegre, 29 de dezembro de 1892, e o original encontra-se no
Arquivo Nacional.
(52) Primeiros Cronistas do Rio Grande do Sul, ob. clt. , 154°157; vide descrição detalhada
in Abeillard Barreto, Bibliografia Sul-Rlograndense, Conselho Federal de Cultura, Rio de Janeiro,
1976, II, p. 1.300-1.305.
(5l) ABN, 1938, LI , ll5-l01.
(54) Rodolfo Garcia Informa que o manuscrito faz parte dos códices de "Correspondência
dos Governadores do Rio Grande do Sul com o Vice-Rei".

223
que operou no Sul em 1784, chefiada por Sebastião Xavier da Veiga
Cabral Câmara. Permaneceu um ano no Rio de Janeiro e seguiu para o
Rio Grande do Sul em 1783. Durante dois anos toda a divisão demar-
cadora agiu na determinação da linha de fronteiras, assentando os marcos
definitivos. Este "Diario Rezumido" foi assinado em Monte Grande
(Santa Maria) aos 10 de novembro de 1787.
Saldanha não escreveu somente este "Diário Rezumido", mas o
"Diario Geral das Operações Topograficas e Observações astronomicas
da Primeira Divisão da Demarcação da América Meridional, Campanha
5.ª de 1787 a 1788" <55 >, e em colaboração com o capitão engenheiro
Alexandre Eloy Portelli, a "Continuação do Diario geral geografico e
topografico da Primeira Subdivisão da Demarcação de Limites da Ame-
rica Meridional" <56 >. :e autor também do "Diario Resumido do reco-
nhecimento dos campos de novo descobertos sobre a Serra Gerâl, nas
cabeceiras do Rio Pardo" <57 >. Aurélio Porto transcreve elogios do chefe
Sebastião Xavier da Veiga Cabral Câmara e lembra e destaca seus serviços
e obras. Feita a conquista das Missões, coube a José de Saldanha escrever
a "Delimitação da fronteira de Missões segundo o parecer que abaixo
emite o major José de Saldanha, engenheiro e astrônomo de S.M.R." <5 8).
José de Saldanha casou-se moço em Portugal e voltou a casar-se
com uma brasileira, sendo bígamo. Teve do segundo casamento três
filhos <59 >.
No começo de seu prefácio ao "Diario Rezumido", José de Saldanha
tenta esboçar o sentido de sua obra: "Pode o pintor com o delicado pincel
representar a natureza, mas não expressar as circunstâncias, notícias e
movimentos dos sucessos. Esta é a parte reservada ao historiador. Feliz
a enérgica pena que ao seu escritor sabe desempenhar; felizes as palavras
que uma nova pintura compõem, aquela perceptível à vista, esta ao
discurso".
Declara que um Diario extenso pode tornar fastidiosa a leitura, daí
a idéia de fazê-lo resumido, ao qual se juntem breves notas sobre história
natural e do País: "Vem pois a ser o Corpo principal do presente Diário
Resumido, a explanação de todas as marchas, o seu rumo geral verda-
deiro, e as suas distâncias retas e andadas", e explica um cuidado que
teve valorizador do seu "Diario": "Bem longe de desprezar os termos
próprios do País, eu pretendo usar deles simultaneamente depois de os
explicar, e combinar nas mesmas notas. Assim será inteligível este
Diario, não só na Europa, mas ainda nesta América".
"Representar todos os dias sobre o Teatro da Natureza as mesmas,
ou bem semelhantes cenas, e mudar de provérbios, não é certamente
mui fácil donde se segue não poder eu fugir do vício da monotonia, ou
repetição das palavras. ( ... ) Finalmente eu sou encaminhado à compo-

(55) CEHB, J0.,497.


(56) CEHB, 10 .498.
(S7) RIHGB, 1841, III, 64 e seguintes.
(58) ABN, 1938, LI, 154-157.
(59) Aurélio Porto, "Dr. José de Saldanha", ABN. 1938, LI, 139-162.

224
s1çao de um Diario de reconhecimento topográfico, com a umao de uma
viagem histórica, qualquer das duas partes, mais difícil aos meus débeis
talentos."
e assinado do Rio Pardo, aos 28 de maio de 1798, o "Diario
Rezumido do Reconhecimento dos Campos de Novo Descobertos sobre
a Serra Geral, nas cabeceiras do Rio Pardo" (60), que apresenta iguais
contribuições geográficas e astronômicas e as mesmas limitações his-
tóricas.

8. Domingos Alves Branco Moniz Barreto


Domingos Alves Branco Moniz Barreto (Bahia ? - Kio de Janeiro,
1831), figura destacada da Maçonaria e iniciador de várias medidas que
levaram à Independência, como a sugestão que fosse concedido a D.
Pedro o título de Defensor Perpétuo, começou sua carreira militar na
Bahia e era em 1817 coronel efetivo. Como militar não teve nenhuma
atuação antes e depois da Independência. Foi na Maçonaria, ao lado
dos políticos liberais, do grupo Ledo, que ele agiu em episódios decisivos
ao andamento do processo da Independência. Desde que não foi esco-
lhido para comandar as forças enviadas à Bahia, ficou em oposição a
José Bonifácio e acabou preso em outubro de 1822, recolhido à fortaleza
da Ilha das Cobras e absolvido em março de 1823 161 ).
Guilhermina César transcreve entre os textos escolhidos de seu
Primeiros Cronistas do Rio Grande do Sul, 1605-1801 <62 >, as "Obser-
vações Relativas à Agricultura, Comércio e Navegação do Continente
do Rio Grande de São Pedro" <63 >, escritas em 1790, no Reino, depois
de ter servido no Rio Grande por três anos, na guarnição do Sul, e de
ser depois, em 1816, secretário do governo da Província Cisplatina.
Suas "Observações", pelo trecho transcrito, merecem ser publicadas na
íntegra, tal a contribuição que traz à história do Rio Grande de S.
Pedro do Sul. Domingos Alves Branco Moniz Barreto escreveu nume-
rosa bibliografia e Sacramento Blake já registava a existência deste
manuscrito em cópia no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro <6 4l.

9. Domingos José Marques Fernandes


Domingos José Marques Fernandes era português da freguesia de
S. Salvador do Couto de Pedralva no arcebispado de Braga, sargento-mor
das ordenanças do Rio Grande do Sul, e fora a Porto Alegre criar o ofício
de escrivão de sesmarias em 1798. Ele ocupou o ofício de escrivão da

(60) RIHGB, t. 3, 64-7S.


(61) Jos~ Honório Rodrigues, Independência. Revolução e Contra-Revolução: As Forças
Armadas. Rio de Janeiro, 1976, t. 3, várias páginas, especialmente p. 84, e t. 4.•, A Liderança
Nacional, várias páginas.
(62) Ob. clt., 167-177.
(63) Mss. constante do códice CXVl/1-39 a n .• 24, 29 fls., da Biblioteca Pública e Arquivo
Distrital de tvora. ·
(64) DBB, li, 189-192. especialmente 191; o DBP de Jnocênclo, ob. cit., nio regista a
"Memória", t. 9, 135 e 443.

225
Ouvidoria Geral do Crime e depois Correição do Crime na Corte, e foi
juiz de paz da Câmara do Rio de Janeiro (651 • A obra "O Amigo do
Estado que, pela presente Descrição Corográfica, Política, Civil e Militar
da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul" ofereceu a D. João,
foi trazida por Augusto de Lima Júnior em cópia do Arquivo Histórico
Militar de Portugal, e veio parar às mãos de Paranhos Antunes, que con-
seguiu editá-la com o apoio do Instituto Anchietano de Pesquisas.
Domingos José, no oferecimento a D. João, escreve que "verá Senhor,
quão vasto território, quão fértil, amena e deliciosa é a mesma capitania;
que nobre almas ali nascem e se criam, que hábeis engenhos, que gene-
rosos espíritos, e que fiéis vassalos alenta e vivifica aquele feliz clima".
Entendendo, continua, que "não devia deixar de informar a V.AR. do
que sei, que é aquela Capitania, porque a medi, e das façanhas dos seus
vassalos porque as presenciei, e de recomendar à posteridade os grandes
milicianos e soldados que as obraram".
O primeiro capítulo é corográfico, descrevendo a posição, extensão,
rios, lagos, ilhas, serras, serros (mais altos que as serras, diz o autor),
navegação e estradas da capitania. No segundo, orça os habitantes em
cinqüenta mil, distribuídos em vinte e uma freguesias, com quatorze
igrejas paroquiais e sete filiais. Era então subordinada ao Vice-Reinado
do Rio de Janeiro, sendo três as principais povoações: Rio Pardo, Triunfo,
e Conceição do Arroio; trata dos colonos que possuem terras e da criação
de gado, da exportação de carne salgada e couros, sebo, graxa, queijos
e trigo. Fala dos animais ferozes, da caça e das frutas. No terceiro
capítulo mostra a opulência e forças da capitania, matéria politica, limi-
tes, tratados, guerras, a de 180 I a que dá grande destaque, sobretudo às
ações de José Borges do Canto, Antônio Alves, Manuel dos Santos
Pedroso e outros soldados; depois, às ações do coronel Manuel Marques
de Sousa e ao brigadeiro Francisco João Roscio. Finalmente, no capítulo
quarto mostra o que .pode vir a ser a capitania, suas terras incultas, a
conveniência de fazê-las povoar, e as providências reais que se devem
tomar.
Pelo sumário vê-se que bem cabe a este trabalho o título de pri-
meira história gaúcha, porque é a única que não se limita a descrever
a atualidade em statu nascendi, mas também seu passado e a imaginar o
seu futuro.

1O. Manuel Antônio de Magalhães


O ''Almanak da Villa de Porto Alegre com Reflexões sobre o Estado
da Capitania do Rio Grande do Sul", de Manuel Antônio de Maga-
lhães ttllil, é dirigido a D. Fernando José de Portugal e Castro, gover-
nador da Bahia (1788-1801), 6. 0 Vice-Rei (1800-1806), e ministro de

(65) Prefácio do General De Paranhos Antunes à edição de A Primeira História Gaúcha,


Instituto Anchietano de Pesquisas. Porto Alegre. s.d .
(66) RIHCB. Rio de fane iro, 1867, t. XXX. parte 1.•. 43-74.

226
D. João ( 1808-1814), logo Marquês de Aguiar. :8 assinado em Porto
Alegre, aos 20 de julho de 1808.
Chamando-se o autor um rústico, que habita neste recanto do mundo,
rude e grosseiro transmontano, as "Reflexões sobre o estado atual da
capitania" são o produto de sua grande experiência que colheli durante
a administração dos contratos do quinto, do dízimo e munício da tropa
de toda a capitania. Começa dizendo que o contrabando das fronteiras
era proibido e devia ser castigado asperamente, mas diante da invasão
de Portugal ficariam rotos os tratados, não mais existiria contrabando;
acrescenta ainda que o gado vindo de fora era superior ao crioulo da
capitania, produzindo muito mais arrobas de carne.
Para a compra de gado despendiam muito dinheiro e vanos gêneros
como fumo, açúcar, arroz, aguardente e algodão. Do gado se tirava o
couro, sebo, carne, chifres e o interesse das cargas nas embarcações.
Afirma que a capitania podia com o tempo ter gado para toda a América
e para exportar muitas carnes salgadas, e por isso era preciso que o
governo tomasse as providências que aponta. Pleiteia que rigorosa proi-
bição não deixasse passar para os domínios espanhóis vários gêneros que
prejudicam a nação em geral, sem falar nos artigos de guerra, e jamais
consentir na exportação de escravos, porque enfraquecia as capitanias
e dava forças ao inimigo. Queixa-se da carestia dos escravos, que se
vendiam há vinte e cinco anos pela metade em relação à época em que
escrevia, e da grande falta que faziam, pois não se podia passar sem
eles. Conhece bem e fala com segurança dos negócios, do comércio, da
exportação, dos vários tributos.
A capitania não tinha rendas suficientes para sustentar uma mitra,
mas era de toda necessidade que houvesse uma Câmara Eclesiástica com
vigário capitular para organizar a boa disciplina da igreja, que por esta
falta se achava cheia de abusos e com bastante relaxação. A capitania
possuía quatro freguesias, a do Rio Grande de São Pedro, que era a
maior, com nove mil almas, a de Porto Alegre, com seis mil, a do Rio
Pardo e a de Bom Jesus do Triunfo. Ataca muito os vigários, suas
rendas e pagas que exigem, a vida que levam, sem se lembrarem da
pobreza da freguesia.
Pleiteia cuide o governo do sal necessário para o consumo de
toda a América, explorando as salinas de Cabo Frio, da Paraíba e de
Pernambuco. Critica o abuso de terem os moradores tomado três, quatro
sesmarias, com dez, doze e mais léguas de terra, prejudicialíssimo aos
povos em geral. Louva a milícia da capitania, valente e desembaraçada,
merecendo toda confiança. Sugere providência para aumentar a tropa de
linha, e de como fazer o recrutamento. Fala 'da beleza da capitania, de
seu clima, "o melhor do mundo", ares puros e sadios; do terreno fértil
que tudo produz, o trigo, os couros e carnes, o leite de vacas, cabras e
ovelhas, o queijo e a manteiga. Enumera e louva todas as criações de
animais, e os vários gêneros que colhem. A vida é longa, e seria bom
que viessem centos de casais das ilhas. Louva o governador Paulo José

227
da Silva Gama ( 1802-1803), "homem muito hábil e criador, amigo dos
interesses do seu príncipe e dos povos", revelando que a escreveu nestes
anos. Trata da magistratura e da Justiça, dizendo que a todos os ins-
tantes se estão vendo "as maiores violências e injustiças". O grande
incômodo dos povos é que, sendo a capitania muito grande, estão os
povos das Missões e fronteiras sujeitos ao juiz ordinário de Porto Alegre,
e pleiteia assim que se criassem vilas e se nomeassem para a capitania
três juízes de fora, e critica os dois juízes ordinários e seus grandes
abusos.
Esta reivindicação ocupa grande parte das "Reflexões", e depois
enumera seus serviços pessoais, apresenta uma relação dos comerciantes
da capitania, dividida pelas vilas de Porto Alegre, Rio Grande e Rio
Pardo; segue-se uma lista de comerciantes da ilha de Santa Catarina,
de Laguna, e depois, segundo o modelo dos almanaques, dá todas as
informações sobre a organização administrativa e as pessoas que ocupam
os cargos, as rendas, os vários ofícios, as aulas de gramática, e as duas
escolas de ler, bem como a força militar.

11 . Diogo Arouche de Moraes Lara


Diogo Arouche de Moraes Lara (São Paulo 1789 - Missões,
margem esquerda do Uruguai, em combate, 1819), capitão de infantaria
da Legião de São Paulo ao serviço do Exército no Rio Grande do Sul,
escreveu a "Memória da Campanha de 1816" <67 > e o "Apêndice" <68>,
um minucioso relatório militar da campanha de 1816, a nossa segunda
intervenção no Rio da Prata, que tinha como objetivo a ocupação da
banda oriental e o estabelecimento de nossos limites no extremo sul, pelo
Rio da Prata. :E: uma preciosa memória sobre nossas lutas com Artigas,
transcrevendo cartas e documentos da época e a relação dos oficiais e
cadetes que se distinguiram na campanha de 1816. O autor se limita a
1816, com pouca coisa sobre 1817, embora a campanha se prolongasse
até 1820 (69).

(67) RIHGB, 1845, t. 7, 125-177.


(68) Id., 273-328.
(69) Sua bioblbllografla ln Sacramento Blake, DBB, 1893, vot. 2, 175-176.

228
CAPITULO VI

HISTORIOGRAFIA PERNAMBUCANA

1. "Memórias" e "Informações". 2. Domingos do Loreto


Couto.

1. "Memórias" e "Informações"
A historiografia pernambucana da época colonial é valiosa na sua
contribuição factual e na expressão de seus nomes, como o de Domingos
do Loreto Couto. Dela retiramos não só a "Narrativa Histórica das
Calamidades de Pernambuco", porque melhor se ajusta ao capítulo da
historiografia da rebeldia, como também Antônio José Vitoriano Borges
da Fonseca, que se une a Jaboatão na historiografia genealógica. Reco-
nhecemos que Pedro Taques foi colocado entre os cronistas paulistas pela
sua história da capitania de São Vicente, apesar da sua obra mais impor-
tante sobre a nobiliarquia paulista, como também estamos conscientes
de que se Jaboatão escreveu a genealogia baiana, foi também cronista
religioso e, como tal, inclui-se na historiografia religiosa e na genealogia.
Deste modo, o primeiro trabalho importante é a "Informação Geral
da Capitania de Pernambuco" (1), que começa com uma ligeira descrição
do porto do Recife, mas é sobretudo uma coleção de legislação, um
catálogo de governadores de 1648 a 1746, um conjunto de dados infor-
mativos administrativos, sociais, econômicos, religiosos, militares e etno-
gráficos. A legislação começa com o regimento dos governadores de 19
de agosto de 1770, e contém ordens reais, cartas régias, alvarás datados
desde o século dezesseis, que devem observar os governadores, os religiosos,
os senhores; ocupa-se do tratamento dos escravos, do combate às suas
desordens, do comércio com a África, Costa da Mina e Angola, da arquea-
ção dos navios negreiros; cuida da legislação sobre a remessa de cavalos e
farinha para a África, sobre as naus da fndia, na ida e volta, sobre a proibi-
ção de trazerem as naus seda da China, e de Macao, sobre o comércio com
o estrangeiro, excluídas as exceções dos capítulos de pazes com a Ingla-
terra e a Holanda, tratando bem os da França, mas não lhes permitindo
comerciar; sobre o açúcar, seu preço e várias providências; sobre o uso
de foguetes e trajes, o curso de filosofia, contratos de todos os gêneros,
arrecadação e seqüestros, e ainda uma relação de todo rendimento da
Provedoria da Fazenda Real da Capitania, os contratos que administravam

(1) ABN, 1908, XXVllll, 117-496.

229
a Câmara e o regimento da Fazenda, dos contos, e as despesas (pp. 283-
324 ), e a mesma relação da capitania do Rio Grande, Ceará (324-326), a
relação das quatro provedorias (Recife, Itamaracá, Natal e Ceará), (327),
a obrigação de remeter as relações e outras providências similares sobre
contratos, arrendamentos (pp. 327-337), sobre sesmarias, tribunais, juízes
( criação de juízes no sertão, 1699, p. 343), sobre degredo de vadios e
ciganos para Angola, sobre crimes no sertão, sobre os governadores não
se intrometerem nos negócios da Justiça ( separação de poderes, 3 75),
sobre a carestia dos gêneros comestíveis, sobre índios, compra, venda,
liberdade e várias providências, sobre o cerimonial a ser obedecido
nas relações da Igreja e do Estado ( 402-403), relação dos bispos
( 1684-1739), os ofícios da igreja, jurisdição eclesiástica, relação de
todos os conventos e hospícios e suas rendas ( 413-418), relação das
aldeias nas .freguesias de Pernambuco e Paraíba ( 54, 419-422), relação
das vilas, das forças militares nas várias freguesias em Pernambuco,
Alagoas, Rio Grande e Ceará (422-430) , os navios e embarcações
existentes nos vários portos, a relação das fortalezas ( 433-448), relação
dos ouvidores e o regimento deles ( 448-465), relação de todos os oficiais
da Justiça e Fazenda real ( 465-473), relação dos rios que fazem barra
na costa de Pernambuco (474-476), rel~ção dos engenhos, das fábricas
de atanados e curtumes, dos portos e dos efeitos do comércio para
vários lugares, e, finalmente, as "qualidades de pessoas que compõem o
país", brancos, pretos, mulatos, cariós ( carijós), mamelucos, tapuias,
caboclos e curibocas ( 483) <2 >.
Como se vê, não pode ser considerado nem como um documento
histórico, porque são vários em conjunto, mas a compilação é ampla e
copiosa, fornecendo uma notícia geral da capitania.
A "Idéia da População da Capitania de Pernambuco" <3 > inclui as
capitanias subalternas do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Paraíba
e de Itamaracá. J;: uma relação contendo uma breve descrição de cada
capitania, de suas ribeiras, freguesias e vilas, a povoação de portugueses
e índios de língua geral e travada, ou tupis e tapuias; de cada ribeira
conta as vilas, freguesias, capelas, regimentos, fazenda, fogos, pessoas e
rendimentos dos dízimos; delas destaca a vila de Santo Antônio do Recife,
"a mais opulenta vila desta América pelo grande comércio e tráfico de
navegação da Europa, Guiné e Angola e mais costa de África" e suas
várias freguesias, descritas com todo rigor e minúcia, as fortalezas, os
edifícios públicos, as igrejas, os engenhos. Na de Pernambuco se inclui
a vila das Alagoas e suas várias freguesias. Demonstra o aumento dos
contratos reais da capitania de Pernambuco e suas anexas e enumera os
subsídios, os contratos, os vários rendimentos, os dízimos de todas as
vilas e freguesias das várias capitanias subordinadas à de Pernambuco.
{2) No final há um excelente índice, 485-496.
{3) •fdéia da População da Capitania de Pernambuco e de suas anexas, extensão de
suas costas, rios , povoações notáveis, agricultura, número de engenhos , contratos, e rendimentos
reais, aumento que estes têm tido desde o Ano de 1774 em que tomou posse do Governo das
mesmas capitanias o governador e Capitão General José César de Menezes", ABN, Rio de Janeiro,
1923, XL, fndlce XII pp. 1· 111.

230
Apresenta um resumo demonstrativo dos preços dos contratos reais,
capitania por capitania, e dá um mapa dos habitantes da comarca de
Pernambuco, divididos em sexos, e estes em crianças até sete anos,
rapazes até quinze anos, os homens até sessenta, e os velhos de sessenta
para cima. O mapa total dava 284.029 habitantes em Pernambuco,
52.468 na Paraíba, 23.812 no Rio Grande e 61.408 no Ceará, com
predominância das mulheres sobre os homens <4 >.
O Padre Joaquim José Pereira dirigiu a D. Rodrigo de Sousa Cou-
tinho, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domí-
nios Ultramarinos, em 1798, uma "Memória sobre a extrema fome e
triste situação em que se achava o sertão da Ribeira do Apody da capi-
tania do Rio Grande do Norte, da comarca da Paraíba de Pernambuco,
onde se descrevem os meios de ocorrer a estes males futuros" <5 >.
Esta é uma das memórias mais impressionantes de toda a época
colonial sobre a fome, a penúria e sofrimento do povo, atingido por secas
e chuvas que perturbaram sua vida e destruíram suas criações. O autor
sustenta que de dez em dez anos o sertão nordestino sofre de secas que
devoram seus habitantes e observa os anos de 1721, 1777, 1782, 1791,
como os de grandes chuvas, e os de 1723, 1724, 1778, 1792, 1793, de
grande secas, sendo os de 1722 e 1790 anos bem regulados, favoráveis
aos criadores. Descreve o sertão da Ribeira do Apodi, as particularidades
do sertão do Maranhão, as latitudes e longitudes, e apresenta um mapa
geral do sertão da Ribeira do Apodi na capitania do Rio Grande do
Norte, contendo o número de pessoas, os maiores e menores de ambos
os sexos, as serras de plantagens, os brejos, as covas de mandioca, os
alqueires da farinha que recolhem, o que gastam por ano e o que cada
indivíduo gasta num prato por dia, e os lavradores de cada plantagem.

2. Domingos do Loreto Couto


Domingos do Loreto Couto é natural do Recife, onde deve ter
nascido por volta de 1696, pois em 1762 dizia ter sessenta e seis anos (6).
Seu avô, Manuel de Araújo de Carvalho, nos fins do reinado de D. Pedro
II de Portugal e começos de D. João V, prestou grandes serviços na
guerra contra os índios Pajeú, Piancó m.
Loreto Couto foi franciscano, tendo-se ordenado em Portugal por
volta de 1725, não sendo possível a ordenação no Brasil por estarem
vagos o Arcebispado da Bahia e os Bispados de Pernambuco e do Rio

(4) O original manuscrito encontra-se na Biblioteca da Ajuda; vide Carlos Alberto Ferreira,
lnventdrlos dos Manuscritos da Biblioteca da Ajuda Referentes à América do Sul. A cópia que
serviu à edição dos Anais encontra-se registrada no Catdlogo de Manuscritos sobre Pernambuco,
ABN, 1951, vol.. 71, n.• 269, p. 221.
(5) RIHGB, 1857, t. XX, 175-183.
(6) Toda sua biografia é baseada nos estudos pioneiros de Frei Bonifácio Mueller, O. F. M.,
"D. Domingos do Loreto Couto", Dldrio de Pernambuco, 25 de dezembro de 1954, e • A Obra
de D. Domingos do Loreto Couto•, Idem, 29 de abril de 1956, e sobretudo "Loreto Couto e os
Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco•, ln José Antônio Gonçalves de Melo Neto,
Estudos Pernambucanos, Recife, 1960, 139·168.

231
de Janeiro. Ficou oito anos em Portugal depois da ordenação, "fazendo
várias extravagâncias em diversas partes do Reino", sendo mandado
prender, por volta de 1733, pelos padres procuradores em Lisboa de
sua Província de Santo Antônio do Brasil. Embarcado com destino à
Bahia, ao chegar ali tomou a fugir e andou mais de dois anos apóstata,
até ser preso em casa do capitão Francisco Vieira de Faria, constando
ter sido visto em trajes seculares e pedindo esmolas a pessoas de Salvador.
Preso novamente, fizeram seus superiores auto de inquirição e exame de
testemunhas e em Definitório foi, por sentença de 5 de janeiro de 1735,
condenado a seis meses de cárcere formal, sujeito à disciplina e colocado
em último lugar entre os sacerdotes.
Adoecendo, passou para a enfermaria do Convento de Santo Antônio
da Bahia, onde o haviam aprisionado, e conseguiu consentimento para
voltar a Pernambuco. Sabe-se com certeza que em 1738 estava no Recife,
mas não se recolheu ao convento da Ordem e conseguiu licença para ir
à Fazenda de um seu cunhado. Com o falecimento deste e de outro
cunhado, passou a dirigir a casa de suas irmãs, administrando-lhes os
bens e se encarregando da educação de seus sobrinhos. Nesse encargo
esteve sete anos fora do Convento, de 1735 a 1742, com autorização do
Bispo de Pernambuco, mas, diante da relutância de seus companheiros
em resolver a situação, Frei Domingos solicitou sua transferência para
a ordem de S. Bento em petição dirigida ao Papa Benedito XIV. Este
deferiu seu pedido, desde que provada sua alegação de que seus achaques
e encargos com as irmãs e sobrinhas não lhe permitiam observar a regra
franciscana.
O Bispo de Pernambuco, Frei Luís de Santa Teresa, seu amigo,
considerou provadas suas afirmações e concedeu-lhe a transferência. As-
sim, aos 3 de fevereiro de 1743, Frei Domingos vestiu o novo hábito e,
passados seis meses de noviciado, fez profissão em 4 de agosto do mesmo
ano. Como não havia Ordem no Recife e sim em Olinda, ficava sujeito
à jurisdição do Bispo Diocesano. Em face da determinação do Rei, a pe-
dido, ao que parece, do procurador-geral da Província Franciscana de
Santo Antônio, ao Conselho Ultramarino e deste ao Governador Henrique
Lufs Pereira Freire de Andrada (1727-1737), ordenava-se fosse apura-
do se andava em escândalo o padre frei Domingos; sendo verdadeiro,
deveria ser entregue ao prelado franciscano que o faria sair da capitania.
Supõe José Antônio Gonçalves de Melo Neto que, ou por divergência en-
tre Governador e Bispo, ou por inimizades do próprio frei Domingos, o
Governador Henrique Luís, embora sabendo que tinha já vestido o há-
bito beneditino, confirmou as acusações e o mandou prender e entregar
aos seus irmãos franciscanos, com os quais permaneceu de dezembro de
1743 a meados de 1746, dois anos e meio, sendo solto quando o Gover-

(7) Capistrano de Abreu, carta de 17 de fevereiro de 1925 a João Lúcio de Azevedo,


ln José Honório Rodrigues (editor), Correspondincia de Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro,
1954, II, 322; 2.• ed., 1977, ld., id.

232
nadar deixara o cargo e ele obtivera, mediante recurso à Santa Sé, que
o Bispo provesse remédio à situação e este determinou sua libertação (8).
Solto em meados de 1746, quando governava D. Marcos de Noronha,
7. ° Conde dos Arcos ( 17 46-17 49), conservou-se em casa de seus paren-
tes, sem causar mais escândalos, e foi nomeado visitador-geral da Diocese
pelo Bispo, tomando várias providências que atalhassem delitos e ações
. escandalosas, pelos romeiros da Capela de Nossa Senhora de Boa Viagem.
A data de sua morte é desconhecida.
Sua Obra, "Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco" (9), é
dedicada a D. José I, pela mão de Sebastião José de Carvalho e Melo,
Marquês de Pombal. Na dedicatória ao Rei escreve que seu fim era "mos-
trar ao Mundo, que em Pernambuco tem Vossa Majestade vassalos, de
espírito tão animosos, que não contentes com a glória herdada de seus
maiores (porque a querem à força de seus brios adquirida) souberam
com a espada subjugar o furor dos inimigos, desterrar com a sua doutrina
as trevas da Gentilidade e assombrar com a sua constância, a crueldade dos
Tiranos".
A razão pela qual pede ao Marquês de Pombal que leve ao Rei sua
obra era ser ele oriundo de Pernambuco pelos seus avós maternos, Jerô-
nimo de Albuquerque, Felipe Cavalcânti, João Gomes de Melo, D. Fe-
lipe e D. Paulo de Moura Rolim e Francisco de Mendonça Furtado, e
muitos foram os seus tios naturais de Pernambuco "que não só foram cele-
brados na América, mas na Europa, Asia e África", e enumera as façanhas
de seus antepassados Jorge de Albuquerque Coelho, Duarte de Albuquerque
e Francisco de Moura Rolim.
A sabujice das dedicatórias condiz com a linguagem do livro e a fi-
nalidade louvaminha do próprio título. Diz no prólogo ao leitor que o es-
creveu "levado da justa mágoa de ver o grande descuido, que teve, Per-
nambuco em perpetuar as virtudes de seus filhos, que com elas o ilustra-
ram, e que insensivelmente ia o tempo consumindo a notícia de tão escla-
recidos heróis, por faltar quem se resolvesse a escrevê-las".
Outro motivo foi "avaliar como obrigação precisa, refutar alguns
erros, e calúnias, com que alguns autores, que têm escrito do Brasil, man-
charam a opinião de nossos índios, e de algumas pessoas beneméritas, sem
mais fundamento, que o de umas tradições tão suspeitosas, como mal nas-
cidas, e falsas".
Afirma que foi obrigado a particular estudo e trabalho porque não
havia livros impressos onde colhesse a lição, com bastante individuação;
teve escassas memórias de Arquivos e notícias particulares, que logravam
o privilégio de seguras, constantes e verdadeiras por serem umas extraídas

(8) José Antônio Gonçalves de Melo Neto, Estudos Pernambucanos, Recife, 1960, p. 153.
(9) ABN, Rio de Janeiro, 1904, vols. XXIV, 1·355, e XXV, 3-214, publb:ada segundo
uma cópia do manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, registrada no • Catálogo de Ma-
nuscritos sobre Pernambuco existentes na Biblioteca Nacional", ABN, voi. 71, p. 326, n. 0 767,
e outra cópia no Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, também feita segundo o
original de Lisboa.

133
de documentos livres de suspeita, e outras por serem dadas por pessoas fi-
dedignas, sem esquecer de que são muitos os fatos modernos de que tra-
tava que podiam contar hoje com milhares de testemunh~.
A obra está dividida em oito livros: o primeiro, "Pernambuco Con-
quistado" (56 pp.), trata do descobrimento, da conquista e dos índios, a
língua, o cativeiro e a cor vermelha; deste, sua fonte principal é Frei Vi-
cente do Salvador, segundo o estudo citado de José Antônio Gonçalves de
Melo Neto. O segundo, "Pernambuco vencido e gloriosamente restaurado"
(65 pp.), trata da invasão holandesa e de sua restauração, contendo ainda
o capítulo XIII, que não consta do lndice, e que trata da memória dos
donatários e governadores de Pernambuco desde a conquista portuguesa
até o domínio holandês; neste, sua fonte principal foi o Castrioto Luzita-
no, de Rafael de Jesus, segundo o estudo de José Antônio. O terceiro,
"Pernambuco Renascido" (89 pp.), descreve suas cidades, vilas, lugares,
engenhos e os estados eclesiástico, militar e político. Este é certamente a
mais valiosa contribuição de Frei Domingos, porque nele estão a econo-
mia, a sociedade e o governo, as listas dos Bispos, dos Governadores e dos
Ouvidores de Pernambuco, afora a dos governadores da Paraíba, tudo
obra pioneira. Quando descreve as cidades, faz o que sempre fizeram os
primeiros cronistas, a descrição da atualidade. O livro quarto ( 122 pp.),
"Pernambuco ilustrado com virtudes", cuida dos sacrifícios e martírios so-
fridos durante o domínio holandês, e dos jesuítas, beneditinos, francisca-
nos, carmelitas e oratorianos; segundo José Antônio Gonçalves de Melo
Neto, suas fontes são principalmente Rafael de Jesus, no livro já citado, a
Biblioteca Lusitana de Barbosa Machado, a História de Portugal Restau-
rado de D. Luís de Menezes, Conde de Ericeira, o Santuário Mariano de
Agostinho Santa Maria. Trata também de outros pernambucanos, não re-
ligiosos, que segundo ele se ilustraram pelas virtudes como Jorge de Albu-
querque Coelho e outros, e índios e santos.
O livro quinto (II, 5-60) é dedicado à literatura e bibliografia e sua
fonte principal é a Biblioteca Lusitana de Barbosa Machado; nele apare-
cem os autores que são tratados adiante, como Frei Antônio de Santa Maria
Jaboatão, Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca e Sebastião da Ro-
cha Pita.
O livro sexto, "Pernambuco ilustrado pelas armas" ( 48 pp.), trata
dos militares que serviram em Pernambuco e fora dele e dos índios e
pretos que lutaram pela capitania, na época holandesa e depois dela até
a vida do autor.
O livro sétimo, "Pernambuco ilustrado pelo sexo feminino" ( 64 pp.),
relembra as mulheres que se destacaram na capitania e destaca sua mãe
Laura Soares Gondim. O livro oitavo, "Pernambuco constante, valeroso
e fiel nas calamidades" é precioso pela atenção e notícia que dá das bexi-
gas, das pestes, das perturbações, das guerras civis, como chama a de
Palmares e a dos Camarões, que é a dos Mascates.

234
"Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco" é obra indispensá-
vel ao conhecimento do Nordeste até o século XVIII e se baseia em do-
cumentos e na tradição oral (10).
Loreto Couto foi eleito acadêmico supranumerário da Academia Bra-
snica dos Renascidos, fundada em 1759 na Bahia, a cujo secretário, An-
tônio Gomes Ferrão Castelo Branco, dirigiu uma carta assinada do
Recife, de 15 de outubro de 1759, dando sua opinião sobre os Estatutos
e sobre a parte que poderia escrever sobre a história da América Portu-
guesa. Declarou que os últimos 25 anos - contava com 61 nesse mo-
mento - empregou-os em escrever a história de Pernambuco, repetindo
o que disse no prólogo ao leitor, de que a fizera não para obter algum
aplauso, mas pela "justa dor que me causava ver sepultados na triste urna
do esquecimento as memórias de tantos ilustres varões naturais da minha
pátria". Diz mais que escreveu sua História "estribado em veridicas infor-
mações de pessoas de 80, 90 e 100 anos e nas observações que fiz, quando
Visitador Geral deste Bispado [Pernambuco], nos casos e sucessos que pre-
senciei, de que há milhares de testemunhas, e em alguns memoriais que
porventura me vieram às mãos e em notícias que extraí das secretarias e
cartórios. Pouco me vali dos livros que tratam do nosso Brasil, porque
neles há muitas diminuições, muitos defeitos, muitas fábulas e bastantes
calúnias. Estas me obrigaram a dar ao meu livro o titulo de 'Desagravos
do Brasil', assim como 'Glórias de Pernambuco' às ilustríssimas ações de
seus naturais".
Declara mais que não teve pouco trabalho em conciliar relações di-
versas, confusas por falta de cronologia. E escreve: "Posso afirmar que
nesta obra pus todo o cuidado para que saísse a mais apurada e é a pri-
meira que temos de Pernambuco, individual e abundante". Foi o governa-
dor de Pernambuco Luís José Correia de Sá (17 49-17 56) quem levou o
livro às mãos do Marquês de Pombal, e afirma que sobre o merecimento
de sua obra pode informar Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca <11 >.

(10) Trechos relativos ao Ceará se encontram na RIC, vol. 9, 60-67, e vol. 16, 243-248.
(11) Alberto Lamego, A Academia Brasillca dos Renascidos, Paris, 1923, t 11-114.

235
CAP1TUL0 VII

HISTORIOGRAFIA REGIONAL VÁRIA


J . Historiografia baiana. 2 . João Vasco Manuel de · Braun
e o Amazonas e Pará. 3. João da Silva Feijó e o Ceará. 4 .
O Rio Grande do Norte e Joaquim José Pereira. 5 . A Pa-
raíba. 6 . Espírito Santo. 7 . Santa Catarina e Paraná.

1 . Historiografia baiana

1. 1. Notícias e Descrições
O mestre de campo e engenheiro Miguel Pereira da Costa contou,
num "Relatório apresentado ao Vice-Rei Fernandes César" <1 >, na volta
da comissão em que fora ao distrito das minas do Rio das Contas, todas
as dificuldades que encontrou, as peripécias da viagem, a gente que mi-
nerava, as lutas com índios, e os índios e negros a serviço da jornada. A
época era de seca, Pereira da Costa voltara de outra missão em Angola
e ainda assim enfrentou as 120 léguas de Cachoeira ao Mato Grosso.
Dali partiu a 12 de maio de 1720 e assina seu "Relatório" aos 15
de fevereiro de 1721. :É realmente uma descrição da viagem, registrando
o roteiro seguido por matos e serras intrincáveis, anotando as vilas cria-
das e perdidas, os mantimentos e preços, os trabalhos e perigos que se
sucederam, assaltos indígenas ou de negros fugidos e reunidos em mocam-
bos, sezões, cobras venenosas e onças, as dificuldades para passar os rios.
Registra os nomes dos primeiros moradores e mineradores que encontrou
em sua jornada, e "a vida má e o coração cruel" de paulistas que viviam
nas minas e sertões e matavam por motivos leves.
Dizia-se por aqueles matos: "Fuão é poderoso porque põe tantas
armas; neste número entram negros, mulatos, índios, mamelucos, carijós e
mais variedade de gente que há por aquele sertão". No riacho em que mi-
nerou o coronel paulista Sebastião Raposo, ele encontrou setecentos tra-
balhadores, além de outros que andavam em outros riachos perfazendo
2.000 pessoas, compostas de variedade de gente, "paulistas do Serro Frio
e Minas Gerais, homens brancos de pequena esfera, que deste recôncavo
(Bahia) e de muitas partes do sertão tinham ido, mulatos e negros e entre
todos havia vários criminosos, mas nem entre todos estes, nem entre os
moradores antigos daquelas vizinhanças havia algum poderoso ou de gran-
(1) Vasco Fernandes César de Menezes, 4. 0 Vlce-Rel, depois Conde de Sabugoza. 1720-1735 .
in RIHGB, 1885, 5, 3.• ed ., 37-59.

236
des cabedais, nem o capitão-mor daqueles distritos tinha poder coercitivo
com que executar as ordens do governo geral deste Estado . . . e assim
viviam ali todos voluntários, sem receio, obediência ou temor, uns rouban-
do, e outros matando."
A seguir, depois de fazer a comparação entre o ouro de Mato Grosso
e o de Minas, escreve: "Que esta gente haja de exterminar-se totalmente
daqueles sertões é mui difícil, pelo que vi, pois a largueza do país oferece
a mesma comodidade em outra qualquer parte, e diziam eles: se nos lan-
çarem fora daqui iremos para acolá..,_ apontando para a quantidade de
morros e serrarias que há por aquelas partes; que necessitam de quem
os governe, corrija e domine, não só é sem dúvida, mas precisíssimo, pelas
desordens, roubos e mortes que a cada passo estão sucedendo para pôr
quanto antes em arrecadação os quintos reais." :e uma descrição breve
e cheia de interesse humano.
As descrições e relações das freguesias da Bahia constituem mais um
documento histórico que historiográfico, embora na sua forma elementar
de elaboração não deixem de fazer parte da própria historiografia baiana.
Freguesia por freguesia, num conjunto de 49, foram descritas, e enviada
sua descrição pela frota de 1757, em cumprimento das ordens régias ex-
pedidas pelo Secretário d'Estado do Ultramar, em 1755.
Divide-se o arcebispado em quatro grandes grupos: a cidade, o ramo
das vilas do Sul, o recôncavo e o ramo do sertão do Baixo, onde se inclui
Sergipe. Nelas todas situam-se a freguesia, suas igrejas, o número de almas,
as em comunhão, e os fogos (lares, casas), características religiosas, eco-
nômicas, sociais e urbanas ou rurais, como ladeiras, ruas, edifícios, enge-
nhos, pescarias, lavouras, culturas e criações.
Como a autoria é variada, variada é a individuação de cada freguesia
descrita, com suas peculiaridades e interesses próprios. Coube aos párocos
a autoria da descrição, sendo umas mais prolixas e outras breves, todas
geográficas e religiosas, mas umas mais sociais e econômicas e etnográfi-
cas. Há excelentes informações sobre engenhos, a cultura do tabaco, os
índios, os negros escravos, a pobreza, "os inermes paisanos e os bisonhos
colonos que supostos sejam nascidos alguns deles e outros criados no grê-
mio da fé, vivem contudo tão dissonantes dos bons costumes e da suave
harmonia dos santos dogmas da mesma fé católica, que a maior parte
deles pelas suas adustas figuras mais parecem feras que homens. Neles o
hábito de viverem desalmados os faz parecer sem alma, pouca religião, ne-
nhuma política civil, porém muita humildade pela pobreza em que vi-
vem" <2 >.
Um terminou sua relação dizendo que o que escreveu era o que lhe
parecia necessário tratar "neste narratório, que o mais são agrestidões des-
tes sertões que experimentam os párocos que neles habitam" <3 >.

(2) O conjunto das Descrições encontra-se in ABN, 31, n. 0 • 2.666-2.718, pp. 178-234; vide
1'·º 2.699, p. 210.
(3) N. 0 2.707, p . 221.

237
Na descrição da freguesia de S. João Batista do Jerimuabo, de 29 de,
dezembro de 1757, uma das melhores pela largueza da informação social,.
se escreve que "exceto os 12 donos de fazendas ou gado delas, que existem.
nesta freguesia, e os curraleiros, que são tantos quantas são as fazendas,,
tiradas as mulheres, e pretos cativos também, tudo o mais é gente ociosa,,
sein ocupação alguma, malfeitores e foragidos, uns naturais da terra, e.
outros, que de fora se vêm acoitar nesta freguesia, e não poucos vivem
como bandoleiros, porque não têm casa, e assim são incríveis e indizí-
veis as perturbações e malefícios que experimentam os bons ... "
E logo afirmava que "em todo o Estado do Brasil não há freguesia de;
pior nome, que esta de Jerimuabo, de tal sorte, que seu nome é ouvid0;
com temor em todas as partes" (4 ).
Outras vilas tiveram relações feitas por autoridades civis, e não pá-
rocos. O ouvidor Tomé Couceiro de Abreu escreveu várias Notícias sobre
barras de vários rios, todas não limitadas à descrição geográfica, mas con-
tendo dados populacionais, etnográficos, sociais e econômicos <5 >.
Valiosa pela riqueza da informação descritiva e critica é a "Instrução
para o Marquês de Valença, governador e capitão-general da Capitania
da Bahia" <6 >. Ela foi escrita por Martinho de Melo e Castro, aos 10 de
setembro de 1779, para orientar D. Afonso Miguel de Portugal e Castro,
11.° Conde de Vimioso e 4. 0 Marquês de Valença (1779-1783), e revela
o conhecimento seguro da capitania, sua população, seu governo eclesiás-
tico e secular, critica a desordem provocada pelos frades capuchos, que
eram ao mesmo tempo senhores de engenho, a multidão de religiosos, 728,
dos quais 500 regulares, servindo nos mosteiros por 400 criadas e servas.
Trata do governo secular, da Relação e os vários Tribunais, do tráfico e
da navegação, do comércio da costa da África e sobretudo da Costa de
Mina, os vários e grandes negócios que ali realizavam.
Finalmente, sem considerar a "Relação individual que tenho feito nes-
ta Capitania de Porto Seguro, desde o dia 3 de maio de 1767 até o pre-
sente" (1. 0 de abril de 1772), escrita por José Xavier Monteiro <7 >, nem
o "Offício do governador da Bahia Manuel da Cunha Menezes para Marti-
nho de Melo e Castro sobre a capitania de Ilhéus" <8 >, ambos mais do-
cumentos históricos que historiográficos, resta a "Memória dos Governa-
dores interinos, títulos com que serviram, provisões e alvarás da Mesa do
Desembargo do Paço que assinaram e o que sucedeu a seu tempo" <9 >,
que relaciona os governadores interinos desde 1652 até 1783.
Em ofício do governador D. Fernando José de Portugal e Castro
( 1788-1800) para D. Rodrigo de Sousa Cou~inho, participa-lhe estar ela-
borando uma descrição geográfica e topográfica da capitania da Bahia,
conforme lhe ordenara a Secretaria de Estado, individuando os limites dela
(4) Vide n. 0 2.717, pp. 228-233.
(S) ABN, 32, n. 0 6.430, pp. 38-42; n. 0 6.511, [)p. 54-56; n. 0 6.512-6.520, pp. 56-62, todas
datadas de 1764.
(6) ABN, 32, n.• 10.319, 437-444.
(7) ABN, 32, n.• 8.553, pp. 267-268.
(8) ABN, 32, n. 0 8. 745, pp. 287-288.
(9) ABN, 32, n.• 11.394, pp. 547-548.

238
com as capitanias vizinhas, as estradas, e a notícia dos mapas geográficos
que ali existissem (10).

1. 2. José Antônio Caldas


José Antônio Caldas, sem filiação, data e local de nascimento, cabo
de esquadra do regimento do Coronel Manuel Domingos Portugal, fre-
qüentou a Aula Militar para ser engenheiro, estudou matemática, monta-
nística, arquitetura e desenho, e em 1761, como capitão-engenheiro, foi
nomeado para ensinar em Salvador, depois de ter servido na Ilha do Prín-
cipe ( 1756), onde elaborou o plano de sua fortificação. Realizou traba-
lhos na ilha de São Tomé e tomou posse em 1757 da ilha do Ano Bom.
Fez reparos em fortalezas da capitania da Bahia e do Espírito Santo. De
cabo de esquadra chegou a sargento-mor da infantaria com exercício de
engenheiro, e são consideráveis seus trabalhos civis e militares existentes
no Arquivo Militar Histórico Ultramarino de Lisboa e no Arquivo Militar
do Rio de Janeiro (11>.
Era considerado um dos melhores engenheiros formados pela aula
militar da Bahia <12 >, discípulo de Manuel Cardoso de Saldanha, sargento-
mor-engenheiro <13l, e fora com este o responsável pela restauração do
edifício da catedral da Bahia, realizada em 1761 (14). Realizou também
trabalhos no Espírito Santo e foi convidado a ser e foi membro da Aca-
demia Brasílica dos Renascidos (15).
Escreveu "A Notícia Geral de toda esta Capitania da Bahia desde seu
descobrimento até o presente ano de 1759" <16 >, obra importantíssima pela
riqueza da informação. Dá notícia do governo eclesiástico, dos conventos
de religiosos e religiosas, das despesas com as folhas eclesiásticas; um ca-
tálogo cronológico dos Bispos e Arcebispos, a notícia do gentio do Brasil;
a relação das freguesias; a notícia do governo secular; os vários tribu-
nais; a Secretaria de Estado; a relação dos ministros e juízes; a notícia do
governo militar, seus tribunais; as vilas da Bahia, as da capitania de Ilhéus,
Porto Seguro, as comarcas do Sul, Sergipe dei Rei, cidade de São
Cristóvão, vilas de Cachoeira, Maragogipe, Jaguaripe, Santo Amaro, S.
Francisco, Agua Fria, Itapicuru, Abadias, e depois das vilas das capitanias
de Ilhéus e Porto Seguro.
Acrescenta a relação dos governadores de Pernambuco, Rio de Janei-
ro, São Paulo, Santos, Paraíba, Minas Gerais, Guiazes (Goiás), Mato Gros-
so, Nova Colônia, Angola. Relaciona as despesas militares das várias capita-
ºº' ABN, 36, n.º 19.307, p. 129.
(l l) Vide ABN, vol. 31, n. 0 2.026, p. 134; n. 0 2.467, p. 166; n.0 • 3.607-3.608, pp. 295-296;
n.°' 4.101-4.102, p. 328; n. 0 2.465, pp. 165-166; n."' 2.457 e 2.471, pp. 166-167.
(12) Ob. cit., n. 0 • 4.101-4.102, p. 328.
(13) Ob. cit., n. 0 5.314, pp. 438-439; n. 0 4.472, p. 353; e as Plantas topográficas e coro-
gráficas da Serra dos Montes Altos, n."' 3.607-3.608, p. 295.
(14) Ob. cit., n. 0 5.378, p. 455.
(15) Alberto Lamego, Academia Brasl/ica dos Renascidos, ob. clt., p. 12.
(16) RIHGBa, 1931, n. 0 57, 444 pp., e edição fac-similar comemorativa do 4. 0 centenário
da fundação de Salvador, Tipografia Beneditina, 1951, 742 pp. + l3 pp. e ainda mapas, biografia,
seus trabalhos e listas dos nomes do prefeito José Wanderley Pinho e dos vereadores de
1949 a 1951.

239
nias, vilas e fortalezas, a relação de todas as fortalezas da Bahia; registra
o.s rendimentos e aplicações anuais; os gêneros que se transportam para
Portugal, a relação dos engenhos de açúcar da Bahia, dos alambiques, as
várias despesas eclesiásticas, seculares e militares.
Dá notícia da vila de São Tomé, do Príncipe e de Ano Bom. Num
apêndice, relaciona os homens de negócios, as fortalezas da Capitania do
Espírito Santo, os Tratados de Limites entre Portugal e França, Portugal e
Espanha, Grã-Bretanha e Portugal. ·
A "Notícia" centraliza-se na "potentissima capitania da Bahia", que
não foi a "primeira pela antiguidade da sua povoação, porém hoje é a
primeira e principal pela grandeza de sua dignidade por ser cabeça do
Estado". Depois de descrever o plano que seguiu, dividido em eclesiástico,
civil e militar, afirma que dará a descrição da Costa da Mina.
O livro é simplesmente descritivo, sem a força crítica, a visão social
e econômica de Luís dos Santos Vilhena, que como este não trata somente
da Bahia, mas das outras capitanias. Como Vilhena é mais geral que este,
que se limita a relacionar os governadores das demais capitanias, fica este
aqui na historiografia regional e Vilhena vai para a historiografia geral.
A "Notícia" é um conjunto de informações nominativas, enumerativas e
estatísticas, mapas e tabelas, sem nenhuma reflexão sobre o passado e o
seu presente. B obra seca, árida, de leitura fatigante, que mais serve e
servirá como uma enciclopédia de fatos, de nomes, de rendas, de despe-
sas, de forças, de fortalezas da Bahia e de relações nominais das outras
capitanias.

1 . 3. João da Silva Santos


Do mesmo modo, como figura auxiliar da historiografia baiana se
coloca João da Silva Santos, capitão-mor de Porto Seguro que viajou pelo
grande rio de Belmonte ou Jequitinhonha, em princípios do século XIX,
no governo de Francisco da Cunha Menezes ( 1800-1805). Sua "Descrição
diária do Rio Grande de Belmonte desde o Porto Grande desta Vila (Por-
to Seguro) até o fim dele ou divisão de Vila Rica . . . cuja expedição e
embarque foi no dia 1.0 de outubro de 1804" foi escrita em 1805 (17).
Ele é autor de vários mapas da costa, rios e terrenos de Porto Seguro.
de descrições topográficas de Caravelas, e escreveu suas "Memórias", exis-
tentes em extrato no Arquivo Militar do Rio de Janeiro <18 >.

2 . João Vasco Manuel de Braun e o Amazonas e Pará


Não consegui nenhuma informação biográfica sobre João Vasco Ma-
nuel de Braun, sargento-mor-engenheiro que explorou as regiões amazô-
nicas na penúltima década do século XVIII. Rodolfo Garcia registrou seu
"Roteiro Chorographico" <19 >, em que relata a viagem que fez em 1784 com
(17) CEHB, n.0 • 147 e 1.054.
(18) CEHB, n.0 • 304·307.
(19) "Explorações Scicntlflcas•, DHGB, vol. 1, 878.

240
o governador do Pará Martinho de Sousa e Albuquerque (1783-1790) ao
Amazonas, com o objetivo de ocularmente observar e socorrer a praça, as
fortalezas e as povoações <2 0>.
Ele já havia escrito o "Roteiro Corográfico da viagem que se costuma
fazer da cidade de Belém do Pará à Vila Bela de Mato Grosso", tirado do
diário astronômico que fizeram os oficiais engenheiros e doutores mate-
máticos durante a viagem ao Rio Madeira, mandados em 1781 a demar-
car a primeira divisão dos limites reais e seguido das indagações e com-
binações práticas que nos rios e povoações interiores fez o sargento-mor
Braun <21 >. Em 1789, sendo governador da praça do Macapá, redigiu a
"Descrição Chorographica do Estado do Gram-Pará" <2 2 >.
Seus outros escritos existentes no Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro (23) e no Arquivo Militar (24) completam sua atividade como enge-
nheiro militar e observador científico, merecedor da atenção do historia-
dor, pelos dados e informações econômicas, sociais e etnográficas que for-
nece.

3. João da Silva Feijó e o Ceará


Nascido no Rio de Janeiro (1760) e falecido no Ceará (1824), João
da Silva Feijó era formado em matemática e oficial do corpo de engenhei-
ros, alcançando o posto de coronel. Serviu como secretário do governo da
ilha de Cabo Verde, no último decênio do século XVIII, podendo assim
prestar assistência aos deportados da conjuração mineira, como Domingos
Vida! Barbosa, e os dois Rezende Costa, pai e filho, que foram condenados
para Bissau e Cabo Verde, e Domingos Vidal Barbosa para a ilha de
São Tiago.
Voltando ao Brasil, como membro da expedição científica de Alexan-
dre Rodrigues Ferreira, serviu no Ceará. Foi correspondente da Academia
das Ciências de Li&boa, como naturalista e botânico (2 5). Sua biografia está
escrita por Paulino Nogueira Borges, "O naturalista João da Silva
Feijó" <26 >.
Escreveu obra variada sohre a capitania do Ceará, distinguindo-se o
Preâmbulo ao ensaio philosophico e politico sobre a capitania do Ceará
para servir à sua historia natural <27 >, e sobretudo a "Memoria sobre a ca-
pitania do Ceará" <28 >. Nesta obra Feijó faz uma descrição geral da capita-
nia do Ceará, dividindo-a em três partes: corográfica, física e política;
localiza as minas, avalia a população, sua distribuição, costumes e traba-

(20) Título completo ln CEHB, n. 0 • 752 e 753; reproduzido na RIHGB, XII, 289-335.
(21) RIHGB, 1860, t. XX111, 439-473.
(22) RIHGB, 1873, t. XXXVI, t.• parte, 271-322.
(23) CEHB, n ... 341, 752-753, 762-763, 6.165.
(24) CEHB, n. 0 2.096.
(25) Biografia ln Sacramento Blake, DBB, Rio de Janeiro, 1898, IV, 49; DBP, Lisboa, 1860.
IV, 35-36; X, 348.
(26) II, 247-276.
RIC,
(27) Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1810, citado por Alfredo do Vale Cabral, Annaes da
Imprensa Nacional de 1808 a 1822, Rio de Janeiro, 1881, 47.
(28) O Patriota, Rio de Janeiro, 1814, e RIC, t. III, 3-27.

241
lhos e o aproveitamento das salinas. Sugere medidas de reflorestamento
e de proteção à agricultura, bem como a introdução de espécies novas (2 9 >.
Outros trabalhos de menor interesse histórico são a "Memória econômica
sobre o gado lanígero do Ceará" <:10 > e a "Memória sobre as antigas lavras
do Oiro da Mangabeira da Capitania do Siará" (31).
Sua bibliografia está registada por Sacramento Blake (32 >, Inocêncio
Francisco da Silva mJ e comentada por Rodolfo Garcia (34).

4. O Rio Grande do Norte e Joaquim José Pereira


Presbítero secular, versado em clássicos latinos, supõe-se tenha nas-
cido em Pernambuco, em cujos sertões viajou e atravessou as províncias
do Nordeste até o Maranhão <3 5 >. Nada se.srbe do autor, tenente da Ar-
mada Nacional e autor de outras memórias exibidas na Exposição de
História do Brasil de 1881 (3 6 ). Sua "Memória sobre a extrema fome e
triste situação em que se achava o sertão da Ribeira do Apody da capi-
tania do Rio Grande do Norte, da comarca da Paraíba de Pernambuco,
onde se descrevem os meios de ocorrer a estes males futuros" <37 > é um
livro singular na historiografia brasileira, pela matéria estudada, que tanto
mal fez ao povo brasileiro e tanto maculou nossa história, cruenta tam-
bém sob este aspecto.
Sua investigação nasceu de atenta observação feita entre 1792 e 1793,
quando a cada passo se esperava a morte. "Ela devastou pelos excessos a
que chegou, e despovoou os sertões por falta de chuvas, que se esperavam
do céu, de que resultaram tristíssimas conseqüências e desgraçados fins. A
geral penúria que houve de víveres e mais mantimentos causou uma exces-
siva fome, sem recurso algum mais que a tudo quanto se encontrava pelos
campos, e que podia encher os estômagos famintos; calamidade esta que
assolou os povos daquele continente, e que como bloqueados de um as-
sédio, em que estavam constituídos, suportavam com gemidos e lágrimas o
desamparo de sua infeliz situação."
Para ele, o clima, pela situação do sertão, suscitava secas de dez em
dez anos, que devoravam os povos. Ele enumera e regista as secas e gran-
des chuvas, calamidades que se sucediam, desde 1721 até 1793. Depois
descreve o sertão da Ribeira do Apodi, as particularidades do sertão das
capitanias do Maranhão e de Pernambuco, e dá as latitudes e longitudes
(29) José Honório Rodrigues. índice Anotado da Revista do Instituto Histórico do Ceará,
Imprensa Universitária do Ceará. 1959, 164.
(30) O Patriota. Ili, 2, p. 19, e RIC, XXVIIJ, 367-397.
(31) RIC, XXVI. 364-371. Ver Barão de Studart. "Uma Memória de João da Silva Feijó",
RIC, XXVJ, 361-363.
(32) Ob. cit., IV, 49-50.
(33) Ob. cit., IV, 35 e 436; X, 348; e XI, 306.
(34) "Expedições Scientíficas", DHGB. Rio de Janeiro, 1922, 878.
(35) Sacramento Blacke. ob. cit., IV, 172-173.
(36) CEHB. n. 0 384, sobre longitude e latitude do sertão do Maranhão; n. 0 2015 Plano hidra·
gráfico da entrada do Pará; 2016 o mesmo plano traduzido para o francês; 6199 a "Memória"
aqui examinada e 11.961 "Memória sobre os Nitros Naturais. Sal de Glauber, Quina e mais
produções nativas inventas na Capitania do Piauí e Maranhão", 1803, cópia existente no Insti-
tuto Histórico.
(37) RIHGB. 1857. XX. 175-182 e Sacramento Blake, DBB, 1889. 4. 172, 173.

242
da mesma ribeira. Apresenta um Mapa Geral do Sertão da Ribeira do
Apodi em 1792, das várias freguesias, com o número de almas, dividido
por idade e sexo, bem como as serras, os brejos, as covas, os alqueires
de farinha, o gasto individual diário de um prato de comida, e o número
de lavradores.
Joaquim José Pereira escreveu outras "Memórias", uma sobre os
nitros naturais e outra sobre a longitude e latitude do sertão do Mara-
nhão <38 >.

5. A Paraíba
Fernando Delgado Freire de Castilho, cuja biografia não aparece nas
biobibliografias conhecidas de Inocêncio Francisco da Silva e Sacramento
Blake, é autor da "Descripção da Capitania da Parahyba do Norte", publica-
da pelo Arquivo Nacional, baseada em manuscrito do mesmo <39 >. Foi
governador da capitania de 1798 a 1802, e de 1806 a 1820 governou
Goiás. A Memória calcula a população em cerca de 140.000 habitantes,
com o interior deserto e "as costas marítimas tão pouco freqüent~das que
se ignoram mil coisas interessantes sobre a utilidade de seus portos".
Afirma que a natureza liberal do clima e terreno nada nega para a
saúde de seus habitantes, possuindo como principais produtos o açúcar.
algodão, tabaco, madeira, couros e carne salgada. A segunda parte aponta
os fortes e suas necessidades, os melhoramentos e obstáculos. Declara que
a sujeição a Pernambuco causou grandes prejuízos à Paraíba, falando nas
vantagens da separação: "o governo de S. M. daria à capitania da Paraíba
a importância que lhe compete na ordem .das melhores capitanias do Bra-
sil". A "Descrição" não traz data, mas é provável seja de 1799.

6 . Espírito Santo
Nada sabemos de Francisco Manuel da Cunha <40 >, cuja informação
sobre a Província, então capitania do Espírito Santo, dada em 1781 ao
Ministro de Estado Antônio de Araújo e Azevedo, Conde da Barca, revela
um espírito observador e curioso, e apresenta em breve e sucinta exposi-
ção, a geografia e economia locais na sua época. O estudo é escrito um
ano antes de o governo do Espírito Santo tornar-se independente do da
Bahia, com o governador Francisco Alberto Rubim. Depois de fazer o
elogio das qualidades que distinguem o Conde da Barca, o autor declara
querer apresentar-lhe "uma verdadeira pintura da Capitania do Espírito
Santo", mostrando a origem do Rio Doce onde se podem observar "os
principais obstáculos que dificultam a intentada navegação naquele rio,
que seria de grande utilidade para as províncias da Bahia e Minas Gerais,
se a mesma navegação tivesse o desejado êxito" (41).

(38) Sacramento Blake, DBB, IV, 172-173, o primeiro existente em cópia no Instituto Hls·
tórlco e Geográfico Brasileiro, e o segundo publicado na RIHGB, 1857, XX, 165-169.
(39) Relatório do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, 1877.
(40) Sacramento Blake, ob. clt., dicionariza outro Francisco Manuel da Cunha: III, 36-37.
(41) "Informação que Francisco Manoel da Cunha deu sobre a Província, então Capitania do
Espírito Santo•, RIHGB, IV, 240-247.

243
Trata dos vários rios e sua navegação, até chegar à vila Capital Vitó-
ria, descrevendo suas igrejas, conventos, as casas que não são belas, a falta
de divertimentos, a pobreza da terra, o comércio e os gêneros exportados,
que não bastam para animar seus habitantes. Passa depois à vila de Gua-
raparin (Guarapari) e às suas comodidades, e a seguir à vila de Beneven-
te, onde "a pobreza aqui grandemente em sua extensão também aparece".
Depois da exposição geográfico-econômica fala o autor da guerra de-
cretada em 1808 oficialmente por D. João contra o gentio botocudo, la-
mentando que a guerra não tivesse tido o êxito que se esperava, fazendo
votos para que fossem submetidos, com a atração que se devia promover
dos índios Tatavó e Manaxó.

7 . Santa Catarina e Paraná


Uma das primeiras informações sobre Santa Catarina é a "Notícia 1.a.
Prática dada ao R. P. Diogo Soares pelo sargento-mor da cavalaria Fran-
cisco de Souza e Faria, primeiro descobridor, e abridor do dito cami-
nho" <42 >. Sousa e Faria embarcou em Santos para Paranaguá com 35 pes-
soas entre índios e brancos e vai contando o caminho marítimo, a ilha de S.
Francisco e Ilha de Santa Catarina, e os dias gastos até Laguna, onde ini-
cia sua marcha rompendo matos cerrados até chegar aos campos do Rio
Grande, cerca de Vacaria, onde passa seis meses. Daí voltou a Curitiba e
desta novamente ao Rio Grande de São Pedro, onde assina seu roteiro
aos 21 de fevereiro de 1738, quando saíra de São Paulo aos 20 de se-
tembro de 1727.
A preciosa coleção "Diogo Soares" consta de roteiros de bandeirantes
e sertanistas, recolhidos pelo jesuíta astrônomo que, junto ao padre jesuíta
Domingos Cappassi, veio ao Brasil para demarcar terras, levantar plantas
e proceder a trabalhos astronômicos.
Outros Roteiros mostram os primitivos e históricos caminhos da ex-
pansão para o Sul. A "Notícia 2.a. Prática dada ao P. M. Diogo Soares
sobre a abertura do novo caminho pelo piloto José Inácio, que foi e acom-
panhou em todo ele ao mesmo sargento-mor Francisco de Souza Fa-
ria" (43) segue de Santos até o Rio Grande, colhendo a evidência que os
Campos de Vacaria entestavam em latitude com a ilha de Santa Catarina.
Assim também a "Notícia 3.a. Prática dada pelo Coronel Christovão Pe-
reira d'Abreu sobre o mesmo caminho ao R. P. M. Diogo Soares" <44>,
mostra o novo caminho para Curitiba, suas utilidades e inconveniências.
Revela que querendo o governador de São Paulo Antônio da Silva Caldei-
ra Pimentel (1727-1732) dar remédio à falta de gado e cavalgaduras man-
dara abrir o caminho em direção às campinas do Sul para nelas criá-los,
encontrou a oposição dos moradores de Santos, Paranaguá e Curitiba, La-

(42) Afonso d'E. Taunay, Relatos Sertanistas, São Paulo, 1953, 139-145.
(43) RIHGB, 1908, t. 69, parte 1, 244-252, e Afonso d'E. Taunay, Relatos Sertanistas, ob.
cit.. 147-153.
(44) RIHGB, ob. cit., 255-259; Taunay, ob. cit., 155-160.

244
guna e Santa Catarina, porque vivendo estes retirados por crimes ou por
outros iguais motivos, como régulos sem obediência nem temor algum
de justiça, receosos de que com a abertura de novo caminho perderiam
suas liberdades, e aqueles porque, sendo senhores de algumas limitadas
fazendas que havia nos campos de Curitiba, temiam ficar com muito me-
nos valor e, assim, afirmavam serem aqueles sertões impraticáveis e aquelas
terras confinarem com as aldeias dos padres castelhanos. Contra estas opo-
sições resolveu o governador Silva Caldeira mandar preencher aquele
sertão até o Rio Grande de S. Pedro. E o roteiro mostra o caminho pelo
sertão até Curitiba, e daí até o Sul, onde encontrou rios caudalosos que
achava iam desaguar no grande Rio da Prata.
Finalmente, as "Notícias Práticas da Costa e Povoação do Mar do
Sul e resposta que deu o sargento-mor da Praça de Santos, Manuel Gon-
çalves de Aguiar, às perguntas que lhe fez o governador e capitão-general
da cidade do Rio de Janeiro e capitania do Sul, Antônio de Brito e Mene-
zes (1717-1719) sobre a costa e povoações do mesmo nome" <45 > consti-
tuem a mais completa informação, baseada em perguntas e respostas so-
bre os caminhos para o Sul, das dificuldades e facilidades das entradas por
mar, e se detêm na ilha de Santa Catarina, descrevendo seus moradores e
seus recursos.
Enumeram, a seguir, os rios que existem desde a ilha de Santa Cata-
rina ( do continente, é evidente), até o porto ou Rio Grande da Lagoa de
S. Pedro. Falam, depois, de S. Pedro do Rio Grande, a dificuldade da
entrada, os índios livres e aldeados pelos padres jesuítas, e discutem a
parte em que se deve fazer uma povoação conveniente que fosse de utili-
dade e aumento para a nova Colônia do Sacramento, no Rio Grande ou
em Santa Catarina.
Há ainda uma "Relação da diligência que o governador do Rio de
Janeiro e das capitanias do Sul mandou fazer ao sargento-mor Manuel Gon-
çalves de Aguiar a todos os portos do Sul desde a vila de Santos até La-
guna, última povoação", e a "Informação dos moradores da ilha de Santa
Catarina a que se refere a última relação" <46 >, ambas de expressão muito
primitiva, mais documentos históricos que historiográficos, mas que mar-
cam, como nas capitanias do século XVI, os começos da historiografia.
A "Memória sobre o Descobrimento e Colônia de Guarapuava", es-
crita pelo padre Francisco das Chagas Lima, 1.0 capelão da expedição de
1809 e vigário da freguesia de N . S. do Belém, já apresenta uma forma mais
cuidada, bem no gênero da crônica histórica. Ele divide bem a matéria, dá
no 1.0 capítulo o nome, extensão, importância da sua exploração e época
histórica; no 2.0 capítulo estuda as hordas, população, costumes e lingua-
gem do gentio dos sertões de Guarapuava; no 3.0 trata da catequese dos
índios e faz reflexões sobre seu tratamento, e, finalmente, no capítulo 4.0
cuida do clima, aspecto do país, produções, rios, montes e animais <47 >. A
obra começa com os primeiros empreendimentos para a conquista da re-
gião, em 1767, e prossegue. até 1827, última data citada pelo autor.
(45) RIHGB, 1908, t. LXIX, parte 1, 288-303.
(46) ABN, 1921, vol. XXXIX, 406-408, n.•• 4.320-4 .323.
(47) RIHGB, 1812, t. 4.0 , 43-64.

245
LIVRO SEXTO
Historiografia Religiosa
CAPITULO I

OS JESUITAS
1 . Considerações gerais. 2 . Padre Manuel da Nóbrega. 3.
Padre José de Anchieta. 4 . As Cartas Avulsas. 5 . Fernão
Cardim. 6 . A Crônica Missionária Jesuítica. 6.1. Consi-
derações Gerais. 6 . 2. A Missão do Rio Grande. 6. 3. A
Missão dos Mares Verdes. 6.4. As Missões dos Carijós.
6 . 5. Os Tumultos contra a liberdade indígena. 7. A Crô-
·nica Jesuítica Geral Menor. 7. 1. Os Cronistas Gerais.
7. 2. Antônio de Matos. 7. 3 . Jácome Monteiro. 7 . 4. An-
tônio Pinto. 7. 5. Jacinto de Carvalho. 7. 6. Valentim Men-
des. 7. 7. Manuel Pinheiro, Domingos de Araújo e João
Tavares. 7. 8 . Bento da Fonseca. 7. 9. Antônio Machado,
Jerônimo Muniz e Manuel Beça. 8. A Crônica Jesuítica
Maior. 8. 1. Simão de Vasconcelos. 8. 2 . João Felipe Be-
tendorff. 8. 3. Manuel da Fonseca. 8. 4. José de Morais.
8 . 5. Mathi11s Rodrigues.

1 . Considerações gerais

Ninguém teve, no Brasil colonial, tanta consc1encia histórica como


os jesuitas. Não deram um passo, não converteram uma alma, não paci-
ficaram colonos e indígenas, não dissolveram costumes brasilicos, não ven-
ceram os medos ou pecados da terra sem deixar escrita sua obra ou ação.
Esta terra é nossa empresa, escreveu logo Nóbrega, ao ver que a gente
selvagem ou cristã vivia em pecado, e a terra era dominada pelo Demô-
nio, que afastara, por arte sua, o nome de Santa Cruz, pela voz bárbara
de Brasil, como já explicara João de Barros. A terra era boa e sã, mas a
gente toda vivia em pecado, amancebada com várias mulheres, fosse clé-
rigo ou colono, índio ou cristão. Este desconhecia os mandamentos, exis-
tindo quem não tivesse confessado nos últimos vinte anos, vivendo como
apóstatas e excomungados, e coexistindo todos os pecados do mundo.
Estavam "clérigos e dignidades amancebados", escreve Nóbrega, com
suas "escravas que para esse efeito escolhiam as melhores e de mais
preço, que achavam, com achaque que haviam de ter quem os servisse, e
logo começaram a fazer filhos, e fazer-se criação, porque convinha muito
ao Brasil haver cá este treslado de dignidades e cônegos, como os há em
_outras igrejas da Cristandade, e não sem muito descuido dos prelados, a
quem Nosso Senhor castigará a seu tempo. E este lhe sei dizer que tem
cá por o melhor proceder e mais quieto, porque quando eles não tinham
escravas nem com que as comprar era pior, porque eram forçados de seus

249
pecados a buscarem-nas com escândalos da terra e de seus vizinhos, e por-
que já disto no tempo de Vosso Mercê (Tomé de Sousa) havia muito e
muito notório, me dizia muitas vezes. Melhor nos fora que não vieram
cá. Começaram -também de usar de suas ordens e dispensar os sacramen-
tos e desatar as ataduras com que nós detínhamos as almas, e dar jubileus
de condenação e perdição às almas, dando o santo a cães e às pedras
preciosas a poucos que nunca souberam sair do lodo de seus pecados,
pelo qual não somente os maus, mas algum bom, se havia, tomou liberdade
de ser tal qual sua má inclinação lhe .pedia. E assim está agora a terra nes-
-tes termos que, se contarem todas as casas desta terra, todas acharão
cheias de pecados mortais, cheias de adultérios, fornicações, incestos e
abominações, em tanto que me deito a cuidar se tem Cristo algum limpo
nesta terra, e escassamente se oferece um ou dois que guardem bem seu
estado, ao menos sem .pecado público. Pois dos outros pecados que direi?
Não há paz, mas tudo ódio, murmurações e detrações, roubos e rapinas,
enganos e mentiras; não há obediências, nem se guarda um só manda-
mento de Deus e muito menos os da Igreja" o l.
Uma desafeição geral contra a terra dominara a gente portuguesa; um
ódio incontido contra o gentio levava-a a praticar as maiores iniqüidades e
promover sua divisão, e "se algum índio prejudica em uma palha de sua
fazenda querem logo que seja crucificado" <2 ,; exploravam-no na escra-
vidão e na mercancia; cometiam as maiores represálias, tal como na con-
quista da 1ndia, com aquela mesma demasiada agressividade; sucedeu,
conta Nóbrega, que "a 7 ou 8 léguas daqui matassem um cristão da ar-
mada em que viemos: o que nos pôs em perigo de guerra e nos acharia,
à nossa gente, em má ocasião, desprevenidos e mal fortificados em a nova
cidade. Mas quis o Senhor, que do mal sabe tirar o bem, que os mesmos
índios trouxessem o homicida e apresentaram-no ao Governador, o qual
logo o mandou colocar à boca de uma bombarda e foi assim feito em
pedaços" <3 >.
Era assim na base do terrorismo que se impunha a paz cristã, que se
sujeitava todo o gentio à lei dos colonos. Tirar o medo aos cristãos, se-
nhorear o gentio pela guerra, amedrontá-lo com grandes ameaças <4 >, este
foi o caminho da sujeição oficial e colonial. "E estes pecados têm sua
raiz e princípio no ódio geral que os cristãos têm ao Gentio, e não so-
mente lhe aborrecem os corpos, mas também lhes aborrecem as almas" <5 >.
"Outra grande desinquietação se dá aos índios, por gente de mau viver,
que anda entre eles e que lhes furtam o que têm e lhe dão pancadas e
feridas pelos caminhos, tomando-lhes seu peixe, furtando-lhes seus man-

(1) A Tomé de Sousa, Bahia, 5 de Julho de 1559, ed. Acad., 191-219, especialmente 194.
(2) lbld., 207; ed. São Paulo, 67-105; ed. Monumenta, 67-105.
(3) Ao Dr. Martim de Azplcuelta Navarro, Coimbra, ed. Acad., 88-96, especialmente 94;
ed. São Paulo, I, 132-145.
(4) Vide ed. Acad., 212-213, 216, 217; ed. São Paulo, I, 132-145.
(5) Idem, ed. Acad., 196; ed. São Paulo, I, 67-105; ed. Monumenta, 67-105.

250
timentos" (6); casar com índias "era uma infâmia, que rebaixava o colono,
livre para delas servir-se, sem nojo algum" <7 >.
O ideal era pelas guerras e pelo terror vê-los domados e metidos no
jugo e sujeição, tomadas suas terras e roças e logo repartidas pelos colo-
nos, como escravos. Foi Tomé de Sousa, e logo depois Mem de Sá, quem
começou a obra de sujeição, impondo sua vontade férrea e sua decisão aos
grupos divididos. Uma a uma, quase todas as Cartas relatam as cruéis
guerras que dizimavam índios, ou os sujeitavam aos colonos, à sua cultura,
à perdição ou salvação. Foi assim que procedeu Vasco Rodrigues nas
três matanças que fez ao gentio de Paraguaçu.
Foi na primeira "matando muitos e trazendo outros cativos", que
"se quebrou o desencantamento do Paraguaçu, onde ninguém ousava sair
em terra e perderam os cristãos o medo que tinham àquele gentio, vindo
com muita vitória, sem lhes matarem ninguém". Logo em seguida, "tornou
a eles Vasco Rodrigues e deu em uma aldeia que estava a meia légua do
mar, que era grande e toda a gente mataram, porque os tomaram dor-
mindo, salvo vinte ou trinta pessoas, meninos e mulheres, que trouxeram
por escravos, de que ~.ão escapou mais de um índio ou dois, mal feridos,
para levarem novas aos outros. Outra vez, terceira, tomou lá Vasco Rodri-
gues já com maior ânimo dos cristãos e todo perdido o medo; queimou
muitas aldeias, matando muitos sem lhe matarem ninguém" <8 ).
Para vencer o medo era preciso matar, roubar as terras e a própria
liberdade do gentio, cativado na guerra "justa". Nem esse tinha a quem
recorrer, pois a justiça em longas demandas para satisfação dos procura-
dores e escrivães, "era uma grande imundícia que comia esta terra e fazia
gastar mal o tempo e engendrava ódios e paixões" (9).
A liberdade de adulterar fazia a "terra perdida e desbaratada, nem
há nisso justiça nem remédio, porque acharam que infiéis não podem teste-
munhar nada contra cristãos, e por isso quem quer, se atreve a viver
como quiser, ainda que seja pecar notoriamente perante o gentio; somente
se guardam que cristão que os não veja fazer pecado e fazer muitos
agravos ao gentio e tomar-lhe o seu, porque não há justiça contra ele,
que atente nisso, e ainda que queira atentar, como não há prova de bran-
cos ficam absoltos, como aconteceu os dias passados, que um barco que
estava ao resgate da banda d'além da Bahia, porque se botou ao mar um
escravo que lhes haviam vendido, porque teria saudades da mulher e fi-
lhos que lhe ficavam, podendo haver o seu pelo mesmo Senhor, que lh'o
havia vendido, que estava ainda ao navio; movidos os cristãos de raiva
diabólica mataram a sete ou oito pessoas, scilicet, (isto é,) ao mesmo senhor
do escravo, velho tolhido, e os mais, mulheres e moços, pelo qual se le-
vantaram todos os daquela parte, de guerra, e tem feito já muito mal e se
(6) Idem, ed. Acad., 206; ed. São Paulo, I, 67-105; ed. Monumenta, 67-105.
(7) Aos Padres e Irmãos de Coimbra, 13 de setembro de 1551, ed. Acad., 119; ed. São
Paulo, 283-289.
(8) A Tomé de Sousa, Bahia, 5 de Julho de 1559, ed. Acad., 211-212; ed. São Paulo,
67-105; ed. Monumenta, 67-105.
(9) Idem, ed. Acad., 203; ed. São Paulo, 67-105; ed. Monumcnta, 67-105.

251
quebraram as pazes, que tinham com os cristãos, prenderam alguns, que
fizeram isto, e por não haver provas, senão de índios, sairarn soltos" (10>.
Foram estas raivas diabólicas da missão cristã portuguesa no Brasil
responsáveis pelas destruições indígenas em massa, pelas discriminações
que separaram tudo no período colonial e levaram mesmo os próprios jesuí-
tas a hesitar se deviam permitir ou não a mistura de gentios e cristãos nas
igrejas <11 l e a organizar suas procissões com as cores separadas <t 2>. Foi
o próprio povo, fruto destes coitos infamados e pecaminosos, enxerto de
gente, mistura de tudo, filhos de padres e degradados, que destruiu, contra
a política oficial, as mais variadas discriminações.
O caminho dos moradores para o domínio da terra foi a violência
contra o gentio, sua domesticação; as guerras se sucediam, as injustiças
não tinham remédio, a escravização era normal, os desamparos, as amea-
ças, as fomes, as mortandades, as epidemias trazidas de fora, sofridos e
experimentados. Em todos dominava a desafeição pela terra, o aborreci-
mento à gente nativa, o enfado, as presunções, as murmurações, as imposi-
ções. Eles próprios portadores da cultura euro-ocidental deviam adaptar-se
às injunções do meio e da gente e muitos sucumbiam ao meio, corno ob-
servou Nóbrega. "Em toda a costa se tem geralmente por grandes e pe-
quenos que é grande serviço de Nosso Senhor fazer aos gentios que se co-
mam e se travem uns aos outros, e nisto tem mais esperança que em Deus
vivo, e nisto dizem consistir o bem e a segurança da terra, e isto aprovam
capitães e prelados, eclesiásticos e seculares, e assim o põem por obra
todas as vezes que se oferece, e daqui vem que, nas guerras passadas que
se tiveram com o gentio, sempre dão carne humana a comer não somente a
outros índios, mas a seus próprios escravos. Louvam e aprovam ao gentio
o comerem-se uns aos outros, e já se achou cristão a mastigar carne hu-
mana, para darem com isso bom exemplo ao gentio. Outros matam em
terreiro à maneira dos índios, tornando nomes, e não somente o fazem
homens baixos e mamelucos, mas o mesmo capitão, às vezes" (13).
E não é muito que sigam seu capitão, acrescenta Nóbrega, corno aque-
le seguia os primeiros -moradores-desertores e degradados, que serviram de
modelos, corno observou Capistrano de Abreu, e tiveram urna importância
especial na história do Brasil. Ele -torna corno exemplo um Fróes, que
teve de adaptar-se à alimentação dos Brasis, de empregar seus processos
de caça, pesca e agricultura, de ajustar-se à mentalidade e moralidade am-
biente e tudo isto minava-lhe pouco a pouco o cérebro e produzia-lhe
profundas revoluções. Mas ele influencia também sobre os Brasis, ensi-
nando-lhes o que antes não sabiam.
"Se refletirmos, porém, que a sociedade oferece urna força de resis-
tência maior que o indivíduo, impõe-se a conclusão que Fróes, ou outro
(10) Para o Provincial de Portugal, 1557, ed. Acad., 173.
(11) Ao Padre Simão Rodrigues, agosto 1552, ed. Acad., 141-142; ed. São Paulo, 401-409.
(12) Carta do Padre Antônio Blasquez, 13 de setembro de 1564, ed. Acad., Cartas Avulsas,
425-426.
(13) A Tomé de Sousa, 1559, ed. Acad., 196; ed. São Paulo, 67·105; ed. Monumenta, 67-105.

252
qualquer, foi mais influenciado pelos Brasis do que estes o foram por ele.
Para resumir tudo em uma palavra: dentro de poucos anos um homem
nestas condições ficava moralmente um mestiço. :8 claro que nesta mestiça-
gem devia haver diferentes graduações." Esboçando-as, Capistrano de Abreu
supõe três tipos: o primeiro que não reagia ao meio e tomava todos os
hábitos dos Brasis; furava lábios e orelhas, matava os prisioneiros segun-
do os ritos e comia sua carne; outros eram voluntariosos e indomáveis
como João Ramalho; outros, nem desciam ao batoque nem alçavam ao
poderio, vivendo bem. com europeus e indígenas. Era o caso de Diogo
Alvares, o Caramuru. Para ele, o segundo, tipo de transição, deveria durar
mais tempo, generalizar-se. e o terceiro deveria sobreviver <14 >.
E é este segundo tipo que vigora desde Mem de Sá, que está sendo
descrito por Nóbrega, mas é o terceiro que vencerá. Dos esforços de um
ou das indulgências do segundo a cultura sub-euro-ocidental, que os por-
tugueses trazem, se dissolve, como se dissolvem os indígenas numa carica-
tura grotesca, ou numa caiação mascarada para a grande maioria, salvo a
pequena minoria dominante que vem e vai, logo que o serviço ou a for-
tuna lhe fez a mercê que desejava.
Nóbrega e os jesuítas desaprovam o primeiro tipo que matava no
terreiro e comia ou ajudava a comer a carne humana. "O' cruel costume!
O' desumana abominação. O' cristãos tão cegos! que, em vez de ajudarem
ao Cordeiro, cujo ofício foi (diz S. João Baptista) tirar os pecados do
mundo, eles, por todos os modos que podem, os metem na terra, seguindo
a bandeira de Lúcifer homicida e mentiroso desde o principio do mundo!
E não é muito que sigam a seu capitão, gente que não sei se alguma hora
do ano está sem pecado mortal!" (15)
Seus métodos parecem favoráveis à formação do segundo tipo, como
acreditou Capistrano, ao escrever que "apesar dos esforços que neste sen-
tido empregaram os jesuítas" <16 >, ele não se generalizou. Se nas Cartas
de outros jesuítas ou em Anchieta, especialmente no De Gestis Mendi de
Saa - de que adiante trataremos - . um acento guerreiro quase diabólico
supera o tom de Nóbrega, a verdade é que este reconhece os serviços que
prestam os processos violentos, pois não censurou a impiedade de Vasco
Rodrigues de Caldas na guerra contra os índios de Paraguaçu, já referida,
antes reconheceu-lhe os méritos. "Deste negócio se deve muito a Vasco
Rodrigues de Caldas, a quem Nosso Senhor deu tão boa fortuna como até
agora tem dado e por seu esforço tira o medo aos Cristãos desta terra e
se crê que os índios não são serpes, mas gente nua, dos quais estou es-
pantado, porque não parecem que são da casta dos Portugueses que lemos
nas crônicas e sabemos que sempre no mundo tiveram o primado em todas
as gerações e pelas histórias antigas e modernas se lê" <17l.
(14) Descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento no século XVI, Rio de Janeiro, 1883,
59-61, e O Descobrimento do Brasil, Sociedade Caplstrano de Abreu, 1929, 82-83; ed. Clvlllzação
Brasileira, 1976, 53-54.
(15) A Tomé de Sousa, ed. Acad., 196-197; ed. São Paulo, 67-105; ed. Monumenta, 67-105.
(16) O Descobrimento do Brasil, ob. clt., 61.
(17) A Tomé de Sousa, Julho de 1559, ed. Acad., 216; ed. São Paulo, 67-105; ed.
Monumenta, 67-105.

253
Estas palavras são um testemunho. Era "esta gente nua" que ame-
drontava a casta heróica portuguesa cujo primado se relembra, na hora
de sujeitar os índios de Ilhéus. Aqui, como no episódio do índio destruído
à boca da bombarda, um e outro recordando o terrorismo lusitano de
Vasco da Gama e Pedro Alvares Cabral na 1ndia, Nóqrega não censura
a violência, antes louva que com ela fuja o medo português e nasça pelo
terror o medo indígena. Este foi seu seco comentário ao caso da bombar-
da: "isto pôs grande medo aos outros todos que estavam presentes".
O medo é o instrumento eficiente do amansamento. :E: verdade que
condena os assaltos com que se escravizam os índios, reprova os enganos,
escândalos e ataques cristãos, e acusa estes de serem a causa das guerras.
"De maravilha se achará cá a terra, onde os cristãos não fossem causa da
guerra e dissensão, e tanto que nesta Bahia, que é tida por um gentio dos
piores de todos, se levantou a guerra por os cristãos, porque um Padre,
por um Principal destes Negros (1ndios) não dar o que lhe pedia, lhe lan-
çou a morte, que no tanto imaginou que morreu e mandou aos filhos que
o vingassem." <1 8) :E: verdade que aprova o não haver guerras em São Vi-
cente e recrimina as contínuas guerras na Bahia <1 9). Mas é certo também
que louva muito, como Anchieta, Mem de Sá, que usou processos vio-
lentos, embora reprimisse excessos dos moradores.
Foi Mem de Sá, escreve ele, que venceu "a contradição de todos os
cristãos desta terra que era quererem que os índios se comessem, porque
nisso punham a segurança da terra, e quererem que os índios se furtassem
uns aos outros, para eles terem escravos, e quererem tomar as terras aos
índios contra razão e justiça e tiranizarem-nos por todas as vias. e não
quererem que se ajuntem para serem doutrinados por os terem mais a seu
.propósito, e de seus serviços e outros inconvenientes desta maneira" <2°>.
A nota a favor dos indígenas, posto que aceite a guerra. se minora
quando se vê que, em geral, seus métodos são outros: ele quer que os
índios se dispam de seus costumes para mais facilmente se converterem.
Mas aceita admitir alguns costumes índios, como cantarem em sua língua,
e entrarem nus na igreja, "pregar-lhes a seu modo em certo tom, andando.
passeando, batendo nos peitos", tosquiarem-se os meninos da terra, que
em casa temos, a seu modo, para os atrair a deixarem os outros costumes
essenciais <21 ).
Para isso usavam muito dos meninos, os da terra, que mais facilmente
se convertiam e os órfãos, vindos de Portugal, nas suas entradas pelas
aldeias, na conquista dos maiorais, na dissolução da vida indígena. Não
eram necessárias letras, mas virtudes, ceroulas e camisas com que vestiam
os indígenas para honestidade da religião cristã.
(18) Ao Padre Simão Rodrigues, 9 de agosto de 1549, ed. Acad., 81; ed. São Pauto
118-132.
(19) A D. João II, Rei de Portugal, 1553, ed. Monumenta, 13-17.
(20) Ao Cardeal Infante D. Henrique de Portugal, 1 de junho de 1560, ed. Acad.,
220-221; ed. São Paulo, 238-246; ed. Monumenta, 237-246.
(21) Ao Padre Simão Rodrigues, agosto de 1552, ed. Acad., 142; ed. São Paulo, 401-409.

254
O petitório de roupas para vestir os convertidos pois "não parece ho-
nesto estarem nus entre .os cristãos na igreja, e quando os ensinamos" é
constante nas Cartas (22).
Nóbrega e Anchieta recriminavam como vimos os amancebamentos
com índias, mais por preceito religioso que por preconceito racial. Nas
Cartas de um e outro se condenam os portugueses que viviam nestas con-
dições, embora Anchieta escrevesse que "aqui onde as mulheres andam
nuas e não sabem se negar a ninguém, mas elas cometem e importunam
os homens jogando-se com eles nas redes, porque tem por honra dormir
com cristãos" <23 >.
Capistrano de Abreu tomou uma posição bem definida ao dizer que
a história do Brasil não podia ser escrita sem primeiro escrever-se a his-
tória dos jesuítas e também em frases incisivas disse na sua Correspon-
dência <2 4) : "Entre os colonos e os jesuítas minha posição é bem defini-
da: sou pelos jesuítas. Bastava-lhes terem estudado línguas indígenas, sal-
vando tantos fragmentos da ideação primitiva para conquistar minhas sim-
patias. Tenho apenas dúvidas sobre a viabilidade de sua obra. Para garanti-
la era condição indispensável o segregamento, mas até que tempo teria de
conservá-lo? Como poderiam os neófitos ser incorporados na comunidade
de língua européia? A incorporação só podia ser individual como a dos
africanos, pela extinção dos agregados tão laboriosamente criados".
Portanto antes de tudo desde o começo, ao primeiro contato, a exis-
tência indígena era perturbada na sua organização econômica e nos seus
valores espirituais. Nenhum grupo ficou incólume à penetração e perturba-
ção euro-cristã-ocidental e as transformações culturais se operaram desde
os primeiros contatos. Assim se estabeleceu um conflito permanente, maior
no período colonial, mas permanente até hoje. Os nativos, frente a uma
situação modificada, tomam novas diretrizes, assimilam elementos estra-
nhos sem abandonarem sua personalidade, apesar das tensões que enfren-
tam e que ameaçam ou chegam a destruir sua cultura.
O desmoronamento cultural dos índios pelos civilizados se revela
na diminuição numérica da população, e as principais razões para este
desmoronamento cultural são econômicas. Ao servir ao colonizador no
carregamento de pau-brasil ou depois na derrubada e carregamento do
mesmo rompe-se a estrutura econômica do grupo cultural. Como força de
trabalho, seu futuro está definido, como estaria o dos negros, condenados na
sociedade em formação às posições mais baixas econômica e socialmente.
Como escreveu Konrad Theodor Preuss "qualquer que seja o destino eco-
nômico de um povo primitivo, ele é condicionado pela intromissão do
branco e pela entrada da população na engrenagem da economia mun-
dial" <25 >.

(22) Ao Padre Simão Rodrigues, agosto de 1549, ed. Acad .• 85; ed. São Paulo, 119-132.
(23) Cartas, Informações, Fragmentos históricos e Sermões do Padre Joseph de Anchieta, ed.
Acad., 1933, 68.
(24) Correspondência de Capistrano de Abreu, ed. I. N. L., 1954, 2 vols., 95.
(25) Lehrbuch der Volkerkund, Stuttgart, 1937, 39 t.

255
A transformação da existência econômica traz consigo a decomposi-
ção social e espiritual, pois tudo constitui uma unidade indissolúvel. A
perda cultural dos elementos materiais e espirituais implícita na transição
do mundo antigo para o novo, significa para os índios, como para os ne-
gros, que a vida se tornou perigosamente deserta e que seus valores vitais
desapareceram.
Os efeitos da invasão ocidental tomam forma variada e têm efeitos
profundos e perduráveis na síntese que os tempos criarão.
:E: tudo isso que revelam os jesuítas Nóbrega, Anchieta, Cardim e
vários outros. Esse encontro, esse desmoronamento, essa mestiçagem ra-
cial e cultural é captada ao vivo, no seu estado de nascimento.

2 . Padre Manuel da Nóbrega


Com a chegada dos primeiros jesuítas, em março de 1549, acompa-
nhando o primeiro Governador Tomé de Sousa, a literatura histórica apre-
senta nova feição. Ela ainda se exprime na forma epistolar, mas é mais
substancial e fidedigna porque seus autores participam da vida que se
inicia na nova terra. Foi considerável e por vezes decisiva a influência que
eles exerceram em nossa formação. Soldados e missionários, entregaram-
se com paixão à tarefa da conversão indígena.
Cristianizar o índio era adaptá-lo às formas ocidentais da vida em co-
munhão. Nunca fugiram os jesuítas à responsabilidade de enfrentar todos
os problemas morais ou econômicos que a colônia apresentou e, por isso
mesmo, suas cartas informam e relatam as primeiras conquistas e vicis-
situdes. Decisão, responsabilidade, criação, eis as virtudes dos primeiros
apóstolos jesuítas aqui trazidos a modelar a vida inicial do Brasil. Deste
modo, seus escritos são fontes indispensáveis ao estudo das primeiras épo-
cas do Brasil.
Dos primeiros jesuítas cujas cartas publicadas constituem fontes his-
tóricas, salienta-se a figura do Padre Manuel da Nóbrega, nascido aos 18
de outubro de 1517, aqui chegado em 1549, e falecido no Rio de Janeiro
aos 18 de outubro de 1570. Permaneceu assim, no Brasil, pelo espaço de
vinte e um anos.
Suas cartas foram publicadas primeiramente por Vale Cabral <2 6), e
reeditadas em 1931 pela Academia Brasileira de Letras, com o acréscimo do

(26) Cartas do Brasil do Padre Manoel da Nóbrega (1549-1560), Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1886, n. 0 2 dos Materlaes e Achegas para a história e geografia do Brasil. Na Introdução,
Vale Cabral explica minuciosamente a origem de cada carta. Aos 25 de novembro de 1886, Capls-
trano de Abreu comunicava ao Barão do Rio Branco que dentro de 10 dias Vale Cabral editaria
a Coleção de Cartas de Nóbrega, vinte e uma, das quais uma fora fornecida pelo Barão, uma
nunca publicada em português e duas inéditas. Em março esperava-se Imprimir as Cartas Avulsas,
em ntlmero de clncoenta, dois terços das quais Inéditas. O 4. 0 volume dos Materlaes e Achegas
(coleção Idealizada e realizada por Caplstrano de Abr~u e na qual foram Impressas as cartas de
Nóbrega) seria a coleção de cartas de Anchieta, que Teixeira de Melo dirigiria. O 5. 0 volume
seria constituído das Crônicas Menores dos Jesuítas e o 6.• da História do Brasil de Frei Vicente
do Salvador. Houve modificação no plano, o que se pode ver pela carta de 23 de dezembro de
1887. Caplstrano devia ser o editor, mas enfadou-se tanto em fazer as cópias e corrigi-las, que
. passou a obra a Vale Cabral (Carta de 30 de março de 1887). Vide Correspondência de Capistrano
de Abreu, t.• ed. 1954; 2.• 1977. O !.• volume dos Materlaes e Achegas compunha-se das "Infor-
mações e Fragmentos Históricos do Padre José de Anchieta", promovido e dirigido por Caplstrano
de Abreu.

256
diálogo do Padre Nóbrega sobre a conversão do gentio e notas de Rodolfo
Garcia (27). Em 1940 o Padre Serafim Leite publicou mais 15 cartas iné-
ditas de Nóbrega <28 >, em 1955 deu edição definitiva de suas cartas e ou-
tros escritos <29 >.
Nessas cartas, Nóbrega descreve os costumes, discute as necessidades
da terra, revela-nos a vida social e econômica, o processo de colonização
e o desenvolvimento da primitiva sociedade brasileira. Entre todas, con-
vém dar relevo· especial à "Informação das terras do Brasil", escrita em
1549, onde trata especialmente do clima, frutos, mantimentos e dos índios.
Nóbrega é realmente um dos primeiros civilizadores do Brasil e, como
disse Vale Cabral, representou um papel muito importante na sociedade
brasileira, exercendo tanta influência que seu nome será sempre lembrado.
Da obra imensa por ele realizada no Brasil, dois fatos se destacam clara-
mente: sua atividade em prol da moralização dos costumes e da defesa e
conversão dos índios. Vê-se também em suas cartas a preocupação pelo
povoamento da terra com gente portuguesa. Assim é que dizendo haver
"nesta terra um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas
negras por mancebas e outras livres que pedem aos negros (índios) por
mulheres, segundo o costume da terra que é ter muitas mulheres" pede que
se mandem a estas partes algumas que em Portugal tenham pouco remédio
de casamento, "porque casarão todas mui bem, contanto que não sejam
tais que de todo tenham perdido a vergonha a Deus e ao mundo". Deste
modo, "logo as mulheres terão remédio de vida, estes homens remediariam
suas almas, e facilmente se povoaria a terra" (30).
Nóbrega acentua também em suas cartas que não só os colonos leva-
vam vida dissoluta; os clérigos pareciam participar da opinião de que além
da linha equinocial não havia pecado. Diz ele que na terra estavam cléri-
gos e dignidades amancebados, e logo começaram a fazer filhos, sendo
melhor que não tivessem vindo cá. Segundo Nóbrega, ao Bispo d. Pedro
Fernandes pouco se dava a salvação do gentio, porque não se tinha por seu
bispo e eles lhe pareciam incapazes de toda doutrina, por sua bruteza e
bestialidade, e nem os tinha como ovelhas de seu curral <31 >.
:E: com a chegada de Nóbrega e de seus companheiros que se inicia
realmente a sujeição e conversão do gentio. Para isso tiveram os jesuítas
de lutar com os cristãos da terra, com os quais, dizia, se fazia pouco, "por-
que lhes temos cerrada a porta da confissão por causa dos escravos que
não querem senão ter e resgatar mal, e porque geralmente todos ou os mais
estão amancebados das portas adentro com suas negras, casados e soltei-

(27) Este diálogo foi pela t.• vez publicado na RIHGB, t. 43, parte 2.•, pp. 133 e seguintes.
O volume do Padre Nóbrega é o 1.0 das Cartas Jesuíticas, na edição da Academia Brasileira de
Letras.
(28) Novas Cartas Jesultlcas, S. Paulo, Ed. Nacional, 1940.
(29) Cartas do Brasil e mais escritos (Opera Omnia), Coimbra, 1955. Nesta edição apare·
cem 37 cartas em português e 11 em outras Jlnguas, enquanto a edição de Vale Cabral dava
21 cartas.
(30) Padre Manoel da Ndbrega, Cartas do Brasil (1549-1560), Ed. Acad., 1931, pp. 79-80.
(31) ld. ld., p. 193; ed, S. Leite, p. 319.

257
ros, e seus escravos todos amancebados, sem em um caso nem outro que-
rerem fazer consciência" <32).
Assim expõe Nóbrega a diretriz que se devia adotar em face dos ín-
dios "defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Go-
vernador; fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se, pois tem muito algo-
dão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros, mantê-los em
justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem se mu-
darem para outra parte, se não for para outros lugares entre cristãos, tendo
terras repartidas que lhes bastem, e com estes Padres da Companhia para
os doutrinarem" (33).
Essas cartas, além de nos revelarem os primeiros conflitos dos povos
primitivos com a civilização, revelam-nos, também, a sujeição daqueles a
esta. Contêm inúmeras informações não só sobre a vida moral e social co-
mo sobre a vida econômica, especialmente sobre os inícios da fabricação
do açúcar.
Nóbrega foi o semeador incomparável deste novo fruto da civilização
européia. Foi ele quem dirigiu com muita paixão e muito zelo os primei-
ros passos do caminho do Brasil. Conversão dos índios, escola para ler e
aprender ofícios, unidade religiosa, sentimento de solidariedade da colô-
nia, moralização dos costumes, eis alguns dos serviços prestados por Nó-
brega. Ele os conta minuciosamente, sem reivindicar recompensas. A su-
jeição da terra aos padrões europeus muito lhe deve: esta sua maior
glória.
Todas ou quase todas as cartas de Nóbrega são documentos valiosos
para o estudo do crescimento espiritual e material do Brasil nos primeiros
tempos. Entre elas convém destacar especialmente ao Padre Mestre Simão
Rodrigues (1549) a Informação das terras do Brasil (1549), as Cartas a
El-Rei (1551 e 1552), aos Padres e Irmãos de Portugal (1559), a Tomé
de Sousa ( 1559) e os Apontamentos de coisas do Brasil (3 4 ).
O melhor estudo biobibliográfico sobre Nóbrega encontra-se na His-
tória da Companhia de Jesus no Brasil do Padre Serafim Leite <35).

3. Padre José de Anchieta


Ao Padre Nóbrega segue-se José de Anchieta, que aportou à Bahia
de Todos os Santos em 1553, em companhia do segundo Governador do
Brasil, D. Duarte da Costa. Era natural de Lagunas, nas Canárias, filho

(32) Id. id., p. 190, ed. S. Leite, p. 312.


(33) Novas Cartas /esu/ticas, editadas pelo Padre Serafim Leite, São Paulo, Cia. Editora
Nacional, 1940, p. 79.
(34) As quatro primeiras cartas encontram-se na Ed. Acad., ob. cit., pp. 97-102, 133-136,
176-190, 191-218. A quinta encontra-se na Novas Cartas /esu/ticas, editada pelo Padre Serafim
Leite, ob. cit., pp. 75-87. Lisboã e Rio de Janeiro, 1938, e 1949. Todas as cartas encontram-se
na edição de Vale Cabral e na de Serafim Leite, esta mais cuidada e os Apontamentos na edição
da Novas Cartas /esultlcas.
-(35) Vois. 1.0 e 2. 0 e especialmente o 9. 0 • Convém ler também as Novas Pdginas da
História do Brasil de Serafim Leite (C. E. N. São Paulo, 1965).

258
de pai biscainho o que talvez lhe tenha facilitado a rápida aprendizagem
da Hngua brasílica e sua obra de missionário. Nasceu a 19 de março de
1534 e morreu a 9 de junho de 1597, vivendo 44 anos no Brasil.
Ao Padre José de Anchieta deve-se a Arte da Gramática da lingoa
mais .usada na costa do Brasil <36>. Capistrano de Abreu foi o primeiro a
publicar, em 1886, as Informações e fragmentos hist6ricos do Padre Jo-
seph de Anchieta, S. J. (1584-1586) <37 > e Teixeira de Melo foi o primeiro
a publicar algumas cartas c3s>. Em 1900, saíam as "Cartas Inéditas" <39>,
copiadas do arquivo da Companhia.
Em 1933, a Academia Brasileira de Letras deu uma edição das Car-
tas, informações, fragmentos hist6ricos e sermões do Padre Joseph de
Anchieta, S.J. (1554-1594) <40 >, e em 1958 aparecia o De Gestis Mendi
de Saa, de atribuição duvidosa (41).
Anchieta não só descreve a vida inicial e primitiva do Brasil como
fixa vários aspectos dos primeiros contactos entre o português e os índios.
Dá-nos excelentes informações sobre o trabalho missionário, os primeiros
engenhos de açúcar ·e seu qesenvolvimento no Brasil. Suas cartas e infor-
mações são, assim, uma fonte indispensável de consulta para o conheci-
mento do processo de adaptação do português à terra e ao clima e tam-
bém dá obra de assimilação do indígena à vida civilizada.
Entre suas cartas, convém assinalar a importância fundamental da
"Enformação do Brazil e de suas Capitanias", de 1584 que é uma das me-
lhores crônicas. Foi pela primeira vez publicada em 1844, segundo uma
cópia fornecida por Vamhagen, tirada do manuscrito em Hngua portugue-
sa existente na Biblioteca de .e.vora, escrito em letra do século XVI e
sem assinatura (42).
V amhagen chama esta "Informação" de "carta de Anchieta" sem
qualquer explicação (43). Coube a Cândido Mendes de Almeida provar
sua autoria, çom argumentos que foram depois reforçados por Capistrano
de Abreu, e que são os. seguintes: 1) a data em que foi escrita corresponde

(36) Coimbra, por Antônio de Mariz, 1595. Saiu também uma edição em Leipzig, dirigida
por J. Platzmann, B. G. Teubner, 1874, da qual a Biblioteca Nacional se aproveitou para tirar
uma edição fac·slmlllar (Rio de Janeiro, lmp. Nacional, 1933).
(37) Rio de Janeiro, lmp. Nacional, 1886, n. 0 1 dos Materlaes e Achegas para a hlst6rla e
geografia ao Brasil.
(38) "Cartas Inéditas•, ABN 1876, t. I, pp. 44-75; t. li, 1877, pp. 79-127, 266,368; t. Ili,
1877, pp. 312-323.
(39) Editado pelo lnst. Hlst. e Geográfico de São Paulo, 1900. Tradução do latim · do
prof. João Vieira de Almeida, prefácio do Dr. Augusto César de Miranda Azevedo.
(40) Anotações de Antônio de Alcllntara Machado, nota preliminar e Introdução de Afrllnlo
Peixoto. Transcreve-se um artigo de Caplstrano de Abreu, publicado em 1927, sobre a obra
de Anchieta no Brasil e sua bibliografia, extratada da Blbllothtque de la Compagnle, de Carlos
Sommervogel. São editadas 28 cartas, em lugar das 13 da edição de Caplstrano de Abreu, en•
contrando-se entre elas escritos de · Cardlm e Luís da Fonseca, atribuídos a Anchieta. cr. Pe.
Serafim Leite, Hlst6rla aa Companhia ae Jesus, ob. clt., vol. VIII, pp. 18 e seguintes. Caplstrano
de Abreu, em 1921, preparava nova edição. Cf. Carta a João Lúcio de Azevedo, de t7 de
março de 1921, Corresponaencla ae Caplstrano ae Abreu, ed. preparada por J. H. Rodrigues, li,
203,204.
(41) PAN, vol. 38. Original acompanhado de tradução vernácula pelo P. Armando Car•
doso, S. J., Rio de Janeiro, 1958. O poema De Beata Virglne Dei Matre Maria mereceu várias
edições, sendo mais fácil de encontrar-se a das PAN, 1940, vol. 37.
(42) RIHGB, t. 6, pp. 412-443. Saiu uma 2.• edição deste tomo em 1865.
(43) Vamhagen, Hlst6rla Geral ao Brasil, I.• ed., t. l, p. 245 notas 1 e 2; 3.• ed., p.
411, notas 6 e 7.

259
ao último ano de provincialato de Anchieta e as cartas ânuas eram escri-
tas pelo provincial ou por outro padre, com sua autorização; 2) o nome
de Anchieta só é mencionado uma vez, no meio dos outros padres que
aqui chegaram com Duarte da Costa; 3) na parte relativa aos provinciais
da Companhia, diz-se: "o 5. 0 provincial foi o Pe. Inácio de Tolosa, espa-
nhol, do ano de 1571 até o ano de 1577, e ainda tem o cargo neste pre-
sente de 1584". A omissão do nome de Anchieta, sexto provincial de
1577 a 1584, segundo Cândido Mendes, é significativa do extremo escrú-
pulo e modéstia do autor (44).
Capistrano de Abreu adicionou aos argumentos de convicção acima
mais dois fundamentos: o primeiro é que o provincialato de Anchieta vai
além de 1584; o segundo é que a omissão do nome deste na lista de pro-
vinciais ocorre na edição do Instituto Histórico. mas não na por ele feita,
segundo uma cópia tirada diretamente da Biblioteca de 8vora <45 >. Além
disso, a minúcia com que o autor se refere a São Paulo, mencionando a
guerra de 1562 com os índios, que durou apenas dois dias, a reedificação
da igreja de ltanhaém, a penedia de S. Vicente, em que se notam passadas
de homem, contrapõem-se ao modo breve por que se refere ao Norte, o que
parece demonstrar que o Sul lhe era muito mais familiar. Era exatamente
o caso de Anchieta que, chegado ao Brasil em 1553, foi mandado a S.
Vicente no mesmo ano, onde ficou até 1576, com um intervalo quando,
por pouco tempo acompanhou Nóbrega à Bahia, outro em 1565, quando
acompanhou Estácio de Sá à conquista do Rio de Janeiro, indo depois
· ordenar-se na cidade de S. Salvador, e outros menores. Acresce que a
"Informação" refere alguns fatos a que Anchieta estava presente e vêm
referidos em outras fontes e outros fatos que só conhecemos por suas car-
tas, como a fundação do Rio de Janeiro, a tomada de uma nau francesa
nessa ocasião, a história dos frades de hábito branco, a fundação de São
Paulo, com as doze aldeias primitivas que a cercavam e o fim que sofre-
ram os primeiros povoadores tão vivamente pranteados, bem como a frus-
trada viagem do Padre Nóbrega ao rio da Prata.
8 de notar, ainda, dizia Capistrano, que em doi~ lugares o autor fala
em informações que manda, de onde se vê que não se tratava de um padre
que escrevia por comissão superior, cujo nome viria declarado, nem de
reitor, porque então teria de dar conta do seu colégio e das residências,
mas de um provincial que, como já se disse, era então José de Anchieta.
Embora a "Informação" seja datada apenas de 1584, sem menção do
dia e mês, pelo fato de mencionar o falecimento do Padre Manuel de
Paiva, ocorrido a 21 de dezembro de 1584, mostra que ela só pode ter.
sido composta entre 21 e 31 de dezembro desse ano, época em que An-
chieta estava no Rio de Janeiro, segundo se lê na Narrativa Epistolar de
Fernão Cardim.

(44) CAndido Mendes de Almeida, "Notas para a história pátria (5.0 artigo). A catástrofe
de João de Bolés foi uma realidade?", RIHGB, 1879, t. 12, parte L•, pp. 141-205, especialmente
pp. 191-193.
(45) Introdução aos Fragmentos históricos, ob. cit., p . 15.

260
A "Informação" é um documento realmente precioso. Descreve o
estado das capitanias, com os governadores e capitães-mores, bispados e
prelados, a primeira entrada dos franceses no Brasil, dá notícia dos frades
que, antes e depois da Companhia de Jesus, vieram ao Brasil, e das ocupa-
ções e trabalhos dos jesuítas. Trata também minuciosamente das fregue-
sias e engenhos de açúcar existentes nas capitanias de Pernambuco, Bahia,
Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, S. Vicente, etc., dos colégios da Com-
panhia e de seus reitores, das relíquias e indulgências, dos costumes dos
brasis, dos impedimentos para sua conversão e, depois de convertidos, pa-
ra seu aproveitamento nos costumes da vida cristã. Referindo-se aos ín-
dios de Piratininga mostra ter tido uma visão muito clara dos problemas
dos contactos do índio com o branco, pois diz que a conversão destes
não cresceu tanto quanto a dos da Bahia, "porque nunca tiveram sujeição,
que é a principal parte para este negócio" <46 >. Realmente, todo problema,
não só de conversão religiosa como de conversão, por assim dizer à civi-
lização européia, exigia, como primeiro passo, a sujeição do índio, sua
submissão a uma autoridade e o seu aldeamento, obra que foi iniciada
desde Nóbrega.
Entre as cartas e documentos mais importantes, destacamos: Quadri-
mestre de maio a setembro de 1554, de Piratininga (1554); ao Padre Ge-
ral de São Vicente (maio, 1560), admirável descrição da nova terra, de
seus bichos e gentes; ao mesmo Padre Geral, São Vicente (junho de
15 60), sobre os pecados da terra, os trabalhos de conversão e as lutas
contra os franceses; a Carta ao Padre Diogo Mirão da Bahia, de 9 de
julho de 1565 com a breve informação sobre o nascimento do Rio de Ja-
neiro; a Informação do Brasil e de suas Capitanias (15 84) ; a Breve Nar-
ração das coisas relativas aos Colégios e Residências da Companhia
(1584); Informação dos Casamentos dos lndios do Brasil, e os Fragmen-
tos Históricos (47).
A "Informação da Província do Brasil para o Nosso Padre", datada
de 1583, na primeira edição de Capistrano de Abreu e na segunda da
Academia Brasileira de Letras, foi erroneamente atribuída a Anchieta até
recentemente. O Padre Serafim Leite demonstrou cabalmente que seu autor
é Fernão Cardim (48).
Assim também não pertence a Anchieta, mas ao Padre Luís da Fon-
seca, a "Informação dos primeiros aldeamentos da Bahia", que aparece na
edição de Capistrano de Abreu, conforme mostrou o Padre Serafim
Leite <49>.
A essência da missão estava "não em falar, senão em obrar", escrevia
Anchieta em 1591. A obra missionária exigia grandes trabalhos, grande
fortaleza interior, capacidade de padecer e imenso fervor. Era o que pos-
suía Anchieta, lavrando com tantos suores os campos incultos, criando

(46) Cartas, informações, etc., ed. Acad., 1931, pp. 316-317.


(47) Todos estes escritos se encontram tanto na edição da Academia Brasi!eira de Letras,
citada, como também na do Pe. Serafim Leite.
(48) Pe. Serafim Leite, HC/B, t. 5, p. 50 e t. 8, p. 135.
(49) Vide S. Leite, HC/B, t. 8, p. 255.

261
·'com o leite da doutrina cristã", aplicando a medicina da alma e do corpo
a todos os enfermos, praticando, entendendo e convertendo. A grande força
dos documentos de Anchieta vem de que ele fazia história, ajudando a
formar o Brasil e escrevia-lhe a crônica, num estilo breve, enxuto, incisivo
e muito inteligente (50).
Convém ainda acentuar que ultimamente se vem fazendo grande es-
forço para provar que Nóbrega foi superior a Anchieta. A tese da premis-
sa de Nóbrega é, por exemplo, o móvel central do livro de José Mariz de
Morais e é também desenvolvida pelo Pe. Serafim Leite (5l). Southey cha-
mou a Nóbrega o melhor políticó do Brasil nos seus começos e Capis-
trano de Abreu lamentava que esse jesuíta ·benemérito não tivesse sido
condignamente apreciado. Com desprezo da perspectiva histórica, diz ele,
Simão de Vasconcelos esforçou-se pela irradiação de Anchieta, seu discí-
pulo querido. José Mariz de Morais acentua que o erro de Simão de Vas-
concelos vem sendo inexoravelmente repetido desde então, tendo-se che-
gado a falar em período pré-anchietano. Esta corrente procura considerar
apóstolo do Brasil não um canarino, Anchieta, mas um português, Nó-
brega.
Anchieta tem tido os seus comentários comemorados, enquanto Nó-
brega tem passado quase olvidado. Em 1897, terceiro centenário da morte
de Anchieta, e em 1934, quarto centenário de seu nascimento, realiza-
ram-se várias conferências, depois publicadas (5 2 ). A melhor bibliografia
de Anchieta encontra-se na obra já citada do Padre Serafim Leite. O me-
lhor estudo sobre ele é o de Capistrano de Abreu, "A obra de Anchieta no
Brasil" <53 >.

4 . As Cartas Avulsas
Devemos, ainda, assinalar a importância das Cartas Avulsas (1550-
1568), publicadas pela Academia Brasileira de Letras em 19 31, utilizan-
do um dos raros exemplares incompletos salvos do incêndio da Imprensa
Nacional, quando as mesmas estavam ali sendo impressas como t. 4. 0 dos
Materiaes e Achegas para a historia e geographia do Brasil. As cartas ha-
viam sido reunidas e impressas e estavam à espera das notas de Vale Cabral
quando ocorreu o sinistro.
Como acentuou Afrânio Peixoto na introdução à edição da Academia,
as Cartas Avulsas são um documento tão grande quanto as Cartas de Nó-

(50) Anchieta não era menos Inteligente que .A.zpicuelta Navarro e Fernão Cardim. O
valor desta opinião está em Caplstrano de Abreu que considerava Cardlm uma das maiores
ou mesmo a maior figura Jesuítica do século XVI.
(51) José Mariz de Morais, N6brega, o primeiro ;esuíta do Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1940. Separata da RIHGB. Pe. Serafim Leite, ob. cit., 1. 0 e 2. 0 vols.
(52) III Centenário do Venerável Joseph de Anchieta, Paris e Lisboa, Alllaud, 1900. Entre
os estudos aí publicados, destacam-se os de Eduardo Prado sobre o catolicismo, a Companhia
de Jesus e a Colonização do Brasil (pp. 21-57), o de Brasílio Machado, sobre a vida de Anchieta
(pp. 61-101), o de Teodoro Sampaio sobre São Paulo no tempo de Anchieta (pp. 105-139) e o
de Joaquim Nabuco sobre a significação nacional do centenário anchletano. Anchieta: Quarto
Centenário de seu nascimento. Porto Alegre, Livraria Globo, 1935.
(53) Serafim Leite, Histdria, vol. 8, 16-42, e Ensaios e Estudos, 2.• série, Rio, 1932, 343-350 e
2.• edição, Rio, 1761, 229-235; este estudo fora reproduzido na Ed. Acad. das Cartas (1933),

262
brega, Anchieta e Cardim; só não o são mais, porque representam o teste-
munho de vinte e tantos missionários, que retificam e acrescentam os de-
poimentos daqueles outros apóstolos do Brasil. Neles vê-se o Brasil ama-
nhecer. "Quando eles acabam, neste volume, apenas com durarem perto de
vinte anos, já vai alto o sol. Não se come mais carne humana; cada um
tem sua mulher, e sua família; aprende-se a ler e escrever; aprendem-se
ofícios. As palhoças são agora casas de taipa ou de pedra. Estuda-se la-
tim, música, lógica e, até a "Eneida" de Vergílio, um irmão lehte lê e
comenta-a, em classe. Fortalezas, estradas, engenhos. Há certeza já, sem
os Franceses, que vingará o Brasil Português" (5 4 l. Esta foi a visão otimista
e deformada de Afrânio Peixoto.
As Cartas Avulsas são ao todo 63, escritas de pontos diversos, de
Pernambuco, Ilhéus, São Vicente, Bahia, Espírito Santo, Porto Seguro,
Piratininga, e abrangem um período de quase vinte anos, de 1550 a 1568.
Todas elas são cheias de curiosas e importantes notícias sobre os aspectos
da vida espiritual e materi_al do Brasil <55 l.
Serafim Leite publicou mais sete cartas avulsas de missionários do
século XVI, um instrumento público e mais a Relação do P. Jerônimo Ro-
drigues, todas de importância incontestável <56 l.
Merece referência especial a escrita pelo Pe. Luís da Fonseca (c.
1550-1594), datada da Bahia a 17 de dezembro de 1576 <57 l, escrita
por comissão do Provincial Inácio da Tolosa ao Geral Everardo Mercuria-
no . .f: o mais importante documento que se possui sobre a expedição de
Antônio Salema a Cabo Frio, quando foram desbaratados os tamoios ali
fortificados. Dá variadas e amplas informações sobre o Colégio da Ba-
hia, as capitanias de Porto Seguro, Colégio do Rio de Janeiro, de São
Vicente, de Piratininga, Espiríto Santo e Pernambuco. Foi primeiro publi-
cada em francês, em I 580 <58 l e depois em I 909 pelo Barão de Studart,
em italiano <59 l.
O Padre Luís da Fonseca foi o primeiro Vice-Reitor do Colégio da
Bahia e mais tarde, em 15 de agosto de 1584, foi nomeado Reitor. Seu
reitorado foi a época crítica do colégio. Foi a Roma, em 1593, para parti-
cipar da Congregação dos Procuradores e depois de ter negociado assuntos

(54) Cartas Avulsas, Ed. Acad., Rio de Janeiro, 1931, p. 13.


(55) Na Ed. Acad. (1931) foram coligidas apenas 30; na nova edição preparada pelo P.
Serafim Leite já são ao todo 223. Cartas dos Primeiros Jesultas do Brasil (São Paulo, 1954) ou
Monumenta Brasiliae (parte da Monumenta Historiea Societatis Iesu e da Monumenta Missionum)
Roma, 1957-1960, 4 vols., 1550-1568.
(56) Novas Cartas Jesuíticas, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1940.
(57) A Anua de Luís da Fonseca tem a data de 16 Kal. Ian 1576, informa o Pe. Serafim
Leite, e acrescenta que deveria então traduzi-la para 17 de dezembro de 1575. HCJB, t. I, p. 431
e vol. 8, 254. Na tradução Italiana dessa carta, publicada pelo Barão de Studart, a data é 17 de
dezembro de 1576, que é a verdadeira, porque os fatos que narra pertencem a e~te ano. Capistrano
de Abreu, baseando-se na tradução francesa, publicou uma narração daquela jornada na Gazeta
de Notícias de 6 de novembro de 1882, sob o titulo "Gravetos de história pátria". Rodolfo Garcia,
em nota à História Geral de Varnhagen, 4.• ed., t. 1, p. 477, dá a <lata de 17 de dezembro
de 1577.
(58) Numa coleção de cartas intitulada Lettres du Japon, Peru et Brésil envoyées au
R.P. Général de la Societé de Jesus par Ceux de la dicte societé, qui s'employent en ces Régions,
à la conversion des gentils, Lyon, Benoist Rigand, 1580.
(59) DHBC, Fortaleza, 1909, II, 17-63.

263
do Brasil faleceu em Madri, em junho de 1594 <66 ). :E:, como já descreve-
mos autor da a "Informação dos primeiros aldeamentos da Bahia" (61).
Serafim Leite publicou, em 1938, na História, excertos da relação do
Padre Inácio Tolosa, de 31 de agosto de 1576, até então inédita, que con-
diz com a de Luís da Fonseca, sendo mais completa e retificadora (62).
Outros padres da Companhia escreveram cartas, memórias, ânuas,
relações de grande interesse, como crônica, para a nossa historiografia.
Entre estes cita-se Quirício Caxa (1538-1593) (63l, Cristóvão Gouveia
(1542-1622) <64 ), Conrado Arizzi (c. 1595- ? ) <65 > e Francisco Soares
(1560-1597) <66 ). Arizzi é autor de uma relação (Relazione de Brasile)
muito referida pelos contemporâneos, mas nunca encontrada.
Padre Francisco Soares (1560-1597) veio para o Brasil em data des-
conhecida, aprendeu a língua brasílica e voltou para Portugal em 1589
acompanhando o Visitador Cristóvão Gouveia, caindo em mãos de
piratas ingleses, como contou Fernão Cardim na Narrativa Epistolar. Es-
creveu "Alguas Cousas mais notáveis do Brazil" <67 ). Trabalho valioso, co-
mo disse Serafim Leite, dando notícias das povoações como Porto Se-
guro, Bahia, Pernambuco, Ilhéus, Rio de Janeiro, dos governadores desde
Tomé de Sousa (1549-1553) até D. Francisco de Sousa (1599) e dos
bispos, do primeiro Sardinha até a posse de D. Antonio Barreiros que
chegou em 1576. Relata a vinda dos jesuítas, dos franceses, as lutas com
estes no Rio de Janeiro, as guerras com os índios em várias partes, e em
especial no mesmo Rio, a fundação de mosteiros beneditinos e conventos
franciscanos, o número de cristãos, por índios batizados, o sítio do Brasil,
sua posição geográfica, seus rios, crenças indígenas; trata da mandioca,
principal mantimento do Brasil, dos costumes e casamentos indígenas, dos
animais,, aves, ervas, frutas, peixes, salgados e doces. Este trabalho con-
tém assim uma parte histórica e outra naturalista.
As informações jesuíticas representam uma fase primitiva da crônica
brasileira. A inquietude e o fervor pela criação dos fatos contemporâneos,
o zelo e cuidado no relatá-los, transformam os anais jesuíticos num dos
mais autênticos e fidedignos documentos históricos. Escritores dos novos
acontecimentos por sua própria invenção criados, eles, os jesuítas, são os
práticos e os teóricos da nova terra, militantes e cronistas. Decidiram mui-
tos dos caminhos seguidos e mudaram rumos desviáveis. Souberam tam-
bém buscar as razões e achar o sentido e o fim dos seus e dos alheios
propósitos. Pode-se dizer, sem receio de encarecimento, que o século XVI
deve-lhes muito e muito ficou conhecido pelas suas informações.

(60) Pe. Serafim Leite, ob, c/t,, I, 66-68.


(61) Sobre o Pe. Luís da Fonseca vide também S. Leite, ob. cit., I, 254-256. Vide Cartas
de Anchieta, 349-382 e S. Leite, VIU, 255. O' original encontra-se no Arq. Geral da Companhia
de Jesus.
(62) Serafim Leite, ob. cit., I, 444-446.
(63) Serafim Leite, ob. cit., t. VIII, 158-159.
(64) Serafim Leite, ob. cit., VIII, 279-285.
(65) Serafim Leite, ob. cit., VIII, 65.
(66) Serafim Leite, ob. cit., VIII, 139.
(67) Foi publicada no Arquivo Bibliographico da Biblioteca da Universidade de Coimbra,
IV, Coimbra, 1904 e reproduzida na RIHGB, (1927), vol. 148, 367-421. Sobre sua autoria ver
Serafim Leite, HCfB, II, 582 e IX, 139.

264
5 . Fernão Cardim
Fernão Cardim foi uma das maiores figuras da Companhia de Jesus
no Brasil e o conjunto de sua obra, tanto sobre o clima e a terra, como
sobre o princípio e origem dos Indios, conhecidos mas sem autoria identifi-
cada, por certo tem~~como ainda a Narrativa Epistolar da missão jesuítica
do Padre Cristovão Gouvêa, publicada em 1847 por Vamhagen, com atri-
buição definida, tanto o poderia colocar na historiografia religiosa jesuítica,
como na historiografia geral, entre os primeiros cronistas (68). O conjunto
da obra é de um cronista geral, mas a Narrativa, sua obra principal e a
que permitiu sua identificação como autor das demais, é de uma missão
jesuítica pela Bahia, Ilhéus, Porto Seguro, Pernambuco, Espfrito Santo, Rio
de Janeiro e São Vicente. Assim ele entra nesta parte jesuítica.
Antônio Vieira, que lhe escreveu o necrológio na ânua de 1626 <69 >,
resume-lhe a vida como a de "um varão verdadeiramente religioso e de
vida inculpável, mui afável e benigno, e em especial com seus súditos". E
finaliza depois de louvar-lhe as virtudes, escrevendo: "entrou para a Com-
panhia no ano de 1556, quinze anos de idade, viveu nela sessenta e faleceu
com setenta e cinco, aos 27 de janeiro do ano de 1625.
Padre Fernão Cardim foi reitor do Colégio Baiano da Companhia
de Jesus, entre 1587 e 1592, e do Colégio do Rio de Janeiro, de 1594 a
1598. Nascido cerca de 1549, chegou ao Brasil em maio de 1583 e fez
profissão solene em 1588, falecendo aos 27 de janeiro de 1625. Aqui per-
maneceu, portanto, quarenta e dois anos, quase meio século, interrompida
esta longa estadia apenas por uma viagem como procurador da Província
de Jesus a Roma (1601) e algum tempo de prisão na Inglaterra, para
onde foi levado quando voltava de Roma.
Até há pouco, sobre a autoria e a edição das obras de Fernão Car-
dim, consideravam-se como suas apenas três: Do clima e terra do Brasil,
Do Princípio e origem dos índios do Brasil e Narrativa Epistolar de uma
viagem e missão jesuítica. As duas primeiras foram pela primeira vez pu-
blicadas na Coleção de Viagens de Samuel Purchas, sob o titulo "A trea-
tise of Brazil written by a Portugal which had long lived there" (70). O
manuscrito fora apreendido por Francis Cook, que levara Cardim prisio-
neiro para a Inglaterra. Como as últimas folhas do manuscrito iam acom-
panhadas de algumas receitas assinadas pelo Irmão Enfermeiro Manuel
Tristão, Purchas atribuiu-lhe a autoria dos Tratados. Essas duas obras exis-
tiam também em manuscrito na Biblioteca de f:vora e eram referidas no
Catálogo daquela Biblioteca, preparado por Cunha Rivara (71>.
Do cotejo do texto publicado por Purchas e do manuscrito, verificou
Capistrano de Abreu que se tratava de capltulos da mesma obra que estava
(68) Na Historiografia dei Brasll Slglo XVI, MExlco, 1957, ele apareceu entre os cronistas.
(69) ABN, vol. 19, 178.
(70) Samuel Purchas, Hakluytus posthumus or Hls Pllgrlms, 4.• vol., Londres, 1625, p.
1.320. 1? curioso observar que neste mesmo ano falecia Cardlm na Bahia, quando nesta se lutava
contra os holandeses. Sobre M. Tristão ver S. Leite, História, 9, 167.
(71) J. H. da Cunha Rlvara, Cat41ogo da Biblioteca Pllbllca Eborense, Lisboa, lmp. Nacional,
1850· 71, l vols.

265
sendo escrita em 15 84. Em 1881, Capistrano publicou Dp princípio e
origem dos índios do Brasil e seus costumes, adoração e 'cerimônias (72).
Na introdução, provava cabalmente que se deve atribuir a Fernão Cardim
a autoria dessa obra, não só porque o estilo conferia com o da Narrativa
Epistolar, cuja autoria nunca fora contestada, como porque as circunstân-
cias exteriores, da apreensão do manuscrito e da prisão de Cardim, que
haviam ocorrido no mesmo ano de 1601, não deixavam dúvida de que
esses trabalhos haviam saído da mesma pena.
Em 1881, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro obteve uma
cópia "Do clima e terra do Brasil", segundo o códice da Biblioteca de
:8vora, e iniciou sua publicação, dirigida por Fernando Mendes de Al-
meida <73 l. Só em 1885 foi a obra publicada integralmente por Capis-
trano de Abreu <74 >, não restando mais dúvida quanto à autoria, de vez
que este trabalho fora publicado por Purchas junto com o Tratado sobre
os índios.
Como se viu, tanto o Tratado do clima e terra do Brasil como o
Do Princípio e origem dos índios do Brasil foram publicados primeira-
mente em inglês, em 1625, só merecendo edições portuguesas no século
XIX, em 1881 e 1885. Assim, dos escritos de Cardim o que primeiro foi
divulgado em língua portuguesa e com sua autoria declarada foi a Narra-
tiva Epistolar (75).
Em 1902, achando-se completamente esgotada a edição de 1847, o
Instituto Histórico decidiu reimprimi-la, convidando Eduardo Prado para
fazer as anotações. No início do trabalho o anotador faleceu, tendo che-
gado a redigir uma nota, sem nenhuma importância. A reedição se fez,
então, sem notas (76).

(72) Rio de Janeiro, Tipografia da Gazeta de Notícias, 1881. Importantes notas filológicas
de Batista Caetano e introdução de Caplstrano de Abreu, que foi reproduzida nos Ensaios e
Estudos, !.• série, Rio de Janeiro, Brigulet, 1931, pp. 177-191, 2.• ed., Rio, 1976.
(73) Na Revista Mensal da Seção da Sociedade de Geografia de Lisboa no Rio de Janeiro.
Essa publlcação alcançou apenas dois capítulos.
(74) Ainda na Revista Mensal, ob. cit., 1886, t. 3, pp. 166 e seguintes. A publicação do
texto é precedida de um estudo bioblbliográflco de Fernão Cardim. Sobre a crítica de atribuição,
vide José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 4.• ed., 1978, 358-359.
(75) Narrativa Epistolar de uma viagem e missão jesultica pela Bahia, Ilheos, Porto Seguro,
Pernambuco, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S. Vicente (S. Paulo), etc. desde o anno de 1583 ao
de 1590, indo por visitador o P. Cristovam de Gouveia. Escripta em duas Cartas ao P. Provin-
cial em Portugal, pelo P. Fernão Cardlm, Ministro do Colleglo da Companhia em 'evora, etc.
Lisboa, 1847. Foi reimpressa por Melo Morais em sua Corografia histórica, cronográfica, genealó-
gica, nobiiiária e política do Império do Brasil... Rio de Janeiro, Tlp. Americana de José
Soares de Pinho, !858-60, t. 4. 0 , e parcialmente reproduzida, no tocante ao Rio de Janeiro, em
Guanabara, Revista mensal, artística, científica e literária (1851, v. 2); com relação a Pernam-
buco na RIAGP (1893, n. 0 43), e na parte relativa à Bahia pelo Dr. Brás do Amaral, em
nota às Memórias históricas e pol/ticas de Accioly, Bahia, 1919, vol. 1. Sobre a crítica de
textos, Cf. José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 3.• ed., 396-397. Capistrano de
Abreu recorreu a Lino Assunção para confronto dos textos com os originais de Portugal. Cf.
Cartas de Capistrano de Abreu a Lino Assunção, Lisboa, 1946, pp. 17, 36, 48. Para Caplstrano
as edições da Narrativa, a de Vernhagen, a de Melo Morais e as que se seguiram são inflde-
dlgnas. Ver Correspondência, II, 462.
(76) RIHGB, 1902, t. 65, parte 1. À página 70 reproduz-se a "Advertência acidental" feita
por Varnhagen à edição de 1847, na qual declarava que la anotá-la de tal modo que publicaria
o volume. Mas ordens superiores obrigaram-no a deixar Lisboa e fizeram com que pusesse
termo às suas notas, decidindo Imprimi-las sem ela, por entender que não era justo que por
essa falta ficasse o curioso escrito quinhentista ainda por mais tempo inédito.

266
Os três escritos de Cardim foram publicados conjuntamente em 1925
e em 1933, sob o título de Tratados da terra e gente do Brasil (77).
Cardim, no Clima e terra do Brasil, limita-se a descrever a flora
e a fauna. No Princípio e origem dos índios do Brasil aparece o etnó-
grafo, descrevendo os indígenas, seus usos, costumes e cerimônias. Foi
especialmente na Narrativa Epistolar que o autor tratou das missões dos
jesuítas, seus colégios e residências, fez o estudo das capitanias, de seus
habitantes e produções, e teceu considerações sobre o progresso e deca-
dência da Colônia e suas causas. f:. aí, então, que temos a descrição da
atualidade que mais pode interesar ao historiador.
Como bem acentuou Capistrano de Abreu, Fernão Cardim nada
tem de extraordinário, mas recomenda-se à simpatia e ao estudo por
mais de um aspecto. Descreveu com muito entusiasmo a paisagem que
o encantava e o seu gosto pela natureza inclinou-o para os índios, de que
tão bem tratou. Com suas narrativas das festas que se realizavam nos
lugares que visitou, muito contribuiu para o estudo da história social
das primeiras épocas. Observou, ao descrever os engenhos da Bahia, que
os encargos de consciência eram muitos. Os pecados que se cometiam
neles não tinham conta. Quase todos andavam amancebados por causa
das muitas ocasiões. E dizia pitorescamente: "Bem cheio de pecado vai
esse doce, por que tanto fazem" (78). A verdade é que nos habituamos,
com as descrições de Cardim, a ver no Brasil, por volta de 1580, uma
riqueza extraordinária.
Quando fala da igreja do Colégio da Bahia, Cardim diz que ela "é
capaz, bem cheia de ricos ornamentos de damasco branco e roxo, veludo
verde e carmesim, todos com tela d'ouro" <79). Ao referir-se à Bahia,
faz-nos imaginar os seus colonos fartos de mantimentos e vivendo rega-
ladamente. Capistrano de Abreu disse que o nosso Padre, talvez obrigado
a curar dos estômagos alheios, pegasse um pouco de gastrônomo <80 >. De
fato, Cardim sempre relata com grandes particularidades as farturas de
mesa que encontrava geralmente na Bahia ou particularmente no Colégio.
A propósito deste último, escreveu: "sustentam-se bem de mantimentos,
carne e pescados da terra; nunca falta um copinho de vinho de Portugal,
sem o qual se não sustenta bem a natureza por a terra ser desleixada e
os mantimentos fracos ... " (81 >. Referindo-se à sua partida para o Espí-
rito Santo, diz que, depois da missa, o almoço composto de muitas e
várias iguarias ajudou-o e a seus companheiros a passar no mesmo dia
muitos rios caudais. Em todos os locais em que é recebido, Cardim
registra o que lhe dão a comer. Quando chegam à morada de Garcia
d'Avila, a segunda riqueza da Bahia colonial, diz que o Padre Visitador
Cristóvão Gouveia foi agasalhado em sua casa armada de guadamecins,

(77) Rio de Janeiro, J. Leite, e São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1933, aproveita-
das a introdução e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia.
(78) Fernão Cardim, Tratados da terra e gente do Brasil, São Paulo, Companhia Editora
Nacional, 1939, p. 284.
(79) ld. id., p. 255.
(80) Capistrano de Abreu, Ensaios e Estudos, 2.• série, Rio de Janeiro, Briguiet, 1932, p. 339.
(81) F. Cardlm, ob. cit., pp. 256·257.

267
com uma rica cama, e que sempre lhes deram de comer aves, perus,
manjar branco, etc (82).
Cardim descreve minuciosamente os engenhos da Bahia e de Per-
nambuco e diz que se as fazendas deste último eram mais ricas que as da
Bahia, nesta fazia-se o melhor açúcar de toda a costa. Via os mestres do
açúcar, com razão, como os senhores de engenho, "porque em sua mão
está o rendimento e ter o engenho fama, pelo que são tratados com muitos
mimos e os senhores lhes dão mesa, e com mil réis, e outros, mais, cada
ano" <83 >. Enumera os engenhos e os moradores dos lugares que visita.
Assim, a Bahia possuía 36 engenhos e 3.000 vizinhos portugueses, 8 mil
índios e 3 a 4 mil escravos. Pernambuco, 66 engenhos, 2 mil vizinhos
portugueses, quase todos vindos do Viana, 2 mil índios escravos e muita
escravaria da Guiné. Já o Rio de Janeiro possuía apenas 3 engenhos e
150 vizinhos, como São Paulo. Cardim descreve festas, fala das escolas
de ler e escrever para indígenas e das de humanidades para os filhos dos
principais da terra e registra a grande seca de 1583. A visita aos enge-
nhos foi feita não só para "atender a alguns pedidos, mas também para
conciliar os ânimos dalguns com a Companhia, por não estarem muito
benévolos".
Muitos autores têm procurado restringir a veracidade das informações
de Cardim sobre a riqueza dos elementos de Pernambuco e Bahia. Parà
eles, a excelência e fartura da mesa e a riqueza do agasalho "em leitos
de damasco carmesim, franjados de ouro e rica colcha da lndia" ( <84 > não
representam o nível ordinário dos Senhores de Engenho das duas princi-
pais cidades do Brasil. Representavam um momento extraordinário, uma
hora em que se procurava honrar e homenagear o Visitador Cristóvão
Gouveia, oferecendo-lhe tudo que havia de melhor, cercando-o de todas
as considerações. Mas o simples fato de revelarem tanta riqueza e . tão
extraordinária abundância, mesmo em momento excepcional, não reflete
na realidade a pujança e riqueza de Pernambuco e Bahia? Não se reflete,
como sempre no Brasil, senão a riqueza do grupo dominante, no caso,
os senhores de engenhos?
A Informação da Província do Brasil (1583). Sua autoria.
Até recentemente consideravam-se como obras de Fernão Cardim
apenas as acima mencionadas. O Padre Serafim Leite, em estudo recen-
temente publicado, sob o título "Fernão Cardim autor da Informação da
Província do Brasil para o Nosso Padre", de 31 de dezembro de 1583 <85 >,
veio provar que a referida Informação é de autoria de Cardim e não de
Anchieta, como afirmara Capistrano de Abreu, embora assinada por Cris-
tóvão Gouveia.
Essa Informação, de importância fundamental para a história das
nossas primeiras épocas, existia em cópia manuscrita em língua espanhola

(82) ld. ld., p. 276.


(83) ld., ld., p. 283.
(84) ld., ld., p. 290.
(85) JC, 30 de dezembro de 19'4S.

268
, e letra contemporânea do século XVI, na Biblioteca de :Évora. Foi publi-
cada pela primeira vez em 1886, por Capistrano de Abreu (86>.
Na introdução que precede a publicação, Capistrano de Abreu dizia
que era, evidentemente, escrita pelo Provincial; em primeiro lugar por-
que fala em nome dele, tanto que em seu nome pede a benção do
Geral; em segundo lugar, porque se refere à Informação anterior, que
escrevera por força do cargo, sendo que, nesse tempo, o Provincial do
Brasil era José de Anchieta (8 7 ).
No Catálogo de Manuscritos de :Évora, essa Informação vinha com
a data de 1583. Capistrano de Abreu declarou que tal data era falsa,
porque Anchieta, ou o presumido autor, referia-se à mudança do Colégio
de S. Vicente para Santos, de ordem do Pe. Cristóvão Gouveia, mu-
dança essa que só se efetuou em março de 1585, citando em seu abono
Fernão Cardim, que esteve presente ao ato. Dizia ainda Capistrano que
comparando essa "Informação" com a Narrativa Epistolar de Cardim
notava-se muita semelhança nas descrições, e é natural que se procurasse
nela uma das fontes da Narrativa Epistolar. Tal conclusão, dizia ele,
tem, porém, contra ela o fato de que a primeira carta de Cardim é ante-
rior à presente Informação, pois é datada de 16 de outubro de 1585. De
onde se podiam tirar, na sua opinião, duas conseqüências, ambas plau-
síveis; ou que Anchieta, satisfeito com a vivacidade e o tom alegre de
Cardim, copiou-o insensivelmente, ou que ambos se apoiaram na "Infor-
mação" mandada em agosto, conforme ficou declarado no final da
"Informação da Província do Brasil para o Nosso Padre". Continuando
suas deduções, dizia Capistrano que se se lembrasse que no "Do prin-
cípio e origem dos índios" e "Da terra e gente do Brasil", publicados
por Purchas, em 1625, já se encontram muitas das comparações comuns
a Cardim e a Anchieta, a primeira hipótese parecia ser a mais vero-
símil <88 >.
Em 1933, nas publicações das Cartas, Informações, Fragmentos
Históricos e Sermões do Padre José de Anchieta, feita pela Academia
Brasileira de Letras, o anotador, Antônio Alcântara Machado, limitou-se
a reproduzir a argumentação de Capistrano de Abreu, favorável à autoria
de Anchieta (89).
Permaneceu, portanto, a atribuição de autoria feita por Capistrano de
Abreu para essa "Informação" até 1945, quando o Padre Serafim Leite
não só deu notícia da existência do original que punha termo a qualquer
dúvida <90>, como demonstrou cabalmente que a autoria era incontestavel-
mente de Fernão Cardim <91 l.

(86) Nas Informações e fragmentos históricos do Padre Joseph de Anchieta, S. J. (1584-1586),


n.• 1 dos Materlaes e Achegas para a história e geographla do Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, 1886.
(87) Informações e fragmentos, ob. clt., p. IX.
(88) Caplstrano de Abreu, Introdução às Informações e Fragmentos históricos, Já citados.
(89) Cartas, informações e fragmentos históricos e· sermões do Padre Joseph de Anchieta,
S. ) . (1554-1594). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1933, t. III das Cartas Jesultlcas publi-
cadas pela Academia Brasileira de Letras.
(90) HCJB, vol. 5, 59.
(91) Pe. Serafim Leite, ·Fernão Cardlm autor da informação da Província do Brasil para
o no,so Padre•, de 31 de dezembro de 1583; JC, Rio de Janeiro , 30 de dezembro de 1945.

269
O Pe. Serafim Leite encontrou nos Archivum S. l. Romanum o
códice Brasilia 15, 333-339, ou seja, a "Enformación dela Provincia dei
Brasil para Nuestro Padre", feita na Bahia, a 31 de dezembro de 1583,
com a data bem clara e a assinatura autógrafa de Cristóvão Gouveia,
Visitador Geral do Brasil. Tal como na Narrativa Epistolar, a "Infor-
mação", com a assinatura do Visitador, fora escrita pelo Pe. Fernão
Cardim. Ainda mais, quase todas as cartas do Visitador dirigidas a Roma,
para mais rápida leitura, eram redigidas em castelhano, que ambos sabiam
e escreviam. O secretário do Visitador recompilava nas Informações as
notícias mais gerais, vindas das diferentes Casas da Capitania e uma
primeira idéia do clima e outras particularidades que o mesmo Cardim
ampliará depois na língua materna, em dois trabalhos "Do Clima e terra
do Brasil" e "Do princípio e origem dos índios", que constituem, com a
famosa "Narrativa Epistolar", os Tratados da terra e da gente do Brasil.
Desde que apareceu o original datado e assinado pelo Visitador
Cristóvão Gouveia e desde que se sabe que a "Informação" é de quem
a assina ou de seu secretário, o que se averigua pelo estilo, não cabe dúvida
que o autor foi Fernão Cardim, que era o Secretário Visitador e cujo
estilo pessoal está impresso de tal modo no documento que Capistrano
de Abreu, aceitando a autoria de Anchieta, foi levado a afirmar que
este copiara insensivelmente Cardim.
Quanto à data, trocada por Capistrano de Abreu, mostrou o Padre
Serafim Leite que a licença para a transferência da Casa de São Vicente
para Santos já vinha de ano anterior a 1580, de modo que não era de
estranhar a referência feita a ela em 1583, tanto mais quanto o Visitador
vinha incumbido de resolver o asunto, embora só em 1585 tivesse a mesma
transferência tido lugar efetivamente. Além disso, como o autor da "In-
formação da Província do Brasil para o Nosso Padre" faz alusão, no
final, a uma outra carta "por agosto passado", e como Capistrano de
Abreu a datara de 1585, passaram aqueles que se preocuparam com o
assunto depois dele a procurar uma carta de Anchieta, de agosto. À
falta dela, resolveram aceitar uma de 28 de dezembro de 1584, como
sendo aquela a que se fazia referência no final da "Informação". O
argumento, conforme ressalta à primeira vista, era por demais forçado.
O Padre Serafim Leite esclareceu também essa questão. Mostrou
que numa carta particular do mesmo dia, 31 de dezembro de 1583,
também assinada pelo Visitador e de letra de Fernão Cardim, se fazia
referência a uma "por agosto passado"; e que conquanto não exista
nenhuma carta de Anchieta de agosto de 1583 ou 1585, havia uma de
agosto de 1585 dé Fernão Cardim, assinada por ele, por comissão do
Visitador Geral (9 2 ). De modo que desapareceu, assim, qualquer dúvida
sobre a autoria dessa "Informação", que se incorpora definitivamente à
obra de Cardim.

(92) As referências do Padre Serafim Leite são todas tiradas do artigo "Fernão Cardim
autor da Informação da Província do Brasil para o Nosso Padre", de 31 de dezembro de
1584, JC, Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1945.

270
:É justo assinalar, porém, que ainda ao errar Capistrano de Abreu
mostrou a enorme intuição que o dirigia nos seus trabalhos de crítica
histórica. :É assim que ao editar uma carta. cuja cópia vinda de :Évora
não trazia autoria declarada, e ao estabelecer, pelas razões que vimos, a
autoria de Anchieta, percebeu a tal ponto as semelhanças entre essa
"Informação" e a Narrativa Epistolar de Fernão Cardim, que se viu obrigado
a estabelecer aquelas duas hipóteses: ou que Anchieta e Cardim haviam
se utilizado de fontes comuns, ou que Anchieta copiara -insensivelmente
Cardim. Não só as informações comuns era,m verdadeiras, de vez que o
Provincial e o Visitador, que lhe era supenor, recebiam todas as infor-
mações parceladas de todas as Casas da Província, e delas se utilizavam,
como ficou provado que não havia apenas semelhança de estilo, mas
identidade, e que o autor era o próprio Cardim.
Cardim não é uma figura extraordinária, mas sua Narrativa Epis-
tolar e a "Informação" de 1583 são dois dos E'lais valiosos documentos
historiográficos do século XVI. As outras duas obras são mais naturais
que civis. A Capistrano de Abreu coube acentuar-lhe a importância.
Desde 1881 ele vinha reivindicando para Cardim um papel de grande
relevo para o conhecimento do século XVI. Em 1886, apelou várias
vezes para Lino de Assunção, pedindo-lhe para copiar textos. Em 1887
louvou o estilo leve e animado de Fernão Cardim (9 31 e pretendeu incluí-lo
como 4. 0 vai. dos Materiais e Achegas da Historia do Brasil (94 1. Entu-
siasmado, escreveu a Rio Branco pedindo que pesquisasse vários documen-
tos sobre o jesuíta. "Ainda tenho outro obséquio a pedir-lhe. Não há
escritor do século XVI que mais aprecie do que Fernão Cardim. Quero
dar ainda este ano, se for possível, uma edição completa de todos os
seus escritos. Falta-me, porém, um, que é um parecer ou carta que ele
escreveu a 1.° de janeiro de 1618 e que se acha originariamente na
Academia de História de Madri. A propósito de Cardim, tenho ainda
novo favor a pedir. Quando ele foi aprisionado para a Inglaterra em
1601, encontrou-se com um jesuíta, que prestou-lhe auxílio. Depois, daí
a um ano ou dois, fugiu com umas princesas, que depois entraram para
um convento em Lisboa. Não será possível saber o nome destas prin-
cesas?" (95 1
Sua paixão nunca arrefeceu. Em 1916, confessa que Cardim era um
dos seus prediletos (96 1. :f: em 1925, por ocasião do 3.° centenário da
morte de Cardim, que Capistrano escreveu o magnífico estudo sobre o
simpático jesuíta (97 1. :É uma pequena obra-prima, bem superior ao estudo

(93) Cartas de Capistrano de Abreu a Lino Assunção, Lisboa, 1949, p. 63.


(94) Carta a Rio Branco, de 23 de dezembro de 1887. Correspondência de Caplstrano de
Abreu, I, 118-120.
(95) Carta a Rio Branco, de 8 de agosto de 1887. Correspondência de Capistrano de Abreu,
1, 115.
(96) Carta a João Lúcio de Azevedo, Correspondência, clt. I, 19-21.
(97) O Jornal, 27 de Janeiro de 1925, reproduzido em Ensaios e Estudos, 2.• série. Rio
de Janeiro, Sociedade Capistrano de Abreu, 1932, pp. 325-340. O artigo foi escrito a pedido de
Assis Chateaubrland e, Já lançado, Caplstrano de Abreu demorou um mês para prepará-lo.
Correspondência, clt., .li, 315·316.

271
de Rodolfo Garcia <98 ), que compilou o que o próprio Capistrano havia
escrito nas várias edições por ele preparadas das obras de Cardim. Capis-
trano agastou-se com a escolha de Garcia para a edição da obra completa
de Cardim: "Afrânio (Peixoto) entregou Cardim a Rodolfo Garcia e não
gostei. Pareceu-me que tinha direitos adquiridos. Julgava prestes a sair
a nova edição e lastimava que tivesse de sair tal qual a amanhou Var-
nhagem <99 ), e reproduziu Melo Moraes <100 > e a Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro <101 > a encantadora Narrativa Episto-
lar" (10 2 ). Era natural. Capistrano de Abreu reivindicou para Cardim a
autoria de seus trabalhos publicados primeiramente em inglês, fizera pes-
quisas exaustivas, inclusive na Europa, por intermédio do Barão do Rio
Branco, estudara-lhe as obras e a figura como ninguém e quando aparecia
o momento de editar a obra completa era Rodolfo Garcia, que se iniciara
como seu auxiliar, o escolhido por Afrânio Peixoto, encarregado da dire-
ção da coleção (103).

6 . A Crônica Missionária Jesuítica

6. 1 . Considerações gerais
A Companhia de Jesus teve sempre o maior interesse em memorizar
para os vindouros suas obras e sua ação missionária. Porque foram dos
primeiros a dedicar-se à conversão do gentio e a dar aos colonos a
assistência religiosa e moral, sua participação na história do Brasil foi
muito ativa e ampla desde o primeiro século. Já se viu no século XVI
que as Cartas de Nóbrega, Anchieta e as Avulsas são documentos dos
mais importantes de nossa história e as Ânuas os primeiros documentos
historiográficos. Neste século XVII não fazem os jesuitas exceção;
produzem história, com sua obra de conversão indígena, sua atividade
educativa, sua assistência religiosa, sua influência moral na formação e
no aperfeiçoamento da família brasileira; e escrevem-na, como testemu-
nhas e como narradores fiéis dos esforços de seus companheiros nas
inumeráveis atividades que pelo Brasil já tinham desenvolvido ou vinham
desenvolvendo.
A criação, em 1622, da Congregação Propaganda Fide, para incen-
tivar a expansão da fé, deu nova força aos cronistas da ação missionária.
A história dos jesuítas e de suas atividades no Brasil até 1760 já
foi contada e bem contada pelo grande historiador da ordem, Serafim

(98) O estudo de Rodolfo Garcia foi publicado no /B, e reproduzido em Tratados da terra
e gente do Brasil, I.• ed., Rio de Janeiro, J. Leite, 1925, e 2.• ed. São Paulo, Companhia Editora
Nacional.
(99) Lisboa, Imprensa Nacional, 1847.
(100) Corographia historica, chronographica, genealogica, nobiliaria e politica do Império
do Brasil, Rio de Janeiro, 1859-1863, t. IV, 1860, pp. 417-457.
(101) RIHGB, 1902, t. 65, parte !, pp, 5-70.
(102) Carta a João Lúcio de Azevedo, de 1923, s.d. e sem mês. Vide também carta de 5
de outubro de 1924.
( 103) Atualmente, as mais completas informações sobre Cardim encontram-se na obra do
Pe. Serafim Leite, HC,B, 1938, t. l, e 1949, t. 8, pp. 132-137.

272
Leite, na sua monumental História da Companhia de Jesus no Brasil (1041.
Mas não é essa a história que nos interessa, e sim a dos cronistas e histo-
riadores da Companhia, ou a evolução do escrito histórico jesuítico no
Brasil, que Serafim Leite também expôs e divulgou (105 ).

6. 2 . A Missão do Rio Grande


Pero de Castilho (1572-1642), nascido no Espírito Santo, entrou
para a Companhia na Bahia, em 1587, consagrando sua vida aos índios,
cuja língua conheceu muito bem, como demonstra seu trabalho "Nomes
das partes do Corpo Hµmano pela língua do Brasil" (106). :e também
autor da "Relação da Missão do Rio Grande" (1613-1614), uma das
primeiras relações escritas por filho do Brasil, muito minuciosa nos por-
menores vivos da catequese volante, descrevendo as aldeias, os índios e
os trabalhos de conversão, logo após a fundação do Rio Grande do Norte.
Fez três entradas no sertão: a primeira em 1598 e a segunda em 1613
quando, fundado o Rio Grande, aí foi exercer seu apostolado, e a ter-
ceira na Bahia, em 1624. Na carta escrita de Pernambuco, em 1614,
e dirigida ao provincial Henrique Gomes, deixou uma narrativa porme-
norizada do sertão e da obra missionária. Publicou-a Serafim Leite na
sua História da Companhia de Jesus (107),

6. 3 . A Missão dos Mares Vereies


Estavam os padres estabelecidos já no século XVI na Aldeia dos
Reis Magos ou de Santo Inácio Mártir no Espírito Santo, quando "os
Aimorés da Serra puseram-se em pé de guerra, cortaram os caminhos da
Aldeia, e também da povoação dos Brancos e suas fazendas". Coube ao
Padre Domingos Monteiro (c. 1567-1641) (108) promover as pazes com
os índios e reduzi-los em grande parte à fé. Sua carta de 26 de julho de
1619 ao Provincial é uma narração da melhor qualidade, pelo espírito
informativo e pelo sabor literário levemente humorístico, que também
merece o registro na evolução da historiografia jesuítica (109). Libertado
do governo da Aldeia, João Martins, que aprendera desde cedo a língua
indígena, acompanhado de outro sertanista João Fernandes Gato, tentou,
em 1621, a empresa dos Paranaubis ou Mares Verdes, para catequizar
os índios do alto Rio Doce, no atual território de Minas Gerais. Sem
resultados fez nova tentativa em 1623 e depois de andar 200 léguas pelo
(104) Lisboa e Rio, 1938-1950, dez volumes, sendo o VIH e o IX suplementos blbllográflcos
e o X o fndlce Geral.
(105) Alguns autores, como O. de Samperes, Relações das Cousas, Já deram entrada nesta
historiografia. Outros, como os cartógrafos Antônio Ribeiro e Jacob Cocleo (HCJB, IX 70 e
160-162) não Interessam a este estudo. Documentos históricos de grande slgnlílcação de arquivos
da Companhia foram relacionados e aproveitados. Alguns, como a "Breve notícia dos Rendimentos e
despezas do engenho de Sergipe do. Conde depois da morte da Condeça ... • (1622-47), constituem
apenas um documento econômico. Este capitulo baseia-se na HCJB de Serafim Leite.
(106) Serafim Leite, HCJB, VIII, 157. Tem-se-lhe atribuído também a autoria do Vocabul4rlo
na Língua Braslllca, do Padre Leonardo do Vale; cf. Serafim Leite, HCJB, li, 554-556. Biblio-
grafia ln Serafim Leite, HC/B, Vlll, 157-158.
(107) V. 510-521.
(108) Bibliografia ln S. Leite, HCJB, VIII, 379-380.
(109) Carta do Rev. Simão Pinheiro da Companhia de Jesus, Provincial do Brasil.

273
sertão, com 50 índios frecheiros e 3 Aimorés, conseguiu apenas trazer 7
indios Paranaubis (110).
:8 -neste momento que Antônio Bellavia entra na história missionária
acompanhando o Padre João Martins na sua terceira entrada ao alto do
Rio Doce, realizada de junho a setembro de 1624. A "Missão dos Mares
Verdes que fez o Padre Martins, o seu companheiro o Padre Antônio
Bellavia por ordem do Padre Domingos Coelho, Provincial, na era de
1624" (111) relata as entradas anteriores, descreve os grupos etnográficos,
"gente belicosa, valente, bem disposta e assombrada, de muito bom en-
tendimento" e conta esta última missão com maior informação histórica.
Essa relação foi a fonte da narrativa literária de Antônio Vieira <11 2 > e
porque a ortografia e o estilo denunciam pena italiana, atribuiu Serafim
Leite a autoria a Antônio Bellavia (1593-1633) <11 3 >, nascido na Sicília,
jesuíta desde 161 O e chegado ao Brasil_ em 1622.
6. 4. As Missões dos Carijós
Na crônica jesuftica, foi a Missão dos Carijós (1605-1606), em-
preendida pelos Padres Jerônimo Rodrigues (1552-1631) <11 4) e João
Lobato para catequizar os índios da costa sul do Brasil, de Santa Catarina
ao Prata, a que mais atenção mereceu. Tendo partido de Santos, a 27
de março de 1605, chegaram à Laguna dos Patos a 11 de agosto de
1605. Antecederam de 20 anos a entrada do Padre Roque Gonzalez <1 1s>.
Era uma obra nova de conquista e catequese, e pensa Serafim que se
tivesse ido avante, sem os atropelos dos paulistas, teria permitido adiantar
de um século a colonização do Rio Grande do Sul.
A "Relação da Missão dos Carijós" foi encontrada sem assinatura
no Arquivo Geral da Companhia de Jesus pelo Padre Serafim Leite, que
a atribuiu a Jerônimo Rodrigues, a publicou e anotou <116 > . A Relação
registra os resultados da missão que conseguiu reunir 150 índios, escravi-
zados ao serem os padres obrigados a arribar em Santos, pois em São
Paulo não se respeitava a liberdade indigenà e se hostilizava a ação jesuí-
tica. Mostra especialmente que os padres jesuítas portugueses tinham
conhecimento do Rio Grande do Sul muito antes de qualquer tentativa
espanhola. Para Serafim Leite o Autor escreve em estilo desenfastiado e
(110) S. Leite, HCJB, VI, 167.
(1 IJ) Transcrita ln S. Leite, HC/B, VI, 167-176.
(112) Trecho da Anua de 1625-1626. transcrita ln Cartas, ed. J. L. de Azevedo, I, 61-64.
(113) Bibliografia ln S. Leite, HC/B, VIII, 93-94.
(114) Bibliografia ln S. Leite, HC/B, IX, 86-87, e I, 330, nota 1.
(115) Serafim Leite, HCJB, I, 330, nota 1. C. Teschauer, História do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 1918, 1, 33 ,e 40. Refere-se Serafim Leite à fundação da Redução de São Nicolau
do Piratini, cuja primeira missa foi rezada a 3 de maio de 1626. A melhor biografia do
mártir Roque Gonzalez (1576-1628) é do P. Luís Gonzaga Jaeger, S. J., fesuftas no sul do Brasil,
vol. 1, Os Bem-aventurados Roque Gonzalez, Afonso Rodrigues e foão dei Castl/lo. Livraria Selbach,
Porto Alegre, 2.• ed. 1951, 1-247, especialmente o capitulo 24. "0 Mais Antigo Explorador do
Rio Grande do Sul•.
(116) Publicada primeiramente ln Novas Cartas /esuítlcas, São Paulo, 1940, Brasiliana, vol. 194,
196-246 e reproduzida por Muclo Leão, Autores e Livros (Suplemento Literário de A Manhã, IX n. 0
10, Rio, 10 de outubro de 1948). A atribuição de autoria baseou-se nas repetidas referências do texto
ao "Padre Lobato e eu", quando se sabe que o acompanhante daqúele foi Jerônimo Rodrigues,
que é autor também das Cartas do Padre Fernão Guerreiro (1550-1617), nas quais se resume o
que se diz nas Relações.

274
observa a etnografia e a história natural da região. Jerônimo Rodrigues
conhecia a língua indígena e suas cartas da Lagoa dos Patos de 26 de
novembro de 1605 017) e 11 de agosto de 1606 <118 >, revelou seu zelo e
sua capacidade na conversão indígena e na obra da descoberta e domínio
português pela zona sul do Brasil.
A segunda Missão aos Carijós, empreendida em 1609, pelos Padres
João de Almeida e Afonso Gago, com o fim de tentar a edificação
local de aldeias estáveis de catequese, teve como narrador provável o
primeiro, pois o segundo não deixou nenhum escrito, nem mesmo carta <119 >.
João de Almeida teve uma grande ação apostólica e sua biografia, aureolada
de santidade, milagres e profecias, foi escrita no próprio século por Simão
de Vasconcelos e Antônio Vieira e, modernamente, por Serafim Leiteo 20 >.
João de Almeida é também autor, e desta vez declarado, da "Re-
lação d'algumas cousas da Missão que se fez aos Carijós e mais lugares
vizinhos dos Patos ... " 0 21 > patrocinada por Salvador Correia de Sá, o
velho, e mandada realizar por ordem do Provincial e do Reitor do Colégio
do Rio de Janeiro. A viagem até a Lagoa dos Patos, iniciada em novem-
bro de 1617 e terminada em março de 1619, representa mais um avanço
na tentativa de conquista da zona sul pela conversão indígena e pelo
conhecimento da terra e da gente. A "Relação" é datada do Rio, aos
23 de março de 1619, ao chegar ou pouco depois da chegada e dela
consta que os padres fizeram amizades de grande importância, pregaram,
doutrinaram, batizaram, casaram e realizaram "outras coisas de muito
serviço de Deus". João de Almeida faleceu no Rio de Janeiro a 24 de
setembro de 1653 com fama de santidade entre o povo e fidalgos, como
Salvador Correia de Sá e Benevides, de quem foi confessor, profetizando
seu casamento no Paraguai em 1630, a reconquista de Angola em 1648
e a viagem a Lisboa em 1652 <1 2 2>.

(117) Resumida e impressa em 1609 por Fernão Guerreiro, Relação Anual das Cousas que
fizeram os padres da Companhia de fesus na lndia e fapão ... , Lisboa 1603 (relativo a 1600,1601),
1605 (1602·1603), 1607 (1604-1605), 1609 (1606-1607), 1611 (1607-1608). Vide ed. Coimbra, 1931, li,
419-423. Foi compendiada por Pierre du Jarric, Histoire des choses p/us mémorables advenues tant
en (sic) lndes Orienta/es, qu'aux autres pays de la découverte des Portugais, en l'établissement et
progres de la foi chretienne et catholique, Bordeaux, 1608-1614, 3. 0 vol., 481·486.
(118) Resumida por Fernão Guerreiro, r>b cil. li, 423-424.
(119) Resumo in S. Leite, HC/B, VI, 475-476, "Missão dos Carijós", Inseria na Anua de
1609, S. Leite, VIII, 8.
(120) Simão de Vasconcelos, Vida do P. foam d'Almelda da Companhia de fesus na Provlncla
do Brasil. Lisboa, 1658; Continuação das Maravilhas que Deus é servido obrar no Estado do Brasil,
por intercessão do mui religioso e penitente servo seu e venerável P. foão de Almeida da Compa·
nhia de Jesus, Lisboa, 1661. Estas obras foram utilizadas quase integralmente pelo P. Antônio de
Macedo, na sua De Vila et Moribus foannis de Almeida ... , Veneza, 1669, traduzida para o francês
e resumida por Ch. Salnte Foi, Vie du Pere fean d' Almeida; Paris, 1859. Henry Foley em seus
Records of the English Province o/ the Society o/ fesus, Londres, 1883, vol. Vil, também se utili-
zou de Macedo, via Sainte. Foi. O estudo de Antônio Vieira, com o título "Sobre o Padre João
de Almeida", encontra-se ln João Lúcio de Azevedo, História de Antônio Vieira, Lisboa, 1931, 2.•
ed., 400-405; Serafim Leite in reed. de Simão de Vasconcelos, Vida do Venerável Padre fosé de
Anchieta. lnst. Nac. do Livro, 1943, e História, ob. cit., VIII, 8-9. O nome Almeida é adaptação de
Meade ou May. A !.• forma é apresentada por Serafim Leite, História, VIII, 8; e a 2.• por Charles
Boxer in "Três Ingleses no Rio dos seiscentos" Correio da Manhã (Rio), 2 de outubro de 1941 e in
Salvador de Sá and the Strugg/e for Brazil and Angola, 1602/1608, Londres, 1952, p. 87, nota 38.
(121) Transcrição de trechos ln Serafim Leite, HC/B, VI, 476-480, descrição bibliográfica,
Idem VIII, 8. O autógrafo encontra-se no arquivo Geral da Companhia de Jesus em Roma.
(122) Charles Boxer, Salvador de Sá, ob. cit., 87, notas 38, 255, 287, 288.

275
Nenhuma das três m1ssoes conseguiu erigir residência fixa que per-
manentemente se dedicasse à conversão e à posse. Nova expedição, diri-
gida pelo Padre Antônio de Araújo ( 1566-1632), cuja "Relação" sobre
a viagem· de Pedro Domingues (1613) já foi apreciada e que vinha de
publicar seu Catecismo Brasílico 0 2 3), chegou em 1622 à Missão dos
Patos e lá permaneceu até 1628, ano terrível em que os paulistas bandei-
rantes destruíram as missões jesuíticas espanholas. Porque não puderam
passar à outra banda do rio para nela se estabelecerem, com o que estaria
iniciada a colonização portuguesa do Rio Grande do Sul, por oposição
dos índios e dos escravizadores, voltaram os padres a Laguna (Santa
Catarina) e daí avjsaram o Colégio do Rio de Janeiro <124 >. Francisco Car-
neiro (1580-1652), professor de Letras e pregador, reitor do Colégio do
Rio, veio por ordem do Provincial resolver a situação, mantendo a Resi-
dência ou suprimindo-a e trazendo os índios <125 >. Escreveu a narrativa
destas dificuldades, da decisão de voltar, terminar a Missão, trazer os
índios Carijós, as peripécias da viagem e as ameaças dos escravagistas de
São Paulo, que tantas mortes e cativeiros cometiam contra os gentios, em
carta <126) que deve também, pelas suas qualidades intrínsecas, participar
da historiografia jesuítica.
A obra de conversão dos índios Carijós encontra ainda outros cro-
nistas, como Inácio Siqueira (15 81-1644). Grande sertanista, tentou o
descobrimento da serra das esmeraldas e por três vezes foi ao sertão
dos Goitacás, conseguindo pacificá-los. Coube-lhe, acompanhado do Padre
Francisco de Morais, reatar a missão aos Carijós que Francisco Carneiro
encerrava. A expedição organizada no Rio e patrocinada pelo Governa-
dor Rodrigo de Miranda Henriques saiu de Guaratiba a 7 de junho de
1635. A narrativa "Missão que fizerão aos Patos os Padres Ignacio de
Siqueira e Francisco de Moraes", "formosa relação, que denota escritor
de merecimento", no dizer de Serafim Leite 0 27 >, descreve a terra "mui
diversa de toda a outra do Brasil" <128 >, os costumes e condições da "na-
ção dos carijós, a última, de todas as do Brasil, que habita para o sul e
aquela onde fenece a conquista da Coroa de Portugal, das mil e cento
e sessenta léguas que domina por costa, começando do Grão Pará até o
Rio da Prata, chamado Paraguai". Salienta e comenta o uso da feitiçaria
pelos índios, descreve a costa da Laguna ao Rio Grande, narra o cativeiro
de cerca de 120 mil Carijós, comprados e conquistados no Sul pelas incur-
sões marítimas escravizadoras e vendidos em várias capitanias. Pede provi-
dências enérgicas que ponham remédio a uma tão grande ofensa, antes
que os portugueses os acabem de destruir com seus desumanos latrocínios.

(123) Bibliografia in S. ·Leite, HCJB, Vlll, 60-62.


(124) Bibliografia ln S. Leite, HCJB, VIII, 143-144.
(125) Serafim Leite, HCJB, VI, 483.
(126) Carta de P. Francisco Carneiro, Reitor do Colégio do Rio ao P. Provincial Antônio de,
Matos sobre a Missão dos Carljós, Rio de Janeiro, 9 de outubro de 1628. Excertos em S. Leite,
HCJB, Vl, 234-236.
(127) HCJB, IX, 121-122. Aí se encontra a descrição bibliográfica.
(128) Transcrição ln Serafim Leite, HCfB, VI, 495-521.

276
6. 5 . Os tumultos contra a liberdade indígena
A questão da liberdade dos índios, assegurada pelo Breve de Urbano
VIII (22 de abril de 1639) 0 29 >, provocou grandes tumultos no Rio de
Janeiro, Santos e São Paulo em 1640. A história vem bem contada por
Serafim Leite <1 30), porém a crônica contemporânea- dos acontecimentos
no Rio encontra-se relatada não em documento historiográfico mas sim-
plesmente histórico, embora, às vezes, pelo caráter narrativo, asseme-
lhe-se a uma crônica. Trata-se da "Resposta a uns Capítulos ou Libelo
Infamatório" (13l), escrita por Francisco Carneiro. Em Santos e São Paulo
a agitação foi maior e também aqui a narrativa se apresenta em forma
documental, com a "Certidam sobre a expulsão dos Padres da Compa-
nhia· de Jesu da Capitania de Sam Vicente por causa da publicação da
Bulla que passou Sua Santidade acerca da liberdade dos 1ndios Orientais
( sic) e Ocidentais" (l32), escrita pelo padre Jacinto de Carvalhaes
(1599-1678) <133>. Não é somente pela "Certidam" que se conhecem os
pormenores desses sucessos em São Paulo, mas também pela relação de
Pedro de Morais Madureira, aproveitada por Pedro Taques de Almeida (1 34 >.

7 . A Crônica Jesuítica Geral Menor

7 . 1 . Os Cronístas Gerais
No tratamento da crônica jesuítica geral devemos distinguir os cro-
nistas menores como Antônio de Matos, Jácome Monteiro e Antônio
Pinto, que cuidam dos sucessos gerais das missões e dos episódios jesuí-
ticos no Brasil e os descrevem em Informações e Relações contemporâneas,
dos cronistas maiores, cujas Crônicas já são narrativas históricas elabo-
radas, no uso das fontes e da bibliografia e no cuidado da apresentação
cronológica anterior e atual das atividades religiosas dos companheiros
de Jesus. Simão de Vasconcelos e João Felipe Bettendorff escreveram a
história da Companhia de Jesus nos dois Estados do Brasil e do Maranhão,
que formavam, então, a América Portuguesa. Apenas o primeiro escre-
veu sua "Crônica" até 1633, enquanto Bettendorff dedicou-se mais aos
acontecimentos que presenciou. A obra de Vasconcelos atinge o contem-
porâneo, na biografia de João de Almeida, mas aí totalmente persona-

(129) Publicada in S. Leite, HC/B, VI, 569-571. Restabeleceu o Breve de Paulo Ili, de
1537, com aplicação direta ao Brasil, Paraguai e Rio da Prata.
(130) HC,B, VI, 32-41 (Rio de Janeiro); 251-255 (Santos e São Paulo).
(131) "Resposta a uns Capítulos ou Libelo Infamatório, que Manuel Jerônimo, procurador
do Conselho na Cidade do Rio de Janeiro com alguns apaniguados seus fez contra os Padres da
Companhia de Jesus da Província do Brasil e os publlcou em Jufzo e fora dele, em Junho de
1640", ln S. Leite, HC/B, 572-588. Não conheço a publicação do "Libelo". Alguns outros do·
cumentos, como a cana do Padre Visitador Geral do Brasil, Pedro de Moura e do Padre Simão
Mendes, ambos Jesuítas, reforçam a Interpretação de Carneiro. A primeira publicação in S. Leite,
HC!B, VI, 33-39, e a segunda ln Memorial Histórico Espaiiol, Madrl, 1861·64, XIX, 234-43.
(132) Publicada ln S. Leite, HC/B, VI, 255-263.
(133) Bibliografia ln S. Leite, HC!B, vm 146-148.
(134) Cf. "Notícia Histórica da Expulsão dos Jesultas do Colégio de São Paulo", RIHOB,
2.• ed., 1874, XII, 10·11, e Afonso d'E. Taunay, "Escrlptores coloniais", AMP, II, 53-54. Mostra
Taunay que o documento publicado no t. III da RIHOSP não é o de Madureira, aproveitado por
Taques.

277
lizada na vida daquele seu virtuoso companheiro. Ambos são cronistas
gerais e, apesar das censuras ao estilo e à concepção histórica, suas obras
são construções historiográficas que se destacam no quadro geral da
evolução da historiografia brasileira. Vasconcelos sempre personalizou
sua crônica, nos três tempos de sua elaboração, enquanto Bettendorff foi
mais genérico.

7 . 2 . Antônio de Matos
Antônio de Matos (1561-1645) entrou para a Companhia em 1577,
foi Reitor dos Colégios de Pernambuco, Rio e Bahia, e Provincial. Preso
pelos holandeses, quando do assalto a Salvador em 1624, voltou ao
Brasil em 1628 com o mesmo cargo <1 35 >. Dos seus vários escritos (l36J,
Anuas e cartas, é a "Informação do Colégio do Rio de Janeiro
(1619)" (137 > que o inclui entre os cronistas jesuíticos. :E: trabalho curto,
mas muito informativo, dando as várias ocupações dos religiosos da Com-
panhia na Província do Brasil. Não se limita a descrever o que faziam
"nas cidades, vilas e povoações povoadas de moradores portugueses", mas
também "nas aldeias dos índios Brazis, e nas missoens, a que a seus tem-
pos somos mandados ao sertão e outras terras mui remotas em demanda
do gentio, que venha viver nas aldeas, que estão à sombra dos Portugue-
ses". E assim narra resumidamente as missões e aldeias no Rio de Ja-
neiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, no Espírito Santo, em Santos,
todas subordinadas ao Colégio Jesuítico da cidade do Rio, que possuía
53 religiosos. :E: ainda autor da bela e extensa narrativa "De Prima Collegii
Fluminis Januari Institutione et quib'deinceps additamentis, excreverit",
ainda inédita, escrita entre 1619 e 1621 (1 38 >. O Padre Antônio de Matos
foi homem de reputação exemplar e faleceu no Colégio do Rio, a 25 de
outubro de 1645.
7. 3. Jácome Monteiro
Jácome Monteiro (1574- ? ), nascido em Sousa, no Bispado de Coim-
bra, entrou para a Companhia em 1591, esteve na Bahia em companhia
do visitador geral Padre Manoel de Lima, e daí voltou a Portugal (l39). Sua
"Relação da Província do Brasil, 1610" 0 40> é uma descrição muito mi-
nuciosa do Brasil e de suas capitanias, do gentio e seus costumes, e da fauna.
Figura entre os primeiros e mais valiosos escritos jesuíticos sobre o Brasil
deste século, e é comparável apenas às "Relações" precedentes de Nóbre-
ga, Anchieta e Cardim, completando-as na sucessão dos ganhos e frutos de
alguns anos mais de colonização portuguesa e de ação missionária. Descreve
São Paulo, seus moradores, suas drogas, seu sertão; a costa de Santos ao

(135) Serafim Leite, HCJB, VIII, 357-358.


(136) Andou escrevendo na Holanda, quando do seu cativeiro, e pretendia Imprimir. Perde-
ram-se os cadernos. Serafim Leite, ob. clt., VIII, 358, letra E.
(137) Na transcrição do texto, Serafim Leite, HCJB, VI, 563-568, dá esse titulo e na des-
crição bibliográfica, VIII, 358, o de "Informação das ocupações dos Padres e Irmãos do Rio de
Janeiro".
(138) Descrição bibliográfica in Serafim Leite, HCJB, \'OI. I, XXVII.
(139) Bibliografia in Serafim Leite, HCJB, VIII, 380.
(140) Texto ln Serafim Leite, HCJB, Vlll, 393-425.

278
Rio de Janeiro, esta última cidade com seus 2 mil vizinhos, que "é rica
e sê-lo-á cada dia mais, se as minas laborarem e quando estas faltarem
basta o comércio que tem no Peru e Angola"; Cabo Frio, Goitacazes
(Campos), Espírito Santo, Rio Doce, Porto Seguro, Salvador, Sergipe e
Pernambuco, Itamaracá e o Norte, que conhece apenas pela "Relação"
de Luís Figueira, dando variada informação sobre a fortuna e a gente, es-
pecialmente as de Salvador e Olinda, que eram então as mais ricas do
Brasil. Segue-se uma "Relação" do gentio do Brasil e seus costumes e
uns apontamentos sobre "algumas cousas notáveis dos animais, bichos e
aves, desta Província".
A "Relação" não está assinada e o original encontra-se no Arquivo
da Sociedade de Jesus em Roma. A Atribuição de autoria foi feita por
Serafim Leite, ao identificar o autor na passagem em que este escreve: "O
Pai Jacomi Xerapi (Xerapim) do Paí Guaçu" 0 41 > e pela carta de 28
de setembro de 1610, na qual diz ao Padre Assistente, em Roma: "a in-
formação do Brasil que enviei a VªRª" 0 42 >.

7 . 4 . Antônio Pinto
Antônio Pinto (1632-1664), nascido no Porto, entrou para a Com-
panhia em 1646 e em 1660 ensinava humanidades em Pernambuco. Os
"Sexannium Litterarum ab anno 1651 usque ad 1657" 0 43> constituem uma
das Ânuas mais notáveis do Brasil, descrevendo os fatos importantes nes-
tes seis anos, tais como o fim da guerra contra os holandeses, as entradas
e catequese nos sertões da Bahia, a obra dos padres jesuítas e a volta dos
mesmos a São Paulo em 1653 <144 >. Para um "período tão importante em
que no Norte se unificou materialmente o Brasil, com o triunfo sobre os
holandeses ( 1654), e no Sul se fez a pacificação espiritual" de 1653 com
a volta dos padres jesuítas a São Paulo, a narrativa de Antônio Pinto se
apresenta como a de um escritor excepcional <1 45).

7 . S. Jacinto de Carvalho
Jacinto de Carvalho (Coimbra, 1677-1744), como escreveu Serafim
Leite, foi missionário, administrador e cronista. Entrando para a Compa-
nhia foi enviado para as missões do Maranhão e Pará, onde concluiu seus
estudos e fez profissão solene. Durante treze anos trabalhou no Amazonas,
voltando para Coimbra, onde passou a representar em Lisboa a Missão do
Maranhão e Pará, separadas da do Brasil. Voltou à América Portuguesa,
com o governador do Estado do Maranhão, João da Maia da Gama (1722-
1728), sendo desde 1723 visitador-geral, e se destacando na ação missio-
nária. Não voltou com o governador, e continuou confessor do novo go-

(141) Vide trecho in Seraílm Leite, ob. cit., 416 . " Padre Jacomi do mesmo nome do Pae
Grande".
(142) Vide biografia in Serafim Leite, HC/B . VIII, 380.
(143) Bibliografia in Serafim Leite, HC/B. IX , 56.
(144) TrechOs in Serafim Leite, HC/8, V, 271, 273, 276, 278 (sobre sertões) e VI , 281.
289 , 292, 298, 300 (Paz em São Paulo).
(145) Serafim Leite , HC/8, VI , 280.

279
vemactor Alexandre de Sousa Freire (1728-1732). Retornou a Lisboa e
reassumiu a antiga representação até 1739, falecendo em Coimbra <146 >. Es-
creveu variada bibliografia <147 > na qual se destacam pelo interesse e aces-
sibilidade a "Cópia da Representação que se fez a S. Majestade sobre a
isenção do Ordinário no tocante às visitas dos Missionários em 1727" (148) e
o "Parecer do Padre Jacinto de Carvalho, Visitador Geral das Missões da
Companhia de Jesus, sobre a forma que se deve observar no descimento
dos índios para fornecimento das Aldeias, e para o serviço dos moradores
nas suas fazendas conforme as cartas de S. Majestade em 1718, e deste pre-
sente ano de 1728" <1 49 > e sobretudo- a "Relação das Missões do Estado
Maranhão, feitos pelo P. Jacinto de Carvalho", ainda inéditos.

7. 6. Valentim Mendes
Valentim Mendes (Cachoeira, Bahia, 1689 - Bahia, 1759) foi pro-
fessor, pregador e cronista, segundo Serafim Leite 0 51 >. Estudou em Be-
lém, entrou para a companhia com 14 anos, fez profissão solene no Rio
de Janeiro. Escreveu vários sermões e cartas, mas é autor da "Crônica da
Província do Brasil", cujo paradeiro se desconhece, mas foi citada por José
de Mirales na sua História Militar do Brasil <t52 >.

7. 7. Manuel Pinheiro, Domingos de Araújo e João Tavares


Manuel Pinheiro ( Porto 169 5 - Rufinella, Itália, pós 1774) foi mis-
sionário e cronista. Fez os últimos votos na Companhia em 1734 e traba-
lhou sempre com os índios no Ceará, e no Rio Grande do Norte. Foi de-
portado do Recife para Lisboa e daí para Roma, em 1760, após a expul-
são dos jesuítas determinada por Pombal. :e. autor de duas importantes
contribuições históricas: "Notizie della Capitania dei Seará e di petimenti
de Ni'i Padri nella fondazione della casa nostra" e da "Notizie della fati-
che sofferte dai NN. PP . nel prendere il possesso della populazione dei
Seara". Ambas foram publicadas pelo Barão de Studart, procedidas de um
estudo pelo mestre cearense <153 >. Estas notícias são valiosas para a história
das missões no Ceará, sobretudo na Serra do lbiapaba e para a história
da construção do Convento e Igreja do Aquirás, dos padres jesuítas. Ma-
nuel Pinheiro narra a expedição pacífica que se iniciou em 1732 de ordem
do provincial Marcos Coelho para sua vinda para o Ceará e trata das fadi-
gas e trabalhos que ele e seus colegas experimentaram na administração
de várias aldeias, até então regidas por padres seculares. O Barão de Stu-
dart no seu estudo introdutório traça a biografia do Padre Jesuíta João

(146) Serafim Leite, HC/B, 8, 149-150.


(147) Descrita in Serafim Leite, HC/B, 8, 150-153.
(148) A. J. de Melo Morais, Corografia Histórica, Cronográfica, Genealógica, Nobiliárla e
Polltica do Império do Brasil, Rio, !859-18ó3, IV, 376-400.
(149) Meio Morais, ob. cit., IV, 341-343.
(150) Serafim Leite, HC/B, IV, 305.
(151) HC/B, 8, 373-375.
(152) ABN, 22, 124 e Separata dos Anais.
(153) RlC, (1932), 46, 177-200.

280
Guedes, que veio de Portugal em 1720, incumbido de construir um con-
vento para dez padres da congregação. Indica os construtores da Igreja
em 1748 e dá a lista dos subscritores do Hospício (Convento do Aqui-
rás). Mostra que o padre João Guedes ( 1660-1743), natural da Boêmia,
por duas vezes foi a Lisboa advogar interesses dos índios do Ceará. A
seguir desenvolve considerações sobre o papel conjunto e solidário desem-
penhado pelo missionário Manuel Pinheiro <154 >. Serafim Leite afirma que
as duas "Notizie" contêm inexatidões e infidelidades de memória <155 >.
Domingos de Araújo (Arcos do Valdavez, Porto, 1672 - Pará, 1734)
entrou para a Companhia com 17 anos e veio para o Brasil em 1691, onde
completou os estudos, fazendo profissão solene na Bahia em 1708 e pas-
sando depois a missionar no Maranhão e Pará, onde foi professor e pregou
nos sertões <15 6>. Sua obra principal "Chronica da Companhia de Jesus da
Missão do Maranhão" se encontra na Biblioteca de :Évora e em cópia na
Biblioteca Nacional (157).
A obra trata do nome e do sítio do Maranhão, do seu descobrimento
e da descrição da ilha. Cuida do clima, e das capitanias pertencentes à
missão do Estado do Maranhão. Descreve os índios desde a primeira mis-
são até a de Antônio Vieira (165 2-1661 ) .
João Tavares (Rio de Janeiro, 1679 - Maranhão, 1743) foi profes-
sor e missionário. Entrou para a Companhia aos 17 anos, fez profissão
solene no Maranhão, e sempre se ocupou dos índios. Sua bibliografia é
composta de cartas, informações e da "Breve descrição das grandes recrea-
ções do Rio Muni do Maranhão", publicada em excerto por César Au-
gusto Marques <158 >.
Manuel Ferreira (Anadia, Aveiro, Portugal, 1703 - Pará, 1760) foi
missionário e cronista. Entrou para a Companhia em Coimbra, no ano de
1718; veio para as missões do Pará e Maranhão em 1720, fazendo profis-
são solene no Pará em 1736. Foi Reitor no Colégio do Pará, Reitor do
Seminário, Vice-Provincial e escreveu duas notícias que o incluem entre
os jesuítas cronistas: a "Breve Notícia do Rio Tapajoz" e a "Breve Notícia
do Rio Tapajoz, cujas cabeceiras último (sic) se descobrirão no anno de
1742 por certanejos ou mineiros de Matto Grosso, dos quaes era Cabo
Leonardo de Oliveira, homem bem conhecido e dos mais experimentados
das Minas", cujo original se encontra na Biblioteca de :Évora e do qual deu
trechos Serafim Leite (159).

7 . 8 . Bento da Fonseca
Bento da Fonseca (Anadia, Aveiro, Portugal, 1702 - Anadia, 1781)
entrou na Companhia de Jesus em 1718 e dois anos depois foi para o

(154) Vide comentários in José Honório Rodrigues, índice Anotado da Revista do Instituto do
Ceard, Fortaleza, 1959, 279-280 e 349-350.
(155) HCJB, Ili, 74.
(156) Serafim Leite, HCJB, VIII, 63.
(157) J. H. da Cunha Rlvara, Catalogo dos manuscrlptos da Bibllotheca Eborense, Lisboa, I,
)2-34 e ABN, 70, p. 128.
(158) Dlccionario historlco-geographico da Provincia do Maranhão, Maranhão 1870, 322 e
em Serafim Leite, HC/B, Ili, 159 e IX, 150-152.
(159) HCJB, III, 366 'e IV, 305.

281
.Maranhão e Pará, onde estudou. Fez profissão solene no Maranhão. Foi
professor e manteve sempre sua opinião defensora da liberdade indígena.
Voltou a Lisboa em 1732. Assumindo o cargo de procurador geral das
missões do Maranhão e Pará e ai coligiu documentos e redigiu capítulos
sobre a história da vice-província do Maranhão. Quando se deu a perse-
guição geral foi preso e enviado para S. Julião da Barra e quando ai se
encontrava deu-se a queda de Pombal e_ a restauração das liberdades. Foi
então para a Anadia onde viveu seus últimos anos. Escreveu variada e ex-
tensa bibliografia enumerada em Serafilil-Leite ciso). Desta se destacam para
a historiografia o "Parecer do Jesuíta Bento·:. dado a S. Majestade a favor
da liberdade dos índios, e para se acabarem de uma vez as escravidões
injustas no Maranhão" 06 1 > e o "Catálogo dos primeiros religiosos da Com-
panhia da Vice-Província do Maranhão como notícias históricas pelo je-
suíta Bento da Fonseca" (162). ·

Bento da Fonseca escreveu ainda a "Noticia do Governo temporal dos


índios do Maranhão e das Leys e Razões porque os senhores Reis o comme-
teram aos missionarios, e em que consiste o dito governo, chamado tem-
poral, que exercitaram os missionários sobre os indios" 063) e o "Maranhão
conquistado a Jesus Cristo. Cap. 6. 0 : Descrevem-se as terras do Cabo do
Norte e a verdadeira divisão dos domínios de Portugal e França na Colônia
de Caena" <164 >.
Era essa questão de limites e demarcações entre domínios portugue-
ses e espanhóis um assunto tal como a questão indígena, de sua predile-
ção e sobre o qual revelava grande conhecimento. Escreveu Serafim Leite
que sendo ele antigo professor de filosofia e teologia, homem de saber e
erudição, coligia documentos para a História que não escreveu, quando
negociava o Tratado de Limites de 1750. Esses documentos constituíram,
segundo Serafim Leite, o fundo inicial da obra de José de Morais, e em
carta agradecendo o empréstimo do livro de Berredo, os Anais Históricos
do Maranhão, Bento da Fonseca opinava com muito acerto sobre a deli-
mitação da fronteira, assim concluindo: "com estas notícias fica certa a
demarcação do interior da nossa América, cortando pelo Rio Madeira ao
Mato Grosso, e descendo deste à nossa Colônia do Sacramento, ainda que
parte deste sertão, para cá, do Rio da Prata, entre este e o Brasil, tem vá-
rias povoações e aUleias de índios castelhanos" <165). Serafim Leite atribui-
lhe também a "Resposta Apologética à Relação Abreviada" 0 66 >, uma
exposição de queixas do governo português contra atos, verdadeiros ou
supostos, atribuídos aos jesuítas na América 067).

(160) HCJB, lll , 243-252 . .


(161) Incluído in "Refutação das calúnias contra os Jesuítas contidas no poema Uraguay de
José Baslllo da Gama•, ref. de livro raríssimo publicado em Laguna, 1786, RIHGB, 68, t.• parte,
108,109.
(162) RIHGB, 1893, 55, t.• parte, 407-431, com a Indicação de que fora copiado por Gon·
çalves Dias; publicado também por Meto Morais, Corographla Hlstorica, clt. Ili, 32-37.
( 163) Melo Morais, Corograph ia Historica, IV, 1_22· 186.
(164) Melo Morais, Corographla Hlstorlca, li , 213,219 .
(165) Serafim Leite, HCJB, 7, 340.
(166) História, 8, letra 18, pp . 247,248.
(167) Vide "Relação", republicada ln RIHGB, (1842), IV, 255-294.

282
7. 9. Antônio Machado, Jerônimo Moniz e Manuel Beça
Antônio Machado (Lisboa, 1717 - Lisboa, 1768) entrou para a
Companhia a bordo do navio que o conduzia de Lisboa para as missões
do Maranhão e Grão-Pará e fez profissão de fé no próprio Maranhão. Foi
professor de gramática e retórica e Reitor do Seminário do Maranhão,
quando veio a deportação em 1760 <1 68). Escreveu a "Breve Relação do
que tem sucedido na Missão dos Gamelas desde o anno de 1751 até
1753" <1 69) e a "Representação do P. Antônio Machado, Missionário dos
Gamelas, ao Governador do Pará, de como deveria ser uma Aldeia para
a civilização e redução das gentilidades a um bom termo de Christan-
dade" (170).
Jerônimo Moniz (S. Francisco da Bahia, 1723 - Pésaro, Itália, de-
pois 1780) foi um jesuíta dotado de grande talento, tendo feito os estu-
dos e ensinado humanidades e filosofia. Fez a profissão de fé na Bahia em
1756 e com a perseguição saiu da Bahia para Lisboa e dali para a Itá-
lia (171J. Além de professor foi biógrafo escrevendo a vida de Alexandre
de Gusmão <172> e a vida do padre Estanislau de Campos <173 >.
Finalmente entre esses autores menores deve-se mencionar Manuel
Beça (Arifana, Porto, 1733 - Pésaro, Itália, 1797) que entrou na Com-
panhia em 1746, estudou teologia no Colégio do Rio de Janeiro, quando
foi exilado para o reino e dai para a Itália. Ele foi mais geógrafo que his-
toriador e escreveu "Cidades, terras e povoações do Brasil", descritas pelo
Padre Antônio Fonseca.
Antônio Fonseca (Santo Amaro, Bahia, 1730 - Itália, 1784) foi um
corógrafo cuja obra com o mesmo titulo foi contrastada por Manuel Beça.
Não se sabe o paradeiro do manuscrito citado por P. Pastells 0 74 >. e dele
também o "Mapa de todo o Brasil" (175).

8 . A Crônica Jesuítica Geral Maior


8. 1. Simão de Vasconcelos
A obra de Simão de Vasconcelos tem uma significação muito especial
na historiografia brasileira, pois com ela aparecem algumas das principais
características do escrito brasileiro: "biografização" da história, espírito co-
memorativo, ufanismo e exaltação das nossas virtudes. Ela não contém

(168) Serafim Leite, HCJB, VIII, 331-333.


(169) Melo Morais, Corographla Hlstorlca, IV, 346-361; excertos em S. Leite, HCJB, III,
171-173; republicado em Documentos dos Arquivos Portugueses que Importam ao Brasil, Seção de
IntercAmblo Luso-Brasileiro n. 0 7, Lisboa, 945, 12 pp.
(170) Cit. com várias cartas ln S. Leite, HCJB, VIII, 331-333.
(171) Serafim Leite, HCJB, VII, 379.
(172) Compendium Vitae P. Alexandrl Gusmanl publicado sem nome de autor na Introdução
(p. 1-36) do Compendium Vitae P. Alexandrl Gusmani.
(173) "Vitae Patrls Stanlslal de Campos e Societatls Jesus ln Braslllensl Provlnci Sacerdos•,
RIHGB, t. 52, parte 11, 1889, 5-104, acompanhado de observações sobre o manuscrito, tradução e
ortografia por T. Alencar Ararlpe. A publicação é bll{ngüe em português e latim.
(174) Historia de la Companhia de Jesus en la Provincla dei Paraguay, Madrl, 4 vols., 1912-23,
,. 32.
(175) Serafim Leite, HCJB, VIII, 91 e 1, 537.

283
senão em parte a história do seu próprio século e por isso mesmo não
reúne e sintetiza as crônicas menores já referidas, embora seja vasta a
informação sobre o século XVI, baseada nas fontes da época. Pelas qua-
lidades e defeitos de sua obra, pelo espírito post mortem, que só sua His-
tória, denominada Crônica, e a de Frei Vicente do Salvador, esta mais que
nenhuma, possuem, merece Simão de Vasconcelos destaque especial.
Nascido no Porto em 1597, passou ainda jovem ao Brasil, entrando
para a Companhia em 1615 e fazendo a profissão solene em 1636. Foi
Vice-Reitor do Colégio da Bahia, Reitor do Colégio do Rio de Janeiro e
finalmente Provincial em 1655. "Teve considerável influência no Brasil
do seu tempo, dentro e fora da Companhia, confessor de Vice-Reis e
pacificador dos Garcias e Camargos como visitador do Colégio de São
Paulo" <176 l. Esteve em Portugal em 1641 e em Portugal e Roma em 1662,
falecendo em 1671.
Seu tríptico se desenvolve sobre três obras biográficas, cujas vidas
se interpõem e sucedem, embora o primeiro painel seja o último do qua-
dro. Talvez por influência de sua época, e das inter-relações ainda tão co-
muns entre a crônica do presente e a história do passado, sua obra começa
com a Vida do P. João d'Almeida (1572-1653), discípulo de Anchieta,
prossegue com a Chronica da Companhia de Jesus, que tem como perso-
nagem central Manuel da Nóbrega (1549-1570), e conclui com a Vida do
Venerável Padre Joseph de Anchieta (1534-1597), discípulo predileto do
fundador da Ordem de Jesus no Brasil.
A visão deste quadro pode ser mais clara se a apreciação iniciar-se
pela Chronica, que é seu segundo livro.
A Chronica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil: E do que
obrarão seus filhos nesta parte do Novo Mundo <1 77 ) propõe escrever "a
heróica Missão que empreenderão os filhos da Companhia" e a "contar
os feitos ilustres destes Religiosos Varões, as regiões que descobrirão, as
campanhas que talarão, as empresas que acometherão, as victorias que
alcançarão, as nações que sujeitarão e a reputação que adquirirão as armas
espirituais portuguesas do Esquadrão, ou Companhia de Jesus" <t 78>.
Nos livros I e II, "Das Notícias Antecedentes, Curiosas e Necessárias
das cousas do Brasil", noticia o descobrimento do Novo Mundo e do
Brasil, descreve-o e à sua gente, e trata da bondade da terra, defende-a
das calúnias que os antigos lhe impunham de "zona tórrida e inhabitável"
e, por fim, mostra a bondade do clima e discute se nele plantou Deus o
Paraíso Terrestre. Não duvida o Autor das excelências da natureza, e em
sua defensa e abono muito havia de dizer, especialmente contra a conspira-
ção que sábios da Europa e da Ásia fizeram para desacreditar e aniquilar
esta quarte parte do Mundo. Do parágrafo 48 ao 58 defende o autor sua

(176) Bibliografia in Serafim Leite, HC/B, IX, 173-183.


(177) Bibliografia ln Serafim Leite, HCJB, IX, 175-176.
( 178) Chronica, Lisboa, 1668, 1.

284
tese "contra os que pretendiam tirar-nos o Céu" e enumera alguns antigos
que sustentavam que "Deus nesta parte debaixo da linha equinocial criara
o Paraíso terrestre por ser esta a parte do mundo mais temperada, delei-
tosa e amena para a vida humana".
Há aqui dois aspectos diferentes: primeiro a fragilidade da argumen-
tação contra os antigos que não conheceram o Mundo Novo e que trataram,
como Aristóteles, com o qual inicia a discussão, da zona tórrida em geral.
Aí pouco se pode exigir do Autor, que usava métodos de sua época. O
outro é a tese geral do "Paraíso na ,-\mérica", que merece maior atenção.
Primeiro, porque ela fortifica e inspira todo o ufanismo, que vimos no
século XVI e segue pelos séculos adiante até culminar no Por que me ufano
do meu país de Afonso Celso ( 1.ª ed. 1901). Para desenvolvê-la nestas
mesmas "Notícias", Simão de Vasconcelos desnuda "as qualidades da
terra, o temperamento do clima, a frescura dos arvoredos, a variedade das
plantas, a abundância de frutos, as hervas medicinais, a diversidade dos
viventes, assim nas águas, como na terra" (179 ). A tese era aqui apenas es-
boçada, porque se sabe hoje que os parágrafos 105 a 111 desenvolveram-
se com a pergunta - ."se o Paraíso não seria na América", e respectiva
explanação, mas foram suprimidos por ordem do Padre Geral 0 80 l. O seu
americanismo ou anti-europeísmo é, talvez, a primeira manifestação desta
espécie na historiografia brasileira.
A Crônica começa realmente depois desta larga notícia, "uma espé-
cie de introdução de todos os tomos da mesma Chronica, que se hão de
seguir e hão de ser de força muitos". Não foram muitos, como esperava o
Autor, a menos que as duas vidas sejam consideradas, e assim o devem
ser, como partes de sua obra sobre a Companhia. A Crônica biografa a
história da Companhia, pois logo após falar da escolha de Manuel da Nó-
brega para a empresa do Brasil, escreve: "E como este he o Varão, sujeito
que ha de ser de toda esta Primeira Parte de nossa História, com os feitos
raros, e obras heroicas, que por si, e seus companheiros, obrou no Estado
do Brasil, é força, que já desde agora, antes que parta, digamos o que é,
para que dahi vamos vendo o que será depois na empreza" <181 l. Daí em
diante as missões, fundações e obras da companhia são narradas, acompa-
nhando a atividade do apóstolo fundador. Descreve as capitanias, trata das
questões principais do governo, quando Nóbrega chega para iniciar, as-
sistir, visitar ou fundar as missões. A fundação do Rio, as lutas contra os
franceses, a morte de D. João III, o crescimento da colonização, a funda-
ção dos colégios constituem tema de largas dissertações, onde o discurso
e as falas de Nóbrega, Anchieta ou outros jesuítas e de Governadores ou
capitães, como Mem de Sá ou seu sobrinho Estácio, participam do en-
trecho à moda antiga dos historiadores clássicos, que imita.

(179) Chronlca, 178-179.


(180) Comunicação à Academia Brasileira de Letras de Serafim Leite, in Jornal do Com4rcio
(Rio), 23 de maio de 1948, e HCJB, IX, 178. Revela Serafim Leite no comunicado que um erudito
norte-americano fotografava os parágrafos para Imprimi-los na América.
(181) Chro1rica, 8. Adverte qt•e sua fonte principal são os Apontamentos deixados por
Anchieta.

285
A Crônica, que se iniciara com a eleição de Nóbrega, termina com
sua morte em 1570, e suas obras, virtudes, casos e profecias. "E nós nada
trataremos por hora, pare a pena em escrever, onde para Nóbrega em
obrar: às suas empresas especialmente se dedica este Tomo I por primei-
ro Apóstolo do Brasil; como outro se dedicou a Xavier, por primeiro Após-
tolo da lndia; outro a lgnacio Patriarcha nosso, por primeiro Geral da
Companhia. Andarão os tempos, irão saindo Tomos vários, devidos a Va-
roens da mesma empreza, que se bem não farão nela os primeiros não
farão os segundos nas virtudes" /182).
A Crônica é, assim, a história da Companhia de 1545 a 1570, anos
de vida e obra de Nóbrega, descontadas as primeiras páginas de louvor ao
paraíso do Brasil. Bem sabemos que Capistrano de Abreu e Serafim Leite
não viram nesta Crônica uma história da Companhia, personalizada em
Nóbrega. O primeiro escreveu que "esse jesuíta benemérito não tem siâo
condignamente apreciado; com grande desprezo de perspectiva histórica
Simão de Vasconcelos esfumou-o na irradiação de Anchieta, seu discípulo
querido: tácita ou explicitamente outros o têm imitado" (183). Serafim Leite
também acha que "a preocupação biográfica destes dois últimos livros
(Vida de José de Anchieta e de João de Almeida), com o inevitável enca-
recimento peculiar a esse gênero literário, atenua-se no primeiro, com a
feição de Crônica" (1 8 4). Pode ser que Nóbrega esteja às vezes ofuscado no
livro pelo prestígio de Anchieta, como pensa Capistrano, e é certo que a
Crônica é a parte menos biográfica de sua contribuição historiográfica.
Mas nem por isso se desfaz nossa observação: Nóbrega é o_ personagem
natural da Crônica, como João de Almeida e José de Anchieta são os
heróis dos seus estudos, anteriores e posteriores.
Não foi fácil a publicação do livro, independentemente do problema
do Paraíso no Brasil, pois tinha Simão de Vasconcelos seus desafetos na
própria Ordem <1 85), e mesmo Jacinto de Magistris, que levantara a pri-
meira questão, também se opôs ao estilo 0 86 >. ·A decisão final foi dada pelo
cronista-mor Francisco Brandão (1601-1680) : "Posso certificar a V.M.
que é hüa bem trabalhada escritura" <187 >. A Chronica foi então publicada,
com a supressão apenas dos parágrafos relativos ao Paraíso na Améri-

(182) Chronlca, 479.


(183) Nota a História Geral do Brasil, de Francisco Adolfo de Vamhagen, 3.• ed., 1, 431,
nota VI.
(184) "O cronista Simão de Vasconcelos", prefácio à reedição da Vida do Venerável Padre
José de Anchieta por Simão de Vasconcelos, Instituto Nacional do Livro, 1943, IV.
(185) Os censores Jesuítas brasileiros aplaudiram a obra, como se vê nos preliminares da
Crônica. Mas o visitador geral Jacinto de Magistris, que se opusera à tese do Paraíso e obrlgo1ra a
suspensão, tentou também Impedir a publicação baseado em que Antônio Vieira, Baltazar Teles
(1595-1675), autor da Chronica da Companhia de fesus na Província de Portugal (Lisboa, 1645), e
Manuel Luiz (1608-1682), autor de Theodosius Lusltanus slve Principis per/ectl vera e//igles (Eborae,
1680, trad. e publicada por A. Franco - Imagem da virtude em o Noviciado da Companhia de
Jesus na Corte de Lisboa, Coimbra, 1717), achavam o estilo rasteiro. Vide Serafim Leite, História,
IX, 175, e Francisco Rodrigues, História da Companhia de fesus na Assistincia de Portugal, Porto,
1944, t. Ili, vol. 1, 158, nota 2.
(186) Jacinto de Magistris fora deposto de visitador em 1663 pelo Provincial José da Costa,
mas Simão de Vasconcelos não participou da deposição. Vide Serafim Leite, H istória, VIII, 338,
letra S; IX, 16, letra B.
(187) Lê-se a opinião nos preliminares da Crônica, F. Brandão é autor da 5.• e 6.• parte da
Monarchia Lusitana, Lisboa, 1650-1672.

286
ca (188) e seu estilo mereceu as mais desencontradas opiniões (189) , Não se
lhe pode negar o tom retórico, que marca uma espécie de estilo oratório
e comemorativo ambos ainda hoje cultivados por alguns historiadores bra-
sileiros.
Desde Cândido Mendes de Almeida até Charles Boxer esta obra tem
sido julgada como uma fonte preciosa, apesar de não ser contemporânea,
e como uma imagem natural,. apesar do estilo artificioso do Brasil qui-
nhentista. Cândido Mendes considerou seu autor "o mais noticioso, o mais
ilustrado, e mesmo o mais circunspecto· desses cronistas':' !19.0l. Varnhagen
louvou-o "pelo vigor em alguma~· descrições do Brasil" <191 l. Capistrano
de Abreu escreveu que estava "relendo ó Simão de Vasconcelos para co-
nhecer as fontes em que bebeu. Que larga guela" 0 92 >. A opinião dos je-
suítas Francisco Rodrigues e Serafim Leite já foi referida e Charles Boxer
escreve que Simão de Vasconcelos "is admittedly an unreliable authority, al-
though not such an utterly untrustworthy one as his modem detractors
would have us believe" (193) . - - -

Para completar a visão do século XVI e continuar as biografias dos


heróis jesuítas, Simão de Vasconcelos escreveu a Vida do Venerável Padre
Joseph de Anchieta da Companhia de Jesu, Taumaturgo do Novo Mundo,
na Província do Brasil !19 4 ), que se inicia com o nascimento do Apóstolo
e se desenvolve em torno das ações e das obras de Anchieta. "Celebrem"
os que quiserem, "como os Barros (195), os Maffeiis <1 96 ), as mais histórias
cronológicas de nossos tempos, suas fortunas mais novas", "que eu pre-
tendo somente tratar da primeira e principal de todas, único fruto que
enriqueceu o céu e o mundo e é José de Anchieta" 0 97 ). Repete muitas
vezes os temas já tratados na Crônica ou porque a cena é a mesma na vida
de Anchieta e Nóbrega, como a descrição da terra e gente do Brasil, ou
porque ambos participaram de alguns mesmos episódios, tais como os dos
franceses no Rio de Janeiro. A obra serve para conhecer não só a vida
de Anchieta, tão estudada modernamente (t9Sl, como para conhecer as
missões e obras dos jesuítas no Brasil e completar o quadro de suas ati-
vidades narradas até 1570 na Crônica e continuadas aqui até a morte do
Apóstolo em 1597.

(188) I.• ed., Lisboa, 1658: 2.• ed. preparada por Inocêncio Francisco da Silva, Lisboa ,
1865, 2 vols.; l .• ed . com uma Introdução do dr. Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro, Rio de
Janeiro, 1864,1867, 2 vols., defeituosa e Incompleta segundo S. Leite, HC/B, IX, 176.
(189) "Descontados os exageros do e;tilo", Caplstrano de Abreu, História Geral elo Brasil
de Francisco Adolfo de Vamhagen, vo!. I, p . 212, nota 24; "tesouro da rica linguagem portuguesa".
• t sóbrio de ornatos, animado sem ênfase e esmerado nas descrições", escreve Francisco Rodrigues,
HC/B, ob. clt., t. Ili, vai. 1, p. 158; Serafim Leite participa da opinião dos antigos censores
brasileiros, Introdução à Viela elo Venerável Padre fosé ele Anchieta, Rio, 1943, XV.
(190) "Notas para a História PátrlR" , (4. 0 Artigo), RIHGB, t. 42, 1879, p. 140.
(191) História Geral elo Brasil, 3.• ed., t. l, 125-126.
(192) Correspondência, vo!. 11, 221. Declara mais adiante que estava lucrando, Idem, 422.
(193) Salvador de Sá, ob. cit., 194 e 266.
(194) I.• ed. Lisboa, 1672; 2.• ed. Instituto Nacional do Livro, prefácio de Serafim Leite,
Rio, 1943, sem os preliminares, "ü Poema e ~- Recopilaçam" da I.• ed .
(195) João de Barros (1496-1570), historiador clássico português .
{196) J. P . Maffeu (1533-1603) autor de Historiarum lnclicarum Libri XVI . Roma, 1588;
Colônia, 1593.
(197) Vide 2.• ed., !O.
(198) Vide Serafim Leite, HC/B. VIII , 16-42.

287
Para formar o tríptico falta somente a Vida do P. Joam d'Almeida da
Companhia de Jesu na Província do Brasil <199 ), seu primeiro escrito e
final do quadro, dedicado a Salvador Correia de Sá e Benevides, governa-
dor do Rio de Janeiro (1637-1643), general da Armada, restaurador de
Angola (1648).
"O Sujeito principal de nossa história" é João de Almeida, cuja
vida descreve desde o nascimento em Londres (1572) até seu falecimento
em 1653 no Colégio do Rio de Janeiro. João de Almeida foi considerado
uma figura extraordinária, entre os que missionaram no Brasil seiscentista
"que tirou o P. Anchieta o não ser o único". Compôs a obra no meio
das ocupações de dois governos sucessivos de Reitor da Bahia e Provincial
do Brasil e baseou-se em processos autênticos existentes no Rio e em São
Paulo. Esta obra sofre os mesmos defeitos das demais, no tom panegírico e
no estilo retórico, comuns à sua época. Acompanha o Padre Almeida pelos
seus caminhos no Brasil, relata as Missões aos Patos e Carijós, a que já
nos referimos, e descreve várias partes do Brasil, depois usadas nas demais
obras, e o faz para se divertir e "divertir também ao Leitor do Enfado,
que teria continuado sempre o mesmo fio d'História". No prólogo declara
escrever em 1655 e neste mesmo ano, em 15, 17 e 18 de novembro, os
censores brasileiros aprovaram o trabalho; a 26 deste mês e ano foram
remetidas por Simão de Vasconcelos as aprovações e o pedido para que
se imprimisse, mas só a 17 de maio de 1657 se deu a licença de impressão.
Com esta vida Simão de Vasconcelos iniciara a obra de fixação, para
a História, dos serviços e atividades jesuiticas no Brasil. Ele servia "como
Preâmbulo à Chronica que cedo se estampara desta Província" e que ele
completaria de 1549 a 1653, pouco mais de um século; esperava que dos
outros 64 citados no "Breve Catálogo dos Varoens Insignes da Compa-
nhia de Jesu que floresceram em virtude na Província do Brasil", que
segue seu Prólogo, "saiam à luz semelhantes histórias". Seu desejo e voto
foram felizmente cumpridos, não à sua maneira, mas por métodos críticos
mais seguros e fiéis, pelo Padre Serafim Leite, na sua História da Com-
panhia de Jesus no Brasil (1549-1760) (200)
8. 2. João Felipe Bettendorff
A História da Companhia do Estado do Brasil, do século XVI aos
meados do XVII, encontra nas relações quinhentistas e na obra de Simão
de Vasconcelos os fundamentos de sua historiografia. Mas a história da
Companhia no Estado do Maranhão não tem uma historiografia tão rica
apesar de não ser menos produtiva. Sua história, que se iniciou no sangue
do sacrifício de Francisco Pinto, cujo martírio contou para a posteridade
Luís Figueira, foi escrita na Relação, que é o primeiro fruto da historio-
grafia maranhense. As Histórias que se seguem, profanas e leigas e já

(199) !.• ed., Lisboa, 1658. Já tratamos do Padre João de Almeida cronista de missões. Simão
de Vasconcelos escreveu ainda a Continuação das maravilhas de Deus é servido obrar no Estado
do Brasil, por Intercessão do mui religioso e penitente servo seu o venerdvel P. /oão de Almeida
da Companhia de /esus, Lisboa, 1662.
(200) Lisboa, Rio, 1938-1950, 10 volumes.

288
enumeradas, não tratam, senão de passagem, da ação missionária. As crô-
nicas jesuíticas não existem, como as do Estado do Brasil, para funda-
mentarem os futuros construtores da historiografia: as Relações de Luís
Figueira, Cristóbal de Acufía, Manuel Rodrigues, as Relações e Cartas
de Vieira, as Histórias de d' Abbeville e d'Evreux só contavam os inícios das
missões no Estado. João Felipe Bettendorff é o continuador desses primei-
ros ensaios e sua obra, mais que nenhuma, representa a crônica e a histo-
riografia jesuítica do Maranhão. Ele escreve os primórdios históricos e
missionários baseado em Laet, d' Abbeville e Figueira.
Bettendorff nasceu a 25 de agosto de 1625, no Luxemburgo, e estava
estudando teologia no 4. 0 ano da Universidade de Douai, com esperanças
de ir brevemente para a missão do Japão ou China, quando o Arcebispo
de Cambrai ordenou-lhe, em 1659, atendendo a um pedido de missioná-
rios feito à Província galo-Belga pelo Padre Vieira, que seguisse para a
Missão do Maranhão. Chegou a Lisboa nos últimos dias de dezembro de
1659 e dai partiu a 24 de novembro de 1660, alcançando São Luis a 20
de janeiro de 1661. Vieira designou-o para servir na Missão do Grão-
Pará, onde viajou multo e muito conheceu os vários grupos indígenas que
devia converter, especialmente na região do Tapajós. Foi Vice-Superior no
Pará, mais tarde Superior no Colégio do Maranhão, e Superior da Missão
( 1669-1674). Em conseqüência dos levantes do povo contra os Missioná-
rios, em 1684, foi expulso, com os demais jesuítas, retirando-se a 26 de
março de 1684, apesar de Beckman, o chefe do movimento, o haver con-
vidado a permanecer no Maranhão, ingressando na ordem franciscana. Che-
gou à Bahia a 20 de junho, conferenciou com as principais figuras do
governo e do clero e seguiu para o Reino a 8 de julho. A 23 de outubro
já se encontrava no Colégio de Santo Antão. No Reino, Bettendorff pleiteou
e conseguiu a readmissão dos jesuítas no Maranhão, o que se obteve com
o novo governador Gomes Freire de Andrade <20t). Voltou ao Maranhão
a 17 de maio de 1688, depois de despachar, como procurador, todos os
papéis da Missão. A 3 de agosto chegava a São Luís, nomeado Comissário
do Santo Ofício. Retoma então o superiorato da Missão, o reitorado do
Colégio, reinicia as visitas às Missões do Grão-Pará e às residências do
Maranhão, instituindo novas, no Rio Negro e no Matari. Em 1693 é subs-
tituído pelo novo Superior, Bento de Oliveira. Continua a pregar e a mis-
sionar e em 1697 se declara velho de 70 anos, com 54 de graduado em
Teologia na Alemanha. Termina seu livro a 25 de maio de 1698, fale-
cendo a 5 de agosto <2 02).
(201) J. H. da Cunha Rlvara, no seu Catálogo dos Manuscritos da Biblioteca Pública Ebo-
rense, Lisboa, 3 veis., 1850-1871, I, 43, cita a "Informação que deu a S. M. o P. J. Ph. Betendorf
sobre o expulsarem e aos mais padres do Maranhão em fevereiro de 1684". Registra também a
"Carta do P. J. Ph. Betendorf, Superior das Missões do Maranhão, ao Padre João Paulo de Oliva,
Geral da Companhia de Jesus• (s/d. O primeiro foi reproduzido por Melo Morais Corographla
Historica, ob. cit., IV, 199. Existe também carta sua de abril de 1688 dirigida ao Padre Leopoldo
Freire, jesuíta confessor da Rainha, para que soubesse da pobreza da Missão do Maranhão, tendo
mais de 50 padres. Virgínia Rau e Maria Fernanda Gomes da Silva, Os Manuscritos do Arquivo
da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil, Coimbra, 1956, 1 vol., n. 0 445, p. 285.
(202) Resumo biográfico extraído da própria • Chronlca da Companhia de / esus no Estado
do Maranhão". RIHGB, t. 72, parte I, 1909, 67 pp. Vide também Serafim Leite, HCJB, IV, 318 e
VII, 98. Velho de mais de 70 anos seria o certo, porque em 1697 já possufa 71; faltavam·lhe. quando
faleceu em 1698, 20 dias para completar 73 anos.

289
João Felipe Bettendorff era muito versado em filosofia, teologia e lín-
guas cultas e selvagens. Tornou-se, como escreveu Serafim Leite, a perso-
nalidade mais importante da Missão no século XVII, logo abaixo de An-
tônio Vieira, com quem privou e admirou, e de Luís Figueira, o primeiro
missionário. Sua Crônica descreve todo o Estado do Maranhão, criado a
13 de junho de 1621, e compreendendo várias capitanias, hoje transfor-
madas nos atuais Estados do Amazonas, Pará, Maranhão, Ceará e Piauí
(mais de 3 milhões e meio de quilômetros quadrados). Descreve sua ori-
gem e fundação, relata as missões desde a primeira em 1607, até 1698
quando falece, a viagem de Pedro Teixeira e mais tarde a de Samuel
Fritz, a invasão holandesa, os governos temporal e espiritual, as grandes
questões da liberdade e escravidão dos índios, os tumultos do Estado, como
o de Manuel Beckman, em 1684. Não renega a tradição ufanista dos pri-
meiros cronistas, louvando as excelências da terra e dos ares e profeti-
zando que a cidade do Pará (Belém) "possa ser um dos mais ricos
impérios do mundo".
Bettendorff escreve sobre a época anterior à sua chegada, em 1661, e
daí em diante registra tudo que ocorreu, intercalando, às vezes sem ordem
cronológica, os episódios a que assistia com os que sabia por notícia direta
de seus companheiros ou subordinados nas várias entradas e missões aos
índios do sertão, ou, ainda, os acontecimentos portugueses e os maranhen-
ses, dos quais se afastara quando passou em Portugal de 1684 a 1688.
Episódios graves e miúdos, casos triviais e questões problemáticas se con-
fundem. Ele foi constantemente uma das principais fontes sobre a rebelião
do Bequimão, como o reconheceu Varnhagen <203 >.
E certo que o autor escreve na declaração ao leitor que "eu não me
ingeri a escrevê-la por minha própria eleição, mas sujeitei-me a este tra-
balho visto o Padre Bento de Oliveira, superior da Missão daquele tempo
e seu sucessor, o Padre José Ferreira, mostrarem gosto misto, por não
haver já Missionários antigos que tenham as notícias necessárias e ser eu
o que o possa fazer". Por aí se vê que Bettendorff só se entregou inteira-
mente ao trabalho quando foi substituído como Superior por Bento de
Oliveira em 1693, mesmo que por gosto viesse reunindo as "notícias ne-
cessárias". Deve, portanto, ter escrito a obra de 1693 a 1698, pois nestes
anos o Autor pouco aparece como missionário, o que antes era comum.
Adverte ainda que juntou o governo espiritual com o temporal, e
assim sua Crônica não é só a história da Companhia, mas também a do
Maranhão. Finalmente sua modéstia, que parece verdadeira, na dedica-
tória, onde fala de sua "obrazinha" e na terceira advertência, quando diz
"que se por alguma circunstância vos parecer que a escrevi com menos
acerto, não me condeneis logo, porque pode ser que erreis vós, e que
acerte eu, porque além de me governar eu assim pelo que vi com meus
olhos, e pelo que soube pelas diligentes informações tomadas dos mais
antigos e mais acertados, sempre sigo o que acho mais provável, quando

(203) Varnhagen, História Geral, III, 312.

290
não posso descobrir a verdade manifesta, o que acontece muitas vezes pe-
las fraquezas das memórias humanas, como vós mesmos conheceis; sigo
as informações dos mais antigos e atendo em o que eles viram com os seus
olhos, e ouviram todos os que bem o sabiam ou obraram aquilo de que se
trata".
Também declara que os missionários portugueses e estrangeiros "an-
tes quiseram fazer cousas próprias, dignas de se escreverem por outros,
que escreverem façanhas alheias". Em 1693, aos 68 anos, preferiu Betten-
dorff escrever, a praticar façanhas e o resultado é a Crônica, de cujo origi-
nal se desconhece o paradeiro. A única edição feita pelo Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro <204 > foi preparada segundo cópia existente na Tor-
re do Tombo obtida por Gonçalves Dias, quando, comissionado pelo
governo imperial, fazia em 1854 pesquisas nos arquivos portugueses, con-
forme declara o prefaciador anônimo da edição da Crônica. Para Capis-
trano de Abreu a cópia fora feita sob a direção de João Francisco Lisboa,
a julgar por certas emendas de letra semelhantes à dele e absolutamente
diversa da de Gonçalves Dias <2 osi.
O manuscrito ressente-se de inúmeras incorreções e lacunas, diz o
prefaciador anônimo, enquanto para Capistrano tratava-se de "exemplar
de boa letra, mas que não faz sentido", a tal ponto que Melo Morais,
que nunca brilhou pela correção na edição dos textos históricos, chegou a
dizer que "começara a impressão, mas arrepiara caminho por não ser
inteligível o texto" . "Imagine você o estado deste na cópia do Instituto
Histórico quando Melo Morais, o menos exigente dos homens a respeito
de tais cousas, chegou a cair em si? Se V. tiver coragem", escreve Capis-
trano de Abreu a Guilherme Studart, "procure na Corograf ia, uma nota
muito escondida em que ele diz pouco mais ou menos isto" 12061 • A edição
sofre as conseqüências do texto viciado ou mal copiado, mas ainda assim
serve ao conhecimento histórico <2 011 .
Vamhagen e João Francisco Lisboa aproveitaram-se da Crônica para
historiar os sucessos ocorridos no Maranhão no fim do século XVII. Ca-
pistrano, que tanto desprezou a cópia e a edição, considerou a Crônica
como "um dos depoimentos capitais do século XVII", dizendo que com
ela e a obra de Antonil modifica-se absolutamente a fisionomia do século
XVII, muito mais desconhecido que o anterior 12 011i. A apreciação mais

(204) T . 72, parte 1 (1909), 696 pp. e uma "Sumária Noticia" não assinada de Lili páginas.
Extratos e trechos segundo a cópia da Biblioteca Nacional de Lisboa in Rev. Jnst. do Ceará, t. XX.
37-52; t. XXIV, 186-214.
(205) Correspondência de Capistrano de Abreu, preparada por José Honório Rodrigues, Ins-
tituto Nacional do Livro, Rio, 1954, 1, 155, 2.• ed. Rio, 1977, 155. Vide também sobre as duas
comissões de pesquisa histórica na Europa, tosé Honório Rodrigues, A Pesquisa Histórica no
Brasil. lnst. Nac. do Livro, Rio, 1952: reedição, São Pauto, 1969.
(206) Correspondência de Capistrano de Abreu, ob. cit., 1, 155 e li. 188, 259; 2.• ed., Rio
de faneiro , 1977, 155. Sobre as edições históricas de Melo Morai,. võde José Honório Rodrigues
"Melo Morais" Provlncia de São Pedro, v. 18, 19;;, 63 , 75; reproduzida em H istória e Historiadores,
São Paulo , 1965 .
(207) Pelos extratos publicados na RI,.' vê -se que o texto de Lisboa é superior ao da Torre
do Tombo . Os Catálogos publicados d: Biblioteca da Ajuda, da Biblioteca de ~vera. do Arquivo
Cadaval e da Biblioteca Municipal ao Porto não acusam outra cópia . O manuscrito de Lisboa
foi também usado por Serafim Lslle, HC/B, IV, 318.
(208) Correspondência, ub. cil .. 1, 112: i dem 2.• ed .. Rio, 1977 .

291
moderna é a de Serafim Leite: "A substância dos fatos é certa, isto é,
proba, como ele os viu ou compreendeu. As datas, porém, nem sempre
são certas, até de fatos em que interveio pessoalmente. Explica-se por ele
redigir a Crônica, dezenas de anos mais tarde e lhe falhar aqui ou ali, a
memória. Corrigem-no outros documentos autênticos, às vezes cartas dele
próprio, escritas à raiz dos fatos. A outra advertência é que se nota mais
inclinação sua por algumas personalidades do que por outras, com o re-
flexo de dar maior ou menor atenção às ações que praticaram. Por outros
documentos da época, restabelecemos o equilíbrio" <209>.
Bettendorff escreveu também o Compêndio da Doutrina Christã na
Língua Portuguesa e Brazílica <210 >, com que quis fixar a uniformidade do
ensino do catecismo aos indígenas, e várias cartas que ser;•em como do-
cumentos da história e da sua biografia.

8. 3 . Manuel da Fonseca
Manuel da Fonseca (Tordelo, Braga, Portugal, 1703 - Pésaro, Itá-
lia, 1772) entrou para a Companhia aos 21 anos em 1724, em 1732 estu-
dava filosofia na Bahia, e nesta começou seus estudos de teologia, comple-
tando no Colégio do Rio de Janeiro. Diz Serafim Leite, a quem seguimos,
que sua atividade sacerdotal se exerceu no Sul, entre Espírito Santo e
São Paulo. A profissão solene se fez em São Paulo em 1741. Desde então
foi professor de teologia moral, e acredita Serafim Leite que nesta ocasião
escreveu a Vida do P. Belchior de Pontes. Esteve no Recife e quando esta-
va no Espírito Santo o surpreendeu a expulsão, vindo para o Rio e daí
para Lisboa e Roma (2 11).
Afonso d'E. Taunay, no prefácio que escreveu para a reedição da obra
sobre a Vida de P. Belchior de Pontes, reuniu todos os dados recolhidos das
grandes bibliografias como Diogo Barbosa Machado 12 12 >, os irmãos
Backer (213) e Carlos Sommervogel <2 14).
Sua obra principal, a Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes, da
Companhia de Jesus da Província do Brasil, composta pelo Padre Manoel
da Fonseca, da mesma Companhia, e Província (2 15), foi mandada reco-
lher e destruída por ordem da Mesa Censora (2 16) e se tornou, tal como a
Cultura e Opulência do Brasil de Antonil, uma das maiores raridades bi-
bliográficas brasileiras. Acredita Inocêncio que a causa da destruição da
obra se deve aos trechos políticos, creio mesmo que ao tratamento dado
à chamada Guerra dos Emboabas.

(209) HC/B, ob. cit., IV, 317-318.


(210) Descrição bibliográfica e comentário crítico ln Serafim Leite, HCJB, VIII, 99.
(211) Serafim Leite, HCJB, Vlll, 257.
(212) Biblioteca Lusitana, 1.• ed., Lisboa, 1741-1759, 4 vols., 2.• ed. 1930-1935, 4 vols.
4 vols.
(213) Augustin e Aloys de Baker Bibliotheque des Escrivains de la Compagnle de 1,sus, 3 vols.
2.• ed. Llege, 1869-76, 3 vols.
(214) Bibliotheque de la Compagnie de 1,sus, Bruxelas, 1890-1909, 9 vols.
(215) Lisboa, 1752, 2.• ed. São Paulo S/A. Existe a reprodução dos trechos relativos aos
emboabas no RIHGB, 1841, t. Ili, 261-281, e a tradução Itallana de 1880, referida p0r todas as
bibliografias. S. Leite, HCJB, VII, 257.
(216) Edital de 10 de junho de 1771 clt. por Inoctnclo F. da SIiva, Dicciondrlo Bibiiogrd-
phlco Portuguez, V, 434.

292
Num estilo rebuscado Manuel da Fonseca declarou na dedicatóri&.
querer dar a conhecer as excelentes virtudes do Padre Belchior de Pontes, e
no prólogo escreveu que o Brasil estava cheio de religiosos famosos em vir-
tude, e falto de história. Afirmou que indo a São Paulo logo achou quem
com grande louvor o elogiasse e saindo por ordem superior de São Paulo e
voltando quando os moradores pediram ao provincial que ele lhes ditasse
um curso de artes. Como ouviu de novo grandes elogios ao padre sentiu
impulso de averiguar e resolveu escrever aos párocos das freguesias cir-
cunvizinhas e algumas pessoas fidedignas "para que me inquirissem com
vagar e verdade, tudo o que este servo de Deus tinha obrado" e em
pouco tempo achou-se com bastantes notícias, mas apesar disso não se
movia a escrever "atendendo a minha insuficiência e inculto estilo", até
que alguns religiosos o obrigaram a tom.ar este trabalho. Para divertir o
enfado dos leitores incluiu notícias da América portuguesa, "pois o desejo
de saber novidades tirará o tédio, que causam a alguns as coisas espirituais
e a outros o mau estilo". Escreveu ainda que "nesta História se nomeiam
muitas vezes sujeitos dos quais se referem faltas, ou costumes menos ajus-
tados". ·
O livro é uma biografia, mas contém numerosa informação sobre
São Paulo e Minas em geral, os jesuítas em particular, e sobretudo é
fonte primordial sobre a luta dos emboabas, matéria de que trataremos,
com as outras rebeliões coloniais, em capítulo especial.
O livro foi permitido, recebendo todas as licenças, mas como o de
Antonil, outro jesuíta, foi recolhido e destruido, restando, ao que parece,
meia dúzia de exemplares. Consultando-se os documentos do Conselho
Ultramarino, talvez se encontre a ordem de proibição e seus motivos, tal
como Andrée Mansuy encontrou sobre a proibição e destruição da Cultura
e Opulência do Brasil de Antonil.

8. 4. José de Morais
José de Morais (Lisboa, 1708 - Lisboa, ? ) entrou para a Com-
panhia na cidade natal em 1727 e no ano seguinte embarcou para o Ma-
ranhão, onde se formou, fazendo a profissão solene em 1744. Foi prega-
dor, teólogo e cronista. Estava em Curuçá (Pará) quando se iniciou a
perseguição pombalina aos jesuítas. Reuniu documentação e durante três
anos escreveu a história da vice-província do Maranhão. Em 1759 partiu
deportado para o Reino já com o primeiro volume escrito, pois o segundo
não chegou a escrevê-lo <217 >. Em Portugal retomou seu nome de família,
José Xavier de Morais da Fonseca Pinto, não se sabendo a data de sua
morte, ocorrida depois dos 69 anos.
Escreveu Serafim Leite que seu livro destinava-se a comemorar a
elevação da Vice-Província a Província, que se teria efetuado se não
sobreviesse a perseguição. Diz ainda que ele se utilizou dos papéis desti-

(217) Serafim Leite, HCJB, IV, 322·325 e VII, 382-383.

293
nadas a outro padre nomeado cronista antes dele, que não se sabe quem
seja mas que Serafim Leite desconfia fosse João Daniel, o grande autor
do Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas. Acrescenta que se
utilizou dos papéis do Padre Bento da Fonseca. No "No Maranhão con-
quistado a Jesus Cristo. Cap. 6. 0 : Descobrem-se as terras do Cabo do
Norte e a verdadeira divisão dos domínios de Portugal e França na Co-
lônia do Ceará" <218 l, Bento da Fonseca escreveu: "Até aqui mandei para
o Maranhão ao Padre José de Morais para a composição de sua crôni-
ca" <21 9). O próprio José de Morais confessou dever as notícias de todos
os rios do Amazonas, "ao grande cuidado ·e indagação do nosso sempre
louvável Padre Bento da Fonseca, procurador geral na Corte da Vice-Pro-
víncia do Maranhão" (220J, quando .terminava a primeira parte e pensava
na segunda, "pela qual poderá correr com menos vagar e menor receio
o tosco da nosso pena e insulso do estilo".
Escreveu neste mesmo final que sua narração se fiou "nas notícias
que dele nos deram e deixaram pessoas religiosas de Companhia e do
Carmelo, assim modernas, que as notaram em seus diários, como antigos
em seus manuscritos", e citou especialmente Samuel Fritz, Mateus Scutero,
La Condamine, e Cristobal de Acufia.
Afirmou que todo seu intento foi indagar a verdade para dela beber
nas melhores fontes. Ele declara, também no prólogo, sua modéstia não
afetada pelo nome de historiador, e "não sabia nem ainda o genuíno no-
me de História, por mais que nela me aplicasse sem fruto". Diz que ao
tempo em que se achava a Vice-Província do Maranhão às vésperas de
ser Província "era preciso estar também prevenida a história para se
vir no conhecimento das fervorosas ações de seus tão zelosos operários,
que à custa de tantos suores e trabalhos, e até das próprias vidas funda-
ram-na e estabeleceram-na por espaço de muito mais de um século, visto
que não faltaram memórias e escritos que os nossos antigos nos deixaram
nos cartórios, não tendo servido até agora mais que de notas ao nosso
descuido, e esquecimento à nossa obrigação".
Relembra que a primeira nomeação de cronista foi a do padre Bento
da Fonseca e que a ele conta suceder-lhe. Por espaço de três anos pôde
alinhavar com trabalho "estes poucos e mal arrumados cadernos, que,
desde agora ofereço à tua censura, sem saber ainda o final desta portentosa
catástrofe, nem tão pouco aonde me conduzirá o meu destino". Seu traba-
lho foi penosíssimo pela circunstância de não ter amanuense que ajudasse à
grande decadência de sua vista; era incisivo ao escrever: "por ora só te
advirto, que no que toca à verdade, alma da história, não me afastei um
ponto das que julguei mais bem averiguadas notícias, que era o mais a que
se podia estender a minha limitada reflexão".
A "História da Companhia de Jesus da Província do Maranham e
·Pará" existia em códice da Biblioteca de :t::vora e sob o título de "Apon-

(218) Melo Morais, Corogruphiu f/istoric:a, cap. 23.


(219) Ver Serafim Leite, HC/8, VII1, 383 e 247.
(220) Ed. Cândido Mendes. 548.

294
tamentos para a Chronica da Missão da Companhia de Jesus no Estado
do Maranhão" e na Biblioteca Nacional de Lisboa ,221).
Foi traduzida uma cópia de Évora mandada fazer por D. Pedro II
durante a missão de pesquisa de Gonçalves Dias <222 > e dela se fez a edi-
ção preparada e prefaciada por Cândido Mendes de Almeida <22 3). Escre-
veu com razão Serafim Leite que não se pode considerar como primeira
edição o texto desfigurado que apareceu na Corographia Historica de Melo
Morais <224), ou nos "Apontamentos para a história dos jesuítas no Bra-
sil extrahidas das Chronicas da Companhia de Jesus" (225 >, extratos prepa-
rados dos Antônio Henrique Leal que só servem como resumo e não como
fonte de consulta (221; 1.
Varnhagen não apreciou a obra, ao escrever que era "bem escrita,
mas que pouco adianta a de Berredo, e não se distingue pelo critério his-
tórico". Capistrano de Abreu numa crítica à contribuição do Barão de
Studart sobre Francisco Pinto e Luís Figueira escreveu que "do debate
sae fundamente ferido, o cronista José de Morais, jesuíta cuja veracidade
está pedindo meças à mordacidade do beneditino Gaspar da Madre de
Deus, o beijinho dos paulistas·· 122 íl. A mordacidade da opinião de Ca-
pistrano de Abreu é contrariada por Rodolfo Garcia e Serafim Leite. Es-
creveu o primeiro que não havia justiça ao que Varnhagen escrevera sobre
José de Morais, "ele é, ao contrário, apesar de muitas inexatidões que
encerra, facilmente reconhecíveis pelo leitor instruído, uma fonte abun-
dante de notícias, que até sua publicação eram ignoradas. Lastima é que
não aparecesse a segunda parte perdida, perdida no confisco dos papéis
dos jesuítas, a que se procedeu no Colégio do Pará" 12 2s). Serafim Leite
duas vezes se manifestou sobre José de Morais. Na primeira 1229 > declarou
que Morais é autos estimado em assuntos posteriores a Bettendorff e cita a
crítica de Varnhagen e a correção de R. Garcia; na segunda ,2 :101 afirma
que "o que nos legou é livro bem ordenado, escrito no melhor estilo da
época, e com muitas notícias que em vão se buscariam em escritores pre-
cedentes".

(221) Serafim Leite, HC/B, IV, 322. notas 4 e 5. Na primeira se escreve que Já havia desa-
parecido de l:.vora em 1939 quando quis examiná-la.
(222) ·catálogo dos Documentos mandados copiar pelo Senhor D. Pedro li", existente no
lnslituto Histórico, RIHGB, 1906, t. LXVII, parte 1, pp. 24-26. Este Catálogo atribui•se a Capis-
1rano de Abreu.
(223) História da Companhia de Jesus da extinta Provlncia do Maranhão e Pará pelo Padre
José de Morais na me,ma companhia, tomo I das Memórias para a História do Extinto Estado do
Marunhâo cu;o território ,·ompreende hoie as províncias do Maranhão, Peauhy, Grã Pará e Amazo-
nas coligidas e annotadas por Cândido Mendes de· Almeida, Rio de Janeiro, 1860.
(224) Rio de Janeiro, 1859, vol. Ili.
(225) RlHGB, 1873, t. XXXVI, parte 2.•, 101-149.
(226) Existe também uma cópia na Biblioteca Nacional "Catálogo de Manuscritos sobre o
Maranhão" ABN, 1850, v. 70, p. 131, n. 0 7.
(227) "Tricentenário do Ceará", Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, I .• cd. Rio.
1930. pp. 243-244 e 4.• ed., Rio, 1975, 146.
(228) Nota 63, pp. 178-179 da 3.• ed. integral da História Geral do Brasil. de F. A. Var-
nhagen.
(229) HC/B, IV, 325.
(230) HC/B. Vil!, 383.

295
8. 5 . Mathias Rodrigues
Mathias Rodrigues (Portelo, Miranda, Portugal, 1729 - entre 1775-
1780) entrou para a Companhia em Lisboa em 1748 e nesse mesmo ano
seguiu para o Maranhão, onde concluiu os estudos. Deportado em 1760
para o Reino e dai para a Itália. Em 1774 vivia em Rufinelo, onde outros
jesuítas portugueses se refugiaram e não está na lista dos que residiam
na Itália em 1780 <2 31 >, sendo a primeira e a segunda partes relativas à
perseguição no Estado do Brasil pelo padre Francisco Silveira. Escreveu
ainda a "Historia Poprovinciae Maragnonensis Societatis lesu Pars Prima:
Ortus et res gestas ab anno 1607 ad 1700 complectens", que apesar do
título só vai até 1660. O códice sobre origens e efeitos da Vice-Província
Jesuítica no Maranhão pertencia a J.F. de Almeida Prado, cuja biblioteca
está hoje na Biblioteca da Universidade de S. Paulo (Estudos Brasileiros).
Serafim Leite já havia descrito o códice, sem fazer a identificação de au-
toria <2 32 > e fez a atribuição na História da Companhia <2 33).

(231) Maragnonensls Vlce-Provlnclae Historia per lltteras exhlbetur Centum-Cellls scrlptas a


Palre Mathlas Rodrigues Maragnonensls Vlce-Provlnclae alumno ad. R. Adm. P. N. Laurentlum
Rlccl anno 1761. Está na Biblioteca Real de Bruxelas e é a parte primeira de um códice com o
título "Historia Persecutlonis Maragnonensls et Braslllensls Provlnclarumn.
(232) Pdglnas de História do Brasil, 1937, 241-248.
(233) Ili, XXXII-XXXIII.

296
CAPITULO II

OS FRANCISCANOS

1. Considerações gerais. 2. Manuel da Ilha. 3. Martin de


Nantes. 4. Frei Fernando da Soledade e Frei Apolinário
da Conceição. 5. Antônio de Santa Maria Jaboatão.

1 . Considerações gerais

Nenhuma outra Ordem Religiosa como a de Jesus cultivou tanto a


História, revelando tanta confiança no seu julgamento. Não há produção
a que não corresponda uma crônica, um relato, um registro. O julgamento
futuro, histórico e sobrenatural interessa, senão igualmente, pelo menos
correspondentemente. Uma atitude ativa em face da História, produtora
de historicidade, não é propriedade de nenhuma instituição, como não o é
de nenhuma classe de homens, mas parece existir uma relação entre o
produtor e o registro. As nações no auge de sua fabricação histórica mun-
dial sempre aspiram reservar para o futuro os dados do julgamento. O
produtor anseia pelo veredito da história como uma espécie de justiça trans-
cendental, baseada na bondade ou maldade de seu produto. Mas nem todos
têm seus olhos voltados para o futuro, para os futuros historiadores. Mui-
tos se contentam com uma atitude passiva e consumidora, e não anseiam
pelo julgamento, já que a justificativa de seus atos, sabem eles, não per-
tence ao futuro, mas à geração atual, aos contemporâneos, cuja aprovação
almejam. Outros parecem contrapor à justiça contemporânea, a histórica,
a sobrenatural. Os autores jesuíticos acreditam na justiça histórica e na
sobrenatural, e os religiosos de outras ordens não parecem crer muito na
primeira. Essa é a justificativa que nos faz compreender como tanta ação
dos religiosos franciscanos, carmelitas e outros se diluiu nos documentos
oficiais contemporâneos e pouco deixou escrito que fixasse para o futuro a
benemerência de sua atividade <O.
Quanto à pobreza da documentação e da historiografia franciscana
basta dizer que o martírio dos primeiros franciscanos mortos pelos índios
da costa, entre 1501 e 1521, foi pela primeira vez mencionado em 1611,
e embora os primeiros cronistas do Brasil e as fontes jesuíticas a ele se
referissem, os próprios autores europeus da história franciscana desconhe-
cem o fato <2).

(1) O mesmo se deu na Argentina. Vide Rómulo D. Carbla. Historia Critica de la Historio-
grafia Argentina, Buenos Aires, 1940, 211-212.
(2) Frei Odulfo van der Vat. O. F. M., Pdncíplos da Igreja no Brasil, Petrópolis. 1952,
21-43.

297
f: certo que desde 1619 o Ministro Geral da Ordem, Frei Benigno
de Gênova, ordenara "que todas as províncias encarregassem um dos seus
religiosos de compor uma resenha da sua própria história". Frei Manuel
da Ilha foi incumbido de escrever sobre a Custódia franciscana do Brasil,
o que fez na obra intitulada "Divi Antonii Brasi/iae Custodiae enerratio
seu relatio", que permaneceu inédita até 1975 <3 >. Baseou-se, segundo ele
próprio diz, em "relações e memórias por mim durante muito tempo soli-
citadas e procuradas", pois nunca esteve aqui. Fornece uma relação dos
conventos e das aldeias até então existentes e assina "no convento de Santa
Catarina de Carnota, Portugal, aos 30 de agosto de 1621" <4 >. Também
se sabe que Frei Vicente do Salvador, autor da História do Brasil de que
trataremos mais adiante, escreveu uma "Crônica da Custódia do Brasil",
"daquela mesma Custódia a que ele pertencia, cujo superior fora, e sobre
a qual Frei Manuel pretendia também escrever uma crônica". Supõe assim
Frei Odulfo van der Vat que Frei Vicente do Salvador tivesse sido infor-
mante de Frei Manuel, quando esteve em Portugal entre 1617 a 1620 <5 >. A
Crônica que compusera, quando guardião do convento da Bahia desde
1612, ou quando custódio de 1614 a 1617, foi mencionada por Jorge
Cardoso, no Agio/ógio Lusitano <6 >, que a chamou de breve. "Breve de-
veria ser efetivamente, pois incluindo seu tempo de custódio, abarcava
apenas trinta anos", escreveu Capistrano, e acrescenta: "Conteria matéria
valiosa quanto à catequese dos índios confiados ao caprichos e, nas di-
gressões a que o autor não era avesso quando o assunto principal escas-
seava, informações de caráter geral. Trataria da fundação dos diversos
conventos, das pessoas que contribuíram para sua erecção, casos edifican-
tes, milagres que nunca faltavam. Por onde andará? Levando-a consigo
seu autor para a província (de Portugal) no ano de 1618, assim a ela co-
mo a esta custódia só nos ficou a notícia que desta obra nos dão os estra-
nhos, escrevia Jaboatão no Preâmbulo digressivo do Novo Orbe Seráfico.
Considerar a Crônica da Custódia primeira parte desta História de Frei
Vicente do Salvador como fez Varnhagen, é esquecer o tamanho das duas,
as datas das respectivas composições, o intuito bem definido de cada
uma" <7 l.

2 . Manuel da Ilha
A primeira crônica jesuítica geral por Frei Manuel da Ilha, Nar-
rativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil 1584-1621, acaba de ser
editada em edição bilíngüe, latina e portuguesa <8 l.

(3) Frei Odulfo van der Vat, ob. cit., 30.


(4) Frei Bonifácio Muller, O. F. M., Convento de Santo Antônio do Recife 1606-1956. Esboço
Histórico, Recife, 1956, p. 6. O original se conserva no convento "Dei Santl Quaranta", em Roma.
Foi descrito na Revista Ibero Americana, Madri, 1914, vol. 1, 500-514.
(5) Frei Odulfo van der Vat, ob. cit., 33.
(6) Lisboa, 1652-1666, 3 vots.
(7) Nota preliminar de Caplstrano de Abreu à História do Brasil de Frei Vicente do Salvador,
São Paulo, 1918, XIV.
(8) Intr., notas e trad. port. por Frei Ildefonso Silveira, O. F. M., Petrópolis, 1975, com uma
apresentação de Frei Venâncio Willeke, O. F. M.

298
Como escreveu Frei Venâncio Willeke ela ocupa o primeiro lugar
entre os antigos manuscritos franciscanos e aparece publicada 350 anos
depois de sua origem. Muitos documentos anteriores à guerra holandesa
desapareceram do arquivo custodiai de Olinda, enquanto o autor da Nar-
rativa transmite preciosa documentação quinhentista relativa à fundação
da Irmandade baiana de Santo Antônio do Aguim e às missões dos Frades
na Paraíba.
A Narrativa trata propriamente da custódia de Santo Antônio, ou seja
de 1585 a 1621 e se refere também aos missionários anteriores, Frei Hen-
rique de Coimbra, os mártires de Porto Seguro e vários outros isolados ou
não. Os franciscanos não se estabeleceram definitivamente no Brasil até
1585, aparecendo apenas grupos esporádicos de missionários que perten-
ciam a várias províncias religiosas e países diferentes. Acentua Frei Wil-
leke que Frei Manuel da Ilha não conhecia o Brasil, baseando-se em in-
formações alheias, o que faz sua informação sumária e contendo lapsos.
O assunto principal é a criação dos nove conventos da custódia, os necro-
lógios de alguns missionários, as missões mais importantes, a lista dos
custódios e a questão entre jesuítas e franciscanos, no início da catequese
paraibana.
Julga Frei Willeke que, afora os documentos por ele reproduzi-
dos, Manuel da Ilha não deve ter recorrido muito ao arquivo provincial de
Lisboa, mas sim às informações dos confrades missionários, sobretudo os
custódios que voltavam ao Reino.
Além da vinda primeira dos franciscanos e dos novos conventos, ele
cuidou das confrarias, ermidas, missão entre os potiguares, seus ritos, cos-
tumes, a controvérsia entre jesuítas e franciscanos na Paraíba com a vitória
destes últimos e os atos do governador Feliciano Coelho de Carvalho
(1595-1600).
A introdução de Frei Ildefonso Silveira, professor de História Ecle-
siástica em Petrópolis, examina os principais problemas da edição, suas
fontes, o manuscrito, o estilo, a edição por ele preparada adianta nosso
·conhecimento primitivo sobre os franciscanos no Brasil. Ele trata tempre
diferentemente moradores e índios, e cuida da catequese pretendida pelos
franciscanos. Anota as lutas entre franceses luteranos (calvinistas) e por-
tugueses católicos.
Na Paraíba ele observa com cuidado: "Aqui como nas demais al-
deias e doutrinas, os pobres de Cristo alimentam-se com farinha feita de
raízes de certa planta que os indígenas cultivam, com carne de animais
selvagens e de peixes que os mesmos caçam e pescam com grande habi-
lidade e arte; a esse mister dedicam-se de todo o coração. Jamais usam
vestes, mas andam sempre nus; nada têm de próprio, pois tudo é comum.
Os Religiosos prescreveram que em todas as doutrinas (missões), ao me-
nos as mulheres, qllando viessem à Igreja, vestissem uma túnica, por causa
da honestidade. Mas como na maior parte são inclinados pela natu-
reza, elas a tiram logo que saem da igreja e a levam debaixo do braço" (9 l.
(9) Ob. cii., 90.

299
Conta a luta em 5 de agosto de 1597 de uma multidão de potiguares
com soldados franceses luteranos (calvinistas) contra a aldeia portugue-
sa <1°>. "Para resumir, direi que aos franciscanos se deve tudo quanto se
fez nas aldeias da Capitania da Paraíba durante cerca de 25 anos contínuos,
dedicados aos enfermos, à conversão dos infiéis, à instrução dos catecúme-
nos, à conservação dos convertidos, à administração dos sacramentos e ao
exercício de outros trabalhos e perigos" (11).
Frei Manuel lnsulano ( da Ilha) pregador e membro da Província
de Santo Antônio terminou sua Narrativa atestando que conforme a pres-
crição e ordem a ele dada pelo Frei Benigno de Gênova, ministro geral
de toda a família franciscana, leu e extraiu todas as coisas dignas de
memória das relações e memórias sobre a custódia brasileira longa e cuida-
dosamente por ele procuradas e investigadas <1 2>.

3. Martin de Nantes
A obra talvez única do século XVII sobre outras missões não jesuí-
ticas é a Relation Succincte et Sincere de la Mission du pere Martin de
Nantes, Prédicateur Capucin, Missionaire Apostolique dans le Brésil.
Martinho de Nantes ingressou na Ordem em 1659 e em 1671 foi enviado
a pregar em Lisboa e da[ encaminhado ao Brasil, onde chegou à Bahia
a 30 de agosto de 1671 (t3). Depois de passar uns dias em Salvador,
seguiu para uma aldeia cariri a 70 léguas de Pernambuco. Descreve a
aldeia e o início de sua missão, partindo logo depois para o São Francisco,
cuja região, costumes, hábitos e doenças dos fodios caracteriza e narra.
Diante das vexações que sofria do grande proprietário de terras Garcia
d'Avila, Martinho de Nantes vellJ à Bahia, onde defende ativamente os
Cariri e a possibilidade de sua 'conversão. Sua obra é importante como
uma das relações capitais sobre a catequese e a confederação dos Cariri
(1670) e a Guerra dos Bárbaros( 1683), capítulos da conquista do sertão,
e como retrato da vida no interior do São Francisco. Tendo aprendido a
língua, "sem o que se é bárbaro entre bárbaros", possuído de candura e
desinteresse, Nantes escreveu, em parte, com seu conhecimento de um
dos grupos indigenas cariri que maior influência exerceu no ffsico, nos
costumes e no vocabulário logo após os tupi, a história de Francisco Dias
d'Avila e de sua luta pela posse latifundiária, contra os indígenas. Não
foi simpático aos portugueses, que acusa de sensuais, ociosos e desinteres-
sados pelo gentio pela língua cariri. O Bra~il "est un exil et une retraite de
plusieurs criminels, soit au Tribunal de l'Inquisition ou à I'autre Tribunal:
ce Pays se remplit plus d'Habitants défectueuex et vicieux que d'autres,

(10) Ob. clt., 103.


(11) Ob. clt., 107.
(12) Ob. clt., 141-142.
(13) P. F. Fldells M. de Prlmerlo, Capuchinhos em Terras de Santa Cruz nos séculos XVII,
XVIII e XIX, São Paulo (1940), 61-63. 30 de agosto e não 3, datà da sua segunda chegada à
Bahia, vindo do sertão.

300
parce qu'on vit dans le Brésil avec beaucoup de liberté et de libertinage,
et que le crime y regne assez impunément". Os governadores eram então
enganados por essa gente e não reprimiam devidamente os massacres de
índios ou- as devastações de d'Avila para se apossar de terras devolutas
no São Francisco. Foi somente com a carta régia de 20 de janeiro de 1699
que se introduziu alguma ordem no sertão criando-se os juízes. Com a
chegada de Bernardo de Nantes, Martinho recebeu ordem de ser superior
na Bahia. Durante 5 meses ensinou a Bernardo a Ungua cariri, e este
com o proveito da missão escreveu um dos catecismos nessa língua <14 1,
depois de vinte e três anos de exercício missionário.
A Relação é uma das principais crônicas sobre a Guerra dos Bár-
baros, a Missão dos Cariri, as lutas entre os latifundiários: nela não se
encontram, como adverte o autor ao leitor, "les actions éclatantes, les
aventures et les merveílles que vous aurez lu dans les Relations des Mis-
sions du Jappon, du Perou, du Siam, de la Chine", etc., mas os trabalhos
de conversão de pobres selvagens, que não têm reis, nem leis, nem
governos, nem artes, nem ciências, nem escrita e que viviam mais como
bestas que como homens e que sofrem opressõe.s e vexações dos "crimi-
nosos exilados de Portugal". A simplicidade do estilo, a sinceridade das
opiniões, a substância da matéria, que não é só de interesse para a
etnografia, mas para a historiografia, e, finalmente, o não ter escrito a
Relação para o público <15 1, mas para os superiores que decidiram publi-
cá-la, tomam este escrito um documento de extrema significação.
O Barão de Studart escreveu excelente estudo sobre o Padre Nantes,
divulgando também trechos da obra (l6J. No seu resumo crítico Studart
estudou os dezesseis anos de Nantes no interior do.cBrasil (1671-1687),
suas lutas com Dias d' Avila, um potentado latifundiário que explorava os
cariri. Homem pequeno de ,corpo e alma, d'Avila valeu-se de todos os
recursos para manter seu poderio sobre as terras e afastar e despojar os
índios. Conta tudo sobre sua viagem a Salvador, seu contato com os je-
suítas, com os governadores (Roque da Costa Barreto, 1678-1682 e Antô-
nio de Sousa Menezes, 1682-1684) e as oposições de d' Ávila. Martin de
Nantes não voltou mais ao Brasil por motivo de desacordo, que sobreveio
entre Roma e a Corte de Portugal com respeito aos capuchinhos de na-
cionalidade francesa, dos quais se exigiam juramentos de fidelidade e outras
obrigações que a eles não ficava bem aceitar.
(14) Kateclsmo Indico da Lingua Karirl, Lisboa, 1709. Vide descrição bibliografia ln Vale
Cabral, ABN, 1881, vol. VIII 164. Os cariri descritos pelo Padre Martin e em cuja Hngua foi
feito o Catecismo de Bernardo pertenciam ao grupo Dubucuá. O Padre Lufs Vlcênclo Mamlanf··
havia publicado alguns anos antes O Catheclsmo da Doutrina Chrlstãa na llngua brazlllca da Naçêlo
Klrlrl (Lisboa, 1698), no dialeto Qulpéia dos Cariri, que formam com o primeiro os dois grupos
mais Importantes dos quatro em que se divide a nação Kirirl. Vide "Explicação" de Rodolfo
Garcia à edição fac-similar da Biblioteca Nacional do Catecismo Klriri (Rio, 1942).
(15) !.• Ed. Quimper, 1707 2.• Roma;· 3.• fac-similar, Bahia, 1952, com noticia bibliográfica
e comentário de Frederico G. Edelwels, prefácio não numerado. Os trechos transcritos ln pp. 121-
122 e o último no prefácio. .
(16) •o Padre Martin de Nantes e o Cet. Dias D'Avlla", RIC, t. XLV, 37-52.

301
4. Frei Fernando da Soledade e Frei Apolinário da Conceição
A História Seráfica Cronológica da Ordem de São Francisco na
Província de Portugal (17 > é pouco conhecida e a ela recorreram Frei Odulfo
van der Vat nos seus Princípios da Igreja no Brasil (18 > e Frei Venânci9
Willeke <19 >.
Frei Apolinário da Conceição (Lisboa, 1692-1759) foi franciscano
da Província do Rio de Janeiro, onde chegou aos 13 anos e alcançou
ser procurador geral e cronista da Província em 1740. Escreveu obra
variada sobretudo sobre os franciscanos que Inocêncio Francisco da Silva
regis_trou (20 >.
A Primazia Seráfica na região da América Novo Descobrimento de
santos e veneráveis religiosos que enobrecem o novo mundo com suas
virtudes e ações (21 > é um livro singular e raro, seu objetivo é mostrar a
primazia que na conversão da América teve a Ordem Seráfica. Para isso
pareceu-lhe conveniente referir-se aos santos e religiosos que se distingui-
ram no Brasil, tanto no ministério apostólico quanto na exemplaridade
de suas vidas. No seu prólogo acentua esse esforço em mostrar seus heróis
que com "zelo apostólico produziram frutos copiosos e conseguiram tirar
do cativeiro ido demônio muitas almas". O censor descobriu-lhe zelo
ardente e diligência insaciável. A obra começa com o descobrimento da
América e a chegada do primeiro capucho. Uma de suas fontes foi o
Cuidado com o Tempo, um manuscrito de Frei Cristovão da Madre de
Deus (22 >.
O estilo em que escreveu foi louvado pelos censores e Inocêncio
declara que o estilo e a linguagem de suas obras nem sempre era puro e
correto como seria para desejar. Ao todo são 26 capítulos e termina
com uma memória dos 26 religiosos veneráveis que resplandeceram no
Brasil. Suas obras foram quase sempre noticiadas na Gazeta de Lisboa (2 3).
Resumindo o sentido da obra pode-se dizer que ela gira em torno
dos santos e religiosos que se empregaram na conversão do gentio, e é
um bom exemplo de como a história pensou em ser a demonstratrio
evangelica.

5 . Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão


Frei Jaboatão (Sant'ana do Jaboatão, PE, 1695 - Salvador, 1779)
professou as ordens sacras seráficas em 1779, no Convento de Santo An-
tônio do Paraguaçu, aos 22 anos. Concluídos os estudos, por trinta anos
exerceu vários encargos, e em 1755, depois de ser definidor do capítulo

(17)Lisboa, 1709.
(18)Petrópolis, Vozes, 1952.
(19)Franciscanos na História do Brasil, Petrópolis, Vozes, 1977.
(20)DBP, I, 300,301 e VIII, 322-323.
(21)Lisboa, 1733.
(22) Vide biografia detse in RIHGB, t. XIII, 125, extrafda da Biblioteca Lusitana de Barbosa
Machado.
(23) Noticias Históricas de Portugal e Brasil (1715-1756), Coimbra, 1716, 187, 195, 209.

302
deste ano, foi cronista da ordem. Foi poeta e pregador famoso, e membro
da Academia Brasílica dos Renascidos. Sua atividade intelectual prin-
cipal foi a de cronista e a de genealogista, e é sobre a primeira que seu
nome se incorpora aqui, ficando a de genealogista para o capítulo próprio
tratado mais adiante.
Quem escreveu seus primeiros dados biográficos foi Frei Domingos
do Loreto Couto nos seus Desagravos do Brasil e Glórias de Pernam-
buco <24 ). Aí se escreveu que era filho do Sargento-mor Domingos Coelho
Meireles, natural do mesmo lugar e de D. Francisca Varella, "ambos de
principais famílias". Loreto Couto escreveu que depois de ter aprendido
latim, humanidades, estudado filosofia e teologia se tomou "excelente retó-
rico, e elegante orador". Escreveu muito e preparou vários tomos de
sermões. Sua bibliografia se encontra em Inocêncio <25 l e Frei Venâncio
Willeke escreveu-lhe o melhor estudo biográfico-histórico, tratando do
noviço, do corista, do pregador, do cronista, e de suas obras publicadas e
inéditas. Jaboatão foi membro da Academia Brasílica dos Renascidos <2 6l,
na qual re7"elou seu caráter bajulatório escrevendo umas décimas em home-
nagem ao todo-poderoso Marques de Pombal, o Mecenas da Academia <27 >.
Sobram alguns Sermões <28l, entre os quais o "Sermão da Restau-
ração de Pernambuco do Domínio Hollandez", pregado na Sé de Olinda,
em 1731 <2 9), a maioria reunida em Jaboatão Místico em correntes sacras
dividido (30), oferecido a Luís José Correia de Sá, governador e capitão
geral de Pernambuco, composto de orações panegíricas e sermões co-
memorativos, quase todos repletos de citações latinas, sem nenhuma
inspiração ou preocupações brasileiras, palavrosos, sempre louvando os
portugueses, os colonizadores, e a gente dominante, e sobretudo D. José
e seu poderoso ministro. Há um aspecto curioso na oração em que louva
o Beato Pardo Gonçalo Garção, protetor de todos os pardos, natural da
lndia, na qual distingue pardos, negros e morenos, e louva a cor parda
como a mais perfeita (31 l.
Sua obra importante como historiador franciscano é o Orbe Seraphico
Novo Brazilico <32 l. Escreveu no antelóquio que essa História a fez por
preceito de obediência, considerando-se impróprio para ela, e tendo apenas
encontrado alguns apontamentos feitos pelo primeiro encarregado de escre-
vê-la e nada do segundo. Foi em 1752 que a Mesa da definição determinou
se escrevesse a história da Ordem e ele teve que procurar os elementos
precisos pelos arquivos dos conventos de todas as províncias e nos car-
tórios. Teve um secretário que como ele percorreu e visitou todas as pro-
víncias a ver seus arquivos, rever papéis, esquadrinhar notícias, sem

(24} ABN, vols. 24-25, vide 25, 14-15.


(25) DBP, t. l, 201-202 e vm, 246-247.
(26) Alberto Lamego, Academia Brasllica dos Renascidos; Sua Fundação e Trabalhos ..,Jnéditos,
Paris, 1923, 11.
(27) Ob. cit., 44-45.
(28) Inocêncio. Francisco da Silva, DBP, t. I, 201.
(29) RIHGB, XXIII, 365.
(30) Lisboa, 1758.
(31) faboatão Mlstico, ob. cit., 167-211.
(32) Lisboa, 1761, 2 vols.

303
reserva alguma e numa diligência que não foi infrutífera, que registrava
mais que embaraçava, e que lauçou luz a uma história compreensiva do
passado e do presente, do moderno e do antigo. O titulo Orbe se inspira
na obra do Padre Gubemantis, que escreveu de toda Ordem, dando-lhe o
titulo de Orbis Seraphicus, porque nele se continham as atas da familia
franciscana e seráfica espalhadas pelas quatro partes do mundo; Novo
Brasílico por se tratar dos frades menores do Brasil. Ele segue a ordem
cronológica, a carreira dos anos, das fundações dos conventos.
A "frase", escreveu Jaboatão, "e estilo, pelo que se deixa ver, parece
claro, e corrente, e sem afetação natural, atendendo a que escrevemos His-
tória e não Panegírico". Para ele é uma história que há de servir a todos;
cita poucos autores, porque escreveu a história primitiva de uma Província,
sobre a qual nenhum autor escreveu e só se aproveitou para ela das
noticias da mesma Província, e nem estas as achou em livros, ou cadernos,
ordenados. Somente encontrou alguns papéis e assentos avulsos. Na des-
crição dos capítulos e suas fundações, quando é necessário e não _tem
dúvida, apontou os autores. Teve pouco tempo e com sua letra escrevêu
os dois volumes além de ter copiado os tratados.
O livro se compõe de várias digressões como denomina seus cap{tulos.
Na primeira trata da viagem e descoberta, na segunda dos 1ndios, na
terceira de Diogo Alvares Corrêa, o Caramuru, na quarta de São Vicente;
depois, seguem-se Rio de Janeiro, Esp{rito Santo, Porto Seguro, Cairu,
Baía de Todos os Santos; segue-se uma digressão sobre os estudos e os
religiosos que escreveram e do que está impresso ou se acha em manuscrito;
a digressão VI é o capítulo sobre o seráfico Patriarca nos distritos das
Càpitanias de Ilhéus, Sergipe do Conde, Penedo, Alagoas, Serinhaem, Re-
cife, Iguaraçu.
A obra não ficou completa nesta edição de 1761 e foi preciso que
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro a editasse, com o novo título
de Novo Orbe Seraphico Brasilico, ou Chronica dos Frades Menores <33 >,
bem mais ampla, mas com os mesmos defeitos de composição, veracidade
e louvação, que marcam o livro de Jaboatão (34).
A obra mereceu muita crítica, a principiar com a de Diogo Soares
da Silva Bivar <35 ). Bivar examinou minuciosamente toda a obra composta
de sete livros e ajuíza assim: "O estilo do autor peca algum tanto no mau
gosto dos seiscentistas, e se bem que a sua dicção seja portuguesa no que
guardára escrupulosa castidade, de força é confessar que de tal arte a
trava ele com períodos extensíssimos e frases mal candentes, que na lei-
tura cansa e descompassa; a sua piedade o fez acreditar por sobrenatural
o que talvez não é, e todavia pode dizer-se que não mostra superstição,
mas antes cristandade, para explicar-me em referência ao nosso respeitável
autor, com as mesmas palavras que usara um sábio acadêmico falando

(33) Rio de Janeiro, 1859-1862, 3 volumes .


(34) Alguns trechos foram publicados na R/HGB, 1935-37, 24-49.
(35) Parecer sobre a 2.• parte da •chronlca dos .Frades Menores da Província de Santo
Antônio do Brasil", RIHGB, li, 380-387.

304
do venerável Anchieta. E em suma, senhores, a obra do Padre Jaboatão,
como quer , que seja, destinada a consagrar os fatos da Ordem de Santo
Antônio do Brasil, abraça no seu complexo tantos fatos e notícias inte-
ressantes para a história geral do nosso país, que o seu A. tem direito in-
contestável a ser contado entre os seus mais graves escritores" <36>.
. Pedro Taques achava que Rocha Pita e Jaboatão escreveram sem
documentos <37 >.
Varnhagen comentou apenas que ele escreveu obra que ainda o re-
comenda <38> e D . Romualdo Antônio de Seixas, arcebispo da Bahia, num
estudo sobre Vieira chamou-o "um antigo e excelente historiador brasi-
leiro, hoje pouco conhecido" (39 >.
Cândido Mendes de Almeida, correto e erudito historiador, louvando
Simão de Vasconcelos escreveu que ele ficava "à larga distância do pesado,
incorreto e fastidioso Jaboatão" ((OJ . Carlos Malheiros Dias achou que
Jaboatão, tal como Simão de Vasconcelos, Pedro Taques e Frei Gaspar
da Madre de Deus, empenhou-se em transfigurar e dramatizar os episódios
de João Ramalho e Diogo Alvares (41 >.
Benevolente, simpático à sua obra, foi Brás do Amaral em cujas ano-
tações às Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia de Accioly
Cerqueira e Silva (42 > se lê que Frei Jaboatão foi "culto, estudioso, exato,
escritor consumado" e ainda "ele é um narrador imparcial, ligado ao seu
assunto, e dotado de especial talento descritivo". E neste tom o louva sem
restrição, como o fez Gilberto Osório de Andrade, que não poupa elogios
à admirável capacidade bajulatória de Jaboatão, que exemplifica com seus
versos laudatórios escritos desde moço até os 74 anos. Sempre nos sonetos
e nas décimas o espírito dominante é congratulatório e encomiástico 143 >.
O melhor estudo sobre Jaboatão é o de Frei Venâncio Willeke opi-
nando que "entre os franciscanos brasileiros do Século XVII, figura Frei
Antônio de Santa Maria de Jaboatão, como um dos mais afamados, em
virtude de sua rara inteligência e das primorosas obras que o _distinguem".
Na conclusão afirma que Orbe Seráfico é uma obra-prima que, além de
constituir a única crônica franciscana completa do Brasil colonial, inclui
precisos dados da história pátria (44l .

(36) Ob. cll., 386.


(37) DIHCSP, Arquivo do Estado de Slo Paulo, São Paulo, 1896, IV, 19.
(38) Hlstdrla Geral do Brasil, 3.• ed., IV, 327.
(39) "Breve memória áurea da naturalidade do Padre Antõnlo Vieira• RIHGB, XIX, 12.
('40) "Notas para a História Pátria (4.• artigo) A catastrophe de João de Bolls foi uma
realidade.• RIHGB, XLII, 173.
(41) Hlstdrla da Colonlzaçifo Portuguesa no Brasil. Porto, 1924, p. XXXIX.
(42) Bahia, 1937, V, 439-4-40.
(43) lntdltos de Frei Jaboatão, Recife, 1949.
(44) "Frei António de Santa Maria Jaboatlo O. F. M. • RH, 93, 47·67 e "Frei Antõnlo de
Santa Maria Jaboatão• ln Franciscanos na Hlstdrta do Brastl, PcUópoll,, Vozes, 1977. 88-99. O
segundo estudo apresenta variações e t mais bcnl feito e completo.• ·

305
CAP1TULO III

OS AGOSTINIANOS

Frei Agostinho de Santa Maria (Extremós, agosto 1642 - Lisboa,


abril 1728) chamava-se no século Manuel Gomes Freire. Professando a
regra dos agostinhos descalços exerceu vários cargos na Ordem, sobretudo
o de cronista e vigário-geral da Congregação. Diz Inocêncio Francisco da
Silva que foi escritor laborioso e fecundo, deixando extensa bibliografia (t>.
Das 18 obras publicadas, originais e traduções, destaca-se o Santuario
Mariano <2 >, cujos novo e décimo volume são inteiramente dedicados ao
Brasil, ou aos territórios sujeitos à jurisdição do Arcebispo da Bahia e
suas dioceses dependentes, os bispados de Olinda, Recife, Maranhão, Grão-
Pará e Rio de Janeiro. O Santuario é, como bem escreveu Enéas Martins
Filho <3 >, uma espécie de enciclopédia escrita "em graça dos pregadores e
devotos de Nossa Senhora", e na qual "estão descritos 1.777 santuários
(igrejas, capelas, ermidas, altares) dedicados ao culto da Virgem Maria,
no Reino de Portugal e em seus domínios de além-mar".
A descrição geral da obra serve como um guia para orientação dos
pesquisadores especializados. Os dois primeiros tomos descrevem os san-
tuários, situados na Corte, na cidade e arcebispado de Lisboa; o terceiro,
os santuários dos bispados de Guarda, Lamego Leiria e Porto Alegre
(Portugal) e os do Priorado do Cristo e da ·Prelazia de Tomar; o quarto,
os santuários do Arcebispado de Braga e do Bispado de Coimbra; o quinto,
os do Arcebispado de Porto, Vizar e Miranda; o sexto, os santuários do
Arcebispado de :Évora e os Bispados do Algarve e de Elvas; o sétimo é
um suplemento com a descrição dos santuários omitidos nos volumes an-
teriores; o oitavo descreve os santuários da índia Oriental, da Ásia Insular,
da África e das Filipinas; o nono, dedicado ao 5.0 Arcebispado da Bahia
e Primaz da América Portuguesa, D. Sebastião Monteiro da Vide <4 >, des-
creve 194 santuários, dos quais 132 na Bahia, 45 em Olinda - Recife,
8 no Maranhão, e 9 no Pará; o décimo descreve 147 santuários, sendo 84
no Rio de Janeiro, 40 na Capitania de São Paulo, 13 em Minas Gerais, 5
no Espírito Santo, 4 no Paraná e Santa Catarina e na Colônia do Sacra-
mento. Dos 84 santuários do Rio de Janeiro, 34 estão situados na própria

(1) DBP, Lisboa, 1858, t. 1, 18·20.


(2) Lisboa, 1707-1723, 10 tomos.
(3) "0 Santuário Mariano e seus autores" RIHGB, 269, 115·126.
(4) Autor das Constituições Primeiras do A rcebispado da Bahia, t.• ed., Lisboa, 1719, 2.•
Coimbra 1720, 3.• São Paulo, 1853. Resume as propostas e aceitação feitas no Sínodo Diocesano de
1707 e é obra capital para a história da Igreja no Brasil.

306
cidade do Rio de Janeiro. Além disso neste último tomo aparecem os
santuários das ilhas do Mar Oceano, inclusive Canárias.
Enéas Martins Filho, a quem sigo no seu artigo especializado, declara
que, apesar de editada sob a responsabilidade de Frei Agostinho de Santa
Maria, toda parte referente ao Rio de Janeiro, São Paulo, Espirito Santo
e o Sul em geral é de autoria do carioca Frei Miguel de São Francisco,
do Convento de São Francisco do Rio de Janeiro <5 >. Para creditar sua
afirmação de autoria encontrou Enéas Martins Filho várias referências no
texto a Frei Miguel, três vezes Provincial, a quem se refere como "nosso
autor" na parte relativa ao Rio de Janeiro.
A atribuição é esclarecida ao escrever Enéas Martins Filho que a
parte geral do tomo X é de Frei Santa Maria e a parte de Frei Miguel
é a descrição geográfica e histórica do Rio de Janeiro, fonte preciosa.
Enéas Martins Filho tentou reconstituir a vida de Frei Miguel que,
nascido no Rio, aqui exerceu atividades missionárias, sobretudo em Angra
dos Reis e Macacu, por volta de 1680-1681; foi vigário provincial, e oitavo
provincial (1701-1703), reeleito provincial (1713-1715) e faleceu em 1734.
Monse1hor Pizarro <6> a ele se refere várias vezes, às suas memórias e
trabalhos, como fonte valiosa, por sua naturalidade e conhecimento <7 >.
Para Enéas Martins Filho foi entre 1688-1689 que Frei Miguel viajou
para o Reino, e deveria ter nascido entre 1648-1658. A redação da noticia
referida por Frei Agostinho deveria ser também de 1711 e destruída
quando da depredação do convento no ataque francês de 1711. Teve então
Frei Miguel de redigir nova notícia pelos anos de 1713-1714, determinados
por sua referência "neste ano de 1713" e "neste ano de 1714".
Aponta Enéas Martins Filho seu estilo pessoal e espontâneo, seus
reparos humorísticos e detalhes históricos oferecidos em sua contribuição.
Ao descrever os santuários revela-nos os caminhos e trilhas existentes nos
primórdios do século XVIII. Enéas Martins Filho, com seu estudo, realçou
a figura de Frei Miguel de São Francisco, mostrando que o volume décimo
é de sua autoria e não de Frei Agostinho (8 >.
A obra em conjunto bem se ajusta aos princípios históricos do século
XVIII. Ela gira em tomo das imagens que se veneram no Brasil e todos
os sucessos da vida civil e militar são atribuídos às intercessões milagrosas
de Nossa Senhora (9 ). Frei Agostinho era muito citado nos trabalhos dos
Acadêmicos da Academia Brasílica dos Renascidos <10 >.

(5) Não aparece em Inocêncio e Sacramento Blake, DBB, Rio de Janeiro, 1900, t. VI,
290-211, diz apenas a naturalidade do Rio, s/data, que viajou por Esranha e Portugal e que
escreveu uma "Relação dos Santuários e imagens de Maria Santíssima de toao o bispado do Rio
de Janeiro" e que Frei Santa Maria a ele se refere no seu Santudrio.
(6) J. de S. Azevedo Pizarro e Araújo Memórias Históricas do Rio de faneiro, 2.• cd., 1945.
(7) Ob. clt., II, 63, 75, 222, 225 e VIII, 242.
(8) Vide "O Santuário Mariano e seus autores", RIHGB, 1965, 269, 115-126.
(9) O nono volume foi publicado cm maio de 1722, como se lê nas Noticias Históricas de
Portugal e Brasil 1715-1750, Coimbra, 1961, 75.
(10) Alberto Lamego. A Academia Brasllica dos Renascidos, Paris, 1923, 80, 82.

307
CAPITULO IV

OS BENEDITINOS

Apesar da fama que cerca os beneditinos, aos quais se devem tanto~


avanços na erudição histórica, sobretudo nas disciplinas auxiliares, ;~oinó ..
a diplomãtica e a paleografia, a verdade é que a historiografia ré1igip~
no Brasil pouco deve a eles. ·
Frei Miguel Archanjo da Annunciação Teixeira de Azevedo (S. Vi-
cente, ? - Olinda, - 1804) era irmão de Frei Gaspar da Madre de
Deus. Ele entrou para a ordem beneditina no Mosteiro de São Bento de
Salvador, e Pedro Taques na sua Nobiliarchia Paulistana a ele se referiu
sucintamente quando trata dos Lemes. Taunay, que lhe esboçou a biogra-
fia (1 >, diz que era o quinto filho do coronel Domingos Teixeira de Azevedo
e de D. Ana de Siqueira Mendonça, ambos descendentes de antigas
família paulistas. Perdendo o pai muito cedo resolveu abraçar a carreira
eclesiãstica, seguindo exemplo de dois irmãos, Frei Gaspar já citado e
João Batista Teixeira de Azevedo, clérigo secular. Foi prior do Mosteiro
de Santos e visitador e comissãrio nos demais mosteiros da capitania, São
Paulo, Parnaíba, Sorocaba e Jundiaí. Em 1765, no capitulo da ordem, foi
Frei Miguel reeleito Prior Presidente do Mosteiro de São Bento de Santos
( 1766-69) e em 1769 abade de Olinda, para o qual foi reeleito para o
triênio seguinte (1778-1780), novamente para o período de 1783-86 e
finalmente Abade Provincial do Brasil ( 1786-89). Austero, disciplinado,
bom administrador, foi sempre louvado nesta função e serviu às contendas
religiosas. Morreu aos 3 de dezembro de 1804, sepultado na igreja de
Olinda. Não era dado às investigações históricas como o irmão, mas,
como Frei Gaspar, tinha facilidade para escrever e pendor pelos estudos
históricos. Deixou escrita a "Chronica do -Mosteiro de São Bento de Olinda
até 1763" <2 >. A crônica se encontrava no Mosteiro de Olinda e abrange
desde os fins do século XVI até 1763.
No seu prefácio ele declara que "a história não admite fingimentos,
ela só deve ocupar-se das· realidades; as hipérboles demasiadamente en-
carecidas, com que algumas vezes se engrandecem os fatos verdadeiros, se
condenam nos historiadores, cuja narração deve ser sincera, simples e não

(1) "frei Miguel Archanjo da Annunclação Teixeira de Azevedo", ln AMP, 192S, li, 23S-24l.
(2) RIAGP, 1941, vol. XXXV.

30lS
afetada, nem arrogante, por não parecer querer conciliar créditos mais
com os alinhos da eloqüência, do que com o verde dos sucessos. Ela
deve contar o verdadeiro como verdadeiro, o falso como falso, o duvidoso
como duvidoso". A obra é de difícil leitura, de composição pesada, e, como
a leitura do manuscrito foi incompleta, o texto está cheio de falhas <3 >.

(3) O Apêndice contém notas coligidas por D. Bonlffácio Jansen, 145-151.

309
CAPITULO V

OS CARMELITAS

Na "Relação dos Mosteiros, Hospícios e Residências da Província


de N. S. do Carmo da Bahia e de Pernambuco, do número dos seus Reli-
giosos e das rendas de cada um deles, segundo a conta que deram os
seus respectivos Priores e Vigários" <1 > se vê a importância numérica e a
riqueza do Carmo nas duas únicas capitanias de Pernambuco e Bahia,
compreendendo também Sergipe.
Apesar da força econômica dos carmelitas e de sua composição nume-
rosa, nada deixaram de significativo para a história dos carmelitas no
Brasil. O pouco que se podP- colher encontra-se no livro de Frei Manuel
de Sá (Lisboa, 1690 - Lisboa, 1735), carmelita, definidor e provincial
de sua Ordem, e membro da Academia Real da História <2 >.
Suas Memórias históricas da Ordem de Nossa Senhora do Carmo
da província de Portugal (3) contêm na primeira parte, a única publicada;
as origens, fundações e evolução dos conventos de Mouro, Lisboa, Colares,
Vidigueira, Beja e :tvora. Embora não dedicada ao Brasil é fonte de
informações e notícias de interesse para o Brasil. Segundo Barbosa Ma-
chado as Memórias são escritas com desvelo e boa crítica.
Seguiu-lhe a orientação e usou de suas notícias Frei José Pereira de
Santa Anna (Rio de Janeiro, 1696 - Paço de Salvaterra, Portugal, 1759),
também carmelita, doutor em teologia pela Universidade de Coimbra, pro-
vincial, e autor da Chronica dos Carmelitas da antiga e regular observân-
cia nestes reinos de Portugal, Algarve e Domínios <4 >.
·Frei Miguel de Azevedo ( ? , :tvora - ? ) , carmelita,
foi mestre e cronista da sua Ordem, prior provincial eleito em 1789 e
em 1800. Seu Catálogo dos rev.mos priores provinciais, ili.mos e ex.mos Srs.
Arcebispos e Bispos e dos doutores e professores em Universidades pú-
blicas, mestres jubilados e doutores graduados, e escriptores da província
dos carmelitas calçados em os reinos de Portugal, Algarves e seus domí-
nios <5 > é também de utilidade para o estudo da ação carmelita no Brasil.

(1) ABN, 1914, XXXII, pp. 77,80, n.o 6.698.


(2) Inocêncio Francisco da Silva - DBP, ob. cit., t. 6, 100-101.
(3) Lisboa, 1727.
(4) Lisboa, 1745-1751, 2 volumes.
(5) Lisboa, 1810.

310
CAPITULO VI

HISTORIA DA IGREJA EM GERAL

Capistrano de Abreu mostrou em seus estudos a preponderância da


Igreja exercida sobre a família, sua influência dominante sobre o Estado
durante todo o período colonial. Com ela se constituía a família, a ela cabia
a missão de ensinar, de definir o que é verdade e de condenar o erro, seja
ordinariamente, seja extraordinariamente através da Inquisição. As com-
plicações ou os conflitos entre Estado e Igreja sempre foram evitados, e
quando se tomava impossível evitá-los, obscurecia-se o mais que se pu-
desse. Mas nem por isso deixou de havê-los e em grau intenso. Por tudo
isso, Capistrano de Abreu escreveu que de certo modo a história colonial
era uma história de frades e clérigos (1). Com a independência começou
a instrução pública a ser um dever do governo, mas os dois poderes, o
civil e o eclesiástico, evitaram as causas dos conflitos. Uma das causas
destes era o privilégio de asilo de criminosos em edifícios eclesiásticos. Os
religiosos gozavam de intangibilidade e privilégios cuja observância exi-
giam sem exceções. Mas a intangibilidade reclamada perante o poder· civil
nem sempre era observada pelos clérigos entre si, ou pelas congregações
e ordens que lutavam por seus interesses espirituais e materiais e a isso
não escaparam nem os jesuítas, regularmente bem disciplinados. Foi por
isso que o governo português tomou a resolução de não permitir a fundação
de novos conventos principalmente nas capitanias auríferas de Minas Ge-
rais, Goiás e Mato Grosso. Continua Capistrano de Abreu, com a lucidez
costumeira, mostrando que, nos últimos tempos coloniais, houve o enfra-
quecimento do poder eclesiástico, e as lutas diminuíram em razão das
idéias liberais e da expansão que se fará do sistema constitucional. Com a
independência, o parlamento, a imprensa, o direito a reuniões, abafaram
as rusgas dos claustros e o sussurro das sacristias.
As pesquisas nos arquivos ultramarinos permitiram a descoberta de
numerosa informação manuscrita ainda não utilizada. Mas nem assim se
encontrou a "História Eclesiástica do Brasil", escrita por Gonçalo Soares
de França, e que tanto interesse despertou em Capistrano de Abreu <2 >.
Este pensava que ela existia na Biblioteca Nacional de Lisboa, mas sabe-se
atualmente que a conserva a Sociedade Geográfica de Lisboa <3 >.

(1) "Clérigos e Leigos" in Ensaios e Estudos, 3.• série, !.• ed., Rio, 1938, 2.• ed., Rio, 1976.
(2) Cartas de Capistrano de Abreu a Lino de Assunção, Lisboa, 1946, 25.
(3) Mss. reservado l·C-147.

311
Gonçalo Soares de França foi acadêmico da Academia Brasílica dos
Esquecidos <4 l.
O Inventário dos documentos existentes no antigo Arquivo da Ma-
rinha e do Ultramar trouxe muitas novidades. Assim "Notícias sobre os
Bispados da Bahia, Per.nambuco, Rio de Janeiro, Maranhão, Grão-Pará,
Gôa, Arcebispado Primaz do Oriente e Cranganor e Bispados de Cochim,
Milliapor ou São Thomé, Nankin, Pekim, Málaga, Macao, Santiago de
Cabo Verde, S. Thomé e Angola" <5 > não contém somente informações
religiosas, mas trata do clima, da fertilidade do solo, dos engenhos e das
riquezas em geral.
Já os "Parellelos Missionários Capuchinhos e Jesuítas do Bispado e
Capitania de Pernambuco ou relação abreviada em que se mostra a se-
melhança das práticas e máximas dos Missionários Jesuítas com as dos
Padres Capuchinhos na administração das Missões que tinha no Bispado
e Governo de Pernambuco" <6 > constituem um estudo comparativo entre a
ação dos Capuchos e dos Jesuítas, feito em onze paralelos, sempre favo-
rável aos Capuchos e adversos aos Jesuítas, acusados de muitas desa-
venças. Embora a época fosse antijesuítica, documentos anteriores aos
"Parelelos" acusavam os Capuchinhos de barbaridades, atrocidades e
perversidades contra os índios <7 >.
Além d~sso encontram-se relações de mosteiros e várias capitanias,
cujo conteúdo equivale a uma descrição histórica como a "Relação dos
Mosteiros dos Religiosos da Capitania da Bahia" (8), ou a "Relação
dos Mosteiros, Hospícios e Residências da Província de N. S. do Carmo da
Bahia e de Pernambuco, do número dos seus religiosos e das rendas de
cada um deles, segundo a Conta que deram os seus respectivos Priores e
Vigários Priores" (9), ou ainda a "Relação de todas as Igrejas Paroquiais
de que ... compõem prezentemente Jol Byzpado de Pern.co em comarcas
em cujas cabeças se rematão os dízimos dele" (10) e mais a "Relação dos
conventos de religiosos franciscanos da capitania da Bahia" <11 l.
Numa historiografia eclesiástica não poderia faltar a menção a D.
Sebastião Monteiro da Vide (Alentejo, 1642 - Bahia, 1722), jesuíta,
formado em Cânones pela Universidade de Coimbra, desembargador da
Relação Eclesiástica e Vigário-Geral do Arcebispado da Bahia (1701-1722).
Foi na Bahia que ele fez celebrar o sínodo de 12 de julho de 1707, no
quâl se ordenaram as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia0 2 >.

(4) José Aderaldo Castello O Movimento Academlclsta no Brasil - 1641-1820/22. São Paulo,
1969, 153-154.
(5) Lisboa, 1738 in "Inventário dos Documentos Relativos ao Brasil existentes no Archlvo
da Marinha e Ultramar de Lisboa", ABN, XXXI, n. 0 • 348-350, pp. 31-37.
(6) "Inventário" cit. ABN, XXXI. 444-454.
(7) "Inventário" clt. ABN, XXXI, n.0 • 5.351, 5.355-56, pp. 422-444.
(8) "Inventário" clt. ABN, doe. 6.555, pp. 66-68.
(9) "Inventário" cit. ABN, vol. XXXII, n.0 6.698, pp. 77-80.
(10) "Catálogo de Manuscritos sobre Pernambuco existentes na Biblioteca Nacional" ABN,
V, 71, n. 0 281 p. 224.
(11) 1 de julho de 1799, in "Inventário" cit. ABN, vol. 34, n. 0 17, 418, p. 455.
(12) t.• ed. 1719; 2.• ed. 1720, 3.• ed. S. Paulo, 1853.

312
A ele se atribui a tradução do italiano da Synagoga Desenganada do Pe.
João Pedro Pimonte <13 >. Ele foi autor de um "Catálogo dos Bispos"
segundo se vê pela informação prestada por José de Oliveira Bes5a,
socio-numerário da Academia Brasílica dos Renascidos e cônego da Sé
Primaz da Bahia <14 >. Em 31 de dezembro de 1722 ele estava muito
doente, como se lê na Gazeta de Lisboa (15).
A historiografia religiosa registra Triunfo Eucharistico (Lisboa, 1734),
de autoria de Simão Ferreira Machado, nascido em Lisboa, residente em
Minas Gerais, e o Aureo Throno Episcopal (16), de Francisco Ribeiro da
Silva, cônego da Sé de Mariana, ambos recentemente reeditados, em
edições primorosas, pela reprodução facsimilar do texto e pelo aparato
crítico que as acompanham (17).
Escreveu Afonso Ávila que o Triunio Eucarístico é "o primeiro do-
cumento de interesse literário a reportar as manifestações de unr estilo
de vida barroco na sociedade mineradora do século XVIII. Nele Simão
Ferreira Machado descreveu as festividades, que no ano anterior, assina-
laram a inauguração de nova matriz do Pilar pêlos moradores' do bairro
de Ouro Preto, e a solene trasladação para esse templo da Eucaristia,
provisoriamente depositada na igreja de Nossa Senhora do Rosário". Para
Ávila o Triuni o Eucarístico "evidencia sem dúvida, o estado de euforia da
sociedade mineradora, que se faz expandir através de uma festa mais de
regozijo dos sentidos, que propriamente de comprazimentõ espiritual. A
igreja vê também a oportunidade de afirmar sua hierarquia colonizadora
nas Minas, realizando quinze anos antes da instalação do primeiro bispado,
verdadeira demonstração de poderio temporal e domínio religioso".
"Mais que em seu significado religioso", Simão Ferreira Machado
"detém-se na descrição pormenorizada dos elementos da composição
coreográfica da festa ouropretária". Ávila chama a atenção para o equí-
voco dos estudiosos de história mineira que têm ressaltado o caráter
hiperbólico da linguagem do Triunfo Eucarístico, chegando mesmo a
acusar seu autor de exagero descritivo e inveracidade histórica. Os his-
toriadores, observa Ávila, não atentaram "para o fato de que o tom super-
lativo da prosa de Simão Ferreira Machado deve ser debitado à tendência
literária da época, dominada ainda pelo gosto culterano da frase".
O espetáculo total que o Triunfo descreve abrange, ao lado de sole-
nidades sacras, as exibições de música, coreografia, teatro, jogos públicos
e poesia.
Na dedicatória assinalada pelos irmãos pretos da Irmandade do
Rosário se escreve que "sahe pois à pública luz esta escriptura, f narra-
ção de tão grande solenidade, porque o motivo de a solicitarmos foi o
nosso agrado e o nosso agradecimento. A pena alocutória rememora a

(13) Lisboa, 1720.


(14) Alberto Lamego, A Academia Brasllica dos Renascidos, Paris, 1923, 65.
(15) Noticias históricas de Portugal e Brasil, 1715-1750, Coimbra, 1961, 81.
(16) Lisboa, 1749.
(17)
Afonso Ávila, Reslduos Seiscentistas em Minas. Texlos do século do ouro e as projeções
do mundo barroco, Belo Horizonte, 1967, 2 vols .

.313
história de Portugal, da descoberta do Brasil e das Minas, e a riqueza des-
tas. Termina revelando que do Rio de Janeiro, e das mais distantes partes
das Minas e fora delas, houve na vila, e seus arredores, inumerável e nunca
visto aparato". Só então começa a Narração da solenidade, escrita com tud?
minúcia, numa rebuscada linguagem de desagradável leitura.
No final, o livro esplendidamente editado contém glossário e notas
ao texto do Triunfo, as notícias bibliográficas e a bibliografia do Triunfo,
preparada por Hélio Gravatá.
O Áureo Trono, outra festa, come. escreveu A vila, ao mesmo tempo
religiosa e profana, que de modo elo-1üente colocou em evidência os
resíduos barrocos da vida da comunidadt., mineradora na primeira metade
do século XVIII, foi a posse de Dom Frei Manuel da Cruz, bispo em
cuja investidura se instala solenemente, nc, ano de 1748, a diocese de
:Mariana. O cônego Francisco Ribeiro da Silva, do cabido da nova Sé,
editou Áureo Trono Episcopal (1 8 l, livro com relato de autor anônimo, ao
qual se seguia uma coletânea de peças literárias alusivas ao acontecimento.
O Áureo Trono reúne composições poéticas e oratórias de circunstância,
não apresenta, no exame isolado de cada peça ou na consideração indivi-
dual de seus autores, elementos de valor para uma apreciação geral,
como acentua Afonso A vila. Este anota que "embora destituído de maior
interesse literário, o relato introdutório do Áureo Trono contém, em meio
a redundância e minúcias às vezes rebarbativas, uma soma preciosa de
informações e observações. "O cronista anônimo dos fatos ligados à posse
de D. Frei Manuel da Cruz procura, a exemplo do que fizera antes Simão
Ferreira Machado, emprestar à sua narrativa vivacidade e fidelidad~ jor-
nalísticas, não apenas acentuando o colorido coreográfico e solene das
festividades, como ainda colocando o acontecimento reportado dentro da
correspondente perspectiva histórica", escreve Afonso Ávila. Na sua
introdução, A vila acentua o espetáculo de rua, o brilho intelectual, o
torneio de poesia, os paradigmas culturais, o lirismo, a poesia maior, o
poeta menor, a nota elegíaca, a poesia do humor, a oratória. Ao se con-
cederam as licenças, a aprovação do Frei José da Madre de Deus diz
ter visto o Áureo Trono Episcopal, colocado nas Minas de Ouro e que
"consta esta obra de uma agmdável notícia de pomposa entrada, que fez
no Bispado de Mariana o seu digníssimo primeiro Bispo, e de uma relação
das Poesías, solenidades, e mais demonstrações de júbilo e pazer, com
que os moradores daquele Bispado obsequiaram ao dito senhor, concor-
rendo com primorosa e discreta emulação, para fazerem agradável, plau-
sível, e vistoso o ato da posse, que tomou daquele seu Bispado".
O livro começa dizendo que o juiz das Minas, que é o mais útil à
Lusitânia entre os vastos domínios de sua Coroa, "não só se acha falto
das utilidades temporais, que convidavam os portugueses a sofrer um des-
terro voluntário naqueles sertões, mas não tinha ainda toda a cultura

(18) Lisboa, 1749.

314
espiritual necessária para a salvação das almas". Comenta a seguir a
extensão do Bispado do Rio de Janeiro e a decisão de D. João V de
pedir ao Papa a criação de mais duas dioceses, uma na capitania de São
Paulo e outra na das Minas <19 >.
A obra contém a parte poética, a relação da procissão, orações aca-
dêmicas e congratulatórias e o sermão do segundo dia do Triduo (20).
D. Thomás da Encarnação da Costa Lima (Bahia, 1723 - :Bvora,
1784) secularmente chamado Antônio da Costa Lima, foi para Portugal
na adolescência, cursou a Universidade de Coimbra, foi Mestre de Artes
e freqüentou aulas de Direito Civil. Tendo vocação religiosa recebeu a
murça de cônego regrante de Santo Agostinho em 1747. Cursou a Fa-
culdade de Teologia onde se doutorou. Foi professor de história eclesiás-
tica compondo nesse tempo a sua bibliografia. Foi prefeito dos estudos
no colégio de ensino secundário que se criou em Mafra, até ser noméado
Bispo de Pernambuco (9. 0 bispo, 1774-1784) . Publicou uma pastoral
revogando a multiplicidade de excomunhões e censuras existentes_ nas
Constituições do Arcebispado da Bahia, pelas quais se regiam os bispados
brasiJeiros <21 > e depois de governar por dez anos, faleceu em Olinda aos
14 de janeiro de 1784 (22>.
Sua obra principal é a Historia Ecclesiae Lusitanae, per singula seculae
ab Evangelio Promulgata (23l. Varnhagen afirma ser sua obra recomen-
dável <24 >.
Já fizemos referência à obra de Manuel da Fonseca na parte refe-
rente aos jesuítas, pela sua Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes <25 >,
e a ele retornaremos quando tratarmos da historiografia das rebeliões.

(19) A de São Paulo e de Minas criadas a 6 de dezembro de 1745 pela bula Candor
Lucls eternae.
(20) Cont~m ainda o glossário e notas ao texto, traduç!o de frasmentos em latim, noticias
bibliográficas e a bibliografia de autoria .de Hcllo Gravatá.
(21) Carta pastoral exortatórla do clero e povo de Pernambuco, ao tomar posse da cadtlra
episcopal, Olinda, 1774.
(22) lnocenclo Francisco da Silva, DBP, t. VII, 343-344.
(23) Coimbra, 1759, .f tomos.
(24) História Geral do Brasil, IV, 327 e n.0 94.
(25) !.• ed. Lisboa, 1752. 2.• ed. S. Paulo.

315
LIVRO SÉTIMO

Historiografia das Rebeliões


CAPITULO l

HISTORIOGRAFIA SANGRENTA
l . História Sangrenta. 2. A historiografia sobre e/ou con-
tra os índios. 3 . A historiografia sobre e/ou contra os ne-
gros. 3 . 1 . Considerações Gerais. 3. 2. A guerra dos Pal-
mares. 3. 3 . Revolta de escravos. 3 .4. Sublevações de co-
lonos. 3 . 5. Os Mascates. 3. 6 . As lutas em Minas Gerais.
3. 7. Emboabas. 3. 8. A revolta de 1720. 3 . 9 . As conjura-
ções e rebeliões.

1 . História Sangrenta

Desde as Aspirações Nacionais (1) venho sustentando que a história


do Brasil foi muito mais cruenta que a escrita e ensinada. Depois na
Conciliação e Reforma <2 > voltei à tese, sem dar-lhe contudo a profundeza
e o caráter monográfico que o tema exige. Na "Rebeldia Negra e a
Abolição" <3 > focalizei o aspecto cruento da abolição da escravidão, ainda
sem dar à questão o tratamento que o assunto comporta, e mesmo nesta
historiografia não se tratará senão do aspecto historiográfico colonial <4 >.
Desde a chegada do homem branco ao Brasil, a luta contra os índios
foi contínua e permanente. As insurreições indígenas começam no pri-
meiro século e perduram até hoje, sob formas as mais variadas. Os ali-
cerces da civilização mestiça foram construídos no Brasil sob sangue, e a
maioria popular indígena e negra foi sangrada e ressangrada, direta ou
indiretamente. O ponto maior desta sangração foi a chamada Guerra dos
Bárbaros (1682/84-1710) a qual mereceu de Afonso d'E. Taunay um
capítulo inteiro da sua História Geral das Bandeiras Paulistas <5 >.
A violência, o terror e o extermínio dominaram toda história colonial
e está contada na historiografia da época. A própria questão da liberdade
ou escravidão indígena provocou grandes tumultos e ensangüentou a his-
tória brasileira <6 >.
O mesmo se pode dizer em relação às revoltas e aos quilombos
negros dizimados e destruídos com a maior sangueira. Os povos indígenas
(1) 1.• ed. São Paulo, 1963.
(2) Um desafio histórico cultural. Rio de Janeiro, 1965.
(3) ln História e Historiografia. Petrópolis, 1970.
(4) O lugar verdadeiramente próprio será ln História Moderna do Brasil que ainda tencio-
namos escrever.
(5) S. Paulo, 1930, VI, 301 e segts, e VII; ed. resumida S. Paulo, Melhoramentos, s/d., l,
181 -; a matéria tinha sido aflorada por F. A. de Vamhagen, História Geral do Brasil, 3.• ed., s/d,
111, 3/6 e ricamente fundamentada nos Documentos Históricos, Biblioteca Naclonal, Rio, vários
volumes. ' -·
(6) No capitulo sobre a crônica jesufllca tratei resumidamente da matéria e nos DHBN se
encontra fartá documentaçlo sobre as hostilidades, revoltas, sublevações, assaltos, castigos, açoites,
desordens , fugas, levantes e violências. Vide especialmente vols. 90.97.

319
e negros foram sempre considerados gente de segunda classe e sujeitos
aos maiores crimes, indefesos diante do poderio oficial ou simplesmente
do colono impiedoso e absoluto.

2. A historiografia sobre e/~u contra os índios


A "Memória sobre os 1ndios do Brasil" (7 l é uma história das rebe-
liões dos índios das capitanias de Pernambuco e Rio Grande, ribeiras do
Assu e Jaguaribe, escrita por Pedro Carrilho de Andrade <S>, dominada
. pelos preconceito~ raciais e políticos, sem nenhuma mostra de compreensão
da cultura indígena, antes justificando a guerra. Ele escreveu sobre a paz
ou a guerra com os índios, procurou mostrar as causas, declarando os
efeitos, apontando os meios, o que sua "Memória" não apresenta senão
muito parcialmente. ·
José Freire de Montarroio Mascarenhas (Lisboa, 1670 - Lisboa,
1760) estudou humanidades e concluindo seus cursos empreendeu em
1693 uma viagem de estudo percorrendo vários países europeus. De
1704 a 1710 serviu como capitão de cavalaria na guerra de Sucessão da
Espanha. Feita a paz, foi redator durante quarenta anos da Gazeta de
Lisboa, e com as relações e folhetos que publicou tomou-se sócio de
várias academias e associações literárias (9). Da sua vasta bibliografia
interessa a esse capítulo Os Orizes Conquistado, ou notícia da conversão
dus indômitos Orizes Procazes, povos bárbaros do sertão do Brasil (lO>.
Parece que Mascarenhas nunca veio ao Brasil e teria escrito essa
narrativa seguindo informações enviadas do Brasil. Na sua dedicatória,
naquele tom bajulatório, comum aos escritores portugueses da época, ele
escreveu que descoberto o Brasil havia 215 anos nunca fora domada a
nação dos Orizes, agora rendidos, com o que se aumentava o Brasil com
tantos mil vassalos, aumentava-se o rebanho da Igreja, e se ganhavam
muitos centos de léguas. A narrativa é rebuscada, fantasiosa e fideindigna.
A "Breve Notícia que dá o Cap. Antônio Pires de Campos do gentio
bárbaro que há na derrota da viagem das minas de Cuyabá" (11> tem
caráter mais fidedigno e se concentra sobre os índios pareeis, gentio de
aldeia que povoava muita terra, vivia de sua lavoura, batatas, milho e
outros legumes, nus, e guerreavam os gentios de outras nações, para os
apreserem e os comer, pois muito gostavam da carne humana. Enume-
ra-lhes as armas, são traiçoeiros e ladrões; descreve os cayapós e liga
sempre os rios aos índios seus habitantes, revelando seus costumes, e as
guerras que fizeram aos brancos, sempre apresentados como agredidos e

(7) RIHGRGN, 1909, vol. VII; n."' 1 e 2, 133-151. O original está na Biblioteca Nacional.
(8) Não registro nos Dicionários de Inocêncio e Sacramento Blake.
(9) Sua biografia e vasta bibliografia, afora os manuscritos ln Inocêncio Francisco da SIiva.
DBP, ob. cft., 4, 343-353.
(10) Lisboa, 1716. Reproduzida ln R/HGB, Vlll, 494-512, e Documentos dos Arquivos PortU·
gueses que Importam ao Brasil, julho-sei. 26/27, 1948. Diogo Barbosa Machado o Incluiu na sua
coleção de folhetos raros portugueses no volume Intitulado "Noticias históricas e militares da
"América", descrita por Ràmlz Galvão ln ABN, VIII, p. 377, n.• 1.582.
(11) RIHGB, 1862, XXV, 437-449.

320
não agressores, e termina acentuando que estes sertões e gentios foram
descobertos pelos paulistas.
Quando Gomes Freire de Andrnda andou chefiando as tropas de lutas
com os hispano-argentinos e de ocupação das aldeias das Missões de
(ndios no Rio Grande do Sul e suas vizinhanças, escreveu-se sobre a
matéria enorme bibliografia <12 1, da qual aqui se trata apenas da que é
relativa às lutas com os indígenas. A "Memória ou resumo do sucedido
no nosso Exército de 28 de Junho, que embarcou no Rio Grande té o
Rio Pardo, das suas marchas e mais sucedido té 18 de Dezembro, em
que destaca outra vez para a vila do Rio Grande" <13 > descreve os passos
e contrapassos das negociações e pressões sobre os índios exercidas pelo
Exército luso-brasileiro e das tréguas que se seguiram. A "Breve notícia
do sucesso que na guarda do Passo do Rio Pardo houve entre portugueses
e os Tapes das Missões circunvizinhas ao mesmo Rio" 1rn é também uma
narrativa histórica primária destas lutas contra os índios das missões,
que acabaram, eles e suas terras, sendo incorporados ao Brasil em 1801.
De todas as narrativas uma das mais importantes é a Relaçam Ver-
dadeira em que se dam a ler as vitórias dos Portugueses contra os gentios
e levantados, alcançadas por Gomes Freire de Andrade nas terras vizi-
nhas da nova Colônia, e estados das lndias de Hespanha 0 51, que é elo-
qüente no seu panegírico político-militar às virtudes de Gomes Freire de
Andrada: "Em pouco papel darey a lei ao mundo que no ilustre sangue
da Casa de Bobadela não se esfria aquele grande valor, que em tantos
seculos deu Heroes ao mundo, que no Juiz das armas deixaram decidida
a justiça do seu merecimento. As historias são o testemunho autentico,
que abonam o dever-se a esta Casa não pequenos indícios de esforço,
tanto mais acreditado, quanto vay em servir pela reputação sem pro-
curar o premio".
Seco e árido é o "Resumo do Diário que se fez na marcha do Exército
de S. M. Fidelíssima, que saiu do Rio Grande de S. Pedro, a encontrar-se
com o de S. M. Católica, para hirem unidos a castigar os povos rebeldes
das 7 Missões, que cede Hespanha a Portugal, sendo General do Exér-
cito Portuguez Gomes Freire de Andrade e do Hespanhol D. José Ando-
naique" <16).
A emprc~a de dominar e submeter tribos indígenas, indômitas e
bravias, foi uma constante na história do Brasil. As chamadas pacifica-
ções não são senão . sujeições que são feitas aos Caiapós em 1781, aos
Xavantes no Araguaia em 1783 e aos canoeiros no Tocantins em 1789.
A Relação da conquista do gentio Xavante 117 1 é de autoria de José Ro-
drigues Freire, tenente dos dragões, que tomou parte na conquista e sub-
•:,issão.
(12) A parte historiográfica sobre a guerra merece capítulo especial.
(13) Resumo in ABN, L, pp. 449-453, n.0 18.205.
(14) Al.'./, L, pp. 514-516, n. 0 19.224.
(15) Lisboa, 1757. Encontra·Se também na coleção "Notícias históricas e militares da Amé-
rica•, coligidas por Barbosa Machado e descritas por Ramiz Galvão, ABN , VIII , p. 378, n .o 1.585.
(16) t de Santo Ãngeio, 22 de Junho d e 1756. in ABN. 71. n .0 2.1 65, pp. 121-135.
(17) Lisboa, 1790, 26 pp.

321
Restam ainda as "Informações sobre os tndios Bárbaros dos Sertões
de Pernambuco" (18 ) que não passam de documentos históricos ou fontes
primárias, não pertencendo assim à historiografia, embora relatem as cruel-
dades, a fome, a miséria e a pobreza indígena e a "Memória sobre as
nações gentias que habitam o continente do Maranhão" (19) que tem cará-
ter narrativo sobre os vários grupos e sobre a importância geral dos gen-
tios da capitania, e a análise das expedições formadas na capitania para
reduzir pelas armas as povoações gentias, escrito em 1819, embora cubra
até os anos de 1815-1816.

3 . A historiografia sobre e/ ou contra os negros

3 . l . Considerações Gerais
A tese principal que tenho procurado manter nos estudos esparsos
feitos sobre a matéria (2 0l consiste em sustentar que houve um estado
permanente e não esporádico de rebelião negra. E que não foram só as
grandes insurreições como Palmares e a dos Malés, mas as pequenas ou
menores, todos os anos, várias vezes por ano, que deram à liberdade
negra o caráter de uma conquista e não de uma doação, e que ensangüen-
tavam o solo político brasileiro. Pouco antes da independência, Hipólito
José da Costa Furtado de Mendonça escrevia com clareza e lucidez: "Há,
porém, um ponto, sobre que mais de uma vez temos falado, em nosso
periódico, dando nisso nossa decidida opinião; e a respeito da qual obser-
vamos, que todos os escritores do Brasil guardam ainda silêncio; é este
ponto, a gradual e prudente extinção da escravatura.
"É idéia contraditória querer uma nação ser livre, e se o consegue
ser, blazonar em toda a parte, e em todos os tempos de sua liberdade,
e manter dentro de si a escravatura, isto é, o idêntico costume oposto à
liberdade.
"Seria a desesperada medida de um louco, destruir de uma vez a
escravatura, quando ela além de constituir parte de propriedade do país,
está também ligada ao atual sistema de sociedade, tal qual se acha consti-
tuída. Mas, se a sua abolição repentina seria um absurdo rematado, a sua
perpetuação num sistema de liberdade constitucional é uma contradição de
tal importância, que uma coisa ou outra devem acabar. Os Brazilienses,
portanto, devem escolher entre estas duas alternativas: ou eles nunca
hão de ser um povo livre, ou hão de resolver-se a não ter consigo a es-
cravatura.
Depois de negar o argumento de que os escrávos são necessários
para a cultura do campo e para lavrar as minas, e que sem eles o

(18) RIHGB, 46, I.• parte, 103-119.


(19) RIHGB, Ili, 184-197, 297-322, 442-456. O CEHB n. 0 11.425 cit. do mesmo autor como
autógrafo do Instituto Histórico. "Das Nações gentiâs que prezentemente habitão o continente do
Mar. Análise de algumas tribus conhecidas: Progresso de suas hostilidades sobre os habitantes.
Causas que lhes tem dificultado a redução, e o único método que seriamente poderá reduzi-las".
(20) Esp, "A Rebeldia Negra e a Abolição" ln História e Historiografia, Vozes, 1970, 65-88.

322
Brasil se empobreceria, ele pergunta, aceitando esse raciocínio: "que pre-
ferem os Brazilienses, ser pobres, mas serem livres, com um governo cons-
titucional, ou serem ricos, e submissos a governos arbitrários, sem outra
constituição política, que a que lhes prescreva o despotismo?"
Acentua os males da escravatura sobre a educação, e finaliza decla-
rando que esse mal deve ser remediado gradualmente mas é necessário
decidir entre a liberdade e a escravidão.
Esse pensamento da incompatibilidade entre a escravidão e a liber-
dade vai ser repetido por Joaquim Nabuco no auge da campanha abo-
licionista.

3 . 2. A guerra dos Palmares


Apesar de sua duração (1602/ 1608-1694), quase um século, e de ser
como escreveu Edson Carneiro "a mais prolongada tentativa de auto-
governo dos povos negros do Brasil" <21 > é modesta a bibliografia e a
historiografia sobre Palmares, que sofreu o assalto branco 25 vezes, e
sobreviveu como um Estado negro durante tão longo período. Na ver-
dade a historiografia preferia mantê-Ia no silêncio, ocultar sua força e
sua significação. A única narrativa da época é a "Relação das guerras
feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do Governador D. Pedro
de Almeida, de 1675-1678" (22l.
A "Relação" começa afirmando que sendo poderosas as forças luso-
brasileiras para vencerem os holandese~. "nunca foram ~ficazes para des-
truir o contrário, que das portas adentro nos infestou, não sendo menores
os danos deste, do que tinha(m) sido as hostilidades daquele". Que não
fora devido ao descuido pois todos os governadores com cuidado se em-
pregaram neste negócio, e que "os melhores cabos desta Praça, os mais
experimentados soldados desta guerra se ocuparam nestas levas, e não
sendo pouco o trabalho que padeceram, foi muito pouco o fruto que
alcançaram".
O autor anônimo da "Relação" acreditou que desde quando a capi-
tania teve negros cativos, os Palmares tiveram habitadores, e que havia
palmares distintos, formando um conjunto unido, reconhecendo todos
os naturais de Palmares ou vindos de fora, Ganza Zumba, como o senhor
grande, que habitava a capital, fortificada, ocupando dilatado espaço com
mais de mil e quinhentas casas; há justiça e capelas; era, enfim, como
veio a escrever Rocha Pita, em 1724, trinta anos depois de haver Do-
mingos Jorge Velho reduzido os Palmares ( 1694), "uma República rústi-
ca, bem ordenada, a seu modo", o que levou Nina Rodrigues a esclarecer
que o termo República fora empregado no sentido de Estado, tão comum
em todos os autores coloniais, e não no sentido de regime de governo.

(21) O Quilombo dos Pa:mares, São Pauto, Companhia E<11tora Nacional, 2.• ed., 1958, 41.
(22) RIHGB, 1859, XXII, 303-329; reprod. por Edson Carneiro, ob. clt., 201-222.

323
"Este é o inimigo que das portas adentro destas capitanias se con-
serva a tantos anos, a quem defendia mais o sítio, que a constância; os
danos que deste inimigo nos tem resultado são inumeráveis, porque com
eles periga a Coroa e se destroem os moradores."
Depois de acentuar que com suas "entradas ficaram as nossas povoa-
ções destruídas, e os Palmares conservados", conta que quando D. Pedro
de Almeida veio a governar esta capitania, em face dos clamores do
perigo comum e da insolência dos negros lamentada por todos os mo-
radores, "D. Pedro resolveu acudir ao remédio de conquistar a soberba
daqueles inimigos". Daí em diante conta a ação empreendida por Fernão
Carrilho (1676-77).
Acaba aplaudindo esta ação como vitoriosa e definitiva, quando
como sabemos os Palmares sofreriam ainda oito ataques até a vitória
de 1694.
Dos autores da época, historiadores da guerra, temos Domingos do
Loreto Couto nos "Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco" <23 >,
já tratado na historiografia regional e que escreveu em 1757, e Sebastião
da Rocha Pita, que será estudado na historiografia geral, cuja obra data
de 1724.
O primeiro tratou num capítulo "Das guerras c1v1s do Palmar" (24l
do começo e fim da guerra civil do Palmar, uma "rústica e rebelde Repú-
blica do Palmar" iniciada por quarenta negros do gentio de Guiné, e
sempre em constante aumento, pela adesão ou pelo resgate de negros,
mulatos e mestiços de mais reto procedimento, de maior valor e experiên-
cia. Revela sua organização, suas normas de justiça, a conservação do
rito católico, com a introdução de "ridículas superstições e erros, culpa
mais de sua ignorância, que de sua maldade". Conta a convocação dos
paulistas "homens que fáceis seguem a guerra pela honra de vitória, des-
prezando o interesse dos despojos", e afirma que o nome "se lhe deu pelas
muitas Palmeiras que lhe plantaram os negros". A vitória sobre os Palmares
foi recebida com muitos aplausos no Recife onde nos negros "entrarão a
representar na sua desgraça o nosso triunfo. Todos os que eram capazes de
fugir, ou de se rebelar os transportaram para as outras províncias do Brasil,
e alguns se remeteram a Portugal". Termina afirmando que "este fim tão
útil, como glorioso teve a guerra, que fizemos aos negros do Palmar. Pelo
espaço de sessenta e sete anos, foram o escândalo desta Província, porque
os governadores demasiadamente prudentes se contentavam com lhes fazer
uma guerra defensiva".
Rocha Pita, que antec,edeu Loreto Couto trinta e três anos, deu-lhe
um tratamento que ou foi imitado por Loreto Couto ou ref!ete os pre-
conceitos da época e a visão senhoril da história.

(23) ABN, vols. 24,25.


(24) Livro oitavo, cap. IV, vol. 25, pp. 187·1'4.

324
Divide-a em pequenos capítulos, dá o começo pelos quarenta negros da
Guiné, os sessenta e cinco anos de luta. Para Rocha Pita os negros "fugiram
aos Senhores, de quem eram escravos, não por tyranias, que neles experi-
mentassem, mas por apetecerem viver isentos de qualquer domínio ...
estimando mais a liberdade entre as feras que a sujeição entre os ho-
mens". Como um senhor afirma que se lhes juntaram alguns delinqüentes
escravos, e mulatos cúmplices em delitos domésticos e públicos, fugindo
ao castigo dos Senhores e da Justiça; levaram muitas negras e mulatas
do serviço doméstico e das lavouras para maior aumento de população,
e formaram "uma república rústica e a seu modo ordenada; viviam como
cristãos cismáticos, e fizeram acordos com moradores daqueles distritos,
temerosos dos assaltos e danos que podiam fazer".
Para Rocha Pita era uma calamidade que Pernambuco padecia com
a opressão dos Palmares, e coube ao governador Caetano de Melo e
Castro ( 1678-1682) fazer-lhes a guerra. Para isto contratou o paulista
Domingos Jorge Velho, que com todo este nome português não passava
de um "selvagem" como lhe chamou o Bispo de Pernambuco <25 l, con-
cubinado com oito índias, sem falar a língua portuguesa, e que tirou
muitas vantagens da guerra, sobretudo em terras. Foi um exército de
6.000 homens que sujeitou os Palmares, onde viviam vinte mil almas de
ambos os sexos, possuindo lavouras, afora as pequenas povoações cha-
madas mocambos, no qual assistiam seus fiéis e veteranos soldados, cal-
culados em dez mil. Conta os combates, o assédio, o afrouxamento da
resistência, o rendimento, e "o fim tão útil, como glorioso que teve a
guerra" <26 >.
A "Narração episódica dos Palmares" (27J, embora sem autoria de-
clarada e sem indicação de fonte, começa afirmando uma verdade da
história do Brasil: "A extinção dos indígenas do Brasil, as revoluções
sucessivas entre os descendentes dos europeus, a luta que nessa época
teve lugar para a conquista da independência, não são os únicos aconte-
cimentos históricas, que ensangüentaram este país.
"Os negros, essa raça desgraçada, cuja história apenas conta entre
nós desde o dia em que foram submetidos à mais rude escravidão, com-
preenderam fundar um império durável nos desertos de Pernambuco, ou
souberam sustentar-se por muitos anos.
"Esta narração é tão curiosa, que seria impossível deixar de trans-
crever, tal qual fora referida pelos próprios contemporâneos."

3 . 3 . Revolta de escravos
Não se trata nesta subdivisão da história das rebeliões negras, mas
sim da historiografia das rebeldias negras. Não há nem história, nem
historiografia feita por mãos negras, e a história ou historiografia oficial

(25) Ernesto Ennes. As Guerras dos Palmares , S. Paulo, 1938, 353.


(26) flist6ria da América Portuguesa, ed . Gamier, s/d, pp. 338-350.
(27) Recreador Mineiro, Ouro Preto, IV , 1847, 72 1-724.

325
e branca ocultou o mais que pôde este fato e sua significação. Na "No-
tícia - l.ª Prática que dá ao Padre Diogo Alvares, o capitão-mor Luís
Borges Pinto, sobre os seus descobrimentos da célebre casa da casca
compreendidos nos anos de 1726-1727, sendo governador o capitão ge-
neral D. Lourenço d'Almeida" <2 8) conta-se que "fui dar com um quilombo
de negros, que tive ao princípio por alguma aldeia de gentio pela força,
roças e ranchos, de que estava provida: foram cercados, investidos e
mortos quarto e os restantes se amarraram para serem remetidos a seus
senhores" <29 >.
Referências como esta, que são históricas e não historiográficas, apa-
recem em vários documentos, alguns de capital importância. Nas "Ins-
truções para D. Antônio de Noronha, governador e capitão general da capi-
tania de Minas Gerais" <3 º>, de autoria de Martinho de Melo e Castro, depois
de explicar que na guerra na América se formavam as tropas irregulares
com os índios e que em Minas com a grande quantidade de pardos e
negros se deviam formar corpos semelhantes, acrescenta: "como foi o
de 7 companhias que o governador interino José Antônio Freire de An-
drade mandou levantar de _gente escolhida para irem destruir os qui-
lombos de Campo Grande. Compunham estes quilombos de várias habi-
tações de negros fugidios e rebeldes, que depois de muitos anos se tinham
refugiado no sertão, e servindo-lhes o mato de fortaleza, infestavam todos
aqueles distritos, não havendo quem os pudesse habitar, nem passar por
eles sem evidente perigo de vida". Informa que foram todos destruídos.
No "Compêndio das épocas da capitania de Minas Gerais, desde o
ano de 1694 até o de 1780" (31) se registra que "a Câmara de Mariana
concorreu com a soma de 300$000 réis para as despesas com a guerra
contra os negros do Quilombo grande (igual prestação se fez ainda no
ano de 1759 para o mesmo fim)".
Assim também nas "Memórias Cronológicas da capitania de Mato-
Grosso, principalmente da Provedoria da Fazenda Real e Intendência do
Ouro" <32 >, escritas por Felipe~osé Nogueira Coelho, se diz que do incan-
sável· zelo do ouvidor, intendente e provedor descobriu-se o "grande qui-
lombo nas campanhas do rio Galera, o qual tinha principiado logo que
descobriram estas minas. Tinha o quilombo 79 negros de ambos os sexos,
e trinta índios. A transformação, evolução e dispersão dos quilombos
ainda não foi bem estudada, apesar da documentação histórica exis-
tente <33 >.

(28) ln Afonso d'E. Taunay Relatos Sertanistas, São Paulo, 1953.


(29) Ob. clt., 161.
(30) RIHGB, 2.• ed., 1865, t. 6, 213-221, esp. 219-220.
(31) RIHGB, 2.• ed., 1846, t. 8, p. 63.
(32) RIHGB, 2.• ed., 1872. XIII, 182.
(33) Vide por exemplo Oficio do Governador conde da P.onte para o Visconde de Anadia,
no qual o Informa das providencias que tomara para destruir os Quilombos, formados pelos
escravos fugidos dos Seus Senhores; Bahia, 7 de abril de 1807; "Oficio do governador Conde
da Ponte para o Visconde de Anadia em que lhe dá parte das providencias que adotara para
evitar um levantamento dos escravos contra os brancos de que tivera denúncia", Bahia 16 de
Junho de 1807; "Provisão do Conselho Ultramarino pelo qual ordenou aue o Vice-Rei do Brasil
Indicasse as provld!nclas que Julgasse necessárias para evitar as sublevações dos escravos de Minas
Gerais contra os brancos•, Lisboa, 18 de Junho de 1725, ABN, vol. XXXVII, n.• 29, 815, PP·
450-451 e n ... 29.893-4, pp. 460-461.

326
3 . 4. Sublevações de colonos
As várias formas de banditismo social, lutas de famílias com seus
capangas, a assistência de régulos, nome geral com que na colônia se
designavam os chefes de grupos armados, que usavam a violência como
instrumento de reivindicações, as rebeliões de colonos, formam um capí-
tulo especial da historiografia. Afora as insurreições negras, os histeria-
dores gerais e provinciais, post mortem, tratam, como Varnhagen ou
Diogo de Vasconcelos, das opressões e das sedições. Escreveram basean-
do-se em documentos históricos, mas existe muito pouco escrito pelos
contemporâneos, o que constitui o cerne da historiografia.
Alexandre de Gusmão escreveu umas "Memórias dos fatos, que hão
servido de motivos às intentadas, ou supostas insurreições da Améríca
Portuguesa".
Afirmou Alexandre de Gusmão que "no continente da América Por-
tuguesa, principalmente nas Comarcas das Minas, houve em diversos
tempos com muitos e diferentes motivos, alguns ranchos de descontentes,
que amotinarão algum Povo, falarão com orgulho aos Governadores,
que chegaram a temer levantamentos formais, mas tudo se sossegou,
mediante algumas providências dadas pelos mesmos governadores, aju-
dados de alguns homens bons, e das governanças das Câmaras.
"Ninguém pode duvidar, que daqueles pequenos ranchos amotinados,
se podiam com facilidade seguir levantamentos de insurreições fortes, se
acaso tivessem uma cabeça que os animasse, e dirigisse para o terrível
fim de se subtraírem da obediência do seu legítimo soberano: o qual
morando tão distante do Território deste acontecimento, lhe chegaria
muito tarde a notícia: e ganharia tais forças o levantamento que seriam
inúteis todas as diligências para impedirem os seus terríveis feitos.
"O 1.0 fato que deu motivo a ouvirem-se nas Comarcas das Minas
palavras de Vassallos com espírito de rebeldia, e falta de verdadeira
sujeição ao Governo, é do Reinado do Snr. D. Pedro II. Foi o donativo
gratuito de 2 milhões e 240 mil cruzados para o Casamento da Senhora
D. Catarina, pelos anos de 1641 (34 ) , que em algumas Comarcas das Minas
se pricipiou a cobrar como Fazenda Real.
"O 2.0 fato que serviu de motivo para renovar-se a falta de obediên-
cia ao Governo nas Comarcas das Minas, foi o estabelecimento dos quintos
de Ouro pelos anos de 1750 (35).
"O 3.0 fato foi a entrada que fizeram os franceses no Rio de Janeiro
no ano de 1711, em que deram saque à cidade, por haver constado, então,
que El-Rey consentira no mesmo fato (36).

(14) Esta data está errada. Deverá aubstltulr-se por 1661, ano em que !oi celebrado o
contrato de matrlmOnlos.
(15) Pela ordenação dos Catos conclui-se que a data está errada e deve ser 1700.
(16) Marglnalmenle lê-se: " Foi p.• se pagarem dos prejuízos que lhe causaram com a guerra
da Grande Aliança em que nos (Por' Jgal) meteu Inglaterra".

327
"O 4. 0 fato foi a provisão que El-Rey concedeu aos padres procura-
dores da Terra Santa ano 1715, para cobrarem as esmolas verdadeiras,
ou supostas por via executiva, como fosse Fazenda Real.
"O 5. 0 fato foi o donativo para o Casamento do Sr. Rei D. José, e
de sua irmã a Sra. Infanta D. Maria Bárbara pelos anos de 1727.
"O 6. 0 fato foi o donativo para a fatura do Palácio de Lisboa no
ano de 1756 - por dez anos - quando se quisera renovar." (37) Segue-se
um Apêndice no qual se lê:
"O 7. 0 fato foi a independência em que quizeram ficar os Povos da
Capitania de Minas Gerais, a exemplo da Independência da América
Inglesa, no Reinado da Rainha D.ª Maria I Nossa Senhora (38).
"O 8. 0 fato foi a independência em que se quis pôr a Bahia de Todos
os Santos depois da Revolução Francesa, e o estabelecimento da Repú~
blica, no Governo de D. Fernando José de Portugal (3 9 ), no Reinado da
mesma Augusta Senhora." (40)
Da revolta de Beckman, o Bequimão, já tratamos quando estudamos
a historiografia do Maranhão, na parte relativa a Francisco Teixeira de
Morais e Frei Domingos Teixeira, bem como de J. F. Bettendorff na seção
sobre os Jesuítas. Rocha Pita desconheceu a rebelião, dela não tratando.
Neste século XVII, as revoltas e os tumultos mancham de sangue
por toda parte o solo brasileiro, mas é escassa a historiografia das rebe-
liões, pois se elas aparecem nos documentos, são breves e facciosas suas
descrições nas histórias.
Sobre a sublevação do Maneta na Bahia em 1711 só Rocha Pita
deu-lhe a atenção oficiosa. À frente dos revoltados estava o mercador
João Figueiredo da Costa, alcunhado o Maneta. Esta revolta popular
foi descrita com muita discriminação pelo historiador brasileiro mais
pró-português da época colonial, Rocha Pita.
O Levantamento do Povo, assim chamado por ele, composto de peble
e gente vil, que tinha grande ódio ao mercador de sal Manuel Dias Fi-
gueira, opulento, faustoso, orgulhoso, arrogante foi o principal objeto da
revolta popular, juntamente comtra seu sócio, Manuel Gomes Lisboa. A
Igreja se pôs como sempre ao serviço dos poderosos e contra as aspira-
ções populares. Ao povo brasileiro louva Rocha Pita o ter-se conservado
fora da alteração, salvo alguns oficiais mecânicos, pois os amotinados eram
todos filhos do reino, unidos a alguns estrangeiros de várias nações, que

(37) Este último fato deveria fazer parte do Apêndice seguinte, pois, em 1756 Alexandre
de Gusmão já era falecido.
(38) A margem está escrito: "O Visconde de Barbacena quiz pôr em prática a Ordem que
levou de Lisboa para tornar a estabelecer a derrama sobre os povos".
(39) e Castro, logo depois Marquês de Aguiar, 1788-1801; nesta data nomeado Vice-Rei,
1801-1802.
(40) Documento n. XXVII in Obras Várias de Alexandie de Gusmão, Organizadas e comenta-
0

das por Jaime Cortesão, Inst. Rio Branco. Rio de Janeiro, 1950, 252-254. Em nota final Jaime
Cortesão reafirma sua convicção sobre a auto ria de Gusmão e considera muito viciada a cópia que
serviu de base ao texto impresso.

328
se achavam na cidade e eram dependentes dos que urdiram o levanta-
mento, a maior parte homens de negócio. Rocha Pita é impreciso pois
denomina levantamento do povo, da gente vil e da plebe e corrige a
seguir ter sido revolta dos negociantes. Relata depois a segunda alteração
da mesma gente - homens de negócio - , no mesmo ano de 1711, em
dezembro, quarenta e quatro dias depois da primeira. f<oram, até a
casa do antigo governador D. Lourénço de Almeida <41l, fazer seus pro-
testos, embora já governasse D. Pedro de Vasconcelos de Sousa (out.
de 1711 - 13 de junho 1714; foi depois 3.° Conde de Castello-Maior). A
revolta visava novo imposto e o aumento do preço do sal. Na segunda,
pretendia-se enviar socorro ao Rio de Janeiro, assaltado pelos franceses.
As dificuldades do governador alegando falta de recursos e de navios de
guerra, respondia o povo que se recorresse ao dinheiro acumulado nos
conventos, o de diversas pessoas, aos meios fornecidos pelos homens de
negócios, os mais interessados na restauração do porto do Rio de Janeiro.
Convocou-se o Senado da Câmara, ganhou-se tempo para desafogar o
vigor dos negociantes revoltados, dificultou-se a pretensão e afinal ela
se desvaneceu com a chegada da notícia de que, depois de saqueado,
estava o Rio de Janeiro livre. Procedeu-se às devassas das turbulências,
a primeira e a segunda, castigaram-se os amotinados, e determinou D.
João V ( 1706-1750) que se extinguisse o lugar de Juiz do povo <42 >.
Apurou-se então que o primeiro motim começou em 17 e terminou em
19 de outubro; que o Maneta não tomou parte no segundo, que só este
foi devassado.

3 . 5 . Os Mascates
A guerra civil de 1711 em Pernambuco entre a burguesia do Recife
e a aristocracia de Olinda, que gozava de todos os privilégios, é conhecida
em todos os livros de história do Brasil. Ela foi provocada não só pela
diferença de classe, como de nacionalidade, os olindenses naturais da
terra e os recifenses portugueses, a que se somava a de serem os de
Olinda devedores dos mercadores do Recife (43).
Para a história existem muitos documentos <44 1 e sobretudo cromcas
contemporâneas, cujo exame compete à historiografia. Alguns perde-
ram-se como aquele papel que Pedro Taques diz ter mandado a Frei
Gaspar da Madre de Deus sobre o levantamento de Pernambuco (45 >.

(41) Out. 1710-0ut. 1711.


(42) A melhor documentação sobre os dois motins encontra-se na correspondência de Pedro
de Vasconcelos pubiicada na nota de Rodolfo Garcia in Varnhagen, História Geral do Brasil, ob. clt.,
III, 423-428, extralda de artigo de Alberto Lamego in O Jornal, Rio de Janeiro, 17 de março e 14
de abril de 1929.
(43) F. A. de Varnhagen fez um sumário da guerra civil em História Geral do Bras/1, III,
393-401; a bibliografia secundária não é grande e nela se incluem as Memórias . Históricas da Pro-
vfncla de Pernambuco, 1844-48, 4 vols. de J. B. Fernandes Gama, Mário Melo "A Guerra dos
Mascates como afirmação nacionalista"' RIAGP, 1939-41, XXXVI, 7-56 e Gullhenne Auler "O na-
tivismo na Guerra dos Mascates", Tradição, abril 1942, 68-72.
(44) Vide DHBN, 1938, vols. XXXIX, várias pp.; XL, várias pp.; XCVIII, vs. pp.
(45) DIHCSP, São Paulo, 1896, IV, 12; já referido por Afonso d'E. Taunay em Pedro Taques
e seu tempo, São Paulo, 1923, 178.

329
Outros relatos continuam inéditos, como o "Tratado da Capitania de
Pernambuco e das sublevações que nela houveram até o anno de
MDCCXII" <46 l ou o "Manifesto que os de Pernambuco publicaram depois
do levante que houve naquela capjtania no anno de 171 O" <47l. Varnhagen
cita também o testemunho do Padre Afonso Brôa da Fonseca, de cujo ma-
nuscrito se desconhece o paradeiro <48l.
A esses autores contemporâneos somam os que viram sua narrativa
publicada, como é o caso de Domingos do Loreto Couto e Sebastião da
Rocha Pita.
Do primeiro, como historiador pernambucano já falamos, mas seu
capítulo sobre a Guerra dos Mascates é tendencioso, favorecendo a no-
breza de Olinda, que não aceitava a criação de Recife como vila inde-
pendente, e revelando como a maioria dos cronistas de sua época seu de-
sapreço à gentalha que servia ao Recife <49 l.
A crônica de Rocha Pita é também parcial, pois começa declarando
que o governador Sebastião de Castro de Caldas (1707-1710) tinha os
olhos fechados "para a nobreza de Pernambuco e não queria outro objeto
mais que o povo do Recife". Destaca sempre os sentimentos da nobreza
de Olinda, e desaprecia "os muitos homens ricos, aos quais o trato mer-
cantil fizera poderosos e não podiam alcançar os cargos da governança''.
Recife era mais opulento e mais habitado que Olinda e essa foi a razão
para conceder-lhe o Rei a qualidade de Vila, com o que se sentiu ofendida
Olinda, que perdia a maior parte de sua jurisdição. A história de Rocha
Pita é cautelosa, procurando evitar tomar partido, mas vê-se que está ao
lado da nobreza de Olinda e conta em resumo os principais acontecimen-
tos, até seu final com a chegada do governador Félix José Machado (1711-
1715) <50l.
A "Guerra Civil ou Sedições de Pernambuco" (5tJ deve atribuir-se,
segundo Varnhagen, ao Padre Antônio Gonçalves Leitão, ou ao Padre
Manuel Rodrigues Neto (52J.
~ também obra facciosa, a favor da nobreza de Olinda. "Foram cres-
cendo as queixas e estímulos, e o governador obrando excessos, que pa-
reciam desatinos, prometendo dessolar toda a nobreza e acabá-lo." E nessa
toada pró-Olinda se escreveu a narração contendo alguns documentos, car-
tas, respostas oficiais, certidões, requerimentos, despachos, editais, o per-
dão d'El-Rei, e o manifesto antimascate, assinado em Olinda aos 4 de
agosto de 1711. A parcialidade revela-se ao correr de toda a narrativa, como
nesta frase: "não podia mais a malícia dos homens rafinar-se, nem che-
gar a maior excesso, que empreender a maquinação de tão desesperado e

(46) Catd/ogo dos Manuscritos Ultramarinos da Biblioteca Pública Municipal do Porto,


Lisboa, 1938, 185-186.
(47) Catdlogo dos Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra relativos oc
Brasil, Coimbra, 1941, p . 6, n.• 110.
(48) Historia Geral do Brasil. 111, 398.
(49) Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco, ABN, XXV, 194-204.
(50) Historia da Amerlca Portuguesa, Rio de Janeiro, ed. Oarnler, 400-407 .
(51) RIHGB, reed. 1894, XVI, 5-134.
(52) Historia Geral da Brasil, 3.• ed., S. Paulo, s/d, 111, 398, e nota 22. I! curioso que no
texto Varnhagen atribua à obra a autoria de Manuel do Rego.

330
aleivoso fingimento, nascido da inveja, com que se mostraram sempre opos-
tos os mercadores a tudo o que pudesse ser conveniência da nobreza, e
sossego de mais povo".
A obra mascate é a "Narração das Calamidades de Pernambuco" <5 3).
Rodolfo Garcia afirmou que "o autor desse escrito, conforme se con-
fere da carta que o precede ao Dr. José Rodrigues de Abreu e datada da
vila de Santo Antônio do Recife, em 10 de Setembro de 1747, é Manuel
dos Santos". Da mesma carta fica-se sabendo que Santos nasceu cerca de
1683, que aos vinte e quatro anos saiu do Hospital Régio aprovado em
cirurgia pelo dr. Manuel da Pina Coutinho, cirurgião-mor do Reino, e
pelos licenciados Manuel Pereira Gomes e Francisco Cruz. Veio para Per-
nambuco logo depois de formado em 1707 e assistiu, portanto, aos fatos
que narra <54 >.
Nas advertências explica por que escreveu o livro: por curiosidade,
por achar-se na capitania, porque os males que se experimentaram nestes
oito anos foram tantos que "não é possível podê-los conservar na memória
por muito tempo", também porque a escritura é remédio infaHvel contra
o esquecimento, e afinal não sendo mercador, nem fidalgo, não seria par-
cial. Além disso o que escreveu foi tão público, 'que, se eu quisesse enco-
brir, não havia faltar quem o manifestasse, e talvez com menos verdade
e mais acremente do que vae exposto, pois ninguém mais do que eu se
cansou em averiguar das pessoas, que pela experiência dos sucessos ti-
nham razão de a saber com certeza: isto se entende d'aqueles que me não
era possível presenciar; alcançando muitos papéis tão verdadeiros, que vi-
nham da própria letra de quem, para se darem execução, os havia escrito;
como são todas as portarias, cartas, manifestos e mais documentos que aqui
vão insertos: e estes são os alicerces, em que fundei todo o edifício desta
narração".
Afirma depois que aos 24 anos ao sair da escola, aprovado em ci-
rurgia, até os 64, "em que ora me vejo, me apliquei ao estudo das maiores
doutrinas por ser esta a ocupação a que meu gênio me inclinou", nunca foi
inepto para perceber o que estudava e quando teve dúvida nunca se en-
vergonhou de procurar aos que julgava com mais inteligência.
Afirma que em todo Pernambuco nunca houve mais que três médicos,
para servir a mais de 30.000 pessoas.
Sua narrativa é ampla e minuciosa, dá a lista dos presos, dos mortos,
dos feridos, e declara que três vezes ,a escreveu: a primeira em 1712, em
que muitos casos nela insertos estavam sucedendo; a segunda em 1738,
quando leu a História de Rocha Pita, pintada numas "estampas tão mal
debuxadas". Critica o "historiógrafo" (Rocha Pita), que se gastava de ser
verdadeiro e era exagerativo, escrevendo casos controversos, que ignora
(53) ... "succedldas deste o anno de 1707 até o de 1715", com a notícia do levante dos povos
de suas capitanias escrito por um anônimo e pelo mesmo corrigida e acrescentada. Aviso de 1749,
RIHGB, Lili, 2-307. Existe cópia na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vide "Catálogo dos
Manuscritos sobre Pernambuco existentes na Biblioteca Nacional" ABN, V, 71, p. 210, n. 0 210.
(54) Nota 22 da p. 398 do 3. 0 vol. da História Geral do Brasil de F. A. de Vamhagen, S.
Paulo, s/d., 3.• ed. integral.

331
por morar distante da terra on·de sucederam os acontecimentos, e que em
Pernambuco o abominam por conter tantas falsidades; e finalmente a ter-
ceira vez "foi no princípio deste presente ano de 1749". Foi enviado a
Lisboa e a impressão demorou porque as guerras de Gênova impediam de
vir o papel e assim retornou o manuscrito ao Recife, onde o copiou de
novo e o foi "ilustrando com o aditamento de algumas notícias mais mo-
dernas, que depois de 1714 em que havia finalizado tal narração, se ofe-
recerão ...
"E por última conclusão quero se entenda, que, suposto as cala-
midades que nela noticio, sublevações do povo, cercos do Recife, tapamen-
tos da ponte, e tudo o mais molesto que os moradores de Pernambuco
experimentarão, e estão experimentando, suposto digo, tivessem por causa
próxima a anulação dos naturais da terra com os Recifenses e filhos do
Reino, a causa remota foram os pecados de todos, aos quais a justiça
divina quis castigar por este meio."
Há ainda a "Relação do Levante de Pernambuco de 1710", publicada
com introdução de Lopes de Almeida (55).
As "Revoluções e Levantes de Pernambuco no ano de 1710-1711 ",
existentes ineéditas no Instituto Histórico <56 >, descrevem Pernambuco, apon-
tam as causas da diminuição da capitania em relação à Bahia, os castigos
que recebeu, os antecedentes da guerra, a situação da burguesia antes
do Levante, o Levante e a Guerra.
:e uma narrativa pró-nobreza olindense na qual se acusam os de
Recife de quererem tornar-se independentes de Portugal e erigir uma Re-
pública.
Em carta a Lino de Assunção, Capistrano de Abreu conta que depois
de publicada a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, o Im-
perador ofereceu aos editores da coleção, Capistrano de Abreu e Vale
Cabral, "dois livros para a coleção: - um a história da guerra dos
Mascates, manuscrito por Manuel dos Santos, que estou copiando e tem
umas 500 pp." e o outro era a "Missão" de Frei M. Nantes <57 >. Vê-se
assim que a edição, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Bra-
sileiro em 1890, da "Narração histórica das Calamidades de Pernam-
buco", é uma dádiva de D. Pedro II e uma cópia de Capistrano de
Abreu.
Foi este quem disse que as "Calamidades" eram um livro mascate e
que a guerra fora uma farsa lúgubre <58>. Numa carta a Studart em 1894
Capistrano declarou que seria bom que existisse para Pernambuco um
Guilherme Studart. "Como não há, o resultado é o que se vê em todas
as Histórias: os fatos sucedidos entre a retirada dos holandeses e a

(55) Brasília, Coimbra, VI, 283-339; documento existente na Biblioteca Geral da Universidade
de Coimbra. Vide Francisco Morais, Catálogo dos Manuscritos da Biblioteca Geral da Universidade
de Coimbra relativos ao Brasil, Coimbra, 1941, n. 0 110, p. 6.
(56) Lata 3, doe. n. 0 9, 103 rr.
(57) Cartas de Caplstrano de Abreu a Lino de Assunção, Lisboa, 1946, s/d, p. 56.
(58) Ensaios e Estudos, 3.• série, t.• ed., Instituto Nacional do Livro, 1938, 37; 2.• ed., Ci-
vilização Brasileira, 1976, 21.

332
Guerra dos Mascates cabem numa página; em outra página cabe o que
se sabe entre a Guerra dos Mascates e a Revolução de 1817" (59).
Resta lembrar que este episódio histórico sugeriu a José de Alen-
car seu romance A Guerra dos Mascates <60 > e que Hélio Viana estudou
"as Personagens Reais da 'Guerra dos Mascates' de Alencar. O Impe-
rador como Sebastião de Castro Alves" <6 t >.

3. 6. As lutas em Minas Geti-is


São muitos os motins, os distúrbios e as rebeliões que sucessiva-
mente e não episodicamente preparam a grande rebelião que poderia
vir a ser a Conjuração Mineira e malogrou no pensamento de um pe-
queno número da elite, degredado sem compaixão e sem piedade, eli-
minando o mais popular, enquanto se salvavam os magnatas, como eram
chamados os grandes e poderosos senhores ricos.
As revoltas são denominadas conforme a qualidade de gente que
as compõem, se são iguais aos poderosos reservam-lhe palavras mais
respeitáveis, e se é o povo, a plebe, a gente vil, a gentalha, como escre-
veu freqüentemente Rocha Pita, chamam-nas de motins; insurreição é de
negro escravo, e inconfidência, porque ela não passou realmente de uma
infidelidade a El-Rei, mas que é uma conjuração ou conspiração, con-
denada com a mesma severidade.
Antes da luta dos Emboabas, ou da Conjuração Mineira, há uma
série encadeada de lutas precursoras, que não contam com seus cronis-
tas, mas estão registradas na história, e que são aqui mencionadas para
mostrar a pobreza da historiografia revolucionária.
Em 8 de dezembro de 1708 os reinóis fizeram "um ajuntamento
tumultuoso no qual houveram roubos e assassinatos cruéis, executados
por traições" de várias pessoas poderosas ( vários mestres-de-campo)
chefiados por Manuel Nunes Viana <6 2 >.
Em 1715 os moradores de Pitangui, lançado o imposto sobre o ouro,
não se sujeitaram a pagá-lo, pegando em armas e postando guardas avan-
çadas nos caminhos, tentando impedir o ingresso da justiça. Mas como
o ouvidor vinha escoltado por soldados dos dragões, entrou na vila,
tirou devassa e mandou enforcar em efígie Domingos Rodrigues Prado.
Responderam os sediciosos por ordem deste chefe enforcando também
em efígie o mesmo ouvidor <63>.
Neste mesmo ano houve os levantes de Morro Velho e do Caetés,
como os anteriores, sem registo historiográfico <6 4>.

(59) Correspondência de Capistrano de Abreu, J., ed., Rio de Janeiro, Instituto Nacional
do Livro, 1954, I, 146; 2.• ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1977, I, 146.
(60) J.• ed., 1873, 2.• ed., Garnler, 1896.
(61) /C, 6 de março de 1964.
(62) "Compendio das épocas da capitania de Minas Gerais, desde o anno de 1694 até o de
1780". RIHGB, VIII, 55-56.
(63) "Compendio" cit. 57. Afonso d'E. Taunay em sua História Geral das Bandeiras Pau-
listas, S. Paulo, 1949, 133· 154 descreve em base documental a revolta.
(64) Vide J. P. Xavier da Veiga, Ephemerldes Mineiras. 1897. v. 2, 434-438. Outras refe-
rências in Hello Gravatá, "Contribuição bibliográfica para a história de Minas Gerais". 1976.
XXVII. 257-258.

333
A única descrição que conheço de motins do sertão de Minas não
tem caráter de crônica composta, mais parece uma junção de documen-
tos, ou melhor, de cartas. Nos "Motins do Sertão" (65) se registam e
contam assuadas, princípios de motins, amotinações, tumultos, sedições,
sublevações, insurreições negras, e vários motins no sertão, as devassas,
prisões, a fuga dos negros, os salteadores, a matéria mais importante do
governo de Martinho de Mendonça de Pina e Proença <66 >. Nela se es-
creve que "todo o povo se move por apreensões, mais que por realidades,
porém nisto excede a todos o vulgo das Minas, que só apetece novida-
des, e mudanças, sem averiguar se lhe são prejudiciais, e assim toma-
ram tanto corpo estas vozes, que posso afirmar que hoje são poucos
os que duvidam da sua certeza".
Martinho de Mendonça de Pina e de Proença escreveu: "Repetidas
vezes tenho dito a V. Ex.ª que as Minas não é Governo em que se
possa ocupar um escudeiro de aldeia, sem esplendor, ainda que com
sangue ilustre, talento e fidelidade. As aparências exteriores de autori-
dade são o primeiro predicado que se deve buscar para o Governo das
Minas, para que os povos lhe tenham grande respeito, os poderosos
lhe obedeçam com menos repugnância, e os Ministros se persuadam
que S. M. faz dele justa confiança" (67).

3 . 7 . Emboabas
A guerra dos emboabas tem uma historiografia representativa das
duas facções de muito boa qualidade.
A documentação histórica é ampla e vasta, mas ela não é a maté-
ria que nos ocupa neste estudo e sim a historiografia, os escritos contem-
porâneos mais ou menos bem elaborados <68).
A própria palavra emboaba foi objeto de vários estudos etnológi-
cos <69> de Batista Caetano, e respondendo a este <7º>, Macedo Soares
definiu-a como o português, filho-de-fora, estrangeiro de outras terras e
forasteiro <71 >. Para sua fundamentação cita Macedo Soares trecho de
Cláudio Manuel da Costa, dos primeiros que sobre essa luta escreveu.
Teodoro Sampaio disse que "chamar de emboaba a um indivíduo é
já no sentido de que ele é do bando da agressão, da grei dos provo-
cadores" <72 >.
Os historiadores tentaram explicar por que se deu aos portugueses
essa, denominação. Pizarro e Araújo escreveu que emboabas eram as

(65) RAPM, out./dez. 1896, Ouro Preto, 1896, Ano I, fase. 4, 649·672.
(66) 1736.1737. -
(67) "Mo.tlns do Sertão", ob. clt., 670-671.
(68) Sobre a documentação ver sobretudo RAPM, 1933, XXIV, 441,708; DHBN, 70, vs.
pp,; 99, vs. pp.; ABN, vol. 31, ver 1ndlce. A melhor e mais moderna indicação e descrição dos
documentos §e encontra em J. Soares de Melo Emboabas, cri,ntca de uma revolução nativista.
S. Paulo, 1929.
(69) A. J. de Macedo Soares, Revista Brasileira, 1879, I, 587-594.
(70) Idem, II, 1879, 348-366, e III, 22-36.
(71) Dlcclonárlo Brasileiro da Llngua Portuguesa. Rio de Janeiro, lnst. Nac. do Livro,
1954, I, 171.
(72) O Tupi na Geographia Nacional, 3.• ed. 1928, 198.

334
galinhas ou quaisquer aves que tinham as pernas cobertas de plumas, e
se diziam calçadas. Daí darem o nome aos forasteiros e europeus, que
todo o tempo usavam botas ou polainas enquanto os paulistas andavam
despidos (7 3 J. Mas no texto, e não na nota explicativa, Pizarro dá-lhe
a definição feita por Macedo Soares "forasteiros ou estrangeiros chama-
dos por eles emboabas, ou buabas" <H>.
Na verdade, antes deles, Joseph Barbosa de Sá na "Relação das
povoações do Cuyabá e Mato Groso de seus princípios thé os presen-
tes tempos" <75 > escreveu que "versando aqueles famosos aventureiros
a quem chamavam Paulistas pela nominação da pátria, como europeus
chamados emboabas, nome derivado das galinhas calsudas por não lar-
garem as meias e sapatos em todo o serviço'' (76).
Capistrano de Abreu explica que emboaba era uma das designa-
ções dos reinóis na língua geral, aos quais os paulistas afetavam pro-
fundo desprezo <77 >. O mais completo exame da palavra e de seu va-
riado sentido, segundo lingüistas e historiadores, foi feito por Soares
de Melo, que lhe dá a significação de estrangeiro, inimigo, vencendo a
controvérsia e convencendo os leitores (78>.
A guerra dos emboabas constituiu um tema controvertido, cujo me-
lhor estudo foi o apresentado por Soares de Melo. Capistrano de Abreu
escreveu a João Lúcio de Azevedo em 1916 que "entre o descobrimento
das Minas e a Guerra dos Emboabas houve um período de anarquia per-
feitamente obscuro; vou tentar esclarecê-lo"< 79 >.
A obscuridade deste período e a dificuldade da compreensão da guer-
ra dos emboabas torna necessário e útil o exame historiográfico.
Já contamos com várias análises historiográficas sobre a guerra dos
emboabas feitas por Soares de Melo, Lúcio José dos Santos e Afonso d'E.
Taunay. O primeiro fez um capítulo especial sobre os historiadores dos
Emboabas, Rocha Pita e Luís dos Santos Vilhena (80); o segundo fez uma
introdução sobre fontes e bibliografia, examinando as primeiras relações· e
memórias <81 l.
Afonso d'E. Taunay estudou com certa desordem o relato de Pedro
Taques, Rocha Pita, Vamhagen, Capistrano de Abreu, Manuel da Fonse-
ca e Soares de Melo (82J. ·
Parece que a "História do Distrito· do Rio das Mortes, sua descri-
ção, descobrimento das suas Minas, casos neles acontecidos entre paulistas

(73) Memórias hlst6rlcas do Rio de faneiro e das provindas anexas à furlsdlção do vice-rei
do Estado do Brasil. 1.• ed . Rio de Janeiro, 1820-22, 9 t. em 5 vols.; 2.• ed. Inst. Nac . do
Livro, 1948, Vlll , 264-266.
(74) Ob. clt., VIII, 16.
(75) ABN, 1904, XXIII.
(76) Ob. clt., p. 5.
(77) Capitulas de Hist6rla Colonial. 4.• ed. revista, anotada e prefaciada por José Honó·
rio Rodrigues, Rio de Janeiro, 1954, 248-249.
(78) Ob. clt., 175-205.
(79) Correspondlncla de Caplstrano de Abreu. lnst. Nac. _do Livro, Rio de Janeiro, 1954,
li, 13 e 2.• ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1977, 13.
(80) Ob. clt. , 207-226.
(81) • Afirmações nacionalistas - Os Emboabas• . Terceiro Congresso de Hist6rla Nacional
19J8, Boletim do IHGB, Rio de Janeiro 1942, 587-677.
(82) Hlst6rla Geral das Bandeiras Paulistas, São Paulo, t . 9, 951-471 e t. 10, 155-161.

335
e emboabas e criação das suas vilas" é a primeira relação da luta dos em-
boabas, escrita por José Alvares de Oliveira, com evidente parcialidade
emboaba ou antipaulista. Ele mesmo escreveu que "como o Arraial Novo
do Rio das Mortes deu o assunto desta história e de seus distúrbios antes
de ser vila não me pareceu alheio da mesma história o descrever dela
mesmo um breve mapa e seus progressos depois de o ser".
Antes de José Alvares de Oliveira, publicou Taunay, extraídos da
Brasiliana de Félix Pacheco os "Depoimentos sobre os primeiros anos das
Minas Gerais. Dou parte do que vi e sei" (8:1). :e
relato básico.
A "História do Distrito do Rio das Mortes", pertencente t~mbém em
manuscrito à Brasiliana de Félix Pacheco, foi reproduzida por Afonso Tau-
nay, sem os rigores da crítica histórica. Trata-se, comenta Taunay, de
um depoimento de suma importância, oriundo de um comandante de tropa
que tomou parte ativa nas refregas da guerra civil, como oficial superior, e
foi composta depois do falecimento de D. João V (31 de julho de 1750)
e como foi dedicado ao dr. Tomás Rubi de Barros Barreto ( décimo ou-
vidor 1747-1751) pode-se situar bem o período de sua confecção.
E afirma que "este panei em que ofereço à história do distrito do
Rio das Mortes, sua descrição, descobrimento de suas minas, casos nela
acontecidos, a civil disputa entre Paulistas e Emboabas, representada., no
teatro do Arraial Novo". . . e pede ao ouvidor Tomás Rubi que des-
culpe "o que na história padecer censura não tanto pelo trabalho que tive
de desenterrar da sepultura de uma ignorância quase invencível o que nela
se contém, mas pela grande vontade que sempre me assistiu de desempe-
nhar na melhor forma que fosse possível o mandato de V. Mcê". Como
outros, esse depoimento é emboaba, pois José Alvares de Oliveira era rei-
nai, Sargento-mor e um dos chefes emboabas que se destacaram na luta no
Rio das Mortes, quando os paulistas comandados por Amador Bueno da
Veiga os atacaram (84).
O Compêndio Narrativo do Peregrino da América (85) de Nuno Mar-
ques Pereira não é um livro sobre emboabas, mas um livro escrito por
um emboaba e financiado pelo chefe dos emboabas Manuel Nunes Viana.
Seu mérito literário é relativo, escreveu Afrânio Peixoto, e seu mérito his-
tórico tem a mesma dimensão.
O peregrino declara que não foram os interesses de cabedais que o
fizeram ir às Minas de Ouro, defende a compatibilidade da riqueza e da
virtude, louva as excelências da pobreza, narra sua jornada às Minas, dá
o catálogo dos Bispos e arcebispos da Bahia, desde seu princípio, e discor-
re sobre os dez mandamentos da Igreja. Ao tratar do primeiro censura o
abuso da feitiçaria introduzida no Brasil; no segundo repreende os jura-
mentos em falso; no terceiro aconselha como os Senhores devem tratar a
seus escravos e famílias. Tem este capítulo particular interesse para o

(83) JC, 8 de dezembro de 1946.


(84) Francisco de Assis Carvalho Franco. DBSB, S. Paulo 1953, p. 270.
(85) I.• ed. 1728; 6.• ed. Rio de Janeiro Acad. Bras. de Letras 2 vols., com nota preli-
minar de Aírânio Peixoto, nota biográfica de Rodolfo Garcia, notas de Pedro Calmon, Juízo
critico de Varnhagen e nota etnográfica de Leite de Vasconcelos.

336
historiador ao mostrar a submissão do negro, seu tratamento pelos senho-
res, as relações das senhoras e escravas; no quarto como devem os pais
senhores tratar seus filhos e aconselha os filhos dos senhores a cultivarem
as artes liberais, a época em que devem casar, como deve ser o mestre
' dos filhos; censura os mimos e os concubinatos, cita casos e exemplos
para doutrinar e nesta linha trata de todos demais mandamentos; O se-
_gundo volume dedica-se aos vários outros ensinamentos morais, ao estudo
necessário da música, da poesia, da matemática, da filosofia, das artes e
ciências, dos entretenimentos. :É um livro casuístico de moral pública e pri-
vada que serve ao historiador para reconstruir os padrões de conduta e
os problemas morais da sociedade dominante e dominada. Sob esse as-
pecto seu valor é ponderável, assim como o foram os Sermões para que
Bernardo Groethuysen escrevesse sobre a consciência burguesa na França.
O Compêndio Narrativo do Peregrino da América não é leitura agradável
e fácil, mas tem um grande valor para reconstruir o ambiente moral, as
idéias sociais dos emboabas. Foi publicado debaixo do amparo e proteção
do emboaba chefe Manuel Nunes Viana, segundo suas próprias palavras.
O primeiro historiaqor a tratar dos Emboabas foi Rocha Pita, cuja
obra em conjunto vai figurar no capítulo sobre a historiografia geral. Seus
vários capítulos apontam e acentuam a culpa dos paulistas. São antipaulis-
tas, antibrasileiros e pró-portugueses, os forasteiros que desejavam se as-
senhorar das descobertas mineiras feitas pelos paulistas. Chega a afir-
mar que o bando forasteiro chefiado por Manuel Nunes Viana tinha por
fim "refrear os insultos dos paulistas e os obrigar a viverem sujeitos ao
jugo das leis do Reino e não às do seu próprio arbítrio, pelo qual ( eles, os
emboabas) só se governavam; evoca o poderio paulista que usava da
liberdade e insolência, em que costumavam viver e conservando o ódio
entranhável contra todos os forasteiros"; chama sempre os paulistas de
"destemerosos e facinorosos", embora reconheça a traição inominável de
Bento do Amaral, que depois de aceitar a rendição dos paulistas e destes
lhe entregarem armas os mandou matar a todos. Fala no jugo tirânico dos
paulistas, louva o domfnio de Manuel Nunes Viana, que assumiu a gover-
nança sem autorização real; foram os governadores do Rio de Janeiro que
tentaram sossegar a rebelião paulista até que decidiu-se o governo portu-
guês a criar a capitania independente (do Rio de Janeiro) de São Paulo e
Minas Gerais, em 1709 e só em 1720, separadas e independentes.
Como acentuou muito bem Soares de Melo (8 6 > ele foi não só sim-
pático aos emboabas, como se ouviu testemunhos limitou-se aos emboabas
portugueses e baianos, seus conterrâneos. Convinha-lhe louvar a gente lu-
sitana e esperar do monarca os favores que desejava. Soares de Melo apon-
ta com cuidado as falhas dos seus recursos documentais. Mas ainda as-
sim ele não deixaria de ser inexato e apaixonado.
Luís dos Santos Vilhena, de quem trataremos . com mais atenção no
capítulo da historiografia geral, escreveu que "se estas ordens e cartas
houverão chegado a notícia de alguns escritores modernos, como o histo-

(86) Emboabas. Crônica de uma revolução nativista, S. Paulo, 1929, 209-219.

337
riador Sebastião da Rocha Pita pode ser que se não tiverão desviado tanto
da verdade" <87 l.
Lúcio José dos Santos foi mais benévolo. Reconhece-lhe o estilo pom-
poso, o exagero das afirmações, a credibilidade nas lendas, mas ainda as-
sim é possível separar o joio do trigo. Como escreveu pouco depois dos
acontecimentos, estranho ao meio em que ele ocorreu e aos interesses em
jogo, cita que ele podia ser imparcial, observação feita por Xavier da
Veiga (88). Foi a ela que recorreram Southey e outros historiadores para
a elaboração dos capítulos sobre emboabas.
A Vida do Venerável Padre Belchior de Pontes <89 >, composta por
Manuel da Fonseca, um pouco mais de uma geração após a luta, é uma
preciosa memória, que se inicia com um capítulo no qual se profetiza o le-
vantamento ( cap. XXXII) e se conclui com a exposição da luta entre
emboabas e paulistas. As descobertas paulistas atraíram não só gente de todo
o Brasil, como os portugueses que já possuíam grandes povoações. "Não
havia entre eles lei, que os obrigasse a viver sujeitos, e só com uma livre
escravidão se sujeitavam toe.los os seus vícios." Reinavam a luxúria, os
roubos, os homicídios, as injustiças, e era comum imporem os poderosos a
pena de morte.
O livro é antipaulista como se vê em toda exposição, mas se manifes-
ta com toda força nesta frase: "Eram os cúmplices mais freqüentes destes
delitos, os paulistas, porque como viviam abastados de índios que tinham
trazido do sertão e de grande número de escravos, que com o ouro tinham
comprado, se fizeram not_avelmente poderosos, chegando alguns a tanta
soberania, que falando com os forasteiros os tratavam por vós, como se
fossem escravos (90), e por isso eram deles as maiores queixas, ainda que
em grande parte nasciam dos mamelucos, que tinham em casa, sem que
talvez chegassem à notícia dos amos os seus desmanchos".
Neste trecho se revela todo seu preconceito antipaulista e antimame-
lu_co, e conseqüentemente pró-português. Pode-se dizer que é realmente
muito mais pró-português que o próprio Rocha Pita, e exalta sempre a
figura de Manuel Nunes Viana. Nenhum deles oculta o ato de Bento do
Amaral Coutinho, pérfido e cruel, que, aceitando a rendição dos paulistas,
logo que os viu sem armas deu ordem para que os matassem, deixando o
campo coberto de mortos e feridos, causa que impôs àquele lugar no Rio
das Mortes o nome de Capão da Traição. E nesta linha antipaulista se
desenrola toda a história, sempre antipaulista e pró-portuguesa, com uma
parcialidade a toda prova.
Soares de Melo não tratou da obra de Manuel da Fonseca, mas Lúcio
José dos Santos deu-lhe relevo afirmando que ele se manifesta "mais impar-
cial do que se poderia esperar de um escritor português quase testemunha da-

(87) Noticias Soteropolltanas e Braslllcas. Bahia, 1922, li, 6H.


(88) Efemérides Mineiras, Ouro Preto, 1897, 25 de fevereiro de 1711.
(89) . . . da Companhia de Jesus e da Provlncla do Brasil. Lisboa, t.• ed. 1752. 2.• ed.
S. Paulo s/d.
(90) Nota-se aqui, como observou Othonlel Motta que "vós" era tratamento de menos-
prezo.

338
quelas lutas. Essa biografia se constitui fonte preciosa, não só para a
guerra dos emboabas como para a revolta de 1720 (91).
Manuel da Fonseca nasceu em Braga ( 1703- ? ) e entrou para a
Companhia em 1703, sendo ordenado sacerdote em 1737 (92). Para Afon-
so Taunay os dois relatos, o de Rocha Pita e de Manuel da Fonseca, em-
bora este mais extenso, são coincidentes (9 3 ).
Da mesma época da' narrativa de Manuel da Fonseca, pelos meados
do século dezoito, são os depoimentos anônimos e de José Alvares de
Oliveira, que Afonso d'E. Taunay publicou, sem esquecer a notícia com-
pilada pelo coronel Bento Fernandes Furtado de Mendonça.
Esta última denomina-se "Primeiros Descobridores das Minas do Ou-
ro na Capitania de Minas Geraes" <94 >. Nela se trata mais das descobertas
de ouro, que do levante dos emboabas. No final lê-se que "enquanto o
progresso da população, indústrias e comércio augurava um futuro lison-
geiro à nova Colônia, nutria ela em seu seio um principio de dissolução,
por concorrerem, de mistura com honestos povoadores, alguns homens
imorais e ambiciosos". Esses homens desejavam obter os monopólios do
tabaco, das carnes verdes, encontrando a oposição dos paulistas, "e ainda
uma vez tiveram de ser contrariados, não só pelos mesmos paulistas, mas
ainda por alguns reinóis de coração reto e bom senso".
"Resultando destas patrióticas oposições, a primeira causa das dis-
córdias ( 1707) que em breve havião de perturbar, e dividir a nascente so-
ciedade; a fortuna e a consideração pública, que os paulistas gozavam,
em razão de seus úteis descobrimentos ( conquanto eles se tivessem mostra-
do hospitaleiros, e generosos para com os reinóis desvalidos) foi a segunda
causa das discórdias intestinas." O compilador observou ao final que se
devendo seguir o relatório dos incidentes que apressaram o rompimento
das hostilidades entre os forasteiros e os paulistas o traslado das notícias
se interrompeu, mas ainda resume a história da divisão entre reinóis e
paulistas.
Cláudio Manuel da Costa no "Fundamento Histórico" do poema Vila
Rica <95 > resume brevemente o aparecimento e evolução dos ódios entre
os paulistas e os portugueses, e repete como os primeiros cronistas que a
luta foi fomentada pela tentativa de estabelecer monopólios (fumo, cacha-
ça e carne) e os europeus, buabas - escreve, conseguiram expulsar os
paulistas entre 1709 e 171 O, regidos pelos chefes Manuel Nunes Viana
com o caráter de governador e Antônio Francisco com~ mestre-de-campo.
A versão de Cláudio Manuel da Costa afirma de começo que Nunes
Viana fomentara muitas intrigas, sublevações e desordens, e sobre o mes-
tre de campo diz que "a desgraça deste pa(s é tal que sendo de tão baixo
(91) • Afirmações nacionalistas. Os Emboabas• RIHGB, ob. clt. 602.
(92) L. J. dos Santos, ob. clt.; Inocêncio 5, 434-435 Ignora as datas de nascimento e
morte e afirma ter ele nascido em S. Paulo.
(93) História Geral das Bandeiras Paulistas, ob. clt. t. IX, 463-471.
(94) O resumo de compilação - o único relato que possulniós - foi preparado por
M. J, P. da Silva Pontes, RAPM, 1899, Ano IV, fase. I, 82-95,
(95) Ed. João Ribeira, Obras Poéticas, Rio de Janeiro, II, 167.

339
nascimento este homem, é daqueles, que se não prendem, para se soltarem".
Escreve a seguir que fazendo justiça "é certo que entre os rebeldes e le-
vantados daquele tempo tinha melhor índole, que todos, o suposto gover-
nador Manuel Nunes Viana". Afirma não constar que ele ou alguns· de seus
confidentes cometesse alguma ação nociva contra o próximo, e aponta-lhe
outras qualidades, a igualdade com que regia os povos, a afabilidade com
que os acolhia, os socorria e os apaziguava e serenava, o que contradiz as
acusações de intrigas suas aparecidas na secretaria do governo, às quais
primeiro se referiu. Acusa-o de querer ser governador das Minas, o que
lhe desordenava a serenidade de ânimo e o tomava desobediente. Afirma
que D. Fernando Martins de Mascarenhas (Governador do Rio de Janei-
ro, 1705) que foi às Minas sossegar a rebelião ter sido desacatado por
Nunes Viana e ser favorável aos paulistas; trata da chegada do novo go-
vernador do Rio, que logo partiu para Minas com o mesmo objetivo, o
que logo conseguiu, convencendo-os não convir a assistência deles em
Minas, o que foi feito e assim conseguindo o sossego. "Foi ele", conclui
Cláudio Manuel da Costa, "o primeiro que susteve com desembaraço as
rédeas do governo". Era de Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho
o primeiro governador da capitania independente ( do Rio de Janeiro),
a de S. Paulo e Minas do Ouro ( 1709-1 713) .
No poema Vila Rica é nos cantos 5. 0 , 6. 0 , 7. 0 e 8. 0 que Cláudio
rememora a luta e se põe ao lado dos paulistas, contra os reinóis, como
um nacionalista:
A exemplo de um contempla iguais a todos
E distintos ao rei por vários modos
Vê os Pires, Camargos e Pedrosos,
Alvarengas, Godoes, Cabraes, Cardosos,
Lemos, Toledos, Paes, Guerra, Furtados,
e os outros, que primeiro assinalados
se fizeram no arrojo das conquistas
ó grandes sempre, ó imortais Paulistas!
Embora vós, nymphas do Tejo, embora
cante do Lusitano a voz sonora
os claros feitos do seu grande Gama;
dos meus paulistas honrarei a fama (96).

Manuel Rodrigues Lapa num estudo "Os Versos anarquistas do 'Vila


Rica' <97 > conta ter encontrado num dos manuscritos de Vila Rica da Bi-
blioteca Nacional de Lisboa, no canto V um trecho de 85 versos que não
vem em nenhum outro texto conhecido, impresso ou manuscrito. Diz ele
que nele se contém "a parte nevrálgica da composição", pois essa fala às
turbas é um louvor destemperado e surpreendente do regime anarquista,
que ainda não tinha sido considerado pelos tratadistas do Direito N aturai.
Que levou Cláudio a expungir das outras redações essa atrevida exortação?
Afirma então que "o 'Vila Rica' é, sabidamente um poema de propaganda
paulista apaixonada, em que se torce a verdade dos fatos históricos, e a

(96) Canto Vl, p. 216 da ecj. clt.


(97) Suplemento Literário de Minas Gerais, 20 de abril de 1968.

340
cronologia para prest1g1ar os naturais de S. Paulo". No canto V aparece
o frade arengando aos Europeus contra os Paulistas; a fundarem uma re-
pública independente, a irem para as lndias espanholas caso não obtives-
sem a anistia real; a retirarem para si o imposto do Quinto e não consenti-
rem nela, nem governadores nem justiças, e aqui desponta a idéia do sis-
tema anárquico. E então o ilustre filólogo português que tanto estudou
Minas e os mineiros afirma que a História alicerçada em documentos nos
diz exatamente o contrário: eram os emboabas que representavam o prin-
cípio da ordem e do respeito à lei. Para isso tiveram de se insurgir, pois
não suportavam por mais tempo uma oligarquia de tiranos arvorados em
senhores absolutos das Minas. A expressão justa escapou a Cláudio no
verso 71 do Canto V:
Ignorais, que as montanhas estão cheias
Destes perturbadores, desde quando
arbitrária e fantástica ordem dando
em o nome do rei, os compelimos
a largar·nos as armas, com que os vimos? (98)

Na verdade um pouco antes diria o poeta:


Desconheceis acaso que outra sorte,
Outra fortuna vos espera, vindo
Tão próximo, Albuquerque, a quem seguindo
Vem o infame tumulto dos Paulistas
Que aspiram senhorear estas conquistas?

Mas nada vejo nestes versos que nos leve a aceitar a conclusão de
Isaías Golgher (99 > de que a luta foi uma explosão da maturidade democrá-
tica da população mineira contra a anarquia monopolizadora dos feudais
paulistanos. Que população mineira, a que se origina de S. Paulo, ou a
portuguesa e forasteira? Foi desta mistura que nasceu a população mineira
e esta não existe como oposição à paulista.
Pedro Taques antes de 1777 já havia também escrito alguma narrati-
va sobre a luta emboaba, pois em carta a Frei Gaspar da Madre de Deus
escreveu não saber "se fora dos Borrões e apontamentos, que eu tinha, e
principiava a escrever o levantamento das Gerais, tenho mais algum papel
em poder de V. Rma." (1ooi.
Na "Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais" de José
João Teixeira Coelho, desembargador da Relação do Porto <1 01 l, ao tratar
do governo de D. Fernando Martins Mascarenhas d' Alencastro ( 1704-
1709) afirma que "neste tempo se suscitaram dúvidas, que foram origem
de contendas bem sanguinolentas entre os naturais de S. Paulo e da Euro-
pa. Não é constante a tradição que se conserva delas; e o mais natural é
que os Paulistas intentaram proibir o estabelecimento dos Europeus nas

(98) Vila Rica, ob. cit., p. 209.


(99) Guerra dos Emboabas. Belo Horizonte, 1956.
(100) DIHCSP, IV, 1896, 19.
(101) RIHGB, XV, 2.• ed. 1888, 254-481.

341
terras que eles tinham descoberto, e os europeus se persuadiam de que a
habitação delas era comum a todos os vassalos do mesmo soberano. Não
há dúvida que uns e outros eram delinqüentes, porque pertencendo so-
mente ao Rei a decisão daquelas dúvidas, não podiam os povos arrogar a
autoridade de a disputarem com armas". E logo a seguir, o desembargador
lembra a carta régia de 24 de junho de 1711 na qual recomendava S. Ma-
jestade a Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho "que não promo-
vesse os paulistas aos postos de infantaria paga, para não se entregarem as
armas a uns homens, dos quais não havia ·toda a confiança". Escreve que
os europeus acabaram por expulsar os paulistas e louva o governo de
Manuel Nunes Viana. ·
Em todas as primitivas histórias de Minas Gerais como a de José
Joaquim da Rocha e Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos já tratadas na
historiografia regional a luta vem contada. Os fatos e a interpretação pró-
emboaba dominam as duas "Memórias" (102).
Na "Instrução para o Visconde de Barbacena". Luis Antônio Furta-
do de Mendonça <103 >, tal como a de Teixeira Coelho, a posição é sempre
antipaulista.
Aparece no começo do século XIX ( 1802) um dos maiores livros
relativos ao século dezoito a Recopilação de Notícias Soteropolitanas e
Brasílicas escrita por Luis dos Santos Vilhena, de cuja obra trataremos na
parte relativa à historiografia geral. Nele se escreve que "são os paulistas
notados, na maior parte dos nossos escritores e ainda em alguns dos es-
trangeiros, de homens facfnoras rebeldes ao soberano e insubordinados às
leis, quando pode mostrar-se que, de todos que a desgraça pôs na circuns-
tância de serem mandados para povoarem as diversas colônias do Brasil
depois logo de seu descobrimento, são eles de todos os vassalos da corôa
portuguesa, os que nesta dilatadíssima região têm dado as mais evidentes
provas de fidelidade, zelo, obediência ao seu soberano, quem mais têm
exposto as vidas em benefício da Pátria, em utilidade da capital e da
Nação" <104 >.
Depois de dizer que eles são os descobridores das minas, conta como
começaram as discórdias entre paulistas e reinóis ou "bohabas ou imboa-
bas", sem revelar parcialidade. É assim que ao contar a expedição de D.
Fernando Martins Mascarenhas escreve que "oferecerão-se-lhe os paolistas
e alguns filhos de Portugal não contaminados" e acusa os reinóis de terem
pensado em uma República feita ao seu arbítrio, e se não consgeuissem per-
dão passariam para o Domínio espanhol, pois não só Antônio Francisco,
o mestre-de-campo emboaba, lutara na Colônia do Sacramento, como havia
entre os reinóis vários desertores daquela praça. Escreveu que na história
(102) Vide J. J. da Rocha "Geographla Histórica de Minas Geraes• PAN, 1909, IX, 17
e,seguintes, e RAPM, Ano li, fase. 3, Julho-setembro 1897, reedição 431 e seguintes, e RIHGB,
LXXI. parte I, 116-194; Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, "Descobrimento de Minas Ge-
raes•, RIHGB, 1866, XXIX, 10 e seguintes; idem, "Breve Descripção Geographica, Physlca e
Polltica da Capitania de Minas Geraes•. RAPM, Janeiro-março 1901, Ano IV, fase. 1, 782 e
seguintes.
(103) RIHGB 2.• ed. 1865, VI, 15 e seguintes.
(104) Bahia, 1922, 2 vols., 653-654.

342
de Belchior de Pontes, Manuel da Fonseca não mostrara afeição aos paulis-
tas e que pacificada tomou-se "a capitania de Minas um dos mais bem
compostos membros do Império Português na região da América".
Soares de Melo no seu bem elaborado capítulo "O historiador dos
Emboabas" louva-lhe a obra escrita com evidente simpatia pelos paulistas.

3.8. A revolta de 1720


A mais valiosa fonte sobre o movimento chefiado por Pascoal da
Silva e Felipe dos Santos é A Revolta de 1720 em Vil/a Rica. Discurso
Histórico-Político 004-a>, uma narrativa facciosa, parcial, que parece escrita
pelo próprio governador, o Conde. de Assumar, D. Pedro de Almeida
(depois Marquês de Aloma e vice-rei da fndia 1717-1721).
Xavier da Veiga começou a publicar essa narrativa da época no Mi-
nas Gerais, um jornal de Ouro Preto, baseado no manuscrito adquirido
em Lisboa em 1895 pertencente à biblioteca do Conde de Unhares. Na
advertência que precede o livro, Xavier da Veiga acrescenta que há um
subtítulo "no fim do qual se expendem as razões que o Exmo. Sr. General
teve para proceder sumariamente ao castigo", o qual reforça a idéia de
que o general governador teria sido o próprio autor ou um seu preposto.
Há alguns elementos que fortalecem a suspeita da autoria pelo gover-
nador Pedro de Almeida. E Xavier da Veiga sustenta com convicção a
suspeita que a leitura sugere e apóia. "Não tem o códice nome ou indica-
ção do autor, mas os dizeres transcritos, e ainda mais do que eles, a maté-
ria da obra, o estilo e o tom com que foi ela elaborada, mostram que esse
trabalho - verdadeiro memorial de um acusado impenitente - é da pró-
pria lavra do Conde-general (Conde de Assumar), ou de alguém por ele,
e isso confirma a tradição do processo de responsabilidade que moveu-lhe
em Lisboa o mestre-de-campo Pascoal da Silva Guimarães, um dos chefes
e vitimas da gloriosa revolta de 1720, que aliás teve a fortuna de não ser
enforcado e esquartejado como aconteceu a Felipe dos Santos, inolvidável
.herói e mártir daquele movimento memorável" <105 ).
Que foi ele ou algum preposto se vê na seguinte frase do texto:
"Vendo-o (o Conde) andar nesta forma me lembra, que alguma vez disse
ao Conde que certamente entendia lhe não foi tão dificultoso triunfar dos
inimigos de Sua Majestade na Campanha, como governar nesta república
os seus maus vassalos, que a mim ao menos por toda a vida me seria mais
fácil reger sem açoite uma casa de loucos, e fazer sem queixa partilhas
entre herdeiros ambiciosos, que contentar, nem por poucas horas, um povo
tão desigual" (106).
Diz ainda Xavier da Veiga que o estilo do autor é de feição gongó-
rica, e se caracteriza por lançar alguma luz sobre as usanças do tempo e
por erudição copiosa na jurisprudência contemporânea e mais ainda na
literatura clássica não só portuguesa senão também latina e grega.

(104-a) Advertências e notes de Xavier da Veiga, Ouro Preto, 1898.


(105) Ob. cit. 4.
(106) Ob. clt. 67. Obscl'vação nossa.

343
E Xavier da Veiga foi sempre um historiador livre que apontou com
desassombro os males do colonialismo, viu com clareza que a narração
tinha uma característica bem saliente: a de ser uma "apologia intransigen-
te, absoluta e fervorosa do despotismo nos seus atos como nos seus prin-
cípios, mesmo quando estes são monstruosamente absurdos, mesmo quando
aqueles revoltam pelo requinte da malvadez e atrocidade aos mais mode-
rados espíritos".
Chamou atenção também para a imagem que se criou de Felipe dos
Santos, de Pascoal da Silva e os demais pró-homens que aparecem no
Discurso "como seres endemoninhados e infernais, cobertos de todos os
baldões, votados a todas as ignomínias e às penas mais cruéis".
O Discurso histórico e político começa recriminando os motins e sub-
levações que agitaram diversos tempos as Minas Gerais, segue dando uma
breve notícia das Minas, e seus moradores, a partir do ano antecedente à
revolução. Afirma que os mineiros são gente intratável, inconstante, que
os dias nunca amanhecem serenos, o ar é nublado, tudo é frio, menos o
vício que está ardendo sempre. E como exemplo do estilo e da imagem
que se faz do ambiente, este trecho é bastante significativo: "a terra parece
que evapora tumultos, a água exala motins, o ouro toca desaforos, distilam
liberdades os ares, vomitam insolências as nuvens, influem desordem os
astros; o clima é tumba da paz, e berço da rebelião, a natureza anda in-
quieta consigo e amotinada lá por dentro, é como no inferno".
Escreveu mais que "os motins são naturais das Minas, e que é pro-
priedade e virtude do ouro, tornar inquietos e buliciosos os ânimos dos
que habitam as terras onde ele se cria", e que têm "a maior parte dos
Mineiros alguma desculpa em freqüentar os motins, a que interiormente
os inclina, força e arrasta a natureza".
O Discurso é muito antimineiro e sempre os retrata com evidente má
vontade.
Escreveu sobre o caráter mineiro que "é bem notório, que sua primei-
ra criação, foi de homens brutos, e facinorosos, que para o serem lhes
bastava ou ser paulistas, ou tratar com eles". E acrescentava que se viram
também nos mineiros aqueles vícios que São Paulo notou nos Romanos,
"cheios de todo gênero de maldades, luxúrias, cobiças, dolos, invejas, ho-
micídios, contendas, enganos, malícias e murmurações, que são execrandos,
ignominiosos, soberbos, arrogantes, inventores de todos os males, e de-
sobedientes; sem juízo, sem ordem, sem amizade, sem fidelidade sem
compaixão". É um retrato duro e implacável.
Sustentou que onde os costumes são maus, nunca pode ser boa a con-
dição, mas parece que nem todos vêm de tão vil condição, por se terem
enobrecido com a fortuna, e se dado a conhecer com "ruidosos e fantásti-
cos títulos de Coronéis, Mestres-de-campo, Brigadeiros e sobretudo respei-
tados por grandes e poderosos".
Achava que S. M., se quisesse que as Minas não andassem sempre
confusas e perturbadas, fizesse com que os mineiros se restituíssem aos
seus lugares e tratassem cada um de seu ofício. "República há que fora

344
do ofício que cada qual aprendeu e do trato, em que seus pais se crearam,
se lhes não permite outro exercício".
Conhecida a condição dos mineiros e visto o clima parecerá supérfluo
indagar mais a causa aos motins, onde a natureza inclina-se a tumultos e
persuade a desordens. Diz que com a chegada da frota de mil e setecentos
e dezenove entrou nestas Minas a nova lei, que sobre os quintos foi man-
dada; chegaram as tropas dos dragões, fizeram-se públicas as ordens para
dar Laixa a todos os oficiais da ordenança, que não tivessem corpo e se
fez notória a expulsão dos religiosos. Tudo isso provocou muito descon-
tentamento, e sobretudo todo o povo se opunha à Lei dos quintos, ou a
receava. Entre os magoados estava Pascoal da Silva Guimarães, que es-
perava se lhe oferecesse ocasião para vingança.
Pascoal da Silva era "antigo nas Minas onde a peso de ouro, na ba-
lança das suas tramóias, soube fazer a fortuna que em Guimarães, sua
pátria, lhe negou a humildade de seu nascimento, e a yileza de seus pais".
Conta-lhe a vida desde que se empregou como caixeiro até engrossar sua
fazenda, vindo a ser um dos mais poderosos das Minas, e nelas se impunha
muito pelo grande número de escravos, que o tinham constituído num dos
primeiros no poder e no respeito.
Era oficioso, malévolo, modesto, refolhado, brando, vingativo e tudo
isso mostrou na sublevação com que pretendeu expulsar do governo o
Conde-general, ao qual devia um cento de benefícios e milhares de favo-
res. Retrata com muito ódio e desprezo Pascoal da Silva "o primeiro cabe-
ça desta sublevação". Conta-lhe a riqueza, trezentos escravos, dois enge-
nhos, lavras de minas e as trinta arrobas de ouro que devia.
Diz a narrativa oficial que ele andava de acordo com ó Rio de Ja-
neiro, ao qual atribui grande vileza ao escrever, "que os do Rio de Janeiro
feitos a entregar ou a não defender a pátria, estavam de mãos postas es-
perando o sucesso das Minas". A relação dá muita significação às atitudes
e atividades de Pascoal da Silva, e ataca também o Ouvidor, sua ligeireza
e leviandade, decomposto nas ações, solto na língua, e que de todos falava
com desprezo.
Louva sempre o Conde, que não tinha parcialidades no governo e
tratava igualmente a pequenos e grandes.
Procura, a seguir, explicar como se formavam os motins e como o
povo neles entrava e especialmente como se iniciavam. Começam ordi-
nariamente "por seis ou sete mascarados a que acompanham trinta ou
quarenta negros armados, dos quais a uns fazem ocupar as bocas das ruas
e a outros mandam ir batendo, e onde logo não se abrem, arrombam as
portas dos moradores", que pela maior parte as casas são térreas.
Realmente três dias depois de chegarem as cartas da frota saiu o
motim, que durou dezoito dias. Enumerava para maior esclarecimento ·os
vários motins antes acontecidos nas Minas ( cerca de onze), desde os em-
boabas, sendo que, embora condenados em toda parte já estavam aqui,
pelo costume, tolerados.
Acentua o crime do motim e o castigo que merecem. Usa, como os
antigos historiadores, dos discursos que recria na boca dos oradores. De-

345
clara que as repúblicas eram mais ditosas sem os letrados. "Uma e muitas
vezes mais desgraçadas as Minas depois que nelas houveram letrados."
"Na democracia das Minas é mais eficaz a desatenção que o primor,
porque na sua República ainda o maior cortesão é plebe; sendo pois todos,
povo, que muito parecem às sofreadas do temor, à que sempre cedem hu-
mildes, e recalcitrem contra os estímulos do merecimento, a que nunca
correm generosos. O vulgo não se eleva das esperanças do prêmio, per-
suade-se dos receios do rigor."
Pascoal da Silva fugiu, mas se "prendeu a Felipe dos Santos, que no
campo da Cachoeira se declarara cabeça dos que se amotinavam, fez-se-lhe
logo sumário, e ele que já na vida a morte tem bebido, vendo ser chegado
o seu tempo, em que era forçoso lavar com seu sangue a mancha de seus
delitos, declarou que havia sete anos se não desobrigava da quaresma; con-
fessou mais (não digo bem, porque nem aquela derradeira hora o quis
fazer), depôs de plano, não só o motim que na Cachoeira urdira para
sublevar aqueles povos, mas que por ordem de Pascoal da Silva e do Mos-
queira, causara todos os de Vila Rica, trazendo-a por espaço de oito dias
inquieta e perturbada".
"A vista da sua confissão, e de ser apanhado em fragrante, foi no
mesmo dia, com aplauso dos moradores, enforcado e esquartejado, os
quais, conhecida a maldade, se bem a princípio favoreceram os seus desíg-
nios, agora mudando de parecer, tudo era detestar os conselhos, e maldizer
as indústrias de Felipe dos Santos e dos mais cabeças, e aplaudir ao Conde
com gosto de se verem livres da opressão."
Segue-se uma série de considerações sobre as maldades e a insistência
revolucionária de Felipe, para que se justifique o rigor do castigo, con-
cluindo por afirmar que "o merecido castigo de Felipe dos Santos e a justa
queima do Morro ( destruição, demolição e arrasamento da casa de Pas-
coal da Silva, foragido) fez um tal efeito, que imediatamente se afogaram os
motins, e cessaram por toda a parte as perturbações, trocando-se o furor
em brandura, a ousadia em rendimento, a violência em sujeição".
Justifica depois o castigo sumário e dá com toda minúcia razões de
extrema necessidade de rigor, depois de dois perdões.
E assim finaliza a relação e notícia do "presente motim ou subleva-
ção" o que mostra a contemporaneidade da narrativa.
No final, o editor Xavier da Veiga procura assinalar as odiosas inver-
dades do Discurso, suas contradições, a detratação dos sublevados e a lou-
vação do governador no afã e inglório empenho de desfazer da generosa
e heróica revolta mineira de 1720, suplantada a ferro e fogo. Mostra os
predicados e serviços de Pascoal da Silva repugnantemente tratado pelo
Discurso. Defende Sebastião da Veiga Cabral, que fora governador da Co-
lônia do Sacramento, e Manuel Mosqueira Rosa, chefes da revolta, e
finalmente louva Felipe dos Santos - o grande mártir e o maior herói da
revolta de 1720.
Havia realmente, conclui Xavier da Veiga, na revolta, o sopro da
indignação geral do povo mineiro contra o Conde de Assumar e contra as

346
ominosas casas de fundição que vinham agravar-lhe a já aflitiva carga de
impostos e extorsões sob a qual ele gemia, protestando altivo, e afinal,
erguendo-se formidável para reagir heróico.
O Discurso, finaliza Xavier da Veiga, querendo verberar a revolta,
"não fez senão glorificar as vítimas do despotismo colonial e justificar
aquele movimento memorável".
A literatura histórica da época a começar pelo já citado "Compên-
dio das épocas da capitania de Minas Gerais, desde o anno de 1694 até o
de 1730" (l0 7 J, sumaría que aos 28 de junho teve lugar o movimento se-
dicioso, que tendia a inutilizar o estabelecimento da casa de fundição. Re-
bentando em Vila Rica, os amotinados se apresentaram em atitude hostil,
posto que mascarados. Dissipado o tumulto, voltaram a exigir alterações
na administração. Derrotado o grupo sedicioso, prenderam-se o mestre-
de-campo Pascoal da Silva, o ouvidor Manuel Mosqueira, Sebastião da
Veiga, e dois frades. Como se dará mais tarde o mais modesto de todos,
Felipe dos Santos "sofreu a pena de morrer arrastado por um cavalo, e
depois esquartejado".
Rocha Pita, o mais lusitano historiador brasileiro colonial, contou
também sua versão na História da América Portuguesa (108).
Rocha Pita conta a história como sempre fatualmente e ligado à ra-
zão de estado. O Conde-general levara ordem para se estabelecerem casas
de quintos, reunira os principais mineiros e pessoas do povo, que depois
de assinarem os termos da aceitação, trataram de revogar com um motim
em Vila Rica, juntando-se mais de dois mil homens armados. Amotinados
os povos, cometeram desatinos, e o governador declarou que as casas de
fundição não teriam efeito senão dali a um ano esperando assim cessasse
o tumulto daquela turba insolente e armada.
Enquanto assim rebaixa o povo, exalta o sossego e a generosidade do
governador, condena as insolências dos amotinados. Sempre neste, como
em outros episódios, ao lado do governo. Fizeram-se prisões, e os presos
foram enviados à Vila do Carmo. A intenção de libertar os presos, em
luta, conduzida por Felipe dos Santos, a prisão deste e seu julgamento su-
mário e imediata execução e esquartejamento, provocou a contenção do
curso rebelde, atemorizados e menos orgulhosos, a ponto de pedirem em
termos de súplica e decididos a acrescentar mais ouro a tributo que pa-
gavam ao monarca. Para Rocha Pita era mais difícil "por serem aqueles
povos compostos de tanta variedade de gênios, quantas são as províncias
e Conquistas de Portugal e da nossa América".
Manuel da Fonseca, o autor da Vida do Venerável Padre Belchior de
Pontes <1o9 J, contou neste livro o que chamou o segundo levantamento das
Minas Gerais, embora já saibamos pelo Discurso que este não foi o se-
gundo. Declara que ele profetizara a luta, dizendo que haveria um grande
destroço, e ainda foi mais preciso avisando a uma pessoa que não chegasse

(107) RIHGB, 1846, VIII, 59.


(108) I.• ed. Lisboa, 1730, cd. Garnier, Rio de Janeiro, s/d . 446-449.
(109) Lisboa, 1752, 2.• cd. S. Paulo, s/d. 242-248.

347
ao Ribeirão do Carmo. E deu conselho para que os mineiros largassem seus
vícios e torpezas com que irritavam a Justiça Divina.
Esta história providencialista se manifestava no Padre Belchior de
várias maneiras, sempre querendo evitar "o fadaria dessas Minas enga-
nosas, que só servem para as almas, que custaram o sangue de Cristo, ro-
darem pelas barranças do Inferno". Mas,além das profecias repetidas a
várias pessoas, Manuel da Fonseca transcreve uma "relação que correu
manuscrita na qual se relatam com muita miudeza os sucessos dela".
Conta a relação <110 > o grande motim que a 28 de junho sucedeu em
Ouro Preto. Relata os episódios que, se seguiram de 29 de junho a 16 de
julho, transformando aquela "vila num inferno, com desordens, motins e
distúrbios causados por uns mascarados, que desciam do Morro do Ouro
Preto, os quais de manhã se aquartelavam, vindo abaixo acompanhados
de negros, e mulatos arrombando casas, ferindo, espancando e matando
aos que lhe resistiam". Revela as tentativas de acomodamento procuradas
pelo Conde-general, usando religiosos e mestres-de-campo, sem êxito, pois
nem se aquietavam com o perdão, nem com os respeitos se satisfaziam. A
razão do motim é que não queriam casas de fundição de quintos e não
aceitavam casa de moeda.
E assim conta o que contaram os contemporâneos, a concessão e o
perdão do general e a não quietação, pois, e aí se descobre o novo, "o
fim último deste motim era a rebelião que intentavam contra o general
do Soberano, não por outra causa mais que quererem viver sem Gover-
nador e Ministro da Justiça que os governassem, e talvez sem obediência
do Monarca: pouco a pouco foram descobrindo sua intenção".
O povo voltava a amotinar-se, fazia ameaças e exigências atendidas
pelo general para os acomodar. As mais populações das Minas estavam
observando o fim deste levantamento e rebelião de Ouro Preto; para as-
sim se declararem. Mandou o general prender aos que julgou cabeças e
nem assim se aquietou a rebelião.
Repetiam-se os motins a 6 e principalmente a 14 de julho, quando
foi maior o exaspero e a fúria mais acesa. Aos 16, partiu o general acom-
panhado de Dragões, de moradores e seus escravos, todos armados, em
direção a Vila Rica e como primeira medida mandou pôr fogo às casas
dos principais autores e fautores do motim, especialmente a de Pascoal da
Silva. Escreve que os dois mil ou perto de três mil negros que mineravam
no Morro foram entrando pelas casas desertas e as roubaram e queimaram.
Não se descreve o fim da amotinação, os que ajudaram o Conde-
general, as castigos que se executaram em alguns, e não diz uma palavra so-
bre a morte de Felipe dos Santos (111 >.
Cláudio Manuel da Costa no "Fundamento Histórico" <112 > escreveu
que o Conde-general passou para as Minas em setembro de 1717. "Foi

(110) Ob. cit. 249·256 .


. (111) No extrato que se publicou na RI HGB 1841, 111, 275-281 a matéria é mais reduzida.
(112) Ob. cit., t. li, 173-.

348
seu governo bastantemente crítico por encontrar a oposição dos povos na
criação das casas de fundição. S.!1bjugou heroicamente alguns levantados,
e sublevações, principalmente os de Pitanguy, fulminados por Domingos
Rodrigues do Prado, e o de Vila Rica, que foi ter à Mariana em 28 de
junho de 1720: aqui se lhe fez preciso prender a uns, e castigar a outros
com a última pena.
"Estes procedimentos lhe adquiriram o nome de tirano nas Minas,
mas à sua constância e resolução deve Portugal a inteira sujeição da ca-
pitania: o exemplar castigo acabou de aterrar os ânimos de um povo tan-
tas vezes rebelde e segurou de uma vez a real autoridade." Aqui se enga-
nou Cláudio, que verá nova conspiração mais ampla, na qual se envolveu
e cujo castigo foi exemplar.
Na "Instrução para o governo da Capitania de Minas Gerais" por Jo-
sé João Teixeira Gomes <113) se descreve o grave mofar, de 28 de junho de
1720, das 11 horas para meia-noite em Vila Rica, com o intento de matar
o ouvidor geral Martinho Vieira, e como ele não estava em casa destruíram
tudo que estava nela e começaram a clamar contra as casas de fundição
que S. M. havia mandado estabelecer. P1;1ra sossegar o povo declarou que
elas só entrariam em vigor passado um ano daquela data.
A providência irritou ainda mais os povos, e os cabeças do motim
mandavam emissários a diversas partes da capitania para se sublevarem
também. Reunido com o ouvidor da comarca da Vila do Carmo, o supe-
rintendente das casas de fundição e alguns militares decidiraµi, diante da
perigosa situação em que se encontrava o governo e os interesses régios, a
concessão do perdão.
No dia seguinte, 2 de julho de 1720, marchou o corpo de sublevados
para a Vila do Carmo levando consigo violentamente os oficiais da Câma-
ra de Vila Rica, e as pessoas principais dela, apresentando ao governador
uma proposta de 14 artigos pedindo-lhe a concessão do que requeriam.
O governador convocou as pessoas principais e uniformemente vota-
ram o que pedia o povo e se publicou o perdão ao som de caixas.
Sem embargo deste perdão foram presos e justiçados os cabeças do
motim, com o pretexto de que continuavam a sublevar o povo. Como já
sabemos só um foi justiçado, como sempre o mais modesto, e o desembar-
gador declara que antigos habitantes afirmam que "esta reincidência fora
fantástica e imputada por al&uns paulistas inimigos inconciliáveis dos eu-
ropeus".
Teixeira Coelho finaliza com um comentário que merece transcrição:
"Este governador teve a infelicidade de não serem eficazes as suas provi-
dências para conter os povos na submissão devida. :e certo que eles se
opuseram com as armas à execução das sagradas leis de S. M., fazendo-se
abomináveis e réus da morte; mas a independência dos que tinham a seu
cargo as diversas partes do governo público. as extorsões e violências com
que os mesmos povos eram oprimidos, fizeram, que esquecendo-se das

(113) RlHGB, 2.• ed. 1888, XV, 331-333.

349
obrigações da lei natural e divina, e faltos de constância para o sofrimento,
se precipitassem a romper, de mão armada, o jugo da tirania que os vexa-
va, passando depois a impugnar as reais ordens do seu legítimo monarca".
Como se vê o desembargador reconhecia a existência da opressão e
da tirania, mas não faz nenhuma referência ao martírio de Felipe dos
Santos.
Na "Instrução para o Visconde de Barbacena Luís Antônio Furtado
de Mendonça, governador e capitão general da capitania de Minas Gerais",
escrita por Martinho de Melo e Castro 111 4 >, a história vem contada da mes-
ma maneira que nas anteriores, registrando a mais que "com sua presença
se retiraram os emissários, e um deles sendo colhido à mão, e confessando
que andava induzindo o povo para novamente se amotinar, foi logo en-
forcado, e feito em quartos, e as casas dos cabeças que se achavam presos,
umas foram arrasadas, e outras reduzidas a cinzas.
"Este golpe de surpresa e severidade, seguido imediatamente depois
da prisão dos referidos cabeças, atemorizou de tal sorte os seus emissários e
habitantes de Vila Rica, que os primeiros nunca mais apareceram, e os
segundos se conservaram no maior sossego e tranqüilidade cessando intei-
ramente os motins, que haviam durado dezoito dias."
Na "Memória Histórica da Capitania de Minas Gerais" <11 5> de José
Joaquim da Rocha, aparece nas três publicações, da mesma forma. suma-
ríssima, anotando que "aqui se fez preciso prender a uns e castigar a ou-
tros com a pena última" (116).
No "Descobrimento das Minas Gerais" de Diogo Pereira Ribeiro de
Vasconcelos (117) a história não é tão sumária. ao contrário é bem maior
que o relato de Cláudio Manuel da Costa e sobretudo que o de José Joa-
quim da Rocha. Nesta não se esquece, intencional ou não intencionalmen-
te o nome de Felipe dos Santos e deste modo se descreve: "Assim que
chegou, fez logo arder as casas de Pascoal da Silva, e a dos outros réus nos
morros do Ouro Podre, que por isso se ficou chamando até hoje o morro
da Queimada; mandou sumariar Felipe dos Santos pelo Juiz ordinário. E
processados sem demora os seus crimes, foi sentenciado a perder a vida
na forca, e a ser feito depois em quartos, que se distribuíram pelos lugares
dos delitos. Se as formas judiciárias não se observaram no caso, está o
Estado em obrigação ao Conde por estes exemplos de severidade, que só
foram capazes de trazer à capitania o sossego interior; deles também de-
pendia o feliz sucesso do estabelecimento das casas da fundição e moeda,
correndo o ano de 1725, e governando já D. Lourenço de Almeida. Nos
casos desesperados a lei civil é por vagarosa impotente: foram sempre da
repartição da política as decisões do momento".
Um dos melhores cronistas do século dezoito, Luís dos Santos Vilhe-
na, cuja obra será examinada no capítulo sobre a historiografia geral, diz

(114) RIHGB, 2.• ed. 1865, VI, 16-17.


(115) RAPM, julho-setembro de 1897, reedição 1937, 477; RIHGB, 1909, LXXI, parte t;
PAN, 1909, IX, 31.
(116) Ob. clt. 477, 164, 31.
(117) RTHGB, 1866, XXlX, 57 e RAPM, Janeiro-março, de 1901, Ano VI, fase. 1, 812.

350
pouco sobre a administração de D. Pedro de Almeida. "Foi seu governo
bastante crítico, pela oposição que encontrou nos povos para a criação das
casas de Fundição.
"Pacificou heroicamente algumas sublevações, principalmente na Pi-
tangui, suscitadas por um Domingos Rodrigues do Prado; outras em Vila
Rica que grassarão até Mariana em 28 de Julho de 1720, onde foi preciso
prender uns e castigar outros com o último rigor da justiça.
"Como porém fosse esta a primeira vez que naquele continente se via
o golpe da justiça descarregado sobre delinqüentes e rebeldes, isto lhe ad-
quiriu o nome de tirano. É porém inegável que a sua constância, resolução
e austeridade se deve a última e mais persistente mão da sujeição e obe-
diência daquela ·capitania.
"Foi o castigo exemplar quem acabou de aterrar e abater os ânimos
inquietos de um povo tantas vezes rebelde e quem por uma vez segurou a
Autoridade Real" (118).

3. 9. As conjurações e rebeliões
As guerras indígenas, sobretudo a chamada Guerra dos Bárbaros
(168 3-171 O), e as insurreições negras, em especial a Guerra dos Palmares
( 1644-1694), várias e constantes não possuem historiografia, pois nem ín-
dios, nem negros escreveram a história de suas lutas contra a dominação
branca, ocidental e colonial.
Sobram assim as divergências entre brancos, colonos e reinóis, com
ou sem apoio popular, negro ou indígena, sempre aspirando o predomínio
de uma burguesia nacional que surgira e desejava se afirmar. A cadeia su-
cessiva e contínua das conspirações e conjurações, então denominadas in-
confidências, de 1789, 1794, 1798 e 1817 pretendem todas buscar a in-
dependência nacional, a liberdade comercial, o predomínio da burguesia
nacional. A baiana de 1798, de origem popular, tem caráter social e é pre-
parada e sofrida por elementos vindos de camadas modestas da população.
As de 1789 e de 1794 são conspirações de intelectuais, com reduzido apoio
de uns poucos revolucionários originários de grupos sociais mais modestos.
Na de 1789 não faltam homens poderosos na economia da colônia, que
buscam conseguir o poder político que lhes faltava e que julgavam neces-
sário e complementar à riqueza obtida.
Nenhuma delas, exceto a de 1817, se concretiza em atos revolucioná-
rios, em luta extrema, com a conseqüente tomada do poder ainda que de
curta duração. Só a de 1817 é verdadeiramente uma guerra social e civil, e só
ela consegue o poder, e se vê derrotada por forças coloniais sem nenhuma
clemência, a ferro e fogo. É verdade que nas outras, em 1789, 1794, 1798,
o castigo é não só a morte como o degredo.
A primeira de 1789 apesar de preparada por intelectuais, não deixou
nenhuma memória da época, a não ser a própria devassa, que não é senão

(118) Cartas de Vilhena Notícias Soteropolitana: e Brasllicas. Bahia, 1922, v. 2, 669-670.

351
um documento histórico. A única narrativa contemporânea é a do Frei Rai-
mundo Penaforte (119). :e
uma narração autêntica e fidedigna, feita por
quem logo no começo declara "como escrevo para o futuro, devo atestar
o que narro", e se refere "a notícias a ele · comunicadas pelos ministros,
que formarão o tribunal, que os sentenciarão". Ele mesmo diz que "cha-
mavam a esse conluio ajuntamento de poetas, querendo significar com
isto ser fabulosa a projetada revolução, assim como fabulosos eram os
mistérios da poesia", e em nota acrescenta que "quase todos os cabeças
eram poetas, que tinham assento no Parnaso português, ou aprendizes".
Trata com simpatia os réus e diz sempre bem de Tiradentes: "este homem
foi daqueles indivíduos da espécie humana que põem em espanto a mesma
natureza" e logo adiante, na hora extrema da paixão de Tiradentes, conta
que "ao serem comutadas as penas de morte aos conjurados com a única
exceção de Tiradentes, esse revelou sua grandeza, pois sempre pedira" que
fizessem dele só a vítima da lei, e que "causava admiração a constância
do réu", "o valor, a intrepidez e a pressa com que caminhava". f: assim
uma crônica viva e autêntica, de uma testemunha que soube conservar
uma digna imparcialidade, sobretudo depois que se viu a covardia de Dio-
go Pereira Ribeiro de Vasconcelos que na sua "Memória" ocultou o nome
de Cláudio Manuel da Costa na lista dos nomes ilustres de Minas Gerais.
Embora não seja de autoria luso-brasileira, o "Relatório de Thomas
Jefferson a John Jay, secretário de Estado dos Estados Unidos em Fila-
délfia, sobre sua viagem ao sul da França" 0 2 0> conta sua correspondência
com José Joaquim da Maia, que estudava medicina em Montpellier e bus-
cava o apoio norte-americano para a revolução brasileira da indepen-
dência.
Sobre a Conjuração Mineira existe ainda a "Memória do êxito que
teve a conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela, acontecidos nesta
cidade do Rio de Janeiro, desde o dia 17 até 26 de Abril de 1792" <121 > que,
se não é contemporânea, deve ser ainda da geração que testemunhou o
acontecimento, pela naturalidade da narrativa, que ainda contém a bajulice
à Rainha, a atualidade descritiva, e que ao mesmo tempo que condena a
conjuração, louva a benignidade real de a todos degredar, exceto ao Tira-
dentes, tem palavras de respeito e admiração ao comportamento deste,
louvando-lhe a coragem e o destemor.
A Sociedade Literária do Rio de Janeiro, criada em 6 de junho de
1786, sob os auspícios do vice-rei D. Luís de Vasconcelos e Sousa (1779-
1790) era a continuação da Academia Científica, fundada em 1771, e
inaugurada em 18 de fevereiro de 1772 sob a proteção do Vice-Rei Mar-
quês do Lavradio (1769-1779) e ambas funcionaram regularmente sem
apresentar contribuições significativas.

(119) "Oltlmos momentos dos lnconfldentes de 1789 pelo frade que os assistiu de con·
fissão", RIHGB, 1881, XLIV, parte 1, 161-186.
(120) Várias vezes reproduzido no original inglês e em traduções portuguesas. Vide Autos
da Devassa da Inconfidência Mineira, 2.• ed. Brasllia, Vol. 8, 28-35.
(121) RTHGB, 1881, XLIV, porte 1, 140-160.

352
A posse do Conde de Resende, homem truculento, como Vice-Rei
(1790-1801) e a perseguição aos poetas mineiros da conjuração de 1789
fizeram com que a Sociedade esmorecesse, dificultando qualquer atividade
literária. Apesar de ter o Conde de Resende permitido suas atividades de-
pois de conhecer seus estatutos, pouco depois ordenou cessassem as reu-
niões e começou a desconfiar que aquelas conferências deviam, além do
interesse literário, constituir um foco jacobino que tratava de matéria contra
a religião e o governo.
A desconfiança se originou de denúncia do frei Raimundo Penaforte,
guardião dos franciscanos, que assistiu e escreveu sobre os últimos mo-
mentos dos conjurados de 1789. Seu nome aparece nos depoimentos do
poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga, e no de Mariano José Pereira da
Fonseca, futuro Marquês de Maricá (1826), e ministro da Fazenda
(1823), ambos atribuindo a denúncia à inimizade pessoal, sendo que o
último declarou ser ele inimigo dos brasileiros, pois constara ter dito ao
Vice-Rei, que se não receasse dos franceses, mas dos filhos dos brasileiros.
A Devassa se fez de 11 de dezembro de 1794 a 13 de fevereiro de 1795,
ouvidas sessenta e uma testemunhas e a inquirição dos réus de 9 de março
a 14 de maio de 1796. Os acusados foram onze e as testemunhas sessenta
e uma. As acusações versavam sobre críticas ou censuras aos religiosos e
à matéria esclesiástica, aos reis e às monarquias, da parte dos réus, que
seriam apaixonados dos franceses e dos princípios da revolução na França.
Findas as diligências de inquirição quase um ano se passou com os
acusados na prisão, até que em 1 de fevereiro de 1797 a Rainha determi-
nava que se o Vice-Rei entendia que os réus não devessem ser soltos, os
enviasse à Corte com os autos onde constassem suas culpas, ou que achan-
do estarem suficientemente castigados com a prisão, os mandasse pôr em
liberdade. O Conde de Resende - refletindo sobre o que acontecera ao
Visconde de Barbacena, no caso dos conjurados mineiros, sobre o qual o
Ministro Martinho de Melo e Castro atribuíra-lhe grande parte da respon-
sabilidade, por haver feito prender tanta gente para o pequeno número de
culpados - decidiu ouvir o desembargador chanceler que opinou pela liber-
tação dos prisioneiros.
Desta conspiração, ou suposta conjuração, só se conhecem os autos das
perguntas feitas a Manuel Inácio da Silva Alvarenga, a oração recitada na
aula de Retórica por José Antônio de Almeida, em outubro de 1794, im-
pressos nas Obras Poéticas de Silva Alvarenga <122 > e a Devassa (1 2 3>.
Não há nenhuma narrativa sobre o caso, que deve ter abalado a mi-
noria dirigente e a ilustrada do Rio de Janeiro, com repercussão nas re-
giões mais desenvolvidas, demonstrando assim o pouco interesse pela me-
mória do acontecimento ou o temor de escrever sobre coisas perigosas.
A história da conspiração de 1798 ou Revolução dos Alfaiates na
Bahia, não foi escrita pelos contemporâneos, restando apenas, além da

(122) Ed. de Joaquim Norberto de Sousa e Silva, Rio de Janeiro, Garnler, 1864, 2 ts.
(123) Devassa ordenada pelo Vice-Rei Conde de Resende - 1794, ABN, LXI. 239-523,
com excelente explicação de Rodolfo Garcia.

353
Devassa 0 24 >, a "Outra Relação feita pelo Fr. José d'Monte Carmelo, Re-
ligioso Carmelita Descalço" <125 > e outros dois documentos historiográfi-
cos, a "Relação da Francesia Formada pellos Omens Pardos na cidade da
Bahia no Anno de 1798", e a "Notícia da Execução q'se fes na cidade da
Bahia no Anno de 1799" 0 2 6>.
Na "Outra Relação feita pelo ·P.F. José d'Monte Carmelo, Religioso
Carmelita Descalço" <121 > diz o carmelita que "escrevo esta história para
que fique perpétua a memória dos prodígios e misericórdias que Deus
obrou sobre todos os srs. padecentes para os salvar, sendo testemunhas de
muitas destas graças um povo inumerável, que se achou presente na mesma
Praça da Piedade, e os 3 Regimentos pagos, postos em armas, para qual-
quer acidente, que a favor dos padecentes, se pudesse originar, o que há
motivo bastante, para relatar com fidelidade, tudo quanto sucedeu sem
nota de encarecido, ou pouco verdadeiro, nem ainda ter a censura de pouco
lembrado, pois escrevo isto de dias, depois que foram justiçados, os ditos
padecentes, aos quais assisti dentro do oratório de dia, e de noite confessei
a todos, assim como andei ao patíbulo ... "
A Relação conta o esforço pela conversão e confissão dos revolu-
cionários bem como as tentativas de suicídio, de todos os quatro condena-
dos à morte, Manuel Faustino, Lucas Dantas, João de Deus e Luís Gonza-
ga, sendo que os dois últimos, que quiseram passar por loucos, exigiram
maiores cuidados pela conversão e confissão, sendo que chegaram a se
juntar vinte e tantos religiosos de todas as ordens e presbíteros seculares,
sem nada conseguir senão no momento final. No último momento João
de Deus, o mais impenitente e difícil, falou ao povo dizendo que ele devia
seguir a Deus e a religião católica a única verdadeira, pois tudo o mais
era engano, a que fora levado pela leitura de Voltaire, Calvino e Rous-
º
seau 28 >.
A Revolução de 1817 em Pernambuco foi a única que chegou ao
poder por força das armas e tentou, nos dois meses e dias que dominou,
implantar reformas de fundo, e criou a primeira constituição republicana
representativa brasileira. Dela, afora os documentos históricos <129) existem
narrativas contemporâneas. A primeira é o Preciso dos Sucessos que tive-
rão lugar em Pernambuco, desde a faustosíssima e gloriosíssima Revolução
operada felizmente na Praça do Recife, aos Seis do corrente mês de Março,

(124) "A Inconfidência da Bahia, em 1798 Devassas e Sequestros"; ABN, 1931, XLIII-XLIV,
83-255, e 1931, XLV, 3-421; reproduzido in AAPB, jan.·Junho 1959, 1·280; e julho-dezembro
1959, 281-634, sob o titulo de "Autos de devassa do levantamento e sedição intentados na
Bahia em 1798".
(125) Publicada por Luís Henrique Dias Tavares, História da Sedição Intentada na Bahia
em 1798 A Conspiração dos Alfaia tes, São Paulo, 1975, 121-137.
(126) Existentes os três no Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro no có-
dice "Descrição da Bahia", t. IV, 291-300 e 319-23.
(127) Publicada em L. H. Dias Tavares, ob. cit., mas existente no Arquivo do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, no mesmo códice citado "Descrição da Bahia" t. IV, pp. 301-19.
(128) MOdernamente a história vem narrada em Afonso Rey A Pri meira Revolução social
brasileira. 1198. São Paulo, 1942, em L. H . Dias Tavares Já citado e em Kátia M. de Queiroz
Mattoso Presença Francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798, Bahia, 1969, sendo o de
Dias Tavares o mais completo e originai.
(129) Vide DHBN, Revolução de 1817, 9 vols. 1953-1955, todos com explicação de Jost
Honório Rodrigues.

354
em que o generoso esforço dos nossos bravos Patriotas exterminou da-
quela parte do Brasil o monstro infernal da tirania real 0:10>.
O Preciso é o manifesto da Revolução, e Vamhagen, com seu espírito
oficial, deu uma idéia falsa do documento, notando mais o arroubo e a
veemência da hora de paixão revolucionária. Mas lendo-se o documento
se vê "como mostraram os nossos, como tinham capacidade para· saber
conhecer que a desobediência tem todo o preço do heroísmo em certos
casos, e é quando com ela se salva a causa da Pátria. . . corre-se às ar-
mas, e poucas horas daquele mesmo dia foram todo o tempo de começar,
e acabar tão ditosa revolução, que mais pareceu festejo de paz que tumulto
de guerra, sinal evidente de ter sido tudo obra da divina Providência. e
benefício da benção do Todo Poderoso". . . "Desde logo foi restabelecida
a ordem pública, não se ouviram mais outras vozes que de aclamações ge-
rais dignas do dia, em que um imenso povo entrava na posse de seus
legítimos direitos sociais."
O Preciso não é só um manifesto, é a primeira narrativa sumária da
história da rebelião de 1817.
Além do Preciso, o folheto raríssimo de Gervásio Pires Ferreira Nar-
ração histórica da conduta de Gervásio Pires Ferreira <131 > maldiz a Revo-
lução e afirma ter entrado nela obrigado. Esse foi um homem que se en-
riquecera no comércio e cujo comportamento foi sempre antes, durante e
depois da Revolução muito dúbio e equívoco 0 32i.
Narrativa importante sobre a revolução se encontra nas Notas Domi-
nicales prises pendant un voyage en Portugal et au Brésil en 1816, 1817
et 1818 de L. F. de Tollenare <133>. A parte relativa ao Brasil se encontra
no 3. 0 vol. e fora traduzida incompleta por Alfredo de Carvalho 03 4 >.
Louis François de Tollenare (Nantes, 1780 - Nantes, 1853) comer-
ciante e industrial de tecidos fora educado na filosofia de Condillac e na
economia de Adam Smith. Era um homem culto, cultivado nas letras e
ant-es,- viajado e apaixonado pela botânica. Suas Notes começam aos 17
de junho de 1816, quando parte de Nantes, e se interrompem bruscamente
aos 23 de novembro de 1817, embora ele tenha embarcado para Nantes
aos 24 de setembro de 1818. Sua biografia está traçada e muito bem tra-
çada pelo editor da edição completa francesa, o Professor da Sorbonne,
Leon Bourdon.
Nos Documentos Históricos da Biblioteca Nacional se encontram vá-
rias peças que têm caráter narrativo e assim cabem numa historiografia.
Estão, neste caso a "Carta de Afonso Honorato Bastos dirigida ao Patriota
João da Rocha Moreira Junior" ossi, de Antônio Carlos a José Bonifá-

(130) Recife, 1817; transcrito ln Muniz Tavares História da Revolução de Pernambuco,


Pernambuco, 1840, várias edições; na de 1884, 42-45; na de Recife, 1969, 61-64 e em Melo
Morais, História do Brasil-Reino e Brasil Império, I, 182-183, e no Brasil Histórico, 2 (2.• Série),
n.0 35, 138.
(131) Lisboa, 1823.
(132) Vide A. J. de Mello Biografia de Gervásio Pires Ferreira, Pernambuco 1894.
(133) Edição de Leon Bourdon, Paris, 1971-73, 3 vols.
(134) "As Notas Dominicais de L. F. de Tollenare• RIAGP. 1904, vol. XI, n. 61.
(135) DHBN, 101, 100-101.

355
cio (136) a de "João Paulo Bezerra a S. M." <137 >. o "Relatório dos aconte-
cimentos revolucionários desde o dia que foi preso o governador José Iná-
cio Borges até o dia 25 de Abril" (138>, a "Relação dos Fatos acontecidos
em Natal desde o 28 de Março até o dia 25 de Abril" 039 ) a "Narração
dos festejos que se fizeram em Pernambuco por ocasião da Aclamação de
El-Rei assinada por Antônio de Morais e Silva" (140) e as "Memórias His-
tóricas da Revolução de Pernambuco" (141 >.

(136) DHBN, 101, 126.


(137) DHBN, 101, 219-221.
(138) DHBN, 104, 105-110.
(139) DHBN, 104, 110•111.
(140) DHBN, 104, 211-224.
(141) DHBN, 107, 230,265 .

356
LIVRO OITAVO
A Historiografia Militar
CAPITULO I

1. José de Mirales. 2. As guerras contra os franceses. 3.


As guerras no Sul. A Colônia do Sacramento. 4. As guer-
ras contra os índios, a conquista espanhola do Rio Gran-
de e de Santa Catarina.

1. José de Mirales

Pouco se sabe de sua vida. Supõe Blake que fosse natural da Bahia (1),
mas parece ser espanhol. Foi tenente-coronel de um dos regimentos de in-
fantaria da guarnição da Bahia e acadêmico da Academia Brasílica dos Re-
nascidos <2 >. Foi provido no posto de capitão de infantaria por morte de
Francisco João da Cunha, com a obrigação de dentro de um ano mostrar
confirmação de S. M. <3 >, o que não aprovou o Conselho Ultramarino ao
decidir que S. M. "tem disposto no regimento que faltando os capitães
fiquem servindo em seu lugar os alferes das mesmas companhias e além
dessas razões de nenhuma sorte podia prover este posto em Dom José
de Mirales, assim por não ter os anos do regimento, como por ser estran-
geiro e vassalo de El-Rei de Castela, e que nesta consideração que V. M.
deve ser servido ordenar ao dito Vice-rei que lhe dê logo baixa no dito
posto e o não promova ao posto de ajudante de tenente em que diz tinha
tenção de o prover, mas o mande logo para este Reino, em execução
das Ordens de V. M." (4>.
Escreveu a "História Militar do Brasil" <5 > desde 1549 até 1762 e
a ofereceu a D. José (1750-1777). :E: um livro muito difícil de se ler, não
só pelo estilo complicado e arrevesado do autor, como por ter sido im-
presso com abreviaturas da época. Queixa-se da incúria pelos documen-
tos, da extinção de muitos livros, e da frustração de não ter conseguido
notícias mais exatas do Rio de Janeiro e de Pernambuco. Declara ter
empenhado na obra todas as suas forças para que sua História servisse
como lição: "Nesta Relaçam se propõem à mocidade muitos exemplares
( sic), cujas ações bem copiadas formaram valerozos e fidelissimos
heróis".

(1) A. V. A. Sacramento Blake, DBB, ob. cit. V, 99-100.


(2) Alberto Lamego A Academia Brasllica dos Renascidos, Paris, 1923, 12. Na p. 17 um
soneto de sua autoria em espanhol.
(3) DHBN, XCVII, 37.
(4) DHBN, XCVII, 40.
(5) ABN. XXII. 1-338.

359
Afirma que "toda a história refere ou aos Domínios que Deus deu
aos Srs. Reis, gloriosos progenitores de V. M., ou às Vitórias que o as-
sombroso valor de seus vassalos conseguiram, ou finalmente profusa com
que foram premiados os beneméritos, e tudo cede em Glória de V. M.
e faz esta obra toda sua, pois publica a grandeza de seus Domínios, o
valor dos Portugueses'.'.
Declara ser um soldado que há 55 anos vestiu a farda e ainda a
não despiu ( 1772), e que não foi sem grande dúvida e temor que entrou
no mal trilhado caminho da história militar do Brasil. Mas proclama seus
defeitos, "pois inteiramente me faltam as principais partes, e requisitos
que precisamente se carece para o honorífico emprego de historiador,
ainda quando pelo sublime e intricado assunto da história que se me en-
carrego é esta a de maior excelência, pois parece sem dúvida que a Arte
Militar é a mais nobre de todas as que praticam os homens".
Suas fontes foram não só os autores anteriores e de sua época, como
os manuscritos que encontrou nas secretarias do governo, de modo a
comprender todas "as corpuraturas militares, graduações de postos, pri-
vilégios concedidos, mapas de tropas e soldos, especialmente da Bahia,
a capital".
Dá grande destaque à guerra com os holandeses embora estropie
quase todos nomes flamengos, mas gloria os mortos e feridos cuja relação
publica, e afirma não querer entrar nos segredos e disposições do go-
verno como fazem vários historiadores, "nem passou do necessário ao
incompetente por ostentar mistérios, inteligências, e confiança; não digo,
nem direi mais que o tocante a inteira relação dos sucessos contra o
litígio da malícia e curiosidade".
Seu presente é 1772 i 6 l e afirma que aos 26 de setembro de 1743
foi elevado ao posto de Tenente de Mestre-de-Campo-general, quando
era sargento-mor ad honorem por carta patente do Conde de Galvêas,
André de Melo e Castro, 5. 0 Vice-Rei (1735-1749), de 23 de setembro
de 1743.
Parece-lhe não julgar desacertado descrever "o que é Exército, ainda
quando este se compoem ( sic) das mesmas partes de que consta, e se
compoem (sic) a guarnição desta Capitania; porque um exército é um
agregado de várias gentes de uma Nação, ou de muitas, exercitado para
combater e a quem governa um general e decompõe-se infantaria, cava-
laria e artilharia, que também são governadas por seus generaes, mas
estes subordinados ao Supremo, e das demais partes se forma o Exér-
cito em 3 linhas de que a primeira se chama vangoarda, a 2.ª Batalha, e a
3. ª reserva, ou retaguarda".
"Forma-se a infantaria de brigadas, estas de regimentos, estes de
batalhões; os batalhões de Companhias, e estas de soldados e oficiais,
com os soldados se forma o corpo do Batalhão, e com os oficiais se
guarnece, e um e outro se dividem em 2 classes: os oficiais em 1. 0 e 2. 0
plana e os soldados em fuzileiros e de granadeiros."

(6) Ob. cit., p. 50.

360
Tinha boa intenção de compor uma história correta e compreen-
sível, pois escreveu que "como parecesse que se podem chamar secas, e
estéreis as histórias que delas se não tira outro fato que a precisa nar-
ração dos sucessos delas, e pelo contrário utilíssimas, e deleitáveis aque-
las que sem perder o fio dos acontecimentos propostos, nos levam por
tal caminho que juntamente chegamos ao fim da informação dos suces-
sos e ao da compreensão de várias matérias que a História delas faz não
pequena harmonia, desejo por este modo de historiar, ler e também
escrever. instruindo aos leitores das ocorrências das ações que lhe
ofereço".
Refere-se às lutas pela Colônia do Sacramento e transcreve os bo-
letins dos inimigos encontrados nos campos de batalha. Relaciona a des-
pesa anual com as forças militares do Brasil, a série de governadores e
a relação das ordens reais.

2 . As guerras contra os franceses


O predomínio francês em certas áreas da nossa costa, levou Capis-
trano de Abreu a afirmar que os franceses ameaçaram o poder português
no Brasil; a Conquista do Rio de Janeiro em 1555, a fundação de S. Luís
em 1612, de cuja historiografia já tratamos, o ataque francês em 1695 por
de Gennes (7 l e sobretudo o de 1710, sem êxito e o de 1711 em que to-
maram conta da cidade e exigiram grande resgate, revelam a força de suas
tentativas.
Destes ataques resultou uma historiografia de interesse muito limi-
tado. A primeira Relação (8 ) de autoria de Francisco Xavier de Menezes,
4.° Conde de Ericeira (Lisboa 1673, - Lisboa 1743), descreveu o assal-
to desde a chegada dos franceses ao Rio de Janeiro, aos 6 de agosto de
1710 até os festejos em Portugal comemorativos da derrota francesa.
Francisco Xavier de Menezes que levou ao Rei a notícia da vitória por-
tuguesa, é autor de numerosíssima obra (9 ), de mérito medíocre. A nar-
ração é sucinta, sóbria e discreta, relatando sem excessos os aconteci-
mentos, e finalizando com o registro das mercês que S. M. lhe concedeu.
Há outras relações não publicadas (lo) e os relatos franceses da segunda
entrada de 1711 (lll e elogios a Duguay-Trouin (12 l.

(7) Re/ation d'un Voyage fait en 1695, 1696 & 1697. aux cótes d' Afrique, Détroit de Ma-
gellan, Brésil & lsles Antilles par une Escadre de Vaisseaux du Roy, commandée par M.
de Gennes, falte par le Sieur Froger, Ingénieur Volontaire sur /e Vaisseau le Faucon Anglais,
Paris, 1698.
(8) Relaçam da vitória que os portugueses alcançarão no Rio de faneiro contra os franceses,
em 19 de Setembro de 1710, Lisboa, 1711. Publicada também in RIHGB, 1860, XXIII, 412-419
e Melo Morais, Brasil Histórico, II, 2.• série, 1867, 150-153.
(9) Francisco Inocêncio da Silva, DBP, 1859, 3, 85-89.
(10) CEHB n.º' 16.036-37.
(I 1) Relation de ce qui s'est passé pendant la campagne de Rio de faneiro, faite par /'Es-
cadre des Vaisseaux du Roy, commandée par /e Sieur Duguay-Trouin, Paris, 1712 e o Recuei/
des Combats de Duguay. Trouin, Paris, s/d.
(12) Elogio de Renato Duguay-Trouin, por M. Tlwmaz, traduzido da lingua francesa . .
por um homem do mar (Gaspar Pinheiro da Câmara Manuel), Lisboa, 1774.

361
O assassinato de J. F. Duclerc, comandante da primeira expedição
no Rio de Janeiro, provocou a nova expedição comandada por Renato
Duguay-Trouin e afora as narrações francesas jâ mencionadas existe a
Relação da segunda entrada que fizerão os Franceses nesta cidade do
Rio de Janeiro, aos 12 de Setembro 1711 <13 > que recorda todo o ata-
que, vitória e capitulação aos franceses e o resgate de 615.000 cruzados,
além de 200 caixas de açúcar, 200 bois e o saque final.
"Quem dissera" conta a Relação, "que depois de tanta alegria, como
se vê e pode considerar na relação passada, havíamos de experimentar
no seguinte ano tanta perda, tanta moléstia, tanta tristeza, e que tendo
nós então um dia de tanta glória, tivéssemos agora um de tanta pena,
de tanta trovoada e escuridão!"
Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, que veio de Minas
com socorros de 4.000 homens e depois aqui ficou governando (1711-
1713), deixou boa documentação histórica (14).
O guarda-marinha Du Plessis-Parseau escreveu a Expedição france-
sa contra o Rio de Janeiro <15 >, traduzida pelo Comandante Adalberto
Rechsteiner. Sua narrativa concorda nos seus pontos principais com as
Memórias de Duguay-Trouin <16 > e contém detalhes de navegação, de
costumes e descrições, bem como reflexões pessoais do autor, muita m-
formação preciosa sobre a pirataria francesa.
O historiador português Eduardo Brazão publicou a "Relação da
chegada da armada francesa a este Rio de Janr. 0 em 16 de Agosto de
1710" <17), existente na Biblioteca da Ajuda <18), que se refere ao primeiro
assalto e se completa com a descrição de outro códice da Ajuda refe-
rente a Duguay-Trouin "Noticias certas do que sucedeu no Rio de Ja-
neiro, quando este porto foi atacado por 12 naus francesas em Agosto
de 1711" <19 >, no qual se incluem os termos da capitulação do governa-
dor Francisco de Castro Moraes (20).
O primeiro historiador a tratar das duas invasões francesas foi Ro-
cha Pita <21 > numa versão muito deturpada que foi seguida por Varnha-
gen e pelos historiadores gerais e locais do século dezenove e vinte.
Coube a Alberto Lamego nas suas pesquisas em Lisboa restabelecer a
verdade <22 >.

(13) Melo Morais, Brasil Histórico, li, 2.• série, 1867, 203-204.
(14) • Entrada dos navios franceses no porto do Rio de Janelro, carta do governador e
capitão-general Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho"; • Artilharia das naos francesas quei-
madas no Rio de Janeiro"; ···conta sobre a fortificação e artilharia! e mais fortalezas da praça
e armazéns do Rio de Janeiro" RIHGB, 1892, LV, parte 1, 215-227.
(15) Sep. vol. 176 da RIHGB, 93-219.
(16) Mémoires de Monsieur Duguay-Trouin, Paris, 1740 e 1779. A parte relativa ao Rio
de Janeiro se encontra traduzida na Expedição cit.
(17) As Expedições de Duclerc e de Duguay-Trouin ao Rio de fanelro (1710-1711), Lis-
boa 1940.
(18) Carlos Alberto Ferreira, Inventário dos Manuscritos da Biblioteca da Afuda Referentes
b América do Sul, Coimbra, 1946, n.o 1.815, p. 540.
19) Inventário cit., n.º 1.818, p. 540.
(20) O Inventário clt. Indica outro manuscrito, esse inédito, "Relação da tomada do Rio
de Janeiro pelos franceses em 1711", n.0 1.816, p. 540.
(21) História da América Portuguesa, ed. Garnler, s/d. 407-419.
(22) "A Invasão de Duguay-Trouin" in fC, 10 de dezembro de 1946, prometendo no final
um livro "Invasão de Duguay-Trouin e sua repercussão na Bahia", que deve se encontrar entre
seus papéis em São Paulo.

362
O serviço de desfazer as mentiras e patranhas que envolvem essa
história, mal contada por Rocha Pita, não desfeita pelos memorialistas
contemporâneos e exaltada pelo próprio Duguay-Trouin e por Du Ples-
sis-Parseau coube a Alberto Lamego, cujo prefácio ao livro prometido
constitui o artigo publicado e citado.
René Duguay-Trouin (Saint Malo, 1673 - Paris, 1736) tem sido exal-
tado e honrado pelos seus contemporâneos, que nele não viram, afora
o marinheiro, o pirata e corsário, assaltador de cidades. Sua biografia
tem crescido <2 3) e em 1973 prestaram-se na França numerosas home-
nagens à sua memória. Para comemorar o terceiro centenário de seu
nascimento foram seus restos mortais levados a sua cidade natal, Saint
Maio, onde já havia urna estátua erguida à sua memória, e depositados
no altar-mor da catedral. Antes de partirem os restos mortais, conduzi-
dos para maior acinte, num baú de jacarandá, vindo do Brasil, rendeu-lhe
Paris um tributo oficial. Esqueceram o horror dos atos de pirataria por
ele cometidos, e a cumplicidade geral se associou às insólitas homena-
gens aos atos dolorosos, condenáveis e mercantis por ele cometidos no
Rio de Janeiro (24). ·

3 . As guerras no Sul. A Colônia do Sacramento


As guerras no Sul no século dezoito envolveram a luta pela ma-
nutenção da Colônia do Sacramento, o que significava a incorporação
ao Brasil da Cisplatina (aquérn-Plata), futuro Uruguai, os combates con-
tra a invasão e pela expulsão dos hispano-argentinos do território do Rio
Grande, e as disputas causadas pela demarcação de limites e finalmente
as pelejas pela conquista do território das Missões, a última parte a ser
incorporada ao território nacional e assim defini-lo por completo.
De Laguna para o Sul foi tudo conquistado e incorporado, corno
se sabe, mas para isso foi necessária muita luta registrada pela histo-
riografia. ·
O avanço para a conquista do Sul até o Prata começa com o inte-
resse que D. Pedro II, Rei de Portugal (1667-1706) devota ao território
situado à margem esquerda do Rio da Prata. Tudo faz crer que um vasto
plano político-econômico-militar presidia esta incorporação. Começa pela
doação de terras sem donatários na costa até à boca do Rio da Prata.
Em 16 de novembro de 1676 a Bula Romani Pontificis dava corno limi-
te do Bispado do Rio de Janeiro no Sul o Rio da Praia, "usque ad flurnen
de Plata per oram Maritirnarn et terras entus pro suo diocesi" <2 5).
Assim a primeira questão para a historiografia é a fundação e a ma-
nutenção da Colônia que tinha por fim não somente assegurar este terri-

(23) f. Lanore, Duguay Trouin, le vainqueur de Rio, 1935; J. Lauzeret, Le corsalre Duguay-
Trouin, 1936; H. Carré, Duguay-Trouin, corsalre et chef d'escadre, 1941, e H. Maio, La vie de
Monsleur 'Duguay-Trouin, 1949.
(24) Paulo Carneiro "Duguay-Trouln" JB, 23 de julho de 73.
(25) Cândido Mendes de Almeida Direito Civil Eciesidstlco Brasileiro Antigo e Moderno,
Rio de Janeiro, 1866, t. 1, 2.• pte., 552.

363
tório como defender o comércio marítimo que se fazia nas margens do
Rio da Prata. Aos 20 de janeiro de 1680, D. Manoel Lobo desembar-
cava e fundava a colônia. Capistrano de Abreu perguntou com razão por
que a fundaram tão afastada das possessões portuguesas: se foi com o
intuito de evitar as costas áridas do Ri9 Grande ou por que El-Rei julgou
que o melhor meio de sustentar e afirmar seus direitos era levá-los ao
extremo. A decisão revela que a segunda hipótese respondia à pergunta.
Desde 1680 começa a luta pela posse com vaivéns constantes, a mu-
dança de posse, ajustes em Tratados (1681, 1701, 1715, 1737, 1750,
1751, 1761, 1763, 1777), episódios militares que constituem a matéria
da historiografia militar.
A obra mais representativa que sobre ela se escreveu foi a de Simão
Pereira de Sá (Rio de Janeiro, 1701- ? ), Historia Topographica e Bellica
da Nova Colonia do Rio da Prata <26 ). Foi Barbosa Machado na sua Bi-
bliotheca Lusitana <27 ) quem primeiro registrou e descreveu o livro, então
em manuscrito, e fez-lhe a atribuição. Nos Júbilos da América <28 ) de
Manuel Tavares de Sequeira e Sá transcreve-se carta do mesmo que acom-
panhava "as obras do erudito e eloqüente Acadêmico Doutor Simão Pe-
reira de Sá, procurador da Coroa, e Fazenda, no Rio de Janeiro, e na
mesma cidade promotor do Juízo da Provedoria das Capelas e Resíduos;
na República das Letras já assaz conhecido, e o será ainda mais, depois
que chegarem a ver a luz pública, por benefício do prelo, a História To-
pographica e Bellica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata,
e a sabedoria perfeita, e tardes conversadas, obras estas já prontas e ex-
pedidas com licenças para receber o dito benefício, e outras que merecem
como são a 'História Chronologica do Bispado do Rio de Janeiro', a
'Propugnáculo da Advogacia', 'Resoluções Jurídicas e -Problemáticas', 'Con-
ceitos jocosos-sérios para divertir a melancolia', e 'Orações Acadêmicas'."
Com exceção da Historia Topographica, que só veio à luz por iniciati-
va do Liceu Literário Português, nenhum destes seus livros mereceu pu-
blicação. Ele foi membro da Academia dos Seletos, reunida no Rio de
Janeiro em 1752. A Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro possui um
original e uma cópia da "Historia" em letra do século XVIII (2 9), um
provindo da Real Biblioteca de D. João VI e outra da dos Marqueses
de Castello-Melhor, servindo esta para a edição de 1900 (30 ).
A Historia Topographica foi indicada ao Liceu pelo Barão de Ramiz
Galvão e foi editada com o maior respeito ao original. Embora a Colô-
nia do Sacramento se desagregasse mais tarde do Brasil, sua história re-
.presenta sempre, pelo duplo motivo de posse e desanexação, um conjunto
bizarro, como encerra lances importantes e curiosos. Deve ser considera-

(26) Rio de Janeiro, 1900, com introdução de J. Capistrano de Abreu, reproduzido in


Ensaios e Estudos, 3.• série, 1938, 57-105 e 2.• ed. 35-73.
(27) História, Critica e Cronológica, I.• ed., 4 ts., 3; 1752, 720.
(28) Lisboa, 1754, 21.
(29) Descrita por A. Vale Cabral, ABN, li, 510-512, e CEHB, n. 0 10.750, pp. 939-940
(30) Sabe-se ainda da existência de outro códice da Biblioteca de Félix Pacheco, hoje
em S. Paulo. Vide Rodolfo Garcia nota VI II, pp. 73-75 do t. IV da História Geral do Brasil do
Visconde de Porto Seguro.

364
da como um subsídio à "História Militar" de J. Mirales. Seu estilo é re-
tórico, seu conteúdo episódico e eventual·, sem nenhum interesse social e
econômico. Tal como se intitula, uma narração topográfica e bélica. "Posto
que pequeno o livro, não foi pouco o desvelo e trabalho no seu contexto,
porquanto a composição em memórias desbaratadas é tão difícil, como
laboriosa a empresa de ajuntar as partes para organizar o corpo. Nem
nas bainhas das vitoriosas espadas achei individuados os sucessos ante-
riores para ornamento da história ... Assim não imagino que avalieis o
engenho pelo vulto, senão pela obra e por este motivo espero que em
mim louveis o ardente desejo de famigerar a nação e ilustrar as armas."
Sobre ela escreveu pequena mas significativa crítica o general Paula Ci-
dade <31 >.
Há outras narrativas sobre a conquista, posse e perda da Colônia,
como a Relação do Sitio, que o governador de Buenos Aires D. Miguel
de Salcedo paz no anno de 1715 à Praça da Nova Colonia do Sacramento,
sendo governador da mesma Praça Antonio Pedro de Vasconcellos (32 ),
escrita por Silvestre Ferreira da Silva (Guimarães, Portugal, ? - ?) que
em treze anos de contínuas guerras aprendera as primeiras lições da arte
militar <33 > e veio a ser almoxarife da Fazenda Real da Colônia do Sacra-
mento, e foi alferes do batalhão da praça da Colônia; o Extracto da res-
posta que Alexandre de Gusmão . .. deo ao brigadeiro Antonio Pedro de
Vasconcellos sobre o negocio da praça da Colônia ( 34 ); a "Memoria do
antigo Governador da Colônia Sebastião da Veiga Cabral sobre a legiti-
midade dos direitos de Portugal às terras da parte oriental do Rio da Prata
e Sobre os limites do Brasil em geral" <35 ); a Relación dei Sitio, toma, y
desalojo de la Colonia, nombrada el Sacramento, en que se hallavan los
portugueses desde el aíio de 1680 (36); e finalmente a Notícia, e justifi-
cação do título, e boa fé com que se obrou a nova Colônia do Sacramento,
nas terras da capitania de S. Vicente, no sitio chamado de S. Gabriel nas
margens do Rio da Prata (3 7 >.
No Arquivo das 1ndias em Sevilha existem manuscritos inéditos so-
bre a conquista da Colônia (38J como a "Relação do que aconteceu em
Buenos Aires relativamente a demarcação de limites com a Colônia do
Sacramento" <39 >, ou a "Relação de tudo o que aconteceu no ataque à
Colônia do Sacramento e bloqueio da mesma" <40 >, a "Relação anônima dos
povoados e fortificações que, a oeste da linha estabelecida pelo Papa

(31) Síntese de Três Séculos de Literatura Militar, Rio de Janeiro , 1959, 67-68.
(32) Lisboa, 1748.
(33) Inocêncio Francisco da Silva , DBP, VII, 258 e XIX, 212 .
(34) RIHGB, 1840, 1, 334-344 e Alexandre de Gusmão Obras, S. Paulo , 1943, 121-165.
(35) Arca de 1713 in Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri (1750) Parte lll Antece-
dentes do Tratado, t. 1, Rio de Janeiro , s/d , 157-187.
(36) Madri, s/d, descrito por Ramiz Galvão , "Diogo Barbosa Machado, Catálogo de suas
coleções ", ABN, 1880, Vlll, n. 0 1.706, p. 402.
(37) S/1. 1681, citado por Ramiz Galvão , ob. cit., n. 0 1.726, p . 405 , e a tradução francesa,
in n. 0 1.727, p . 406 .
(38) João Cabral de Melo Neto , O Arquivo das lndias e o Brasil, Ministério das Relações
Exteriores , Rio de Janeiro, 1966, p. 418.
(39) S/ a., s/1. , 1736.
(40) J. Cabral de Melo Neto, ob. clt., p. 439 .

365
Alexandre VI edificaram os portugueses" c4tl e finalmente a "Relação da
Conquista da praça da Colônia do Sacramento e da Ilha de São Gabriel,
dela dependente" (42).
A conquista e perda da Colônia provocou a elaboração de uma
grande bibliografia e historiografia até os nossos dias (43).

4. As guerras contra os índios; a conquista


espanhola do Rio Grande e de Santa Catarina
Escreveu Capistrano de Abreu que "maior atenção que os incidentes
deste sítio ( Colônia do Sacramento) reclama a resolução tomada por
Gomes Freire de Andrada, capitão general do Rio de Janeiro, de ocupar
as do Rio Grande do Sul. Pô-lo em execução José da Silva Paes em prin-
cípio de 1737, o qual fortificou a barra, e pôde convencer-se da excelên-
cia do interior, bem contrário do aspecto repelente do litoral. Famílias aço-
rianas, acossadas pelas angústias da sua situação insular, vieram dirigidas
para este novo destino, e insensivelmente surgiu a idéia de que aqui, e
não nas margens do Prata deveria expandir-se a energia colonizadora.
Seria o porto intermédio até então ausente, a guarda avançada, a ligação
entre a costa oriental e as águas platinas" <4 4 ).
E assim se deu começo à incorporação do Rio Grande, tendo o Tra-
tado de 1750 definido os limites entre as terras de Portugal e as da Es-
panha na América ficando a Colônia com os espanhóis e as terras e po-
voações da margem oriental do Uruguai com o Brasil.
Mas os ódios terríveis que os paulistas haviam criado com suas
incursões por aquelas terras, e sua caça aos índios tomaram impossivel a
execução do Tratado de 1750. Os conflitos provocados pelas demarcações
e a sucessão de acordos entre Portugal e Espanha provocaram também
uma ·historiografia militar e de limites. O novo Tratado de 1777 aban-
dona o princípio básico do uti possidetis e se torna o último ajuste entre
as duas Coroas sobre os limites de suas possessões na América Meri-
dional.
No periodo das demarcações convencionou-se chamar de guerra gua-
ranitica as campanhas militares que compreendem a de 1754 e a de 1755-
56 contra os indios que se opuseram à transferência de territórios.
Na "Noticia - 2.ª Prática que dá ao P. M. Diogo Soares, o capitão
Christovão Pereira sobre a Colônia, e Rio Grande ou Porto de S. Pedro"
contava-se o caminho, a capacidade das terras, a utilidade que delas se
podia tirar, descrevia-se o clima, e os frutos que produzia <45 >.
Sobre a guerra com os índios devida às demarcações e às transfe-
rências de lugares, o "Diário da Expedição de Gomes Freire de Andrada"

(41) J. C. de Melo Neto, ob. cit., p. 451.


(42) J. C. de Melo Neto, p. 582.
(43) Vide sobretudo Jonathas da Costa Rego Monteiro A Colônia do Sacramento 1680-1777
Porto Alegre, 1937, 2 vols. e Luís Ferrand de Almeida A Diplomacia Portuguesa e os Limites
Meridionais do Brasil, Coimbra, 1957, vol. 1 (1493-1700).
(44) Caplstrano de Abreu, "Sobre a Colônia do Sacramento", ob. cit., 77.
(45) RJHGB, 1908, LXIX, parte 1, 307-309.

366
pelo capitão Jacinto Rodrigues da Cunha, testemunho presencial (46) co-
meça em janeiro de 1752 e vai até julho de 1756, dando minuciosamente
todo o sucedido na campanha de Gomes Freire.
Guilhermino César incluiu em sua excelente historiografia do Rio
Grande do Sul, como um dos escribas da campanha, Manuel Martins dos
Santos, transcrevendo um trecho bem significativo <47 > mostrando as di-
ficuldades e as inclemências sofridas pelo Exército de Gomes Freire.
Tratam desta campanha a Re!açam Verdadeira, em que se dam a
7er as victorias dos Portuguezes contra os gentios, e Levantados, alcan-
çadas por Gomes Freire de Andrade nas terras visinhas da nova colonia
e estados das lndias de Hespanha <48 > e a Relação do que aconteceo aos
demarcadores portuguezes e castelhanos no certão das Terras da Colonia:
opposição que os Indios lhe fizeram: rompimento da guerra que houve, e
de como se alhanaram todas as dificuldades, escrita por Felis Feliciano
da Fonseca (49).
Inocêncio Francisco da Silva nada pôde apurar sobre Felis Feliciano
da Fonseca, não sabendo se se trata de nome verdadeiro ou suposto e
indicando outros folhetos seus <50 >. Sua relação louva as conquistas das
duas monarquias católicas, Portugal e Espanha, e o esforço pela divisão
das terras sem causar rompimento, e ao contrário, estabelecer uma con-
córdia perpétua. Aponta a oposição dos índios e noticia as operações
militares para vencê-Ia.
Foi sobre essa guerra luso-brasileira-hispano-argentina contra os ín-
dios para impor-lhes a retirada de suas terras, que José Basílio da Gama
escreveu seu Uraguay <51 >. Literariamente ele é considerado um poema
épico, de feição clássica, alinhado à ideologia ilustrada e pombalina, anti-
jesuítica e antiindígena. Historicamente dele escreveu Capistrano de Abreu
"um poeta de mais talento que brio cometeu a indignidade de arquitetar
um poema épico sobre esta campanha deplorável".
A seguir tem grande importância para a formação do Rio Grande
a disputa armada, isto é, a luta que se inicia entre 1762 e 1777, com a
invasão e domínio espanhol do Rio Grande e da ilha de Santa Catarina;
dela resultou o novo Tratado de 1 de outubro de 1777 entre Portugal e
Espanha alterando os limites fixados pelo Tratado de 1750, com desres-
peito aos interesses luso-brasileiros. O Tratado restituía a Portugal a ilha
de Santa Catarina, mas em compensação devolvia aos espanhóis a Colô-
nia do Sacramento e o território das Missões. As forças luso-brasileiras já
haviam expelido do Rio Grande em 1776 as forças hispano-uruguaio-ar-
gentinas.

(46) RIHGB, 1853, XVI, 139-328.


(47) Eduardo Brazão, Os Jesuítas e a Delimitação do Brasil de 1750, transcreve o documento
da coleção Pombalina da Biblioteca Nacional de Lisboa, e dele retirou o trecho transcrito por Gui-
lhennlno César Primeiros Cronistas do Rio Grande do Sul, 1605-1801. Porto Alegre, 1969, 146-153.
(48) Lisboa, 1757.
(49) RIHGB, 1860, XXllI, 407-411.
(50) DBP, li, 264 e XIX, 212.
(51) Lisboa, J769, há várias reedições.

367
A historiografia contemporânea é pequena, embora seja farta a docu-
mentação e a bibliografia secundária <52 >.
Agora para a definição geral do continente só faltam as Missões,
cuja conquista em 1801 dá ao Rio Grande sua fisionomia atual. O general
Paula Cidade escreveu que a luta travada entre Portugal e a Espanha
não deu lugar "a uma literatura tão vasta como a da guerra holandesa,
embora sua bibliografia ( secundária) vai se tornando notável" <53 ).
A historiografia sobre a conquista das Missões inclui a Memoria da
tomadia dos sete povos de Missões da America de Hespanha (54 ); dela
faz parte também o Anno de 1801. Notícia dos acontecimentos pela pre-
sente guerra nos Sete Povos de Missões e nesta fronteira do Rio Grande
de S. Pedro <55 >.

(52) Vide CEHB, n.•• 10.808, 10.814, 10.815 e 10.818.


(53) Síntese de Três Séculos de Literatura Militar Brasileira. Rio de Janeiro, 1959, 15.
(54) RIHGB, 1843, V, 3·21; reproduzida em parte por Gullhermlno César Primeiros Cro·
nistas do Rio Grande do Sul, 1605-1801 Porto Alegre, 1969, 191-205.
(55) RIHGB, 1853, XVI, 329·353 .

368
LIVRO NONO
A Historiografia Econômica e Social
CAPITULO I

A HISTORIOGRAFIA ECONÔMICA GERAL


1 . Os Diálogos das Grandezas do Brasil. 2. A Arte de Fur-
tar. 3. A Economia Cristã. 4. José Joaquim da Cunha de
Azeredo Coutinho.

1. Os Diálogos das Grandezas do Brasil

Os Diálogos das Grandezas do Brasil são documentos capitais do sé-


culo XVII e constituem a crônica mais positiva, a descrição mais viva,
o flagrante mais exato da vida, da sociedade, da economia dos moradores
do Brasil, gentios, reinóis, mazombos e negros. O livro compõe-se de seis
diálogos entre Brandônio, pregoeiro das virtudes da terra, e Alviano, que
a tem "pela mais ruim do mundo". Brandônio, para convertê-lo à seita
dos primeiros ufanistas, mantém sete dias de conversação, descrevendo
em cada diálogo os benefícios do Brasil e debatendo ou corrigindo os
erros, enganos e malquerenças de Alviano. O primeiro Diálogo é uma
espécie de introdução geral sobre as riquezas dos moradores, a fertilidade
e grandeza das terras, descrevendo cada uma das capitanias em particular,
desde o Pará até São Vicente, que era a última. No segundo, define o
clima e a salubridade, discutindo a adaptação do homem à zona trópica
e coincidindo, na argumentação e autoridade invocadas, com as obras
da época, especialmente as de Simão de Vasconcelos e Frei Vicente do
Salvador. Era de todas as matérias a mais "dificultosa de soltar", pois ex-
põe também as principais doenças de que sofrem os primeiros colonos.
No terceiro, trata das riquezas da terra, descrevendo especialmente o fa-
brico do açúcar, as inovações técnicas, a exportação, o comércio marítimo,
o rendimento dos dízimos, a escravatura indispensável, as atividades dos
moradores, o pau-brasil, o âmbar e o algodão. Mas, "de todas essas cou-
sas, o principal nervo e substância da riqueza da terra é a lavoura dos
açúcares", com que se enobreciam o Brasil e seus moradores. O quarto
nomeia a diversidade de frutos e mantimentos, dos quais a mandioca era
o principal. Eram tantos e tão variados que Alviano se arrepende de ter
tido o Brasil em diferente reputação. O quinto ocupa-se da fauna e o
sexto dos costum~s dos moradores, especialmente o gentio, terminando
Alviano por confessar que se acha convertido à seita de Brandônio e que
por toda parte por onde se ache, apregoará do Brasil e de suas grandezas
os louvores que elas merecem· (1).

(1) As citações são da edição da Academia Brasileira de Letras, 1930, Vide p . 289.

371
A obra, escrita em 1618, provavelmente no primeiro semestre 121, é,
como se vê, uma descrição da atualidade social e econômica do Brasil,
sem outro objetivo que o de dizer aos contemporâneos as verdades, os
merecimentos e os seus entusiasmos pela terra. Como descrição presente,
ela se transforma numa crônica das mais fiéis, que a historiografia não
pode desconhecer.
O texto foi primeiramente encontrado na Biblioteca Nacional de Lis-
boa por Francisco Adolfo de Varnhagen; havia desaparecido quando o
procurou João Francisco Lisboa. Apurou-se, então, que José Feliciano de
Castilho o levara quando partira para o Brasil. E, com efeito, Castilho
começou a publicar o documento no !ris, sem concluí-lo <3 1. Mais tarde
Varnhagen encontrou outra cópia na Biblioteca de Leide, oferecendo-a a
José de Vasconcelos, que estampou o Diálogo 1 no Jornal de Recife e
mais tarde confiou-a à redação da Revista do Instituto Arqueológico e
Geográfico Pernambucano, que a publicou de 1883 a 1887. Em 1886
José Higino Duarte Pereira trouxe da Holanda nova cópia <4 1, que deve
ter facilitado a ultimação final da publicação que demorara um lustro,
declarando-se que a cópia do Instituto era incompleta <51.
A publicação no Diário Oficial e posteriormente na série "História",
da Biblioteca de Cultura Nacional da Academia Brasileira de Letras, deve-
se a Capistrano de Abreu <0 1. Desde 1899 ele anunciava sua decisão de re-
publicá-los e iniciava pesquisas e consultava amigos eruditos como Guilher-
me Studart, Mário de Alencar e Oliveira Lima (7), sobre o livro e seu autor.
Em 1901, nas vésperas, de publicar seu segundo artigo sobre os Diálogos,
escrevia a Mário de Alencar: "Hoje vou ler pela vez n os Diálogos das
Grandezas do Brasil para sobre eles fazer a segunda e última parte da
introdução. Já na Gávea estava acabado, e creio que não seria difícil achar
entre º" papéis para aqui trazidos o artigo completo ou quase. Prefiro, po-
rém, começar de novo, mesmo porque quero encarar o assunto sob novo
ponto de vista. Hoje meu principal objeto será aplicar o método de Taine,
descobrir a sensação original do autor" 18>. Em 1922 solicitava de João
Lúcio de Azevedo nova cópia existente na Biblioteca Nacional de Lisboa <9 J
e o historiador português esclarecia: "Quanto aos Diálogos das Grandezas
o caso é mais bicudo. O que existe na Biblioteca Nacional é somente o
Diálogo Primeiro, em cópia do Século XIX, o manuscrito tem a nota da

(2) Eládio dos Santos Ramos, A Autoria dos Diálogos das Grandezas do Brasil, Recife,
1946, 17.
(3) Os Diálogos saíram na gazeta /ris, li (1849), 107, 177, 218.
(4) Carta de 26 de maio de 1886 transcrita ln Adriaen van der Dussen. Relatdrlo s_obre
as capitanias conquistadas no Brasil pelos holandeses; traduzido e anotado por José Antônio
Gonçalves de Melo Neto, Rio, 1947, 147.
(5) RIAGP, tomos n.• XXVlll, 3-50; XXXI, 352-387; XXXII, 3-71: XXXIII, 83-146; A
advertência e o posfácio de Vamhagen aparecem nos n ... XXVIII e XXXIII, 147-151, respectl·
vamente, e a Apreciação crítica de Capistrano de Abreu na mesma RIAGP, LXIII, 559-573.
(6) Diário Oficial, fevereiro a março de 1900.
(7) Correspondência de Caplstrano de Abreu, preparada por José Honório Rodrigues, lnst.
Nac. do Livro, Rio de Janeiro, 1954-56, 1, 149, 150, 171. 175, 204; Ili, 5.
(8) Idem, 1, 204. O 1.0 e 2. 0 artigos foram publicados no Jornal do Comércio de 24 de
novembro de 1900 e 24 de setembro de 1901. O 2.• serviu de Introdução à edição da Academia
Brasileira de Letras.
(9) Correspondência, li, 237.

372
mão de Stuart, de que o mesmo fora publicado na Revista do Instituto
Pernambucano. Isto não é verdade. O que saiu na Revista foi muito mais,
creio que a obra toda, e portanto não foi a matéria extraída deste códice".
E depois de contar o que se sabe sobre a vinda dos documentos com
Castilho e sua publicação na !ris e na Revista do Instituto Arqueológico
e Geográfico Pernambucano, declara não ter meios de satisfazer o pedi-
do de Capistrano <10 l. A publicação da Academia em 1930 teve, assim,
de satisfazer-se com a cópia de Varnhagen, talvez corrigida na própria edi-
ção final da Revista pela de José Higino. A edição mais recente, com o
nome de Ambrósio Fernandes Brandão, como autor, contém os mesmos
trabalhos de Afrânio Peixoto, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, da
edição da Academia, com uma nova apresentação de Jaime Cortesão e
novas notas de Rodolfo Garcia <11 l.
Os apógrafos de Lisboa e Leide eram anommos e logo, com Varnha-
gen, iniciou-se o processo da crítica de atribuição. Pensava o grande his-
toriador brasileiro que não podia ser Bento Teixeira, como supunha Bar-
bosa Machado, mas sim um Brandão, como conjeturara D. André Gonza-
lez de Barcia, anotador de Antonio Leon Pinelo no seu Epitome de la
Biblioteca Oriental i Ocidental, Nautica Geografica (1 2 ), e essa opinião
sustentou sem maiores argumentos (13 ).
Na correspondência com os amigos, como Studart e Oliveira Lima,
por volta de 1900, quando iniciaria no Diário Oficial a publicação dos
Diálogos, revela Capistrano de Abreu sua constante e progressiva confian-
ça na atribuição a Ambrósio Fernandes Brandão. "Quem julga V. que
seja o autor do Diálogos", pergunta a Studart. "Cada vez me convenço
mais de que não é, não pode ser Bento Teixeira." E em 1900 escreve ao
mesmo Studart: "Pode ter sido Ambrósio Fernandes Brandão; mas, con-
quanto não haja documento que se possa opor a isto, não tenho com
que escorar a tese e portanto não me aventuro" (14). O mesmo afirma
ainda em 1900 a Oliveira Lima, acrescentando apenas que teve "tendên-
cias de atribuir a autoria a Bento Lopes de Santiago mas também não é
este", e lhe solicita que investigue no British Museum os papéis do Con-
de d,, Sabugal (15).
Coube realmente a Capistrano de Abreu levar adiante a crítica mos-
trando, no 2. 0 artigo de 1901, que os Diálogos são travados entre os in-
terlocutores Alviano e Brandônio, o primeiro chegado há pouco da terra,
ignorante e desafeiçoado de suas coisas, e o segundo conhecedor entusias-
ta do país, personagem real e, implicitamente, o autor da obra. De Bran-
dônio a Brandão e deste aos vários Brandões existentes chegou-se a Am-
( 10) Correspondência, 111, 245.
(11) Edição Dois Mundos, R. Janeiro, 1943. Na folha de rosto desapareceu o nome de
Capistrano de Abreu - embora sua Introdução e notas, as mais importantes, façam parte do
livro - e aparece o de Jaime Cortesão, cuja Apresentação nada acresce de novo.
(12) Madri, 1737-1738, Ili, p. 1.714; nova edição, Washington, 1958.
(13) José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 4.• ed., 1978, 361·362.
(14) Correspondência. ob. cit., 1, 150, 175; 2.• ed., Rio, 1977, mesmas pp.
(15) Correspondência, ob. cit., Ili, 5, 6, 8, 9, 15; 2. 0 ed. Rio, 1977, mesmas pp.

373
brósio ·Fernandes Brandão, que morava em 1583 em Pernambuco, em
1613 na Paraíba; af' possuía dois engenhos, e pedira uma sesmaria para
a construção de um engenho. Sabe-se, ainda, pelos documentos da Primeira
Visitação do Santo Ofício à Bahia (1591-1593), que Ambrósio Fernan-
des Brandão era cristão-novo e foi denunciado perante a Mesa do Santo
Ofício em 8 de outubro de 1591. Se Brandônio é Ambrósio Fernandes
Brandão, então Alviano serâ Nunes Alvares, incluído na mesma denúncia.
Este o resultado da pesquisa de Capistrano de Abreu, adiantada por
Rodolfo Garcia, no aditamento à edição da Academia. A crítica de atri-
buição não parou aí. Em 1945 Elâdio dos Santos Ramos discordou da
tese defendida por Capistrano de Abreu e seguida por Rodolfo Garcia
para sustentar que o autor é Simão Travassos, o jesuíta que escreveu o
"Sumârio das Armadas" <16>. Argumenta Elâdio Ramos: 1) que o autor
pertence a uma ordem religiosa; 2) deve ser um jesuíta, pelos seus conhe-
cimentos religiosos, pelo estilo, e porque como procurador dos padres ar-
recadava os d(zimos de açúcar; 3) que Simão Travassos em 15 83 era
novo na terra, como Brandônio, é entre 1593 e 1605 nada se sabe dele,
como Brandônio que esteve em Portugal entre 1597 e 1607, e, finalmente,
falece em 1618, quando os Diálogos se concluíam. Nega também que um
judeu pudesse revelar tantos conhecimentos religiosos. A crítica a este
trabalho e o reforço documental, ainda não definitivo, mas quase deci-
sivo a favor de Ambrósio Fernandes Brandão, foi feito por José Antônio
Gonçalves de Melo Neto <1 7).

2. A Arte de Furtar
Antes que Vieira encha o mundo da historiografia seiscentista com
a sua voz eloqüente que tratou de quase todos os problemas morais,
econômicos e sociais da metrópole e da colônia, convém lembrar que
a Arte de Furtar e a Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Es-
cravos, se bem não sejam obras históricas, não podem faltar a qualquer
reconstituição histórica, como fontes diretas e capitais, e não podem au-
sentar-se de uma historiografia porque são ambas crônicas da época, das
mais autênticas pela veracidade e sinceridade do quadro que retratam.
A Arte de Furtar, escrita em 1652, só foi publicada em 1744 <18 >.
Atribuída ao Padre Antônio Vieira, mereceu vârias edições e foi justa-
mente recebida com entusiasmo. Tratava-se, na verdade, de uma grande
jóia do português castiço e um excelente depoimento sobre os costumes
portugueses do século XVII. A obra pouco tratava do Brasil, mas rela-
tava ao vivo os grandes acontecimentos dos primeiros doze anos da

(16) Vide José Honório Rodrigues, Historiografia dei Brasil, siglo XVI, México, 1957, 56-58.
(17) "A Autoria dos Diálogos das Grandezas do Brasil", comunicação apresentada ao Con·
gresso de História Comemorativa do Tricentenário da Restauração de Pernambuco, 1954, a ser
publicada nos seus Anais. Há várias referências às atividades açucareiras de A. F. Brandão no
documento "Certidões de traslados do Livro de saldas e despachos de navios da Alíãndega de
Pernambuco" (II, 33, 6, 30 da B. N. do Rio de Janeiro), cópia do século XIX do códice
642 da Coleção Pombalina da Biblioteca Nacional de Lisboa.
(18) Lisboa, J. B. Lerzo. 1744.

374
Restauração portuguesa. Versando matéria de Governo, discutindo a admi-
nistração pública portuguesa, denunciando a venalidade de altos funcio-
nários, retratando a vida pública, social e econômica de Portugal, a Arte
de Furtar foi acolhida sempre como ,um dos mais importantes documentos
seiscentistas. Para provar que havia uma arte de furtar, embora não hou-
vesse universidade, escola e doutores graduados, o autor estuda, com
engenho e ironia, as várias maneiras como se furta neste mundo, covil de
ladrões, "ladroeira ou feira de ladra, em que todos chatinam interesses,
créditos, honras, vaidades". A arte de furtar é arte nobre, praticada por
"senhorias, altezas e majestades", e o autor pretende descobri-los, aos la-
drões, para evitá-los. Aponta a grandeza da coisa pública e a pequenez
dos homens que meneiam tantas cousas; defende Portugal da invasão
espanhola (1580-1640); Pernambuco da entrega à Holanda, como instru-
mento de paz na Europa; trata do declínio de Portugal; define o ofício
de Rei; propugna pela paz; advoga o liberalismo: "Sejam liberais, porque
o povo paga-se muito desta virtude, e a ama e a adora", e aconselha ao
Rei não permita que os grandes oprimam os pequenos. Pleiteia que o go-
verno seja dos melhores, que andam dele afastados, mas com grande realis-
mo anota que é a primeira máxima de toda a polf tica do mundo, que to-
dos seus preceitos se encerram em dois: o bom para mim e o mau para
vós. Por isso "andam Reitores leaes arrastados à roda dos muros da pá-
tria que defenderam e Simões traidores embolçando vivas e triunfando
em carros". A Arte não cuida muito do Brasil, e quando o faz é para
denunciar os escândalos e furtos, a falsidade das certidões com que se
pleiteavam mercês, os prejuízos da invasão holandesa, ainda quando Por-
tugal passara para Castela, a injustiça do cativeiro negro, as ladroeiras dos
ministros que se ocupavam mais do seu, que dos negócios alheios, e a
necessidade de um Vice-Rei no Brasil. Mas, apesar disso, é uma das
melhores crônicas seiscentistas sobre os negócios públicos da metrópole,
sobre o caráter nacional português, sobre os costumes e a vida social.
Como tal, retrata, pelo dirigente, muito do que sofria o dirigido e pinta
a ctecomposição das minorias responsáveis, que constituíram sempre o
pecado danado do Brasil. Alguns reparos da Arte sobre as classes diri-
gentes são tão verdadeiros, que outros autores da época, como Vieira,
não esqueceram de os anotar.
Foi aceita e considerada como obra de eterna permanência, não só
porque apontava os erros públicos de uma nação, em certo período de
sua história, como porque retratava um mal de expressão universal, mais
ou menos acentuado, neste ou naquele país, nesta ou naquela fase his-
tórica: os que furtam o bem público.
Posta em dúvida a autoria de Antônio Vieira por Francisco José
Freire, na Carta Apologética (t9l, iniciou-se o maior processo de crítica de
atribuição que até hoje litiga na história literária, sugerindo-se oito auto-
rias: Antônio Vieira, João Pinto Ribeiro, Tomé Pinheiro da Veiga, Duarte
Ribeiro de Macedo, Antônio da Silva e Sousa, Francisco Manuel de Melo,
(19) Lisboa, 1746.

375
Antônio de Sousa Macedo e Padre Manuel da Costa. As críticas têm sido
feitas com base na crítica interna e na externa, mas só recentemente o
problema tomou rumos novos. O Padre Francisco Roçlrigues, historiador
de grande reputação, muito justamente adquirida com a edição de sua
História da Companhia de Jesus na Assistência de Portugal <20 >, numa me-
mória apresentada no Congresso do Mundo Português, O Autor da Arte
de Furtar (21 > pretendia dar uma resposta definitiva à questão ao exibir
um documento anônimo e sem data, no qual se dizia que o Padre Manuel
da Costa (1601-1667) compusera "Hüa Arte de Furtar". Considerava
Francisco Rodrigues o testemunho claro e peremptório.
Alguns anos mais tarde, em artigo intitulado "O Padre Manuel da
Costa Autor da Arte de Furtar" (22 >, replicando à tese de Joaquim Ferrei-
ra a favor de Francisco Manuel de Melo (2 3 ), voltava a sustentar, com
base no documento do Arquivo Romano da Companhia de Jesus, agora
melhor descrito, a mesma autoria. Seu grande argumento é o documento
anônimo que não diz se A Arte de Furtar é esta, hoje conhecida. Como
documento anônimo sua autenticidade é suspeita, pois o estar depositado
no Arquivo da Companhia não lhe dá maior garantia, já que manuscritos
espúrios guardam-se também nos Arquivos, e a nota de entrada ou de
arquivamento do secretário não lhe dá autenticidade, pois as falsas tam-
bém são registradas e recebem a cota. Joaquim Ferreira não aceitava a
tese de Manuel da Costa, porque nada se sabia da cultura intelectual do
padre, e porque a informação anônima era equívoca. O documento úni-
co, anônimo, e sem data, não pode valer mais que todos os processos da
crítica histórica, que são muitos e há muito aplicados. Uma "cousa célebre"
no Reino, como diz o documento, não podia ser de um só conhecida,
pois segredos como esse dificilmente se guardam, e muito menos seria o
autor de livro como este quem, como o Padre Manuel da Costa, deixou
alguns trabalhos que o não recomendam. O argumentum ex silentio é a
prova da não veracidade de uma testemunha, pelo silêncio de todas as
outras testemunhas (24).
Coube a Afonso Pena Júnior, em magnífica obra de crítica e erudi-
ção, A Arte de Furtar e seu Autor (25 >, estudar essas autorias, decidindo-se
pela de Antônio de Sousa Macedo ( 1606-1682). Essa decisão não foi
arbitrária ou fruto de ligeiro e apressado exame. Talvez se possa dizer,
sem nenhum excesso, que raras vezes a crítica histórica atingiu tão alto
ponto de amadurecimento. A comparação dos textos da Arte de Furtar
mostra, evidentemente, a razão de Afonso Pena Júnior. Não se satisfez com
isso. Contesta as falsas autorias, demorou-se na reconstituição do meio, da
personalidade e ações de Macedo, examinando suas idéias e sentimentos. As

(20) Porto, 1931-1950. 7 vols.


(21) Porto, 1941. A Memória foi apresentada aos 10 de julho de 1940.
(22) Brotérla, XXXVIII, fase 5, maio de 1944. Separata, Porto, 1944.
(23) Francisco Manuel de Melo escreveu a • Arte de Furtar", Coimbra, 1942, Separata de
O Instituto, vol. 100.
(24) Cf. José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, Braslllana, São Paulo,
1957, vol. li, 632-633; 4.• ed., 1978. 367-370.
(25) Rio de Janeiro, José Olymplo, 1946, 2 vols.

376
provas apresentadas não se limitam, assim, ao exame estilístico, mas apon-
tam as coincidências textuais com a vida do autor, suas críticas pessoais
e as do livro, sua posição política e as idéias do livro, em matérias impor-
tantes, como as do Santo Ofício, a entrega de Pernambuco à Holanda e o
confisco ou garantia dos bens dos judeus aplicados à Companhia de Co-
mércio. Os casos que vieram às mãos do autor, referidos na Arte, foram
investigados e coincidem com as posições de Macedo nos tribunais maiores
em que eram decididos, ou com suas idéias políticas e econômicas. A Arte
de Furtar e seu Autor pela grande erudição, completo e exato conheci-
mento da bibliografia e a poderosa inteligência crítica parece dirimir de-
finitivamente a questão.
Antônio de Sousa Macedo, formado em direito civil em Coimbra,
foi desembargador e diplomata e deixou extensa bibliografia, em portu-
guês, espanhol e latim, muito apreciada pela opinião e estilo. Sousa Ma-
cedo, quando diplomata em Londres, andou representando, a 18 de julho
de 1644, ao Parlamento, então onipotente, contra as pretensões inglesas
de estabelecimento no Grão-Pará e Amazonas, e por isso foi recompen-
sado com o senhorio da Ilha Grande de Joanes (Marajó, Amazonas), por
ato de 23 de dezembro de 1655, um pouco depois de escrita a obra
( 1652). Não prestou Macedo serviços ao Brasil ou àquela parte do Ma-
ranhão que o fizessem merecer tal recompensa, e o seu desinteresse e o
de seus descendentes foi tal, que em 1654 seus herdeiros perderam o se-
nhorio. A Arte também pouco cuidou do Brasil e serve apenas como
espelho cruel da vida portuguesa, retratando também, por isso mesmo, a
colônia, que sofria os males da corrupção administrativa, judiciária e polí-
tica em geral.

3 . A Economia Cristã
Jorge Benci ( 1650-1708) embarcou para o Brasil em 1681 e só
voltou à Europa em 1705 (2 6>. Nestes 24 anos de permanência foi mes-
tre de Humanidades e Teologia. secretário do Provincial e Visitador local.
Tendo vivido no Rio e na Bahia. onde escreveu a Economia Cristã dos
Senhores no Governo dos Escravos <27 >, pôde o jesuíta conhecer os males
da escravidão, retratá-la e procurar suavizar, pelo ensino, o trato do negro.
A obra, fruto de um sermão sobre as obrigações dos Senhores em rela-
ção aos escravos, discute em quatro Discursos as quatro obrigações do
senhor para com o negro: o sustento, o ensino, o castigo e o trabalho. A
Economia Cristã revela muita novidade sobre a escravidão no Brasil, e
o tratamento dado aos negros, principal sustentáculo da economia colonial
e imperial.

(26) Serafim Leite, História, VIII, 95-96.


(27) A !.• edição é de Roma, 1705, e a 2.• do Porto, 1954. A obra deve ter sido terml•
nada em 1700, quando foi aprovada pelo Provincial e preparado o frontispício manuscrito, onde
se lê: Bahia, 1700.

377
O Autor, apesar de sua símpatía pelos escravos, não cunsegue sopítar
certos sentimentos racistas ao escrever, por exemplo, que "os pretos são
sem comparação mais hábeis para todos os gêneros de maldades, que os
brancos, por isso eles com menos tempo de estudo saem grandes lícen-
ciados do vício na classe do ócio" <2si. Sua tese não é combater a escra-
vidão, que os padres aceitavam como anteríor à chegada dos portugueses
à Afríca e anterior à vinda dos jesuítas. Não defendiam, assim, a liberdade
negra, mas o que "tinham à vista eram os abusos, que se cometiam nas
relações entre senhores e escravos".
Vieira sustentou a igualdade de todos, escravos ou livres, perante
Deus, mas não lutou contra a escravidão negra mesmo porque se o fizesse
teria, talvez, o destino do "P. Gonçalo Leite, primeiro professor de Filo-
sofia no Brasil ( 1572), e P. Miguel Garcia, professor de Teologia na
Bahia de 1576 a 1583, que sustentavam que nenhum escravo da África
ou do Brasil era justamente cativo" (29 l, se:ido obrigados a voltar à Euro-
pa. O padre Benci acreditava que os párocos e senhores do Brasil, deixan-
do os escravos naquela ignorância e rudeza, chamavam e provocavam
contra o mesmo Brasil todas essas guerras, todas essas fomes, e todas
essas pestes (30). Impediam os senhores o ensino da doutrina cristã, do
matrimônio, amigavam-se com as escravas, castigavam cruamente os es-
cravos, prendendo-os com argolas de ferro <31 l, não os remetiam à justiça,
nos casos de crimes, obrigavam-nos a trabalhar no domíngo, ao mesmo
tempo que "sustentavam das portas a dentro tão grande número de ocio-
sos e ociosas" (32l.
Em toda sua obra, mostrando aos senhores as obrigações que devem
guardar no governo dos escravos, revela o Autor sentimento de compai-
xão "pela miserável condição de quem é escravo", especialmente porque
além de escravo é preto. "Não só os homens, mas os rapazes e ainda os
mais pequenos, se atrevem a mofar e zombar dele, a descompô-Io de pa-
lavra e tratá-lo mal" <33 >. Benci lastima a sorte terrível de um cativo:
"Se come é sempre a pior e mais vil iguaria; se veste, o pano é o mais
grosseiro e o trajo o mais desprezível; se dorme, o leito é muitas vezes
a terra fria e de ordinário uma tábua dura. O trabalho é contínuo, a lida
sem sossego, o descanso inquieto e assustado, o alívio pouco ou quase
nenhum" (:14).
Pela força do sentimento, raro na época, a Economia Cristã do Pa-
dre Benci, uma descrição atual que pleiteia remédio e minoração aos se-
nhores de então, situa-se, como escreveu Serafim Leite, entre Vieirn ( 1686-
1688) e Antonil (1711) na literatura sobre a escravidão no Brasil (35 l.

(28) O texto de que nos servimos é o da edição de 1954. vide p. 158.


(29) Vide exemplo citado por Serafim Leite, Prefácio, edição Economia Cristã, 1954, 10·11
e p. 8.
(30) P. 61 e 78.
(31) A Carta Régia de 1698 mandava apurar e evitar. Transcrita p. 136.
(32) 164-177 e 154. Na p. 176 transcreve a Carta Régia de 7 de fevereiro de 1698 man·
dando observar a guarda do domingo e dias de festas.
(33) P. 193, n. 0 261, e p. 197, n.0 268.
(34) P. 201, n.0 274.
(35) Prefácio, ed. 1954, 14.

378
4. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho
A biografia de José Joaquim da Cunha de Azevedo Coutinho (Campos,
Rio de Janeiro, 1742 - Lisboa, 1821) foi escrita e reescrita várias vezes. Seus
biógrafos Januário da Curi.ha Barbosa <36 >, J.J.P. Lopes (37), Heliodoro Pi-
res (38), Alberto Lamego (39), c;eus bibliográficos Inocêncio Francisco da
Silva (40l, Augusto V. A. de Sacramento Blake <41 > e Alfredo de Carvalho (42>,
e seus críticos Oliveira Lima (43>, Sônia Aparecida Siqueira 144 >, E. Brad-
ford Burns (45), Manuel Cardoso 14b) e Sérgio Buarque de Hollanda (47), es-
creveram sua vida. enumeraram sua obra e apreciaram sua atividade e
criação intelectual. Nascido em Campos, de senhores rurais, grandes pro-
prietários de terra donos de engenhos, Azeredo Coutinho, depois de estu-
dar humanidades no Rio de Janeiro, ficou órfão aos 26 anos, assumiu co-
mo primogênito a direção dos negócios da família durante sete anos e
aos 33 anos, em 1775, decidiu seguir para Lisboa onde se matriculou
no curso de Direito Canônico, obtendo grau de bacharel, com o qual se
habilitou a seguir a carreira eclesiástica. Fez estudos vários, voltou à Uni-
versidade cursou o sexto ano recebeu a licenciatura e assim se capacitava
aos grandes cargos da Igreja. Foi-lhe oferecido o lugar de arcediago na
catedral do Rio de Janeiro, Azeredo Coutinho aceitou, mas tendo-se de-
morado a partir, D. Maria I, que lhe oferecera o cargo, lhe conferiu o
lugar de Deputado do Santo Ofício. 1:. curioso observar que começou sua
carreira no Santo Ofício e quase findou-a como Inquisidor-Mor, mas to-
mou posse como deputado pelo Rio de Janeiro e faleceu dois dias depois
de empossado (48).
Durante dez anos ocupou o cargo de inquisidor (1784-1794) e foi
neste período, mas não nesta qualidade, que publicou seu primeiro ensaio
"Memória sobre o Preço do Açúcar" (49).
Em 1794, já Regente, D. JOao nomeou-o décimo primeiro Bispo de
Pernambuco, tendo chegado à Olinda a 9 de fevereiro de 1799, quatro

(3ó) RIHGB, 3.• ed ., 1908, 1. 1, 272-274.


(37) RIIIGB, 1945, t. 7, 106-115.
(38) "Azeredo Coutinho" RIHGB, 1915. t. esp. 1.° Congresso de História Nacional , pte. 1.
781-810.
(39) A Terra Goitacd, Bruxelas e Paris. J 924, 1. 2. 370-372.
(40) DBP. 1860, t. IV, 384-386 e 470 e 1. XIII. 22-23.
(41) DB/1, vol. IV, 1898, 475-480.
(42) Biblioteca Exótico-Brasileira, Rio de Janeiro, 1929, vol. 1. 364,366.
(43) Nota X, p. 252-256 de História da Revolução de Pernambuco de 1817. I.• ed. Per-
nambuco. 1840, várias edições, ed. 1969.
(44) "A escravidão negra no nensamento de Azeredo Coutinho. Contribuição ao estudo do
pensamento do último inquisidor". RH. n. 0 • LVI. 349-365 e LVII. 141-198.
(45) "The Role of Azeredo Coutinho ln the Enllghtenment of Brazil". Sep. da HAHR,
vol. XLIV, n.• 2, maio 1964.
(4b) "Dom José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, governador interino e Bispo <:!e
Pernambuco 1798-1802", RIHGB. 1969, vol. 282. 3-45.
(47) "Introdução" à Memória sobre o Preço do Açúcar, Rio de Janeiro . 1946, 15.,:,, re-
vista e modificada em Obras Econômicas de /. /. da Cunha Azeredo Coutinho, São Paul-,, 1966.
(48) Sônia Aparecida Siqueira publicou o documento do orocesso de inform·,~ões para
aceitação de sua nomeação como deputado inquisidor. ob, clt. n.º 57, 176-198.
(49) Memórias Econômicas da Academia das Ciências de Lisboa, 1791. 1. 11 l. depois reim-
pressa no final do Ensaio Econômico sobre o Comércio de Portugal e suas Colônias, I .• ed.
Lisboa, 1794: 2.• ed . 1816, 3.• 1828. 4.• São Paulo. 1966. Houve traducões em inglês, 1801 e
1807. em alemão 1801 e 1808: francês, 1803. Em 1913 George W. Robln~on anotou e editou
250 exemplares de Brazil a11d PortU/l.al in 1809. Manuscript Margina/ia 011 ,, Copy o/ lhe Englisl1
Translation o/ Bishop /. /. da Cunha úe Areredo Coutinho's Ensaio Ecc,,1ômico, Cambridge.

379
anos depois de nomeado. Já sabia que o governador efetivo D. Tomás
José de Melo seria demitido e assim, de acordo com a lei, o Bispo forma-
va com o desembargador ouvidor geral Antônio Luís Pereira da Cunha,
mais tarde marquês de Inhampube e o intendente da Marinha Pedro She-
verin a Junta Governativa. Fez parte do governo até 5 de julho de 1802,
quando deixou o Brasil; foi nomeado para o Bispado de Miranda e Bra-
gança antes de tomar posse para o de Elvas onde ficou 16 anos; recusou
em 1818 o Bispado de Beja e nesse mesmo ano aos 13 de maio foi eleito
Inquisidor-Mor; aos 10 de setembro de 1821 tomou posse como deputado
pelo Rio de Janeiro às Cortes, falecendo aos 12 de setembro.
Essa é sua vida oficial. Sua obra é toda ela circunstancial, escrita para
atender aos interesses de sua classe - os senhores de terras - da agri-
cultura, da fabricação do açúcar, do preço deste, da navegação e do co-
mércio, da importação e justiça do comércio de escravos, do seu gover-
no em Pernambuco, de suas iniciativas culturais nesta capitania, contra a
mineração e a favor da agricultura, do colonialismo - as colônias mais
dependentes da Metrópole - do absolutismo real, do regalismo, da Igreja
subordinada aos Reis.
Assim em 1791 quando os preços dos gêneros coloniais começaram
a subir devido à Revolução Francesa, o Senado da Câmara de Lisboa re-
quereu fosse fixado um preço para o açúcar. Azeredo Coutinho, ainda no
Santo Ofício, escreveu a Memória sobre o Preço do Açúcar para se opor
a esta pretensão, e defender os interesses de sua classe, pleiteando a liber-
dade do comércio para aquele gênero.
Os grandes defensores da liberdade de comércio foram sempre rea-
cionários ou conservadores, antiliberais politicamente. Azeredo Coutinho
defendeu os direitos sagrados da propriedade, que não deveriam ser ofen-
didos com a intervenção real de fixar preços.
"O meio de promover, e adiantar a indústria da Nação é deixar a
.::ada um a liberdade de tirar um maior interesse do seu trabalho". . . "O
interesse é a alma do comércio, e como ele tanto anima ao Francês como
ao Português, é necessário deixar-lhe a liberdade ao subido preço do
açúcar, quanto ele mais subir, mais se aumentarão as nossas fábricas, e o
nosso comércio" (50). Este estudo promoveu-lhe a admissão como sócio
da Academia das Ciências de Lisboa.
O Ensaio Econômico sobre o Comércio de Portugal e suas Colônias
é de 1794, quando se propagavam e adotavam os princípios do liberalis-
mo econômico e Azeredo Coutin_ho queria com seu estudo assegurar os
privilégios aos grandes Senhores de terras, aos proprietários rurais, aos
donos dos engenhos, defendendo a liberdade e expansão do comércio,
da navegação, e da agricultura. Seu Ensaio é dividido em três partes tra-
tando a primeira "Dos interesses, que Portugal pode tirar das suas colô-
nias do Brasil", a segunda "Sobre os Interesses que Portugal pode tirar
das suas colônias nas três partes do mundo" e a terceira "Sobre os interes-
ses de ·Portugal para com as outras Nações".
(50) Memória, ed. 1946, pp . 45-46.

380
Depois de louvar o Brasil, um paraíso terrestre, cheio de fertilidade,
condena os monopólios, defende a liberdade de preços, quer que se de-
senvolvam as pescarias e que se promova a navegação. "Um grande co-
mércio" escreve ele "pede uma g_rande navegação".
"A Política", continua, "distingue três objetos diferentes na navega-
ção: I - A ocupação que ela dá às gentes do mar, que fazem o trabalho
dela; II - A construção dos navios, que é necessário considerar como
uma fábrica; III - A utilidade que ela procura no Comércio, pelo trans-
porte das produções e das manufaturas" <51 >.
Ele deseja que se anime por todos os meios possíveis a navegação
portuguesa, louva o Ato da navegação, decretado na Inglaterra aos 26 de
setembro de 1660, que promoveu o desenvolvimento da navegação in-
glesa. Declara que para se ter uma grande Marinha de Guerra e de Co-
mércio é necessário ter muitas pescarias, pensa que os índios poderiam
se civilizar por meio do seu emprego nas pescarias e na Marinha; e que
os pretos são feitos para o trabalho nos ardores do sol. e devem ser em-
pregados na agricultura.
"A arte de bem governar é a mais sublime de quantas os homens têm
inventado" <52 ) e é incentivando as necessidades e paixões dos homens que
se desenvolve e enriquece o país. "Em uma palavra, não é a fibra mais
ou menos forte, nem os graus de calor deste, ou daquele clima, que de-
cide da força, e da coragem destes, ou daqueles povos. a educação, os
costumes, o comércio, as leis, a disciplina, os vícios mesmos. os erros, as
opiniões ainda que falsas, e outras muitas circunstâncias são as que deci-
dem da sorte dos Impérios" (53).
Ele rebate com muito vigor as teses de Montesquieu, de que o homem
do país quente é frouxo, fraco. medroso. e até mesmo sem espírito, por-
que, diz ele, "tem as fibras muito frouxas, e para dar uma prova dessa sua
afirmativa, diz que se meta um homem em um lugar quente e fechado,
e se verá que ele cai em um muito grande abatimento de coração" <54 ).
Montesquieu, para dar mais uma prova de quanto influi na felicidade
do homem o nascer debaixo deste ou daquele clima, e por conseqüência
ser livre ou escravo, diz que nos países frios reinou sempre a liberdade, por
isso que neles a fibra é mais forte e que nos países quentes reinou sem-
pre a escravidão, porque neles a fibra é mais frouxa. "Que as Repúblicas,
e os governos populares, por isso que são de maior liberdade, são os
mais próprios para os Países frios e pelo contrário as Monarquias para os
Países quentes" (55).
Seu regionalismo, sua visão interesseira, ligada aos senhores de en-
genho de Campos, aparece e dá ao Ensaio, que é um livro geral, o toque
de classe e local. Ele dedica todo um capítulo a uma breve notícia sobre o
estado atual dos índios goitacas, "nossos mais bravos e fiéis aliados desde

(51) Ensaio, t.• ed. p. 14.


(52) Ensaio, ob. cit., 3 t.
(53) Ensaio, ob. cit., 56.
(54) Ensaio, ob cit., 40.
(55) Ensaio, ob. clt., 57.

381
a província de Campos dos Goitacazes até às Minas Gerais" <56 >. Dedica-
se a demonstrar que Portugal pode ter uma grande marinha de guerra,
sem muitas despesas e nem muito risco. O Brasil, insiste, é um país cheio
de madeiras preciosas.
Na parte segunda sobre os interesses que Portugal pode tirar das suas
colônias nas três partes do mundo, sustenta ser o Brasil o mais rico, o
que merece mais cuidado e atenção. Nada falta, tudo espera a mão do
homem e esta pode ser suprida pela escravidão africana, que sempre con-
tou com seu decidido apoio, de escravagista convicto.
Sustenta que Portugal quanto mais dever às suas colônias, tanto será
mais rico, e por sua vez, as colônias, quanto lhe forem mais credoras,
tanto lhe serão mais ligadas e mais dependentes. Defende dois principias
que desnudam todo seu colonialismo, que poderíamos qualificar de ab-
soluto.
:É necessário, escreve, que as Colônias sofram: "E que só possam co-
merciar diretamente com a Metrópole, excluída toda e qualquer nação,
ainda que faça um comércio mais vantajoso, que não possam as Colônias
ter fábricas, principalmente de algodão (exceto 'os teares de algodão
grosseiro para vestir os prteos') lã, e seda e que sejam obrigadas a ves-
tir-se das manufaturas, e da indústria da Metrópole" (57).
Neste Ensaio aparece o colonialista convicto, ao qual Vamhagen, num
momento sem lucidez, ou faccioso pela sua conhecida antipatia a José
Bonifácio, atribuiu maior importância na difusão das idéias de indepen-
dência que a do Patriarca. Sua influência pode ter sido indireta, pois o
Seminário de Olinda preparou os revolucionários de 1817, 1822 e 1824.
Os Estatutos do Seminário episcopal de N. S. da Graça da cidade de
Pernambuco (sic) (58) e os Estatutos do recolhimento de N. S. da Glória
do lugar de Boa Vista de Parnambuco (sic) (59) destinavam-se a transfor-
mar o ensino tradicional jesuítico na capitania, por uma orientação
Oratoriana.
"O Seminário", escreveu Oliveira Lima, "realmente transformou as
condições de ensino e com este as condições intelectuais da capitania,
porque constituiu, além de um viveiro de sacerdotes, uma escola secun-
dária leiga, aliás a única, ministrando, como se vê do seu programa, edu-
cação teológica e também instrução civil em belas letras e nalgumas
ciências. . . Admitiam-se portanto nelas estudantes que se destinavam às
ordens sacras, mas que queriam fazer suas humanidades ou mesmo cursar
matemáticas" (60).
No Recolhimento de Nossa Senhora da Glória os estatutos visavam
educar as meninas das classes dominantes a ser mães de família.

(56) Ensaio, ob. clt., capítulo VI, 59-66.


(57) Ensaio, ob. clt., 105-108.
(58) Lisboa, 1798.
(59) Lisboa, 1798.
(60) Nota X de Oliveira Lima na edição da História da Revolução de Pernambuco de 1817
de Muniz Tavares, Recife, 1969, 252-256.

382
Além destes dois folhetos, Azeredo Coutinho escreveria sobre o seu
governo e bispado em Pernambuco outras obras, sempre visando susten-
tar opiniões, defender idéias, esclarecer questões atuais, presentes, urgen-
tes, com o mesmo caráter transitório e efêmero (61 l.
As Respostas versam sobre o abuso de alguns maridos de se sepa-
rarem de suas mulheres por autoridade própria com o fundamento de que
elas têm cometido adultério publicamente e que tal separação lhes é per-
mitida pela Constituição do Arcebispado da Bahia. Discute também
outro abuso, o de algumas mulheres dissolutas ou prostituídas casarem-se
com homens igualmente dissolutos, vagabundos e de costumes estragados.
Estes abusos, que se têm tornado freqüentes, têm causado gravíssimos
escândalos e desordens, que são de terríveis conseqüências para o bem
da Igreja e do Estado. Primeiro, a separação não pode efetuar-se por
autoridade própria, mas só depois de sentença do Juiz; em segundo, a
Constituição do Bispado da Bahia só tem força de Lei no Bispado de
Pernambuco pela expressa ou tácita aprovação dos Bispos de Pernambuco.
Rememora então que o matrimônio é um contrato primeiro estabelecido
pela lei da natureza, segundo pelas leis de cada sociedade da Nação, e
em terceiro foi elevado a Sacramento pela religião cristã católica. Assim
sendo mandava que nenhum cônjuge se separasse da sua cônjuge, sem
satisfação, contratos de mútuas separações e sem sentenças do Juiz ecle-
siástico. Neste folheto é exposto um caso exaustivamente examinado, e
por ele decidido aos 20 de junho de 1799.
A Informação discute um caso concreto de um professor de gra-
mática latina e seus oito colegas que se diziam cassados por ele, apesar
das provisões régias. Veio a ele, Bispo, para informar a S. A. R.; eles se
diziam professores por Provisões Régias, mas nos seus requerimentos não
provavam ser professores régios ou providos como substitutos por certo
tempo. Pediam o pagamento de seus ordenados, pela extinta Mesa da
Comissão que lhes dava maiores salários, e não os menores que o
Bispo mandara pagar-lhes pela Junta da Fazenda, e que fossem pagos
os ordenados adiantados e mais os atrasados devidos, e que a contri-
buição do subsídio literário só devia ser aplicada na manutenção das
escolas menores, e nunca para cadeiras de ciências e estudos maiores, de
que diziam eles, abundava mais o Seminário, por ele, Bispo, fundado em
Olinda.
Azeredo Coutinho respondeu uma a uma as pretensões e os argu-
mentos dos professores, sempre com o ar de superioridade e suficiência
que seus escritos e suas atividades revelam. "8 a relativa ao subsídio lite-
rário a que apresenta maior interesse - embora todas as respostas con-
tenham elementos de interesse público. Escreve Azeredo que aplicar o

(61) Carta Pasioral em que o Exc:elentlsslmo e reverendlsslmo Bispo de Pernambuco saúda


seus Diocesanos. Lisboa, 1795: Respostas dadas por D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Couti-
nho, Bispo de Elvas, então Bispo de Pernambuco às Propostas feitas por alguns dos Pdrocos daquela
Diocese, Lisboa, 1808; Informação dada ao M inistro de Estado dos Negócios da Fazenda D. Rodrigo
de Sousa Coutinho por D . José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho, Bispo de Elvas em outro
tempo Bispo de Pernambuco, Lisboa, 1808.

383
subsídio literário somente aos estudos menores é mais uma prova do
empenho com que se tenta destruir o seminário por ele criado.
A estas questões de interesse local, apesar da generalidade de seu
conteúdo, se junta a Defesa de José Joaquim da Cunha de Azeredo Cou-
tinho Bispo de Elvas, em outro tempo Bispo de Pernambuco . .. l 62 > na qual
rebate as acusações de seus "inimigos e invejosos intrigantes" que não
cessam de espalhar generalidades sem jamais especificar sua culpa,
nem dizer como se chamava seu crime. Sua defesa versa sobre a
acusação de que como Bispo encarregado do governo interino querendo
fazer a trasladação do SS. Sacramento de uma para outra Igreja e
temendo a sublevação do povo, mandara municiar a tropa de pólvora e
bala para atirar no povo e que para se vingar da ofensa que lhe fora
feita por um sujeito, ele pretendia perder toda sua família, mandando-a
prender por um suposto crime de Estado. Ele responde detalhadamente
às duas acusações, frutos de intrigas das Irmandades e de pessoas inimi-
gas do Bispo.
f: na terceira parte que ele trata do seu Governo, quando, escreve
ele, trabalhou para que se fizesse justiça a todos, não consentindo que
alguém fosse oprimido, lutando contra os monopolistas e atravessadores
(intermediários) de gado e víveres. Enumera seus serviços pela defesa
da capitania, por mar e terra, tendo promovido a abertura de uma estrada
de mais de 300 léguas, desde os Sertões do Rio S. Francisco até esta
praça para descerem por ela muitas boiadas ( 63).
Alega mais, ter tomado providências para se evitarem furtos de
cavalos, muito freqüentes; propôs e facilitou os meios para se fazerem os
aquedutos do Recife; trabalhou pelo aumento da fazenda real; fez re-
baixar, em face da queixa do povo, os preços do sal e do azeite de
baleias, elevados pelos monopolistas; obrigou os regulares ou os Corpos
de Mão Morta a pagarem os dízimos da sesmarias obtidas; elevou o
remate dos dízimos das capitanias de Pernambuco, Rio Grande do N arte,
Paraíba e Ceará; conseguiu que se pagasse o subsídio literário, em estado
de atraso; trabalhou para que se pusesse em execução a lei da quaren-
tena dos escravos vindos da África; deu conta, pelo Conselho Ultrama-
rino, a S.A.R. do estado de confusão em que se achavam as terras por
falta de demarcações; promoveu os estudos, criou o Seminário, com um
patrimônio de casas, biblioteca, laboratório; estabeleceu um seminário de
meninas "para a educação das mães de famílias, e daquelas que um dia
serão as primeiras mestras dos homens"; mandou visitadores por todo o
bispado; tentou a paz com os índios; rogou a S. M. para que conseguisse
do Papa Pio VI que concedesse que todos os Bispos do Ultramar não
dependessem de recorrer a Roma a respeito das dispensas matrimoniais.

(62) Lisboa, 1808.


(63) Em 1920 Capistrano de Abreu solicitava a seu amigo João Lúcio que procurasse em
Portugal, no arquivo ultramarino documento que esclarecesse esse serviço de Azeredo Coutinho.
Vide José Honório Rodrigues (ed)., Correspondência de Capistrano de Abreu, t.• ed., 1954, 2.• ed.
1977, 145 e 209.

384
S assim um relato do seu governo e de sua atividade, sempre com
um ar de superioridade em relação à populaça, como freqüentemente
chamava ao povo. Documento de uma época e de um Bispo e Governante
convicto da importância da sua classe, do desprezo pelas outras e sobre-
tudo pelos negros.
Sua obra importante sobre a escravidão é a Analyse sobre a Justiça
do commercio do resgate de escravos da Costa da A/rica (6 4); a Concor-
dância das Leis de Portugal e das Bullas Pontificias das quaes humas
permittem a escravidão dos pretos d'Africa, e outras prohibem a escravidão
dos indios do Brasil <65 >, bem como a Memoria sobre o commercio dos
escravos em que se pretende mostrar que este trafico he, para elles, antes
hum bem do que hum mal <66 >, são todas elas obras de ocasião, escritas
para defender interesses da classe dos senhores de terras e de engenhos,
à qual, ele, bispo, pertencia. Eis um caso claro em que a consciência
política, social e econômica se ajusta à sua própria existência. O Bispo,
antes de atingir esse elevado posto na hierarquia eclesiástica, fora, como
filho primogênito, o dirigente dos negócios da família rica de terras, en-
genhos e escravos.
A Analyse se dirige aos felizes brasileiros. uma minoria que domi-
nava a colônia com suas ligações metropolitanas. Ataca os inimigos, de-
sumanos e cruéis agentes da Revolução Francesa, que pretendiam transtor-
nar a propriedade e felicidade daqueles pequenos grupos, senhor dos bens
e da multidão negra e indígena. "O objecto principal desta A nalyse é
desmascarar os insidiosos princípios da seita filosófica, é apartar do vosso
paraisa o pomo da infernal serpente". era enfim demonstrar a justiça
do comércio de escravos e da própria escravidão, a favor de uma classe
que ele encarnava. Esse Bispo nunca pensou no povo brasileiro, e pôs
sempre sua alta posição eclesiástica a serviço da classe a que pertencia.
l>ara ele os que condenavam o comércio de escravos, debaixo do pretexto
de defender a humanidade oprimida. eram desvairados, que patrocinavam
princípios. infernais, e desejavam arrastar os homens aos seus tempos de
barbaridade.
Nesta toada subfilosófica, acentuando muito as circunstâncias da justiça
e da lei, Azeredo Coutinho advogava o indefensável, não reconhecia a ten-
dência histórica e tornava sua obra infecunda. Foi o mesmo princípio que
sustentou a justiça do direito de propriedade e o que estabeleceu a justiça
do direito da escravidão.
Como todos os reacionários ele sustentava que "a liberdade no esta-
do da sociedade, não é, nem pode ser absoluta, mas sim relativa, e que
a soberania do povo, ou é uma quimera, ou é só de nome". A única con-
cessão que este Senhor de Engenho disfarçado em Bispo fazia era propor
a elaboração de uma lei que obrigasse o Senhor a não abusar da condição
do seu escravo.

(64) I.• cd. cm francês. Londres. 1798; a ed. port., Lisboa, 1808, é revista e acrescentada .
(65) Lisboa, 1808.
(66) Rio de Janeiro, 1838.

385
Temeroso da ação antiescravagista da Inglaterra, ele defendia a não-
intervenção e considerava um abuso querer a nação intrometer-se na lei
das outras, livres e independentes.
O pragmatismo mais desvairado, o reacionarismo mais empedernido
o levava a declarar que devia "reconhecer-se como justa, ou ao menos
como obrigatória, de necessidade, a lei do vencedor". A lei do vencedor
era assim o critério para defender a escravidão africana e seu comércio.
Lembra que os Apóstolos, tratando da escravidão, nunca disseram que
era injusta, nem contra o direito natural, apenas recomendavam um trata-
mento mais humano.
Seus preconceitos são tão evidentes que ele confessava não poder
"entender a humanidade destes que se dizem ter horror ao comércio dos
escravos da África. . . e que ao mesmo tempo estão vendo com olhos
enxutos os seus pobres concidadãos brancos civilizados trabalhando ao
sol e à chuva, para ganharem o miserável sustento para aquele dia". f:.
necessário que haja "trabalhadores para sustentar os outros".
Exemplifica com _a história antiga e moderna, constrói sofismas, abu-
sa da lógica e do raciocínio, ao advogar os interesses econômicos dos
membros da sua classe.
A marcha da civilização tem sido sempre a da comunicação, para
ir civilizando, fazendo mais humanos os bárbaros da Costa d'Africa.
As nações não têm saltado de repente do estado de barbaridade ao esta-
do de civilização. Ao final do livro escreveu três notas especiais sobre a
razão natural, sobre a liberdade e sobre a soberania do povo, modelos
de reacionarismo, e apresentava um projeto de lei para obrigar o Senhor
a não abusar da condição de seu escravo.
A Concordancia das Leis de Portugal e das Bulias Pontificias das
quaes humas permitem a escravidão dos pretos da Africa e outras prohibem
a escravidão dos índios do Brasil <67 > procura conciliar a dubiedade da
política pontifícia, e renovar e manter sua tese principal sobre a justiça
da escravidão negra. O índio era pouco hábil para a agricultura, que
era o fim da escravidão, era indomável por meio da força e como era
mais fácil "chamá-los ·para a comunicação dos Portugueses pelos meios
dóceis e pacíficos da religião, foi necessário proibir a escravidão indí-
gena, e declará-los livres".
O projeto de escravidão dos africanos e do aproveitamento de seus
braços nasceu, escreve ele, da luta de Las Casas pela liberdade indígena.
O africano apresentava atributos de força e qualidades para cultivador
das terras da zona tórrida; sabia-se que as nações africanas já estavam
acostumadas aos trabalhos da agricultura debaixo do sol ardente e que
desde tempos antiqüíssimos estavam no costume da escravidão.
A Concordância foi escrita para reforçar a tese da Analyse contra a
qual opunha-se a contradição entre as leis a favor da liberdade indígena
e a favor da escravidão negra. Ela tenta mostrar que não há oposição,

(67) Lisboa, 1808.

386
há concordância. Sua tese principal é a de que quando os portugueses des-
cobriram a África, nela já havia a escravidão, enquanto no Brasil, os
índios eram livres.
A coerência escravagista de Azeredo Coutinho é perfeita e lógica. Ao
escrever a "Memória sobre as Minas de Ouro", lida na Academia Real
das Ciências de Lisboa <68 >, sua tese é, como sempre, a favor da agri-
cultura, do comércio e da navegação contra a mineração. Ele procura
demonstrar que as Minas de ouro são prejudicíais a Portugal. "O ouro,
a prata, as pedras preciosas não produzem uma grande navegação entre
a Metrópole e as suas colônias, nem para com as outras Nações: uma
igual soma em trigo, arroz, algodão, tabaco, açúcar, café, linho, cânhamo,
carnes, peixes salgados sustentará uma multidão infinita de marinheiros,
carpinteiros, calafates, e outros muitos, cuja ociosidade e pobreza os cons-
tituem os primeiros inimigos do Estado."
As Minas constituíam uma riqueza casual, variável e caprichosa, e
"uma nação sensata não deve imitar os desvarios de um jogador, deve
estabelecer-se sobre bases mais sólidas e mais permanentes". Condena a
falta de verdadeiros conhecimentos do minério, e aponta a carestia do
ferro; critica os que estabeleceram os direitos nas Minas, que não sou-
beram equilibrar os gêneros de primeira necessidade com os das luzes
"de sorte que tanto se paga de direitos por uma arroba de seda, como
por uma arroba de ferro".
Este mal seria menor, se o ferro fosse fabricado em Portugal <6 9),
"pois que, ainda que o minério do ouro não fizesse conveniência, a faria o
minério de ferro, mas como este gênero vem da Suécia e da Biscaia, o
minério português não faz mais do que trabalhar para o Biscainho e para
o Sueco".
Esta é uma das poucas vezes em que ele sente a espoliação, não como
brasileiro, observe-se, mas como português.
Depois de condenar o comércio e o crédito das minas, ele escreve
que os rápidos progressos que ia fazendo a agricultura no Brasil "faz ver
a todas as luzes que, à proporção que as Minas de ouro se vão acabando,
ela se vai adiantando mais e mais, e que logo que aquelas minas total-
mente se extinguirem, ela, já livre e desembaraçada desta sanguessuga
que tantos braços chupa chegará enfim ao seu maior aumento e
perfeição".
As Minas ocupavam e consumiam os melhores braços para a agri-
cultura, mas a mineração lhes abreviava a vida e os matava. Na segunda
parte da Memória mostra os meios de se aproveitar a agricultura do
continente das Minas, que já estava perdido para a extração do ouro.
Louva o clima de Minas e de São Paulo, seu terreno fertilíssimo e
abundante de todos os víveres e melhores frutos, e apesar disso, "é no
estado presente, contado, entre todo o continente do Brasil, pelo menos
útil a Portugal".

(68) RIHGB, 1898, LXI, t.• parte, 5-37.


(69) Ele anota que em Sorocaba havia minas de ferro muito ricas.

387
Um brasileiro que defendia com tanta convicção o colonialismo por-
tuguês devia na sua coerência fazer a apologia do regalismo, como fez
na Refutação da a/legação juridica <70 >, no Comentaria para a intelligencia
das Bulas, e Documentos (71), e na Copia da Analyse da Bulla da {sic]
Smo. Padre Júlio III (72).
Em todas elas aparece clara e evidente a defesa da subordinação da
Igreja ao Rei, e na Copia da Analyse ele escreveu, na dedicatória ao Prín-
cipe Regente D. João, que as Ordens Militares de Cristo, S. Tiago e
A viz com seus Mestrados foram para sempre incorporadas, e consolidadas
com os Reinos de Portugal e disse claramente: "a V.AR. como Príncipe
Regente pertence sustentar os direitos da Soberania, e da Coroa de Por-
tugal, como Protetor dos Cânones, e da Igreja Católica Romana e os
da Igreja Lusitana".
Satisfeito com a predominância inglesa em Portugal, ele dirige aos
generais ingleses cartas de agradecimento. "Eu, como portuguez e Pay
em Jesus Christo de uma grande parte dos Vassalos do mesmo Senhor,
vou por mim, e por eles dar a V. Excia os meus devidos agradecimentos."
As cartas dirigidas ao Visconde de Wellington (Arthur Wellesley, futuro
1. 0 duque de) e ao Marechal W. C. Beresford agradecem terem eles
arrancado Portugal das garras do Monstro (a Revolução Francesa) que
se propunha derrotá-lo. "Eu sou portuguez, e uma grande parte de Por-
tugal são meus filhos (sic) em Jesus Christo; que maiores motivos para
a confissão publica de meu agradecimento para com V. Excias." E logo
acentua e explica: "As palavras, humanidade, liberdade, igualdade, di-
reitos do homem, e outras pomposas e empoladas, e cheias de vento, de
que a usurpação, o furto e a pilhagem se têm mascarado para fazer correr
rios de sangue, já não impõe a quem tem olhos".
Noutra carta dirigida aos redatores do Investigador Portuguez sobre
as reflexões que nele inseriram sobre a união das três Guianas Portuguesa,
Francesa e Holandesa <73 >, ele escreve este trecho de grande significação
política, e sentido profético, desacertado mas dentro da mesma linha coe-
rente que o caracterizava. "O autor das ditas reflexões, querendo mostrar
a necessidade que Portugal tem de fazer a aquisição da Guiana Holandesa,
diz, que é necessário que Portugal principie a temer com o tempo os Es-
tados Unidos, e ir preparando barreira eficaz à torrente devastadora, que
se deve esperar àa maldita ambição em um povo grande e vigoroso. Se
eu não estivesse persuadido da boa fé do autor das ditas reflexões, eu diria,
que ele queria fazer um ataque falso para encobrir o verdadeiro, pois que

(70) . . . em que o Excellentlssimo e Reverendíssimo D. José Joaquim da Cunha de Azeredo


Coutinho, Bispo de Pernambuco ... pretende mostrar ser do Padroado da Coroa, e não da Ordem
Militar de Christo as Igrejas. Lisboa, 1806.
(71) • . . que o Reverendo Doutor Dionísio Miguel Leitão Coutinho juntou à sua Refutação
contra a alegação jurldica sobre o Padroado das Igrejas e Benefícios do Cabo de Bojador para
o Sul; sobre a Jurisdição dos Excellentissimos Bispos Ultramarinos; sobre o Senhorio e Domínio
das conquistas, e sobre a Jurisdição do Conselho de Ultramar. Lisboa, 1808.
(72) ... de 30 de Dezembro de 1550, que constitui o padrão dos Reys de Portugal a respeito
da união, consolidação, e Incorporação dos mestrados das ordens militares de Christo de S. Tiago,
e de Aviz com os Reynos de Portugal, Londres, 1818.
(73) Collecção de alguns manuscriptos curiosos do Exmo. Bispo d'Elvas, depois Inquisidor
Geral. Lisboa, 1819.

388
não sei como o Brasil, que tem todas as proporções para ser uma das
maiores, mais rica e mais poderosa Potência d'América, logo que queira,
possa ter medo de uma Nação, que principia cercada já de um vizinho
forte pelo Canadá da parte do Norte, e da parte do Sul pelas Nações
que tem possessões no arquipélago do México, e por todas as partes vi-
giado pela Maior Potência do Mundo, e que além disso, por terra seria
necessário atravessar meio mundo pelas muitas possessões de Espanha, e
os grandes rios Orinoco e Amazonas e outros infinitos antes de entrar
no Brasil."
Noutra carta aos redatores do mesmo Jornal (27 de setembro de
1813) ele defende a escravidão negra, e nega que a imigração branca salve
o problema no Brasil.
Defensor dos interesses da grande lavoura e dos privilégios dos pro-
prietários rurais. Azeredo Coutinho procurou adaptá-los às idéias de li-
berdade econômica. Por isso mesmo é um colonialista coerente, advogan-
do a tese de que Portugal só voltaria à opulência caso aproveitasse racio-
nalmente as riquezas coloniais especialmente as do Brasil. Escravagista,
defendeu a instituição que as idéias revolucionárias pretendiam abolir, a
intangibilidade da lavoura latifundiária. e constituiu com sua obra um
importante repositório de idéias políticas utilitaristas. brutalmente utilita-
ristas, como escreveu Sérgio Buarque de Hollanda. Cabe a ele a inspiração
do ato mais colonialista praticado por Portugal no Brasil - a destruição
das nossas fábricas em 1785. Colonialista, utilitarista, regalista, escrava-
gista, Azeredo Coutinho pode ter sido como escreveu João Francisco
Lisboa um grande patriota português, nunca brasileiro.

389
CAPITULO II

A LITERATURA AÇUCAREIRA
1. Padre Estêvão Pereira. 2. Padre Simão de Sotomaior.
3. Antonil e a Cultura e O pu[ência do Brasil. 4. A Litera-
tura econômica em geral.

l . Padre Estêvão Pereira

Padre Estêvão Pereira (S. Miguel das Marinhas, Portugal 1589? -


Portugal?) vivia, segundo Serafim Leite <1 >, em 1614 no Colégio de Braga,
com 25 anos de idade e 8 de Companhia. Já tinha estudado teologia mo-
ral (2 anos) e dispunha de poucas forças; em 1622 era ministro do
Colégio de S. Miguel (Açores) e como procurador do Colégio S. Antão
de Lisboa esteve na Bahia, no Engenho de Sergipe do Conde, de 1629 a
1633. Escreveu a "Dá-se Rezão da Fazenda que o Colégio de Santo
Antão tem no Brasil e de seus rendimentos" (1635) <2 >.
Nas palavras iniciais Afonso de Taunay escreve que o documento
jesuítico seiscentista era dos mais preciosos do acervo do Museu e que
Capistrano de Abreu o incentiva a que o publicasse nos Anais. Conside-
rava-o como que um predecessor, embora modesto, da obra jamais lou-
vada e insubstituível de Antonil.
"Para a história econômica do Brasil", escreve Taunay, "tem a mais
elevada relevância. Não só a sua ancianidade, superior de setenta anos ao
estudo de Andreoni lhe confere singular relevo como, em seu gênero, ja-
mais se divulgou relato que pela riqueza das informações sobre os nossos
primitivos engenhos açucareiros lhe leve vantagem".
O que Taunay disse não é nenhum exagero. O documento tem valor
inestimável pela riqueza e detalhes de informação e por ser sobre o
mesmo Engenho que serviu de base para o livro de Antonil.
Começa descrevendo as terras em Sergipe do Conde no Recôncavo
baiano onde -tem o Colégio de Santo Antão sesmaria com três léguas e
meia de largo pela costa e quatro para o sertão. Dentro de seus limites
introduziram-se muitas pessoas e foram possuindo muitas propriedades de
-longo tempo, sem contradição por parte dos Condes, nem seus feitores,
e não podendo mais ser expelidos por se valerem da prescrição. De

(1) História da Companhia de Jesus no Brasil, IX, 1949, 39.


(2) ln AMP, 1931, IV, 775-794; ai o titulo aparece ao Invés de "Dá-se Rezão", "Descrezão".

390
toda esta terra, plantada de canaviais, venderam-se três partes e uma só
é a que possuía a fazenda. A terra não é junta, mas dividida em dez ou
doze quinhões, metendo-se entre umas e outras propriedades alheias. Das
terras ao longo do mar ou dos rios recebe a fazenda de partido a terça
parte do açúcar; há partidos de quatro, ou seja, a quarta parte do açúcar.
Examina o valor e a renda das terras dos partidos, de três ou qua-
tro partes, as rendas outras e as obrigações, como as das terras vendidas
se pagarem galinhas como foro, e a obrigação de vender as canas ao
engenho, os sobejos ou sobras de terras que os lavradores possuem de
mal título sem pagar delas coisa alguma, e havia muitos nestas condi-
ções, a terras do mato que são muitas em relação às cultivadas, algumas
arrendadas.
Sobre o próprio Engenho de Sergipe declara que ele é um dos me-
lhores e mais célebres que tinha o Brasil, em razão do sítio em que está,
no meio de infinitos canaviais com extrema serventia, servido por muitos
rios navegáveis, e valendo de 40 a 50 mil cruzados.
Descreve os currais da fazenda de Sergipe, e outro engenho, o de
Ilhéus, "que tem as mais, e melhores comodidades para ser tido por tal
do que nenhum outro do Brasil, em razão da firmeza ribeira ou cachoeira
de água doce". Deu muito açúcar e depois se desfabricou devido aos
Aimorés que infestavam a ilha. Quando ele chegou ao Brasil só tinha nome
de engenho, porque não tinha nem casa de engenho, nem de purgar, e
em 1633 fez ele nova casa de purgar, ainda que receoso dos ataques dos
holandeses.
No juízo final sobre os rendimentos afirma três coisas: 1 ) que de
todos os açúcares que um engenho faz brancos e mascavados a metade
é do engenho e a outra do lavrador; 2) o preço do açúcar não é certo,
nem fixo, no Brasil, mas varia conforme a saca, mas de ordinário corre
de oito até mil réis, sendo que o mascavado vale a metade do branco;
3) que é prática e se tem por averiguado que sendo o preço do açúcar
de dois cruzados só pode o Senhor pagar os gastos de sustentar parca-
mente a casa, e, quando é menos, causa prejuízo, e quando passa dá lucro;
faz o balanço da receita do Engenho do Sergipe, por uma safra, valendo
o açúcar branco oito réis, dando a produção e a renda, especificando os
ordenados do feitor-mor, do menor, do médico e cirurgião, e vários ou-
tros ofícios, inclusive um letrado ordinário que ganhava tanto quanto o
médico e menos que o solicitador.
O engenho mói a cada safra nove meses e o autor enumera as ne-
cessidades em cobres, barcas, obras e negros. As despesas com os escra-
vos estão detalhadamente apontadas: comida, mezinha, roupa, sal, etc.
Todas as despesas necessárias de caixões, pregos, coadores, azeite de
peixe, formas, barcada de barro, fretes, loja na cidade, e assim chega
em seus cálculos à renda total em 3.874$000 réis e a despesa em 3.308$635.
Os dois últimos conselhos são os de que não se venda o açúcar no Brasil
e sim no Reino, onde vale muito mais e não se pagam direitos, e que

J91
convém mndar do Reino todas as coisas necessárias para o fornecimento
do engenho.
A descrição é assinada em Coimbra aos 25 de agosto de 1635 l 3 ).

2 . Padre Simão de Sotomaior


Simão de Sotomaior (Lisboa, 1585? - Brasil, depois de 1652)
entrou para a Companhia em Évora em 1604. e fez seus últimos votos
em 20 de abril de 1620. Pertencia à Província de Portugal, e, como
Procurador da Igreja do Colégio de Santo Antão de Lisboa, passou muitos
anos na Bahia. Sua estada no Brasil vinha de longe, pois fora aprisionado
pelos holandeses em 1624 e levado à Holanda. Libertado, voltou ao Bra-
sil, prestou bons serviços contra os holandeses no cerco da Bahia em
1638 e ainda vivia com o cargo de procurador de Santo Antão em 1652.
Escreveu vários documentos enumerados por Serafim Leite l 4l, todos
trabalhos práticos sobre "Contas do Engenho", "Lembrança das dívidas",
"Memorial para o Reverendo P. geral sobre a fazenda da Senhora Condessa
de Linhares" (Sergipe do Conde), requerimento e trasladas de embargos,
apresentados como procurador do engenho, "treslado que se fez da morte
de Mem de Sá", "sobre a fazenda de Mem de Sá" (depois da Condessa e
dela para o Colégio S. Antão), renovação dos arrendamentos das terras,
caderno da safra de 1651-1652. e assim os vários documentos cobrem ele-
mentos econômicos de 1622-23 a 1651-52.
Serafim Leite menciona como de autoria do Padre André de Gou-
veia (1583-1630 ?) a "Memória das Dívidas que o Padre Simão de Soto-
maior achou deviam os lavradores de Sergipe das terras que compraram
em tempo da Senhora Condessa" <5 ).
A "Breve Notícia dos Rendimentos e despesas do engenho de Sere-
gipe do Conde, depois da morte da Condeça Dona Phelippa de Sá. E
tomou posse do dito engenho o Collegio de Santo Antão do Anno de
1622 até Septembro desta era de 1647 em que se arrendou" abrange
várias administrações, as duas administrações de Sotomaior, e me foi dada
por Serafim Leite e enviada em abril de 1952 <6 >.
Simão de Sotomaior é várias vezes citado na História da Compa-
nhia de Jesus no Brasil. nas suas atividades, sobretudo contra os holan-
deses <7 >.
A "Breve Notícia" é inédita, veio dos arquivos da Companhia, por
gentileza do Padre Serafim Leite e nestes anos todos <8 > não pude publicá-
la. Dá a receita, a 1.ª safra, as despesas, a 2.ª safra: a substituição de

(3) O original se encontra no Arquivo Nacional, Tribunal de Contas. Papéis dos Jesuítas.
(4) HC/B. IX, 141-142.
(5) HC/B, Vlll, 279. .
(6) Cartas em posse do Autor, escrita de Borgo S. Spirito, 5, Roma, de 27 de abril de 1951
e de 28 de abril de 1952. Possuo também uma lista de alguns documentos dos Arquivos da Com-
panhia de Jesus citados por S. Leite, na maioria referentes ao antigo Engenho do Sergipe do Conde.
(7) V. 31, seu nome no "Catalágo das Expedições Missionárias para o- Brasil, séculos
XVII-XVIII" HC/B, VI, 952, 593, 594.
(8) Hoje é 27 de novembro de 1977.

392
Sotomaíor por André de Gouveia, (1583-1630?), a l.ª sa!ra, a 2.ª, a 3.ª
e 4.ª, resume as quatro safras, despesas e rendimentos; segue-se a adminis-
tração do Padre Estêvão Pereira ( 1589-1633?), com as informações sobre
as quatro safras; e a do Padre Sebastião Vaz ( 15 82-depois de 1671) com
as mesmas quatro safras, a segunda administração de Sotomaior de 163 7
a 1645, com cinco safras, com a mais larga notícia de todas, e finalmente
a de Sebastião Vaz, de 1646. O documento descritivo de várias adminis-
trações e várias safras não tem autoria declarada.

3 . Antonil e a Cultura e Opulência do Brasil


A descoberta das minas no final do século XVII revolucionou a vida
econômica e social brasileira. A prosperidade econômica fugiu das mãos
dos senhores de engenho deslocando-se para o centro-sul. A agricultura
caiu em declínio, e especialmente a produção açucareira, com a perda dos
escravos emigrados para as Minas ou os novos vindos de África, e com-
prados pelos mineiros. Colonos e estrangeiros afluíram para as Minas,
seduzidos pela cobiça da riqueza rápida. As crises açucareiras se sucedem,
como teremos ocasião de examinar ao tratarmos da historiografia açuca-
reira em geral excetuado Antonil (O). Apodera-se da agricultura um am-
biente de decadência e de definhamento do trabalho.
Deste modo foi uma surpresa que um dos maiores livros da Brasilia-
na, dedicado sobretudo à economia açucareira, embora desse relevo às
minas, e tratasse do tabaco, do gado, do couro, e dos rendimentos do
Brasil, fosse publicado em 1711.
A Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e Minas OO) é um
dos maiores livros que se escreveram sobre o Brasil em todos os tempos.
Mal impresso, com todas as licenças da censura, foi a obra destruída por
ordem régia, sobrevivendo poucos exemplares, sete ao que se sabe <11 l.
Não pôde, assim, a obra, exercer nenhuma influência sobre os senho-
res de engenhos, os grandes proprietários de terra, os mineiros, os cria-
dores de gado, enfim sobre toda a minoria dominante e dirigente do Brasil.
Como se tratava de uma obra não só descritiva, como pragmática, sua
eficácia técnico-econômica, sua intenção paliativa em relação aos escravos,
sua indicação sobre os melhores roteiros para chegar-se às minas, sua
lição moral espalhada pelo livro sobre a economia e o homem, sua apo-
logia sobre a justiça de favorecer o Brasil pela utilidade a Portugal, per-
deu-se toda durante o século XVIII, quando poderia ter-se exercido.
Autoria
Assim como a obra deixou de ser uma força moral e um guia prá-
tico, assim também desconheceu-se seu autor, escondido num anonimato

(9) Vide José Honório Rodrigues "As crises açucareiras no Brasil" Digesto Econômico. n. 0 26,
janeiro-fevereiro de 1947, 55-59.
(10) Lisboa, 1711.
(11) José Antônio Gonçalves de Melo Neto "Antonil e sua obra" posfácio in ed. fac-similar
promovida pelo Museu do Açúcar, Recife, 1967.

393
só descoberto em 1886 por Capistrano de Abreu. Que destino estranhe
o deste livro! Colocado entre os dez ou doze dos maiores que se escreve-
ram sobre o Brasil Colonial não pôde ser seu autor reconhecido e admi-
rado como merecia. Quando a obra volta a reaparecer em 1800, em
extrato, ou completa e desfigurada em 1837 (12 ), já não possui nenhum
efeito pragmático, vale como uma descrição histórica.
Sua autoria só é restaurada por Capistrano de Abreu nas Informações
e fragmentos históricos do Padre José de Anchieta (l:J) ao escrever: "En-
fim, abre-se com o primeiro ano do século passado o período das minas,
e rebenta verdadeira revolução psicológica. Não se precisa ler os diti-
rambos entusiastas de Rocha Pita, basta meditar nas páginas de André
João Antonil, ou, para dizer o verdadeiro nome - João Antônio Andreo-
ni, porque Antonil era pseudônimo - para ver o entusiasmo que a terra
despertava". O prólogo das Informações e Fragmentos era assinado a 13
de julho de 1886.
A maioria dos historiadores e responsáveis pelas reedições da Cultura
e Opulência têm repetido a carta que a Afonso Taunay escreveu Capistra-
no de Abreu do Rio, aos 23 de julho de 1921, por ele mesmo reprodu-
zida na sua edição de 1923 (14).
No entanto, no mesmo ano de 1886, em carta ao Barão do Rio
Branco ele dizia "tinha por mais de uma vez procurado obter informa-
ções sobre o encantado livro que para mim tornou-se tanto mais importan-
te, depois que descobri que André João Antonil era João Antônio An-
dreoni" (15 >. Em 1893 em carta ao Barão de Studart, Capistrano lhe comu-
nicava: "No correr de suas investigações V. encontrará certamente, pelos
fins do século XVII o nome do jesuíta João Antônio Andreoni. f: esta
uma das figuras mais notáveis, mais inteligentes e curiosas do jesuitismo
entre nós. Publicou, sob pseudônimo, um livro que é uma das raras jóias
da nossa literatura histórica, e deixou diversos trabalhos manuscritos.
entre eles um, De Rebus Brasiliae, ignoro se escrito em latim, se em por-
tuguês. Se for como suponho, uma corografia histórica, já pelo autor, já
pela data em que foi escrita, deve ser de capital importância. Peço-lhe que
me comunique o que encontrar sobre Andreoni, cuja biografia ainda
pretendo escrever" (16).
E nesse mesmo ano o Barão de Studart, em 26 de junho de 1893,
lhe escrevia: "Você não calcula os esforços que empreguei para ser-lhe
agradável descobrindo nos arquivos de Lisboa algum apontamento sobre
o jesuíta João Antônio Andreoni. Fadigas baldadas, pois nada avancei.

(12) Extracto sobre os engenhos de açucar do Brasil e sobre o methodo Já então praticado
na factura deste sal essencial, tirado da obra Riqueza e Opulencia do Brasil, para se combinar com
os novos melhodos que agorafe propoem debaixo dos auspicios de S. Alteza Real o Príncipe Regen-
te Nosso Senhor, Lisboa, 180 e Cultura e OpuMncia do Brasil, por Suas Drogas e Minas, Rio de
Janeiro, 1837.
(13) Rio de Janeiro, 1886.
( 14) André João Antonil (João Antônio Andreoni) e Sua Obra, Estudo bloblbliográflco por
Afonso de E. Taunay, São Paulo, Melhoramentos, 1923, 58·59.
(15) Correspondência de Capistrano de Abreu, ed. org. por José Honório Rodrigues, I.• ed., Rio
de Janeiro, 1954, 102, 2.• ed., Civllízação Brasileira, 1977. 102.
(16) Correspondência, eds. cits., 142. A carta é de Teresópolis. 8 de março de 1893.

394
Mas vou dar-lhe curiosa novidade que creio, você aceitará de bom grado
e discutirá na obra que está a escrever sobre aquele notável sacerdote. f:
uma questão bibliográfica muito interessante".
"André Antonil, autor do curioso livro de que nos dá noticia Riva-
ra no catálogo dos manuscritos da biblioteca de f:vora, sobre as riquezas
e opulência do nosso Brasil, livro que foi retirado, como sabe você, da
circulação, por ordem superior, não é outro senão o Pe. Andreoni. Abra
você o Rivara ou escreva os três nomes de um lado e do outro os outros
e veja se não são o mesmo nome, mudada a colocação das letras. Isso
escapou ao Inocêncio; o próprio Varnhagen em artigo publicado no Pa~
norama supõe que existiu com efeito um indivíduo chamado Antonil.
Quantas considerações vai sugerir-lhe esse achado! Como cheguei ao co-
nhecimento disso dir-lhe-ei no vapor seguinte" (1 7 >.
Como se vê ausente 12 meses de Fortaleza, em viagem pela Europa.
Studart ou não recebeu a carta de Capistrano de 8 de março, ou não a
havia lido, escondida entre sua correspondência, acumulada, enviada três
meses e quatorze dias antes, contendo a mesma descoberta que ambos
fizeram, sem conhecimento um do outro.
Capistrano responde-lhe aos 18 de Junho, numa longa carta, cuja
transcrição torna-se importante para mostrar em todos os seus aspectos a
descoberta feita e revelada em 1886, neste ano sem maiores detalhes, e
nesta, pela primeira vez, minuciosamente mais completa que a de 8 de
março.
"Interessou-me muito o que diz sobre Antonil, um amigo velho.
Lembra-se que no Ateneu, entre outros livros de aula, tivemos o /ris
Clássico, de Castilho? Há ali um capítulo que por mais de uma vez li aí
nas calçadas altas, sempre com uma impressão esquisita, assinado Antonil.
Vindo para o Rio, um dia, na Biblioteca, perguntei a Vale Cabral se a
casa possui-o e levei-o para ler com mais vagar. A leitura agradou-me
bastante e perguntei ao meu bom Vale Cabral quem era este tal Antonil.
Respondeu-me então Cabral que não se sabia, e enviou-me para Inocêncio,
Rivara, Varnhagen, etc. A cousa é assim? - disse a Cabral - pois hei
de descobrir o autor. Reli então pausadamente, saborosamente, deliciando-
me, a Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas.
"Resultado: o autor era jesuíta, como se prova pela referência ao
engenho do Sergipe do Conde, que pertencia à Ordem: pelo fim a que se
consagrava, a canonização de Anchieta; pela discussão sobre quintos das
minas, que denunciam teólogo consumado.
"Depois de convencer-me que o autor era jesuíta, chamou-me a aten-
ção uma parte da dedicatória ou prólogo, em que o autor, depois de ter
escrito, na primeira página, André João Antonil, assina-se entretanto Anô-
nimo Toscano. Anônimo Toscano, traduzi, significa aqui jesutía toscano.
"Comecei então a procurar jesuítas italianos entre poucas informa-
ções que temos dos fins do século XVII e princípios do século XVIII.

(17) "Uma questão bibliográfica. Carta do Barão de Studart a Capistrano de Abreu" RIC,
1940, t. 54, 68,69 e Correspondência clt., Ili, 1956, 148.

395
Apareceu-me logo o nome de Andreoni, a quem Vieira refere-se com elo-
gios em uma das suas cartas, que era reitor do colégio da Bahia quando
morreu Vieira, e teve a honra de ser um dos que carregaram-lhe o cadá-
ver, que escreveu sobre a morte de Vieira uma carta de que existe cópia
em Lisboa, e que deve ser muito importante - sei por ora só que é
extensa.
"Desde então convenci-me que Andreoni e Antonil eram uma e a
mesma pessoa. Mas acredita V.? Passei meses, talvez anos, sem fazer tal
verificação. Uma vez estava eu na Biblioteca, lendo não sei o quê, quando
lembrei-me da verificação a fazer. Levantei-me, fui ao Cabral, que estava
escrevendo na mesa de que agora lhe dirijo esta carta e disse-lhe: V. vai
ficar furioso - Por quê? Porque afinal vou descobrir quem é o nosso
Antonil - Nesse caso vou ficar é alegre.
"Da mesa do Cabral fui à estante em que estava a Hibliotheque des
'E:crivains de la Compagnie de Jesus de Backer, abri o volume VII, que
contém o índice Geral, e remeteu-me para o volume VI, página 14.
Abri-o, e, apenas li as primeiras linhas, corri para a mesa do Cabral
- Cabral! achei! E, se é capaz, imagine o prazer com que lemos:
"Ubertas et opulentia Brasiiiensis per assiduam mercium, auriqua
commutationem aliarumque rerum notitiae ad confectionem sachari, et beti,
vulgo Tabaco culturam, methodus nitide effodiendi aurum, argentique fo-
dinas indagandi annui reditus et proventus lusitaniae Coronae ex Americano
statu provenientis. Opus V. P. Josephi de Anchieta publicae venerationis
studiosis nuncupatum, editum suppresso nomine Authoris Lusitaniae. Lis-
boa, Deslandes, 1711, in 4. 0 • Quia tamen liber plus incommodi quam uti-
litatis Lusitano Statui Allaturus videbatu, Jussu serenissimi Regis suppres-
sus est (Lopez de Arbizu) <t8l.
"Não preciso dizer que foi um dia de delírio. Jantamos juntos, toma-
mos cerveja juntos, conversamos até meia-noite e separamo-nos à contre-
coeur. Que bom tempo aquele, em que a descoberta de um anônimo bas-
tava para coroar de rosas um dia.
"Vimos logo que, de João Antônio Andreoni, era anagrama ou cousa
que o valha André João Antonil; - mas uma coisa nos causava espécie;
que significava o L. final. Foi ainda no Backer que achamos a resposta:
Andreoni era de Luca, na Toscana; L. significava luquensis.
"Cabral queria que eu escrevesse um artigo sobre o assunto, mas eu
nunca o fiz. Em 86, porém, publicando um inédito de Anchieta, escrevo
no prólogo, pág. XII. escrevi (sic) - para fixar a data: André João
Antonil, ou, para dizer o verdadeiro nome, João Antônio Andreoni, por-
que Antonil era pseudônimo. Comuniquei, entretanto, desde logo a desco-
(18) • Abundância e opulência brasileira pela troca contínua das mercadorias e do ouro,
com notícias de outras coisas para o iabrico de açúcar e fumo, vulgo tabaco, igualmente o método
para cavar ouro e para indagar minas de prata, os rendimentos anuais e rendas que tem a coroa
portuguesa do estado (colônia) americano. Obra dedicada aos que desejam a pública veneração do
venerável Padre José de Anchieta, publicada em português supresso porém o nome do Autor.
Porque todavia o livro parecia levar mais incômodo do que a utilidade para o reino português,
ficou suprimido por ordem do sereníssimo Rei". A tradução de Wolfang Kretz para a edição de
Taunay, 1923, p. 54. Juan Lopez Arbizu (1668-1732) foi autor de diversos catálogos blobibliográflcos
dos Jesuítas. cr. Backer li, col. 799-800.

396
berta às pessoas a quem poderia interessar, principalmente a um amigo
meu que possuía a primeira edição - raríssima! - e que ele está compro-
metido a me deixar por testamento. Depois teve a felicidade de concorrer
para que a Biblioteca obtivesse um exemplar também. Há, pois, aqui no
Rio, dois exemplares da primeira edição. A segunda, feita aqui em 183 7,
não é comum. mas encontra-se uma vez por outra; ainda há dois anos
comprei um exemplar para dar de presente a Eduardo Prado." (19)
Como se vê, a resposta de Capistrano a Studart é a primeira versão
detalhada da descoberta da autoria.
Ao responder à segunda carta de Capistrano, Studart diz aos 24 de
agosto de 1893: "Acuso, agradecido, o recebimento de sua preciosa carta,
que, como as irmãs, foi para mim manancial de lições. Encontrou-se o
meu achado sobre André Antonil com o que Você já havia apurado. Fol-
go com isso. Como foi que tal indicação bibliográfica escapou à perspicácia
do nosso Varnhagen e às investigações tão pacientes e felizes de Inocêncio
da Silva?" <2 º>.
Depois apareceu versão resumida na carta a João Lúcio de Azevedo
de 18 de novembro de 1916 <21 >; aos 23 de julho e 1 de agosto de 1921
conta a Taunay que preparava nova edição como descobrira, e são essas
duas cartas transcritas na edição de 1923 a que se referem todos os que
trataram ou editaram Antonil <22 >. Na verdade, as cartas a Studart e a
deste a ele, todas de 1893, são a versão original da descoberta.
Capistrano de Abreu voltou ao assunto, dizendo a João Lúcio em
5 de novembro de 1921 que Taunay preparava nova edição com introdu-
ção, criticando a falta de notas, e declara: "publicar o Antonil era um
dos meus desejos, para ele a empresa era mais fácil, que a mim. Melhor
para ambos" <23 >.
Aos 13 de maio, 34.0 aniversário da Lei Áurea ( 1922), como assi-
na a carta a João Lúcio, declara que Studart possuía documentos sobre
Andreoni - Antonil desde 1902 e só agora havia publicado uns pedaços
relativos ao Ceará (24).
Bibliografia
A bibliografia de Antonil foi escrita pelos biobibliógrafos da Compa-
nhia Augustin e Aloys Backer <25) e Carlos Sommervogel (26), sem fazerem
a identificação entre Andreoni o jesuíta e Antonil, o pseudônimo por
ele usado na Cultura e Opulência do Brasil; dos biobibliógrafos portugue-
ses, como Diogo Barbosa Machado e Inocêncio Francisco da Silva, o pri-
meiro não o incluiu <27> e o segundo <28> observou que Barbosa Machado
(19) Correspondência de Caplstrano de Abreu, I.• e 2.• edições, !, 143-146.
(20) Correspondência cit. III, Rio de Janeiro, 1956, 148.
(21) Correspondência cit. II, 22. ·
(22) Na Correspondência cit. as cartas a Taunay aparecem !, 325-6.
(23) Correspondência cit. II, 223.
(24) Correspondência, II, 248; a publicação de Studart é: "Trechos de cartas do Jesuíta Pe.
João Antônio Andreoni, escritas nas Cartas Ãnuas de 1714-16-21" RIC, CXXXVI, 77-81.
(25) Bibliotheque des Ecrivains de la Compagnie de /ésus, Liêge, 1853-1861 e 2.• ed. 1869-
1876; na !.•, I vol., col. 155.
(26) Bibliotheque de la Compagnie de /ésus, Bruxelas, 1890-1900, I, cot. 340.
(27) Biblioteca Lusitana, I.• ed. 4 ts. 1741-1759 e 2.• ed. 4 ts. 1930-1935.
(28) DBP, Lisboa, 1858, 1, 63. VIII, 62-63, XX . 156.

397
não o incluíra por não considerá-lo português, e ele Inocencio tinha quase
certeza de que era italiano. Sacramento Blake escreveu ser ele natural de
São Paulo e nada acrescentou ao que se sabia (29 l. Mais valiosa é a des-
crição bibliográfica de José Carlos Rodrigues (:iO).
Foi em 1923 que Taunay escreveu a maior e mais completa biogra-
fia de Antonil na introdução que precede a reedição daquele ano (3t). Os
dados essenciais corretos biográficos encontram-se em Serafim Leite (32 l.
Biografia
Nascido em Luca na Toscana aos 6 de fevereiro de 1649, estudou
Direito Civil na Universidade de Perúsia (3 anos) e entrou para a Com-
panhia em Roma aos 20 de maio de 1667. Foi professor de Humanidades
e Repetidor de Retórica e Filosofia no Seminário Romano. Convidado por
Antônio Vieira, com ele embarcou para o Brasil em 1681 e em 15 de
agosto de 1683 fazia profissão solene. Foi na Bahia professor de Retórica,
diretor da congregação de estudantes, Secretário do P. Visitador Antônio
Vieira e de alguns Provinciais durante muitos anos. Foi Visitador local
de Pernambuco, enviado pelo P. Antônio Vieira, mestre de noviços, reitor
do colégio da Bahia, duas vezes, e Provincial.
Diz mais Serafim Leite, que foi homem de talento e de letras, escre-
vendo latim com facilidade, tendo participado das controvérsias de seu tem-
po. Ao contrário de Vieira, não defendeu os índios da escravização, e não
foi simpático aos judeus tendo traduzido a Sinagoga desenganada (3 3l.
Acrescenta Serafim Leite que ele concentrou no Colégio da Bahia pa-
dres italianos em cargos de governo ou de ensino, mandando o Padre Geral
dispersá-los, o que fez com que alguns preferissem antes voltar à Europa,
do que ficar nas Missões. Realmente esta proteção a padres italianos pro-
vocou hostilidade não só de outros padres, como em geral. :E: assim que o
capitão-mor da Paraíba João da Maia da Gama escrevia a El-Rei sobre "os
provinciais da Companhia de Jesus e do procedimento que tinha tido con-
tra os que seguiram a parte de Vossa Majestade, e induzidos por um ita-
liano João Antônio Andreoni, que escreveu ao Seu Geral, e era melhor ou-
vido dele por estrangeiro como ele e assim este italiano do Brasil e um
Antônio Maria que estava em Roma e um Bacane eram as causas de tudo
o que sucedia na Companhia contra o real Serviço de V. M." <34 l.
Faleceu em 16 de março de 1716, aos 67 anos, na Bahia.
Obras
Além da Cultura e Opulência, sua obra magna, um dos dez maiores
livros que se escreveram sobre o Brasil colonial, compôs a "Vida do Padre

(29) DBB, I, 80-81.


(30) Catálogo de Livros Raros sobre o Brasil, Rio de Janeiro, 1907, 4.45,
(31) Ob. cit., 47-59.
(32) HC/8, VIII, 45-54.
(33) Lisboa, 1720.
(34) DHBN. 1952, v. XLVIIJ, 246.

398
Antônio Vieira" i:i:;1, levantou o rol dos manuscritos escritos e deixados por
Vieira, e outros ensaios, orações e cartas de menor significação, enumeradas
por Serafim Leite <3 nJ. Esse historiador publicou ainda vários excertos de
trabalhos seus, incluídos na sua História da Companhia de Jesus no Bra-
sil (:l7) e o Barão de Studart publicou trechos de cartas de 15 de junho e
24 de dezembro de 1714 (:l8 l.
Na primeira noticia o estado espiritual da província do Brasil e narra
a luta que se deu na Prefeitura do Ceará entre selvagens e portugueses; na
segunda, conta a visita do Padre Antônio Guedes a lbiapaba.
Capistrl)no pensava que um Manuscrito existente na Biblioteca Na-
cional de Nápoles era de Antonil e pedia a Lino de Assunção, como pe-
dira a Rio Branco, maiores informações <39 l.
Fontes de informação para o livro
No proêmio, Antonil escreveu "por que algum dia folguei de ver um
dos mais afamados, que ha no reconcavo à beira-mar da Bahia, a quem
chamão o engenho do Sergipe do Conde; movido de uma louvavel curiosi-
dade, procurei no espaço de oito ou dez dias que ai estive, tomar no-
ticias de tudo o que o fazia tão celebrado, e quase o rei dos engenhos
reais. E valendo-me das informações, que me deu, quem o administrou
mais de trinta anos com conhecida inteligencia, e com acrescentamento
igual à industria; e da experiencia de um famoso mestre de açucar, que
cincoenta anos se ocupou neste oficio com venturoso sucesso e dos mais
oficiais de nome, aos quais miudamente perguntei o que a cada qual per-
tencia, me resolvi a deixar neste borrão tudo aquilo que na limitação do
tempo sobredito apressadamente, mas com atenção, ajuntei, e estendi com
o mesmo estilo, e modo de falar claro e chão que se usa nos engenhos para
os que não sabem o que custa a doçura do açucar a quem o lavra, o co-
nheção, e sintão menos dar por ele preço que vale a quem de novo
entrar na administração de algum engenho, tenha estas noticias praticas,
dirigidas a obrar com acerto, é o que em toda ocupação se deve desejar,
e intentar" ' 4 º>.
Não sabemos quem era o mestre de açúcar e os mais oficiais, mas
sabemos quem foi o administrador por trinta anos. Coube ao Padre Sera-
fim Leite mostrar que este Engenho, um pouco ao norte da vila de São
Francisco do Conde, servido pelo rio Sergipe, daí seu nome, foi fundado
pelo governador Mem de Sá entre 1560 e 1569, e por sua morte veio ter à
sua filha D. Felipa de Sá, esposa do Conde de Linhares <4 tl. Quando D.
Felipa morreu, por disposição testamentária, coube aos jesuítas do Colégio
de Santo Antão em Lisboa, mas em face de uma cláusula do testamento

(35) Sermões, de Vieira, Lisboa, 1710. 293-303 e ABN. XIX 1897, 145-160.
(36) Ob. cit., 45-54.
(37) V, 341. V. 543-48. VI, 146.
(38) RIC. 1922, t , XXXVI. 77 ,81.
(39) Luís Silveira Cartas ele Capistrano <le Abreu a Lino d e Assu nção Lisboa , 1946, 6 1. Re-
publicadas no Ili vol. da Correspon<lêndu 2.• cd .. 1977.
(40) Ver ed. fac-similar, Recife, 1%9 .
(41) Cf. HC/B. V 243-251. 19.

399
precedente de Mem de Sá, foi o testamento de D. Felipa contestado pela
Santa Casa da Misericórdia da Bahia e pelos jesuítas da Bahia em nome
dos pobres. O litígio durou meio século até que por acordo amigável rea-
lizado em 1659 com a S. C. da Misericórdia e em 1663 com os pobres,
o Colégio de Santo Antão, mediante indenizações dadas às duas partes,
o Engenho de Sergipe do Conde e suas dependências e duas áreas de
cultivo da cana vieram a pertencer ao Colégio de Santo Antão, ficando o
restante das terras para o Colégio da Bahia (42>.
Foi em razão deste acordo que o Padre Manuel de Oliveira foi enviado
ao Brasil para administrar o engenho (43).
O padre Manuel de Oliveira (Ilha da Madeira 1622 - depois de
1700 ?) deve ter chegado depois de 1663 e em 1678 estava com 56 anos
e entre seus escritos arrola Serafim Leite vários que dizem respeito às
contas do Engenho de Sergipe do Conde, e seu nome aparece várias vezes
no Tombo das terras pertencentes à Igreja de Santo Antão da Compa-
nhia <44 >.
Serafim Leite em carta (Roma, 17. IX. 1951) a mim dirigida depois de
comunicar-me a conclusão de seu livro Artes e Ofícios dos Jesuítas no
Brasil (1549-1760) <45 l no qual divide os irmãos e não padres em 6 cate-
gorias via na "4.ª: ofícios de administração", que o Padre que informara
Antonil era Manuel de Oliveira e que este em 1700 já tinha 78 anos e era
mais que provável que tivesse falecido antes da Cultura. "A minha impres-
são", continua Serafim Leite, "é que Antonil recebeu dele não apenas infor-
mações verbais". De Manuel de Oliveira existem vários documentos na
Torre do Tombo citados na sua História (46 > e finalizava: "ao ocorrer-me
esta conexão lembrei-me do meu amigo e da sua edição de Antonil <47 > e es-
crevo-lhe, porque estas coisas se não se comunicam logo quando ocorrem
não se escrevem nunca". Sobre ele realmente há referências nas Artes e
Ofícios dos Jesuítas no Brasil, e nele se escreve especificamente que Anto-
nil colheu as informações do Padre Manuel de Oliveira <48 > e cita também
João Dias (1656/1676-1732) que em 1692 residia no Engenho Sergipe
do Conde com o procurador P. Manuel de Oliveira.

Composição de livros e anos de elaboração


Coube à historiadora Andrée Mansuy, cuja edição de 1966 é a me-
lhor de quantas se fizeram, estudar com toda atenção cada uma das partes
em que se divide o livro e determinar-lhes a data de composição.
A primeira parte dedicada ao açúcar é a maior de todas, com 105
páginas com três livros e doze capítulos, começa com a célebre frase

(42) HCJB, v. 243-254 e VII, 41-47.


(43) Andrée Mansuy, introdução à ed. bllfngUe português-francês, 1965, p . 23, nota 1.
(44) HCJB, 1949, IX, 26-27, e o tombo ln DHBN, (1943), LXII, 22.
(45) Lisboa, 1953.
(46) IX, 26-27.
(47) Nessa época eu fora encarregado pelo Fundo de Cultura Econômica de preparar uma
edição da Cultura, mas o projeto não foi adiante.
(48) Ob. cit., 42 e 76.

400
que por tantos anos caracterizou os verdadeiros donos do poder no Bra-
sil: "O ser senhor de engenho é título, a que muitos aspirão, porque traz
consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos e que tanto se
considera o Senhor de Engenho no Brasil quanto os Fidalgos no Reino";
a segunda parte com 20 páginas trata do tabaco e contém doze capítulos;
a terceira sobre as Minas com 52 páginas em dezessete capítulos, e a
quarta parte trata da criação do gado e dos couros; finaliza resumindo a
exportação do Brasil e apelando ser justo que se o favorecesse pela sua
tanta utilidade para Portugal.
Escreve Andrée Mansuy que este rápido inventário das diferentes par-
tes da Cultura e Opulência mostra logo a desproporção entre a parte dedi-
cada ao açúcar e às demais. Pergunta então por que essa desproporção, e
chama a atenção de que Antonil não conhecia bem o Brasil, senão a região
da Bahia onde residia; todo o recôncavo baiano era todo devotado ao açú-
car, e a Companhia de Jesus possuía ali o engenho real mais famoso da
região - o Sergipe do Conde, sendo assim fácil obter as informações que
desejasse.
Não tendo ido às Minas, Antonil não dispunha de informações tão à
mão, e esta é a razão por que ela ocupa apenas um quarto da obra. A re-
dação baseia-se em informação oral dada por pessoas que foram às ca-
pitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, ou às próprias Minas, e faz supor que
vários capítulos não são de sua redação. No capítulo VII <49 ) ele escreve
que "ainda que hoje os preços sejam mais moderados, contudo porei
aqui um rol, feito sinceramente por quem assistiu nas Geraes três annos,
dos preços das cousas, que por comum assento lá se vendia no anno de
1703". Não vejo neste trecho senão a declaração sobre a colheita da in-
formação, mas não creio que dele se possa inferir ser de outrem a reda-
ção do trecho.
Os roteiros, sim, parecem recebidos prontos de algum informante, e
no capítulo XIV (50), ele torna claro que transcreve e não elabora ao es-
crever: "Porei aqui a relação, que o mesmo autor (o que lhe enviou o
rol) me mandou". Os capítulos X, XI, XII e XIII são compostos de rotei-
ros, obtidos de viajantes que conheciam os vários caminhos e por ele trans-
critos.
Quanto ao tabaco, à criação de gado, aos couros e aos rendimentos,
acha Andrée Mansuy que foi escrita apressadamente e que em toda obra
nesta é que se sente o menor interesse de Antonil. 'É lógico, pois ele vivia
na Bahia, conhecia Pernambuco, ambas zonas açucareiras, e tinha a seu
dispor o grande engenho da própria Companhia a que pertencia.
Quanto às datas, depois de me corrigir com toda razão num artigo
que data dos meus começos nos estudos históricos <5t), ela chega à con-
clusão, em seguida a reflexões muito apropriadas, que houve três etapas na
elaboração do livro: 1) entre 1693 e 1698 a redação da parte açucare ira;

(49) Ed. fac-similar do Museu do Açúcar de 1969, p. 139-143, mas especialmente 140.
(50) P. 169.
(51) A. Mansuy, ob. cit., 27 e nota 2.

401
2) entre 1704 e 1 707 ele atualiza a obra dando os preços correntes; 3)
entre 1707 e o fim do ano de 1709 ele redige a segunda, terceira e quarta
partes.
Para ela ainda, Antonil modificou seus planos, pois sua intenção era
escrever apenas sobre o açúcar, e com isso demonstrar a velha tese, de
que as verdadeiras minas são o açúcar e o pau-brasil que vinha de D. Diogo
Botelho (Governador Geral 1608-1612) . A crise açucareira de 1687, a
descoberta das minas em 1694 concorreram para que ele ampliasse seus
objetivos iniciais. Em conclusão a parte açucareira é toda sua, a das Minas
tem colaboração de outro ou outros, e as sobre o tabaco e o gado não
permitiam maiores desdobramentos, especialmente por sua falta de conhe-
cimento e informação.
A proibição e destruição da obra
Andrée Mansuy estudou bem a questão da destruição do livro por
ordem régia. Desde Juan Lopez Arbizu (52 > que se sabia da interdição do
livro. Os três grandes bibliógrafos Augustin e Aloys Backer e Carlos So-
mmervogel registraram a supressão e daí em diante todos que registraram,
editaram ou comentaram a primeira edição do livro repetiram a destruição
da primeira edição, por ordem real, da qual existem atualmente apenas
sete exemplares, dos quais dois na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Desde 1958 sabia-se pelo catálogo dos documentos da Casa de Cada-
val (53 > que existia uma "Carta de Diogo de Mendonça Corte Real para
o duque de Cadaval, sobre as medidas a tomar para recolher um livro há
pouco impresso e intitulado Opulência e Cultura do Brasil, Paço, 20 de
Março de 1711 ".
Nem o Padre Serafim Leite na sua obra monumental teve o cuidado
de consultar a carta e assim, tal como os demais historiadores que o pre-
cederam, fez hipóteses, sem comprovação.
f; verdade que melhor que os seus predecessores ele fez um quadro
sintético da situação nacional e internacional, que justificava a apreensão
do livro e sua supressão. .
"A publicação da Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e
Minas" escreveu ele (54 > " teve pois esta má coincidência do ano trágico
de 1711 : perturbações sangrentas no sertão de Minas não de todo extin-
tas; na costa de Pernambuco, os excessos que houve e desvios maiores que
poderiam suceder (um dos bandos pôs-se à fala com Duguay-Trouin); o
saque do Rio de Janeiro; as fronteiras externas do Brasil em perigo; no
Sul, a Colônia do Sacramento ocupada, e no Norte os conflitos da Ama-
zônia".
Para ele não se tratava de deslealdade de Antonil, de quem não era
lícito duvidar, mas da falta de previsão. Não poderia supor tantas dífí-
(52) Catalogus librorum a Patrlbus Societatls /esu /actorum in Provinciae Brasiliensis tran-
sactis annis, cit. por A. e A. Sacker.
(53) Virgínia Rau e Maria Fernanda Gomes da Silva , Os Manuscritos do Arquivo da Casa
de Cadaval respeitantes ao Brasil. Coimbra 1958, li, p . 73 , n. 0 113.
(54) HCJB. 1949, t. Vil, 113.

402
culdades internas e externas da época da saída de seu livro. Na sua carta
ao Padre Geral Tamburini, da Bahia, de 22 de outubro de 1711, tratou
da questão dos estrangeiros e da estranheza de que ele governasse por tan-
tos anos, contra os decretos do Rei, e lembrava que um decreto proibia
irem os estrangeiros às Minas e que portanto ele não poderia ser dos que
para ali se destinavam e que se entre os estrangeiros se incluíssem os italia-
nos estava disposto a deixar o Brasil e a navegar para a Europa (55 >.
Andrée Mansuy encontrou no Arquivo da Casa do Cadaval o do-
cumento a que já nos referimos, isto é, a carta do Secretário do Conselho
Ultramarino Diogo de Mendonça Corte Real, de ordens de D. João V,
dirigida ao Duque de Cadaval, na qual se dizia que S. M. resolveu se re-
colhesse o livro Cultura e Opulência do Brasil ao impressor e que os mi-
nistros do Desembargo do Paço entregassem o que havia recebido de pro-
pina c5 aJ.
Descobriu mais Andrée Mansuy a cópia de uma consulta do Conselho
Ultramarino de 17 de março de 1711, que ilumina definitivamente a ques-
tão. Trata-se de uma representação do Conselho a S. M. declarando que
seria "muito conveniente a seu real serviço ordenar que este livro se reco-
lha logo e não deixe correr, e que ainda que para isso se dessem as licen-
ças necessárias como foram dadas sem a ponderação que pedia um negócio
tão importante que respeita à conservação e utilidade do estado públi-
co", se revogasse a ordem dada e se ordenasse daqui por diante "se
não possa imprimir livro algum em que se tratem matérias pertencentes às
conquistas sem que tenham, com as mais licenças, também as deste Tri-
bunal" <57 >.
A ordem de pô-lo à venda foi dada aos 6 de março e retirada aos 17
de março, e portanto, conclui ela, que o provável é que um dos membros
do Conselho Ultramarino tivesse lido um exemplar e "mais sensível que
todos os outros aos problemas da política exterior que se apresentavam
de modo agudo a Portugal, tivesse chamado atenção do Conselho sobre
a inconveniência que havia de entregar ao público uma obra que não po-
deria ser mais útil aos inimigos da Coroa portuguesa e em particular à
França no próprio momento em que o Brasil estava ameaçado" (5 8>.
Desenvolvendo a idéia já exposta por Serafim Leite sobre a gravidade
da situação política portuguesa, ela lembrou no plano interno a guerra dos
emboabas em Minas, a revolta do Maneta na Bahia e a guerra dos Mas-
cates em Recife; no plano exterior, desde 1705 os espanhóis ocupavam a
Colônia do Sacramento, onde os portugueses se tinham estabelecido em
1678, um grave problema de fronteira entre a Guiana Francesa e a região
portuguesa do Amazonas também surgira devido a provocações francesas e
sobretudo os dois ataques franceses de Duclerc em 171 O e de Duguay-
Trouin em 1711 ao Rio de Janeiro (59).

(55) HC/B, 1949, VIII, p. 54 g g g.


(56) A. Mansuy. ob. cit. 37.
(57) A. Mansuy. ob. cit. 44-45.
(58) Ob. cit. 46.
(59) Ob. cit. 41-42.

403
As edições
Afora a 1.ª edição de 1711, destruída e reduzida a sete exemplares
conhecidos - e é preciso não esquecer que por ordem real francesa se
destruiu por motivos também políticos o livro de Yves d'Evreux, Suite de
f'histoire des choses les plus mémorables advenues en Maragnan les années
1613-1615 (60 >, da qual só se salvaram três exemplares - houve a edi-
ção dos Extratos sobre os Engenhos de Açúcar no Brasil (61), a eqição do
Rio de Janeiro de 1837 feita por José Silvestre Rebelo, considerado muito
infiel por ter-se baseado num texto manuscrito; a edição de Macau de
1898, bastante fiel sem os erros da de 1837; a edição do Arquivo Público
Mineiro feita sob a direção de J. P. Xavier da Veiga, infelizmente baseada
no texto de 1837; a edição de Taunay de São Paulo 1923, com todos os
defeitos da edição de 1837; a edição da Livraria Progresso, Bahia 1955,
também baseada na de 1837; a de 1962 pelo Boletim Geográfico, com
anotações de Orlando Valverde, também baseada na de 1837; a edição
parcial da Editora Obelisco de São Paulo em 1964 contendo apenas a par-
te relativa às Minas; a edição Andrée Mansuy de 1968, fundada sobre a
edição princeps de 1711, com introdução e notas, a melhor edição crítica;
a reprodução fac-similar de Recife 1969, seguida de um posfácio de José
Antônio Gonçalves de Melo Neto, e de um esclarecimento do diretor do
Museu do Açúcar, Luís Pereira da Rosa Oiticica, responsável pela repro-
dução fac-similar; a edição da Companhia Editora Nacional, com introdu-
ção de Alice Canabrava, que se diz baseada na de 1711 mas é pessimamen-
te impressa, e se auto-enumera como 2.ª edição, e finalmente a das Edi-
ções Melhoramentos, de 1976, reproduzido o velho texto introdutório de
Taunay hoje ultrapassado, uma nota bibliográfica de Fernando Sales, e um
vocabulário e índices de Leonardo Arroyo, também auto-enumerada 2.ª
edição, e que se diz confrontada com a de 1711. O melhor estudo crítico-
bibliográfico das várias edições é de Andrée Mansuy na primeira parte da
sua introdução sem conhecer a de 1969 fac-similar por isso mesmo e pelo
posfácio a melhor edição brasileira.
Significação da obra
Vamhagen disse pouco do livro, ele que foi responsável pela maioria
das publicações de textos antigos dos séculos XVI e XVII. Sua secura se
limita a dizer que "para conhecermos a situação comercial e industrial do
Brasil neste período, vem em nosso auxílio a publicação em 1711, de um
livro muito importante" (62 ). :É muito pouco para um livro tão grande.
Capistrano teve a visão da importância da obra, fez a identificação
entre Antonil e Andreoni e queria fazer uma edição, como mostramos nas
várias referências de sua correspondência. Para Capistrano a obra aparecia
não como importante, mas como uma das mais importantes que se escreve-

(60) Paris 1615.


(61) Por Frei José Mariano da Conceição Veloso, Lisboa, 1800.
(62) História Geral do Brasil, 111, 411, na p. 429 a nota de Garcia resume a Informação
biobibliográíica necessária.

404
ram sobre o Brasil colonial. Taunay fez o primeiro grande estudo sobre o
livro e o autor, e nele se basearam os que escreveram antes e depois da
edição Mansuy. Pena que o texto que apresentou sofresse tantos defeitos.
Alice Canabrava fez uma longa introdução sobre a história econômica do
Brasil na época do autor e além-autor, mas perdeu-se muito em divagações
extralivro, e apesar de basear-se em Serafim Leite revela desconhecer vá-
rios aspectos importantes do livro. Declarou que Antonil não fez crítica
ao sistema colonial querendo que ele fosse quem não era e afirmou tratar-
se do maior autor colonial, o que nos parece um exagero, cometido tam-
bém por Andrée Mansuy por falta de domínio de toda a historiografia co-
lonial. Mas seu prefácio é uma contribuição que acrescenta muito ao de
Taunay, cuja fonte principal é Capistrano, embora se veja diminuído dian-
te da força inigualável de André e Mansuy. Esta é a autora mais importante
do livro e sua edição cuidada, seus comentários novos, acrescentam muito
ao que dissera Capistrano e assim como este fez a identificação entre
Antonil e Andreoni uma descoberta importante - coube a Andrée Man-
suy tecer com novos elementos arquivais a razão do recolhimento e des-
truição do livro. José Antônio Gonçalves de Melo Neto, sempre seguro
e cauteloso, baseia-se em Mansuy e forneceu no pequeno estudo novos da-
dos de origem pernambucana.

4 . A Literatura econômica em geral


A Literatura econômica colonial debateu problemas de economia po-
lítica e rústica, e da agricultura em geral. Seus autores estão impregnados
de um sentido pragmático. Eles enfrentam as dificuldades gerais da econo-
mia brasileira e procuram fazer sugestões para a melhoria geral da pro-
dução agrícola para o desenvolvimento de certos produtos. :f: esta a posi-
ção de José Caetano Gomes, José Gregório de Moraes Navarro, de João
Manso Pereira, de Manuel de Arruda Câmara, _de José de Sá Betencourt,
de Vicente Coelho de Seabra Silva Telles, de José Vilela de Barros, de
João Rodrigues de Brito e de Manuel Ferreira da Câmara nos fins do século
dezoito e começo do dezenove.
Nada se sabe sobre João Peixoto Viegas, pois nem Inocêncio, nem
Blake registram-lhe o nome. Mas seu "Parecer e tratado sobre os exces-
sivos impostos que cahirão sobre as lavouras do Brasil arruinando o com-
mercio dele" <63 > foi escrito a pedido do governador geral da Bahia, Antô-
nio Luís de Sousa Tello de Menezes, 2. 0 Marquês das Minas (1684-1687)
respondendo a S. M. que lhe indagara a causa da diminuição do comércio
e as queixas sobre os preços e a mistura dos açúcares. Determinou S. M.
que as caixas fossem marcadas de fogo com a marca do engenho, e as
divisas F. para fino, R. redondo e B. baixo, para deste modo se evitarem
as misturas. S. M. queria também informar-se sobre o remédio para que
os açúcares se fizessem finos e tivessem melhor saída.

(63) ABN, 20, 213-223.

405
O "Parecer" é um estudo econom1co sobre a diminuição e ruína em
que se encontravam os frutos do Brasil e a concorrência que começavam
a sofrer das "barbadas", isto é, das ilhas da América Central. Fala da su-
perprodução e das dificuldades de fazer os açúcares mais finos, dos preços,
condena os prejuízos dos vassalos do Brasil em benefício dos de Portugal,
as grandes imposições anuais que sobre eles pesavam devidas à paz da
Holanda e ao casamento da Rainha. E escreve que essas dificuldades todo
o Reino há de sentir, "pois é manifesto que o seu principal alimento e po-
der é o Brasil".
O remédio, disse, consiste em tirar-se o estanco do tabaco e aliviar-se
os impostos do açúcar. O parecer é corajoso, minucioso, e propõe os re-
médios, procurando defender os senhores de engenho. Vem acompanhado
de outro dirigido a Salvador Corrêa de Sá e Benevides, sendo o primeiro
ao Marquês de Minas datado da Bahia de 20 de dezembro de 1687, e
est'outro também da Bahia, de 15 de julho de 1680.
José Caetano Gomes, cuja naturalidade, nascimento e morte Inocên-
cio Francisco da Silva desconhecia (64 ), nasceu segundo Sacramento Blake
pelos meados do século XVIII e faleceu no Rio de Janeiro em 1835 (65).
Sabiam ambos que ele fora tesoureiro-mor do tesouro público do Rio de
Janeiro, deputado da junta do comércio, do conselho de S. M. e acres-
centa isolado Blake que exercia o cargo de tesoureiro desde 1825, e fora
ainda membro da diretoria geral dos diamantes e membro honorário do
conselho da fazenda de S. M. E mais, era sócio honorário da Sociedade
Auxiliadora da Indústria Nacional e que vivera até 85 anos. Essas infor-
mações tiraram ambos os bibliógrafos das indicações que aparecem em
algumas de suas obras (66).
Suas obras de maior significação são a Memória sobre a cultura, e
productos da cana do açucar (67 ) e o Discurso sobre vários objetos de eco-
nomia política ao Bra-sil (68 >, esta última limitada no tamanho diante da
grandeza da matéria. Sobra então a Memória, considerada por Varnhagen
um escrito original, quando em 1854-57 escreveu sua História Geral do
Brasil, dizendo que então podia "considerar-se como o melhor Trata-
do profissional que possui a nossa língua, especialmente com respeito à
nomenclatura técnica dos antigos engenhos e dos seus defeitos". A obra
foi editada pela diligência de Frei José Mariano da Conceição Veloso, di-
retor da Tipografia do Arco do Cego, e que tanto se esforçou por editar
obras que pudessem dar uma maior formação profissional aos brasileiros.
Frei Veloso, que editara também os Extratos de Antonil, atribuiu ao
livro de José Caetano Gomes importância superior ao de Antonil, decerto

(64) DBP, IV, 283 e Xll, 265-266.


(65) DBB, IV, 356-358.
(66) Cópia da Carta que escreveu José Caetano Gomes, tesoureiro-mor do Erdrio do Rio
de Janeiro ... Rio, 1821, 16 pp. Vide n.0 6.676 do CEHB, e Cópia do Projeto sobre a cobrança dos
direitos ao Brasil, e augmentação do reditos reaes, mandado para Lisboa no anno de 1800, por .. . ,
então deputado perpétuo da Mesa da Inspecção do Rio de Janeiro e então secretdrlo perpétuo da
Mesa da Inspecção do Rio de Janeiro e hoje deputado da Real Junta do Comércio, e tesoureiro-mor
do Real Erdrio ... Rio de Janeiro, 1821. 6 pp . CEHB, 13.396.
(67) Lisboa, 1800.
(68) Rio de Janeiro. s/d. 6 pp .

406
levado a esse entusiasmo apressado pelo fato da obra significar um movi-
mento de ensino e renovação. Mas é uma comparação incorreta, pois .a
obra de Antonil deixa a "Memória" de José Caetano Gomes muito longe,
não só pelo valor documental histórico-econômico, como pela linguagem
e o caráter humano-social de que se reveste. Talvez se possa dizer que
Antonil foi o ser do engenho e da lavoura e Caetano Gomes representou
o dever ser. Livro pragmático, como os processos que ensinava se tornaram
obsoletos e como havia falta de outros valores, Caetano Gomes ficou es-
quecido.
José Gregório de Moraes Navarro, segundo Sacramento Blake (69l,
era natural de Minas Gerais e bacharel em Direito pela Universidade de
Coimbra. Foi o primeiro juiz de fora de Paracatu do Príncipe, a quem
coube, em virtude do alvará de 20 de outubro de 1798, inaugurar essa
vila. Seu livro Discurso sobre o Melhoramento da economia rústica do
Brasil pela introdução do arado, reforma das fornalhas e conservação de
suas mattas <70 ) foi também editado por Frei José Mariano da Conceição
Veloso. Nele o autor propõe melhoramentos importantes a serem introdu-
zidos na lavoura brasileira, enunciados no título do livro, a introdução do
arado, as novas fornalhas com que se poderiam reparar todos os erros da
nossa agricultura e vivificar uma grande porção de terras próximas às gran-
des plantações.
De João Manso Pereira <71 ) também pouco se sabe. Foi professor,
químico e escritor tentando trazer sua colaboração à idéia de reformar e
procurando corrigir os métodos rotineiros. Era professor régio emérito de
gramática latina, encarregado de exames de história natural e de estudos
mineralógicos em São Paulo <72 ). Sacramento Blake acrescenta que era
natural do Rio de Janeiro e que tinha 70 anos quando faleceu nesta cidade
aos 20 de agosto de 1820. Conhecia humanidades, aprendidas no Semi-
nário da Lapa e foi analisar o ferro de Ipanema em São Paulo <73). Criou
reputação de sábio, transmitida por Joaquim Manuel de Macedo <7 4). Dele
escreveu Joaquim Manuel de Macedo, registrando tradição oral que ele
"foi águia, a que faltou espaço, foi gênio, a que faltaram recursos e con-
dições favoráveis para revelar-se na altura de suas faculdades'. Escreveu a
Memoria sobre a Reforma dos alambiques, ou de um proprio para a disti-
lação das aguas-ardentes <75 ), a Memoria sobre o metodo economico de
transportar para Portugal a agua-ardente do Brasil, com grande proveito
dos fabricantes e comerciantes <76), e traduziu do francês a Memorias sobre

(69) DBB, 4. 0 v., 449.


(70) Lisboa, 1799.
(71) RJ l 750·RJ 1820.
(72) Inocêncio Francisco da Silva, DBP, Ili, 404 e X, 300 e sobretudo a nota 72 de Rodolfo
Garcia, pp. 366-367 do IV vol. da História Geral do Brasil de F. A. de Vamhagen.
(73) Cf. F. A. de Varnhagen, História Geral do Brasil, v. 229, e nota li de R. Garcia.
(74) Anno Biographico Brazileiro, Rio de Janeiro, 1876, li, 199-200; sobre ele escreveu tam•
Mm uma biografia o dr. Moreira de Azevedo, no Pequeno Panorama do Rio de /anelro, Rio de
Janeiro, 1861-64, II, 201.
(75) Lisboa, 1797.
(76) Lisboa, 1798, depois reimpressa n'O Auxiliador da Indústria Nacional, vol. XIII, n. 0
li, p. 321.

407
uma nova construção de alambiques para se fazer toda c1 sorte de destila-
ções com maior economia e proveito (771.
Ele foi acusado e preso na Devassa do Rio de Janeiro de 1794, como
membro da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, mas logo solto como
inocente <78 1.
Na primeira Memória queixa-se da ignorância e pouco caso com que
os mestres de açúcar e aguardenteiros viam as reformas projetadas. Cla-
mava contra o desperdício de lenha, dizendo que as fábricas se achavam
completamente desprovidas dela e declarava, em tom grave, que se essa
situação perdurasse, "brevemente mandarão vir da Europa lenha para seus
fornos". Na outra Memória propugnava para que se transportasse somente
o álcool, que, misturado com água na Europa, daria a aguardente.
Manuel de Arruda Câmara (Pombal, Paraíba, 1752? - Recife, Per-
nambuco, 1811 ?) era religioso carmelita, professo em 1783, e egresso e
secularizado por um breve pontifício. Estudou na Universidade de Coim-
bra e devido às perseguições que sofriam os estudantes simpáticos à Re-
volução Francesa, foi concluir o curso de medicina em Montpellier. Exer-
ceu em Pernambuco a medicina, e foi encarregado pelo governo de várias
comissões cientificas. Sua vocação era a botânica, em que foi um dos
maiores mestres brasileiros, de valor igual ao de José Mariano da Con-
ceição Veloso. Saint-Hilaire deu seu nome a um gênero a Arrudea da fa-
mília das gutíferas.
Escreveram-lhe a biografia o Padre Lino do Monte-Carmelo ! 79 > e
sobretudo Francisco Augusto Pereira da Costa (80).
Arruda Câmara foi sempre simpático às idéias revolucionárias, e o
padre João Ribeiro Pessoa, um dos heróis de 1817, foi seu discípulo. Em
carta a ele e outros companheiros de idéias, endereçada aos 2 de outubro
de 1810, sentindo-se próximo da morte, diz-lhe: "Conduzam com toda a
prudência a mocidade em seus suspiros para que nenhuma província a
exceda. Tenham todo o cuidado no adiantamento dos rapazes Francisco
Moniz Tavares, Manuel Paulino de Gouveia, José Martiniano de Alencar
e Francisco de Brito Guerra; como assim (tentem) acabar com o atraso
da gente de cor, isto deve cessar para que logo seja necessário se chamar
aos lugares públicos, haver (sic) homens para isto, porque jamais pode
progredir o Brasil sem eles intervirem coletivamente em seus negócios,
não se importem com essa acanalhada e absurda aristocracia cabunda, que
há de sempre apresentar fúteis obstáculos.·
"Com monarquia ou sem ela deve a gente de cor ter ingresso na pros-
peridade do Brasil ... " E sugere a seguir que se abram estradas até cin-
qüenta léguas, para proveito do comércio e da agricultura.

(77) Imprensa Régia, 1805. Escreveu ainda uma carta sobre a nitreira artificial, Lisboa, 1800.
Vide CEHB, 11 .958 e ABN, XXXVI, n. 0 2.482, p. 243.
(78) F. A. de Varnhagen , História Geral do Brasil, vol. 24.
(79) Memoria histórica e biographica do Clero Pernambucano, Pernambuco, 1857.
(80) Diccionario biographico de brasileiros celebres, Recife 1882 .

408
Botânico e naturalista, revolucionário maçom, contra a escravidão, e
a favor da integração negra à sociedade brasileira, Arruda Câmara escre-
veu muitos trabalhos e deixou outros em manuscrito. J;: a Memória sobre
a cultura dos algodoeiros e sobre o método de o escolher e semear, em
que se propõe alguns planos para o seu melhoramento <81 > que o inclui na
historiografia econômica, e não deixam de ser úteis o Discurso sobre a
utilidade da instituição dos jardins nas principais províncias do Brasil <82 >,
bem como a Dissertação sobre as plantas do Brasil que podem dar linhos
próprios para muitos usos da sociedade, e suprir a falta do cânhamo <83 >.
José de Sá Betencourt <84 >, tal como Arruda Câmara, formou-se em
ciências naturais pela Universidade de Coimbra, e do mesmo modo tor-
nou-se simpático às idéias da Revolução Francesa; sendo acusado de in-
confidênc1a na Conjuração mineira, foi preso, ouvido e libertado. Nos Au-
tos da Devassa <85) ele diz ser natural de Caeté e ter de trinta e seis para
trinta e sete anos em 1791, o que significava ter nascido em 1754-55; era
solteiro, não tinha ordens e era formado em filosofia e vivia da sustenta-
ção de seus pais. Respondeu a três inquirições, sendo considerado sem
culpa, mas assinando um termo obrigando-se a se apresentar ao general-
governador da Bahia, e sempre que quisesse sair da capitania ficava obri-
gado a novamente se apresentar. Quando veio formado foi para a casa de
seus pais na Bahia na Vila do Rio das Contas, no Sertão, em setembro de
1787 e seguira para Caeté para a casa de sua tia em maio de 1788. Res-
pondendo bem ou não, o certo é que conseguiu se libertar do processo,
embora haja tradição oral de que sua tia conseguiu seu livramento com
duas arrobas de ouro. A informação aparece na primeira e melhor biografia
de Sá Betencourt, neste com mais o nome final de Accioli, Betencourt
Accioli <8 6 >, depois repetido na biografia de Joaquim Manuel de Mace-
do (87), embora nos Autos não apareça o nome Accioli (88).
A prisão e o processo da Inconfidência não lhe quebraram a fibra, pois
suas respostas hábeis não revelam temor. Depois ainda viveu para ver
e ajudar a conquista da Independência, quer apoiando a adesão de Minas
Gerais a D. Pedro I, quer organizando um regimento, que não pôde pela
idade comandar, mas foi chefiado por seu filho José de Sá Betencourt
Câmara <89>.
Ele faz parte deste grupo de renovadores da economia agrícola com
seu livro Memória sobre a plantação dos algodões e sua exportação, sobre

(81) Lisboa. 1799.


(82) Rio de Janeiro. 1810.
(83) Rio de Janeiro. 1810. De todas fez extratos H. Koster Traveis in Braz/1, 1816, 475-501;
sua bibliografia está mais completa em Sacramento Blake VI, 31-33.
(84) Caeté, M. Gerais, 1754-55 - Caeté, 1828.
(85) 1.• ed., Rio, 1936. vol. V, 186-204. auto de perguntas de 9 a 12 de setembro de 1791;
antes aos 23 de setembro de 1790 o Visconde de Barbacena escrevia ao Conde de Rezende consl·
derando-0 o suspeito de ser o doutor de Sabará, várias vezes apontado nos Autos, 1.• ed., vol. VI,
155-156.
(86) RIHGB, 2.• ed., 1865, t. VI, 107-111.
(87) Anno Blographico. Rio de Janeiro, 1876, I.• vol., 261-265.
(88) 1.• ed. Já citada e na 2.• Brasma, 1977 vol. 8, 146 e 197 e vol. 9. pp. 145, 260,
315 e 401-404.
(89) Biografia clt. RIHGB, 109-110 e repetindo-a J. M. de Macedo, ob. c/1., 264-265.

409
a decadência da lavoura de mandioca, no termo da Vila de Camumu, co-
marca de Ilhéus (90).
Há ainda uma "Memória Mineralógica" da Comarca de Sabará por
ele oferecida a José Bonifácio, acompanhada de uma carta na qual suas
convicções ideológicas e políticas estão claramente definidas: "Nem sem-
pre", escreve, "os acontecimentos filosóficos, neste país haviam de ser cri-
minosos; nem sempre os amantes da razão e da verdade sufocariam em seu
seio os sentimentos úteis e liberais. O tirano despotismo que, neste país,
oprimiu, devastou e destruiu os primeiros alunos desta útil faculdade, em-
baraçou por muito tempo o seu exercício aos que escaparam das suas fú-
rias; fez o retardamento do seu progresso e sufocou no berço planos de
melhoramentos bem premeditados". E logo a seguir comenta: "Com que
mágoa, Exmo. Senhor, me não recordo do infernal governo do déspota
Barbacena, e com que satisfação não vejo agora a V. Ex.ª o primeiro fi-
lósofo do Novo Mundo, à testa da direção dos negócios públicos, para dar
a este ramo da ciência toda atividade neste continente onde a natureza
obrou com mão liberal, prodigalizando tudo quanto há de grande tanto no
reino mineral como no vegetal. :e agora Senhor, que sinto o tempo perdi-
do". E neste diapasão prossegue a carta condenando o absolutismo, as
perseguições, as prisões, "uma vez que era um crime o apelido de natu-
ralista" <91 >.
Vicente Coelho Silva Telles (Congonhas do Campo, MG, 1764?-
1804?) cursou e se diplomou na Universidade de Coimbra, sendo em
1789 eleito correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa, e
depois sócio efetivo de ciências naturais em 1798. Foi neste tempo no-
meado lente na mesma Universidade de zoologia, mineralogia, botânica e
agricultura. Foi ele o primeiro que publicou em português um estudo sobre
química, Elementos de Chímica <92 ). A obra é dedicada à Sociedade Lite-
rária do Rio de Janeiro, que veio a sofrer perseguição em 1794, e nela,
ele revela todo seu patriotismo.
"A quem poderia eu melhor dedicar este meu compêndio de Chimi-
ca, do que a uma corporação de patriotas iluminados que se destinam,
unindo num só corpo as suas forças dispersas, servir ao seu rei, instruindo
sua pátria. Patriota, como vós, ilustres sábios, ainda que arredado de meus
lares, desejo, quanto cabe em minhas forças, concorrer para tão louvável
empresa" (93).
Escreveu outras dissertações, sendo a sobre o calor oferecida a José
Bonifácio, o que mostra a reputação do Patriarca entre os seus contempo-
râneos ilustres (94).

(90) Lisboa, 1798. Foi reimpresso no jornal O Auxiliador, IX, n .0 9. Segundo Inocêncio no
mesmo Jornal, n. 0 • 3 e 4 do t. VIU se acha impresso o que diz respeito às Incursões do autor
em Montes-Altos.
(91) Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, 2.• ed., vol. 9, 401-404. Não aceito a con·
clus,ão ilógica do comentador Tarqulnio J. B. de Oliveira de que "os Andrada de temperamento
autocrático devem lê-lo decepcionado depois da Independência".
(92) Lisboa, J.o vot. 1788; 2.0 vol. 1790.
(93) " Biografia dos Brasileiros dlstlnclos por lettras, armas, virtudes, etc. Vicente Coelho de
Seabra" por F. A. de Varnhagen, RIHGB, 1847, 1. 9, 261 -264.
(94) Inocêncio Francisco da Silva. DBP, t. 7, 1862, 422-423 e 19, 330, e Sacramento Blake
DBB, 1904, t. 7, 356-357.

410
Na sua bibliografia destaca-se para a parte econom1ca a Memória
sobre a cultura do arroz em Portugal e suas conquistas (9 5 ), bem como a
Memória sobre a cultura das vinhas, e manufatura do vinho <9 0>, e a Me-
mória sobre a cultura do rícino em Portugal <97 > e ainda a Nomenclatura
chimica portuguesa, francesa e latina, a que se ajunta o systema de caracte-
res chimicos adaptados a esta Nomenclatura por Hassemfratz e Adet <98 >,
no qual, como escreveu Varnhagen, ele propunha como deviam passar
à língua portuguesa as terminações dos vocábulos adotados pela ciência,
principalmente em francês, para evitar as irregularidades que até este tem-
po se iam seguindo em Portugal (99).
José Vilela de Barros, cuja biografia é desconhecida tanto por Ino-
cêncio Francisco da Silva como por Sacramento Blake escreveu a Memó-
ria ou exposição do método de plantar e colher no Brasil a mandioca, e
fabricar a sua farinha, e dos mais produtos e usos desta raiz OOOJ.
João Rodrigues de Brito <101 > era formado em direito pela Universi-
dade de Coimbra e seguiu a carreira da magistratura, sendo Desembarga-
dor da Relação da Bahia <102), Desembargador da Casa da Suplicação e
constituinte nas Cortes Portuguesas de 1821-22, onde pronunciou vá-
rios discursos. Sua grande obra, notável pela lucidez, verdade e franqueza
da exposição, como escreveu Varnhagen (103), as Cartas Econômico-Polí-
ticas sobre a Agricultura e Comércio da Bahia <104 >, não é senão o parecer
em resposta à solicitação da Câmara dos Vereadores sobre os problemas
econômicos na Bahia. O Príncipe Regente D. João recebera várias repre-
sentações relativas ao estado do comércio e lavoura da capitania da Bahia
contra os exames e qualificações dos gêneros que fazia a Mesa da Inspe-
ção d'Agricultura e Comércio. D. João dirigiu-se ao Governador, que de-
veria ouvir a Câmara e este decidiu consultar lavradores, comerciantes e
pessoas versadas em economia política. :É nesta última qualidade que Ro-
drigues de Brito aconselha à Câmara.
A Câmara havia se dirigido às mencionadas pessoas com cinco quesi-
tos: 1. 0 se reconheciam alguma causa opressiva contra a lavoura, e conhe-
cida a causa, qual o meio de evitá-la; 2. 0 se a lavoura tinha recebido pro-
gressivo aumento de que tanto dependia a prosperidade do Comércio, e
qual o motivo favorável ou desfavorável; 3. 0 se o Comércio sofria al-
gum vexame, qual ele seja, e se seria conveniente desoprimi-lo, sem risco
de outro dano maior; 4. 0 se os exames e as cautelas que se praticavam
sobre os gêneros são úteis ou nocivos ao progresso do Comércio; 5. 0 se
o lavrador desobrigado destes exames, e o negociante na liberdade de con-

(95) Lisboa, 1800.


(96) No tomo II das Memdrlas de Agricultura premiadas pela Ac. Real das Ciências.
(97) T. III das Memdrlas Econômicas da Ac. Real das Ciências.
(98) Lisboa, 1801.
(99) Biografia por F. A. de Varnhagen na Já cit. RIHGB, 263-264.
(100) Nas Memdrlas da Academia das Ciências de Lisboa VII, 1821, 52 pp.
(101) ~vora ? - ? 1828-1833.
(102) Sua nomeação e seus requerimentos para pagamento de seus vencimentos ln ABN, 36,
n. 00 23.288-23.291 e 23.294-23.295, p. 451.
(103) Hlstdria Geral do Brasil, V, 72, n.º 39.
(104) Lisboa, 1821, VIII - 109 pp., 2.• ed., Bahia, 1924.

411
vencionar-se nos preços dos gêneros com o lavrador, promoveriam me-
lhor seus recíprocos interesses. Os quesitos foram formulados aos 12 de
maio de 1807 pelo 6.° Conde da Ponte, João de Saldanha da Gama Melo
e Torres (1805-1809) e foi respondido por João Rodrigues de Brito aos
28 de maio do mesmo ano.
As questões levantadas e a resposta do desembargador são .inspiradas
no liberalismo econômico que dominava a cabeça das figuras principais de
Portugal e da colônia bra.sileira. Adam Smith, o grande patriota inglês, con-
seguira convencer até aos colonos, os de Portugal, e aos colonos dos colo-
nos, os do Brasil; convenceu-os contra seus interesses e alienadamente a
favor do imperialismo inglês, nos seus aspectos variados, formais e infor-
mais, como eram exemplos a índia e o Brasil. Ele e o propagandista de
suas doutrinas o economista francês Jean Baptiste Say e ainda J. Ch. L.
Sismondi da escola clássica e ética, muito ligado às idéias clássicas de
Smith e Say. A resposta é dominada pelo chavão de liberdade econômica,
e o estribilho do Estado ausente dos negócios: como liberal-econômico
Rodrigues de Brito é contra o despotismo, a favor da total liberdade da
agricultura, da criação e do comércio, e combate a intervenção estatal.
Combate os roubos, os ciganos, os salteadores e defende sejam os escravos
bem alimentados para a defesa dos interesses de lavradores e comercian-
tes. Insurge-se contra os votos monásticos que fomentam a ociosidade e
a despovoação; os monges obedecem mais ao voto de pobreza que ao da
castidade. Contesta o voto de obediência, que é contrário aos princípios
do Direito público e à ordem social, pois os cidadãos só devem obediência
às leis e ao Estado e seu regalismo vai ao ponto de querer converter os
mosteiros em casas de educação. Afirma que a vadiação tem excedido to-
dos os limites, primeiro porque os moradores têm o gosto de possuir
escravos por mero luxo, o que equivale a chamar de vadios aos senhores
brancos, sustentados pelo trabalho escravo; segundo "a preocupação na-
cional, que exclue dos empregos todo aquele que por si, seus pais ou
avós, tiver exercido artes mecânicas, isto é, que tiver contribuído com o
seu trabalho para a multiplicação da riqueza. Um escrivão de mais insig-
nificante Câmara não pode encartar-se na propriedade de seu ofício, sem
provar verdadeira, ou falsamente, a perpétua inação de seus braços e dos
seus pais, e avós".
A multiplicidade dos dias santos, a mendicidade, o recrutamento for-
çado, a perpetuidade da escravidão, a reclusão do sexo feminino e o
aldeamento dos índios em povoações separadas, são males sociais que
aponta e ·critica.
Sobre a reclusão do sexo feminino, Rodrigues de Brito escreve a
quem os costumes do país o têm reduzido aos "exercícios domésticos do in-
terior da casa, os quais não bastando para ocupar um tão grande número
de braços, fica, por conseguinte, aquela bela metade da nossa povoação
destituída de meios de subsistência, e a cargo dos varões, que por isso
evitam os matrimônios". Defende o direito do trabalho feminino nas lojas,
nas artes que não exijam grandes forças, com o que se duplicaria a soma

412
das riquezas anualmente produzidas pelo trabalho humano, mas também
a povoação.
Defende a livre comunicação entre os sexos, pensa que o hábito do
trabalho ativo lhes daria uma constituição mais vigorosa; "pois vejo a
maior parte das senhoras definhar em moléstias nervosas, procedidas da
inação, e enjôo em que vivem". Pleiteia a criação de passeios públicos que
atraiam os moradores a verem-se e falarem-se; condena as gelosias que
escondiam o belo sexo ao masculino e acha que destruído esse "esconderijo
mourisco poria as senhoras na precisão de vestir-se melhor para chegarem
às janelas, a satisfazer a natural curiosidade de verem e serem vistas, e
assim familiarizando-se com o sexo masculino, não olhariam como virtude
o insocial recolhimento, que as faz evitar os homens, como a excomun-
gados".
E assim Rodrigues de Brito o primeiro a defender a liberdade feminina,
e a condenar a exclusão das mulheres da vida social.
Condena os embaraços à livre circulação e escreve que é tal a taxa de
juro do dinheiro, que sendo muito inferior ao seu preço natural numa tão
vasta colônia inculta, e recheada de escravos, impede venham para ela
capitais estranhos dos países onde o seu uso tem menos valor.
Recorre a J. B. Say contra semelhantes taxas, "que não só impede a
introdução dos capitais estrangeiros, mas faz que o lavrador nem esses
poucos, que existem, possa conseguir, porque os capitalistas acham para
eles emprego mais lucrativos que o juro da lei". Só nos séculos de igno-
rância e superstição pensava-se que não era lícito ganhar a renda, chama-
da juro. É o juro à taxa muito baixa que faz com que tesoureiros, comis-
sários, procuradores, feitores, tutores e administradores retenham anos e
anos e até sustentem litígios renhidos "para conservarem nas unhas um
capital, de que tiram ordinariamente 12 por cento de lucros, estando cer-
tos de que os juros somente lhes serão contados a 5, quando forem compe-
lidos a restituir o que em si retêm contra a vontade de seus donos".
Critica as leis protetoras das classes privilegiadas, condena a lei de
falência, a longa duração dos pleitos, o sistema emolumentário, que faz
com que os empregados da justiça tenham interesse em multiplicar, com-
plicar e prolongar os processos.
Afirma que, em vez de taxar o preço dos salários aos trabalhadores,
dos frutos aos lavradores e dos alugueres aos proprietários e dos juros aos
capitalistas, seria melhor taxar o tempo dos pleitos.
Quer uma reforma de ensino, especialmente o jurídico, para que os
pleitos sejam mais justos, substituindo-se o ensino do Direito Romano e
Canônico por um sistema inspirado nas luzes do século.
Defende o ensino da economia política e foi a suas instâncias que se
criou uma cadeira no Rio de Janeiro, por decreto de 23 de fevereiro de
1808, nomeando-se José da Silva Lisboa seu primeiro professor, tendo este
encontrado as maiores dificuldades para o exercício da matéria.

413
Relembra a frase de José da Silva Lisboa "deixai fazer, deixai passar,
deixai vender" escrita nos seus Princípios de economia Política c1o5>.
Afirma que a lavoura tem recebido progressivo aumento nas leis e
providências a favor da liberdade de comércio.
Seguem-se outros pareceres de Manuel Ferreira da Câmara, de José
Diogo Gomes Ferrão Castelo Branco, de Joaquim Inácio de Sequeira
Bulcão.
Manuel Ferreira da Câmara Betencourt e Sá (Itacambira, M. Gerais,
1764 - Bahia 1835) formou-se na Universidade de Coimbra em 1788,
juntamente com José Bonifácio de Andrada e Silva <106 >. Sua vida foi toda
ela dedicada às iniciativas econômicas. Acompanhou José Bonifácio na
sua viagem de instrução científica pela Europa. Volta a Portugal, trabalha
em fundições, e passa a ser, já em 1803, o principal conselheiro do go-
verno português em questões relativas às Minas do Brasil e sua legislação.
Coube-lhe a primazia de ser quem primeiro produziu ferro guza em
alto forno, construído na Real Fábrica de Ferro do Morro do Pilar, em
Minas. Em 1800 era nomeado pela primeira vez Intendente Geral das Mi-
nas na Capitania das Minas Gerais; -renovada em 1803, e em 1807 tomava
posse do cargo de Intendente dos Diamantes do Serro Frio em Vila Rica
e nele permaneceu até 1822. Sua vida política começa com a eleição para
o Conselho de Procuradores Gerais das Províncias como representante de
Minas em 1822. Eleito deputado para a Assembléia Constituinte e Legis-
lativa, onde além de tê-la presidido, sua atuação foi sempre correta e re-
flexiva <107 >. Foi em 1826 eleito senador pela Bahia e por Minas e optou
por Minas, tendo pedido demissão em 1833.
Dois trabalhos escritos - e não a ação prática - o incluem na histo-
riografia econômica. Primeiro o Ensaio de descrição física e econômica da
Comarca de Ilhéus <tOS> bem como o "Ofício de Manuel Ferreira da Câ-
mara, datado de Lisboa a 13 de Agosto de 1798 e dirigido a. . . expen-
dendo varias idéias sobre a economia mineral dos estados ultramarinos,
particularmente do Brasil" (109).
A Descrição é obra original na qual examina com todo o rigor a eco-
nomia de Ilhéus, a desatenção pelo açúcar e tabaco, dando grande desta-
que à produção açucareira, que daria mais lucro que o cultivo do cacau.
No final ele declara que "ninguém ignora que o maior ramo da indústria
do Brasil, é a cultura e manipulação do açúcar, gênero de que tiraríamos
maior ganância, senão concorreríamos com as diferentes Nações que têm
colônias na América, e que importam para a Europa uma porção muito
mais considerável das Antilhas". Mas como a sua manipulação também
faz diminuir muito o preço deste gênero, além da concorrência, não será,
pois, fora de propósito ajuntar aqui algumas reflexões sobre a perfeição do
(105) Lisboa, 1804.
(106) Sua melhor biografia foi escrita por Marcos Carneiro de Mendonça, O Intendente
Manoel Ferreira da Ctimara Betencourt e Sd 1764-1835. Rio de Janeiro, 1933; 2.• ed., São Paulo, 1958.
(107) Ver José Honório Rodrigues, A Assemb/lia Constituinte de 1823, Petrópolis, 1974.
(108) Lisboa, 1789.
(109) Autógrafo, Biblioteca Nacional, CEHB, n.• 11.929.

414
açúcar e seu manejo, que possam servir de regra para o aumento do mesmo
nesta Comarca, onde já o dissera a cultura da cana era nenhuma, em rela-
ção ao que se fazia no Norte do Brasil <110 >.
Além desse trabalho, escreveu Manuel Ferreira da Câmara a Segunda
Carta em resposta aos quesitos da Câmara, feitos por sugestão do Gover-
nador, a pedido do Príncipe Regente. f: a segunda carta depois da de Ro-
drigues de Brito, datada do Engenho da Ponte, em maio de 1807 <111 l.
Nela ele manifesta a mesma simpatia de seus contemporâneos pelo libera-
lismo econômico: "Assim parece exorbitantemente provado que as leis,
e Regimentos, quando restringem a liberdade dos proprietários, ainda fa-
zendo uma das mais justas, e direi ainda necessárias exceções do direito
de poder cada um fazer, o que lhe parecer, e melhor convier, são sempre
iludidas e de nenhum efeito".
Para ele a Mesa de Inspeção do Açúcar, órgão regulador e fiscali-
zador, era considerado como um dos que mais se opunham ao aumento da
produção. Adam Smith é seu inspirador, como o era de Rodrigues de
Brito. "Cada um", escreve ele, "deve ser o senhor de fazer o que mais
lhe convier, e o que mais lhe convier é o que mais convém ao Estado e
ao Soberano, que têm partilha em todos os seus lucros, e interesses". f:
uma frase lapidar do liberalismo econômico dominante em várias grandes
cabeças brasileiras da Independência, mas não na de José Bonifácio de
Andrada e Silva.

(110) Há referências ao Engenho da Ponte, de seu tio, o desembargador Manuel Ferreira da


Câmara, ABN, vol. 36, 1916, n. 0 19.433, bem como a descoberta da potassa quando dirigia o En-
genho da Ponte. ABN, vol. 37, 1918, n.•• 29.939-29.942.
(111) Cartas Econômlco-Pol/ticas sobre a agricultura e comércio da Bahia. t.• ed., Lisboa,
1821. 2.• ed. Bahia, 1924, pp. 95-11 t.

415
CAPITULO III

A HISTORIOGRAFIA SOCIAL E DOS CAMINHOS


1 . Ribeiro da Rocha e a liberdade negra. 2. João Pereira
Caldas e o "Roteiro do Maranhão a Goiás".

1 . Ribeiro da Rocha

Diogo Barbosa Machado, o primeiro e maior bibliógrafo português,


anotara que Manuel Ribeiro da Rocha nascera a 17 de fevereiro de 1687,
entrara para a Companhia de Jesus, fizera o noviciado em Lisboa, passara
ao Brasil, ensinara letras h1nnanas nos colégios da Companhia nas Capita-
nias do Espírito Santo, São Paulo e Bahia. Ditara filosofia e teologia du-
rante dez anos, chegando a examinador sinodal do Arcebispado da Bahia,
adquirindo geral veneração de grande letrado pelos pareceres doutos que
escreveu quando consultado. Faleceu na Bahia, em 1745, quando contava
58 anos de idade e 40 de Companhia. Nem Inocêncio, nem Sacramento
Blake, nem Serafim Leite conheceram sua vida e a comentaram.
Sua obra Ethiope Resgatado, empenhado. Sustentado, corrigido, ins-
truído e libertado. Discurso theologico-juridico, em que se propõe o modo
de commerciar, haver e possuir validamente, quanto a um outro foro, os
pretos captivos africanos, e as principais obrigações que correm a quem de-
les se servir <Il.
Varnhagen chamou-o "filantropo autor" que na sua obra "propõe
a idéia de ser o tráfico declarado pirataria e de poderem os escravos res-
gatar sua liberdade ao cabo de cinco anos de cativeiro <2 ).
Seu grande livro começa pondo em dúvida a legitimidade da proprie-
dade escrava. "Muitas vezes tem chegado aos ouvidos dos comerciantes e
dos mais habitadores do Brasil, que pessoas doutas, e temoratas reprovam
a negociação, contra, e possessão dos pretos cativos africanos, em razão
de não serem legitimamente cativados em guerras públicas, justas e verda-
deiras, senão em uns furtivos e repentinos assaltos, que aqueles bárbaros
praticam, e consentem a seus vassalos. . . "donde, como estes comer-
ciantes têm exuberantes fundamentos para se persuadirem, a que aqueles
cativos, na maior parte, foram mal, e injustamente reduzidos à servi-
dão. . . "E eis aqui o que se passa no foro interno da consciência, com a
negociação, e possessão dos pretos cativos africanos, praticada por via

(1) Lisboa, 1758, XXXVI - 367 pp.


(2) História Geral do Brasil, IV, 328.

416
de compra, e permutação, com aquisição de domínio, sem preceder averi-
guação, e certeza da legitimidade da escravidão de cada um. Os comer-
ciantes andam em estado de condenação, exceto somente algum, a quem
a sua total, e invencível ignorância o escuse."
Depois condena os Senhores que logo à chegada dos escravos açoi-
tam-nos rigorosamente para mostrar-lhes que os dominam e devem deles
serem temidos e respeitados. E enfaticamente declara: "Saibam pois estes
Senhores ou possuidores de escravos, que esta Teologia rural, é o avesso
da teologia cristã".
Reprova os castigos, as crueldades dos açoites, e procura aconselhar
a que minorem as punições, e se evitem os excessos. Daí a fuga dos escra-
vos lesos e ofendidos, e quando não fogem, se os tratam bem serão com-
panheiros e amigos, se os tratam mal são nossos domésticos inimigos.
Não devem os Senhores, no castigo, usarem de injúria, pragas, mal-
dições, o que é repreensível e execrável "porque quem pragueja, e lança
maldições com ira e mau desejo ao seu próximo, diretamente se opõe à
caridade, que lhe deve, e por isso gravemente peca".
Aconselha-os a que os casem com quem for por eles escolhido. Quan-
to aos vícios da bebedice, jogo e todos os mais, a experiência mostra no
Brasil "que os escravos das lavouras de mandiocas, tabacos, e açúcares,
e os dos engenhos, os cortadores de lenha, nunca são tão viciosos como
são os outros dos serviços das casas, e companhia dos Senhores, que regu-
larmente são, os que maiores moléstias, desgostos e enfados lhe causam".
A reforma dos costumes dos escravos deve começar pela reforma dos
Senhores. E se há escravos maus e infiéis, há "bons e fiéis, que zelaram
e defenderam a fazenda, a houra, a própria vida de seus Senhores e ainda
o bem comum da República". Defende ao fim que se dê liberdade aos es-
cravos fiéis e bons.
Não é assim um livro pela liberdade negra, mas um livro pela refor-
ma dos costumes da escravidão, que defende o bom trato, que sugere se
premie o bom, e que se dê a todos sepultura eclesiástica e não os mandem
enterrar no campo e mato, como animais brutos.

2. João Pereira Caldas


João Pereira Caldas foi três vezes Governador, primeiro do Piauí
(1759-1769), depois do Pará e Rio Negro (Amazonas) (1772-1780) e
finalmente nomeado para o Mato Grosso, aos 30 de dezembro de 1779,
no qual não se empossou por ter sido dada nova comissão e veio a falecer
em Lisboa aos 7 de outubro de 1794. Seus dois governos foram de valio-
sos serviços às capitanias, e se não fora sua resolução e atividade de man-
dar reforços para se opor aos inimigos no Rio Branco, este estaria ameaça-
do. A comissão de que participou foi a da demarcação dos limites no norte
decorrente do Tratado de 1777. Varnhagen declarou que ele, depois de

417
servir no Piauí, veio a prestar grandes serviços no governo do Maranhão,
o que foi um equívoco, pois lá nunca serviu <3 >.
Quando das lutas com os espanhóis na fronteira norte, no Rio Branco
propriamente dito, em 1775, coube a João Pereira Caldas, com resolução
e atividade, mandar logo forças sem as quais a fronteira teria recuado <4J.
O Tratado de 1777 determinou várias explorações geográficas que
serviriam para a delimitação da fronteira. Foram nomeadas três divisões
e da terceira, à qual competia demarcar da foz do Jauru à do Japurá, o
primeiro comissário era o governador de Mato Grosso, João Pereira Cal-
das. Por isso, já nomeado, não tomou posse do governo.
Francisco Xavier Ribeiro Sampaio, ouvidor da capitania do Rio Ne-
gro e de quem já tratamos, na sua "Relação Geográfica e Histórica do Rio
Branco da América Portuguesa", escreve que o conheceu bem<SJ e que go-
vernava o Estado do Pará "João Pereira Caldas, cavaleiro distinto da
província do Minho, dotado de um gênio ativo, laborioso e infatigável,
que todo [se] aplicava ao desempenho sério e eficacíssimo de seu governo".
Mais adiante já o chama de general <6 >, e diz que "depois destes movimen-
tos militares, ele mandou não somente fortificar, mas povoar o Rio
Branco" <7 >.
Aos 25 de novembro de 1788, Pereira Caldas foi dispensado, sendo
Lobo d'Almada escolhido para assumir a chefia da comissão <8J. Fora ele
quem sugerira que se passasse a capital da capitania de São José do Rio
Negro para junto da foz do mesmo Rio (9J.
Escreveu Artur César Ferreira Reis que "Pereira Caldas, com a co-
ragem e o sentido dos problemas amazônicos que o caracterizavam, pre-
tendeu utilizar o vale do Rio Branco para pastagens de gado, cuja criação
incentivava"<10J.
Sua carreira militar e política foi sempre valiosa e reconhecida pelos
superiores. Já em 1756 eram recomendados seus serviços à causa da Ama-
zônia e que lhe fosse concedida a patente de Sargento-mor (11 J.
Essa é sua carreira oficial, mas ao lado dela surge a possibilidade de
que tenha sido ele o autor do "Roteiro do Maranhão para o Rio de J a-
neiro" <12 >, uma das mais importantes descrições dos caminhos do sertão
desde o Maranhão a Goiás, pelo Piauí. Descreve as fazendas de gado, mos-
tra a importância do vaqueiro, faz reflexões políticas e econômicas sobre
o interior.

(3) Histdria Gerai do Brasil, ob. cit., t. IV, 181.


(4) Histdria Gerai do Brasil, ob. cit., t. IV, 256.
(5) RIHGB, 2.• ed., 1872, t. Xlll, 215.
(6) Ele fora mandado assentar praça de coronel da cavalaria por decreto de 30 de dezembro
de 1779. Vide Histdria Gerai do Brasil de Vamhagen, ob. cit., t. V, 370.
(7) "Relação Geográfica e Histórica•, ob. clt., 250.
(8) A. C. Ferreira Reis, Lobo d'Aimada. Um estadista colonial. Manaus, 1940, 20.
(9) A. C. Ferreira Reis, ob. clt., 30.
(10) A. C. Ferreira Reis, ob. cit., 37.
(li) Marcos C. de Mendonça, A Amazônia na Era Pombalina, IHGB, Rio de Janeiro, 1757-
1759, 3 ts., p. 1.262, doe. n.0 1.014.
(12) O Patriota, II - 6, 1813, 6-9, e III, 3, 3-27, 28 (1814), 111, 4-74-107, e 6-37-64;
RIHGB, 1900, LXII, párte 1. Rio de Janeiro, 60-161.

418
A cópia de que se serviu o Instituto para publicar o "Roteiro" é de
1800, mas é de acreditar que tenha sido escrito no fim do século XVIII.
Nas Advertências ele previne o leitor de que neste "Roteiro" ele não
só se propôs a ajuntar aquelas notícias, que pudessem servir para dar
uma idéia circunstanciada do caminho que ele dirige, "mas me propus tam-
bém escrevê-las debaixo do mesmo título, que me foi insimado" (insi-
nuado).
Não faz menção de todos os acidentes geográficos, mas anotou tudo
que parecesse necessário "para fazer conhecer o diverso Rumo, que se de-
ve seguir e a diversidade que há mais sensível no País, seja natural, ou
civil". Afora o tempo e a direção do caminho juntou, em notas, tudo o
mais que pudesse ser interessante.
"Acrescentarei por último, ingenuamente, que não sendo do meu in-
tuito passar da Natureza e estado atual do País, a falar dos seus interes-
ses, eu não me achei metido a fazer de passagem no corpo algumas refle-
xões, mas vim a fazê-las em corpo separado sobre a matéria dos números
28 até 43, assim como vão escritas em quinze capítulos. -
"Se alguém se persuadir que as fiz levado do desejo de ver florescer
um Estado, onde tive a honra de servir S. M., faz justiça à minha causa
e da razão que sobeja, para eu me atrever a expô-la ao desprezo, que me-
recem pela má ordem, longas digressões, e fastidioso estilo, com que são
feitas."
O "Roteiro" é seco, muitas vezes árido, mas muitas outras vezes rico
de notas curiosas e humanas, apontando os rios navegáveis, a criação de
gado, as aldeias de índios, retificando autores que o antecederam o que
revela sua leitura; se há cachoeiras, ressaltos, giros, nascimentos de rios,
divisões geográficas, riachos, sertões, há frases como esta: "A freguezia de
Pastos Bons é uma parte muito nervosa do corpo do Maranhão".
Aponta descobridores e conquistadores_ de terras, como Domingos
Afonso Sertão, descobridor do Piauí, revela as vilas e suas divisões pelo
sertão adentro, trata das diversas nações de índios silvestres, fala do go-
verno espiritual, descreve a capitania do Piauí, sujeita ao governo do Ma-
ranhão, mostra a repartição de terras, as sesmarias, trata das fazendas de
criação, das grandes boiadas e seus destinos do Piauí para Bahia e Minas,
descreve os sertões, as estradas, os açudes, as dificuldades de cultura no
Piauí do açúcar e da mandioca.
Percebe e registra os aspectos espirituais, como o desprezo que os pri-
meiros povoadores tiveram da agricultura da capitania do Piauí, e a ne-
cessidade para a subsistência de criá-la e aumentá-la. Recapitula as lagoas e
jornadas, e faz suas reflexões, como a de que é necessário um novo estabe-
lecimento que se comunique pelo interior do País, do Rio Parnaíba da
Capitania do Maranhão ao Rio Tocantins no Pará. Descreve os índios e
seus caracteres, os vaqueiros e os trabalhos da criação, que não exigem
muita gente. Em cada fazenda há dez ou doze escravos, e na falta deles,
mulatos, mestiços, pretos forros, raça de que abundam os sertões da Bahia,
Pernambuco e Ceará.

·H9
"Esta gente perversa, ociosa e inútil pela aversão que tem ao traba-
lho da agricultura, é muito diferente empregada nas ditas fazendas de ga-
dos. Tem a este exercício uma tal inclinação, que procura com empenhos
ser nela ocupada, constituindo toda sua maior felicidade em merecer al-
gum dia o nome de Vaqueiro. Vaqueiro, criador, ou homem de fazenda
são títulos honoríficos entre eles, e sinônimos, com que se distinguem aque-
les a cujo cargo está a administração e economia das fazendas."
Estabelece comparação entre três léguas de terras, aptas para a cria-
ção do gado, que não carecem de mais de dez ou doze pessoas, e sendo
próprias e destinadas às lavouras de cana-de-açúcar e tabaco, exigem para
um estado de perfeição de oitocentos a mil escravos. Propõe um projeto de
estabelecimento de novos arraiais, no Maranhão e Pará, e reconhece que
os brancos têm feito tiranias aos índios.
Fala da criação e remessa de gado, da introdução de negros, do pe-
noso trabalho destes, da alimentação dos moradores do sertão, das migra-
ções internas, dos interesses da Metrópole, que defende repetidas vezes.
"Ela ( a metrópole) estabeleceu para esse fim ( seus interesses) as colô-
nias: tem direito de poder restringir, e regular este, ou aquele comércio,
esta ou aquela ocupação e agricultura, que nelas se opuser aos mesmos
interesses, e com muito maior razão a respeito das referidas colônias, para
onde nos não temos só visto sair, tudo quanto nela vale. Portugal tem-se
liberalmente despovoado em benefício das mesmas colônias, e nos vemos
nelas povoadores de toda condição."
Dá grande atenção às Minas Gerais, trata dos vícios a emendar e da
agricultura de subsistência. Propõe um plano para o desenvolvimento do
Pará e Maranhão, cuida dos problemas de várias capitanias, dos melho-
res portos, das relações entre as capitanias do interior e as da marinha, e
da dependência de umas das outras, da comunicação e comércio entre elas,
da influência de umas sobre as outras, das maiores e menores, tudo, po-
rém, subordinado aos interesses da metrópole. Sustenta que o ouro e as
Minas são a perdição de Portugal, e que a do Pará embora conquistada
com o auxílio das outras capitanias vive em total separação delas comu-
nicando-se só com a Metrópole, e quer que as capitanias estabeleçam uma
recíproca dependência.
Por essa simples enumeração dos problemas de que trata o "Roteiro",
bem se vê sua enorme importância que bem o coloca entre os maiores es-
tudos que se fizeram no período colonial.
Pereira Caldas passou o governo e a chefia da comissariaria em 1789.
Como se vê, tratava-se de um governador experimentado e de uma per-
sonalidade forte, a quem Capistrano de Abreu viria a atribuir a autoria
do "Roteiro do Maranhão a Goyaz pela capitania do Piauhy" <13 >.
Escrevendo ao Barão do Rio Branco, a quem chamava mestre e amigo,
Capistrano de Abreu perguntava e comentava: "Nos seus estudos tem en-
contrado alguma cousa sobre João Pereira Caldas, governador do Piauí e

(13) RIHGB, 62, parte 1, 60-161,

420
Maranhão e depois comissário da demarcação do Norte? No terceiro volu-
me do Patriota vem com o título de 'Roteiro do Maranhão a Goiás' um tra-
balho que é talvez o que de mais profundo e filosófico se escreveu nos
tempos coloniais a respeito de certos aspectos da nossa sociedade. Suspeito
que Caldas é o autor; mas para demonstrá-lo precisaria de ter alguns ele-
mentos para sua biografia, elementos de que não disponho" <rn.
Capistrano de Abreu quando estava com um problema histórico cos-
tumava apresentá-lo a todos seus amigos, que com ele formavam uma ver-
dadeira comunidade histórica. Ao Barão de Studart perguntava, responden-
do à informação que deste recebera: "f: muito longo um trabalho de João
Pereira Caldas advogando a união do Ceará e Pará? Se não for, mande-me
cópia. Creio que Caldas é o autor de importante livro anônimo; talvez
este memorial ou cousa que o valha me ajude na identificação" ' 15 >.
Capistrano de Abreu escrevendo ao Barão de Studart em 1890 per-
gunta-lhe: "Nos seus estudos tem encontrado alguma cousa sobre João
Pereira Caldas, governador do Piauí e Maranhão (Pará) e depois comis-
sário da demarcação do Norte? No terceiro volume do Patriota vem com
o título de 'Roteiro do Maranhão a Goiás' um trabalho que é talvez o que
de mais profundo e filosófico se escreveu nos tempos coloniais a respeito
de certos aspectos da nossa sociedade. Suspeito que Caldas é o autor,
mas para demonstrá-lo precisaria de ter alguns elementos para sua bio-
grafia, elementos de que não disponho" ( 1 6 >.
Mais tarde Studart lhe informara de um trabalho de João Pereira
Caldas advogando a união do Ceará ao Piauí; Capistrano pede-lhe que
lhe mande uma cópia. "Creio que Caldas é o autor de importante livro
anônimo; talvez esse memorial ou cousa que valha me ajude na identifi-
cação" (J 7 >.
Noutra carta em 1901 repete o pedido, sua impressão sobre a autoria
e declara novamente que o livro era no seu "entender uma das coisas mais
profundas que se escreveu sobre o Brasil colonial" <18). Volta a falar em
1906 repetindo tratar-se de um mistério bibliográfico 0 9 1 e do mesmo mo-
do em 1907 <20 >.
Até hoje o mistério permanece insolúvel, e a obra é realmente um
dos maiores livros que se escreveram sobre o Brasil colonial.

(14) Correspondência de Capistrano de Abreu. ed. org. por José Honório Rodrigues, Rio de
Janeiro, Instituto Nacional do Livro, vol. J, 1954, carta de 15 de julho de 1890, pp. 131-132;
2.• ed . , id., id.
(15) Correspondência cit., carta de 18 de agosto de 1901, vol. I, 150; 2.• ed., id., ld.
(16) Correspondência de Capistrano de Abreu, ob. cit., 1.• ed., 1954, 1 vol. 131 - 132; 2.• ed .
1977, 1 vol. 131-132.
( 17) Correspondência cit. 150.
(18) Ob. cit .• 158.
(19) Ob. cit. , 174.
(20) Ob. cit., 178.

421
LIVRO DÉCIMO
A crônica geral colonial
CAPITULO I

A CRÔNICA GERAL
1. A crônica geral. 2. Pero de Magalhães Gândavo. 3.
Gabriel Soares de Sousa. 4. Diogo Gomes Carneiro. 5. Ma-
nuel de Morais. 6. Antônio Maria Bonucci. 7. Inácio
Barbosa Machado. 8. Francisco José da Serra Xavier.

1 . A crônica geral

A crônica e a história examinadas até agora são conjunturais, isto é,


descrevem e narram as aparências dos acontecimentos e episódios espe-
ciais. Mesmo quando se procura recriar a história especial de um período
ou de uma fase, raramente se buscam as origens estruturais daqueles acon-
tecimentos. :e certo que a crônica é mais narração do instante do aconte-
cimento, que recriação e compreensão da estrutura fatual e espiritual, ta-
refa da História. Mas ambas andaram bastante confundidas até aqui, e a
própria história foi mais "aparencial" que estrutural. Também é verdade
que por serem especiais ou parciais, dedicadas a um ou mais aspectos,
mutilaram a estrutura da unidade, que só se revela na história geral. Além
disso algumas crônicas e histórias, como as dos jesuítas, porque elegem
um só aspecto, o espiritual missionário, da realidade, quebram a continui-
dade dos sucessos históricos, que são sempre únicos e singulares, e rompem
a unidade complexa da vida, porque esta é ferida na unilateralidade da
visão. Noutras, como na crônica e história dos holandeses no Brasil, se o
tomarmos como um período histórico, em que a vida histórica é apreendi-
da na multilateralidade dos seus aspectos, a recriação é frustrada porque é
quebrada por um repouso finito, inexistente na realidade histórica, que
flui sem cessar. Se não considerarmos a história dos holandeses como um
período, e sim como uma mera divisão cronológica, a mutilação é ainda
mais grave porque a rutura se faz no momento em que não há finito, nem
sequer teórico, no infinito da história.
Deste modo só a crônica e a história gerais representam realmente a
recriação "momental" e fundamental da plenitude dos sucessos contínuos,
aparenciais nas conjunturas e substanciais nas estruturas. Mas como a crô-
nica geral é a apreensão narrativa no momento da produção, quando tam-
bém surge a documentação, cabe-lhe a primazia na apreciação crítica. Já
a história geral representa uma recriação posterior, que se nem sempre
aguarda a crônica, espera utilizar-se dos documentos acessíveis. Muitas
vezes ela também se mutila nas especializações gerais, isto é, quando a visão
é especial porque concentrada numa só atividade humana, religiosa, econô-

425
mica, social, sem relacioná-la ao conjunto da atividade histórica, e geral
porque não se restringe temporalmente, antes se destaca na totalidade do
passado delimitado.
A historiografia econômica e social geral do Brasil seiscentista nutre-
se de crônicas contemporâneas que não tiveram o objetivo de recriar o
passado, mas de julgar o presente vivo e real. Com o tempo tornaram-se
documentos históricos, e pela autoridade dos autores, amplitude da visão,
e caráter narrativo, transformaram-se em histórias "epocais" com entrada
numa historiografia.
Nessa fase surgem o primeiro cronista-mor oficial e o primeiro histo-
riador geral do Brasil, Diogo Gomes Carneiro e Frei Vicente do Salvador.
Se o primeiro gozou do título sem deixar obra, o segundo enche uma época
da historiografia.

2 . Pero de Magalhães Gândavo


Vida
A historiografia brasileira se 1mcia realmente com a obra de Pero de
Magalhães Gândavo. As cartas e informações dos jesuítas, por melhores
que sejam, constituem elementos primitivos da literatura histórica brasi-
leira. A própria História de Gândavo não passa de uma crônica, inferior
como informação e criação à Narrativa Epistolar de Fernão Cardim e ao
Tratado de Gabriel Soares de Sousa, este o maior autor do século XVI,
certamente, dos maiores de todo o período colonial.
Pouco se sabe de sua vida. Natural de Braga, descendia de flamengos.
Barbosa Machado (tl escreveu que ele foi humanista e latino e abriu escola
pública entre o Douro e o Minho. De Barbosa Machado até os modernos
historiadores, como Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, passando pelo
erudito biobibliógrafo Inocêncio da Silva, nada se acrescentou ao pouco
que fora divulgado pelo primeiro dos bibliógrafos portugueses. Foi Joa-
quim da Silveira quem propôs a pronúncia esdrúxula de Gândavo e não
Gandavo, geralmente aceita, ainda que com fundamentos outros, como é
o caso de Emmanuel Pereira Filho (2 >.
Luís de Matos trouxe novas achegas à minguada biografia de Gân-
davo, ao mostrar que ele foi provavelmente copista da Torre do Tombo,
e em seguida provedor da fazenda da capitania de Salvador da Bahia. Diz
ele que aparecem sete documentos que dizem respeito a Pero de Magalhães,
mas hesita em identificá-los como uma única pessoa, embora isso seja
possível no caso de Pero de Magalhães, morador em Lisboa, em 1577,
criado de D. Álvaro de Castro, e Pero de Magalhães, moço da câmara de
D. Sebastião, que em 1576 era copista da Torre do Tombo. O primeiro, que
tivera acesso carnal com uma escrava da guarda e fora condenado a degre-

(1) Diogo Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana. Lisboa, 1752, III, 591.
(2) Joaquim da Silveira, "Gândavo e não Gandavo", Bras/1/a , Coimbra , Ili, 1946, 525-528, e
Emmanuel Pereira Filho, • As duas versões do Tratado de Pero Magalhães de Gândavo", Revista
do Livro, Instituto Nacional do Livro, março-Junho de 1961, n.°' 21 -22, 83-107.

426
do na África, pediu fosse comutada sua pena para fora de Lisboa, "porque
ele era latino e se queria graduar em alguma ciência na Universidade de
Lisboa". No alvará de 1576, relativo ao moço da câmara de D. Sebastião,
copista da Torre do Tombo, se lhe faz a mercê de nomeá-lo provedor da
fazenda em Salvador na Bahia, por seis anos. Luís de Matos perguntava
se estavamos em presença de dois homônimos ou de uma só personagem.
Achava difícil decidir-se; preferia a primeira hipótese, mas admitia a se-
gunda (3 >.
Realmente, a unidade da personagem pode ser reconhecida, porque
Gândavo era um latino, e pela sua formação bem podia ser um copista da
Torre do Tombo, um criado grave, um moço da câmara de D. Sebastião,
e finalmente um provedor da fazenda, um prêmio a seus serviços à nobreza
e a D. Sebastião. Era um latino bem reputado com as Regras que ensinam
a maneira de escrever a orthographia da lingua portuguesa (4 ).
Ao contrário do que afirmou Rodolfo Garcia, deve ser o mesmo Pe-
ro de Magalhães , nomeado por alvará de 29 de agosto de 1576 provedor da
fazenda da capitania do Brasil, por tempo de seis anos (5).
Há uma tradição bibliográfica de que Gândavo teria vindo ao Brasil,
assim como a de que fora insigne humanista. Na "Biblioteca Luzitana. Au-
tores Portuguezes", de João Franco Barreto, inédita, uma das fontes de
que se serviu Diogo Barbosa Machado na sua Bibliotheca Lusitana (O), se
escreveu que Gândavo fizera a Historia da Província de Santa Cruz como
"testemunha de vista" <7 >. Barbosa Machado repetiu João Franco Barreto
e Inocêncio Francisco da Silva a Barbosa <8 >.
Oliveira Lima, John B. Stetson Jr. e Capistrano de Abreu acharam,
pela leitura do texto, mais que pelo documento acima citado, que não co-
nheciam, que Gândavo esteve no Brasil (9) .
Pedro Calmon discordou dessa opinião, repetindo a citação dos do-
cumentos já referidos da Torre do Tombo, e afirmou não haver vestígio
de sua passagem pelo Brasil (lO). Hélio Viana, baseado no apógrafo da
Biblioteca da Ajuda, destacou a redação diferente da introdução de Gân-
davo, na qual dizia: "onde por alguns anos me achei e coligi esta breve
informação na verdade, e a maior parte das coisas que aqui escrevo, vi e
experimentei" (t 1 >.

(3) Lufs de Matos , "Pero de Magalhães de Gândavo e o Tratado da Provfncla do Brasil",


Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira. outubro-dezembro de 1962. vol. Ili , n .0 4.
625-639 .
(4) Lisboa, I.• ed., 1574; 2.', 1590; 3.•, 1592.
(5) Existe cópia no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Conselho Ultramar/no, Regis-
tros, vide Nota 1, p. 25 da História do Brasil, do Visconde de Porto Seguro, 3.• ed., tomo 2.
(6) Lisboa, 1752, Ili, 591.
(7) Virgínia Rau e Maria Fernanda Gomes da Silva, Os Manuscritos do Arquivo da Casa
de Cadaval respeitantes ao Brasil, Coimbra. 1958, 11. 410.
(8) DBP, Lisboa, 1862, t. VI, 429-430 .
(9) Oliveira Lima, "Relação dos manuscrlptos Portugueses e Estrangeiros de Interesse para o
Brasil , existentes no Museu Britânico de Londres", RIHGB, 1903, t. 65, parte 2, 39; ). B. Stetson Jr.,
The Histories o/ Brazil . . . in Documents and Narratives concernlng the Dlscovery and Conquest of
Latin America, New York, 1922, vol. li, 125; Capistrano de Abreu, Introdução à edição do
Tratado da Terra do Brasil e História da Província de Santa Cruz, Rio de Janeiro, 1924, 17-18.
(10) História do Brasil. 1.0 volume, As Origens. Brasiliana, São Paulo; 2.• cd., 1951, 331,
n.• 2; e História do Brasil. Século XVI . As Origens. vol. l, Rio de Janeiro, 1963, 312, n .0 21.
(11) Hélio Viana. • A primeira versão do Tratado da Terra do Brasil de Pero de Magalhães
Gãndavo", RH , São Paulo, julho-setembro de 1953. 89-95.

427
Esta mesma redação comprovando sua vinda ao Brasil se encontra
no apógrafo do Museu Britânico, que Hélio Viana não conheceu 02l. Mas
é evidente que na oferta do livro ao Cardeal D. Henrique, segundo o texto
da Biblioteca do Porto, o primeiro do Tratado a ser publicado, Gândavo
escreveu "imaginei comigo que podia trazer destas partes com que desse
testemunho de minha pura intenção" 03).
Além disso, na oferta a Dom Lionis Pereira, na edição da Histó-
ria 04l, Gândavo confessou "escrever como testemunha de vista".
No Brasil deve ter estado os seis anos de sua nomeação como prove-
dor-mor. Escreveu Capistrano de Abreu que "atendendo às minuciosida-
des da descrição da Bahia e dos Ilhéus, pode-se afirmar seu conhecimento
direto das duas capitanias; é possível mesmo que estivesse em São Vicen-
te, de cujas barras dá idéia tão precisa, e em outras capitanias intermédias.
Em Pernambuco, certamente não pisou" (15).
Deve ter escrito o livro quando de volta, no Reino, pois há várias
referências no texto da História que confirmam esta hipótese, como, por
exemplo, quando diz: "nenhum pobre anda pelas portas a mendigar como
nestes Reinos" <16 l, ou quando escreve sobre aves que "os açores são como
os de cá" 0 7 l.
Os Textos
Até recentemente se supôs que Gândavo teria escrito duas obras: o
Tratado da Terra do Brasil e a Historia da Província de Santa Cruz. Esta
última foi publicada em vida do autor (Lisboa, 1576) e a primeira apa-
receu inicialmente em 1826 na Collecção de Noticias para a Historia e
Geographia das Nações Ultramarinas que vivem nos domínios portugue-
zes <18 >. Para a sua ediçã,1 aproveitou-se um manuscrito do século XVI,
perdido hoje, ao que parece, segundo afirma Luís de Matos (I9l. Uma se-
gunda edição que se fez no Brasil utilizou-se da cópia do século XIX da
Biblioteca Municipal do Porto, que Afrânio Peixoto, autor da Advertência,
julgava ser o manuscrito original (2 0l, e que A. de Magalhães Bastos mais
tarde mostrou tratar-se de cópia (21 l.
Afora estes dois existem ainda o manuscrito da Biblioteca Nacional
de Lisboa (L), os da Academia das Ciências de Lisboa (C e C), o do
Museu Britânico (B) e o da Biblioteca da Ajuda (A) <22 l.

(12) Tratado da Província do Brasil, ed. de Emmanuel Pereira Filho, Instituto Nacional do
Livro, Rio de Janeiro, 1965.
(13)Tratado da Terra do Brasil, ed. do Anuário do Brasil, Rio de Janeiro, 1924, 23-24.
(14)Anuário do Brasil, Rio de Janeiro, 1924. 74.
(15) "Introdução" à edição do Anuário, 1924, 18.
(16) Fine p. 93.
(17) Fine p. 110.
(18) Lisboa, 1826, vai. IV.
(19)"Pero de Magalhães Gândavo e o Tratado da Província do Brasil", Boletim Internacional
de Bibliografia Luso-Brasileira, .:>ut.-dez. 1962, vai. Ili, n.• 4, 625,639.
(20) Tratado da Terra do Brasil. II. História da Província de Santa Cruz, Anuário do Brasil,
Rio de Janeiro, 1924.
(21) Catálogo dos Manuscritos Ultramarinos da Biblioteca Pública Municipal do Porto,
Lisboa, 1938, 114-115.
(22) Luís de Matos, ob. cit., 632, dá as cotas dos seis manuscritos.

428
O do Museu Britânico foi dado a conhecer por Frederico Francisco
de la Figaniere <23 >, assim como o da Ajuda foi noticiado por Carlos Al-
berto Ferreira <24 >.
A primeira e importante conclusão de Luís de Matos era esta: "o
estudo dos manuscritos do Tratado prova que estamos em presença de duas
redações diferentes e variações do texto". A segunda era a de que o texto
da Academia das Ciências de Lisboa parecia ter sido provavelmente o que
servira à impressão da primeira edição, embora páginas antes tivesse afir-
mado julgar que o texto para esta edição desaparecera <25 >. A terceira, a
de que os dois manuscritos melhores para uma edição crítica do Tratado
seriam o da Biblioteca Nacional de Lisboa e o do Museu Britânico <26 >.
O melhor estudo dos vários textos foi realizado pelo filólogo brasilei-
ro Emmanuel Pereira Filho <27 >, que chegou à conclusão convincente de
que a Historia é a redação definitiva do Tratado, que aparece em tantas
cópias alteradas pelos copistas. O texto da Historia existe na Biblioteca
do Escorial.
Emmanuel Pereira Filho mostrara antes que Gândavo escrevera duas
versões do Tratado, uma dedicada à Rainha D. Catarina, e outra dedicada
ao Cardeal Infante D. Henrique. "Estas duas versões que deveriam ter sido
redigidas entre 1567 e 1569, foram posteriormente (entre 1570 e 1572),
refundidas e ampliadas num trabalho definitivo que recebeu o título de
Historia da Província de Santa Cruz" <28 >. Apesar de sustentar tão clara e
lucidamente esta opinião, Pereira Filho editou o manuscrito do Tratado
existente no Museu Britânico. Assim, dos textos considerados melhores
só falta editar o da Biblioteca de Lisboa, embora, na realidade, o que pa-
rece fora de dúvida é que o Tratado, como forma primitiva da Historia,
não merece mais ser reeditado, e sim esta última.

A BIBLIOGRAFIA
t. Historia da Provlncía de Santa Cruz a ·q ue vulgarmente chamamos Brasil.
Lisboa, 1576. Obra raríssima, segundo o Catálogo da Exposição de História do
Brasil, Rio de Janeiro, 1881, n.º 6.
2. "Tratado da Terra do Brasil, no qual se contém a informação das cousas
que há nestas partes", in Collecção de Notícías para a Historia e Geographia das
Nações Ultramarinas que vivem nos domínios portuguezes, Academia Real das Ciên-
cias, Lisboa, 1826, vol. IV, 181.
3. A "Introdução" à edição da Academia das Ciências de Lisboa foi repro-
duzida na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 3.• erl., 1840,
t. 2, 1916, 437-438.
4. "Histoire da la Province de Sancta Cruz", in Henri Ternaux-Compans, in
Voyages,rélations et mémoires originaux pour servir à l'Histoire de la découverte de
l'Amérique, Paris, Arthur Bertrand, 1837.

(23) Catálogo dos manuscritos portugueses existentes no Museu Britânico, 1858. 164, e por
Oliveira Lima, Relação dos Manuscritos Portugueses e estrangeiros de interesse para o Brasil exis-
tentes no Museu Britânico de Londres, Rio de Janeiro, 1903.
(24) Inventári o dos manuscri tos da Biblioteca da Ajuda referentes â América do Sul , Coimbra,
1946, 681.
(25) Lufs de Matos, comparar páginas 632 e 638.
(26) Ob. cit., 638-639.
(27) Tratado da Província do Brasil, Instituto Nacional do Livro, 1965, 9-49.
(28) • As duas versões do Tratado de Pero de Magalhães Gândavo", Revista do Livro, 21-22,
março-junho 1961, 83-107.

429
5 . " Historia da Provincia de Santa Cruz ... ", Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, 1858, t. XXI, 329-388.
6. Tradução inglesa da História e do Tratado in John B. Stetson Jr., Documents
and narratives concerning the discovery and conquest of Latin America, Cortez
Society, New York, 1922, 2 vols.
7. I. Tratado da Terra do Brasil. li. Historia da Província de Santa Cruz,
Anuário do Brasil, Rio de Janeiro, 1924. Advertência de Afrânio Peixoto. Nota Bi-
bliográfica de Rodolfo Garcia. Introdução de Capistrano de Abreu.
8. Tratado da Provincia do Brasil. Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro,
1965. Apresentação de A. G. Cunha. Introdução de Emmanuel Pereira Filho.

ESTUDOS SOBRE GÃNDA VO


1. Diogo Barbosa Machado, Biblioteca Lusitana, Lisboa, 1752, vol. III , 591.
2 . Inocêncio Francisco da Silva, Diccionario Bibliographico Portuguez , Lisboa ,
1862, t. 6, 429-430 e vol. 17, 217-218.
3. Capistrano de Abreu, "Notas para a nossa História", Gazeta Literária, Ili,
n.º 152, Rio de Janeiro, 1887, 361, reproduzidas in Revista do Arquivo Público
Mineiro, 1901, VI, e depois in Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil, Rio de
Janeiro, 1930, 147-165, especialmente 159-165.
4. "Introdução" à edição do Anuário do Brasil de 1924, reproduzida in J.
Capistrano de Abreu, Ensaios e. Estudos, Rio de Janeiro, 1932, 2.ª série, 299-304.
5 . Joaquim da Silveira, "Gândavo e não Gandavo", Brasília, Coimbra, vol. Ili,
1946, 525-528.
6 . Hélio Viana , "A primeira versão do Tratado da Terra do Brasil de Pero de
Magalhães Gândavo \ Revista de Historia, São Paulo, 1953, n.º 15, 89-95.
7. José Honório Rodrigues, Historiografía dei Brasil, Siglo XVI, México, 1957,
35-39.
8 . Emmanuel Pereira Filho, "As duas versões do Tratado de Pero de Magalhães
de Gândavo", Revista do Livro, Rio de Janeiro, março-junho de 1961, 21-22, 83-107.
9. Luís de Matos, "Pero de Magalhães de Gândavo e o Tratado da Província do
Brasil", Boletim Internacional de Bibliografia Luso-Brasileira, Lisboa, outubro-dezembro
de 1962, vol. Ili, n.º 4, 625-639.

OUTRA OBRA DE GÃNDA VO


1. Regras que ensinam a maneira de escrever a ortographia da lingoa portu-
gueza, com um Dialogo que adiante se segue em defesam da mesma /ingoa . Lisboa ,
1574, 2.ª ed., 1590; 3.ª, 1592.
Significação da sua Obra
Vamhagen, ao louvar, na Historia Geral do Brasil, a obra de Gabriel
Soares, que tanto lhe deve, recorda que ela fora precedida, uns dez anos
antes, "pela obra muito mais lacônica, mas que lhe serviu de estímulo, do
gramático Pero de Magalhães Gândavo, autor que publicou o primeiro li-
vro em português acerca do Brasil, e que ainda mais estimamos, por haver
sido amigo de Camões, e por haver, por assim dizer, posto em contacto
com o nosso país o grande poeta" <2 0>. Como se vê, não é possível dizer
menos nem é possível considerar Gândavo muito mais lacônico que Soares,
que, sem ser difuso, foi enciclopédico.

(29) Historia Geral do Brasil , J.• ed ., São Paulo , s.d . , 8.

430
N·a introdução que Capistrano de Abreu escreveu, na edição de 1924,
deu os poucos dados biográficos que se sabiam, revelou não ter percebido
que o Trmado não é senão uma forma rudimentar da Histúria, calculou
sua chegada ao Brasil antes de 1573, e pelo conhecimento do texto afirmou
que Gândavo conhecia bem a Bahia e Ilhéus. devia ter estado em São Vi-
cente e não devia ter pisado em Pernambuco. "Conquanto chame história
ao trabalho publicado em vida, o nome assenta-lhe mal ... A sua história
é antes natural que civil; o mesmo se pode afirmar do Tratado" 1:10). Para
Capistrano, seus livros são uma propaganda de imigração; ele revela instin-
to geográfico e tem inspiração utilitária. "É um espírito indagador, curioso,
convicto de que sob a aparência das coisas se escondem mistérios, uma
vez indicando-os apenas, outras vezes revelando-os." Considera Gândavo
teólogo, amante do mistério, e um bom observador das coisas sociais 1:11 l.
Rodolfo Garcia, na nota especial que redigiu para a terceira edição
da His1úria Geral do Brasil de Varnhagen <32 l, compendiou o que se sabia
de Gândavo e afirmou que este não devia ser o provedor da fazenda no-
meado em 1576, quando tudo fazia crer que se tratava da mesma
pessoa 1·:i:ll.
Na His1ória, conta Gândavo rapidamente o descobrimento, dá o nome
dos primeiros donatários, fala das plantas, dos produtos, frutas, animais
e bichos venenosos, das aves e dos peixes, dos naturais, isto é, dos índios,
e termina apregoando os louvores e grandezas da terra. Com ele temos
a primeira revelação histórica do Brasil nos seus setenta primeiros anos,
quando estávamos no quarto governo geral e já possuíamos um bispado.
A História é um livro de circunstância, embora o primeiro a assumir
caráter de composição histórica, superior em sua elaboração às cartas e re-
latórios dos Jesuítas. Ele mesmo se apercebeu de que a história de Santa
Cruz estava sepultada em tanto silêncio, "pelo pouco caso que os portu-
gueses fizeram sempre da mesma Província, que por faltarem na terra
pessoas de engenho, e curiosas que por melhor estilo, e mais copiosamente
que eu a escrevesse".
Quer informar a todos aqueles que no Reino vivem em pobreza que
não duvidem escolhê-la para seu amparo, "porque a mesma terra é tal, e
tão favorável aos que a vão buscar que a todos agasalha e convida com re-
médio por pobres e desamparados que sejam".
Havia coisas dignas de grande admiração e de perpétua memória. "E
se os antigos portugueses, e ainda os modernos não foram tão pouco afei-
çoados à escritura como são, nem se perderam tantas antiguidades entre
nós, de que agora carecemos, nem houvera tão profundo esquecimento de
muitas coisas, em cujo estudo têm muitos homens doutos cansado, e revol-
vido grande cópia de livros sem as poderem descobrir nem recuperar da
maneira que passaram."

(30) Ed. Anuário do Brasil, 18.


(31) Ob. cit., 21.
(32) São Paulo, s.d., 24-2j.
(33) Vide Luís Matos, artigo citado, revista cit., 626,627.

431
Assim explica como e por que escreveu a História: "Como pois a es-
critura seja vida da memória, e a memória uma semelhança da imortali-
dade a que todos devemos aspirar, pela parte que dela nos cabe, quis mo-
vido destas razões, fazer esta breve história". . . "num estilo fácil e chão,
como meu fraco engenho me ajudou".
Camões reconheceu-lhe a capacidade de escritor, ao escrever nos ter-
cetos com que abre a História:
Tem claro estilo, engenho curioso
Para poder de vós ser recebido,
Com mão benigna de ânimo amoroso.

Quando Gândavo a escreveu já se começara a introduzir no Brasil


escravos negros, já se expulsaram os traficantes e corsários franceses e ingle-
ses; fortalezas e cidades como o Rio de Janeiro estavam criadas e funda-
das; e uma solenidade religiosa e lingüística mantinha os laços de uma
terra tão extensa. Já não existia um simples sistema de troca, pois havia
começado a economia agrícola, com o cultivo da cana, a fundação de en-
genhos, o aumento da imigração portuguesa e a disseminação dos estabe-
lecimentos europeus (34).
Emmanuel Pereira Filho, além de ter estabelecido que o Tratado não
era senão uma redação preliminar da História, de ter estudado melhor que
ninguém o problema do texto, de ter editado o códice do Museu Britânico,
fixou com melhor elemento de convicção o problema da data da redação.
Para ele datam as duas redações do Tratado do ano de 1572, sendo que
a primeira começou com os apontamentos tomados entre 1565 e 1570,
época em que presumia a estada de Gândavo no Brasil, terminando a re-
dação em 1572 <35 ). Capistrano de Abreu afirmara que o Tratado era an-
terior a 1567 e não posterior a 1573 (3 6 ).
O importante no livro de Gândavo não está na sua colheita sobre os
homens e as coisas do Brasil, que, embora inferior à dos padres jesuítas,
sobretudo Cardim, situa-se muito abaixo do de Gabriel Soares de Sousa;
está, sobretudo, na predominância da observação e da prática, que o iguala
aos grandes escritores de sua época.
Ele e seus companheiros que escreveram sobre o Brasil, África e Ásia
fazem parte daquela revolução cultural que trouxe importantes subsídios
à cultura portuguesa e em..,péia, pela revelação do homem novo, da flora
e fauna desconhecidas, de uma realidade histórica original. A observação
foi uma prática do conhecimento, estimulada pelo inédito dos homens e
coisas que os descobrimentos, a conquista e a colonização permitiram aos
portugueses. A noção da natureza e da humanidade ampliou-se pela pos-
sibilidade de comparar e distinguir. O espetáculo das semelhanças e dife-
renças da natureza e da humanidade é a contribuição maior destes primeiros
cronistas, e Gândavo, embora não seja o primeiro, porque os jesuítas o

(34) José Honório Rodrigues, Historiografia dei Brasil, Siglo XVI, México, 1957, 38.
(35) Tratado da Província do Brasil, ed. do Instituto Nacional do Livro, 1965, 38.
(36) Ed. do Anuário. 1924, 18.

432
precederam, tem a primazia da forma conjuntural· cronística, embora infe-
rior a Gabriel Soares de Sousa. Ele via a unidade essencial da humanidade
e estabelecia a diversidade profunda dos costumes e crenças.

3 . Gabriel Soares de Sousa


O maior de todos os cronistas dessa época é, porém, Gabriel Soares de
Sousa. Infelizmente não possuímos dados positivos sobre seu nascimento
e primeiros anos. Observando a naturalidade com que ele se referia às es-
teiras de tábua de Santarém e à pujança do rio Zezeré, quando se mete no
Tejo, Varnhagen foi levado a crer que essas comparações lhe eram fami-
liares e se referiam aos lugares em que se criara ou em que porventura
nascera. Assim, achou mais natural que Gabriel Soares de Sousa tivesse
nascido no Ribatejo em lugar de Lisboa, como afirma o Padre Barbosa
Machado (3 7 l.
Sabe-se agora seguramente que Gabriel Soares arribou ao Brasil em
1569 <3Sl. Segundo Frei Vicente do Salvador, veio em companhia de Fran-
cisco Barreto, de viagem para a India, e aqui ficou <39 >. Casou-se, fez-se
senhor de engenho de açúcar no Rio Jequiriçá e aqui residiu durante dezes-
sete anos, ou seja, até 15 86 <4 ºl, dedicando-se à lavoura e ao a~úcar, no
litoral. Tornou-se homem rico e poderoso, como prova o seu testamento feito
na Bahia, aos 1O de agosto de 15 84, de onde se vê que instituiu legados, deu
várias esmolas, determinou que se rezassem inúmeras missas em seu su-
frágio e de seus pais, e deu bens em usufruto a pessoas de sua família. Aí
declarou também que era possuidor de fazenda de raiz, com escravos, bois
de carga, éguas, outros móveis, índios forros, engenhos de açúcar, terrenos
na cidade de S. Salvador e nos arredores e muitas casas e foros de casas <41 >.
Gabriel Soares de Sousa teve um irmão, muito provavelmente, como
afirma Varnhagen, o próprio João Coelho de Sousa, de que Gabriel Soares

(37) Francisco Adolfo de Varnhagen, "Gabriel Soares de Sousa", RIHGB, 1858, t. 21, p. 456,
e Barbosa Machado, Blbllotheca Lusitana, t. 2, p. 321.
(JS) Coníonne se lê claramente no documento publicado pelo Pe. Serafim Leite nos ABN
(1942, v. 62, 348), "Capítulos que Gabriel Soares de Sousa deu em Madri ao sr. d . Crlstovam
de Moura contra os Padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil. Com umas breves res-
postas dos mesmos Padres que deles foram avisados por um seu parente a quem os ele mostrou". A
Separata é de 1943. Além disso, a armada de D. Francisco Barreto, em cuja companhia velo
Gabriel Soares, segundo nos conta Frei Vicente Salvador, saiu de Lisboa em fins de abril de ·t 569
(Diogo do Couto, Decada Nona, cap. 20, p. 153, Lisboa, 1786), e teria que chegar no mesmo ano.
Vamhagen, na sua dedicatória ao Instituto Histórico, que precede a primeira edição do Tratado
Descritivo, afirma que Gabriel Soares de Sousa passou ao Brasil em 1570. Em 1858, ao escrever
sua memória apresentada ao Instituto sobre Gabriel Soares (RIHGB, t. 21, p . 455 e seguintes) afir-
ma que ele aqui chegou em 1565. Na 2.• edição da sua História Geral aceita como a data mais
certa da chegada o ano de 1567, baseando-se em que, na dedicatória com que ofereceu o Tratado
Descritivo a d. Cristóvão de Moura, Gabriel Soares diz ter aqui residido 17 anos, e em que, se-
gundo uma carta de Cristóvão de Moura, Gabriel Soares já estava na Europa em 1584. Vamhagen
(História Geral, J.• ed., p. 9) não transcreve essa carta. E então, de duas uma: ou essa carta não
exprime a verdade, ou Gabriel Soares errou ao declarar que residiu 17 anos no Brasil, pois não
resta hoje dúvida de que ele aqui aportou em 1569.
(39) Fr~i Vicente do Salvador, História do Brasil, São Paulo, Cia. Melhoramentos, s.d., p. 350.
(40) Vide as duas notas anteriores.
(41) Testamento publicado na edição do Tratado Descrltívo de São Paulo, Cia. Editora Na-
cional, 1938, f.oJ . XXIV-XXXIII. Sua primeira publicação ocorreu no Brasil Histórico, 2.• série, de
Melo Morais (Rio de Janeiro, 1866, t. I, p. 248 e 251-52). Na edição de Pirajá da Silva (São Paulo,
Livraria Martins, 1945), encontra-se o Testamento com a aprovação, abertura e termo (pp. 47-55).
O próprio Gabriel Soares descreve os seus engenhos às pp. 167 e 169 do Tratado (ed. de São
Paulo. 1938).

433
trata no capítulo 20 da parte primeira do seu Tratado, o qual, indo pelo
sertão do Brasil durante três anos, colheu algumas amostras de ouro, prata
e pedras preciosas, que lhe enviou antes de falecer no mesmo sertão (42 >.
Entusiasmado com as descobertas de João Coelho, Gabriel Soares, tempos
passados, dirigiu-se à Corte e requereu concessões e privilégios, para o mes-
mo fim (43 >. Houve porém tal dilatação no despacho de seus requerimentos,
que somente nos meados de dezembro de 1590 foram os mesmos deferidos.
As concessões obtidas em 18 de dezembro de 1590 consistiram: 1) em ser
nomeado Capitão-mor e Governador da Conquista e Descobrimento do Rio
S. Francisco, com autorização para escolher sucessor; 2) no direito de prover
todos os ofícios de justiça e fazenda; 3) em vários hábitos, tenças e outras
mercês aos seus parentes que o acompanhassem; 4) no favor de conceder
o foro de cavalheiros fidalgos até cem pessoas que o acompanhassem; 5)
na faculdade de fazer promessas de mais recompensas aos que se distin-
guissem; 6) na licença de tirar das prisões e levar com ele tÓdos os con-
denados que escolhesse, com disposição para mineiros, oficiais mecâni-
cos, etc.; 7) na licença para levar também quaisquer degredados condena-
dos para outras paragens; 8) na licença para prosseguir, querendo, no des-
cobrimento além do S. Francisco; 9) numa ordem de lhe darem, a fim de
que o acompanhassem, duzentos índios das aldeias da Bahia. A essas con-
cessões acresceram outras de 27 de janeiro de 1591, no sentido de se lhe
dar embarcação e mantimentos para todos que deviam acompanhá-lo, e a
mercê de 500 quintais de algodão em caroço <44 >.
Com todas essas concessões partiu Gabriel Soares de Sousa de Lisboa
na urca flamenga chamada Grifo Dourado, a 7 de abril de 1591, com 360
homens e quatro religiosos carmelitas, um dos quais era Frei Jerônimo de
Canavezes, que depois foi Provincial de sua Ordem (4 5 ). A expedição ma-
logrou completamente, adoecendo muitos de seus componentes, e, entre
eles, o próprio Gabriel Soares, que veio a falecer, em poucos dias, pela
altura das cabeceiras do Rio Paraguaçu (46 >, perto de onde morrera seu
irmão.
Seu intento nessa jornada era chegar ao Rio São Francisco e depois,
por ele, até a Lagoa Dourada, a fim de descobrir as minas que imaginava
aí existissem. Seus ossos foram enviados à Bahia e sepultados no Mosteiro
de S. Bento, constando da lápide, conforme ele determinara em seu tes-
tamento: "Aqui jaz um pecador" (47).

(42) Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, São Paulo, Cia. Melhoramentos, s.d., p. 350.
(43) Vide "Propóstas e pedidos de mercês a El-Rel feitos em Lisboa por Gonçalo Vaz
Coutinho ao marquês vice-Rei, sobre o descobrimento de minas, invocando as condições outorgadas
a Gabriel Soares de Sousa ... • in Virgínia Rau e Maria Fernanda Gomes da Silva. Os Manuscritos
do Arquivo da Casa de Cadaval Respeitantes ao Brasil. Coimbra, 1955, vol. 1.0 , doe. 29, p. 15.
Neste inventário aparece registrada uma cópia da obra de Gabriel Soares de Sousa, vol. II, 1958,
doe. 482, pp. 409-410.
(44) Varnhagen, "Gabriel Soares de Sousa", RIHGB, 1858, t. 21, pp. 457-58.
(45) Varnhagen, "Gabriel Soares de Sousa", RIHGB, 1858, t. 21, pp. 457-458.
(46) Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, São Paulo, Cla. Melhoramentos, s.d., p. 350.
(47) Sobre o ltinétário de Gabriel Soares de Sousa e as circunstâncias de sua morte, cf.
nota de Rodolfo Garcia à História Geral de Varnhagen, 3.• ed., t. 2, 79-97. Ver José Lüís Baptlsta,
"História das entradas. Determinação das áreas que exploraram", RIHGB, 1915, t. especial, parte
II, 181-219, especialmente 197-202.

434
Seu principal livro, o Tratado Descritivo do Brasil em 1587, é o re-
sultado de suas observações durante sua primeira permanência de dezes-
sete anos no Brasil. Coube a Vamhagen não só restaurar o texto e o título,
como restituir a Gabriel Soares de Sousa a autoria do Tratado (48 l , que
durante muitos anos foi erroneamente atribuído por muitos autores, in-
clusive Ayres de Casal, Martius e Ferdinand Denis, a Francisco da
Cunha (49 ). A primeira edição de Varnhagen foi baseada no estudo casti-
gado de vários códices que encontrou nas várias bibliotecas européias, ao
todo 17, dos quais 1O em bibliotecas portuguesas.
Em Madri, enquanto esperava o despacho de seus requerimentos,
Gabriel Soares de Sousa tirou a limpo, conforme diz, muitas das notas re-
gistradas no Brasil e ofereceu seu livro a d. Cristóvão de Moura, em 1.0
de março de 1587. Não pretendeu, nas suas palavras, escrever história que
deleitasse com estilo e boa linguagem, antes quis registrar tudo que pôde
observar da cosmografia e descrição do Estado.
Evidentemente, como todos os cronistas da sua época, não faz his-
tória, mas escreve atualidade, procurando manifestar a grandeza e a ferti-
lidade da Bahia de Todos os Santos e dos demais Estados do Brasil. Elo-
gia a terra, dizendo que quase toda é muito fértil, sadia e fresca, lavada
de bons ares e regada de frescas e frias águas. f: muito mais fidedigno para
a Bahia que para as mais capitanias, sobre as quais escreveu baseado em
documentos e em testemunhos de outros.
Como julgaram Varnhagen e Capistrano de Abreu, o livro era vasto
como uma enciclopédia, interessante como um romance, fértil como um
punhado de roteiros de corografia e história natural. f:, sem dúvida, o mais
importante trabalho sobre o Brasil do século XVI. Na primeira parte, Ga-
briel Soares faz o roteiro geral da costa brasílica; a segunda parte contém
o memorial e declaração das grandezas do Brasil. f: aí que se encontram
a história da colonização da Bahia, a descrição topográfica de suas ilhas,
do Recôncavo, de seus engenhos e agricultura, da fauna e da flora, assim
como a notícia etnográfica do gentio tupinambá que povoava a terra. Tra-
ta, assim, muito especialmente, da Bahia, de suas riquezas, de sua agricul-
tura e de seus engenhos.
No Proêmio, Gabriel Soares, depois de louvar a terra e os seus man-
timentos e pleitear uma melhor solicitude de S. Majestade para com o
Estado do Brasil, chama atenção dos perigos em que vivia este, sempre
ameaçado pelos corsários, sem fortificações que pudessem resistir a qual-

(48) José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 4.• ed., 354, 391-392.
(49) Ainda em 1889, o Barão de Studart publicou na Tri buna Commercial alguns trechos de
um volume intitulado "Descrição geográfica da América Portuguesa" por ele encontrado na Sala
de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa. O Barão considerava, então, como não conhecido
o autor, e dizia que essa obra se completava, nas informações, com a de Gabriel Soares. Quando
publicou, na RIC (t. 20, 1906, pp. 220-228), as suas • Achegas à geografia do Ceará", repetiu o que
escrevera na Tribuna Commercial. declarando, apenas, que se convencera, depois da leitura da
edição de Varnhagen. que o manuscrito • Descrição geográfica da América Portuguesa" não era
senão a "Noticia do Brasil", ou seja, o Tratado Descritivo. AI se reproduz o trecho correspondente
ao Ceará, segundo a edição da Academia das Ciências. ou seja, a edição que mereceu as criticas
severas de Varnhagen e motivou as suas Reflexões Críticas sobre o escrípto do século XIV (slc)
impresso com o título de Notícia do Brasil. . Lisboa, Typ. da Academia, 1839.

435
quer afronta que se oferecesse, vivendo os moradores tão acoroçoados que
estavam sempre com as roupas entrouxadas para se recolherem para o
mato. E então, numa visão dos acontecimentos futuros, que se darão real-
mente poucos anos depois, pede a S. Majestade que acuda com brevidade
a essa afronta, "porque se os estrangeiros se apoderarem dessa terra custará
muito lançá-los fora dela, pelo grande aparelho que têm para nela se for-
tificarem, com o que se inquietará toda Espanha, e custará a vida de mui-
tos capitães e soldados, e muitos milhões de ouro em armadas e no apa-
relho delas ... " <50J

O TEXTO E AS V ÁRIAS EDIÇÕES

A obra permaneceu inédita durante séculos. Sua primeira publicação parcial


foi feita por Frei José Mariano da Conceição Veloso, quando diretor da Tipografia
Calcográfica ão Arco do Cego, sob o título de Descrição geográfica da América
Portuguesa, constando de 202 páginas e compreendendo 77 capítulos (51 >. A edição
foi suspensa devido à discordância entre Rodrigo de Sousa Coutinho e Frei Mariano,
conforme consta de uma nota encontrada no original que se conserva na Sala de
Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa, nota essa atribuída, pelo Barão de
Studart, a Ribeiro dos Santos.
A primeira publicação integral foi feita em 1825, pela Academia Real das Ciências
de Lisboa, sob o título de Notícia do Brasil, sem nome de autor, inçada de erros,
mutilada e eivada de incorreções 1ã2). A essa edição seguiu-se, em 1830, uma
impressão incompleta no Patriota Brasileiro, jornal editado em Paris, incluindo os
29 primeiros capítulos com o título de Roteiro Geral, servindo-se de manuscrito
existente na Biblioteca de Paris.
Eram tais os defeitos da edição feita pela Academia das Ciências em -1 825, da
obra de Gabriel Soares, que Varnhagen a propósito dela decidiu publicar suas. Re-
flexões Críticas (53). Aí não só apontou os principais erros e adulterações de que o
exempl.u: impresso estava inçado e os modos de corrigi-lo e melhor editá-lo, como
demonstrou a autoria de Gabriel Soares de Sousa, determinou posições geográficas,
identificou espécies naturais, corrigiu erros dos copistas e do próprio autor.
Em 1851, Varnhagen deu a lume a obra de Gabriel Soares com o título resti-
tuído de Tratado descriptivo do Brasil em 1587 e o subtítulo: "Edição castigada
pelo estudo e exame de muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal,
Espanha e França e acrescentada de alguns comentários à obra". A mesma impressão,
feita no Rio de Janeiro, na Tip. Universal de Laemmert. serviu para o t. XIV da
RIHGB (1851) e para a edição comercial, conforme deixa claro o exame dos exem-
plares em questão. Parece-nos a melhor edição, porque feita sob as vistas de Var-
nhagen.
A 2.ª edição do Tratado feita segundo o texto de Varnhagen, saída no ano
seguinte de sua morte, foi impressa no Rio de Janeiro, Tip. de João Inácio da Silva,

(50) Tratado descriptl110 do Brasil em 1587, São Paulo. 1938, p. 3.


(51) Plrajá da Silva. na sua edição da obra de Gabriel Soares (Noticia do Brasil, São Pauto,
1945), declara que Vamhagen não conheceu essa publicação Incompleta. Não ~ exato. Vamhagen
conheceu-a e regls1rou-a. Vide 4.• ed., vol. li, p. 9 da História Geral do Brasil.
(52) Noticia do Brazll, descrlpção verdadeira da costa daquel/e Estado, que pertence il. corôa
do reino de Portugal, sitio da Bahia de Todos os Santos. (Por Gabriel Soares de Sousa.) Lisboa,
Typ. da Academia, 1825. Exlr. da Col. de Notícias para a historia egeographiadas nações ultrama-
rinas . .. t. Ili, parte I.
(53) Vamhagen, Reflexões criticas sobre o escrlpto do seculo XIV (slc) Impresso com o
titulo de Noticias do Brasil no tomo J. 0 da Coll. de Not. Ultr. acompanhadas de Interessantes noticias
bibliographicas e impartantes lnvestigaçõe1 hlstori cas, Lisboa, Typ. da mesma Academia, 1839. ll
preciso notar que em 1839, no t. 1 da RIHGB, pp. 190-217 e 2.• ed. do J.o t., pp. 201-228, fol editado
o "Extrato de um Mss. que se conserva na Biblioteca de S.M. o Imperador e que tem por titulo
Descripção Geográfica da América Portuguesa, o qual consta dos capítulos 51 a 70 do Tratado de
Gabriel Soares de Sousa•.

436
em 1879, com o título em tudo igual à de 1851, apenas com o acresc1mo de "2.ª
edição mais correta e acrescentada, com um Aditamento" . Essa impressão é a mes-
ma que serviu de 2.• edição do t. XIV da RIHGB, saída em 1886. Realmente, do
exame atento dos exemplares de uma e outra, verifica-se que a folha de rosto é
perfeitamente igual, a paginação corre perfeitamente igual, a assinatura dos cadernos,
marcados tomo XIV e correndo de 1 a 52 é perfeitamente idêntica e até as diferen-
ças de papel, mais amarelado da p. 146 em diante, ocorrem em ambos os exemplares. A
própria folha de rosto de RIHGB é da Tip. de João Inácio da Silva, 1879, e corres-
ponde à folha primeira do primeiro caderno, que falta na edição comercial. Em
1879, porém, saiu apenas a edição comercial. Por qualquer motivo que não conhe-
cemos, a Revista só deu publicidade a essa impressão como 2.ª edição do t. XIV, em
1886, adicionando-lhe uma capa, em que se lê Tip. Perseverança. Não há dúvida,
porém, de que se trata de uma mesma impressão. O aditamento consiste de algu-
mas notícias biográficas de Gabriel Soares ( 5 4 ) , tiradas da 2.ª edição da História Ge-
ral "do editor Visconde de Porto Seguro". As diferenças que ocorrem na edição de
1851 são puramente ortográficas e, ainda assim, poucas. Em conclusão, temos em
1851 o tomo XIV da Revista e uma edição comercial; em 1879 a reedição comercial
e em 1886 a reedição da Revista.
Em 1939, a Companhia Editora Nacional deu uma terceira edição do Tratado,
segundo o texto de Varnhagen, tomando como base a impressão de 1879 (55) . A obra
foi ainda reeditada recentemente por Pirajá da Silva, sob o título de Notícia do Bra-
sil (56), com introdução, comentários e notas do editor, que diz ter-se servido da edição
de 1879, que considera a melhor. Entretanto, conforme já acentuamos, consideramos
melhor a de 1851, porque feita sob as vistas de Varnhagen. Quando saiu a de 1879,
Varnhagen havia falecido no ano anterior e o próprio Aditamento não foi escrito
especialmente para essa edição, mas extraído da 2.' edição de sua História Geral (57).
Nova edição no texto original espanhol da Biblioteca Real de Madri foi pre-
parada por Cláudio Ganns, reproduzindo as notas de Varnhagen (58) e recente-
mente o pesquisador Eliseu de Araújo Lima descobriu em Espanha novo códice,
que parece o melhor, segundo J. A. Soares de Sousa. O texto se encontra no Ita-
maraty.

Os Capítulos
Gabriel Soares de Sousa é também autor de outro escrito que só mui-
to recentemente foi dado a lume pelo Pe. Serafim Leite, que o encontrou
no Arquivo Geral da Companhia de Jesus, sob o título de "Capítulos que
Gabriel Soares de Sousa deu em Madri ao sr. d. Christovam de Moura con-
tra os padres da Companhia de Jesus que residem no Brasil. Com umas
breves respostas dos mesmos padres que deles foras avisados por um seu pa-
rente a quem ele mostrou" (59 >. Esses "Capítulos" constituem, na opinião
do Pe. Serafim Leite, o documento mais antijesuítico do Brasil do sé-
culo XVI.
Na introdução que precede essa publicação, o editor lembra que, no
Tratado Descritivo, Gabriel Soares de Sousa louvou a Companhia de Jesus,

(54) Publicado em artigo RIHGB, 1858 , t. XXI, 455-468.


(55) Tratado descriptivo do Brasil. Edição castigada, etc. 3.• edição. São Paulo. Cia. Editora
Nacional , 1938.
(56) São Paulo, Livraria Martins, s.d. Há novas reedições, como a 4.• (1971) da Brasiliana.
(57) Sobre a melhor edição e a crítica de texto feitas por Varnhagen, cf. José Honório
Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 4.• ed ., 391-394.
(58) Derrotero general de ta costa dei Brasil y Memorial de las Grandezas de Bahia. Cultura
Hispánica, Madri , 1958.
(59) ABN , 1942, v. 62, p. 347-381. Foi publicado também em Ethnos , Rev . lnst. Port. de
Arq . Hist. e Etnogr., li, Lisboa , 1941.

137
enquanto nos "Capítulos" escreveu o mais terrível ataque que ela sofreu
no nosso primeiro século. Ambos são de 1587 e ambos foram oferecidos
a D. Cristóvão de Moura. A única diferença é que a Resposta dos padres
é de 1592. Daí tira o Pe. Serafim Leite uma conclusão depreciativa do
caráter de Gabriel Soares, porque diz que enquanto louvava a Companhia
escrevendo para o público, denunciava-a às ocultas, em dois trabalhos
coevos (60l.
:É explicável que haja um pouco de rigor da parte do Pe. Serafim Lei-
te. Todavia é de certo modo compreensível a diferença que ele mesmo re-
conhece correr à conta dos índios, cuja defesa estava oficialmente a cargo
da Companhia (61 l, enquanto Gabriel Soares precisava destes para suas des-
cobertas auríferas.
Na oferta a d. Cristóvão de Moura, Gabriel Soares narra como nasceu
o Tratado Descritivo: "Obrigado de minha curiosidade fiz, por espaço de
17 anos que residi no Estado do Brasil, muitas lembranças por escrito, do
que me pareceu digno de notar, as quais tirei a limpo nesta Corte em este
quaderno, enquanto a dilação de meus requerimentos me deu para isso lu-
gar" (62 >. Demonstra, assim, que a escreveu sem qualquer intento que não
fosse o da observação exata do que se passava aqui, naquela época, e sem
a preocupação de estar a serviço de uma causa, enquanto que os "Capítu-
los" devem ter sido pensados e escritos em Madri, quando Gabriel Soares
requeria sua nomeação de Capitão-mor da conquista e descobrimento das
minas do Rio S. Francisco, para o que tinha mister de gentios e sentia a
oposição de parte da Companhia a seus interesses. :É conveniente lembrar
que uma das concessões que lhe foram feitas era exatamente uma ordem a
de se lhe darem 200 índios das aldeias da Bahia, a fim de o acompa-
nharem.
Diz Gabriel Soares, nesses "Capítulos": Além desta rezão estão os
reis informados que se não pode sustentar este Estado do Brasil sem ha-
ver nele muitos escravos do gentio da terra para se grangearem os enge-
nhos, e fazendas dela, porque sem este favor despovoar-se-á, ao que os
Padres não querem ter respeito, porque eles são os que tiram os proveitos
deste gentio, porque os trazem a pescar ordinariamente e por marinheiros
nos seus barcos e a caçar, e nos seus currais lhes guardam e cercam as
vacas, éguas e porcos; trabalham-lhes nas suas obras em todos os ofícios,
trabalham-se nas suas olarias, onde lhes fazem a telha, ladrinho e louça
necessária, trabalham-se com os carros, e nas roças, e no inverno andam-
lhes pelas praias buscando âmbar no que lhe dão muitos proveitos, no que
não querem que se aproveite a outra gente" (63 >.
Gabriel Soares escreveu os "Capítulos" não mais como um simples
observador desinteressado, mas como quem está defendendo, na Corte, seus
interesses de Capitão-mor dos descobrimentos das minas do Rio S. Fran-

(60) ABN, v. 62, p. 343. Há uma Separata, 1943, p. 7.


(61) ABN, v. 62, p. 343.
(62) Tratado Descrlptlvo do Brasil em 1587, São Paulo, Cla. Editora Nacional, 1938, p. XIII.
(63) ABN, v. 62, p. 379, 44.• Informação.

438
cisco. Para isso havia solicitado a concessão de índios das aldeias da Ba-
hia, aldeias essas que estavam subordinadas aos padres da Companhia de
Jesus.
Assim, se no Tratado Descritivo não há intenção política, nos "Capí-
tulos" há a _declarada atitude de opor-se imediatamente à Companhia que
haveria, por sua vez, de manifestar-se contrária à concessão de índios a
Gabriel Soares de Sousa. O próprio fato de ele conservar o Tratado Des-
critivo tal como o fora, aos poucos, compondo, através das lembranças
escritas que tirou a limpo na Corte, enquanto a dilação de seus requeri-
mentos lhe dava tempo para isso, sem introduzir-lhe alterações em face
de seus interesses do momento, considerando-se que essa obra tinha um
caráter duradouro e permanente, que não tinham nem podiam ter os "Ca-
pítulos", como indica a própria natureza dos dois escritos, parece-nos mo-
tivo suficiente para não se pôr de lado o caráter e a fidedignidade do
Tratado de Gabriel Soares de Sousa.
As informações que escreveu atacando os padres da Companhia fo-
ram examinadas e respondidas, na época, num documento subscrito pelos
seguintes jesuítas: Marçal Beliarte, que era o Provincial; Inácio Tolosa,
que o tinha sido; Rodrigo de Freitas, Procurador da Província; Quirício
Caxa, o autor da primeira biografia de Anchieta; Luís da Fonseca, reitor
do Colégio, Fernão Cardim, e mais dois cujos nomes foram mais tarde re-
cortados a tesoura e que deveriam ser, segundo o Padre Serafim Leite,
Luís da Grã e José de Anchieta, que se achavam, então, na Bahia, vindos
paraaCongregação Provincial ' 64 1. As "Respostas" trazem a data de 13 de
setembro de 1592.
Queremos chamar atenção para o fato de que tanto as informações
de Gabriel Soares de Sousa como a Resposta dos Padres devem ser clas-
sificadas naquela categoria de documentos em face dos quais, segundo nos
ensina a crítica interna (651, devemos ter a máxima reserva, de vez que am-
bos os lados são naturalmente parciais e procuram, antes de tudo, defen-
der e provar seus pontos de vista.
Para Varnhagen, Gabriel Soares é o verdadeiro patriarca da história
geográfica do Brasil, bem como o é sem contestação da civil e natural <0 61.
O Tratado é uma obra sem igual no século XVI. Os "Capítulos" como as
"Respostas" são testemunhos importantes para o conhecimento do século
XVI, mas obras partidárias e filhas de circunstância. O Tratado é a enci-
clopédia do século XVI, o maior livro que se escreveu sobre o Brasil dos
quinhentos.

4 . Diogo Gomes Carneiro


Não existe nenhuma Crônica Geral da época, embora possuíssemos
um cronista oficial, um dos mais curiosos aspectos da cultura portuguesa,

(64) ABN, v. 62, p. 345. Sobre cada um desses Jesuítas vide sua bibliografia em Serafim Leite,
ob. clt ., vols. VIII e IX.
(6S) cr. José Honório Rodrigues, Teoria (/a História do Brasil, 4.• ed., 405 -413.
(66) cr. "As primeiras negociações diplomáticas respectivas ao Brasil", RIHGB, t . 6S, parte
I, p. 431.

439
cargo criado em 1658 para o Brasil. Como lembrou Vieira Fazenda, "dos
tempos coloniais, salvo erro, nunca mais se cuidou desse assunto. Em uma
ou outra vereação das antigas Câmaras encontrou-se a obrigação de um
vereador escrever os acontecimentos do Município; mas parece que isto
foi sempre letra morta, e se alguma coisa foi feita, o trabalho consistiu
em notícias parciais e nunca em uma crônica geral do Brasil" (67 >. O ma-
logro da missão de Gomes Carneiro teve, talvez, como conseqüência, não
haver mais, durante todo o período colonial, determinação régia neste sen-
tido. Os cronistas oficiais do século XVIII são ultramarinos.
Diogo Gomes Carneiro, natural do Rio de Janeiro, nascido a 9 de
fevereiro de 1618, faleceu a 26 de fevereiro de 1676 (68 >. Foi secretário
do Marquês de Aguiar e aos 8 de maio de 1658 era nomeado, por alvará
régio, cronista da América (69 >. A provisão do Rei de 1. 0 de janeiro de
1661 (70>, que confirmava o Alvará, dizia que tendo em vista o que os
procuradores dos povos da Capitania do Estado do Brasil lhe haviam re-
presentado, mostrando-lhe, a exemplo do que se fazia na índia e em outros
Reinos, a conveniência de criar-lhes um cronista, que desde o princípio
até o presente escrevesse a história do mesmo Estado, decidira informar-se
com Francisco Brandão, cronista-mor do Reino e ficara convencido de que
era necessário uma pessoa que escrevesse as verdadeiras notícias e os fatos
dos vassalos brasileiros; pela boa informação que tinha de Diogo Gomes
Carneiro resolvera nomeá-lo cronista do dito Estado.
Nessa mesma provisão ordenava o Rei, a fim de que Diogo Gomes
Carneiro melhor cumprisse suas obrigações, que se lhe dessem todos os
documentos da Torre do Tombo, das mais partes do Reino e ultramari-
nas, onde estivessem e por ele fossem pedidos, e que houvesse de ordena-
do duzentos mil réis que lhe seriam pagos pelos três contratadores da
Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Já em junho de 1658, Diogo Gomes
Carneiro requeria o pagamento de seu ordenado (7 0, e ainda em novem-
bro de 1672 continuavam as diligências e consultas do Conselho Ultrama-
rino em relação a esse pagamento (72).
O Conselho havia encomendado ao conselheiro João Falcão de Sou-
sa que empreendesse uma diligência a fim de verificar como estava a his-

(67) J, Vieira Fazenda, "Chronista Official, Antiqua/has e Memórias do Rio de Janeiro",


RIHGB, t. 93, vol. 147, p. 81.
(68) Cf. Rodolfo Garcia. "O cronista do Brasil", Revista de philologla e de historia, 1931,
t. 1, fase. 1, pp. 52-57; Alberto Silva, O Cronista e a Crônica do Brasil, Centro de Estudos Bahia•
nos, n. 0 7, Salvador, s/d.
(69) Cf. "Inventário dos documentos referentes ao Brasil existentes no Arquivo de Marinha
e Ultramar de Lisboa", ABN, v. 39, 1921, doe. 778-779. "Resolução da Rainha Regente deferindo
o requerimento dos procuradores do Estado do Brasil, em que pediam um cronista, para crédito
das armas portuguesas daquele Reino. Nomeava o Dr. Diogo Gomes Carneiro com duzentos mil
réis de ordenado em cada ano. s. 1. 5 de abril de 1658", Virgínia Rau e Maria Fernanda Gomes
da Silva, Os Manuscritos do Arquivo da Casa de Cadaval respeitantes ao Brasil. Coimbra, 1956,
documento 227, p. 169. O documento se encontra no Códice 962 de Decretos, Consultas e Re-
soluções.
(70) José Justiniano de Andrade e Silva, Colleção chronologica de legislação portuguesa,
Lisboa, 1857, t. 9, p. 253, Cf. também o artigo de Rodolfo Garcia, acima indicado, pp. 53-55, e o
Inventário dos manuscritos da Biblioteca da Ajuda referente à América do Sul, feito por Carlos
Alberto Ferreira, Coimbra, 1946, p. 314.
(71) ABN, vol. 39, doe. 777.
(72) ABN, voi. 39, doe. 1.180.

440
tória do Brasil de que fora encarregado Gomes Carneiro. João Falcão,
cumprindo as determinações do Conselho, dirigiu-se à casa do cronista-mor
da América e referiu que este lhe mostrara vários livros, cadernos e manus-
critos que tinha comprado, juntado e feito para a composição da História.
Para informar o processo, Gomes Carneiro ofereceu a Falcão uma descri-
ção da forma e disposição que pretendia dar à obra. O Conselho Ultra-
marino, considerando o estado em que a mesma se encontrava, os estudos
e despesas feitos por Gomes Carneiro, deu parecer no sentido de que o
Rei ordenasse que as Câmaras da Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e
Angola fizessem a consignação de cinqüenta mil réis cada ano, para o pa-
gamento dos duzentos mil réis a que tinha direito o cronista do Brasil, o
qual se devia obrigar a, dentro de três anos, dar por feito, para se imprimir,
o primeiro tomo da História.
Achava ainda o Conselho que para animar o cronista do Brasil e
compensá-lo dos anos passados se lhe dessem 1.000 cruzados, a fim de que
se pagassem os livros que comprara, as pessoas que lhe copiaram outros ou
escreveram os seus ditados. Lembrava também que um príncipe da Euro-
pa mandara oferecer a Gomes Carneiro gratificação por esse trabalho, se
ele quisesse aplicá-lo por conta daquele país, que o mandaria imprimir em
seus Reinos, o que, dizia o Conselho, não conviria à autoridade real e
reputação da nação portuguesa; e justificava seu parecer dizendo que se
as heróicas ações que os vassalos de S.A. haviam obrado no Brasil, à
custa do seu trabalho, vidas, honras e fazendas, mereciam o nome de
grandes em todo o mundo, como era fama pública, não havia razão por que
S. A. deixasse de as estampar, quanto mais escrever, e que desse Reino e
não de outro elas deveriam ser espalhadas e comunicadas por escrito às
nações estranhas.
Levando em conta todas essas considerações do Conselho Ultramari-
no, decidiu-se, em 8 de fevereiro de 1673, que as Câmaras já referidas con-
tribuíssem com cinqüenta mil réis, que logo se dessem ao cronista-mor
duzentos mil réis e que João Falcão de Sousa se encarregasse de trazer ao
Conselho, de seis em seis meses, o que o cronista houvesse feito, para que
fosse presente ao rei "o cuidado que se tem, no que se obra em matéria
tão necessária" (73).
Como se vê, repetia-se com a nomeação de Diogo Gomes Carneiro
como cronista-mor, com a ajuda oficial que se lhe procurava dar e com
a importância que se atribuía à obra dessa natureza, o mesmo que se ve-
rificara em Portugal e na lndia. Quando, no início da expansão portugue-
sa, ultrapassaram os navegantes o Cabo do Bojador, considerado até então
intransponível, o Reino criou o cargo de cronista-mor, que coube, em
1434, a Fernão Lopes (1380-1460) <74>. Mais tarde, no grande período
de fastígio da lndia e de suas drogas, criara o Governo o cargo de cronis-
ta-mor da lndia, que foi dado a João de Barros (1496-1570). Ele deveria
traduzir na literatura os feitos e as grandezas do povo português. Do mes-

(71) ABN, vol. 39, doe. 1.180.


(74) Aubrey Bell, A Literatura Portuguesa, Coimbra, 1931, 95.

441
mo modo, agora que o Brasil era mais rico e dava mais proveito à Fazen-
da Real do que toda a India, segundo se lê nos Diálogos das Grandezas
do Brasil, e se havia lutado e conseguido expulsar o invasor holandês,
ajudando, com essa ação, a restauração de Portugal, em 1640, julgava-se
necessário também que um cronista-mor relatasse os feitos dos vassalos
da América Portuguesa.
Que a História do Brasil de Gomes Carneiro deve ter sido, pelo me-
nos em grande parte, escrita, depreende-se dos trechos dos documentos
que acabamos de citar. Nesse caso, ou ela se perdeu ou anda extraviada
nos arquivos portugueses. Não é preciso encarecer o serviço que prestaria
à história do Brasil quem se aventurasse a descobri-la e a trouxesse ao
conhecimento dos estudiosos brasileiros.
Gomes Carneiro escreveu alguns pequenos trabalhos e traduziu outros;
sua Oração Apodixica aos scismaticos da Patria <75 > situa-o como um dos
nossos primeiros moralistas políticos.

5 . Manuel de Morais
Manuel de Morais não chegou a escrever uma história ou um capítulo
da história do Brasil, como Diogo Gomes Carneiro, nem exerceu, como
este, o cargo oficial de cronista-mor. Mas são tantas as referências do-
cumentais a uma "História do Brasil" que o jesuíta teria escrito, que não
é possível esquecê-lo numa historiografia. Foi talvez J. de Laet o primeiro
a informar que Manuel de Morais, conhecedor da América e do' Brasil,
emendara seus livros e estava preparando na Holanda uma "História" que
levara consigo quando voltara ao Brasil <76 >. Foi Capistrano de Abreu
quem primeiro observou essa curiosa informação de Laet e a transmitiu a
Taunay, que a divulgou <77 >. Mas, antes dele, José Higino, nos arquivos ho-
landeses, apurara que Manuel de Morais compusera seu "Dicionário Bra-
siliense com História". José Higino aventa a hipótese de que se trata de
um Dicionário e uma História. "O Dicionário não é outro senão o 'Dic-
tionariolum Nominum et Verborum' que acompanha a História Natural e
Médica de Piso e Marcgrave. Quanto ao outro trabalho, deve ser a Histó-
ria do Brasil ou da América que nunca se imprimiu e cuja existência mes-
ma era problemática. Ter-se-ia perdido esse manuscrito por ocasião da
venda dos papéis da Companhia em 1821" (78 >. Mais tarde, em 1912, Pe-
dro Souto Maior apuraria que Morais pedira 1.500 florins de uma vez e
800 anuais de pensão pelo seu "Dicionário Brasílico" e "História do Bra-

(75) Lisboa, Officina de Lourenço de Anvers, 1641.


(76) J. de Laet, Responsio ad Dissertationem Secundam Hugonis Grotii De Origine Gentium
Americanarum, Amsterdam, 1644, 3-5. Neste mesmo ano, em sua Historie o/te Jaerlijck i erh1,,?1 vande
Verrichtingen der Geoctroyeerde West-lndische Compagnie. (Leyde, 1644, trad. port., ABN, vol.
XLI-XLII, 89), Laet conta a adesão de Manuel de Morais na Paraíba, em 1635, e as informações
que prestara. Dai, talvez, a declaração de Calado de que Morais prestara grandes serviços à
conquista dos holandeses. Cf. seu depoimento no "Processo de Manuel de Morais", RIHGB, 1907,
parte I, 102-104.
(77) Afonso d'E. Taunay, "Padre Manuel de Morais", AMP, 1925, t. 2, 47.
(78) "Relatório sobre as pesquisas na Holanda", RJAGP, 1886, n. 0 30, 47-48.

442
sil" e para ajudar seu casamento, mas a Câmara de Amsterdam mandara
dar-lhe 300 florins até decisão da Assembléia <79>.
A publicação, em 1908, do "Processo de Manuel de Morais" (80), na
Inquisição de Lisboa, veio trazes novos esclarecimentos, sem resolver o
enigma bibliográfico e historiográfico. Manuel de Morais informa que
achando-se na Holanda "fez um livro de fertilidades e particularidades do
·Estado do Br:asil" <8 1>. Mais adiante declara que ele não "fizera livro al-
guem em que se contivessem cousas contra a santa fé católica, porquanto o
livro e caderno que fez, foi de cousas curiosas naturaes do Brasil, que não
contém cousa tocante a matérias de fé, e assim mais fez um caderno de
frases castelhanas explicadas em latim, para um fidalgo de Alemanha
aprender a língua espanhola" (82 >. Não era verdade que ajudara os holan-
deses no ataque ao Brasil, informando-lhes os portos. :É falso dizer-se,
declara ao Santo Ofício, que ele fizera um livro dos portos e entradas de
província alguma. "Provará", diz ele, "que no tempo do cativeiro dele réo
estavam os holandeses atualmente no Recife, Itamaracá, Paraíba, Rio
Grande, e de todos esses portos tinham verdadeira notícia e a escusavam
dele réo e dos mais portos que depois ocuparam, a saber Ceará, Maranhão,
lhes não podia ele réo dar notícia por nunca estar nos ditos portos. Além
do que provará que, antes dele réo ser cativo já os holandeses tinham um
livro que anda impresso composto em latim e língua holandesa por Joan-
nes de Laet, em que descreveu todos os portos, lagares e rios do Brazil, e
assim escusavam outra maior nem melhor notícia" (83>.
Na verdade, o trecho publicado em Piso e Marcgrave <8 4 ) e em
Laet <8 5 > e as declarações do próprio Morais revelam que andava a escre-
ver sua história, que seria estampada pelos Elzevieres, caso o autor a tives-
se completado. Manuel de Morais, arrependido de suas traições à Igreja
e a Portugal, voltou ao Brasil, levando com ele a história, para concluí-la.
:É possível que aqui a tivesse perdido nos combates e mudanças ou que em
Portugal, nos processos da Inquisição, houvesse o trabalho desaparecido
sem deixar rastos.
Manuel de Morais, nascido em São Paulo, cerca de 1596, entrou para
a Companhia de Jesus e em 1630, falando bem o tupi, era superior de
uma aldeia de índios em Pernambuco. Em 1635 passou-se para os holan-
deses e foi enviado para a Holanda, onde casou-se duas vezes, teve filhos,
viveu em Leide, em cuja Universidade foi muito conhecido. Regressou ao
Recife em 1643. Fora expulso da Companhia de Jesus, em 1639 denun-

(79) "Fastos Pernambucanos•, RIHGB, v. LXXV, 1912, parte 1, 434.


(80) RIHGB, t. LXX, parte 1, 1-165.
(81) "Processo•, ob. cit., 73, 78.
(82) "Processo•, ob. cit., 93, 98.
(83) "Processo", ob. cit., 143-144.
(84) Historia Natura/is Brasiliae, Amsterdam, 1648, 276, 277; Georgil Marcgravll, "Tractatus"
ln De lndiae Utriusque Re Naturali et Medica, Leide, 1658, 21-24. Jorge Marc-grave, História Natu-
ral do Brasil, São Paulo, 1942, pp. 276-277, trad . do trecho da edição de 1648. Na edição de
1658, traduzida também para o português, História Natural e M édica da índia Ocidental (Instituto
Nacional do Livro, 1957), o trecho de Manuel de Morais é omitido, e apenas aparece citado como
testemunha sobre a jabuticaba (279).
(85) J. de Laet, Notae ad Dissertationem Hugonis Grotii De Origine Gentlum Americanarum,
Amsterdam, 1643. Da p. 216 à 226, Laet extraia o livro décimo da História dos Brasileiros, não
editada.

443
ciado ao Santo Ofício, processado à revelia e queimado em efígie no auto-
de-fé de 1642. Aderiu à sublevação contra os holandeses e foi preso por
Martim Soares Moreno, enviado à Bahia e daí para Lisboa, onde respon-
deu a novo processo. Conseguiu abjurar seus erros em 1647 e foi-lhe per-
mitido ausentar-se do Reino em 1648. Além da mencionada História, per-
dida ou extraviada, escreveu uma "Resposta que deu o licenciado Manuel
de Morais a dizerem os holandeses que a paz era a todos útil, mas a Por-
tugal necessária" ( 1650 ?) <86 l. Sua biografia está relatada no Proces-
so (87) e escrita por Oliveira Lima e Afonso Taunay <88 >.

6 . Antônio Maria Bonucci


Antônio Maria Bonucci (Arezzo, Itália, 1651 - Roma, 1729) es-
tudou direito canônico e civil durante três anos e filosofia dois anos. En-
trou para a Companhia em abril de 1670, e de Lisboa embarcou para o
Brasil. Na Bahia, onde chegou, passou ao colégio de Olinda e depois ao
de Recife trabalhando nas Congregações Marianas e nos exercícios da Boa
Morte, durante quase um decênio. Ensinou humanidades e foi pregador
em Olinda, fazendo votos solenes no Recife aos 2 de fevereiro de 1686.
Em 1696 passou à Bahia, a ajudar o padre Antônio Vieira na Clavis Pro-
phetarum, que o louva e depois na colheita e ordenação das cartas do pa-
dre Vieira. Com a ordem de não se concentrarem padres italianos na Ba-
hia, a que já nos referimos ao tratar de Antonil, Bonnucci foi para uma
aldeia no sertão da Bahia. Em 1703 estava em Roma pregando e prepa-
rando seus numerosos livros <89 >.
Das dezenove obras relacionadas na sua qualidade de jesuíta no Bra-
sil, ou foram escritas no Brasil, ou em português, ou traduzidas de livros
de jesuítas aqui existentes, ou são vidas de santos e heróis portugueses.
Mas como viveu ainda 26 anos na Itália ( 1703-1729) escreveu e fez im-
primir outros livros descritos por Carlos Sommervogel <90> e Ernest M.
Riviere <91 > e sumariados por Serafim Leite (92). Escreveu ainda várias
cartas do Recife e da Bahia, indicadas também por Serafim Leite <93 >.
A obra que o inclui nesta historiografia é o Epítome Cronológico,
Genealógico e Histórico, dividido em quatro livros <94 >.
f: um breve compêndio de História Universal, com preponderância da
história eclesiástica, assim o define Serafim Leite. Desde o século XVI
incluía-se nos cursos de humanidades dos jesuítas o ensino da história, e
nos de teologia a história da Igreja. Só no século XVII introduziu-se o

(86) AMP, I, 119-133, registrada por J. H. Rodrigues sob o n. 0 654 da Historiografia e


Bibliografia do Domlnlo Holandês no Brasil, Rio, 1949.
(87) Trecho sobre genealogia do padre, 60-64.
(88) Respectivamente in RIHGSP, 1907, vol. XII, 331-346, e AMP, 1925, II, 7-49.
(89) Serafim Leite, HCJB, 1949, VIII, 110, e sua bibliografia 110-118.
(90) Bibliotheque de la Compagnie de Jésus, Bruxelas, 9 vols., 1890-1909.
(91) Correclions et additions à la Blbliotheque de la Compagnie de fésus. Supplément au
"de IJacker - Sommervogel", Toulouse. 1919-1930.
(92) Ob. cit., 114-115.
(93) Ob. cit., 115-118.
(94) Lisboa, 1706, XVI - 555 p.

444
curso de história pátria e logo o de história geral. O ensino da história do
Brasil só veio a ser ensinado oficialmente no século XIX. :e. assim muito
provável que os jesuítas brasileiros ou que vinham para o Brasil estudas-
sem no Epítome de Bonucci, que é como escreveu Serafim Leite um misto
de história sacra e profana, e cujo nome é adequado e nem vale mais que
isso, o que é pouco (95).
Ao dirigir-se ao leitor declara que seu epítome é breve "a brevidade
que agrada ao gênio dos modernos". O motivo que o estimulou a coorde-
nar este Epítome e a razão que o levou a que passasse das trevas do seu
cubículo, onde passou 1O anos, à luz das estampas, foi para seu uso pró-
prio: desejava com algum estudo que fizera sobre as histórias sagradas
e profanas evitar os erros que muitas vezes se dão, quer pervertendo a
cronologia dos tempos, quer confundindo a genealogia dos Reis e grandes
senhores, quer, enfim, perturbando a ordem dos sucessos, como muitas
vezes se ouve dos púlpitos. E a razão que o levou a estampar é porque nele
se declaram os motivos da credibilidade da verdadeira religião cristã e
mostra aos incrédulos a vinda do Messias e serve de consolação aos ca-
tólicos.
A obra é dividida em quatro livros, sendo o primeiro sobre a criação
do mundo até a morte de S. João Evangelista; o segundo da vinda de
Jesus Cristo aos sucessos da Igreja Católica; o terceiro dos patriarcas
de Constantinopla às perseguições contra a Igreja; o quarto dos Impera-
dores do Oriente e Ocidente desde a morte de Jesus Cristo aos Reis de
vários países. O livro além de fraco, mesmo para a época, é dominado por
preconceitos e discriminações sobretudo contra as mais igrejas protestan-
tes, especialmente contra Lutero e Calvino. Pode-se imaginar os males que
este livro, o único em português usado no Brasil, causou na formação dos
jesuítas e por meio destes à mocidade brasileira.

7 . Inácio Barbosa Machado


Inácio Barbosa Machado (Lisboa 1686 - Lisboa 1766) era irmão
de Diogo Barbosa Machado e de D. José Barbosa Machado, todos três
considerados mestres da lfngua. Doutorou-se em direito civil pela Univer-
sidade de Coimbra, e exerceu vários cargos na magistratura, chegando a
Desembargador da Relação do Porto. Sua biografia e bibliografia estão
descritas por Inocêncio Francisco da Silva (96), sua obra mais importante
é os Fastos políticos e militares da antiga e nova Lusitânia, em que se
descrevem as ações memoráveis que na paz e na guerra obraram os por-
tugueses nas quatro partes do mundo (97).
Eram distribuídos por meses, incluindo só a matéria especificada no
título.

(95) Serartm Leite, HC/8, Vil, 169.


(96) DBP, III, 203-204, VII, 89 e X. 49.
(97) Lisboa. 1745.

445
Se era bom escritor, como dele se disse, essa obra não o reputa. Estilo
retórico, palavreado sem sentido, é autor que se lê com esforço e desa-
grado. A obra é dedicada a D. João V a quem pe,de o patrocínio, escre-
vendo ser seu livro "uma história dividida pelo círculo do ano, onde na
carreira dos dias êmulos da eternidade se admirarão escritas as memoráveis
ações do seu Reinado". O tom é sempre bajulatório e adulador. A seleção
fatual é muito defeituosa pois os famosos dias do Rei são "os heróicos as-
suntos destes Fastos onde justamente se escrevem célebres ações de seus
vassalos obradas no tumulto da guerra e no ócio da Paz".
O livro foi escrito desde 1713, desde sua adolescência, mas a inveja
de dois êmulos, numa conjuração literária, impediu que viesse a público
o primeiro volume, que trata desde a antiguidade até 1597, sem nenhum
interesse para a história do Brasil. O segundo volume jamais foi publicado.
Sua inclusão nesta historiografia se deve a sua nomeação como cro-
nista-ultramarino aos 21 de outubro de 1751 (98), mas nesta qualidade
nada produziu como foi a _tradição destes cronistas oficiais. Era figura
muito conceituada na sua época, tendo sido membro da Academia Real
da História e da Academia Brasílica dos Renascidos (9 9 ).
Era homem muito prestigiado e louvado e Frei João de São José
Queirós nas suas Visitas Pastorais. Memórias ooo) reproduz uma conversa
entre os dois irmãos Diogo e Inácio, em que este diz: "Irmão, o vosso
estilo é pomposo, e o meu florido, sabeis por quê? Porque nem nós nem
eu somos capazes de escrever como frei Luís de Sousa, ou descrever, v. g.
o Sátiro de Benfica"; a seguir declara o que o desembargador dizia muitos
anos antes de caírem os jesuítas: "se eu pudesse concorrer para a extinção
de jesuítas (não é libertinagem) certamente o faria". Barbosa era teólogo
à francesa: não cria na infabilidade do Papa.

8. Francisco José da Serra Xavier


Francisco José da Serra Xavier (Lisboa ?- ?) foi presbítero se-
cular e pouco se sabe dele bi9gráfica e bibliograficamente (101).
Seu nome se inscreve nesta historiografia porque por alvará de 13
de maio de 1780 D. Maria I nomeou-o cronista-ultramarino no lugar de
Inácio Barbosa Machado, a fim de escrever "a história completa e verda-
deira (palavras do alvará) das grandes e gloriosas ações obradas pela na-
ção portuguesa na América, Ásia e África, desde o princípio do seu des-

(98) Possuo a reprodução fotográfica do Alvará que se encontra na Biblioteca da Ajuda.


Vide Carlos Alberto Ferreira Inventário dos Manuscritos da Biblioteca da Afuda Referentes li
América do Sul, Coimbra, 1946, n. 0 1.948, p. 582.
(99) José Aderaldo Castello n'O Movimento Academlclsta no Brasil, 1641-1820-22, vol. I, t. 1.
Academia Brasílica dos Esquecidos, transcreve vários sonetos a ele dedicados, quer como mestre
da História Militar Brasíiica, quer como doutor sapientíssimo, quer como Juiz de fora da Bahia,
p. 125-128.
(100) Rio de Janeiro, s/d, p. 80-81, 82-83 e 133.
(101) Inocêncio Francisco da Silva, DBP li, 413,414-e IX, 317 onde se registra sua magra
bibliografia.

446
cobrimento até o presente". Esse ao menos deixou a "Notícia de todos os
governadores e população das províncias do Brasil", escrita em 1782, cujo
original se encontra na Biblioteca da Ajuda <102 1.
A "Notícia", cuja cópia possuímos, não passa de simples notas, insu-
ficientes para a elaboração de qualquer trabalho histórico, servindo ape-
nas como dados.

(102) Carlos Alberto Ferreira, Inventário clt., n. 0 2.001, p. 598.

447
CAPITOLO II

AS RELAÇÕES GERAIS
t. Considerações gerais. 2. O "Sumário das Armadas".
3. O "Sumário" de Domingos d'Abreu de Brito. 4. A Rezão
do Estado do Brasil. 5. André de Almeida. 6. O "Memorial
do Estado do Brasil para S. Majestade". 7. A "Descrip-
ción del Brasil". 8.A "Relação das Capitanias do Brasil".
9. A Relação das Capitanias da Repartição do Sul. 10.
Antônio Pereira de Berredo. 11. A "Informação do Esta-
do do Brasil". 12. A Relação e Notícia de vários sucessos
no Brasil. 13. "Máximas propostas" por D. Rodrigo José
de Menezes e Castro.

l . Considerações gerais

Algumas relações e descrições são conjuntamente simples documen-


tos históricos e formas muito rudimentares de crônicas ou relatos historio-
gráficos. Uns e outros se equivalem na novidade da notícia, na autoridade
da informação, na fidedignidade da captação momentânea da realidade
"aparencial". São instantâneos e circunstanciais, mas não deixam de re-
presentar etapas da evolução da crônica histórica. Episódica é a "Relaçam
da Aclamação de D. João IV" <1 > no Rio de Janeiro, em 1641, por
verdadeiro Rei e senhor de Portugal restaurado de Espanha e reconhecido
no Brasil. Exposições histórico-geográficas do presente humano e econô-
mico são a "Rezão do Estado do Brasil", a "Relação" de Pedro Cadena,
a "Informação" e a "Relação das Capitanias", anônimas. Pelas excelên-
cias dos mapas e a cuidada atenção que lhe devotaram grandes historia-
dores brasileiros e estrangeiros, a "Rezão" adquiriu notoriedade e foi con-
siderada como um documento capital do século XVII.

2. O "Sumário das Armadas"


Simão Travassos (Ferreiros, Portugal, 1543 - Olinda, 1618) entrou
para a Companhia em 1562, ordenou-se padre em 1574 no Colégio Santo
Antão em Lisboa. Veio para a Bahia em 1577, onde foi mestre de noviços,
e depois foi para Pernambuco, ond.e ficou até sua morte. Trabalhou não
só no Colégio de Olinda, mas em empresas da sua competência e também
na conquista da Paraíba, tendo nela sido superior da missão <2 >.

(1) Relaçam da Aclamação que se fez na Capitania do Rio de Janeiro do Estado do Brasil
e nas mais do Sul, ao Senhor D. foão o IV por verdadeiro Rey e Senhor do seu Reyno de
Portugal, Lisboa, 1641, 15 pp.
(2) HCTB, IX. 166.

448
A ele se atribui, como veremos, o "Sumário das Armadas que se fi-
zeram e guerras que se deram na conquista do Rio Paraíba"; é uma rela-
ção das guerras e armadas que se fizeram contra o gentio Potiguar, senhor
da Paraíba. Elas começaram no tempo de Luís de Brito de Almeida, go-
vernador geral (1573-1578) e acabaram no tempo do licenciado Martim
Leitão, ouvidor geral. O autor faz uma descrição geográfica da Paraíba,
enumera suas vantagens e acentua a singularidade da terra para o cultivo
da cana. Não é um louvador comum, o que constitui uma exceção; diz
que todo o sertão do Brasil é muito estéril e a terra desventurada, que
com trabalho dá a mandioca. "Toda a terra do Brasil não tem mais
que dois ou três palmos de boa terra." O açúcar só dava nas várzeas, terras
baixas ao longo dos rios, e a Paraíba possuía excelentes terras para mais
de quarenta engenhos. Mas o fito da conquista era expulsar os franceses
da costa e eliminar o comércio de pau-brasil, que mantinham com os
potiguares seus aliados. O autor é muito seco e objetivo, relatando com
minúcia talvez excessiva, as inumeráveis ocorrências na formação, apresto
e lutas das várias expedições desde 157 4 até 15 87. A importância da em-
presa merecia uma lembrança, especialmente se considerarmos que era
fruto de iniciativa particular e demonstração de uma primitiva coesão lu-
sitana na colônia. Os auxílios da Bahia, Pernambuco e Itamaracá, fazem-
se com o desejo de conquistar a Paraíba para o domínio português.
A fazenda d'el-rei não entrou nas despesas que foram feitas por
empréstimo de João Nunes, cristão-novo, rico mercador de Pernambuco,
onzeneiro conhecido. A maior guerra que se podia fazer aos franceses era
impedi-los de comerciar com o pau-brasil; com isto dominava-se o gentio,
inimigo dos portugueses, assenhoreava-se das terras, tão próprias à fábrica
açucareira, beneficiavam-se as capitanias próximas, como Pernambuco e
Itamaracá, e mais 400 léguas de costa eram incorporadas à comunhão
portuguesa. Logo após a conquista já importava a renda da Paraíba em
40.000 cruzados, só de contrato do pau-brasil, e possuía 50 moradores
casados e outros tantos portugueses, informa o autor do "Sumário" <3 l.
Martim Leitão deixou a capitania conquistada com fortaleza, acom-
panhada e povoada, aquietada e pacificada, com o gentio que fizera des-
cer do sertão, para vencer os potiguares, o "mor e mais guerreiro e prático
gentio do Brasil". O autor termina declarando que não tratou de inven-
ções curiosas nem elegâncias de palavras; seu intento foi fazer a relação
chã, singela e sucinta. Lamenta que não tenha se estendido copiosamente
no "tratar de todas as obras e bons feitos de Martim Leitão, que é o todo
e a principal figura deste meu compêndio".
Não tratou, como era costume na sua época, das coisas naturais e
muito pouco das civis, mas especialmente das militares.

(3) "Sumário", RIHGB, 1873, t. 36, parte I. 5·89. Foi publicado primeiro no periódico !ris,
editado no Rio de Janeiro por José Feliciano de Castilho, 1848, vol. 1, p. 38-44, 72-74, 106-109,
132-136, 166-170, 199-202, 240-244. 262-265, 297-300, 323-328, 362-366.

449
Autoria
Quem será o autor deste "Sumário"? Para Varnhagen, é o Padre Je-
rônimo Machado, segundo deduziu do próprio texto. Ora, as referências
no texto ao Padre Jerônimo Machado, iguais às feitas a muitos outros,
entre os quais Simão Travassos, não permitiam tal dedução, feita de
modo simples, sem maiores argumentos <4 >. Em 1918, ao editar a História
do Brasil de Frei Vicente do Salvador (5 ), escrevia Capistrano de Abreu
que seu autor tanto podia ser Jerônimo Machado como Simão Travassos;
ambos assistiram à parte dos sucessos narrados. Já e:m 1925, ao escrever
sobre Fernão Cardim, Capistrano de Abreu só se referia à atribuição de
Varnhagen <0 >.
Nenhum dos dois discutiu com rigor a questão. Foi o Padre Serafim
Leite quem fez realmente crítica de atribuição (7 >, argumentando a favor
do Padre Simão Travassos. Para isto lembrou que neste "Sumário" narram-
se as três expedições de Martim Leitão, cada uma das quais sempre assis-
tida por dois Padres da Companhia. A primeira, em março de 1585, foi
acompanhada pelos Padres Jerônimo Machado e Simão Travassos <8 >; a
segunda, em outubro de 1585, por um dos anteriores e o Padre Francisco
Fernandes <9 >; a terceira, pelos Padres Manuel Correia e Baltazar
Lopes o 0 >.
Sabe-se que seu autor é membro da Companhia, porque escreve no
texto, falando de si próprio: "Aqui me feriu um espanhol por desastre em
um pé .. . "; "sou boa testemunha de tudo e para melhor o fui com meu
sangue próprio, que por a ferida ser nas veias do peito do pé deu traba-
lho"; "não faltou para de todo esta empresa do Paraíba ser trabalhosa
e honrosa o sangue da Companhia" <11 >. Além disso se escreve no próprio
título do "Sumário" que ele fora escrito a mandado do Padre Cristovão
Gouveia <12 >.
Para Serafim Leite, o autor é o mesmo Padre que acompanhou as
duas primeiras expedições, isto é, o companheiro do Padre Francisco Fer-
nandes, não mencionado no texto, já que o autor não fora testemunha de
vista da terceira sortida, como se escreve claramente no texto: "donde ain-
da que não fui testemunha de vista, como em tudo até aqui, pelas rela-
ções dos Padres Baltazar Lopes e Manuel Corrêa, a que por ordem do
Padre reitor coube esta jornada, direi também o que passou" 0 3 ) .
Certo de que Simão Travassos não participara da terceira expedição, a
escolha devia fazer-se entre Jerônimo Machado e Simão Travassos, pois
(4) Cf. Varnhagen , História Geral do Brasil, 3.• ed. , São Paulo, s.d., v. 1, p. 488, n.0 13.
(5) São Paulo e Rio de Janeiro, Weiszflog, 1918, p. 137.
(6) Capistrano de Abreu, "Fernão Cardlm", O /ornai (Rio de Janeiro), 25-1-1925, transcrito
em Ensaios e Estudos , 2.• sé rie, Rio de Janeiro, Sociedade Capistrano de Abreu, 1932, p. 329, e
Fernão Cartlim , Tratados da terra e da gente do Brasil. São Paulo , Cia. Editora Nacional , 1939,
p . 369.
(7) Serafim Leite , ob. cit., t. 1, pp. 500-501.
(8) "Sumário ", ob. clt., pp. 37, 39 e 43 .
(9) "Sumário", p. 56.
(10) " Sumário" , p. 68 .
(11) "Sumário", pp . 62,63.
(12) "Sumário", p. 5.
(13) " Sumário". p. 68.

450
um dos dois poderia ter participado da segunda. A decisão final, segundo
Serafim Leite, encontrar-se-ia na frase usada pelo autor: "nossa Europa",
a qual eliminaria Jerônimo Machado, natural de São Vicente (1 4 ), enquanto
Simão Travassos é natural de Ferreiros, diocese de Braga. Lembra ainda
Serafim Leite que pelo fato mesmo de ser autor do "Sumário", se explica
que o Padre Simão Travassos fale mais dos outros que de si próprio <15 >.
Em conclusão, Serafim Leite lembra que as referências aos Padres
Jerônimo Machado e Simão Travassos encontram-se na parte relativa à
primeira expedição. Não há dúvida que o autor foi testemunha de vista
da segunda, pois há várias referências no texto. Assim, por exemplo, quan-
do trata do provimento do forte na Baía da Traição, escreve: "que lhes vi
deixar as pipas de farinha" <16 >; na segunda jornada, a propósito da che-
gada à Baía da Traição e da Fortaleza diz: "e assim a passeávamos o Pa-
dre Francisco Fernandes e eu muito à vontade ... " <17 >; neste mesmo capí-
tulo, referindo-se ao ouvidor geral: "depois lhe ouvi dizer ... " (l8J
O "Sumário" deve ter sido escrito entre 1587 e 1589, quando Simão
Travassos tinha 44 para 46 anos. Ele nascera cerca de 1543 e faleceu
em 1618, com 75 anos <19 >. O "Sumário" é uma crônica de leitura áspera,
mas indispensável a quem quiser formar idéia do que deviam ser as guer-
ras do sertão contra os índios <20 >. :E: a fonte principal para a história da
conquista da Paraíba, tendo dela se aproveitado largamente Frei Vicente
do Salvador <21 l.
O livro é rico de noticias e informações sobre os índios, a possibili-
dade de criação de engenhos e fertilidade da mandioca, a terra, o pau-
brasil, a presença francesa, união destes com os potiguares, a mestiçagem,
a conquista da terra e as vexações impostas aos índios. Conta ainda que,
no final de uma batalha de duas horas, morria uma infinidade de índios.
Declara o autor que "este foi o estilo do Brasil, ir assim (pela guerra)
ganhando a terra aos inimigos". Daí a certeza da conquista da terra e do
sangramento dos índios, muito maior que a dos portugueses. ·

3. O "Sumário" de Domingos d'Abreu de Brito


No fim do século, o licenciado Domingos d'Abreu de Brito apresen-
tava ao Rei Filipe I um "Sumário e Descrição do Reino de Angola do
Descobrimento da Ilha de Loanda e da Grandeza das Capitanias do Estado
do Brasil", em que analisa com independência e objetividade vários pro-

(14) "Sumário", ob. clt., p. 9 e HCJB, ob. cit., p. 500.


(15) História, ob. clt., p. 501. !! preciso não confundir o Pe. Simão Travasses com Simão
Tavares, que aparece várias vezes na terceira expedição.
(16) "Sumário", ob. cit., p. 44.
(17) •sumário", ob. cit., p. 56.
(18) "Sumário", ob. cit., p. 59.
(19) HC/8, p. 501, nota 1. Aí encontram-se dados biográficos dos padres que participaram
das guerras. No tomo IX, suplemento bloblbliográflco, Serafim Leite dá os dados biográficos de
Simão Travassos e lhe atribui a autoria do •sumário".
(20) Caplstrano de Abreu, "Fernão Cardlm", Ensaios e Estudos, 2.• série, p. 329.
(21) Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, 1931, p. 137, Prolegômeno de Caplstrano
de Abreu.

451
blemas da governação do Brasil e mostra como já era íntima, na estrutura
do Império, a ligação de interesses entre Angola e Brasil.
A redação tosca dificulta a leitura, mas, apesar disso, o "Sumário"
completa as informações dos cronistas anteriores. Pouco se sabe sobre o
autor, senão o que se encontra disperso no seu próprio trabalho. Ao que
parece, Abreu e Brito esteve em Angola até 4 de março de 1591 <22 >,
quando partiu para Pernambuco, com dez testemunhas, a fim de, diante
do ouvidor geral, proceder-se devassa contra o Rei do Congo, que não
reconhecia os direitos portugueses sobre a ilha de Luanda, e dificultava
o negócio do zimbo, da escravaria e da navegação. Chegou a Pernambuco
no Domingo de Ramos, ou seja, em 7 de abril de 1591, quando do go-
verno interino do Bispo d. Antônio Barreiros, que durou até 9 de junho,
data da chegada de Francisco de Sousa. Não se sabe se Abreu de Brito
conseguiu promover a devassa, mas provavelmente não a fez perante o
Ouvidor Geral Martim Leitão, tão inteiramente ocupado na conquista da
Paraíba. Aliás, o conselho de Abreu e Brito, de que "se deve atalhar ao
muito gasto que fazem os ouvidores gerais e provedores-mores da fazenda
em gastarem tantos mil cruzados em as guerras" 12 3 >, revela talvez o seu
aborrecimento pelas contínuas faltas do ouvidor geral, a quem dificilmente
poderia ver e ouvir, tão entregue às guerras contra os indígenas.
Não se sabe quando Abreu e Brito teria deixado o Brasil e em
que direção seguira, nem se sua pretensão de lhe ser dada a governança
e meneio da ilha de Luanda, que ele descobrira, fora atendida.
A devassa a realizar-se em Pernambuco para onde levara as testemu-
nhas, a fim de poder depor sem coação a gente de Luanda, tinha por ob-
jetivo convencer S. M. de que se lhe devia dar a governança da ilha e,
caso fosse mais conveniente ao Rei, uni-la ao governo de Angola, fazer-lhe
a mercê de uma comenda que rendesse duzentos mil réis e dar-lhe em
dinheir<> dois mil cruzados para pagar as dividas e os gastos <2 41.
A primeira parte do "Sumário", dedicada a Angola, não revela se o
autor viveu lá desde 1575, quando Paulo Dias Novais foi enviado para
dominá-la e ocupá-la, o que só conseguiu em 1580, ainda assim sob con-
tínuas desordens, ou se chegou mais tarde. O fato é que ele se refere à
derradeira batalha que se feriu no dia dos inocentes (28 de dezembro)
de 1591 <25 > e não trata do substituto de Luís Simão. Mas quando se feriu
esta batalha em Luanda, comandada pelo capitão Luís Mendes Raposo,
ele declara que descrevera a vitória inimiga ".por uma Relação e cartas
que mandei do Brasil pela primeira via por ordem dos padres da Com-
panhia, na qual venho anomeado para dar informação das cousas tocantes
a esta conquista e socorro dela" !26).

(22) Edição de A. A. Felner, sob o titulo Um Inquérito à vida administrativa e econômica


de Angola e do Brasil, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931, p. 30.
(23) "Sumário", ed. Felner, p. 55.
(24) "Sumário", ob. clt., p. 55.
(25) "Sumário", ob. clt., p. 23.
(26) "Sumário". ob. clt., p. 29.

452
Deste modo sabe-se que Abreu de Brito jâ não estava em Angola e
por isso enviou do Brasil as notícias que recebeu "para pedir as honras e
mercês que por seus serviços os conquistadores mereciam" (27 l.
Para informar-se precisamente dos rendimentos de Angola, serviu
Abreu de Brito de escrivão na feitoria, apurando que de 157 5 a 1591,
até 4 de março, quando recebeu recado para partir, que só de escravos
despacharam-se para o Brasil e 1ndias de Castela 52.053 peças. Cada peça
pagava 3 mil réis de direitos se enviada do Brasil, e 6 mil réis para a
restante América. Abreu de Brito denuncia os descaminhos que sofria a
fazenda real com a declaração de que iam para o Brasil e lá uma parte
mínima era desembarcada perante as autoridades e a outra vendida às
escondidas, sonegando-se do Estado parte dos direitos.
Significação da obra
O que interessa à historiografia brasileira é a parte relativa a Per-
nambuco, onde Abreu de Brito reúne minuciosamente as informações "que
em segredo tirou". Calcula os dízimos do açúcar, o número de engenhos (28 l,
a produção anual ( 6.000 arrobas), a grandeza da terra e a criação de
gado, os pescados e as farinhas. Notas valiosas são as dos preços do
gado, porcos, carneiros, galinhas, perus, e mantimentos. Denuncia a sone-
gação dos direitos dos açúcares, propondo que se fizesse uma relação de
todos os engenhos de todas as capitanias, seus donos e sua produção. Trata
dos lavradores de cana e delata as fraudes e furtos dos oficiais da justi-
ça e fazenda. Costumes e usos, tributos sobre navios, preços, descaminhos
de escravos, freqüência dos navios estrangeiros, retratam-se com objetivi-
dade neste "Sumário". O autor com dureza denuncia os desserviços dos ofi-
ciais da fazenda e propõe os meios de "atalhar a tamanhas barroquas" (29 ).
O predomínio dos senhores de engenho já era notado pelo cronista, que
louva as capitanias do estado do Brasil, "que são do maior rendimento
cm sua quantidade do mundo" (30).
N avias estrangeiros de França, Inglaterra, Hamburgo e Flandres e
de todas as partes, de contínuo no porto, traziam especialmente pescados
e carregamentos de açúcar, sem proveito, ou com pouco proveito para a
Fazenda Real, sonegada nos seus direitos pela desonestidade dos oficiais
que facilmente se enricavam (31).
O comércio do pau-brasil ainda era valioso neste fim de século, mas
era desviado e contrabandeado. Achei e vi, diz Abreu de Brito, "ser cos-
tume geral em a dita capitania e partes dela tirarem todos os oficiais da
fazenda de V. M. todo o pau que por suas indústrias podem, fazendo
vendas deles às urcas de todas as partes, Flandres, França e assim navios
de Viena, Porto e Algarves, o qual pau é vendido por nove, dez tostões

(27) "Sumário", ob. clt., p. 29.


(28) Segundo Cardim e Gabriel Soares, Pernambuco possuía 66 engenhos. Abreu de Brito
fala em outros começados e outros não acabados.
(29) "Sumário", ob. cit., p. 76.
(30) "Sumário", ob. cil., p. 75.
(31) •sumário", ob. clt., pp. 66, 73 e 74.

453
cada quintal. E a causa de ser fácil a tirada e a embarcação do dito pau
em as tais naos e navios, é porque o porto donde as naos estão surtas é
uma légua da povoação, onde chamam o Recife, no qual há um braço de
mar que entra pela terra dentro, que vai até dentro a Vila, em o qual há
muitos portos, nos quais se toma o dito pau, se carrega de noite em as
naos e navios, como dito é" (32).
O pau-brasil era monopólio do Estado e seu contrato devia render
cinqüenta mil cruzados.
Justiça se não ministrava na capitania desde a época em que serviu
Cosme Rangel como ouvidor geral. E por quê? Porque ela estava a serviço
dos poderosos, diz Abreu de Brito, amigo dos jesuítas, encarregado de lhes
escrever uma relação, e que pretendia que nas guerras contra indígenas
fossem ouvidos os da Companhia (33). Era, em 1591, uma justiça de classe.
A propósito eis o que escreve Abreu de Brito:
"E a causa porque tanto importa ser assim necessário é porque os
poderosos devem aos que pouco podem e os ouvidores como pendem
dos interesses dos ricos escusão as audiências, por não fazerem execuções
nos ricos, a requerimento dos pobres, como V. M. verá pelos capítulos
que este ano passado de noventa e um mandaram da vila de Pernambuco
a V. M., os quais foram causa de se mandar devassar do caso.
"E assim devia V. M. de mandar com o rigor que convém que cada
pessoa do Governador abaixo, ou Ouvidor, ou Bispo, e assim a todos os
mais que tiverem a cargo administrar justiça que, em propósito havendo
morte, se não conceda carta de seguro, porque é causa que se afirma ser
fonte donde nascem tantas desordens como sucedem cada dia, e sucede-
ram em o tempo de minha estada, o que se atalhará como V. M. for
sabedor.
"E assim devia V. M. de mandar devassar das peitas que os merca-
dores tiram entre si por cabeça para taparem os olhos ao provedor mor e
pequeno, e ao ouvidor geral donde nasce a confusão que há na fazenda
e as sem justiças que as partes recebem" (3 4 ).
Abreu de Brito termina propondo fortificar-se a costa, para evitar o
contrabando, os corsários e os perigos da tomada da terra por estrangeiros
ligados aos gentios contrários. Não quis tratar senão das coisas a que
fora mandado, evitando, para não ficar a Relação comprida, cuidar da
abundância e fertilidade, dos animais e frutas e de todos os mantimentos
da região.

NOTA BIBLIOGRAFICA
O Sumário e Descripção do Reino de Angola e do Descobrimento da Ilha de
Loanda e da Grandeza das Capitanias do Estado do Brasil encontrava-se em ma-
nuscrito na seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa (n.º 294), em cóp;;;
luxuosa da época e em cópia na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional do

(32) "Sumário", ob. c/1., p. 67.


(33) "Sumário", ob. clt., p. 77.
(34) •sumário", ob. clt., p. 77.

454
Rio de Janeiro (l-2, 1 25) (35). Foi editado por Alfredo de Albuquerque Felner,
sob o título de "Um Inquérito à Vida Administrativa e Econômica de Angola e d0
Brasil" (36). A introdução, assinada por A. A. Felner, explica o sentido e valor do
inquérito, mas se equivoca ao julgar que o autor partiu do Brasil para Angola, em
1590-91.

O plano de Abreu de Brito, sumariado no livro, faz parte dos proje-


tos de conquista do interior e de ligação das duas costas africanas, já
esboçado por Diogo Ferreira, em 15 8 8 (37 >, e posteriormente tratado, em
1595, por D. Jerônimo de Almeida e por Luís Mendes de Vasconcelos,
em 1616 (38 >.
A historiografia brasileira não se utilizou devidamente do Sumário e
Descripção do Reino de Angola e do Descobrimento da Ilha de Loanda e
da Grandeza das Capitanias do Estado do Brasil, registado no Catálogo
da Exposição de História do Brasil desde 18 81 e somente citado por
Capistrano de Abreu na sua tese de concurso para o Colégio Pedro II <39>.
Capistrano de Abreu aproveitou-se desta cópia quando escreveu o
último capítulo daquele trabalho sobre a evolução brasileira no século
XVI. Mas ninguém mais reparara na excelência das informações colhidas
e registadas pelo licenciado Abreu de Brito.

4 . A Rezão do Estado do Brasil


A Rezão do Estado do Brasil não é apenas uma estatística verdadeira
das oito capitanias, desde a de Porto Seguro até o Rio Grande do Norte,
mas uma verdadeira crônica da situação presente do Brasil, na época de
D. Diogo de Menezes e Siqueira (1608-1612), com interpelações e acrés-
cimos posteriores. Na introdução inicial às estatísticas anuais o Autor des-
creve o Brasil e expende considerações sobre as riquezas da terra e as
privações dos moradores, necessitados de índios e negros para os serviços
das fazendas e engenhos e impedidos pelas dificuldades opostas pelos pa-
dres da Companhia. Sua linguagem é tão desabusada contra as "desordens
do domínio absoluto dos religiosos" sobre os índios, contra a "gente de
roupa larga", os jesuítas, que Varnhagen chega a levantar a hipótese de
que o livro não teria sido publicado "por diligências jesuíticas" <40>.
Nas descrições parciais das Capitanias não se limita o Autor aos da-
dos estatísticos: enumera as riquezas, seu crescimento, as lutas contra os
indígenas, as residências e ações religiosas, as igrejas e engenhos, a gran-
deza ou pequenez da povoação e da capitania, o trabalho dos brancos mo-
radores, o poder militar, e, finalmente, avalia a população e orça o rendi-

(35) Registrado no CEHB n. 0 19.289 e Catálogo de Manuscritos da Biblioteca Nacional, Rio


de Janeiro, 1878. V. IV, n. 0 8, p. 37.
(36) Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931.
(37) Jaime Cortesão revelou existirem três Memórias manuscritas na Biblioteca Nacional de
Madrl; cf. História da Expansão Portuguesa no Mundo, Lisboa, Edil. Atice, 1935, vol. 2, p . 248.
(38) Documentos existentes no Arquivo Histórico Colonial. Cf. História da Expansão, ob.
cit., p. 248.
(39) Descobrimento do Brasil e seu desenvolvimento, Rio de Janeiro, 1883.
(40) Reflexões Críticas sobre o Escrito do siculo XVT Impresso com o titulo de Noticia
do Braill. L11boa, 1839, 95.

455
mento. Não se trata, assim, de um balanço estatístico anual, como faz.supor
a afirmação inicial de Varnhagen de que a Rezão "é uma verdadeira esta-
tística respectiva ao ano de 1612 das oito capitanias" <41 l.
Coube a Varnhagen publicar pela primeira vez um largo trecho da
introdução geral e mais tarde resumir os dados estatísticos de cada capi-
tania <42 >. Na primeira conjetura a princípio que Manuel de Morais seria
o autor (43) e depois considera temerária a atribuição <44 >, para fixar-se no
nome de Diogo de Campos Moreno, o autor da Jornada do Maranhão c45 l.
A atribuição não era justificada e talvez repouse na referência textual "ao
sargento-mor deste Estado", então exercido por Diogo de Campos C46 l.
Não há dúvida que no começo do texto lê-se: "correndo a costa do sul
para o norte no governo do dito Dom Diogo de Menezes somente como
parte vista e visitada por quem fez esta relação e posta pelo dito gover-
nador na rezão em que hoje a vemos" c47 J. Ora, sabemos todos que o
sargento-mor do Estado era Diogo de Campos, e que este gozava da con-
fiança do governador que sempre o incumbiu de tarefas da maior responsa-
bilidade <48 ). Vemos também, nos mapas que acompanham o códice do
Instituto Histórico, algumas informações sobre as fortificações francesas
que só poderiam ter sido colhidas por Diogo de Campos, que lá esteve ao
promover as tréguas de 1614, depois das quais partiu para a Espanha C49l.
Seja ou não obra de Diogo de Campos Moreno, a atribuição foi se-
guida, sem nenhuma outra justificação, por Cândido Mendes de Almei-
da (50), por Ramiz Galvão C5 0, por Rodolfo Garcia <52 > e mantida como
suspeita por Engel Sluiter C5 3 l. Hélio Viana, baseado na biografia de Diogo
de Campos Moreno e na comparação dos textos da Rezão e da Jornada,
conclui que ambas foram escritas pelo mesmo autor, o sargento-mor
Campos Moreno. Apesar de seus eruditos esforços, suas razões não con-
vencem em definitivo e a suspeita fará prosseguir o processo de atri-
buição <54 >.

(41) História Geral do Brasil, li, 141.


(42) Reflexões criticas, ob . cit ., 91-95.
(43) Reflexões criticas, ob. cit., 22, nota.
(44) Reflexões criticas, ob. cit., 87, e nota u . Varnhagen transcreve carta de Diogo Kopkc
descrevendo o códice do Porto (88-91) sem declarar-lhe o nome, revelado por Magalhães Bastos,
Catálogo dos Manuscritos Ultramarinos da Biblioteca Pública Municipal do Porto, Porto, 1938, 123 .
(45) História Geral do Brasil, l.• ed. (1854) 318, n .• 2, e n .0 86, p . 468, 3.• ed., li, 61.
(46) Vide edição de Engel Sluiter, "Report on lhe Stale of Brazil 1612", HAHR, vol.
XXIX, n.• 4, nov. 1949, p. 562.
(47) "Report", ob. cit., 526.
(48) Frei Vicente do Salvador, História ao Brasil, 3.• ed . São Paulo, s/d, 415, e "Corres-
pondência de Diogo de Menezes" , ABN, LVIII, 46.
(49) Frei Vicente do Salvador, História do Brasil, p . 476, e Prolegômenos de Capistrano
de Abreu à mesma História, p. 435.
(50) RIHGB (1877), vol. XL, p. 533. Propunha, ali, que se editasse a obra junto com
os mapas.
(51) Catálogo da Exposição de História do Brasil, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro ,
1881, vol. I, p. 5.
(52) "Explicação" que precede a .. Correspondência de Diogo de Menezes", ABN, vai.
LVII, p. 32.
(53) "Repor! on the State of Brazil 1612", HAHR, Nov. 1949, vol. XXIX, n .0 4.
(54) Diogo de Campos Moreno, Livro que dá Razão do Estado do Brasil - 1612, Edição
critica, com Introdução e notas de Hélio Viana ; Arquivo Público Estadual (1958). Os 33 exem·
piares comparativos de semelhança dos dois textos, dados por Hélio Viana (ob. cit. . 55-60) po·
dem, provavelmente, ser encontrados em outros textos da época.

456
Conhecem-se cinco textos manuscritos da Rezão do Estado do Bra-
sil (55).
Além das passagens da Rezão publicadas por Vamhagen em suas Re-
flexões críticas e em sua História geral do Brasil, foram editados alguns
fragmentos relativos ao Ceará e Alagoas <56 >. A primeira publicação com-
pleta segundo o códice do Porto deve-se a Engel Sluiter e a primeira
edição crítica a Hélio Viana.

5 . André de Almeida
André de Almeida (Santos, 1572 - Rio de Janeiro, 1649) entrou
na Companhia em 1589. Estudou Lógica e Casos de Consciência, orde-
nando-se padre e fazendo os votos em 1605. Dedicou toda sua vida aos
indios. Sobretudo aos das capitanias do Espírito Santo e Rio de Janeiro,
trazendo da primeira o núcleo de índios com que se fundou a aldeia de
S. Pedro do Cabo Frio. :e autor da "Relação dalgumas cousas da Aldea
do Cabo Frio para o S. 0 r G. 0 r Geral D. Luis de Sousa do Padre André
dalmeida Sup.ºr della 4 de Agosto de 1620". Nela trata da primeira
conversão dos Aitacazes que vieram aos padres "por a fome que tinham
lá nas suas terras e a outra principal porque os Aitacazes goaçus que é
outra nação vesinha seus contrarios virem dar sobre eles" <57 >.

6. O "Memorial do Estado do Brasil para S. Majestade,,


O "Memorial do Estado do Brasil para S. Majestade. Contém minu-
ciosa informação sobre os danos da navegação do Brasil, remédio útil e
suas conveniências - a organização das frotas comboiadas" <58 > é uma
relação de 1627 redigida em Pernambuco sobre os remédios que se deve
dar a que vão e venham navios em frota acompanhados de uma armada,
e como se deve fazer isto para enfrentar o inimigo rebelado da Holanda.

7. A "Descripción dei Brasil,,


A "Descripción de mil y treinta y ocho leguas de ti erra dei Est [ado]
do Brasil conquista dei Marafíon y Gran Pará", de Pedro Cadena de
Vilhasanti, é também uma relação geográfico-econômica de 1634. O autor
nasceu em Lisboa, filho de pais italianos, e desde 1624 serviu no Brasil
como capitão de caravelas, capitão-mor da Capitania da Paraiba e Pro-

(55) Três em Portugal e dois no Rio de Janeiro: os dois primeiros na Biblioteca Pública
Municipal do Porto, um em letra do século XVII, e outro cópia posterior; o terceiro, na Bi-
blioteca Municipal de Lisboa, Incompleto; o quarto, no Instituto Histórico e Geográfico Brasi-
leiro, em letra também do século XVII; e o quinto, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
cópia do apógrafo do Porto. O primeiro e o quinto vêm acompanhados de 18 e 22 mapas,
respectivamente, feitos, na sua maioria, por João Teixeira Albernaz, um dos grandes cosmógrafos
da época. Veja-se Livro que dá Razão do Estado do Brasil, edição de Hélio Viana, ob. clt.,
pp. 60 e 71.
(56) RIC, t. 2, 193-198; somente as últimas páginas segundo manuscrito da Biblioteca
Nacional de Lisboa, por iniciativa do Barão de Studart; RIHA, vol. XXIV, 14-17, por ini-
ciativa de Manuel Dlegues Júnior.
(57) S. Leite HCJB, VIII, 6; texto ln Livro Primeiro do Governo do Brasil 1607-1633,
Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro, 1958, 305-306.
(58) Livro Primeiro do Governo dó Brasil, ób. clt., 314•327.

457
vedar-mor do Estado do Brasil. Pela sua experiência nas lutas contra
os holandeses na Bahia e em Pernambuco e pela propriedade do ofício
de escrivão da Fazenda na Paraíba e Provedor-mor do Estado do Bra-
sil, Cadena podia escrever um relatório geográfico-econômico bem su-
perior ao que hoje conhecemos. ·É certo que ele quis ser breve, dirigindo-se
a Dom Gaspar de Guzmán, Conde-Duque de Olivares, senhor bem
poderoso do reinado de Filipe IV da Espanha. "Esta relación breve de
grandes sitias y esta pequena muestra de maravilhosas obras de natu-
raleza pongo a los pies de V. Excia. por saber que a la grandeza de
su capacidad no es necessaria mas noticia, para que lo compreenda todo,
ni a Ia infinidade de tantas occupaciones es razon cargar com prolixos
escritos." Assinada em Madri, aos 20 de setembro de 1634, Cadena
descreve toda a costa do Brasil desde o Amazonas ao Rio da Prata,
dando as distâncias, as produções e rendas das principais cidades do
Estado do Maranhão e do Brasil. Acreditamos que seu objetivo fosse
despertar a atenção de Espanha sobre a extensão e as riquezas da colônia
brasileira ameaçada pelos holandeses, que este ano estavam na expectativa
de sua grande vitória em Pernambuco, visto que a queda do Arraial do
Bom Jesus, em 1635, consolidou seu domínio. A "Descipción" foi encon-
trada em cópia na Biblioteca Ducal de Wolfenbuttel, pelo seu bibliotecário
G. E. Lessing (1729-1781), o poeta da Ilustração e o maior crítico de
sua época, que em colaboração com Christian Leiste, reitor da Escola Su-
perior Ducal, editou o manuscrito espanhol e uma tradução alemã. A
edição é prefaciada por Lessing e anotada e comentada por Leiste (59 ).
A publicação alemã baseada em cópia tão deficiente não é satisfató-
ria (66 ), mas o desconhecimento do original dificulta nova edição cuida-
da (61 ). Não se sabe como a cópia foi ter à Alemanha: a hipótese de que
Cadena já estivesse preparando o manuscrito por ocasião de seu aprisio-
namento pelos holandeses e que ele, capturado, fosse da Holanda parar
na Alemanha, é pouco provável, porque em 1628 Cadena já estava em
Lisboa e o manuscrito é datado de 1634. Supõe o diretor da Biblioteca
de Wolfenbuttel, Erhard Kaestner, que o manuscrito tenha sido adquirido
em 165 8, quando o Embaixador espanhol visitou Augsburg (62 ).

(59) Beschreibung des Portugiesischen Amerika, vom Cudena. Ein spanisches manuscript
in der Wolfenbüttelschen Bibliothek, herausgegeben von herrn G. E. Lessing. Mil anmerkungen
und zusatzen begleitet von Christian Leiste, Braunschweig, 1780, 160.
(60) O anotador cometeu vários enganos, mas teve o cuidado de enviar a obra a
Cristovão Gottlieb de Murr, que a remeteu a Anselmo Eckart, jesuíta que vivera longos anos
na Amazônia. Este escreveu uns acréscimos, corrigindo as notas de Leiste e fazendo obra
original, relativa às suas viagens e missões: Rcisen einiger Missionarlen der Gesellscha/t fesu in
Amerika aus ihrem eigenen Aufsatzen herausgegeben von Christoph Gottlieb von Murr. Numberg,
1785. (pp. 451-596, parte de Ans. Eckart.) Vide a história da edição e das redações entre os
diferentes eruditos alemães ln Ernesto Feder, "Uma viagem desconhecida pelo Brasil, Lessing,
Pedro Cadena e os Jesuítas", Cultura Política (Rio de Janeiro), Ano V, n.• 49, 1945, 113-128.
(61) O catálogo de Julian Paz, Manuscritos de America, não o regista.
(62) Ernesto Feder, "Lessing desconhece o Brasil", Diário Carioca (Rio), 30 de dezembro
de 1951.

458
Durante os combates de cerco da Bahia em 1638, pelos holandeses,
Cadena escrevia diariamente cartas ao Rei, relatando os episódios, as difi-
culdades e o heroísmo dos combatentes hispano-luso-brasileiros <6 3 l.

8. A "Relação das Capitanias do Brasil"


A "Relação das Capitanias do Brasil", diz Vamhagen na pequena nota
que precede a publicação <64 l, "foi escrita no princípio do século XVII
e encerra-se o seu maior valor em pertencer a uma época de transição
sobre a qual as mínimas notícias poderão interessar a quem fizer con-
frontações para acertar com a verdade histórica de algum fato importante".
Foi o próprio Vamhagen quem a copiou e ofereceu ao Instituto Histó-
rico. A relação não é datada, mas, começando a descrição setentrional pelo
Rio Grande do Norte com pequenas referências ao Maranhão e Amazo-
nas, deve ter sido escrita pouco depois da conquista do Maranhão iniciada
em 1613, e concluída em 1616, com a fundação de Belém.
Por outro lado, o fato de só descrever o sul, São Vicente, "que anti-
gamente foi cabeça desta Capitania", faz supor que a relação houvesse sido
escrita depois de 1624, pois entre esta data e 1679 deixou São Vicente
de ser a capital <65 l. Ao tratar da capitania de Itamaracá escreve que o
"capitão é posto pelo senhorio, e hoje esta em litígio entre o Conde de
Monsanto e Lopo de Sousa". Ora, a disputa entre D. Álvaro Pires cte
Castro e Sousa e a Condessa de Vimieiro, irmã de Lopo de Sousa, foi deci-
dida em 1617 <66 l. Tudo isso leva-nos a crer que tenha sido escrita aos
poucos, em épocas diferentes, a partir de pouco antes de 1617, quando o
pleito estava decidido e a notícia do Maranhão era recentíssima, e depois
de 1624, quando São Vicente foi destituída de cabeça de capitania. Como
as demais relações da época, esta descreve a costa, as povoações, os po-
voadores, os produtos, as rendas, a organização civil, militar e religiosa,
os ordenados dos funcionários e destaca os engenhos de açúcar.

9. A Relação das Capitanias da Repartição do Sul


Se aquela Relação findava em São Vicente, tendo sido escrita natural-
mente quando a conquista do Norte ocupava a atenção oficial, a Relação
das Capitanias da Repartição t;lo Sul, com suas barras e portos, escrita por
Pedro de Sousa Pereira, completa muito minuciosamente a descrição geo-
gráfica e econômica do Rio a Paranaguá, referindo-se apenas a São
Francisco (Santa Catarina) "aonde não cheguei". A Relação das Capi-
tanias de Pedro de Sousa Pereira, provedor da Fazenda do Rio de Janeiro
e administrador geral das Minas do Sul do Brasil, tem caráter oficial e

(63) Relação Diária do Cerco da Bahia de 1638: prefácio de Serafim Leite, notas de
Manuel Múrlas,, Lisboa, 1941. Duas cartas, de 18 e 19 de maio de 1638, foram antes publicadas
ln Fronteiras (Lisboa), ano 6, n.º 21, 9-10 (1935) e tirada uma separata, e reimpressas no vol.
93 da Braslllana, Páginas de História do Brasil (229-239). Na Relação Diária encontra-se valiosa
noticia biográfica sobre Cadena, por Nuno Lomellno da Câmara.
(64) RIHGB (1900), t. LXII, parte 1, 1-25.
(65) Pedro Taques, História da Capitania de São Vicente, São Paulo, s/d, 102-115.
(66) Pedro Taques, ob. cit., 92, nota 10 B de Rodolfo Garcia ln Varnhagen, História Geral
do Brasil, II, 171.

459
administrativo, informando sobre os problemas e recomendando a solu-
ção (67).

1O. Antônio Pereira de Berredo


Antônio Pereira de Berredo escreveu umas "Memórias" ainda inédi-
tas, compostas de uma série de pequenas notícias corográficas e históricas
relativas às capitanias do Maranhão, Piauí, uma descrição do Pará, via-
gens para a descoberta do Amazonas, e efemérides várias, sendo a última
a- de 15 de janeiro de 1661, o que fixa a data de sua elaboração <68 >.

11. A "Informação do Estado do Brasil"


A mais completa de todas as relações da época é a "Informação do
Estado do Brasil e de suas capitanias" (6 9 ), escrita por um "fiel e leal
vassalo e português antigo", e dirigida a uma personagem da C:orte, ligada
ao Rei, "por não ter V. Excia. as notícias cabais e necessárias de todas
elas, para segundo isso informar a Sua Majestade, lh'as quis finalmente dar
por papel como quem as correu, sem algum outro intento mais que o
serviço de Deus, aumento do Reino e conservação das mais conquistas".
O autor anônimo começa pelo Grão Pará, "cousa tão notável e grande
que os reis antigos de Castela ofereceram aos nossos de Portugal por ele
o reino de Galiza, e não quiseram aceitar a troca". O autor não se contém
nos louvores e exageros, e declara que "todo o seu sertão (Pará) é ouro
e prata", ou escreve "que a Bahia é cabeça do Estado do Brasil e se
considera não ter sua Majestade da cidade Lisboa afora, outra praça de
maior importância, assim pela quantidade de gente que tem, como pelos
seus cabedais, como também pelos seus negócios". Descreve a costa e as
povoações, légua por légua, as riquezas em açúcares que eram as maiores,
os fortes e forças, estas em sua maioria compostas de velhos e incapazes,
e chega à Colônia do Sacramento, fundada em 1680, sinal de que a "In-
formação" é posterior a esta data.
Comenta as desavenças sobre demarcações com os castelhanos, o
que avança a obra para depois de 1751, tratado de que resultaram as de-
marcações, sustenta os direitos de Portugal àquelas terras da Colônia <70 )
e escreve: "Desta situação <71 > têm os castelhanos grandes cócegas e ciú-
mes, não tanto pelas terras a beira-mar quanto por lhe cortarem pelo
nosso rumo a serra do Potosi, que vem correndo para a parte do Norte
e dizem se termina na altura de Porto Seguro; estas terras que conhecida-
mente pertencem ao nosso reino de Portugal se vai o castelhano senhorean-

(67) Publicada no "Inventário dos Documentos Relativos ao Brasil existentes no Arquivo


de Marinha e Ultramar de Lisboa" (Arquivo Histórico Ultramarino). ABN, voi. XXXIX, 205-208,
n.• 1.840.
(68) Catdlogo dos Manuscritos Ultramarinos da Biblioteca Pública Municipal do Porto,
Lisboa, 1938, n.• 7 (65-70), pp. 219-220.
(69) RIHGB, 1862, 25, 465-478. Pequeno trecho sobre os paulistas foi transcrito por
Capistrano de Abreu, Cap/tulos da História Colonial, 4.• ed. 1954, 191-192.
(70) Atuai Uruguai.
(71) Domínio português de Santos à Colônia.

460
do delas, como é a Província do Paraguai, Vila Rica e outras muitas, que
os mesmos castelhanos confessam são pertencentes ao reino de Portugal".
Para conservação da Colônia pleiteia a vinda de mulherio, "que é
o que conserva os homens". Admirador dos paulistas, acha que Sua Ma-
jestade podia valer-se dos homens de São Paulo "porque são homens ca-
pazes de penetrar todos os sertões por onde andam continuamente sem
mais sustento que caças do mato, bichos, cobras, lagartos, frutas bravas,
e raízes de vários paus e não lhes é molesto andarem pelo sertão anos e
anos, pelo hábito que têm feito daquela vida". Enumera os feitos paulis-
tas no domínio do gentio bravo e na conquista dos núcleos de resistência
de negros fugidos, como os Palmares: "O sertão todo que temos povoado
neste Brasil, eles o conquistaram do gentio bravo".
Lastima o estado miserável das capitanias, a carestia da vida com
a alta dos preços, que regista, e recrimina a intolerável exigência de va-
riados tributos, dízimos, subsídios, impostos e esmolas, bem como a
transferência "por deixa, ou por herança, ou por demanda" de muitas
fazendas e propriedades para as religiões, que não pagam tributos. "Se
Sua Majestade com tempo não acudir a isto, em breves anos se reduzirão
as conquistas da América ao estado da lndia. . . onde há conventos com
renda anual e Sua Majestade não tem cousa alguma."
O Autor não teme apontar ao Rei os desmandos e desordens, pois
os "seculares tinham receio de pleitos com os religiosos e quando eram
vizinhos acabaram largando por baixo preço a terra". Censura os missio-
nários, que só queriam "terras e mais terras", com o pretexto de que
são para os índios; "o título é santo, o intuito diabólico". Acha que de
3 em 3 anos se deviam retirar os governadores e que os desembargadores
são régulos e deuses e critica as ladroíces infernais dos provedores da
fazenda e do tribunal dos defuntos e ausentes. Revela a falta total de
justiça em Pernambuco, "onde mais gente se tem morto a espingarda de-
pois de sua restauração (1654) do que matara a mesma guerra".
Talvez seja este o espírito mais livre que escreveu sobre o Brasil
seiscentista, revelando as desordens e desmandos dos governadores, admi-
nistradores e religiosos, das minorias dirigentes luso-brasileiras sempre tão
inferiores ao povo, sendo que dos paulistas ele soube louvar e enaltecer
as qualidades de bravura, coragem, decisão e constância.

12. A Relação e Notícia de vários sucessos no Brasil


A Relação e Notícia de vários sucessos no Brasil. Cópia de uma
Carta, que por huma das Naos que proximamente chegarão mandou a
hum seu correspondente nesta Corte Luís Agostinho Varella assistente no
Rio de Janeiro, com outras mais notícias, extrahidas de várias cartas mais
recopiladas nesta Relação (72), colige variada informação sobre o Brasil,
(72) Lisboa, 1754. Faz parte da Coleção Barbosa Machado e se encontra colecionada no
volume Noticias hlst6rlca11 e Militares da América, colllgldas por Diogo Barbosa Machado, Abbade
da Igreja de Santo Adrião de Sever, e Acadimico da Academia Real, ABN, 1881, VIII, n.•
J.584, p. 377.

461
extraídas de cartas mandadas do Rio de Janeiro. A principal notícia era
das operações militares em que se achava ocupada a capitania, o alistamen-
to voluntário na tropa e os contínuos exercícios que se faziam, o que su-
geria conjeturar sobre movimentos bélicos. Os soldados se exercitavam
em ataques e outras coisas, mostrando disposição para empresas maiores.
Aos 9 de março de 1754 - o que marca a data da composição da
Relação - chegaram ao Rio de Janeiro duas naus de guerra que tinham
em outro tempo ido com gente de guerra à costa d'Africa. Relata as
dificuldades imensas sofridas por soldados e marinheiros nestas naus ao
chegarem ao Cabo da Esperança. Trata da África, de Moçambique, da
dificuldade de vencer os negros daquela costa africana, do avanço pelo
interior, das lutas com os africanos, da volta ao porto de Moçambique e
daí a volta para o Rio. A Relação não tem o menor interesse para o
Brasil e se indica isto para evitar que se perca tempo consultando-a.

13. "Máximas propostas" por D. Rodrigo José de Menezes e


Castro
Nas "Máximas propostas a S. M. para melhor Governo do Brasil" l7:ll,
tenta o autor D. Rodrigo José de Menezes e Castro, depois Conde de Ca-
valeiros, Governador de Minas Gerais (1780-1783), que se dêem mais
amplos poderes aos governadores. Merece ser editado pela importância
de suas reflexões.
Da mesma maneira deve-se procurar encontrar e publicar a "Descip-
ção Topographica, Ecclesiastica e Civil e Natural do Estado do Brasil",
composta por Bernardo Vieira Ravasco (Salvador, Bahia, 1617 - Idem,
1697) <74>, irmão do Padre Antônio Vieira <75 >.
Capistrano de Abreu, em carta de 5 de junho de 1886 a Lino de
Assunção <76>, depois de referir-se à descoberta da História do Brasil
de Frei Vicente do Salvador, escreve-lhe: "Quem sabe si não sucederá
o mesmo com a Descripção topographica e historica da Bahia de Todos
os Santos, escrita por Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre Antônio
Vieira? Ainda existia no tempo de Barbosa Machado que dela dá notícia.
"Em tuas investigações pelos arquivos e bibliotecas, peço-te que te
lembres dela; a sua importância deve ser capital; primeiro, porque o Século
XVII é muito menos conhecido, em conseqüência da guerra holandesa
ao norte e da fundação da Colônia do Sacramento ao sul terem absorvido
toda a atenção dos historiadores; segundo, porque Bernardo Vieira Ravasco
foi muitos anos secretário d'estado do Brasil, e portanto todos os documen-
tos e papéis oficiais passavam-lhe pela mão; terceiro, porque ele era muito
inteligente e perspicaz."

(73) Lisboa, 1780 in Carlos Alberto Ferreira Inventário dos Manuscritos da Biblioteca da
Ajuda Referentes à América do Sul, Coimbra, 1946, p. 597, n.• 1.995.
(74) Vide citação in Alberto Lamego A Academia Brasliica dos Renascidos, Paris, 1923, 67.
(75) Sacramento Blake Diccionario Bibliographico Brazlielro, Rio de Janeiro, 1883, 1,
421-422.
(76) Luls Silveira (editor). Cartas de Caplstrano de Abreu a Lino de Assunção, Lisboa,
1946, p. 50.

462
CAPITULO III

OS INSTRUMENTOS DO TRABALHO
1. Os Instrumentos do trabalho histórico. 2. Diogo Ba1-
bosa Machado. 3. Antônio Caetano de Sousa. 4. Antônio
de Santa Maria Jaboatão. 5. Antônio José Vitoriano Bor-
ges da Fonseca.

1 . Os Instrumentos do trabalho histórico

O que se deu na Europa por volta do século dezessete, ao se criarem


as disciplinas auxiliares que impulsionaram a crítica histórica e com ela
o desenvolvimento geral da historiografia, verificou-se no Brasil no século
dezoito, quando não só em Portugal, como no Brasil, apareceram as gran-
des bibliografias históricas, as genealogias e as academias promotoras do
cultivo oficial da literatura e da história.

2 . Diogo Barbosa Machado


A primeira figura é Diogo Barbosa Machado (Lisboa, 1632 - Lis-
boa, 1772), um dos primeiros cinqüenta acadêmicos da Acidemia Real da
História Portuguesa, ao lado de Antônio Caetano de Sousa, Alexandre
de Gusmão, o Conde de Ericeira (D. Francisco Xavier de Menezes), Ra-
fael Bluteau, que pelos seus trabalhos ajudaram o desenvolvimento da
historiografia brasileira (1).
A grande obra de Barbosa Machado é a Bibliotheca Lusitana, Histo-
rica, Critica e Chronologica <2 > e seus outros trabalhos, todos secundários,
estão registrados pelo seu continuador Inocêncio Francisco da Silva <3 >.
Sua fonte principal foi a Bibliotheca Lusitana escrita pelo Padre Fran-
cisco Galvão ( ? - :Évora, 1627), livro original que registrava 677 auto-
res portugueses com muitas circunstâncias individuais. Já se escrevia em
1721, que para a Biblioteca Histórica que Barbosa Machado prometera
escrever, o autor (Francisco Galvão) dava "muita luz, unindo-se aos que

(1) A história da Academia se lê em José Silvestre Ribeiro, História dos Estabelecimentos


Clentlflcos, Literdrlos e Artlstlcos de Portugal nos Sucessivos Reinados da Monarquia, Lisboa,
1871-1885, 14 vols.
(2) .•. na qual se compreende a not leia dos autores portugueses, e das obras que compu-
zeram desde o tempo da promulgação da Lei da Graça até o tempo presente Lisboa, 1741-1759.
4 vols.
(3) DBP, 2, 144-147, 9, 120.

463
sobre este assunto escreveram João Franco Bernardo, João Soares de Brito
e o Padre Francisco da Cruz da Companhia de Jesus" <4 >.
A Bibliotecha Lusitana é a coroa de todos esses esforços e só veio a
ser superada pelo Diccionario Bibliographico Portuguez de Inocêncio Fran-
cisco da Silva <5 >.
Matheus Saraiva - em carta escrita do Rio de Janeiro, aos 20 de ou-
tubro de 1742 (6), que estudou filosofia e depois medicina, natural de Lisboa
(1687 - ?) e foi médico no Rio de Janeiro, do presídio e da Câmara,
e foi depois nomeado cirurgião-mor do Rio de Janeiro - comunicou a
Diogo Barbosa as obras que compusera ou estava compondo a "De Re
Medica" e a "De Re Naturali" e pedia que o mesmo lhe desse o crédito
que ele pensava merecer da erudita pena de Barbosa Machado, que a ele
se referiu, embora nenhuma dessas duas obras tenham sido publicadas e
sim suas orações acadêmicas <7>.
Escreve Afonso Taunay que Pedro Taques já era septuagenário quan-
do conheceu Barbosa Machado e teve o prazer de conhecer a sua admirá-
vel coleção (8).
Já me referi ao que de Diogo disse seu irmão Inácio, que lhe era
muito inferior.
Barbosa Machado escreveu ainda as Memórias para a história de
Portugal, que compreendem o governo d'el Rey D. Sebastião ... (9)
Como bibliógrafo sua influência foi preciosa à formação dos estudos
brasileiros, e todos os eruditos tiveram de recorrer à Bibliotheca Lusitana,
ainda depois de publicado o Diccionario de Inocêncio Francisco da Silva.
Sua influência se exerceu ainda como bibliógrafo e a sua esplêndida e esco-
lhida livraria, que guarda seu nome, veio com D. João, Príncipe Regente,
e constituiu o acervo inicial da Biblioteca Nacional, negociada e comprada
pelo governo brasileiro no reconhecimento da Independência, e não doada
como ,geralmente se pensa.
Segundo o estudo de Vale Cabral, ela constava de 34 classes, com
4.301 obras em 5.764 volumes. Abrangia várias edições princeps, obras
raríssimas e preciosas, onde estavam representadas quase todas as edições
originais de poetas e historiadores portugueses e castelhanos e quase todos
os escritores ascéticos que escreveram nas duas línguas.
O mais importante são os folhetos raros, relativos à história de Por-
tugal e do Brasil, reduzidos a um só formato, reunidos em 155 volumes,
que constituiram o acervo inicial da Biblioteca Nacional.

(4) Colleçam dos Documentos, Estatutos e Memorias da Academia Real de Historia Por-
tuguesa ... ordenada:; pelo conde de Vila Mayor, Secretario da Academia, Lisboa, 1721.
(5) Lisboa, 1858-1870, 9 vols., continuados por P. V. de Brito Aranha, 1883-1914, do
10.• ao 21. 0 vol., afora o Gula Blbliogrdflco de Ernesto Soares, Lisboa, 1972, os Aditamentos
de Martinho da Fonseca, Lisboa, 1972 e os Subsídios para um Dlcclonarlo de Pseudonlmos
Inlclaes e Obras Anonima:; por Martinho A. da Fonseca. Lisboa, 1972.
(6) RIHGB, 1844, 6, 365-369.
(7) DBP 1895, 17; 13.
(8) Afonso d'E. Taunay, Pedro Taques e seu tempo, S. Paulo, 1927. 65.
(9) Lisboa, 1736-1751. 6 vais.

464
Sua biografia foi escrita por Ramiz Galvão no primeiro volume dos
Anais da Biblioteca Nacional como homenagem ao grande bibliógrafo e
bibliófilo, a quem devia a Biblioteca a valiosa coleção que traz seu nome(10J,
e a sua coleção descrita pelo mesmo Ramiz Galvão (11 >.
Dele escreveu em admirável sintese o esplêndido autor inglês Aubrey
F. G. Bell de A Literatura Portuguesa (História e Crítica) (t2) que ele
"passava vida longa em estudos bibliográficos compilando a sua magnifica
e indispensável Bibliotheca Lusitana com uma generosa inexatidão, que se
acha agradável no meio das minuciosidades pedantescas de tempos mais
recentes".

3 . Antônio Caetano de Sousa


Antônio Caetano de Sousa (Lisboa, 1674 - Lisboa, 1759), clérigo
regular, deputado da Junta da Bula da Cruzada, foi um dos primeiros
cinqüenta acadêmicos da Academia Real da História Portuguesa, e foi
o grande genealogista que orientou os estudiosos brasileiros. Ele tinha bas-
tante consciência da obra que produzia, tanto que na sessão da Academia
de 25 de janeiro de 1725 declarava que "fez pausa nas suas 'Memórias
do Ultramar' enquanto não chegam algumas notícias de que necessita para
averiguação de uns pontos com que me acho embaraçado", mas da sua
aplicação "resultará um geral serviço a todos os meus venerandos colegas",
a obra "será um socorro que poupando-lhes trabalho, lhes será tão útil,
como muitas vezes precisam", e que "vem a ser a História Genealógica da
Casa Real de Portugal, reduzida a táboas, seguindo a série dos nossos
reis antigos, com todas as suas descendências, a Casa Real hoje felizmente
reinante, e todas aquelas, que têm a honra de descender por Baronia
de nossos Reis. Ao que ajuntarei algumas ilustrações por sua ordem e su-
posto que suscintas, de sorte, que possam instruir e dar conhecimento das
mais insígnes ações dos nossos Monarcas, e daqueles heróis que recebendo
deles o sangue e o valor, se fizeram conhecidos e respeitados.
"Esta obra", continua autodescrevendo sua grande História Genealó-
gica, "é um mapa de pequeno ponto, mas nele se verá toda a história dos
nossos Reinos, livre de disputas, pois todos os pontos mais principais, ou
sejam militares ou politicos, nela se contêm. Sigo as opiniões mais certas,
e aquelas, que ao juizo dos doutos e mais prudentes escritores são de
uma indisputável verdade". E continuando suas informações aos seus co-
legas da Academia, Antônio Caetano de Sousa acrescentava: "Seguirei o
mais provável, na segura opinião dos mais exatos professores deste estu-
do, que não é tão inútil, como alguns inconsideradamente publicam, porque
a genealogia é uma parte inseparável da História, que é geral, quando se
forma somente particular a genealogia. Não pode ser bom historiador, a
(10) ABN, 1876, vol. I, 187, 1-43.
(li) ABN, 1, 248-265; li, 128-191; 111, 162-181, 279·311; Vlll, 221-431; e modernamente
por Rosemarle E. Horch, "Catálogo dos folhetos da Coleção Barbosa Machado", ABN, 1972,
vol. 92, 11-251.
/ 12) Coimbra, 1931.

465
quem falte sequer uma breve notícia dela, pois quando na sua História
der a conhecer as pessoas somente pelos seus merecimentos, parece-lhe
ignore a qualidade, que lhe deu nascimento. Porque tão grande erro
será em um historiador, tratar a um senhor grande, sem diferença de um
homem particular, como um homem, que se fizer fidalgo, honrado, tratá-
lo como aqueles que são de mais ilustre caráter, porque a categoria deve
ser observada com distinção, em um, e outro sexo, e esta é a maior difi-
culdade" (13 >.
Em novembro de 1725 <14 l voltava a falar na Academia sobre sua
obra e esclarecia: "entrara a dividir esta obra em três partes: tratando na
primeira da Casa Real Antiga, que compreende desde o Conde D. Henri-
que, até o Reinado d'el Rei D. Sebastião e seu tio El-Rey D. Henrique;
na segunda da Casa Real Reinante, com a sereníssima Casa de Bragança,
e de todas as famílias que têm a honra de procederem dela por baronia;
e na terceira das famílias que por baronia procedem dos nossos Reis anti-
gos". Comunicava por fim que não podia fazer juízo certo sobre o tempo
que gastaria na composição das partes, por ser a matéria larga não só
pelo muito que compreendia, mas pela sua averiguação que na genealogia
era a parte- mais dificultosa. Apesar de todas as dificuldades ele prosse-
guiria com o mesmo gosto e cuidado, com que lhe dera princípio "para
que com a maior brevidade a possa sujeitar à censura da Academia".
A transcrição de suas palavras ditas na Academia é longa, mas re-
vela o esforço do autor, e pelo seu método e resultado, a enorme influên-
cia que iria ter no desabrochar dos estudos genealógicos brasileiros de
Pedro Taques, de Jaboatão, de Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca,
de Loreto Couto.
Aos 24 de julho de 1726 comunicava que "apesar dos esforços que
exige sua História Genealógica, não se esqueceu das 'Memórias das Igre-
jas Ultramarinas' " e que está arrumando um "Catálogo dos Bispos da
Igreja de Ceuta", a mais antiga conquista portuguesa.
Aos 3 de agosto de 1730 ele entregava o 1.0 tomo de Genealogia e
aos 16 de novembro do mesmo ano repetia a entrega do 1.0 tomo, que
estava sendo examinado pelo Conde de Ericeira, e por Martinho de Men-
donça de Pina e Proença; a segunda parte já estava pronta. Convencido
do seu trabalho, afirmava "que nenhum outro vassalo de V. M. de tantos
e tão eruditos na História e na Genealogia até agora empreendeu, e quando
não consiga a perfeição que merece a matéria de que se forma, ninguém
me negará o trabalho de ,empreender o assunto. Os defeitos do Autor se-
rão dissimulados pelo assunto''.
Aos 23 de maio de 1727, doente, prosseguia os trabalhos e relatava
o que fizera na genealogia, e nas "Memórias", e aos 22 de outubro do
mesmo ano voltava a falar: "esta matéria a mais nobre, a mais alta, e
também a mais difícil de que se compõe a História, é tomada genericamen-

(13) Colleçam dos D ocumentos, Estatutos e M emorias da H istoria Portuguesa, ofJ. cit .,
Lisboa 1725, sessão de 25 de Janeiro de 1725.
(14) Colleçam cit.

466
te sem separação de partes, porque a genealogia não é menos necessana
para a inteligência da História política, do que a geografia. Se a História
de que é objeto um herói, refere suas ações mais ilustres, com que se
fez célebre no grande teatro do Mundo, a genealogia o dá a conhecer,
investigando a sua origem, fazendo-o respeitado, antes que nascido na
memorável antigüidade, de que deduz o seu princípio, ficando assim
mais ditosa a sua posteridade".
Revela nesta mesma sessão que "da Real Casa de Bragança descen-
dem 3.268 pessoas entre soberanos da Europa e muitas famílias ilustres".
A obra foi trabalhosa e exigiu tempo para as pesquisas que realizou; assim
aos 5 de março de 1733 ainda não entregara o 2. 0 volume porque conti-
nuava nas diligências.
Aos 15 de abril de 1734, Antônio Caetano volta falar na Academia
já com 4 volumes impressos, que "não há neste gênero obra mais estimá-
vel pelas muitas notícias que pela primeira vez aparecem, pelo grande nú-
mero de instrumentos autênticos com que tudo se confirma. tirados e
decifrados com incrível trabalho dos melhores arquivos". Desde 1735 é
louvado pela "perfeita contextura da História Genealógica da Casa Real
Portuguesa c1s l dando a conhecer nela e no seu Proêmio ( 1.0 vol. publi-
cado) as sólidas notícias que tem desta Ciência e sua vasta erudição".
Além de História, Antônio Caetano publicou as Provas da Historia
Genealogica da Casa Real Portuguesa tiradas dos instrumentos do Archivo
da Torre do Tombo (16), o lndice geral dos appellidos, nomes própios, e
cousas notaveis que se compreendem nos treze tomos da Historia Genea-
logica e dos documentos compreendidos nos seis volumes de Provas com
qu se acha autorizada a mesma Historia (17) e a Serie dos Reis de Por-
tugal, reduzida a taboàs genealogicas com breve noticia historica (18 ), as
Memorias historicas e gen?alogicas dos grandes de Portugal (19).
Além disso tudo - que é muito - deixou inédito o "Catálogo dos
Arcebispos da Bahia e mais Bispos seus suffragâneos que Antônio Caeta-
no de Sousa, clérigo regular, ofereceu à Academia Real de História" c2 0>,
Com esta formidável obra no sentido quantitativo e com a importân-
cia que então se dava à genealogia, Antônio Caetano exerceu uma influên-
cia formidável sobre todos os historiadores brasileiros, oitocentistas e pos-
teriores, os que já citamos, e mais Domingos do Loreto Couto, que o chama
de douto autor i 21 l e nele buscaram muita informação para o estudo das
capitanias.
Afonso Taunay contou a profunda veneração que Pedro Taques tinha
por Antônio Caetano de Sousa <22 >. O período fora fértil em eruditos, e
estimulara a investigação documental que em Portugal exerceram Diogo
(15) Lisboa, 1735-1748, 12 tomos.
(16) Lisboa, 1739-1748, 6 tomos.
(17) Lisboa, 1749.
(18) Lisboa, 1743, obra raríssima por terem sido publicados arenas 25 exemplares.
(19) Lisboa, 1739.
(20) O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro possui cópia.
(21) "Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco" ABN. 1904. XXV, p. 91. n.• 75.
(22) Pedro Taques e seu tempo, ob. cit., p. 65.

467
Barbosa Machado, Antônio Caetano, Rafael Bluteau, Frei Joaquim Sousa
Viterbo, Antônio Ribeiro dos Santos e Antônio Caetano do Amaral.
Na Teoria da História do Brasil dei-lhe o destaque merecido <23 >.

4. Jaboatão
Já tratamos de frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, como autor
da história franciscana no Brasil, mas aqui ele entra com o seu "Catálogo
genealógico das principais famílias que procederam de Albuquerques e
Cavalcantes em Pernambuco, e Caramurus na Bahia" <2 4).
A lição viera de Antônio Caetano de Sousa, mas a genealogia em
Jaboatão assumia aspectos sociais, indispensáveis à reconstituição da so-
ciedade brasileira. Mesmo àqueles que não tiveram esse intuito, a riqueza
da informação familiar permite conclusões sociais, como acentuei e exem-
plifiquei na Teoria da História do Brasil <2 5).
No "Catálogo" Jaboatão não se descuidou das fontes de que se utili-
zou, tratou da guerra holandesa, de senhores de engenho, de casados com
pretas, de índios, do sertão, de apelidos, de levantes em Pernambuco, de
donatários e governadores, de cristãos-novos, de órfãos, de bexigas, de
morgados, de capelas, de desembargadores, de homens ricos, de crueldade
contra escravos, de bastardos, de filhos naturais e de padres, dos formados
em Coimbra, dos que matam padre e sofrem degredo, dos degolados,
dos franciscanos, de Caramuru, de adultérios, de desquites, de mestiçagens,
da limpeza de sangue, de jogadores, que jogavam tudo o engenho e a
mulher, de fazendas, do Rio de Janeiro, de pestes, de estudos de latim,
filosofia e teologia, dos sangradores e barbeiros.
Como se vê, um mundo de variedades que só se descobre lendo,
apesar da repulsa geral que inspira um catálogo genealógico.
Afonso Costa procurou tornar mais fácil a sua consulta, levantando
um 1ndice de famílias e um 1ndice Geral <26 >. Mas nem isso dispensa a
leitura cuidadosa do Catálogo que revela muito mais que se espera.
A genealogia foi largamente estudada no Brasil, especialmente a par-
tir do século dezoito, como se verá neste estudo e como se verifica na
bibliografia histórica (27).
Sílvio Romero na sua História da Literatura Brasileira <28) escreven-
do sobre Pedro Taques faz uma observação crítica que atinge todos os
genealogistas. Começa escrevendo que numa história na qual não se sen-
tisse viva e estuante a emoção dos talentos ou a índole irrequieta da alma
popular, Pedro Taques com suas longas genealogias pouco teria que ver.

(23) Comp. Ed. Nac. São Paulo, 4.• ed. 1977, 253, 259, 263-264.
(24) RIHGB, 1889, t. 52, !.• parte, 5-489 reproduzido do original existente no Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro.
(25) 4.• ed. 1978, 257-263, esp. 261.
(26) RIHGB, 1948, 191, 3-279.
(27) CEHB, 1881, classe XIII Biografia § 1 Genealogia e Heráldica, pp. 1.297-1.300.
(28) Rio de Janeiro, J. Olymplo, 4.• ed., 1949, 2 ts., p. 247.

468
"No mundo da realidade, porém, quando se procura a vida do povo, 'não
em fórmulas, mas em fatos positivos, o paulistano é talvez o mais signifi-
cativo dos nossos cronistas.
"Que era antes dele a história nacional? A enumeração dos reis da
metrópole e dos governadores da colônia, a biografia dos missionários, a
crônica das ordens monásticas.
"Era uma história exterior, decorativa e insignificante na sua preten-
siosidade espetaculosa. Passava-se na rua, ao ar livre, é certo; porém me-
tida num palanque ou num coreto; não era no chão das praças; no meio
da onda popular ...
"Taques tirou-a do palanque, arrancou-lhe as capas, jogou-as na rua
com a introdução de um novo elemento - o povo. Não era ainda o
povo brasileiro em sua totalidade, era ele escolhido, representado, nobi-
liarquizado; em suas principais famílias mas era ele. O alcance é imenso."
A verdade, porém, é que os autores do século dezessete já haviam
tratado esporadicamente do povo. :E: o caso de Frei Vicente e de Manuel
Calado, ao contrário da História da América Portuguesa de Rocha Pita.
O que há de novo com Pedro Taques, Jaboatão, Borges da Fonseca
e Loreto Couto é que eles começam com as nobiliarquias e as genealogias
a incorporar as gentes que tiveram êxito na colônia. E não propriamente
o povo, a arraia-miúda, que nem com Varnhagen aparece. Deve-se reconhe-
cer que ao tratar dos grandes alguns pequenos aparecem.

5. Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca


Biografia
De todos só Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca (Recife
1718 - Olinda 1786) não foi ainda tratado nesta historiografia. Filho
de militar português (Antônio Borges da Fonseca), governador da Paraí-
ba ( 1745-1753), falecido aos 73 anos (Beira Alta, Portugal 1680 - Olin-
da, 1754), teve educação humanista, aprendendo latim, retórica, filosofia
obtendo o grau mestre em artes, pelos estudos gerais no Colégio da Com-
panhia de Jesus de Olinda. Seguiu a carreira militar, que era a de seu
pai, e lutou pela Colônia do Sacramento ( 1736-41) onde obteve o posto
de tenente; no regresso foi comandante da ilha de Fernando de Noronha
(17 41-42). Foi a Portugal ( 1744), quando foi admitido como familiar
do Santo Oficio e recebeu a comenda de cavaleiro da Ordem de Cristo
(1745). Voltou a Pernambuco como Ajudante de tenente de Mestre-de-
Campo-General (1746), depois promovido a Sargento-mor (1753) e a
tenente-coronel ( 17 56) .
A carreira militar serviu muito como fonte de recrutamento de posi-
ções civis de mando, como capitães e governadores. Seu pai Antônio, mi-
litar, fora governador da Paraíba e Antônio José é nomeado pelo governa-

469
dor de Pernambuco, D. Antônio de Sousa Manuel de Menezes, Conde dt
Vila Flor ( 1763-1768), governador do Ceará, dependente de Pernam-
buco, tal como seu pai.
Como administrador Borges da Fonseca governou o Ceará por dezes-
seis anos (1765-1781) (29 > e sobre seu governo escreveu excelente estudo
o Barão de Studart (30) no qual salienta a devassa contra o ouvidor Vito-
riano Soares Barbosa, a marcha do processo, e revela a luta contra facino-
rosos que provocavam desordens (3l) e ainda sua luta tentando minorar
os efeitos da seca rigorosa de 1777-1778. Cansado e envelhecido não
aguardou seu substituto, entregando o governo a uma junta interina; sobre
seus secretários de governo escreveu J. B. Perdigão de Oliveira (32 ). Seu
filho do mesmo nome foi revolucionário de 1817 tendo sido preso e re-
metido à Bahia, donde saiu com o decreto de anistia da revolução por-
tuguesa de 1820 (33).
Ele foi militar, governador e estudioso, tendo pertencido à Academia
Brasílica dos Renascidos. Em carta agradecendo sua eleição Borges da
Fonseca declara já ter "muitas memorias em estudo de se pôrem a limpo
e poderão servir para diversos assuntos, porque nelas se acham muitas
noticias uteis da historia eclesiastica, civil e militar de Pernambuco e
todas quantas pode haver com verdade, pertencentes à genealogia, na
qual tenho feito maiores progressos por haver composto mais de tresentas
arvores de costado, com tanta verdade, que não me perguntarão sobre elas,
cousa que não possa responder com documentos veridicos". Dizia ainda
ter muitas notícias e que brevemente conseguirá todas necessárias para
se escrever a segunda parte da Nova Lusitana (34), que principiou Fran-
cisco Brito Freire, e afirmava ainda que com as memórias que nos restam,
julgo seria conveniente completar-se uma história que é a mais verdadeira
que temos, das guerras brasílicas (35 >.
Obras
Esclareceu Studart que além da "Nobiliarchia Pernambucana" Borges
da Fonseca escreveu uma "Memoria sobre a Capitania do Ceará" (1768)
e uma "Chronologia das mesmas capitanias" ( 1778).
Desde Loreto Couto sabia-se dessas memórias. Este escrevera que
ele era "sumamente inclinado à lição da história sagrada, como profana,
versado nos ritos e cerimonias sagrados e nas línguas mais polidas da Euro-
pa, e muito instruído nas ciencias e artes necessarias ao carater da sua
pessoa. Parece incrivel que lhe reste tempo das suas grandes ocupações
para escrever materias tão diversas" (36).

(29) S. M. tomou conhecimento de sua posse em 1766; ver DHBN, 1951, XCII, 84-85.
(30) "Antônio José Vitoriano Borges da Fonseca e seu governo no Ceará", RIC, 1890, IV,
189-245 e vide nota crítica de J. H. Rodrigues in índice Anotado da Revista do Instituto do
Ceará, Ceará 1959, 345-346.
(31) DHBN, 1951, XCII, 111-114.
(32) "Os Secretários de Borges da Fonseca" RJC, 1896, X, 134-141.
(33) DHBN, 1954, CVI, 134.
(34) História da guerra brasllica, Lisboa 1675.
(35) Alberto Lamego, A Academia Brasílica dos Renascidos, Paris, 1923, 114-116.
(36) D. do Loreto Couto, "Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco", ABN, 1904,
XXV, 28.

470
A "Nobiliarchia Pernambucana" foi primeiro publicada incompleta em vanos
números da Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano
desde o n.º IV (1864) até o XIII (1908) (37). Coube à Biblioteca Nacional editar o
texto integral da "Nobiliarchia" em 1935 (38).
A edição da Biblioteca Nacional foi extraída da cópia Studart (ou cópia B),
feita em 1891-1892 por Antônio Cavalcanti Albuquerque Pimentel, recolhido ao Ar-
quivo Público do Ceará, copiada datilograficamente, trabalho concluído em abril de
1934 e denominada cópia 81, por José Antônio Gonçalves de Melo e oferecida à
Biblioteca Nacional, que a publicou. Esses dados são extraídos do mais sério estudo
da crítica textual feita sobre os originais e cópias da "Nobiliarchia" pelo competente
e cuidadoso Professor José Antônio Gonçalves de Melo, neto (39).

A Nobiliarchia é um livro rico e generoso de informações biográfi-


cas, sociais, psicológicas, econômicas e raciais. Borges da Fonseca dá mui-
tos elementos sobre a guerra holandesa, sobre os que lutaram e se toma-
ram heróis. Matérias sobre engenhos e senhores de engenho de grossos
cabedais, morgados e apelidos são as mais tratadas. O autor fala dos
desembargadores, juízes, usa muito as palavras pátria, no seu sentido de
local de nascimento, e república como a coisa pública, e não o regime;
não deixa de mencionar os dàutores, filósofos, teólogos, oradores, advoga-
dos, médicos, cirurgiões, genealistas, mestres de solfa e dança, poetas,
intérpretes, lavradores, cristãos-novos, índios. Menciona pestes, doenças,
melancolias, o grande número de filhos, a mortalidade infantil, sangue
limpo ( raça e religião), não se esquece de anotar as mulheres formosas,
os casamentos clandestinos nem os padres que fugiam com mulheres, nem
a falta de clérigos, nem os levantes, os Mascates, os Palmares, os soltei-
ros, os sem filhos. Rio, Angola, São Paulo, Minas Gerais, tndia são
muito referidos. Suas fontes, quer primárias de arquivos públicos e parti-
culares, de cartórios ou informações pessoais são sempre referidas; os
livros genealógicos, a começar de Antônio Caetano de Sousa; as memó-
rias genealógicas de José de Sá d'Albuquerque; o Teatro Genealógico
de Manuel de Carvalho de Athayde; a bibliografia de Barbosa Machado;
historiadores como Pedro de Mariz, Manuel Calado, Brito Freire, Rafael
de Jesus; a Nobiliarchia Portuguesa de Antônio de Vilas Boas Sampaio;
as Memorias de Duarte de Albuquerque Coelho; a Corografia Portuguesa
de Antônio de Carvalho Costa; o historiador luso-espanhol Manuel de
Faria e Sousa; Sebastião da Rocha Pita; Frei Manuel de Sá nas suas Me-
mórias Carmelitas; o Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso; Frei Vicente
do Salvador, citado através do Santuário Mariano de Frei Agostinho de
Santa Maria; Barleus; as Memórias do Capitão Jerônimo de Farias de
Figueredo. Tudo isto no primeiro volume (40). No segundo (41>, novamente
o Senhor de Engenho é a personalidade central; a guerra holandesa o
grande acontecimento histórico com seus grandes heróis; a libertação ne-
gra pela guerra; os apelidos; as alcunhas; a miscigenação, com negros e

(37) Vide descrição dos vários números in J. H. Rodrigues lndice Anotado da Revista do
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, Recife, 1961, pp. 250-252.
(38) ABN, 1935, XLVII-XLVIII, e separata do mesmo ano.
(39) "A Noblllarqula Pernambucana" in Estudos Pernambucanos Recife, 1960, 93·138.
(40) ABN, ob. clt., vol. 47.
(41) ABN, ob. clt, vol. 48.

471
índios; os morgados; os bastardos; os filhos naturais; os grandes cabedais
dos homens ricos; as classes sociais; os homens de negócios; os desembar-
gadores, um dos quais degredado para o Brasil pelo crime de morte devido
a uma mulher casada; os filósofos, teólogos, historiadores, genealogistas,
poetas, doutores em direito, médicos; os homens com várias mulheres;
os Tenórios, filhos naturais de Luís Tenório de Molina; os cristãos-velhos;
a limpeza de sangue de judeu, índio ou negro; os senhores de terra; os
juízes de órfãos, tão importantes na situação social colonial; os velhos de
90 e 100 anos; os casais com numerosos filhos; os casais sem filhos; os
órfãos; as paixões e os crimes; os fazendeiros de gado; mercadores; ren-
deiros; os cristãos-novos; as lutas no Maranhão; a guerra dos Palmares
e os casos pessoais; o que se casou por gosto ou por amor; o que se
casou com mulher formosa; o Senhor de Engenho que joga o Engenho e
a mulher; as brigas familiares; o assassinato de cônegos; os casamentos
de primos e de tios e sobrinhas; as fontes de que se serviu sempre, arqui-
vos, cartórios, informações diretas orais, e os livros dos autores já citados.
fndia, Angola, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Olinda, Recife, Pernam-
buco são muitas vezes citados.
Aparecem novos autores como Rodrigo Mendes da Silva, cronista ge-
ral da Espanha; cita muito o Theatro Genealógico de D. Tivisco de Nasao
Zarco y Colona, pseudônimo de Manuel de Carvalho de Athayde, refere-
se a Pedro Cadena de Vilhasanti recentemente com obra publicada, muitos
cadernos manuscritos que andou lendo, e novamente Duarte de Albuquer-
que Coelho, Antônio Caetano de Sousa, Brito Freire, o clássico Frei Antô-
nio Brandão da Monarchia Lusitana, as Memórias de Antônio de Sá de
Albuquerque e as de José de Sá, o Agiologio Lusitano de Jorge Cardoso,
Rafael de Jesus, Frei Vicente do Salvador, novamente citado por intermé-
dio de Frei Agostinho de Santa Maria, Calado, Bernardo Pereira Berredo,
este só agora citado e uma segunda vez, a Chronica de Simão de Vascon-
celos, as Memórias de Antônio José de Melo, o Nobiliário de D. Pedro,
a História Seráfica cronológica de Frei Fernando da Soledade, o cronista-
mor Manuel dos Santos autor de Monarchia Lusitana, e novamente os
cartórios, arquivos de Mosteiros e Ordens, o Dictionnaire historique de
Louis Moreri, Barbosa Machado, a Corografia de Antônio de Carvalho
da Costa, as Memórias (inéditas) de Fernando Fragoso de Carvalho, as
Memórias do capitão Antônio Feijó de Melo <4~>.
Crítica
Um vasto conhecimento, uma pesquisa incansável, permitem reunir
a minuciosa matéria deste livro, cheio de contos e histórias, de casos e
de graça, social e psicológico, racial e econômico, embora de difícil leitura
e muitas vezes de uma aridez cansativa, sobretudo pelas inumeráveis
repetições.

(42) Não fiz Indicações bibliográficas completas, mas no estudo de José Antônio Gonçal·
ves de Melo , neto, no Catálogo da Exposição de História do Brasil (1881), na Historiografia e BI·
bliogra/ia do Domínio Holandês no Brasil (1949) de José Honório Rodrigues, e nos Dicionários
de Inocêncio Francisco da Silva e de Sacramento Blake se encontram os dados completos.

472
Fazendo uma resenha final sobre as letras na administração pombali-
na, Vamhagen apenas menciona a Nobiliarchia Pernamb11cana e seu autor,
sem fazer nenhum comentário.
Já Studart quando escreveu sobre o governo no Ceará do Iinhagista,
depois de louvar-lhe os méritos como autor de uma "Memória sobre as
Capitanias do Ceará" (1768) e de uma "Chronologia da mesma Capita-
nia", afirmou que não são esses trabalhos que revelam sua inteligência
e conhecimentos variados, mas sim a "Nobiliarchia", então ainda inédita
e citando Antônio Joaquim de Melo disse ser "obra dificílima e de inter-
mináveis diligências e trabalho, a qual posto que incompleta, é todavia
digna de apreço por nos dar a conhecer e conservar as genealogias de
muitas famílias da província". Solicitava que o governo tirasse "da obscu-
ridade imerecida este inédito, que tanto honrará ao Brasil, como perpetua-
rá a memória de tão erudito pernambucano" e finalizava afirmando que
muitos escritores têm tirado da "Nobiliarchia" dados e interessantes obser-
vaçõe~, citando como exemplo Pereira da Costa, em cujo Diccionario Bio-
graphico de pernambucanos celebres <43 ) figura a biografia de Borges da
Fonseca, e o Dr. Guilherme Studart, com seu "Antônio José Victoriano
Borges da Fonseca e seu governo no Ceará" <44l.
Capistrano, como sempre cauteloso, escreveu a João Lúcio de Aze-
vedo que Taques, como todos os genealogistas, merece confiança limita-
da, e que o mesmo sucedia ao livro de Borges da Fonseca, ainda publicado
incompletamente pela Revista do Instituto Arqueológico (45).
O estudo mais completo e valioso, a crítica mais rigorosa, é o de José
Antônio Gonçalves de Melo, neto <46). Nele José Antônio faz-lhe a biogra-
fia, estuda-lhe o texto e sua cronologia, as cópias, as edições, os manuscritos
genealógicos anteriores, os manuscritos diversos de informação genealógica
e histórica, os livros de informação genealógica e histórica, o conceito dos
contemporâneos acerca do Autor, e as notas finais.

(43) Recife, 1882.


(44) RIC, 1890, IV, 231-234.
(45) Correspondêncía, ed. por J. H. Rodrigues, Rio de Janeiro, !.• ed. Inst. Nac. do Livro,
1954, e 2.• Idem, Civilização Brasileira, 1977, 2. 0 vol., 75-77 em ambas.
(46) "A Nobiliarchia Pernambucana", Esludos Pernambucanos, Recife, 1960, 93-138.

473
CAPITULO IV

A HISTORIOGRAFIA GERAL
i . Considerações gerais. 2. Antônio Vieira. 3. Frei Vicen•
te do Salvador. 4. Rocha Pita. 5. Luís dos Santos Vilhena.
6. Alexandre de Gusmão.

1 . Considerações Gerais

Na evolução do escrito histórico seiscentista, nenhum cronista, exce-


tuado Frei Vicente do Salvador, cuidou da história geral. E ainda assim
como a obra deste foi concluída em 1627, temos somente 27 anos de his-
tória geral deste século. O traço dominante desta historiografia é o de ser
episódica: franco-maranhense, amazônica, nordestino-holandesa, bandei-
rante e jesuítica. As próprias crônicas-relações, gerais na descrição de toda
a atualidade contemporânea brasileira, são limitadas no tempo, abrangen-
do apenas certas fases de atividade colonial. As histórias econômicas e
sociais são mais gerais, embora os Diálogos apresentem a mesma limita-
ção da História de Frei Vicente. Escritos em 1618, a realidade econômica
que descrevem restringe-se a um pequeno período, que foi abalado por mo-
dificações estruturais relevantes, desde a invasão holandesa até a grande
crise açucareira de 1687, com o pedido de moratória geral. Não há, assim,
uma descrição da continuidade econômica. A. Arte de Furtar não é um
retrato social do Brasil, mas nela refletem-se as meninices e indignidades
portuguesas que, no Brasil, também sofríamos. :e um retrato psicossocial
seiscentista da gente metropolitana e dos colonos. Como quadro geral não
padece de restrições seculares. Sua limitação, antes, consiste em ser mais
portuguesa que luso-brasileira. A Economia .Cristã é também geral no
espaço e no tempo, pois ,para defender uma tese descreve o trabalho
escravo -nos seiscentos. Resta Antônio Vieira, cujos escritos, a Ânua, a
Cópia de uma Carta e a Relação da Missão de Ibiapaba, são episódios,
particulares no tema e no tempo.
Mas a universalidade do seu gênio, a variedade dos seus outros escri-
tos documentais, a multilateralidade dos aspectos fundamentais da vida
luso-brasileira que captou e transmitiu às gerações futuras, dos 18 aos 91
anos, sugerem que seu nome e sua obra figurem ao lado de Frei Vicente,
na historiografia geral. Ainda mais do que Frei Vicente, na riqueza da
informação e na extensão da realidade apreendida, Vieira reúne e comu-
nica os elementos estruturais e os objetivos espirituais que marcam todo
o seu século. A historiografia geral desenvolve-se no século XVIII com
Rocha Pita e Vilhena, duas figuras tão diferentes.

474
2 . Antônio Vieira
"O mundo não engana, prega", e venturosamente entendendo suas
pregações, delas se aproveitando, e emendando os erros do próprio dese-
jo' <1 l, Antônio Vieira, nascido em Lisboa (6 de fevereiro de 1608; en-
tra para a Companhia em 1623) <2 >, sentiu-se desde cedo chamado a
maiores coisas, como pregoeiro da palavra divina, anunciador do futuro,
conselheiro real dos negócios humanos, missionário do gentio bárbaro,
consolador de negros cativos e defensor de judeus oprimidos. Foi afron-
tado pelos modestos colonos do Maranhão e pelos grandes senhores do
Santo Ofício. Pregou na Colônia, pregou na Metrópole, pregou em Roma.
Foi missionário nas selvas amazônicas e ministro d'El Rei em missões di-
plomáticas em Paris, Haia e Roma. Foi louvado e desprezado, desde-
nhado e aplaudido. Percorreu milhares de lugares pelos caminhos dos
sertões, viajou várias vezes pelo Atlântico, compôs catecismo em linguas
indígenas e sermões reais, de admirável formosura, que o tornaram um
dos maiores prosadores da língua portuguesa. Servindo a idéias, defenden-
do causas, sua perpetuidade não se garante só pela maneira da expressão,
mas pela sub~tância de humanidade que dela transborda <3 >.
Começou sua vida pública aos 18 anos, escrevendo crônica (Anua)
da Companhia de Jesus no Brasil (1626), disse seu primeiro sermão aos
25 anos, e de 1640 a 1655 encheu o Reino com sua voz e seus conse-
lhos, privou com os ·maiores e tomou-se uma das figuras principais da
política portuguesa, que ajudou a formular e a executar. De volta ao
Maranhão, em 1655, submeteu os Nheengaíbas e relatou a viagem à Serra
de lbiapaba; mas, expulso pelos colonos do Pará, voltou ao Reino, a soli-
citar a proteção da Rainha Regente. A revolução palaciana que entregou
o poder a D. Pedro II tirou de Vieira a força política. Vieira foi encarcera-
do pela Inquisição (1665-1668) e nunca mais retomou a influência que
exercera antes, entre 1640 e 1662. Em 1681, depois de quase seis anos
em Roma, voltou ao Brasil, de onde se ausentara 40 anos e onde permane-
ceu os 17 anos finais de sua vida, entrando para a imortalidade aos 18
de julho de 1697 (4l.
Se, como observou Aubrey Bell, Vieira não foi um literato e contudo
tem sido sempre considerado como um grande clássico da língua portugue-
sa, do mesmo modo não foi um historiador e, nó entanto, é uma fonte
inesgotável, direta e fidedigna, do melhor conhecimento do Brasil seis-
centista.

(1) Cartas do Padre Antônio Vieira, coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo,
Coimbra, 1928, Ili, 640.
(2) Bloblbllografla ln S. Leite, HCJB, IX, 192-363.
(3) Cf. Hemanl Cidade, Padre Antônio Vieira. Estudo blogrdflco e critico, Lisboa, 1940,
I, 187.
(4) A bibliografia sobre Vieira é extensa. A principal biografia é de João Ll1clo de
Azevedo, História de Antônio Vieira, Lisboa, 2 vols . I.• ed., 1918-1921 ; 2.• ed ., 1931; a prin-
cipal bibliografia de e sobre Vieira é de Serafim Leite, História, IX, 192-363; as efemérides,
Ibidem, 402-412; critica bibliográfica, ibid., IV, XVII-XX; apreciação crftlco-lltcrárla, ln Her-
nanl Cidade, Padre Antônio Vieira, Lisboa, 1940, I, 3-187. O Inventário de seus manuscritos
na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro está publicado in ABN, v. 73, 117-200.

475
Em essência, Vieira foi pregador, apóstolo, político, diplomata e é por
essas atividades que penetra em cheio na história de Portugal e do Brasil.
Político dos mais completos e inteligentes que conheceu Portugal, pela vi-
são avançada de suas idéias, Vieira distinguiu-se especialmente pela defesa
dos cristãos-novos, contra os proi.:essos do Santo Ofício, pela admissão dos
judeus dispersos pela Europa, para, com seu capital, formar duas Com-
panhias de Comércio, a Oriental e a Ocidental, que, à semelhança das
holandesas, desenvolvessem e defendessem o comércio português, na lndia
e no Brasil <5 >. "Todo seu pensar ia aos negócios de Estado", e suas pró-
prias abstrações nos Sermões e nos escritos proféticos revelavam não só
paixão bíblica e sabedoria religiosa, mas o objetivo moral e o fim político.
Suas atividades diplomáticas visam efetivar algumas das idéias que expu-
sera em Sermões e em papéis públicos. A guerra de Castela na Europa e
as das Províncias Baixas na América e Oriente tomavam grave a situação
portuguesa. Vieira, porta-voz de D. João IV, a quem convencera comple-
tamente, procura em Paris ( por duas vezes), Haia ( por duas vezes) e
Roma (1646-1650), a aliança francesa, o acordo com a Holanda e, final-
mente, a aliança com o próprio adversário.
Vieira não foi feliz em nenhuma de suas missões: não conseguiu o
auxílio militar francês, nem resgatou por compra Pernambuco, levantado
contra os holandeses. Não obteve, em França, a noiva para o Príncipe,
não compôs Portugal com os holandeses, entregando Pernambuco a troco
da paz <6 >, nem ajustou a aliança com Castela, num projeto audacioso, de
casar a Infanta Maria Teresa, filha única de Filipe IV, com o Príncipe
Teodósio, unindo de novo as duas Coroas <7 >.
Vieira participou dos mais intrincados problemas de sua época.
Defensor dos judeus, convicto da necessidade de sua introdução em Por-
tugal, assim como dos males e infâmias da Inquisição, advertiu o país con-
tra esses perigos em escritos vários, com uma constância e firmeza rara-
mente vistas, que mostram como ele nunca mentiu à sua vocação política.
Denunciou ao mundo, em plena época do absoluto domínio inquisitorial,
a "cegueira de delírio e o desatino intolerável" daquele Tribunal e chamou

(5) Vieira escreveu: "Razões apontadas a EI Rei D. João IV a favor dos cristãos-novos,
para se lhes haver de perdoar a confiscação de seus bens, que entrassem no ·comércio deste
Reino" . Obras Inéditas, ed. Seabra e Antunes , Lisboa, 1856, II, 21 -27; " Proposta feita a El
Rei D. João IV em que se lhe representava o miserável estado do Reino, e a necessidade
que tinha de admitir os Judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa" (1643),
Obras Inéditas, II, 29-47; "Proposta que se fez ao Sereníssimo Rei D. João IV a favor da
gente da nação, pelo Padre Antônio Vieira sobre a mudança dos estilos do Santo Oficio e do
fisco em 1646", Obras Inéditas, li, 49-75. Sua representação defendendo-se na Inquisição foi
publlcada: Defesa Perante o Tribunal do Santo Oficio, Introdução e notas do Prof. Hemani
Cidade, Universidade da Bahia, Bahia, 1957, 2 tomos.
(6) "Parecer que fez o Padre Antônio Vieira a favor da entrega de Pernambuco aos
holandeses", conhecido por aquele nome e publicado. Obras Inéditas, J. M. C. Seabra & T. Q .
Antunes, Lisboa, 1857, Ili, 5-59, e RIHGB, LVI, !.• parte, 5-56. Escrito um pouco depois da
ordem régia de 21 de outubro de 1648, que a determinou . O próprio Vieira esclareceu ao
Conde de Ericeira que "este negócio não foi meu, senão resoluto e mandado expressamente
por S. M. nas suas ordens". Vide Cartas, III, 567-569. Vieira escrevera antes o "Parecer sobre
se restaurar Pernambuco, e se comprar aos Holandeses" , Obras Várias, ed . Seabra e Antunes,
Lisboa, 1856, J, 159-176, e RIHGB. LVI, 1.• parte, 85-102.
(7) J. L. Azevedo, História, ·1 . 173, 176-179; "Sermão de Ações de Graças pelo Fel!·
clsslmo Nascimento do novo Infante (15 de março de 1695)", l n Sermões, Deslandes , 1696, XI ,
481-511. Vide também, sobre Isso, Cartas, Ili, 259-268. '

476
atenção para as calamidades que ele causava a Portugal. Pleiteou para a
mercancia uma posição mais respeitável, a fim de vencer o preconceito
ibérico, que a menosprezava <8 >. Como conselheiro político de D. João IV
defendeu com convicção algumas idéias fundamentais, procurando vencer
os escrúpulos de consciência e o despreparo espiritual que dificultaya, ao
lado da corrupção administrativa e do tomar o alheio <9 >, o florescimento
do mercantilismo português. Sempre louvou as virtudes do trabalho e con-
denou o pecado da ociosidade; sempre propugnou pela liberd~de comercial
livre do possível confisco, feito em nome de heresia pelo Santo Ofício;
sempre defendeu que os tributos se repartissem por todos, sem privilégios
e que os ofícios coubessem aos melhores, que não deviam exercer vários,
mas um só <10>. "Porque ninguém pode fazer bem dois oficios, ainda que
seja o mesmo sol. O mesmo sol quando alumia um hemisfério dei~a o outro
às escuras. E que haja de haver homem com dez hemisférios! E que cuide,
ou se cuide que em. todos pode alumiar! Não vos admiro a capacidade do
talento, a da consciêr.cia, sim." A boa eleição dos sujeitos a quem se
comete o governo, o prêmio aos que se esforçavam e trabalhavam eram
exemplos e imitação para todos e o primeiro princípio fundamental do
bom governo colonial <11>.
Por essas e outras idéias lutou sempre Vieira com convicção <12>,
procurando emendar os erros grosseiros da política portuguesa na Metró-
pole e na Colônia. Mas Vieira só podia atingir com sua eloqüência a ca-
mada ínfima superior, avessa a qualquer reforma que pusesse em risco seus
privilégios (13). Além disso, era, às vezes, adulador e cortesão, lisonjeando
ao sabor das circunstâncias, sem grande apreço pelas variedades de opinião
com que, nas suas profecias, via o futuro dos soberanos, transformados
em Messias a salvar a Nação e fundar o Quinto Império do Mundo, sob a
direção de Portugal; eram necessidades práticas, na defesa das suas idéias.
Como Apóstolo e Missionário, também participou Vieira pela ação e
pela palavra na construção de sua época. Defensor da liberdade indígena,
contra a cobiça dos colonos, sua pregação no púlpito e na corte não
teve descanso. Dedicado por voto religioso ao serviço de índios e negros,
desde cedo começou a estudar as línguas indígenas e a missionar nas al-
deias da Bahia (1635-1637). Intrometido na vida política de 1640 a

(8) "Proposta a favor da gente da Nação", ob. clt. Procurou favorecer a lnd6strla de
tecidos. Vide Carta de 19 de março de 1675 a Duarte Ribeiro de Macedo ln Cartas, Ili, 162-164,
especialmente 163-164.
(9) Vide o "Sermão da Visitação de Nossa Senhora" (1640). Sermões, Deslandes, Lisboa,
1690, VI, 386.415, ou edição Hemanl Cidade, Padre António Vieira, Lisboa, 1940, li, 189-218,
especialmente 210, e o "Sermão do Bom Ladrão" (1655), ln Sermões, Idem, Lisboa, 1683, III,
317-354.
(10) •sermão da Terceira Domlnga da Quaresma" (1655). Sermões, edição João Lisboa,
Lisboa, 1679, !, 449-558.
(11) Vide o já citado "Sermão da Terceira Dominga da Quaresma• e o "Sermão da
Visitação de Nossa Senhora" (1640), edição Hemanl Cidade, li, 187-218, especialmente, 212·214,
e "Sermão da Epifania• (1662), mesma edição, 111, 355-416, especialmente 404-407.
(12) Achava Capistrano de Abreu e assim escreve em carta a João L6clo de Azevedo, que
Vieira tinha "poucas convicções Inabaláveis e fundamentais" (Correspondência, II, 10, carta de
7 de fevereiro de 1916). João L6clo de Azevedo conslderava·O destituído de "emoção sincera
e espontânea", História de António Vieira, I, 70.
(13) Por Isso chamou.as Caplstrano de Abreu de "manifestações esotéricas", Correspon-
dência, li, 63.

477
1651, voltou a missionar no Pará e no Maranhão (1651-1661). O "Sermão
da Primeira Dominga da Quaresma" ( 1653) <14 > condena a escravidão
indígena e apela para a consciência dos moradores; o "Sermão da Quinta
Dominga da Quaresma" (1654) <15 > mostra que não há verdade no Ma-
ranhão, onde os moradores acusavam e afrontavam os jesuítas que defen-
diam os índios; o "Sermão de Santo Antônio" ( 1654) <16 > condena a
corrupção no Maranhão, as lutas internas, repreende os moradores que por
causa dos negócios do algodão perdiam a consciência cativando os índios;
o "Sermão do Espírito Santo" <11 > define a pregação dos indígenas, reve-
la as dificuldades a vencer - a lingua e a rudeza dâ gente, e a glória do
ofício de pregar a fé e salvar as almas; o "Sermão da Sexagésima"
( 1655) <1 8> relata as oposições dos moradores, as dificuldades da prega-
ção, pleiteia a liberdade dos índios e das missões, define as qualidades do
pregador, de sua obra, do estilo, matéria e ciência, voz e memória neces-
sárias ao sermão que converte. Finalmente, o "Sermão dá Epifania"
( 1662) (19) é o chamado "Sermão das Missqes" ou "da Amazônia", o_nde
se relata a ação dos portugueses e dos missionários na expansão da fé no
Novo Mundo, "entre os ascos é as misérias da gente mais inculta, da gente
mais pobre, da gente mais vil, da gente menos gente de quantos nasceram
rio Mundo". O progresso da obra de Vieira em 1654 e 1655 <2 0> era evi-
dente e causava a maior oposição dos colonos, que por duas ·vezes se
revoltaram, em 1661 e, mais tarde, em 1684.
A vastidão da atividade jesuítica dirigida por Vieira no Maranhão e
no Amazonas, reduzindo o gentio, propagando a fé e evitando o resgate,
era um sucesso, só discutido pela hostilidade dos colonos, que se viam im-
pedidos de escravizar <21>. A atitude corajosa e firme de Vieira durante
seis anos tornou-o extremamente impopular entre os colonos e os funcio-
nários da Coroa, mas seu êxito na organização, pacificação e conversão
indígena não encontra rival, pois a partir de 1663, quando começa seu
desterro e perseguição na Corte, a lei de 1663, restabelecendo o controle
e exploração laica, transformava os missionários em "meros pastores es-
pirituais de um povo oprimido" <22>.

(14) Sermões, Deslandes, Lisboa, 1685, 11, 53-85, e Hernar.i Cidade, 111, 131-155.
(15) Sermões, Deslandes, Lisboa, 1685, IV, 291-317, e Hernanl Cidade, III, 157-186.
(16) Sermões, Deslandes, Lisboa, 1682, II, 309-345, e Hernanl Cidade, 111, 189-227.
(17) Sermões, Deslandes, Lisboa, 1683, III, 392-429, e Hernanl Cidade, 111, 313-351.
(18) Sermões, J. Lisboa, Lisboa, 1579, I, 1-86, Hernanl Cidade, 111, 231-268.
(19) Sermões, Deslandes, Lisboa, 1685, IV, 491-549, e H. Cidade, III, 355-416.
(20) Sobre suas atividades em 1653, leiam-se as Cartas. LXll (20 de maio de 1653) dirigidas
a D. João, e a LXIV (22 de maio do mesmo ano) endereçada ao Provincial do Brasil, ln Cartas,
ed. J. L. de Azevedo, l, 306,315, e 316-355. A primeira define sua atitude em relação ao
cativeiro, e a segunda é, além disso, uma descrição histórica do motim de 1653.
(21) O sucesso da obra se vê ln Cartas' de Antônio Vieira, ed. de J. L. de Azevedo, I
(Tempos de Missionário), 269-592, especialmente Carta LXV, pp. 355-383, e LXVI, pp. 383-416,
dirigida ao Provincial em 1654; e as cartas ao Rei D. João IV, LXVll e LXV!ll, ambas de
4 de abril de 1654, pp. 416-431, especialmente a de 6 de abril de 1654 (LXIX, pp. 431·441).
(22) Capistrano de Abreu, que não foi multo simpático à oratória vlelriana, escreveu a
João Lúcio de Azevedo, em 14 de abril de 1918: •entre os colonos e os jesuítas minha posição
é bem definida: sou pelos Jesu!tas•, Correspondtncla, 11, 95. O ponto de vista jesu!tlco, ln S.
Leite, HCJB, IV, 44-68; o leigo in J. L. de Azevedo, História de Antônio Vieira, 2.• ed., 1931,
l, 208-254; e Idem, Os /esultas no Grão Pará, Coimbra, 1930, 62-100; apreciação critica católica,
mas não Jesu!tica, in Mathlas C. Klemen, O. F. M., The Indlan Policy o/ Portugal ln lhe Ama·
zon Reglon, 1641-1693, Washington, 1954, 70-117 e 183-184.

478
A grande e admirável fortuna de Vieira foi a catequese dos Nheen-
gaíbas, da Ilha de Marajó, em 1654, inimigos dos portugueses desde o co-
meço da colonização, e a conversão dos índios da Serra de Ibiapaba, alia-
dos dos holandeses, quando do domínio destes no Nordeste do Brasil (23).
A rigorosa rejeição dos jesuítas aos pedidos de trabalho indígena na for-
ma de serviço pessoal, motivo da luta entre os colonos, que defendiam
seus interesses materiais, e os missionários, que mantinham os princípios
legais promulgados pela Coroa, foi também seguida com todas as suas
conseqüências na América Espanhola <2 4>, apesar das vozes que a conde-
navam.
Na verdade, urna grande diferença distingue as duas posições: de um
lado, os jesuítas mantinham os índios com o fim de reduzi-los à fé e se
valiam de alguns para a manutenção da missão, ou para ajudá-los nas
entradas, a serviço da catequese; de outro, os colonos queriam os indíge-
nas para os serviços reprodutivos de sua própria economia, na defesa de
seus interesses privados. A economia pública e especialmente as labutas
do algodão dependiam de trabalhadores e, na falta destes, pois todos que-
riam ser senhores, de escravos; os índios eram mais fáceis de ser obti-
dos que os negros, mão-de-obra cara np Maranhão. Conhecedor da rea-
lidade humana e das necessidades econômicas, Vieira pregou várias vezes
sobre o problema dos negros <2 s> na Bahia, quando ainda se iniciava nos
mistérios do apostolado, e no Maranhão, quando, maduro, enfrentava o
problema das relações negros, indios e escravidão. Em 1633 não tem urna
palavra de recriminação ao inferno do trabalho escravo nos engenhos; diz
à gente preta, tirada das brenhas da Etiópia, que foi um grande milagre
que eles se pudessem salvar, enquanto seus pais, sem o lume da fé, se
perdiam, e aconselha-os se dediquem, apesar do contínuo trabalho, ao ro-
sário. Nem urna palavra de condenação à escravidão, nem urna palavra
de censura aos maus tratamentos. No "Sermão XXVII", pronunciado tal-
vez 50 anos dep.ois, quando de. volta à Bahia <2 6>, define-se Vieira conde-
nando a escravidão em geral e as desumanidades dos senhores em par-
ticular, mas reconhece a legalidade do cativeiro. "Não há escravo no Bra-
sil - e mais quando vej~ os mais miseráveis - que não seja matéria para

(23) A pacificação dos Nheengalbas está descrita por Antônio Vieira, Cartas, l, 549-571,
primeiro publicada sob o título Cópia de huma Carta para EI Rey Nosso Senhor, Sobre as
missões do Sear4, do Maranham, do Par4 & do grande rio das Almasonas, Lisboa, 1660. Sobre
as várias edições, cf. S. Leite, HCJB, IX, p. 244; n.0 315. Sobre a missão à Serra de lblapaba,
vide Antônio Vieira "Relação da Missão da Serra de lblapaba", ln Memórias para a História
do Extlncto Estado do Maranhão, Rio dt Janeiro, 1874, II 455-501; várias edições registradas
ln S. Leite, História, IX, p. 307, n. 0 975. ·
(24) Vide Magnus Mélrner, The Poiitlcal and Economic Actlvlties of the /esuits ln the La
Plata Reglon, Stockolm, 1953.
(25) Vide especialmente "Sermam. Na Bahia, a Irmandade dos Pretos, de um Engenho
em dia, de São João Evangelista, no ano de 1633", Maria Rosa Mystlca, Deslandes, Lisboa,
1686, JX., 484-521, e H. Cidade, Padre Antônio Vieira, Ili, 5-43; "Sermão XXVII", ln Maria
Rósa Mystica; Craesbeecklana, 1688, X, 391-429, e Coleção H. Cidade, 111, 47-88; ·sermão XX",
Ili Maria Rosa Mystlca, X, 149-184. H. Cidade, 91-129. As multidões Indígenas exploradas pelos
800 portugueses do Pará custavam baixo preço. Vide J. I,,. de Azevedo; Antônio Vieira, 1, 295.
(26) Charles R. Boxer, A Great Luso-Brazilian Figure Padre Antônio Vieira, S. /., 1608-
1697, London, 1957, 23, nota 1. A referência à captura de Cochlm feita pelos holandeses em
1663 faz crer que o sermão seja posterior a 1681, pois de 1663 a 1668 esteve perseguido pela
Inquisição; em 1668 e 1669 os sermões na Capela Real não tratam da matéria, nem os de Roma
(1669°1674), e entre 1675 e 1680 não prega.

479
mim de uma profunda meditação. Oh trato desumano em que a mercancia
são homens! Oh mercancia diabólica, em que os interesses se tiram das
almas alheias e os riscos são das próprias!"
Vieira retrata a relação senhor-escravo, base da economia colonial,
ao escrever: "Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rom-
pendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os
escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os es-
cravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé apon-
tando para o açoite, como estátuas de soberba e da tirania, os escravos
prostrados com as mãos atadas atrás como imagens vilíssimas da servi-
dão e espetáculos de extrema miséria". E depois de condenar a injustiça
e ingratidão do tratamento, Vieira pergunta aos Senhores: "Quem vos
sustenta no Brasil, senão os vossos escravos? Pois se eles são os que vos
dão de comer, por que lhes haveis de negar a mesa, que mais é sua que
vossa?". Condena as opressões, os castigos, mas reconhece que alguns dos
cativeiros são justos, porque os permitem as leis. No "Sermão Vigésimo"
discute a grande distinção que fazem os senhores entre si e os escravos e
condena a vileza dos senhores que desestimam os escravos. Já antes, no
"Sermão da Epifania", perguntava Vieira se podia "haver maior inconsi-
deração do entendimento, nem maior erro de juízo entre homens, que
cuidar eu que hei de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do Sol, e
que vós haveis de ser meu escravo, porque nascestes mais perto?" E pouco
adiante define claramente sua posição em relação aos índios. Por ela se
pode ver que ele não condenaria a escravidão negra: "Não é minha ten-
ção que não haja escravos, antes procurei nesta corte, como é notório e
se pode ver da minha proposta, que se fizesse como se fez, uma junta dos
maiores letrados sobre este ponto, e se declarassem como se declaram por
lei ( que lá está registrada) as causas do cativeiro lícito. Mas porque nós
queremos só os lícitos e defendemos [proibimos] os ilícitos, por isso nos
não querem naquela terra e nos lançam dela" <27 >. Pelo contrário, em
1661, defendendo-se, na crise da revolta do Pará, de adverso aos cativei-
ros, apontava Vieira como remédio a introdução dos escravos negros, co-
mo já se praticava no Estado do Brásil. "E vindo ao remédio, que se
aponta, dos escravos do sertão, posto que eu o aprovo muito, e o solicitei
com El Rei, insistindo S. M. que todos fossem livres, vejo porém que o
dito remédio por si só nãn é suficiente; porque, por mais que sejam os
escravos que se fazem, muitos mais são sempre os que morrem, como
mostra a experiência de cada dia neste Estado, e o mostrou no do Brasil,
onde os moradores nunca tiveram remédio senão depois que se serviram
com escravos de Angola, por serem os índios da terra menos capazes do
trabalho e de menos resistência contra as doenças, e que, por estarem per-
to das suas terras, mais facilmente ou fogem ou os matam as saudades
delas", escrevia na resposta a uma representação da Câmara do Pará, na
qual se lastimava a miséria em que viviam os habitantes e se requeria a

(27) O "Sermão" refere-se à revolta de 1661. no Pará. Ed. H. Cidade, 1940, Ili, 399-400.

480
Vieira, como Superior das Missões, ordenasse uma entrada ao sertão a
resgatar escravos <2 8).
Por tudo isso, como acentua João Lúcio de Azevedo, o fim de seus
sermões era incutir-lhes conformidade, pois Vieira advogara a vinda de
escravos da África para libertar os índios do trabalho obrigatório. "O Bra-
sil tem o corpo na América e a alma na África" <29 >. Não é assim sem
razão que Charles Boxer considera Vieira, neste ponto, menos avançado
que seus precursores espanhóis, como Las Casas e Tomás de Mercado, e
os contemporâneos, como o jesuita Alonso Sandoval, que denunciaram e
condenaram com veemência o tráfico negreiro <30 >. Vieira reconheceu a
escravidão como um mal necessário, embora condenasse os maus tratos e
procurasse consolar os escravos da sua condição social.
As atividades de Vieira reduzindo os indios ao serviço da fé e da re-
pública "para que tenha mais súditos a Igreja e mais vassalos a Coroa",
fizeram-no retomar a crônica, o relato dos sucessos de que participava, em
estilo histórico, como disse de sua Anua em 1626 o padre Andreoni,
autor futuro da Cultura e Opulência do Brasil pelas suas Drogas e Mi-
nas (1711).
Vieira sempre preferiu fazer suas próprias façanhas, que escrever so-
bre as alheias. Podia fazer e escrever, para que ficassem testemunhados
os seus feitos. Nunca foi modesto e sempre o acabrunhou o desprezo, pa-
ra ocultar ou esconder os seus serviços. Proclamou-os, em voz alta e pú-
blica, nos seus "Sermões", ou contou-os em suas cartas aos grandes da
Corte, nobres ou padres. A única vez em que verdadeiramente relatou os
acontecimentos de sua época, sem envolver-se como cronista, foi na "Car-
ta Anua do Brasil ao P. Geral da Companhia de Jesus" <31 >, seu primeiro
escrito, porque nas demais é sua a obra que rememora para os contem-
porâneos, cujo julgamento sempre procurou.
Na Ânua, que pelo estilo e substância mais devia pertencer à histo-
riografia jesuítica ou à relativa aos holandeses, elogia os mortos da Com-
panhia, entre os quais estavam o cronista Fernão Cardim, relata a invasão
holandesa de 1624 e a restauração de 1625, da qual é o documento mais
completo e preciso, conta as novidades do Colégio do Rio, descreve a Mis-
são dos Patos, informa sobre a Capitania do Espírito Santo, noticia a Mis-
são dos Mares Verdes e comunica os pormenores do Colégio de Pernam-

(28) Carta de 12 de fevereiro de 1661 . publicada ln Obras Vdrlas, 1 (1856), 137-140, e


Cartas, ed. de J. L. de Azevedo, 1925, 1, 579-582.
(29) J. L. de Azevedo, História de Antônio Vieira, 2.• ed ., II, 285. A frase ~ extraída
do escrito de Vieira "sobre o Padre João de Almeida" , reproduzido na mesma obra, I, 400-405,
vide p . 404. ·
(30) Charles Boxer, embora reconhecendo que virtualmente todos os teólogos e canonlstas
admitiam a escravidão, mostrou que houve alguns que a condenaram. Cf. Salvador de Sd and
the Struggle for Brazil and Angola, 1602-1686, London 1952, 236-240. Replicou Serafim Leite
que Las Casas só a condenou quando de valia à Europa, onde viviam os que também a conde-
naram. Os jesuítas que sustentaram o erro da escravidão, diz S. Leite, tiveram que voltar à
Europa, pois no Brasfl não seria possível outra atitude. Prefácio à edição de Jorge Bencl,
Economia Cristã dos Senhores no Govêrno dos Escravos, LlsbOa, 1954, 8. Boxer não aceitou
a Justificativa, pelo deliberado desconhecimento da obra do Jesulta Alonso Sandoval (Naturaleza,
poi/cla sagrada lmprofana de todos os E/lopes, Sevil!a, 1627). Cf. A Great Luso-Brazillan Figure
Padre Antônio Vieira, ob. clt., p. 23, nota 2.
(31) ABN (1897), XIX, 177-217, e Cartas, 1 (1925) . 3-74. Assinado aos 30 de setembro
de 1626.

481
buco, acontecimentos todos "destes dois anos, depois de se fazerem todas
as diligências possíveis para tirar a limpo a verdade, que as guerras de
ordinário não só pretendem esconder mas sopeiam e atropelam". A Ânua
já revelava a possança de suas asas, como disse Capistrano de Abreu.
A vida levou-o depois para o caminho ou o descaminho do poder, e
Vieira só pregou para influir no curso do processo histórico, ou só escre-
veu para prestar contas das missões reais, com o que participava da pró-
pria história. Os Sermões ou as Cartas são, portanto, obra de pregação
religiosa e humana e satisfação dos feitos ou frutos de seu zelo patriótico.
Seus outros escritos a favor dos judeus, contra a Inquisição, ou proféticos,
são obra de sua vocação política e visam mudar ou reter as correntes his-
tóricas. Por isso serviram à fabricação histórica de sua época e servem à
História, como descrição da atualidade, especialmente para reconstituir o
"clima de opinião" e fazer o retrato moral do povo português. Seus Ser-
mões e Cartas não são meras rapsódias patrióticas ou exortações vazias
para lutar por boa luta (32 >, são estudos de problemas espirituais e econô-
micos que dilaceraram a alma portuguesa saída da retomada da indepen-
dência; revelam seu caráter nacional, indicam os caminhos da recuperação
econômica, pintam Portugal e Brasil no quadro internacional <33 > e bus-
cam a salvação pelo rumo simplesmente humano ou pelas profecias do
"Encoberto", a volta de D. Sebastião, morto em Alcácer Quibir (1578),
que ressurgiria para dirigir o Quinto Império do Mundo, sob a hegemonia
portuguesa. O "Encoberto", que surgiria depois dos 60 anos de cativeiro,
foi D. João IV, foi D. Afonso VI, foi o príncipe primogênito de D. Pedro,
foi este, ao sabor das circunstâncias dominantes e do seu espírito de corte-
são adulador. O "Encoberto", que salvaria a Nação e se encarnaria na pes-
soa real, não seria o capitalismo, ou seu espírito, que tanto faltava ao país,
para restabelecer no Oriente, na África e na América o poder por-
tuguês? <34 >
Mas como cronista fiel dos sucessos de sua época, afora a Ânua,
escreveu Vieira em 1659 a Copia de huma Carta para El Rey Nosso Senhor,
Sobre as Missões do Seará, do Maranham, do Pará & do Grande Rio das
Almasónas, a Relação da Missão da Serra dé lbiapaba e a Relação dos

(32) C. R. Boxer, A Great Luso-Brazlllan Figure, ob. clt., p. 6.


(JJ) Vários "Sermões" descrevem a guerra com os holandeses no Brasil como, por exem-
plo, "Sennam de Santo Antonio", ln Sermões, Deslandes, Lisboa, 1590, VI, 93-128; ed. H.
Cidade, li, 5-37; "Sennam da Visitação de N. S. a Santa lzabel" (1638), ln Sermões, .Deslandes,
1692, Vil, 423-459, e ed. H. Cidade, li, 41-76; "Sennam de Santa Cruz• (1638), ln Sermões,
Deslandes, 1690, VI, 326-354, ed. H. Cidade, li, 79-106; "Sennam XII" (1639), ln Sermões,
·oeslandés; lisboa, 1686, IX, 410-453, ed. H. Cidade, li, 109-154; "Sermam pelo bom sucesso
das armas de Portugal contra as de Holanda" (1640), ln Sermões, Deslandes, 1683, III, 467-496,
e ed. H. Cidade, li, 157-186; •sermão da Visitação de Nossa Senhora• (1640), ln Sermões, Deslandes,
VI (1690), 386-415, e ed. H. Cidade, 11, 189-218. Nas Cartas, ed. de J. L. de Azevedo, o t.•
vol. é riquíssimo sobre as relações Portugal-Holanda respectivas ao Brasil.
(34) As profecias de Vieira se encontram em "Esperanças de Portugal, Quinto Império do
Mundo, primeira e segunda vida de El•Rel D. João o Quarto (1659)", publicadas ln Obras
Inéditas, Seabra e Antunes, Lisboa, 1856, 1, 83-131; Historia do Futuro, Livro ante-primeiro
prolesomeno a toda a Historia do Futuro, em que se declara o fim e se provão os fundamentos
della, A. P. Galram, Lisboa, 1718; Historia do futuro (fragmentos inéditos publicados por J. L.
. de Azevedo, extra!dos do processo 1664, da Inquisição, existente na Torre do Tombo), Lisboa,
1918.

482
-
Sucessos do Maranhão <35 >. Dos acontecimentos de 1624 e 1625 ele parti-
cipara, mas não era ainda a figura culminante que em 1659 e 1660 pro-
movia a conversão indígena, ou o motivo central da revolta dos colonos
do Pará, em 1661. Nestas relações noticiosas, sua participação pessoal as-
sume, especialmente na última, o caráter de prestação de contas. "Servir
aos futuros, pagar aos passados e não dever nada aos presentes", sua regra
de vida em 1690, parece ser a norma destes escritos, que servem à história
futura, prestam contas do passado e querem mostrar que ele nada devia
aos pi:esentes atores da atualidade paraense. Não gozam, assim, da mesma
isenção de 1626, nem das mesmas exaltações de outros escritos de prega-
ção e satisfação ou de vaticinios. Sua pena dá sempre de rosto com a vida;
rabisca para servi-la, não para. fugir-lhe. No primeiro dá conta do estado
das missões e dos progressos com que se vai adiantando a fé nas conquis-
tas americanas do Reino. Descreve os bens espirituais e temporais das
várias missões pelo Amazonas e Rio Negro ( 1658), pelo Tocantins, ,pela
ilha de Marajó, onde os bárbaros índios Nheengaibas opunham grande
resistência à catequese jesuítica. Relata as negociações de amizade que aos
poucos pôde estabelecer e consolidar, para a conversão de quase 40 mil
almas, soleníssimo triunfo, que Vieira qualifica da maior empresa daquele
ano. Noticia a missão aos índios Tabajaras, da serra de Ibiapaba, conver-
tidos ao calvinismo pelos holandeses de Pernambuco, e agora reduzidos à
obediência da Igreja e do Rei por obra de Vieira. O Estado do Maranhão
estava assim "sitiado de dois poderosos inimigos que o tinham cercado e
fechado entre os braços de um e outro lado ; porque pela parte do Ceará
o tinham cercado os Tabajaras da serra, e pela parte do cabo do Norte,
que são os dois extremos do Estado, os Nheengaibas". A matéria era im-
portante, o perigo fora grande e a empresa conduzida por Vieira excedia
aos frutos ordinários colhidos regularmente.
Na Relação das Missões as particularidades da história da conquista
espiritual dos Tabajaras da Serra de lbiapaba têm mais relevo. Vieira nar-
ra os esforços dos primeiros missionários Francisco Pinto e Luís Figueira,
a entrada holandesa no Ceará, a confederação desses índios contra portu~
gueses e aliados indígenas, sua chegada em 1653 no Maranhão, com or-
dens de S. Majestade para que a doutrina e o governo espiritual de todos
os índios estivessem à conta dos religiosos da Companhia. Era então "mi-
serável o estado da cristandade da serra", mas Vieira, animado pelo Go-
vernador André Vidal de Negreiros, parte para a Bahia, a buscar missio-
nários, e envia dois padres à Serra. As dificuldades, perigos e trabalhos
destes apóstolos para chegarem à Serra, a descrição do sítio, "uma das
páginas mais formosas" <36 > de Vieira, os impedimentos à obra, as etapas
do processo de catequese, as heresias e ignorância indígenas, a ação e o
valor de Vieira, partindo para a Serra e obtendo o fruto final, que foi aca-
bar (a ajustar) "com os índios, coisas que pareciam impossíveis", aí apa-
recem fielmente relatados.
(35) Cf. sobreai; duas primeiras a nota 23. A "Relação dos Sucessos• (16627), ln S.
Leite, Novas Carias /esulltcas, Brasiliana, vol.
194, São Paulo, 1940, 313-319.
(36) J. L. de Azevedo, Antônio Vieira, l, 323.

483
A Relação dos Sucessos ( 1662), anônima <37 l, relata a expulsão dos
jesuítas do Maranhão, os castigos aos rebeldes, a ação do Governador, a
reviravolta do povo e a restituição dos jesuítas. É uma relação muito su-
mária, peça de insignificante substância, abaixo de qualquer carta de Viei-
ra. Se é obra dele, não está à sua altura (38).
Esta pequena amostra historiográfica deixada por Vieira, um homem
que forjou, com sua pal~.vra e seu conselho, sua ação e sua diligência, a
história de seu tempo, e legou, como espólio literário, vários depoimentos
para os historiadores futuros reconstituírem sua época, confirma que não
era sua a vocação de historiador. Dando sempre de rosto com a vida, en-
carando-a de frente, participando de sua produção, Vieira não amou es-
crever história, mas sim fazê-la. Ainda assim, como homem de seu tempo,
Vieira teve uma c_oncepção histórica que não se pode esquecer. Para ele, a
história é pragmática: toda história é mestra da vida e as leis com que
deve ser praticada são a verdade da narração e ordem dos sucessos, a
pontualidade dos tempos, lugares e pessoas, a notícia e ponderação dos
motivos e causas de tudo em que se obrou ou omitiu. A história deve,
sem ambição nem lisonja, castigar alguns defeitos dos quais se compõe
não menos a perfeição. O estilo deve ser claro com brevidade ou descrito
sem afetação, copioso sem redundância, corrente, fácil, notável de tal mo-
do que enriqueça a memória, afeiçoe a vontade e não canse o entendimen-
to. A arte de falar com propriedade em tudo o que abraça uma história
não se estuda nas academias das ciências, senão na universidade do mun-
do (39). Seu parecer sobre a obra de Simão de Vasconcelos restringe-se ao
estilo, que não o satisfazia <40 >, e quanto ao Portugal Restaurado de D.
Luís de Menezes, Conde da Ericeira, afora as correções fatuais relativas
à sua própria participação, admirava-lhe "o método, a ordem, a disposição,
a felicidade, a altiloqüência do estilo e pureza da linguagem, a arte sem
afetação, a discrição, o juízo, e todas as outras excelências de que se pode
compor no grau sumo o mais perfeito historiador"; as restrições estavam
em "uma e outra escritura de diferença a que costuma dar à memória a
antiguidade ou a vista". E começa a corrigir os erros de fatos presencia-
dos por ele, ou que tiveram sua cooperação, não sem antes declarar que
é necessária uma grande resolução para escrever história do presente (41).

(37) A atribuição de autoria deve-se a Serafim Leite (Novas Cartas /esultlcas, 313, nota
139), que escreve ter sido "escrita em Portugal, onde estava o Pe. Antônio Vieira, expulso do
Maranhão. o seguir ao motim de 1661, e a quem informavam do mesmo Maranhão o Vigário
Geral, o Governador e o Pe. Pero Luís Gonçalves". Além disso as palavras finais da carta
deste último padre transcritas na Relação "só podiam ser dirigidas a quem fosse chefe, como
de fato era Vieira, superior da Missão".
(38) Escritos sobre administração Indígena e cartas sobre acontecimentos são inúmeras.
Vide S. Leite, HCJB, IX, 306-310 e 235-304 respectivamente. Os acontecimentos de 1673-1684
no Maranhão, in Cartas, III.
(39) • Aprovação e censura que o Padre Vieira fez por ordem de S. Alteza à terceira parte
da História de São Domingos da Província de Portugal, reformada pelo Padre Frei Luís de
Souza•, ln Obras Várias, ed. Seabra e Antunes, 1856, !, 225-228.
(40) F. Rodrigues, "O P. Antônio Vieira, Contradições e aplausos", RH, Lisboa, 1922, XI,
92-93.
(41) Carta de 18 de agosto de 1688, ao Conde da Ericeira, in Cartas, ed. de J. L. de
Azevedo, III, 552-554. A Carta de 23 de maio de 1689 (Idem, 556-571) corrige um trecho de
Ericeira e detalha sua participação nos negócios diplomáticos na França e Países Baixos.

484
Vieira foi sempre um grande leitor, e em todas as fases de sua vida,
nos começos na Bahia, nos triunfos das embaixadas, no cárcere da Inqui-
sição, nas selvas amazônicas, no retiro final, sempre andou estudando e
nas suas cartas cita Tácito, P. Orósio, G. Hornio (1629-1670), professor
de história de Leide, os historiadores holandeses do Brasil, J. de Laet e
G. Piso, Grotius, mais conhecido como internacionalista que historiador,
livros de história, e declara que tinha visto a Companhia das cinco assis-
tências de Portugal, Espanha, França, Alemanha e Itália e fizera um estu-
do muito particularizado das histórias da Companhia nas línguas conheci-
das, português, espanhol, francês e italiano. Apesar dessas leituras, de suas
censuras nos livros a sair, Vieira não cuidou de História, senão naquilo
que ela pudesse ilustrar suas futuras profecias. No famoso Sermão "Pala-
vra do Pregador Empenhada e Defendida" <42 >, em que buscava restabe-
lecer o crédito de seus vaticínios antes desmentidos, a historiografia em
que busca as razões das prognoses antes de passar às matemáticas e às
estrelas, ou é mitológica na pré-história 14 3 > ou é concebida sem maiores
fundamentos <44 >. As lições de método reduziam-se à arte de escrever e
às propriedades do estilo; quanto à história, cujos autores, se os conhece,
pouco os cita e deles pouco se serve, limitando-se a considerá-la necessária
à educação em geral e em particular à do Principe <45 l.
Vieira não acreditava muito na história do passado e do presente,
"sendo as informações dos sucessos sempre várias e na mesma variedade
incertas" <46>, mas sim naquela "experiência havida pelas histórias que são
aquele espelho inculcado por Salomão, em que olhando para o passado
se antevêem os futuros" <47 >. Preferiu a prognose, pois "engenhoso como
era, vendo que S. Jerônimo e S. Agostinho diziam que a profecia de !saias
mais lhes parecia uma história, deduziu esta conseqüência: que pode ha-
ver história das cousas futuras quando as cousas futuras se descrevem co-
mo se fossem passadas" <48 >. A História do Futuro (49) tinha por fim pràvar
que há de haver no mundo um novo Império biblico universal, o Quinto,
sob a hegemonia de Portugal <5 0) e que a hora de sua realização chegara
ou estava prestes a chegar. As épocas mais freqüentes de misérias e ca-
tástrofes sempre inspiraram os autores de apocalipses, e as velhas teorias
da retribuição divina da virtude, segundo a qual as nações mais fiéis deve-
riam ser as mais benditas por Deus. Vieira não se cansa nos Sermões de
exigir de Deus que ponha seus olhos sobre Portugal. "Pois, Senhor meu e
Deus meu . . . por que vos esqueceis de tão religiosas misérias, de tão
católicas tribulações?" "E será bem, supremo Senhor e Governador do Uni-
(42) Sermões, Deslandes, Lisboa , 1690, XIII, 139-276, e ed. H. Cidade, 1, 235-311.
(43) Vide observação de Hernanl Cidade, in nota 1, p. 252 da sua edição do "Sermão".
(44) Vieira não cita um historiador, pois Justus Lipsius (1547-1606) é erudito e fllólogo.
(45) " Sermão das Exéquias do Príncipe D. Teodosio", in ed. de H. Cidade, IV, 277.
(46) Carta de 18 de agosto de 1688 ao Conde da Ericeira, ln Cartas, Ili , 553 .
(47) "Sermão das Exéquias", ed . H . Cidade, IV, 291.
(48) " Cartas do Pe . Fonseca a respeito de A. Vieira", ABN, XIX, 169-170.
(49) Ob. cit. , ed . Seabra & Antunes, 1855 . Várias edições, cr. Serafim Leite, HCJB , IX ,
311 , n.0 995 .
(50) Vide sobre a história, origem e desenvolvimento da Idéia, J. L. de Azevedo, António
Vieira, I , 193 e seguintes e li , cap. 4, ·o Vidente" , e alguns Sermões , especlalmente "Palavra
do Pregador Empenhada e Defendida" , ed . H . Cidade , 1, 235-311.

485
verso, que às sagradas quinas de Portugal e às armas e chagas de Cristo,
sucedam as heréticas listas de Holanda, rebeldes a seu rei e a Deus?" "Que
a larga mão em que vós destes tantos domínios e reinos não foram mercês
de vossa liberalidade, senão cautela e dissimulação de vossa ira, para aqui
fora e longe de nossa pátria nos matardes, nos destruirdes, nos acabardes
de todo. Se esta havia de ser a paga e o fruto de nossos trabalhos, para
que foi o trabalhar, para que foi o servir, para que foi o derramar tanto e
tão ilustre sangue nestas conquistas?" "Assim se hão de lograr os hereges
e inimigos da fé, dos trabalhos portugueses e dos suores católicos . . . En-
tregai aos holandeses o Brasil, entregai-lhe as 1ndias, entregai-lhe as Espa-
nhas ( que não são menos perigosas as conseqüências do Brasil perdido),
entregai-lhe quanto temos e possuímos ( como já lhe entregastes tanta
parte), ponde em suas mãos o Mundo: e a nós, aos portugueses e espa-
nhóis, deixai-nos, repudiai-nos, desfazei-nos, acabai-nos. Mas só digo e
lembro a Vossa Majestade, Senhor, que estes mesmos que agora desfavore-
ceis e lançais de vós, pode ser que os queirais algum dia e que os não
tenhais" <5 t>. A escatologia conseqüente de Vieira exigia sob ameaça uma
benção divina que não aparecia, esquecido de que em realidade todas as
nações são pecadoras e que o julgamento de Deus, cujas modalidades nos
escapam, se exerce sobre todas <52 >. Para fabricar sua História do Futuro,
Vieira não se inspirara em Santo Agostinho, cuja Civitate Dei se propõe a
refutar os pagãos que, em conseqüência da tomada e da pilhagem de Ro-
ma pelos Godos, lançavam essa desgraça sobre a religião cristã e começa-
vam a blasfemar do verdadeiro Deus (53 ) .
A concepção cristã da soberania de Deus sobre a história, em Vieira,
quer prever na cidade terrestre a cidade de Deus, embora distinga o que
pertence a Deus e a César. Como na mensagem do profeta, ele quer reve-
lar a obra de Deus na história, e no Quinto Império a unidade da história
na unicidade de Deus, que preside ao seu desenvolvimento. A fortuna e a
aventura, termos pagãos na concepção de Santo Agostinho, aparecem no
esquema de Vieira. João de Barros e Diogo do Couto haviam revelado que
Portugal, nos quinhentos, possuía ' não uma crônica doméstica, mas urna
história universal. Os acontecimentos seguintes haviam destruído em Por-
tugal o poder de fabricar história universal. Vieira quer que a palavra de
Deus revele que chegara a hora do Império do Mundo, a crônica real do-
méstica, novamente transformada na História universal. Para isso inspira-
se no profeta Isaías, nos textos bíblicos e especialmente em Bandarra, con-
temporâneo de Nostradamus, um sapateiro engenhoso que desde 1540,
num livro de Trovas, consignara os destinos portugueses (54). Mas para
entender a realidade da história e tornar-se capaz de uma inteligência ve-
rtdica do futuro era necessário não confundir a história da revelação e a
história humana. Vieira confundiu-as e por isso sua História do Futuro, só

(51)"Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra aa da Holanda", ed. H. Ci-
dade, li, 168-172. O grifo 6 nosso.
(52) Jean Dan16lou, Essal sur te Myst~re de l'Hlstolre, Paris, 1953, 269.
(53) Vieira cita Santo Agostinho e seu dlsclpulo Paulo Oroslo, autor da Hlstorlarum llbrl,
Vil adversus paganos. Vide Cartas, ed. J. L. Azevedo, Ili, 598.
(54) J. L. de Azevedo. História de Ant6nio Vieira, I , 66 e seguintes.

486
em parte escrita, e as Esperanças de Portugal, Quinto Império do Mun-
do C55l, acabaram tão desacreditadas, apesar da influência que exerceram
durante algum tempo.
Vieira sempre acreditou mais na profecia do que na história. A His-
tória do Futuro "é mais verdadeira que todas as do passado, porque elas
em grande parte foram tiradas da fonte da mentira, que é a ignorância e
malícia humana, e a nossa tirada do lume da profecia e acrescentada pelo
lume da razão, que são as duas fontes da verdade humana e Divina" <5 6).
Como se vê, ninguém mais descrente da credibilidade e fidedignidade
históricas. Ninguém escreveu mais estranhas palavras sobre a objetividade
histórica, "Quem quiser ver claramente a falsidade das histórias humanas
leia a mesma história por diferentes escritores e verá como se encontram,
se contradizem e se implicam no mesmo sucesso, .sendo infalfvel que um
só pode dizer a verdade e certo que nenhum a diz_" <57 ) . "Que historiador
há ou pode haver", pergunta Vieira, "por mais diligente investigador que
seja dos sucessos presentes ou passados, que não escreva por informações?
E que informações há de homens que não vão envoltas em muitos erros, ou
da ignorância ou da malícia? Que historiador há de tão limpo coração e
tão inteiro amador da verdade que o não incline só o respeito, a lisonja, a
vingança, o ódio, o amor, ou da sua ou da alheia Nação, ou do seu estra-
nho Príncipe? Todas as penas nasceram em carne e sangue e todos na
tinta de escrever misturam as cores do seu afeto" <58l.
Aí está todo o dilema fundamental entre a objetividade da história e
a subjetividade do historiador. Vieira nunca acreditou que ele se pudesse re-
solver· satisfatoriamente, conciliando a verdade pessoal e a certeza histó-
rica. O historiador de coração limpo e de alma inteira pode sentir no ódio
e na paixão a parte da verdade que elas contenham. Ele pode defender-se
com a simpatia e a compreensão para captar o espírito dos negócios hu-
manos. Vieira não soube separar o religioso do humano, e açabou defen-
dendo a destruição ou o abandono do concreto, do temporal e do histó-
rico e esqueceu que o cristianismo necessita de história para a cabal com-
preensão das grandes decisões criadoras de Deus, que constituem a história
e convertem a precariedade humana numa verdade autêntica e eterna. Ba-
ralhando a verdade humana e a eterna, intrincando história profana e san-
ta, confundindo a cidade de Deus da concepção augustiniana, aquela do
povo de Deus, com suas variações de fidelidade e de revolta com a cidade
terrestre, história humana em que Deus intervém para inscrever sua reve-
lação, Vieira não teve a graça de compreender o mistério da história re-
velada, nem a recompensa de ver a história humana como um exercicio,
um treino para a vida eterna. Desacreditou a profecia e não acreditou na
história. Viu a promessa do futuro transformar-se em realidade presente.
Ganhava o futuro, prometendo-o aos presentes.

(55). "Primeira e Segunda Vida de El·Rel d . João IV. Escrito em 1659", ed. ln Cartas, ed.
J. L. Azevedo, I, 488-597 .
(56) História do Futuro, Lisboa. Galram, 1718, 182-183.
(57) Ibld., 182.
(58) lbld., 180-181.

487
Vieira não foi um escritor e acabou sendo um dos maiores escritores
da língua portuguesa. Vieira não foi um historiador e descreu das possi-
bilidades da história, mas acabou sendo uma das fontes essenciais para a
compreensão histórica da vida seiscentista. Vieira foi um patriota por-
tuguês, um dos teóricos do Poder português e foi também um dos melho-
res defensores dos intereses brasileiros. "Tudo o que se der à Bahia, para
a Bahia há de ser. Tudo o que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de
gastar."
Como observou Boxer, criticando João Lúcio de Azevedo, Vieira não
foi um vencido <5 9). A publicação em vida dos seus onze volumes de Ser-
mões, procurados por toda a parte, até no estrangeiro, as homenagens que
a Universidade do México lhe prestara, dedicando-lhe umas conclusões de
teologia, com sua imagem estampada na folha de rosto <60 >, as traduções
espanholas, francesas, italianas, holandesas, e o sentimento geral que An-
dreoni exprimiu escrevendo dois dias depois de sua morte, revelam que
"os muitos e serenos dotes que Deus nele reunira tornarão por muito tem-
po sensível a saudade de tão grande homem, e a aumentarão extremamen-
te, todas as vezes que a sua lembrança que viverá eterna entre nós, des-
pertar em nosso espírito a sua imagem que assiduamente contemplamos,
o seu trato agradabilíssimo e os preclaros dotes do seu espírito" (61).
Vieira foi um grande homem no seu tempo e de todos os tempos e
ainda hoje a apologia de sua vida tem grande atualidade. Primeiro, ele é
uma expressão contemporânea da reação ocidental seiscentista contra a
intolerância e a discriminação, na defesa dos oprimidos, de todos os opri-
midos índios, negros e judeus. A atitude liberal jesuítica, de que ele foi o
porta-voz no Brasil e em Portugal, não era característica de toda a Igreja.
O zelo violento, o fanatismo e o odium theologicum dos seus adversários
na luta contra os judeus levaram-no ao cárcere. A veia do liberalismo
que ele possuía é inspiradora não só em si mesma, mas porque semeia
futuro, servindo como uma lição, quando judeus e negros foram perse-
guidos em pleno século vinte. A indignação moral com que militou em
todas as suas campanhas, especialmente contra a corrução politica e ad-
ministrativa, mostra a persistência de motivos do século dezessete no Bra-
sil contemporâneo. Exilado ou refugiado em Roma ou no Brasil, Vieira
sofreu a "penalização social e política" como um pioneiro não conformista
dos excessos do fanatismo religioso ou pelas visões futuristas, em relação
a Portugal, de um capitalismo mercantilista indispensável ao seu desen-
volvimento.
A apoteose das sociedades comerciais e do império ecumênico deifi-
cado era conseqüência da dissolução e do vácuo intelectual produzidos
pelo descrédito de Portugal num gênio de extraordinária visão política. O

(59) Charles R. Boxer, A Great Luso-Brazillan Figure, ob. cil., 29.


(60) J. L. Azevedo, História de António Vieir11, II, 235, e R. Rlcard, Antonio Vieira et
Soro, /uana Inês de la Cruz, Coimbra, 1948, Vide Bibliografia sobre a matéria, in Serafim
Leite, HC/B, IX, 355-356.
(61) ABN, XIX, 147, carta de Andreonl, tscrlta a 20 de Julho de 1697.

488
ideal e o propósito prático de incrementar e consolidar o império portu-
guês, tão dissolvido na corrução, intolerância, discriminação, desvaloriza-
ção do trabalho e da atividade econômica inspiram-lhe, como experiência
alternativa, a visão do "Encoberto", a defesa de judeus e negros, a conde-
nação da ociosidade, a indignação moral contra o tomar o alheio comer-
cial e oficial, e a apoteose do império. Vieira foi um grande doutrinador
do imperialismo português.

3 . Frei Vicente do Salvador


Frei Vicente do Salvador, chamado no século Vicente Rodrigues Pa-
lha, nasceu na Bahia por volta de 1564 <62 > e parece ter falecido entre
1636 e 1639 (6 3 >. Era o filho mais ve1ho de João Rodrigues Palha, lavra-
dor de engenho, nos arredores do Recôncavo <64 >, casado com Mécia de
Lemos.
Formado em teologia e cânones pela Universidade de Coimbra, vol-
tou à Bahia, talvez, como conjetura Capistrano de Abreu <05 >, por volta
de 1587. Tomou ordens sagradas, serviu de cônego, de vigário-geral, go-
vernador de bispado, e em 1597 tomava o hábito de São Francisco. Foi,
então, mandado para Pernambuco e daí andou missionando os índios da
Paraíba. Veio para o Rio de Janeiro em 1607 ou 1608 ajudar e depois
dirigir as obras da fundação do convento, voltando a Olinda a lecionar os
estudos da Casa. Pregador, já em 1612 era eleito na Bahia guardião da
Ordem e custódio em 1614 !66 >, cargos que bem revelam a autoridade que
adquiriu entre seus irmãos da Ordem. Depois de uma nova viagem a
Olinda, seguiu, em 1618, para a Europa, talvez desejoso, como conjetura
Capistrano de Abreu, de imprimir a "Crônica da Custódia do Brasil" que
compusera e que desapareceu !6 7 >.
Assistiu ao capitulo celebrado em Lisboa em 1619, e em 1620 ainda
permanecia em Portugal. Em 1621 deve ter chegado ao Rio, segundo Ca-
pistrano de Abreu. Em 1624, aos 28 de maio, foi aprisionado na Bahia
pelos holandeses, que dominavam o mar e a cidade. Vinha do Rio, onde
assistira aos preparativos de defesa da cidade, ameaçada de igual ataque.
Ficou preso a bordo durante quatro meses e depois serviu aos portugueses,

(62) Ao dar Clm à Hlstdrla, cm 1627, declara ter 63 anos. Cf. edição de Caplstiano
de Abreu e Rodolfo Garcia (1931), São Paulo, 616.
(63) Cf. Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, Novo Orbe Serd/ico Brasl/ico, Rio de
Janeiro, 1858-59.
(64) Primeira Vlsitaçao do Santo Oficio ds Partes do Brasil, Confissões da Bahia, 1591-92,
Prefácio de Caplstrano de Abreu, Rio de Janeiro, 1935, 121. A confissão é de 24 de Janeiro
de 1592.
(65) As citações de Caplstrano de Abreu referem-se à "Nota preliminar• que precede a
edição de Frei Vicente.
(66) Foi o 10.•, 15.• e 20.• guardião da Ordem. Cf. o "Livro da Fundação deste Con-
vento de N. S. Padre S. Francisco da Cidade de Bahia e dos prelados que a governarão, antes
de ser Provlncla e depois de separada da Província de Portugal. O qual mandou fazer o Iro
PregadOr e Ex. Deffor. Fr. Sebastião de Jesus e Santa Ana, sendo Ministro Provincial no ano
de 1804". Códice Manuscrito da Biblioteca Nac. do Rio de Janeiro, 11-34, 3, 4. Guardião o!
o superior de um convento e Custódio o superior de um conjunto de conventos, antes de
formarem uma Provlncla.
(67) Coníorme notou Caplstrano de Abreu. o único autor que fala dela com conheci-
mento de causa o! Jol'llC Cardoso, no A.glo/oglo Lusitano, Lisboa, 1652, t. 1, 469, t. l, 312.
Jaboatão não a viu.

489
que permaneceram na cidade dominada até sua libertação a 30 de abril
de 1625. A 20 de dezembro de 1627 assinava a dedicatória da História
do Brasil a Manuel Severim de Faria, erudito historiador português, ir-
mão de Frei Cristóvão de Lisboa. Manuel Severim pôs à disposição do
frade sua biblioteca "quase toda ocupada de livros históricos", e além de
escrever a história de Luís de Camões, João de Barros e Diogo do Couto,
diz Frei Vicente, aos vivos excitava, dava ânimo e fervor, "para que
saiiam à luz com seus escritos, ê folgue cada um de contar e compor sua
história. Este foi o motivo que tive para sair com esta do Brasil, junto
com Vossa Mercê ma querer fazer de tomar a impressão à sua
custa ... " (68). Manuel Severim pedira a Frei Vicente um tratado "das
cousas do Brasil" e este deve ter escrito ou pelo menos rascunhado, na
livraria daquele, segundo pensa Capistrano de Abreu, quase todo o primeiro
livro, a maior parte do segundo e as partes dos outros dependentes de
João de Barros, Pedro de Mariz, Diogo do Couto e Antônio de Herrera
y Tordesillas (69 >.
A História do Brasil de Frei Vicente do Salvador é um dos livros
mais saborosos do Brasil seiscentista, pela simplicidade do estilo, natural,
sem artifícios, pela ingenuidade da narrativa, entremeada de estórias po-
pulares e ditos pitorescos. Lê-se como um romance, ou melhor, como uma
coleção de contos históricos. Provavelmente o que esmoreceu o entusias-
mo de Manuel Severim de Faria, que afinal não a publicou, não terá sido,
como pensou Capistrano de Abreu, parecer-lhe o livro "uma coleção de
documentos antes reduzidos que redigidos, mais histórias do Brasil do que
história do Brasil", e sim a falta de austeridade e gravidade, tão comum,
à historiografia portuguesa anterior, do seu século, e posterior, como a de
Rocha Pita, Jaboatão, Berredo, ao lado da pobreza da matéria central, a
luta constante pelo domínio da multidão indígena.
A História consta de cinco livros e nenhum parece intacto: o pri-
meiro descreve o descobrimento e a terra; o segundo trata do regime das
donatárias, seguindo não "a ordem de tempo e antiguidade das capitanias
e povoações, senão a do sítio, contiguação de umas com outras, come-
çando do Sul para o Norte, o que não farei nos seguintes livros, em que
seguirei a ordem dos tempos e sucesso das cousas" (70 >. O terceiro se inicia
com o primeiro Governo Geral ( 1549) e termina com a perda de Indepen-
dência de Portugal (1580). O quarto começa com o governo de Manuel
Teles Barreto (1582) e os socorros espanhóis da armada de Diogo Flores
de Valdez contra os corsários ingleses e franceses e termina com o gover-
no de D. Diogo de Menezes (1606) no Norte, e de Francisco de Sousa
no Sul (1609). O quinto abre com o governo de Gaspar de Sousa (1612)
e trata especialmente da jornada de conquista do Maranhão e da guerra
holandesa na Bahia.

(68) Dedicatória, História, ed . de 1931 , pp. 2-3.


(69) Nota preliminar, História, ed. de 1931 , XV.
(70) H/st6rla, ed. de 1931 , 133°134.

490
Frei Vicente conta a história da conquista e posse da terra e das
lutas contra os índios, contra franceses e ingleses, especialmente os pri-
meiros, que disputavam aos portugueses o domínio de trechos do litoral.
Compreende a história de São Vicente ao Maranhão, mas são especial-
mente a Bahia e Pernambuco os centros da narração, pois neles se pro-
duzia a História. O cenãrio principal é um pequeno trecho do Brasil atual
e a história, a dos governadores e sua ação, contada em ordem cronológi-
ca. Desde o princípio até 1627, o tema constante é a luta contra os indí-
genas, tabajaras, potiguaras, aimorés, tamoios, caetés, mais ou menos re-
voltados contra a espoliação que sofriam e os maus tratos que recebiam.
Frei Vicente construiu para o primeiro século e os 27 anos do segundo
uma esplêndida narrativa, genuína, fidedigna, saborosa e popular. Genuína
e fidedigna porque pôde ouvir, quando não foi testemunha direta, os ho-
mens da segunda e terceira gerações no Brasil. "Ouvi dizer a homens do
seu tempo (edificação de Salvador, 1549) que ainda alcancei alguns",
escreve quando trata de Tomé de Sousa <71>; para os primeiros tempos po-
dia recorrer, como recorreu, à tradição oral e não são poucas as vezes
que se serve da expressão "se contam", "segundo me disse como testemu-
nha de vista e beni qualificada" <72>; e para o seu tempo utilizou-se das
informações orais, algumas transmitidas pelos próprios autores das faça-
nhas, como é o caso de Martim Soares Moreno (73).
Saborosa pelas estórias populares que quebram a monotonia do en-
redo, às vezes tão militar, como por exemplo, a do soldado que falava ao
cavalo, a do sobrinho de Baltazar Ferraz, que roubou ao marido sua mu-
lher, e a da mulher casada que fugiu de seu marido com a filha formosa
e a casou com um mercador holandês <74 >. Popular, porque o povo é o
índio, que aparece no texto a todo momento e também porque a história
dos governadores é também a história dos sacrifícios e virtudes, dos be-
nefícios e maldades da gente miúda branca, contra a multidão indígena
e a massa negra que começava a avolumar-se. Ressentimentos de indígenas
e negros retratam-se nesta crônica viva e inteligente de nossos 127 pri-
meiros anos. A história das guerrilhas, dos assaltos, dos combates contra
indígenas, franceses e holandeses para o domínio completo da costa, en-
tremeada de palavras, discursos e gritos (75) que as personagens dizem ou
bradam, e de milagres <76 > que se sucedem para mostrar o providencialis-
mo histórico, não se refere à expansão pelo interior, senão a pequenas
entradas à busc~ das minas. Por isso mesmo se justificam suas palavras
tão repetidas de que "da largura que a terra do Brasil tem para o sertão
não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência
dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se apro-
veitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar

(71) História, ed, de 1931, 151.


(72) lbld., 94, 98.
(73) lbld., 414, 515-517.
(74) lbld., 340, 484, 534. Por ele ficamos sabendo que, no século XVII, a terça-feira era
considerada dia àzlago. Cf. p. 496.
(75) lbld., 187, 310, 514, 524, 565, 566, 582·583.
(76) lbld., 91, 97, 113, 488, 531, 537, 592. '

491
como caranguejos" <77 1. O padre estava certo e, como mostrou Sérgio Buar-
que de Hollanda, o movimento bandeirante que contrariou de modo deci-
dido os rumos da colonização portuguesa - colonização de marinha - ,
tomou vulto em 1627 com a expedição arrasadora de Antônio Raposo
Tayares ao Guairá. Até 1627, quando Frei Vicente concluiu seu livro,
nada de importante desviara a direção litoral, nem mesmo a expansão pelo
Amazonas (78).
A narração de Frei Vicente é, em grande parte do livro, fonte indi-
reta, embora fidedigna, porque baseada, como mostrou Capistrano de
Abreu, nos autores contemporâneos e nas tradições orais ainda não detur-
padas pela proximidade dos acontecimentos, e pela facilidade, em muitos
casos, de audição dos contemporâneos ou da geração seguinte. No mais
ele assiste, presencia, testemunha ou escuta os que viram ou participaram
dos sucessos. Nota-se sua presença em 1604, quando possuía 40 anos de
idade <79 >. Daí em diante várias vezes o autor aparece na história, vendo
com seus olhos, ouvindo, conversando, respondendo, participando. f: de
crer que antes, bem antes de 1587, quando voltara ao Brasil, doutorado'
por Coimbra, com 23 anos, e portanto desde o fim do quarto livro, anota-
va para descrever a história presente, a atualidade contemporânea, como
faziam ainda os historiadores do seu tempo, antes que a história fosse ape-
nas o passado.
A concepção histórica de Frei Vicente é pragmática. "Os livros histó-
ricos são luz da verdade, vida da memória e mestres da vida" e eles "igua-
lam os mancebos na prudência aos velhos, porque a que os velhos alcan-
çam com larga vida e muitos discursos, podem os mancebos alcançar em
poucas horas de lição, assentados em suas casas" <8°>. Homem de boa
cultura, versado em literatura latina, história sagrada e profana, livros de
viagens, sabendo espanhol e talvez italiano, Frei Vicente com aquela defi-
nição filia-se à história pragmática no Brasil. A história não é só um arma-
zém de precedentes, mas exprime a filosofia ou as idéias professadas pelo
historiador. Seu providencialismo direto pelos milagres e castigos é natu-
ral na sua formação. Quando os holandeses dominaram Salvador e os por-
tugueses fugiram e se estabeleceram num arraial, o Bispo, escreve Frei
Vicente, "fazia tão áspera penitência, que nunca mais fez a barba nem
vestiu camisa, senão uma sotaina de burel, dormia mui pouco e jejuava
muito, pregava e exortava a todos à emenda de suas culpas para que apla-
cassem a divina ira". A invasão holandesa fora um castigo de Deus aos

(77) Ib/d., 19. Frei Vicente critica, de outra feita, estar a ilha de Santa Catarina despo-
voada "por ser de portugueses que não sabem povoar nem aproveitar-se das terras que con-
quistam•. Ibld., 272.
(78) Sérgio Buarque de Holianda, "Período Colonial", Manual de Estudos Brasileiros, Rio
de Janeiro, 1949, 398. O artigo de Jaime Cortesão, "Os Caranguejos de Frei Vicente", in A
Manhã (Rio de Janeiro, 30 de maio de 1948), criticando a frase como "desenfado malicioso de
frade cético•, mostra a existência e importância dos portugueses em outros portos espanhóis
da América do Sul e no interior do Paraguai, Argentina e Peru. Os documentos da Coleção de
Angells não revelaram a existência senão esporádica de padres jesultas portugueses no interior
de terras brasileiras no extremo sul. Só a partir de 1628 se inicia realmente a grande jornada
bandeirante. Portanto, Frei Vicente não era malicioso, mas verdadeiro.
(79) lbld., 394.
(80) Ibld., 1 e 2.

492
pecados do Brasil, escreveram Vieira, Calado e Frei Vicente, aceitando a
teoria da retribuição temporal da virtude, vendo castigos nas catástrofes
históricas, os povos fiéis oprimidos e os infiéis triunfantes (81 l.
Frei Vicente amou o país, como todos os primeiros cronistas, e lou-
vou suas excelências, especialmente as da sua Bahia, "a melhor terra do
Brasil", como o Rio Grande do Norte seria a pior (82 l. Várias vezes critica
a ação portuguesa, quer a real, que abandonara a terra ou descuidava do
seu crescimento, quer a dos povoadores, "os quais por mais arraigados que
na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portu-
gal. . . E isto não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasce-
ram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usu-
frutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída" (83). Era o de-
senfado, o desdém pela terra, uma das características psicossociais desta
época de mazombos. Seu nacionalismo se revela nesta e em várias outras
passagens, quando escreve, por exemplo, que o Brasil "pode sustentar-se
com seus portos fechados sem socorro de outras terras" (8 4 l, porque tudo
dá e possui. Declara que se Portugal fosse entrado e possuído de inimigos
estrangeiros e el-rei tivesse de passar a outra terra, a nenhuma o podia
melhor fazer que a esta, e que o Brasil seria um grande reino (85 l. Mas o
tom de censura e recriminação aos portugueses transparece em várias pá-
ginas: ora para escrever que serviços do Brasil raramente se pagam, ora
para dizer que as "partes transmarinas são sempre as que pagam por nos-
sos pecados e ainda pelos alheios" (86). Mas onde melhor exprime seu sen-
timento é na história que conta do homem degredado pelo bispo de Lei-
ria, o qual, zombando, ou pelo entender assim, pôs na sentença: "Vá de-
gredado por três anos para o Brasil, donde tornará rico e honrado" <87 l. E
assim foi com este e com outros, que aqui não trataram do que havia de
ficar, mas do que haviam de levar para o reino. Este sentimento de que o
Brasil era espoliado era geral. Vieira exprimiu-o também em melhor forma.

A História do Brasil permaneceu inédita durante mais de dois séculos. O bi-


bliógrafo Barbosa Machado, o cronista e o genealogista franciscano Jaboatão e o cro-
nista agostiniano Frei Agostinho de Santa Maria, todos do século XVIII, conheceram
e noticiaram a obra. Varnhagen diz tê-la consultado em manuscrito na Biblioteca das
Necessidades em Lisboa e João Francisco Lisboa, alguns anos mais tarde, por su-
gestão de Varnhagen, reencontrou o documento (88), e fez uma cópia, enviada ao
Brasil, com os outros papéis que colhera em virtude de sua comissão de pesquisas
na Europa. Esta cópia ficou esquecida ou abandonada de 1858 a 1882. Capistrano
de Abreu contou, em nota preliminar da edição de 1918 e em cartas a João Lúcio

(81) Cf. Jean Daniélou, Essai sur le Mystere de l'Histoire, Paris, 1953, 1~9. Herbert Butterfleld
lembra que a União Soviética foi a mais bendita nação, nas duas Guerras, e a Alemanha a mais
maldita . Cf. Christianity and History, Londres. 1950, 52.
(82) História, ob. cit., 372.
(83) Ibld., 16.
(84) lbld., 50.Sl.
(85) Ibid., 152·163.
(86) Ibld ., 273 e 496.
(87) Ibld., 372-373.
(88) Capistrano de Abreu conta a pesquisa de João Francisco Lisboa em Portugal a con·
selho de Varnhagem, baseado na publicação da correspondência de ambos. Vide também José
Honório Rodrigues, A Pesquisa Histórica no Brasil , Rio de Janeiro, 2.• ed. , 1969, 59-65; 3.•, 1978,
Idem.

493
de Azevedo (89), como o reaparecimento do manuscrito lhe fizera reviver a emoção
do humanista da Renascença diante de um códice ressuscitado da antigüidade. A his-
tória das várias edições, a primeira no Diário Oficial em 1886, imprimindo-se apenas
os dois primeiros livros, depois reunidos no vol. 5 dos Materiais e Achegas para a
História e Geografia do Brasil sob o título Livros I e II da História do Brasil (90),
vem contada também na nota preliminar da edição de 1918.
A publicação integral ocorreu pela primeira vez em 1888, nos Anais da Biblio-
teca Nacional (91), com um estudo inicial de Capistrano de Abreu, diferente da pe-
quena nota que precede a edição do Diário Oficial e da nota preliminar que antecede
a edição de 1918, terminando por escrever que o livro de Frei Vicente "é um dos
maiores em nossa literatura colonial". A publicação integral definitiva ocorreu em
1918, trinta anos depois da primeira. Capistrano de Abreu começa nos últimos meses
de 1917 a preparar o trabalho, compondo a biografia do autor e a história do ma-
nuscrito, dizendo da significação do livro na nota preliminar, escrevendo os prole-
gômenos que precedem cada livro, nos quais estuda as fontes do autor e indica os
documentos originais conhecidos para quem quisesse aprofundar o assunto. Por volta
de maio de 1918 começava a impressão e em setembro era publicado.

A edição crítica de Capistrano de Abreu é modelar, sem exemplo na


história dos textos históricos, inteiramente diferente daquela que os Anais
tinham impresso, definitiva no texto limpo e fidedigno, soberba na erudi-
ção que informava as fontes, corrigia os enganos e esclarecia a matéria.
Nunca se fizera igual no Brasil (92 > e João Lúcio de Azevedo, o grande
historiador português, saudava a edição escrevendo que "a penetração da
crítica, o preciso das anotações, a abundância dos documentos, o conhe-
cimento das fontes reveladas só podem surpreender aos que ignoram que
lugar tem entre os sabedores da especialidade o comentador" (93).

4 . Rocha Pita
Sebastião da Rocha Pita (Salvador 1660 - Salvador 1739), filho
de João Velho Gondim e de Brites da Rocha Pita (94), estudou no Colégio
dos Jesuítas na Bahia, conseguindo o grau de mestre em artes. É duvidosa
sua formação na Universidade de Coimbra conforme sustentou Afonso

(89) História, nota preliminar, Ili-IX. Correspondência de Caplstrano de Abreu, Rio de


Janeiro, 1954-57, vol. 2, Cartas de 18 de novembro de 1916, 19 de março de 1917 e carta de
1917, sem dia e mês.
(90) No Diário Oficial começou a sair a 23 de julho de 1886, com uma pequena nota de
Capistrano de Abreu declarando que 260 anos depois de escrita ela vinha à luz e que Lino de
Assunção, seu amigo e correspondente em Lisboa, começara a tirar nova cópia na Torre do
Tombo. Vide também Cartas de Caplstrano de Abreu a Lino de Assunção, Lisboa, 1946. A
edição dos dois primeiros Livros é da lmp. Nac. (1887), 116 pp., e a Gazeta (Rio de Janeiro)
de 21 de dezembro desse ano noticia o acontecimento dizendo: • A data escolhida para o apareci-
mento desses trechos da obra foi-o propositadamente a 20 de dezembro de 1627, Frei Vicente assi-
nou a dedicatória que punha remate a esse trabalho, isso aos sessenta anos de idade".
(91) Vol. 13, fase. n. 0 I, 6. O prefácio de Capistrano de Abreu contém XIX páginas. A
obra 261 páginas e o fndice, 7 páginas. Trechos referentes ao Ceará foram publicados no RIC, t. XI
(1897), 255-271.
(92) Correspondência de Caplstrano de Abreu, Cartas citadas a João Lúcio de Azevedo e
mais as de 23 de março, 14 de abril, 2 de maio, 25 e 26 de junho de 1918, vol. li.
(93) Cada prolegõmeno indica também os capítulos perdidos ou provavelmente perdidos.
Em 1931 nova reedição (3.•) foi feita e Rodolfo Garcia acresceu notas de pé de página apontando
novos documentos e informes, atualizando a edição.
(94) Sua biografia, sobretudo o nascimento, é motivo de grande controvérsia dos genealogistas.
Vide Afonso Costa, "Sebastião da Rocha Pita visto a olho nu", RIHGBa, 1950-51, n. 0 76, 3-9 do
rep. do JC, 3 de fevereiro de 1952, do mesmo autor, ··Na Esteira de Rocha Pita• /C, 15 de
março de 1953.

494
Costa (95). Casou-se com Ana Cavalcanti de Albuquerque <96 >, foi feito co-
ronel das Ordenanças da Corte de Salvador, fidalgo da Casa Real, cava-
leiro professo da Ordem de Cristo, Acadêmico na Academia Real da
História Portuguesa de Lisboa, da Academia dos Esquecidos da Bahia
(1724) <97 >. Como Coronel nomeado em 1694 (30 de março) (98), título
distribuído a pessoas importantes pelo respeito pessoal, pela fortuna e pela
ascendência, é grande sua correspondência com os governadores e destes
com ele <99 >.
Segundo Borges da Fonseca era homem muito discreto e versado em
toda a literatura e insigne na arte poética <100 >. Da sua autoridade não ha-
via quem duvidasse <101 >. De sua descendência fala o linhagista duas
vezes <1 02 >.
Domingos do Loreto Couto traça-lhe também a biografia, dizendo
que "foi homem dotado de gentil presença, engenho agudo, condição afá-
vel, discreção natural, inteligência das línguas latina, italiana e castelhana,
e muito versado na história secular, genealógica e poética, cujos singulares
dotes lhe conciliaram universal estimação" <1 03 >.
Como se vê os dois linhagistas tinham por Rocha Pita considerável
respeito e o reputavam escritor de mérito (104).
Escreveu Afonso Costa que tão importante era a situação social e
política de Rocha Pita que em 1687 foi escolhido membro do Senado da
Câmara de Salvador, sendo reeleito em 1692, 1704, 1712, 1721 conforlT!e.
os Documentos Históricos da Prefeitura de Salvador <105 >.
Sua obra não se limita à História da América Portuguesa <1 06 >, a mais
importante, mas ao Breve Compêndio e narração do fúnebre espetáculo
que na cidade da Bahia se viu na morte d'el-Rei D. Pedro ll (10 7 >; outro
das exéquias da Senhora D. Leonor Josepha de Vilhena, mulher de D.
Rodrigo da Costa, Governador e Capitão Geral que foi do Estado do
Brasil e Vice-rei da índia, com o título de Sumário da vida e morte da
Exma. Senhora D. Leonor Josepha de Vilhena, e das exequias que se ce-
lebraram à sua memória na cidade da Bahia (l08).

(95) 1.0 art. clt.


(96) Vide A. J. V. Borges da Fonseca, Nobiliarchia Pernambucana, ABN 41, 274.
(97) Seus vários sonetos recitados nas sessões apareceram reproduzidos ln José Aderaldo
Castello, O Movimento Academicista no Brasil, 1641-1820/22, Cons. Est. de Cultura, 1971, pp. 63,
93-95, 106, 122, 173, 176, 216, 222, 280 e a ele dedicados, 131, 140-147.
(98) ABN, vol. 37, doe. 26.156-26.157.
(99) Vide DHBN 1939, LXVI, 318, 1940, LXVll, 85, 1945, LXVIII, 259, 260, 262, 1945,
LXIX, 17, 78, 93, 191, 269, 1946, LXXII, 28-29, e LXXlII, 45-50; e ABN 31, vol. XXXII, 125-26.
(100) "Noblliarchla Pernambucana" ABN vol. 47, 274.
(101) "Nobillarchla" clt., XLVII, 302 e XLVIII, 48, 405.
(102) "Noblllarchla" cit., XLVII, 319 e XLVIII, 154, 318.
(103) "Desagravos do Brasil e Glórias de Pernambuco", ABN vol. XXV, 39.
(104) Não se deve confundir o coronel com um alferes que aparece em outro llnhaglsta
Frei Antônio de S. Maria Jaboatão, "Catálogo Genealógico", RIHGB, 1889, t. LXII, parte !.•,
309, confusão <Zesfeita por Afonso Costa no cit. art. "Sebastião da Rocha Pila visto a olho nu".
(105) Afonso Costa no cit. art. "Sebastião da Rocha Plta visto a olho nu".
(106) 1.• ed. da A. R. de História, Lisboa, 1730, 2.• ed. Bahia, 1878, 3.• ed. Lisboa, 1880,
4.• ed. Rio. Guarnier, s/d.
(107) Lisboa, 1709.
(108) Lisboa, 1721, citado por Borges da Fonseca, ob. clt., vol. 47, 274 e 319, e por Loreto
Couto, ob. cit. XXV, 40, e pelas modernas bibliografias de Inocêncio e Sacramento Blake.

495
Ultimamente apareceu o Tratado Político <1 0 9 , não referido por ne-
nhum dos Iinhagistas e bibliógrafos citados.
4. 1 . A História da América Portuguesa
Rocha Pita começa, nas Advertências, declarando que se baseou em
relações fidedignas e em informações particulares contemporâneas feitas por
pessoas que conheceram as maiores partes do continente e depuseram com
fidelidade, como testemunhas de fato "com a ciência de que o Autor as
inquiria para compor esta História, cujo essencial instituto é a verdade".
Afirma mais que nos dois primeiros livros descreve o corpo natural
e material do Brasil, as maravilhosas obras que nele fez a natureza, as
produções em vários gêneros e que procurou seguir os preceitos da Histó-
ria, e escrever em estilo histórico com estudo castigado.
Vem o prólogo e nele o autor diz que embora o Brasil tenha criado
talentos grandes, nenhum compôs a sua História, e a Real Academia, o
constituindo em acadêmico, lhe deu alentos para tentar empreender a obra.
Reafirma que são seguras e fiéis as notícias que escreveu e que se o estilo
parecer encarecido, ou de ••,asiado o ornato pede se reconheça "que em
mapa dilatado a variedade das figuras carece da viveza das cores e das
valentias do pincel". Para ele seu estilo ainda é humilde ou por falta de
engenho, ou "por não ter visto todos os originais, fazendo a maior parte
das cópias por informações, e enfim se não se contentar, aparte os olhos
porque a ti te escusas o enfado e a mim a censura".
No livro primeiro domina o louvor ao Brasil, e se conta o descobri-
mento e se descreve a situação geográfica, com uma pobreza de conheci-
mento que o faz inferior não digo a Gabriel Soares de Sousa, mas aos
demais cronistas do século dezesseis. Toda esta parte geográfica, os mon-
tes, os rios, os rumos da navegação, os movimentos do oceano, e seus
frutos, representa um enorme retrocesso historiográfico. Quando trata dos
frutos, da cana e do açúcar, a distância que o separa de Antonil que publi-
cou em 1711 e ele em 1730 é imensurável e sua fraqueza é disfarçada pelos
requintes do estilo. E assim com o tabaco, a mandioca e a aguardente
"de que consta a maior parte das embarcações, que navegam para a costa
da África a buscar escravos e se gasta por eles e pela peble do Brasil em
lugar das dos Reinos".
A superioridade que revela diante do vulgo e da plebe, do povo miú-
do, é uma mostra de seu livro, que é também antigentio, discriminatório,
precõnceituoso. Mas mesmo escrevendo a mais lusitana história do Brasil
colonial ele não nega a crueza do processo histórico. Escreve que aos por-
tugueses custou mais que aos castelhanos as conquistas, porque ."acharam
tão cruel resistência e tão áspera porfia que derramaram muito sangue e
perderam muitas vidas para os (índios) sujeitar, ou fazer retirar para o
interior dos sertões".

(109) Instituto Nacional do Livro, ed. prep. por Heitor Martins, Brasflla, 1972.

496
O segundo livro é sobre a Bahia, suas prerrogativas e excelências, e
nele se vê que na obra, a Bahia é o Brasil. A ufania à Bahia é motivo
para sublimar ainda mais seu estilo barroco. Nele aparece também a feição
oficial do livro; as instituições, as autoridades são excelentes e corretas.
Quando começa a descrever as outras capitanias, neste mesmo livro, a se-
guir a Bahia, seu desconhecimento é evidente, sobretudo comparado aos
autores seus contemporâneos.
Seu livro raramente ultrapassa, apesar do requinte da língua, os limi-
tes de um compêndio que junta o que pode para dar uma noção de tudo.
São quatorze províncias; eram oito donatarias e seis reais, e em sua época
onze de S. M. e três particulares. Havia doze cidades, sessenta vilas, mui-
tos lugares e povoações, quatro Bispados e um Arcebispado. Havia já
aulas de humanidades, filosofia, teologia, e muitos naturais do Brasil têm
saído a ocuparem cadeiras na Universidade de Coimbra.
"Ha mui claras familias de conhecida nobreza" e ele destaca os
grandes do Brasil que ocupam no Reino e no Império posições de relevo
no governo, nas profissões liberais e nas letras.
Resume os direitos reais, mas como defende sempre o governo e nun-
ca o censura e é um baiano inteiramente alienado, servindo e servil a
Portugal, escreve que do considerável número de milhões que importam à
Fazenda Real "grande parte se dispende na nossa própria Região em sol-
dos, ordenados, côngruas, aposenta.dorias, mercês ordinárias, missões,
ajudas de custo, esmolas, náus de guarda-costa e fortificações; luzindo
em tudo a majestade, grandeza e liberalidade do nosso augusto Mo-
narcha".
Do livro terceiro ao décimo, no qual termina, descreve uma história
fatual, na qual a cortesania e servilidade sempre dominam e nunca apare-
cem a liberdade, a crítica, a independência de opinião. A história é crono-
lógica e governamental, governo por governo, como ainda hoje ( 1978)
praticam supostos historiadores-cronistas. O livro exprime sobretudo a
opinião de duas instituições, a Monarquia absoluta e a Igreja, ambas unidas
na opressão, na injustiça, na espoliação de todos para uns poucos.
Muitas vezes a história de Portugal substitui a da América Portugue-
sa, já em si tão sumariada e tão submetida. ~ assim um livro de um gran-
de cortesão, que inicia uma escola que tem seus mestres e discípulos ain-
da hoje, dominando instituições e universidades. A crítica é só a possível,
por exemplo, ao domínio espanhol ou à conquista holandesa do nordeste
brasileiro, ou então, tal como Vieira, segundo a doutrina providencialista,
declara que Deus castiga, mas interroga por que castiga portugueses, sem-
pre tão fiéis.
Há muita matéria esdrúxula, como os capítulos sobre os santos e he-
resiarcas do século décimo sexto, as alterações na Flandres, o congresso
de Utrecht, a rebelião das Províncias Unidas, os exemplos romanos cita-
dos quando trata do benefício que resulta às monarquias do sossego da paz,
na luta entre D. Afonso e D. Pedro. A história portuguesa merece pará-

497
grafos especiais, sem relação com a América Portuguesa, ou nos quais a
monarquia portuguesa é a maior do mundo cristão, casamentos reais, a
morte e o elogio não só aos Reis e Rainhas, mas aos Infantes e Príncipes.
A sucessão espanhola merece vários parágrafos, e a bajulação aos Reis
e Rainhas é constante, os exemplos e citações romanos e casos da tndia
e da China lembrados com ou sem propósito. Se ela fosse expurgada de
tantas excrescências, o livro seria muito reduzido. A impressão que se tem
é que escreveu um livro não para os brasileiros, mas para Portugal, e por
isso mesmo a Academia Real Portuguesa o encampou.
Não possui noção de fato histórico, e os eclipses da lua e do sol ou
os cometas aparecem, como os acidentes pessoais sem influência no pro-
cesso histórico. Usa a expressão revolução. no sentido astronômico, cor-
rente na época, a de revolução do tempo, e atribui à lua nova, que cobriu a
baía de Guanabara, a facilidade da entrada da esquadra de Duguay-Trouin.
Aos exemplos romanos juntam-se os espanhóis e os da fndia. Conta boatos,
maus prenúncios e lendas, numa mixórdia que é tudo, menos história.
E até a invenção da pólvora merec" um parágrafo especial.
A bajulação vai sempre num crescendo que no nono capítulo e no
décimo que já são história contemporânea do autor - ele terminou o livro
em 1724 - ela assume proporções intoleráveis.
A guerra holandesa ocupa o livro quarto e o quinto sem relação com
o tamanho da obra - dez livros sobretudo se considerarmos que dedica
alguns parágrafos à descrição e história dos Países Baixos; os nomes ho-
landeses estão todos estropiados.
Ele é antiíndio, antinegro, pró-escravidão, antijudeu, antipaulista, an-
tiBrasil, pró-Portugal. i;; um colonialista empedernido de tal forma que,
no Brasil, só alguns baianos, maranhenses e paraenses conseguiram ser,
despojando-se da essência do caráter nacional. Os ataques holandeses não
são contra os brasileiros, mas contra os portugueses, tal como sua América
é portuguesa e não brasileira.
A aclamação de D. João IV, ou seja, a restauração do domínio espa-
nhol, merece mais atenção do que normalmente é dedicada à matéria dos
cronistas luso-brasileiros de sua época, porque seu livro é centrado em tor-
no de Portugal e não do Brasil, uma colônia portuguesa. E Portugal não
é senão a maior monarquia do mundo.
A restauração portuguesa traz ao Brasil e aos brasileiros pesados en-
cargos e imposições, e Rocha Pita registra não um descontentamento como
foi e como seria natural que fosse, mas um geral contentamento, e dando
um grande salto cronológico cita a seguir as alterações em 1712 e 1713,
e desvergonhadamente declara que com a vitória contra os holandeses cres-
ceu o ânimo e "a esperança de se verem restituídos à sua antiga liberdade
e à suave obediência do apetecido domínio lusitano".
A obra obedece à estrita ordem cronológica, marcada pela sucessão
de governadores coloniais da antiga capital e pelos reis ou rainhas, e prín-
cipes portugueses, regentes ou não.

498
Os grandes impostos que recaem sobre os brasileiros devido ao Tra-
tado de Paz com a Holanda e o dote para o casamento da Rainha Catari-
na com o Rei da Inglaterra não recebem a mais leve censura, e faz crer
tenham sido recebidos com geral conformidade. Acentua muito e sempre
a obediência dos vassalos brasileiros, como a convencer-se a si e aos de
sua classe que todos têm idolatria pela Casa Real e pelo governo, e exalta
a harmonia entre a sujeição e o domínio.
:e dos primeiros cronistas a descrever a conquista do Piauí, com o
destaque natural pela imensidade de suas terras para a criação do gado,
e não dirime a questão da prioridade entre Domingos Afonso Sertão e
Domingos Jorge Velho.
As guerras contra os índios, os cariris e outros são defendidas e lou-
vadas, embora reconheça que afora a guerra que ensangüentava o solo,
morriam os índios devido à repugnância ao cativeiro, e à melancolia que
abatia muitos.
A descoberta das minas é vista pelo lado baiano-açucareiro, a migra-
ção de povos que provoca, o encarecimento dos escravos, os danos à
economia agrícola.
Mas apesar de ser formal e oficioso ele não oculta aspectos sociais
como as grandes fomes, as pestes, as secas, nem esconde as guerras dos
Palmares, dos Emboabas, dos Mascates, do Maneta na Bahia, nem a re-
volta em Minas de 1720, todas vistas contra os negros, contra os paulistas,
contra os mascates, contra a gente vil ao lado do Maneta, e contra os
desatinos de 1720. Não há uma palavra de simpatia pelos movimentos
populares, e sempre a condenação é rigorosa.
E aparecem também os bandoleiros, os régulos, os amotinadores,
revelando a crueza da história brasileira, tese que vimos sustentando contra
as idéias de uma cordialidade superficial. Nem por falar em bandidos so-
ciais, nas revoltas, na matança de índios e negros, nas fomes e secas, ele
deixa de sustentar que o povo é bonzinho e a moderação é comum aos
governos. Não esquece de mostrar que a Igreja estava a serviço dos pode-
rosos, nem esconde as grandes remessas de ouro para o Reino, a espolia-
ção, a alienação e a oligarquia dominadora, pela parentela de governantes
aliados aos grandes senhores de terra, de engenhos, de minas.
4 . 2 . O Tratado Político
Escrito antes da História, o Tratado existia na coleção de Salvador
de Mendonça, que veio depois de sua morte a fazer parte da Biblioteca
Nacional <110 >. O Instituto Nacional do Livro veio a publicá-lo, em edição
preparada por Heitor Martins, que escreveu longa introdução, procurando
mostrar que a obra só veio a ser conhecida na citação de pé de página
que dele fizera Oliveira Lima, nos seus Aspectos da literatura colonial

(110) Vide "Catálogo da Coleção Salvador de Mendonça", ABN, 27, 1-126.

499
portuguesa <111 ) e depois referida por autores de histórias menores da li-
teratura baiana ou brasileira.
O preparador da edição cometeu o equívoco primário de descrever
o códice tal como aparece no Catálogo de Manuscritos da Biblioteca Geral
da Universidade de Coimbra <112 ) sem referir-se ao códice 4, 1, 23 existente
na Biblioteca Nacional, seção de Manuscritos, por compra da coleção Sal-
vador de Mendonça feita pela Biblioteca à sua filha Mlle Amélia Helena
de Mendonça em 15 de dezembro de 1914. Não foi à Biblioteca Nacional,
não viu o Catálogo da Coleção, não consultou o códice, e buscou em
Portugal o códice que serviu de base ao texto apresentado sem nenhuma
comparação com o da Biblioteca Nacional.
O preparador da edição não parece conhecer a História da América
Portuguesa e desconhece a posição de Rocha Pita na historiografia brasi-
leira, chegando a afirmar que ele é um "dos especialistas mais merecedores
de fé", e chama "a atenção para a necessidade de se rever toda a obra de
Rocha Pita, pois ela representa um valor histórico ( e ideológico) intocado
até o presente". Esse final parece revelar que Heitor Martins jamais havia
lido qualquer linha da História da América Portuguesa, ou qualquer apre-
ciação de historiadores do Brasil sobre o livro.
A dedicatória é de 1715, embora o livro se refira ao período da
guerra de sucessão da Espanha, quando pelo Tratado de 16 de maio de
1703, Portugal juntou-se aos aliados (Inglaterra, Holanda, grande parte
da Alemanha, Áustria e Sabóia) contra a França e a Espanha e conseguia
as fronteiras desejadas na Europa e na América.
Foi num momento de aparente sucesso de D. Pedro II, que ele morreu
em 9 de dezembro de 1706.
O Tratado apresenta os defeitos da História da América Portuguesa,
o estilo rebuscado e artificial, a cortesania e bajulação, a exemplificação
da história romana, e da mitologia, a falta de pensamento, o palavreado
sem sentido, a aceitação de lendas, como a da aparição de Cristo ao Rei
D. Afonso e a defesa da guerra, como meio "sublime" da política.
4. 3. Os Críticos da História da América Portuguesa
Ao sair oficialmente pela Academia Real de História foi nela sauda-
do como excelente, o que não é de se admirar (l13). Mas na Academia
Brasílica dos Renascidos o sócio José de Oliveira Bessa escreveu: "O au-
tor da América Portuguesa, a quem tocava como natural da Bahia exami-
nar com mais extensão esse ponto (a ausência do 1.0 Bispo da Bahia e o
fim de sua vida), passou por ele de corrida e logo o censura por ser insa-
tisfatório quanto a Caramuru, pois era Rocha Pita, natural da Bahia e
cronista geral da América, título com que o honra um dos mais autoriza-
dos censores de sua obra" (114).

(111) Leipzig, 1896, 134-135.


(112) Coimbra, 1941, p. 1.
(113) Colleçam de Documentos etc. ob. clt., p. 20.
(114) Alberto Lamego A Academia Brasllica dos Renascidos, Paris, 1923, 64 e 81.

500
Frei Gaspar da Madre de Deus advertia seus leitores que "se não fiem
no autor da América Portuguesa, o qual muitas vezes claudica, em saindo
fora da sua pátria (Bahia), sendo mais freqüentes os lapsos quando trata
de assuntos paulistas" (115).
Em carta a Frei Gaspar, diz Pedro Taques que Pita e Jaboatão escre-
veram sem documentos <116 >.
E Taunay no seu excelente estudo sobre Pedro Taques e seu Tem-
po <111 >
repete os conceitos negativos de Frei Gaspar da Madre de Deus e
Pedro Taques contra Rocha Pita.
Varnhagen foi muito dubitativo. "A História de Rocha Pita, que ain-
da hoje se aprecia pelo seu colorido poético, bem que omissa em fatos es-
senciais, destituída de critério e alheia a intenções elevadas de formar ou
melhorar o espírito nacional, fazendo avultar, sem faltar à verdade, os no-
bres exemplos dos antepassados, serviu de muito, por algumas de suas
próprias exagerações para recomendar à metrópole o Brasil. O autor não
recorreu sempre, é verdade, às mais puras fontes da história; era mais
imaginativo que pensador, mais poeta e admirador do belo do que crítico,
vassalo da razão e escravo das provas autênticas; querendo ser o Livro da
pátria, narrando os fatos do Brasil, tinha menos presente o seu passado que
tudo quanto sucedera em Roma e Cartago. Outras vezes como que pen-
sava enobrecer e sublimar a história da colônia luso-americana, interca-
lando episódios largos acerca de fatos passados na metrópole, v. g. da
doença ou morte deste ou daquele infante que jamais pensara no Brasil,
ou da genealogia de algum analfabeto fidalgo, com a sua linhagem fabulosa
entroncada por bastardia na dos reis de Leão.
"Dois defeitos, aliás, contrapostos, desta obra foram desde logo ale-
gados quando ela se publicava. - 'Me parece mais elogio ou panegírico
que história', dizia o censor Antônio Rodrigues da Costa, conselheiro ul-
tramarino. 'Algum reparo se poderá fazer na miudeza com que, em his-
tória tão sucinta, relata alguns sucessos mais dignos de horror e silêncio
que memória', acrescentava o célebre Martinho de Mendonça, que depois
veio a governar Minas. Como história, esta obra apenas pode ser consul-
tada com vantagem acerca de alguns feitos ocorridos em vida do autor, que
lhe foram referidos por testemunhas que ele para esse fim inquiria, segun-
do sua própria declaração. Dos importantes governos de :Qiogo Botelho e
D. Diogo de Menezes não nos transmitiu o historiador a menor noticia,
que declara não haver achado. Igualmente omisso se mostra acerca dos
sucessos do Maranhão, mas esta omissão veio em breve a ser suprida pela
obra de Berredo, que pelo mesmo tempo se escrevia, bem que viesse a ser
publicada póstuma um quarto de século depois (1749)" (11 8 >.

(115) A. d'E. Taunay "Biografia do autor• ln Memórias para a Capitania de S. Vicente ..


de Frei Gaspar da Madre de Deus, S. Paulo, 1920, 20.
(116) Carta s/d in DIHCSP, 1896, vol. IV, p. 19.
(117) S.P. 1923, 246,247.
(118) História Geral do Brasil, t. IV, 41-42.

501
Pereira da Silva fez-lhe a biografia e uma apreciação laudativa, como
sempre, sem maior mérito (11 9).
Capistrano não o via com bons olhos. Ao escrever os Pro/egômenos
da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, chama suas informações
de farfalhantes <120 >, mas desde 1880 ele escrevera um artigo especial so-
bre Rocha Pita (121 >.
Depois de louvar a iniciativa do Barão Homem de Melo de reeditar
a História de Rocha Pita faz uma apreciação crítica que é válida até ho-
je. Começa falando de seu estilo "opulento, amplivago, antes brilhante que
sólido, antes numeroso que variado, ligeiramente pedantesco, eivado oca-
sionalmente de antíteses e esmaltado de freqüentes alusões.
"Ele esmerou-se no estilo, e a este esmero não se entrega impune-
mente quem escreve no Brasil. . . insensivelmente o egotismo penetra, se
esparge e domina; a preocupação da ver:dade entibia; a crítica entra em
férias e o desejo de produzir efeito toma-se de considerável intensidade.
"O desejo de produzir efeito ramifica por todos a História da América
Portuguesa." E depois de exemplificar, ele fala da falta de espírito crítico
comum aos seus contemporâneos. Diz que possuía inspirações de forte pa-
triotismo - ao que contrapomos que podia ser patriotismo português.
Tanto que registra sua aversão a qualquer sintoma separatista, e manifes-
ta seu desejo de ver o Brasil unido a Portugal. Era rico, de Portugal rece-
bera grandes distinções, e conforme suas palavras se impregnara "desse
respeito que os vassalos do Brasil têm aos seus governadores que chega a
parecer idolatrias", con_forme suas palavras.
Acentua a feição elogiosa de seu livro às figuras -poderosas. Capistrano
contou trinta elogios, e mais outros haverá, diz ele, com o título de "Me-
mórias ou suas qualidades e empregos".
Compara-o com Gabriel Soares ou Fernão Cardim e acentua que é
inferior a esses. :e valioso quando se refere aos acontecimentos contempo-
râneos (livros VII-X).
Mais tarde, quando mais amadurecido, Capistrano escreve "o oco e
ruidoso autor da História da América Portuguesa" <1 22 >. Na Correspondên-
cia refere-se algumas vezes a ele, e num tom depreciativo o chama "o bo-
bo do Rocha Pita" (123).
Soares de Mello, que escreveu o melhor estudo sobre os Emboa-
bas <124 > e pela primeira vez na literatura histórica brasileira dedicou um
capítulo crítico à historiografia de sua matéria, escreveu que "Rocha Pita

(119) RIHGB, XII, 258-276, reproduzido in Plutarco Brazllelro, Rio de Janeiro, 1845-47,
2 vols.
(120) Ob. cit., 441-442.
(121) "História Pátria", Gazeta de Noticias, 23 de março de 1880, reproduzido ln Ensaios
e Estudos, ed. prep. por J. H. Rodrigues, 4.• série, Rio de Janeiro, 1976, 117-122.
(122) "A Pretexto de uma Moeda de Ouro• ln Ensaios e Estudos, 2.• série, J.• ed. 1932.
140, 2.• ed. 1976, 88.
(123) Ob. cit., I.• ed. 1954, 2.• Civilização Brasileira 1977, 42-43.
(124) São Paulo, 1929.

502
para narrar a luta dos emboabas socorreu-se unicamente do testemunho
dos seus conterrâneos". Repara nos desconhecimentos dos documentos e
conclui que "conhecesse o historiador baiano esses documentos e a sua
história dos emboabas não seria, por certo, inexata e apaixonada".
Um artigo literário, sem maior conhecimento histórico, compilação
de opiniões autorizadas e desautorizadas, sem contribuição real, a não ser
o exame da língua empolada de Rocha Pita, pelo igualmente empolado
Celso Vieira, pouco acrescenta 0 25 >. Também sem maior contribuição é o
discurso de Dantas Júnior na Academia de Letras da Bahia, uma compi-
lação biográfica e histórica, ao ensejo da comemoração do terceiro cente-
nário do historiador (126).

5. Luís dos Santos· Vilhena


Não há nenhum estudo biográfico sobre Vilhena e o que se sabe dele
deve-se às incansáveis pesquisas de Brás do Amaral, que, além de colher
os dados biográficos, foi o responsável pela primeira edição de sua obra.
Luís dos Santos Vilhena foi militar durante dez anos com exercício
no Regimento de Setúbal, e empregou seu tempo ocioso no estudo das lín-
guas latina e grega. Escusou-se do serviço militar e requereu exame de
uma ou outra língua para poder livremente ensiná-las. A Real Mesa Cen-
sória não só o achou com capacidade para dar-lhe as competentes provi-
sões, como também o empregou na cadeira de latim em Alvito, que não
exerceu por doença, e quando ficou bom, ocupada a cadeira em Alvito,
abriu aula pública em Lisboa. Foi em 1787 nomeado para o Serviço Real
e despachado para Salvador na Bahia como professor da cadeira de língua
grega.
Escreveu Vilhena ao pedir sua jubilação em 1800 que nunca se adap-
tou ao clima cálido da Bahia e pelo decurso de doze ou treze anos pade-
ceu continuada doença sem que esses muitos anos e o uso de remédios o
habituassem ao clima ou lhe prometessem esperanças de restabelecimento.
Tendo sua mulher também passado mal em 1797 pediu licença para ir ao
Reino cuidar de sua saúde, o que obteve por um ano, sem lhe ter sido
possível aproveitar-se daquela graça, ficando assim desterrado em uma co-
lônia tão remota. Foi renovado seu emprego por mais seis anos e temendo
que fosse abolida a cadeira, por assim pensar o governador, embarcou
para o Reino onde pediu que fosse jubilado, com seu ordenado, "visto
achar-se na decadência, que expôs no requerimento, adiantado na idade,
oprimido de obrigações, e podendo sua cadeira ser conferida a José da
Silva Lisboa, professor de filosofia da mesma cidade <127 >.
Vilhena foi jubilado em 1801 por ato do Governador D. Fernando
José de Portugal e Castro (1788-1801). Ele havia embarcado para Por-

(125) "Rocha Pila", RABL, Julho-dezembro de 1938, vol. 56, 240-245.


(126) Rocha PIia, Universidade da Bahia, 1960, 41 pp.
(127) Documento do Arquivo Público da Bahia, encontrado e publicado por Brás do Amaral,
no prefácio da obra, pp. VII-X.

50~
tugal em 1799 e apesar de todas suas queixas contra o clima e as condi-
ções da remota colônia voltou à Bahia e aqui faleceu em 29 de junho de
1814 aos setenta anos (1744-1814) e sua mulher faleceu em 1817. Essas
são as informações obtidas por Brás do Amaral, com exceção da notícia
da morte devida a Anfrísia Santiago (128).
Segundo suas alegações ele servira 35 anos, dez na praça de Setúbal
e os restantes no Brasil como professor.
Nem Brás do Amaral, nem Edson Carneiro responsáveis pelas pri-
meira e segunda edições de Vilhena consultaram o Inventário dos Do-
cumentos Relativos ao Brasil <129 l, nos quais se registram documentos so-
bre o autor das Cartas de Vilhena (130).
Nos documentos aparece o requerimento de Luís dos Santos Vilhena,
professor de grego na cidade da Bahia, no qual pedia um ano de licença
para, no Reino, tratar de sua saúde (13ll; o atestado do médico João An-
tônio Costa Ferreira, no qual declarava que Luís dos Santos Vilhena so-
fria de certas doenças e que precisava regressar ao Reino para se tra-
tar <132 > e o despacho do Conselho Ultramarino concedendo a Luís dos
Santos Vilhena um ano de licença (133).
Em 1798 Luís dos Santos Vilhena juntamente com o professor Fran-
cisco Fernando Paes e Marco Antônio de Sousa atestavam a ilustração e o
bom comportamento do reverendo Francisco Marinho de Sampaio e o
aproveitamento de seus discípulos (13 4 ).
Em fevereiro de 1799, o governador D. Fernando José de Portugal
em ofício para D. Rodrigo de Sousa Coutinho informava acerca do reque-
rimento do professor de língua grega Luís dos Santos Vilhena, no qual
este pedia prorrogação de licença para a regência de sua cadeira (135); já
aos 16 de dezembro deste mesmo ano o governador D. Fernando escrevia
ao mesmo D. Rodrigo informando ter sido reparada a nau Infante D. Pe-
dro e sua partida para o Reino e que entre os passageiros seguia Luís dos
Santos Vilhena e sua mulher (136).
Finalmente aos 30 de agosto de 1800 D. Fernando informava a D.
Rodrigo sobre a jubilação requerida por Luís dos Santos Vilhena !13 7 l e
em novo oficio de 10 de agosto de 1801 o governador D. Fernando infor-
mava ao Visconde de Anadia, D. João Rodrigues de Sá e Menezes, màis
tarde ministro dos Negócios da Marinha e Ultramar no primeiro gabinete
de D. João no Brasil em 1808, sobre a mesma jubilação (138).

(128) Os documentos foram encontrados no Arquivo Público da Bahia.


(129) Existentes no Archivo da Marinha e do ºUltramar de Lisboa, Blb. Nacional, sep.
dos ABN, 1914, XXXIV, e vol. XXXVI 1916 dos ABN, ou IV da Separata.
(130) Noticias Soteropolitanas e Bras/licas, Bahia 1922, 2 vols., e um terceiro na Bahia 1935.
(131) Doe. 17.896, p. 503, do vol. III do Inventário.
(132) e da Bahia, 8 de março de 1796, anexado ao primeiro documento, que não tem
data, n. 0 17 .897 /d., id. .
(133) e de Lisboa, 3 de outubro de 1797 anexado também ao 17 .896, ld., id.
(134) Bahia, 24 de março de 1798, n.• 19.220 anexado ao 19.217 no qual, o mesmo Reve-
rendo pede sua Jubilação e aposentadoria, Inventário clt., vol. IV, p. 118.
(135) Inventário clt., n. 0 19.190, p. 100. e da Bahia, 25 de fevereiro.
(136) Inventário clt., n ... 19.636-19.637, p. 171.
(137) Inventário clt., n.• 20.847, p. 278.
(138) Inventário clt., n. 0 22.775, p. 414.

504
Como se vê esses documentos constituem a contrapartida dos do-
cumentos encontrados por Brás do Amaral no Arquivo Público da Bahia
e incluídos no prefácio da primeira edição das Notícias.
Coube finalmente a D.ª Anfrísia Santiago o encontro no livro de
óbitos da freguesia de Vitória ( 1810-1845) dos documentos sobre a morte
de Vilhena e de sua mulher, o que Brás do Amaral não conseguira (13 9 ).

O MANUSCRITO
O Manuscrito foi oferecido ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro por
Antônio Gonçalves Dias, entre 16 de setembro de 1847 e 10 de dezembro de
1852 (140).
Mas quando houve a Exposição da História do Brasil de 1881, duas cópias
foram registradas no Catálogo (141), uma pela colecionadora de tantos cimélios ali
expostos, D. Antônia R. de Carvalho e outro pelo Instituto Histórico, certamente
o oferecido por Antônio Gonçalves Dias. Mas não foi, ao que parece, nenhum
desses dois manuscritos que serviu para a edição de Brás do Amaral e sim o exem-
plar da coleção José Carlos Rodrigues (142)

EDIÇÕES

l.ª) Notícias Soteropolitanas e Brasílicas Contidas em XX Cartas, Luís dos


Santos Vilhena, Annotadas pelo Prof. Brás do Amaral. Imprensa Official da Bahia,
1.º vol. 1922, 2.º vol. 1922 e 3.º vol. 1935. Esta edição se atém mais ao original.
E precedida de uma "Communicação feita pelo Acadêmico Brás do Amaral à Aca-
demia de Lettras da Bahia" e a cada livro se seguem as Notas e Comentários de
Brás do Amaral.
2.ª) Luís dos Santos Vilhena, A Bahia no Século XVIII, Editora ltapuã, Bahia,
1969, 3 vols. Esta edição deu título novo, dispôs a matéria em três volumes, incluiu
no terceiro a carta XXI sobre S. Paulo, que descoberta em 1932 mais tarde fora
publicada separadamente em 1935, deu nova intitulação para as cartas que eram
apenas numeradas, e com isso dando-lhes a temática, as subdivisões de cada carta
por subtítulos, que distinguiam no tema maior do título, o tema subordinado do
subtítulo, e finalmente a adoção da ortografia oficial. Contém ainda uma apresen-
tação de Edson Carneiro, que resume o principal da comunicação ou prefácio de
Brás do Amaral e acrescenta de novo as descobertas da Professora Anfrísia San-
tiago e trata das fontes, do serviço de Brás do Amaral e do valor do autor e da obra.
3.ª) "Notícias Brasílicas" PAN, IX, 1909, 133-237. Reproduz as cartas 22, 23
e 24 da edição Brás do Amaral.
4.ª) "Carta XIX em que se dá notícia da Comarca do Ceará Grande ... " E
a carta XIX da edição Brás do Amaral RIC, t. XXI, 1907, 149-181.
5.ª) "Recopilação de notícias soteropolitanas e brasílicas por Luís dos Santos
Vilhena. Carta XXII ... " RIHGB, XIII, 1908, 84-124. Reproduz a carta sobre a
comarca de Lagoas (Alagoas) e a de Pernambuco.

(139) Cit. por Edson Carneiro na "Apresentação" da 2.• ed. das Noticias com o titulo A
Bahia do Século XVIII, Editora Itapuã, Bahia, 1969, 3 vols.
(140) "Relatório dos Manuscritos oferecidos ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro",
RIHGB, 1852, t. 15, 2.• ed., 558.
(141) CEHB, n.•• 33 e 34, p. 7.
(142) Catalogo annotado dos livros sobre o Brasil e de alguns autógrafos e manuscritos per-
tencentes a /. C. Rodrigues, Rio de Janeiro, 1907, n. 0 2.544, pp. 641-644.

505
O livro

Só um professor de grego teria dado ao seu livro este título que soa tão
mal e que poucos sabem o que significa. Notícias Soteropolitanas, isto é, de
Sotero (Salvador em grego) e polis (cidade) e Brasílicas, o que revela
ainda a dúvida entre brasileiro, brasiliano, brasílico. As cartas são assina-
das por Amador Veríssimo de Aleteiya a um suposto Filopono. A primei-
ra é sobre a cidade do Salvador descrita em todos os seus aspectos geográ-
ficos, sociais, econômicos, demográficos, rendimentos, exportação, despe-
sas, o Senado da Câmara, o Tribunal da Relação. A pretensão genealógica
já era notada, e ao falar dos militares, oficiais e soldados, o professor de
grego não receia criticar os aspectos negativos. O livro não é simpático
aos brasileiros, aos quais acusa generalizando de ociosos. Fala dos mulatos,
africanos, dos senhores e senhoras, suas vestimentas, da população eni ge-
ral, das classes em particular, dos problemas urbanos, dos edifícios, dos de-
sabamentos e das igrejas. Esse primeiro capítulo dá uma idéia da força
do autor, de sua capacidade de observação, de seu olho crítico e dos seus
preconceitos. A segunda carta continua o tema, e quem segue a edição
Itapuã vê logo a riqueza da matéria desta e de todas as demais cartas so-
bre a Bahia, tratando da saúde, da agricultura, da defesa, da educação,
já na oitava carta.
"As memórias que desta cidade temos, tanto escritas, como por tra-
dição, fazem saudades aos seus presentes habitantes; e aos estrangeiros
excitão sumo desejo de transferir-se e habitar nela; como porém só encontra-
mos o contrário do que lemos e nos contão, somos precizados de duvi-
dar" <143 >. Critica a ascendência militar sobre o povo, fala das negras de
ganho, das vendedoras de contrabando, da grande quantidade de mendi-
gos, e dos mendigos que mendigam para os senhores. Anota os batuques
bárbaros, as rivalidades entre o crioulo e os ladinos e entre as diversas na-
ções de que se compõe a escravatura vinda da África. O comércio de es-
cravos, trocados por tabaco, açúcar e aguardente, e sustenta que não há
conversão de africanos. Esta terceira carta discute todo ~ste problema da
luta entre senhores e escravos, entre negros e mulatos, a iniciação sexual
que negras e mulatas dão aos brancos, dos eclesiásticos ligados às negras e
mulatas, dos negros domésticos, de seus ofícios e artes mecânicas, dos cria-
dos, do que podem ser os brancos, isto é, soldados, negociantes, escrivães
ou escreventes, oficiais de tribunais, juízes, cirurgiões, boticários, pilotos
e raros escultores, pintores, ourives. Critica a inação branca, a crueldade
contra os fndios, considera os índios superiores aos negros, trata das mu-
lheres públicas, e da carestia. A quartá carta sobre as moléstias mais en-
dêmicas que oprimem a cidade, os cemitérios de negros, de soldados, e os
negros chegados doentes da África. O pão não é para todos sustento, mas
regalo; examina a alimentação, os laboratórios-farmácias, a desordenada
devassidão que dominava a cidade. Depois de atribuir ao clima a grosseria e
a má educação dt todos, escr~ve este conselho incisivo: "não professem
(143) t.• ed., 1.0 vot., 107.

506
ociosidade perpétua, origem de todas os vícios, desmintam o critico Gra-
cian que dá toda a América por domicílio da preguiça; sujeitem a carne
ao espírito; não sejam lânguidos na religião e cristãos só no nome; larguem
o materialismo, não tenham por bagatela a eternidade; logo os mantimen-
tos, o clima e a natural inclinação os não farão concupiscentes e pouco
honestos" <144 >.
A quinta é sobre a agricultura, os engenhos, os massapês, a política
· tirânica dos poderosos e ricos, o modo cruel, bárbaro e inaudito com que
a maior parte dos senhores tratam os escravos, desmentindo a tese sobre
a bondade da escravidão no Brasil, em relação à de outros países ameri-
canos, e a da cordialidade e incrueza do processo histórico brasileiro. Este
é um dos grandes capítulos do livro sobre engenhos, relação senhores-es-
cravos, o tabaco, a mandioca e o anil.
A sexta faz "uma compendiosa notícia da fortificação atual da cidade
do Salvador, e descreve suas fortalezas, e é acompanhada de numerosas
plantas dos fortes". A sétima dá "uma suficiente noção dos corpos milita-
res, tanto de linha como de milícias que constituem a guarnição da cidade
da Bahia", e vem acompanhada de desenhos de uniformes dos vários regi-
mentos. Havia corpos brancos, mulatos e negros.
A oitava trata dos estudos e mostra as causas da decadência do en-
sino: os currículos, a reforma pombalina, a incompetência dos professores,
a aversão aos mesmos, as várias cadeiras públicas, retórica, filosofia, língua
grega e latina. E sai-se desanimado com esta filosófica sentença: "Com
ingenuidade te confesso que não é das menores desgraças o viver em colô-
nias, longe do soberano, porque nelas a lei que de ordinário se observa é
a vontade do que mais pode, se bem que mais em umas que em outras".
Critica os professores que não cumprem os horários, os baixos ordenados,
e que de 1787 quando chegou à Bahia para a época em que escrevia, a
relaxação fora grande.
A nona contém o essencial e curioso sobre o governo civil e um ca-
tálogo de todos os ministros que têm servido na Relação. Descreve as vá-
rias instituições da justiça.
A décima é sobre administração e mostra em vinte e dois mapas quase
todos os empregos de Justiça e Fazenda que havia na cidade do Salvador.
A undécima dá uma compendiosa noção por ordem cronológica de
todos os governadores que têm governado a Bahia desde 1549 até o tempo
presente (1800).
A duodécima é sobre o governo eclesiástico; a décima terceira uma
breve noção dos portos e vilas do Recôncavo da Bahia; a décima quarta
sobre Ilhéus; a décima quinta sobre Porto Seguro; a décima sexta sobre
Espírito Santo, Sergipe e Jacobina; a décima sétima sobre o Rio Grande

(144) Qb. clt., 1. 0 vol., 166.

507
do Sul, último dos domínios portugueses; a décima oitava sobre Minas e
começa tratando dos paulistas, referência elogiosa assinalada já na parte
da historiografia dos emboabas.
A décima nona trata do Ceará Grande; a vigésima do reino animal,
vegetal e mineral; vem depois uma carta não numerada, dirigida a Patufi-
lo, na qual Vilhena se refere às vinte cartas anteriores endereçadas a Fili-
'pono e que precede os desenhos e mapas que acompanham o livro; a
vigésima primeira, descoberta e publicada depois por Brás do Amaral, foi
na edição Itapuã colocada no seu devido lugar. Ela descreve S. Paulo e
é acompanhada da descrição da viagem que o Conde de Azambuja D. An-
tônio Rolim de Moura Tavares fez para tomar posse do governo de Mato
Grosso (1751-1762), como primeiro governador.
A vigésima segunda trata de Alagoas, Pernambuco e Paraíba; a vigé-
sima terceira de Goiás e a vigésima quarta é sobre a política portuguesa
na América. Esta é a mais importante carta porque nela ele se apresenta
como o patriota que anota lembranças e defende os interesses da Nação, diz
ele, e não do Reino. Fala da população, de seu crescimento, das grandes
propriedades, os prejuízos causados pelas Sesmarias, a Ociosidade, os escra-
vos, a opressão ao escravo, os índios. Segue-se um plano de Reforma, a
começar com uma lei agrária, a necessidade das feiras, da imigração de
colonos, das relações senhores e escravos, do recrutamento, liga a ociosi-
dade à pobreza e à falta de trabalho, o peso da sustentação do exército,
a aprendizagem do militar e dá um catálogo das nações de indios, com
seu número, nome, habitações e costumes.
Antes do catálogo ele declara ter finalizado suas reflexões sobre a
população, a agricultura, o comércio do Brasil e por conseqüência o de
Portugal. Apesar do desequilíbrio entre o tratamento dado à Bahia ( 15
cartas) e as demais capitanias, especialmente considerando não ser mais
a Bahia a capital desde 1763, o livro é um dos maiores que se escreveram
sobre o Brasil colonial, pela capacidade de exposição, pela reflexão poU-
tica, social e econômica feita por um professor reinai sobre a colônia e
seu papel em relação à Metrópole.
A historiografia brasileira não tomou conhecimento desta obra, e não
incorporou sua informação e interpretação ao conjunto da história brasi-
leira.
Depois de Brás do Amaral, a quem se deve o grande serviço de publi-
car a obra, e de comentá-la e anotá-la, e a Edson Carneiro, que preparou a
segunda edição, só Soares de Mello, em 1929, tratando dos Emboabas, <14 5 )
deu a Vilhena o crédito merecido e soube aproveitar-lhe a lição, louvou-o
por sua sinceridade. "Um Saint-Simon, perdido na Bahia, notava, à soca-
pa, furtivamente, os vícios da sociedade, os ridículos dos homens, as falhas
políticas."
Afonso Rui louvou-lhe a simplicidade descritiva (1 46 l.

(145) S. Paulo, 1929, 219-224.


(146) A Primeira Revoluç,fo Social Brasileira, Brasiliana, 217. S. Paulo, 1942, 47.

508
Carlos Guilherme Mota dedicou-lhe um artigo mostrando que "nele
encontra-se, ao mesmo tempo, o colonizador e o crítico da colonização.
O que vale dizer: colonização em crise" (147).

6. Alexandre de Gusmão
Alexandre de Gusmão (Santos 1695 - Lisboa 1753) estudou com
os jesuítas, na vila de Cachoeira; aí tomou o nome de seu padrinho o 1.º
Alexandre Gusmão (Bahia 1646 - Bahia 1724); distinguiu-se pela in-
teligência, engenho, capacidade e eloqüência. Aos dezessete anos freqüen-
tava a Universidade de Coimbra, cursando cânones, interrompido para
acompanhar o Conde da Ribeira Grande, D. Luís Manuel da Câmara, que
se destacara nas campanhas militares com Espanha. Alexandre de Gusmão
chegou a Paris com a embaixada em 1715 e durante quatro anos estudou
as mais variadas correntes do pensamento polftico e filosófico e obteve o
grau de Doutor em Direito Civil pela Sorbonne. Volta a Portugal em 1719
e depois de exame público incorpora-se à Universidade de Coimbra.
Seu irmão Bartolomeu de Gusmão gozava de grande estima na Corte
e deve ter-lhe facilitado sua ascensão pública. Em 1720, com 25 anos,
foi designado por D. João V para assistir ao Congresso de Cambray, mas
logo foi adido à embaixada de seu irmão ao Papa, a qual durou sete anos
e foi conseguido para o Rei o título de Fidelíssimo, tal como Católico
era o de Espanha e Cristianíssimo era da França, e para o arcebispo da Ba-
hia o título de Patriarca. O Papa Benedito VIII queria fazê-lo Príncipe
Romano, e ele solicitou licença ao Rei, que lhe negou. Diz Cortesão, seu
melhor biógrafo, que no trato dos cardeais, dos nobres, dos grandes ar-
tistas romanos, aprendeu toda a arte diplomática de seu tempo, completou
sua aprendizagem de homem de Estado, e enriqueceu sua cultura.
De volta a Portugal foi admitido na Academia Real da História Portu-
guesa e como o seu antecessor, Antônio Rodrigues Costa, foi incumbido
de escrever em latim a História do Ultramar. Esta admissão e o Discurso
que pronunciou, mais que sua atividade como estadista e construtor do
Tratado de Limites de 1750, é que impõem seu nome à historiografia
brasileira.
Na Academia exerceu grande atividade e é nomeado um dos censores
dos originais de autores que desejam publicar trabalhos sob os auspícios
da Academia Real da História. Foi na própria Academia que ele propôs
a nomeação de uma comissão encarregada de estudar a reforma e unifica-
ção ortográfica.
Nomeado conselheiro ultramarino, ele passa a conhecer todos os
negócios públicos que envolviam a administração do Brasil.
Sua carreira política foi-se ampliando e entre 1735-37 Alexandre de
Gusmão firmou seu nome junto a D. João V. Como escreveu Cortesão,

(147) "Mentalidade Ilustrada na Colonização portuguesa: Lufs dos Santos Vilhena", RH, 1967,
72, 405-416.

509
embora não fosse o único conselheiro real, ele tornou-se desde então até
1750, quando faleceu D. João, o principal inspirador e definidor da políti-
ca, sobretudo externa, de Portugal. Uma das suas grandes finalidades é
promover o reconhecimento da expansão tenitorial do Brasil e deste modo
traçar-lhe os limites.
Coube-lhe a visão do problema no sul, tentando alargar o mais pos-
sível o Brasil na direção do Prata, e percebendo que ali se formaria o
grande foco de tensão política e econômica entre hispano-americanos e
luso-brasileiros, ainda que cedendo no Amazonas, pois a extensão de ter-
ras neste era tão grande que em muitos séculos Portugal o não poderia
povoar e nem os espanhóis fariam proveito do que lhes fosse cedido.
Conclui Cortesão que "malgrado a execução do Tratado de Madri
se haver malogrado, em 1761, legou para sempre aos brasileiros a cons-
ciência e o fundamento jurídico do espaço próprio e de seus limites legí-
timos e inalienáveis". E finaliza dizendo na sua conferência pronunciada
em homenagem ao segundo centenário do Tratado de Madri que "hoje e
pela primeira vez, à luz de provas irrefutáveis, Alexandre de Gusmão
surge como um dos mais fecundos e originais polígrafos portugueses e
brasileiros" (148).
Sua bibliografia não está levantada completamente (149).
Sua contribuição histórica foi reconhecida por Diogo Barbosa Macha-
do ao pedir-lhe dados sobre seus escritos (l50). Sobre suas atividades na
Academia Real da História Portuguesa deve-se consultar a obra do secre-
tário da mesma, o Conde de Vila Mayor <151 >, bem como os Documentos
Biográficos e as Obras Várias <152 ).
Sua obra como historiador é uma pálida imagem da sua vida como
estadista. Seu discurso ao tomar posse como acadêmico da Academia Real
da História Portuguesa (l53) é a prova de seu pragmatismo. A "Prática"
diz pouco sobre o pensamento histórico de Alexandre de Gusmão. "f: a
lição da História um segundo seminário de ·heróis, e descobrindo à sua
generosidade novo caminho para remunerar aos mortos os serviços que
(148) Sua biografia se encontra no estudo "Da Vida e Fatos de Alexandre de Gusmão e
de Bartolomeu Lourenço de Gusmão" RIHGB 1902, t. LXVI, t.• parte, 377-423; excelente resumo
e visão global em Jaime Cortesão Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrl. Conferencia
pronunciada no Rio de Janeiro, no Paldclo das Relações Exteriores Jtamaratl em Setembro de
1949, Lisboa, Seara Nova, 1950; o estudo mais completo foi o dirigido por Jaime Cortesão Ale-
xandre de Gusmão e o Tratado de Madrl, Instituto Rio Branco, Rio de Janeiro, 1950-1956, 9
veis., os Documentos Blogrdficos constituem a parte II, tomo 11, mas a parte !.•, .ts. 1.0 (1695-1735)
e 2. 0 (1735-1753) ambos debaixo do título prlnclpal de Alexandre de Gusmão e o Tratado de
Madrl 1695-1753 são Indispensáveis para a biografia, visão polltlca e a realização de Gusmão.
(149) Inocêncio Francisco da Silva DBP, 1858, t. 1, 33-34; CEHB, 1881, n.°' 8.681, 10.406
- 1.0 , 10.412, 10.787-88, 13.382-84, 15.604; Sacramento Blake DBB, 1 vol. reed. em 1970 da ed.
1883, 1 vol., 28-33.
(150) Vide "Carta de ·Alexandre de Gusmão a Diogo Barbosa Machado" ln A. de Gusmão.
Obras, São Paulo, 1943, 61-63.
(151) Colleçam dos Documentos, Estatutos e Memórias da Academia Real da História Por-
tuguesa, Lisboa, 1721.
(152) O primeiro, parte II, t. II e o segundo, parte II, t. I da coleção Alexandre de Gusmão
e o Tratado de Madrl já citados.
(153) "Prática com que se congratulou a Academia Real em 13 de Março de 1732 por ser
eleito seu colega•, na Coleção dos Documentos e Memórias da mesma Academia, Lisboa, 1732
e reproduzida no Patriota, Rio de Janeiro, abril de 1813, n. 0 IV, 29-33.

510
fizeram à Monarquia, premiando-os com a eternidade da fama ... " "com
o exercício dos vossos escritos dispôs a sua Real Ponderação aperfeiçoar
e avivar entre os seus estudos, que é o da composição das Histórias, e
esperamos ver-se tão bem logrado este fim, que possam os futuros histo-
riadores tratar dignamente o largo assunto que lhes darão para escrever
as gloriosas ações de seu Reinado ... " "Quanta capacidade se requer para
saber entre a variedade de objetos, com que a pena há de encontrar nesta
composição, separar o proveitoso do supérfluo, o pio do supersticioso, o
agradável do insípido, o certo do duvidoso? E que arte, que pureza, e que
graça de dizer é necessária para depois daquele exame acertar em escrever
o que se escolheu, com método e estilo correspondentes à execução da
matéria? Quão judicioso convém que sejam os escritores, para divulgar as
glórias da Pátria sem imodéstia, e para confessar também os desacertos
com sinceridade, quando o principal ídolo da história, que é a verdade,
pedir este sacrifício?"
Não era preciso ser nenhum Alexandre de Gusmão para dizer sobre
a história os lugares-comuns que acabamos de· ler.
:e representativo de seus preconceitos o "Juízo, e cálculo em geral
sobre a genealogia dos que eram tidos por Puritanos; (puros de contato
judaico) pelo qual fica destruída a errada opinião que eles concebiam da
absoluta desinfecção de parentesco dos seus descendentes com os Ju-
deus" <154 l.
Faz um engenhoso cálculo sobre o número de avós que cada um de
nós tem e afirma que somam 32.530.432 avós em vigésimo grau por todos
os lados, todos existentes, ou ao menos contemporâneos, dando a cada gera..
ção trinta e um anos; assim o vigésimo grau deita ao princípio de Portu-
gal, que incluía parte da Galiza, as províncias d'Entre-Douro e Minho,
Trás-os-Montes, e Beira até o Mondego, que para baixo tudo era de Mouros,
e se contavam setenta a oitenta mil pessoas de todos os séculos. Duvida
que todos sejam puros, pois não havia Santo Ofício, nem Mesa da
Consciência.
"O certo é que no princípio do nosso Reino havia Mouros converti-
dos, havia cristãos, e havia judeus, e que todos não faziam o número de
cem mil."
:e uma crítica ao puritanismo religioso cristão e relembra que em
1492 foram todos os judeus. expulsos de Castela e a maior parte deles
passou a Portugal, onde tamoém os havia, .vivendo todos no erro da
sua crença. Em 1497 D. Manuel obrigou a que se batizassem ou saíssem
do Reino; muitos se batizaram de que se originou a diferença de cristãos-
novos, e como os que se expulsaram eram em grande número, temeu o
Rei que lhe fizessem falta no Reino e para remediar mandou que todas
as crianças que não passassem de sete anos, se lhes arrebatassem, para
qlie instruídas na fé e batizadas remediassem para o futuro a falta de gen-

(154) A, (te Q1m111lo, Obras, S. Paulo, 1943, 75.

511
te. Diz constar na História que o número destes meninos chegou a doze
mil, e ainda que morresse a metade, que foi feito dos seis mil?
E se consola que todos foram batizados e que até 1540 pouco mais
ou menos, ainda não havia contágio de se comunicar o sangue hebreu
como mácula da sua religião para os seus descendentes que abraçassem a
fé católica <m 1•
Tanto a sua "Resposta ao Papel do Brigadeiro Antônio Pedro de
Vasconcelos sobre o Tratado dos Limites da América" (150l, como muitos
outros documentos sobre a Colônia do Sacramento 0 57l, baseiam-se em
seguros e profundos conhecimentos geográficos e históricos.
Já nos referimos na historiografia das rebeliões à curiosa e breve
reflexão de Alexandre de Gusmão intitulada "Memórias dos fatos que
hão servido de motivos às intentadas ou supostas insurreições da América
Portuguesa" ( 15 si.
Em conclusão, depois deste estudo exaustivo, podemos apresentar uma
lista dos maiores livros sobre o Brasil, escritos no período colonial.

(155) A . de Gusmão, ob. cit ., 75-78 .


(156) RIHGB, (2 .• ed .) J, ll4 e (J.• ed.) 260 e A . de Gusmão. Obras , cils. 121-165 .
(157) Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, Parle Ili Antecedentes do Tratado. t 1.
lnstilulo Rio Branco, s/d.
(158) Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri , 1750. Parle li. tomo I Obras Várias ,
clts.. 252-254 .

512
LISTA DOS MAIORES LIVROS ESCRITOS SOBRE O BRASIL
NO PERIODO COLONIAL

1. Carta de Pero Vaz de Caminha, 1.• ed., 1817; várias edições, v. ed. de Jaime
Cortesão, Rio de Janeiro, Livros de Portugal Ltda., 1943.
2. Cartas /esuíticas, de Nóbrega, Anchieta e Avulsas, ed. Acad. Sras. de Letras,
1931, 3 veis; e eds. de Serafim Leite; Novas Cartas /esuíticas, São Paulo, Ed.
Nacional, 1940, Brasiliana, vol. 194; Cartas dos Primeiros /esuítas do Brasil, São
Paulo, 1954; Cartas do Brasil, Coimbra, 1955; Monumenta Brasiliae, Roma,
1957-1968, 5 veis.; Novas Páginas de História do Brasil, São Paulo, Ed. Nacional,
1965, Brasiliana, vol. 323.
3. "Narrativa Epistolar", de Fernão Cardim, in: Tratados da Terra e Gente do
Brasil, t.• ed., Lisboa, 1847, várias edições; 3." ed., São Paulo, Ed. Nacional,
1971, Brasiliana, vol. 117.
4. Tratado Descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa, t.• ed.,
corrigida por Varnhagen, Rio de Janeiro, 1851; várias eds.; 4." ed., São Paulo,
Ed. Nacional, 1971, Brasiliana, vol. 117.
5. Diálogos das Grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão (provável
autor), l." ed., em livro Acad. Sras. de Letras, Rio de Janeiro, 1938. Edição
crítica recomendada de J. A. Gonçalves de Melo, Recife, Imprensa Universitária,
1966.
6. Arte de Furtar, l ." ed., Lisboa (1652?), 1744; várias edições. Autoria atribuída
a Antônio de Sousa Macedo por Afonso Pena Jr., Arte de Furtar e seu Autor,
Rio de Janeiro, J. Olympio, 1946, 2 vols.
7. Sermões, de Antônio Vieira, 1." ed., Lisboa, 1679; várias edições; v., como sele-
ção, H. Cidade, Padre Vieira, Lisboa, 1940, 4 veis.
8. História do Brasil de Frei Vicente do Salvador, l." ed., ABN, vol. XIII, 1889
e separata; várias edições; 5.· ed., São Paulo, Melhoramentos, 1965.
9. Cultura e Opulencia do Brasil por suas Drogas e Minas, de André João Antonil
(João Antônio Andreoni), 1.· ed., Lisboa, 1711; melhor ed., AndréeMansuy,
Paris, 1968, bilíngüe; e a de J. A. Gonçalves de Melo, Recife, 1969.
10. Recopilação das noticias soteropolitanas e brasilicas, de Luís dos Santos Vilhena,
1." ed., org. por Brás· do Amaral, Bahia, 1922; 2." ed., org. por Edson Carneiro,
Bahia, 1969, 3 vols.
11. "Roteiro do Maranhão a Goyaz pela capitania do Piauhy", de João Pereira Caldas
(provável autor), RIHÇB, Rio de Janeiro, t. LXII, parte 1.•, 60-161, 1900.
12. Nobiliarchia paulistana historica e genealogica, de Pedro Taques de Almeida
Páes Leme, 1.• ed., incompleta, RIHGB, Rio de Janeiro, t. especial, 1926; ed.
completa, São Paulo, Martins, 1954, 3 vols. A leitura deve ser completada com
o ".Catalogo genealogíco das principais familias que procederam de Albuquerques
e Cavak.,ntes em Pernambuco e de Caramurus na Bahia", de Frei Antônio de
Santa Maria Jaboatão, RIHGB, Rio de Janeiro, t. LXI, 1." parte, 5-497, 1889;
bem . como da "Nobiliarchia pernambucana", de Antônio José Vitoriano Borges
da Fonseca, ABN, vols. XLVII e XLVIII.

513
fNDICE REMISSIVO *

A ALBUQUERQUE, Antônio de Sá de,


472
ALBUQUERQUE, Duarte de, 233
ABBEVILLE, Claude d', 37, 42-45, 289 ALBUQUERQUE, Jerônimo de, 19, 20,
ABRANCHES, José Luís de Menezes, 21, 47, 233
conde de Valadares, 179 ALBUQUERQUE, Jerônimo Fragoso de,
ABREU, Christóvão Pereira d', 244 44
ABREU, Manuel Cardoso de, 129, 147, ALBUQUERQUE, José de Sá d', 471
150, 152-157, 161, 189 ALBUQUERQUE, Martinho de Sousa
ABREU, Tomé Couceiro de, 238 e, 241
ACADEMIA Brasileira de Letras, 256, ALBUQUERQUE, Matias de, 62
257, 259, 261, 262, 269, 285, 372, 373, ALDEN, Dauril, 221
374; Brasileira dos Esquecidos, 144, ALDENBURGK, Johann Gregor, 61
445; Brasílica dos Renascidos, 144, ALEMANHA, 485, 493, 500
150, 165, 235, 303, 307, 312, 313, 359, ALENCAR, José Martiniano de, 408
446, 470, 500; das Ciências de Lisboa, ALENCAR, Mário de, 372
241, 380, 410; de História de Madri, ALEXANDRE VI, papa, 366
271; dos Seletos, 364; Real da His- ALGODÃO, 76, 118, 152, 160, 177,243,
tória Portuguesa, 310, 463, 465, 467, 371, 409-410, 434, 478, 479
498, 500, 509, 510; Academias, 352- ALIMENTAÇÃO, 190, 420, 506, 507
353, 359, 410, 446, 462, 470, 495 ALMADA, Lobo d', ver LOBO d'AL-
AÇÚCAR, 49, 63, 72, 75-76, 98, 102, 152, MADA, Manuel da Gama
171, 177, 229, 240, 243, 362, 371, 379, ALMEIDA, André de, padre, 457
380, 387, 390-415, 419, 433, 435, 449, ALMEIDA, Cândido Mendes de, 3, 21,
453, 459, 460, 474, 496, 506, 507 29, 82, 83, 84, 146, 194, 259, 260, 287,
ACU~A. Cristóbal de, 27, 31, 289, 294 294, 295, 305, 363, 456
AFFAITADI, Giovani Francisco, 37 ALMEIDA, Fernando Mendes de, 266
AFONSO, rei (D.), 497 ALMEIDA, Gabriel Ribeiro de, 219
AFRICA, 393, 456, 462, 481, 482, 506 ALMEIDA, Guilherme Pompeo de, 139
AGOSTINHO, Santo, 486 ALMEIDA, João de, padre, 213, 275,
AGRICULTURA, 176, 387, 405, 407, 277, 284, 286, 288, 481
408, 410, 411, 414-415, 419, 420, 433, ALMEIDA, João Vieira de, 259
435, 506, 507 ALMEIDA, Lourenço ,d', 164, 326, 329
AGUARDENTE, 195 ALMEIDA, Luís Brito de, 449
AGUIAR, Manuel Gonçalves de, 214, ALMEIDA, Luís Ferrand de, 116, 213 ,
245 366
AGUIAR, marquês de, 440 ALMEIDA, Manuel Lopes de, 64, 143
AGUILAR Y PRADO, Jacinto de, 60 ALMEIDA, Matias Cardoso de, 116
AGUIRRE, Lope de, 31 ALMEIDA, Pedro de, 3.° conde de As-
AITZEMA, Leeuw van, 49, 53 sumar, 1.° marquês de Alorna, vice-
ALAGOAS, 230, 304, 457, 505-508 rei da fndia, 172, 323
ALBERNAZ, João Teixeira, 457 ALORNA, marquês de, ver ALMEIDA,
ALBUQUERQUE, Ana Cavalcanti de, Pedro de
495 ALT AMIRA Y CREVEA, R., 84

• Agradeço a elaboração urgente deste fndlcc, sobretudo ·a Diana Zaldman, Ayr Angelo de Souza e
Marllze Vida! Alves Marinho.

515
ALVARENGA, Inácio José de, 183 ARCEBISPADOS, 231, 237, 239, 497,
ALVARES, Gaspar, 17 509
ALVARES, João, 24 ARCOS, conde dos, ver NORONHA,
ALVARES, Nunes, 374 Marcos de
ALVES, Antônio, 226 ARGUMENTUM ex 1llentlo, 376
AMARAL, Antônio Caetano do, 468 ARIZZI, Conrado, 264
AMARAL, Brás do, 266, 305, 503, 505, ARNAU, F., 8
508, 513 ARROYO, Leonardo, 404
AMAZONAS/ AMAZÔNIA, 17-18, 23, ARROZ, 152, 177
25-34, 48, 75-76, 83-86, 95-110, 120, ARTE DE FURTAR, 74, 374-377, 474,
218, 240-241, 279, 290, 294, 295, 377, 513
402, 418, 458, 459, 478, 483, 492 ARTES MECANICAS, objeções às, 412
AMBAR, 438 ARTIEDA, Andrés de, 29
AMJ!RICA, 224, 227, 233, 440, 453, 482, ARTIGAS, José, 228
500, 507, 508, 512 ARZÃO, Antônio Rodrigues, 163
ANADIA, visconde de, ver MENEZES, ASIA, 233, 432
João Rodrigues de Sá e ASSUMAR, conde de, ver ALMEIDA,
ANCHIETA, José de, padre, 38, 99, Pedro de
249, 253, 254, 256, 258-262, 263, 268, ASSUNÇÃO (cidade), 11, 13, 122, 204
269, 270, 271, 272, 275, 278, 284, 285,
286, 287, 288, 305, 394, 439, 513 ASSUNÇÃO, Lino de, 116, 173, 266,
271, 294, 311, 399, 412
ANDONAIQUE, José, 321
ANDRADA E SILVA, José Bonifácio ATAlDE, Jeronymo de, 6.° conde de
de, 146, 147, 157, 159, 180, 187, 225, Atouguia, 167
382, 410, 414, 415 ATAlDE, Luís Pedro Peregrino de Car-
ANDRADA, Gomes Freire de, conde valho de Menezes e, 10.º conde de
de Bobadela, 88, 91, 142, 150, 168, Atouguia, 167
174, 189, 215, 219, 366-367 ATHAYDE, Manuel de Carvalho de,
471, 472
ANDRADA, José Antônio Freire, 168,
326 ATOUGUIA, 6.º conde de, ver ATAf-
ANDRADE, Gilberto Osório de, 305 DE, Jeronymo de
ANDRADE, Gomes Freire de, governa- ATOUGUIA, 10.º conde de, ver ATA1-
dor do Maranhão, 289, 321 DE, Luís Pedro Peregrino de Carva-
ANDRADE, Pedro Carrilho de, 320 lho de Menezes e
ANDREONI, João Antonio, ver AN- AULER, Guilherme, 329
TONIL, André João AUSTRIA, 500
ANGELIS, Coleção Pedro de, 115, 116, AVEZAC, M. d', 38-39
124, 125 AVILA, Afonso, 313, 314
ANGOLA, 229, 230, 236, 239, 275, 279, AVILA, Garcia d', 267, 300-301
288, 441, 451-455, 471, 472, 480 AZAMBUJA, conde de, ver TAVARES,
ANGRA DOS REIS, 307 Antonio Rolim de Moura
ANIL, 152, 507 AZEREDO, Marcos de, 167
ANTONIL, André João, 57, 119, 172, AZEVEDO, Afonso Mendonça de, 177
173, 291, 292, 293, 378, 390, 393-405, AZEVEDO, Antônio de Araújo e, conde
406, 407, 444, 481, 488, 494, 519 da Barca, 243
ANTROPOFAGIA, 213 AZEVEDO, Augusto César de Miran-
ANTROPOLOGIA, 42, 97, 103 da, 259
AQUA VIVA, Cláudio, 17 AZEVEDO, Domingos Teixeira de, 308
ARANHA, Manoel Guedes, 78, 85-87 AZEVEDO, João Lúcio de, 11, 42, 52,
ARANHA, P. V. de Brito, 193, 194 66, 85, 87, 117, 141, 160, 232, 259,
ARANTES, Altino, 155 271,272,275, 37~ 38~ 397,473, 47t
ARARIPE, Tristão de Alencar, 13, 15, 476, 477, 478, 479, 481, 482, 483, 486,
38-39, 41, 283 488, 493-494
ARAúJO, Antônio de, 113, 116-117, 213, AZEVEDO, João Batista Teixeira de,
276 308
ARAÚJO, Domingos de, 118, 249, 280- AZEVEDO, Manuel Duarte Moreira
281 de. 67 , 407

516
B BARRETO, Abeillard, 215
BARRETO, Domingos Alves Branco
BACELAR, Antonio Barbosa, 71-72 Moniz, 225
BAENA, Antônio Ladislau Monteiro, BARRETO, Francisco, 71, 433
96-97, 100 BARRETO, João Franco, 427
BAERLE, Gaspar von, ver BARLEUS, BARRETO, Manuel Teles, 490
Gaspar BARRETO, Roque da Costa, 301
BAERS, Joannes Paschasius, 61 BARROS, João de, 50, 249, 287, 441-442,
BAHIA, 9, 16, 18, 20, 23, 24, 38, 48, 486, 490
52-53, 55, 57, 59, 62, 64, 68, 83, 113, BARROS, José Vilela de, 40.5, 411
144, 167, 205, 206, 220, 225, 232, 23.5, BARTOLOZZI, Francesco, 5
236-239, 243, 251, 254, 258, 260, 261, BASTOS, A. de Magalhães, 10.5, 195,
263, 264, 26.5, 267, 268, 270, 273, 278, 196, 428, 4.56
280, 281, 283, 284, 288, 289, 292, 298, BAUDARTIUM, G., 53
300, 301, 304, 305, 306, 310, 312, 313, BEÇA, Manuel, 249, 283
378, 390, 391, 392, 403, 409, 415, 416, BECKMAN, Manoel, dito Bequimão, 88,
419, 428, 433, 434, 435, 438, 439, 440, 9J-92, 289, 290, 328
444, 448, 449, 458, 459, 460, 462, 470, BErnM, 23, 31, 48, 84-85, 100-101, 105,
477, 479, 483 , 485, 488, 489, 491 , 493 107, 117, 123, 208, 245, 280, 459
BAIAO, Antônio, 3 BELIARTE, Marçal, 439
BAKER, Augustin e Aloys de, 292 BELL, Aubrey F. G., 441, 465, 475
BALDELLI-BONI, G. B., 6 BELLAVIA, Antônio, 274
BALDUS, Herbert, 15, 91 BENCI, Jorge, padre, 377-378, 481
BALSEMÃO, visconde de, ver COUTI- BENEDITO XIV, papa, 232
NHO, Luís Pinto de Sousa BEQUIMÃO, ver BECKMAN, Manoel
BANDARRA, 486 BERCHET, G., 8
BANDEIRANTES, 48, 113-126, 136, 138- BERESFORD, W. C., marechal, 388
140, 173, 178, 189, 191, 208 BERNARDO, João Franco, 464
BANDINI, A. M., 6 BERREDO, Antônio Pereir·a de, 460-461
BANDITISMO, 327, 479 BERREDO, Bernardo Pereira de, 21, 78,
BANDOLEIROS, 238, 245 82, 86, 88, 89, 92-94, 99, 102, 295, 472,
BAPTIST A, José Luís, 434 490, 501
BARATA, Francisco José Rodrigues, BESSA, José de Oliveira, 313 , 500
208, 209-210 BETENCOURT, José de Sá, 405, 409
BARATA, Manuel, 26, 94, 204 BETTENDORFF, João Felipe, 86, 88,
BÁRBAROS, Guerra dos, 300, 301, 319 92, 99, 249, 277-278, 288-29.5, 328
BARBOSA, Domingos Vida!, 241 BEXIGAS, 234, 468
BARBOSA, Francisco de Oliveira, 129, BEZEGUICHE, 6
161 BEZERRA, Alcides, 76
BARBOSA, Januário da Cunha, 106, BISPADOS, 216, 217, 231-232 , 234, 239,
133, 379 263, 264, 379, 431
BARBOSA, Vitoriano Soares, 470 BIVAR, Diogo Soares da Silva, 304
BARBOSA MACHADO, Diogo, 91, 130, BLAKE, ver SACRAMENTO BLAKE,
165, 168, 189, 364, 373, 397, 416, 426, A. V. A. de
427, 430, 433, 445, 446, 461, 462, 463- BLASQUEZ, Antonio, 252
465 , 467-468 , 471, 472, 493 , 510 BLUTEAU, Rafael, 463, 468
BARBOSA MACHADO, lgnacio, 51, BOBADELA, conde de, ver ANDRA-
54, 57, 63, 77, 82, 87, 89, 234, 445-446 DA, Gomes Freire de
BARBOSA MACHADO, José, 445 BôHM, João Henrique, 220, 221
BARCA, conde da, ver AZEVEDO, An- BOL€S, João de, 260, 305
tônio de Araújo e BONNUCI, Antônio Maria, padre, 444-
BARLEUS, Gaspar, 64, 67-68, 70, 115, 445
171 BORBA GATO , Manuel de, 164
BARNUEVO, Rodrigo de, 28 BORGES, Paulino Nogueira, 241
BARO, Roulox, 77 BORGES DA FONSECA, Antônio José
BARRE, Lefbure de la, 33 Victoriano, 131, 144, 229, 234, 235,
BARREIROS, Antônio, bispo, 264, 452 466, 469-473, 495, 513

517
BOTELHO, Diogo, 20, 402, 501 CALDAS, João Pereira, 108, 417-421;
BOUREL, Filipe, 118 513
BOXER, Charles, 65-66, 70, 275, 287, CALDAS, .José Antonio, 144, 239-240
479, 481, 488 CALDAS, Sebastião de Castro e, 213-
BRAGA, José Peixoto da Silva, 208 219
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes, 373- CALDAS, Vasco Rodrigues de, 253
374, 513 CALMON, Pedro, 427
BRANDÃO, Antônio, frei, 472 CALVINO/CALVINISTAS, 299, 300,
BRANDÃO, Francisco, 286, 440 445
BRANDENBURGER, Clemente, 8 CÂMARA, José de Sá Betencourt, 409
BRAZÃO, Eduardo, 362, 367 CÂMARA, Luís Manuel da, conde da
BRIEVA, Domingos de, 27-28 Ribeira Grande, 92, 509
BRITO, Bernardo de, 50, 99 CÂMARA, Manuel de Arruda, 405,
BRITO, Domingos d'Abreu de, 451-455 408-409
BRITO, João Rodrigues de, 405, 411- CÂMARA, Manuel Ferreira da, 405
414, 415 CÂMARA, Sebastião Xavier da Veiga
BRITO, João Soares, 464 Cabral, 216-218, 222, 224
BRITO ARANHA, Pedro V. de, 464 CAMELLO, João Antonio Cabral, 120-
BRITO Freire, Francisco de, 57, 61-64, 121, 208, 209
71-72, 74, 470, 471, 472 CAMERINO, Giovanni, também cha-
BROECK, Matias van den, 64 mado Giovanni Matteo Cretico, 8
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio, CAMINHA, Pero Vaz de, 1-5, 10, 45
106-107, 114, 123, 379, 389, 492 CAMINHA, Vasco Fernandes de, 1, 2-7
BUENO, Amador, 148 CAMINHOS, ver ROTEIROS
BUENOS AIRES, 13, 33, 214, 215 CAMôES, Luís de, 430, 432, 490
BURNS, E. Bradford, 379 CAMPOS, Antônio Pires de, 320
BUTTERFIELD, Herbert, 493 CAMPOS, Estanislau de, 283
CAMPOS DOS GOIT ACAZES, 279,
382
e CAMPOS Moreno, Diogo de, 456
CANABRAVA, Alice, 114, 404, 405
CANADA, 389
CAARDEN, Paulo van, 20 CANANl!IA, 3, 12, 213
CABEZA DE VACA, A. N., 11-13 CANTO, José Borges do, 219, 226
CABO FRIO, 7, 9, 11, 227, 279, 457 CANAVEZES, Jerônimo de, frei, 434
CABO NORTE, capitania do, 30-31, 33, CAPASSI, Domingos, 164, 165, 244
84, 294 CAPISTRANO DE ABREU, J., 3-4, li,
CABRAL, Alfredo Valle, ver VALLE 20-23, 38, 43-46, 48, 66, 94, 102, 113,
CABRAL, Alfredo 114,116, 118,119,140,141,150,156,
CABRAL, Pascoal Moreira, 120, 136, 160, 166, 168, 252-253, 255, 256, 260,
153, 188, 196 261, 262, 263, 265, 266, 267, 268, 269,
CABRAL, Pedro Alvares, 1, 2, 6, 8, 270, 271, 272, 286, 287, 291, 295, 298,
146, 254 311, 361, 364, 366, 367, 372, 374, 384,
CABRAL, Sebastião da Veiga, 365 390, 394-397, 404-405, 420-421, 426,
CACAU, 101-102, 177, 205, 414 427, 428, 430, 431, 432, 435, 442, 450,
CACERES, Luís d'Albuquerque de Me- 451, 455, 456, 460, 462, 473, 476, 478,
lo Pereira e, 189, 198, 199, 204, 207 482, 483, 489, 492, 493, 494, 502
CADAVAL, Casa de, 27, 50,. 52, 63 CAPITANIAS, 16, 19, 26, 31, 48, 61-65,
CADAVAL, duque de, 402, 403 71, 74-76, 81, 83-86, 90, 92, 94, 104-
CADENA DE VILHASANTI, Pedro, 105, 459-460
ver VILLASANTI, Pedro Cadena de CARAMURU, Diogo Alvares Correia, 3,
CAENA, Colônia de, 282 10, 146, 253, 304, 305
CAETANO DE ALMEIDA, Batista, CARATER, mineiro, 170, 171, 176, 185,
124, 266 187, 218, 344, 346; nacional, 159;
CAF:e, 101-102, 152, 160, 177 paulista, 236; portugues, 378, 482
CAIENA, 33-34, 101 CARDIFF, Guillermo Furlong, 125
CALABAR, Domingos Fernandes, 63 CARDIM, Fernão, 17, 249, 256, 259,
CALADO, Manuel, frei, 54, 58, 62, 64, 260, 261, 262, 263, 264, 265-272, 278,
66-67, 76, 442, 469, 471, 472, 473 426, 432, 439, 450, 481, 502, 513

518
CARDOSO, Jorge, 471, 472, 489 CATARINA, rainha (D.), 429, 499
CARDOSO, Manoel, 379 CATECISMO DA LlNGUA BRASfLI-
CARNEIRO, Diogo Gomes, 426, 439- CA, 213
442 CAVALCÃNTI, Felipe, 233
CARNEIRO, Edson, 323, 504, SOS, 508, CAXA, Quirício, 264, 439
513 CEARA, 16-20, 22, 48, 71, 75-76, 84,
CARNEIRO, Francisco, 276-277 230, 238, 241-242, 280, 281, 290, 294,
CARNEIRO, Paulo, 363 295, 384, 419, 421, 443, 457, 47(), 482,
CARPEAUX, Otto Maria, 177 483, 494, 508
CARR~. H., 363 CELSO, Afonso, 285
CARRILHO, Fernão, 324 C~SAR, Guilhermino, 212, 213, 214,
CARTAS E RELAÇÕES PRIMITI- 219, 221, 223, 225, 367, 368
VAS, 212 C~SPEDES Y MENEZES, Gonçalo de,
CARVAJAL, Gaspar de, 25, 26 50
CARVALHO, Alfredo de, 15, 32, 6i, CEULEN, Mathias van, 75
74, 379 CEVALLOS, Pedro, general, 215
CARVALHO, Antônia R. de, SOS CHARLEVOIX, P. F. X. de, 148
CARVALHO, Antônio de Albuquer- CHAVES, Francisco, 12
que Coelho de, 181, 362 CHINA, 498
CARVALHO, Feliciano Coelho de, 299 CHIQUITOS, província de, 204, 206
CARVALHO, Francisco Coelho de, 18, CIDADE, Francisco de Paula, 365, 368
23, 30, 83 CIDADE, Hernani, 475, 476, 477, 478,
CARVALHO, Jacinto de, 249, 279, 280 479; 480, 482, 485, 486, 513
CARVALHO, Manuel de Araújo de, CISPLATINA, província de, 225, 363-
231 366
CARVALHO, Ronald de, 177 CIVEZZA, .Marcelino de, 28
CASAL, Manoel Ayres do, 3, 435 CLARK, G. N., 43
CASAS, Bartolomeu de las, 481 COCLEO, Jacob, 273
CASTELNAU, Francis, 192 COELHO, Domingos, 274
CASTELO, José Aderaldo, 312
CASTELO BRANCO, Antônio Gomes COELHO, Duarte de Albuquerque, 51,
Ferrão, 235 54, 58, 61-63, 83, 471, 472
CASTELO BRANCO, Camilo, 100-101 COELHO, Felipe José Nogueira, 192,
CASTELO BRANCO, Diogo Gomes 197-198, 326
Ferrão, 414 COELHO, Gonçalo, 7
CASTELO BRANCO, Francisco Cal- COELHO, Jorge de Albuquerque, 233,
deira de, 23, 24, 26, 117 234
CASTELO-MELHOR, marqueses de, COELHO, José João Teixeira, 170
364 COELHO, Marcos, 280
CASTILHO, José Feliciano de, 372, COELHO, Nicolau, 1
373, 449 COELHO, Pero, 16, 19
CASTILHO, Pero de, 273 COIMBRÀ, Henrique de, 299
CASTILLO, João dei, ·274 COLOMBO, Cristóvão, 3, 5, 146
CASTRIOTO, Jorge de, 52 COLONIALISMO, 169, 217, 303, 380,
CASTRIOTO LUZITANO, 234 381, 382, 388, 389, 420
CASTRO, Afonso Miguel de Portugal COLONOS, Sublevação de, 508
e, 11 .º conde de Vimioso e 4.º mar- COM~RCIO, Companhia Geral de, 57,
quês de Valença, 238 71-72, 377, 476
CASTRO, Alvaro . de, 426 CONCEIÇÃO, Apolinário da, frei, 297,
CASTRO, Caetano de Melo e, 325 302
CASTRO, Eugênio de, 9, 11, 39 CONGO, 452
CASTRO, Fernando José de Portugal e, CONGREGAÇÃO PROPAGANDA FI-
238, 503, 504 DE, 272
CASTRO, Jos6 de, conde de Rezcnde, CONJURAÇÃO MINEIRA, 151, 177·
409 178, 179, 180, 182, 184, 241, 409
CASTRO, Martinho de Melo e, 326 CONSELHO DE ESTADO, 11, 22, 83
CASTRO E MENDONÇA, Antônio CONTE, Bois le, 40
Manoel de Melo, 155 COOK, Francis, 265

519
CORREA, Baltazar, 450 CUNHA, Antônio Alvares da, 93
CORREIA, Diogo Alvares, ver CARA- CUNHA, Antonio Luís Pereira da, 380
MURU CUNHA, Euclides da, 97
CORREIA, João de Medeiros, 71-72 CUNHA, Francisco da, 435
CORREIA, Manuel, padre, 450 CUNHA, Francisco João da, 359
CORRUPÇÃO, 374-377, 461 CUNHA, Francisco Manuel da, 243
CORTE REAL, Diogo de Mendonça, CUNHA, Jacinto Rodrigues da, 219, 367
402, 403 CUNHA Rivara, J. H. da, 32, 82, 87,
CORTESÃO, Jaime, l, 2, 3, 4, 15, 27, 118, 395
32, 92, 115, 116, 124, 125, 217-218, CURITIBA, 12, 123, 157, 214, 244, 245
328, 373, 455, 492, 509-510, 512, 513
COSTA, Afonso, 468, 494-495
COSTA, Antônio de Carvalho da, 471- D
472
COSTA, Antônio Rodrigues da, 501,
509 DANIEL, João, 95, 96, 97, 103, 294
COSTA, Claudio Manuel da, 138, 144, DANrnLOU, Jean, 486, 493
162, 163, 177-179, 181, 182, 183, 184 DANTAS JONIOR, João da Costa Pin-
COSTA, Duarte da, 258, 260 to, 503
COSTA, Francisco Augusto Pereira da, DANTESCO, Thomas Gracian, 22
63, 408 DEGREDADOS, 2, 3-4, 28, 57
COSTA, Manuel da, padre, 376 DELATTRE, Pierre, 125
COSTA, Miguel Pereira da, 236 DENIS, Ferdinand, 3-4, 39, 45-46, 435
COSTA, Rodrigo da, 495 DERBY, Orville, 162, 166, 173
COSTA D'AFRICA, 386 DIÁLOGOS DAS GRANDEZAS DO
COSTUMES portugueses do séc. XVII, BRASIL, 371-374, 442, 513
374-375 DIAMANTES, 113, 114, 166, 171, 176,
182, 194, 198, 414
COTRIM, Filipe de Matos, 27 "DIARIOSH, 216, 224
COURO, 72, 119, 243, 393 DIAS, Antonio Gonçalves, ver GON-
COUTINHO, Afrânio, 177 ÇALVES DIAS, Antonio
COUTINHO, Francisco Maurício de DIAS, Carlos Malheiros, 305
Souza, 190, 209, 210 DIAS, Diogo, 2
COUTINHO, Gonçalo Vaz, 434 DIAS, João, 400
COUTINHO, José Joaquim da Cunha DIEGUES JONIOR, Manuel, 457
de Azeredo, bispo, 379, 380, 381, 382, DfZIMOS, 371, 384
383, 384, 385, 386, 387, 388, 389 DOENÇAS, 234, 236, 471
COUTINHO, Luís Pinto de Sousa, vis- DOMINGOS, Agostinho, 101
conde de Balsemão, 147, 154, 155 DOMINGUES, L. F., 4
COUTINHO, Rodrigo de Sousa, 219, DOMINGUES, Pero, 116, 117
231, 238, 436, 504 DOMINGUEZ, Luís L., 13
COUTO, Diogo do, 50, 433, 486, 490 DUCLERC, J. F., 362, 403
COUTO, Domingos do Loreto, 144, DUGUA Y-TROUIN, René, 361, 362,
229, 231, 235, 303, 324, 466, 469, 470, 363, 402, 403, 498
495 DUSSEN, Adriaen van der, 75, 312
COUTO, Miguel do, 113, 116, 118-119
CRETICO, Giovanni Matteo, ver CA-
MERINO, Giovanni E
CRISES AÇUCAREIRAS, 393, 405
CRÔNICA GERAL COLONIAL, ECKART, Anselmo, 81, 90, 91, 458
XVIII, XIX, 2, 16, 21-28, 37, 64, 75, ECONOMIA CRISTÃ, 374, 377-378,
86, 88, 93-94, 95, 425-447 474; Economia PoHtica, criação da
CRUZ, Ernesto, 26 cadeira de, 413
CRUZ, Laureano de la, 27-29 EDELWEIS, Frederico G., 301
CUIABA, 106, 107, 120, 121, 123, 136, EDMUNDSON, Georg, 32
151, 153, 156, 188, 189, 191, 192, 193, EHRENBERG, Richard, 38
194, 195, 196, 198, 201, 202, 205, 206, ELLIS JONIOR, Alfredo, 116, 123
207, 208, 209, 320 EMBOABAS, Guerra dos, 139, 164, 167,
CUNHA, A. G., 430 292, 293, 408, 499, 502, 508

520
ENGENHOS DE AÇOCAR, 13, 16, 18, FERRAZ, Baltazar, 491
62, 72, 74, 75, 76, 98, 102, 237, 240, FERREIRA, Alexandre Rodrigues, 241
390-415, 432, 433, 435, 438, 448, 451, FERREIRA, Carlos Alberto, 27, 54, 86,
453, 455, 459, 468, 471, 479, 507 88, 104, 231, 362, 429, 440, 447, 462
ENNES, Ernesto, 184, 324 FERREIRA, Diogo, 455
ENTRADAS, Relações de, 113, 116 FERREIRA, João Antônio Costa, 504
ERICEIRA, 4.º conde de, ver MENE- FERREIRA, João de Sousa, 81, 86-87
ZES, Francisco Xavier de FERREIRA, Joaquim, 376
ERICEIRA, 3.º conde de, ver MENE- FERREIRA, Joaquim José, 207
ZES, Luís de FERREIRA, José, 290
ESCRAVIDÃO/ESCRAVOS, 9, 67, 76, FERREIRA, Manuel, 281
85, 98-99, 143, 166, 167, 168, 172, 174, FERRO, 177, 414
175, 176, 185, 187, 190, 194, 195, 196, FERROLLE, Pierre Eleonor de la Ville
199, 213, 227, 229, 238, 251, 252, 254, de, 33
257, 319, 322-356, 371, 377-378, 380, FIGANIÊRE, Frederico Francisco de
381, 382, 384, 385-387, 389, 393, 409, la, 429
412, 416-417, 432, 433, 438, 453, 455, FIGUEIRA, Luís, µadre , 16-18, 279,
468, 475, 478, 479-481, 491, 498, 506, 288, 289, 290, 295, 483
507, 508 FIGUEIRA, Manuel Dias, 328
ESMERALDAS, Serra das, 167 FIGUEREDO, Jerônimo de Farias de,
ESPADA, Marcos Jimenez de la, 28 471
ESPANHA, 220, 222, 240, 367, 368, 389, FILGUEIRA, Domingos da, 214
436, 456, 458, 485, 500, 509 FILIPE 1, rei, 451
FILIPE IV, rei, 458, 476
ESPANHÓIS, XVIII, 14, 27, 30, 51,
60-61 , 108, 215, 216, 219, 498 FILOSOFIA, ensino no Brasil, 378, 416
ESPfRITO SANTO, 201, 239, 240. 243, FLANDRES. 453
FLORES DE V ALDEZ, Diogo, 490
244, 261, 263, 265, 267, 273, 278-279, FOLEY, Henri, 275
292, 457, 472, 481, 507 FOME, 121, 199, 231, 242, 299, 322,
ESTADOS UNIDOS, 12, 33, 388-389 378. 499
ESTRADAS, Abertura de, 384, 408 FONSECA, Antônio, 283
ESTRUTURA SOCIAL, 176, 185, 380- FONSECA, Bento da. 249, 281 -282, 294
389 FONSECA, Felis Feliciano da, 367
EVREUX, Yves d', 37, 43, 46-47, 289, FONSECA, Toão Severiano da, 192, 193
404 FONSECA, Tosé Gonçalves da, 193
FONSECA, Luís da, padre, 259, 261,
263, 264, 439
F FONSECA, Luísa da, 89
FONSECA, Manuel da, 249, 292, 293
FARIA, Francisco de Souza e, 244 FONSECA, Martinho A. da, 464
FARIA, Francisco Vieira de, 232 FONSECA, Paulino Nogueira Borges
FARIA, Júlio César de, 27 da, 17
FARIA, José Custódio de Sá e, 215-216 FORTALEZAS, 19, 24, 40, 43, 70-71,
FARIA, Manuel Severim de, 50-51, 89, 75-76. 86, 95, 107-108
490 FOUQUET, Karl, 15
FAY, David Aluísio, 91 FRAGOSO, Gaspar, 117
FAZENDA, J. Vieira, 118, 151, 450 FRANÇA, 229, 240, 403, 453, 484, 485,
FEDER, Ernest, 8, 91, 458 509
FEITO, João da Silva, 241-242 FRANÇA, Gonçalo Soares de, 311-312
FEIRAS, 508 FRANCESES, 14, 17-19, 21-23, 25-25,
FELNER, Alfredo de Albuquerque, 452, 31, 33, 37, 39, 40, 41, 42-44, 46-48, 81,
455 83, 88, 93, 139, 261 , 264, 361-363, 449-
FERNANDES, Domingos José Mar- 451, 491
ques, 225-226 FRANCO, Afrânio de Mello, 177, 180
FERNANDES, Duarte, 9, 11 FRANCO, Francisco de Assis Carvalho,
FERNANDES, Francisco, padre, 450, 14-15, 189, 193, 209
451 FRANCO, Guiomar de Carvalho, 15
FERNANDO DE NORONHA, ilha de, FREIRE, Basílio Teixeira de Cardoso
469 Sá Vedra, 174-175

521
FREIRE, Francisco de Paula, 183 GOMES, Manuel, 16, 24
FREIRE, Francisco José, 375 GONÇALVES, André, 6
FREIRE, João de Noronha, 55 GONÇALVES DIAS, Antonio, 93, 104-
FREIRE, José Rodrigues, 321 105, 282, 291, 295
FREIRE, Leopoldo, 289 GONÇALVES , Pero Luís, 484
FREIRE, Manoel Gomes, 306 GONDIM, João Velho, 494
FREITAS, Jordão de, 10-11 GONNEVILLE, Binot Paulmier de, 38-
FREITAS, Rodrigo, padre, 439 39
GONZAGA, Tomás Antônio, 183
FRITZ, Samuel, 25, 31-32, 94, 290, 294 GONZALEZ, Roque, 274
FROGER, 361 GOUVEIA, André de, padre, 392, 393
FROTA, José Manuel Antunes da, 208, GOUVEIA, Cristóvão de, padre, 264,
210-211 265, 267-268, 269, 270, 450
FUGGER, Jacob, 8, 38 GOUVEIA, Manuel Paulino de, 408
FUNK, Jacques, 221 GRÃ-BRETANHA, 240
FURTADO, Alcibíades, 13 GRÃ, Luís da, padre, 439
FURTADO, Francisco de Mendonça. GRÃO-PARA, ver PARA
233 GRAVATA , Helio, 180, 314, 315
GREENLEE, W. B., 1, 3-4, 6-7
GROTIUS, Hugo, 485
G GUAIRA, 124, 125
GUEDES, Antônio, padre, 399
GADO, 16, 67, 74. 76, 82, 86, 98, 113, GUEDES, João, 281
168,172,393,402,418,420,453, 499 GUERRA, Francisco de Brito, 408
GAFFAREL, Paul, 39-41, 44 GUERREIRO, Bartolomeu, 60-61, 89
GALLANTI, Rafael, 17 GUERREIRO, P. Fernão, 17, 274, 275
GALVÃO, B. F. Ramiz, 321 GUIANAS, 22, 31 , 32, 104-105, 108, 388,
GALVÃO, Francisco, padre, 463 403
GAL VEAS, conde de, ver MELO E GUILLEN, Julio, 26
CASTRO, André GUIMARÃES, Manuel Teixeira de
GAMA, João da Maia da, 101, 279, 398 Araújo, 178
GAMA, José Basílio da, 282, 367 GUINE, 230
GAMA. Paulo José da Silva, 227-228 GUMILA, José, 99
GAMA, Vasco da, 254 GURGEL, Manuel Joaquim do Amaral,
GANDAVO, Pero de Magalhães, 147, 157
426, 427, 428, 429, 430, 431, 432, 433 GUSMAN, Gaspar de, conde-duque de
GANNS, Cláudio, 437 Olivares, 55
GARCIA (família dos), 284 GUSMAN, Martin de Saavedra y, 28
GARCIA, Miguel, padre, 378 GUSMÃO, Alexandre de, 27, 32, 92,
GARCIA, Rodolfo, 15, 18, 20, 31, 32, 283, 327-328, 365, 463, 509-512
38, 44, 82, 87, 106, 130, 165, 166, 167, GUSMÃO, Bartolomeu Lourenço de,
223, 240, 242, 257, 263, 267, 272, 295, 509
329, 364, 373, 404, 407, 426, 427, 430,
431,434,440,456, 459, 489,494
GARÇÃO, Pardo Gonçalo, 303 H
GARRO, Lopo Curado, 76
GENEALOGIA, 229, 465, 473, 519 HAEBLER, Konrad, 8
GENNES, M. de, 361 HAECX, Henrique, 69
GÊNOVA, Benigno de, 298, 300 HAMBURGO, 453
GIJSSELING, Johan, 75 HARRISSE, Henry,_ 32
GOIAS, 119, 123, 129, 136, 140, 141, HENRIQUE, cardeal infante D., 254,
151, 176, 189, 195, 199, 205, 208-211, 428, 429, 446
214, 239, 243, 311, 508 HENRIQUES, Rodrigo de Miranda, 276
Gó IS, Luís de, 39 HERCKMANS, Elias, 76
GóIS, Pero de, 39 HERIARTE, Maurício, 81, 84-85
GOMES, Henrique, 273 HERNANDEZ, Pero, 11
GOMES, João de Medeiros, 155 HERRERA Y TORDESILLAS, Antô-
GOMES, José Caetano, 405, 406 nio de, 490

522
HEULLARD, A., 41-42
HISTORIA: biografização da, 283;
cruenta do Brasil, 499; da América IGLESIAS, Francisco, 163
Portuguesa, 495, 496-499, 500-503; IGREJA, 227, 234, 328, 384, 455, 497,,
idéia da, 484, 485, 486-487, 492; so- 506
cial, 468, 471, 499, 506-508; univer- IGREJA E ESTADO, 380, 388
sal, 486. IGUARAÇU, 304
HISTORIOGRAFIA: baiana, 236-240; ILHA, Manuel da, 297-300
colonialista, 92, 93, 105, 109, 143, 169, ILHEUS, capitania de, 239, 254, 261,
172, 183, 184, 210, 223, 303, 344, 381, 263, 264, 265, 304, 391, 414, 428
498, 502, 507, 508; da Amazônia, 32, IMIGRAÇÃO, 81, 84, 508
95-110; da conquista, 1-34; da costa
leste-oeste, 16-24; da Igreja em geral, IMPERIALISMO, britânico, 176-177,
310-315; da Paraíba, 243; das invasões, 386, 388, 412; português, 475-489
37-77; das invasões francesas, 37-47, IMPOSTOS, 461, 499
361-363; das missões, 368; das rebe- fNDIA, 1, 6, 9, 14, 35, 39, 70, 229, 250,
liões, 319-355; de Goiás, 208-211; de 254, 268, 286, 306, 495, 498
limites, 366; de Mato Grosso, 188-207; fNDIAS OCIDENTAIS, Companhia das,
de Minas Gerais, 82, 162-187; de Santa 48-49, 61, 67-68, 77
Catarina e Paraná, 244-246; diplomáti-
ca, 73; do açúcar, 390-415; do Amazo- fNDIOS, 2, 4-5, 9, 12, 14-15, 17-21, 24,
nas e Pará, 240-241; do bandeirismo 28-30, 38-39, 61, 67, 76, 81, 83-86, 88,
seiscentista, 111-125; do Ceará, 241- 93, 96-99, 101-102, 104-106, 109, 113,
242; do Espírito Santo, 243-244; do 114, 116, 117, 118, 120, 121, 136, 137,
Maranhão, 81-94; do Rio Grande do 139, 156, 157, 158, 167, 175, 178, 188,
Norte, 242-243; dos agostinianos, 306- 189, 190, 194, 195, 196, 197, 199, 201-
307; dos beneditinos, 308-309; dos 202, 203, 204, 205, 207, 209, 210, 211,
carmelitas, 310; dos franciscanos, 297- 213, 218, 219, 230, 231, 233, 234, 236,
305; dos holandeses no Brasil, 48-58, 237, 244, 245, 249, 250, 251, 252, 254,
59-72, 73-77; dos jesuítas, 249-296, 481; 255, 256, 257, 258, 259, 260, 261, 264,
econômica e social, 73, 74, 369-389, 265, 266, 267, 268, 269, 273, 274, 276,
474; econômica geral, 73, 371-389; epi- 277, 278, 279, 280, 281, 282, 290, 297-
sódica dos holandeses no Brasil, 59-72; 298, 299, 300, 301, 312, 319, 320, 321,
322, 323, 324, 366-368, 381-382, 385,
especial dos holandeses no Brasil, 64, 386-387, 391, 398, 418, 419, 420, 431,
73-77; geral, 474-512; militar, 359-368; 433, 434, 435, 438, 439, 449, 450, 451,
paulista, 129-161; pernambucana, 229- 452, 454, 455, 457, 461, 468, 472, 475,
235; regional, 73, 75, 83, 107, 127, 477-479, 480, 483, 488, 489, 491, 496,
236-245; regional vária, 236-246; reli- 498, 499, 506, 508 .
giosa, 249-316; do Rio Grande do Sul, INFORMAÇÃO DO ESTADO DO
212-228, 363-366; revolucionária, 319- BRASIL, 460-461
356; social e dos caminhos, 416-422 INGLATERRA, 229, 453, 500
HOLANDA, 229, 377, 406, 442, 443, 457, INGLESES NO BRASIL, 31, 491
458, 476, 486, soo INOC:Ê.NCIO, ver SILVA, Inocêncio
Francisco da
'HOLANDA, Sérgio Buarque de, ver INQUISIÇÃO, 379, 380, 475, 476-477,
BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio 4 79, 482, 485
HOLANDESES NO BRASIL, 18-20, 26, INSTRUMENTOS DO TRABALHO
30-31, 48-76, 77, 83, 88, 115, 139, 167, HISTóRICO, 463-473
237, 278, 303, 360, 391, 392, 442, 443, INSURREIÇÕES, 319-329
444, 458, 459, 462, 468, 471, 474, 476, !SAIAS, profeta, 486
479, 481, 482, 483, 485, 490, 491, 492- ITÁLIA, 485
493, 497 ITALIANOS, 37
HOMEM DE MELO, Francisco Inácio ITAMARACÁ, capitania de, 38, 71, 74-
Marcondes, barão de, 135, 165, 502 75, 230, 279, 443, 449, 459
HORCH, Rosemarie E., 465 1T ANHAEM, vila de N. Sra. da Con-
ceição de, capitania de, 48, 147, 151,
HUBY, François, 45 260
HUIZINGA, J., 114 ITINERÁRIOS, 214, 236, 244

523
J LA RA VARDif:RE, senhor de (Daniel
de la Touche), 23
LAS CASAS, Bartolomeu de, 386
JABOATÃO, Antônio de Santa Maria,
frei, 10, 131, 144, 147, 229, 234, 297, LATIFONDIOS, luta contra os, 301
298, 301, 302-305, 466, 468-469, 489, LATIM, ensino do, 468, 507
490, 493, 495, 501 LAUZERET, J., 363
JACQUES, Cristóvão, 38 LEAL, Antônio Henriques, 87, 295
JAEGER, Luiz Gonzaga, 274 LEDO, Joaquim Gonçalves, 225
JARQUE, Francisco, 124 LEI AGRÁRIA, 508
JARRIC, Pierre du, 275 LEISTE, Christian, 458
JERôNIMO, Manuel, 277 LEITÃO, Francisco de Andrade, 73
JESU1TAS, 17,18, 27-29, 32-34, 38, 62, LEITÃO, Martim, ouvidor geral, 449,
67, 85, 86, 87-88, 90-91, 95-96, 101-103, 450, 452
105, 378, 394, 426 LEITE, Francisco Rodrigues, 41-42
JESUS, Rafael de, 49-50, 53-54, 58, 66, LEITE, Gonçalo, 378
234, 471, 472
JOÃO IV (D.), 476, 477, 478, 482, 487 LEITE, Serafim, padre, 16-18, 23-24, 33,
60, 85, 86, 91, 95, 96, 97, 114, 116,
JOÃO V (D.), 403, 446, 509, 510
117, 118, 124, 125, 137, 212, 213, 257,
JOSÉ, rei (D.), 303, 359
JUDEUS, 196, 377, 398, 449, 472, 475, 258, 259, 261, 262, 263, 264, 268, 269,
476, 482, 488, 489, 498, 511, 512 270, 273, 274, 275, 276, 277, 278, 279,
JU1ZES, criação no interior de, 301 280, 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287,
288, 289, 290, 291, 292, 293, 294, 295,
JULIEN CHARLES, A., 39
JURO excessivo, 413 296, 377, 378, 390, 392, 398, 399, 400,
JUSTIÇA, 506, 507; administração da, 402, 403, 405, 416, 433, 437, 438, 439,
228, 230, 261, 507 479, 481, 483, 484, 488, 513
LEME, Antônio Pires da Silva Pontes,
176, 188, 200, 201
K LEMOS, Gaspar de, 6
LEMOS, Mécia de, 489
,KAESTNER, Erhard, 458 LÉRY, Jean de, 37, 40-42
KEIZERS, Agostinho, frei, 70 LESSA, Clado Ribeiro, 173, 221
KIEMEN, Mathias, frei, 478 LESSING, G. E., 90, 458
KNIVET, Anthony, 15 LETRADOS, 346
KôPKE, Diogo, 456 LEVERGER, Augusto, 204
KOSTER, H., 409 LÉVI-STRAUSS, Claude, 42
KRETZ, Wólfgang, 149, 150 LIBERALISMO, econômico, 380-381,
389, 412, 414, 415, 477; político, 488
L LIBERDADE DE COMÉRCIO, 380, 381
LIBERDADE IND1GENA, defesa da,
LACERDA E ALMEIDA, Francisco Jo- 85, 86, 99, 476, 478, 481
sé de, 95, 106-107, 176, 188, 200, 201- LIMA, Antônio da Costa, 315
202, 207 LIMA, Eliseu de Araújo, 437
LA CONDAMINE, C. M. de, 104, 294 LIMA, Francisco das Chagas, padre, 245
LAET, Johaimes de, 61, 65, 67, 242, 243, LIMA, Joaquim de, 183
289, 485 LIMA, Thomás da Encarnação da Costa,
LAGUNA, 213, 214, 228, 244-245, 276, 315
282, 363 LIMA JúNIOR, Augusto de, 166, 226
LAMALLE, Edmond, 125 LIMPEZA DE SANGUE, 471, 472
LAMBERT, Jacques, 114 UNHARES, conde de, ver NORONHA,
LAMEGO, Alberto, 6-7, 144, 150, 165, Miguel de
177, 303, 313, 329, 359, 362, 363, 379, LIPSIUS, Justus, 485
462, 470, 500 LISBOA, Baltazar da Silva, 150
LANGSDORFF, G. H. de, barão de, LISBOA, Cristóvão de, frei, 18, 78, 83,
185, 186 89-90, 93-94, 490
LANORE, J., 363 LISBOA, João Francisco, 3, 45, 54, 88,
LAPA, Manuel Rodrigues, 177 92-93, 291, 372, 389, 493
LARA, Diogo Arouche de Moraes, 228 LISBOA, José da Silva, 413, 414, 503

524
LISBOA, Manoel Gomes, 328 MANCEBIAS, 175
LLAGAS, Augustin de la, 28 MANDIOCA, farinha de, 371, 411, 418,
LOBATO, João, 274 449, 451, 496, 507
LOBO, Antônio Leite Pereira da Gama, MANETA, Sublevação do, 328-329, 499
157 MANSUY, Andrée, 293 , 400-403, 404,
LOBO, Fernando, 177 405, 513
LOBO D'ALMADA, Manuel da Gama, MANUEL (D.), 511
95, 107-109, 418 MANUEL, Gaspar Pinheiro da Câmara,
LOPES, Baltazar, padre, 450 361
LOPES, Fernão, 441 MAPAS, 448, 456
LOPES, J. J. P., 379 MARAJO, ilha de, 17, 31, 48,479,483
LUANDA, 452, 454 MARANHÃO, 3, 16, 20-24, 26, 33-34,
LUTERANOS, 299, 300 42-45, 47, 48, 75, 76, 78, 93, 95, 101,
LUTERO, Martim, 445 103, 104, 107,116,117,118,119, 167,
202, 231, 242, 277, 279, 280, 281, 282,
283, 288, 289, 290, 291, 293, 294, 295,
M 296, 306, 312, 322, 328, 418, 419, 420,
443, 458, 459, 472, 475, 478, 479, 482-
MACEDO, Antônio de Souza de, 73, 74, 483, 484, 490, 491, 500
376-377, 513 MARCGRAVE, Jorge, 67, 77, 90, 442,
MACEDO, Duarte Ribeiro de, 375 443
MACEDO, Joaquim Manoel de, 201, MARCHIONI, Bartolomeu, 38
407, 409 MARCONDES DE SOUSA, T. O., 5-6
MACEDO SOARES, A. J. de, 140 MARIA I (D .), 379, 446
MACHADO, Antônio, 283 MARIA TERESA, infanta, 476
MACHADO, Antônio Alcântara, 249, MARIANA, 179, 181, 313, 326
259, 269 MARINHA DE GUERRA, 380, 381
MACHADO, Brasílio, 262 MARIZ, Antônio de, 259
MACHADO, Diogo Barbosa, ver BAR- MARIZ, Pedro de, 38, 471, 490
BOSA MACHADO, Diogo MARKHAM, Clements R., 26
MACHADO, Jerônimo, padre, 450, 451 MARQUES, César Augusto, 44, 45, 281
MACHADO, Simão Ferreira, 313, 314 MARTINS, Heitor, 496, 499, 500
MACIEL, Bento, 83 MARTINS, João, 273, 274
MAÇONARIA, 225 MARTIUS, C. F. P. von, 435
MADEIRAS, 20, 26, 76 MASCARENHAS, José Freire de Mon-
MADRE DE DEUS, Gaspar da, frei, tarroio, 320
to, 129, 131, 138, 139, 141-151, 152, MASCATES, Guerra dos, 319, 403, 471,
153, 154, 155, 156, 161, 295, 305, 314, 499
329 MASSACRE DE INDIOS, 301, 320-322
MADUREIRA, Pedro de Morais, 277 MATO GROSSO, 103-106, 107, 188-207,
MAFFEII, J. P., 287 215,239,417, 418
MAGALHÃES, Basílio de, 100, 141, 163 MATOS, Antônio de, 249,276,277,278
'MAGALHÃES, Manuel Antônio de, 226- MATOS, José, 164
228 MATOS, Luís de, 426-427, 428,429,430,
MAGALHÃES, Pero de, 426-427 431
MAGALHÃES BASTO, A., 4 MATTOS, Carlos Lopes, 149
MAGNAGHI, Alberto, 5, 6, 7, 8 MAXWELL, Johan, 75
MAILLAR, Mathieu, 22 MEDINA, José Toribio, 25-26
MALDONADO, Ayres, 118 MEIRELES, Domingos Coelho, 303
MALDONADO, José de Villamor, 27,
28, 29, 148 MELLO, Silveira de, 192, 193
MAL~S. Rebelião dos, 322 MELLO NETO, José Antonio Gonçal-
MALES SOCIAIS, 412 ves de, 54, 65, 66, 67, 75,372,374,404,
MALHEIRO DO LAGO, Basílio de Bri- 405, 471, 472, 473, 513
to, 179 MELO, Antônio Feijó de, 472
MALINOWSKI, B., 42 MELO, Antônio Joaquim de, 473
MALIPIERO, D., 8
MALO, H., 363 MELO, Antônio José de, 472
MAMIANI, Luís Vincêncio, 301 MELO, A. J. Teixeira de, 256, 259, 472

525
MELO, Francisco Manoel de, 50-51, 52, 387, 401, 402, 409, 414, 419, 420, 462,
53, 54, 55, 56-57, 58, 60, 62, 63, 64, 471, 499, 501, 508
70, 375, 376 MINAS, marquês das, ver MENEZES,
MELO, João Gomes de, 233 Antônio Luís de Sousa Tello de
MELO, José Alexandre Teixeira de, 178 MIRALLES, José de, 144, 280, 359-361,
MELO, Mário, 329 365
MELO, Sebastião de Carvalho e, mar- MJRÃO, Diogo, 261
quês de Pombal, 98, 280, 283, 303 MISE.RIA, 157, 199, 219, 242, 299, 322,
MELO E CASTRO, André de, conde de 387, 480, 506
Galvêas, 360; 472 MISSôES, 18, 28, 32, 90, 97, 98, 99,
MELO E CASTRO, Roque Luís de Ma- 197, 199, 201-202, 203, 206, 219, 224,
cedo Paes Leme e, 129, 159-161 228, 24~ 267,277,279,280,281,283,
MELO E TORRES, João de Saldanha 284, 285, 288, 289, 290, 301, 312, 32í,
da Gama, 6.º conde da Ponte, 412 363, 367-368, 481
MELO MORAES, A. J. de, 8, 122, 266, MITRE, Bartolomé, 14
272, 280, 282, 283, 289, 291, 294, MOÇAMBIQUE, 462
295, 361, 362, 433 MOLINA, Luís Tenório de, 472
MELO NETO, João Cabral de, 365, 366 MONÇOEIROS E SERTANISTAS, Re-
MELO REGO, Francisco Rafael, 192, latos de, 85-86, 98, 100, 107, 120-123,
193 164-165, 188, 189, 208
MENDES, Simão, 277 MONSANTO, conde de, 132, 134, 159
MENDES, Valentim, 249, 280 MONTE-CARMELO, Lino de, padre,
MENDONÇA, Hipolito José da Costa 408
Furtado de, 322 MONTEIRO, Domingos, 273
MENDONÇA, Marcos Carneiro de, 414, MONTEIRO, Jácome, 249, 277, 278
418 MONTEIRO, Jonathas da Costa Rego,
MENDONÇA, Martinho de, 501 366
MENDONÇA, Salvador de, 499, 500 MONTEIRO, José Xavier, 238-239
MENDONÇA Furtado, F. de, 95, 98 MONTENEGRO, Caetano Pinto de Mi-
MENENDEZ Y PELAYO, M., 57 randa, 204, 206, 207
MENEZES, Antônio de Brito e, 214, 245 MONTESQUIEU, 381
MENEZES, Antônio de Sousa, 301 MONTEVIDE.U, 215
MENEZES, Antônio Luís de Sousa Tel- MONTOYA, Antonio Ruiz de, 115,
lo de, 2.º marquês das Minas, 405, 470 124-125
MENEZES, Diogo de, 19-20, 456, 490, MORAES, Alexandre José de Melo, 8
501 MORAES, Francisco de Castro, 362
MENEZES, Francisco da Cunha, 240 MORAES, José de, 282, 294
MENEZES, Francisco Xavier de, 4.º con- MORAES, Rubens Borba de, 149
de de Ericeira, 361, 463, 476 MORAIS, Francisco Teixeira de, 81, 85,
MENEZES, João Rodrigues de Sá e, vis- 87-88, 92, 328
conde de Anadia, 504 MORAIS, José Mariz de, 262
MENEZES, Luís de, 3.º conde de Ericei- MORAIS, Manuel de, padre, 67, 442-444,
ra, 51, 53, 89, 484, 485 456
MENEZES, Manuel da Cunha, 238 MORAIS da Fonseca Pinto, José Xa-
MENEZES, Marruel de, 55, 59-60, 202- vier de, 293
203 MOREAU, Pierre, 64, 68-70, 77
MENEZES E CASTRO, Rodrigo José, MORENO, Diogo de Campos, 16, 20-22,
181, 462 47, 456
MERCADO, Tomás de, 481 MORENO, Martim Soares, 16, 19, 20,
MERCURIANO, Everardo, 263 21, 22-23, 444, 491
MESA DE INSPEÇÃO DO AÇOCAR, MORERI, Louis, 472
415 MôRNER, Magnus, 114, 479
MESTIÇAGEM, 175,253,419 MOTA, Carlos Guilherme, 509
ME.XICO, 389 MOTA, Pedro da, 213
MICHA~LIS, Carolina, 3 MOUCHERON, Henrique de, 76
MILLIET, Sérgio, 41, 43, 44 MOURA, Alexandre de, 16, 19, 22-24,
MINAS GERAIS, 103, 113, 123, 136, 26, 83
162-187, 214, 236, 237, 239, 243, 273, MOURA, Cristóvão de, 433, 435, 437,
293, 306, 311, 315, 319, 326, 327, 328, 438

526
MOURA, Pedro de, 277
MOURÃO, Luís Antonio de Sousa Bo-
o
telho e, 131, 134, 151-152, 153, 174 OCIOSIDADE, 159, 185-186, 218, 238,
MUELLER, Bonifácio, frei, 231, 298 278, 387, 412,420,477, 489,506, 507,
MULATOS, 175, 419, 506, 507 508
MULHERES, 2, 7
MUNIZ, Jerônimo, 249 OFICIAIS MECANICOS, 186
MúRIAS, Manuel, 459 OGLIN, Erhart, 8
MURR, Cristóvão Gottlieb, 90, 91, 458 OITICICA, Luís Pereira da Rosa, .404
OLINDA (cidade de), 26, 61, 232, 279,
299, 303, 306, 308, 329, 382, 444, 448,
N 472, 489
OLIVARES, conde-duque de, ver GUS-
NABER, S. P. L'Honoré, 70, 203, 262, MAN, Gaspar de
323 OLIVEIRA, Bento de, 289, 290
NABUCO, Joaquim, 31, 104, 105, 262, OLIVEIRA, J. B. Perdigão de, 470
323 OLIVEIRA, Manuel de, padre, 400
NANTES, Bernardo de, 301 OLIVEIRA, Tarquínio J. B. de, 410
NANTES, Martin de, 297, 300-301 OLIVEIRA LIMA, Manuel de, 372, 373,
NARBONA Y ZUNIGA, Eugenio, 60 379, 382, 427, 429, 444, 499
NASSAU-SIEGEN, João Maurício de, OLIVEIRA NETO, Luís Camilo de,
conde de, 59, 61, 64-66, 75, 77, 115 166, 172
NASSOVIANO, Período, 59, 64 ORDEM SERAFICA, 304, 305
NATAL (RN), 230 ORDONHES, Diogo de Toledo Lara e,
NAU BRETOA, O Livro da, 9-10, 38 132, 133, 145, 191
NAVARRO, José Gregório de Moraes, ORELLANA, Francisco de, 25-27, 30-31
405, 407 ORTEGA FONTES, A., 6
NAVARRO, Manuel Alvares Morais, OURO, 113, 114, 116, 117, 118, 120, 135,
116 136, 139, 151, 162-163, 164, 166, 167-
NAVARRO, Martim de Azpicuelta, 250 168, 170, 171, 174, 175, 176, 177, 178,
NAVEGAÇÃO, 381, 387 182, 185, 193, 194, 195, 196, 210, 211,
NEGROS, 57, 63, 65, 75, 101, 174, 175, 237, 420, 434, 438, 460
199, 236, 237, 322-327, 377-378, 381- OURO PRETO, ver VILA Bela
385, 420, 432, 455, 461, 462, 477, 479, OVIEDO, Gonzalo Fernandes, 26
488, 489, 491, 506, 507; crueldade con-
tra os, 378; importância dos, 408-409 p
NIEUHOF, Johan, 67, 68, 70
NINA RODRIGUES, 323
NITSCHE, R. Lehmann, 14 PACHECO, Félix, 136, 163, 364
NOBREGA, Manoel da, padre, 99, 249, PAÇO, Antônio Jansen do, 71, 135, 180
250, 252, 253, 254, 255, 256-258, 260, PAES, Francisco Fernando, 504
261, 262, 272, 278, 284, 285, 286, 287, PAES, Garcia Rodrigues, 136, 167
513 PAES, José da Silva, 366
NORONHA, Antônio de, 168, 170, 326 PAES LEME, Fernão Dias, 135, 136,
NORONHA, Jácome Raimundo de, 27 160, 164, 167
NORONHA, José Monteiro de, 95, 105· PAGAN, François, conde de Blaise, 25,
106 31
NORONHA, Marcos de, 7.º conde dos PAIS DE BARROS, Artur, 193
Arcos, 129, 147, 233 PAIS DE BARROS, Fernando, 193
NORONHA, Miguel de, conde de Li· PA1SES BAIXOS, 20, 43, 48, 49, 70,
nhares, 190 73,484,498
NOSSA SENHORA DOS PRAZERES PALHA, João Rodrigues, 489
(Praça de), 216 PALHA, Vicente Rodrigues, ver SAL-
NOSTRADAMUS, 486 VADOR, Vicente do, frei
NOVINSKY, Anita, 67 PALHETA, Francisco de Melo, 101
NUNES, Diogo, 24 PALMARES, Guerra dos, 234, 319, 322,
NUNES, João, 449 323-324, 325, 461, 471, 472, 499
NUNO, Manuel, 6, 9 PALMAS, território de, 12

527
PARA, 18, 23, 24, 26, 29, 30, 32-33, 75- PEREIRA, Mendo Foyos, 167
76, 78-79, 83, 86, 90-91, 95, 97, 100, PEREIRA DA COSTA, F. A., 473
101, 102, 103, 104-108, 116, 117, 190, PEREIRA DA SILVA, J. M., p11dre,
193, 194, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 390, 393
203, 204, 205, 206, 207, 208, 210, 240, PEREIRA FILHO, Emmanuel, 426, 428,
241, 276, 279, 281, 282, 283, 289, 290, 429, 430, 432
293, 294, 295, 306, 312, 371, 377, 417, PERNAMBUCO, 16, 19-20, 22, 23, 24,
420, 475, 478, 479, 480, 482, 483; Com- 26, 39, 42, 48, 53-54, 57-59, 62, 63,
panhia Geral do, 190, 198 64, 65, 67, 71, 74, 75, 83, 115, 167,
PARAGUAI, 156, 195, 198, 201, 204, 227, 229-235, 239, 242, 243, 261, 263,
205, 206, 207, 461, 492 264, 265, 268, 273, 278, 279, 300, 310,
PARA(BA, 14, 16, 71, 75, 76, 77, 83, 312, 315, 320, 322, 323, 324, 325, 329,
84-85, 227, 230, 231, 234, 239, 243, 359, 377, 380, 384, 402, 419, 428, 440,
299, 300, 384, 398, 443, 448-451, 457, 441 , 443, 448, 449, 452, 453-454, 458,
458, 469, 489, 508 461 , 468, 469, 470, 472, 476, 489, 491 ,
PARAfSO NA AMtRICA, 285, 286 505, 508
PARANA, 12, 115, 214, 244-245, 306 PESSOA, João Ribeiro, padre, 408
PARANAGUA, 152, 213, 244 PESTES, 378, 468, 471, 499
PARANHOS ANTUNES, general de, PIAUf, 118, 199, 234, 242, 290, 295,
226 417, 418, 419, 421, 499
PARANHOS, José Maria da Silva, barão PIMENTAL, Miguel da Rosa, 88
do Rio Branco, 12, 22, 33, 47 "4, 95, PIMENTEL, Antônio Cavalcanti Albu-
103, 180, 215, 256, 271, 272 querque, 471
PARENTE, Bento Maciel, 19, 78 PIMENTEL, Antônio da Silva Caldeira,
PARENTE, João Amaro Maciel, 82, 84, 244-245
116 PIMENTEL, Manuel, 148
PARNA(BA, 16, 19 PIMONTE, João Pedro, 313
PASTELLS, Pablo, 115, 283 PINA, Luís de, 89
P ATER, Adriaen Janszoon, 55 PINELO, Antonio Leon, 373
PATOS, missão e terra dos, 213, 274, PINHEIRO, José Feliciano Fernandes,
276, 288 visconde de São Leopoldo, 133, 140,
217
PAU-BRASIL, 1, 3, 5, 9-10, 14, 37-38,
40, 72, 75, 255, 371, 402, 449, 451,
PINHEIRO, Manuel, 249, 280-281
453-454 PINHEIRO, Simão, 273
PAZ, Julian, 28 PINTO, Antônio, 249, 277
PEDRO I (D.), 225 PINTO, Estevão, 40
PEDRO II (D.) (rei de Portugal), 363, PINTO, Francisco, padre, 17, 18, 24,
475, 495, soo 288, 295
PEDROSO, Manuel dos Santos, 219, 226 PINTO, Luís, 154, 155
PEIXOTO, Afrânio, 11, 20, 259, 262, PINTO, Luiz Borges, 164, 326
263, 272, 373, 428, 430 PINTO LEAL, 82
PERDIGÃO, José Rebelo, 164-165 PIO VI, papa, 384
PEREIRA, André (Temudo), 25-26 PIRATININGA, 13, 261, 263,
PEREIRA, Cristóvão, 214-215, 366 PIRES, Heliodoro, 379
PEREIRA, Estevão, padre, 390, 393 PlSANl, Domênico, 7
PISO, Guilherme, 67, 77, 90, 442, 443,
PEREIRA, Francisco Lobo Leite, 180- 485
131 PITA, Sebastião da Rocha, ver ROCHA
PEREIRA, Jacinto Freire de Andrade, PIT A, Sebastião da
91 PIZA, Antonio de Toledo, 133, 138, 141 ,
PEREIRA, João Manso, 405, 407-408 153, 156, 157, 158
PEREIRA, Joaquim José, 231, 242-243 PIZARRO, Gonzalo, 25-26
PEREIRA, José Higino Duarte, 372, 373, PIZARRO E ARAUJO, José de Sousa
442 e Azevedo, 150, 181, 191, 307
PEREIRA, Lionis, 428 PLATZMANN, Julius, 91
PEREIRA, Marcelino Cleto, 129, 151- PLEBE, 175, 328, 330, 333, 385, 496
152, 154 PLESSIS-PARSEAU, Du, 362, 363

528
POBREZA, 157, 172, 194, 236, 237, 242, RAVASCO, Bernardo Vieira, 462
244, 299, 322, 387, 505 RAZILLY, François de, 43, 45
POMBAL, marquês de, ver MELO, Se- REBELO, José Silvestre, 201, 404
bastião José de Carvalho e RECHSTEINER, Adalberto, 362
PONTES, Belchior de, 292, 293, 315 RECIFE, 20, 63, 65, 67, 69. 70, 71, 72,
PONTES, Manuel J. Pires da Silva, 162, 83, 280, 292, 298, 304, 306, 324, 329,
163 384, 403, 443, 444, 454, 472
PORCEL, Francisco Moreno, 51 REGALISMO, 380, 388, 499
PORTELLI, Alexandre Eloy, 224 REIS, Artur Cesar Ferreira, 33, 107-109,
PORTO, Aurélio, 223, 224 418
PORTO ALEGRE, 213, 214, 220, 222, REIS, Joaquim Silvério dos, 183
225, 226, 227, 228 RELAÇOES GERAIS, 448-462
PORTO ALEGRE, Manoel de Araújo, RELAÇOES PRIMITIVAS, Cartas e,
133, 136 212
PORTO SEGURO, capitania de, 146, RENDON, José Arouche de Toledo,
239, 240, 261, 263, 264, 265, 279, 299 129, 133, 148, 157-159
PORTO SEGURO, visconde de, ver REVOLTA de 1720 (A), 319
VARNHAGEN, Francisco Adolfo REZÃO DO ESTADO DO BRASIL,
PORTUGAL E CASTRO, Fernando Jo- 448, 455-457, 461-462
sé de, marquês de Aguiar, 216, 226, REZENDE, conde de, ver CASTRO,
227 . José de
PRADO, Eduardo, 11, 44, 262, 266 RIBEIRA GRANDE, conde da, ver CÂ-
PRADO, João Leme do, 189 MARA, Luís Manuel da
PRADO, Paulo, 44, 66 RIBEIRO, Antônio, 273
PRATA, 434, 450 RIBEIRO, Diego, 31
PRESTAGE, Edgard, 55, 57, 60, 62 RIBEIRO, F. M. Esteves, 8
PREUSS, Konrad Theodor, 255 · RIBEIRO, Francisco, 116
PRIMERIO, Fidelis M. de, 300 RIBEIRO, João, 3, 141, 177
PROENÇA, Martinho de Mendonça de RIBEIRO, João Pinto, 375
Pina e, 166, 466 RIBEIRO, José Silvestre, 463
PROFESSORES, baixos salários dos,
507 RIBEIRO SAMPAIO, F. Xavier, 103,
PURCHAS, Samuel, 260, 265, 269 105, 463
RICHSHOFFER, Ambrósio, 61
RIO, Camapoan, 121, 156, 209; Cuiabá,
a 121, 157, 161, 189, 209; Doce, 24, 164,
173, 175, 243, 273, 274, 279; das Mor-
QUEIRÓS, João de São José, bispo do tes, 171, 174, 179, 180; da Prata, 11,
Pará, 100, 101, 102, 446 13-14, 48, 165, 217, 218, 228, 245, 260,
QUESTOES DE LIMITES, 22, 27, 33- 276, 277, 282; Grande, 71, 74-75, 121,
34, 84, 104-105, 366, 418, 421 156, 161, 171, 209, 273, 276, 320, 321;
QUEVEDO, Samuel A. Lafone, 14, 55 Guaporé, 176, 190, 191, 193, 201, 204,
QUILOMBOS, 174, 176, 198, 319, 326 205, 206; lbicuí, 122; lguatemi, 121,
122, 123, 157, 161; Japurá, 108, 202,
418; Jauru, 176, 201, 202, 204, 205,
R 418; Jequitinhonha, 240; Madeira, 85,
97, 190, 191, 193, 194, 195, 203, 204,
RACISMO, 378, 385, 506 205, 206; Mamoré, 174, 179-180; Ne-
RAMALHO, João, 3, 13, 146, 147, 148, gro, 32, 81, 85, 95, 103 . 104-105, 107,
253, 305 108, 109, 289; Oiapoque, 33, 84; Ori-
RAMIZ GALVÃO, B. F., 82, 94, 150, noco, 389; Paraguai (e território), 156,
168, 177, 184, 189, 364, 456, 465 195, 198, 201, 204, 205, 206, 207; Pa-
RAMOS, Eládio dos Santos, 372, 374 raíba do Sul, 39, 173; Paraná, 121,
RANGEL, Cosme, ouvidor geral, 454 122; Paranapanema, 12-13; Pardo, 156,
RAMUSIO, G. B., 8 161,224,225, 321; Parnaíba, 419; São
RAPOSO, Luís Mendes, 452 Francisco, 117, 168, 173,176,300,301,
RAU, Virgínia, 27, 50, 52, 63, 72, 289, 434, 438; Tapajós, 85; 106, 176, 201,
402, 427, 434 204, 205, 281, 289; Taquari, 121, 156,

529
209; Tietê, 120, 121, 156, 188; Tocan- ROLIM, Felipe de Moura, 233
tins, 117, 205, 210, 419, 483; Xingu, ROLIM, Francisco de Moura, 233
48, 106, 117, 205 ROLIM, Paulo de Moura, 233
RIO BRANCO (e território), 22, 33, ROMERO, Silvio, 141, 155, 177
47, 84, 95, 104-105, 108, 176, 201 ROSÁRIO, Paulo do, 77
RIO BRANCO, barão do, ver PARA- ROSCIO, Francisco João, 216, 221-223,
NHOS, José Maria da Silva 225, 226
RIO DE JANEIRO, 15, 24, 39-40, 118, ROTEIROS, 214, 244, 245, 393, 401,
135, 136, 137, 147, 167, 169, 179, 189, 418, 419, 420, 421, 436
204, 205,206,214, 215, 217, 224, 239, ·RUBIM, Francisco Alberto, 243
256, 260, 261, 263, 264, 265, 268, 275, RUI, Afonso, 508
277, 278, 279, 280, 281, 283, 284, 288,
292,301,304,306,307, 312, 314, 315,
359, 361-363, 364, 379, 403, 407, 432,
440, 441, 457, 459, 462, 468, 471 , 472,
s
489 SABIN, J., 15
RIO GRANDE (vila de), 228 SACRAMENTO BLAKE, Augusto V. A.
RIO GRANDE DE SÃO PEDRO, ver de, 106, 151, 158, 161, 176, 193, 194,
RIO GRANDE DO SUL 198, 201, 209, 210, 215, 219, 225, 228,
RIO GRANDE DO NORTE, 16, 20, 241, 242, 243, 307, 320, 359, 379, 398,
48, 76, 118, 230, 231, 242, 273, 280, 405, 406,407,410,411 , 416, 462,472,
384, 443, 455, 459, 493 495, 510
RIO GRANDE DO SUL, 115, 122-123, SACRAMENTO, Colônia do, 115, 116,
139, 153, 160, 210, 212-228, 245, 274, 123, 154, 165, 282, 306
276, 278, 321 , 363, 366-367, 507-508 SA, Estãcio de, 260, 285
RIO NEGRO, capitania de São José SA, Felipa de, condessa de Unhares,
do, 201, 202, 203, 417 392, 399, 400
RIO PARDO (vila de), 228 SA, Joseph Barbosa de, 191, 195-197,
RIVARA, J. H. da Cunha, 265, 281 , 289 198, 199
RIVIERE, Ernest M., 444 SA, Luís José Correia de, 235
ROCHA, José Joaquim da, 162, 163, SA, Manuel de, 310, 471
178, 179-182, 184 SA, Manuel de Sousa de, 22
ROCHA, Manuel Ribeiro da, 416, 417 SA, Manuel Ferreira da Câmara Bethen-
°llOCHA, Paulo da, 117 court e, 414-415
ROCHA PITA, Antônio da Costa, 185- SA, Mem de, 40, 251, 253, 254, 285,
187 399-400
ROCHA PIT A, Brites da, 494 SA E BENEVIDES, Salvador Correia
ROCHA PITA, Sebastião da, 135, 139, de, 135, 406
147, 234, 494 SA E FARIA, José Custódio de, 121,
RODRIGUES, Francisco, 41 , 60 122
RODRIGUES, Jerônimo, 212-213 SALDANHA, Martim Lopes Lobo de,
RODRIGUES, José Carlos, 8, 32, 47 152, 153
RODRIGUES, José Honório, 10, 11, 42, SALDANHA, Manuel Cardoso de, 239
43, 47, 53, 54, 55, 56, 57, 59, 60, 61 , SALVADOR, 54, 59, 260, 278, 279, 301,
62, 63, 64, 65, 67, 68, 70, 71, 72, 73, 302
74, 75, 76, 77, 113, 118, 120, 148, 150, SALVADOR, José Gonçalves, 67
158, 160, 178, 181, 225, 232, 242, 259, SALVADOR, Manuel Calado, ver CA-
266, 281, 291, 372, 373, 374, 376, 384, LADO, Manuel
392, 393, 400, 414, 421, 430, 432, 435, SALVADOR, Vicente do, frei, 16, 20,
437, 439, 444, 470, 471, 472, 473, 493 21, 22, 23, 43-44, 61, 89, 94, 147,234,
RODRIGUES, Lêda Boechat, 68, 77 256, 284, 298, 371, 426, 433, 434, 450,
RODRIGUES, Manoel, 99, 102, 289 451, 456, 469, 471, 472, 474, 489-494,
RODRIGUES, Mathias, 18, 249, 296 502, 513
RODRIGUES, Pero, 16, 23 SAMPAIO, A. M. de, 185 .
RODRIGUES, Simão, 252, 254, 255, 258 SAMPAIO, Francisco Marinho de, 504
RODRIGUES NETO, Manuel, 31 SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro,
ROJAS, Alonso de, 28, 31 95, 104-105, 418

530
SAMPAIO, Teodoro, 3, 15, 262 SCHMIDEL, Ulrico, 13-14
SAMPERES, Gaspar de, 16 SCHUELLER, R., 8, 82-83
SANABRIA, Meneia Calderon de, 14 SCUTERO, Mateus, 294
SANCHEZ, Alonso B., 28, 31, 50-51, 56, SEBASTIÃO (D.), 427
59-60, 124, 125 SECAS, 231, 236, 242, 470, 494
SANDE, Antônio Paes de, 171 SEIXAS, Romualdo Antonio de, arce-
SANDOVAL, Alonso, padre, 481 bispo, 305
SANTA CATARINA, 12, 14, 48, 119, SEMINARIO, da Lapa, 407; de Olinda,
157, 198, 213, 214, 215, 217, 221, 228, 382-384
244-245, 274, 276, 278, 306, 366-368, SEPULVEDA, Manuel Gorge Gomes,
492 220
SANTA MARIA, Agostinho de, frei, SEQUEIRA E SA, Manuel Tavares de,
147, 234, 471, 472, 493 364
SANTA MARIA, Francisco de, 147-148 SERGIPE, 16, 237, 239, 279, 304, 310,
SANTA S~, 233 507
SANTA TERESA, Luís de, frei, 232 SERINHA~M, 304
SANTA TE REZA, Giovanni Gioseppe SERRA, Ricardo Franco de Almeida,
di, frei, 55 176, 188, 191, 200, 201, 202-207
SANTIAGO, Anfrísia, 504, 505 SERTANISTAS, Relatos Monçoeiros e,
SANTIAGO, Bento Lopes de, 373 98, 120-123, 164-165, 188, 189, 208
SANTIAGO, Diogo Lopes, 53-54, 66 SERTÃO, Domingos Afonso, 419, 499
SANTO AMARO, ilha de, 14 SETE POVOS DAS MISSOES, 215,
SANTO OF1CI0, 374, 377, 379, 444, 219, 220, 222
469, 475, 476, 477 SHAW, Paul Vanorden, 114
SANTOS (vila e cidade de), 39, 134, SHEVERIN, Pedro, 380
147, 151, 152, 160, 172, 173, 206, 213, SILVA, Alberto, 440
214, 239, 244, 245, 269, 270, 274, 277,
SILVA, Bartolomeu Bueno da, 153, 189,
278 208, 211
SANTOS, Antonio Ribeiro dos, 436
SANTOS, Francisco Marques dos, 173 SILVA, Felipe de Carvalho da, 219
SANTOS, Lúcio José dos, 177, 178 SILVA, Francisco Ribeiro da, 313-314
SANTOS, Manuel dos, 50, 472 SILVA, Inocêncio Francisco da, 60, 89,
SANTOS, Manuel Martins dos, 367 91, 100, 103, 106, 107, 151, 158, 161,
SÃO CRISTÓVÃO (cidade), 239 166, 173, 193, 194, 197, 198,201,209,
SÃO GABRIEL, ilha de, 366 210, 225, 241, 242, 287, 292, 301, 303,
SÃO LEOPOLDO, visconde de, ver PI- 306, 307, 310, 315, 320, 361, 365, 367,
NHEIRO, José Feliciano Fernandes 379, 395, 398, 405-406, 410, 411, 416,
SÃO LU1S (cidade), 42, 46, 48, 84-85, 426, 427, 430, 445, 463, 464, 472, 510
87, 90, 92, 361 SILVA, Joaquim Caetano da, 33, 45
SÃO LU1S, Francisco, bispo, conde, 10 SILVA, José Justiniano de Andrade, 440
SILVA, Luciano Pereira da, 101
SÃO PAULO, 3, 35, 83, 106, 107, 115, SILVA, Luís Francisco de Carvalho da,
116, 117, 120, 122, 129-161, 167, 170, 219
172, 173, 178, 179, 181, 189,208,209,
SILVA, Luís Vieira da, 183, 184
211, 214, 215, 216, 239, 244, 260, 263,
SILVA, Manuel Jordão da, 213
268, 274, 276, 277, 278, 288, 292, 293,
SILVA, Maria Fernanda Gomes da, 27,
296, 306, 307, 308, 315, 387, 407, 461, 50, 289, 402, 427, 434
471, 508
SILVA, Pirajá da, 433, 436, 437
SÃO PEDRO (vila de), 220, 222 SILVA, Rodrigo Mendes da, 472
SÃO VICENTE (capitania de), 7, 13-14, SILVA, Silvestre Ferreira da, 365
129-161, 179, 213, 229, 254, 260, 261, SILVA, Thomaz da Costa Corrêa Rabe-
263, 265, 270, 304, 371, 428, 451, 459, lo da, 219
491 SILVEIRA, Braz da, 164
SARAIVA, Mateus, 165, 464 SILVEIRA, Carlos Pedroso da, 136
SA, Simão Pereira de, 116 SILVEIRA, Ildefonso, 298, 299
SAUSSURE, Ferdinand, 42 SILVEIRA, Joaquim da, 426, 430
SAY, Jean Baptiste, 412, 413 SILVEIRA, Luís, 399
SCHETZ (engenho dos), 135 SILVEIRA, Simão Estácio da, 78, 81, 82

531
SIMÃO, Luís, 452 SOUTHEY, Robert, 21, 66, 262
SIQUEIRA, Bartolomeu Bueno de, 136, SOUTO MAIOR, João de, 113, 116,
163 117-118
SIQUEIRA, lgnacio, 276 SOUTO MAIOR, Pedro, 442
SIQUEIRA, Joaquim da Costa, 198-200, SOUTO MAIOR, Simão de, padre, 392-
202 393
SIQUEIRA, José da Costa, 188 SOUZA, Francisco Ferreira de, 223
SIQUEIRA, Sônia Aparecida, 379 SOUZA, Tomé de, 250, 251, 253, 256,
SLUITER, Engel, 48-49 258, 264
SMITH, Adam, 412, 415 SOUZA DOCCA, E. F. de, 219
SMITH, Robert, 89 STADEN, Hans, 13-15, 42
SOARES, Diogo, padre, 51, 120, 164, STETSON JR., John B., 427, 430
165, 208, 214-215, 244, 366 STUDART. Guilherme, barão de, 17, 18,
SOARES, Ernesto, 464 19, 20, 21, 22, 23, 24, 50, 82, 140, 242,
SOARES, Francisco, 264 263, 280, 291, 295, 301, 372, 373, 394-
SOARES, Norival, 180, 181 395, 397, 399, 421, 435, 436, 457, 470,
SOARES DE MELLO, José, 502, 503, 471, 472, 473
508
SOBERANIA POPULAR, 385, 386
SOCIEDADE AUXILIADORA DA IN- T
DúSTRIA NACIONAL, 406
SOCIEDADE LITERÁRIA DO RIO TABACO, 19, 63, 72, 164, 237, 243, 393,
DE JANEIRO, 408, 410 401, 402, 406, 414, 496, 506, 507
SODERINI, Pedro, 6, 7 TAQUES DE ALMEIDA PAES LEME,
SOLEDADE, Fernando da, frei, 297, 302, Pedro, 116, 129-142, 144, 146, 147,
472 148, 149, 150, 151, 153, 154, 155, 156,
SOMMERVOGEL, Carlos, 91, 259, 292, 159, 160, 161, 229, 305, 308, 329, 459,
397, 402, 444 464, 466-469,473,501, 503
SOROCABA, 189, 193, 209 TAUBATe, 172, 178
SOUSA, Álvaro Pires de Castro e, 459 TA UNA Y, Afonso d'Escragnole, 13, 114,
SOUSA, Antônio Caetano de, 130, 148, 115, 116, 120, 121, 123, 125, 130, 131,
463, 465-468, 471, 472 132, 133, 136, 138, 140, 142, 143, 144,
SOUSA, Antônio da Silva e, 375 145, 147, 149, 150, 151, 152, 153, 154,
SOUSA E SILVA, Joaquim Norberto, 155, 156, 159, 161, 162, 163, 164, 188,
177 191, 192, 193, 208, 277, 292, 308, 319,
SOUSA, Francisco de, 264 326, 329, 390, 394, 397, 398, 404, 405,
SOUSA, Francisco Ferreira de, 223 442, 444, 464, 467, 501
SOUSA, Gaspar de, 20, 42 TAUNAY, Alfredo, visconde de Taunay,
S0 USA, Gabriel Soares de, 3, 426, 430, 193
432, 433-439 TAVARES, Antônio Raposo, 115
SOUSA, João Falcão de, 440-441 TA VARES, Antonio Rolim de Moura,
SOUSA, João Coelho de, 443-434 conde de Azambuja, 121, 122, 190,
SOUSA, José Antonio Soares de, 437 199, 204, 508
SOUSA, Luís de, frei, 11, 50, 446, 484 TAVARES, Francisco Moniz, 408
SOUSA, Luís de Vasconcelos e, 123, TAVARES, João, 249,280,281
169, 179, 182 TA VARES, Simão, 451
SOUSA, Manuel de Faria e, 51-52 TA VARES BASTOS, A. C., 97
SOUSA, Manuel Marques de, 226 TECHO, Nicolas dei, 115, 124, 125
SOUSA, Martim Afonso de, 9-10, 39, TEXEIRA, Bento, 373
129, 134, 145, 148 TEIXEIRA, Domingos, 78, 88, 91-92,
SOUSA, Paulino José Soares de, viscon- 328
de do Uruguai, 133 TEIXEIRA, José João, 171
SOUSA, Pedro de Vasconcelos die, 329 TEIXEIRA, Pedro, 19, 25-28, 29-32, 34,
SOUSA, Pero Lopes de, 8-9, 38-39, 134, 48, 76, 84, 290
150 TELLES, Vicente Coelho de Seabra Sil-
SOUSA, Washington Luís Pereira de, va, 405, 410
146, 147, 244, 245 TEODóSIO, príncipe, 476, 485

532
TEOLOGIA, ensino no Brasil de, 378, 7, 9, 10, 13, 15, 20, 26, 27, 31, 38-39,
382, 416, 457, 468 45, 52, 55, 63, 83-85, 87, 92, 94, 96-97,
TERNAUX-COMPANS, Henri, 429 103, 104, 105, 106, 107, 118, 121, 141,
TERRORISMO OFICIAL, 250, 319-320, 147, 150, 151, 156, 164, 165, 201, 208,
322-351 215, 216, 222, 259, 265, 266, 272, 286,
TH:ÉVET, André, 37, 40-42, 102 287, 290, 291, 295, 298, 305, 315, 319,
THOMAZ, M., 361 327, 329, 362, 364, 373, 382, 395, 397,
THYSIUS, Antonius J. C., 53 40~ 40~ 407, 40~ 41~ 411, 41~ 41~
TIRADENTES, Joaquim José da Silva 418, 430, 431, 433, 434, 435, 437, 439,
Xavier, dito, 179-180, 182, 183 450, 455, 456, 457, 459, 469, 473, 501,
TOLEDO, Andrés de, 27, 29 513
TOLEDO, Fadrique de, 59 VASCONCELOS, Antônio Pedro de,
TRABALHADORES, 236 512
TRABALHO ESCRAVO, 378 VASCONCELOS, Bernardo Pereira de,
TRATADO, de Madri (1750), 366, 367, 182
509, 510; de 1777, 366, 417, 418; de VASCONCELOS, Diogo Pereira Ribeiro
paz com a Holanda, 499 de, 162, 163, 182-184
TRATADO POUTICO de Rocha Pita, VASCONCELOS, José de, 372
499-500 VASCONCELOS, Pedro de, 329
TRATADOS de 1681 a 1777, 364 VASCONCELOS, Simão de, 99, 135,
TRAVASSOS, Simão, 348,374,450,451, 147, 213, 249, 262, 275, 277, 278, 283,
478 284, 285, 286, 287, 288, 305, 371, 472,
TREVISAN, Ângelo, 7, 8 484
TRISTÃO, Manoel, 265 VAT, Odulfo van der, 298, 301
TUBARÃO, índio, 213 VAZ, Fernando, 9
VAZ, Sebastião, padre, 393
VEIGA, J. P. Xavier da, 166, 184, 404
u VEIGA, Tomé Pinheiro da, 375
VELHO, Domingos Jorge, 116, 323; 324,
UBATUBA, 15, 160 499 '
UFANISMO, 283, 285 VELOSO, José Mariano da Conceição,
UGARTE, Ruben Vargas, 28, 31 frei, 404, 406-407, 408, 436
UNIÃO SOVI:ÉTICA, 493 VENCEDOR (0) na História, 386
URBANO VIII, papa, 277 VERDONCK, Adriano, 74
URUGUAI. 363, 367 VERfSSIMO, José, 141, 177
URUGUA Y, visconde do, ver SOUSA, VERLINDEN, Charles, 39
P. J. Soares de VESPúCIO, Américo, 5-7
UTI POSSIDETIS, princípio do, 366 VIANA, Hélio, 427, 428, 430, 456, 457
VIDA, Sebastião Monteiro da, arcebis-
V po, 306, 312
VIEGAS, João Peixoto, 405
VACARIA (RS), 244 VIEIRA, Antônio, padre, 52-54, 59, 61,
VAISSETTE, José, 148 64, 71, 85, 99, 117, 212, 265, 274, 275,
VALADARES, conde de, ver ABRAN- 281, 286, 374, 375, 378, 396, 398-399,
CHES, José Luís de Menezes 444, 462, 4 74, 475-489, 493, 497, 513
V ALE, Leonardo do, 273 VIEIRA, Celso, 503
VALENÇA, marquês de, ver CASTRO, VIEIRA, João Fernandes, 54, 115,
Afonso Miguel de Portugal VILA Bela, 107, 188, 191-193, 195, 197,
VALENCIA Y GUZMAN, Juan de, 60 198, 201, 202, 204, 205, 206, 313; de
VALLE CABRAL, Alfredo, 3, 4, 116, Sabará, 151, 168, 174, 178, 181, 410;
124, 241, 364, 395, 396, 464 de São João dei Rey, 172, 173; de
VALVERDE, Orlando, 404 Serro Frio, 179, 180; do Carmo, 173,
VAN MEURS, padre, 17 179; Franca, 102; Nova da Rainha,
VAQUEIRO, ofício e título de, 420 173, 179; Nova do Príncipe, 173; Ri-
VARGAS, Tomás Tamayo de, 59-60 ca, depois Ouro Preto, 151, 165, 172-
VARNHAGEN, Francisco Adolfo, vis- 173, 174, 177, 179, 180, 181, 182, 183,
conde de Porto Seguro, XVI, 3, 6, 205, 240

533
VILA MA YOR, conde de, 510 WILLEKE, Venâncio, 298, 299,301,303,
VILLASANTI, Pedro Cadena de, 90 305
VILLEGAIGNON, Nicolas Durand de, WIZNITZER, Arnold, 53
38, 40-41 WORD, S. F. von, 13
VILHENA, Leonor Josepha de, 495 WORP, J. A., 64
VILHENA, Luís dos Santos, 240, 474, 447
503-509, 513
VIMIEIRO, conde de, 129, 130, 132,
133, 134, 148 X
VIMIEIRO, condessa de, 459
VIMIOSO, conde de, ver CASTRO, XAVIER, Francisco José da Serra, 446-7
Afonso Miguel de Portugal e XAVIER, José Joaquim da Silva, ver
VITERBO, Francisco Marques de Sou- TIRADENTES
sa, 221
VITERBO, Joaquim Sousa, 468
VITORIA (vila e cidade de), 244 V
YOUNG, Ernesto, 3
w
WALBEECK, Johannes van, 76 z
WALDSEEMULLER, M., 5
WATJEN, Hermann, 55 ZARCO Y COLONA, Tivisco de Na-
WELLINGTON, visconde de, Arthur sao, 472
Wellesley, 388 ZUZARTE, Theotonio José, 121

534
HISTÓRIA DA HISTÓRIA
DO BRASIL
JOSt HONÓRIO RODRIGUES
Este trabalho faz parte de uma trilogia
planejada pelo Autor desde 1944, quando vol-
tou dos Estados Unidos. A primeira, Teoria
da história do Brasil, já em quinta edição
(1978), a segunda, A pesquisa histórica no
Brasil, em terceira edição (1978), e esta, que
ora começa a ser publicada, formam o conjun-
to da obra. Todas têm como finalidade servir
aos estudos superiores de história, no campo
da teoria, da metodologia, da pesquisa e da
historiografia.
História da história do Brasil divide-se,
por sua vez, em três partes distintas: "Histo-
riografia colonial" (que compreende este vo-
lume); "Historiografia nacional" (séculos XIX
e XX); e "Historiografia e ideologia" (estas
duas em preparo).
A primeira, "Historiografia colonial", foi
publicada em espanhol e abrange os séculos
XVI e XVII (Historiografía dei Brasil, siglo
XVI, México, 1957; e Historiografía dei Brasil,
siglo XVII, México, 1963); e só agora surge
em português, acrescida, porém, do século
XVIII. Completamente remodelada, divide-se
pela temática e, não, por séculos, como na edi-
ção mexicana. Abrange, assim, toda a história
da investigação histórica e dos historiadores,
desde as manifestações mais rudimentares até
a elaboração .mais cuidada. Pela primeira vez
se faz um levantamento bibliográfico crítico
dos ·historiadores brasileiros, vistos e analisa-
dos por métodos históricos e, não, literários,
como, em parte, apareceram os maiores tra-
balhos na história da literatura. Os poucos
precursores de José Honório Rodrigues, como
Capistrano de Abreu, Alcides Bezerra e Sérgio
Buarque de Hollanda, fizeram ensaios sobre
determinado historiador, ou determinado pe-
ríodo, mas nunca uma obra que abrangesse,
de forma independente, toda a história da
historiografia brasileira. Antes deste livro, era
na história da literatura, único ramo da his-
toriografia intelectual, que se escreviam, no
Brasil e em Portugal, a imálise e a crítica da
evolução do pensamento e da forma do escrito
histórico. O relato histórico, seja a crônica
conjuntur~l, seja a história estrutural, é um
produto final do impulso histórico de cada
geração e, assim, serve para esclarecer as opi-
niões das minorias intelectuais e para com-
preender os trabalhos e os sacrifícios do povo
brasileiro.
A. J. L .
A
"BRASILIANA"

Em 1931, cerca de cinco anos de-


pois de fundada, a Companhia Editora
Nacional começou a publicação da
"Brasiliana". De então para cá, quase
quatrocentas obras foram publicadas na
coleção, cada uma das quais traz sua
contribuição para melhor entendimento
do País e de seus problemas de ontem,
de hoje, de sempre.
História, geografia, estrutura física
e estrutura mental, crenças e tradições,
usos e costumes, folclore, língua e lite-
ratura, economia, educação, transportes,
clim'a e saúde, organização política, bio-
grafia de grandes brasileiros - tudo
quanto, enfim, têm sido e vêm sendo a
terra e a gente, tem sido, também, e vem
sendo objeto de divulgação na "Brasilia-
na", em trabalhos originais, teses, memó-
rias, ou, em larga parte, na republicação
do esgotado, do disperso, do esquecido,
escrito aqui, ou fora daqui, e útil ao co-
nhecimento do Brasil. A "Brasiliana",
sob a direção inicial do humanista e
educador do porte de Fernando de Aze-
vedo e, de bons anos para cá, entregue
à alta competência de Américo Jacobina
Lacombe, é, pois, na plenitude do termo,
um patrimônio nacional, patrimônio ina-
preciável, marco definitivo da cultura
brasileira.
Além de prosseguir no lançamento
de novos títulos da "Brasiliana", a Com-
panhia Editora Nacional vem promoven-
do amplo programa de reedição de obras
esgotadas dessa coleção. Para tanto, tem
contado com o apoio valioso de institui-
ções empenhadas na promoção e preser-
vação da cultura, notadamente do Insti-
tuto Nacional do Livro, do Ministério
da Educação e Cultura.

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