Souza, Éder. Cinema, Cultura Histórica e Didática Da História
Souza, Éder. Cinema, Cultura Histórica e Didática Da História
Souza, Éder. Cinema, Cultura Histórica e Didática Da História
2175-5892
RESUMO:
ABSTRACT:
This article thematizes the relationship between cinema and historical knowledge,
focusing on the dialogue with the concepts of historical culture, historical narrative
and historical consciousness, from the contribution of German theorists of
Didactics of History. The purpose of this work is to contribute to the debate about
how movies affect viewers and consolidate views, stereotypes and ideologies that
are based on the relationship established with the historical knowledge. This
perspective can enlarge the list of possible interpretations on the relationship
between film and history, surpassing the debate that are restricted to criticize
movies about the validity or otherwise from the point of view of the methods of the
historian. The historical concept Nazism is taken as the focus of analysis, so that
they can understand the theoretical reflections from a specific example.
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Apresentação
É notório que filmes se apresentam como uma forma recorrente de acesso à
história para as pessoas em geral, e também para os historiadores. Seja pela
sensação de deslocamento temporal provocada pelos filmes de época, ou pela
aparência de relato ou retrato do passado por parte dos assim chamados “filmes-
históricos”, o fato é que a história se torna pública por meio da indústria
cinematográfica há várias décadas.
A Didática da História é um campo de estudos que se ocupa justamente de
tentar compreender as formas pelas quais o conhecimento é tematizado e
difundido, configurando formas de pensamento sobre a história que estão no cerne
de lutas culturais, políticas e ideológicas.
O presente texto tematiza o cinema como produtor de um conhecimento
histórico socialmente partilhado, no âmbito da cultura histórica. Essa forma de
conhecimento se difunde há praticamente um século, mas sua tematização no
âmbito da teoria da história tem quatro décadas e geralmente se restringe à
validação ou não de determinados filmes como mais ou menos históricos, ou então
à crítica das formas como os filmes se apropriam do passado.
O intuito é contribuir para que esse debate se amplifique, a partir de uma
aproximação com os conceitos de narrativa histórica, cultura histórica e
consciência histórica, num diálogo com os teóricos alemães da Didática da História.
Dessa forma, espera-se demonstrar a possibilidade de estabelecer um ponto
intermediário entre os que rejeitam os filmes como produtores de conhecimento,
pela crítica à liberdade de criação artística da cinematografia, e aqueles que
defendem uma racionalidade poética, que tende a relativizar ou banalizar os
padrões de qualificação metódica do conhecimento histórico racional.
Para clarear essa reflexão teórica, na última parte do artigo o conceito
histórico Nazismo é tematizado, de forma a exemplificar como esse assunto tem
sido apropriado pela indústria cinematográfica, e constitui-se como ponto de
referência nas lutas pela memória e na formulação de interpretações que
mobilizam a consciência histórica.
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não estão ao alcance de uma imagem, mas por que não propomos também o
contrário?; Não é certo que uma sucessão de fotogramas pode transmitir ideias e
informações que não podem ser expressas mediante palavras? (ROSENSTONE,
1997).
Os problemas levantados circunscrevem-se basicamente à linguagem
fílmica como um meio de expressar um conhecimento histórico de uma forma
nova, que vai além das possibilidades da linguagem escrita. Mas, além disso, o que
esse teórico apresenta é a ideia de que seria possível constituir uma filmografia
histórica, que se tornaria independente em relação à história escrita, como um
novo campo de conhecimento. Para a defesa de tal proposta, as ideias centrais de
Rosenstone são: O cinema pode ser uma via legítima para reconstruir o passado;
Não se deve propor críticas, mas avaliar as possibilidades dos “filmes-históricos”; É
necessário redefinir o conceito de história; É importante pensar no cinema como
um mecanismo de reconstrução da história.
No bojo dessas considerações, o teórico desqualifica os trabalhos
preocupados em avaliar os “filmes-históricos” a partir da comparação com a
historiografia escrita, uma vez que tais estudos seriam limitadores da
compreensão das formas de expressão do conhecimento histórico. Contudo, apesar
de acreditar nas possibilidades da linguagem audiovisual como uma forma válida
de expressão histórica, Rosenstone apresenta uma séria restrição ao que ele chama
de “dramas históricos”. Nesse caso, ele se refere às produções que constroem
roteiros baseados em dramas pessoais, intrigas e conflitos muitas vezes criados
para gerar emoção e cativar o público, mas que não tratam de problemáticas que
ele considera especificamente históricas.
Por outro lado, defende a existência de uma “historiografia fílmica”, uma
espécie de “nova história social”, a partir da qual o cinema tem sido utilizado como
meio de expressão de novas abordagens históricas, criando olhares complexos e
inovadores sobre o conhecimento do passado. Para tornar viável tal constatação,
Rosenstone afirma que a história não pode ser pensada apenas como a narração de
fatos e personagens passados, mas como a produção de sentidos sobre o tempo
e a cultura.
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Em minha tese de doutorado realizei um estudo empírico que revela como jovens estudantes lidam
com o conhecimento histórico nos filmes, e como essa atividade tem relação estreita com a consciência
histórica e com a cultura histórica. Ver: SOUZA, Éder C. Cinema e Educação Histórica: Jovens e sua
relação com a história em filmes. Tese de Doutorado. PPGE-UFPR, Curitiba, 2014.
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campos de concentração. É possível afirmar que essas são as duas imagens mais
comuns quando se trata da experiência histórica do Nazismo no âmbito da cultura
histórica. Sua presença como tema abordado por filmes e documentários desde o
fim da Segunda Guerra Mundial é notável, e uma busca por todas as obras que
foram produzidas nas últimas seis décadas e que tematizam diretamente ou fazem
referência ao Nazismo e/ou ao Holocausto, demandaria um esforço de pesquisa
que vai muito além dos limites do presente trabalho.
Mas é possível inferir que há um processo no qual o Nazismo desperta
interesse no grande público, por isso as obras cinematográficas que tratam do
assunto quase sempre são bem sucedidas. Muitas obras têm interesses diretos
numa rememoração específica dos fatos, especialmente por parte de grupos
judaicos, no caso do Holocausto. Assim, o público é educado por essas obras,
desenvolvendo um interesse cada vez maior pelo assunto, aumentando o potencial
de rentabilidade das produções relacionadas ao tema. Nesse processo, há uma
constante presença do Nazismo na mídia, com protagonismo dos filmes, mas
também aparecendo em programas de televisão, reportagens de jornais, capas de
revistas, entre outros.
Nas últimas três décadas, algumas produções cinematográficas trataram
diretamente do Nazismo e do holocausto com grande sucesso de público e crítica.
Dentre elas, pode-se destacar o documentário Shoah (LAZMANN, 1985), as obras
de ficção “A Lista de Schindler” (SPIELBERG, 1993), “A vida é Bela” (BENIGNI,
1997) e “Bastardos Inglórios” (TARANTINO, 2009) e as películas de reconstituição
histórica “O Pianista” (POLANSKI, 2002), “A Queda! As últimas horas de Hitler”
(HIRSCHIBIEGEL, 2005), “Sophie Scholl: uma mulher contra Hitler” (ROTHEMUND,
2005) e “Operação Valquíria” (SYNGER, 2008).
Um estudo aprofundado dessas obras poderia dar um diagnóstico mais
preciso da forma como o Nazismo tem sido retratado e assimilado pelo público.
Mas a princípio, é possível constatar uma tendência em se destacar o sofrimento
judaico e construir uma noção de irracionalidade e desvio histórico da experiência
nazista, o que é um desafio a uma compreensão histórica complexa e que possa
contribuir para a formação dos sujeitos. A exceção pode ser feita ao filme “A
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Queda! As últimas horas de Hitler”, uma produção alemã que tenta abordar o
sofrimento dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial, e aborda a
personalidade de Hitler a partir de um ponto de vista particular.
A experiência histórica do Nazismo marcou o século XX, tanto pelos seus
feitos como pela forma como tem sido rememorado e utilizado para fomentar
leituras enviesadas do passado. Os filmes sobre o tema têm grande difusão e
aceitação do público, por isso deve-se levar em conta sua inserção como artefato
cultural que tem relevância no âmbito da cultura histórica, pois influenciam
diretamente a forma como as ideias sobre o tema são formuladas e partilhadas
pela população em geral.
A produção de sentidos operada pela produção cinematográfica traz uma
aparente transparência, o “efeito janela”, contudo, sua real dimensão pode ser
revelada a partir da compreensão de sua opacidade, uma vez que os processos
produtivos geralmente não estão explícitos na tela. Esses processos de mediação,
presentes nos métodos de produção e comercialização de um filme não se
apresentam de forma clara e direta. Mas os sentidos históricos de uma obra
cinematográfica também não são absolutamente manipulados e pré-concebidos,
uma vez que o diálogo é constante na sua relação com a cultura histórica.
Ao refletir sobre as formas e funções do saber histórico na sociedade, Jörn
Rüsen, em seu livro História Viva, toma como ponto de referência uma pergunta
inicial de fundamental relevância: “Se é por suas formas e funções que o saber
histórico se torna verdadeiramente vivo, será que essa vida não se daria à custa de
sua cientificidade?” (RÜSEN, 2007, p. 10).
Com esse questionamento, Rüsen pensa na importância do saber histórico
como fator relevante na orientação da vida prática. Ele aponta a possibilidade de se
perceber os princípios ou refletir sobre pontos de vista que atuam na formatação
historiográfica e nos efeitos culturais do saber histórico, por força da cientificidade
da história. Para Rüsen, as coerências estética e retórica das narrativas históricas
agem no convencimento dos sujeitos quanto à forma com que orientam sua
subjetividade, na formação de identidade e práxis.
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Considerações finais.
No percurso analítico desenvolvido, o intento foi elaborar uma reflexão
teórica focada na compreensão de como um filme, ao ser compreendido pelo
espectador como um relato histórico, possibilita uma forma específica de
aprendizagem histórica, pela via da narrativa. Por isso, ressaltou-se como a
linguagem fílmica utiliza recursos técnicos e artísticos para cativar o público e
convencê-lo da verdade que o filme expressa.
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