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O Passado, o Presente e o Pretérito Imperfeito Da Música Sertaneja
O Passado, o Presente e o Pretérito Imperfeito Da Música Sertaneja
O Passado, o Presente e o Pretérito Imperfeito Da Música Sertaneja
O PASSADO, O PRESENTE E O
PRETÉRITO IMPERFEITO DA
MÚSICA SERTANEJA
Brian Henrique de Assis Fuentes Requena
Este artigo tem como intuito apresentar as principais particularidades sociais da música
sertaneja, conjugando assim o passado, o presente e o pretérito imperfeito do gênero. Em menos
de duas décadas, a música sertaneja tem movimentado um mercado milionário na indústria
do showbiz brasileiro, transformando-se em um império nacional. Paralelamente a isso, a
modernização do gênero tem despertado a contestação daqueles que se autorreferenciam como
defensores da tradição da música sertaneja. Portanto, um dos intuitos deste ensaio é abordar
as configurações atuais desse debate histórico.
Introdução
O
sucesso comercial da música ser- as principais particularidades sociais do
taneja é um fenômeno sem-par na gênero sertanejo. Então vamos lá.
história social da música popular Dos anos 1940 em diante, os artistas
brasileira. Em 1929, o folclorista Corné- sertanejos têm adotado uma estratégia de
lio Pires foi o responsável pela gravação mercado estruturalmente simples, embo-
das primeiras modas de viola em disco, e, ra muito funcional, para assegurar a hege-
de lá para cá, o gênero se modernizou e se monia do gênero na indústria da música:
adaptou aos ditames do mercado fonográ- o casamento entre a “tradição” da música
fico brasileiro. Mais do que isso, a música sertaneja – o formato de duetos, o canto de
sertaneja acompanhou as transformações dupla em terças, o uso predominante do vio-
sociais, econômicas, políticas e culturais da lão, o bucolismo, os enredos sertanistas – e a
sociedade brasileira contemporânea. Do in- “modernização” do gênero – os instrumen-
terior às capitais, dos subúrbios às megaca- tos eletrificados, as narrativas urbanas, os
sas de espetáculos, dos shows tradicionais vestuários modernos, os espetáculos tec-
às baladas pop, o Brasil se tornou sertanejo. nológicos. E, concomitantemente a isso,
Mas como a música sertaneja logrou esse graças à apropriação de ritmos estrangeiros
êxito nacional? Eis o ponto de partida deste no repertório, a música sertaneja pôde se
artigo. E, para isso, temos que apresentar ajustar às diretrizes impostas pela indústria
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Brian Henrique de Assis Fuentes Requena 89
cantos do país. Uma das modalidades de radiofônica entre os meses de janeiro e ju-
show ao vivo é a balada sertaneja. Em São lho de 2017, com mais de 41 bilhões de exe-
Paulo, por exemplo, casas noturnas como cuções nas rádios brasileiras. “Acordando o
a Wood’s, na Vila Olímpia, e bares como Prédio”, de Luan Santana, foi a música mais
Brook’s, na Chácara Santo Antônio, se tor- tocada de 2017. Outros artistas, como Jorge
naram parte do reduto boêmio da capital & Mateus, Victor & Leo, Fernando & Soro-
paulistana. Pelo interior do Brasil afora, o caba, Marcos & Belutti, Henrique & Juliano,
agronegócio e seus subcircuitos culturais, Zé Neto & Cristiano, João Neto & Frederico,
como as festas do peão de boiadeiro e os Simone & Simaria, Maiara & Maraísa, Paula
festivais agropecuários, são os principais Fernandes e Marília Mendonça, estavam no
financiadores dos shows dos sertanejos. topo do ranking 100 do ano passado.
Quanto ao público consumidor de músi- Em 2018, a música sertaneja assegu-
ca sertaneja, o conhecemos rou sua liderança nas rádios:
ainda muito pouco. Segundo Em 2018, a música das dez faixas mais tocadas,
o levantamento Tribos Musi- sertaneja assegurou sua sete são desse gênero (74%).
cais, realizado pelo Ibope em liderança nas rádios: Já nas plataformas de strea-
2013, os ouvintes de música das dez faixas mais ming, o sertanejo tem dois
sertaneja têm entre 25 e 34 tocadas, sete são desse gêneros concorrentes: o funk
anos, são predominantemen- gênero (74%). e o pop. No YouTube, o funk
te da classe C (52%), têm o domina os principais lugares
diploma do ensino fundamental e estão da lista (55%). No ranking do Spotify, o ser-
majoritariamente no interior e nas capitais tanejo (40%) concorre com o pop (32%) e
do Centro-Sul brasileiro. Em sua extensa o funk (22%), conforme o monitoramento
pesquisa de campo, Requena (2016) assis- da Connectmix. E sobre o público consu-
tiu aos shows de Victor & Leo e Fernando midor de música digital? Setenta e cinco
& Sorocaba em São Paulo. Para o autor, os por cento dos usuários do YouTube e 70%
sertanejos têm um público bem mais hete- dos ouvintes do Spotify têm menos de 34
rogêneo do que isso. anos. Por outro lado, entre os radiouvin-
Em relação aos meios de comunicação, tes, apenas 50% compõem tal faixa etária,
o rádio e a internet são os maiores respon- de acordo com os dados do Ibope de 2017.
sáveis pela divulgação dos sertanejos na Das 50 músicas mais executadas no país em
audiência nacional. Em 2017, por exemplo, 2017, em plataformas como Apple Music,
das dez músicas mais tocadas nas emisso- Deezer, Google Play, Napster e Spotify, 20
ras radiofônicas, nove eram do gênero serta- eram sertanejas, 40% ao todo, conforme o
nejo. De acordo com a listagem da Crowley levantamento da empresa BMAT. Segundo
Broadcast Analysis, das cem músicas do o relatório da Federação Internacional da
ranking, 87 eram sertanejas. Segundo os da- Indústria Fonográfica (IFPI, na sigla em
dos da Kantar Ibope Media e da Crowley, a inglês), a indústria fonográfica brasileira
música sertaneja compôs 32% da audiência faturou mais de US$ 295,8 milhões em 2017,
ARTES E CULTURA NO SERTÃO Brian Henrique de Assis Fuentes Requena 91
com 17,9% de crescimento, o maior índice e os romances fortuitos, sem deixar de lado
em mais de uma década. Somos o maior a “sofrência” clássica do gênero. Mas essa
mercado da música na América Latina e o atualização do universo da música sertaneja
nono no ranking mundial. não veio sem custos. O bucolismo não foi
Nos últimos 18 anos, a música se completamente extirpado, porém, concorre
transformou em um negócio milionário no com o hedonismo e o individualismo. O vio-
Brasil. Não foi à toa que alguns sertanejos lão em cordas de aço e o acordeom têm que
se tornaram empreendedores da música competir com os instrumentos eletrifica-
(REQUENA, 2016). Não obstante, o império dos. O investimento em tecnologia digital de
sertanejo se estendeu ainda mais além. Em ponta transformou os shows de música ser-
uma década, o gênero musical tomou a lide- taneja em baladas eletrônicas. Consequen-
rança das listas de arrecadação de direitos temente, tudo isso suscitou a contestação
autorais. De acordo com o Escritório Cen- daqueles que se autorreferenciavam como
tral de Arrecadação e Distribuição (Ecad), defensores da música sertaneja tradicional,
a cantora Marília Mendonça é a artista da caipira, genuinamente de raiz. Na realidade,
vez. Com mais de 300 fonogramas de sua essa defesa de uma suposta autenticidade
autoria, foi a compositora com maior rendi- musical tem atravessado a história social
mento no setor de música ao vivo no ano de do gênero (ALONSO, 2011). Então, temos
2017. Fernando Fakri de Assis “Sorocaba” que voltar ao passado da música sertaneja
foi o líder do ranking em 2016, 2012 e 2011, e para entendê-lo no presente.
vice-líder em 2010 e 2009. Victor Chaves foi
o compositor que mais arrecadou direitos Sobre o universo sertanejo
autorais pelo Ecad entre 2008 e 2009. Interpretar o passado da música ser-
Em um meio tão competitivo quanto o taneja não é uma incumbência simples.
da música sertaneja, sobressaem-se aqueles Seguindo as pistas dadas por Bourdieu
que têm repertório estritamente autoral. E (2004), isso demanda muito exercício de
quem não tem? Em tais casos, é corriqueiro reflexividade sociológica. Primeiramente
que um mesmo compositor seja o autor de porque a bibliografia sobre a música ser-
dezenas de músicas aclamadas nas vozes taneja é relativamente escassa – sendo ela
de outros intérpretes. Geralmente, esses caipira, sertaneja, de raiz, tradicional, mo-
autores são anônimos ou desconhecidos derna, romântica ou universitária. Quan-
do grande público, mas movimentam um do existente, os autores dão depoimentos
mercado bem lucrativo de compra e venda acusatórios, apoiados em argumentos nor-
de composições na música sertaneja. De- mativos. Na maior parte das vezes, esse
pois do relâmpago do movimento univer- mal-estar consubstanciava um diagnósti-
sitário, que tanto atraiu a audiência jovem co comum: música caipira não era sinôni-
e urbana, alguns sertanejos têm apostado ma de música sertaneja – ainda que parte
em enredos mais modernos, como a farra, as dos intelectuais e artistas aceitasse a pri-
festas, as baladas, a bebedeira, a embriaguez meira como legítima porta-voz do povo e a
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Referências
OLIVEIRA, Allan de Paula. Miguilim foi pra cidade ser cantor: uma antropologia
da música sertaneja. Tese de doutorado em antropologia. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), 2009.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
VILELA, Ivan. Cantando a própria história. Tese de doutorado em psicologia. São Paulo:
Universidade de São Paulo (USP), 2011.
Programas de TV
BEM SERTANEJO. Michel Teló mostra negócio milionário que a música sertaneja
movimenta. Fantástico, Rede Globo, 19 out. 2014.
Websites
Connectmix: <https://www.connectmix.com>.