Trabalho Mestrado PDF
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
CURSO DE TEOLOGIA
Porto Alegre
2018
VANDERLEI MENGUE BOCK
Porto Alegre
2018
VANDERLEI MENGUE BOCK
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Prof. Dr. Leomar Antônio Brustolin
(Orientador – PPGTeo/PUCRS)
____________________________________________
Prof. Dr. Érico João Hammes
(PPGTeo/PUCRS)
____________________________________________
Prof. Dr. Urbano Zilles
(PPGTeo/PUCRS)
Porto Alegre
2018
AGRADECIMENTOS
O objetivo da dissertação é refletir sobre o culto aos mortos como lugar teológico. O trabalho
foi desenvolvido com pesquisa bibliográfica, nucleada pelo tratado De Cura pro Mortuis
Gerenda (O Cuidado Devido aos Mortos) escrito por Santo Agostinho em 421, como
resposta à consulta feita pelo bispo Paulino de Nola, a respeito da vantagem de se sepultar um
cristão junto ao túmulo de um santo ou mártir. Esta dissertação é composta de três partes. Na
primeira, aborda-se o significado do culto aos mortos na fé cristã, passando pelos conceitos de
oração, reverência e comunhão dos santos à luz da Tradição e do Magistério da Igreja. Na
segunda parte, apresentam-se os aspectos importantes a respeito do culto aos mortos em Santo
Agostinho; especialmente a mediação entre vivos e mortos, a teologia agostiniana sobre a
morte e o significado do corpo nessa escatologia. A terceira parte reflete sobre o culto aos
mortos como lugar teológico. Aborda o sentido teológico da morte, a liturgia da morte, a
sacralidade do cadáver, o ritual de exéquias e o sentido da missa de sétimo dia, demonstrando
que esse culto favorece aos mortos pela oração, comunhão dos santos, a importância do
purgatório e as indulgências, culminado na ressurreição da carne.
The purpose of this paper is to reflect on the cult of the dead as theological locus. Our
bibliographic research has its foundation on Saint Augustine`s treatise De Cura pro Mortuis
Gerenda (On Care to be Had for the Dead) written in 421, in response to a query raised by
bishop Pauline of Nola regarding the advantage of burying a christian near the grave of a saint
or martyr. This paper is divided into three parts. The first deals with the meaning of the cult of
the dead in the christian faith, including the concepts of prayer, reverence and the
Communion of Saints in the light of the Tradition and Magisterium of the Church. In the
second part, we present the key aspects regarding the cult of the dead in St. Augustine,
especially the mediation between the living and the dead, augustinian theology about death
and the meaning of the body according to his eschatology. The third part reflects on the cult
of the dead as theological locus. It addresses the theological meaning of death, the liturgy of
death, the sacredness of the corpse, the funeral celebrations and the meaning of the 7 th day
Requiem Mass, demonstrating that such cult favors the dead through prayer, the Communion
of Saints, the importance of purgatory and indulgences, culminating in the resurrection of the
body.
Lo scopo della tesi è di riflettere sul culto dei morti come luogo teologico. Il lavoro è stato
sviluppato con ricerca bibliografica centrata nel trattato De Cura pro Mortuis Gerenda (La
cura dei morti) scritto da Sant'Agostino nel 421, in risposta alla consultazione fatta dal
vescovo Paulino de Nola, sul vantaggio di seppellire un cristiano vicino alla tomba di un santo
o martire. Questa tesi è composta da tre parti. La prima parte si riferisce al significato del
culto dei morti nella fede cristiana, attraverso i concetti di preghiera, riverenza e comunione
dei santi alla luce della Tradizione e del Magistero della Chiesa. Nella seconda parte vengono
presentati gli aspetti importanti sul culto dei morti in Sant'Agostino; specialmente la
mediazione tra i vivi e i morti, la teologia agostiniana sulla morte e il significato del corpo in
questa escatologia. La terza parte riflette sul culto dei morti come luogo teologico. Affronta il
senso teologico della morte, la liturgia della morte, la sacralità del cadavere (salma), il rituale
delle esequie e il senso della Messa del settimo giorno, dimostrando che questo culto
favorisce ai morti attraverso la preghiera, la comunione dei santi, l'importanza del purgatorio
e indulgenze culmminate nella risurrezione della carne.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 103
LG - Lumem Gentium
INTRODUÇÃO
“O homem é o único animal que acende fogo e enterra seus mortos”.1 Há milhares de
anos, todos os dias, essa cena é repetida pelo homem no mundo. Mesmo sendo algo natural e
cotidiano, a morte sempre provoca nas pessoas diferentes sentimentos: dor, medo, tristeza,
saudade, alívio e esperança. A morte é um instante do qual não conseguimos mensurar a
distância que nos encontramos. Contudo, o homem teme a morte e busca fugir dela.
O presente trabalho tem seu ponto de partida numa pergunta feita por Paulino de
Nola, bispo da Igreja Católica no sul da Itália, para Santo Agostinho no ano de 421: “Ao
morrer, a pessoa falecida sendo sepultada ao lado do túmulo de um mártir ou santo logra
algum favor no céu?”2 A resposta da breve pergunta se realiza pelo tratado De cura pro
mortuis gerenda (O Cuidado Devido aos Mortos).
1
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 43.
2
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 142.
12
O capítulo final, trata do culto aos mortos como lugar teológico, ressaltando o
sentido teológico da morte. Reflete-se como a morte de Cristo e do cristão estão relacionadas
entre si e com o mistério pascal. Em seguida, apresenta-se a liturgia da morte, a sacralidade do
cadáver e o culto da memória. Ainda, se busca evidenciar aspectos relacionados com o
velório, as exéquias, o sepultamento, cremação, o cemitério e o columbário. Também reflete
sobre as missas de sétimo dia e o dia de finados, salientando que esse culto favorece aos
mortos na comunhão dos santos na Igreja Celeste e as almas que se encontram no purgatório
sendo purificadas. A importância da oração pelos mortos e das indulgências, finalizando na
pedra fundamental da fé cristã, a ressurreição da carne.
Diante do mistério da vida e da morte, somente pelo dom da fé se pode afirmar que
para ressuscitar com Cristo, é preciso antes morrer com Ele e permitir que esse corpo e alma
possam ir habitar junto Dele. Crendo que a morte é uma transformação realizada por Cristo.
Morte e transformação que Ele próprio sofreu modelarmente. Pois, para os que creem,
conforme diz a prefácio da missa dos fiéis defuntos I, “a vida não é tirada, mas
transformada”3 desfazendo esse corpo mortal nos será dado um novo corpo glorioso, uma
nova vida na Glória.
3
MISSAL Romano, p. 462.
13
O povo de Israel, contudo, não desenvolveu semelhante culto aos mortos porque a
religião do Antigo Testamento concentrava-se na exaltação da vida. O ato de cultuar os
falecidos foi totalmente excluído do território de Israel. O israelita fala de sua experiência e
relação com Deus, e a morte começa quando Javé abandona o ser humano.7 Por isso,
“devemos reconhecer que nos escritos mais antigos do Antigo Testamento não encontramos
explícita tal escatologia. Reina aí a concepção de que depois da morte o homem passará a uma
existência de trevas”.8
4
TERRA, João. Os mistérios da vida de Jesus, p. 198.
5
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 270.
6
TERRA, João. Os mistérios da vida de Jesus, p. 199.
7
Ibidem, p. 199.
8
ZILLES, Urbano. Esperança para além da morte, p. 39.
14
Diante do acontecimento natural chamado morte, muitos são acometidos por reações
bem diversas. Quanto maior ou menor for o laço de afetividade, maior ou menor será o
sentimento de dor pela perda, influenciando diretamente naquilo que se refere à fé. Cada ente
querido que tomba ao nosso lado se torna uma ferida em nossa vida.
Tudo o que os cristãos podem dizer acerca da morte tem como fonte a
Sagrada Escritura. No Antigo Testamento, a experiência da morte aparece de
maneira profundamente ambígua. Por um lado, ela é vivenciada como o
término natural da vida, por outro lado, é sentida como provação e maldição.
Javé é o Senhor da vida e da morte. (Dt 32, 39).9
Nesse contexto, são escassos os textos bíblicos que professam a crença na vida após
a morte no Antigo Testamento. Não havia esperança de sobrevivência individual após a
morte: “Toda a espiritualidade bíblica, na fase pré-exílica, consiste paradoxalmente na
exaltação da abundância material, da posse da terra, da riqueza, da fecundidade, da
longevidade”10. Todas as graças de Deus, conferidas a Abraão, têm o mesmo princípio: “Que
Deus Todo-Poderoso te confira o orvalho do céu, a fecundidade da terra, a abundância de
trigo e vinho.” (Gn 27,28). Não existindo alusão a uma vida futura, toda e qualquer
recompensa faz referência à vida. O ato de cultuar os mortos exercido no mundo oriental,
forçou Israel a desmitificar a morte para não corromper a pureza da crença em Javé.11
A crença israelita num Deus único não aceitava qualquer forma de reverência aos
mortos, diferentemente de outros povos do mundo antigo. Para o Antigo Testamento não
existe honra alguma na morte. A Lei de Moisés declarava impuro tudo o que, de qualquer
modo, estivesse em contato com a morte: “Quem tocar o cadáver de um homem qualquer será
impuro sete dias.” (Nm 19,11). O medo de se tornar impuro pelo contato com mortos teve
uma grande eficácia sobre o judaísmo. Tocar até mesmo nos objetos utilizados pelos falecidos
tornava o homem impuro:
9
BRUSTOLIN, Leomar; PASA, Fabiane. A morte na fé cristã: uma leitura interdisciplinar, p. 63.
10
TERRA, João. Os mistérios da vida de Jesus, p. 200.
11
Ibidem, p. 200.
15
Os mortos são desprezados, basicamente, por dois grandes motivos: primeiro, torna
impuro quem toca nele, o morto é uma maldição; segundo, os mortos não podem louvar ou
amar a Deus, deixando transparecer que Deus não tem poder sobre aqueles que estão na
região dos mortos. O salmo diz: “Porque no seio da morte não há quem de vós se lembre;
quem vos glorificará na habitação dos mortos?” (Sl 6,6). A morte aniquila tudo e todos. O
Sheol é a terra dos exilados para Deus.
A concepção maior no Antigo Testamento sobre a morte é que ela determina uma
finitude total: morrer é o fim. O corpo para os israelitas é simplesmente um corpo animado,
não consideram a alma presente. A morte caracteriza-se pela perda do ânimo do corpo, e o
morto é um corpo inanimado.
No período dos patriarcas, a morte era algo definitivamente natural, bem como
nascer, casar, ter filhos e envelhecer. Percebe-se nos textos bíblicos essa concepção. “Abraão
morreu numa feliz velhice, idoso e cumulado de anos, e foi reunir-se a seus antepassados.”
(Gn 25,8). Chegar à velhice era uma grande bênção de Deus.
O povo de Israel, a partir dos quatro últimos séculos que antecederam à era cristã,
deixou-se influenciar por uma corrente agnóstica que o levou a uma atitude crítica, cética e
até pessimista quanto à morte. Nos livros sapienciais, emerge a ideia dominante de que a
verdadeira sabedoria consiste em gozar uma longa e pacífica vida na Terra (Pr 3,1-3),
valorizando a qualidade de vida antes da morte, pois o que acontece depois dela não tem o
menor valor.
Um mesmo destino para todos: há uma sorte idêntica para o justo e para o
ímpio, para aquele que é bom como para aquele que é impuro, para o que
oferece sacrifícios como para o que deles se abstém. O homem bom é tratado
como o pecador e o perjuro como o que respeita seu juramento. Entre tudo
que se faz debaixo do sol, é uma desgraça só existir para todos, um mesmo
destino: por isso o espírito dos homens transborda de malícia, a loucura
ocupa o coração deles durante a vida, depois da qual vão para a casa dos
mortos. (Ecl 9,2-3)
No Segundo Livro dos Macabeus, nos versículos finais do Capítulo 12, encontra-se o
primeiro texto explícito do Antigo Testamento que aborda duas importantes questões: “A
esperança na ressurreição daqueles soldados que morreram em defesa da fé; e o valor
expiatório dos sacrifícios e orações oferecidos pelos defuntos.”12
Ainda, o texto bíblico afirma que Judas Macabeu acreditava na ressurreição. Sobre
esse ponto, escreveu o exegeta Abadie:
Depois da batalha, era expressamente proibido ficar com os espólios dos mortos,
tudo deveria ser recolhido e destruído. Nos soldados judeus mortos em batalha, ao terem seu
corpo recolhido para receber sepultura, foi descoberto sob suas túnicas imagens de Jâmnia,
um deus pagão. “Os soldados, portanto, tinham morrido em estado de pecado, um pecado que,
segundo a doutrina da solidariedade, poderia afetar toda a comunidade.” (Js 7,20-26).14
Os textos bíblicos relatam três momentos especiais em que Jesus depara-se com
situações de morte: Jairo que acorre a Jesus intercedendo por sua filha (Mc 5,22.35-43); a
viúva de Naim que perde seu único filho (Lc 7,11-17); e a morte de Lázaro, seu amigo. (Jo
11,1-46). Jesus revoga a morte e lhes restitui a vida. Solidarizado com o sofrimento dessas
pessoas, estanca-lhes a dor. Cristo assume os sofrimentos da humanidade, contudo, salienta a
dimensão da fé na superação do desânimo pela esperança. Ele próprio afirma para motivar:
“Eu sou a Ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá.” (Jo
11,15). A missão de Jesus não era restituir a vida àqueles que morriam em torno dele, mas
14
GONZÁLES, Ángel. LAMADRID, Antonio. GALLEGO, Epifanio. Comentários à Bíblia Litúrgica, p. 403.
15
BRUSTOLIN, Leomar; PASA, Fabiane. A morte na fé cristã: uma leitura interdisciplinar, p. 65.
18
anunciar o Reino de Deus que garante ao homem vida eterna. Sua morte que vence a morte
pela morte, gerando vida. Jesus, que é a Vida, vence a morte na vitória final.
Conclui-se, portanto,
O cuidado devido aos mortos sempre foi uma prática cristã. A era dos primeiros
mártires atesta essa realidade. Santo Irineu de Lion escreveu sobre São Policarpo, Bispo de
Esmirna, discípulo dos Apóstolos que sofreu perseguição por ser cristão. Policarpo, induzido
a renegar a fé, afirma: “Sim, sou Policarpo. Oitenta e seis anos são que completo no serviço
de Jesus Cristo, e Ele nunca me fez mal algum; como poderia injuriá-lo?”17 Após o martírio,
um capitão romano manda queimar o corpo de Policarpo. A comunidade de Esmirna recolheu
os restos mortais de Policarpo como relíquias, um verdadeiro tesouro, para, diante da
sepultura, posteriormente, festejar, fazer memória de sua vida e testemunho cristão.
Tiramos das cinzas os ossos, para nós mais preciosos que ouro e pedrarias, e
depositamo-los num lugar conveniente, onde esperamos poder, com a graça
de Deus, reuni-los, para festejar o dia de seu aniversário, isto é, o dia do seu
martírio, que foi o dia 26 de janeiro de 155 ou 156.18
16
BRUSTOLIN, Leomar; PASA, Fabiane. A morte na fé cristã: uma leitura interdisciplinar, p. 67.
17
LEHMANN, João Batista. Na luz perpétua, p. 78.
18
Ibidem, p. 79.
19
nascimento pelo martírio, em memória dos que combateram antes de nós, preparando-nos e
fortificando-nos para lutas futuras”.19
Quando Jacó morreu, José solicitou aos egípcios que embalsamassem o corpo de seu
pai para transportá-lo para a Terra de Canaã, cumprindo a promessa de sepultá-lo junto com
seu pai Isaac e seus avôs, Abraão e Sara. (Gn 50,13). Percebe-se nesses textos do Livro de
Gênesis uma das tradições: a dos filhos sepultarem seus pais.
Outro texto bíblico importante, dentro desse contexto, é de Tobit, Pai de Tobias que
demonstrou piedoso zelo pelos mortos: “Mas Tobit temia mais a Deus que ao rei e continuava
a levar para sua casa os corpos daqueles que eram assassinados, onde os escondia e os
inumava durante a noite.” (Tb 2,9). Tobit mostra-se um homem fiel a Deus e ensina que as
práticas de esmola, do amor aos pais, da oração e do respeito pelos mortos serão muito bem-
recompensadas por Deus.
19
GOMES, Cirilo. Antologia dos santos padres, p. 55.
20
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 186.
20
No livro Atos dos Apóstolos, igualmente se atesta que, após a lapidação de Estêvão,
seus irmãos recolheram seu corpo e lhe deram sepultura. (At 8,2). Era costume dos cristãos
recolherem os restos mortais dos mártires e sepultá-los com veneração. Assim, o ato de
sepultar era visto pela Igreja, como sendo uma grandiosa obra de caridade não importando o
credo religioso do morto. Caso um diácono da Igreja primitiva morasse numa região litorânea,
deveria patrulhar a costa com a finalidade de encontrar náufragos, vesti-los e lhes conferir
sepultura.22 Já na cidade de Atenas, quem se deparasse com um morto na rua era responsável
pelo seu enterro.23 O direito ao enterro e a um lugar no cemitério tornam-se norma obrigatória
a partir do cristianismo.
O primeiro relato escrito sobre o uso de cemitérios foi de Tertuliano, por volta do
ano 180, abordando, principalmente, os cemitérios subterrâneos, conhecidos como
catacumbas. Esse tipo de cemitério somente foi possível por conta do solo vulcânico, que é de
fácil escavação e da boa resistência das paredes internas, já que esse tipo de solo não servia
21
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré, p. 207.
22
HAMMAN, Adalbert. A vida cotidiana dos primeiros cristãos, p. 140.
23
Ibidem, p. 140.
24
FASOLA, Umberto. Verbete: Cemitério. In: DI BERNARDINO, Angelo. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs, p. 279.
21
para o cultivo e, por isso, era bem-adequado a essa finalidade. Na Antiguidade, a sepultura
assumia um sentido mais religioso que familiar ou social.25
Um fator que contribuiu para o desenvolvimento dos cemitérios cristãos foi o culto
aos mártires, pois o desejo era sepultar pessoas perto do túmulo de santos. Embora tenham
ocorrido abusos no século V com a venda de lugares “privilegiados”, isto é, próximos de
túmulos chamados retrosanctos, a Igreja interveio proibindo o comércio e tornando esses
cemitérios verdadeiros santuários. A partir do século IX, com saques reiterados de bárbaros,
as relíquias dos santos foram retiradas das catacumbas e transferidas para igrejas dentro das
cidades, ocorrendo o declínio e o esquecimento desses locais de culto.27
25
HAMMAN, Adalbert. A vida cotidiana dos primeiros cristãos, p. 139.
26
FASOLA, Umberto. Verbete: Cemitério. In: DI BERNARDINO, Angelo. Dicionário patrístico e de
antiguidades cristãs, p. 280.
27
Ibidem, p. 283.
28
HAMMAN, Adalbert. A vida cotidiana dos primeiros cristãos, p. 140.
22
Foi sobretudo a partir do século XIV que começam a surgir associações de leigos –
as irmandades – para ajudar os clérigos no culto e sepultamento dos mortos.30 No final da
Idade Média, as irmandades dão destaque à obra de misericórdia de sepultar os mortos, com a
finalidade de sensibilizar o coração dos homens para sua importância: mortuus sepellitur (os
mortos serão enterrados).31 O ato de enterrar os mortos é colocado no mesmo nível de
caridade que alimentar os famintos, abrigar os peregrinos, vestir os nus, visitar os doentes e
encarcerados.
29
HAMMAN, Adalbert. A vida cotidiana dos primeiros cristãos, p. 140.
30
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 243.
31
Ibidem, p. 245.
32
Ibidem, p. 246.
33
Ibidem, p. 247.
23
“Um amor que não dura, não existe em sua verdade absoluta”.34 Praticamente todas
as pessoas já viveram ou viverão a experiência de perderem alguém próximo, amado. A
responsável por essa perda é a morte, que é a ladra de todas as pessoas. Diante da morte do
outro, quando o ser humano silencia, não interage e desiste de viver, são sintomas
representativos que ele próprio também foi envolvido pela morte, de certa forma, um
morrer.35
O teólogo espanhol, Olegario de Cardedal, analisa em sua obra Sobre la muerte, que
quatro atitudes são imprescindíveis diante da morte: pensar, lamentar, falar e integrar, e que
essas quatro atitudes levam ao chorar.36 O amor gera esperança, logo, a esperança possibilita
que o homem não agonize num silêncio destruidor. Olegario de Cardedal salienta ainda que
primeiro grande passo deve ser ‘aceitar’ a morte, tanto pessoal como da pessoa amada, pois a
morte não deve ser olhada como um azar do destino, mas consequência da existência feita por
um amor criador.37
O amor deve gerar vida. Poderia um amor criador gerar a morte? No Antigo
Testamento no livro do Gênesis, está escrito: “Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança” (Gn 1,26). Depois no Novo Testamento, “o Verbo se fez carne e habitou entre
nós” (Jo 1,14). Deus chega ao seu extremo de fazer seu próprio Filho assumir a imagem do
homem no mundo e sendo solidários com eles o faz passar pela morte.38 Deus não cria a
morte, pelo contrário, da morte retira a vida. Realiza esse evento para salvar sua criação por
meio de um intercambio, colocando na vida de Jesus um lugar pessoal em que Deus assume o
destino do homem e o homem compartilha seu destino com Deus.39 Podendo perceber-se
34
CARDEDAL, Olegario González de. Sobre la muerte, p. 15.
35
Ibidem, p. 15.
36
Ibidem, p. 16.
37
Ibidem, p. 17.
38
Ibidem, p. 17.
39
Ibidem, p. 18.
24
agora como a encarnação de Deus e a morte do homem estão interligadas que uma não pode
ser compreendida sem a outra.40
Encarnación y muerte son para el Hijo dos tramos del mismo camino. Y uno
no sabe de cuál admirarse más porque no sabe cuál es la mayor distancia: si
del ser a la muerte o de la divinidad a la humanidade.41
Agora, antes de começar a pensar sobre a morte, deve-se consentir ‘ela’ como um
fato soberano sobre a própria vida. Deve ocorrer um verdadeiro consentimento da pessoa e
não um mero aceitar pela razão, pois o simples aceitar é subjetivo não transforma a raiz da
pessoa. Diferente do consentimento que nasce na raiz da alma e transforma o ser da pessoa na
sua essência.43
Em seu texto Olegario de Cardedal, questiona como pode ser possível uma educação
humana e cristã sem descobrir com admiração e assombro o próprio fato da vida ser ao
mesmo tempo gratidão e ilusão. Gratidão pela graça criadora de Deus e ilusão pelo grande
40
CARDEDAL, Olegario González de. Sobre la muerte, p. 18.
41
Ibidem, p. 18.
42
Ibidem, p. 19.
43
Ibidem, p. 19.
44
Ibidem, p. 20.
25
medo gerado pela morte, pois, na verdade, a morte é condição da vida que conduz para a
graça criadora.45 Isso porque a vida carrega consigo uma vontade inata de afirmar, continuar e
consumar sua existência contra a morte.46
Viver é uma graça incorruptível e uma atração secreta que a própria existência
carrega, mesmo vivendo entre problemas reais. A vida é meio que “abre a porta da esperança
antes da morte. O grande salto para a existência foi colocado com vida e a morte não pode
anulá-la”.47 Consentir com a morte é consentir com a gratuidade da existência, aceitar a morte
através da porta estreita da própria impossibilidade de ser, perdoar e prolongar o destino,
como coloca Olegario de Cardedal, “pois a quem foi dado o poder para experimentar viver
como graça, pode pensar e, acima de tudo, pode esperar perceber também morrer como
graça”.48
O autor ainda descreve a existência de uma sequência de atitudes que iniciam com o
‘pensar’ e culminam no ‘chorar’. Afirma que o choro e riso trafegam no coração humano no
movimento alternado de sentidos, trabalhando as alegrias e tristezas, emoções constitutivas da
pessoa. O Livro do Eclesiastes confirma esse ensinamento com propriedade, “para tudo há um
tempo na vida[...] tempo para chorar, e tempo para sorrir” (cf Ecl 3,1-4). Chorar bem como
sorrir é uma necessidade do homem, emergindo aquilo que em si transborda para a sua
natureza somática, liberando seu impulso pessoal além do que seu corpo dá de si mesmo. O
45
CARDEDAL, Olegario González de. Sobre la muerte, p. 20.
46
Ibidem, p. 21.
47
Ibidem, p. 21.
48
Ibidem, p. 21. “...a quien le há sido dado poder experimentar el vivir como gracia, puede pensar y, sobre
todo, puede esperar realizar el morir también como gracia”.
49
Ibidem, p. 21.
26
choro, o sorriso, a ironia e o humor são flores do espírito que brotam da matéria humana e
tornam-se transparentes para uma dimensão total e visível de todos.50
50
CARDEDAL, Olegario González de. Sobre la muerte, p. 27.
51
Ibidem, p. 28.
52
Ibidem, p. 28.
53
Ibidem, p. 30.
54
Ibidem, p. 31.
55
Ibidem, p. 34.
56
Ibidem, p. 40.
27
1.2.2 O luto
A morte gera uma sequência de atos para os vivos, pois ela é relacional. O primeiro
estágio é o velório que visa iniciar a elaboração da perda para posteriormente viver o luto. O
velar torna-se tarefa dos vivos. A existência humana é feita de encontros e desencontros,
chegadas e partidas. A morte torna-se uma partida forçosa, viagem sem volta em direção à
eternidade, sinal de saída do mundo dos viventes. O velório e o sepultamento consistem num
grande rito de despedida dos vivos em relação aos mortos. O velório pertence ao mundo dos
viventes, pois é neste momento que terão a oportunidade de iniciar a elaboração do luto, de
forma mais sensível.
Torna-se evidente que suprimir o luto não se deve à vaidade dos familiares somente,
mas a uma determinação impiedosa da sociedade. Esta se recusa a participar da emoção do
enlutado, uma maneira de negar a presença da morte, mesmo admitindo, em princípio, sua
realidade. O período do luto já não é o do silêncio do enlutado no meio de um ambiente
57
ARIÈS, Phipille. O homem diante da morte, p. 780.
28
Sem que fosse percebido, foi essa forma de luto que se encarregou, no século XIX,
de outra função. Conservou por algum tempo seu papel social, mas apareceu cada vez mais
como meio de expressão de uma dor imensa e a possibilidade, para os familiares, de participar
dessa dor e de socorrer o sobrevivente.
Com o tempo, o luto chega ao fim. A lembrança deixa de ser somente a dor para se
tornar referência para o presente e o futuro. Ausência que ao mesmo tempo se faz companhia.
Cabe à sociedade ajudar o enlutado a vencer essas etapas, porque ele não tem forças para
fazê-lo sozinho, sendo o luto condição necessária para acolher a morte dos entes queridos.
O luto é sinônimo de perda, tornando-se uma dor indesejável pelas pessoas. A Bíblia
está repleta de histórias de homens e mulheres que passaram por aflições, dificuldades, luto,
doenças e perdas. Encontramos na Sagrada Escritura o relato da vida de pessoas amadas por
Deus que enfrentaram os mais variados tipos de sofrimentos, pessoas como Abraão, José,
Moisés, Ana, Davi, Daniel, Oseias, Maria, Estevão, Paulo, etc. O próprio Jesus, embora fosse
Deus, nunca houvesse pecado, também conheceu a dor e o sofrimento: “A minha alma está
profundamente triste, uma tristeza mortal” (Mt 26,38).
O sofrimento não exclui ninguém. Jesus Cristo advertiu e que não teríamos
facilidades: “Neste mundo vocês terão aflições” (Jo 16,33). Contudo, mesmo conscientes,
quando o sofrimento alcança a pessoa, não há como evitar a tristeza e a dor.
58
ARIÈS, Phipille. O homem diante da morte, p. 785.
29
sua própria consciência pública de morte”.59 Na sua etimologia, o vocábulo luto vem do verbo
latino lugere, cujo primeiro significado é chorar, tendo a forma do particípio do passado,
luctus, que significa as manifestações desse estado de alma causado principalmente pela
morte dos entes queridos, familiares e amigos.60 O choro doloroso, especialmente das
crianças, permanece gravado na memória das pessoas, causando sofrimento maior. Dimensão
de certa forma natural que se tornou traumática. Motivos pelos quais a sociedade
contemporânea passou a lidar com a morte de forma diferente, sobretudo evitando que as
crianças sejam levadas ao cemitério. Atualmente essa situação também se estende as pessoas
mais idosas.
Não existe prestigio social em demonstrar publicamente o luto. Aliás, o luto foi
escorraçado como uma persona non grata pela sociedade. Quando há morte de autoridades e
personalidades sucede alguma mensagem de pesar, minuto de silêncio ou bandeiras a meio-
mastro, simples formalidades. O luto familiar vem sendo modificado e moldado pela
sociedade que o nega. “A sociedade moderna não dispõe de tempo nem de espaço para o luto,
assim também não tem mais respeito pelos enlutados e nem os protege”.61
Embora a morte esperada nos abale menos do que aquela para qual não
estamos preparados; embora, no caso de uma doença fatal, o maior choque
nos atinja quando sabemos do diagnóstico da doença; embora, algum tempo
antes da morte da pessoa amada, façamos uma preparação do ‘luto
antecipado’, no começo é sempre difícil, a despeito de toda a preparação,
assimilar a ideia da morte da pessoa amada. A morte é um dos fatos da vida
que reconhecemos mais com a mente do que com o coração. E geralmente,
enquanto nosso intelecto reconhece a perda, o resto de nós continua tentando
arduamente negar o fato.62
sofrimento sem apoio social. As pessoas marcadas recentemente pela perda de um filho,
esposo, genitores, dificilmente recebem apoio das outras pessoas, que, na verdade, estando
subjugadas, não desejam confrontar esse sofrimento para não relembrarem seu próprio
sofrimento. A dor do outro, torna-se novamente minha dor.
63
SCHÖNWEISS, H. Verbete Oração. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário internacional de
teologia do Novo Testamento, p. 1441.
64
Ibidem, p. 1442.
65
Ibidem, p. 1443.
31
meio da oração. Mas é por meio de nosso primeiro pai na fé – Abraão – que a oração é
revelada no Antigo Testamento (CCE, n. 2569). Um coração que perscruta a vontade de Deus
é essencial na oração. Deus, porém, solicita a Abraão (Gn 22, 1-19) uma prova de fidelidade
na fé: que sacrifique seu filho primogênito Isaac. Abraão sacrificaria seu filho para perseverar
na fidelidade a Deus, porém, no último momento, Deus lhe diz: “Não estendas a tua mão
contra o menino, e não lhe faças nada. Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu
próprio filho, teu único filho” (Gn 22,12).
Ao chegar àquele lugar, disse-lhes: Orai para que não caiais em tentação.
Depois se afastou deles à distância de um tiro de pedra e, ajoelhando-se,
orava: Pai, se é de teu agrado, afasta de mim este cálice! Não se faça,
todavia, a minha vontade, mas sim a tua. Apareceu-lhe então um anjo do céu
para confortá-lo. Ele entrou em agonia e orava ainda com mais instância, e
seu suor tornou-se como gotas de sangue a escorrer pela terra. Depois de ter
rezado, levantou-se, foi ter com os discípulos e achou-os adormecidos de
tristeza. Disse-lhes: Por que dormis? Levantai-vos, orai, para não cairdes em
tentação. (Lc 22, 40-46).
O primeiro ensinamento de Jesus sobre a oração é que ela deve ser feita com
confiança, visto que orar desconfiando de Deus enfraquece a súplica. A relação de Deus
conosco na oração é paterna (Mt 7,7-11). A primitiva oração cristã era feita em nome de
Jesus, pois “permanecer em Jesus constitui a base para a confiança na oração”. 66 Jesus é o
eterno sumo sacerdote que intercede pelos que se aproximam de Deus por meio dele (Hb 7,
25). As comunidades cristãs primitivas imitavam as sinagogas, cujo exemplo seguiram na
recitação das orações comuns dos judeus (Mt 18,19). A posição era de joelhos ou de pé.67
Provavelmente, eles usavam a posição comum do Antigo Testamento e também usual entre
gregos e romanos, isto é, de braços estendidos. Nos textos bíblicos, podem ser encontrados os
66
BROWN, Raymond; FITZMYER, Joseph; MURPHY, Roland. Novo comentário bíblico de São Jerônimo –
Novo Testamento. In: Pheme Perkins, n. 189, p. 798.
67
JUNGMANN, Josef. Missarum sollemnia, p. 248.
32
mais diversos motivos pelos quais as pessoas se dirigiam a Deus em oração, de uma simples
viagem até a saúde de algum doente.
Diante da necessidade, nasce o desejo. Foi assim com os discípulos de Jesus, quando
lhe pediram que os ensinasse a rezar. E o Mestre ensinou a oração do Pai-Nosso (Mt 6,9-13).
Noutra ocasião, enquanto Jesus caminhava com eles, fez a seguinte afirmação: “Tudo o que
pedirdes na oração, crede que já o recebestes, e vos será concedido.” (Mc 11,24). Santo
Agostinho escreveu: “Deus não nos aconselharia a pedir se não quisesse dar.”68 O catecismo
diz: “A oração é a elevação da alma a Deus ou o pedido a Deus dos bens convenientes.”69 O
verbo pedir tem origem latina, vem de prex,70 “prece, pedido” e, originalmente, se referia ao
ato de erguer, em pé, os braços retos para a divindade no céu, juntar as palmas das mãos e
enviar seu pedido. São Tomás de Aquino ensina, na Suma Teológica,71 que a oração é desejo
e, para que ela possa ter êxito, são necessárias quatro características: 1) rezar por si mesmo; 2)
pedir bens espirituais; 3) rezar com persistência; e 4) rezar com piedade.
Oração não é falar de Deus, mas falar com Deus. A oração torna-se teofania,
encontro com Deus, e manifestação de seu amor por nós. É um dos atos mais sublimes da fé.
Como dizia Santa Teresa de Ávila: “o essencial não é pensar muito, é amar muito. Rezar é
muito mais do que pensar: é cultivar um relacionamento de amor com Deus”.72 Afirmou ainda
São Gregório de Nisa: “Afasta-se de Deus quem não se une a ele em oração.”73 Oração é
aproximar o coração sedento da fonte que sacia toda sede e alivia toda dor. “Quando o homem
está rezando, subitamente, está entregando sua alma, seu coração para Deus.”74 A oração não
é um subterfúgio para enganar Deus, mas, sobretudo, um ato de amor e confiança em Deus.
São Tomás de Aquino cita Sêneca dizendo: “Nada se compra mais caro do que aquilo que se
compra pelas preces.”75 Um dos grandes escritores eclesiásticos do século III, Tertuliano,
explica que, na oração, existe uma unidade:
68
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Livro VI, questão 83, art. 15, p. 332.
69
JOÃO DAMASCENO. De fide orthodoxaz, 3,24. In: CATECISMO da Igreja Católica, n. 2559.
70
Origem da palavra pedir: Site de etimologia. Disponível em: <http://origemdapalavra.com.br/palavras/pedir>.
Acesso em: 10 abr. 2017.
71
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Livro VI, questão 83, art. 15, p. 333.
72
TERESA DE ÁVILA. Castelos interiores ou moradas, p. 23.
73
BONDAN, Fernando José. Lecionário patrístico dominical, p. 737.
74
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Livro VI, questão 83, art. 3, p. 309.
75
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. Livro VI, questão 83, art. 2, p. 306.
33
Diante da morte, fazer uma sepultura e rezar, dizia Santo Agostinho,78 é crer na
ressurreição. Pois, a tradição de rezar pelos mortos sempre esteve presente na Igreja como
símbolo de fé e esperança. Jesus, ao deixar o novo mandamento, “amai-vos uns aos outros”
(Jo 15,12), faz menção de amar, não menciona amar somente os vivos. Subentende-se que
devemos amar todos, logo, a oração é uma expressão de amor dos vivos pelos mortos.
Como afirmou São João Clímaco, no século VII: “A oração é mãe e filha das
lágrimas” (DH 856). Uma oração regada com lágrimas e carregada de esperança e afeto é um
duplo bálsamo para quem reza e para quem é rezada, um ato de consolação, um ato de
76
HAMMAN, Adalbert. Os padres da Igreja, p. 72.
77
SANTO AGOSTINHO, Serm. 56,6,9: PL 38,381. In: CATECISMO da Igreja Católica, n. 2.559.
78
TERRA, João. Os mistérios da vida de Jesus. p. 198.
79
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga, p. 29.
80
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 194.
34
esperança. Quando cristãos rendem culto aos mortos, é porque entendem que os defuntos
sobrevivem para além de seu desaparecimento.
Uma importante inscrição foi encontrada pelo arqueólogo William Ransey, em 1883,
em em Hierápolis – Turquia. A inscrição da lápide é considerada pelos estudiosos, uma das
mais importantes da Antiguidade cristã. Confeccionada na Ásia Menor, em torno do ano 190,
por Abércio, Bispo de Hierápolis, atualmente se encontra no museu da Basílica do Latrão, em
Roma. Nela, consta o seguinte: “Construí este túmulo durante a vida, para que meu corpo –
num dia – pudesse repousar. Chamo-me Abércio: Sou discípulo de um Santo Pastor (Jesus
Cristo) [...] O irmão que o ler por acaso, ore por Abércio.”81
Cirilo continua sua catequese colocando o exemplo de um rei que expulsa de seu país
os maus súditos, súditos que eram contra a pessoa do rei. Contudo, quando outros súditos
fiéis, ornando uma coroa, a ofertam ao rei pedindo pelos seus irmãos, porventura o rei não irá
perdoar?
81
GOMES, Cirilo. Antologia dos santos padres, p. 97.
82
FIGUEIREDO, Fernando. Introdução à patrística, p. 184.
83
GOMES, Cirilo. Antologia dos santos padres, p. 229.
35
Afirma Cirilo:
Da mesma forma, nós oferecemos a Deus preces pelos mortos, sejam, ou não
pecadores, oferecemos não coroa tecida por nossas mãos, mas Cristo
santificado por nossos pecados; assim, tornamos propício o Deus amigo dos
homens aos pecados nossos e deles.84
Outro importante texto da patrística foi escrito por Epifânio no século IV. Em sua
obra O Panarium, remédio contra todas as heresias, é possível localizar a tradição de orar
pelos defuntos:
Sobre o rito de ler os nomes dos defuntos (no sacrifício) perguntamos: que
há de mais útil? Que há de mais conveniente, de mais proveitoso e mais
admirável que todos os presentes creiam viverem ainda os defuntos, não
deixarem de existir, e sim existirem ao lado do Senhor? Como isso se
professa uma doutrina piedosa: os que oram por seus irmãos defuntos
abrigam a esperança (de que vivem), como se apenas casualmente
estivessem longe. E sua oração ajuda aos defuntos, mesmo se por ela não
fiquem apagadas todas as dívidas... A Igreja deve guardar este costume,
recebido como tradição dos Pais.85
Efrém, o sírio, em seu testamento, solicita que orem por ele e cita os Livros dos
Macabeus como evidência de que as orações dos vivos podem ajudar a expiar os pecados dos
falecidos: “Transcorridos trinta dias da minha morte, oferecei por mim o Santo Sacrifício,
suba aos mortos o sacrifício celebrado pelos vivos.”86
Não devemos chorar a morte dos entes queridos. Não é certo lamentar-se
como particular desgraça o que se sabe atingir a todos... Mesmo nós,
cristãos, esquecemos o dia do nascimento de nossos santos e festejamos o de
84
GOMES, Cirilo. Antologia dos santos padres, p. 229.
85
Ibidem, p. 303.
86
ALTANER, Berthold. Patrologia, p. 252.
36
seu retorno à pátria... A morte, com efeito, é comum a todos, sem distinção
de pobres e ricos... Considero, porém, um ultraje que se faz à piedosa
memória dos defuntos ao considerá-los perdidos e preferis esquecê-los antes
que confortá-los com nossos sufrágios.87
Não se pode negar que as almas dos defuntos são aliviadas pela piedade dos
seus familiares vivos, quando por eles se oferece o sacrifício mediador ou se
oferecem na igreja. Mas essas coisas dão proveito àqueles que, quando
viviam, mereceram que depois, pudessem dar-lhes proveito.89
Segundo Ariès: “a Igreja substituiu as refeições funerárias pela celebração nos altares
situados no cemitério”.90 A celebração dessas referidas missas eram liturgias em
agradecimento a Deus por aqueles que morreram em unidade com a Igreja e, assim, podiam
87
GOMES, Cirilo. Antologia dos santos padres, p. 322.
88
FIGUEIREDO, Fernando. Introdução à patrística, p. 184.
89
Ibidem, p. 184.
90
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 194.
37
ser sepultados junto com mártires. O surgimento de tal piedade popular é fruto da tradição
pagã de realizarem refeições nas proximidades de túmulos. Com o passar do tempo, ocorreu
uma mudança nesse ritualismo e inicia um ato de fazer memória pelos mortos.91
91
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 195.
92
JUNGMANN, Josef. Missarum sollemnia, p. 694.
93
Ibidem, p. 695.
94
Ibidem, p. 697.
95
JUNGMANN, Josef. Missarum sollemnia, p. 694.
38
O direito a essa prática – citar os nomes dos considerados justos – provém dos
tempos antigos da Igreja, ou seja, somente poderiam citar na liturgia aqueles que estavam em
comunhão com a Igreja, e, a quem tivera uma vida duvidosa, era negado. Em todos os casos,
somente as pessoas consideradas puras e santas podiam ser nominadas na celebração. Com o
passar do tempo, o círculo foi sendo ampliado para todas as pessoas falecidas, não importando
se eram consideradas justas ou pecadoras. Começa-se a conceber a ideia de um Deus mais
misericordioso e de a pessoa poder ser purificada depois da morte.
96
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 197.
97
Ibidem, p. 204.
98
Ibidem, p. 205.
39
ou missa pro defunctis (pelos mortos) antes do sepultamento. Atualmente, esse costume
permanece em algumas comunidades.
99
MISSAL Romano. Sé Apostólica. São Paulo: Paulinas; Petrópolis: Vozes, 1972.
100
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 206.
101
Ibidem, p. 187.
102
Ibidem, p. 187.
40
Caso utilize incenso, afirma: “Teu corpo foi templo de Deus. O Senhor te dê a eterna alegria
de viver em sua casa.” Depois, lançando terra sobre o esquife, menciona: “Da terra foste
tirado e a terra voltas. Mas o Senhor te ressuscitará no último dia.” Logo após, no túmulo,
coloca a cruz e pronuncia: “A cruz de nosso Senhor Jesus Cristo seja para nós sinal de vida e
ressurreição.”103
Sendo Deus a fonte e origem de toda bênção, mesmo depois da morte, os vivos
rogam a Deus por aqueles que adormeceram, pois a liturgia dos funerais é uma celebração do
mistério pascal de Cristo. Nessa recomendação, a Igreja pede que seus filhos, incorporados
pelo Batismo em Cristo morto e ressuscitado, com Ele passem da morte à vida e, devidamente
purificados na alma, sejam associados aos santos e eleitos no céu, enquanto o corpo aguarda a
bem-aventurada esperança da vinda de Cristo e a ressurreição dos mortos.
O rito de exéquias é composto por vários momentos, entre eles a oração na sepultura,
sendo o ato final de despedida para com os mortos. Abençoar a sepultura e rogar a Deus (de
quem procede toda bênção) que o corpo que naquele local será sepultado possa repousar
enquanto espera a ressurreição final.
103
CNBB. Nossa Páscoa: Subsídios para a celebração da esperança, p. 84.
104
FONSECA, Joaquim. Música ritual de exéquias, p. 130.
105
BRUSTOLIN, Leomar. Ritual de exéquias, p. 31.
41
O Papa Leão XIII afirma, na Encíclica Mirae Caritatis, em maio de 1902, que a
comunhão dos santos não é outra coisa senão a comunhão de auxílio, de expiação, de preces,
de benefícios entre os fiéis, já na pátria celeste, ou entregues ao fogo purificador ou ainda
peregrinando na Terra, construindo, todos, uma só cidade, cuja cabeça é Cristo, e cuja forma é
a caridade.106
Para melhor compreender o que se quer expressar com a “comunhão dos santos”,
recorremos à eclesiologia que consta na Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio
Vaticano II, que deriva da eclesiologia da Constituição Dogmática Lumen Gentium do mesmo
concílio. Nela, estão contidos três aspectos fundamentais: a) a concepção de Igreja, que situa
o documento no âmbito doutrinal; b) a relação entre a história da salvação e a história dos
homens; e c) a missão da Igreja no mundo de hoje.
A Igreja, em sendo uma instituição divina na Terra, chama todos em Cristo para
alcançarem a santidade por meio dela que se consumará na glória celeste.107 A Igreja, neste
mundo, é a Igreja Peregrina. O Capítulo 2 da Gaudium et Spes afirma que a Igreja caminha,
pela cruz, “para a Luz que não conhece acaso”.108
Essa constituição pastoral revela que a Igreja é una e constituída por todos os que são
de Cristo, ficando evidente que ela compreende não só os seres humanos que vivem na Terra,
mas todos os que, no purgatório, se preparam ulteriormente para seu ingresso na glória,109
unindo-se à Igreja Celeste. A novidade da Gaudium et Spes é a dimensão comunitária e
universal da escatologia. Em documentos anteriores da Igreja, o tema escatologia era tratado
de forma individual. Deixou de ser um tema da região subdesenvolvida da teologia. 110 No
106
La comunione dei santi non è altro che una scambievole partecipazione di aiuto, di espiazione, di preghiere,
di benefici, tra i fedeli, o trionfanti nella celeste patria, o penanti nel fuoco del purgatorio. O ancora
pellegrinanti in terra, dai quali risulta una sola città, che ha Cristo per capo, e la carità per forma,
sappiamo poi dalla fede che, sebbene l’augusto sacrificio solo a Dio possa offrirsi, si può pure celebrare in
onore dei santi che regnano in cielo con Dio, che li ha coronati", al fine di ottenere il loro patrocinio, e
anche, come sappiamo dalla tradizione apostolica, per cancellare le macchie dei fratelli, che già morti nel
Signore, non siano ancora interamente purificati. (LEÃO XIII. Mirae Caritatis. Vaticano: [1902]).
Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/it/encyclicals/documents/hf_l-
xiii_enc_28051902_mirae-caritatis.html>. Acesso em: 10 set. 2017.
107
BARAÚNA, Guilherme. A Igreja do Vaticano II, p. 1.136.
108
COLLANTES, Justo. A fé católica, p. 1.202.
109
BARAÚNA, Guilherme. A Igreja do Vaticano II, p. 1.144.
110
ZILLES, Urbano. Esperança para além da morte, p. 9.
42
Vaticano II, pelo contrário, desloca-se o acento para as últimas realidades nos âmbitos
coletivo, social e até cósmico.
111
KASPER, Walter. A Igreja Católica, p. 120.
43
112
PAPA PAULO VI. Indulgentiarum Doctrina. Vaticano: 1967. Disponível em:
<https://w2.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_constitutions/documents/hf_p-
vi_apc_01011967_indulgentiarum-doctrina.html>. Acesso em: 10 set. 2017.
113
SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Carta sobre algumas questões respeitantes à
escatologia. Vaticano: 1979. Disponível em:
<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19790517_escatol
ogia_po.html>. Acesso em: 13 jun. 2017.
44
114
FALBO, Giovanni. Santa Mônica, p. 121.
115
BROWN, Peter. Santo Agostinho: uma biografia, p. 157.
116
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 255.
45
recebeu, como recompensa por ter sido fiel a Cristo, o prêmio da eternidade. Naquele
contexto, Mônica dirá a Agostinho:
Meu filho, nada mais me atrai nesta vida; não sei o que estou ainda fazendo
aqui, nem por que estou ainda aqui. Já se acabou toda a esperança terrena.
Por um só motivo eu desejava prolongar a vida nesta terra: ver-te católico
antes de eu morrer. Deus me satisfez amplamente, porque te vejo desprezar a
felicidade terrena para servi-lo. Por isso, o que é que estou fazendo aqui?117
Agostinho estava tão paralisado pela situação da mãe, que nem conseguia falar. Seu
irmão Navígio, buscando animar a mãe, dizia-lhe que não havia chegado o último instante,
que todos retornariam para a pátria, e que ela haveria de completar seus dias em Tagaste, terra
onde nascera. Ele comentou com Agostinho sobre o desconforto de sepultar sua mãe em terra
distante da pátria africana. Mônica ouviu o lamento de Navígio e advertiu os dois filhos,
conforme escreveu Santo Agostinho:
Minha mãe repreendeu-o com olhar severo por pensar de tal maneira. E,
voltando-se para mim, disse: “Vê o que ele está dizendo!” E então para nós
dois: “Enterrai este corpo em qualquer lugar, e não vos preocupais com ele.
117
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 257.
118
Ibidem, p. 257.
119
Ibidem, p. 258.
46
O expressivo ensino de Mônica toma assento sob duas bases que terão grande
influência sobre o pensamento e a doutrina de Agostinho. Por isso Bispo de Hipona escreverá
que o sepultamento do corpo pode ser feito em qualquer lugar e não terá influência na
ressurreição final. Ele ensinará também que, ao fazer memória dos finados, é preciso lembrar-
se da pessoa falecida por meio de oração, de modo especial na Celebração Eucarística. Para os
dois pontos a distância não é empecilho, pois para Deus não existe distância, Ele está presente
em todos os lugares.
Depois da morte de Mônica, Agostinho permaneceu por mais dez meses em Roma,
quando conheceu a vida monástica. Retornou a Tagaste, em julho de 388. Lá, fundou um
mosteiro, com seus companheiros, no ano de 391 e, com muita relutância, aceitou o
120
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 258.
121
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 55.
122
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 259.
123
Ibidem, p. 179.
124
DI BERARDINO, A. Verbete Mônica. In: FITZGERALD, Allan. Diccionario de San Agustin. p. 911.
47
sacerdócio. Deixou o mosteiro cinco anos depois para assumir a diocese de Hipona como
bispo. Seu ministério foi exercido com destacada atividade pastoral e literária. Faleceu em sua
diocese, em 28 de agosto de 430, aos 75 anos de idade.
Uma viúva de Hipona, chamada Flora, conseguiu autorização para sepultar seu único
filho Cinérgio, no túmulo de São Félix, em Nola, fato esse que moveria o Bispo Paulino a
questionar Agostinho sobre tal prática piedosa.128
125
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 143.
126
DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova história da Igreja, v. 1, p. 323.
127
Ibidem, v. 1, p. 400.
128
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 153.
48
receba a retribuição do que tiver feito durante sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o
mal.” (2Cor 5,10).
São Paulo indica, nessa passagem, que é antes da morte que se define o que poderá
ser benéfico depois desta vida. O Bispo de Hipona, por sua vez, insiste que enquanto se vive
no corpo mortal, quem realizou obras pias, logrará sufrágio na eternidade. Aquele, entretanto,
que levou uma vida inútil, nada logrará.129 É o estilo de vida que cada qual levou durante sua
existência nesse corpo, que determinará a utilidade ou inutilidade desses auxílios que lhe são
tributados piedosamente após a morte. Santo Agostinho completa: “Portanto, para que o
cuidado tomado em relação a um ser querido depois de sua morte lhe sirva de alguma coisa, é
preciso que esse alguém haja adquirido a faculdade de torná-lo útil no tempo decorrido em
companhia do corpo.”130
129
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 155.
130
Ibidem, p. 156.
131
LIENHARD, Joseph Verbete Paulino de Nola. In: FITZGERALD, Allan. Diccionario de San Agustin. p.
1.008.
132
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 194.
49
Alerta, contudo, que os mortos não encontram ajuda alguma pelo simples fato de
terem aproximado seu esquife do túmulo de algum santo. O que pode ser favorável, nesse
costume, é o fato de que, ao visitar o local onde descansam seus falecidos, os vivos podem
recomendá-los aos santos por intermédio da oração. E acrescenta, porém, que, mesmo não
estando sepultados em lugar sagrado, os mortos não deverão ser privados das orações dos
vivos.133
Ao tratar do tema dessa visita, ou seja, dos vivos aos túmulos para rezar pelos seus
entes falecidos, Santo Agostinho reflete sobre o significado de fazer memória que os
monumentos funerários evocam:
Assim, os monumentos funerários têm a função de fazer memória dos que partiram e
evocar que se reze por eles. “Não se pode duvidar destas súplicas”,135 afirma Agostinho,
contudo, terão somente utilidades aos mortos conforme a vida que levaram mediante seus
atos, descartando, definitivamente, um privilégio para os mortos que são sepultados perto de
túmulos de mártires.
133
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 162.
134
Ibidem, p. 163.
135
Ibidem, p. 163.
136
Ibidem, p. 164.
50
Na medida em que seu pensamento se volta, com frequência, ao local onde seu filho
fora sepultado, mais e mais, o recomendava pela oração, atuação que, realmente, sempre será
útil à alma do falecido. Percebe-se que não é o ato de sepultar o filho dessa forma que lhe
trará benefícios, mas é o desejo de obter um bem espiritual que possibilita uma comunhão
pela oração.
Sendo Deus a fonte e origem de toda bênção, mesmo depois da morte, os vivos
rogam a Deus por aqueles que adormeceram, pois a liturgia dos funerais é uma celebração do
Mistério Pascal de Cristo. Nessa “recomendação”, a Igreja pede que os seus filhos,
incorporados pelo Batismo em Cristo morto e ressuscitado, com Ele passem da morte à vida
137
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 164.
138
FALBO, Giovanni. Santa Mônica, p. 142.
139
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 162.
51
e, devidamente purificados na alma, sejam associados aos santos e eleitos no Céu, enquanto o
corpo aguarda a bem-aventurada esperança da vinda de Cristo e a ressurreição dos mortos.
Diz Agostinho:
Para que tragam à memória aqueles que, devido à morte, foram subtraídos
aos olhos dos vivos. Advertem assim as pessoas a se lembrarem deles, para
não acontecer que, tendo sido retirados dos olhos dos vivos, não sejam
também do coração pelo esquecimento.140
Quando Agostinho afirma que não existe ajuda ao morto por estar sepultado próximo
do túmulo de algum santo, mas o auxílio nasce por meio da oração de intercessão dos vivos
ao santo ali sepultado, o Bispo de Hipona não desqualifica a sepultura. Contudo, ressalta que
o auxílio não provém da aproximação, mas da oração. Ao abençoar o local de sepultamento,
tem início esse processo de oração, pois o ato de rezar perpassa pelo ato de crer: “Supondo
que circunstâncias imperiosas impediram a inumação ou que a autorização não foi dada de ela
ser feita nesses lugares sagrados, não será por isso que se hão de negligenciar as orações pelos
falecidos.”142
Não existem relatos históricos, mas certamente Agostinho se dirigiu, muitas vezes,
para rezar no túmulo de sua mãe durante o ano em que permaneceu em Roma, antes de
retornar à África, no verão de 388. A partir de então, Agostinho foi ordenado sacerdote em
140
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 163.
141
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 55.
142
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 163.
52
391, bispo em 396 e faleceu em 430. Nunca mais voltou a Roma, portanto, nunca mais viu o
túmulo de sua mãe Mônica. Outra certeza é que ele jamais deixou de rezar por ela.
143
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 262.
144
Idem. O cuidado devido aos mortos, p. 182.
53
A Igreja se pronuncia ainda sobre a visão beatífica afirmando que, desde os tempos
iniciais, os falecidos que morreram em perfeita amizade com Deus, gozam da imensa alegria
de estarem na Igreja Celeste, na presença da Santíssima Trindade, isto é, mesmo não tendo
um corpo glorioso, já podem contemplar a face de Deus:
Os anjos, que velam sobre as coisas deste mundo, podem também lhes
revelar alguns pontos que julguem convenientes a cada um, por Aquele que
tudo governa. Pois se os anjos não tivessem o poder de estarem presentes
tanto na morada dos vivos quanto na dos mortos, o próprio Senhor Jesus não
teria dito: “Aconteceu que o pobre [Lázaro] morreu e foi levado pelos anjos
ao seio de Abraão.” (Lc 16,22). Eles estão, assim, ora na terra, ora no céu, já
que foi da terra que levaram aquele homem que Deus o confiou.145
145
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 182.
54
Os anjos são seres espirituais criados por Deus. Muito mais que explicar o que é um
anjo, o importante é ressaltar a função deles. O termo anjo, segundo raízes hebraicas, significa
mensageiro, porque são portadores da vontade divina. Segundo a tradição judaico-cristã, os
anjos se encontram entre Deus e os homens.146 Agostinho, nos Comentários aos Salmos
[Enarrationes in Psalmos], referindo-se ao Salmo 103, diz a respeito dos anjos: “Com o nome
de anjo se designa o ofício, não a natureza. Perguntas o nome desta natureza? É espírito.
Procuras saber qual é o seu múnus? É o de anjo, mensageiro. Quanto ao que é, é espírito;
quanto ao que faz, é anjo” (CCE, n. 329).
No decorrer do texto, Agostinho assegura que os anjos velam sobre as coisas deste
mundo, e que Deus pode revelar alguns pontos que Ele julga serem importantes às pessoas na
Igreja Peregrina para ficarem sabendo por meio dos anjos. Agostinho cunha sua afirmação: os
anjos têm o poder de estar tanto presentes na morada dos vivos como na dos mortos a partir
da passagem do Evangelho de Lucas que diz: “Aconteceu que o pobre morreu e foi levado
pelos anjos ao seio de Abraão.” (Lc 16,22). Estando eles, ora no Céu, ora na Terra, levaram
aquele homem, que Deus confiou-lhes, para o céu.147
146
DI BERNARDINO, Angelo. (Org.) Dicionário Patrístico e de antiguidades cristãs p. 101.
147
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 182.
148
Idem. A Trindade, p. 417.
149
MORIONES, Francisco. Teología de San Agustín, p. 569.
150
Ibidem, p. 568.
55
quando a alma fica separada do homem e de Deus para sempre, como resultado da morte
primeira e segunda morte.
Agostinho descreve como morte primeira quando a alma paga as penas temporais,
contudo, com o tempo, terá a visão de Deus; a morte segunda ocorre quando o corpo e a alma
estão no inferno, nesse caso, a situação é irreversível. Agostinho fundamenta a segunda morte
na passagem bíblica do Apocalipse de João (Jo 21,8): “Os tíbios, os infiéis, os depravados, os
homicidas, os impuros, os maléficos, os idólatras e todos os mentirosos terão como quinhão o
tanque ardente de fogo e enxofre, a segunda morte.”
O Bispo de Hipona assegura que nós morremos na alma e no corpo: “Na alma, pelo
pecado, e no corpo, como pena do pecado e, portanto, por causa do pecado.”151 A morte da
alma é a impiedade, e a morte do corpo, a corruptibilidade, pois causa a separação da alma do
corpo. “Assim como a alma pelo abandono de Deus morre, também o corpo morre pelo
abandono da alma.”152
Esse autor declara que existe uma diferença entre a morte da alma e a do corpo, e
sustenta sua afirmação a partir da fala de Jesus: “Deixai que os mortos sepultem seus mortos.”
(Mt 8,22). O corpo falecido deverá ser enterrado, contudo, Agostinho indica que os
sepultadores é que estavam mortos na alma pelos seus pecados. Eles serão chamados desta
morte quando escutarem: “Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que
Cristo te iluminará.” (Ef 5,14). Somente Cristo tem o poder de retirar o morto das trevas para
levá-lo à luz.
151
MORIONES, Francisco. Teología de San Agustín, p. 151.
152
Ibidem, p. 151.
153
DANIEL-ROPS. A Igreja dos apóstolos e dos mártires, p. 520.
56
atirados no rio Ródano, tudo isso com um objetivo: impedir os cristãos de lhes dar sepultura e
lhes fazer memória.154
Foi utilizando-se desse fato histórico que Agostinho responde aos questionamentos
da comunidade sobre a ressurreição dos mortos sem o sepultamento do corpo:
Ora, devemos pensar que se Deus permitiu essa destruição total, é para
ensinar aos cristãos que ao confessar a Cristo, no desprezo desta vida, os
mártires devem desprezar ainda mais a sepultura. Pois, se a abominável
crueldade com que foram tratados aqueles corpos pudesse privar a alma
vitoriosa de repouso bem-aventurado, Deus certamente não o teria permitido.
Está bem claro o que o Senhor afirmou: “Não tenham medo dos que matam
o corpo e depois disso nada mais podem fazer”. (Lc 12,4). Isso não significa
que os perseguidores perderiam todo poder sobre o corpo dos fiéis, após a
morte, mas que, embora tivessem esse poder, nada podiam [fazer] para
diminuir a felicidade de suas vítimas; nada poderia atingir a vida consciente
deles além-túmulo; nada poderia trazer dano aos próprios corpos, pelo
menos no que se refere à integridade da sua ressurreição.155
Santo Agostinho isenta a necessidade de haver corpo para que ocorra a ressurreição.
O dano ao corpo não diminui a felicidade da alma que se uniu a Deus; pelo contrário, o dano
ao corpo enriquece a alma para uni-la a Deus. O santo defende que o homem é formado por
uma unidade (corpo-alma), sendo que a alma é “mais nobre e mais real que os próprios
corpos”.156 Ainda que essa dualidade não possa sobrepor-se à unidade, o texto permite, aqui,
um acento que supervaloriza a alma.
154
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 166.
155
Ibidem, p. 166.
156
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 74.
157
Ibidem, p. 103.
57
É grande verdade não ser todo o homem a alma do homem, mas sua parte
superior, nem seu corpo todo o homem, mas sua parte inferior. E também o é
que à união simultânea de ambos os elementos se dá o nome de homem,
termo que não perde cada um dos elementos, quando deles falamos em
separado.158
Não estando o corpo equivalente à alma, não representa dizer que não é parte do
homem. Implicação há, no pensamento de Agostinho, ao afirmar que o ser humano é
composto de dois elementos: corpo e alma. Todavia, a distinção do homem lhe sobrevém da
alma: “O que faz a excelência do homem é que Deus o fez à sua imagem, ao lhe dar uma alma
espiritual e uma inteligência que o põe acima dos animais.”159 Essa união entre corpo e alma
provoca grande assombro a ponto de relacioná-la ao mistério da encarnação:
Agostinho fundamenta que o corpo é bom porque foi criado por Deus e pode entrar
na cidade divina. Sendo o fundamento da ressurreição para o cristianismo e pedra
158
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus, v. 2, p. 151.
159
SESBOÜÉ, Bernard. O homem e sua salvação, p. 103.
160
Ibidem, p. 104.
161
Ibidem, p. 104.
162
JORDÃO, Eduardo Antônio. Agostinho, p. 49.
58
fundamental do crer, demonstrando a necessidade corpórea para alcançar a gloria divina. 163
Na obra A Trindade, Santo Agostinho declara que o pecado original foi adquirido pelos
primeiros pais: Adão e Eva. Esse relato de transmissão encontra-se no Livro do Gênesis (Gn
3,14-19) quando o Criador fala para sua criatura: “Tu és pó, e em pó te hás de tornar.” O santo
bispo assegura que Deus “pronuncia a morte corporal do homem, morte pela qual não passaria
se tivesse permanecido no estado de justiça original”.164 Quanto à alma, afirma que é imortal,
pois o homem é, em última instância, imagem de Deus porque tem a capacidade de
reconhecê-lo.165
163
SESBOÜÉ, Bernard. O homem e sua salvação, p. 104.
164
SANTO AGOSTINHO. A Trindade, p. 417.
165
Ibidem, p. 371.
166
Idem. O cuidado devido aos mortos, p. 193.
167
CIPRIANI, Nello. Verbete Memória. In: FITZGERALD, Allan. Diccionario de San Agustín, p. 881.
59
Por certo, nem a carne nem o sangue possuirão o Reino de Deus, o que é
impossível. Mas o corpo corruptível há de revestir a incorruptibilidade e este
ser mortal revestirá a imortalidade. Ele não causará nenhum incômodo, pois
não padecerá nenhuma necessidade, vivificado pela alma bem-aventurada e
perfeita, numa suprema quietude.173
O helenismo também influenciou o povo judeu com a ideia de que o corpo era
afetado pela corrupção, sobrevivendo somente a alma após a morte. Diante dessa situação
histórico-cultural, “Paulo tinha que dar uma resposta acerca da natureza da existência pós-
morte, que, por um lado, a imortalidade de alma, mas que, por outro, não podia deixar
obscurecer o valor negativo do corpo.”175
168
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus, L. 3, p. 360.
169
Ibidem, p. 364.
170
Ibidem, p. 373.
171
Ibidem, p. 366.
172
Ibidem, p. 368.
173
Idem. A doutrina cristã, p. 57.
174
SCHNELLE, Udo. Paulo: vida e pensamento, p. 758.
175
Ibidem, p. 759.
60
Na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo afirma: “É necessário que este corpo
corruptível se revista da incorruptibilidade, e que este corpo mortal se revista da
imortalidade.” (1Cor 15,52-54). Assim, esse santo-filósofo Agostinho enfatizará que somente
na ressurreição, no final dos tempos, será possível o encontro do homem com Deus face a
face.
No Capítulo 3, De cura pro mortuis gerenda (em O cuidado devido aos mortos), o
Bispo de Hipona explica que, sendo importante para os filhos a roupa, o anel e outros objetos
do pai, muito mais terna é a piedade filial pelo corpo desse mesmo pai. Com efeito, fazendo
analogia, Agostinho afirma que a alma se reveste do corpo, descrevendo: “Com efeito, o
corpo não é apenas ornamento do homem, adjutório exterior, mas é parte de sua natureza
humana.”176
Assim, o corpo não pode ser simplesmente desprezado e abandonado após a morte,
como foi feito com infinitos soldados deixados sobre os campos de batalha para servirem de
pasto aos animais.177 “A quem faltou sepultura, o céu serve de proteção”.178 Trata-se de uma
forma poética de não assegurar dignidade ao corpo.
Agostinho afirma que o corpo não é ornamento do ser humano, mas que ele compõe
a pessoa, sendo parte importantíssima da estrutura do seu ser. Justamente por esse motivo,
não pode ser desprezado. “O homem é um animal racional e submetido à morte; enquanto
racional, ele se distingue das bestas; enquanto submetido à morte, distingue-se dos anjos”. 179
176
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 161.
177
Ibidem, p. 160.
178
Ibidem, p. 160.
179
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p. 393.
180
HAMMAN, Adalbert. A vida cotidiana dos primeiros cristãos, p. 139.
61
Pelo fato de que na morte de Cristo a alma tenha sido separada da carne, a
única pessoa não foi dividida em duas pessoas, pois o corpo e a alma de
Cristo existiram da mesma forma desde o início na pessoa do Verbo; e na
Morte, embora separados um do outro, ficaram cada um com a mesma e
única pessoa do Verbo.181
Agostinho deixa claro que o corpo, apesar de ser um bem, pois é criação de Deus,
unido com a alma, coloca o homem rumo a Deus. Assim, o homem é uma alma racional que
se serve de um corpo mortal e terrestre;182 de um corpo que necessita para sobreviver neste
mundo até encontrar o Criador. Sendo o corpo morada do Espírito Santo, é mister dispensar
dignidade a ele após a morte. Agostinho “sempre insistiu na absoluta transcendência
hierárquica da alma em relação ao corpo, mas jamais admitiu, e até mesmo rejeitou com
horror, a hipótese de uma humanidade cujos corpos seriam como prisões”.183
O Bispo de Hipona declara que todo cuidado dispensado ao corpo não é pelo fato de
que ele possa sentir alguma coisa, pois está desprovido de sensibilidade. Todo o cuidado
demonstrado ao corpo tem uma única finalidade: a crença na ressurreição:
181
SÃO JOÃO DAMASCENO. De fide orthodoxa, 3,27. Catecismo da Igreja Católica, n. 626.
182
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus, L. 2, p. 214.
183
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p. 110.
184
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 171.
62
Agostinho menciona, também em seu tratado, que os pais confiavam aos filhos o
compromisso de cuidar de suas exéquias e da sepultura:
Há salutar ensinamento para nós, sobre quão grande pode ser a paga das
esmolas feitas a criaturas vivas e dotadas de sensibilidade, se aos olhos de
Deus nada se perde dos caridosos tributos que prestamos aos restos
inanimados dos homens.186
185
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 161.
186
Ibidem, p. 162.
187
Idem. A cidade de Deus, L. 2, p. 205.
188
Ibidem, p. 211.
63
Para Agostinho “Deus habita na memória”,189 sendo que é nela que o ser se encontra
consigo mesmo e recorda as ações que realizou – quando, onde e sob que sentimentos foram
praticadas.190 O estudioso menciona que a memória contém os sentimentos da alma,
sugestionando que ela faz parte da alma.191 “A memória da própria vida passada se explica
pela permanência, na alma bem-aventurada, das imagens armazenadas na memória.” 192
O homem continua, depois da morte sendo um ser temporal, mantendo relação com a
história humana da qual saiu pela morte. Ela constituiu seu tempo humano, que permanece
após a morte, na forma de “tempo da memória”, pois a morte não lhe tira a condição de
membro da Igreja.
Quanto ao tempo, o Bispo de Hipona afirma que existe somente o tempo presente:
“Agora está claro e evidente para mim que o futuro e passado não existem... o presente do
passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a esperança. O
futuro não existe agora, nem o passado.”194
189
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 298.
190
Ibidem, p. 279.
191
Ibidem, p. 285.
192
CIPRIANI, Nello. Verbete Memória. In: FITZGERALD, Allan. Diccionario de San Agustín, p. 882.
193
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 345.
194
Ibidem, p. 349.
64
A vida na “Cidade do Alto” será uma vida livre de todo mal, na qual há o eterno
gozo de toda alegria na santidade. “Sabemos que a maior alegria dessa cidade será cantar
cânticos de glória à Graça de Cristo, que nos libertou com seu sangue.”195
Assim, irão os ímpios para o eterno suplício e os justos para a vida eterna?
Se ambos os destinos são eternos, deve-se entender que ambos serão
duradouros, mas findáveis, ou ambos perpétuos e sem-fim. A correlação no
texto é perfeita. De uma parte, o suplício eterno; de outra, a vida eterna.
Dizer que a mesma expressão em vida eterna significa que não terá fim e em
suplício eterno que terá fim é o cúmulo do absurdo. Em conclusão, como a
vida eterna dos santos não terá fim, tampouco o terá o suplício eterno de
quem o mereça.199
195
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus, L. 3, p. 399.
196
Idem. A Graça, L. 1, p. 105.
197
GROSSI, V. Verbete Pelágio, In: DI BERNARDINO, Ângelo. Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs, p. 1.132.
198
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus, L. 2, p. 210.
199
Ibidem, L. 2, p. 308.
65
Nosso autor sustenta que a pena eterna não pode ter fim se não se quiser entrar na
lógica do absurdo e da contradição. Na condição de eternidade, não há possibilidade de que
algo possa mudar como acontece na temporalidade histórica. Agostinho afirma que nenhuma
pena eterna pode ser perdoada, nem mesmo pela intercessão dos anjos, haja vista que, na
eternidade, não se reza pelos condenados, e a razão “a mesma causa que agora impede à
Igreja [de] rogar pelos anjos maus, que sabe seus inimigos, impedir-lhe-á, então, no juízo
final, [de] rogar pelos homens destinados ao fogo eterno”.200
Constata-se que Agostinho parte de uma questão principal formulada pelo Bispo de
Nola sobre o proveito que os mortos podem tirar se forem inumados perto de túmulos de
santos e passa, a partir disso, a abordar outros elementos importantes. Por exemplo, a situação
dos corpos insepultos. No tratado, o autor transcreve duas páginas de sua obra A cidade de
Deus para refletir sobre a importância de honrar os mortos. Ele também esclarece que os atos
fúnebres, por mais piedosos que sejam, servem mais para consolo dos enlutados do que para
socorro dos mortos.
Entretanto, isso não implica descaso com o cadáver que merece exéquias. Também, a
sepultura é abordada como sendo importante e sagrada para a vida cristã, mas não é
indispensável para a oração de sufrágio.
Na segunda parte do tratado, Agostinho reflete sobre a relação que há entre mortos e
vivos e esclarece que os mortos não aparecem para se comunicar com os vivos e nem para
lhes pedir socorro. Santo Agostinho também ensina que os mortos não se ocupam dos nossos
200
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus L. 2, p. 309.
201
Ibidem. L. 3, p. 296.
66
problemas e, ao afirmar isso, se vale da experiência de dor que passou quando sua mãe
morreu, e que nada lhe fora comunicado da outra vida.
Por outro lado, o bispo adverte que os mortos não estão indiferentes ao que se passa
na Terra, e cita o rico da passagem do pobre Lázaro que se preocupa com o destino de seus
irmãos. E quando se relata a aparição de mortos como atesta o Antigo Testamento (como o
caso de Samuel que aparecera a Saul e no caso de São Félix de Nola que aparecera aos seus
concidadãos para confortá-los diante da invasão dos vândalos) Santo Agostinho reconhece ser
incapaz de responder às muitas questões desse tipo.
Numa síntese, para Santo Agostinho, segundo o tratado O cuidado devido aos
mortos, somente as orações, as esmolas e a participação no sacrifício do altar podem
beneficiar os mortos.
202
SANTO AGOSTINHO. Enchiridion 15,59.
67
Abordar a morte é na verdade abordar a vida, pois somente pode morrer aquilo que
vive. Possibilidade inexistente que gozava o homem imortal, segundo Agostinho o homem no
paraíso gozava de uma graça especial:
203
MICHON, Cyrille. NARCISSE, Gilbert. Verbete: Lugares teológicos. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário
crítico de teologia, p. 1055.
204
SCHMAUS, Michael. Historia de los dogmas. El método teológico, p. 100.
68
Contudo, não se trata somente da morte corporal; Cristo diz que devemos temer
aqueles que matam a alma e não o corpo (cf. Mt 10,28). Essa segunda morte é a mais terrível,
colocando a criatura num banimento eterno de Deus. A cultura atual do materialismo
submente a morte da alma à morte do corpo, querendo afirma que a bios (vida biológica)
possa engolir a zóe (vida eterna).206 Logo é possível compreender afirmação de Paulo que não
teme a morte biológica: “Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Fl 1,21).
Clodovis Boff, em seu livro Escatologia, recorda uma comparação realizada por
Santo Tomás:
205
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho, p. 283.
206
BOFF, Clodovis. Escatologia: breve tratado teológico-pastoral, p. 52.
207
NOCKE, Franz-Josef. Verbete: Consumação do indivíduo. In: SCHNEIDER, Theodor. Manual de
dogmática, p. 403.
69
Como uma faca de ferro, de si, oxida, assim também o homem, por natureza,
morre. Mas como o artesão niquela a faca para que não oxide, assim Deus
imunizou o homem contra a morte com o dom da integridade física. Porém,
como uma faca se oxida quando perde o níquel, assim também o homem
passou a morrer quando, pelo pecado, perdeu a graça da imortalidade
corporal.208
A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está,
ó morte, o teu aguilhão? Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do
pecado é a lei. Graças, porém, sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória por
nosso Senhor Jesus Cristo! (1 Cor 15,55-57)
A morte é um mistério que não pode ser esvaziado e nem a dor que ela provoca pode
ser escondida. Por isso o rito de exéquias busca fortalecer a convicção de que, “para os que
creem, a vida não é tirada, mas transformada. E, desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado nos
céus um corpo imperecível”.211
208
BOFF, Clodovis. Escatologia: breve tratado teológico-pastoral, p. 51.
209
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 194.
210
CNBB. Nossa Páscoa: Subsídios para celebrações da esperança, p. 9.
211
MISSAL Romano. Prefácio dos fiéis defuntos I, p. 462.
70
Segundo H. Volk existem cinco palavras na Teologia que devem ser relacionadas ao
homem quando abordado o tema morte, pois trazem em si um ensinamento teológico.
Primeira, a criação, o homem criado deve morrer; segunda, a graça, vivendo nela o homem
não precisaria ter morrido; terceira, o pecado, por meio dele a morte entrou no mundo; quarta,
a redenção, ofertada por Jesus Cristo que livra do pecado, ou seja, da morte; quinta, a
escatológica, a ressurreição e aguardando a retorno de Cristo na Parusia, sinal da vitória
definitiva sobre a morte.212
A morte de Jesus não opera, portanto, uma remissão mágica, que seria
infundida de maneira misteriosa e invisível na pessoa que vai ser remida. O
fato de Jesus ter morrido por nossos pecados não significa que nós próprios
já não mais precisamos morrer por nossos pecados. Sua morte não é uma
ação substitutiva, mas deflagração e possibilitação de um processo de
libertação que segue adiante.214
212
H. Volk. Verbete: morte. In: FRIES, Heinrich, Dicionário de teologia. Conceitos fundamentais de teologia
atual, p. 376.
213
RAHNER, Karl. Sentido teológico de la muerte, p. 64.
214
LOHFINK, Gerhard. Jesus de Nazaré, p. 348.
71
É por meio da morte livre que Cristo realiza a obra redentora do homem, perpassada
pelo vínculo da obediência existente com o Pai. Cristo toma sobre si a morte, que na ordem
concreta é expressão e visibilidade da criação, queda dos anjos e do homem.217 A morte é
manifestação visível do pecado no mundo, enquanto que a morte de Cristo é a manifestação
da misericórdia ao mundo vencendo a morte com morte. Precisamente por causa de seu
caráter velado, a morte de Cristo torna-se expressão e corporeidade de sua obediência e amor,
da entrega gratuita a Deus de todo o seu ser criado.
Aquilo que era forma de pecado, pela vontade de Deus torna-se negação do
pecado. Para aprofundá-lo e tentar explicar por que a sua morte tem um
significado redentor para nós do ponto de vista da teologia da morte,
podemos usar a hipótese anteriormente proposta sobre a nova relação com o
cosmos adquirido pela alma ao separar do corpo mortal. Se não é lícito
aplicar à morte de Cristo esta hipótese da antropologia metafísica da morte,
temos que dizer que, pela morte de Cristo, essa realidade espiritual que ele
colocou desde o início e atuou de uma nova maneira para o mundo inteiro
foi aberta, sua vida, cuja consumação viria pela morte.218
215
La voluntad redentora de Dios y su deseo de devolver al hombre la gracia, a pesar de la exigencia de una
satisfacción condigna, es obra pura de bondad y misericordia divinas. Pues es Dios quien envía al Verbo
humanado al mundo, antes de que él pueda prestarle la satisfacción de los pecados del hombre. RAHNER,
Karl. Sentido teológico de la muerte, p.66.
216
GOURGUES, Michel. Jesus diante de sua paixão e morte, p. 76.
217
RAHNER, Karl. Sentido teológico de la muerte, p. 69.
218
Ibidem. p. 71.
72
Jesus morre por fidelidade a Deus, mas é conduzido à morte pelos pecadores: “o
Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores” (Mc 14,41). A pregação de Jesus é
permeada sempre pelo amor, ao ponto de ensinar que deveriam amar até os inimigos. O
pecado pode ser considerado a incapacidade de amar, tudo aquilo que plantado no coração do
homem o impede verdadeiramente de amar e lhe faz pecar.
Jesus não correu em direção da morte, contudo, diante dela também não recuou. Ele
assume a condição humana plenamente e morrendo na cruz experimenta a densidade do
sofrimento humano. “O Filho tudo assumiu da condição humana, inclusive a experiência do
mal, do fracasso, do sofrimento e da morte”.219
O teólogo Karl Rahner em seu livro Sentido teológico de la muerte, afirma que “o
cristão na graça de Deus morre uma morte diferente do pecador”. 222 Pondera essas mortes
como diferentes em natureza no estado que o homem morre: na graça ou no pecado. Segundo
Rahner, nessa concepção, somente por um olhar puramente jurídico de Deus pode-se
distinguir a morte de um ou do outro. Salienta que, nesta doutrina, a morte só é considerada
em relação ao pecado original, ainda presente ou extinto no batismo, mas não em relação aos
pecados pessoais. A morte deve ser vista como um acontecimento, não como uma ação.223
219
GOURGUES, Michel. Jesus diante de sua paixão e morte, p. 78.
220
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 149.
221
W. Rordorf. Verbete: Páscoa. In: DI BERNARDINO, Angelo (Org.). Dicionário patrístico e de antiguidades
cristãs, p. 1096.
222
RAHNER, Karl. Sentido teológico de la muerte, p. 75.
223
Ibidem. p. 76.
73
Rahner descreve que a morte faz parte da condição humana, não tendo como
desassociar esse acontecimento.
Karl Rahner narra que ao estar incorporado a Cristo pelo batismo, o morrer para o
cristão é um fato de saúde. Aqueles que morrem na fé não estão apenas "mortos em Cristo"
porque eles viveram em Cristo, mas também porque estavam morrendo em Cristo. Agora o
morrer é uma consumação natural e pessoal da vida do homem.225
224
NOCKE, Franz-Josef. Verbete: Consumação do indivíduo. In: SCHNEIDER, Theodor. Manual de
dogmática, p. 401.
225
RAHNER, Karl. Sentido teológico de la muerte, p. 77.
74
mundo, essa graça tornou-se graça para toda a criação reconciliada em Cristo. O que ele fez
em sua morte foi uma graça para oferecer a Deus o "corpo" do pecado, que é a morte, e assim
torná-lo o corpo da graça. A consequência é que agora suas criaturas também, por sua graça,
podem pertencer a Deus e a Cristo na morte.226
superar o dualismo corpo-alma dos gregos. O corpo é importante para a teologia cristã, pois
por meio dele que acontece a salvação anunciada e realizada através tradição da Igreja
Católica e das Escrituras Sagradas.
Pelo Batismo, o Espírito Santo habita no corpo e, por isso, ninguém pode destruir ou
ferir o seu corpo e o dos seus irmãos, porque ele é sagrado. O próprio Deus se encarnou em
nossa humanidade, ou seja, “O logos divino entra ‘na carne’ (in-carnatio); ‘na carne’, Jesus
Cristo opera seu ato central de salvação e redenção: oferta de seu corpo se realiza sua
obediência redentora para com o Pai; é ‘no sangue de Cristo’ que somos justificados”.231 Em
Jesus Cristo, temos uma concepção totalmente nova sobre o corpo, que se torna instrumento
de salvação, como fora importante para a salvação, o cadáver merece a dignidade, não pode
ser descartando, desvalorizado. A graça da justificação se faz presente na vida, no corpo:
231
FRIES, Heinrich. Dicionário de Teologia. Conceitos fundamentais da teologia atual, vol. 1. p. 323.
232
Doutrina aceita entre os protestantes, principalmente por grupos calvinistas que afirma que Deus decretou e
permitiu a queda do homem.
233
FRIES, Heinrich. Dicionário de Teologia. Conceitos fundamentais da teologia atual, vol. 1. p. 323.
76
A morte é na verdade uma experiência limite do corpo que se torna cadáver e não
pode ser suprimida, pois, ela é passagem para a vida eterna. Não se pode aceitar, dessa
maneira o dualismo platônico, tendo como apoio a Sagrada Escritura, como fez Lutero, que
separa o corpo da alma. Com a morte alma se separa do corpo, contudo com a ressureição,
corpo e alma se completam. Segundo Santo Tomás, a alma existe para estar unida ao corpo, e
vice-versa.235
Epicuro de Samos, que viveu três séculos antes de Cristo, discorrendo sobre a morte
dizia:
234
Agustín señala también que el cuidarse de dar sepultura a los difuntos es también una muestra de amor al
cuerpo (cura mort. 7.9). Pues la resurrección será la resurrección del cuerpo (c. Faust. 11.3), el cual
ocupara entonces su lugar en la belleza y delicia del cielo (civ. Dei 22.30), ya que la belleza de la carne
puede verse únicamente en relación con Dios (retr. 1.26). FITZGERALD, Allan. Verbete: Cuerpo. In:
FITZGERALD, Allan. Diccionario de San Agustín, p, 366
235
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Summa Contra Gentiles, IV, 81.
77
O mais terrível dos males nada é para nós, pois enquanto existimos, a morte
não é, e, quando ela está lá, já não existimos nós. A morte não teria, por
conseguinte, nenhuma relação nem com os vivos nem com os mortos, uma
vez que ela nada é para os primeiros os últimos já não existem.236
Contudo, o homem não consola seu desejo de imortalidade com essa afirmação de
Epicuro, pelo contrário a morte lhe provoca inquietações, a putrefação lhe dá horror e o temor
do regresso dos mortos. Somando esses aspectos, o homem utiliza o “rito como ato social de
exorcização da morte e restauração da ordem”.237 Sinais de uma sociedade que se move por
um desejo de eternidade segundo Arnold van Gennep.238
Conforme o antropólogo Joël Candau, a memória pode ser dividida em dois grupos:
protomemória e metamemória.239 A protomemória está ligada ao saber, as crenças, sensações
e sentimentos. A metamemória, por sua vez remete, para sua própria memória, seu passado, e
constrói sua identidade.240 Partindo dessa primazia, o culto da memória pode ser realizado de
duas maneiras: horizontal ou vertical.
O culto da memória horizontal pode ser descrito como meramente social ou cultural,
onde a grande finalidade da família é demostrar poder econômico e status social. Desde o
anúncio comunicando a morte, os grandes cortejos e pompas, o caixão suntuoso e,
posteriormente, uma sepultura imponente, que busca competir em beleza com as demais.
Nesse mesmo segmento se podem incluir os monumentos aos mortos, principalmente depois
da 1ª Guerra Mundial (1918) que afloram praticamente em todos os países que participaram
das batalhas, como forma de homenagear seus soldados mortos. “O Arco do Triunfo de Paris
pode ser considerado como o mais importante desses monumentos, que, muito curiosamente,
souberam cristalizar um culto leigo em toda a França”.241 Outra construção é o mausoléu, que
não necessariamente precisa abrigar os restos mortais, apenas um monumento comemorativo.
O cenotáfio é uma construção feita na memória de uma pessoa cujo corpo encontrasse em
outro lugar.242 O culto à memória pessoal ou coletiva se desassocia da dimensão religiosa.
236
CATROGA, Fernando. O céu da memória, p. 9.
237
Ibidem. p. 11.
238
Ibidem, p. 11.
239
MATHEUS, Letícia. Memória e identidade segundo Candau, p. 303.
240
CATROGA, Fernando. O céu da memória, p. 11.
241
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 250.
242
Ibidem, p. 238.
78
No culto da memória vertical, tanto pessoal como coletivo, tem sua grande ligação
com o transcendente. Os mortos são continuamente “recomendados” para Deus. Nos
cemitérios católicos mais antigos geralmente existia uma cruz como monumento e junto a ela
um altar para o sacerdote oficiar as orações de sufrágio. Todo o culto à memória cristã é uma
profissão de fé na ressurreição. Desde os primeiros tempos, a Igreja celebrou a memória de
seus fiéis falecidos, ligando-os ao memorial da paixão, morte e ressurreição de Cristo.
3.2.3 O velório:
Num passado recente, com exceção das mortes por acidente ou violência, grande parte
das pessoas faleciam no lar. O fato era acompanhado por todos, pelas crianças inclusive, que
aprendiam desde cedo a conviver com a possibilidade da morte.243 A morte acontecia no seio
da família e da comunidade.244 Todos podiam ver a pessoa enferma e acompanhar seus
últimos momentos. “O quarto do moribundo passou do lar para o hospital”. 245 A morte foi
tornando-se solitária e privada, deslocada para os hospitais ou “casas para idosos”, onde o
momento derradeiro geralmente ocorre na ausência da família, tornando a aceitação da perda
ainda mais dolorosa.246
O velório acontecia nas casas ou em pequenas capelas próximas, a morte atingia cada
um. Muitas localidades construíam seus cemitérios ao lado das igrejas ou sobre um monte.
Constantemente a população tinha diante de si a possibilidade da morte, estava sempre no seu
horizonte visível. Contudo a sociedade atual busca sepultar de forma rápida seus falecidos,
pois a morte tornou-se incomoda.247
As crescentes exigências sanitárias levaram à supressão dos velórios nas casas por
questões de saúde pública. O velório se realiza agora, principalmente, nas capelas mortuárias
dos cemitérios. Nas grandes cidades, as capelas estão situadas longe dos bairros onde moram
os parentes, vizinhos e amigos do falecido.248 Poucas pessoas acabam participando do velório,
243
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 139.
244
Ibidem, p. 139.
245
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte, p. 770.
246
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 140.
247
MIRANDA, Evaristo Eduardo. A foice da lua no campo das estrelas, p. 16.
248
Ibidem. p. 17.
79
que é um momento importante de despedida, para elaborar a perda. Ultimamente, até questões
de segurança comprometem o processo de despedida, as pessoas se veem forçadas a voltar
para casa, deixando o corpo do falecido sozinho ou acelerando o sepultamento.
A morte gera uma sucessão de eventos, sendo o primeiro o velório que visa iniciar a
elaboração da perda para vivenciar depois o luto. Destina-se, sobretudo, aos que ficam. A
existência humana é feita de encontros e desencontros, chegadas e partidas. O velório e o
sepultamento consistem num grande rito de despedida dos vivos em relação aos mortos.
Sendo imprescindível deixar os mortos partirem, o velório pertence ao mundo dos viventes,
pois é neste momento que terão a oportunidade de iniciar a elaboração da perda, de forma
mais concreta, obtendo “com sucesso um luto sadio e não uma queda na patológica
melancolia”.249
A palavra velório tem sua raiz no verbo velar, vigiar. Passar aquelas horas acordadas
vigiando a pessoa que morreu. A mística da Igreja afirma que qualquer vigília está ligada a
vigília pascal, afirma Agostinho: “A vigília desta noite é tão importante que reivindica para si
essa denominação, comum a todas as outras”.250 A Igreja em oração durante a vigília aguarda
a aurora da luz, o Cristo ressuscitado.
249
MIRANDA, Evaristo Eduardo. A foice da lua no campo das estrelas, p. 18.
250
IGLH. Introdução Geral sobre a Liturgia das Horas, n. 70.
251
Ibidem, n. 70.
252
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 135.
253
Ibidem, p. 135.
80
do velório. Essa participação é muito importante para que elas possam elaborar suas próprias
questões sobre a morte.
Outro aspecto importante é visualizar o corpo da pessoa falecida, não assistir seu
sepultamento pode trazer, para alguns, problemas sérios no futuro.254 Alguns podem criar a
fantasia de que a pessoa não morreu, ou que ela está escondida em algum lugar. Negar essa
realidade, fazer de conta que não existe, não anula a sua ocorrência nem atenua os seus
efeitos. É preferível enfrentá-la quando ela se manifesta, elaborando-a progressivamente, e
não ignorá-la, permitindo que suas consequências emocionais se agigantem dentro da pessoa,
causando danos, muitas vezes irreparáveis. Escreve Jean-Pierre Bayard sobre esse aspecto:
254
PARKES, Colin Murray. Luto: Estudos sobre a perda na vida adulta, p. 200.
255
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 140.
81
O Ritual expressa claramente o sentido pascal da morte,256 e considera com respeito e carinho
as diversas necessidades e realidades pastorais acerca do tema.257
256
RITUAL de Exéquias n. 1.
257
Ibidem. n. 19.
258
Ibidem. n. 1.
259
CNBB. Nossa Páscoa: Subsídios para a celebração da esperança, p. 15.
260
Ibidem, p. 15.
82
261
RITUAL de Exéquias, n. 2.
262
Essa é um estrado de madeira sobre o qual se coloca o caixão durante os atos fúnebres, ou ainda pode
significar o próprio caixão.
263
RITUAL de Exéquias, n. 3.
264
Ibidem, n. 4.
83
rubricas insiste em orientar que o presbítero, ou ainda aquele que vai presidir a celebração,
saúde com delicadeza os presentes e lhes transmita o consolo da fé. Miranda também se
pronuncia a respeito do momento de acolhida:
Outro momento é a Liturgia da Palavra, que compreende até três leituras bíblicas, a
homilia e a oração dos fiéis. Oferecendo um vasto elenco de leituras que podem ser escolhidas
de acordo com as circunstâncias e a realidade pastoral, elas proclamam o mistério pascal,
alimentam a esperança na vida futura, exortam à piedade para com os defuntos trazendo a
esperança de reencontrar-se no Reino de Deus, o valor do testemunho da vida cristã.266
265
MIRANDA, Evaristo Eduardo. A foice da lua no campo das estrelas, p. 44.
266
RITUAL de Exéquias n. 11.
267
Ibidem. n. 79.
268
Ibidem. n. 10.
84
O sociólogo francês Jean Fourastié afirmou certa vez: “a morte estava então no
centro da vida como o cemitério no centro da aldeia”.269
Existe um direito sagrado, o direito de ver e tocar seus mortos, de velá-los e dar-lhes
sepultura. A passagem bíblica diz: “O seu cadáver não poderá ficar ali durante a noite, mas tu
o sepultarás no mesmo dia” (Dt 21,23). Sepultar os mortos é homenageá-los, tornando-se um
dever e uma honra. O rito de exéquias é um rito em favor dos mortos e também dos vivos, ao
ponto de Agostinho afirmar ser mais salutar aos vivos que aos mortos.270
269
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 135.
270
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 143.
271
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 59.
272
Ibidem. p. 62.
273
Ibidem. p. 64.
274
HAMMAN, Adalbert. A vida cotidiana dos primeiros cristãos, p. 140.
85
cemitérios, uma das primeiras leis foi a lei romana das Doze Tábuas, proibindo sepultar ou
cremar dentro das cidades.275
O cemitério e a igreja se confundiam, uma vez que os mortos eram enterrados tanto
no interior das igrejas quanto no seu pátio. Esta prática está ligada à ideia de que
uma vez enterrados perto dos santos e mártires estes guardariam os mortos
enterrados ao seu derredor protegendo-os do inferno. É importante salientar que
embora a igreja e o cemitério estivessem interligados, ambos não deixaram de serem
lugares públicos, nos quais ocorriam encontros e reuniões, de forma que vivos e
279
mortos conviviam em locais comuns.
275
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 231.
276
ARAUJO, Thiago Nicolau. O que amamos não esquecemos, p. 64.
277
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 233.
278
ARIÈS, Philippe. Sobre a história da morte no ocidente desde a Idade Média, p. 4.
279
CAPUTO, Rodrigo Feliciano. O homem e suas representações sobre a morte e o morrer, p. 78.
86
contaminação, seja pela grande quantidade de mortos, utilizavam grandes covas coletivas,
distantes do centro urbano.280
Quando uma pessoa é sepultada, acaba saindo do olhar humano, mas, junto ao
túmulo, ela vai ser lembrada e recomendada nas preces. Assim, o túmulo é o principal meio
de perpetuar tanto os restos mortais do indivíduo quanto de marcar num local específico as
características que tornam aquela pessoa única. Logo, podemos interpretar o cemitério como
um elo entre o mundo terrestre com o mundo celestial. “O túmulo individual é, assim, a
‘última morada’, a casa, como o cemitério é a imagem da cidade, mas como escreve Tácito, ‘o
verdadeiro túmulo dos mortos é o coração dos vivos’”.281
Tanto que os cemitérios católicos são considerados lugares sagrados pelo Código de
Direito Canônico, conforme o cânone 1243. Dom Eugênio de Araújo Sales escreveu sobre a
visita ao cemitério:
280
MIRANDA, Evaristo Eduardo. A foice da lua no campo das estrelas, p. 69.
281
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 213.
282
Reflexões sobre a visita aos cemitérios. São Paulo: [2006]. <http://www.veritatis.com.br/reflexoes-sobre-a-
visita-aos-cemiterios>. Acesso em: 20 mar. 2018.
87
Até pouco tempo o cremar era uma situação incomum aos cristãos, pois, era difícil
imaginar um funeral sem sepultar um cadáver, enterrar era praticamente o único modo
culturalmente aceito.285 A cultura, aliada à fé na ressurreição dos mortos, enquadrava-se num
imaginário que chocava frontalmente com a cremação dos corpos. Havia, aliás, a crença de
que só os descrentes, os ateus e hereges teriam a ousadia de mandar queimar o corpo,
afrontando a fé cristã na ressurreição final.286
Até meados do século XX, não havia abertura para a opção pela cremação, sendo o
sepultamento a prática incontestável como funeral cristão, seguindo na linha da tradição
bíblica e, sobretudo, vista como identificação com Cristo, também no modo do seu
sepultamento. De fato, o Credo cristão reza que Jesus Cristo “foi crucificado, morto e
sepultado”, ainda que o sepulcro de Cristo, escavado na rocha, fosse tão diferente das nossas
sepulturas na terra. Em maio de 1886, o Santo Ofício promulgava um decreto salientando a
ilicitude de inscrever-se numa sociedade cujo fim era promover a prática de queimar os
cadáveres humanos (DH 3188). Essa situação era tão latente que em dezembro do mesmo
ano, o Santo Ofício publicou outro decreto, afirmando que caso alguém fosse cremado sem
expressar seu desejo, mas por vontade alheia, a Igreja devia suprimir os ritos e sufrágios em
memória daquela pessoa (DH 195 e 3196).
283
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 67.
284
Ibidem, p. 67.
285
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 240.
286
CNBB. Nossa Páscoa: Subsídios para a celebração da esperança, p. 13.
88
III. a cremação não pode estar ligada a razões contrárias a fé: espiritismo, panteísmo
ou gnosticismo;
V. não se devem conservar cinzas em casa, porém o Bispo Diocesano pode dar esta
concessão se não ver perigo de abuso;
VI. não se deve sob hipótese alguma dividir as cinzas, ou armazená-las em joias;
287
RITUAL de Exéquias, nº 15.
288
CNBB. Nossa Páscoa: Subsídios para a celebração da esperança, p. 14.
289
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Vaticano: [2016]. Disponível em:
<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20160815_ad-
resurgendum-cum-christo_po.html>. Acesso em: 19 mar. 2018.
89
VII. deve-se preferir no caso da cremação, guardar em algum lugar sagrado e não se
deve dispersar as cinzas na natureza para se evitar equívocos;
Após a cremação o columbário pode ser compreendido como lugar de paz e local que
agrupa toda a piedade para com os mortos pelos vivos. Num sentido mais habitual assegura-se
que ali repousam os mortos, descansam em paz. Mas também numa outra dimensão acontece
que ao dirigir-se para o columbário, vai-se ao encontro de entes ali “sepultados”. Com o
tempo, acaba por tornar-se um espaço físico e psicológico, ocasionando paz de espírito e
mansidão aos visitantes. Esses locais vão tornando-se lugares de serenidade e de
apaziguamento na vida dos seus frequentadores.
A visita aos cemitérios e columbário é uma prática, em suma, muito devota. Cuidar
do espaço, rezar diante dele, colocar flores demonstra a espiritualidade do ser humano. A
Igreja aconselha a visita a esses lugares justamente para fortalecer nossa esperança e
relacionamento com a Igreja Celeste.
290
JOÃO PAULO II. Jornal L´Osservatore Romano, n. 45, de 10/11/91.
90
graças pelas maravilhas operadas por Deus. A missa com intenção de sétimo dia deseja
manifestar a fé da Igreja e daqueles que solicitaram celebrar pelos mortos, pois:
A missa de sétimo dia, como parte integrante e essencial do luto na tradição católica,
consiste num marco simbólico divisório entre o episódio da morte e o retorno de certa
normalidade no cotidiano da vida dos familiares.293
Na Bíblia o número sete ocorre com frequência, seja como sinal positivo ou
negativo, sempre como expressão de uma totalidade.294 Jean-Pierre Bayard, em sua obra
Sentido oculto dos ritos mortuários, menciona uma festa pelos mortos dizendo:
291
MISSAL Romano, IGMR nº335, p. 93.
292
BOGAZ, Antônio. SIGNORINI, Ivanir. Celebração dos santos e culto aos mortos, p. 169.
293
Ibidem. p. 172.
294
BECKER, Udo. Dicionário de símbolos, p. 257.
295
BAYARD, Jean-Pierre. Sentido oculto dos ritos mortuários, p. 286.
91
A missa de Finados acaba “sendo uma celebração profundamente sentida pelos fiéis,
pois a fé é animada ainda mais pelos sentidos de afeição e saudade, a mensagem torna-se mais
profunda e sua vivência é muito solene”.298
O culto é feito de ritos. Aldo Terrin em seu livro O rito, escreve: “embora nos
recusemos a reconhecer que os ritos constituem uma parte dominante da nossa vida, tanto
296
TÓTH, Veremundo. A comunhão dos santos, p. 77.
297
JOÃO PAULO II. Carta do Papa João Paulo II ao bispo de Autum, Châlon e Mâcon abade de Cluny.
Vaticano [1998]. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/letters/1998/documents/hf_jp-
ii_let_19980602_cluny.html>. Acesso em: 20 mar. 2018.
298
BOGAZ, Antônio. SIGNORINI, Ivanir. Celebração dos santos e culto aos mortos, p. 176.
92
Dentro das religiões a temática do culto aos mortos não constituí uma unidade. Para
o povo de “Israel o culto é o centro do mundo dos vivos e a fonte de suas vidas; os mortos são
impuros, são excluídos do culto. Como a vida se opõe à morte, assim se opõem pureza e
impureza”.302 Martinho Lutero afirmava que era possível rezar algumas vezes, enquanto
Calvino pregava que não devia se rezar pelos mortos.303 O teólogo luterano Jürgen Moltann
diz: “Eu pessoalmente não creio que nós, com nossas orações, possamos ou devemos fazer
algo em favor dos mortos”.304
Quando escreve “A cidade de Deus”,305 Agostinho retorna à eficácia das preces pelos
mortos. Mas para deixar claros seus limites. Os sufrágios são inúteis para os demônios, os
infiéis e os ímpios, portanto para os danados: “Repito, para não orar então pelos homens
destinados ao fogo eterno, pelos anjos maus. Essa mesma estende-se a não orar então pelos
defuntos infiéis e ímpios, embora a gente reze por todos em geral”.306
Só podem ser válidos para o grupo o Tempo da Memória, “é preciso dizer que não
serão proveitosas a todos, mas somente aqueles que durante a vida, tornaram-se dignos de tal
benefício”.307
299
TERRIN, Aldo Natale. O rito, antropologia e fenomenologia da ritualidade, p. 9.
300
Ibidem. p. 38.
301
Ibidem. p. 65.
302
FRIES, Heinrich, Dicionário de teologia. Conceitos fundamentais de teologia atual. Verbete morte, In H.
Volk, p. 366.
303
MOLTMANN, Jürgen. No fim, o início: breve tratado sobre a esperança, p. 167.
304
Ibidem, p. 167.
305
SANTO AGOSTINHO. Cidade de Deus. Livro 3, p. 309.
306
Ibidem, p. 309.
307
Idem. O cuidado devido aos mortos, p. 190.
93
relacionam possível entre vivos e mortos, pois, a morte não destrói esse vínculo. Agostinho
menciona “Deus não nos aconselharia a pedir se não quisesse dar”.308 A oração torna-se
uma dinâmica de solicitar a Deus aquilo que o coração mais anseia: o homem deseja viver.
Sendo Deus a fonte e origem de toda a benção, mesmo depois da morte os vivos
rogam a Deus por aqueles que adormeceram, pois a liturgia dos funerais é uma celebração do
mistério pascal de Cristo. Nesta “recomendação”, a Igreja pede que os seus filhos,
incorporados pelo batismo em Cristo morto e ressuscitado, com Ele passem da morte à vida e,
devidamente purificados na alma, sejam associados aos santos e eleitos no Céu, enquanto o
corpo aguarda a bem-aventurada esperança da vinda de Cristo e a ressurreição dos mortos.
Por isso, a Igreja oferece orações pelos defuntos no Sacrifício Eucarístico, memorial
da Páscoa de Cristo. Eleva orações e faz sufrágios por eles, para que, pela comunhão de todos
os membros de Cristo, todos aproveitem os frutos desta liturgia: auxílio espiritual para os
defuntos, consolação e esperança para os que choram a morte.
308
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica, Livro VI, p. 332.
309
ARIÈS, Phipille. O homem diante da morte, p. 55.
310
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 162.
94
Diz Agostinho:
Aqueles que devido à morte, foram subtraídos aos olhos dos vivos.
Advertem assim as pessoas a se lembrarem deles, para não acontecer que,
tendo sido retirados dos olhos dos vivos, não sejam também do coração pelo
esquecimento.311
O bispo de Hipona manifesta certa frieza às falsas devoções, nas quais vislumbra
alguma filiação às magias africanas, insisti muito no fato de que as honras devidas aos mortos
servem principalmente para consolo dos vivos: “só as orações tinham verdadeira ação
propiciadora”.312
Outro grande meio de oração pelos mortos que ganhou força entre o povo católico do
ocidente foi à recitação do rosário. Aos monges cistercienses que não tinham instrução, foi
estabelecido que recitassem cento e cinquenta Ave-Marias, substituindo, assim, o ofício dos
salmos. Depois foi acrescentado um grão maior em cada grupo de dez Ave-Marias com a
recitação de um Pai Nosso, surgindo as dezenas.313 “O rosário se tornou uma forma de
devoção popular”.314 A recitação dos Mistérios da Dor do Rosário, tornou-se natural nos
velórios católicos, comumente observa-se um terço colocado entre as mãos da pessoa
falecida. Na Ave Maria o cristão recita: “Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós pecadores
agora e na hora de nossa morte. Amém”. Trata-se de uma súplica de interseção à Mãe de Deus
pela pessoa falecida. Sobre essa oração afirma Anne Vail no livro A história do rosário: “o
povo conhecia e recitava, por si mesmo e pelas almas de parentes e amigos falecidos e,
sentido prático, para acompanhar o ritmo da oração do mosteiro”.315
311
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 163.
312
ARIÈS, Phipille. O homem diante da morte, p. 55.
313
LOUTH, Andrew. Verbete: Oração. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia, p. 1288.
314
Ibidem. p. 1289.
315
VAIL, Anne. História do rosário, p. 28.
95
Agostinho depois de ter partido de Óstia nunca mais regressou a sepultura de sua
mãe Mônica, contudo certamente diante de muitas outras sepulturas deve ter recordado dela e
a recomendada a Deus com suas preces.
3.3.2 As indulgências
316
SANTO AGOSTINHO. As confissões, p. 262.
317
SESBOÜÉ, Bernard. Verbete: Indulgência. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia, p. 892.
318
Ibidem, p. 892.
96
Porque o poder de conceder indulgências foi dado por Cristo à sua Igreja e
ela usou desde poder, que lhe foi divinamente outorgado desde os tempos
mais antigos, o santo concílio ensina e manda que se mantenha na Igreja o
319
SESBOÜÉ, Bernard. Verbete: Indulgência. In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de teologia, p. 891.
320
Ibidem, p. 892.
321
Ibidem, p. 892.
322
COLLANTES, Justo. A fé católica, p. 1.190.
97
O documento salienta que o uso correto das indulgências conduz para uma união
intima com Cristo, ligando uns aos outros num auxílio de vida sobrenatural, principalmente
nos irmãos adormecidos em Cristo.
3.3.3 O purgatório
323
COLLANTES, Justo. A fé católica, p. 1.197.
324
BOFF, Leonardo. Vida para além da morte, p. 180.
325
COLLANTES, Justo. A fé católica, p. 1.198.
326
PAULO VI, Papa. Indulgentiarum Doctrina, p. 96.
327
SANTO AGOSTINHO. A cidade de Deus, L.3, p. 296.
98
que o uso da expressão purgatório vai ser assumido na Igreja Ocidental, embora a Igreja
Oriental continuará utilizando a expressão Tempo Intermediário.328
Já que a Igreja católica, instruída pelo Espírito Santo, a partir das sagradas
Escrituras e da antiga tradição dos Padres, nos sagrados concílios e mais
recentemente neste sínodo ecumênico, ensinou que o purgatório existe e que
as almas ai retidas podem ser ajudadas pelos sufrágios dos fiéis e, sobretudo
pelo santo sacrifício do altar, o sínodo prescreve aos bispos que se
empenhem diligentemente para que a sã doutrina sobre o purgatório,
transmitida pelos santos padres e pelos sagrados Concílios. Seja acreditada,
mantida, ensinada e pregada por toda a parte (DH 1820).
A Igreja ensina que o purgatório é um estado, não lugar, para o qual migram as almas
daqueles que morreram na amizade de Deus, não sendo ainda merecedores do céu devido as
penas, nem tão pecadores que mereçam o inferno, ou seja, ficando num estágio intermediário.
No Purgatório as almas sofrem penas purificadoras para que possam alcançar a graça de
entrarem na alegria de Deus. O Purgatório não está ligado diretamente à falta, mas à pena.
Todo o perdão que Deus concede extingue a falta, embora não apague a pena. Como já
apresentamos anteriormente, ao tratar das indulgências.
Deste modo, torna-se mister compreender a diferença entre falta e pena. A falta está
relacionada com o ato, a desobediência a Deus, ao pecado em si. A pena é consequência da
falta, conforme o grau da falta, será o grau de pena. Contudo, estando à pessoa viva,
reconhecendo e confessando suas faltas, sua alma sofre uma pena sobre o formato de
penitência voluntária, ou seja, ela mesma paga, executando a pena. Tornando se uma obra
meritória, dando-lhe méritos no céu. Aquelas almas que se encontram no Purgatório, não
cometeram faltas depois na morte, mas, sim, em vida. A maior penúria que sofrem é não
328
RATZINGER, Joseph. Escatología. La murte y la vida eterna, p. 204.
329
Ibidem. p. 205.
99
Somente depois de totalmente purificados poderão ver a Deus. Dentro deste contexto
que os sufrágios ajudam as almas no purgatório. Sufrágio é sinônimo de favorecimento.
Quando a Igreja menciona sufrágios aos fiéis, significa toda forma de ajuda que pode ofertar a
Deus por aqueles que se encontram no Purgatório. Sendo o purgatório parte do lugar
intermediário, o sofrimento daqueles que se encontram neste espaço pode ser mitigado pelos
sufrágios.330 Diz, Jacques Le Goff, que a confiança da eficácia das orações de sufrágio pelos
mortos demorou a consolidar entre os cristãos e que Agostinho contribuiu para duas crenças:
“Os sufrágios pelos mortos supõem a constituição de longas solidariedades de um lado e de
outro da morte e relações estreitas entre vivos e mortos”.331
Ao tratar do culto aos mortos como lugar teológico, a verdade sobre a comunhão dos
santos é fundamental para compreender essa relação. Bruno Forte afirma que: “a Igreja é a
comunhão dos santos”.332 O termo “Comunhão dos Santos” aparece pela primeira vez na
Igreja Católica no século IV, na explicação do Símbolo escrito por Dom Nicetas, bispo de
Aquileia (DH 19). A Igreja primitiva usava várias profissões de fé que traziam a doutrina
recebida dos Apóstolos.333 Quase todas as profissões de fé continham o termo “Comunhão
dos Santos”, a redação romana, mais antiga registrada é a carta de Marcelo de Ancira 334 ao
Papa Júlio I, em 340,335 que diz: “Creio... e no Espírito Santo, a santa Igreja Católica, a
comunhão dos santos, a remissão dos pecados, a ressurreição da carne, e a vida eterna.
Amém” (CCE, n. 184).
330
GOFF, Jacques Le. O nascimento do purgatório, p. 25.
331
Idem.
332
FORTE, Bruno. Introdução à fé: Aproximação ao mistério de Deus, p. 78.
333
COLLANTES, Justo. A fé católica, p. 1216.
334
Marcelo de Ancira foi um dos bispos presentes nos Concílios de Ancira e no Primeiro Concílio de Niceia.
Ele foi o forte opositor do arianismo. Nasceu em 285 e morreu em 374.
335
COLLANTES, Justo. A fé católica, p. 1216.
100
O Papa Leão XIII, ao falar da Comunhão dos Santos na encíclica Mirae Caritatis,
em maio de 1902, descreve que a comunhão dos santos não é outra coisa senão a comunhão
de auxílio, de expiação, de preces, de benefícios entre os fiéis já na pátria celeste, ou ainda
entregues ao fogo purificador, ou peregrinando ainda na terra, construindo todos uma só
cidade, cuja cabeça é Cristo, cuja forma é a caridade:
A comunhão dos santos nada mais é que uma participação mútua de ajuda,
de expiação, de orações, de benefícios, entre os fiéis, ou triunfante na pátria
celestial, ou sofrendo no fogo do purgatório. Ou mesmo peregrinos na terra,
dos quais há apenas uma cidade, que tem Cristo na cabeça, e caridade por
forma, sabemos pela fé que, embora o augusto sacrifício só a Deus possa se
oferecer, podemos também celebrar em honra dos santos que reinam no céu
com Deus, que os coroou.336
A comunhão dos santos evoca três referidos significados, segundo Bruno Forte:
Communio Sancti, Communio Sancta e Communio Sanctorum. A primeira, Communio Sancti,
significava a participação nas ‘coisas’ santas por ação do Espírito santificador de Deus. A
segunda, Communio Sancta, era empregada na escuta da Palavra e na participação dos
sacramentos. A terceira, Communio Sanctorum, aos batizados que, ricos nos dons do Espírito,
formavam a comunhão dos santos.337 O Concílio de Trento preferiu manter as três
interpretações quando diz: “Os santos comungam das coisas santas, isto é, em comunhão com
a Igreja, ouvem a Palavra, recebem os sacramentos, rezam e mutuamente se ajudam”.338
Contudo, ambas estão relacionadas ao homem em comunhão com Deus que o santifica,
demonstrando uma Igreja aberta ao Espírito Santo e suas obras, principalmente a partir do
batismo.
336
LEÃO XIII. Mirae Caritatis, n. 18. Vaticano: 1902. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/leo-
xiii/it/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_28051902_mirae-caritatis.html> Acesso em: 10 set. 2017.
337
FORTE, Bruno. Introdução à fé: Aproximação ao mistério de Deus, p. 78.
338
VILAPLANA, Antonio. La comunion de los santos, p. 14.
101
339
FORTE, Bruno. Introdução à fé: Aproximação ao mistério de Deus, p. 78.
340
Ibidem. p. 79.
341
Ibidem. p. 80.
342
Ibidem. p. 81.
343
BOGAZ, Antônio. SIGNORINI, Ivanir. Celebração dos santos e culto aos mortos, p. 38.
102
Recorrendo a Agostinho, render culto aos mortos não é idolatria, pois cultuar é uma
maneira ritual de reverência e respeito. A adoração é um culto prestado somente a Deus, por
meio de Jesus Cristo. “Não se pode negar que as almas dos defuntos sejam aliviadas pela
piedade de seus parentes vivos, quando por elas é oferecido o sacrifício do Mediador ou
quando são distribuídas esmolas na Igreja”.345 Toda oração de sufrágio é expressão de
comunhão dos vivos para os mortos. A oração tem ainda o poder de introduzir o homem na
Trindade e aceita que a Trindade ingresse na sua existência. Dentro deste denso movimento
trinitário ocorre a experiência da comunhão dos santos.346
Pela fé, estramos na mística de Deus. Não se fala mais de passado, presente e
futuro, vivos e mortos. Essa distinção não faz sentido aos olhos de Deus e do
cristão. Portanto, olhemos para todos os fiéis vivos e mortos e que nascerão.
Esses são os fiéis, os justos e seguidores de Deus, são uma unidade, uma
comunhão, comunhão de espírito, comunhão de todos os santos de Deus.
Portanto, quando falamos de seguidores de Deus, de seus justos santos, não
podemos pensar somente nos vivos, mas incluímos os mortos s que nascerão
e os que estão no purgatório.347
A comunhão dos santos torna-se uma unidade em torno da Trindade. Uma comunhão
com vínculos de amor, reverência, humildade e intimidade entre a criatura e o criador sem
possibilidade de ocorre confusão entre a natureza humana com a divina.
344
FORTE, Bruno. Introdução à fé: Aproximação ao mistério de Deus, p. 82.
345
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 193.
346
FORTE, Bruno. Introdução à fé: Aproximação ao mistério de Deus, p. 83.
347
BOGAZ, Antônio. SIGNORINI, Ivanir. Celebração dos santos e culto aos mortos, p. 34.
103
CONCLUSÃO
Pela morte termina o relacionamento físico entre as pessoas, mas não cessa o
relacionamento espiritual. Isso é possível por meio da oração entre os vivos e os mortos, pela
comunhão dos santos. Pela morte ocorre uma passagem da condição temporal deste mundo
para a condição espiritual, não rompendo a relacionalidade entre ambas.
No tratado O cuidado devido aos mortos, Santo Agostinho mencionou que as orações
de sufrágio podem ajudar as pessoas falecidas. Contudo, percebe-se grande riqueza de
elementos para afirmar que o culto aos mortos também pode ser considerado um lugar
teológico. O locus theologicus desenvolveu-se como um método para estudar a teologia como
ciência, possuindo três colunas basilares: estar relacionado com a verdade, possuir grande
valor antropológico para os homens e, principalmente, conter a presença salvífica de Deus.
Procurou-se demostrar continuamente no desenvolvimento desta dissertação essas três linhas:
verdade, valor antropológico e salvação.
Com o passar do tempo uma primeira centelha de esperança na vida após a morte
surge com a tribo israelita dos Macabeus, quando seu líder Judas Macabeu envia um dote para
Jerusalém solicitando que rezem pelos seus soldados mortos em batalha. Na alvorada do
cristianismo, o cuidado aos mortos tornou-se uma prática devota. Os primeiros mártires e
santos irão receber sepultura, reverências e orações. Não se satisfazia somente depositar o
cadáver na sepultara, mas era necessário cuidar da forma como celebrar o corpo que estava
sendo sepultado. Surgiu a necessidade de se criarem ritos de despedida que pudessem
expressar a fé na ressurreição e o cemitério tornou-se parte constitutiva da igreja. Nascia uma
104
relativa igualdade, não importava a condição social, livre ou escravo, cristão ou pagão. A
Igreja e suas irmandades buscariam garantir sepultura para todos.
A oração une a criatura ao Criador, essa unidade é permeada pela intercessão, nesse
contexto são os vivos que rogam a Deus pelos seus mortos, para que possam ter suas faltas
perdoadas e encontrem morada na casa do Pai. Como afirmou o Bispo de Hipona, rezar diante
da sepultura é crer na ressurreição.348 A oração mais sublime para o Cristianismo tornou-se a
Celebração da Eucaristia, com o passar dos séculos o rito da missa foi sofrendo acréscimos,
como citar o nome das pessoas falecidas. Tempos depois surgirá uma missa própria para os
mortos (pro defunctis) e uma data exclusiva no calendário litúrgico para rezar pelos mortos, 2
de novembro.
Viu-se que o bispo de Hipona classifica morte em três segmentos. A morte espiritual,
pelo pecado ficando separado de Deus, morte corporal quando a pessoa morre fisicamente e
morte total quando o espírito e o corpo morrem. Para Agostinho, a pior das mortes é a
espiritual, pois em toda a criação somente o homem é dotado de alma e esta tem
348
TERRA, João. Os mistérios da vida de Jesus. p. 198.
349
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 143.
105
potencialidade de conduzir para Deus. Ele não despreza ou rebaixa o corpo, sendo criado por
Deus, logo, é bom. Quanto aos mortos os divide em três grupos: muito bons, estão na glória,
não tão maus, se encontram no purgatório e os muito maus, se condenaram. Cada um deles
traz consigo o tempo da memória, os registros de seus atos, equivalente a autoconsciência. Na
ressurreição do corpo Agostinho formaliza seu pensar a partir dos textos bíblicos de São
Paulo, realizando um paralelo comparativo da morte e ressurreição de Cristo com a morte e
ressurreição do homem.
No terceiro capítulo, trabalhou-se para demonstrar que o culto aos mortos pode ser
considerado um lugar teológico, afirmando que o verdadeiro sentido teológico da morte é:
morrer na graça como único meio para retornar ao paraíso perdido pelos nossos primeiros
pais. Muitos encaram a morte ainda como um castigo, a morte é fruto do pecado original, mas
a morte é meio para a eternidade. Agostinho assegura que não é a fé do homem que sente
medo da morte, mas a sua natureza humana.350 Salientou-se, ainda, que cinco palavras
relacionadas com a morte do homem são importantes: criação, graça, pecado, redenção e
escatologia. Também que Cristo assumindo a condição humana, tornou-se mortal para nos
salvar pela sua morte. Somente ele por sua condição divina poderia realizar nossa redenção,
pois, como a morte é a manifestação visível do pecado no mundo, Cristo é a manifestação da
misericórdia.
350
SANTO AGOSTINHO. O cuidado devido aos mortos, p. 194.
106
bom e meio para alcançarmos a salvação. Os sacramentos são bens espirituais, mas realizados
no corpo. Mesmo o corpo tornando-se um cadáver conserva sacralidade, superando o
dualismo corpo e alma. O culto da memória aos mortos pode ser horizontal ou vertical. Na
horizontal é meramente humana, social, ateia. Na vertical é comunitário, espiritual, com o
transcendente. Destacando, também, que uma das dimensões do amor é a presença. A morte
geralmente ocorria no lar, bem como o velório. Com a evolução médica a morte tornou-se um
morrer solitário. O velório é um rito de despedida, não encontro para maldizer a morte.
Agostinho afirmou no velório de Mônica:
Não nos parecia justo celebrar o funeral com lamentos e choros, pois essas
demonstrações servem usualmente para deplorar a morte como infelicidade
ou como aniquilamento total, ao passo que essa morte não era uma desgraça,
nem era para sempre.351
Ainda, se fala que oração pessoal é preciosa, contudo a comunitária é mais elevada
ainda. A missa de sétimo dia e a missa de finados tornam-se dois momentos privilegiados
para recomendar os mortos. Que o culto é um ato religioso que expressa um desejo espiritual
para Deus. Esta dimensão de oração intercessão é denominada comunhão dos santos, pois, a
Igreja é a comunhão dos santos.352
351
SANTO AGOSTINHO. Confissões, p. 259.
352
FORTE, Bruno. Introdução à fé: Aproximação ao mistério de Deus, p. 78.
353
BRUSTOLIN, Leomar Antônio. Quando Cristo vem...: A parusia na escatologia cristã, p. 120.
107
Torna-se mister encontrar uma forma de reconciliar o homem com a morte, mostrar
que esta é condição intrínseca do viver. Como e quando ela acontece pode ser incerto, mas, a
morte em si não deveria ser. Constantemente deve estar no horizonte de nosso viver como um
encontro que se concretizará. Deve-se estabelecer um relacionamento lúcido com a morte, não
angustiante, consciente e não doentio, uma dimensão da vida a ser abraçada. O ato de morrer
é natural, assim deveria ser tratada a morte: com humanidade; não com desprezo, no
isolamento, na solidão, em segredo, tornando a morte algo desumano e cruel. Pois,
“humanizar a morte significa, saber enfrentar a dor da separação que ela traz consigo”. 354 Para
a humanização da morte o grande esplendor a ser redescoberto é a ressurreição. Somente nela
será encontrado o sentido no viver, será encontrada a paz, recriando o mundo e o tornando
humano. Um mundo de seres humanos e não de feras. Um lugar para viver e não
simplesmente esperar a morte.355
Agostinho certa ocasião disse: “Beleza tão antiga e tão nova, tarde te encontrei, tarde
te amei”.356 Realmente a Igreja possui muitos tesouros que ela própria desconhece, o rito
pelos mortos é um destes tesouros no qual se pode conhecer o grandioso amor de Deus por
suas criaturas.
354
RICCA, Paolo. Il Cristiano davanti alla morte, p. 50.
355
Ibidem. p. 52.
356
SANTO AGOSTINHO. Confissões , livro X, nº 27, p. 299.
108
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