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Lima Barreto - O Único Assassinato de Cazuza

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Universidade da Amaznia

O nico Assassinato
de Cazuza

de Lima Barreto

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O nico Assassinato de Cazuza


de Lima Barreto

Hildegardo Brando, conhecido familiarmente por Cazuza. tinha chegado aos


seus cinqenta anos e poucos, desesperanado; mas no desesperado. Depois de
violentas crises de desespero, rancor e despeito, diante das injustias, que tinha
sofrido em todas as coisas nobres que tentara na vida, viera-lhe uma beatitude de
santo e uma calma grave de quem se prepara para a morte.
Tudo tentara e em tudo mais ou menos falhara. Tentara formar-se, foi
reprovado; tentara o funcionalismo, foi sempre preterido por colegas inferiores em
tudo a ele, mesmo no burocracismo; fizera literatura e se, de todo, no falhou, foi
devido audcia de que se revestiu, audcia de quem " queimou os seus navios".
Assim mesmo, todas as picuinhas lhe eram feitas. As vezes, julgavam-no inferior a
certo outro, porque no tinha pasta de marroquim; outras vezes tinham-no por
inferior a determinado " antologista" , porque semelhante autor havia, quando "
encostado" ao Consulado do Brasil, em Paris, recebido como presente do Sio, uma
bengala de legtimo junco da ndia. Por essas do rei e outras ele se aborreceu e
resolveu retirar-se da lia. Com alguma renda, tendo uma pequena casa, num
subrbio afastado, afundou-se nela, aos quarenta e cinco anos, para nunca mais ver
o mundo, como o heri de Jules Verne, no seu "Nutilus". Comprou os seus ltimos
livros e nunca mais apareceu na Rua do Ouvidor. No se arrependeu nunca de sua
independncia e da sua honestidade intelectual.
Ao cinqenta e trs anos, no tinha mais um parente prximo junto de si.
Vivia, por assim dizer, s, tendo somente a seu lado um casal de pretos velhos, aos
quais ele sustentava e dava, ainda por cima, algum dinheiro mensalmente.
A sua vida, nos dias de semana, decorria assim: pela manh, tomava caf e
ia at a venda, que supria a sua casa, ler os jornais sem deixar de servir-se, com
moderao. de alguns clices de parati, de que infelizmente abusara na mocidade.
Voltava para a casa, almoava e lia os seus livros, porque acumulara uma pequena
biblioteca de mais de mil volumes. Quando se cansava, dormia. Jantava e, se fazia
bom tempo, passeava a esmo pelos arredores, to alheio e soturno que no
perturbava nem um namoro que viesse a topar.
Aos domingos, porm, esse seu viver se quebrava. Ele fazia uma visita, uma
nica e sempre a mesma. Era tambm a um desalentado amigo seu. Mdico, de real
capacidade, nunca o quiseram reconhecer porque ele escrevia "propositalmente" e
no "propositadamente", "de sbito" e no - "s sbitas", etc., etc.
Tinham sido colegas de preparatrios e, muito ntimos, dispensavam-se de
usar confidncias mtuas. Um entendia o outro, somente pelo olhar.
Pelos domingos, como j foi dito, era costume de Hildegardo ir, logo pela
manh, aps o caf, casa do amigo, que ficava prximo, ler l os jornais e tomar
parte no " ajantarado", da famlia.
Naquele domingo, o Cazuza, para os ntimos, foi fazer a visita habitual a seu
amigo doutor Ponciano.
Este comprava certos jornais; e Hildegardo, outros. O mdico sentava-se a
uma cadeira de balano; e o seu amigo numa dessas a que chamam de bordo ou;
de lona. De permeio, ficava-lhes a secretria. A sala era vasta e clara e toda ela
adornada de quadros anatmicos. Liam e depois conversavam. Assim fizeram,
naquele domingo.
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Hildegardo disse, ao fim da leitura dos quotidianos:
No sei como se pode viver no interior do Brasil .
Porque ?
Mata-se toa por d c aquela palha. As paixes, mesquinhas paixes
polticas, exaltam os nimos de tal modo, que uma faco no teme eliminar o
adversrio por meio do assassinato, s vezes o revestindo da forma mais cruel. O
predomnio, a chefia da poltica local o nico fim visado nesses homicdios, quando
no so questes de famlia, de herana, de terras e, s vezes, causas menores.
No leio os jornais que no me apavore com tais notcias. No aqui, nem ali; em
todo o Brasil, mesmo s portas do Rio de Janeiro. um horror! Alm desses
assassinatos, praticados por capangas que nome horrvel! h os praticados
pelos policiais e semelhantes nas pessoas dos adversrios dos governos locais,
adversrios ou tidos como adversrios. Basta um boquejo, para chegar uma escolta,
varejar fazendas, talar plantaes, arrebanhar gado, encarcerar ou surrar gente que,
pelo seu trabalho, devia merecer mais respeito. Penso, de mim para mim, ao ler tais
notcias, que a fortuna dessa gente que est na cmara, no senado, nos ministrios,
at na presidncia da repblica se alicera no crime, no assassinato. Que acha
voc?
Aqui, a diferena no to grande para o interior nesse ponto. J houve
quem dissesse que, quem no mandou um mortal deste para o outro mundo, no
faz carreira na poltica do Rio de Janeiro.
verdade; mas, aqui, ao menos, as naturezas delicadas se podem abster
de poltica; mas, no interior, no. Vm as relaes, os pedidos e voc se alista. A
estreiteza do meio impe isso, esse obsquio a um camarada, favor que parece
insignificante. As coisas vo bem; mas, num belo dia, esse camarada, por isso ou
por aquilo, rompe com o seu antigo chefe. Voc, por lealdade, o segue; e eis voc
arriscado a levar uma estocada em urna das virilhas ou a ser assassinado a
pauladas como um co danado. E eu quis ir viver no interior ! De que me livrei, santo
Deus .
Eu j tinha dito a voc que esse negcio de paz na vida da roa histria.
Quando cliniquei, no interior, j havia observado esse prurido, essa ostentao de
valentia de que os caipiras gostam de fazer e que, as mais das vezes, causa de
assassinatos estpidos. Poderia contar a voc muitos casos dessa ostentao de
assassinato, que parte da gente da roa, mas no vale a pena. coisa sem valia e
s pode interessar a especialistas em estudos de criminologia.
Penso observou Hildegardo que esse xodo da populao dos
campos para as cidades, pode ser em parte atribudo falta de segurana que
existe na roa. Um qualquer cabo de destacamento um Csar naquelas paragens
que far ento um delegado ou subdelegado um horror!
Os dois calaram-se e, silenciosos, se puseram a fumar. Ambos pensavam
numa mesma coisa: em encontrar remdio para um to deplorvel estado de coisas.
Mal acabavam de fumar, Ponciano disse desalentado:
E no h remdio.
Hildegardo secundou-o.
No acho nenhum.
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Continuaram calados alguns instantes, Hildegardo leu ainda um jornal e,
dirigindo-se ao amigo, disse:
Deus no me castigue, mas eu temo mais matar do que morrer. No posso
compreender como esses polticos, que andam por a, vivam satisfeitos, quando a
estrada de sua ascenso marcada por cruzes. Se porventura matasse creia que
eu, a que no tem deixado passar pela cabea sonhos de Rasklnikoff, sentiria
como ele: as minhas relaes com a humanidade seriam de todo outras, da em
diante. No haveria castigo que me tirasse semelhante remorso da conscincia,
fosse de que modo fosse, perpetrado o assassinato. Que acha voc?
Eu tambm; mas voc sabe o que dizem esses polticos que sobem s
alturas com dezenas de assassinatos nas costas?
No.
Que todos ns matamos.
Hildegardo sorriu e fez para o amigo com toda a serenidade:
Estou de acordo. J matei tambm.
O mdico espantou-se e exclamou:
Voc, Cazuza!
Sim, eu! confirmou Cazuza.
Como? Se voc ainda agora mesmo...
Eu conto a coisa a voc. Tinha eu sete anos e minha me ainda vivia.
Voc sabe que, a bem dizer, no conheci minha me .
Sei.
S me lembro dela no caixo quando meu pai, chorando, me carregou
para aspergir gua benta sobre o seu cadver. Durante toda a minha vida, fez-me
muita falta. Talvez fosse menos rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais
contente com a vida, se ela vivesse. Deixando-me ainda na primeira infncia, bem
cedo firmou-se o meu carter; mas, em contrapeso, bem cedo, me vieram o
desgosto de viver, o retraimento, por desconfiar de todos, a capacidade de ruminar
mgoas sem comunic-las a ningum - o que um alvio sempre; enfim, muito antes
do que era natural, chegaram-me o tdio, o cansao da vida e uma certa
misantropia.
Notando o amigo que Cazuza dizia essas palavras com emoo muito forte e
os olhos midos, cortou-lhe a confisso dolorosa com um apelo alegre:
Vamos, Carleto; conta o assassinato que voc perpetrou.
Hildegardo ou Cazuza conteve-se e comeou a narrar.
Eu tinha sete anos e minha me ainda vivia. Morvamos em Paula Matos...
Nunca mais subi a esse morro, depois da morte de minha me...
Conte a histria, homem ! fez impaciente o doutor Ponciano.
A casa, na frente, no se erguia, em nada, da rua; mas, para o fundo,
devido diferena de nvel, elevava-se um pouco, de modo que, para se ir ao
quintal, a gente tinha que descer uma escada de madeira de quase duas dezenas
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de degraus. Um dia, descendo a escada, distrado, no momento em que punha o p
no cho do quintal, o meu p descalo apanhou um pinto e eu o esmaguei. Subi
espavorido a escada, chorando, soluando e gritando: "Mame, mame! Matei,
matei..." Os soluos me tomavam a fala e eu no podia acabar a frase. Minha me
acudiu, perguntando: "O que , meu filho !. Quem que voc matou?" Afinal, pude
dizer: "Matei um pinto, com o p."
E contei como o caso se havia passado. Minha me riu-se, deu-me um pouco
de gua de flor e mandou-me sentar a um canto: "Cazuza, senta-te ali, espera da
polcia." E eu fiquei muito sossegado a Um canto, estremecendo ao menor rudo que
vinha da rua, pois esperava de fato a polcia. Foi esse o nico assassinato que
cometi. Penso que no da natureza daqueles que nos erguem s altas posies
polticas, porque, at hoje, eu...
Dona Margarida, mulher do doutor Ponciano, veio interromper-lhes a
conversa, avisando-os que o "ajantarado" estava na mesa.
Revista Sousa Cruz. Rio, fevereiro, 1922.

Fim

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