A Arte e A Vida: Interseções
A Arte e A Vida: Interseções
A Arte e A Vida: Interseções
O que De Duve est dizendo que os gneros servem tanto para estabelecer limites
internos quanto externos s obras de arte. Isto , uma vez estabelecido o que uma
pintura, ou uma escultura, ou um romance, possvel afirmar com segurana que um
objeto qualquer que no pode ser inserido em uma dessas categorias, tambm no pode
ser chamado de arte. Esse critrio to fcil, e to seguro, que, como o prprio De Duve
observa, a pergunta, isto arte? no fazia sentido nenhum dentro do sistema das Belas
Artes. claro que sempre se podia julgar que uma pintura no era boa o suficiente para
ser arte, mas essa uma questo muito diferente de estar em frente a um objeto e no
saber se ele para ser visto como arte. Uma situao que se tornou comum, quando, no
incio do sc. XX, esse sistema foi substitudo, como diz De Duve, por um novo regime
de arte, ao qual ele d o nome de arte em geral. Essa nova designao, por sua vez,
descreve a situao na qual nos encontramos conscientemente desde que o ready made
duchampiano provou a possibilidade de fazer arte com o que quer que seja. A arte em
geral, continua ele, no mais um mdium, como a pintura ou a escultura, no
tambm mais um estilo, ou um movimento. O que ela faz simplesmente registrar a
potencialidade para o no importa o qu de ser arte, potencialidade que caracteriza o
mundo da arte de hoje. Alis, o que Duchamp queria quando props o urinol como arte
era exatamente demonstrar o que sua posteridade realizou, a saber, a ampliao
ilimitada do conceito arte. Neste sentido, o hibridismo que caracteriza a produo
no tem uma essncia passvel de ser capturada como tambm compreenderam que a
prpria lgica do desenvolvimento dar arte mostra que suas transformaes nunca
deixaro de ocorrer. De fato, quando consideramos o modo como as obras de arte
existem em diferentes pocas e em diferentes lugares, percebemos uma variedade to
grande de objetos que percebemos ser realmente impossvel apontar alguma
caracterstica comum presente em todos. Ou seja, se no h uma uniformidade nos
objetos, tambm no h no sentido do termo usado para nome-los.
No obstante essa diversidade da produo artstica nos fazer pensar que a arte
diferente de vrios modos em diferentes tempos e lugares, eu gostaria de apontar que
existe pelo menos uma grande diferena, ou contraste radical, entre dois modos de fazer
e entender a arte. Isso claramente visvel na histria da arte ocidental, mas talvez isso
seja hoje vlido globalmente. Essa diferena apareceu no momento em que um modo
artesanal de fazer arte foi substitudo pela ideia de que a arte , acima de tudo, um
conceito.
Sabemos que durante muito tempo, o artista foi julgado pelo seu talento manual,
um talento especfico de pintar, esculpir, representar, tocar um instrumento, etc. Esse
talento deveria estar visvel nas obras que ele produz, de acordo com as tcnicas
relativas a cada gnero. Essa concepo da arte como produo de acordo com gneros
determinados perfeitamente caracterizada com a expresso Belas Artes, como diz De
Duve, para quem,
contempornea marca exatamente o fim dos limites internos arte bem como da ideia
de pureza dos gneros que marcou a arte moderna.
A diferena entre esses dois perodos, De Duve diz claramente, que na arte em
geral absolutamente no existem limites para o que pode ser arte. Ou seja, enquanto os
gneros artsticos, e sua necessria artesania impunham restries para o que se poderia
considerar como um trabalho de arte, no mundo da arte atual o artista, liberto, como
queria Duchamp, do domnio da mo pode finalmente produzir arte com a liberdade
do pensamento. Artistas como Cildo Meireles, por exemplo, reconhecem que a arte
conceitual, a despeito da sua aparente esterilidade, torna mais democrtico o fazer
artstico, uma vez que qualquer coisa pode ser usada para produzir arte. E se qualquer
coisa pode ser arte, ento tambm qualquer um pode ser artista.
Evidentemente, essa abertura total do campo da arte tem gerado no pblico uma
grande incompreenso, e muitas vezes, um sentimento de dvida a respeito da
legitimidade de atribuir o estatuto de arte a certos objetos que parecem no se distinguir
de coisas que nunca se imaginou que pudessem ser vistas como arte, tais como um
sopro, um riscar de fsforos, uma exploso, e para citar o exemplo mais famoso, um
prosaico urinol de banheiro masculino. Muitas vezes, essa incompreenso gera
simplesmente um sentimento de rejeio por parte do pblico, e frequente o
aparecimento de observaes at mesmo agressivas nos cadernos de visitas de
exposies de arte contempornea. Outras vezes, o pblico aturdido e decepcionado
simplesmente questiona: mas ento, qualquer coisa pode ser arte?
A resposta : sim. Esse de fato o nosso momento atual; vivemos um tempo em
que no h limites para o que pode ser arte, desde que h 100 anos o primeiro ready
made duchampiano instaurou o novo regime histrico da arte ao qual ns ainda
pertencemos. Mas, preciso fazer uma ressalva importante: que tudo possa se tornar
arte, no se segue que qualquer coisa arte, ou de que a arte qualquer coisa. Nem
mesmo, que tudo que proposto como arte seja aceito como arte. Tudo pode ser arte,
mas, de fato, nem tudo o .
Assim, enquanto que no sistema das Belas Artes, os gneros definiam os limites
internos e externos das obras de arte, o seu desaparecimento significou o fim das
fronteiras internas s obras de arte. Qualquer coisa pode ser arte e, uma vez dentro do
mundo da arte, tudo o igualmente. Isso significa que o mundo da arte tornou-se de
algum modo, maior, e a possibilidade de incluir nele qualquer coisa, nos mostra que
essa expanso no tem limites. No entanto, a existncia mesma do conceito arte indica
que, de algum modo, os seus limites externos permanecem, marcando uma separao
entre o que arte e o que no . Nesse ponto podemos apontar duas questes. Uma
sobre como as coisas passam de meros objetos comuns obras de arte, e a outra sobre
a possibilidade de ultrapassar esse ltimo limite entre a arte e a vida, superando at
mesmo o uso do conceito arte.
De Duve afirma que o juzo esttico que separa, nesse campo de infinitas
possibilidades da arte em geral, aqueles objetos que se tornaro de fato arte. Mais
precisamente, o juzo esttico regulado por uma ideia de tipo kantiana, a ideia que
existe a arte em si, ou seja, de que todas as obras de arte do mundo devam possuir
alguma coisa em comum, mesmo que isso no seja mostrvel nem demonstrvel 4.
Minha viso wittgenstaniana me impede de seguir essa soluo kantiana, embora eu seja
simptica ideia que De Duve quer preservar, a de que nomear algo como arte s pode
ser o resultado de uma experincia esttica entendida como uma experincia inefvel e
pessoal. Assim, em vez dessa soluo kantiana, eu gostaria de abordar a questo de
***
Uma das afirmaes que se encontra repetida muitas vezes no texto de Danto a
de que vivemos em uma poca de absoluta liberdade da arte. A expresso fim da arte,
um dos fios condutores do seu pensamento, nomeia exatamente o fim dos limites
internos da arte, quer dizer, o abandono de todo e qualquer cnone historicamente
justificado, presente no desenvolvimento da arte desde o Renascimento at o fim do
Modernismo.
Danto diz, na Transfigurao do Lugar-comum, que o que o artista expressa
uma viso de mundo, mas no apenas uma viso pessoal, e sim a viso de uma poca no
sentido histrico. Mas, como para ele a histria da arte acabou em 1964, com a Brillo
Box de Andy Warhol, Danto reformula esta tese dizendo que a arte se relaciona agora
no com um momento histrico, mas com uma forma de vida, outro conceito central da
filosofia de Wittgenstein. Dito de outra forma: na arte histrica, a arte est sempre
conectada a um perodo histrico de uma determinada sociedade e sua evoluo no
ultrapassa o desenvolvimento social. Na arte ps-histrica no h mais a ideia de
evoluo na arte porque o seu objetivo (autoconscincia) foi alcanado, mas a arte
permanece conectada a um mundo que a produz. Para designar esse mundo, Danto usa o
conceito de forma de vida. 5
De acordo com Danto, teria sido Warhol quem, tendo Duchamp como precursor,
demonstrou que agora podemos finalmente compreender e aceitar que todas as formas
de arte so vlidas. Ele teria mostrado que no h mais um imperativo histrico para
fazer arte de uma determinada maneira, isto , no existem mais os limites da histria,
porque no existem mais as exigncias do talento especfico do artista como saber
desenhar, ou pintar, ou tocar, etc. Vivemos numa poca de extrema liberdade, como
Hegel profetizou: agora tudo pode ser arte e todos podem ser artistas. hegeliana
tambm a ideia de Danto de que a absoluta liberdade da arte depois do fim da arte
provm de estarmos conscientes da ausncia de liberdade que teria caracterizado o
perodo histrico da arte. Desse modo, a superao dos gneros e a passagem ao
conceito so aspectos de um mesmo processo histrico.
Nesse sentido, podemos afirmar que tambm para Danto qualquer coisa pode ser
arte, j que nada proibido. No entanto, como ele mesmo afirma vrias vezes, a arte
est sempre conectada a um mundo, ou a uma forma de vida, que a produz. Na
contemporaneidade esse mundo no mais histrico, ento no existem mais os limites
da histria. Mas existem ainda os limites da nossa forma de vida. Assim, s uma coisa
no nos permitida, porque impossvel: expressar uma forma de vida que no a
nossa. Ou seja, a nossa forma de vida que fundamenta nossas prticas artsticas, assim
como nela que se fundam os significados da palavra arte, bem como as regras para seu
uso. Do mesmo modo em que no possvel para uma pessoa viver uma vida que no
a sua, impossvel fazer uma arte que expresse uma vida que no a sua.
Nesse sentido, interessante perceber uma das diferenas entre a resposta de De
Duve e a de Danto quanto questo dos limites externos da arte. De Duve kantiano e
sua soluo passa pela autonomia do sujeito da experincia esttica que julga a partir de
5
A expresso forma de vida obviamente vem de , que disse que imaginar uma linguagem imaginar
uma forma de vida (IF, 19). Mas o mesmo se pode dizer sobre a arte: imaginar uma obra de arte
imaginar uma forma de vida na que ela desempenha um papel. (Danto, 2006, p.225)
como aquilo que pode ser se torna de fato arte a partir da exposio de algumas ideias
dantianas, que, a meu ver, tm mais afinidades com a filosofia de Wittgenstein do que o
prprio Danto gostaria de admitir.
ARTE=VIDA
A ideia que a arte expressa uma viso de mundo carrega uma distino fundamental na
teoria da arte de Danto. Obras de arte so smbolos, so representaes do mundo, e
como representaes so ontologicamente distintas daquilo que representam. O que
diferencia as obras de arte de meras coisas reais, diz Danto, o fato de que elas tm um
sobre-o-qu. Obras de arte tem contedo, e a intepretao deste contedo, tendo como
referncia o mundo da arte ao qual a obra pertence, o critrio que permite distinguir as
meras coisas comuns das obras de arte. Assim, a definio da arte de Danto coloca a
questo dos limites externos da arte de uma forma muito precisa, pois estabelece uma
separao muito clara entre a arte e a realidade. E no exagerado enfatizar que esta
distino fundamental na filosofia da arte de Danto. Todo seu esforo terico no
sentido de fornecer uma definio da arte repousa na crena de que o limite entre o que
e o que no arte pode, e deve ser traado atravs de uma definio.
No livro A transfigurao do lugar-comum Danto retoma a narrativa de
Nietzsche sobre a origem da tragdia e diz que a arte surgiu na Grcia Antiga
exatamente quando o ritual em honra ao deus Dionsio, no qual o prprio deus se fazia
presente encarnando na pessoa do sacerdote, foi substitudo por sua reproduo
simblica na forma do teatro trgico.6 A partir desse momento, os participantes do
ritual passaram a constituir o coro, da mesma forma que um ator passou a representar o
papel do deus. Nessa passagem, diz Danto, vemos uma mudana no prprio sentido da
palavra representao. No ritual, havia uma (re)apresentao do deus. No teatro, uma
representao dele. Estes dois sentidos do termo representao estariam ligados tambm
aos dois sentidos do termo aparncia. No primeiro, aparncia seria o aparecer de uma
coisa, no segundo, aparncia um termo que se ope realidade. Essa segunda
distino diz Danto, est na origem, tanto da arte quanto da filosofia. E tambm uma
distino fundamental na teoria do Tractatus de Wittgenstein onde a distino entre
linguagem e realidade a base de uma teoria da linguagem como espelho da realidade.
De fato, o prprio Danto assume que a teoria do Tractatus base para sua concepo da
arte em termos simblicos:
(...), o que me preocupa nesse momento (...) a diferena entre
realidade e arte. Procurei mostrar que essa diferena reside no fato de
que a arte se distingue da realidade da mesma maneira que a
linguagem quando esta utilizada de maneira descritiva (...). Isto no
quer dizer que a arte uma linguagem, mas que sua ontologia
coerente com a ontologia da linguagem, e que o mesmo contraste que
a ope realidade existe entre esta e o discurso. (...) O valor filosfico
da arte reside no fato histrico de, em seu surgimento, ter ajudado a
trazer conscincia dos homens o conceito de realidade. 7
A convico com a qual Danto defende a separao entre a arte e a realidade, ou entre a
arte e a vida corresponde e reconhece no s a passagem do mito ao logos, fundadora do
6
7
uma ideia reguladora. J Danto, com sua inspirao hegeliana, considera a arte uma
produo histrica e social. Mesmo a noo de conscincia histrica, que central no
seu texto, no uma conscincia individual, mas uma percepo coletiva do
desenvolvimento concreto, e dialtico, das formas artsticas.
tambm sobre as diferenas entre a forma de vida que produziu um teatro como o de Z Celso e a forma
de vida a partir da qual Danto emergiu como um filsofo da arte.
11
A tese principal do livro O Descredenciamento filosfico da arte a de que Plato teria, especialmente
nos argumentos anti-arte da Repblica, realizado uma espcie de desvalorizao irreversvel do valor da
arte. Curiosamente, ao valorizar a passagem do mito ao logos, o grande legado da filosofia platnica, ao
mesmo em que defende a arte contempornea como uma arte filosfica, Danto consegue ser platonista e
anti-platonista ao mesmo tempo.
12
A artista brasileira Lygia Clark, por exemplo, no comeo da dcada de 70, depois de uma longa carreira
na qual desenvolveu obras que buscavam a participao do espectador e sua interao com objetos
sensoriais, parou de se definir como artista e passou a se concentrar no desenvolvimento de experincias
sensoriais e seu uso teraputico.
10
Devemos reconhecer, no entanto, que desde o modernismo, e mais ainda no psmodernismo, a arte se tornou o lugar no qual todas as formas de produo de sentido
que no servem a algum interesse ou seguem alguma lgica determinada encontram
suporte e plena liberdade de expresso e ao. Eliminar o conceito arte em prol da vida
depende de superar a ideia da arte como transcendncia, ou seja, significa dizer que a
nossa sociedade no precisa mais desse espao autnomo de criao e liberdade que arte
resguarda, pois a liberdade e a criao estariam finalmente incorporadas nossa forma
de vida. Poderia ser este talvez o verdadeiro e definitivo fim da arte.
Referncias bibliogrficas
Agamben, G. Arqueologia da obra de arte. Transliterao e traduo de Vincius N.
Honesko. Princpios. V. 20, n.34, JulDez de 2013, pp. 349-361. Natal, RN.
Danto, A. A transfigurao do lugar-comum. Traduo Vera Pereira. So Paulo: Cosac
& Naify. 2005
_______. Aps o fim da arte: a arte contempornea e os limites da histria. Traduo
de Saulo Krieger. SP: Odysseus-Edusp, 2006
_______. O descredenciamento filosfico da arte. Traduo de Rodrigo Duarte. Belo
Horizonte: Autntica Editora, 2014.
De Duve, T. 2005. La Nouvelle donne: Remarques sur quelques qualifications du mot
art. In: Revue detudes esthtiques. PUP. pp- 83-95.
13
11
Assim, se por um lado, fazer algo como artista significa escolher permanecer
dentro das fronteiras da arte, por outro, existem cada vez mais pessoas e ou grupos
buscando colocar na vida a liberdade e a potncia da arte sem se preocupar com o
rtulo, com o propsito de se libertar da assepsia que a arte necessariamente realiza.
A superao completa dessa ltima fronteira parece ser o prximo passo, e talvez o
melhor a fazer seja seguir a sugesto de Agamben e deixar a arte seguir seu prprio
caminho:
12