Heinz G. Konsalik - Morrer À Sombra Das Palmeiras
Heinz G. Konsalik - Morrer À Sombra Das Palmeiras
Heinz G. Konsalik - Morrer À Sombra Das Palmeiras
Traduo de
FELISBELA GODINHO CARNEIRO
1973 by Hestia-Verlag GmbH
Impresso e encadernado por Printer Portuguesa, Lda.
para Crculo de Leitores
no ms de Fevereiro de 1992
N de edio: 3292
Depsito legal nmero 51 041/91
Lisboa 972-42-045
CAPITULO 1
O Sol erguia-se do mar como um mundo recm-nascido,
vermelho cor de sangue. O mar, rolando em ondas calmas
pela praia, cintilava num tom violeta trespassado por laivos
dourados. A brisa da manh soprava de mansinho atravs das
palmeiras, arrastando consigo o cheiro doce dos milhares de
frangipanas e tiaras do alto da colina at areia fina, de
um
vermelho-amarelado.
Aqueles breves momentos em que a manh subia do mar
eram, para Werner Becker, os mais belos minutos do dia.
Anne e Paul, o seu filho, ainda dormiam, e todos os dias se
repetia a mesma coisa: levantava-se devagarinho, deslizava
pela cabana na ponta dos ps, saa com o dia ainda fresco,
voltava-se para a bola de fogo do Sol e olhava depois para o
seu paraso: a ilha Viktoria, a praia, os rochedos negros, os
bancos de coral, a lagoa e o mar. Aquele mar odiado e ao
mesmo tempo amado, que agora aprendera a suportar, com o qual
tinha de viver, que o alimentava e o protegia, depois de lhe
ter tirado tudo: a primeira mulher, os trs filhos, tudo
aquilo que um dia constitura o mundo de Werner Becker.
Aquele mar tinha feito dele um outro homem, totalmente
novo, tinha-o modelado, e nunca mais o abandonara. Aquele
vasto oceano que se estendia sua frente, tinha-lhe
oferecido um mundo diferente, de caractersticas prprias,
cheio de uma beleza emocionante e ao mesmo tempo de um terror
maldito.
Todas as manhs, j desde h treze anos, Becker
deixava-se ficar diante da sua cabana e pensava no passado,
no presente e no futuro. A maior parte das vezes, ia at
colina e olhava para baixo, para a praia. Ali continuava,
esticado entre as oito grossas canas de bambu, o barco de
borracha cor de laranja que, dezanove anos atrs, lhe tinha
salvo a vida; nele recolhera as guas das chuvas, e tinha
sido a sua primeira arma contra o sol escaldante, o vento que
tudo secava, a areia fina e o mar maldito cheio de tubares.
Agora, o barco de borracha tinha-se tornado uma espcie de
monumento. Becker j por sete vezes tinha mudado as estacas
durante os ltimos treze anos. A cor alaranjada estava desbotada,
as bolsas de ar estavam quebradias, e para o proteger decidira,
quatro anos antes, construir uma bela cobertura sobre o
"monumento".
Disse, ento, a Anne e ao seu filho:
- No h apenas agradecimento para com os homens! H-o
tambm para com as coisas. Vo ho-de, um dia, sobreviver-me.
Nessa altura, no se esqueam de renovar sempre as estacas. Que
teria sido de ns sem este pedao de borracha?
"Sim, o que teria sido de ns?" - pensava ele naquele
momento.
Em treze anos, a ilha Viktoria, aquele ponto solitrio,
minsculo, do mapa, tinha-se transformado num pequeno mundo
que voc devia ter aprendido mesmo antes do ABC. Felizmente que
h criados em nmero suficiente que no pretendem outra coisa
seno trabalhar aqui. Isto apenas um exemplo para a sua mania
da humanidade.
Comeram uma carne assada magnfica e beberam vinho tinto
franc, sempre em silncio, at que Paul perguntou
inesperadamente:
- O que so os Grandes Seis?
Dubonnet pousou o copo e agarrou noutro pedao de carne.
- Os Grandes Seis so uns idiotas - respondeu. - Um grupo de
revolucionrios que desde h algumas dezenas de anos pretendem
fazer deste mundo de ilhas um estado malaio independente. Fora
com os brancos, o que eles pretendem. E chamam-se a si prprios
de "Grandes Seis", porque so seis chefes que proclamam por todo
o lado: "Ainda que prendam um, ou dois, ou trs de ns, ficaro
ainda os outros! Ns somos uma s cabea!" Doidos, no acha? Mas
onde que ouviu falar desses idiotas?
- Falaram disso no escritrio.
- Esquea-o, Paul. Estas ilhas so francesas h mais de cem
anos, e assim ficaro para sempre! E eu estou aqui, ningum se
deve esquecer disso, nem subestimar a minha presena. Todos
dependem de mim, e enquanto assim for, os revolucionrios no t
a mnima possibilidade. Quem que capaz de recusar a sua
prpria gua e rebentar de sede por puro patriotismo?
Dubonnet gargalhou e esqueceu imediatamente o tema da
conversa. Mas Paul Becker passou a usar sempre, a partir daquele
momento, o punhal malaio no cinto das suas calas e era
espantoso! Fosse onde fosse que ele chegasse, no porto, no
mercado, em qualquer loja, at mesmo nas ruas, as pessoas
faziam-lhe vnias, disfaradamente, ou cediam-lhe o lugar, quando
ou onde quer que ele estivesse espera de ser atendido.
A partir do quarto dia, passou a sentar-se todas as noites
junto estao de rdio da plantao e falava com a ilha
Viktoria, escutando a voz de seu pai e sentindo-se feliz quando
ouvia a me dizer:
- Toma ateno contigo, meu amor!
Sentia-se sempre perturbado depois daquilo. Tinha saudades
de Anne, e quando pensava nela chamava-a de Anne e no de me.
Era um sentimento para o qual no estava preparado e de que
no conseguia libertar-se.
Os nativos no voltaram a aparecer, pelo menos com as suas
canoas de guerra. Era como se estivessem a retemperar as foras e
aguardassem o que os deuses fariam agora com os brancos da ilha
dos mortos.
Dez dias depois do regresso ilha destruda, Becker reparou
que havia ali mais cadveres, que tinham sido colocados perto do
dolo, e verificou tambm que as canoas tinham acostado do outro
lado da ilha. Os nativos tinham atado os bonecos de palha sem
cabea barriga do totem, e Becker disse:
- A coisa est a tornar-se crtica, Anne. Agora estamos na
barriga do deus, o que significa que ele nos devorou. Se o ano
decorrer normalmente, no houver nenhum furaco mais violento do
que habitual, o Vero no for demasiado seco ou no ocorram
outras catstrofes, podemos dormir sossegados. Mas se a natureza
endoidecer, Deus afastou-se de ns, os homens condenam-nos e tudo
fica perdido logo partida.
Voltaram a trabalhar como verdadeiros condenados, como
outrora, quando tinham lutado pela primeira vez na ilha Viktoria,
contra o mar, o Sol e o vento. Becker tapou os buracos feitos na
torre de gua, enterrou os cadveres dos animais, instalou novos
Captulo 6
Aquela unio entre Paul e Tara revelou-se uma vivncia
espantosa. Durante o dia, ele ia para o porto; ganhava alguns
francos como descarregador, transportando sobre os seus largos
ombros os sacos que se encontravam nos barcos, e tudo,
tudo quanto ele carregava de um lado para o outro, os caixotes,
os prprios botes e barcos onde trabalhava, tudo trazia o
nome de Jean-Luc Dubonnet. Recebia o seu salrio das mos
do inspector do porto de Dubonnet, um salrio exactamente
igual ao dos trabalhadores indgenas, ficava no meio deles, na
fila, aguardando a sua vez, avanando lentamente para a mesa
dos pagamentos e apresentava a sua folha de horas assinada
pelo capataz.
O inspector que lhe pagava o salrio, olhava, nos primeiros
trs dias, de soslaio para Paul.
- no v como isto , idiota, meu rapaz? - perguntou
ele uma vez. - Algum deve ter desapertado um parafuso na
tua cabea, no?
- Porqu - perguntou Paul. - Eu trabalho. Isso alguma
vergonha?
- Um branco misturado com esta gentalha.
- no so homens tambm?
Ao terceiro dia apareceu o prprio Dubonnet no porto; ficou
de p junto mesa de pagamentos e deixou que Paul
passasse perto dele. no quis deixar de aproveitar aquele
espectculo. Com um largo sorriso escarninho, mas com semblante
pensativo, viu Paul Becker receber os seus mseros
francos, muito calmo e satisfeito, passar o respectivo recibo e
afastar-se com um passo pesado na direco do bairro dos
nativos. Dubonnet ps a sua figura macia em movimento e
deteve-o dez passos mais frente.
- Paul - disse ele, ofegante. - A que se deve este
disparate? Para mim, -me indiferente onde e como vocganha
o seu dinheiro, mas aqui, em Tahuata a coisa muito diferente. O
seu comportamento envergonha todos os outros brancos. Vocno
capaz de compreender isso?
- no! - disse Paul. - Porqu Ser que os brancos s
devem mentir e enganar as outras pessoas, em Tahuata?
- Consigo no h hiptese nenhuma de discutir seja o que
for! Voc a cabea mais dura que eu jamais conheci! - disse
Dubonnet, irritado. - Mas aquilo que vocfaz aqui
coisa para os nativos. Um branco no anda para a a arrastar
sacos e caixotes, como um miservel preto. Aqui no, e muito
menos para mim! Sempre evitei, at agora, comunicar ao
seu pai o que se est a passar.
- Foi uma atitude acertada, Monsieur - disse Paul,
calmamente. - Se o tivesse feito, seria capaz de lhe partir os
ossos.
Deixou Dubonnet perplexo, como que pregado ao cho, e
afastou-se. Dubonnet ficou a olhar para ele, fixamente. Aquele
aviso tinha sido feito muito a srio, e ele no podia tom-lo
de outro modo
"Cresceu e foi educado de uma maneira to selvagem como
as palmeiras da ilha onde nasceu - pensou ele. - Mas essas
palmeiras, tambm o vento capaz de as dobrar. O que
preciso tempo"!
Enquanto Paul trabalhava no porto, Tara limpava o quarto,
cozinhava para ele e lavava-lhe a roupa, exactamente como
uma mulher trata do seu marido. Ela prpria se admirava com
o seu comportamento e com tudo o que fazia, e dizia a Paul
vrias vezes ao dia:
- Isto a coisa mais louca que se pode imaginar. Um
bem-nascido aparece e mete-se debaixo de uma prostituta. E
eu cometo a loucura de o acompanhar. Porqu
E todas as noites aquela pergunta tinha a mesma resposta.
Uma resposta simples.
- Tu s uma maravilha de homem - suspirava Tara. - s um
milagre da natureza.
E Paul retorquia, nos braos doces e meigos de Tara:
- a isto que se chama amor? Tu sabes isso melhor do
que eu.
- Quem sabe? Cala a boca e anda.
testa,
abriu o seu saco e comeou a arrumar as suas coisas, em
silncio. Depois, ficou parado diante da porta. Tara estava
sentada em cima da cama, com a saia aberta e repuxada at
cima. no trazia mais nada vestido e a posio em que se
encontrava era ordinria e vulgar.
Tara - disse Paul, numa voz muito baixa.
Vai-te embora, idiota!
- Seria capaz de matar agora tudo e todos - disse ele,
surdamente. - Seria capaz de destruir o mundo inteiro!
- Isso acontece - retorquiu Tara, sorrindo ironicamente.
Dentro dela tambm o mundo parecia desabar, mas era
preciso que ele no o notasse; era preciso que visse nela
precisamente o contrrio: o escrnio, a indiferena, a
brutalidade e o desprezo.
- Antes de os matares, matar-te-ei eu a ti!
- Nunca o conseguirs. - retorquiu Paul.
"Tens raz, nunca o conseguiria".
Atirou com o saco para cima dos ombros, abriu a porta
com um violento pontap e saiu.
Tara deixou-se ficar sentada, rgida como uma esttua de
pedra. O rosto estremeceu-lhe, sentiu o corpo violentamente
agitado pelos soluos, mas engalfinhou as mos com fora na
barra da cama para no correr atrs dele.
Ouviu os passos de Paul afastarem-se rua abaixo e soube
naquele momento que nunca mais o voltaria a ver. Era melhor
assim, mas quanta fora no era precisa para o fazer?!
Meia hora depois recebeu o primeiro marinheiro na sua
cama, mas ele teve de pagar cinquenta francos e no vinte
como era costume.
"Para Papeete - pensou Tara. - Tenho de ir o mais
depressa possvel para Papeete. De contrrio, jamais serei capaz
de esquecer Paul. Onde que existe um segundo homem
como ele"?
Na manh seguinte, ao nascer do sol, Paul subiu para o seu
barco. Foi fcil encontr-lo, com um pano amarelo no mastro
flutuando ao vento.
Becker tinha passado a noite junto parede de um armazm,
estendido sobre sacos velhos. Tinha dormido bem e
sentia-se com foras. Puxou a vela e fez o barco deslizar sem
um rudo para o mar aberto. Na proa, encontrou um saco com
fruta e carne seca, uma lata de gua, um arco e flechas, e
ainda uma comprida lana de bambu, com a qual podia apanhar
peixes durante a viagem. Teria de os comer crus, como
o faziam os indgenas.
Paul navegou durante uma hora ao sabor do vento, gozou o
brilho ainda fraco do sol e a dana dos golfinhos que pareciam
brincar em redor do barco; avistou algumas barbatanas
triangulares e colocou a lana sobre os joelhos. no tinha
medo dos tubares. Tinha crescido a lutar contra eles!
J muito longe de Tahuata esperava-o uma enorme canoa,
como lhe tinham prometido. Dentro dela estavam dois
indgenas; acenaram-lhe, fizeram-lhe um cumprimento respeitoso e
tomaram o comando.
Paul Becker iniciava a viagem de regresso a casa; de
regresso ilha Viktoria.
no sabia que iria encontrar uma terra devastada e por isso
continuava a sonhar com o paraso da sua juventude. E durante
horas e horas repetia para si prprio aquilo que explicaria a
seus pais.
"Senti saudades. Saudades de casa. Quem que capaz de
lutar contra isso"?
Eles haveriam de compreender.
S um problema o avassalava, e no era capaz de encontrar
uma soluo para ele: conseguiria alguma vez esquecer Tara?
Como seria possvel continuar a viver sem uma mulher?
Durante uma semana navegou de ilha para ilha, sobre um
mar lmpido, sereno, de um brilho dourado, to doce e to
suave como nunca. Acompanhava-o um bando de gaivotas
que soltavam pios estridentes e os golfinhos e peixes voadores
cruzavam a sua pequena canoa; atingiu por trs vezes um tubaro,
sem todavia o matar, mas o rasto de sangue que o
animal deixou atrs de si, atravs das guas, era a sua
condenao morte, pois os outros tubares depressa o
esfacelariam. Fosse o que fosse que sangrasse em pleno oceano
Pacfico, estava perdido.
Diante de cada ilha, mudava a sua escolta. Dos nativos via
muito pouco e nem sequer chegava a entrar na baa das ilhas.
Muito antes de l chegar j outro barco o esperava, em mar
aberto. S de longe avistava as aldeias, as casas com telhados
de folhas de palmeiras, as colunas esguias de fumo que saam
das fogueiras. Os nativos cumprimentavam-no afavelmente,
entregavam-lhe mantimentos, mas quando Paul lhes fazia
qualquer pergunta, calavam-se.
Eram amigos mas tinham dentro deles um dio surdo, feroz,
recalcado. Uma situao estranha, aquela!
S durante o dia navegavam; noite, nas horas que s aos
espritos pertenciam, ficavam parados junto s ilhas, ou no
meio do mar. Nessas alturas, Paul tinha tempo suficiente
para pensar em Tara. Ficava sentado no seu barco, sentindo-se
invadido por uma tristeza infinita e por uma saudade
profunda da proximidade daquele corpo quente e macio;
pela primeira vez esmagava-o a ausncia de uma mulher a
seu lado.
"Falarei com o pai e a me sobre este assunto - pensava
ele. - E depois levo Tara para a ilha Viktoria".
Avassalado por aqueles pensamentos, comeava a falar a
meio da noite com Tara, como se ela estivesse a seu lado,
sentada junto dele, sem saber como libertar-se daquela sua
primeira vivncia como homem. no lhe interessava que existissem
outras mulheres no mundo. A sua primeira experincia
tinha-o deixado profundamente marcado, como se dentro dele
ardesse uma queimadura violenta que o minava e destrua,
sem que conseguisse abaf-la. Era uma ferida no seu corao
que jamais conseguiria sarar.
Ao fim de treze dias, a ltima escolta aproximou-se dele.
Dois guerreiros de olhar sombrio e marcados com grandes
cicatrizes apontaram-lhe o caminho, sem pronunciarem uma
palavra sequer. Paul adivinhou a origem daquelas cicatrizes.
- A prxima ilha a ilha Viktoria? - perguntou.
Os nativos limitaram-se a fazer um mudo gesto de
assentimento com a cabea. O corao de Paul bateu com mais fora
no peito. Colocou a vela a favor do vento, agarrou-se ao mastro e
olhou fixamente para o horizonte.
"Quando aparecerem as primeiras palmeiras, gritarei com
quanta fora tiver - pensou Paul. - Agitarei os braos, e o
pai e a me ho-de reconhecer-me pelos binculos".
O barco parecia voar com o vento, mal parecendo aflorar
as guas. Dois tubares iam em sua perseguio. Salpicos de
carne - disse Becker, rindo alegremente e sentando-se. Brissier veio c para nos obrigar a sair da ilha, fora das
armas.
- Nesse caso deve ter trazido uma enorme quantidade delas! retorquiu Anne, sorrindo maravilhosamente para Brissier. Prepare-se, capito. Quando quiser cumprir a sua
misso, vai precisar de uma fora dupla.
- Anne, no queira armar-se em herona - respondeu
Brissier.
Sentou-se, bebeu o seu conhaque e mordeu raivosamente
um pedao de carne, como se fosse de couro.
- Acabe com esses disparates! S voco pode fazer.
Alm disso, voc gostaria de voltar a ver o seu filho, no
verdade?
- Isso foi um jogo sujo, Brissier! - disse Becker,
duramente. - Faa s mais uma observao dessas e eu levo-o
arrastado at ao seu avio. Oh! Cus! de mais! - exclamou
Brissier.
Levantou-se de um salto. Uma pistola apareceu-lhe, de
sbito, na mo e Becker no precisou de se certificar se a
arma estava carregada e pronta a disparar. Ficou rgido, sentado
mesa, e Anne encostou-se, igualmente imvel e rgida,
contra a parede de casa.
- Em nome do meu governo declaro-o preso, a si, Werner
Becker, e a si tambm, Anne Becker. Tenho ordem para os
levar para Papeete. no ofeream resistncia, por favor. no
gostaria de me ver obrigado a fazer uso da arma.
- Ento dispare, Brissier! Por favor, faa boa pontaria retorquiu Becker.
Apontou para Anne e depois para si prprio, e disse ainda:
- Qual de ns quer matar primeiro? Mas
pense primeiro numa coisa antes de carregar no gatilho: voc s
ter oportunidade de disparar uma nica vez. A segunda,
no conseguir de certeza absoluta. Atinja Anne, e eu estarei
em cima de si. Nessa altura, nem Deus o poder salvar. Se
me atingir primeiro, ver como Anne se transformar num
verdadeiro animal selvagem. Ter um segundo apenas. no
sobreviver mais tempo, garanto-lhe. E no caso de se decidir a
regressar ao seu hidroavio para trazer para
terra os seus trss soldados, juro-lhe que os receberei de
metralhadora em punho. Nessa altura, acontecer exactamente
aquilo que se queria evitar com a nossa evacuao daqui: haver
mortos!
Becker recostou-se, e disse ainda:
- Agora dispare bem, Brissier.
- Levante-se! - disse Brissier friamente
fazendo um gesto significativo com o cano da pistola.
- no! - retorquiu Becker quase
divertido. - Porqu
- Becker, no seja idiota! Tenho maneira de o
obrigar, a si e a Anne.
- Ento, utilize-a!
- S preciso de os ferir ligeiramente,
de modo a torn-los inofensivos. Becker, peo-lhe por favor que
venha comigo. Eu sou seu amigo. Isso j vocsabe h muito tempo.
Mas
tenho tambm ordens bem claras a cumprir:
Tenho de os levar daqui.
- Dispare de uma vez por todas! A mim,
no ne venceu o mar, nem o sol, nem a tempestade, nem sequer a
Becker.
Olhou para Anne. Esta pendurara-se no pescoo do filho e
beijava-o.
- no! Aquilo tirou-me todas as palavras que eu ainda
pudesse dizer. Maldio! O prprio governador que devia
vir arrancar esta famlia daqui! Tire-me esta flecha do brao.
- para j, Brissier. Mas primeiro quero cumprimentar o
meu filho.
Caminhou na direco de Paul, que a sua me conduzia
para casa, como se fosse uma criana, a chorar.
- Ento o que vem a ser isto, meu rapaz? - exclamou
ele. - Sair assim sem mais nem menos do meio dos bambus?
Isso so maneiras?
Deu ao filho uma ligeira palmada no rosto e afastou-se de
Anne. Paul sorriu e puxou o pai para si.
- no se pode deixar os velhos sozinhos - disse ele, rindo.
Olhou para Brissier, por cima da cabea de Becker e
continuou:
- Ele teria disparado, no verdade?
- no sei, meu filho! - respondeu Becker, sentindo que
toda a fora e coragem o abandonavam. - to bom tu
estares aqui, Paul!
Meia hora depois, Brissier regressava a Papeete. Levava a
flecha que Anne lhe arrancara do brao, como prova de que a
famlia Becker estava em p de guerra, a partir daquele momento,
com a Frana.
Uma situao totalmente louca.
Todavia, na ilha Viktoria, ningum se preocupava com
isso. Tudo seguia o seu curso normal, at ao dia em que Becker
viu que o seu filho se sentava junto ao mar, na areia
molhada, e moldava a figura de uma mulher; um corpo com
longas pernas, tornozelos finos e seios redondos.
Depois, Paul sentava-se ao lado da esttua e esperava que a
mar desfizesse aquela mulher de areia. O mar apagava-a, tal
como ele prprio queria apagar de dentro de si a imagem de
Tara, sem o conseguir.
A noite ia alta. Paul j dormia. Becker e Anne estavam
sentados diante da casa e olhavam o mar silencioso e sereno,
onde a lua se reflectia, parecendo brincar nas ondas suaves.
Ao fim de alguns instantes, Becker disse:
- Anne, ns combinmos no fazer perguntas a Paul sobre
os motivos que o levaram a voltar. Ele agradeceu-nos, embora
nunca lhe tivssemos dito que pela rdio s lhe contmos
uma montanha de mentiras. Paul quis voltar para a sua casa e
s encontrou destroos e runas. Engoliu tudo isso, e ns
tambm no tocmos no assunto que o perturba. Mas agora, creio
que temos de fazer qualquer coisa. Paul tornou-se num
verdadeiro homem, em Tahuata.
- Era isso que era preciso, no? - disse Anne.
- Refiro-me a outra coisa bem diversa, Anne - retorquiu
Becker, colocando-lhe um brao em volta do pescoo. - O
nosso filho j sabe o que uma mulher.
- Tu achas?
Fitou-o, perplexa, com os seus enormes olhos castanhos.
- O nosso rapaz...
- O nosso rapaz tem quase um metro e noventa de altura,
tem dezanove anos, saudvel e cheio de fora - retorquiu
Becker, rindo. - Ele no ia ficar sempre uma criana.
- E tu achas que...
- Tenho a certeza, Anne. Observei Paul. Ele teve uma
medo.
- H-de compreender, Paul. Ningum tem mais compreenso para
o amor do que uma mulher.
- J falaste com ela?
Aquela pergunta tinha-lhe sado quase como um grito
surdo. Becker fez um gesto afirmativo com a cabea, e
respondeu:
- Sim, meu rapaz, j falei com ela sobre este assunto.
" a mesma coisa de sempre - pensou ele. - O filho ama
a sua me, e a me ama o seu filho. O trgico envolvimento
do costume e do qual cada um de ns deve sair mais tarde ou
mais cedo. Paul j deu o primeiro passo e at foi, na verdade,
bastante bom que tivesse sido uma prostituta a afast-lo das
saias da sua me. Um corte duro, mas positivo. Tambm
Anne ter de ultrapass-lo".
- Sinto-me envergonhado - disse Paul lentamente. Como que eu posso explicar isso me?
- no precisas de o fazer, meu rapaz. Eu encarrego-me
disso!
Becker ps o seu brao em redor dos largos ombros de Paul.
Sentia debaixo da sua mo os rijos msculos do filho e
pensou:
"Meu Deus, como este rapaz forte"!
- Temos de falar muito claramente no problema, Paul.
Nos prximos dias partirei para as outras ilhas e procurarei
uma mulher para ti. Entendido?
Reparou que um intenso rubor invadia o rosto do filho,
como se todo o sangue que tinha no corpo lhe tivesse subido
para a cara. Paul comprimiu o queixo contra o cabo do machado.
Era uma situao embaraosa. Os sentimentos mais
cuidadosamente escondidos saltavam c para fora e expunham-se
abertamente luz do Sol, como um lenol imenso
posto a secar.
- Tu no podes trazer para aqui uma rapariga. no ser
to simples como dizlo, pai - disse Paul sentindo um peso
enorme no peito. - E, alm disso, qual seria a rapariga capaz de
vir viver para uma ilha dos mortos?
- Nesse caso ters de partir de novo para HivaOa ou Papeete,
Paul.
no! no voltarei a sair daqui, pai! Nunca mais!
O tom de Paul tinha sido peremptrio, dando a entender
que aquela tinha sido uma deciso definitiva. Becker deixou o
assunto. Mais palavras seriam agora desnecessrias.
-Como que gostavas que ela fosse?
perguntou
Werner.
- Quem?
- A rapariga.
Paul engoliu em seco, como se tivesse um n na garganta.
- Como... como a me - respondeu por fim, numa voz
muito baixa e pausada.
- Naturalmente - retorquiu Becker sorrindo. - Tara
tambm era assim?
- no! Era totalmente diferente. Exactamente o oposto.
- No Pacfico h raparigas muito bonitas, Paul.
- impossvel, pai - disse Paul, erguendo-se abruptamente. - A
vida h-de continuar.
- Isso um erro, Paul. E no pretendas enganar-te a ti
prprio, meu rapaz - retorquiu Becker.
Estendeu o brao, deteve o filho firmemente pelo cinto das
calas e puxou-o de novo para si.
"Aqui Anne I... Aqui Anne I"... Era esse o nome do iate
de Becker. "Lancei ncora diante de Vahua Oa. Est tudo
calmo. no se v ningum. Vou amanh de manh cedo a
terra. no se preocupem. Todas as canoas esto na baa, em
sossego. Fim".
Depois foi o silncio.
E esse silncio estendeu-se, prolongou-se. Ningum mais
ouviu ou viu alguma coisa de Werner Becker.
Durante todo o dia seguinte, Paul tentou entrar em contacto
com o seu pai, atravs do aparelho de morse. Mas Werner
Becker no deu qualquer resposta. Tambm noite no houve
qualquer comunicao. Apenas o silncio, aquele silncio
pesado, opressivo, e Anne comeou, a pouco e pouco mas
com uma nitidez assustadora, a sentir-se inquieta e insegura,
com um pressentimento agudo e angustiante.
- Aconteceu alguma coisa - disse ela, quase sem voz,
quando Paul lanou novamente para o ar a sua chamada, por
volta da meia-noite. - Sinto-o, Paul. Aconteceu qualquer
coisa de terrvel.
- De maneira nenhuma, me! - exclamou Paul.
Comeou a andar de um lado para o outro, agitado e nervoso.
- Garantiram-me e prometeram-me mesmo que no nos
aconteceria nada, nunca mais!
- Quem que poderia alguma vez fazer uma promessa
dessas?
- no posso dizer!
- Trata-se do teu pai!
gritou Anne de sbito.
Tinha-se levantado de um salto, erguera a mo e, pela
primeira vez na sua vida, Paul foi esbofeteado pela me. Ficou
to espantado com aquele gesto que nem se mexeu, nem
mesmo quando ela lhe bateu pela segunda vez.
- o teu pai! O que que tem mais importncia para ti?
O teu pai ou o juramento que fizeste? Vamos, fala. A quem
que deste a tua palavra?
- + Terceira Cabea dos Grandes Seis - disse Paul
surdamente, sentindo como que um peso no corao.
Anne olhou-o, sem compreender.
- O que isso?
- Uma associao secreta contra os brancos.
- Mas tu enlouqueceste, Paul? - balbuciou Anne.
- Eles ajudaram-me. Deram-me um barco para que eu
pudesse regressar ilha Viktoria. Protegeram-me em Tahuata.
Falei duas vezes com a Terceira Cabea. Acredito nele!
- Ento porque motivo que o teu pai no responde?
Anne olhou fixamente para o pequeno aparelho de morse.
Pela primeira vez, desde h vinte anos, encontrava-se sem
Becker, e sentia dentro de si aquele enorme vazio que a sua
ausencia deixava dentro dela. Mas tambm pela primeira vez
tinha a sensao de que aquele vazio iria continuar, iria ficar
com ela para sempre. Aquilo foi to horrvel que tudo dentro
dela comeou a doer.
"Werner nunca mais voltar"?
Era um pensamento que no podia aguentar. Uma vida sem
ele era impossvel, simplesmente impossvel.
Voltou a olhar para o filho. Ele continuava a pertencer-lhe,
mas agora, naquele medo sbito que lhe subia do peito, naquela
horrvel e insuportvel angstia de ter perdido tudo,
apercebeu-se de que o filho significava, efectivamente, o
mundo inteiro para uma me, mas que um homem, nesse
mesmo mundo, era como o sol que lhe dava foras e vida.
Captulo 7
O amanhecer tinha comeado a espalhar o seu jogo de cores
sobre o mar, quando Paul Becker se aproximou lentamente da ilha
Vahua Oa, com o motor estrangulado.
Quando se encontrou a uma distncia a que podia ser
escutado, desligou o motor fora de borda e remou cautelosamente
pelos recortes dos recifes de coral para o interior da ilha. Ali,
na gua baixa da baa, estavam os barcos de guerra, uns ao
lado dos outros, dispostos com exactido, como se a tribo
tivesse uma formao militar igual dos brancos. A aldeia
dormia. no era preciso montar guardas ali. noite, os inimigos
no atacavam, pois se o fizessem os deuses lanariam
sobre eles o seu castigo terrvel.
Sem um rudo, Paul fez deslizar o barco ao longo da fila de
canoas de guerra. Procurou um lugar de onde pudesse atingir,
com a sua metralhadora, a aldeia, sobretudo as cabanas do
chefe e do feiticeiro, mas ainda assim suficientemente perto
da sada da baa de modo a que, em caso de necessidade,
pudesse deixar a ilha o mais rapidamente possvel, a toda a
fora do motor.
Depois, ficou espera que o Sol subisse, verificou a
metralhadora, destrancou-a e disparou uma rajada para o meio
das canoas.
A agitao foi enorme.
Os guerreiros precipitaram-se para fora das cabanas, mas
uma nova descarga obrigou-os a recuar, erguendo uma barreira
mortal entre eles e os barcos. Como doninhas castanhas, os
nativos voltaram a desaparecer para dentro das cabanas; o
espao diante da grande casa do chefe ficou vazio, mas Paul
sabia que, por detrs das paredes entranadas das cabanas, os
homens espiavam, atentos, com setas envenenadas metidas
nos arcos esticados, de lanas nos punhos crispados.
A situao era desesperada para Vahua Oa. O barco de
Paul estava demasiado ao largo da baa para que as flechas o
pudessem atingir e, por outro lado, Paul conseguia impedir o
caminho para as canoas com uma rajada da sua metralhadora.
Por favor.
Encontraste os assassinos?
Sim, me.
Ainda continuam vivos?
no, me!
-
E o barco?
- Agora s nos resta o barco pequeno e o aparelho de
rdio. Dez barris com vveres e vinte lates com gasolina.
- Viste o lugar onde... onde...
no conseguiu dizer mais nada.
Paul fez um gesto afirmativo com a cabea.
- Sim, me.
Leva-me at l. Quero vlo tambm.
impossvel, me!
-Para o teu pai no havia coisas impossveis. E para
mim, essa palavra tambm no existe. Quando que partimos?
Amanh de manh cedo?
- De maneira nenhuma, me; ns destrumos o dolo deles.
Todo o Pacfico est em p de guerra. De Vahua Oa, eles
ho-de passar a palavra de ilha em ilha, e em breve no haver
uma s pessoa em todas as ilhas das redondezas, em centenas de
milhas nossa volta, que no seja chamada para atirar
sobre ns a vingana dos deuses.
Anne voltou a calar-se, mas Paul adivinhava, mais do que
pressentia, em que que ela estava a pensar. Por isso, antes
de se deitar, tomou as suas medidas de precauo. Levou o
barco para os recifes de rochedo escuro, num local onde Anne
no o poderia descobrir, e se o descobrisse no seria capaz de
o retirar de l. O prprio Paul teve de fazer uma perigosa
escalada sobre picos de rocha afiada e escorregadia, e de pedras
cobertas de espuma e algas, para conseguir voltar para
terra.
"Com que amor imenso, poderoso e indescritvel ela deve
ter gostado do meu pai, para agora ter toda esta incomensurvel
fora de dio e este tremendo desejo de vingana - pensou Paul. Se ela pudesse, destruiria todas as ilhas nossa
volta. Mas ser que isso iria valer de alguma coisa? Seria essa
a vontade de meu pai? Ele amou as pessoas, mesmo aquelas
que depois o lanaram aos tubares"!
Acordou durante a noite. Uma sensao indefinida obrigou-o a
abrir os olhos.
Anne estava sentada na sua cama.
- Tu escondeste o barco - disse ela, muito calma.
- Sim, me - retorquiu ele. - Eu sabia que tu irias
procur-lo.
Pegou-lhe nas mos; estavam frias, como um bloco de
gelo.
- Amanh vou entrar em contacto com Papeete, pelo telgrafo.
Direi que estamos preparados para abandonar a ilha Viktoria.
- Nunca, Paul. Nunca!
- J no temos hiptese nenhuma, me. Sem o pai....
- Tu ests aqui, Paul. E tu tornaste-te um homem!
Anne estava de olhos fixos na parede da cabana. Parecia
uma esttua, da qual saam palavras humanas, como que por
qualquer maquinismo secreto.
- Se o teu pai tivesse morrido aqui, abandonaramos a
ilha e lev-lo-amos connosco. Mas agora, meu rapaz, ningum ser
capaz de me arrancar daqui. Ningum!
- Temos muito tempo para pensarmos melhor nesse assunto retorquiu Paul. - Agora vai dormir, me!
estranho e opressivo.
E de sbito ela abateu-se sobre eles como um martelo
gigantesco. Vinda do nada, surgida daquela abbada
amarelo-acinzentada que antes fora o cu, a tempestade irrompeu
violenta, e desmoronou-se medonha e feroz sobre eles.
As palmeiras curvavam-se, a mata de bambus agitou-se
como que atravessada por milhares de mos demolidoras e
selvagens, o tecto da cabana de Paul foi levantado no ar e
rodopiou como uma folha seca; a torre de gua foi violentamente
atirada para o cho, e o mar ergueu-se, monstruoso, rolou como
uma parede gigantesca e engoliu os recifes pontiagudos. Um rugido
impressionante, inexplicvel, indescritvel, medonho, sado das
profundezas do mar, acompanhou
aquele desabar de fria gorgolejante.
- Meu Deus - balbuciou Anne. - Paul! Meu Deus!
Vamos morrer afogados. O mar parece ir engolir a ilha toda!
- Agarra-te bem, me! - gritou Paul.
Apertou Anne de encontro ao seu prprio corpo, arrastou-se
para as traseiras da casa at palmeira grande e forte
que ali se erguia, imponente, a maior palmeira da ilha Viktoria,
aquela mesma para que, vinte anos antes, Werner Becker
erguera o olhar quando jazia desesperadamente imvel na
areia, com a sua perna partida, e dissera:
"Hei-de ir ter contigo, orgulhoso pedao de m... l em
cima! Espera s um instante! Hei-de abraar o teu tronco!
no hei-de morrer debaixo de ti, orgulhosa palmeira".
Agora, aquela rvore era o que de mais seguro e forte a
ilha tinha para oferecer, e Paul atou a me ao tronco, com as
grossas cordas que lhes tinham ficado do barco.
A tempestade embatia, violenta, contra ele, com uma fora
feroz; mal conseguia manter-se de p. Mas, cerrando os dentes com
fora, tentando equilibrar-se no meio da fria diablica que
ameaava arrast-lo a todo o instante, foi ainda capaz
de rodear uma e outra vez o corpo da me com a corda, prendendo-a
firmemente ao tronco.
Depois atirou-se ao cho, arrastou-se at ao tronco mais
prximo, abraou-o com fora e sentiu um estremecimento
violento percorrer-lhe o corpo quando as primeiras ondas
comearam a ameaar engolir a colina.
A ilha parecia afundar-se. Tal como um navio acossado
pela tempestade, preso apenas por um fino cabo s amarras
do cais, assim ela estalava e rangia como se tudo dentro dela
se partisse e despedaasse.
- O mar vai arrastar-nos! - gritou Anne.
E ento, dominada pelo terror, comeou a gritar, horrorizada
perante aquela fria que desabava sobre eles.
Amarrada ao tronco da palmeira, batida pelo vento, fustigada
pela chuva violenta que caa, mal conseguia mover-se; e
os seus longos cabelos, aoitados pelo ar em fria, enrolavam-se
palmeira prendendo-lhe tambm a cabea.
Paul estava a trs metros de distncia da me, mas no a
podia ajudar. Debaixo dele, nas profundezas da terra, tudo
tremia, tudo parecia partir-se e ranger, como se o mar e o
vento tentassem arranc-la da base que a prendia.
A casa desfez-se, como se fosse feita de papel. Os campos
ficaram alagados. Aquilo que durante vinte anos fora ali criado
com tanto esforo e tanto amor, era agora impiedosamente
devastado pela tempestade, por aquele mar de fria que arrancava
rvores e varria tudo.
O mar tinha-se realmente erguido como que empurrado
Captulo 10
Durante os dias que se seguiram, juntou o que restava da
ilha Viktoria e que lhe poderia vir ainda a ser til. Encontrou,
afinal, mais do que esperava a princpio encontrar.
Havia ainda um machado, a serra mecnica e o pequeno
aparelho de morse. Mas como o gerador estava destruido, de
momento no podia utilizar o aparelho e entrar em contacto
com as outras ilhas.
Com a mar alta, deram costa mais nove rvores que
tinham sido arrancadas da ilha pela tempestade; Paul puxou-as
passos de dana.
De repente, depois de um grito fantstico, imenso, sado de
todas aquelas gargantas, os corpos brilhantes de suor de todos
aqueles homens pareceram ser acometidos de uma paralisia
sbita. Ficaram estticos, deitados na areia, entre as estacas
de bambu e os quadros de madeira, as grinaldas de flores e as
sempre renovadas estacas fumegantes, os rostos virados para
baixo, numa atitude de absoluta submisso e entrega. Os
feiticeiros e os trs chefes dirigiram-se solenemente para o
primeiro barco grande e ergueram um enorme dolo trabalhado.
Compunha-se de trs partes: as pernas em forma de colunas,
o enorme tronco e a gigantesca cabea de olhos brilhantes.
Quando as trs partes foram encaixadas umas nas outras, o
dolo devia ter ficado com quatro metros de altura '
Ali, onde a praia comeava a erguer-se e a colina, no cimo
da qual brotava aquela maravilhosa fonte de gua doce, subia
suavemente, colocaram o totem e coroaram-no de flores.
Depois, foram buscar dez galinhas vivas aos barcos. Com
rpidos golpes de punhal, os feiticeiros arrancaram-lhes as
cabeas e o sangue saltou sobre a horrorosa esttua. As galinhas
esfaceladas foram colocadas em crculos volta do dolo. Eram os
primeiros cadveres da ilha dos mortos.
Agora, os espritos podiam surgir do infinito. Tinham uma
nova ptria.
- Vai haver sarilho - voltou a repetir Paul Becker para si
prprio. .- Ofereo-lhes a ilha Viktoria. Os vossos mortos
no precisam de gua, mas eu sim!
Decidiu revoltar-se logo nos dias seguintes contra a vontade
dos deuses e transportar, na sua jangada, aquele dolo tripartido
para a ilha Viktoria, e reconstru-lo ali, num lugar
qualquer. Quando os primeiros mortos fossem trazidos, os
nativos ver-se-iam perante um novo milagre; o totem teria
voltado por si prprio para a antiga ilha. Um milagre to
espantoso e incompreensvel que todas as ilhas em redor ficariam
estarrecidas de medo e pavor.
Um deus voltara ao seu antigo lugar. A ilha Viktoria
transformar-se-ia no maior santurio do Pacfico.
As galinhas foram oferecidas em sacrifcio, o dolo fora
aspergido com sangue, o fumo continuava a subir para os
cus e era por eles absorvido; restava agora o adeus de despedida
nova ilha dos mortos.
Na ilha de Anne, os chefes caram na areia, diante do dolo,
os feiticeiros gritavam, o bando de guerreiros rastejou de
regresso s canoas e saltou para dentro delas, como se fossem
perseguidos. Para trs ficou uma solitria figura na areia.
Estava totalmente coberta de grinaldas de flores de tal maneira
que era quase impossvel perceber-se-lhe os contornos. Um
dos feiticeiros agarrou-a, ergueu-a sua frente, pousou-a
diante do totem e correu de regresso ao ltimo barco grande.
Soltando um grito medonho, selvagem, lanou-se para dentro
dele e bateu com os punhos contra a sua mscara de madeira,
de aspecto horrvel e assustador.
Depois os barcos puseram-se em movimento, as velas vermelhas
foram de novo iadas nos mastros dos barcos dos chefes,
ligeiramente enfunadas pelo vento suave; majestosamente
e quase em silncio, tal como se tinham aproximado, os barcos
afastaram-se numa vasta frente, numa remada unssona,
fascinantemente ritmada. Passaram a ilha Viktoria e desapareceram
na nvoa escaldante que se erguia entre o cu e o
mar.
Captulo 13
Na manh seguinte, quando o Sol se encontrava no seu
ponto mais alto, Paul viu o seu medo secreto tornar-se realidade
e aproximar-se lentamente das ilhas.
Dez barcos de Vahua Oa passaram ao largo da ilha Viktoria
mas, subitamente, o bater ritmado dos remos na gua estacou,
e um grito em unssono solto por muitas gargantas ecoou nos
ares.
Tinham reparado, de longe, no totem.
O milagre, aquele milagre totalmente incompreensvel do
qual os homens haveriam de falar em todo o Pacfico mesmo
depois de decorridos muitos sculos, tinha acontecido: o deus
voltara por si prprio para a sua velha ilha.
Os barcos mudaram de rumo e dirigiram-se para a pequena
baa da ilha Viktoria.
Os Papuas transportavam outro cadver, um homem velho
de cabelos brancos. Colocaram-no entre os ps da esttua,
cobriram-no com penas e espalharam escudos coloridos sua
volta.
- O chefe Batana - disse Rainu em voz baixa. - Morreu!
o chefe com quem falei? - perguntou Paul.
Sim.
Aquele que matou o feiticeiro?
Sim.
J era velho, no verdade?
- Muito velho. Era j um homem velho quando o teu pai
chegou nossa ilha dos mortos. Ele no queria guerras, mas
depois comeou a ficar cansado e demasiado fraco para poder
continuar a lutar pela paz. Os mais jovens ultrapassaram-no.
Observaram os nativos que tinham formado um crculo em
redor dos mortos. Um feiticeiro, como sempre disfarado
at ficar irreconhecvel, com penas, grinaldas e madeira pintada,
escondendo o rosto atrs de uma enorme mscara, comeou a sua
dana da morte. Os outros papuas cantavam e
batiam palmas ritmadas, faziam gestos requebrados com o
corpo e caram, por fim, na areia, como que fulminados por
um raio. Foi uma festa curta. Como se aquele milagre da mudana
do deus os perseguisse e aterrorizasse, dirigiram-se para os
barcos, quase a fugir, e remaram rapidamente, afastando-se
da ilha.
- Achas que vo voltar? - perguntou Paul.
Rainu fez um gesto afirmativo com a cabea, e depois disse:
Todas as tribos ho-de vir aqui rezar junto do deus que
viajou sobre o mar para regressar sua antiga ilha. E quando
descobrirem quem que efectivamente o mudou, cairo sobre
ns.
Paul era da mesma opinio.
Era preciso que eles os deixassem habituar ao milagre,
destruir a sua desconfiana. Enquanto os Papuas ainda duvidassem,
ele e Rainu tinham de se manter escondidos. Por isso,
assim que avistavam ao longe um barco, apagavam imediatamente o
lume. S mais tarde, quando o novo, o incompreensvel se tivesse
transformado em hbito, a vida poderia revelar-se e surgir na
ilha de Anne. Quando isso seria, no sabiam. Talvez tivesse
primeiro de crescer ali uma floresta de bambus, onde se pudessem
esconder.
- Temos tempo, Rainu - disse Paul, em voz baixa.
Estava atrs dela. Rainu acocorava-se junto do lume e assava
- Precisamos dele.
- Para atravessar o estreito entre as duas ilhas, s
precisamos de uma jangada. Ou ela j no chega?
- no.
Para onde queres tu ir, Paul?
Talvez a Vahua Oa.
Ela fitou-o com aqueles olhos negros, grandes, to tristes
que ele afastou rapidamente o seu olhar.
- Eu no quero voltar para l, nunca mais - disse Rainu. S te perteno a ti.
Iremos a Katatoki. Ao padre Pierre.
Porqu?
- Preciso de falar com algum que me possa aconselhar
- Eu tambm te posso dar um conselho, Paul - retorquiu ela,
muito lentamente.
Encostou a sua pequena cabea contra o peito dele e
comprimiu as mos de Paul contra os seus seios nus. O avio
estava agora perfeitamente visvel, recortando-se distintamente
contra o azul do cu. Via-se a cabina reluzente, os flutuadores
amarelos. Era como se o aparelho casse do Sol como
uma gota.
- Amo-te.
Paul ps um brao em redor dos ombros de Rainu.
- E depois? - perguntou. - Depois nada! no chega!
Paul respirou profundamente.
- Chega. Eu compreendo, Rainu. Ficaremos ambos juntos
para sempre, sabes isso muito bem. E at precisamente por
isso que devemos ir falar com o padre Pierre.
- Ns?
- Naturalmente, tu vais comigo.
Ela ergueu a cabea, sorriu-lhe, segurou-lhe nas mos e
manteve-as bem apertadas contra os seios.
Foi assim que aguardaram a chegada de Brissier. O hidroavio
descreveu uma curva elegante sobre a ilha e depois amarou na
ampla baa, deslizando em seguida para as guas baixas junto
praia. As hlices pararam, a porta da cabina do
piloto abriu-se e a cabea de Brissier apareceu.
- Ora viva! - exclamou ele. - aqui que fica a "ilha
dos amores" de dois jovens malucos?
- Desa, capito! - gritou Becker, apertando Rainu contra
si. - Veio sozinho?
- Sim! - respondeu Brissier.
Saltou para o flutuador esquerdo, depois para dentro de
gua e avanou para terra. Correu de seguida pela praia e
deteve-se diante de Becker e Rainu.
Abanou a cabea e disse:
- Um quadro que me ficou gravado desde a primeira visita que
vos fiz de tall maneira que todas as noites, invariavelmente,
sonho com ele. A felicidade personificada! Como
que uma coisa assim pode ainda existir nos dias que correm?
Sabe que no crculo dos meus camaradas se suspeita que eu
tenho uma apaixonada secreta, escondida em qualquer lado, e
que me meto no avio de vez em quando, sem dar explicaes
a ningum, para ir ter com ela? Gostaria de lhes fazer engolir
isso!
- Ento no nos atraioou, Brissier? - perguntou Becker.
Sentiu um alvio profundo. Afastou ternamente Rainu de si
e deu uns passos na direco de Brissier. Apertaram as mos,
olharam-se fixamente por instantes, e depois abraaram-se.
Captulo 16
Na manh seguinte, muito cedo, carregaram o barco novo com
gales de gasolina, conservas, gua fresca, uma espingarda e
munies, esticaram um toldo para se protegerem contra os raios
escaldantes do sol e afastaram-se da margem.
A prncipio, Rainu manteve-se sentada no barco, de mos
cruzadas no regao, observando Paul Becker. Este empurrou a
embarcao para o mar, at a gua lhe chegar ao peito. Depois,
iou-se pelo canto do barco e abanou-se como um co molhado.
Sentou-se no barco, em frente do motor, e abriu a sada de
gasolina.
Antes de accionar a ignio elctrica, Paul olhou mais uma vez
para Rainu.
Ela continuava ancorada, imvel, sobre o banco estofado, como
uma esttua, envolta num tecido colorido, que Brissier lhe tinha
trazido como presente, e que ela enrolara sua volta at s
axilas. O seu longo cabelo esvoaava no corpo como um vu negro
de luto; a nica coisa que demonstrava que ela estava viva era o
seu pequeno rosto e os seus imensos olhos negros.
Olhava fixamente para a ilha e tudo nela, a atitude, os olhos
e a sua fixidez, tinham algo daquela mesma entrega indefesa e
resignada com que a fora encontrar, acocorada, junto ao totem,
naquele dia horrvel em que tinha sido oferecida aos deuses dos
mortos.
Becker sabia o que ela pensava, quando o barco comeou
lentamente a afastar-se da margem.
- Ns voltamos - disse Paul, em voz alta. - No precisas de te
despedir.
- Tenho medo - disse ela meigamente. - Medo do outro mundo.
Paul no sabia que resposta dar quela frase. Era intil
tentar explicar-lhe o motivo pelo qual voltara, ainda que por
curto tempo, para aquela vida ruidosa, da qual outrora tinha
fugido por sua prpria vontade. Mas a verdade que at quele
momento no tinha conseguido esquecer essa vida. Sobretudo a
primeira experincia com Tara Makarou ficara-lhe gravada dentro
do peito, como a cicatriz de uma queimadura violenta. J no a
amava. O seu verdadeiro amor, profundo, imenso, total, era Rainu,
e sempre o seria, mas a recordao de Tara Makarou no era to
simples de apagar.
"Oxal ela j esteja em Papeete, quando eu visitar Dubonnet pensou Paul. - Outrora, a sua maior ambio era juntar todo o
dinheiro que pudesse para pagar a viagem. E durante estes ltimos
meses deve ter conseguido juntar uma boa quantia. O seu corpo bem
merecia ser coberto de ouro."
Becker ligou a ignio elctrica, o motor saltou, a hlice
girou na gua e a pequena embarcao branca saltou, rpida, sobre
as ondas, como se tivesse sido catapultada para o mar azul
cintilante. O sol da manh pendia sobre eles como uma gigantesca
bola de fogo.
Becker reduziu um pouco a velocidade lanou mais um olhar
carta martima que tinha sobre os joelhos e com uma curva
apertada afastou-se da ilha de Anne.
Ao fim de pouco tempo desligou o motor, abruptamente, e
voltou-se para trs. A velha ilha e a nova estavam ali,
miserveis manchas de terra num infinito azul, apertadas entre o
cu e o mar. Duas lgrimas de solido, duas gotas de isolamento.
- Volta para trs - disse Rainu, de sbito.
- No faz sentido nenhum fugir seja do que for. Acontea o que
acontecer, Rainu, sempre prefervel enfrentar os factos.
Aprendi isso com o meu pai. Quem muito se agacha, ficar toda a
vida como um verme rastejante, sem nunca chegar a ser um
verdadeiro homem!
Passou por cima de bides e caixotes at proa do barco e
sentou-se ao lado de Rainu. Ela no se mexeu, quando ele a
abraou. S os seus olhos pareciam ter vida.
- Porque no tens ao menos um pouco de confiana em mim? perguntou Paul.
- Eu no perteno a esse mundo. Tenho medo por ti, Paul.
Olhou-o de lado, sem mexer a cabea, e perguntou:
- s rico?
- Como que tu soubeste isso? - perguntou, por sua vez, Paul.
Sentia-se perplexo e confuso. Fora apanhado de surpresa e
procurava encontrar uma sada se ela continuasse a fazer
perguntas.
- Quem que te disse isso? Brissier?
- No - respondeu Rainu. O seu rosto continuava imvel. - Ns,
gente das ilhas, temos bons ouvidos. Conseguimos, at, ouvir o
cantar dos moluscos.
- Sim, sou rico - retorquiu Becker.
Ficou a olhar fixamente para as duas ilhas que se erguiam no
mar na nvoa da manh. A ilha Viktria, destruda pelo maremoto e
pelo furaco, tinha agora uma forma estranha, como uma ostra
morta, cujas cascas se tivessem aberto.
"Foi ali que nasci e fui criado. Foi ali que passei os meus
primeiros anos, quase toda a vida, e fui feliz - pensou Paul. - O
meu pai nunca me disse o que a riqueza, nem me falou do que
encontrava nos bancos em Hiva Oa e Papeete. De certeza que me
teria falado disso mais tarde, mas primeiro eu devia crescer no
nosso pequeno mundo, de tal maneira que a riqueza no
significasse mais para mim do que um conjunto de palmeiras. Isso
foi um erro e ele deve ter reconhecido isso demasiado tarde. Eu
cresci de modo diferente daquilo que ele queria. Quando quis
tentar remediar o erro que cometera, morreu. Uma penitncia
pesada para um erro, que no era, afinal, mais do que o resultado
de um extraordinrio amor paternal."
Becker afundou a cabea no peito.
"Farei agora como tu, pai - pensou, ainda. - Passa-se comigo
agora o mesmo que se passou contigo: tenho uma mulher e vou ter
um filho. Mas tenho tambm mais tempo do que tu, pai, para
construir o meu mundo."
- Queres ir buscar a tua fortuna? - perguntou Rainu.
Paul estremeceu. A voz de Rainu arrancara-o do passado,
mergulhando-o de sbito no presente.
- S a quero ver, Rainu - respondeu. - O dinheiro pertence ao
nosso filho.
- Ele no precisa de dinheiro. Tem a ilha. Aprender a andar
debaixo das palmeiras, brincar na areia com as conchas do mar, e
ter os pssaros como amigos.
- E isso bastar, Rainu?
Acariciou-lhe o longo cabelo que esvoaava brisa fresca da
manh, afastou-lho do rosto e beijou-a. Os lbios dela estavam
frios, hirtos, como se todo e qualquer sopro de vida os tivesse
abandonado.
- Eu fui o primeiro a querer romper com tudo e logo de
imediato aconteceu uma catstrofe. Ningum sabe o que vai
acontecer daqui a dez ou vinte anos. A vida dos nossos filhos tem
de estar assegurada.
- Eles no amaro mais nada seno a sua ilha.
- Tens a certeza disso? O meu pai disse, uma vez, que o