A Infância e o Brincar Na Cultura Digital
A Infância e o Brincar Na Cultura Digital
A Infância e o Brincar Na Cultura Digital
2013v31n3p897
Resumo
A partir de estudos que discutem a cibercultura, a infância e o brincar na cultura digital,
esse artigo refletirá sobre a cultura lúdica infantil na era das conexões. O caminho
percorrido foi buscar pistas das características mais marcantes da cibercultura para, em
seguida, observá-las na cultura lúdica infantil. O argumento principal é o de que as
crianças que fazem parte da chamada Geração Net, que nasceram inseridas no contexto
das tecnologias de informação e comunicação, participam ativamente do mundo
digital, vivem, sobretudo por meio das tecnologias móveis, a conectividade. Nesse
contexto, tocar em telas e brincar são modos especiais de construir subjetividades e
existências, de viver e produzir a cultura infantil. O artigo conclui que o toque nas
mais diversas telas, muitas delas na palma da mão, traduzem muito do que é o brincar
e o lúdico na atualidade. Tocar em telas digitais é o mais expressivo modo lúdico que
as crianças encontram para elaborar a vida por meio de alegrias e prazeres privados e
coletivos nos domínios da rede.
Palavras-chave: Infância. Ludicidade. Cultura digital.
*
Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor na
Graduação e na Pós-Graduação em Educação, na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Pesquisador com bolsa de produtividade do CNPq.
Introdução
É cada vez mais comum encontrar em discursos acadêmicos, na publicidade
e nas diversas mídias a proliferação da ideia de que vivemos agora um regime
inédito da cultura baseado na conectividade, na vida digital. Nesse contexto,
o consumismo é exaltado como estratégia fundamental do tecnocapitalismo
planetário, que transcende fronteiras, aproxima e identifica populações. O que é
propagandeado é que a cibercultura se impõe, sedutoramente, como um mundo
econômico de pleno direito onde, por meio das trocas infinitas nas redes, cada
um constrói alegremente sua vida feliz.
A velocidade desses ciberacontecimentos e as mudanças deles decorrentes
estão por toda parte e redefinem importantes domínios da vida social e cultural.
A partir daí aumenta a sensação de insegurança, desestabilização e desorientação,
sobretudo de pais e professores, com as crianças conectadas e, progressivamente,
imersas nas redes colaborativas, na sequência de mutações aceleradas que a
comunicação digital não cessa em apresentar.
Nesse ambiente sempre camaleônico, a infância, tal como conhecemos,
está mudando em decorrência de inúmeros fatores, como: o contato com
diversas manifestações multiculturais; a complexidade das transformações
presentes no cotidiano em relação à cidade, às famílias e às formas de interação
com as tecnologias móveis; o hibridismo entre tradicionais e novos modos
de brincar e se divertir; o fascínio e a ludicidade com os jogos eletrônicos, as
redes sociais digitais e a conectividade etc. Tais fatores modificam modos de
vida e sinalizam mudanças nas maneiras de entender a infância e o lugar que a
criança ocupa nesse cenário em que os sistemas de significação e representação
cultural se multiplicam.
Nesse contexto, muitos pontos de referências tradicionais coletivos e
pedagógicos evaporaram, como certas visões tradicionais de que a criança é
inocente, pura, indefesa, incapaz de compreender o mundo sem a mediação
do adulto (MANSON, 2001). Ao mesmo tempo, outros pontos de referência,
sempre fluídos e deslizantes, não cessam de aparecer e estruturar o presente,
como as noções de que a criança é ativa, quer opinar e mesmo decidir sobre seu
desenvolvimento, formação, construções corporais, hábitos de consumo e lazer,
mas, acima de tudo, viver cercada de objetos técnicos e aplicativos capazes de
criar redes de conexões com outras crianças e com o mundo, afinal, usar a rede
significa acessar uns aos outros (TAPSCOTT, 2010). Conectadas e informadas
A cibercultura infantil
Nos últimos anos que concluíram o século XX, autores com Harvey
(1999), Virilio (1984, 1999) e Lévy (1999) discutiram a condição da vida
contemporânea centrada em perspectivas e experimentos de mobilização.
O argumento era que a virada do século inaugurava uma época marcada
pela velocidade que colocava tudo em circulação, em estado de urgência,
alterando constantemente nosso campo perceptivo. Outro ordenamento do
relações sociais. É ela que organiza o cotidiano. Ora, se é assim para todos, não
pode ser diferente para as crianças. A cibercultura infantil deve, portanto, ser
entendida para além dos aparelhos e dos usos, pois ela é, principalmente, o
conjunto variado de saberes e atitudes, de conteúdos produzidos por e para os
infantes. Segundo Jenkings (2009, p. 249), tal condição ressalta que “crianças
estão ensinando crianças o que elas precisam saber para se tornarem participantes
plenas da cultura da convergência”.
É um fato que atualmente as crianças já nascem imersas num mundo
midiático, vivem com naturalidade as mais diversas relações com as tecnologias
digitais, fazem parte daquilo que Tapscott (1999) denominou de “a crescente
e irreversível ascensão da Geração Net”.
Com todas as desigualdades entre e nos países latino-americanos, em
tantos lugares onde a cultura digital ainda é vivida de modo bastante limitado,
pesquisas mostram que a conexão à internet é crescente e condiciona as relações
sociais. Dados apresentados, em 2012, pela Associação Latino-americana e do
Caribe para registros de endereços Internet (LACNIC) revelam, por exemplo,
que o alcance da Internet na América latina é de 40%, com baixa presença de
conexões consideradas banda larga. A expectativa é que esse índice cresça 60%,
em 2015, com mais ações de fomento à inclusão digital (MENOS..., 2012). O
aumento expressivo de acesso à internet previsto para os próximos anos mostra
o quanto as dinâmicas para o gerenciamento da banda larga, fixa e móvel,
mobilizam o mercado, os governos e a população em geral.
No Brasil, segundo o Ibope Media, em dados de dezembro de 2012, são
94,2 milhões de pessoas com acesso a internet, o que coloca o Brasil como o
quinto país mais conectado (ACESSO..., 2012).
tempo real e a vida online passam a ser vistas como um complexo cenário de
ação infantil num espaço-tempo de comunicação, socialização e aprendizagem.
Tapscott (1999, 2010) define a infância no século XXI como a primeira a
nascer cercada pela mídia digital. Essa infância é chamada por ele de “Geração
Net”, uma geração que nasce respirando tecnologias e, o mais importante, é
autora no mundo digital. “Inseridas na cibercultura, as crianças constroem
diferentes percursos e ações, pois são cada vez mais autônomas e independentes”
(MENEZES; COUTO, 2010). Computadores, tablets, smartphones não
causam estranhezas, e com muita “naturalidade” essas crianças descobrem como
se comunicar e fazer amizades por meio da conversação online e trocas frequentes
de mensagens. Aprender, brincar e se comunicar, produzir e difundir narrativas
de suas experiências, e desejos e sonhos também fazem parte do mundo infantil
conectado. Nesse sentido, para além de qualquer possível sensação de estranheza,
essas crianças consideram os dispositivos tecnológicos e as chamadas novas
tecnologias digitais como verdadeira extensão de si mesmas.
Diferentemente de muitos adultos, para essas crianças a vida online parece
sem segredos, muito fácil, sedutora e lúdica. Cada dispositivo é tratado com
intimidade, com afetividade, pois é um “amiguinho” com quem se pode brincar
e fazer coisas extraordinárias. Esse fazer extraordinário significa se relacionar com
outras crianças e, claro, com adultos. Como escreve Girardello (2008, p. 135):
mais um infante, cuja etimologia remete àquele que não fala. Fazer parte da
“geração net” é tomar posse da palavra, da escrita, dos sons e das imagens. Agora
a criança é um ser pleno, pois na experiência do mercado, do consumo e do
entretenimento ela pode escolher e criar produtos e serviços, opinar sobre tudo,
ser a imagem sedutora num mundo de imagens. A partir daí, as opiniões das
crianças são cada vez mais consideradas e respeitadas pelos adultos, pelos pais e
professores. Elas opinam e decidem sobre o consumo, o lazer, os equipamentos
eletrônicos, as viagens, ou mesmo quando certos produtos não são voltados
pra elas, como um carro, pois tem acesso à variados tipos de informação pela
televisão e, sobretudo, pela internet (SIBILIA, 2012).
Tudo isso pode significar que parte da subjetividade familiar e pedagógica
foi substituída pela subjetividade midiática que estimula e organiza a existência
conectada. Talvez essa mudança explique um pouco por que tantos pais e
professores estão desorientados e devem aprender a educar a partir de uma
negociação contínua com essa geração de crianças conectadas (LIPOVETSKY;
SERROY, 2011). Sendo assim, a cibercultura infantil pressupõe esse intenso
diálogo entre adultos e crianças. Se tradicionalmente o mundo do adulto se
opunha ao da criança, agora ele se aproxima e de muitos modos se confunde. A
criança não é mais vista como um estado de deficiência em relação ao adulto, ela
está conectada, informada, cheia de opiniões e disposta a colaborar com outras
crianças e com os adultos – em muitos casos, sobretudo quando envolvem os
usos das tecnologias digitais, elas sabem mais do que eles. As crianças são as
mais perfeitas traduções de eficiências multifacetadas, e boa parte delas é dada
pelo modo colaborativo de viver.
Existe, pois, na cibercultura infantil, um saber perceptivo e conectivo,
marcado pela fugacidade e constante renovação, que pode possibilitar outros
exercícios de cidadania e de consciência. Se parte do ideal transmissivo de
conhecimentos ruiu é porque, talvez, não houve mais ensino fora dessa
negociação, fora do diálogo contínuo entre os sujeitos que aprendem e ensinam
simultaneamente. É esse diálogo contínuo que desenvolve e estimula as relações,
marcadas por muitos e diferentes tipos de afinidades, que cada um preserva
e escolhe para viver. Desse modo, diante do apelo do consumo de imagens,
mercadorias e opiniões observamos que certos esforços conservadores para
proteger noções tradicionais de infância são predestinados ao fracasso, pois não
podemos proteger, limitar ou afastar as crianças do conhecimento de mundo
que a cibercultura torna fascinante, irresistível e facilmente acessível.
Algumas conclusões
As discussões propostas e os argumentos desenvolvidos até aqui, apontam
para um conjunto de conclusões das quais desejo destacar três: a primeira é
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 4. ed. São Paulo: Perspectiva,
1997.
ACESSO à internet no Brasil atinge 94,2 milhões de pessoas. Ibope, São
Paulo, 17 dez. 2012. Disponível em: <http://www.ibope.com.br/pt-br/
noticias/paginas/acesso-a-internet-no-brasil-atinge-94-milhoes-de-pessoas.
aspx>. Acesso em: 27 mar 2013.
BROUGÈRE, Gilles. Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 1995.
CAPPARELLI, Sérgio. Infância digital e cibercultura. In: PRADO, José
Luiz Aidar (Org.). Crítica das práticas midiáticas: da sociedade de massa às
ciberculturas. São Paulo: HackerEditores, 2002. p. 130-145.