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Revista 8 PDF
Revista 8 PDF
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DA ÉTICA DO DESEJO À RESPONSABILIDADE PELO REAL
FROM THE ETHICS OF DESIRE UP TO THE RESPONSIBILITY FOR REAL
Tania Coelho dos Santos
ARTIGO 1....................................................................................................13
CRIME, VIOLÊNCIA E RESPONSABILIDADE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA CONTEMPORÂNEA
CRIME, VIOLENCE AND RESPONSIBILITY IN CONTEMPORARY PSYCHOANALYTICAL CLINIC
Maria José Gontijo Salum
ARTIGO 2....................................................................................................36
PECAR HOJE E A CLÍNICA PSICANALÍTICA
THE PSYCHOANALYTICAL CLINIC AND THE MEANING OF THE SIN IN OUR DAYS
Sérgio Eduardo Cordeiro de Mattos
ARTIGO 3....................................................................................................43
ÉTICA, LEI E RESPONSABILIDADE: CONSIDERAÇÕES SOBRE ATENDIMENTO CLÍNICO AOS
ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI
ETHICS, LAW AND RESPONSIBILITY: CONSIDERATIONS ABOUT CLINICAL CARE FOR
ADOLESCENTS IN CONFLICT WITH THE LAW
Christiane da Mota Zeitoune
ARTIGO 4....................................................................................................61
A DIMENSÃO ÉTICA DA DIFERENÇA SEXUAL
THE ETHIC DIMENSION OF SEXUAL DIFFERENCE
Jamille Mascarenhas Lima
ARTIGO 5....................................................................................................69
A ESCRITA ÍNTIMA NA PUBERDADE: A TESSITURA DE UM VÉU NO ENCONTRO COM O
FEMININO
INTIMATE FEMALE WRITING: AN UNVEILING PROCESS WITH THE ONSET OF PUBERTY.
Nádia Laguárdia de Lima
Ana Lydia Bezerra Santiago
ARTIGO 6....................................................................................................88
LINGUISTERIA: POR DETRÁS DO QUE SE DIZ
LINGUISTERIA: BEHIND OF WHAT IS SAID
Evacyra Viana Peixoto
ARTIGO 7....................................................................................................96
A PSICANÁLISE EM EXTENSÃO E SUA INTENSÃO
THE PSYCHOANALYSIS IN EXTENSION AND ITS INTENSION
Ednei Soares
ARTIGO 8..................................................................................................100
FAMÍLIA E RESPONSABILIDADE
FAMILY AND RESPONSABILITY
Jorge Forbes
TRADUÇÃO.................................................................................................107
CRIMINOLOGIA LACANIANA
LACANIAN CRIMINOLOGY
Serge Cottet
2
ATUALIDADES.............................................................................................124
SUJEITO: SINTOMA DO EXISTIR
SUBJECT: THE SYMPTOM OF EXISTENCE
Maria Angela Mársico Maia
RESENHA...................................................................................................130
O ENCONTRO DE MARIE DE LA TRINITÉ, UMA MÍSTICA CRISTÃ, COM JACQUES LACAN
THE MEETING OF MARIE DE LA TRINITÉ, A CHRISTIAN MYSTIC, WITH JACQUES LACAN
Ana Paula Corrêa Sartori
RELATÓRIO DE GESTÃO.................................................................................142
3
aSEPHallus
Revista eletrônica do NÚCLEO SEPHORA
de pesquisa sobre o moderno e o contemporâneo
Volume IV, N. 8 – mai. a out./2009
EDITORA:
Tania Coelho dos Santos
Coordenadora do Núcleo SEPHORA de pesquisa sobre o moderno e o
contemporâneo
EDITORES ASSOCIADOS:
Serge Maurice Cottet
Prof. Dr. Titular do Département de Psychanalyse da Universidade de
Paris VIII (Paris/França)
Adriana Rubistein
Professora da Faculdade de Psicologia da Universidade de Buenos Aires
(Buenos Aires/Argentina)
CONSELHO EDITORIAL:
Alberto Murta
Prof. Dr. Adjunto da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do
Espírito Santo/UFES (Vitória/ES)
4
Fernanda Costa Moura
Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Geral e Experimental
da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (Rio de Janeiro/RJ)
Hebe Tizio
Profa. Dra. da Faculdade de Educação, da Universidade de Barcelona
(Barcelona/Espanha)
Heloísa Caldas
Profa Dra. do Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Clínica,
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ (Rio de Janeiro/RJ)
Jésus Santiago
Prof. Dr. Adjunto do Mestrado em Filosofia e Psicanálise, da Faculdade de
Psicologia, da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG (Belo
Horizonte/MG)
5
Marcus André Vieira
Prof. Dr. Adjunto do Programa de Pós Graduação em Psicologia Clínica,
da Faculdade de Psicologia, do Departamento de Psicologia Clínica, da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-RJ (Rio de
Janeiro/RJ)
Marie-Héléne Brousse
Profa. Dra. Maître de conférence, do Département de Psychanalyse da
Universidade de Paris VIII (Paris/França)
COMISSÃO DE REDAÇÃO
Ana Paula Sartori
Ana Lydia Bezerra Santiago
COMISSÃO EXECUTIVA
Fabiana Mendes
Marcela Cruz de Castro Decourt
Rosa Guedes Lopes
EQUIPE DE TRADUÇÃO
Catarina Coelho dos Santos
Ana Paula C. Sartori
6
REVISÃO TÉCNICA
Tania Coelho dos Santos
REVISÃO FINAL
Rosa Guedes Lopes
Fabiana Mendes
PROJETO GRÁFICO
Vianapole Design e Comunicação Ltda.
FICHA CATALOGRÁFICA:
Semestral.
Modo de acesso:
http://www.nucleosephora.com/asephallus/numero_08/index.htm
ISSN 1809-709X
CDD 150.195
____________________________________________________
LINHA EDITORIAL
HOMEPAGE: http://www.nucleosephora.com/asephallus
NOMINATA:
O Conselho Editorial da REVISTA aSEPHallus agradece a contribuição dos
seguintes professores doutores na qualidade de pareceristas:
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DA ÉTICA DO DESEJO À RESPONSABILIDADE SOBRE O GOZO
FROM THE ETHICS OF DESIRE UP TO RESPONSABILITITY UPON THE REAL
11
primeiro dos desafios para o começo do novo milênio seria um combate à
indiferença.
Ana Paula Sartori, oportunamente, resenha o primeiro volume dos Carnets
de Marie de la Trinité, destacando a relação analítica de Jacques Lacan com
essa mística, o que nos oferece um excelente exemplo da incidência da
psicanálise no campo da responsabilidade religiosa.
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CRIME, VIOLÊNCIA E RESPONSABILIDADE NA CLÍNICA PSICANALÍTICA
1
CONTEMPORÂNEA
Resumo
Partindo do texto de Lacan “Contribuições teóricas às funções da
psicanálise em criminologia” e tomando como referência a releitura do
mesmo feita por Serge Cottet, no artigo intitulado “Criminologie
lacanienne”, este texto pretende atualizar a contribuição da psicanálise à
criminologia, considerando o cenário da violência contemporânea no
Brasil. Para isso, recorre aos conceitos lacanianos de passagem ao ato e
acting-out para propor uma clínica do ato criminoso. O crime foi
considerado na neurose e na psicose, mas o que se pretendeu destacar
foi dimensão do ato criminoso na perspectiva dos novos sintomas.
Palavras-chave: crime, passagem ao ato, acting-out, delinquência,
novos sintomas
Abstract
Based on the text by Lacan “Theoretical introduction to the functions of
psychoanalysis in criminology”, and the study of this work by Serge
Cottet, in the paper named “Criminologie Lacanienne”, the present
research intends to update psychoanalysis’s contribution to criminology
by analyzing the contemporary violence scenario in Brazil. For that
matter, we look into the concepts by Lacan of passage to the act and
acting-out, in order to propose a clinic of the criminal action. The crime
was considered in neurosis and in psychosis, but what was aimed to be
pointed was the dimension of the criminal act in the perspective of the
new symptoms.
Key-words: crime, passage to the act, acting-out, delinquency, new
symptoms
15
A lógica de Freud, seguida por Lacan, quer dizer que pela atuação seria
encontrada uma lei no real que faria a função de barrar o gozo. Em outros
termos, os chamados crimes do supereu, ou em decorrência da culpa,
seriam realizados para chamar no real da lei jurídica o que falhou na
simbolização da lei edipiana. Por isso, Lacan não diferencia esses crimes
quanto à estrutura psíquica de quem os comete. Eles podem ser realizados
por neuróticos e psicóticos. Contudo, mesmo que decorrentes de uma causa
que parece ser semelhante, a justiça os avalia de forma diferente.
Os crimes cometidos pelos neuróticos serão responsabilizados penalmente,
os cometidos pelos psicóticos serão considerados inimputáveis. De acordo
com Cottet, Lacan, nos anos 1950, estava propondo uma nova clínica.
Nesta, seria preciso verificar a presença ou ausência do determinismo
autopunitivo. Caso este determinismo fosse encontrado, melhor seria
aplicar uma sanção penal, mesmo para os casos de psicoses.
Para Cottet, na relação com o ato criminoso, a psicanálise teria o papel de
demonstrar o caráter simbólico do crime que, na época, queria dizer o
reconhecimento pelo sujeito da estrutura edipiana de seu ato. O sujeito
seria humanizado e seu ato reinscrito no universal edipiano, mesmo se ele
desse uma interpretação privada do Édipo, como nas psicoses. A
interpretação do ato pela psicanálise ressaltaria as tensões, a função
criminógena da sociedade, como Lacan escrevera no artigo “A agressividade
em Psicanálise” (Lacan , 1948), lembra Cottet.
Nas questões referentes à responsabilidade penal, Cottet também recorda
que Lacan tomou partido de Gabriel Tarde. Este jurista, procurou separar a
determinação de responsabilidade da noção de livre-arbítrio. Segundo suas
concepções, a responsabilidade deveria ser avaliada a partir da identidade
pessoal e da similitude social. Lacan segue as posições de Tarde, ele
concorda que a responsabilidade não pode ser medida em função da
liberdade, isto é, verificar se a pessoa ao praticar o ato, o quis livremente,
ou se ela era alienada mental, como se dizia na época. Contudo, Lacan vai
questionar em Tarde a noção de identidade pessoal, pois para a psicanálise,
a implicação do inconsciente divide o sujeito de sua identidade. No empuxo
ao ato, a psicanálise vai perguntar que força desencadeou o ato e quem o
realizou.
Ao contrário da psiquiatria, a psicanálise lacaniana não considera o ato um
absoluto nele mesmo. Cottet observa que é diferente um ato desencadeado
por ideal justiceiro num delírio, ou por uma impulsividade como nos crimes
imotivados.
Podemos considerar que nos crimes por sentimento de culpa, presentes na
neurose, e nos delírios de autopunição, nas psicoses, o sujeito encontra-se
às voltas com o Outro. Obviamente, um Outro distinto e que assume formas
distintas, já que se trata de diferentes estruturas. Nesses casos, o problema
é transposto para uma querela com outrem e, nessa, o sujeito sai perdedor.
Por isso, uma sanção seria indicada para eles, segundo Lacan, pois, nesses
crimes haveria a presença de um Outro a quem o sujeito se dirige.
16
A causa do crime
O ato criminoso, como qualquer ato, tem uma causa – a força que o
desencadeou. Essa força parte de uma convicção que, certamente, não
provém das mesmas instâncias nem produz as mesmas conseqüências.
Como já foi abordado, no texto sobre criminologia, Lacan tratou dos crimes
do supereu, em consonância com os trabalhos dos psicanalistas de sua
época que estavam interessados nos atos infracionais cometidos pelos
jovens. Ele considerou os crimes do supereu também na perspectiva da
psicose, ao fazer referência à paranóia de autopunição. Mas, ele também
tratou dos crimes do eu e do isso.
Jacques-Alain Miller, na lição já citada do Seminário Pièces detachées
(Miller, 2005), vai se referir às diferentes modalidades de crimes
desencadeadas pelos três registros. Os crimes do imaginário, ou do eu,
seriam aqueles provenientes da agressividade presente no estádio do
espelho; os crimes do simbólico seriam demonstrados nos assassinatos de
presidentes e monarcas; nestes, também podemos considerar nos crimes
em decorrência do supereu, que apresentam um ponto de discordância
entre a lei e o ideal. E, por último, os crimes do real, que poderíamos
considerar os crimes do isso, ou do gozo, que ele diz se tratar de um misto
dos crimes do imaginário e do simbólico. Para exemplificar esse último tipo,
ele fez referência aos assassinatos em série, cada vez mais comuns nos
nossos dias; todavia, ele vai tomar os crimes nazistas como o apogeu dos
crimes do real.
O conceito de passagem ao ato orientou Lacan na teorização do ato
criminoso. Inicialmente, ele trabalhou esse conceito na perspectiva da
psicose no caso Aimée, a partir da noção de autopunição. Nesse caso,
houve um apaziguamento do delírio após a prisão. Posteriormente, Lacan
trabalhou a passagem no ato na paranóia, tomando-a como uma defesa
diante da onipotência do Outro. A perseguição no delírio paranóico
justificaria o ato. Nessas duas perspectivas, o sujeito, após o ato,
responderia reconhecendo, de alguma forma, a incidência da lei. Por isso,
Lacan afirma que uma sanção seria indicada para esses casos. Em sua tese,
ilustrando com Aimée, ele justificou seu argumento ao afirmar que após a
prisão, o delírio cessou. Nos crimes em decorrência de um delírio de
perseguição paranóico, o sujeito se posiciona por meio do argumento de
que agiu em legítima defesa, por exemplo, e, dessa posição, responde à lei.
Lacan sustenta que a partir do castigo, o sujeito poderia advir responsável
porque a responsabilidade penal humanizaria o ato – através da punição o
ato poderia ser inscrito no universal da castração.
Nos crimes decorrentes do Édipo, em conseqüência de um sentimento de
culpa, assim como nos crimes em função de um delírio de perseguição ou
de autopunição, a ação do psicanalista poderia verificar a presença ou
ausência de um determinismo autopunitivo, seja na psicose, ou na neurose.
A presença desse determinismo deveria servir de base para o
estabelecimento da responsabilidade penal e do acompanhamento da
responsabilização. Nesses casos, a prisão seria preferível à decretação de
irresponsabilidade, ou de um tratamento, pura e simplesmente, como
sonhavam alguns dos psicanalistas pós-freudianos que trabalhamos no
capítulo anterior.
17
A partir da responsabilidade penal poderia se promover a assunção
subjetiva da falta e, então, a responsabilidade, no sentido psicanalítico.
Responsabilidade, para a psicanálise, é a resposta de um sujeito frente ao
real. No caso do crime, a resposta seria a articulação de um ato à sua
subjetividade, já que o ato é sem sujeito.
Visando a responsabilidade, Cottet (2008) lembra que o praticante da
psicanálise poderia ajudar no despertar do sujeito daquilo que o condena.
Sabemos que não se trata da sentença do juiz, mas do universo mórbido da
falta – expressão de Hesnard (1949). A intervenção da justiça poderia ser
um chamado a essa condenação, que é de todos, pois diz respeito ao
universal da castração. Contudo, caso a caso, é preciso verificar se o sujeito
pode responder ou não e de que formas.
Portanto, trabalhando na interface com o direito penal, a psicanálise trataria
de acompanhar a possibilidade de que o sujeito possa promover a assunção
de sua responsabilidade. Por isso, para a psicanálise, a responsabilidade é
universal. A responsabilidade é o chamado para que o sujeito possa
responder, frente aos seus semelhantes, pelo ato que praticou.
Mesmo tentando atualizar a prática da psicanálise, a partir de Lacan,
estamos mantendo a dimensão de castigo, que foi ressaltada por ele,
devido a seu aspecto de constrangimento feito àquele que praticou o ato
criminoso. Trata-se da função de um chamado ao sujeito para responder
por sua posição. E, em nossa experiência, vemos que esse chamado pode
se dar de várias formas – pela prisão, pelas penas alternativas, por medidas
sócio-educativas, no caso dos adolescentes, ou do acompanhamento por
meio de uma medida de segurança, nos casos de psicoses.
A responsabilidade, concebida como a resposta de um sujeito, é o que visa
a psicanálise. Ela pode acontecer, a partir da entrada do Outro da lei,
preservando o semblante do direito penal que diz que a justiça se faz
porque há uma distinção fundamental: há coisas que são permitidas porque
existem algumas proibições. Nesse sentido, estamos considerando a
dimensão simbólica da lei que instaura uma diferença. Porém, outras
modalidades de passagens ao ato acontecem nas psicoses e, nestas,
devemos fazer uma ressalva quanto à responsabilização penal.
Lacan também considera a passagem ao ato realizada a partir da
cristalização hostil. Essa modalidade foi discutida por ele no caso conhecido
como o das irmãs Papin (Lacan, 1933). As irmãs Lea e Cristine realizaram a
passagem ao ato no encontro com o semelhante tal como formulado no
texto lacaniano sobre o estádio do espelho - cada uma atacou seu duplo, a
patroa delas e sua filha.
Uma outra referência de passagem ao ato foi retirada dos chamados crimes
imotivados, como Paul Guiraud (1994) os nomeou. Os crimes desse tipo
visariam à extração de kakon, o mal interior. Em termos lacanianos, esses
atos criminosos realizariam a extração do objeto sendo, portanto,
considerados crimes pulsionais, pois visam a liberação de um mal interior.
Para essas modalidades de crime – cristalização hostil e crimes kakon - a
sanção não seria adequada. Ao contrário, seriam os crimes para os quais a
inimputabilidade penal estaria indicada e formas de tratamento poderiam
ser realizadas por meio de um acompanhamento com um psicanalista, além
de outros profissionais.
18
Serge Cottet (2008) afirma que Lacan parece destacar a categoria dos
crimes do eu nos anos 50 porque esses crimes fazem prevalecer a
identificação imaginária em detrimento da social, um problema que ele
estava desenvolvendo nessa época. Somente depois, ele teria se ocupado
da noção de assassinatos imotivados.
Dando sequência à atualização da leitura do texto lacaniano, Serge Cottet
vai afirmar que a frequência desses crimes imotivados tem aumentado.
Segundo ele, podemos ver indicações desse aumento nos assassinatos em
massa, cada dia mais comum. Eles podem ser considerados como crimes
imotivados, não somente porque são imprevisíveis, mas também porque o
único sentido a lhes dar é o gozo da destruição. Esses crimes são também
nomeados crimes de gozo, ou crimes do real, tal como Miller nomeou os
crimes nazistas. Ainda de acordo com Cottet, o assassinato em massa visa
atingir a humanidade e parece vislumbrar que existe um programa de
liquidação que visa a raça humana.
Cottet afirma que, dentre os crimes em série, os sexuais têm se
demonstrado os mais atrozes e sua gratuidade mobiliza a vingança pública.
Nesses casos, tanto os peritos, quanto o público não querem considerar a
incidência de uma psicose. Esses criminosos são apresentados como
calculistas, manipuladores, perversos, inteligentes. São tudo, menos loucos,
comenta Cottet. Em geral, esses crimes de gozo são designados como
perversão, ao contrário do que deixa entender a psicanálise. Por isso, a
justiça os tem penalizado. Para Cottet, o problema é saber se um castigo
poderia despertar a responsabilidade desses criminosos. Ele lembra que
suscitar uma crise subjetiva pelo castigo, em certos casos, poderia ser uma
aposta. Em outros, principalmente nos que indicam a presença de um traço
perverso, levar ao tribunal pode significar uma nova oportunidade para
prosseguirem gozando e ele duvida que o julgamento possa lhes humanizar.
Portanto, o ato criminoso não é desencadeado sem uma causa, o crime
ocorre devido ao encontro com algo que o causa. Diante desse encontro, o
sujeito responde com um ato que, definido como crime, toma o estatuto de
um fato social. Por isso, há uma resposta jurídica ao ato criminoso. A justiça
vai constranger aquele que cometeu o delito para que pague seu ato com
uma sanção, ou vai encaminhar para um tratamento. Portanto, a passagem
ao ato tem uma causa e produz um efeito. A psicanálise, no encontro com
aquele que cometeu um crime, a partir da responsabilização penal, vai
buscar a assunção do sujeito frente ao ato. Em suma, vai buscar uma
produção subjetiva onde um ato imperou.
Lacan também faz referência ao caso Landru. Com esse caso, podemos
extrair, a partir da orientação lacaniana de Jacques-Alain Miller, uma clínica
do real, como trabalhou Francesca Biagi-Chai (2007). Cottet sustenta que
esse caso mostraria a perspectiva de kakon no último ensino de Lacan. Ou
seja, um ensino que não considera mais o privilégio do registro do
simbólico, como nos anos 50.
Embora seja possível afirmar que Lacan estava destacando os casos de
delinquência juvenil no pós-guerra, ele também fez diversas considerações
sobre as passagens ao ato nas psicoses. Portanto, o ato criminoso pode ser
considerado na perspectiva das duas formas de apresentação dos atos – a
passagem ao ato e o acting-out. Na sequência, será feita uma discussão
desses dois modos de agir.
19
A passagem ao ato, o acting-out e o crime
20
Segundo Lacan, a angústia surge quando aparece no enquadramento, não
algo novo, inesperado, mas o que já estava ali, velado, por trás. Portanto, a
angústia acontece quando, súbito, de repente, há o encontro com o
heimlich/unheimlich, numa referência ao familiar/estranho do texto
freudiano, “O estranho” (Freud, 1919). O surgimento deste (un)heimlich no
enquadre causa o fenômeno da angústia, por isso, para Lacan, a angústia
não é sem objeto, ao contrário do que afirmava Freud (1926 [25]).
Lacan faz referência ao sonho de angústia do homem dos lobos, relatado
por Freud (1918 [14]) – abre-se a janela e o objeto por trás dela é
desvelado. No caso do sonho relatado, os lobos. Nesse seminário, Lacan
também se refere a um desenho de uma paciente psicótica, atendida por
Jean Bobon. Este desenho foi reproduzido no Seminário A angústia e nele
pode-se ver uma árvore com olhos e a frase: “eu sou sempre vista” (Lacan,
1962-63, p. 201). Lacan afirma que esse desenho mostra o objeto olhar e
também o sujeito como objeto. Assim, para Lacan, o grande problema da
angústia é se deparar com a presença do objeto, ou seja, quando a falta de
objeto, isto é, o desejo, falta. Nesses momentos, o próprio sujeito aparece
como objeto, quer dizer, é desvelada para o sujeito sua vertente objetal.
Ao fazer referência ao enquadre, Lacan está considerando a rede de
significantes que gera o mundo para cada um e pelo qual somos
enganados, como ele diz. A angústia, ao contrário, é o que não engana. O
encontro com o objeto causa angústia e desordena o mundo. Na certeza da
angústia, pode-se recorrer à ação. Busca-se evitar essa certeza assustadora
do encontro com o objeto que faz furo na rede dos significantes que
ordenam o mundo. Afetado pelo encontro com o objeto, o sujeito não
pensa, nem tenta compreender, ele age.
Os atos são considerados, nesse seminário, uma forma de defesa contra a
angústia. Nele, Lacan vai montar um grafo para localizar esse afeto,
partindo do texto de Freud “Inibição, Sintoma e Ansiedade” (1926-25) para
dizer que ele está no fundo dessas manifestações. Quer dizer, a angústia é
o afeto que designa o encontro com o objeto. Por isso, quando ela surge,
sinaliza um encontro com o real que pode desencadear sintomas e inibições,
bem como a passagem ao ato e acting-out, Lacan acrescenta.
Essas diferentes saídas frente à angústia serão determinadas por
circunstâncias distintas, no que diz respeito à possibilidade de simbolização.
Uma resposta sintomática pode ser desencadeada quando o sujeito
encontra, em sua história, coordenadas simbólicas para subjetivar a falta, a
sua e a do Outro, ou seja, quando ela surge articulada no dispositivo
simbólico. Fazendo uso da fantasia, que articula a presença do objeto em
conjunção e disjunção com o significante, pode-se substituir o encontro com
o objeto que angustia por um sintoma, assim esse encontro é metaforizado.
Nos casos dos atos – passagem ao ato e acting-out – o sujeito não encontra
o apoio simbólico para inscrever a castração como falta. Portanto, ou ele
reproduz a situação em uma encenação, ou seja, ele encena a falta por
meio da fantasia, colocando um objeto como falta, caso do acting-out, ou
sucumbe a esse encontro, como na passagem ao ato. Levando em
consideração a temporalidade lógica – instante de ver, tempo de
compreender e momento de concluir – no primeiro caso, o sujeito ficaria
paralisado no instante de ver e no segundo, passaria, instantaneamente, ao
momento de concluir; ambos elidiriam a simbolização e subjetivação
21
presentes do tempo de compreender. Não abordaremos as saídas a partir
da inibição, pois nosso objetivo é avançar nas considerações do crime como
um modo de atuação que recorre a um dos dois tipos de atos abordados por
Lacan no Seminário 10 (1962-63).
No caso das psicoses, já abordamos as diferentes formas de passagem ao
ato ao longo da obra de Lacan – autopunição, delírio de perseguição,
cristalização hostil, extração do objeto. Com a publicação da tese Francesca
Biagi-Chai (2007) sobre o caso Landru, podemos considerar a leitura dos
crimes kakon, da extração de objeto, a partir do último ensino de Lacan, ou
seja, uma clínica do real. Nestes casos, Biagi-Chai propõe que consideremos
a passagem ao ato pela função de S1 e a. Foracluído do simbólico, sem
articulação em um discurso, o sujeito apresenta um S1 sozinho, sem relação
com um S2. No caso de Landru, “tudo pela sua família” constitui uma
ordem, sem vacilação, um S1 ao qual ele está submetido. Trata-se de um
dever que o comanda, sem relação a um ideal. Portanto, suas passagens ao
ato – roubo e assassinato – vão se configurar como recuperação do objeto,
no caso, os bens das mulheres solitárias que ele assassinava.
A essa variedade de passagens ao ato que podemos apreender no ensino de
Lacan, acrescentamos os acting-outs, presentes nos casos de delinquência
cujos crimes simbolizam a tensão entre o sujeito e a lei social. Concluindo,
é preciso que consideremos o crime como uma espécie de ato referido ao
objeto a, seja na modalidade de uma passagem ao ato ou de um acting-out.
Tradicionalmente, a psicanálise associou a passagem ao ato às psicoses em
decorrência da foraclusão do significante do Nome-do-Pai nessa estrutura.
Esse significante é o que possibilita a significação do desejo como falta,
articulado ao falo, permitindo o deslizamento do sujeito e do desejo na
cadeia significante. No caso das psicoses, os fenômenos delirantes e
alucinatórios vêm ocupar o buraco no simbólico conferindo uma
proeminência do imaginário. Nas situações onde o objeto se apresenta, seja
de forma persecutória, seja de forma invasora, a passagem ao ato pode ser
uma saída para extraí-lo. Essa extração em ato vem no lugar da extração
simbólica não operada.
Nos casos de neuroses, o sujeito mostra o objeto pela encenação, num
acting-out, ou se identifica imaginariamente com esse objeto e se lança
numa passagem ao ato, quando a defesa de sua fantasia é transposta de
uma maneira selvagem. Nessas circunstâncias, um sujeito neurótico pode
fazer uma passagem ao ato.
No grafo que Lacan propõe no Seminário 10, o acting-out é localizado como
uma ação que acontece na conjunção de um impedimento com uma efusão.
Trata-se de uma ação que se aproxima do sintoma porque nela existem
coordenadas simbólicas, ainda que inoperantes. Esse tipo de atuação serve-
se do recurso da fantasia para mostrar uma cena dirigida ao Outro –
representa uma história em ato. O Outro é convocado e, em cena, lhe é
mostrado o objeto da angústia; obviamente, não o objeto, mas uma falácia
colocada em seu lugar. O acting-out é um apelo em ato para que um outro
produza uma ordem, ordene o mundo do sujeito, refaça o enquadre
desarranjado. Nas chamadas delinqüências juvenis encontramos a
proeminência desses atos. Os atos infracionais na adolescência, em sua
grande maioria, devem ser localizados dentro da perspectiva do acting-out.
22
A passagem ao ato acontece quando se conjuga a emoção no momento de
mais intenso embaraço. Jacques-Alain Miller (1993), retomando o conceito
lacaniano de passagem ato, vai dizer que a passagem ao ato é o suicídio do
sujeito. Nela, faltam coordenadas simbólicas e o sujeito sucumbe se
identificado imaginariamente ao objeto. A passagem ao ato é, em geral, um
ato mudo, de sentido mais trágico e de maior risco. Geralmente, são atos
solitários e sem público. Nestes atos, a angústia sobrepõe ao sujeito, ele
fica identificado ao objeto causa de sua angústia e, ao pretender expulsá-lo
da cena, pode expulsar a si mesmo, como nos demonstram os casos de
auto-extermínio. Nos casos de passagens ao ato contra outrem, pode-se
atacar no outro, seu eu, seu supereu, ou a si mesmo. São formas diferentes
de fazer a extração, o excesso, quando o objeto está localizado no outro. Na
primeira modalidade, temos o caso das irmãs Papin, no segundo, Aimée e
no último, os crimes de kakon.
Devemos demarcar que estes dois conceitos - acting-out e passagem ao ato
- nos mostram a dimensão de um atuar no lugar de dizer. Atuar no lugar de
dizer é também a definição que Jacques-Alain Miller nos dá dos chamados
novos sintomas – os quais ele denomina patologias do ato. Nessa nova
perspectiva, o sintoma – como resposta de um sujeito do inconsciente –
não se formula, não apresenta uma formação sintomática articulada ao
desejo inconsciente. Quando o significante do desejo falta, seja por estar
foracluído, seja por não estar relacionado a um ideal simbolicamente
articulado, a resposta que deveria ser subjetiva não acontece. Em seu lugar
surge um ato. Por isso, no ato não há um sujeito, prevalece a versão do
objeto.
Na clínica clássica, o objeto a aparece como o resto ou o produto do
discurso do mestre, o discurso do inconsciente. Como efeito, o objeto na
neurose encontra-se velado na fantasia inconsciente. Na clínica dos atos, o
objeto não surge da mesma forma, ou seja, articulado em discurso no
inconsciente: ele é atuado.
Para que o mundo do sujeito seja articulado em discurso, é preciso que ele
seja estruturado no mundo dos significantes e, para isso, é necessária a
intervenção do significante do Nome-do-Pai, que este significante
intervenha como Outro. No caso das psicoses, a foraclusão desse
significante impossibilita que esta operação, chamada por Lacan de
metáfora paterna, seja realizada, o que aumenta a promessa das passagens
ao ato. Nos casos que apresentam atuações, mas que não se tratam de
psicoses, podemos considerar que estas podem acontecer a partir do que
Lacan (1938) designou de declínio da imago paterna.
A clínica contemporânea, segundo Miller (1996-97), é a clínica do Outro que
não existe. Isso quer dizer que o grande Outro que deveria veicular o ideal
articulado à sublimação e a renúncia e que promoveria o laço social, não é
encontrado de forma hegemônica. Ou seja, o ideal do eu configurando um
tipo para que o sujeito possa se identificar e localizar seu gozo como fálico,
da forma como Lacan (1958) nomeou em seu escrito “A significação do
falo”, isto é, o tipo ideal de seu sexo.
A partir desse Outro se estabeleceria a articulação entre o grupo vital e o
funcional que Lacan faz referência do texto da criminologia. Correlato ao
declínio desse Outro do ideal, surge uma figura feroz que exige satisfação, o
supereu. Portanto, nessa clínica dos atos, temos que considerar as
23
conseqüências das novas formas de apresentação do objeto para o sujeito.
Ou seja, considerar que o tipo exigido não é o da sublimação e da renúncia,
mas aquele que usa os objetos produzidos para gozar, sem restrição. Esse
tipo dificultaria o estabelecimento de laço social, já que sua incidência se
daria a partir da falha existente na relação entre o grupo vital e o grupo
funcional, como já foi ressaltado.
Podemos seguir as indicações dos trabalhos realizados pelos psicanalistas
diante dos sintomas sociais no pós-guerra e vermos, de certa forma, um
cenário parecido com o nosso. Quer dizer, as condições daquele tempo
propiciavam sintomas articulados ao contexto social, econômico e político
da época, cuja manifestação nos jovens era chamada de delinquência.
Contudo, parece que a comparação termina por aqui. O mundo não é mais
o mesmo, ou o Outro não funciona da mesma forma. Ele não é mais o
Outro da transcendência, dos ideais, da renúncia ou da crença. Um Outro
que transmitia a castração e estabelecia o objeto como causa de desejo. As
modificações no campo do Outro acarretam mudanças na clínica.
Fizemos referência às diferentes formas dos crimes nas psicoses, mas
também vamos considerar as diferenças na apresentação da delinqüência
nos jovens, com o objetivo de comparar as distintas causas do crime.
24
ele também lembra a constituição do objeto como o estranho familiar.
Embora o objeto seja buscado porque falta, ele não é para ser encontrado,
para que o sujeito do desejo esteja operando, é no estatuto de causa que o
objeto deve ser mantido. Do contrário, figurando no lugar de mais gozar,
surge a angústia como assinalando a presença do real do gozo.
Todo ato tem relação com o objeto, inclusive o que estamos aqui
designando como ato criminoso – na atuação de um crime, o objeto é
visado. Mas, não se trata do objeto na sua relação com a falta, com o
desejo. Sem o amparo do desejo, no crime o objeto se apresenta, ele se
manifesta. Portanto, ao atuar, um crime é uma forma de fazer um curto –
circuito na articulação do objeto com sua falta, com a castração. Com seu
ato, o criminoso vislumbra ter acesso ao objeto fora de sua significação
fálica. Porém, isso se faz de modos distintos, quer se trate da neurose, da
psicose e da perversão, já que essas estruturas apresentam maneiras
distintas de lidar com a castração, com o Outro e com o objeto.
Sabemos dos trabalhos que atualizaram a clínica psicanalítica de orientação
lacaniana no campo dos atos criminosos, na psicose e na perversão. No
campo da psicose, temos, principalmente, o trabalho de Francesca Biagi-
Chai a partir do caso Landru. No campo da perversão, a psicanálise de
orientação lacaniana tem mostrado que, em sua maioria, os casos que são
apresentados como monstros e perversos são, na verdade, casos de
sujeitos psicóticos. O livro de Silvia Tendlarz e Carlo Dante García, A quién
mata el asesino (2006), mostra isso.
Nos casos que são considerados perversão, há uma discordância entre a
orientação lacaniana da psicanálise e outras leituras psicanalíticas. Nessas
últimas, vemos uma tendência de manter o diagnóstico de perversão para
casos que, sob a orientação lacaniana, seriam considerados psicóticos.
Fazemos aqui referência ao livro de Susini, L’auteur du crime pervers
(Susini, 2004). Tudo indica que os casos apresentados nesse livro tratam de
psicose, embora a autora afirme que são perversos. Assim, vemos
prosseguir atualmente a tendência iniciada por alguns psicanalistas pós-
freudianos, sob influência de Melitta Schimideberg (1956), de considerar os
atos criminosos na perspectiva dos atos perversos.
Então, em nossa época, a psicanálise de orientação lacaniana tem
atualizado a leitura dos atos criminosos nas psicoses, como foi apresentado,
mas, também, é preciso atualizar a leitura dos casos de neurose.
Atualmente, da mesma forma que na psicose, haveria para o neurótico a
apresentação do objeto, como Jacques-Alain Miller demonstrou na
conferência “Uma fantasia” (2004). Nessa conferência, Miller considerou os
efeitos para a subjetividade contemporânea de não estar orientada por um
ideal, mas comandada pelo objeto da satisfação. Por isso, torna-se
relevante investigar os atos criminosos comandados pelo objeto, na
perspectiva dos novos sintomas. Mais ainda, verificar se esses atos
poderiam ser considerados os crimes do real, mesmo na neurose.
Estamos considerando que, também na neurose, vemos casos nos quais
sobressai a dimensão do objeto, numa perspectiva que nos parece nova. A
delinquência, em sua forma tradicional, apresentava, geralmente, o ato de
furtar um objeto do Outro. Este objeto valia para fazer um furo no Outro,
ou para conferir um brilho fálico a seu portador, inserindo-o no campo do
Outro por meio de um objeto desejado. Nesses casos, sobressai a presença
25
da falta: em relação ao objeto, ao desejo, ao Outro e à lei. Esses casos
também apresentam uma resposta subjetiva, a partir das consequências do
ato. São os casos onde o sujeito responde conectando seu ato ao universal
da castração. Por isso, essa forma de delinquência tem relação com a lei.
Trata-se de alguém que se relaciona à lei do desejo e que o ato chama para
que ela se apresente. Isso quer dizer que se trata de alguém que cai sob a
lei do Outro. Mesmo numa agressão, num assassinato, esta relação se
estabelecia – a dimensão de alteridade estava presente, ao se culpar, por
exemplo.
Atualmente, estamos diante de uma profusão de objetos ofertados para o
gozo. Jacques-Alain Miller (2004), na conferência citada acima, sustentou
que o sujeito contemporâneo, ao contrário do que se afirma, não é um
desorientado em função da inexistência de um Outro, ele continua
orientado, não mais pelo Outro, mas pelo objeto.
Hoje, se faz presente o declínio dos ideais e ascensão dos objetos de
consumo. Cada vez mais, a relação com o objeto que não se faz pelo
desejo. O objeto como falta era buscado no campo do Outro, porque ele se
constituía como alteridade. Se o Outro não se articula como um campo de
alteridade, quando o estranho é avistado, é preciso eliminá-lo. Isso está de
acordo com a profecia de Lacan da escalada do racismo (Lacan, 1973,
p.532).
Para exemplificar esse movimento, ressaltamos o aumento dos crimes onde
o corpo é o objeto – na forma de espancamentos, lesões corporais e,
mesmo, homicídios – principalmente entre os jovens. Ressaltamos também
os casos de adolescentes que expõem seu corpo, de forma mortífera, para
ser golpeado. Trata-se de atos que demonstram, muito mais, uma
desordem pulsional que se apresenta na forma de atos de violência, não
uma ligação com o objeto a ser visado no campo do Outro. Esses atos
indicam que podem ser tomados como provenientes do real. Melhor
dizendo, indicam novas formas de apresentação do sintoma de
delinquência.
No caso do Brasil, ironicamente um país que preconiza que não há racismo,
é possível considerar que esses crimes têm se tornado típicos. Nos Estados
Unidos e em outros países, os assassinatos em massa, praticados por
sujeitos psicóticos, têm sido considerados por vários autores os crimes do
real. Aqui, talvez possamos considerar o extermínio praticado pelos jovens,
os principais exemplos desses crimes. Especialmente ligados à droga, mas
não somente, o extermínio, como o nome indica, visa eliminar o estranho a
cada vez que ele aparece.
Cottet (2008), como foi dito, colocou um problema para a responsabilidade
nos casos dos crimes que trazem a marca da sexualidade e que são
considerados como perversos. No nosso caso parece serem esses atos – os
de extermínio – que colocam, atualmente, um problema no que diz respeito
à responsabilidade. Os criminosos nazistas afirmavam que estavam
cumprindo ordens, esses jovens também: eles se encontram na iminência
de se depararem com o inimigo, com o estranho, encontram-se justificados
pelo medo, o objeto fóbico se apresenta e eles têm que se defender. Da
mesma forma que os criminosos nazistas, eles se justificam pelas intenções,
não pelas conseqüências. A punição, para eles, não guarda a relação de um
sujeito a um ato. Luis Eduardo Soares (2006) comenta as práticas
26
justiceiras realizadas pelos jovens nas favelas. Nessas práticas, não há
como um sujeito responder, não há procura pela verdade, pela reposta, há
uma eliminação. Não basta matar, é preciso dominar o objeto, por isso, o
corpo é retalhado, esquartejado, dominado e seus pedaços exibidos. Só
assim o estranho é eliminado.
Apesar de referirmos à droga e ao tráfico, não vamos considerar as
conseqüências específicas desses fenômenos para a criminalidade juvenil –
isso demandaria uma outra direção nesse trabalho. Por ora, vamos
considerá-los como objetos a serem consumidos, como qualquer objeto que
se preste a isso: drogas, armas, corpos, crianças. A oferta dos objetos em
profusão e eles estarem em posição de comando, foi o fator que modificou o
cenário de constituição dos atos de violência.
Portanto, um ato infracional, quando considerado um desvio, na perspectiva
do objeto, é um extravio da regulação da norma fálica. Por isso, a
delinqüência, de certa forma, pode ser considerada um novo sintoma. Como
afirmamos, o novo sintoma, de acordo com o que nos apresenta Jacques-
Alain Miller, apresenta um gozo fora do recalcamento. Contudo, nas
chamadas delinquências tradicionais – articuladas ao significante, a uma
história, a um romance familiar - encontrávamos uma articulação do desejo
presente. Comparando o sintoma tradicional com a atuação, o neurótico
comum retorna a castração para si, simbolicamente, através de uma
formação do inconsciente, enquanto o delinquente atuava, principalmente,
através de acting-outs.
As novas formas de apresentação da delinqüência, ao contrário, apresentam
a passagem ao ato. Dessa forma, a própria nomeação de delinquência pode
ser questionada. Não se trata de um desvio da norma para nela se inserir,
mas, de uma ruptura. Por isso, é possível considerar que não se trata de
crimes – atos relacionados a uma lei – mas, do retorno da violência em ato.
Hoje em dia, a orientação lacaniana de Jacques-Alain Miller tem como
desafio pensar a manutenção da psicanálise como avesso do discurso do
mestre. Esse desafio se mantém na clínica dos atos criminosos. A lógica que
orienta os crimes não é a da falta, mas do excesso. Mesmo que esses
crimes sejam cometidos em lugares precários, do ponto de vista econômico
e social, encontramos uma profusão de objetos, inclusive o corpo.
Afirmamos que o ato tem uma causa – a presença do real do gozo. O ato
criminoso se constitui uma defesa contra a angústia que sinaliza a presença
do objeto. Então, o ato é uma espécie de resposta. Todavia, é uma resposta
que exclui o sujeito: em seu instante, o ato não comporta a presença do
sujeito. Aliás, os atos se produzem quando um sujeito não pode aparecer.
Nas atuações há um curto-circuito do inconsciente do sujeito, há uma
destituição subjetiva e uma submissão ao objeto. O ato é um efeito de uma
causa – a presença do objeto – mas, ele, também, produz conseqüências. A
partir das conseqüências do ato o analista irá operar, buscando produzir um
sujeito onde estava um ato. Essas consequências deverão estar,
necessariamente, relacionadas ao que desencadeou a atuação. Contudo, a
27
operação analítica não se fará da mesma forma em cada um dos casos.
Como já foi abordado, um ato criminoso não é o mesmo, ele pode ser
realizado a partir de um acting-out ou de uma passagem ao ato, e cada
uma dessas modalidades não se faz da mesma forma caso estejamos diante
de uma neurose, de uma psicose ou de uma perversão.
O criminoso neurótico definido por Freud respondia com atos a partir do
Édipo e neles era possível verificar o matiz do sentimento de culpa
regularizando sua subjetividade. Freud postulou dois tipos de criminosos,
basicamente: os criminosos por falta – em conseqüência de um sentimento
de culpa, quer dizer, aqueles que estavam em falta com o Outro. Ele
também abordou aqueles que se consideravam exceções – que
demonstravam um excesso.
Pensar uma clínica com sujeitos que praticaram atos infracionais, a partir da
referência do Édipo conduzia a uma lógica específica da direção do
tratamento. Implicava em fazer valer um tipo de resposta sobre o ato que
tinha no Édipo sua coordenada. O tempo da clínica do Outro que não existe
e da submissão ao objeto, implica numa modificação da direção do
tratamento com esses sujeitos.
O pensamento freudiano que se estrutura em torno do Édipo, em última
instância, está hoje bem assimilado pelas instituições judiciais. De certa
forma, ele está de acordo com os ideais preconizados pelas instituições
judiciais. Mudar o paradigma acarreta em um desafio para o trabalho com a
psicanálise nas instituições judiciais. Com Lacan, o paradigma não se coloca
em torno do sentimento de culpa, mas da responsabilidade.
Para Lacan, a relação da psicanálise com a criminologia pode ser vista em
duas perspectivas, de acordo com o artigo “Introdução teórica às funções
da psicanálise em criminologia” (1959). Primeiramente, do ponto de vista
da terapêutica: para ele, a psicanálise pode lidar com esses casos porque,
ao contrário dos outros discursos, não desumaniza o criminoso; ela o tem
como sujeito. A partir da operação analítica, ato e subjetividade são
passíveis de serem articulados. Em segundo lugar, ele considera essa
relação do ponto de vista do progresso da psicanálise. No artigo citado, ele
afirmou que um dos objetivos ao escrevê-lo era repensar a doutrina
psicanalítica, em função desse novo objeto. Isso nos permite fazer uma
inversão em seu título e tomá-lo como uma contribuição que a criminologia
pode fazer à psicanálise. Essa contribuição pode ser vista como a
possibilidade de, por meio desses casos, fazer avançar a teoria e a prática
analítica além da referência edipiana.
Segundo Lacan, não há um vínculo entre sentimento de culpa e
responsabilidade. Um dos postulados do texto sobre criminologia é o de que
não existe sociedade para a qual não comporte uma lei positiva, e que em
nenhuma delas deixa de ocorrer as mais diversas transgressões que
constituem o crime. A forma de castigar as transgressões, para Lacan,
denota a maneira como se pensa a subjetividade. Lacan considera que a
idéia de homem que vigora em uma época pode ser inferida pela relação
estabelecida entre o crime e a punição que lhe advém. Em todas as
sociedades é mantida essa relação, portanto a responsabilidade é universal,
ainda que isso exija uma ‘modalização’. Em decorrência disso, Lacan falou
em assentimento subjetivo. O assentimento está articulado aos modos de
resposta. Esse conceito revela a problemática do sujeito às voltas com a lei.
28
Certamente, a lei que interessa à psicanálise não é a mesma que importa
ao direito. Ela não é a norma. A lei jurídica se orienta pelo ideal, tem como
objetivo a normatização das condutas. A lei que interessa à psicanálise é
aquela que visa o singular, que institui a particularidade. É a isso que se
refere o conceito de assentimento.
Parei aqui
As modalidades patológicas do assentimento
Notas
1. Este texto foi extraído da minha tese de doutorado em Teoria Psicanalítica: A
Psicanálise e o crime: causa e responsabilidade nos atos criminosos,
agressões e violência na clínica psicanalítica contemporânea. Orientação:
Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos. PPGTP/IP/UFRJ, 2008. Financiamento
da CAPES para o estágio PDEE na Universidade Paris VIII.
2. Com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente, o termo
delinquência tenha caído em desuso. Porém, vamos mantê-lo porque ele se
presta, devido a sua raiz etimológica, a ressaltar o que queremos
demonstrar, quer dizer, a relação do sujeito à lei. Delinquo quer dizer deixar
cair.
3. Em seu Seminário 23 sobre Joyce, Lacan passou a grafar sintoma como
sinthoma. Neste seminário ele ressalta o que havia começado a desenvolver
no Seminário RSI – o pai como um sintoma, um artifício usado para manter
enlaçados os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário. Através deste
quarto nó, os fundamentos de uma subjetividade podem ser sustentados.
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33
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Orienbtada pela Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos. PPGTP/IP/Universidade
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35
Resumo
O autor retoma a noção de pecado na história de nossa civilização
judaico-cristã, para mostrar porque para Lacan a depressão – a acídia -
é um pecado, o grande pecado da atualidade, à medida que supõe uma
negligência do sujeito em relação à sua vida e à do outro.
Palavras-chave: Depressão, pecado, acídia, psicanálise,
contemporaneidade.
Abstract
The author works with the notion of sin in the history of the Jewish and
Christian civilization, and shows how depression - as ascidia - is a sin,
the biggest one in actuality, just because suppose negligence with us
and with others.
Key Words: Depression, sin, ascidia, psychoanalyses, actuality,
contemporarily.
Pecar
O sentido desta experiência hoje suscita problemas.
Provamos em nós a consciência de nossas falhas. Mas não a identificamos
com o que parecia designar outrora “um pecado”. Entretanto, é assim que
em 1973 - em meio ao burburinho da revolução sexual -, Lacan define a
tristeza: como um pecado, covardia moral. Eu o cito:
[...] (faute) moral como se exprimia Dante, ou até Spinoza: um pecado, o
que significa uma covardia moral, que só é situado, a partir do pensamento,
isto é, do dever de bem dizer, ou de referenciar no inconsciente, na
estrutura (Lacan, 1973, p. 524).
Porque Lacan se serve desta noção?
36
buscava a Deus deveria lutar (Cassiano, 2003): gula, luxúria, avareza, ira,
tristeza, acídia, vaidade e soberba.
Acídia
A depressão traduzida por Lacan em termos de pecado é a acídia, ilustrada
por certas almas no purgatório, conforme se nota na referência feita a
Dante, localizada na A divina comédia, canto XVIII : “Ó almas em quem o
atual fervor substitui, busca apagar a incúria e a negligência do passado,
quando na prática do bem não se aplicara”.1
A acídia, aparece na tradição eclesial com sentido geral de descuido e
indiferença (Sl 118,28; Eclo 29,5;Is 61,3), e também para significar
indolência na relação com Deus (Eclo 2,12). Evágrio Pôntigo em 383 é o
primeiro a descrevê-la como um tédio, alternado com uma atividade
exterior febril vivida na solidão do deserto. Cassiano (2003) descreve com
detalhes sua natureza e relação orgânica com os outros vícios, destacando
como uma característica própria deste pecado não ser causado por nenhum
fator externo e poder ser vivido como ansiedade ou tédio.
Etimologicamente o termo acídia, provém do grego a-kedos, significa
descuido, negligência. É graças a Gregório Mágno que ela deixa de ser um
vício próprio ao monge e torna-se um mal estar interior possível a todos, e
dele ainda a redução de oito para sete pecados. É de João Damasceno a
noção de pecado capital.
S. Tomás de Aquino ensina que essa denominação deriva de caput: cabeça,
líder (sete poderosos chefões) que comandam e criam vícios subordinados:
malícia, rancor, pusilanimidade, desespero, torpor para os preceitos, más
distrações.2 Como em uma estrutura dinâmica, a acídia manifesta-se
primeiramente na dissipação do espírito, depois na tagarelice, na apetência
indomável de sair da torre do espírito e derramar-se no variado, numa
irrequietação interior, na inconstância da decisão e volubilidade do caráter
e, por fim, na insatisfação insaciável da curiositas. Alguns comentadores3
como Ladislaus Boros entendem estas manifestações derivadas da acídia,
como modos de fuga desse desalento pernicioso. Elas são o ativismo
daqueles que já não esperam maiores coisas da vida e que se resignaram à
utopia do status quo, como diz Robert Musil em seu “Homem sem
qualidade”. Tais homens, ao sentir-se “ninguém”, refugiam-se nas
ocupações e derramam seu desassossego interior numa pressa nervosa, na
procura de auto-afirmação, na busca de excitações, de impressões, de
riquezas, num consumismo irrefreável, numa maledicência incontinente e
num contínuo rancor e aborrecimento contra tudo.
Um poema de Bertholt Brecth ilustra bem o tipo de afeto que nos leva a
este estado que Kierkegaard bem designou como o “desespero da
debilidade”.
38
O pecado na atualidade
O pecado após séculos de transformações - guerras, ciência, mercado -
deixou de ser um problema de tribunal, produzindo o que o historiador Jean
Delumeau designou como uma “pesada superculpabilização” do ocidente
(Delumeau, 1983). O tempo problematizou este caráter legalista e liberou-
o de sua aderência à moral sexual. Os “chefes” - gula, luxúria, avareza,
vaidade, ira - quase perderam o prestígio de vilões, numa civilização
devotada ao gozo e ao consumo. A soberba considerada o pior dos pecados,
o Original - pretender ser Deus -, revelou com o tempo o outro lado da sua
moeda. A tentação hoje, consiste menos em querer ser Deus, mas no seu
avesso - não querer ser nada -, indiferença negligente, “não querer nem
saber! não estar nem ai!”; omissão consigo correlativa da omissão com o
39
Outro (Theobald, 2009. p. 37). Covardia moral por não tomar para si a
responsabilidade possível, ilustrada, por exemplo, pela parábola do Bom
Samaritano.
Vê-se então numa clínica do “espírito da nossa época”, a acídia, despontar
como a falta moral por excelência. Antoine Vitez citado por Regnault
(2004), considera, em sintonia com a Igreja, que esta paixão triste, revela-
se como O Pecado atual. Fato demonstrado por ele quando nos lembra dos
funcionários nazistas, que deixaram serem cometidos os crimes mais
abomináveis da história, porque seria “muito fatigante” se opor a eles e ao
poder que os determinava.
João Paulo II na carta apostólica, novo millennio ineunte, escreveu que, o
primeiro dos desafios para o começo do novo milênio seria um combate à
indiferença5.
Notas
1. Dante Alignheri era membro da Ordem 3ª. de São Domingos, estudioso das
teorias de Tomás (Dante. 2003, Purgatório, canto XVIII. p. 20).
2. Sinônimo: acédia, desídia (Dicionário de mística, 2003).
3. Seu Comentrário baseia-se em Gregório Magno, J.Cassiano e S. Tomas de
Aquino (Boros, 1973).
4. Optei por traduzir a expressão Ich bin nicht gern, do alemão para o português
por desgosto, ficando: desgosto de onde venho, desgosto pra onde vou, ao invés
de não amo ou não gosto, como aparece em geral nas traduções. O termo gern
é em geral usado no alemão em expressões que indicam “aceitar (algo) de bom
grado ou com bom gosto”, seu oposto seria em português, a contragosto ou com
desgosto. Preferi então o termo desgosto, pois no português abarcam em seu
campo semântico tanto a ausência de gosto e o desagrado como a tristeza e o
descontentamento.
5. “E como ficar indiferente diante das perspectivas de um desequilíbrio ecológico,
que torna inabitável e hostis ao homem vastas áreas do planeta? Ou diante dos
problemas da paz, freqüentemente ameaçada com o íncubo de guerras
catastróficas? Ou perante o vilipêndio dos direitos humanos fundamentais de
tantas pessoas, especialmente crianças?” “Muitas são as urgências que o espírito
cristão não pode ficar insensível” (Carta apostólica NOVO MILLENNIO INEUNTE,
2003).
6. Aproveito neste ponto para lembrar que a tristeza para S. Tomás é uma
representação da dor (afetando o corpo) sob a forma de uma representação
41
Referências bibliográficas
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42
ÉTICA, LEI E RESPONSABILIDADE - CONSIDERAÇÕES SOBRE ATENDIMENTO
1
CLÍNICO AOS ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI
Resumo
Este trabalho apresenta o percurso de uma pesquisa que está sendo
desenvolvida no curso de doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e pretende discutir, a partir do atendimento a
adolescentes que cumprem medida sócio-educativa, a possibilidade de
fazer operar o discurso psicanalítico nesse campo onde predomina o
discurso jurídico, correcional e repressivo. Como promover uma
mudança subjetiva nesses jovens capturados pela pobreza e pela
fragilidade dos laços sociais? A que esse ato infracional vem responder?
Palavras-chave: psicanálise, adolescente, ato infracional, drogas,
responsabilidade.
Abstract
This work presents the journey of a research that is being developed in
the course of the doctoral program of Post-Graduation in Psychoanalytic
Theory of the Institute of Psychology of the Federal University of Rio de
Janeiro and intends to discuss, from attending the teenagers who are
under social educational penalty, the possibility to operate the
psychoanalytic discourse in this field dominated by the discourse legal,
corrective and repressive. How to promote a subjective change on those
youth captured by poverty and weak social ties? What does this act
mean?
Keywords: psychoanalysis, adolescent, infracional act, drugs,
responsibility
43
I – Introdução
Este trabalho se insere na pesquisa que venho desenvolvendo no curso de
doutorado no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientada
pela professora Tania Coelho dos Santos e também se integra às pesquisas
desenvolvidas pelo Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o moderno e o
contemporâneo.
Nessa pesquisa pretendo discutir, a partir do atendimento a adolescentes
que cumprem medida sócio-educativa, a possibilidade de fazer operar o
discurso psicanalítico nesse campo onde predomina o discurso jurídico,
correcional e repressivo. Como promover uma mudança subjetiva nesses
jovens capturados pela pobreza e pela fragilidade dos laços sociais? A que
seus atos infracionais vêm responder?
No Rio de Janeiro, o DEGASE – Departamento Geral de Ações Sócio-
educativas – é o órgão responsável pela execução das medidas sócio-
educativas aplicadas pelas Varas da Infância e da Juventude do Estado do
Rio de Janeiro.
Desde a sua criação, prevalecia no DEGASE, nos moldes do sistema
penitenciário, a repressão, a intimidação, a disciplina e a visão da medida
como punitiva e não como sócio-educativa. Apesar dos esforços dos
diversos profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente – médicos,
psicólogos, assistentes sociais, pedagogos, educadores – em fazer valer a
doutrina de proteção integral ao adolescente em conflito com a lei,
conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, foi
somente a partir de 2006 que uma série de reformulações políticas no
âmbito Federal, Estadual e Municipal fez deflagrar dentro do próprio sistema
sócio-educativo a necessidade de reformulação da política de atendimento.
Esta mudança teve o objetivo de atender às diretrizes preconizadas no
Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo - SINASE, visando
promover a inclusão e a responsabilização do adolescente que comete ato
infracional.
Somente depois de dezesseis anos de promulgação do Estatuto da Criança e
do Adolescente, o Brasil conseguiu definir parâmetros para o atendimento
sócio-educativo com bases éticas e pedagógicas, instituindo uma referência
para a estruturação do Sistema de Atendimento Sócio-Educativo nos
Estados e Municípios, através da articulação das várias áreas das políticas
públicas, de forma que o atendimento ocorra fundamentado no princípio da
incompletude institucional e na perspectiva da inclusão social dos
adolescentes.
Contudo, a reestruturação do sistema sócio-educativo é lenta e enfrenta
dificuldades, de modo que ainda prevalecem abusos, torturas, poucas
atividades sócio-educativas e espaços físicos inadequados. O adolescente
ainda fica em condições sub-humanas e os profissionais da chamada
“equipe técnica” – psicólogos, assistentes sociais e pedagogos –,
“engessados” na elaboração de relatórios que, a rigor, deveriam auxiliar o
judiciário a estabelecer as medidas sócio-educativas cabíveis, mas que nem
sempre o fazem.
44
O atual modelo de atendimento ao adolescente em conflito com a lei nos
impulsiona a repensar a nossa prática. É necessário construir uma política
de atendimento onde, além do acesso aos direitos e às políticas públicas,
seja possível fazer surgir o sujeito implicado nas suas ações e
responsabilizado por elas, retirando-o da posição de vítima. A questão de
uma “ressocialização” seria assim, deslocada para se introduzir uma
reflexão eminentemente ética.
II – O percurso da pesquisa
A pesquisa vem sendo feita a partir de uma massa de 200 atendimentos,
realizados no período de Agosto a Dezembro de 2007. Na primeira fase,
procuramos conhecer quem é o adolescente que dá entrada no Sistema
Sócio-Educativo. Para isso, coletei dados referentes à idade do adolescente,
número de entradas no Sistema Sócio-Educativo, tipo de ato infracional
praticado, o que motivou a prática do ato infracional, vida familiar,
escolaridade e uso de drogas. Nosso objetivo era construir os laços sociais
desses adolescentes e, para além das carências materiais, familiares e
sociais, verificar sua posição subjetiva e implicação frente ao ato infracional
praticado.
Os atendimentos foram realizados no Núcleo Biopsicossocial Anita Heloisa
Mantuano, unidade do Departamento Geral de Ações Sócio-educativas –
DEGASE. Por este Núcleo passam todos os adolescentes que são
encaminhados ao Centro de Triagem e Recepção (CTR) pela Delegacia de
Proteção à Criança e ao Adolescente ou pela Vara da Infância e da
Juventude, de modo que o atendimento nessa unidade permite visualizar
um universo representativo dos adolescentes que entram no DEGASE.
Os dados da pesquisa2
Faixa Etária e Número de entradas no DEGASE
45
Esses jovens chegam ao DEGASE com idade entre 16 e 17 anos. A maioria
é do sexo masculino, morador de comunidade pobre do Rio de Janeiro ou do
interior do Estado. Essas comunidades não dispõem de infra-estrutura nos
serviços de atendimentos e são carentes das condições mínimas de
urbanização, tais como saneamento, circulação, transporte, etc. São
marcadas pela violência e dominadas pelos “comandos” do tráfico de drogas
ou “milícias”, que impõem suas leis a “ferro e fogo”. Isso não significa que
os jovens de classe média não tenham relação conflitiva com a lei, mas são
poucos os que entram no sistema sócio-educativo.
Apesar da maioria – 58% – estar ingressando no DEGASE pela primeira vez,
é alto o número de reincidências – 42%. Isto aponta para fracasso do
sistema sócio-educativo em promover ações que visem uma intervenção
comprometida com o acesso desses jovens ao processo de cidadania.
F. é um desses casos que aumenta os dados estatísticos das reincidências.
Atualmente com 18 anos, afirma: “- Estou nessa vida desde os 12 anos.
Entrei aqui várias vezes, perdi até a conta, mas agora quero parar, vou
cumprir tudo direitinho, porque já sou ‘di maior’”. Contudo, o que
constatamos em nossa prática é que nem sempre eles param.
O jornal O Globo3 publicou uma série de reportagens sobre este assunto no
período de 02 a 10 de dezembro de 2007. Nela, aponta que mais da metade
- 52,6 % - dos adolescentes que se envolveram em atos infracionais no ano
de 2000, morreu ou cometeu outros crimes após completar 18 anos.
Segundo o levantamento feito pelo mesmo jornal em processos tramitados
durante o ano de 2000 na 2ª. Vara da Infância e da Juventude, ao chegar à
maioridade, 34,3% dos jovens foram flagrados cometendo novos crimes e
18,5% foram assassinados.
Como salientamos, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente tenha
sido um avanço do ponto de vista da constituição de um marco legal, pouca
coisa mudou no atendimento sócio-educativo. Com uma política
marcadamente voltada para a segurança, ainda prevalecem a repressão, a
intimidação, a disciplina e a visão da medida como punitiva e não como
sócio-educativa.
46
Ato Infracional praticado
47
afirma: “- Me envolvi porque quis, sempre achei legal andar armado,
ter dinheiro, mulher ...”.
Essas falas nos remetem ao próximo item investigado na pesquisa: o que
motivou a prática do ato infracional.
48
Enfim, são muitas as histórias, acontecimentos fortuitos, inesperados, onde
o sujeito não se vê implicado. Entretanto, elas portam uma significação
subjetiva. Qual é o valor desse ato que aparece totalmente incompreendido
pelo sujeito sob a forma da negação?
Seguindo Freud, Lacan destacou que uma análise só progride do particular
para o particular. Porém, a soma da experiência analítica permite destacar
algumas formas gerais (Lacan, 1954, p. 387). É o que arriscaremos nesse
trabalho.
Freud, em seu texto “A negativa” (1925), mostra como o conteúdo de uma
imagem ou idéia recalcada pode abrir caminho até a consciência, com a
condição de que seja negada. A negação é, assim, um índice do
inconsciente, um modo de tomar conhecimento do que está recalcado
(1925, p. 296). E continua: “a negativa (...) é uma Aufhebung (suspensão)
do recalque, embora não, naturalmente, uma aceitação do que está
recalcado”, pois “aqui, o intelectual separa-se do afetivo” (Ibid.). Negar ou
afirmar algo é um julgamento intelectual. Freud atribui a origem do juízo “a
partir da ação recíproca das pulsões primárias”. Julgar é uma continuação
do processo original através do qual “o ego integra coisas a si ou as expele,
de acordo com o principio de prazer” (Id. p. 299). Ele conclui que não se
encontra na análise um “não” no inconsciente e que o reconhecimento do
inconsciente pelo eu se exprime através de uma negativa.
Como salienta Lacan, “o que não veio à luz no simbólico reaparece no real”
(1954, p. 390). É assim que se deve compreender afirmação de Freud sobre
o momento mítico do sujeito onde, a partir das pulsões primárias, o ego
integra coisas a si ou as expele - “a introdução no sujeito, e a expulsão para
fora do sujeito” (Ibid.). É esta última que constitui o real, na medida em
que ele é o domínio do que subsiste fora da simbolização.
Para Freud, a antítese entre subjetivo e objetivo não existe desde o inicio
(1925, pg. 298). Nas palavras de Lacan, “nessa realidade que o sujeito tem
que compor segundo a gama de seus objetos, o real, como suprimido da
simbolização primordial, já está presente” (Lacan, 1954, p. 391, grifos no
original). É por isso que aquilo que é subtraído pelo sujeito da possibilidade
da fala, vai aparecer no real. Lacan coloca o ato como um modo de
interferência entre o simbólico e o real, dessa vez, não sofrido pelo sujeito,
mas atuado. (1954, p. 395)
Por mais que o adolescente negue seu envolvimento com o ato infracional,
ele está na cena. Podemos tomar essa negativa como sendo da ordem do
que não pode aparecer do seu desejo e que vem à luz sob a forma de um
ato. Elucidaremos melhor essa questão, posteriormente, quando fizermos
um estudo mais detalhado, a partir de casos clínicos, sobre a clinica do ato,
tal como Lacan a explicita no seu seminário sobre a angústia (1962-63),
onde distingue o acting out e a passagem ao ato, permitindo decifrar o que
está em jogo nesse momento específico.
Outro motivo para a prática do ato infracional que aparece com mais
freqüência, comprar roupa de marca, evidencia o quanto os adolescentes
ficam identificados com o ideal publicitário do jovem hedonista, consumidor,
difundido pela publicidade e buscam, através do consumo, uma inserção
subjetiva no mundo.
49
O discurso capitalista5 define o sujeito pelo consumo, de modo que o que
vai ser consumido não é mais o objeto em si, mas o que ele representa,
para além da satisfação das necessidades, fazendo o sujeito crer que o
objeto lhe é acessível: “Consumir é ser feliz!”.
Como analisa Santiago (2001, p. 219), a ciência não só torna possível o
acesso ao real, mas determina-o e transforma-o, criando objetos que são
oferecidos ao sujeito como meio de recuperação da satisfação pulsional. São
os chamados gadgets – “... objeto engenhoso, divertido e sem utilidade...”.
A ciência não se limita a fabricá-los, mas encontra uma forma de ligá-los ao
sujeito, um meio de manter o desejo deste último aderido a tais objetos, de
modo que o discurso capitalista e o discurso da ciência, ao promoverem o
sujeito-gadget como solução da “falta-a ser” que habita o sujeito, realizam
uma expulsão do sujeito do inconsciente.
É dentro desse contexto que podemos considerar o uso abusivo de drogas.
Embora poucos adolescentes entrevistados pudessem ser considerados
toxicômanos, muitos atribuíram o envolvimento com o ato infracional ao
uso de drogas. A droga serve de anteparo face aos impasses do mal-estar
do desejo, da angústia e da relação com os ideais.
Os adolescentes estão particularmente confrontados com a questão da
identidade, do corpo e da sexuação e são sensíveis aos novos imperativos
ordenadores da cultura, que impulsionam ao consumo, aos excessos e às
satisfações excluídas do circuito da fala. (Coelho dos Santos, Inédito a).
Também fazem da prática do ato infracional um ganho fácil de dinheiro, o
que evidencia um imediatismo e a falta de planos futuros. Os adolescentes
vivem “o aqui e o agora”.
Muitos estão em situação de risco, seja porque perderam a mãe em tenra
idade, seja porque viviam em uma família totalmente desprovida da
condição de gerir a educação dos filhos. Em qualquer das situações eles são
criados sem limites, acostumados a ficar pelas ruas ou na casa de parentes,
sem vínculos afetivos. Atuam a situação de abandono nos seus laços
sociais. Na rua, o uso de drogas ajuda a evitar a fome, a enfrentar o medo,
o frio e a dura realidade do dia-a-dia. Além disso, vêem na prática de atos
infracionais, formas de subsistência.
Outros apontam a influência de amigos como motivador da prática do ato
infracional. Uma forma de sentirem aceitos pelo grupo. Eles não querem ser
vistos como “mulherzinha”, medrosos ou serem alvo de chacota.
O grupo tem uma particular importância para o adolescente, pois é uma
forma de separação e substituição do grupo familiar pelo grupo social, ao
mesmo tempo em que busca ter semelhança com o outro, aquele com
quem imaginariamente se identifica.
50
Sobre o Uso de drogas
Usa droga?
Só Cigarro 14 8,8
Só Maconha 47 29,3
Só Solvente 5 3,2
Maconha e Cigarro 40 25
51
Maconha, cigarro e álcool 3 1,9
52
O despertar da sexualidade na adolescência produz atração e temor diante
do real de um gozo desconhecido que se manifesta à revelia do sujeito e
que gera culpa pelas fantasias incestuosas que suscita.
A adolescência é a última etapa da vida sexual infantil. É o momento onde a
pulsão sexual se coloca a serviço da função reprodutiva, colocando o ato
sexual à disposição do sujeito. Contudo, longe de tornar a relação sexual
possível, suscita fantasias que o afastam dela, revelando aí um paradoxo,
pois ao mesmo tempo em que a maturação biológica torna possível a
realização do ato sexual, faz com que o sujeito desperte para o impossível
dessa relação. (Freud, 1905)
Esse mal-estar decorrente da impossibilidade da relação entre os sexos é
estruturante e isso aparece de uma maneira dramática para o adolescente.
(Lacan, 1965. p. 131-133) Drama esse, que se manifesta através dos atos
contestatórios e agressivos, que os levam a se refugiar nas drogas como
forma de evitar o laço com o Outro ou como uma solução para a angústia,
que é sempre de castração.
Sobre a Escolaridade
Está estudando no momento do envolvimento com o ato infracional ?
53
Nível de Escolaridade
55
Configuração Familiar
Por quem foram criados?
56
Contudo, isso muda. Em algum momento de suas vidas ocorrem rupturas e
cisões nas relações familiares. No momento em que se envolvem com o ato
infracional, estão vivendo com madrastas, padrastos, avós, sozinhos ou
com companheiras. Muitos jovens já são pais sem estarem preparados para
exercer esta função, evidenciando a fragilidade da família e sua impotência
na condução da educação dos filhos.
A presença da mãe como responsável pelo sustento da família é marcante,
principalmente pelo desemprego que afeta os homens. Com baixos salários,
e sem possuir recursos adequados para cuidar dos filhos na sua ausência,
fica evidente, na fala desses jovens, a instabilidade dos cuidados ainda na
infância. Crescem sem limites e sujeitos às influências da comunidade,
muitas vezes, violenta.
Em “Nota sobre a criança”, Lacan (1969, p. 369) designa a implicação da
família na “relação com um desejo que não seja anônimo” e articula o não-
anônimo com o que há de particular nas funções da mãe e do pai. A função
da mãe é a de promover cuidados que portem a “marca de um interesse
particularizado, nem que seja por intermédio de suas próprias faltas”. O
filho deve interessar à mãe para além da pura satisfação das necessidades
biológicas. É fundamental que uma mãe, ao se ocupar de seu filho, o faça
de maneira particular, que veicule o significante de sua falta, de seu desejo,
que transmita o Nome-do-Pai. Por sua vez, a função do pai é também
tomada pela dimensão do particular, pois “[...] seu nome é o vetor de uma
encarnação da Lei no desejo”, ou seja, como agente da castração, limita a
satisfação e opera a inclusão da Lei no desejo.
O que observamos, hoje, são as dificuldades das famílias em articular Lei e
desejo, de conter o gozo e de transmitir a castração. Isso repercute na
transmissão da significação fálica e deixa o sujeito diante de um impasse
frente à necessidade de se separar do Outro, da sexuação e da escolha de
objeto, o que é atuado na adolescência.
Assim, embora configurações familiares marcadas pela ausência do pai e
abandono da mãe sejam visíveis em estudos de casos relacionados à
violência urbana, há que se considerar o particular de cada caso e a
singularidade de cada sujeito. Esse ato, que muitas vezes tem um efeito
avassalador na vida do sujeito, desempenha uma função em sua vida e na
sua relação com o Outro. É importante recuperar a sua participação nesse
ato, a fim de tornar possível para ele responsabilizar-se por isso e retificar
sua posição subjetiva.
“Olha para tua participação na desordem da qual te queixas” – eis a
resposta de Freud a Dora, fazendo com que ela percebesse sua participação
subjetiva na Corte da qual ela era objeto, implicando-a naquilo de que se
queixava.
Freud sustenta, assim, um caráter particular de responsabilidade que não
tem a ver com responsabilidade jurídica ou moral. A responsabilidade do
sujeito está relacionada à coragem de deixar falar o inconsciente, esse
saber não sabido, que portamos em nós por sermos seres de linguagem.
Se excluirmos o sujeito de sua responsabilidade, nós o manteremos, sob o
pretexto de ajudá-lo, alienado de sua condição.
57
O campo do sujeito é o campo de sua responsabilidade. Só o sujeito pode
responder pelo seu ato para que possa assumir as rédeas de sua vida e,
assim, transformá-la.
A trajetória de vida desses jovens, onde o laço social é fundado no
abandono, na agressividade e na violência, deixa marcas em sua
constituição subjetiva. É através de uma intervenção na dimensão clínica,
educativa, social e política que se busca reconstruir com eles um novo
caminho. É importante criar condições para que reflitam sobre a sua
realidade, contem suas histórias, formulem suas questões, se impliquem e
se posicionem em relação ao seu dizer e que não fiquem, simplesmente,
capturados em seus destinos, sem saídas e sem escolhas. Por outro lado, é
importante que os profissionais envolvidos no atendimento ao adolescente
tenham uma escuta que, fundada na ética, faça surgir o sujeito implicado
nas suas ações e responsabilizado por elas. Daí a importância da
capacitação permanente desses profissionais envolvidos nesse trabalho, do
incentivo à produção de publicações e das trocas de experiências.
Podemos oferecer ao adolescente a possibilidade de traduzir em palavras o
que ele vive, permitindo que ele descubra, através da associação livre, o
lugar da fala para tentar encontrar a fórmula da sua existência, formulando
suas angústias ao invés de atuá-las (Lacadée, 2007).
NOTAS
1. Este texto integra minha pesquisa de doutoramento no Programa de Pós-
graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
sob orientação da profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e com o
financiamento da CAPPES.
2. Todas as planilhas foram feitas por Alexandre Drucker de Campos do Setor
de Estatística do DEGASE.
3. Pesquisas realizadas em 2001 e em 2006 pelo Núcleo de Violência e Direitos
Humanos do Observatório de Favelas com adolescentes envolvidos com o
tráfico em 34 favelas do Rio de Janeiro. Cf: reportagem do Jornal O Globo
publicada em 08 de dezembro de 2007.
4. Série de reportagens do Jornal O Globo sobre ‘Di menor – Os adultos de
hoje’, publicadas no período de 02 a 10 de dezembro de 2007.
5. A referência ao “discurso capitalista” baseia-se na “teoria dos quatro
discursos” desenvolvida por Lacan (1969-70). Para a psicanálise os laços
sociais são tecidos e estruturados pela linguagem e denominados discursos.
Os discursos se articulam em uma ordem precisa e se apóiam na tese de
que o real é impossível e que não há outro modo de articulá-lo senão por
meio da lei, da proibição que divide o sujeito. O discurso do capitalista abole
a categoria do impossível, anula o sujeito do inconsciente, fazendo-o
acreditar que o objeto lhe é acessível. Para ler mais acessar
www.nucleosephora.com.br/laboratorio/aulas/sinthomacorpoelacosocial
6. Não foi possível avaliar quantos eram analfabetos funcionais.
58
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60
A DIMENSÃO ÉTICA DA DIFERENÇA SEXUAL1
Resumo:
Ao descobrir a prevalência fálica na sexualidade infantil, Freud dá um
passo ético. A evidência da dessimetria entre os sexos, no que diz
respeito ao complexo de Édipo e a castração, aponta para a
impossibilidade da relação sexual. Na ausência das ferramentas da
lingüística, das quais Lacan se utilizou para dar conta dessa diferença,
Freud se detém na relação imaginária entre ter ou não ter o pênis.
Lacan retoma a análise do falo a partir da articulação significante, e,
posteriormente, examina a castração pela vertente da angústia. Nessa
perspectiva, o falo é alçado à condição de significante da falta e se
presentifica na relação entre os sexos a partir da sua negativização, ou
seja, como (-φ). Essa mudança de perspectiva conduz Lacan a
diferenciar o modo masculino e feminino de se posicionar na partilha
sexual.
Palavras-chave: psicanálise, ética, diferença sexual, falo, sexuação.
Abstract:
By assuming that childhood sexuality contains the particularity of
phallic prevalence, Freud gives an ethical position faces the
dissymmetry existing between male and female. This work investigates
the ethical dimension of sexual difference, considering that the absence
pointed by the phallus functions as a substitute for the sexual relation
that doesn’t exists. In absence of the linguistic tools used by Lacan to
think this difference, Freud finds itself tied in the imaginary relation of
having or having not the penis. Lacan retakes the phallus analysis from
the significant articulation; and, later, examines the castration by the
anguish side. In this perspective, the phallus gets the condition of
significant absence and accomplishes itself in the relation among sexes
by turning it negative, in other words, as (-φ).
Keywords: psychoanalysis, ethics, sexual difference, phallus, sexuation.
61
A análise da dimensão ética da diferença sexual tem como ponto de partida
a descoberta freudiana do papel central do falo na sexualidade. Ao postular
que a sexualidade infantil comporta a particularidade da prevalência fálica,
na qual a diferença entre os sexos se inscreve em termos simbólicos, Freud
se depara com a dessimetria entre o modo masculino e o feminino de
inscrição na lógica da sexuação.
Para Freud (1925), frente à percepção da diferença anatômica entre os
sexos, o que a criança privilegia é a operação simbólica da presença-
ausência do falo, e não a existência de dois sexos. Trata-se, aqui, da
incidência psíquica da diferença anatômica entre os sexos.
Freud abordará a diferença entre os sexos através da relação do complexo
de Édipo com a castração, demonstrando que, desde a origem, estaria em
jogo uma dessimetria fundamental entre o homem e a mulher. Essa
dessimetria caracteriza-se pela relação paradoxal que cada sexo estabelece
com o falo, e se divide em dois tempos: no primeiro, haveria a identificação
com a posição sexuada através da incidência do complexo de castração, ou
seja, o primeiro tempo estaria relacionado com a sexualidade infantil; já o
segundo teria como pivô o encontro com o outro2 sexo, característico da
sexualidade adulta.
O encontro com o outro sexo demonstra que a diferença sexual tem uma
incidência ética precisamente por não promover um ideal de simetria e
complementaridade. Assim, ao estabelecer a sexualidade como
essencialmente dessimétrica, Freud funda uma clínica em que o sexual tem
uma prevalência fálica e aponta para a impossibilidade da relação sexual.
Lacan (1959-60) assinala que o passo decisivo dado por Freud foi perceber
que entre o homem e a mulher não haveria uma complementaridade
possível. Assim, a radicalidade da psicanálise reside justamente em apontar
que, se há uma ética psicanalítica, ela se baseia na diferença e na não
conformação ao ideal.
Ao analisar a constituição da relação do sujeito com o falo, Freud
privilegiará os efeitos da descoberta da castração feminina e suas
incidências na assunção de uma identificação sexual. A consideração da
castração feminina torna-se, então, peça-chave para a compreensão da
sexuação: no menino, ela eleva a ameaça de castração ao estatuto de
ponto-chave da resolução do complexo de Édipo; na menina, a correlação
entre o complexo de Édipo e a castração tem um sentido inverso, ou seja,
ao invés de a constatação da castração promover o recalque do Édipo, ela
abre caminho para a entrada da menina na situação edípica. Essas
articulações resultam da consideração da fase pré-edípica da menina, em
que a descoberta da castração materna possibilitará a dissolução do vínculo
primordial com a mãe fálica e a transição do investimento libidinal para o
pai, permitindo o estabelecimento do triângulo edípico.
Freud (1933 [1932]) afirma que a feminilidade seria da ordem de uma
substituição simbólica que faria equivaler o filho ao pênis. Assim, a
feminilidade só se instalaria através do desejo da maternidade. Tal
vinculação entre feminilidade e maternidade coloca Freud frente ao impasse
da relação do homem com a mulher. Ao estabelecer a inveja do pênis como
algo irredutível na análise das mulheres, que estaria por trás das relações
62
femininas com o casamento e a maternidade, ele postula a irredutibilidade
da inveja do pênis, denominando-a rochedo da castração.
Ao evidenciar, a partir da constatação da dessimetria entre os sexos, a
impossibilidade de complementaridade sexual, Freud dá um passo ético.
Estabelece a identificação ao seu sexo como um posicionamento do sujeito
frente à diferença apontada pela anatomia, mas considera as relações entre
sexos apenas pelo viés do rochedo da castração.
Esse é o ponto em que os impasses da sexuação incidem em sua
elaboração teórica, levando-o a enunciar: “Tem-se a impressão de que o
amor do homem e o amor da mulher psicologicamente sofrem de uma
diferença de fase” (Freud, 1933 [1932], p.133).
Freud se depara com o rochedo da castração justamente porque lhe faltam
as ferramentas conceituais que Lacan (1958) retira da lingüística. Ao se
deter na relação imaginária entre ter ou não ter o pênis, o que ele não
consegue apreender é que o falo, como significante, encontra-se ausente
tanto no homem como na mulher.
Ao atribuir ao falo uma função significante, Lacan (1958) reestrutura a
descoberta freudiana apresentada em “Algumas conseqüências psíquicas da
diferença anatômica entre os sexos” (Freud, 1925). É como significante que
o falo aparece como diferença. Quando Freud nos diz que não se trata da
descoberta de dois sexos, mas do desvelamento da antítese entre presença
e ausência do falo, é a função significante do falo que está em questão.
Assim, quanto ao complexo de castração, não está em jogo ter ou não ter o
pênis. A castração é constitutiva da entrada do sujeito na linguagem, isto é,
o falo, como significante, evidencia que homens e mulheres são castrados.
Lacan (1956-57) retoma os questionamentos de Freud interrogando a
função fálica. Ao definir o falo como o significante fundamental – pelo qual o
desejo do sujeito tem que se fazer reconhecer, quer se trate do homem,
quer se trate da mulher − esclarece que o desejo tem no sujeito uma
referência fálica. É da correlação entre o desejo e o falo que Lacan parte na
tentativa de elucidar a maneira pela qual o sujeito se relaciona com a
diferença entre os sexos.
A divisão do complexo de Édipo em três tempos tem como propósito
esclarecer de que maneira a referência fálica se organiza para o sujeito
(Lacan, 1956-57). Para Lacan (1957-58), é em torno da relação entre o falo
e o desejo que a situação edipiana se constitui. O desejo é definido como
desejo do desejo do Outro. A operação de seu reconhecimento se dá
através da constatação de que algo falta ao Outro. Assim, ao constatar essa
falta no Outro e, portanto, reconhecer sua castração, o sujeito reconhece o
falo como objeto do desejo do Outro.
Como o primeiro Outro da criança é a mãe, a castração é inicialmente
reconhecida como castração materna. O falo se constitui, inicialmente,
como o significante da falta materna. Essa etapa é comum aos dois sexos e
se constitui como o primeiro tempo do Édipo.
Ao constatar a castração materna e, com isso, identificar o falo como o que
a mãe deseja, a criança procura colocar-se na posição imaginária de falo,
na tentativa de se fazer objeto do desejo da mãe. Porém, o pai – que já
63
está inserido como uma presença velada no discurso da mãe – posiciona-se
contrariamente a essa demanda.
Instaura-se, então, o segundo tempo do Édipo, no qual o pai intervém no
circuito como privador da mãe, isto é, posicionando-se contrariamente à
demanda materna de fazer o filho equivaler ao falo que lhe falta. Nesse
momento, já é possível perceber uma primeira diferença entre Freud e
Lacan no que diz respeito à equivalência entre feminilidade e maternidade.
Ao interditar a mãe em seu gesto de fazer do filho o equivalente do falo, o
pai também impede o filho de se identificar imaginariamente àquele. Assim,
se o desejo do sujeito é simbolizado com o auxílio do falo – como desejo do
desejo do Outro – sua identificação imaginária com o falo é vetada pelo pai.
Contudo, ao operar tal interdição, o pai surge como potente; como aquele
que tem o falo que falta à mãe e por cujo intermédio o filho também pode
vir a tê-lo. O sujeito passa, então, do desejo de ser o falo para o desejo de
ter o falo. Trata-se do terceiro tempo do Édipo.
O complexo de Édipo estaria, portanto, referido à norma fálica. Contudo, a
relação que meninos e meninas têm com a descoberta da castração
materna não é simétrica, isto é, a primazia da lógica fálica implica a divisão
entre os que possuem o falo – os meninos – e os que não o possuem e, por
isso, são castrados – as meninas.
Nesse ponto, as dificuldades introduzidas pela fase fálica na identificação
sexual das mulheres tornam-se evidentes. Ao tentar dar conta da
identificação feminina ao seu sexo a partir da norma fálica, Lacan privilegia,
tal como Freud, o complexo de masculinidade.
Ao colocar em primeiro plano a distinção entre as vertentes imaginária e
simbólica do falo, Lacan (1957-58) ressalta a transição da identificação com
a mãe fálica primordial para uma identificação com o pai. A mudança no
estatuto do falo seria, portanto, ponto privilegiado da identificação da
menina com o pai, o que não constitui uma identificação ao seu sexo.
Nesse momento, Lacan chega ao mesmo impasse que Freud em sua
constatação da dessimetria entre os sexos. Toda a sua teorização acerca
das insígnias do ideal harmoniza-se muito bem à maneira masculina de se
posicionar simbolicamente no Édipo; diz respeito aos efeitos da ameaça de
castração no recalque dos desejos edipianos e na formação do ideal do eu.
Porém, não é possível uma transposição para o modo feminino de
identificação ao seu sexo. Ao privilegiarmos a organização fálica, uma parte
essencial da constituição da posição feminina permanece enigmática, uma
vez que o falo não dá conta do recalque do Édipo na mulher nem da
internalização de um ideal do eu.
Essa questão é retomada por Lacan (1962-63) em suas considerações sobre
a diferença entre a angústia de castração e a ameaça de castração. Ao
considerar o falo pelo viés de sua incidência corporal − problematizando,
novamente, a incidência psíquica da diferença entre os sexos − Lacan
(1962-63) assinala que o falo aparece, na fase fálica, do lado do negativo,
isto é, na fase fálica, o falo se constitui por sua ausência.
Essa mudança de perspectiva na análise da função fálica promove uma
torção na idéia freudiana de que o rochedo da castração seria um ponto
ineliminável na análise de homens e mulheres.
64
A consideração da castração pelo viés da angústia promove uma
rearticulação da relação do desejo com o falo, uma inversão da relação
entre os sexos no que se refere à ausência do falo. A ausência do falo deixa
de ser uma questão primária para a mulher − perspectiva em jogo na idéia
de rochedo da castração − e passa a ser uma questão para o homem, que
experimenta na detumescência a negativização do falo.
Lacan (1962-63) assinala que a relação entre o feminino e o falo se
coordena ao consentimento da mulher em se fazer semblante de objeto a
para o fantasma do parceiro, ou seja, a fórmula do fantasma não vale para
homens e mulheres da mesma maneira.
Ao privilegiar a vertente da angústia de castração e ao associá-la à
negativização do falo na detumescência, Lacan (1962-63) parte da idéia de
que haveria um vínculo entre a maturação do objeto a e a puberdade – uma
vez que o complexo de Édipo tenha sido ressignificado, poderá o sujeito,
realmente, sustentar uma posição sexual.
Freud (1905) já defendia essa posição ao propor que haveria dois tempos
na constituição da escolha objetal do sujeito, ou seja, haveria, na
adolescência, um retorno e uma ressignificação dos vínculos objetais
infantis. Nessa perspectiva, a puberdade seria o momento em que se
consolidaria a posição sexual do sujeito.
A crítica de Lacan à elaboração freudiana sobre o rochedo da castração está
embasada na idéia de que o falo se apresenta na conjunção sexual por seu
negativo, ou seja, o falo funciona como mediador em toda parte, exceto na
fase fálica.
É pela incidência da angústia de castração − caracterizada pela
negativização do falo na detumescência − que o desejo se funda para o
homem como falta. A fantasia aparece, portanto, como o modo privilegiado
pelo qual o desejo do sujeito se faz reconhecer na escolha de uma parceira
sexual. Por intermédio da fantasia, o homem procura na mulher o falo que
lhe falta. Assim, podemos perceber que a fantasia está totalmente referida
à norma fálica, ou seja, ela se caracteriza por ser o modo masculino de
fazer suplência à relação sexual que não existe.
A menina utiliza a fantasia para se fazer objeto do desejo de um homem. A
mulher, ao fazer uso da fantasia, se vê implicada na função do falo: se o
falo é o próprio signo do que é desejado, ela se faz desejar colocando-se no
lugar de falo. Porém, na identificação com o falo, há uma consumição da
mulher como sujeito, pois ela se faz desejar por meio daquilo que ela não é.
Assim, a correlação entre fantasia e falo não resolve a questão feminina, já
que se fazer objeto do desejo masculino apenas mascara a dimensão
negativa do falo na relação entre os sexos.
Assim, no caso dos homens, a relação entre o gozo sexual e a
detumescência do órgão aponta para a colocação do instrumento fora de
combate, e vincula a falta do objeto ao desejo.
No caso da mulher − uma vez que ela não passa pela experiência da
detumescência, e, por conseguinte, não tem um acesso direto à
negativização do falo − o vínculo da falta do objeto com o desejo não se
constitui como um nó necessário. Porém, isso não quer dizer que a mulher
não tenha relação com o desejo do Outro. Ao contrário, é por intermédio do
65
desejo do Outro que ela poderá ter acesso ao objeto fálico. Assim, para a
mulher, a questão da falta apontada pelo falo é reeditada na puberdade por
uma via secundária, isto é, na relação dela com o desejo do homem.
Lacan (1962-63) pontua o desejo tem sempre uma referência fálica, razão
pela qual aponta sempre para uma falta. Contudo, a relação que homens e
mulheres estabelecem com a falta apontada pelo falo não é da mesma
ordem. Para o homem, o desejo figura como um modo de articular a falta
do falo a um objeto. Com isso, haveria uma relação direta entre a presença
do objeto e a articulação do desejo. Já para a mulher, a relação com a falta
apontada pelo falo se daria a partir do encontro com o desejo do Outro.
Somente a partir do desejo do Outro poderia a mulher encontrar um objeto
conveniente para articular o seu desejo.
Em relação ao gozo, Lacan (1962-63) afirma que as mulheres teriam um
acesso mais direto. O gozo feminino seria superior ao dos homens, uma vez
que seu laço com o desejo não constitui um nó necessário.
Para Lacan (1962-63), o homem só tem acesso ao gozo a partir do objeto
como condição do desejo. Dessa maneira, o (-φ) circunscreve para o
homem tanto sua relação com o desejo quanto sua relação com o gozo. Do
lado masculino, o gozo se caracteriza por ser inscritível, localizável, isto é,
por estar em relação com o falo. O gozo do homem se circunscreve a partir
da inscrição, no corpo, do significante fálico. O acesso ao gozo se articula
com a falta apontada pelo falo – graças à convergência entre orgasmo e
detumescência, o gozo masculino é limitado pelo falo.
É a linguagem que insere o registro do gozo como sexual. Lacan diferencia,
a partir de seu seminário Mais, ainda (Lacan, 1972-73), o gozo sexual do
Outro gozo. O gozo sexual seria uma limitação do gozo, uma vez que ele
depende do significante.
Do lado feminino, a linguagem, embora permita a inscrição significante do
corpo, não dá conta da sexualidade da mulher. O gozo fálico não faz limite
ao gozo feminino, uma vez que falta um significante que especifique ‘A
mulher’. Assim, o gozo feminino tem algo a mais que não se inscreve em
termos significantes, comporta um indizível.
Segundo André (1987), a análise lacaniana da posição feminina na
sexuação implica mais do que a castração, apontando para a divisão da
mulher perante o sexual. Essa divisão se caracteriza pela dupla direção na
qual a mulher localiza seu desejo: frente à castração, a mulher se dirige
tanto para o falo − (φ) − quanto para S ( ), o significante da falta no
Outro.
Na mulher, o desejo implica a castração do homem, isto é, seu desejo se
pauta na falta colocada do lado do Outro. É a castração, introduzida pela
linguagem, que permite ao homem direcionar seu desejo para uma mulher.
Vendo-se dividido ( ), o homem eleva a mulher à condição de objeto (a)
causa do desejo. É desse lugar de objeto que a mulher pode ter acesso ao
que é da ordem do desejo, uma vez que é por essa via que a castração se
coloca para ela.
A posição feminina é paradoxal, uma vez que, inscrevendo-se na sexuação
a partir da significação fálica, esta não diz dela como um todo. Lacan
chama-nos à atenção para essa peculiaridade: “Não é porque ela é não-
66
toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá
não de todo. Ela está lá à toda. Mas há algo a mais” (Lacan, 1972-73, p.
100).
Assim, a mulher está totalmente referida à lógica fálica, mas esta não dá
conta de sua inscrição sexual como um todo. É por esse motivo que a
mulher se divide perante a castração do Outro. Ao se perceber castrada, ela
se volta para aquele que teria o falo e poderia dá-lo. Apreende, contudo,
que ser mulher não se esgota em não ter o falo. Trata-se, aqui, da ausência
de uma inscrição significante que a situe.
Ao propor que a mulher teria um acesso mais direto ao gozo, Lacan (1962-
63) aponta justamente para o fato de que a articulação significante não
circunscreve o gozo feminino como gozo fálico.
Do lado feminino, o gozo se caracteriza por ter relação com o Outro como
tal. Esse Outro gozo se constitui a partir da incidência do significante, mas
não se limita a ele. O Outro gozo da mulher se constitui como um gozo
suplementar ao gozo fálico.
Para a mulher, só é possível ter acesso ao Outro gozo a partir da inscrição
significante. O significante se constitui, então, como seu próprio limite, isto
é, a própria articulação significante aponta para o impossível de ser
articulado. É nesse registro que o Outro gozo se constitui como
inapreensível pela linguagem.
Assim, o que é da ordem do gozo se divide entre um além e um aquém da
linguagem. Porém, essas duas posições só podem ser concebidas a partir da
função primordial da castração: de um lado, a castração funda o gozo
mítico anterior à linguagem e instaura a exceção fálica – lógica masculina
da sexuação; de outro, a articulação significante permite desvelar um gozo
que não cabe na significação fálica − posição feminina na sexuação.
Nota
1. Este texto é parte da dissertação de mestrado A dimensão ética da diferença
sexual, defendida em 2008 no Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação da
Profa. Dra. Tania Coelho dos Santos e com o financiamento da CAPPES.
2. A expressão “outro sexo” indica o encontro com o parceiro sexual. Já a
expressão ‘Outro sexo’ será utilizada para designar a diferença em termos
simbólicos, ou seja, quando estiver em jogo a relação do sujeito com o
Outro constitutivo da entrada na linguagem. É o que já nos advertia Lacan:
“O Outro, na minha linguagem, só poderia ser, portanto, o Outro sexo”
(Lacan, 1972-73, p. 54).
Referências bibliográficas:
ANDRÉ, S. (1987) O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
________. (1905) Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, v. VII.
________. (1923) A organização genital infantil: Uma interpolação na teoria da
sexualidade, v. XIX.
67
________. (1924) A dissolução do complexo de Édipo, v. XIX.
________. (1925) Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre
os sexos, v. XIX.
________. (1931) Sexualidade feminina, v. XXI.
________. (1933) Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise: conferência
XXXIII: A feminilidade, v. XXII.
LACAN, J. (1956-57) O Seminário. Livro 4: A relação de objeto. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1995.
_______. (1957-58) O Seminário. Livro 5: As formações do inconsciente. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
_______. (1958) "A significação do falo", in LACAN, J. Escritos, Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1998.
_______. (1959-60) O Seminário. Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
_______. (1962-63) O Seminário. Livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2005.
_______. (1972) “O Aturdito", in LACAN, J. Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003.
_______. (1972-73) O Seminário. Livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1985.
68
A ESCRITA ÍNTIMA NA PUBERDADE: A TESSITURA DE UM VÉU NO ENCONTRO COM
O FEMININO
Resumo
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a função da escrita para a
menina no despertar da puberdade. A puberdade, para a psicanálise, é
um tempo lógico no qual o sujeito é convocado a realizar um trabalho
psíquico. No confronto com o real do sexo, ressurgem as perguntas
sobre o ser, sobre o sexo, sobre o próprio desejo e o desejo do Outro,
inauguradas na infância e silenciadas na latência. A passagem do corpo
de menina ao corpo de mulher leva ao surgimento da questão: o que
quer uma mulher? Na ausência de um significante feminino, a
adolescente constrói um semblante, velando a falta fálica. A escrita, para
a adolescente, pode apresentar-se nesse momento como alguma coisa
que visa à construção de um véu, como um semblante, que recobre o
vazio. Esse trabalho de tessitura é ilustrado através do diário de uma
adolescente.
Palavras-chave: psicanálise, puberdade, escrita, feminino.
Abstract
This article presents a reflection on the function of teenage girls’ writing,
by the time they approach puberty. Within the psycho analysis view,
puberty is a logical time during which one is invited to carry out a
psychic process. Facing the reality of sex, girls are challenged by
questions which have been silenced in childhood and latency times about
the being, sex, their own desires and the others’ at puberty times. The
shift from a girl’s body to a woman’s body brings about the question:
69
what does a woman want? Lacking a female signifier, teenagers build up
a look in order to mourn their phallic lack. For female teenagers, writing
can be seen as the construction of a veil which covers emptiness. Such a
process of contexture is illustrated through the diary of an adolescent.
Keywords: psychoanalysis, puberty, female writing.
Introdução
A “adolescência” enquanto uma fase intermediária da vida, entre a infância
e a fase adulta, é uma construção social. Até o final do século XVIII a
adolescência não era percebida como um estágio particular do
desenvolvimento humano. O termo adolescência surge, em sua concepção
moderna, entre o final do século XVIII e início do século XIX. Até então, a
adolescência se confundia com a infância e ambas demarcavam a ideia de
dependência socioeconômico-cultural.
Se a adolescência é uma construção social, o termo mais adequado para
abordar esse tempo lógico do encontro com o real do sexo talvez seja a
puberdade, termo utilizado por Freud. Consideramos a adolescência como
uma resposta sintomática do sujeito ao encontro com o real do sexo na
puberdade.
Freud (1905) utiliza o termo puberdade descrevendo-a como um segundo
tempo da sexualidade. O primeiro ocorre na infância e retrocede ou é detido
na latência; e o segundo sobrevém com a puberdade e determina a
configuração definitiva da vida sexual. E explica que com a chegada da
puberdade introduzem-se as mudanças que levam a vida sexual infantil à
sua configuração definitiva. A pulsão na infância era predominantemente
autoerótica e na puberdade encontra o objeto sexual. Surge um novo alvo
sexual para a conjunção de todas as pulsões parciais: a zona genital.
Assim, com a chegada da puberdade, duas transformações são decisivas,
segundo Freud: a subordinação de todas as outras fontes de excitação
sexual ao primado das zonas genitais e o processo do encontro do objeto. A
70
normalidade da vida sexual só é assegurada pela exata convergência das
duas correntes dirigidas ao objeto sexual e à meta sexual, a de ternura e a
sensual: “A primeira destas comporta em si o que resta da primitiva
eflorescência infantil da sexualidade. É como a travessia de um túnel
perfurado desde ambas as extremidades” (Freud, 1905, p. 195).
Um outro trabalho que o jovem deve fazer é o de separação de seus pais,
como ressalta Freud. Ele destaca que na puberdade há o redespertar do
Édipo, renovando os conflitos edipianos e as fantasias incestuosas. Ele
comenta:
“Contemporaneamente à subjugação e ao repúdio dessas fantasias
claramente incestuosas consuma-se uma das realizações psíquicas mais
significativas, porém também mais dolorosas, do período da puberdade:
o desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se
cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a
nova e a velha gerações” (Freud, 1905, p. 213).
Há uma reativação do Édipo na puberdade que, diferentemente de sua
primeira manifestação na infância, agora tem a marca da interdição. De
acordo com Cottet, Freud descreve a puberdade como “[...] um mito, o da
conjunção de todas as pulsões parciais em torno da genitalidade sobre um
novo objeto após a fase da latência e, portanto, para além do
recalcamento” (Cottet, 1996, p. 12). Na puberdade, o desejo sexual, à
medida que desperta a antiga corrente, reativa o Édipo. Há uma reativação
da escolha do objeto interdito. A diferença com relação à infância é que
desta vez é reativada numa época mais além do recalque com esse novo
elemento que é a genitalidade. O desejo sexual reativa uma interdição
pondo em questão a impossibilidade de uma harmonia entre a pulsão
sexual e a corrente terna sobre o mesmo objeto.
Os pais, enquanto modelos de identificação, devem ser substituídos por
outras pessoas. Em 1914, em “Algumas reflexões sobre a psicologia do
escolar”, Freud faz algumas considerações sobre a adolescência, marcando
em especial o desligamento que o jovem faz do pai e sua substituição pela
figura do mestre. Freud explica que é nessa fase do desenvolvimento do
jovem que sobrevém seu encontro com o mestre. Ele acrescenta que tudo o
que distingue a nova geração, tanto o que é portador de esperança quanto
o que choca, tem como condição esse desligamento do pai. Ou seja, a crise
do pai faz nascer a nova geração. Nesse movimento, a função de interdição
edípica, bem como a abertura à possibilidade do exercício do desejo,
ampliam-se para sua concretização no pacto social.
A partir das referências freudianas acima, podemos destacar como
principais determinantes da puberdade: as transformações fisiológicas com
a consequente maturação genital, o encontro com o outro sexo (que ele
chama de encontro com o objeto), o redespertar do Édipo com a
necessidade de separação dos pais e a escolha de outras referências de
identificação, ou seja, a passagem do pai ao mundo social mais amplo.
Assim, no tempo da puberdade, há a exigência de um trabalho psíquico
para que o jovem possa fazer essa “passagem” da infância à fase adulta.
71
O despertar do real do sexo na puberdade
Para Freud a sexualidade humana não é inaugurada na puberdade, mas na
infância. No segundo ensaio de seu texto de 1905 o autor demonstra a
existência da sexualidade infantil, descreve a fragmentação das pulsões
parciais e comprova o caráter normal das exteriorizações sexuais infantis. A
vida sexual infantil vai apresentar uma lógica pré-genital organizada como
oral e anal. Em 1924 o autor acrescenta a fase fálica. Essa fase se apoia
numa zona genital, mas com diferenças com relação à organização genital
adulta, pois a criança só reconhece uma classe de órgão sexual: o
masculino. Mas não se trata da primazia dos genitais, e sim do falo. A
descoberta da diferença entre os sexos (tendo o falo como referência) é
fundamental para a constituição da sexualidade.
A separação entre masculino e feminino só ganha significação após a
puberdade, e essa distinção será fundamental na sexualidade do adulto. O
complexo de Édipo e o complexo de castração marcam a passagem da
sexualidade infantil para a vida sexual adulta. Freud formula o complexo de
Édipo para afirmar que o desejo inconsciente determina no sujeito uma
estrutura ternária, uma rede complexa na qual o sujeito articula o seu
desejo ao desejo do par parental. Podemos considerar que, ao escrever o
complexo de Édipo, Freud indica uma direção, do mito à estrutura. A
impossibilidade do amor incestuoso encaminha o Édipo para a sua
destruição. Essa impossibilidade é a castração, enquanto um fato de
estrutura. Marca-se a impossibilidade do encontro com o objeto, não há
complementaridade. As teorias sexuais infantis constituem o recurso
utilizado pela criança no trabalho de velar e desvelar a castração, enquanto
impossibilidade estrutural. Há um recalque das fantasias e do desejo
incestuoso com a incidência da castração, marcando a entrada da criança
na latência. A latência se situa nesse tempo intermediário entre a infância e
o despertar da puberdade. Na puberdade existirá a necessidade de distinção
sexual e o primado da zona genital irá se firmar. A maturação genital leva
ao encontro com o objeto.
Há, portanto, uma constituição da realidade psíquica que se dá em dois
tempos: o da infância e o da adolescência. O trabalho psíquico que ocorre
na adolescência envolve um segundo tempo desse processo. Para a teoria
lacaniana, a subjetividade se constitui a partir do enlaçamento de três
dimensões topológicas: o simbólico, o imaginário e o real. O registro
simbólico designa a relação do ser falante com o significante; o registro
imaginário, a relação do ser falante com a imagem; e o real, com o objeto.
O complexo de Édipo é o que amarra os três registros.
O registro simbólico representa, na teoria psicanalítica lacaniana, o lugar do
código fundamental da linguagem, o lugar da lei, onde fala a cultura, a voz
do grande Outro. A escritura do Outro (com maiúscula) foi adotada por
Lacan para mostrar como a relação entre a estrutura simbólica e o sujeito
se distingue da relação imaginária do eu e do outro (com minúscula indica o
outro imaginário). Lacan, em “O estádio do espelho como formador da
função do eu”, chama a atenção para a matriz simbólica em que o eu se
precipita numa forma primordial, antes de se objetivar na dialética da
identificação com o outro e antes que a linguagem lhe restitua, no
universal, sua função de sujeito (Lacan, 1998, p. 97). O acesso ao simbólico
tem como efeito “a divisão do sujeito”, ou seja, a perda de uma parte
72
essencial de si mesmo, pois no simbólico o sujeito só pode ser
representado.
O sujeito mediatizado pela linguagem está irremediavelmente dividido, pois
está excluído da cadeia significante, ao mesmo tempo em que aí é
representado. Nomeado no discurso dos pais e deles recebendo um
prenome, o sujeito entra no circuito da troca e, nessa troca, algo se perde.
A condição para a sua aparição na ordem do significante é a sua “morte”,
ou a sua “perda”, a sua “divisão”, ou seja, pode-se dizer que ao mesmo
tempo em que ele se humaniza através do Outro, o preço a ser pago por
essa humanização é a sua alienação a esse Outro, a essa ordem cultural.
Entre o campo do sujeito e o campo do Outro há uma hiância; é nesse
intervalo que acontecem as duas operações na relação do sujeito com o
Outro. Se a primeira operação é a alienação, como vimos acima, a segunda
está situada numa interseção, é a separação. O encontro inaugural com o
Outro deixa como marca uma inscrição significante, o S1, um significante
sem qualquer sentido. O sentido de S1 será construído retroativamente, a
partir de certo sentido, certo saber, o S2. A fundação do sujeito se dá então
a partir dessa marca originária vinda do campo do Outro, o S1, e de um
significante que pretende dar sentido, o S2. Nem S1 nem S2 dão conta de
representar o sujeito integralmente. O sujeito do inconsciente surge no
intervalo entre S1 e S2, como $ (Sujeito dividido). Para a psicanálise, não
há relação entre S1 e S2, somente uma amarração. O objeto a é o que
aponta para aquilo que escapa a qualquer tentativa de recobrir um
significante pelo outro, substituindo-o, sem falha. O objeto a é o resto da
operação de emergência do sujeito entre S1 e S2, que supostamente
taparia nossa falha estrutural.
A separação surge no recobrimento de duas faltas: a que o sujeito encontra
no Outro e a que recobre a primeira, quando o sujeito responde à primeira
falta com a proposta de seu desaparecimento, sua morte, que permanece
na pergunta infantil: “Será que o Outro pode me perder?” Falta um
significante no campo do Outro do qual o sujeito do inconsciente depende
para se constituir como tal. Então surge a fantasia como resposta e solução
para o sujeito diante do enigma do desejo do Outro. Por meio da fantasia, o
sujeito pode evitar o encontro com o real faltoso, com a falta de objeto,
com o que não está inscrito. Com a fantasia, onde há furo coloca-se objeto
a fantasioso. Quando há a instalação da fantasia inconsciente fundamental,
há a instalação dos três registros: o real, o simbólico e o imaginário.
O imaginário para a psicanálise envolve não só as imagens e a imaginação,
como também o registro da identificação especular, onde há a relação do
sujeito com as identificações formadoras do eu. Lacan descreve o estádio do
espelho como uma identificação, ou seja, a transformação produzida no
sujeito quando ele assume uma imagem: “O estádio do espelho é um
drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação”
(Lacan, 1998, p. 100). Lacan, retomando Freud, diz que no princípio não há
unidade, ou seja, inicialmente o corpo do indivíduo é fragmentado pelas
pulsões autoeróticas, ou pulsões parciais, que ainda não se organizaram em
torno de um eu. As pulsões autoeróticas convergem para a imagem do
corpo tomado pelo objeto: imagem com a qual o sujeito se identifica para
constituir seu eu. Essa imagem é o eu ideal formado pela imagem do outro,
que dará a unidade que constitui o eu, ou seja, a criança se identifica com
73
aquela imagem refletida no espelho (ou imagem do outro), alcançando uma
“identidade alienante” que a acompanhará no seu desenvolvimento. Essa
unidade ou “armadura”, esse “eu”, é antes de tudo “um eu corporal”
(Freud, 1914b). A percepção visual do corpo constitui a base do imaginário
e da identificação especular. A unidade do eu é, portanto, imaginária.
No entanto, se o espelho fornece ao sujeito uma unidade corporal, que o
organiza, conferindo-lhe uma gestalt, um eu ideal, essa imagem é
sustentada pelo olhar de um representante do Outro. O sujeito se vê no
espelho através desse ponto simbólico situado fora da imagem, suporte da
identificação simbólica ao ideal do eu. Mas, como nem tudo da realidade
subjetiva é captado pela imagem, existe sempre algo não especularizável, o
objeto fora do espelho. Diante de sua falta a ser, o sujeito se vê impelido a
compensar sua incompletude através do recurso às imagens unificadoras do
eu. Mas em algum momento ele se depara com a impossibilidade de captar-
se totalmente numa imagem. A experiência especular traz como uma de
suas importantes consequências a subordinação do sujeito ao significante
que o designa, com a consequente perda do objeto. Os objetos pulsionais
não se deixam captar pelo espelho, permanecendo como traços no corpo do
sujeito. O sujeito tenta recuperar esses objetos mediante a construção de
sua fantasia.
A puberdade é um tempo lógico, portanto, no qual o sujeito é convocado a
realizar um trabalho psíquico. Há uma ressignificação da sua relação com o
corpo. A construção especular do eu feita na infância é perturbada na
adolescência. O corpo “púbere”, em transformação, denuncia os pontos de
fraqueza da “unidade especular” construída na infância. As perguntas sobre
o ser, sobre o sexo, sobre o próprio desejo e o desejo do Outro, surgidas na
infância e silenciadas na latência, são redespertadas na adolescência.
A consistência imaginária do Outro é abalada. O Outro aqui é referido ao
campo simbólico ao qual o sujeito do inconsciente está remetido. Sua
consistência imaginária é abalada nesta fase. O adolescente terá que fazer
um intenso trabalho de construção imaginária da realidade, quando o corpo
desponta como fundamental ao sujeito. Na reconstrução que o adolescente
deve fazer da sua imagem, a questão do olhar é fundamental. O
adolescente demanda um olhar que confirme “a nova imagem corporal”
como desejável e desejante. O olhar do outro confere ao sujeito um
reconhecimento de sua nova condição sexuada.
Mas a imagem do corpo em transformação do adolescente torna-se
estranha a ele mesmo, correspondendo à categoria do estranho
(Unheimliche), descrita por Freud (1919). O estranho remete ao que é
conhecido e familiar, que se tornou alheio ao próprio sujeito. O termo
unheimliche, através da partícula negativa um-, põe um limite na
ambiguidade de seu provedor heimliche (Portugal, 2006).A raiz de ambos,
das Heim (casa, lar), refere-se a tudo o que é íntimo, conhecido e familiar,
e de tão íntimo torna-se secreto, estranho, assustador e angustiante. Para
Freud o termo refere-se a tudo que deveria ter permanecido secreto e
oculto, mas veio à luz.
O duplo como figura do estranho, que comumente aparece como imagem
especular, torna-se causa de estranheza, quando o corpo familiar vira
objeto de angústia. O eu para a psicanálise é sempre imaginário, daí a sua
fragilidade e o estatuto de ficção que derivam de uma articulação entre o
74
estranho e o narcisismo. O fundamento do duplo está no momento de
cristalização do eu. O espelho, parâmetro de exterioridade, oferece ao
sujeito a chance de se ver por inteiro, mas ao preço de se ver como um
outro. Nessa relação com o semelhante, a figura que se reflete aparece
invertida, impondo uma diferença no registro do idêntico, forçando a
alteridade. A própria imagem, que deveria ser o mais conhecido e familiar,
vira estranho, sinistro. Surge então a angústia que leva a buscar eliminar o
duplo, este rival. O fenômeno do Unheimliche mostra que a mesma imagem
da qual o eu depende para se constituir pode se tornar uma ameaça à sua
“suposta” integridade. No fenômeno do duplo, há um destacamento da
imagem especular, que se apresenta como duplo autônomo, estranho para
o sujeito.
Na puberdade, a imagem corporal claudica, há um despedaçamento da
imagem, causando estranhamento. A imagem do corpo torna-se estranha
ao sujeito. O estranho é o real, que se rompe quando o véu que o recobre é
descoberto. O estranho é o impossível a ocultar, é a experiência do real que
irrompe, furando a imagem. A experiência do duplo traz à tona a “outra
cena”, que nos aliena de nós mesmos, provocando um sentimento de
estranheza que nos angustia, exigindo um trabalho de escrita que leve à
construção de sentido.
Lacan (1964), no Seminário 11, introduz o olhar como objeto a no lugar do
Outro. Na experiência especular existe um ponto cego, uma parte faltante,
que corresponde ao que do registro real não é especularizável. O autor
diferencia visão e olhar, identificando o olhar com o objeto. O olhar ou o
escópico aponta para o real, que é diferenciado da visão ou do especular,
que corresponde ao imaginário. A dimensão escópica, apesar de não poder
ser vista, dá razão àquilo que se vê (especular). Para Lacan, o segredo do
fascínio pela imagem é o encobrimento da falta e, também, o encobrimento
do objeto (olhar). O olhar como objeto a é encoberto pela imagem e é o
responsável, tanto pelo segredo da beleza, quanto pelo horror da imagem,
que causa estranhamento.
O despertar do real do sexo leva o sujeito a um desatar do nó que amarra a
estrutura. Se o Complexo de Édipo é uma amarração da estrutura, há na
puberdade uma exigência de um novo enodamento. Como o sujeito pode
fazer essa amarração? Tornar-se homem ou mulher envolve fazer um
trabalho de amarração com os restos do enlace do sujeito ao Outro.
Ilustraremos, com o diário de Melissa, o encontro com o real na
adolescência e a escrita de um diário operando como uma forma de dizer
desse encontro com o feminino.
80
afastados e me evitam como se eu tivesse uma doença contagiosa”
(Panarello, 2004, p. 20).
Esse sentimento intenso de uma desconformidade com o simbólico pode
conduzir o adolescente, portanto, a um exílio particular. Partindo de seu
exílio da infância a este da língua, o adolescente pode experimentar um
“desregramento de todos os sentidos”. Segundo Lacadée (2007), o
adolescente vive momentos delicados de ruptura, de contradição, onde a
infância, adolescência e loucura se aproximam e se margeiam em um fora
do discurso que conduz a certas rupturas do laço social, como pode ser
observado na escrita de Melissa:
“Quando estou em casa, entro na Internet. Procuro, exploro. Busco tudo
aquilo que me excita e me faz ficar mal ao mesmo tempo. Busco a
excitação que nasce da humilhação. Busco o aniquilamento. Busco os
indivíduos mais bizarros, aqueles que enviam fotos sadomasoquistas,
aqueles que me tratam como uma verdadeira puta” (Panarello, 2004, p.
75).
Entrei num chat, na sala “Sexo perverso”, com o apelido “whore”... Ele
logo me contatou, “the carnage”; foi direto, explícito, invasivo,
exatamente como eu queria que fosse. – Como você gostaria de ser
comida?... E eu respondi: – Com brutalidade, quero ser tratada como
um objeto” (Idem, p. 79).
A escrita da Melissa é muitas vezes “sem véus”, descoberta, invadida pelo
gozo: “Montei em cima dele e deixei que sua haste mirasse bem no centro
do meu corpo” (Panarello, 2004, p. 27). “Levantei-me e, chegando perto de
sua orelha sussurrei: – Me fode” (Idem, p. 99).
Ela busca essa mesma liberdade na “carne”, se oferecendo a qualquer um
como objeto, mas o que encontra é a angústia e o horror. O encontro com o
outro é desconcertante. O gozo avassalador causa estranhamento e
angústia: “Tudo começou como sempre, e acabou da mesma maneira. Eu
sou uma estúpida, diário, não deveria ter permitido que ele se aproximasse
outra vez” (Panarello, 2004, p. 35).
A fantasia é o recurso utilizado pelo sujeito nesse momento de confronto
com o outro sexo, mas ela vacila exatamente diante do gozo que escapa ao
falo: o gozo d’A Mulher, um gozo sem sentido e implacável. Ao se oferecer
como objeto de gozo para o Outro, Melissa se apavora diante da
possibilidade de seu aniquilamento enquanto sujeito: “Embaixo das
cobertas, voltei a pensar nas palavras do pintor e depois na manhã anterior,
quando perdi aquilo que o velho brasileiro tinha achado de tão especial em
mim. Perdi entre uns lençóis frios demais e as mãos de alguém que devorou
o próprio coração, que já não bate mais. Morro” (Panarello, 2004, p. 29).
No encontro com o outro sexo, o sujeito adolescente, na posição feminina,
se faz de semblante de objeto causa do desejo do Outro. No entanto,
Melissa, ao invés de “se fazer” desejar bancando o objeto, ela o encarna.
Freud, no texto “Uma criança é espancada” (1919), mostra a construção da
fantasia de espancamento em três tempos: “O meu pai está batendo na
criança”, “estou sendo espancada por meu pai”, “uma criança é espancada”.
Comenta que essa fantasia é também uma forma de assegurar o amor do
pai, ou seja, “se o meu pai me bate é porque me ama”. Melissa, ao se fazer
escrava dos homens, tenta se assegurar do amor deles, e
fundamentalmente, tenta resgatar de alguma forma sua alienação ao Outro,
81
buscando anular a perda que se inscreveu com a irrupção do gozo no tempo
da adolescência. “Se eu gritar, pensei, ele vai ficar satisfeito, afinal foi o que
ele pediu. Vou fazer tudo o que ele me mandar fazer” (Panarello, 2004, p.
46).
Nesse despertar pubertário, surgem pedaços de real que incitam a criação
de um lugar e de novos laços. O adolescente tem, entretanto, uma chance
de inventar uma resposta para si, capaz de tecer seu trajeto singular. A
escrita pode ser uma possibilidade de certo ordenamento desse
desregramento. Alguns jovens se aventuram à escritura, como nos seus
diários íntimos, pois, segundo Lacadée, alguma coisa se liga a esta questão
da escrita, ou seja, a errância é ligada à questão da escritura. O gosto das
palavras pode permitir ao adolescente, em sofrimento, agarrar alguma coisa
do seu ser. É o que podemos observar no diário de Melissa: “A solidão
talvez esteja me destruindo, mas já não me dá medo. Eu sou a melhor
amiga de mim mesma, eu nunca iria me trair, me abandonar” (Panarello,
2004, p. 35).
Comentando sobre os escritos de Rimbaud, Lacadée (2007) observa como o
tempo da adolescência pode levar certos sujeitos aos sofrimentos do exílio.
Mas ele acredita que Rimbaud soube de modo magnífico elevar a
perturbação do comportamento à dignidade de uma pantomina, de um
texto que se escreve. A língua que o adolescente procura pode, por um
trabalho onde o gosto das palavras é o motor, lhe permitir traduzir esta
parte viva em seu texto. Lacadée propõe ao psicanalista saber se aproximar
desta língua adolescente, se aproximar desse gosto pelas palavras tão
próximas do corpo, para que o despertar não readormeça.
Existe um grande interesse pelas palavras e pela escrita na adolescência.
Essa escrita tem uma importante relação com o corpo, já que as palavras
estão tão próximas do corpo. A relação entre escrita e corpo foi bastante
enunciada na obra de Lacan. No seminário Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, Lacan comenta que nosso corpo é mediatizado
pelos objetos pulsionais, que são objetos compartilhados com o Outro,
como o olhar e a voz. Esses objetos a são objetos de circulação que não
pertencem exclusivamente ao corpo próprio nem ao corpo do outro: “O
objeto a é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão”
(Lacan, 1964, p. 101). As pulsões fazem um movimento circular, saindo
através da borda erógena (orifícios pulsionais) para a ela retornar, depois
de contornar o objeto a.
Lacan recorre a Freud para afirmar que a sexualidade só se realiza pela
operação das pulsões, no que elas são pulsões parciais. Ele descreve a
passagem da pulsão oral para a pulsão anal não como um processo de
maturação, mas pela intervenção da demanda do Outro. Entretanto, o alvo
da pulsão não é outra coisa senão o retorno em circuito: “Nenhum alimento
jamais satisfará a pulsão oral, senão se contornando o objeto eternamente
faltante” (Idem, p.170). Esse circuito pulsional, descrito por Freud, é
retomado por Lacan, destacando os seus três tempos. O sujeito da pulsão,
que é propriamente o outro, só aparece no fechamento do circuito, no seu
terceiro tempo. O que organiza os orifícios pulsionais é a dialética fálica. No
movimento do circuito pulsional, algo se escreve. Na constituição de um
corpo pulsional, há um “escrever” do corpo, marcado pela incidência do
Outro.
82
Em O seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan comenta que a
linguagem é a condição do inconsciente e que o inconsciente permite situar
o desejo (1969-70, p. 43). No entanto, a repetição significante visa ao
gozo, ela se funda em um retorno do gozo. Na própria repetição, no
entanto, há perda de gozo. Lacan situa a origem do saber na repetição, sob
a forma do traço unário. O significante se introduz como aparelho de gozo.
Há uma equivalência entre o gesto que marca, e o corpo, que é objeto de
gozo do Outro. Desta maneira se dá uma das vias de entrada do Outro em
seu mundo. O autor ainda observa que a imagem especular do eu é
sustentada do interior pelo objeto perdido que ela apenas veste, por onde o
gozo se introduz. Assim, o saber, originado no traço unário que funda o
gozo e introduz a repetição significante, como retorno do gozo, mostra a
sua equivalência com o gozo do Outro. O saber é equivalente ao gozo do
Outro.
Uma série de objetos vem preencher essa hiância que se produz na perda
de gozo da repetição significante (objetos a: oral, anal, escópico, vocal). É
com o saber como meio de gozo que se produz o trabalho que tem um
sentido obscuro, que é a verdade. A verdade é a impotência, pois ela só
poderia ser enunciada por um semidizer. Lacan, então, mostra a lógica do
funcionamento dos discursos, que estruturam o laço social, discussão que
será feita adiante. Apoiando-nos nesses recortes do Seminário 17 de Lacan,
buscamos evidenciar a relação entre a escrita e o corpo. O gesto que marca
o corpo introduz nele o gozo. A imagem especular do eu é sustentada pelo
objeto perdido, ao mesmo tempo que o vela, por onde o gozo se introduz. A
repetição significante, ou a busca pelo saber, visa ao gozo e,
paradoxalmente, leva à perda de gozo. O gozo, resíduo da operação
significante, é, no entanto, aquilo que põe o sujeito em marcha.
Em O seminário 20: Mais ainda, Lacan (1972-73) observa que falamos com
o nosso corpo. Ao falarmos, aquilo que está em jogo nas pulsões encontra
um escoamento. Mas, para além do entendimento das palavras, para além
do sentido, está presente a escrita, a dimensão da língua. Assim, Lacan
postula que as palavras funcionam como escoamento das pulsões, como
forma simbólica de apreensão do real, e destaca que, para além da
dimensão do sentido, está a dimensão da língua.
Na relação da escrita com o corpo na adolescência, existe uma dimensão
pública e outra privada. Ana Costa, em A transicionalidade na adolescência
(2004), ressalta duas formas de escrita e de marca corporal que a escrita
coloca em causa. A primeira é o caráter coletivo da escrita, que implica
todos e cada um, inclusive corporalmente, na condição de circular
socialmente. A condição de coletivizar o corpo é de que ele constitua algo
que se inscreva no olhar do Outro. Um exemplo é a tatuagem, uma escrita
no corpo. A marca corporal constitui algo que faz circular o olhar pelo corpo.
A autora descreve uma outra face da escrita, que se apresenta através do
seu caráter privado, como o diário adolescente. Esse tipo de escrita diz
respeito a uma necessidade que está colocada na relação com um resto,
como uma impossibilidade de universalizar, de tornar o corpo
completamente coletivizável, de sublimar completamente o que fica como
resto da operação de representação do corpo.
A escrita “transporta detritos”. Os detritos são restos de uma operação de
separação nunca concluída, restos não assimiláveis, que escapam nesses
83
objetos pulsionais que nos ligam ao Outro. No ato de escrever, o sujeito
transporta esses restos, buscando dar conta de algo não “registrado” do
lado do autor, um resto inassimilável pelo simbólico. Esse resto, expresso
nos diários, implica a necessidade de ter, de alguma maneira, o suporte da
letra. Quando só se escreve na condição de não se mostrar, segundo Costa
(2004), esta condição implica um resto ligado ao funcionamento do olhar,
que somente funciona a partir de algo velado. Em concordância com a
autora, podemos localizar na escrita de um diário a tentativa do sujeito de
dar conta desse excesso não assimilável pelo simbólico, a tentativa de
transportar pela via da escrita uma dimensão que não é totalmente
coletivizável, de um resto que deve se subtrair ao olhar do Outro.
Este resto como o impossível de sublimar, resto da operação de
representação do corpo, é também o resto que o espelho não recobre, o
estranho, como ilustra Melissa:
“Onde foi parar você, a Narcisa que se amava tanto e tanto sorria, tanto
queria dar e mais ainda receber? Onde acabaram seus sonhos, suas
esperanças, suas loucuras, loucuras de vida, loucuras de morte? Onde
está você, imagem refletida no espelho, onde posso te procurar, te
encontrar, como te segurar?” (Panarello, 2004, p. 126).
A experiência do duplo, do estranho, é frequente na escrita de Melissa:
“Não, aquela não era eu. Era a outra, a que não se ama, deixando-se roçar
por mãos ávidas e desconhecidas...” (Panarello, 2004, p. 58).
Para Costa (2004), o diário íntimo pode ser pensado como semelhante a um
objeto transicional, que vai permitir uma contenção e uma reconstituição do
campo do Outro, viabilizando relações com os semelhantes. Nesse
momento de passagem, de reconstrução do corpo, o jovem precisa de outro
suporte para “o olhar” e os diários são suportes para uma circulação, que
dependem de um registro fálico, uma representação do corpo que seja em
comum com outros. O diário, como evento transicional, é um a priori para a
construção desse registro, sendo mais da ordem do privado que do grupal.
No campo do privado, o sujeito faz do objeto um suporte da falha no
espelho. Segundo a autora, essa construção do amigo imaginário é algo do
próprio corpo que se cola no objeto, mas, ao mesmo tempo, ele não é só
objeto nem só corpo, é também palavra.
Assim, a escrita na adolescência vai ocupar o campo da transicionalidade,
como um elemento terceiro que é ao mesmo tempo incluído e excluído do
campo representacional. Ela destaca também o caráter de endereçamento
da escrita, que leva à construção de dois lugares: o do sujeito e o do Outro.
A autora distingue a escrita de um diário íntimo, como construção de um
espaço privado, da escrita para outros. No campo da transicionalidade, a
escrita ainda não é para outros, ela está construindo os lugares. Escrever
para outros significa perder. Portanto, a escrita, quando sai do campo
transicional e passa à cultura, mostra a possibilidade de produzir algo que
seja interpretante do contexto, que tenha a ver com o “espírito do tempo”,
que diga respeito ao laço social, para onde essa escrita se dirige. Há então
a saída do suporte estrito ao eu para que seja também uma produção
cultural, uma passagem do privado ao público, da dimensão do segredo
para a dimensão da circulação social, podendo ser interpretante de um
sujeito.
84
De fato, podemos diferenciar a escrita “para si” da escrita “para um outro”.
Na escrita de um diário íntimo, há a construção de um espaço íntimo,
privado. Essa escrita, ao ser lançada no espaço público, faz laço social.
Nesse sentido, podemos diferenciar o diário íntimo do blog, que é uma
escrita para os outros. Mas, a partir das considerações que fizemos,
sabemos da ambiguidade existente entre as dimensões pública e privada. O
diário íntimo comporta uma dimensão pública e veremos como o blog
comporta também uma dimensão privada.
Ao terminar o seu diário, Melissa mostra ter feito parte de seu percurso. Ela
continua a realizar a sua travessia para chegar do outro lado do túnel. A
escrita tornou possível a reconstrução de um véu fálico, “a ilusão do amor”,
a fantasia que encobre o traumático do sexual:
Concluí minha viagem dentro do bosque, consegui escapar da torre do
orco, das garras do anjo tentador e de seus diabos, fugi do monstro
andrógino. E acabei no castelo do príncipe árabe, que esperou por mim
sentado em almofadas macias e aveludadas. Me fez despir as minhas
vestes gastas e me deu roupas de princesa. Chamou as criadas e
mandou que me penteassem, depois beijou-me na testa e disse que ia
me olhar enquanto eu dormia. Depois, uma noite, fizemos amor, e
quando voltei para casa vi meus cabelos ainda brilhantes e a
maquiagem intacta. Uma princesa, como minha mãe sempre disse, tão
linda que até os sonhos querem roubá-la (Panarello, 2004, p. 157).
Conclusão
É possível perceber que, através da escrita de seu diário, Melissa constrói o
seu romance particular, tecendo um fio que reconstitui o manto imaginário
que se desfez diante do encontro com o real do sexo. Diante da ausência de
um significante feminino, surge a necessidade de se constituir um véu
fálico, substitutivo da falta. Ao construir o seu mito particular, ela passa a
se reconhecer nessa história, que, ao final, termina como os contos de
fadas, ao se re-encontrar no traço identificatório que fisgou do Outro: a
princesa, que escova 100 vezes os seus cabelos antes de ir para a cama.
Uma princesa, como sua mãe a chamava. Mas não mais a “princesa da
mãe”, e sim alguém que encontra um príncipe, que a “reveste” de princesa
e que a ama. Nesse novo encontro, ela não mais “encarna” o objeto sexual,
mas se faz de semblante de objeto causa do desejo do Outro. De uma
prática sexual “sem restrições”, ao início da arte do velamento, via de
acesso à feminilidade.
Este trabalho foi possível através da escrita. A escrita possibilitou a Melissa
um suporte simbólico para “dizer” desse encontro com o real do sexo.
Melissa resolve publicar o seu diário, coletivizá-lo, fazê-lo circular
socialmente, marcando a saída do suporte estrito ao eu para uma produção
cultural, fazendo uma passagem do privado ao público, da dimensão do
segredo para a dimensão da circulação social. Podemos considerar essa
escrita do diário como um sintomapara Melissa, pois foi uma solução
encontrada por ela diante do confronto com o real do sexo.
85
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86
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2004, n° 20, p.27-39.
87
LINGUISTERIA: POR DETRÁS DO QUE SE DIZ
LINGUISTERIA: BEHIND OF WHAT IS SAID
Resumo
Cioso de que o campo da psicanálise não é o campo do lingüista, Lacan
denominou linguisteria a tudo que se refere à fundação do sujeito,
enquanto conceito renovado e subvertido por Freud. O dizer de Lacan
que o inconsciente é estruturado como uma linguagem é, portanto, do
campo da linguisteria: uma linguagem do inconsciente, entremeada
pelas afetações do sujeito, isso que fala detrás do que se diz. E para
fundamentar suas hipóteses, Lacan (1972-73) lança mão de um outro
Saussure, o dos anagramas, de onde conclui Lacan que o significante
não tem significado, mas remete-se a outro significante causando
efeitos de significação. A linguisteria se faz das interceptações do sujeito
do inconsciente, que advém do Real, no discurso do falante, que, como
um fenômeno conversivo do sintoma histérico, fala por si só.
Palavras-chave: psicanálise, linguisteria, significante, inconsciente,
sujeito.
Abstract
Aware that the field of psychoanalysis is different the one of the linguist,
Lacan called linguisteria to mean the foundation of the subject, as a new
and subverted freudian concept. According to Lacan the unconscious is
structured like a language and belongs to the field of linguisteria: a
language of the unconscious, permeated by the affectations of the
subject, that talking behind what one says. And to support his
hypothesis, Lacan (1972-73) makes use of another Saussure, of the
anagrams, where Lacan concludes that the signifier has no meaning, but
refers to another causing significant effects of significance. The
linguisteria is achieved in the traps of unconscious subject, which comes
from the Real, in the speech of the speaker, who, as a phenomenon of
conversion of the hysterical symptom, speaks for itself.
Keywords: psychoanalysis, linguisteria, significant, unconscious, subject.
88
Ao perceber que era difícil não entrar na lingüística, uma vez que a
descoberta do inconsciente requeria um mergulho nas águas da linguagem,
Lacan parafraseia Jackobson dizendo “tudo que é da linguagem dependeria
da lingüística, quer dizer, em último termo, do lingüista” (Lacan, 1972-73,
p. 25), homenageando-o em presença do próprio. Propõe então deixar o
domínio de Jackoson reservado, passando a denominar linguisteria tudo que
se refere à fundação do sujeito enquanto conceito renovado e subvertido
por Freud.
Tal qual o dizer de Lacan de que o inconsciente é estruturado como uma
linguagem, a linguagem do sujeito inconsciente é do campo da linguisteria:
uma linguagem entremeada pelas afetações do sujeito inconsciente. “Que
se diga fica esquecido detrás do que se diz no que se ouve” (Id., p. 26), ou
seja, isso fala detrás do que se diz. “Se o significante participa e edifica a
estrutura, um sistema simbólico, resta sempre algo de inassimilável ao
significante, que está na esfera do real: o sujeito” (Peixoto, 2003, p. 34).
Enquanto a linguística ocupa-se com o dito, a psicanálise ocupa-se dos
dizeres esquecidos. Se é através do que é dito que se enuncia o dizer, “... é
pelas conseqüências do dito que se julga o dizer. Mas o que se faz do dito
resta aberto” (Ibid., p. 26), ou seja, a significação não se fecha em um
sentido para Lacan. E o inconsciente evidencia-se, por meio da linguagem
expressa pelo falante, ao afetá-la pelas emergências do sujeito do
inconsciente - isso que fala por trás da linguagem do linguista.
Linguisteria, um neologismo lacaniano, é a junção entre as palavras
linguagem e histeria, o que evidencia que a linguagem do inconsciente,
através da qual se expressa esse sujeito, é da ordem do sintoma histérico.
É uma alusão a ser esta linguagem do inconsciente uma espécie de
fenômeno conversivo, que, como um sintoma histérico, fala por si só.
Linguisteria é uma espécie de “língua” inscrita e enraizada no corpo do
falante, uma incrustação de significantes no corpo.
“A linguisteria é uma espécie de lingüística da sintomática histérica, é
um estudo de uma linguagem conversiva – uma linguagem que é falada
pelo sintoma enquanto inscrição corporal, de um real que insiste, na
interdição do desejo, em uma castração por simbolizar” (Peixoto, 2003,
p. 45).
Esta “linguagem conversiva” se faz por conversões histéricas, ou seja: o
sintoma é convertido em afetação física no corpo, causando paralisias,
dores, espasmos, “convulsões”.
Para Lacan o sintoma se dissolve inteiramente numa análise da linguagem
ao se dar ouvidos ao que ele quer dizer, para que se venha se libertar, pela
fala, este sintoma. Apesar desta linguagem do inconsciente não ser a língua
dos linguistas, ela se faz nessa língua, como um sistema universal que
atravessa as línguas constituídas.
89
“Para a psicopatologia psicanalítica, o próprio corpo fala. Recorde-se que
Freud fundou a psicanálise a partir dos sintomas histéricos que ele
soube ver como ‘corpos falantes’. O sintoma corporal é
sobredeterminado por uma rede simbólica complexa, por uma
linguagem cujas leis sintácticas é preciso descobrir para se resolver o
sintoma” (Kristeva, 1969, p. 312).
Dora e a dor
Em uma pequena passagem final do famoso caso clínico Dora, Freud (1901)
relata que ela retorna a procurá-lo após uma breve interrupção de seu
tratamento por conta de uma nevralgia na face direita que a incomodava
diariamente, por quinze dias sucessivos. Indagada se há quinze dias
houvera lido a notícia de que ele havia sido nomeado professor da
Universidade (em março de 1902) ela lhe confirma que lera a notícia. Freud
então decifra o sintoma de sua pretensa nevralgia facial como uma
autopunição pelo remorso de haver esbofeteado Herr K. (o marido da
amante de seu pai, que lhe havia feito uma proposta amorosa) e ter
transferido seus sentimentos de vingança contra ele, Freud. O sintoma
participou da linguagem substituindo uma cena esquecida, destituída de
afeto, e que deste modo não portava, aparentemente, qualquer
significação. O remorso de Dora falava mais alto, doendo-lhe no rosto,
apesar de ter o ar de nada ter a ver com o que lhe causava.
Como pode o afeto se alocar no corpo, fazendo-o dialogar com o Outro? O
afeto não é o recalcado, explica Lacan.
“... o afeto, pelo fato do recalque, é efetivamente deslocado, não
identificado, não demarcado em suas raízes – ele se esquiva.
Eis o que se constitui o essencial do recalque. Não é que o afeto seja
suprimido, mas sim deslocado, e fica irreconhecível” (Lacan, 1969-70, p.
136).
O real do corpo, ainda que perpassado de linguagem em sua fisiologia
corporal - que deste modo o reveste de artifícios corporais -, responde ao
90
mundo simbólico-cultural, como participante deste, pelo sintoma do falante.
“É um corpo pulsional, produzido no acossamento do Real, onde habita o
sujeito. O sujeito é advindo do Real, comparecendo na suspensão da
linguagem, como pulsão” (Peixoto, 2003, p. 108).
Lembremos das lições freudianas de que a pulsão é um representante que
está na fronteira entre o somático e o psíquico. É neste corpo falante que a
pulsão se faz representar.
O significante é “o Erinnerungssymbol, símbolo mnêmico, do qual sabemos
como ele se enraíza na materialidade do corpo” (Arrivé, 1999, p. 91).
Sintoma e significante são símbolos mnêmicos que se inscrevem na “areia
da carne” (Lacan, 1953, p. 282), participando da linguagem do falante pela
ambiguidade semântica.
Freud em seus “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905) afirma
que os sintomas histéricos são transcrições de desejos, emocionalmente
carregados de energia libidinosa, que foram impedidos de obter descarga,
mas que, no estado de inconsciência, lutam por obter expressão, e que, na
histeria, encontram expressão nos fenômenos somáticos, isto é, nos
processos conversivos histéricos.
Quando Lacan afirma que não sabemos o que é estar vivo a não ser por um
corpo que goza, lembramos de Freud quando diz que só tomamos ciência
do corpo quando ele adoece, quando dói. A não ser por isso, dele sabemos
somente aquilo que pulsa, fonte que é da pulsão. E a pulsão é o
representante psíquico do que advém da fonte somática, significante que se
inscreve no real do corpo.
“... o significante se situa no nível da substância gozante ... é a causa do
gozo. Sem significante, como mesmo abordar aquela parte do corpo?
Como, sem o significante, centrar esse algo que, do gozo, é a causa
material? ... o significante é aquilo que faz alto ao gozo” (Lacan, 1972-
73, p. 36).
Desta forma, o sintoma que dá corpo ao gozo histérico, misto de dor e
satisfação, exerce a função de significante na linguagem do falante. Esta
linguagem falada é entremeada pelas aparições evanescentes do sujeito do
inconsciente, justo por ser afetada e sintomatizada pela histerização que se
instala pela alienação simbólica do real do corpo. Na escuta psicanalítica
podemos identificar este sujeito nas enunciações sob a fala do paciente, nos
sonhos, chistes, sintomas e falhas sintomáticas.
Como um hieróglifo, o corpo do falante é incrustado de cenas, significantes
inscritos na “areia da carne”.
Os hieróglifos eram, a princípio, uma escrita feita de imagens escavadas na
pedra e representavam tanto a palavra quanto o significado delas nas
antigas civilizações, como a dos Egípcios e dos Maias. Supõe-se que a lógica
estava na seqüência dos símbolos, e não na abstração em si.
91
Como os hieróglifos, a linguagem do inconsciente é feita de cenas. São
estas cenas recalcadas, encobertas por um discurso lógico racional, que se
enunciam na forma de linguisteria nas ambigüidades e equivocidades do
sentido.
Do cours ao discurso
A operação de incorporação de uma primeira marcação significante, o S1,
para o sujeito, encontra fundamentação na teoria do valor de Saussure.
Esta teoria permite que se distinga a implantação de uma matriz do
Simbólico, do S2, no corpo, que o antecede e possibilita a articulação de
significantes.
Nesta proposição da teoria saussuriana qualquer elemento simbólico só se
define pelas relações de vizinhança, antes mesmo que estes elementos
sejam substituídos por seres ou coisas.
Na fonologia Jakobsoniana, Lacan encontra bases para afirmar que o
significante se encarna no fonema, apesar de não poder limitar-se a esse
suporte fonemático: “...unidade (forma abstrata) elementar da língua, feixe
de traços distintivos que instaura a ordem significante como repetição,
diferença e negatividade”1 (Santaella, s/d).
E para fundamentar suas hipóteses, Lacan (1972) lança mão de um outro
Saussure: o dos anagramas. Quando meditava e fazia anotações sobre os
textos védicos e saturninos da poesia sagrada da Índia e de Roma,
Saussure acabou por rascunhar uma teoria sobre os anagramas, na
tentativa de ver “se não haveria um nome próprio disseminado no interior
desses textos que fosse, ao mesmo tempo, o destinatário e o sentido
fundamental da mensagem” (Dosse, 1993, p. 72).
Arrivé (1999) aponta que Lacan encontra um ponto de interlocução possível
entre Freud e Saussure nos anagramas do último, que via nos versos
saturninos “as mais estranhas pontuações da escrita”. Nos seus anagramas,
Saussure observa a insistência repetitiva das letras de uma palavra numa
sentença. “Saussure suspeitava do caráter, intencional ou não, dos
elementos anagramatizados, como se a ele faltasse o saber sobre o
inconsciente freudiano” (Peixoto, 2003, p. 31).
Chegou-se a dizer que havia aí um segundo Saussure, que buscava
entender se havia algo sob a linguagem: “uma linguagem sob a linguagem,
de uma codificação consciente ou inconsciente das palavras sob as palavras,
92
uma busca de estruturas latentes das quais não existe o menor traço no
CLG” (Dosse, 1993, p. 72).
Lacan traz à luz os anagramas de Saussure para defender seu ponto de
vista de que a relação do significante com o significado, na verdade, não é
arbitrária como Saussure teria afirmado anteriormente (1916) pois:
“... o que passa por arbitrário é que os efeitos de significado tem o ar de
nada terem a ver com o que os causa.
Só que, se eles têm o ar de nada terem a ver com o que os causa, é
porque a gente espera que aquilo que os causa tenha certa relação com
o real...” (Lacan, 1972-73, p. 30-31).
Para Lacan o significante não tem significado, não tem significação inerente,
mas provoca a produção de significação. “... a significância é algo que se
abre em leque, se me permitem o termo, do provérbio à locução” (Lacan,
1972-73, p. 30). Assim, podemos entender a afirmativa de Lacan (1957)
que diz que nenhuma significação se sustenta senão pela remissão a outra
significação.
Para o lingüista o signo é a unidade mínima da língua, que congrega
significado (um conceito) e significante (uma imagem acústica), não uma
coisa e um nome. Mas são os esclarecimentos que a Semiótica de Pierce
traz, acerca do signo, que se mostraram indispensáveis para que se
compreendesse neles o lugar do Real:
“Os efeitos de significado têm o ar de nada terem a ver com o que os
causa. Isto quer dizer que as referências, as coisas que o significante
serve para aproximar, restam justamente aproximativas –
macroscópicas, por exemplo” (Lacan, 1972-73, p. 31).
Faz falta que o significado tenha relação com o referente, com a coisa. De
outra forma dito, o Real é inacessível ao simbólico, o que não ocorre nem
mesmo por aproximação. A barra que separa o significante do significado é
intransponível, é uma barreira resistente à significação e o significado
desliza sob o significante. Algo escapa na aproximação do significante ao
significado e, esta coisa que escapa é a coisa Real.
Para Lacan (1972), o que faz haver signo, é o amor, que liga o significante
ao significado, o que faz sentido para alguém (outra referência lacaniana ao
signo da Semiótica Pierciana). O signo é o ponto de basta onde se
amarram, momentaneamente, o significante e o significado, causando
efeito de sentido, num raro momento de pacificação amorosa, onde o
desejo, por um fio, se estanca.
Mas o desejo triunfa, insatisfeito, na linguisteria, deixando à mostra o gozo
do Outro: “O que não é signo do amor é o gozo do Outro, o do Outro sexo
e, eu comentava, do corpo que o simboliza” (Id., p. 28).
A linguística acaba por ser insustentável por não haver, para a linguagem, o
objeto referente, para sempre perdido no real. Na linguagem, o significante
remete a outro significante, ou seja, metonimicamente, vai deslizando sem
o paradeiro do signo, já que o objeto está perdido no real. O que se produz,
entre um significante e outro, são efeitos de significância, numa referência
metafórica ao objeto.
Lacan, reportando-se a poesia A Uma Razão de Arthur Rimbaud (1854-
1891) diz que “O amor, neste texto, é o signo, apontado como tal, de que
93
se troca de razão, e é por isso que o poeta se dirige a essa razão. Mudamos
de razão, quer dizer – mudamos de discurso” (Lacan, 1972-73, p. 26).
O discurso amoroso é onde, de forma delirante, tudo faz sentido e a
significância é o que resulta em efeito de significado.
Ao contrário, não é de amor que a linguisteria é feita, uma vez que ela se
faz na ausência de signo. A linguisteria se faz nas pontificações, no
discurso, de um sujeito do inconsciente, dividido, advindo do Real.
A sintomatização histérica é o advento do sujeito do inconsciente no
discurso dizendo algo interdito, donde advém o sujeito do inconsciente na
forma de lapsos, chistes, sonhos ou sintomas.
Então, resta o discurso ao falante, que, em usos e frutos de uma fala
gozoza, desliza sem paradeiro, pela rede infinita de significantes.
A histérica, que a todo falante habita, está a mover-se, com seu desejo
insatisfeito, pelo desejo de saber endereçado ao significante mestre. E o
discurso da histérica é o que resta ao falante, a partir da operação
subjetivante de inserção do corpo na ordem simbólica, tornando-o um corpo
pulsional. É um sujeito dividido que dirige-se ao significante mestre para
saber de sua verdade, recalcando o saber do Outro, gozo do Outro, disjunto
da verdade do objeto a.
Nota
1. Ver Jackobson, 1967.
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Saussure, Pichon, Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
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LACAN, J. (1969-70) O Seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de
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KRISTEVA, J. História da linguagem. Coleção Signos, 6. Lisboa: Edições 70,
[s.d.] (original francesa: 1969).
PEIXOTO, E. V. (2003) A linguagem em seus efeitos constitutivos do sujeito:
Uma teoria psicanalítica sobre a linguagem, esta que estrutura o
inconsciente e demarca o lugar do sujeito psíquico. Dissertação de mestrado.
94
Curso de Pós-graduação em Cognição e Linguagem / CCH / UENF. Campos dos
Goytacazes-RJ.
SAUSSURE, F. (1916) Curso de Lingüística Geral. 10ª. Ed. São Paulo: Cultrix,
[s.d.] (1ª Ed. Bras. 1970).
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Psilacánise. Clínica da cultura. Disponível em:
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VORCARO, Angela. Incidência da matriz simbolizante no organismo. Revista
Freud-lacan.com. Disponível em: http://www.freud-
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28/11/2006.
Hieróglifos, disponível em http://www.geocities.com/Athens/2506/hier.html Acesso
em 27/11/2006.
95
Ednei Soares
Mestrando em Psicologia pela PUC-Minas
Aluno do curso de Psicanálise do Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de
Minas Gerais - IPSMMG/EBP-MG
Psicólogo do Programa de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher de
Nova Lima-MG e do NEPI – Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Inclusão da
APAE Contagem-MG.
edeoliveirajr@yahoo.com.br
Resumo
Em vista do discurso analítico e seu laço no social, o texto retoma os
princípios e elementos conceituais de Lacan concernentes à presença da
psicanálise no mundo, sobretudo na “Proposição de 9 de outubro de
1967 sobre o psicanalista da Escola”. A distinção das noções de
aplicação à terapêutica e psicanálise em extensão e em intensão
permitem reexaminar as condições nas quais a psicanálise pode ser
praticada abrangendo o real incurável do sintoma e na formação do
praticante. Assim, a noção de intensão é guia para a extensão e
aplicação da psicanálise. Alude-se também às orientações freudianas de
“Explicações, aplicações e orientações” marcando o rigor e o desejo pela
autenticidade da psicanálise no laço social. Vê-se que, o que orienta a
extensão da psicanálise como experiência original é a extensão de sua
intensão que responde com sua ética aos imperativos da atualidade,
distinguindo-a de outros métodos.
Palavras-chave: psicanálise, extensão, intensão, psicanálise aplicada a
terapêutica, incurável.
Abstract
When coming to the analytical speech and its tie in the social, the text
retakes the principles and conceptual elements of Lacan which concerns
to the presence of the psychoanalysis in the world, over all in the
“Proposal of 9 of October of 1967 about the School´s psychoanalyst”.
The distinction between the notions of application to the therapeutical
and psychoanalysis in extension and intension allows to reexamine the
conditions in which the psychoanalysis can be practiced enclosing the
incurable Real of the symptom and in the formation of the practitioner. It
is also alluded to the freudians orientations of “Explanations, applications
and orientations” marking the severity and the desire for the authenticity
of the psychoanalysis in the social tie. One sees that, what it guides the
extension of the psychoanalysis as a original experience is the extension
of its intension that answers with its ethics to the imperatives of the
present time, distinguishing it from other methods.
Keywords: psychoanalysis, extension, intension, therapeutical, incurable.
96
NOTA
1. Segundo as notas da Revista Opção Lacaniana, trata-se do texto de sua fala
no colóquio organizado por Jeanne Aubry sobre “O lugar da psicanálise na
medicina”, publicado em 1966 no Cahiers du Collège de Medicine.
Referências bibliográficas
99
FAMÍLIA E RESPONSABILIDADE1, 2
Jorge Forbes
AME – Analista Membro das Escolas Brasileira e Européia de Psicanálise
Presidente do IPLA – Instituto de Psicanálise Lacaniana
Diretor da Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano / USP
Coordenador do www.projetoanalise.com.br
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica / UFRJ
jorgeforbes@uol.com.br
Resumo
As contribuições da psicanálise ao estudo da família ainda utilizadas por
médicos, pedagogos e juristas envelheceram. Datam de um mundo que
está deixando de existir. Foram muito úteis se nos basearmos na
popularidade alcançada, mas são fracas para as questões fundamentais
da família atual, a do início do século XXI. A família de hoje se diferencia
em um aspecto fundamental da família de ontem: ela é fruto de uma era
onde o laço social é horizontal, enquanto, na anterior, era vertical. O
autor argumenta que é necessário atualizar nossa perspectiva sobre a
estrutura da família. Só assim seria possível uma interpretação legítima
dos novos sintomas sociais.
Palavras-chave: psicanálise, família, laço social, responsabilidade.
Abstract
The contributions of psychoanalysis to the study of family that are still
been used by physicians, teachers and law professionals has aged. They
date back to a world that has ceased to exist. They were much useful
based in the popularity that was reached, but do not solve fundamental
issues of today's family, the one from the beginning of the twenty first
century. Today's family is different from yesterday's in a major aspect: it
exists in an era where the social ties are horizontal, as opposed to then,
with vertical social ties. The author believes that it is necessary to
update our perspective on family structure. That is the only way it would
be possible to have a legitimate interpretation of the new social
symptoms.
Key-words: psychoanalysis, family, social bond, responsibility
100
As contribuições da psicanálise ao estudo da família que ainda estão sendo
utilizadas por médicos, pedagogos e juristas envelheceram. Elas datam de
um mundo que está deixando de existir, foram muito úteis, se nos
basearmos na popularidade alcançada, mas são fracas para as questões
fundamentais da família atual, a do início do século XXI.
A família de hoje se diferencia em um aspecto fundamental da família de
ontem: ela é fruto de uma era onde o laço social é horizontal, enquanto, na
anterior, era vertical. Na língua da psicanálise de orientação lacaniana, isso
se traduz dizendo que saímos de um tempo da supremacia do simbólico e
passamos para a supremacia do real. Explicarei.
O mundo anterior do qual estamos nos despedindo, organizava o laço social
em torno a símbolos maiores: na família, o pai; na empresa, o chefe; na
sociedade civil, a pátria. Medíamos nossa satisfação pela proximidade que
conseguíamos dos ideais propostos. Para isso, seguíamos uma disciplina
estabelecida em protocolos e procedimentos. Como o mundo era
padronizado, o futuro podia ser previsto. Isso ficava claro na forma com que
os pais falavam com os filhos, que seguia o modelo básico da implicação
“se, então”: - “Se você não fizer tal coisa, então você não terá um futuro
seguro e feliz”. Seguro vinha antes do feliz, quando não era o seu sinônimo.
Nesse tempo, que não vai tão distante assim, pois não faz mais de quarenta
anos, a psicanálise contribuiu com a idéia fundamental do diálogo, que
propiciou o famoso “conversando a gente se entende”. O poder quase
tirânico dos pais de gerações anteriores foi substituído pelo pai amigo,
compreensivo, próximo. Esse modelo foi exportado para o professor, para o
médico, não tanto para o juiz. Dele surgiram práticas sociais de uma escola
mais democrática, cujo maior símbolo foi Summerhill e de uma medicina
paradoxalmente humanizada, como se outra houvera. Tudo era conversado,
em alguns casos até demais. Lembro ter acompanhado em análise uma
filha sufocada por uma angústia causada pelo conhecimento das escabrosas
aventuras sexuais de sua mãe, que tudo tinha lhe contado entendendo que
esse era o correto procedimento de uma mãe amiga. Talvez assim tenha
sido cunhada a expressão: mui amiga...
Sofremos uma revolução no advento da globalização, perdemos o norte, a
bússola, surgiu o Homem Desbussolado3 e com ele novos sintomas que não
passam pelo circuito da palavra. Citando apenas alguns exemplos mais
frequentes, comecemos pelo fracasso escolar. Diferenciamos “fracasso” de
“rebeldia escolar”. Se antes o aluno contestava a escola, propondo outra
coisa, hoje, ele desconhece os valores da escola. Ameaças desesperadas de
um professor frente a uma prova entregue em branco - de que o aluno não
vai passar, que vai ficar de recuperação, que não vai conseguir o vestibular,
que não vai entrar na faculdade - são recebidas pelo aluno com uma
indiferença olímpica, quase com comiseração pelo desafortunado mestre. As
agressões inusitadas, outro sintoma atual, apavoram mais pela surpresa
que pela própria violência. Pais aflitos me contam que seu filho de 15 anos,
que sempre foi um jovem como todos os outros, pôs fogo na escola.
Demoro um pouco a entender que não tinha sido um fogo em uma lata de
lixo ou em uma cortina; não, ele havia posto fogo na escola toda, ela não
existia mais, tinha virado cinzas. Até o incêndio, um menino como outro
qualquer, depois do incêndio, um menino como outro qualquer. Nenhuma
marca do ocorrido, nada além de um “que pena”. Inútil nos valermos das
101
antigas categorias para diagnosticar - nesse caso, da perversão -, elas não
lêem esses fenômenos atuais. Ainda um exemplo: as drogas. O uso das
drogas não constitui uma novidade e sim a forma epidêmica de seu
emprego, compreensível se levarmos em conta que elas são receptores
universais, que servem a qualquer tipo de tomada, e há muito fio
desencapado atualmente.
Tudo está perdido? Não. Se há motivos pelos quais nos preocupar, há
também soluções e essas vêem do mesmo terreno de onde surgem os
problemas. Se a questão óbvia do Homem Desbussolado é a de como se
orientar, vamos examinar o que tem a capacidade de organizar uma imensa
quantidade de pessoas que se aglomera em torno à música eletrônica. Não
façamos como a maior parte dos amantes da bossa nova que nessa música
só escutam um bate-estaca insuportável; lembremos do exemplo de
Fleming que viu a penicilina onde outros só viam bolor. O interessante é nos
perguntarmos como uma música que não tem sentido literalmente, que não
tem letra, que se diferencia pelo número de batidas por minuto entre seus
estilos - house, garage, trance -, consegue transformar o show de Frank
Sinatra no Maracanã, para 180.000 pessoas, em encontro intimista, uma
vez que uma Techno-parade aglomera dois milhões e meio, três milhões de
participantes, dançando juntos, sem se entenderem, sem cantarem um
jargão comum, sem um barquinho que vai e vem, sem se perguntarem se
você quer ser minha namorada, oh que linda namorada você poderia ser.
Não dá para dizer que se trata de três milhões de autistas, claro que não.
Possivelmente esses moços demonstram a possibilidade de estar junto sem
se compreender, “tá ligado?”, no qual o “tá ligado” não é uma falta de algo
melhor para dizer, mas aponta a essência do laço social na pós-
modernidade: os “monólogos articulados”, permitam-me assim chamá-lo.
Monólogos articulados, portanto, tomam o lugar dos diálogos
compreensíveis em nossa época. Isso também explica, a meu ver, o
exponencial crescimento do Twitter: mais de cinco milhões de usuários no
Brasil nos últimos três meses, e é só o começo. Vivemos em uma Ágora
eletrônica. Encontramo-nos nessa praça aberta pelo tempo de um tweet, de
um pio, tá ligado? O fundamental passou do raciocinar, típico da supremacia
do simbólico, já referido, tão caro aos iluministas, ao ressoar. Alguém diz
algo que ressoa, ou não, em outro alguém, que toca, que abre novas
perspectivas: invenções do que pode ser, não do que já foi.
Em uma sociedade plana, horizontal, a satisfação humana não é dada por
cumprir bem uma tarefa, pois não há modelo fixo que defina o que é o
cumprir bem. Essa época exige um triplo movimento: inventar,
responsabilizar, publicar. É o que faz o artista: vê algo único, se
responsabiliza pelo que viu – os girassóis de Van Gogh, as bandeirinhas de
Volpi, a Banda do Chico, os meninos do cais de Salvador, de Jorge Amado –
e publica sua visão, correndo o risco da boa ou má repercussão. É uma
responsabilidade ética, enquanto do particular, não moral, pois não se
adequa a qualquer modelo de comportamento.
Nesse movimento, a família ganha novo status. Em vez de ser o lugar onde
se ganha coisas - semanadas, carros, presentes os mais diversos -, o que
se ganha mesmo, a maior herança, é a castração, um dos nomes do real.
Em algum lugar Lacan chegou a dizer que não adianta a ninguém trocar de
família, especialmente de pais, imaginando que terá seus problemas
102
resolvidos. Eles reapareceriam iguaiszinhos se isso fosse possível. Família é
daquilo que todo mundo se queixa – boa definição - e se o fazemos é
porque ela não oferece o que dela, especialmente dela, gostaríamos de
receber: o nome do desejo. Isso fica mais evidente em um mundo
despadronizado. Insisto, seja ela como for constituída - por cama, ou
proveta; hetero ou homossexual; parceira ou monoparental -, família é a
instituição humana que tem a capacidade de fazer com que nos
confrontemos ao real da nossa condição: a falta de uma palavra já pronta,
prêt-à-porter, que nomeie o desejo de cada um.
É para um mundo sem orientação standard que discutimos Família e
Responsabilidade, tema desse VII Congresso Brasileiro de Direito de
Família, a cuja coordenação agradeço o convite para fazer essa conferência
de abertura.
Qual Família e qual Responsabilidade? Impõe-se a pergunta. Uma família
que nos depare com a “miséria criativa” da condição humana – miséria de
sentido, criativa de invenção – e uma responsabilidade não frente ao
conhecido, ao que deveria ser, não uma responsabilidade do controle e da
disciplina que chegou a inspirar Freud no conceito de superego, mas um
novo tipo de responsabilidade frente ao acaso e à surpresa. Saímos da
época do Freud explica e entramos na época do Freud implica.
É curioso ver as tentativas desesperadas daqueles que de alguma forma
querem recuperar o sentido perdido da era anterior, não suportando
estarem ligados no ressoar dos sentidos múltiplos. Acabam divinizando a
matéria ou o espírito, aliás, como se essa dicotomia ainda fosse válida. Na
matéria, assistimos o endeusamento da biologia, especialmente as
pesquisas do genoma, esperado como se fosse uma astrologia científica, os
genes, agora, nos papéis antes dados aos astros celestes na determinação
das vidas. O genoma seria a nova carta astrológica com sanção científica.
Por outro lado, explodem desde movimentos fundamentalistas religiosos -
em todas as religiões, não somente nos risíveis e preocupantes exorcismos
televisivos de nossas madrugadas - até os mal chamados livros de “auto-
ajuda”, que infestam as prateleiras das livrarias dos aeroportos e das
rodoviárias.
Nessa paisagem, o tema Família e Responsabilidade, que será discutido
aqui nesses dias, é crucial.
Se conseguirmos uma Família que suporte e transmita o fato - claro à nossa
sensibilidade, obscuro à nossa compreensão – que, para estarmos juntos,
para nos amarmos, não precisamos nos compreender, faremos que o
Homem Desbussolado deixe de temer o século XXI. Não há nada a se
compreender na delícia de um banho de cachoeira, na preocupação de um
pai com um filho, na declaração de amor: Eu te amo. Não há nenhum por
que, e se fosse explicado, perderia o sentido do afeto. Uma frase de união
de um casamento poderia ser: “E que fiquem juntos até que a compreensão
vos separe”. Não se pode entender o amor, motivo de ter pensado como
título dessa fala: “Família, um amor sem palavras”, para explorar todas as
possibilidades da polissemia dessa expressão.
Se um dia a psicanálise promoveu o diálogo compreensivo e humanizador,
as mudanças dos tempos nos exigem um esforço a mais no sentido de uma
renovação ética.
103
Em passeio por alguns autores que se debruçaram sobre essa questão,
vejam o que encontrei. Luc Ferry, ao defender, recentemente, em seu livro
Famílias, amo vocês, a idéia aparentemente contraditória de uma
transcendência na imanência, escreve:
Ora, o humanismo pós-nietzschiano que proponho se baseia na
constatação de uma exterioridade ou transcendência radical de valores,
esse humanismo afirma que elas não se manifestam em nenhum outro
lugar a não ser na imanência da consciência. Eu não invento a verdade,
a justiça, a beleza ou o amor, em os descubro em mim mesmo, mas,
entretanto, como algo que me ultrapassa e que me é, por assim dizer,
dado desde fora, sem que eu possa identificar o fundamento último
dessa doação (Ferry, 2008, p. 98-99).
Já Giorgio Agambem, em suas Profanações, aborda esse ponto pelo viés da
“Magia e Felicidade”, provocando:
Mas de uma felicidade de que podemos ser dignos, nós (ou a criança em
nós) não sabemos o que fazer. É uma desgraça sermos amados por uma
mulher porque o merecemos! E como é chata a felicidade que é prêmio
ou recompensa por um trabalho bem feito! (Agambem, 2007, p. 23-25).
Faz-se necessário entender tamanho ataque ao senso comum, que
questiona os princípios elementares da educação das crianças e a boa
postura dos adultos. A resposta está no fato de que “Quem é feliz não pode
saber que o é; o sujeito da felicidade não é um sujeito, não tem a forma de
uma consciência, mesmo que fosse a melhor” (Agambem, 2007, p. 23-25).
Dois aspectos são aqui relevantes. Primeiro: felicidade não progride, nem se
acumula, pois se assim fosse acabaríamos estourando em sua plenitude.
Pensar então que hoje somos mais felizes que nossos antepassados é tão
falso quanto o contrário, que ontem é que era bom, como insistem os
saudosistas. Segundo: a felicidade se dá no acaso, no encontro, na
surpresa, daí dizer que ela foge à consciência, que ela é uma magia. À sua
maneira, Agambem trata da transcendência na imanência, proposta por Luc
Ferry.
Isso nos leva a Hans Jonas, no seu fundamental estudo Princípio
Responsabilidade. Atenção: Princípio Responsabilidade e não “da”
Responsabilidade. Princípio Responsabilidade da mesma forma que dizemos
Princípio Divino ou Princípio Racional. Para ele, necessitamos de uma nova
ética calcada no Princípio Responsabilidade.
Com efeito – diz ele – é uma das condições da ação responsável não se
deixar deter por esse tipo de incerteza, assumindo-se, ao contrário, a
responsabilidade pelo desconhecido, dado o caráter incerto da
esperança; isso é o que chamamos de “coragem para assumir a
responsabilidade” (Jonas, 2006, p. 351).
Finalmente, Jacques Lacan. Uma sentença esclarece sua posição: “Por
nossa condição de sujeito somos sempre responsáveis” (Lacan, 1955-56, p.
873). “Sempre”, diz ele, não de vez em quando ou dependendo da
intenção, do conhecimento ou de qualquer outra variável. Se o sujeito é
sempre responsável, não haverá sujeito sem responsabilidade. Isso abre
uma interessante questão para os advogados: “Como separar o
responsabilizar do penalizar?” Em psicanálise é o que fazemos quando, nos
tempos de hoje, do Freud implica, levamos o analisando à conseqüência
responsável do que diz. Alguém pode, por exemplo, em uma sessão de
104
segunda-feira, dizer que ficou pensando no fim de semana e que concluiu
ser “Um péssimo marido, um pai meia boca e um amante infeliz”. O
analista, contrariando expectativas clássicas de relançamento de discurso,
do gênero “ O que o levou a essa conclusão?”, simplesmente diz: “ O fato
do senhor dizer que é um péssimo marido, um pai meia boca e um amante
infeliz, não diminui em nada o fato que o senhor seja um péssimo marido,
um pai meia boca e um amante infeliz”. Essa intervenção é surpreendente
para os muitos que estão habituados a pensar que somos irresponsáveis
frente ao inconsciente, haja vista a consagrada expressão de desculpas: “Só
se foi o meu inconsciente”. Pois bem, o homem desbussolado continuará
sem rumo se não lhe oferecermos a responsabilidade frente ao acaso, à
surpresa, enfim, frente ao seu inconsciente, e a família é aí o fórum
privilegiado, diria mesmo, essencial. Lacan apostava que seria possível
tocar no ponto íntimo de vergonha do analisante; não vergonha social
frente ao outro, mas uma vergonha íntima sem a qual a vida fica nua, sem
qualidade, desqualificada. A família é a primeira intimidade de cada um,
sua “extimidade”, se preferirmos o trocadilho de Lacan. A família funda a
extimidade de cada pessoa.
É por esse caminho que seguem nossas atuais reflexões sobre Família e
Responsabilidade, no domínio da psicanálise. Será que elas podem ser
úteis em questões como a que hoje espera decisão no STF, do julgamento
de um pai ausente? Espero que elas renovem uma antiga história de
colaboração de advogados com psicanalistas. Aliás, uma curiosidade: Freud
estava em dúvida até o último momento se cursaria direito ou medicina,
tendo finalmente escolhido a medicina e criando a psicanálise para advogar
a causa do sujeito do inconsciente, o desejo, dando-lhe cidadania.
Notas
Referências bibliográficas
105
FORBES, J. (2004) A Psicanálise do Homem Desbussolado - As reações ao futuro e
o seu tratamento. Texto disponível em
http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=72
_______. (2008) Felicidade não é bem que se mereça. Disponível em
http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=143
JONAS, H. (2006) O Princípio Responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto,
351.
LACAN, J. (1955-56) A ciência e a verdade, in LACAN, J. (1998) Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., p. 869-892.
106
CRIMINOLOGIA LACANIANA1
LACANIAN CRIMINOLOGY
Serge Cottet
Doutorado de Estado em Letras e Ciências Humanas
Professor Titular do Département de Psychanalyse de Paris VIII
Analista Membro da École de la Cause Freudienne
Membro da Associação Mundial de Psicanálise
scottet@freesurf.com.fr
Resumo
Nós nos propomos atualizar o texto de Lacan “Introdução teórica às
funções da psicanálise em criminologia” escrito em 1950. No cruzamento
da clínica e da política, o crime questiona uma realidade social que tem,
na época, o papel que será atribuído mais tarde ao Outro simbólico. Uma
realidade que prima sobre a psicologia do criminoso; razão a mais para
sublinhar a homologia entre a formulação daquela época e a implicação
da psicanálise na cidade atualmente. O texto nos orienta, não somente
sobre uma clínica do ato criminoso, mas ele põe à prova, ao mesmo
tempo, a necessidade de introduzir na psicanálise o conceito de
responsabilidade.
Palavras-chave: psicanálise, criminologia, supereu, sociedade,
responsabilidade, objeto a.
Abstract
We shall update the text of Lacan called “Theoretical introduction to the
functions of psychoanalysis in Criminology” written in 1950. At the
crossroads between clinic and politics, the crime questions a social
reality that has at the time, the role that will later be given to the
symbolic Other. A reality that is primal on the criminal’s psychology, all
the more reason to underline the similarity between the formula in those
days and the implication of psychoanalysis in the city these days. The
text guides us not only about a clinic of the criminal act, but it also puts
to the test, at the same time, the need to introduce in psychoanalysis
the concept of responsibility.
Keywords: psychoanalysis, criminology, superego, society, responsibility,
object a.
107
Nós nos propomos atualizar o texto de Lacan “Introdução teórica às funções
da psicanálise em criminologia”, escrito em 1950. Esta data mítica da
história da França é também tão mítica para a psicanálise? Não totalmente,
se a subversão lacaniana começa com o estruturalismo, ou seja, em 1953.
No entanto, os problemas jurídicos agitam bastante a época e o pós-guerra
para que se considere o artigo de Lacan contextualizado, e, ao mesmo
tempo, canônico. Diante dos problemas sociais levantados nos dias de hoje
não é pouco dizer que este artigo encontra muito do seu frescor: os
manicômios judiciários, a penalização do doente mental, a modificação do
código civil, a intervenção dos psicanalistas na prisão, etc. Todos esses
problemas são abordados, desde esta data, por Lacan, revelando um
sintoma social. Quer dizer, a modernidade da formulação, a despeito de
uma conceituação pós-freudiana anterior. Antes de Michel Foucault, Lacan
demonstra até que ponto o tratamento e a penalização do crime dependem
da estrutura do poder estabelecido. No cruzamento da clínica e da política,
o crime questiona uma realidade social que tem, na época, o papel que será
atribuído mais tarde ao Outro simbólico. Uma realidade que prima sobre a
psicologia do criminoso; razão a mais para sublinhar a homologia entre a
formulação daquela época e a implicação da psicanálise na cidade
atualmente (Miller, 2008). O texto nos orienta, não somente sobre uma
clínica do ato criminoso, mas ele põe à prova, ao mesmo tempo, a
necessidade de introduzir na psicanálise o conceito de responsabilidade.
O artigo faz parte do período “sociológico” do Lacan pré-estruturalista, se
entendemos desse modo os textos dos anos de 1938 a 1950, antes do
Congresso de Roma. Ainda se percebe nele os ecos do texto “Os complexos
familiares na formação do indivíduo” (1938) e de sua inspiração
durkheimiana. É sobre o fundo do declínio paterno e da decomposição da
família que a questão do direito e da justiça intervém em tensão com o
supereu individual. O direito vem primeiro e o crime lhe é relativo antes de
sê-lo o ato do criminoso. Lacan conduz, nessa ocasião, à palavra de São
Paulo: não existe pecado antes da lei. A dialética do crime e da lei
atravessa, assim, a maioria dos capítulos.
Como fato social, no sentido de Durkheim, o crime constitui o objeto de
representações coletivas, que definem o campo da responsabilidade. Essa
noção é socialmente relativa, uma vez que a instância reconhecida como
culpada (o indivíduo ou o grupo) varia, evidentemente, com as sociedades.
Um durkheimiano como Paul Fauconnet, evocado em “Complexos
familiares” (Ibid., p. 32), busca assim definir um conceito de
responsabilidade sem relação às disposições psicológicas dos sujeitos, em
conformidade com as visões de seu mestre, como fenômeno social normal:
“Uma análise puramente psicológica não poderá jamais conduzir, por ela
mesma, à determinação da idéia de responsabilidade. Pois a
responsabilidade é manifestamente uma coisa jurídica ou moral. Se
supomos que não existe nem direito nem moral, jamais a psicologia será
levada a falar de responsabilidade, mas somente de pessoas, de vontades
normais ou doentes” (Fauconnet, 1928, p. 33-34). Não demora muito para
que a própria sociologia dê lugar ao “assentimento subjetivo” (Lacan,
1950a, p.128) requisitado na significação da responsabilidade, como
estabelece Malinowski na sua obra O crime e o costume nas sociedades
selvagens (1926).
108
A publicação, em 1950, de L’univers morbide de la faute de Angelo
Hesnard, também companheiro de Lacan em seus conflitos políticos com a
SPP, reintroduz o lugar da ética individual e da culpa na sua tensão com a
lei social. A morte de Marcel Mauss, neste mesmo ano de 1950, contribui
para evidenciar a subordinação do ato criminoso à representação coletiva;
tal como Lacan o diz no título do capítulo II, é questão “da realidade
sociológica do crime e da lei e da relação da psicanálise com seu
fundamento dialético” (Lacan, 1950a, p. 128).
O supereu empuxo-ao-crime
A contribuição específica da psicanálise à criminologia reside,
essencialmente, na refutação dos “instintos criminosos” (Ibid., p. 148) e de
toda abordagem constitucionalista, em proveito de um complexo específico
que Lacan encontra em Kate Friedländer, o “caráter neurótico”,
concernindo, especialmente, ao psicopata. Trata-se, realmente, de uma
identificação. Após os trabalhos de Aichhorn (1973) sobre os delinqüentes,
Lacan aquiesce à efetividade de uma instância superegóica que empurra ao
crime e à transgressão. Ele refuta assim todo inconsciente criminoso ao
qual aderem ainda os freudianos Alexander e Staub (1938). É a
identificação da criança ao adulto criminoso que justifica um Ideal do eu
viciado com relação à norma paterna. Lacan recorre ainda ao conceito de
Kate Friedländer, característico dos efeitos produzidos pela posição associal
do grupo familiar (1998). São nas formulações de 1938 que encontramos
justificativas para as frustrações pulsionais “que estariam como que retidas
num curto-circuito na situação edipiana” (1950a, p. 136). O sintoma de
roubo na criança atesta esta articulação com o simbolismo pulsional (Klein,
1968).
É no supereu que se reflete o complexo familiar e, particularmente, a
anomalia de estrutura (Lacan, 1950a, p. 135), presente em sua tese de
1932, assim como em “Os complexos familiares”. O desregramento dessa
instância está ligado às “condições sociais do edipianismo” (Ibid., p. 137). O
supereu é definido como “esta raiz truncada da consciência moral” (Lacan,
1950b, p. 128), que a norma edipiana não pôde regular. Ele estará
claramente disjunto do Nome-do-Pai e da lei em 1954, em O Seminário,
Livro 1: o supereu provoca discordância e cisão da ordem simbólica (1953-
54, p. 226-227). Ele inclui uma versão autopunitiva que os pós-freudianos,
como Theodor Reik (1997), tinham contribuído para elucidar. Essa hiância
na estrutura do simbólico faz toda a ambigüidade do conceito de culpa, que
desencadeia a manifestação psicopática.
A entidade “neurose de caráter” indica que o artigo não é nem
especialmente orientado pelas relações do crime com o delírio, como é o
caso de sua tese de psiquiatria (1932), nem sobre os crimes sexuais, e,
ainda menos sobre os serial killers. São os problemas da delinqüência após
a guerra que orientaram os psicanalistas: a lei sobre os menores, o fim das
casas de correção, etc. A responsabilidade é um conceito trans-clínico, e, ao
mesmo tempo, jurídico e ético. Fora sua definição pela lei positiva, Lacan
busca para este conceito um estatuto menos contingente no sujeito.
Dir-se-ia, hoje, que é uma falha no simbólico que religa o supereu ao social.
Se o artigo de Lacan tem seu ponto de partida na neurose, os efeitos do
109
supereu valem também para os psicóticos e para os perversos. A orientação
clínica, realmente, é trans-estrutural; trata-se da tensão entre o sujeito e a
lei social e não da presença ou da ausência de um significante do Outro. O
supereu tem ao menos um pé no Outro social. Não é certo que, nessa
época, Lacan faça uma distinção clara entre crime neurótico e crime
psicótico. Bem entendido: nem todo crime revela uma psicose. O conceito
de psicopata, que cruza com os dois precedentes, é largamente utilizado na
época. Para além da crítica das concepções sanitárias e profiláticas
concernindo à criminalidade, Lacan centra sua formulação sobre a
simultaneidade dos progressos da época com a desumanização do
condenado. De fato, “a significação expiatória do castigo” se atenua: a
sociedade não consegue mais justificá-la (Lacan, 1950a, p. 139). A
propósito de Nuremberg e, particularmente, do julgamento dos crimes
nazistas, Lacan tem reservas sobre o efeito sanitário desse processo (Ibid.,
p. 136, 139, 148). Ele deixa entender que a culpa objetiva dos criminosos
não toca verdadeiramente as intenções, enquanto que o testemunho de
uma Melitta Schmideberg dá acesso ao “mundo imaginário do criminoso”
(Ibid., p. 137). Mais à frente, ele observa o próprio apagamento das noções
de criminoso e de responsável (Ibid., p. 147).
O relativismo social e jurídico da definição de responsabilidade pode ser,
desde então, contradito pela psicanálise: “a psicanálise, pelas instâncias
que distingue no indivíduo moderno, pode esclarecer as vacilações da noção
de responsabilidade em nossa época e o advento correlato de uma
objetivação do crime para o qual ela pode colaborar” (Ibid., p. 129). Essas
vacilações são mais fortes na medida em que a falta não é a mesma, seja o
crime considerado como utilitário ou como expressão de um gozo pulsional
(Miller, 2007, p. 13). Elas refletem a ambigüidade que a psicologia dá à
avaliação da responsabilidade. Ela patina entre o que vem do indivíduo e o
que vem do meio familiar ou social. Essas questões cruciais, na época,
podem ser esclarecidas pela psicanálise, que desnuda, desde Freud com a
segunda tópica, os conflitos entre as instâncias: uma espécie de tribunal
subjetivo. Para esquematizar: eu, isso, supereu. Na sua tese, Lacan
distinguia assim os crimes do eu e os crimes do isso (1932, p. 306). Esta
distinção já recobre os crimes de autopunição, como aquele de Aimeé, e os
crimes impulsivos e imotivados dos esquizofrênicos, descrito por Guiraud
(Guiraud & Cailleux, 1928, p. 352-359). Uma tipologia da responsabilidade
deverá ser deduzida dessa distinção.
A tese de 1932 defende a necessidade de uma avaliação que “precise” o
perigo, em função do diagnóstico (Lacan, 1932, p. 307). Sobre este ponto,
lembramos que Lacan afirma quanto ao perigo das reações agressivas da
psicose paranóica e fala de sua “preferência pela aplicação comedida de
sanções penais para esses sujeitos” (Ibid., p. 308). No entanto, os artigos
de 1950 não se apóiam, essencialmente, sobre a psicose, mas sobre a
contribuição que a psicanálise pode trazer para a avaliação da
responsabilidade, noção ainda bastante relativa à pressão da opinião, e à
vontade de punir, mais do que de cuidar. Ele faz aparecer a cena imaginária
do crime, confundida, na época, com “a” simbólica.
110
Simbólico do crime
Subordinando o ato criminoso a um cenário simbólico, poder-se-ia
considerar que Lacan “põe lenha na fogueira” da irresponsabilidade. No
entanto: “se a psicanálise irrealiza o crime, ela não desumaniza o
criminoso” (1950a, p. 131). A fórmula pode parecer paradoxal. Pensa-se,
principalmente, que a irrealidade reclama em favor da responsabilidade.
A irrealidade é uma palavra da época, marcada pelo existencialismo
sartriano. Lacan faz alusão a Lagache que, em sua tese sobre o ciúme
amoroso (Lagache, 1987)2, se refere às condutas mágicas de Sartre, à
“função irrealizante” da consciência (Sartre, 1938 e 1940). O que ele
mesmo chama de as “condutas imaginárias” encontra, certamente, sua
referência na fenomenologia de Sartre e de Merleau-Ponty, que também
não ignora Hesnard.
Portanto, a referência à sociologia domina as teses existencialistas. Ela
permite a introdução do simbólico como estrutura. Realmente, se o
imaginário está referido ao indivíduo, o simbólico concerne à estrutura da
sociedade: “as estruturas da sociedade são simbólicas; o indivíduo, na
medida em que é normal, serve-se delas em condutas reais; na medida em
que é psicopata, exprime-as por condutas simbólicas” (Lacan, 1950a, p.
134).
Essa frase resume a teoria antropológica do simbolismo elaborada por
Marcel Mauss. Como se sabe, Lévi-Strauss escreveu um célebre prefácio a
sua obra Sociologie et anthropologie (Mauss, 1950), que Lacan,
necessariamente, leu. Ele afirma claramente que “as condutas individuais
normais não são jamais simbólicas por elas mesmas: elas são os elementos
a partir dos quais um sistema simbólico, que só pode ser coletivo, se
constrói. São apenas as condutas anormais que, por serem de-socializadas
e, de alguma forma, abandonadas a si mesmas, realizam, sobre o plano
individual, a ilusão de um simbolismo autônomo” (Lévi-Strauss, 1950, p.
XVI-XVII).
Lacan faz sua esta subordinação da psicologia ao social, que será
substituída, na época estruturalista, pela subordinação do sujeito ao
significante: o que substitui a discordância entre significante e significado é
o supereu e o lugar da significação pessoal. Como o sintoma obsessivo é
uma religião privada, segundo Freud, e como a emoção é “uma conduta
mágica”, desde Sartre, o crime participa da mesma condensação do geral
no particular. Aqui, a gênese social do supereu, já empregada na tese, é
confirmada. Na época, é a interpretação edipiana que fornecia a chave do
caráter simbólico do ato. Se o crime é real, isso não impede que ele seja
“realizado numa forma edipiana”. A forma edipiana (Ibid., p. 133) é, em
suma, por antecipação, o mito individual, o coletivo interpretado pelo
complexo.
O caso de Mme. Lefebvre, publicado por Marie Bonaparte (1927) ilustra da
melhor maneira esse avatar individual do Édipo. Em 1925, Mme. Lefebvre
assassina sua nora grávida. Marie Bonaparte só tem à sua disposição os
significantes edipianos para esclarecer essa patologia: ódio da mãe,
complexo de castração, frigidez. Todavia, reconhece Bonaparte, ela não
compreende nada disso. No entanto, a conjuntura do ato pode ser
reconstruída a partir de uma estrutura quadrangular do tipo esquema Z. Na
111
medida em que o filho pertence à nora, Mme. Lefebvre desenvolve em
relação a ela uma hostilidade ciumenta. O ódio assassino só se cristaliza a
partir do momento em que a presença real do falo entra em cena. Mais uma
vez, é a natureza da cura que explica a natureza da doença, a saber: o
desaparecimento dos sintomas hipocondríacos, tão logo o assassinato
concluído (os órgãos descidos após a menopausa acompanham o alívio do
dever cumprido). É a “cura pelo crime”, diz ela, “eu não tenho mais
aborrecimentos”. A imagem invertida do ventre fecundo assinala o
transitivismo de sua relação, a agressão suicida, o ideal que ela toca. O
caso pode ser simplificado sem o recurso de uma selva de símbolos, como
faz o “velho Freud” e com a qual Marie Bonaparte orna o caso. Ainda que a
interpretação da imagem fálica do revólver não pareça supérflua, como
quarto elemento no trio: mãe, filho, nora. A qualificação de mãe incestuosa
por Marie Bonaparte é acompanhada de uma observação que Lacan não
desaprovaria: “em toda mãe, bem no fundo do inconsciente, existe, mesmo
que inexprimível, um pouco de Jocasta e de Mme Lefebvre” (Bonaparte,
1927, p. 161).
O ato, por mais horrível que seja, se encontra humanizado pela integração
do sujeito no universo da falta. O incesto é universal. É no mesmo sentido
que os homicídios imotivados, descritos por Guiraud, demonstram seu
caráter “de agressão simbólica”: “o sujeito quer matar aqui não mais seu eu
ou seu supereu, mas sua doença ou, mais geralmente, “o mal”, o kakon”
(Lacan, 1932, p. 307). A “cena do crime” é, conseqüentemente, simbólica,
no sentido edipiano. É um traço que o opõe ao crime do “isso” de Guiraud.
Mesmo que Lacan o qualifique de “agressão simbólica”, permanece-se na
relação imaginária. Assim, no caso Aimeé a equivalência entre simbólico e
imaginário é confirmada: as perseguidoras são as “‘tiragens’ de um
protótipo” (Ibid., p. 253). Realmente, “o objeto que Aimeé atinge só tem
um valor de puro símbolo” (Ibid., p. 254). Em 1950, Lacan insiste sobre
essa irrealidade como elemento para levar em conta na avaliação da
responsabilidade do sujeito.
Os especialistas Sérieux e Capgras (1909) foram encarregados, para a
defesa de Mme Fefebvre, de fazê-la beneficiar-se do artigo 64, sem
sucesso. Lacan deve se lembrar disso quando constata que, em muitos
casos, o especialista psiquiatra conclui a favor da normalidade, a despeito
de signos evidentes de paranóia.
A psicanálise é então investida de um duplo papel: primeiramente,
demonstrar o caráter “simbólico do crime”, quer dizer, na época, o
desconhecimento no sujeito da estrutura edipiana de seu ato. O sujeito é
assim humanizado e reinscrito no universal edipiano, mesmo se lhe dão
uma interpretação privada. Segundo, numa intenção polêmica, a
interpretação do ato revela mais ou menos as próprias tensões da
sociedade ou, mais ainda, “a função criminogênica” da sociedade; é o que
ele já tinha estabelecido no artigo de 1948, “A agressividade em
psicanálise”.
112
Função criminogênica da sociedade (Lacan, 1950a, p. 146)
O artigo “A agressividade em psicanálise” faz parte dessa intenção crítica
característica do pós-guerra. Ele permanece solidário às referências
sociológicas. Lévi-Strauss cita esse artigo no seu prefácio a Marcel Mauss. O
comentário valoriza a incompletude do simbólico: “resulta que nenhuma
sociedade jamais é integral e completamente simbólica; ou, mais
exatamente, que ela jamais chega a oferecer a todos seus membros, e no
mesmo grau, o meio de se utilizar plenamente da edificação de uma
estrutura simbólica” (Lévi-Strauss, 1950, p. XX). Lacan combina a dialética
hegeliana com o que ele chamará ainda “agressão suicida do narcisismo”
(Lacan, 1948, p. 176). Estabelece-se, desde “Os complexos familiares”, que
a sociedade reforça essa tendência que faz do homem “liberado” da
sociedade moderna a vítima de um despedaçamento, que “revela, até o
fundo do ser, sua pavorosa fissura” (Id., 1938, p. 126). Nesse contexto, as
seqüências sociais de fracasso e de crime costeiam a neurose de
autopunição, os sintomas histérico-hipocondríacos, as inibições funcionais.
A esse respeito Lacan evoca uma “fraternidade discreta”, em oposição à
“galé social”, de onde surge esse “ser de nada” (ibid.). As manifestações
mais degradadas do supereu resultam, em todo caso, das tensões
agressivas prometidas pelas exigências da integração. A contradição é
evidente entre o ideal individualista e o peso da colaboração social. Está
estabelecido que: “os indivíduos descobrem-se tendendo para um estado
em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as mesmas coisas nas
mesmas horas, em porções do espaço estritamente equivalentes” (Lacan,
1950a, p. 146). Pelo ideal individualista, Lacan considera nem mais nem
menos que o ideal proposto revela “uma implicação crescente das paixões
fundamentais pelo poder, pela posse e pelo prestígio nos ideais sociais”
(Ibid.). Uma vez mais, o crime sustenta suas coordenadas simbólicas na
sociedade. É o microcosmo da alma em relação ao macrocosmo da cidade
de Platão.
É assim que a “anarquia [...] das imagens do desejo” se encontra
caricaturada no exemplo do Senhor Verdoux de Charles Chaplin. A
complacência de Chaplin em relação a Landru, muito mal percebida nos
Estados Unidos, após a guerra, ilustra a responsabilidade da ideologia do
grupo familiar e sua intrusão nos grupos funcionais (Ibid.).
Em seu livro consagrado a Landru, Francesca Biagi-Chai mostra bem que o
criminoso não escapa a uma concepção de dever. Landru tem o sentido de
família.
“Faz tudo por sua família, no entanto, não obedece a nenhuma lei
simbólica, mas funciona como um postulado, um dogma. O imperativo
que preside seu dever familiar, que, em outros tempos, teria se
qualificado de superegóico, é considerado, nessa obra, como
propriamente delirante” (Biagi-Chai, 2007, p. 49-50).
Quer dizer que o criminoso que Lacan descreve, naquela época, não está
desinserido, como se diria hoje. Os recursos da identificação simbólica
existem nele: ideais de justiça, de onipotência, idealista apaixonado,
reivindicador. Tais são as figuras privilegiadas. Ressaltam-se os criminosos
do eu, e não do isso, os crimes de interesse, e não de gozo. Como em
Durkheim, existem os suicidas com bastante integração da lei e existe o
crime que não é um fato associal.
113
Essa normalidade do crime conduz Lacan a prestar atenção nos casos
revelados por Hesnard, segundo o qual, sobre uma importante fração dos
criminosos, não se encontra “absolutamente nada que se destaque como
anomalia psíquica” (Lacan, 1950b, p.128). O argumento é semelhante
àquele utilizado em sua tese a propósito de um caso de psicose com
impulsão-suicida. Uma hiper-normalidade serve, de fato, de defesa contra
uma pulsão criminosa “recalcada”. Em determinado momento, “o futuro se
lhe afigurou fechado. Ele não quis abandonar os seus às suas ameaças, e
começou o massacre”. Este sujeito tinha levado uma vida exemplar até aí:
“pelo controle de si, pela doçura manifesta do caráter, pelo rendimento
laborioso, e pelo exercício de todas as virtudes familiares e sociais”. Apenas
o exame analítico revela a submissão aos imperativos morais, servindo de
cobertura, desde a infância, à efervescência do ódio (Id., 1932, p. 303).
No entanto, Lacan não sustenta Hesnard até o fim e faz a diferença entre a
descrição de um psicopata pelo psiquiatra e pela investigação psicanalítica.
O psicanalista reconhece aí, por certos traços do eu, as características da
paranóia: “idealismo egocêntrico, sua apologia passional e essa estranha
satisfação do ato consumado em que sua individualidade parece encerrar-se
em sua suficiência” (Id., 1950b, p. 129).
Aí, ainda, é a hipernormalidade que domina como a psicanálise descobrirá
no idealismo passional a estrutura paranóica. Esses “criminosos do eu” não
são menos “as vítimas sem voz de uma crescente evolução das formas
diretivas da cultura rumo a relações de coerção cada vez mais externas”
(Ibid.). Vítimas: a palavra é forte. É na medida em que a sociedade os toma
como bodes expiatórios para inocentar uma opinião pública “que se
compraz tanto mais em tomá-los por alienados quanto mais reconhece
neles a intenção de todos” (Ibid.). Observa-se, a propósito do caso de Mme
Lefebvre que, quando de seu processo, levantou gritos da vingança popular.
Lembremos também do caso de Christine Villemin, cuja acusação infanticida
parecia plausível para um grande público, mas não sem a fascinação por
esse horror, a exemplo de Marguerite Duras. Entre a alienação mental que
a falta de provas conduz e a condenação sob a pressão de uma ideologia, o
psicanalista segue a estreita via que atribui responsabilidade ao criminoso.
A responsabilidade
Na sua tese, Lacan colocava o problema assim: a psicanálise é a única
capaz de avaliar os modos de resistência do sujeito às pulsões agressivas.
Esta “avaliação rigorosa”, essencial à imputação da responsabilidade penal,
é perfeitamente ignorada do ponto de vista positivista. A nova clínica
introduzida por Lacan, a saber: a presença ou a ausência do determinismo
autopunitivo, é a única “base positiva, que requer uma teoria mais jurídica
da aplicação da responsabilidade penal” (Lacan, 1932, p. 308). São as
psicoses de autopunição na sua especificidade que justificam para Lacan
“nossa preferência pela aplicação comedida de sanções penais para esses
sujeitos” (Ibid.).
Parece que essa posição deve muito a Tarde. Pode-se ficar surpreso com
essa referência a sua Philosophie pénale (Tarde, 1890)3. Considerado como
sociólogo anti-durkheimiano e ainda muito célebre na época, Tarde,
magistrado, juiz de instrução em Sarlat nos anos 1900, filósofo em alguns
114
momentos, procura avaliar a responsabilidade individual fora de toda
sugestão de grupo; a imitação não priva o homem de sua identidade.
Tarde, cuja erudição filosófica é importante, se confronta com a questão do
livre arbítrio. O positivismo da época o leva a opor responsabilidade e livre
arbítrio. Tarde pergunta: “Serei eu menos, realmente, porque eu sou
necessariamente?” (Ibid., p. 69). Ele acrescenta que: “Os psicólogos
atribuíram importância demais ao sentimento que nós temos de nossa
liberdade e não o bastante ao sentimento, bem mais sólido, que nós temos
de nossa identidade” (Ibid., p. 70). Não temos razão para privilegiar os
graus de liberdade à custa dos graus de identidade. Donde os aforismos: “A
grande questão, teórica e prática, ao mesmo tempo, não é de saber se o
indivíduo é livre ou não, mas se o indivíduo é real ou não” (Ibid., p. 24). A
importância do conceito de irrealidade se mede com esta declaração.
Lacan vai trazer à tona dois princípios célebres, que são: a identidade
individual e a similitude social na avaliação subjetiva da responsabilidade
(Lacan, 1950a, p. 140). À propósito da similitude social, Tarde escreve:
“Uma condição indispensável [...] para que o sentimento da
responsabilidade moral e penal seja despertado é que o autor e a vítima
de um fato sejam e se sintam mais ou menos compatriotas sociais, que
eles apresentem um número suficiente de semelhanças, de origem
social, quer dizer, imitativa. Esta condição não é preenchida quando o
ato incriminado emana de um alienado, de um epiléptico no momento
do acesso” (Tarde, 1890, p. 71).
Realmente, o conceito de autopunição implica paradoxalmente essa
identidade. É o que resume a fórmula “é a ti mesmo que atinges” (Lacan,
1950a, p. 149) que domina todos os escritos de Lacan sobre o imaginário
da criminalidade. Assim, a concepção psicanalítica de alienação não escapa
tanto ao princípio de Tarde. O desconhecimento implica o sujeito na medida
em que a alienação dos psiquiatras é sempre mais ou menos ligada à
degenerescência.
Em contraponto a Lombroso, Tarde refutará as invariantes físicas do
criminoso-nato e se interessará pelos grupos mafiosos. Ele distingue assim
o louco do criminoso, o primeiro “ser isolado, estranho para todos, estranho
para si mesmo, é por natureza não-sociável [...]. O criminoso, ele é anti-
social, e em seguida, sociável num certo grau” (2004, p. 44).
Tarde concluía que “A pessoa é tão mais culpada [...] quanto mais adaptada
a si mesma e ao seu meio [...], quer dizer, se é mais maduro e mais
verdadeiramente si mesmo” (1892, p. 321). Dentro de um espírito dialético,
ele considera que identidade pessoal e similitude social progridem em
sentidos opostos:
“a similitude social sentida vai se estendendo sem cessar, a ponto de
abraçar a humanidade inteira [...] a outra condição da responsabilidade,
a identidade pessoal, se aprofunda, graças às descobertas da medicina
mental.” (Ibid., p. 331).
Sabe-se que Lacan não tira as mesmas conclusões: a implicação do
inconsciente dá a extensão da identidade pessoal, dividindo o sujeito. É por
isso que, tratando-se do caráter coercitivo da “força” que acarretou o ato do
sujeito, é necessário descobrir: “quem sofreu a essa coerção?” (Lacan,
1950a, p.141). Lacan assinala que a psiquiatria coloca essa força como um
absoluto e não como uma vontade. Não é a mesma coisa estar sob as
115
ordens de um ideal justiceiro no delírio de querelância e ser o sujeito de
uma brutal impulsividade sem lei como nos crimes imotivados. Toda a
concepção mecanicista é criticada através do conceito de personalidade; a
pulsão criminogênica não pode ser assimilada a uma força superior ao eu. A
força deriva de uma convicção. Com relação a isso, o gozo e o imperativo
categórico são uma só e mesma coisa (Id., 1963, p. 794). Do axioma
segue-se o ato, como diria De Clérambault.
Que se queira que os móveis e os motivos do crime sejam compreensíveis,
e “compreensíveis para todos” (Id., 1950a, p. 140), é importante que um
conceito os esclareça no lugar de referências sentimentais em que se
afrontam ministérios públicos e advogados; pouco valor é dado à avaliação
objetiva do especialista.
Este último é, freqüentemente, incapaz de estabelecer um diagnóstico
favorável a uma conclusão de irresponsabilidade. Lacan dá o exemplo de
um ato de exibicionismo em um obsessivo. O especialista, em desespero de
causa, dado que o sujeito é capaz mentalmente, quer demonstrar a
irresponsabilidade a partir de um exame apenas físico. Não quer ver o
sentido inconsciente do seu acting out. Lacan recorre sempre à
“compreensão”, mas da boa maneira: dialetizando as relações entre o ato e
a coerção da força a partir de uma doutrina do acting out, quer dizer, de
uma travessia selvagem do fantasma quando as referências simbólicas se
dissolvem. É o que Lacan estabelecerá no seu Seminário sobre a relação de
objeto (1956-57, p. 165).
Entretanto, essa demonstração vale, sobretudo, para os crimes de
alienação, aqueles que traduzem um desconhecimento pelo sujeito do apelo
à punição. Pode-se, no entanto, interrogar o conceito de psicose
autopunitiva como testemunha da acessibilidade dos criminosos a uma lei
distinta da do supereu. Sem dúvida, o fato de que o delírio de Aimeé se
dissipa quando esta é internada, marca a dialética que existe entre o crime
e sua punição. O problema é saber até que ponto essa dialética existe. De
fato, numerosos crimes paranóicos testemunham um alívio e uma
satisfação pelo ato, enquanto dever cumprido. No entanto, o delírio de
prejuízo ou a paixão ciumenta não se esvaziam por causa disso (Lacan,
1932, p. 305). É o caso de Mme Lefebvre. É também o que se destaca dos
exemplos fornecidos por Lagache na sua tese sobre o ciúme amoroso
Lagache, 1987, p. 605). Os crimes passionais se alimentam todos de um
forte sentimento de injustiça. Infelizmente, sob a influência do médico
legista De Greff (1937) e de sua referência à intersubjetividade, esquece-se
da pulsão, da “homossexualidade” e do interesse pelo rival, fundamento da
teoria psicanalítica do ciúme.
Na tese, Lacan mostrava a que ponto a pulsão criminosa é homogênea ao
delírio. O doente veste sua intenção homicida com motivos sublimes, éticos
e políticos. Assim, Aimeé recai no delírio depois de ter percebido, algumas
semanas depois do crime, quando estava na prisão, que ela atingira a si
mesma (Lacan, 1932, p. 254). Ela testemunhava então uma certa assunção
subjetiva de sua falta e, portanto, de sua responsabilidade. A prisão a
protege de suas tendências criminosas e, ao mesmo tempo, a pune. No
entanto, a pulsão infanticida permanece absolutamente desconhecida; ora,
sua loucura é emprestar ao Outro a intenção criminosa. Lacan evoca a
“perversão do instinto materno com a pulsão de assassinato” (Ibid., p.
116
266), mesmo se em 1932 o infanticídio não ocupe o centro da
demonstração (Alloouch. 1990, p. 244-245)4. Poder-se-ia, então, centrar o
delírio em torno da fuga para longe da criança. Assim, diz Dominique
Laurent, pode-se compreender “a cura como ligada à realização da perda de
seu filho no processo de autopunição” (Laurent, s/d, p. 137). Que lição tirar
da solução de Aimeé? Em um artigo consagrado à criminologia lacaniana, F.
Sauvagnat matiza a imputação de “juridicismo” que se poderia fazer a
Lacan (Sauvagnat, s/d, p. 50-55). As relações de Lacan com o artigo 64 do
Código penal deram lugar a comentários, segundo os quais Lacan não seria
favorável à sua aplicação sistemática. É um entrave com o qual se deparam
os extremistas da responsabilidade, que vêem no artigo 64 uma “dupla
foraclusão”. Não tendo que responder ao Nome-do-Pai, o criminoso louco
não seria, ao mesmo tempo, sujeito da lei positiva. É recusar-lhe toda
responsabilidade.
Tal argumento se funda no texto que segue, em alguns meses, a
“Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia”. Lacan
lembra que o “homem se [faz] reconhecer por seus semelhantes pelos atos
cuja responsabilidade ele assume” (1950b, p. 127). Regozija-se do fato de
que a morbidez verificada num caso permita ao delinqüente evitar a prisão.
No entanto, a punição tem um papel na retificação subjetiva. Lacan ressalta
que a cura do delinqüente passa pela “integração, pelo sujeito, de sua
verdadeira responsabilidade” (Ibid., p. 128). Que esta lhe seja acessível, se
verifica nos casos em que se pode demonstrar que a passagem ao ato era o
apelo a uma punição. É para esse tipo de crime que a psicanálise é
requisitada, pois ela é a única capaz de, nesses casos, “libertar a verdade
do ato, comprometendo com ele a responsabilidade do criminoso, através
de uma assunção lógica, que deverá conduzi-lo à aceitação de um justo
castigo” (Ibid., p. 129). É verdade que Lacan tempera esse tom de
procurador, ressaltando uma teologia da liberdade.
Lacan não perde a esperança por um despertar possível do criminoso e não
vê o psicótico, necessariamente, como incurável. Acontece que os
paranóicos se desarmam, ressalta ele, após Tanzi (Lacan, 1932, p.79, nota
96). Com relação a isso, ele se opõe a Kraepelin e a sua concepção de
estado terminal: a evolução deficitária. Valeria mais que a psicanálise
ajudasse no despertar, quando é possível; acontece também que a prisão
ajuda no que se refere ao tempo para compreender, como o indica o caso
de Juliette Boutonier, em 1950 (Lacan, 1950a, p. 145)5, em se tratando do
“despertar do criminoso para a consciência daquilo que o condena” (ibid.).
O texto de Lacan é, então, matizado e não impele a prender os loucos; o
argumento só concerne às psicoses ditas de autopunição. De resto, a teoria
da psicose, naquela época, não inclui a foraclusão, quer dizer uma teoria do
ato em ruptura com a personalidade. Freqüentemente ectópico a esta, o ato
não é dialetizável com o imaginário. A psicanálise, aliás, não tem que
intervir quanto à sanção do ato criminoso.
A humanização, dissemos isso, implica a responsabilidade. O que não quer
dizer que a irresponsabilidade desumanize necessariamente. Nada é mais
humano que um delírio passional. É a assunção da responsabilidade que
visa o castigo: o irresponsável pode se tornar responsável. A implicação do
sujeito no seu ato permanece, portanto, para Lacan, um elemento essencial
da penalização. Sua crítica aos especialistas vai nesse sentido. Na época da
117
psiquiatria “compreensiva” e anti-positivista, Lacan lamentava que se
recorresse tão pouco às luzes da psicanálise.
Crimes e psicoses
Os historiadores da criminologia consideram que o século XX é marcado
pelo declínio da loucura criminosa, quer dizer da imputação do ato a um
delírio psicótico. Renneville reconstituiu em detalhe os meandros dessa
história. Em 1968, George Heuyer se dedica a precisar que: “o psiquiatra
não reivindica, a priori, como doentes os delinqüentes e os criminosos”
(Renneville, 2003, p. 423). Para Heuyer, “não existem diferenças essenciais
entre a psicologia de um doente mental, de um delinqüente e de um
indivíduo considerado normal” (Ibid.). Ao menos, se dirá, essa continuidade
clínica favorece uma tendência à humanidade. O criminoso será tão mais
humanizado quanto se encontrar nele os recursos da psicologia mais geral.
Desse ponto de vista, os psiquiatras que recusam os critérios da psicose, se
baseiam numa psicologia da compreensão, critério lacaniano dos anos
trinta. Lacan utilizava, ele mesmo, os conceitos da intersubjetividade, antes
de chegar uma decifração da estrutura subjetiva caracterizada pelos
fenômenos elementares e pela significação pessoal. A compreensão é o que
todo mundo espera, tanto o público quanto os magistrados.
O mal-entendido persiste ainda mais quando “o crime dá a ilusão de
responder a seu contexto social” (Lacan, 1950a). É o caso das irmãs Papin,
cujo crime parece compreensível, sobre bases psicológicas ingênuas, tais
como a vingança social.
Lacan falou pouco do crime depois de 1950, no entanto, seus avanços sobre
a psicose e sobre o ato permitem considerar outras causas para o crime que
aquelas da autopunição. Já criticada no texto “Formulações sobre a
causalidade psíquica”, de 1946, Lacan a substituiu pela agressão suicida do
narcisismo. A seqüência do ensino de Lacan sobre as psicoses é, como se
sabe, rica de conceitos que se apresentam, todos, como alternativas para
uma concepção do ato, explicada pela defesa ou pelo recalcamento. Furo na
significação, hiância narcísica, onipotência do Outro, cujo gozo maldoso é
persecutório. Todos percebem o ato pelo delírio.
É, principalmente, o conceito de “extração do objeto a” (Lacan, 1957-58, p.
559-560, n. 16) que domina o da autopunição do narcisismo. O alívio
concernente ao que Lacan chama em sua tese de “crimes puramente
pulsionais” (Id., 1932, p. 306) pode ser revisado à luz da extração de gozo.
Donde, o interesse renovado pelos crimes imotivados de Guiraud, nos quais
a não motivação retém menos a atenção do que o sentimento de liberação
que o acompanha. Mme Lefebvre, nós vimos, evoca, ela mesma, a cura
pelo crime: não apenas ela não teve mais aborrecimentos, ela arrancou a
erva daninha, mas também ela não teve mais transtornos físicos. Todavia, o
delírio persiste, como é também o caso dos ciúmes de Daniel Lagache, no
crime passional. O alívio que o crime ocasiona dá uma atualidade ao kakon
de Guiraud, assimilável ao real do objeto a.
Jean-Claude Maleval (s/d, p. 39-45), quem ressalta essa analogia, vai até
invocar a “função terapêutica” do assassinato, como Freud qualificava o
delírio como tentativa de cura. O caso Eppendorfer põe em cena um jovem
118
que matou uma amiga mais velha do que ele, durante um rapto, no dia em
que esta o assediou; o gozo insuportável de sua mãe lhe apareceu então
num real alucinatório. Nessas condições, a separação selvagem do objeto
incestuoso coloca fim à angústia; o sujeito “procura fazer advir a castração
simbólica no real” (Ibid., p. 42). No entanto, essa subtração de gozo
operada sobre o Outro não é seguida de nenhum remorso nem crítica.
Pode-se considerar que é, principalmente, a prisão, o castigo, aliás,
chamado pelo sujeito, que teve a função de limitar seu gozo, com um efeito
de pacificação. A mediação de um padre vagamente psicoterapeuta teve um
papel aí. O sujeito se tornou homossexual militante: ele substituiu um
delírio por uma “perversão”? Parece, principalmente, que ele tenha passado
de uma seita para outra, dos mórmons aos grupos homossexuais, sem que
o delírio tenha sido abalado. Mesmo que o termo suplência (Maleval, 2000,
p. 61) seja evocado, o real do crime não pode ser equivalente a um
“sinthoma” no sentido do enodamento RSI. Constata-se somente uma nova
amarração ao campo social, que uma declaração de irresponsabilidade não
teria permitido.
A partir do momento em que Lacan recusa, de certa maneira, o conceito de
alienação mental, a questão da responsabilidade é completamente
renovada. O artigo 64, nós o vimos, se aplica ao alienado: o louco é
necessariamente irresponsável. É sua liberdade que é alienada. No entanto,
nos anos 1960, Lacan não opõe normalidade e alienação. É o normal que é
alienado ao Outro e à linguagem. Ao contrário, se levamos a fundo essa
lógica, o louco está desinserido da ordem simbólica. Ironicamente, ele não
crê na lei. Nesse sentido, Lacan pode descrevê-lo, em todo caso, como
“homem livre” (1967) e como fora do discurso. O problema é saber se essa
liberdade do louco é equivalente a uma responsabilidade. Estamos longe
das teses existencialistas em que livre quer dizer responsável. Com Lacan, o
sujeito totalmente livre estaria, sobretudo, do lado da irresponsabilidade.
No entanto, não se pode retirar dele uma certa responsabilidade no nível da
escolha. Lacan, seguindo Freud, diz: “escolha da neurose”, inclusive,
“escolha da psicose”. É preciso acrescentar que, se existe escolha, a escolha
é forçada. Sabe-se que Lacan está mais próximo da necessidade spinozista,
que da escolha pela liberdade. O homem livre não vê seu gozo limitado por
nenhum obstáculo simbólico. Lacan retoma, então, os conceitos essenciais
de Sartre, mas transformando-os em oxímoro.
Ele não deixa de sustentar um postulado sartriano: “Por nossa posição de
sujeito, somos sempre responsáveis.” (1964, p. 873) É também irônico: “o
sujeito é feliz”. É verdade que Lacan considera a proposição como
terrorista, posto que ele não a retoma, necessariamente, a seu modo. Por
outro lado, Lacan pode recorrer a uma concepção do ato justamente
exclusiva do sujeito. Donde a fórmula: “o ato não comporta, no instante em
que acontece, a presença do sujeito” (Id., 1967-68, aula de 29/11/1967), e
ainda: “todo ato [...] promete, àquele que toma a iniciativa, esse fim que
eu designo como objeto a” (Ibid., aula de 24/01/1968). A passagem ao ato
enquanto travessia selvagem do fantasma leva a um curto-circuito no
inconsciente. Nessa situação de “destituição subjetiva” e retenção no
objeto, a escolha do gozo torna obsoleta toda deliberação (Lacan, s/d).
Como dissemos acima, uma categoria de crime é privilegiada por Lacan em
1950: os crimes do “eu”. Eles fazem prevalecer uma identificação. É seu
119
traço humano. Os crimes de gozo desafiam as identificações sociais (Miller,
2008).
As formas novas de criminalidade: serial killers, delinqüentes sexuais,
pedófilos, etc, suscitam processos largamente mediatizados nos quais a
figura do monstro, do perverso constitucional, retorna e vê-se ressurgir, da
noite dos tempos, o atavismo criminoso de Lombroso. Para coroar tudo
isso, vê-se que os hospitais psiquiátricos não estão dispostos a abrir
largamente as portas aos criminosos delirantes. Quanto aos psiquiatras,
constata-se, mais e mais, sua repugnância em tratar a passagem ao ato
criminosa a partir do delírio. Donde, a inflação dos “perversos narcisistas”,
que se defendem da psicose pelo crime6.
Os crimes de gozo se multiplicam, o número dos assassinos de massa
ilustra a categoria de crimes imotivados; não que eles sejam imprevisíveis7,
mas não saberíamos lhes dar “outro sentido” que o gozo pela destruição, no
qual eles se incluem ignorando as premissas. A saída suicida freqüente é
sem relação com o heroísmo paranóico dos anos trinta8. É a própria
humanidade que visa o mass murderer; um programa de liquidação que
visa à raça humana e que suplanta a irrealidade do fantasma.
Poderemos pensar que os crimes sexuais são os mais atrozes: eles não têm
a desculpa do supereu. É sua gratuidade mesma que suscita a justiça
pública. Donde, a incompreensão do público diante das faltas de prova e
das avaliações de irresponsabilidade. O público não está disposto a
reconhecê-los como doentes mentais. Calculador demais, manipulador
demais, perverso demais, inteligente demais, etc., para ser louco; é sempre
o déficit intelectual ou a confusão mental que serve de critério. A avaliação
contemporânea se junta à opinião pública com relação a isso. Tudo, menos
louco! O crime de gozo designa o perverso. O gozo gratuito deve pagar. O
perverso não poderia, então, ser irresponsável. O problema é
principalmente saber se uma punição pode ou não lhe fazer recuperar o
sentido de suas responsabilidades. Lacan, na época, não perdia a esperança
nessa responsabilidade, citando o exemplo já citado de Mme. Boutonier.
Seria difícil fazer justiça com essa categoria de esquizofrênico, da qual faz
parte esse canibal japonês comedor de crianças, recentemente enforcado. O
que se dirá de uma mãe infanticida que abandonou os recém-nascidos no
congelador?
Lacan se opõe a uma concepção sanitária da penalização, mas não era, por
princípio, hostil ao julgamento de certos doentes mentais acessíveis a uma
pena, pela própria razão da identificação deles; eles mesmos podem
reivindicar um processo. A modificação do artigo 64 em 122-1 vai nesse
sentido; leva-se em conta a alteração do discernimento (Biagi-Chai, 2007,
p. 219). Suscitar uma crise subjetiva através do castigo, em certos casos,
era uma aposta. Era necessário julgar Fourniret sob o risco de que esse
monstro ironize a justiça e escreva alexandrinos ao presidente do tribunal.
Esperava-se que ele vertesse uma lágrima por suas vítimas enquanto a
justiça lhe dá uma tribuna para continuar a traumatizar as famílias das
vítimas? Pode-se duvidar que o tribunal queira humanizá-lo através de um
processo; as associações de vítimas são ingênuas quando crêem estar no
ponto de “compreender” o ato do julgamento: uma vez as motivações
psicológicas esgotadas, encontra-se o muro do insensato. Esse limite faz do
criminoso um monstro. A loucura ainda era um argumento contra a
120
monstruosidade. O predador, ele encarna um mais-de-gozar impossível de
suportar: ele resiste a toda identificação.
Portanto, seria preciso que os especialistas compreendessem, eles próprios,
alguma coisa sobre isso, no lugar de reabilitar o “perverso constitucional”
de Dupré (Debuyst et al, 1995) ou de fazer do crime uma defesa contra a
psicose. Reencontramos aqui as preocupações profiláticas de Lacan nos
anos 1930. Testar e prever a periculosidade concerne tanto mais à
psicanálise quanto os especialistas se eximem disso. Donde uma nova
distribuição de responsabilidade hoje.
Diante de uma “ordem de ferro” (1950b, p. 131), é a psicanálise que se
incumbe hoje do papel de despertar.
O texto de 1950 (1950a) tem seus limites: não aqueles do humanismo, mas
aqueles da compreensão que baseada no imaginário. Mais tarde, Lacan não
dirá nada sobre as que medidas ele adotaria para tratar os criminosos,
salvo que valia mais à pena não analisá-los. Fora da lei, da fala e da
linguagem, não se os vê nem sobre o divã, nem num tribunal: não
psicanalizamos “o canalha”, isso o torna um imbecil. É humano não
cretinizá-los frente ao Nome-do-Pai. Quanto aos outros, é preciso ver caso a
caso.
Tradução: Ana Paula Corrêa Sartori
Revisão técnica: Tania Coelho dos Santos
Notas
1. Texto publicado originalmente com o título de “Criminologie lacanienne” em
Mental, n. 21, La société de surveillance et ses criminels. Revue
Internationale de Santé Mentale et Psychanalyse Apliquée. Fédération
Européenne des ècles de Psychanalyse, setembro / 2008.
2. Ver também Mucchielli (1994).
3. Citado por Lacan em Da psicose paranóica em suas relações com a
personalidade, (1932, p. 308) e em “Introdução teórica às funções da
psicanálise em criminologia” (1950a, p.140).
4. O autor busca aproximar o atentado que aconteceu e o infanticídio que não
aconteceu, para explicar o alcance resolutivo do ato, sem a hipótese da
autopunição.
5. Trata-se de “Reflexões sobre a autobiografia de um criminoso”, Revue
française de psychanalyse, XXIII, p. 182-214.
6. É a tese do psiquiatra Claude Balier. O alienista inglês Henri Mandsley
(1835-1918), partidário das degenerescências, dizia um pouco a mesma
coisa: “eles se tornariam loucos, se não fossem criminosos e é porque eles
são criminosos que não se tornam loucos” (Mandsley apud Tarde, 2004, p.
44).
7. Pensa-se no crime anunciado do pastor Wagner. Ver a esse respeito Vindras,
Anne-Marie (1996) Ernst Wagner, Robert Gaupp, un monstre et son
psychiatre, Paris: E.P.E.L., e também “Le cas Wagner”, tradução de Fabien
Grasser, publicado em Sept références introuvables de la thèse de
psychiatrie de Jacques Lacan, nº1, des Documents de la bibliothèque de
L’École de la Cause freudienne, 1993.
121
8. Cf. o caso de Legrand du Saulle (1871), Délire de pérsecution, Paris: Plon,
mencionado por Lacan em sua tese (1932, p.301, n. 60). Trata-se de um
perseguido que se faz passar por um sodomita; ele se suicida pouco depois
de suas palavras endereçadas ao médico: “minha família saberá que eu não
era um sodomita. É vós que fareis minha autópsia” (Capítulo 11, observação
LXXXV).
Referências bibliográficas
122
________. (1963) Kant com Sade, in: Escritos, op.cit., p.776-803.
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Anne-Marie Vindras, Paris: E.P.E.L.
123
SUJEITO: SINTOMA DO EXISTIR
Resumo
Abstract
Abstract
The author uses the contrast between virtual and present to consider
the concept of ethics. To reach that, she relates the concept of border
developed by Pierre Lévy - who studies cultural and cognitive impacts of
technology - to the same concept in Psychoanalysis which means
castration, loss or lack.
124
E canta, assim, o poeta, a dor de existir. Dor de um sujeito que se sabendo
finito, pode encontrar, nas múltiplas formas de subjetividade, meios de
expressão. Cada vez mais plural, em um mundo globalizado, encontram-se
diversas formas de o homem expressar seu destino: existir fundeado na
ausência, na falta. No exilar das discussões que se pretendem revolucionárias
a custa da negação do “trágico” que circunscreve o existir do homem, vale
ressaltar, na época em que vivemos, inúmeras formas para o homem
expressar o que nele se faz necessário — a castração.
125
O atual é a criação de uma forma a partir de um campo de forças; é uma das
soluções de um problema. A atualização não é apenas produção de
qualidades novas, ela faz parte de um devir que realimenta a própria
virtualização. As virtualidades inerentes a um ente, isto é as questões e
problemas que o animam, que lhe fornecem anima, movimento, são parte
essencial da sua determinação. Virtualizar uma entidade consiste em
descobrir uma questão a qual ela se relaciona, em uma mutação da entidade
em direção a interrogação e em redefinir o atual de partida como apenas
uma das respostas para uma questão (Lévy, 1996, p. 16).
126
atualização. Lacan apropria-se assim da imagem forjada por Freud quanto a
um umbigo do sonho, topos do núcleo do inconsciente do qual brota a força
propulsora do desejo — wunsch.
127
Porém, continua o autor, essa “encarnação máxima” só é obtida no
estremecimento de certos limites: aquele que se lança, se desterritorializa,
está “não-presente” sai de si mesmo e se multiplica ao adquirir novas
velocidades e conquistar novos espaços. Não se trata, no entanto, de uma
desrealização, não é um processo de desaparecimento ou de
desmaterialização, mas de uma mudança de identidade. A virtualização
expõe uma fronteira que estabelece o “contato entre meios heterogêneos”,
um “limite indeciso” que deve ser constantemente avaliado no que diz
respeito à vida pessoal e a vida na sociedade no âmbito das suas leis.
128
Nota
Referências Bibliográficas
MILLER, J.-A. (1995) Sobre la fuga del sentido, in Uno por Uno n°. 42. Revista
mundial de psicoanalice, 1995.
129
O ENCONTRO DE MARIE DE LA TRINITÉ, UMA MÍSTICA CRISTÃ, COM JACQUES
LACAN
THE MEETING OF MARIE DE LA TRINITÉ, A CHRISTIAN MYSTIC, WITH JACQUES
LACAN
130
um menino, que se chamaria Paul. Contudo, quando nasceu Marie, ela lhe
deu o nome de Paule (por ser o feminino de Paul) Marie Aimée (Amada).
Sua educação foi baseada nos valores cristãos e nas boas maneiras. Ela
escreve, em sua autobiografia, que sempre se sentira apartada da família.
Até seus sete anos de idade apresentou diversos problemas de saúde, e era
muito irritadiça. Queixava-se da falta de um maior contato afetivo com sua
mãe, uma vez que, desde muito pequena, tanto ela quanto seus irmãos
foram entregues aos cuidados de empregadas domésticas.
Apresentava problemas nos estudos. Desde o início, ainda na alfabetização,
mostrava uma “incapacidade de pensar” (Trinité, 2009, p.18). Isto lhe dava
muita vergonha. Era uma moça afetuosa, mas arredia. Não se sentia bem
com as pessoas, nem com sua família. Sentia-se bem apenas com Deus.
Em sua autobiografia, escrita quando tinha quarenta anos, descreve sua
vida, que ela dispõe em três “colunas”: “a primeira é dedicada à vida
corporal e social, a segunda à vida mental e afetiva, a terceira à vida
espiritual – se as duas primeiras enumeram suas perdas, a última se
apresenta como a coluna dos ganhos, que contrabalançam com todo o
negativo” (Trinité, 2009, p.19).
A puberdade de Marie iniciou-se precocemente, aos dez anos e meio, e isto
representou para ela uma “catrástofe” (Ibid.). Aos treze anos ela foi para a
Itália, como interna do Sacré-Coeur. Distanciou-se de sua família, por
vontade própria e pelo desejo de estar junto das religiosas. Ela sente que
Deus “se inclina em sua direção” (Trinité, 2009, p.29).
Aos quinze anos, morando na Itália, ela escreve para sua mãe dizendo
sobre seu desejo em tornar-se religiosa. Nesta época, seus pais não
consentem. Ela queria entrar para o Carmelo, assim como Tereza D’Ávila,
mas o padre Périer a encoraja a ir para uma nova fundação dominicana.
Mesmo não se identificando com esta congregação, Marie, em função de
seu voto de obediência ao seu confessor, no verão de 1929, parte para
Champagne-sur-Loue. Nesta comunidade religiosa, ela conhece a madre
Marie de Saint-Jean, a fundadora dos Dominicanos missionários dos
campos, e, em 11 de agosto, Marie “faz a experiência de uma graça de
união ao Pai” (Id., Trinité, 2009, p.21). Enfim, no dia 26 de junho de 1930,
Marie entra para a vida religiosa, indo viver na congregação religiosa dos
Dominicanos do campo.
Levando uma vida de jejuns e orações, após algum tempo, ela apresenta
problemas de saúde, observados principalmente por seu isolamento de
todos. Assim, precisa ser internada em Paris, num estado que ela chama de
“estado de holocausto”: “meditação sobre o mistério e a perfeição da bem-
aventurada Virgem Maria e São José” (Trinité, 2009, p. 36).
Seu primeiro psiquiatra a diagnostica como neurótica obsessiva, mas ela
não segue o tratamento com ele. Inicia um tratamento com um médico de
nome Nodet, que procura tratar sua “penitência alimentar” e a ligação desta
com a castidade de Marie. Este tratamento não surte bons resultados, o que
a leva a consultar-se com outros psiquiatras em Paris, até que um deles a
encaminha para Lacan.
131
Seu primeiro encontro com Lacan aconteceu em três de abril de 1950. Ela
seguirá em análise com ele por três anos, e escreve um diário deste
tratamento analítico.
Mas o que faz com ela entre em análise com Lacan? É que “contrariamente
aos seus colegas [de Lacan], que consideravam o voto de castidade da
religiosa era o ponto nevrálgico do tratamento, Lacan tinha compreendido
rapidamente que o nó estava no voto de obediência” (Trinité, 2009, p. 45).
Além disso, o psicanalista jamais tentou abolir ou interpretar a escolha pela
vida espiritual da mística, conforme relata a própria Marie neste fragmento
de uma carta:
Não há grande coisa a dizer do próprio tratamento; senão que, no lugar
de me confinar em Freud, como os precedentes doutores, este percorre,
continuamente, no curso das sessões, todas as escalas da natureza
humana [...]. Eu estou em segurança com ele, pois ele compreende as
coisas espirituais e não as elimina como os precedentes, ao contrário
(Carta de marie de la Trinité a madre Sait-Jean, de 29 de novembro de
1950).
Ela apresenta melhoras sensíveis, empreende novos estudos, inclusive,
estudos “sobre problemas psíquicos da vida religiosa” (Trinité, 2009, p.47)
e estudos de psicologia e psicanálise. No entanto, a relação com Lacan se
torna conflituosa e, no verão de 1951, ela procura outro psicanalista.
Comunica isto a Lacan por carta, e ele lhe responde, escrevendo:
Minha cara Irmã, vós me escreveis uma carta bem heterogênea. Vós
estais livres para todas as vossas iniciativas, ainda que, durante a
análise, essas iniciativas sejam mais ou menos contra-indicadas. Eu não
me oporei àquela que vós falastes em vossas últimas linhas. Mas eu
gostaria de ter uma entrevista antes: a mesma entrevista que projetei
ter convosco na entrada. Que Deus vos guarde. (Carta de Lacan a Marie
de la Trinité, de 21 de setembro de 1951; Trinité, 2009, p. 49).
A relação de Marie com Lacan segue seu curso, assim como outros
tratamentos da mística, e, principalmente, sua relação mística com Deus.
Isto pode ser lido em seus Carnets. Uma leitura imperdível para os
psicanalistas, uma vez que Lacan, mais tarde em seu ensino, no Seminário
20, Mais, ainda, dirá que, quanto ao tema da mística, não se trata de crer
ou não em Deus, mas de crer no gozo da mulher, “no que ele é a mais” ao
gozo fálico (Lacan, 1972-73, p.103). E ele diz ainda: “E por que não
interpretar uma face do Outro, a face de Deus, como suportada pelo gozo
feminino?” (Ibid.).
Referência Bibliográfica
Lacan, J. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro : Jorge
Zahar Ed., 1982.
132
INSTRUÇÕES AOS AUTORES
I. Objetivo
133
Ou, ainda, pelo correio convencional, também aos cuidados do editor:
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de psicologia,
UFRJ.
Avenida Pasteur, 250 - Fundos, Urca, Rio de Janeiro-RJ.
CEP: 22.290-902.
No caso de envio pelo correio convencional, deverá vir acompanhado de
uma cópia impressa e a mesma versão gravada em CD.
Folha de resumo – Todos os originais devem conter uma página com dois
resumos de mesmo teor, em português e inglês. Caso o manuscrito seja
originário de outro idioma que não esses, deverá conter também o resumo
na língua de origem. Os resumos devem apresentar os trabalhos com
clareza, identificando seus objetivos, metodologia e conclusões. Devem
conter entre 120 e 150 palavras. As palavras-chave, expressões que
representam o assunto tratado no trabalho, devem ser de três a cinco,
separadas por ponto-e-vírgula, nos idiomas dos resumos.
134
Resenhas – Esta seção abrigará resenhas, revisões bibliográficas, resumos
de dissertações de mestrado e teses de doutorado, além de outros relatos.
Citações
Ex.:
135
Ex.:
Artigo com dois autores: cite os dois nomes sempre que o artigo for
referido;
Artigo com três a cinco autores: cite todos na primeira vez em que
mencioná-lo; daí em diante use o sobrenome do primeiro autor
seguido de et al. e da data. No entanto, na seção Referências
Bibliográficas, todos os nomes dos autores deverão ser relacionados.
136
Ex.: “Freud (1914, apud Eiguer, 1998)...”. No entanto, na seção de
Referências Bibliográficas, citar apenas a obra consultada (no caso,
todas as informações sobre Eiguer, 1998).
Ex.: FOULCAULT, M.
FREUD, Sigmund.
Ex.:
137
Ex.:
Ex.:
Ex.:
Ex.:
Ex.:
Ex.:
138
KOOGAN, A.; HOUAISS, A. (ED.) Enciclopédia e dicionário digital 98.
Direção geral de André Koogan Breikmam. São Paulo: Delta: Estadão,
1998. 5 CD-ROM.
Ex.:
139
Caso o autor não queira realizar as modificações sugeridas, deve justificar
sua decisão. Esta mensagem e o manuscrito reformulado serão
encaminhados a um dos Conselheiros Editoriais, juntamente com os
pareceres dos consultores ad hoc e a versão original do manuscrito para
uma avaliação final.
Título do
trabalho____________________________________________________
O título é pertinente?
O resumo é adequado?
[ ] sim [ ] não
sugestões________________________________________
140
A metodologia de investigação é adequada ao objeto?
[ ] sim [ ] não
sugestões________________________________________
[ ] sim [ ] não
Justificativa do parecer
________________________________________________
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RELATÓRIO DE GESTÃO
ARTIGOS QUANTIDADE
Submetidos 25
Rejeitados 4
Aceitos 21
V – Distribuição do periódico:
O periódico é gratuito e veiculado eletronicamente através de malas
diretas dirigidas a um público específico (alunos de psicologia,
psicólogos, psicanalistas e profissionais afins). Temos também uma mala
direta especificamente dirigida às bibliotecas das universidades e das
instituições psicanalíticas do Brasil.
O periódico não possui sistema de assinaturas ou permutas.
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