Cidade de Muros PDF
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Copyright <9 Editora 34 Ltda. I Edusp - Editora da Universidade de São Paulo, 2000
Cidade dl' muros O Tert·sa Pires do Rio Caldeira, 2000
Imagem da capa© Sambaphoto/Crisriano Mascaro
lntrodU<;ão ................................................................................. 9
cimentos que elas geram. Deslocamento é a lgo central neste livro. tanto como ex·
periéncia vivida q uanto como instrumento de crítica e de conhecimento. Se rive se escnro este livro originalmente em português, como meu pnmciro
O conflito em relação à língua é provavelmente uma das pnrtes mais frustrantes livro (Caldeira 1984 ), ele cnrrnri:1 pnra a lista dos feitos por antropólogos
desse deslocamento. Minha língua materna é o português. a língua na q ua l estudei sobre sua própria sociedade, que é a norma no Brasil e em multas das chamadas
até o mestrado, escrevi meu primeiro livro e fiz a pesquisa para este livro. No en· '"antropologias (em contraste com as wimperiais").4 .\las escrevi este livro
ramo, escrevi este livro em inglês. Ao fazê-lo, deparei-me diaria mente com a per· em inglês, e escava pensando em meus colegas americanos, aJém dos brasiJeiros. Isso
cepçiio de que, mais do que as minhas palavras, meu penS:Imenro estava moldado não faz dele automaticamente um trnbalho no "'estilo curo-americano··. j:í que con·
num certo estilo e numa cerra língua. Enquanto escrevia em inglês, podia ouvir a tinuo a ser uma ··nativa- investigando sua própria sociedade e não vh·enciei nenhum
repetitiva e por fim exasperada queixa de um dos meus editores: "Qual é o sujciro? dos estranh.unenros envolv1dos em viajar para o exterior para fazer trabalho de
Não escreva na voz passiva! Você não aprende?". Inútil explicar que o estilo aca· campo e sobre os quais a disciplina não se cansa de elaborar. Definirivame nre, a
dêmico em português é com freqüência estruturado na voz passiva e quase sempre alteridade não foi um:1 questão que esrrururou minha pesquisa metodologicamente,
com um sujeito a mbíguo; supérfluo produzir uma interpretação do sentido das es·
colhas gramaricnis de cada estilo acadêmico. Não estava mais escrevendo na lin·
gua que dominava e não podia mais contar com a liberdade e a segurnnça das cons·
truções inconscientes. E agora, ao revisar a tradução pam o português feit n por outra •A entre amropulogias -consrrução de nação- (llatiOII·bmldmgl e amropolo·
pessoa, encontro-me freqüememente em dúvida sobre a escolhn de palnvras c so· goas de "construção ompério- k mpm··lnuldmg) < por Stocking ( 1982}. Ele lambem
brc :1 estrut urn das frases e fico me perguntando o nde foi parar a min ha voz em opõe uma imcma.:oonal-. consrirui a 1radição -anrrupolo-
l::l• da ". Essa d1)rinção 10rna "'identes .1s rclaçôe> de as desigualdades que moi·
tudo isso. Mas, obviamente, a questão não é apenas com a gramática e as palavrns:
dama da)sific:açãn de d.lerenu:s tradtçõe> anrropulóg>cas. Uso ess:l rcrmmolog•• aqu• entre aspJs
é cpistcmológicn e metodológica. A a ntropologia e :1 teoria social têm nquilo q ue par:t referir-me à< rr:td>ções nos quo o< fu1 formada, não para co01fenr às Jntropulog>JS <"ur<rame·
se pode chamar de um '"estilo internacional", ou seja, um corpus de teoria, méto· ncanas umJ poSIÇão rp>St(mulóg>ca pnvolegiado. Para uma discussão de dno.
do e literatura pnrrilhado por profissionais do mundo inteiro. Embora esse corpus nacionaiS- . Ethnos ( 1982). d iscus<õcs • partir da d• 3ntropologia bra>ile!r:l.
tenha me oferecido um ponto de referência durante meus deslocamentos entre o ,·er Olowra I I 988 I 995) e Peorono ( I 980).
A FALA DO CRIME
1.
FALANDO DO CRIME E ORDENANDO O MUNDO
O crime violento aumentou em São Paulo nos últimos quinze anos. O mesmo
ocorreu com o medo do crime. A vida cotidiana e a cidade mudaram por causa do
crime e do medo, e isso se reflete nas conversas diárias, em que o crime tornou-se
um tema central. Na verdade, medo e violência, coisas difíceis de entender, fazem
o discurso proliferar e circular. A fala do crime- ou seja, todos os tipos de con-
versas, comentários, narrativas, piadas, debates e brincadeiras que têm o crime e o
medo como tema- é contagiante. Quando se conta um caso, muito provavelmen-
te vários outros se seguem; e é raro um comentário ficar sem resposta. A fala do
crime é também fragmentada e repetitiva. Ela surge no meio das mais variadas
interações, pontuando-as, repetindo a mesma história ou variações da mesma his-
tória, comumente usando apenas alguns recursos narrativos. Apesar das repetições,
as pessoas nunca se cansam. Ao contrário, parecem compelidas a continuar falan-
do sobre o crime, como se as infindáveis análises de casos pudessem ajudá-las a
encontrar um meio de lidar com suas experiências desconcertantes ou com a natu-
reza arbitrária e inusitada da violência. A repetição das histórias, no entanto, só
serve para reforçar as sensações de perigo, insegurança e perturbação das pessoas.
Assim, a fala do crime alimenta um círculo em que o medo é trabalhado e reprodu-
zido, e no qual a violência é a um só tempo combatida e ampliada.
É nesses intercâmbios verbais do dia-a-dia que as opiniões são formadas e as
percepções moldadas, isto é, a fala do crime não só é expressiva como também
produtiva. As narrativas, diz Michel de Certeau, antecedem as "práticas sociais no
sentido de abrir um campo para elas" (1984: 125). Esse é especialmente o caso das
histórias de crimes. O medo e a fala do crime não apenas produzem certos tipos de
interpretações e explicações, habitualmente simplistas e estereotipadas, como tam-
bém organizam a paisagem urbana e o espaço público, moldando o cenário para
as interações sociais que adquirem novo sentido numa cidade que progressivamen-
te vai se cercando de muros. A fala e o medo organizam as estratégias cotidianas
de proteção e reação que tolhem os movimentos das pessoas e restringem seu uni-
verso de interações. Além disso, a fala do crime também ajuda a violência a proli-
ferar ao legitimar reações privadas ou ilegais- como contratar guardas particula-
res ou apoiar esquadrões da morte ou justiceiros-, num contexto em que as ins-
tituições da ordem parecem falhar.
Neste capítulo, analiso uma narrativa de crime que me foi transmitida numa
entrevista. Tal como ocorre nas interações diárias das pessoas, as entrevistas, con-
cedidas em momentos de intensa preocupação com o crime, foram freqüentemente
permeadas pela repetição de histórias de crimes. Embora tivesse interesse nessas
histórias, quase nunca precisei solicitá-las: elas surgiam espontaneamente no meio
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de conversas sobre os mais variados assuntos, mas especialmente sobre a cidade e esta análise inicial por duas razões. Em primeiro lugar, ela sintetiza vários temas
suas transformações e sobre a crise econômica. Na análise que se segue, mostro como que aparecem nas outras entrevistas de forma mais dispersa e às vezes mais desar-
as narrativas de crimes recontam experiências de violência e, ao fazer isso, reorga- ticulada. Em segundo lugar, é uma das narrativas mais dramáticas da experiência
nizam e dão novo significado não apenas às experiências individuais mas também de crime que coletei, justificando mudanças em sua família e na vida diária. A dis-
ao contexto social no qual ocorrem. A narração, diz De Certeau, é uma arte do falar cussão sobre os crimes dos quais ela foi vítima ocupou dois terços da entrevista.
que é "ela própria uma arte do agir e uma arte do pensar" (1984: 77). As narrati- Não perguntei sobre os crimes: os comentários surgiram à medida que ela descre-
vas de crime são um tipo específico de narrativa que engendram um tipo específico via as mudanças pelas quais a Moóca passou ao longo de sua vida. Reproduzo longos
de conhecimento. Elas tentam estabelecer ordem num universo que parece ter per- trechos dessa entrevista porque quero mostrar a forma como a narrativa se organi-
dido o sentido. Em meio aos sentimentos caóticos associados à difusão da violên- za e a maneira pela qual a fala do crime entrelaça em sua lógica os mais diversos
cia no espaço da cidade, essas narrativas representam esforços de restabelecer or- temas. Cito a seguir algumas partes da narrativa, na ordem em que ocorreram, com
dem e significado. Ao contrário da experiência do crime, que rompe o significado alguns cortes, seja em razão de repetições, seja porque houve uma mudança de as-
e desorganiza o mundo, a fala do crime simbolicamente o reorganiza ao tentar res- sunto (ela falou, por exemplo, sobre mudanças na Igreja Católica, a história de sua
tabelecer um quadro estático do mundo. Essa reorganização simbólica é expressa família na região e sua migração, suas viagens à Itália, a ligação de sua família com
em termos muito simplistas, que se apóiam na elaboração de pares de oposição a música, as conquistas de seu filho, seu apoio a um governo autoritário, sua opi-
óbvios oferecidos pelo universo do crime, o mais comum deles sendo o do bem contra nião sobre programas de rádio e TV, e assim por diante). As frases entre colchetes
o mal. A exemplo de outras práticas cotidianas para lidar com a violência (que analiso são minhas e resumem partes da narrativa ou adicionam explicações. Todas as
em outros capítulos), as histórias de crime tentam recriar um mapa estável para um entrevistas foram realizadas por mim, exceto quando indicado em nota. Cada en-
mundo que foi abalado. Essas narrativas e práticas impõem separações, constroem trevista tem um número: o primeiro algarismo identifica o capítulo e o segundo,
muros, delineiam e encerram espaços, estabelecem distâncias, segregam, diferenciam, sua ordem dentro deste.
proibições, multiplicam regras de exclusão e de evitação, e restringem
movimentos. Em resumo, elas simplificam e encerram o mundo. As narrativas de 1.1
crimes elaboram preconceitos e tentam eliminar ambigüidades. -A Moóca teve muito progresso. A melhor coisa que tem no bairro é o progresso. Teve
As narrativas de crime perpassam e interligam os mais diversos temas. Ao longo progresso de escolas, progresso de casas. As casas mais bonitas eram na Paes de Barros, cha-
deste estudo, lido com os mais importantes deles - crise econômica, inflação, po- mava-se de palacete. [Paes de Barros é a rua em que ela morava.] A rua era residencial; hoje é
breza, a falência das instituições da ordem, transformações da cidade, cidadania e comercial. A mudança começou há uns 15 anos. Só gente chique morava na Paes de Barros. A
direitos humanos. Neste capítulo, concentro-me na maneira pela qual as narrati- elite da Moóca hoje mora no bairro novo, o Juventus. O bairro teve muito progresso. Tem no-
vas de crime são estruturadas e operam, e discuto a relação entre violência e narra- vos hospitais, o João XXIII, o S. Cristóvão. Tem a universidade também. A Universidade São Judas
ção. Também proponho um visão geral das transformações políticas, sociais e eco- começou na Rua Clark; era um barracão ...
nômicas no Brasil ao longo das décadas de 1980 e 1990. No capítulo 2, analiso os Tô radicada aqui, nasci aqui, tenho amizades aqui no bairro. O que estragou muito a Moóca
diversos temas que a fala do crime articula e que esta narrativa introduz. foram as favelas. Aquela da Vila Prudente é uma cidade. Tem cinqüenta e tantas mil pessoas!...
Tem também muito cortiço. Tem muito cortiço na Moóca desde que vieram a gente do Norte.
Tem 300 cortiços, cada um tem 50 famílias, só com três privadas- como é que se pode viver
Ü CRIME COMO EXPERIÊNCIA DESORDENADORA E COMO SíMBOLO ÜRDENADOR assim?! O que tá prejudicando é isso aí, é a pobreza. Aqui tem classe média, classe rica e uma
diferença muito grande, a pobreza dos nordestinos. O bairro piorou desde que começaram a
A narrativa que se segue me foi transmitida em 1989 por uma mulher cujos chegar a turma do Norte .... Faz uns 15 anos. Agora tem demais. Casas lindas, bonitas da Moóca
pais migraram da Itália para o Brasil em 1924. Eles se estabeleceram na Moóca, à foram subalugadas e hoje não se pode entrar, arrebentaram as casas. De uns 15 anos pra cá,
épo.ca um bairro industrial habitado basicamente por imigrantes europeus, onde a Moóca regrediu nessa parte. A Moóca teve muito progresso, mas regride pela população pobre.
abnram uma alfaiataria. A nasceu na Moóca e passou toda sua vida lá, -Mas antes não tinha pobre na Moóca?
presenciando suas diversas transformações, enquanto alguns de seus irmãos se mu- -Antes não existia. A gente saía de chapéu, os professores andavam de chapéu. Eu usava
daram para "lugares melhores", segundo suas palavras. Ela é uma dona de casa e luva e chapéu. Dos 15 aos 18 anos eu saía na rua de chapéu. A Praça da Sé, a Rua Direita, era
foi professora primária antes de se casar. Quando a entrevistei, tinha quase 60 anos.l uma finura. Hoje, a gente não vai lá, não é possível, você sabe como é.
Seu marido é corretor imobiliário e seu filho, dentista. Escolhi sua narrativa para [Começamos a conversar sobre o que poderia ser feito em relação à pobreza e aos po-
bres que viviam ali.]
1 Eles deveriam receber mais apoio do governo. Eles empestearam tudo, deveria voltar tudo
Todas as informações sobre as pessoas que entrevistei referem-se à época da entrevista. pra lá. O governo deveria dar casas pra eles lá no Nordeste pra eles não precisarem vir pra cá ...
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Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros 29
Hoje aqui na Moóca não se pode nem sair de casa. Faz seis anos que eu fui assaltada, e seis que precisa, assalta. É falta' de cultura também ... A Moóca fez muito progresso, engrandeceu
anos que parece que tudo perdeu o gosto. Aqui na Moóca não tem pessoa que não foi assaltada. muito, fez progresso de casas, prédios, mas tem uma extensão de cortiço que não acaba mais...
[Ela contou então o caso de um segurança de um supermercado da região que havia sido O governo devia fechar a exportação, terminar com essa vinda de pessoal do Norte. Se você
morto poucos dias antes durante um assalto à mão armada. Ele tinha cinco filhos e trabalha- soubesse o que o meu marido fala quando ele passa em frente a uma favela! Ele é tão revol-
va ali havia apenas três meses}. tado! Eu também. Eu não tive mais saúde desde que fui assaltada. Saí de casa no mesmo dia,
A coisa pior que existe na Moóca é que o povo fica com medo. É muito crime, é muito vendi tudo aquilo lá, joguei fora ... O meu marido, você não sabe o que ele fala. Ele vê um cor-
assalto. De uns oito anos pra cá está mais perigoso. Demasiadamente perigoso. Ninguém sai tiço, uma favela, fala que uma garrafa de querosene e um fósforo resolvia aquilo num minuto ...
de noite, ninguém sai com corrente no pescoço, com nada. A Moóca teve muito progresso, mas teve regresso também. Os cortiços tiram a beleza
- Quem são os criminosos? da Moóca. O povo hoje vende as casas e vai para apartamento.
- Pessoal que assalta é tudo nortista. Tudo gente favelada. Gente do bairro e gente de [Ela explicou, então, que a sua casa que foi assaltada era uma casa reformada, na qual a
fora. Mas não adianta nada querer fazer alguma coisa. Você faz ocorrência, depois não resol- família tinha investido durante anos. Era uma casa com piscina e churrasqueira.]
ve nada. Quando eu fui assaltada, eu fiz ocorrência, tinha advogado amigo, não adiantou nada, Não pra esnobar, mas pra dar conforto pra família. "O problema hoje em dia é que não
não encontraram nada ... dá pra ter o privilégio de possuir o sacrifício que você fez."
Hoje ninguém quer saber de morar em casa devido à falta de segurança. Eu morava na [Ela gostou da frase, pediu que eu a anotasse e a repetiu. Continuou a falar de sua casa.]
Rua Camé, com portão eletrônico, interfone, dobermann dentro de casa. Um dia, às 7 horas Como eu vendi tudo, perdi tudo. Vendi de um dia pro outro, vendi por nada, e ainda teve
da manhã, meu marido saiu para entrar na garagem, um cara veio, pulou em cima dele, tam- o Plano Cruzado no dia seguinte. Quando a gente foi ver, o dinheiro já não era mais nada. A
pou a cara dele e deu uma punhalada no coração dele. Depois desse dia, meu marido nunca Moóca regride pelos cortiços. Devia acabar com essa vinda de gente pra cá, devia dar condi-
mais teve saúde, é cardíaco. ções pra eles lá. Mas a turma é indolente também, não quer saber de trabalhar. Pior é favela,
[Ela conta, então, que depois de ferirem o marido, os ladrões entraram na casa e lhe pe- bandido tá dentro de favela. Eles recebem pouco, mas se você entrar dentro de uma favela, vê
diram dinheiro ejóias. Ela entregou prontamente uma grande caixa de jóias: liDemos tudo,: Os um monte de víde?,_S()I11,.daon9e é? Tudn
ladrões começaram a encaminhá-/ajunto com seu filho para os fundos da casa, para o quarto Vou logo dizendo pra vocês: eu sou a favor da pena de morte a quem mereça. Aqui na
de empregada. No caminho, ela abriu o canil e o dobermann pulou sobre os ladrões, que deram Moóca nós somos a favor da pena de morte. Eu sei que a Igreja condena a pena de morte, mas,
uns tiros mas não acertaram ninguém e acabaram fugindo. Pedi que ela me descrevesse os a meu ver, castigo, tem que ter um castigo pra uma pessoa que comete erro. Por exemplo, uma
ladrões} pessoa que está com 200, 300 anos de pena, ela vai ter tantos anos de vida? Caso tivesse pena
Eles tinham cara boa. Um era baixinho, moreninho, se vê que era do Norte. O outro ti- de morte, outra pessoa não faria o mesmo. Éconversa essa história que vai ser o injusto que
nha cara branca, mas sempre nortista, devia ser do Ceará. vai ser castigado. Seria um exemplo... Deveria se ver o certo, com consciência. Pessoa que tem
[Do seu caso específico, ela passa novamente a discutir as mudanças no bairro.] que cumprir pena por tantos e tantos anos, como é que nós vamos sustentar vagabundo na
Lá no Juventus tem casas lindíssimas, mas tudo de grade. Nas ruas, tem guardas com cadeia a 400 cruzados por dia? Na Moóca todo mundo é a favor da pena de morte.
guaritas. Na Moóca, aqui fica todo mundo trancado: o ladrão fica pra fora, e a gente, tudo [Nesse momento, sua empregada entro na sala para servir café com biscoito e a patroa
trancado. E nem isso adianta. A minha casa que foi assaltada tinha portão eletrônico, interfone. pergunta se ela é a favor da pena de morte. Diante da resposta afirmativa, ela comenta.]
Os ladrões entraram no vizinho uma casa que também era minha, estava alugada- e pula- Ela é crente e também defende a pena de morte; eu sou irmã de padre e também defen-
ram pra dentro da minha casa e foram se esconder na garagem. No Juventus, todas as casas do. Não teria tanta criança na rua, que mãe coloca filho na rua sem pensar, por pobreza, ou
são fechadas, mas se você for falar com eles, eles vão contar muito assalto. Os moradores da por sem-vergonhice. 2
Moóca estão tristes por causa da falta de segurança. Não é só a Moóca, é São Paulo toda. As [A essa altura, ela fala de forma empolgada e comenta.]
escolas parecem presídio. Antes era maravilhoso, as crianças ficavam nas ruas, o povo ficava Quando eu fico enfezada, fico com o vocabulário bem bonito ... Quando eu estou enfe-
nas portas conversando, existia mais amizade, as pessoas se visitavam. Hoje vive-se de medo zada posso falar tão bem quanto um advogado. Antigamente, eu falava ainda melhor, mas perdi
na Moóca. Hoje, perguntando na rua, cada um tem uma história pra contar: se não foi assal- o hábito ... Não tenho mais prática de falar tanto. Estou enfezada! Me mudei tanto com esse
tado, tiraram a corrente, o anel, a carteira. assalto, perdi a vontade de fazer as coisas. Antes eu era feliz a gente era feliz e nem sabia. A
[Ela relembra um roubo de que sua irmã foi vítima: estava voltando a pé do mercado com casa limpinha, bonitinha, tudo em ordem.
as compras quando alguém pegou sua carteira. Muitas vezes as pessoas levam os carrinhos de
compro com as mercadorias. Eela conclui.]
A Moóca está empesteada.
2 A narradora sugere que filhos de mães que "não pensam" e têm filhos de que não podem
[E quanto ao que deveria ser feito .. .]
cuidar, ou porque são pobres demais ou porque os têm fora de um casamento, certamente irão se
Teria solução. Teria de partir do governo. O governo deveria dar assistência pra pobreza. tornar criminosos. Ela não elabora a idéia, porque esta é bem comum. Analiso a associação de
O bairro tornou-se feio com os cortiços. E pobre é pobre, quando não pode comprar as coisas mães solteiras, pobreza e crime no capítulo 2.
depois exato eles voltaram ... Fiquei dois meses de cama, urinei sangue, tirei radiografia do joelho, J to de perda e restrição assim como uma sensação de uma existência caótica num
tive que fazer infiltração ... Não saio à noite, não faço nem uma visita. Hoje eu moro em apar- lugar perigoso. Experiências de crime também são seguidas pela fala do crime, na
tamento ... Aquele trauma você nunca perde. Meu filho tem 28 anos, o medo que meu filho qual o acontecimento é recontado e discutido inúmeras vezes.
tem! Eu era tão feliz. Era feliz e não sabia. Era uma pessoa ativa, tava me mexendo o tempo Contudo, à medida que a história é contada e recontada, em vez de criar uma
todo, fazia trabalhinho pra pobre ... ruptura, o crime é exatamente o que organiza toda a narração, estabelecendo mar-
Na Moóca todo mundo tem medo, por isso que todo mundo vai embora. A população cas temporais estáticas e emprestando suas categorias a outros processos. À medi-
fina vai embora e os nordestinos vão chegando, nós vamos dando espaço pra eles... da que as narrativas são repetidas, o bairro, a cidade, a casa, os vizinhos, todos
Quando fui assaltada pela segunda vez, estava com meu cunhado, irmão do meu mari- adquirem um significado diferente por causa do crime, e sua existência pode ser
do, em casa, fazia 17 dias que ele estava no Brasil, ele teve enfarto e morreu. Fazia oito dias realinhada de acordo com as marcas fornecidas pelo crime. No caso acima, ache-
que ele estava aqui quando foi o assalto. Ele tava dormindo. Tinha vindo pra passear e pra se gada dos nordestinos ao bairro ocupa uma posição equivalente à do crime, divi-
tratar. Falo pro meu marido que não foi por causa do assalto, mas meu marido acha que não, a história local entre antes e depois. O que o crime faz para a biografia da
que ele ficou assustado ... Um dos assaltantes tinha um punhal e ficou com ele encostado nos narradora, achegada de nordestinos/criminosos faz para o bairro.
olhos do meu filho. O consultório dele é todo cheio de grade, janela fechada, porta fechada - Nas narrativas, o crime organiza a estrutura de significado e, ao fazer isso,
pode-se viver assim?... combate a desorganização da vida produzida pela experiência de ser vítima da vio-
Agora as pessoas só se encontram em enterro. Círculo de amizades, de conterrâneo, de lência. No entanto, esse uso do crime como divisor entre um tempo bom e outro
patrício, tá se desfazendo. Vai se distanciando a amizade devido ao medo de sair à noite. Olha ruim simplifica o mundo e a experiência. Recurso retórico que dá dramaticidade
que sentença bonitinha!... à narrativa, a divisão entre antes e depois acaba reduzindo o mundo à oposição
A Moóca que eu conheci era tão diferente! Podia-se viver, sair sem esse pavor. Quando entre o bem e o mal, que é a oposição central que estrutura as reflexões sobre o
a população era menor, existia mais tranqüilidade. Empestearam a Moóca, deixaram a Moóca crime. Ao fazer essa redução, as pessoas normalmente apresentam relatos sim-
feia. plistas e tendem a criar caricaturas: o antes acaba virando muito bom; o depois,
muito ruim. No caso acima, antes do assalto, ela "era feliz e nem sabia". Descri-
ções da felicidade pré-crime são a casa com uma escada de már-
3
Quando foram usados nomes na narração, eu os substituí por outros fictícios. more, piscina e churrasqueira; os brilhantes usados numa tarde qualquer; um
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ção de Brasília deveria simbolizar e ajudar a promover o salto que se esperava que regiões metropolitanas com mais de 1 milhão de habitantes, cuja populàção tinha
o país desse do atraso à modernidade. 6 crescido a uma taxa de 4,5% ao ano entre 1940 e 1970. Nessas regiões•metropoli-
A indústria metalúrgica baseada em São Paulo foi o centro da nova industria- tanas estão concentrados cerca de 30% da população brasileira, que, em 1996,
lização. Em 1907, a produção industrial do estado de São Paulo representava 16% alcançava 157 milhões, 78% na região urbana. 8
da produção nacional; essa porcentagem cresceu para 31% em 1919, 3 8% em 1929, A expansão econômica dos anos 70 e a consolidação de um "sistema decida-
49% em 1950 e 55% em 1960 (Brant 1989: 19). Em 1970, o estado de São Paulo des"- isto é, um complexo padrão de divisão territorial do trabalho entre o cam-
contribuiu com 58,2% do valor nacional da indústria de transformação (Rolnik s.d.: po e a cidade e entre as cidades (Faria 1991: 103)- estão associadas a mudanças
27). Embora muitas outras regiões tenham aumentado consideravelmente sua pro- complexas na estrutura produtiva. 9 Seu setor mais dinâmico tem sido a indústria
dução, e ainda que a crise econômica e o recente processo de desindustrialização de bens de consumo duráveis para o mercado interno, associada ao crescimento de
tenham afetado consideravelmente sua posição, São Paulo ainda é o principal pólo bens de capital e intermediários. Apesar das crises cíclicas, esse setor mais dinâmi-
industrial do país. co foi capaz, até o início dos anos 80, de criar um número considerável de novos
Como era de se esperar, o crescimento industrial esteve associado a uma in- empregos. Como resultado, um número crescente de trabalhadores foi incorpora-
tensa urbanização. A população da região metropolitana de São Paulo cresceu a do ao mundo dos salários e contratos formais de trabalho. Ao mesmo tempo, cons-
taxas em torno de 5,5% ao ano entre 1940 e 1970. Durante esse período, a migra- tituiu-se um mercado nacional de trabalho e bens (Faria 1991: 104). O mesmo di-
ção interna foi responsável por 50% do crescimento demográfico: ela trouxe mais namismo econômico, no entanto, fomentou a expansão de um mercado de traba-
de 1 milhão de novos habitantes para a região nos anos 50 e 2 milhões nos anos 60 lho informal e mal pago (serviços domésticos e pessoais, indústria de construção
(Periiio 1993: 2). A construção civil e a transformação eram intensas e o governo marginal etc.) baseado no trabalho intensivo e na baixa produtividade, e na proli-
local repetia o lema "São Paulo não pode parar!" .7 feração do subemprego. Finalmente, a expansão econômica dos anos 70 agravou
Os militares, que fecharam à força todas as organizações políticas e de oposi- uma distribuição da riqueza já desigual, pela qual, no fim dos anos 70, os 50% mais
ção, não interromperam o desenvolvimentismo: também eles queriam transformar pobres da população recebiam apenas 14% da renda total. Resumindo o tipo de
o Brasil num país moderno. Sob o regime militar, o PIB alcançou taxas de 12% de estrutura social urbana criado durante os anos 70, Faria (1991: 105) sustenta que
crescimento anual no início dos anos 70. O progresso econômico era baseado no ele era constituído por três grandes segmentos. O primeiro, formado por grupos
endividamento externo e na intervenção direta do Estado na economia. Essa inter- ocupacionais de renda alta ou muito alta, numericamente reduzido mas com gran-
venção foi responsável, entre outras coisas, pela criação de uma nova infra-estru- de poder de compra e influência social e política numa sociedade que se tornou mais
tura de estradas e telecomunicações, e pela expansão de instalações e serviços de autoritária e elitista durante esse período. O segundo, contingentes significativos
consumo coletivos como um sistema nacional de saúde e seguridade social. No - colarinhos brancos e azuis - de pessoas incorporadas aos setores produtivos
entanto, tudo foi feito sem a participação política das massas e sem distribuição da mais dinâmicos e modernos. Finalmente, uma massa de pobres subempregados.
riqueza. Durante os "anos do milagre", os militares anunciaram que era preciso O mercado nacional de consumo consolidado nesse tipo de sociedade nos anos
primeiro crescer para depois "dividir o bolo". Apesar da desigualdade persistente, 70 exibia importantes peculiaridades. O crescimento da indústria nacional estava
o Brasil mudou rapidamente nos últimos sessenta anos e, não obstante a repressão baseado na expansão do mercado interno. Massas consideráveis da população fo-
política, a população passou a se orgulhar do seu país "miraculosamente" moderno. ram integradas ao mercado de consumo a partir de uma vigorosa política de crédi-
Embora São Paulo apresente o exemplo mais expressivo de industrialização e to que, como mostrou Wells (1976), permitiu às camadas baixas o acesso a alguns
urbanização, esta foi intensa em todo o país. A população urbana do Brasil, que bens de consumo duráveis (como um televisor, por exemplo) e a roupas. Essa polí-
em 1950 constituía 36o/o da população total, em 1980 representava mais de 50% tica permite entender a presença de televisores nas favelas e basicamente explica como
(cerca de 80 milhões de pessoas). Metade dessa população urbana vivia em 30 cen- foi possível expandir o mercado interno e ao mesmo tempo manter uma distribui-
tros urbanos de mais de 250 mil habitantes. Por volta de 1980, o Brasil possuía nove ção desigual da renda e salários muito baixos.
6 8 To dos os dados demográficos são dos censos. Essas áreas metropolitanas são Belém, For-
Sobre teorias econômicas nacional-desenvolvimentístas na América Latina, ver F. H. Car-
doso (1980). Sobre a história da indnstrialízação, ver Dean (1969) e Singer (1984). Para uma aná- taleza, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre. São
lise da criação de Brasília e seu simbolismo, ver Holston (1989); para análises do governo de todas capitais. Há também algumas cidades que não são capitais e têm mais de 1 milhão de habi-
Kubitschek e do desenvolvimentismo, ver Benevides (1976) eM. L. Cardoso (1978). tantes, tais como Santos e Campinas, no estado de São Paulo.
No capítulo 6, apresento uma análise detalhada da urbanização e das recentes transfor- 9 Ver Faria (1983 e 1991) para análises do padrão de urbanização nos últimos cinqüenta
mações de São Paulo. anos, da consolidação de um "sistema de cidades" nacional e de mudanças na estrutura de emprego.
46 47
Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros
Na verdade, a combinação de crescimento e desigualdade marcou os mais vontade com a incorporação das classes trabalhadoras ao mundo moderno, isso era
variados aspectos do desenvolvimento dos anos 70. Esse é o caso dos equipamentos aceitável enquanto seu próprio enriquecimento estivesse garantido.
e serviços de consumo coletivo. De acordo com Faria (1991: 107-8), os serviços de A fé nas promessas de progresso e o padrão de crescimento mantiveram-se até
saúde, previdência social e educação básica se expandiram, mas ao custo de uma a crise econômica de 1980, quando mudanças demográficas, políticas, econômicas
queda da qualidade dos serviços e de salários extremamente baixos pagos aos pro- e sociais começaram a transformar a sociedade brasileira. Elas combinaram para
fissionais que os forneciam. Além disso, pelo fato de o controle exercido pela socie- trazer um fim ao padrão de desenvolvimento, urbanização e crescimento que tinha
dade civil sobre esses serviços ser frágil, eles têm sido oferecidos de uma maneira sido consolidado nos anos anteriores. As mudanças demográficas que se tornaram
distorcida (por exemplo, há falta de serviços médicos básicos ao lado de um alto claras nos anos 80 foram tão espetaculares que se costuma dizer que marcaram uma
investimento em sofisticadas tecnologias, corrupção na administração de fundos de "transição demográfica" e mudaram o padrão demográfico brasileiro. Dos anos 40
previdência social etc.). Em áreas que exigem altos investimentos públicos, como aos anos 60, o Brasil experimentou um declínio nas taxas de mortalidade e taxas
habitação, transporte público e saneamento básico, os resultados foram ainda piores. de fecundidade total constantemente altas (cerca de 6,0). Como resultado, a taxa
Em suma, dos anos 40 ao final dos anos 70, tanto o Brasil como a região média de crescimento da população também foi alta (cerca de 3,0% ao ano) e a
metropolitana de São Paulo mudaram de forma dramática mas paradoxal: urba- distribuição etária da população era jovem. Nos anos 70, as taxas de fecundidade
nização significativa, industrialização, sofisticação e expansão do mercado de con- total começaram a declinar. Inicialmente, o processo limitou-se às áreas mais ricas
sumo e complexificação da estrutura social foram acompanhados por autori- e urbanizadas, mas nos anos 80 já se manifestava por todo o país. Como resulta-
tarismo, supressão da participação política da maioria da população, uma distri- do, a taxa de fecundidade total caiu de 5,8, em 1970, para 4,3 em 1975 e 3,6 em
buição extremamente desigual da renda e uma constante tentativa de manter a 1984, isto é, um declínio acentuado de 37% em 15 anos. Estimativas para 1990
hierarquia social e a dominação pessoal. Em outras palavras, o Brasil tornou-se indicavam uma taxa de no máximo 2,9 filhos por mulher em idade fértil.l 1 Vilmar
um país moderno com base numa combinação paradoxal de rápido desenvolvi- Faria (1989) sugeriu uma hipótese instigante para explicar esse declínio acentuado
mento capitalista, desigualdade crescente e falta de liberdade política e de respei- num curto período de tempo e na ausência de qualquer política pública de contro-
to aos direitos dos cidadãos. São Paulo é a região que melhor representa a mo- le populacional. Segundo ele, a mudança no comportamento reprodutivo foi um
dernidade brasileira com todos os seus paradoxos. Com seus mais de 16 milhões efeito inesperado de quatro políticas sociais governamentais que seguiram a urba-
de habitantes, indústrias e arranha-céus, escritórios high-tech e favelas, metrôs nização e que criaram o sistema nacional de saúde, o sistema de previdência social,
sofisticados e altas taxas de mortalidade infantil, comunicações via satélite e bai- o sistema de telecomunicações que permitiu a difusão dos meios de comunicação
xos níveis de alfabetização, a metrópole de São Paulo tornou-se um dos melhores de massa e o programa de crédito direto ao consumidor. A mudança foi possível,
símbolos de uma sociedade de consumo industrial pobre mas moderna, heterogê- pelo menos em parte, por causa da crescente disponibilidade dos serviços médicos,
nea e profundamente desigual. que afetou especialmente as mulheres e sua percepção de seu corpo. O acesso a esses
Apesar dos seus desequilíbrios, o processo de industrialização e crescimento serviços legitimou e naturalizou intervenções nos corpos das mulheres e abriu ca-
ajudou a sustentar muitas promessas: de progresso, mobilidade social e incorpora- minho para a adoção generalizada de métodos anticoncepcionais. A essa transfor-
ção do Brasil ao mercado de consumo internacional e à modernidade. Quando o mação associaram-se outras mudanças significativas nas percepções e atitudes das
PIB estava crescendo a uma taxa de 10% ao ano, quando a renda per capita cres- mulheres, por exemplo sobre trabalho e educação, e uma completa reavaliação da
cia a 6,1% ao ano, quando a maioria dos migrantes tornavam-se proprietários e importância de se ter famílias grandes. O caminho dessas mudanças de valores passa
construíam casas para suas famílias nas maiores cidades do país, quando essas ca- pela urbanização mas especialmente pela integração da maioria da população aos
sas eram decoradas com todo tipo de bens industrializados produzidos (sobretudo meios de comunicação de massa, que sempre divulgaram um modelo de família
a televisão) e quando as crianças dessas famílias recebiam educação e serviços mé- moderna que é o da família de classe média com poucos filhos e freqüentemente
dicos (ainda que esses serviços fossem ruins), era possível acreditar que o Brasil com uma mulher que trabalha. 12
realmente estava se tornando moderno, que o futuro seria melhor, que a nova ge-
ração seria mais afortunada e que a participação política e a diminuição da desi-
gualdade viriam com o tempo.l 0 Embora a elite continuasse a sentir-se pouco à
Do ângulo da renda, a pobreza absoluta diminuiu drasticamente: estima-se que a proporção de
pobres caiu de 53% em 1970 para 27% em 1980" (1996: 2).
11 Os dados sobre taxas de fecundidade são da PNUD-IPEA (1996: 65-7). Para uma discussão
10
Durante os anos 70, segundo Rocha, "a renda per capita expandiu-se 6,1% por ano, a
dos tipos radicais de controle de natalidade adotados por mulheres brasileiras, ver o capítulo 9.
taxa de analfabetismo caiu de 40% para 33%, e a população urbana aumentou de 55% para 68%.
Embora as desigualdades de renda e regionais tenham claramente se intensificado nos anos 70, 12 Ver Hamburger (1998) para uma análise da televisão no Brasil pós-64 e especialmente
isso foi compensado pelo fato de que a maioria das pessoas, contudo, estava em melhor situação. sobre o papel das telenovelas. ,
Os sucessivos planos para combater a inflação falharam até meados dos anos
90 inclusive o famoso Plano Cruzado em 1986 e o Plano Collor em 1990. Além
disso, eles tiveram fortes efeitos na vida dos cidadãos, que, como as pessoas que
entrevistei e cujos depoimentos analiso no capítulo 2, sentiram que sua qualidade 13
O último censo industrial no Brasil foi em 1985.
de vida se deteriorou continuamente durante o período. Além disso, a recessão eco- 14
De acordo com o Dieese-Seade, as taxas de desemprego estavam por volta dos 6% no
nômica gerou desemprego e poucas oportunidades de recuperação. Durante a vi-
final dos anos 80 e ao redor de 8,5% na primeira metade dos anos 90.
gência de altas taxas de inflação, fica mais difícil prever o futuro e aumenta a sen-
15
sação de insegurança das pessoas em relação à sua posição social. A decadência social Entre os estudos recentes sobre a pobreza e a distribuição de renda incluem-se: Barros e
Mendonça (1992), Barros, Camargo e Mendonça (1996), Barros, Machado e Mendonça (1997),
passa a ser uma perspectiva mais realista do que as possibilidades de ascensão, ao
Barros, Mendonça e Duarte (1997), Leme e Biderman (1997), Lopes (1993), Lopes e Gottschalk
contrário do que ocorrera desde os anos 50 até os 80. (1990) e Rocha (1991, 1995 e 1996). .
zero se todas as pessoas tivessem a mesma renda e 1 se uma pessoa concentrasse toda a renda
nacional. Em outras palavras, quanto maior o valor, maior o nível de desigualdade. Para o Brasil,
16 o coeficiente de GINI era de 0,580 em 1985, 0,627 em 1989 e 0,6366 em 1991 (Rocha 1991: 38,
As linhas de pobreza variam de acordo com as cidades e regiões do país. Rocha apresen-
ta sua metodologia para calculá-las em Rocha (1996). Ela calculou a linha de pobreza da região e Censo de 1991).
metropolitana de São Paulo em 1990 como sendo o equivalente a uma renda mensal per capita de 19 Como no resto do Brasil, no estado de São Paulo e na região metropolitana a renda é
US$ 43,29. Esse era o nível mais alto do país. Na região metropolitana de São Paulo, a proporção altamente concentrada no decil mais rico. Enquanto a diferença entre o primeiro e o segundo decis
dos pobres era de 22,0% em 1981, 34,4% em 1983, 16,9% em 1986 e 20,9% em 1989 (Rocha está por volta de 75%, e entre o segundo e terceiro é de cerca de 38%, a diferença entre o nono e
1991: 37). Esses dados indicam que os piores anos da recessão foram os de 1981 e 1983, o que é o décimo decis é de 180% (Leme e Biderman 1997: 198).
confirmado por Lopes e Gottschalk (1990: 104).
20 O Censo Brasileiro usa as seguintes categorias raciais: branca, preta, parda e amarela.
17
PNAD refere-se à Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada pelo IBGE (Ins- Normalmente as análises de relações raciais consideram preto e pardo de forma agrupada, pois
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Todos os dados acima sobre distribuição de renda vêm foi demonstrado que eles compartilham de condições sociais semelhantes. Em 1991, os brancos
das PNADs. eram 55,3% da população, os pardos 39,3%, os negros 4,9% e os amarelos 0,5%.
/ munidade política. Eles ainda vêem o crime como algo associado ao mal, que se
j espalha e contamina facilmente, e que requer instituições fortes e autoridades para
I controlá-lo. Este controle é visto como uma tarefa da cultura contra as forças da
natureza.
A seguir, analiso as explicações para o crime, que na verdade são diagnósti-
cos sobre as transformações do país, e as opiniões sobre o crime e sobre os crimi-
nosos que obtive nas entrevistas com moradores de diferentes grupos sociais de São
Paulo. Esta análise aborda apenas uma parte dos temas das entrevistas: aqueles
relevantes pª'p..e.nt€nderas.interligações.en1re. ..Y.4hana.e-
São ..hoie. Minha atenção volta-se sobretudo às tensões, ambi-
que emergem no discurso das pessoas como um resultado
de duas situações distintas. Primeiro, quando declarações genéricas inspiradas pe-
las categorizações derivadas da oposição entre o bem e o mal devem coexistir com
explicações mais detalhadas que lidam com experiências do dia-a-dia que são nuan-
2.2
-A inflação e essa desorganização que houve no sistema fez com que se perdessem as
1 As entrevistas transcritas geraram milhares de páginas, difíceis de manejar e de tornar in- referências, então nós não temos mais referência; o que é melhor, pagar bem um funcionário
teligíveis. Desenvolvi a seguinte técnica para analisar o material: primeiro, no dia de cada entre- ou dar uma cesta básica, ou dar uma segurança, ou dar um serviço hospitalar pro funcioná-
vista, descrevia detalhadamente a situação em que ela se dera. Tratava-se de uma interpretação rio? Então, nós perdemos a referência ... Eu acho que um dos motivos que provocam essa crimi-
preliminar, lidando tanto com os elementos não-verbais da interação quanto com algumas das nalidade crescente é essa inflação que é desumana, que atinge muito a classe de renda me-
minhas reações aos temas discutidos. Esses exercícios eram importantes não apenas para enten-
nor ... O Plano tirou o poder de compra do comprador. O Plano Collor- eu votei no Collor-, o
der a entrevista como também para gerar questões para entrevistas futuras. Segundo, cada entre-
vista era transcrita de maneira literal. Terceiro, depois que terminei todas as entrevistas e tinha Plano Collor veio pra diminuir o empobrecimento, pra tirar do rico e pôr ... eu acho que acon-
uma idéia do material como um todo, revi cada entrevista e escrevi uma análise da estrutura da teceu o contrário, até agora tem sido o contrário, o pobre tá mais pobre e o rico tá mais rico ...
narrativa e das opiniões dos entrevistados sobre temas diferentes. Esse tipo de análise é semelhan- A hiperinflação corrói completamente os conceitos de moralidade, de tudo que você possa ter,
te àquela apresentada no capítulo 1. A intenção era gravar em minha mente a individualidade de mudam seus conceitos ... Então, eu acho que na hiperinflação todos perdem tudo, ninguém ganha
cada narrativa e suas articulações antes de começar a pensar em termos de comparações, justapo- nada ... A inflação faz com que você perca os teus conceitos.(. .. ) Então, sem querer, sem querer,
sições e talvez generalizações. De fato, lidar com material qualitativo é concentrar-se na riqueza
não, a inflação faz com que você pague muito pouco pro teu empregado, e a inflação, ela traz
dos detalhes. Quarto, gerei uma lista de temas que pareciam centrais e recorrentes. Esses temas
expressavam associações de questões (por exemplo: mal versus autoridade, em vez de mal e auto- o dinheiro pro rico, ela concentra renda, então eu acho imoral, é como roubo; roubo pra mim
ridade em separado). Quinto, voltei ao arquivo eletrônico de cada entrevista e introduzi marcas é imoral.
de índice correspondentes aos temas que tinha identificado. Sexto, produzi um índice para cada Empresário do ramo imobiliário, cerca de 40 anos, mora com a mulher e três filhos no
entrevista. Sétimo, produzi um índice geral de índices. Esses dois tipos de índices guiaram-me através
Morumbi.
do processo de escrita e me permitiram navegar com certa confiança pelas entrevistas. A primeira
versão da análise continha todas as citações pertinentes a cada tema analisado. Era praticamente
ilegível, por causa do tamanho, da quantidade de repetições e da atenção aos detalhes. Esta é a Era comum a opinião de que os remédios para lidar com a inflação alta ha-
terceira versão, na qual tento estabelecer um compromisso entre as exigências de legibilidade e viam sido consistentemente ineficazes, culminando com o Plano Collor. Esse pla-
referência ao material. no afetou todo mundo, e os entrevistados concordaram que, apesar de suas inten-
2.7
4 Essa tensão entre um ideal moderno e a realidade retrógrada da nação vem à tona nos mais - Eu acho que a coisa está caminhando para uma internacionalização. Eu acho que o
diferentes modelos inventados pelas ciências sociais brasileiras para conceber a realidade brasilei- Estado nacional está sendo ultrapassado, está tudo muito interligado, uma nação não vive so-
ra. Ela está presente nas discussões raciais do final do século XIX sobre "branqueamento da po- zinha. Quer dizer, aquele espírito: "vamos fechar as fronteiras e fomentar o mercado interno",
pulação" (cf. Skidmore 1974) e nos debates sobre o relacionamento entre liberalismo e escravi- esse negócio não existe mais. A velocidade do conhecimento está muito grande e é uma velo-
dão (cf. a famosa discussão sobre as "idéias fora do lugar" de Schwarz (1977). Ela também está cidade que se dá por uma sinergia que existe, uma relação sinérgica entre as nações; se fe-
obviamente presente nas discussões sobre o desenvolvimentismo nacional e a necessidade de pu- char, vai ficar para trás ...
lar etapas de desenvolvimento e acelerar a industrialização (cf. Furtado 1969 e a discussão sobre
a "originalidade da cópia", de F. H. Cardoso 1980), e sobre a teoria da dependência (Cardoso, F.
H. e Faletto 1967). O modelo antropológico mais famoso articulando a tensão entre as espe-
cificidades locais e a modernidade completa é o de DaMatta (ver especialmente 1991). 6 Ilusão é também uma boa metáfora para o que acontece sob a inflação e para a ciranda
5 financeira que a acompanha: as pessoas pensam que ganharam dinheiro com a especulação finan-
Algumas dessas imagens são tão velhas como o próprio país. Elas ecoam a famosa frase
"uma terra onde, em se plantando, tudo dá", usada em 1500 pelo escrivão Pero Vaz de Caminha ceira, mas é apenas uma ilusão, pois o poder de compra desaparece; as pessoas pensam que o sa-
para descrever a nova terra para o rei de Portugal. lário aumentou, quando ele apenas acompanhou a inflação.
estamos começando a melhorar(. ..) Eu acho que já se conversa num nível um pouco mais in-
"O salário só dá pra comer mesmo, não dá nem pra ir no
ternacional, uma coisa assim um pouco mais ampla. Acho que já se vislumbra que não pode
parque levar a Maria pra brincar de roda-gigante."
ser como era(. ..) Não é fácil. A nossa mentalidade é muito ... , eu não sei, eu acho que um pouco
primitiva até, né? Essa falta de noção que nós temos de economia, essa coisa de não Mecânico de automóveis, 22 anos, casado; mora no
Jardim das Camélias com a mulher Maria e dois irmãos.
consumir adequadamente. Enquanto a gente não entender- a gente que eu estou falando e
nós todos, o povo -, não entendermos que a gente tem que poupar, que a gente tem qu.e
Os mesmos sentimentos de e incerteza expressos em comentários
consumir adequadamente, tudo vai ser difícil. Eu acho que pior é o consumo do pessoal
sobre o país marcam as discussões individuais. Se o progresso
miúdo, pessoal que não tem noção nenhuma de nada ... Enquanto não mudar essa mentalida-
do país estava se tornando mais uma ilusão do que uma promessa, para os indiví-
de, eu acho muito difícil. duos a experiência de decadência social era cada vez mais a realidade. Isso aconte-
[Mais tarde ela argumentou que São Paulo é um lugar especial. Explicou que se uma pes-
cia em todos os grupos sociais, mas obviamente era expresso de maneiras diversas
soa viaja no interior do estado de São Paulo, realmente fica surpresa com seu desenvolvimen-
e associado a dificuldades extremamente diferentes de acordo com a classe social.
to. Durante os primeiros dias que se seguiram ao Plano, "quando era aquela miséria nacional",
Pouco antes do Natal de 1990, entrevistei três irmãos no Jardim da Camé-
ela teve de voar para Minas. Olhando para baixo do avião, pensando que ninguém tinha dinheiro
lias, os quais conhecia desde 1978, quando eram garotos. Em dezembro de 1990
naquela época, mas vendo toda a terra cultivada, "essa coisa fantástica", ela pensou.]
o mais velho (A) estava com 22 anos, tinha acabado de casar e trabalhava
Puxa! 0 Brasil é um fenômeno, não pode afundar. Eu acho que é uma diferença grande
mecânico de automóveis, ganhando Cr$ 35 mil (quase três salários mínimos) por
para 0 resto do Brasil. (... ) O pessoal aqui em São Paulo, o pessoal trabalha, o pessoal não se
mês; seu irmão (B) tinha 16 anos e era trabalhador não qualificado numa fábrica
deixa ... o pessoal está trabalhando e está tocando a sua vida. Isso aí não tem como parar, eu
têxtil, ganhando Cr$ 18 mil (um salário mínimo e meio); e seu irmão (C), com 19
acho. Essa parte do país eu acho que não tem o que faça parar. O pessoal quer trabalhar. En-
anos, estava procurando um emprego: acabara de voltar da Bahia, para onde a
quanto nós não nos desligarmos dessa mentalidade de governo protetor, isso aí não tem jei-
família tinha se mudado alguns anos antes. A entrevista revelou não apenas o nível
to. Tudo o governo, o governo que tem que dar, o governo que tem que fazer, o governo ... Isso
de pobreza e as restrições que moldam seu dia-a-dia, mas também sua falta de es-
aí ... isso aí é um desastre. O que a gente precisa é livre iniciativa, é trabalhar, tocar a vida pra
perança num futuro melhor. Esse pessimismo fica especialmente claro quando con-
frente. a uma outra série de entrevistas que fiz dez anos antes com um grupos de
Dona de casa, 52 anos, Morumbi, dois filhos; o marido é executivo de uma multi nacional.
JOvens rapazes no Jardim das Camélias: todos acreditavam no progresso e achavam
que em alguns anos estariam em melhor situação social, apesar de acreditarem que
As poucas pessoas que estavam otimistas a respeito do país em 1990-1991 eram
para isso precisariam se esforçar muito, trabalhando pesado e estudando (Caldeira
das classes mais altas. Elas viam uma nova fórmula de progresso, de incorporação
168-72). Entretanto, em 1990, os jovens do Jardim das Camélias sentiam que
ao sistema mundial e à modernidade (que Collor representava), e que talvez pudesse
havia pouco que pudessem fazer para melhorar sua qualidade de vida. Mesmo se
deixar para trás o lado atrasado do país (os pobres, o Nordeste), fortalecendo as
12 As entrevistas na Cidade Júlia em 1981 e 1982 foram feitas por Antonio Manuel Texeira 13
As entrevistas no Jaguaré foram feitas por Maria Cristina Guarnieri, integrante da equi-
Mendes, integrante da equipe do Cebrap. pe do Cebrap. Nessa entrevista, "M" refere-se ao marido da entrevistada.
e colocar em palavras qualquer ofensa a elas, como se fosse possível eliminar o desce o da garupa e pega o carro e vai, e os dois fogem. Você vê, numa moto! Esse troço
racismo ao não se pronunciar certas palavras. Essa é uma das razões pelas quais deve ser ... eu nunca vi, mas não deve ser'cara mal vestido.
vários recenseamentos brasileiros omitem questões sobre raça e pela qual as pes- Diretor geral e co-proprietário de uma indústria química, 37 anos, esua esposa, que é dona
soas usam todo tipo de eufemismos (moreno, escurinho, por exemplo) para se re- de casa, 36 anos. Eles moram com os dois filhos no Morumbi.
ferir a uma pessoa negra. 17 É por isso também que o Movimento Negro encontra
dificuldade em recrutar ativistas que optem por identificar-se publicamente como Nos bairros ricos, a imagem do criminoso pobre não é muito detalhada, pro-
negros (abandonando categorias "mais brancas" como mulato) e que os julgamentos, vavelmente pela simples razão de que os moradores não temem ser confundidos com
desde que a Constituição de 1988 definiu o racismo como um crime, têm sido ra- criminosos. Seus discursos sobre criminosos raramente deixam o campo do genéri-
ros e frustrantes (ver Guimarães 1997). A constante necessidade de censurar as co e essa distância social segura lhes permite até mesmo uma certa proximidade
palavras aprendidas no contexto das relações raciais pode muito bem ter influen- simbólica: alguém que é um criminoso pode não coincidir com o estereótipo do
ciado a expressão de depreciações em relação a outras categorias sociais. Apesar criminoso; pode até estar bem-vestido. Foi apenas no Morumbi que residentes se
\de as pessoas expressarem julgamentos em relação aos nordestinos e referiram à imagem do moderno profissional do crime, com jaquetas de couro,
)favelados (também possíveis eufemismos para aos pobres em geral, elas motocicletas e armas, interessado em dólares e com recursos para crimes sofistica-
·\procuram corrigir-se, atribuir a opinião a outros, relativizá-la. A arte de discrimi- dos como seqüestro, o crime que a elite mais teme.
/ nar e ao mesmo tempo negar que se faz isso só pode ser cheia de ambigüidades. A proximidade real com o estereótipo do criminoso, entretanto, requer um
f Mas é uma arte em que os brasileiros são mestres (Caldeira 1988). discurso elaborado de distanciamento e separação. Quando entrevistei as pessoas
Em formas às vezes mais elaboradas, às vezes menos, os moradores que en- na periferia ou na Moóca, perguntei-me várias vezes se a minha insistência no assunto
trevistei em todos os bairros usaram alguns desses modos de expressão parado- do crime não iria automaticamente gerar ansiedade, dúvidas sobre se eu suspeita-
xais em relação aos pobres, aos favelados, às pessoas que vivem nos cortiços e aos· va que eles fossem criminosos, e a conseqüente necessidade de enfatizar as diferen-
nordestinos. Entretanto, alguns moradores do Morumbi ofereceram uma descri- ças. As pessoas pobres que entrevistei sempre se esforçaram para distanciar a si
ção diferente dos criminosos. Eles associam o aumento do crime ao tráfico de dro- mesmos e a outras "pessoas honestas, trabalhadoras" da imagem do criminoso. Essa
gas e a operações criminais cada vez mais sofisticadas. Uma dona de casa me dis- ansiedade em relação à separação não tem origem exclusiva num esforço para exi-
se que nenhuma das pessoas que ela conhecia que haviam sido assaltadas tinha . bir um status social melhor ou num exercício simbólico. Na verdade, a "confusão"
sido roubada por um "mendigo". "Grandes assaltos"- argumentou ela- "são · ,f'\ entre
j pobres e criminosos pode ter sérias conseqüências, considerando-se
feitos por gente muito bem-vestida, muito bem-arrumada, e se um tipo com ja- · ')que a os mesmos estereótipos, freqüentemente confun-
queta se aproximar de você, você deve tomar cuidado, porque a jaqueta sempre / dindo os e às vezes até matando-os. O aspecto paradoxal
esconde uma arma". Outro casal, que foi roubado num restaurante e que decidiu · da tentativa ch1s pobres trabalhadores de separarem-se do estereótipo do criminoso
'aceitar o medo do crime como um preço que tem de pagar para viver em São Pau- é que isso é feito usando-se contra o vizinho as mesmas estratégias que são usadas
i lo, cidade de que eles gostam, falou sobre a discrepância entre a imagem comum
contra a própria pessoa. Como conseqüência, a categoria do criminoso e seu reper-
do criminoso como pobre e a realidade mais provável de ser roubado por alguém tório de preconceitos e depreciações raramente são contestados. Ao contrário, a
que não parece pobre. categoria é continuamente legitimada e os preconceitos e estereótipos contra os
pobres (favelados, nordestinos, moradores de cortiços) são reencenados diariamente.
O universo simbólico do crime não está limitado a referências de caráter so-
cioeconômico e não está restrito aos tipos de preconceitos e difamações que acabei
17 de analisar. O crime é também uma questão do mal, e suas explicações também têm
A negação de categorias raciais é compartilhada por outros países latino-americanos que
também tiveram escravidão e na virada do século XIX adotaram versões da "teoria do branquea- a ver autoridade e construções culturais destinadas a domesticar as forças do
mento". Esses são países que habitualmente não registram raça nos seus censos (Hasenbalg 1996). mal. E importante investigar essas concepções sobre o controle da difusão do mal
Para a Venezuela, ver Wright (1990); para a Colômbia, ver Wade (1993); e para Cuba, ver Helg porque os paulistanos as usam para atacar os direitos humanos, para apoiar abu-
(1990).
sos da polícia, justiceiros e esquadrões de morte, e para justificar a pena de morte.
2.31
O CRIME VIOLENTO E A
A- Etem gente até que rouba e nem precisa, rouba por que é descarado. Que nem uma FALÊNCIA DO ESTADO DE DIREITO
época aí que tinha os filho de barão jogando bomba dentro de restaurante. Por que faz aqui-
lo? Acho que é uma diversão pra eles, não têm o que fazer, vai ver quer tirar a paciência da
gente mesmo.
C- Se fosse pobre, a polícia pegava, batia ...
A- Se fosse pobre, a polícia pegava, batia, fazia tudo; mas como é rico, podia até ser
filho de general, de major, se a polícia pegar, tem que soltar.
A violência aumentou em São Paulo nos últimos quinze anos. Não apenas o
crime violento aumentou, mas também os abusos e a violência das instituições res-
ponsáveis pela prevenção do crime e pela proteção dos cidadãos. Neste capítulo,
discuto algumas das dificuldades em medir e explicar esses aumentos. As estatísti-
cas de crimes produzidas pela polícia sofrem várias distorções. As explicações dis-
poníveis sobre o crime, baseadas em modelos que o associam a variáveis socioeco-
nômicas e de urbanização, assim como a variáveis de gastos com segurança públi-
ca (incluindo o número de policiais e equipamentos), não conseguem elucidar o que
mais interessa à população entender: o aumento da violência, e não apenas do cri-
me. Para compreender o crescimento da violência, é necessário considerar tanto o
colapso das instituições da ordem (polícia e judiciário) e de tentativas de consoli-
dar um estado de direito, quanto a crescente adoção, tanto por agentes do Estado
quanto por civis, de medidas extralegais e privadas para enfrentar o crime. É ne-
cessário também examinar as experiências dos moradores da cidade com a polícia
e suas percepções sobre ela, assim como suas concepções de direitos individuais,
punição e do corpo. O aumento da violência é resultado de um ciclo complexo que
envolve fatores como o padrão violento de ação da polícia; descrença no sistema
judiciário como mediador público e legítimo de conflitos e provedor de justa repa-
ração; respostas violentas e privadas ao crime; resistência à democratização; e a débil
percepção de direitos individuais e o apoio a formas violentas de punição por par-
te da população.
MOLDANDO AS ESTATÍSTICAS
crimes, ou a temem por seu conhecido padrão de brutalidade (analisado nos capí- estatísticas- foi claramente identificada por Paixão (1982, 1983), Lima (1986) e
'
tulos 4 e 5). De modo semelhante, o sistema judiciário é visto como ineficiente pela Mingardi (1992). Embora Paixão desenvolva uma importante discussão teórica sobre
maioria da população. De acordo com a mesma pesquisa, do total de pessoas en- as diferenças entre as classificações formais e informais ausentes no trabalho de
volvidas em ao menos um tipo de conflito durante os anos de 1983-1988 na região Mingardi, daqui em diante vou me referir basicamente a este último. A pesquisa de
Sudeste do Brasil, 50,71% não recorreram ao sistema judiciário. 6 As principais ra- Mingardi é específica sobre São Paulo, enquanto a de Lima foi realizada no Rio de
zões dadas foram as seguintes: as pessoas resolveram os problemas por si mesmas Janeiro e a de Paixão em Belo Horizonte, lugares onde a polícia e as estatísticas são
(41,70% ); o incidente não era importante (11,09% ); não queriam envolver o siste- organizadas de forma diferente.
ma judiciário (10,87%); não tinham provas (10,46%); e achavam que o sistema Antes de discutir o estudo de Mingardi, é necessário acrescentar algumas in-
judiciário não iria resolver o conflito (6,31%). A desconfiança tanto em relação à formações sobre a organização da polícia no estado de São Paulo e no Brasil em
polícia quanto ao sistema judiciário, isto é, em relação às instituições públicas en- geral. As polícias são organizadas em âmbito estadual e divididas em duas corpo-
carregadas da ordem, provavelmente está associada ao fato de que as pessoas pre- rações: a Polícia Civil e a Polícia Militar, PM, ambas sob a autoridade da Secreta-
ferem resolver seus problemas por si mesmas, mesmo quando o problema é crime. ria de Segurança Pública do Estado. A polícia civil está encarregada da polícia ad-
Na verdade, de todas as pessoas envolvidas em disputas criminais no Sudeste do ministrativa (emissão de cédulas de identidade, registros de armas etc.) e da polícia
Brasil, 72,56% não entraram no sistema judiciário. O tipo de conflito que mais judiciária. Os deveres desta última incluem registrar queixas e eventos criminais,
freqüentemente leva as pessoas a esse sistema são disputas trabalhistas (70,83% investigar crimes, produzir provas e a instalação (ou não) de inquéritos. Este é o
dessas disputas detectadas pela PNAD foram parar na justiça). trabalho principal da polícia civil, que, em conseqüência, produz os relatórios nos
A distorção das estatísticas de crime não é só uma questão quantitativa, mas quais as estatísticas são baseadas, assim como registros e evidências com base nos
também qualitativa. Tendo em vista que é a polícia que produz as estatísticas, sua quais o sistema judiciário vai trabalhar. A polícia militar atual foi criada pelo regi-
visão do que seja a população potencialmente criminosa, sua avaliação sobre os me militar em 1969 e está encarregada do policiamento uniformizado de rua. Ela
diversos crimes e sua maneira de agir em relação aos diferentes tipos de eventos tem organização militar e sistema de recrutamento e instrução separados. A rivali-
são todos elementos que influenciam os resultados - ou seja, as estatísticas. Pai- dade e o conflito entre as duas corporações é tradicional e marca sua performance
xão (1982, 1983) estudou os métodos de classificação da polícia brasileira seguin- cotidiana. Em cada estado também há um ramo da Polícia Federal, basicamente
do parcialmente a abordagem da etnometodologia. Ele mostra que as práticas de encarregada das questões de fronteira e segurança nacional, mas que também con-
classificação não são moldadas por classificações legais e formais, mas se baseiam trola o tráfico de drogas e o contrabando. Finalmente, algumas cidades, tais como
num código prático que chama de "lógica-em-uso" (Paixão 1983), o qual trans- São Paulo, têm uma Guarda Metropolitana local com pouco poder, cujo trabalho
forma eventos e indivíduos em categorias e artigos do Código Penal. Em con- é mais manter a ordem em alguns espaços públicos (parques, prédios da adminis-
seqüência, tração pública, teatros etc.) do que lidar com o crime.
Depois de completar um curso na Academia de Polícia (Acadepol), Guaracy
Estatísticas oficiais de criminalidade devem ser vistas não como Mingardi trabalhou como investigador da polícia civil numa delegacia de bairro na
indicadores do comportamento criminoso e de sua distribuição social, periferia de São Paulo durante 1985 e 1986. Seu livro apresenta uma detalhada
mas como produtos organizacionais, refletindo condições operacionais, etnografia da vida cotidiana numa delegacia e revela sua lógica-em-uso e os tipos
ideológicas e políticas da organização policial. Assim, por um lado, des- de distorções introduzidas na produção de estatísticas e no tratamento das denún-
continuidade e mudanças nas rotinas organizacionais de coleta e classi- cias. De acordo com Mingardi (1992: Parte I), práticas ilegais como a corrupção e
ficação, sensibilidades variáveis das autoridades policiais em relação a a tortura não só são uma norma na polícia civil como são interdependentes, isto é,
certos tipos de crimes ou respostas policiais a "cruzadas morais" e a costumam ocorrer juntas. Elas constituem o que ele chama de método de trabalho
pressões políticas geram distorções na contabilidade criminal que de dos policiais civis.
forma alguma são negligenciáveis. (Paixão 1983: 19)
Pretendemos aqui mostrar que o mau tratamento infligido ao pre-
A lógica em uso da polícia que molda a translação entre os eventos do dia-a- so faz parte de um processo, que inicia-se com a seleção do suspeito e
dia e as classificações do Cóçligo Penal - e conseqüentemente as categorias das termina na entrega dele à justiça, ou então no acerto que o liberta. (Min-
gardi 1992: 52)
7
O pau-de-arara parece ser a forma mais comum de tortura usada pela polícia em São Pau- 8
Responsabilidade, dever de uma instituição de prestar contas diante da sociedade.
lo. Também foi a forma mais comum utilizada contra presos políticos durante o regime militar. O
9
preso é suspenso por uma barra pela parte de trás dos joelhos, com as mãos amarradas à frente As análises de Lima sobre a polícia do Rio de Janeiro também indicam que as estatísticas
das pernas. Descrições desse e de outros métodos comuns de tortura são encontradas em Arqui- policiais são distorcidas, especialmente em casos de furtos, roubos, vadiagem e jogo do bicho (1986:
diocese de São Paulo (1986: cap. 2), Americas Watch (1987: cap. 5), Anistia Internacional (1990). 124).
1000 Ano
1973 1975 1977 1979 1981 1983 1985 1987 1989 1991 1993 1995
-MSP -OM
Ano
- - RMSP -MSP -OM CRIMES CONTRA A PESSOA
CRIMES VIOLENTOS Considero separadamente três tipos principais de crimes contra a pessoa:
homicídio (homicídio doloso mais homicídio culposo), lesão corporal dolosa e es-
', //
0 fato de que as formas mais\violentas de crime crescerall}/mais)do que as tupro. Eles não correspondem à categoria de crimes contra a pessoa que considerei
menos violentas pode ser visto ao se juntarem os totais de tentativas antes, por causa da inclusão do estupro e da exclusão da categoria "outros", e não
homicídio, lesão corporal dolosa, estupro, tentativa de estupro, roubo e latrocínio correspondem à categoria de crimes violentos, porque excluem crimes violentos
numa única categoria de "crimes violentos". No início dos anos 80, esses crimes contra a propriedade. Freqüentemente, nas estatísticas oficiais, o número de regis-
representavam cerca de 20% do total de crimes registrados; depois de 1984, eles tros para uma categoria de crime inclui "tentativas" de crime, por exemplo, homi-
passaram a representar cerca de 30% do total, chegando a 36,28o/o em 1996. Essa cídio e tentativa de homicídio. Na análise a seguir, especifico quando também es-
mudança considerável indica que no começo dos anos 80 não só a quantidade de tou considerando as tentativas. Na maioria dos casos, não levo em consideração
crimes cresceu, mas também, e o que é talvez mais importante, sua qualidade mudou. os números de tentativas de homicídio, mas apenas os homicídios, como é comum
Além de indicar um crescimento da violência, os dados também mostram que nas análises de crimes. No entanto, considero as tentativas de estupro, porque no
os crimes violentos cresceram mais nos OM (média de 5% ao ano) do que no MSP Brasil os registros de estupro são precários e provavelmente muitos estupros são
(4,22% ). No entanto, as taxas per capita ainda são mais altas na cidade de São Paulo. classificados apenas como "tentativas de estupro". O Gráfico 4 compara as taxas
O Gráfico 3 também mostra que o pico dos crimes violentos tanto no MSP quanto de homicídio e tentativas de homicídio, lesão corporal dolosa, estupro e tentativas
nos OM no período considerado ocorreu em 1996, depois de aumentos significati- de estupro e vítimas de acidentes de automóvel (tanto mortos quanto feridos) em
vos em 1983 e 1984 (1986 nos OM). As taxas de crimes violentos têm crescido de toda a região metropolitana. Como seria de esperar, as taxas de lesão corporal dolosa
forma constante desde 1988, especialmente no MSP. Desde 1990, os crimes vio- são significativamente mais altas que as outras. De fato, a lesão corporal dolosa
lentos representam mais de mil ocorrências por 100 mil habitantes no MSP e mais representa uma média de 10% do total de crimes registrados, enquanto os homicí-
de 850 nos OM. dios representam menos de 1% e o estupro cerca de 0,5%. Conseqüentemente, le-
são corporal dolosa influencia o formato da curva de crimes contra a mais O homicídio doloso foi o crime com as mais altas taxas de crescimento mé-
do que outros tipos de crime. Pelo fato de lesão corporal dolosa ter decresCido (no dio entre 1981 e 1996. As variações anuais médias foram semelhantes na cidade
MSP) ou crescido pouco (nos OM), o aumento nas taxas de crime a pessoa de São Paulo (9,28%) e nos OM (10,05%). Como mostra o Gráfico 5, tanto no
foi relativamente moderado no período analisado. No entanto, se analisarmos cada centro como na periferia da região metropolitana, a taxa de homicídios dolosos
cresceu constantemente nos anos 80, alcançando 47,29 por 100 mil habitantes em
categoria separadamente, o quadro é bem diferente.
1996, um valor significativamente mais alto do que os 14,62 de 1981. Essas taxas
foram produzidas de acordo com os registros policiais e diferem daquelas produzi-
Gráfico 4 das com base no registro compulsório de morte e classificadas de acordo as cate-
Taxas de crimes contra a pessoa gorias CID. 19 Como mostra a Tabela 2, os diferenciais são altos durante todo o
Região metropolitana de São Paulo, 1981-1996 período considerado. No entanto, a discrepância parece representar um problema
450 de volume mas não de tendência de crescimento, como o Gráfico 6 torna evidente:
as taxas anuais de crescimento de homicídios dolosos registrados pela polícia civil
400 e pelo Registro Civil foram muito similares, especialmente no município de São
(/)
<l)
ç:: ' __' .., Paulo. Em outras palavras, embora os dados do registro de óbitos indiquem cons-
z:l 350 ..... , __ .,. tantemente um número maior de homicídios do que os dados da polícia civil, am-
J5til
..c: bos mostram um padrão similar de crescimento entre 1981 e 1996 .
o 300
o
o
oo Gráfico 5
,..... 250
Taxas de homicídio doloso
-- ( /)
20
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública, em 1994 houve 19 chacinas na cidade
de São Paulo, com um total de 61 mortes. Em 1995 houve 30 chacinas e 96 mortes. Embora esses
mantém as informações mais detalhadas, mas apenas para os últimos anos e apenas para o muni- eles não explicam a diferença entre as ocorrências policiais e os dados
cípio de São Paulo. Dados do registro de óbitos têm uma classificação muito mais complexa e do Registro ClVll, que em 1994 foi de 473 e em 1995 foi de 894 na cidade de São Paulo.
acurada das causas de morte do que os da polícia, permitindo diferenciar, por exemplo, o instru- 21
mento usado e o motivo (intencional ou não intencional, ou, ainda, de intencionalidade indeter- . Feiguin e L!ma (1995) usam uma tabulação especial de homicídios que difere dos dados
minada). Em geral, mortes provocadas intencionalmente são denominadas homicídios em estatís- publicados pelo Seade que utilizo aqui. Para os dados da polícia civil, eles agru-
ticas sanitárias. No entanto, como as categorias incluídas nessa classificação (E960 a E969) ex- pam homiCidlO doloso e homicídio culposo. Para os dados do Registro Civil, usam uma tabulação
cluem as mortes provocadas em relação às quais a intencionalidade é indeterminada, eu as consi- de acordo com o lugar da morte em vez do lugar de residência da vítima.
dero como homicídio doloso, tornando-as comparáveis à categoria da polícia civil que exclui ho- 22
. ,Feiguin e Lima (1995) analisam apenas dados do município de São Paulo, mas formulam
micídio culposo. essa h1potese para os outros municípios.
s
:õro 1400
23 Chesnais analisa as estatísticas disponíveis para a Europa e os Estados Unidos compara- ..c
o 1200
tivamente desde pelo menos a metade do século XIX. A falta de informações e de análises para pe- o
o
ríodos anteriores torna difícil falar sobre a tendência histórica das taxas de homicídio no Brasil, oo
,.....; 1000
mas há indicações de que nas primeiras décadas desse século elas eram maiores do que na Europa
r /l
e nos EUA. Para o caso de São Paulo, Fausto (1984: 95) indica que entre 1910 e 1916 a taxa de --
·;;
prisões por homicídio por 100 mil habitantes estava ao redor de 10,7. De acordo com Bretas (1995: :g 800
111), as taxas de homicídios por 100 mil habitantes no Rio de Janeiro entre 1908 e 1929 oscila- õ
0..
r/l 600
ram entre 3 (1918) e 12,33 (1926). A média foi de 8,09. Segundo Chesnais, a taxa de homicídio ro
'[)
de Paris entre 1910 e 1913 era de 3,4, e entre 1921 e 1930, 1,9 (1981: 79). Na França, a taxa de t::
<<ti
homicídio doloso para o período de 1901-1913 era de 1,13, e para o período de 1920-1933, 1,06 ........ 400
o
(Chesnais 1981: 74). Para os EUA, a taxa para o período 1901-1910 era de 2,93, e entre 1911 e u
1920 era de 6,28 (Chesnais 1981: 93). Os dados de Chesnais baseiam-se em estatísticas da Orga-
o 200
nização Mundial de Saúde. Conforme essa fonte, nos anos 90, as taxas de homicídio foram de:
9,8 nos Estados Unidos (a taxa de 1990 de acordo com o FBI foi de 9,4); 1,1 na França (1991); o
1,2 na Alemanha (1992); 2,9 na Itália (1991); 1,0 na Espanha (1990); 0,9 no Reino Unido (1992); 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996
0,6 no Japão (1992) (Nações Unidas 1995: 484-505). Ano
24 --Furto- MSP Furto- OM - - - Roubo- MSP --Roubo- OM
Os dados para as cidades americanas são dos Uniform Crime Reports for the United States,
baseados em ocorrências policiais e publicados pelo FBI. Os dados para a América Latina e para
o Caribe são das Nações Unidas (1995: 484-505) e referem-se às taxas de morte compiladas pelas
autoridades de saúde. Situações locais podem diferir consideravelmente das médias nacionais. De 28 de novembro de 1990, p. 66). Devemos ser cuidadosos ao examinar essas taxas internacionais.
acordo com um estudo feito pelo Population Crisis Committee, em 1985 algumas das piores ta- Para 1985, as taxas para a cidade de São Paulo apresentadas nesse estudo quase coincidiram com
xas de homicídio por 100 mil habitantes ocorreram em Cape Town (64,6), Cairo (56,3), Alexandria as ocorrências da polícia (26,98), mas são bem diferentes daquelas produzidas com base no regis-
(49,3), Rio de Janeiro (49,3), Manila (36,5), Cidade do México (27,6) e São Paulo (26,0) (Veja, tro de óbitos tanto para São Paulo (35,8) quanto para o Rio de Janeiro (41,0).
1
Valor relativo ao total de homicídios calculado pelo Registro Civil, que provavelmente inclui
as mortes causadas pela polícia. Se considerarmos o total de homicídios registrado pela polícia civil,
a porcentagem de mortes causadas pela polícia seria de 27,6%.
sa tem o direito de ser protegida da autoridade sob a qual ela está em custódia. Mas isso não sig- Estado e as tentativas de controlar os pobres urbanos na Europa ocidental durante o início da
nifica que [a polícia l não deva colocar em efeito toda a devida energia quando o respeito à lei não industrialização, ver Schwartz (1988), Chevalier ([1958] 1973), Davis (1991) eJones (1982: capí-
é obtido por outros meios" (Holloway 1993: 245). Por mais de um século, "devida energia" tem tulos 5-7). Para uma análise da contínua diminuição de prisões por crimes sem vítimas nos Esta-
significado brutalidade. dos Unidos entre 1860 e 1920, ver Monkkonen (1981).
10% da população no período de 1904-1916, compreendiam 28,5% dos presos lenciar seus adversários políticos. A polícia civil era a principal instituição encarre-
(1984: 52). Os estrangeiros representavam a maioria das pessoas detidas (uma média gada desses esforços e foi significativamente reforçada, colocando-se com freqüên-
de 55,5% no período de 1894-1916), mas eram também a maioria da população cia acima do sistema judiciário. Muitos representantes do regime, como Francisco
de São Paulo na época. A análise de Fausto demonstra que, apesar dos preconcei- Campos, ministro da Justiça, defendiam publicamente o uso da violência como forma
tos contra os imigrantes serem bem enraizados entre as autoridades de segurança de manter a ordem (Cancelli 1993: 20). Outros expressaram na revista Cultura e
pública nessa época de imigração intensa, o padrão de criminalização dos estran- Política sua opinião de que a relação entre a justiça e a polícia seria inevitavelmen-
geiros era mais complexo que o dos negros e brasileiros pobres (1984: 59-69). Por te conflitiva e de que era melhor para o Estado confiar numa instituição "mais
um lado, os estrangeiros eram menos visados por delitos de ordem pública como móvel" e arbitrária como a polícia (Cancelli 1993: 23). A polícia e sua "flexibili-
vadiagem (28,7% comparados a 71,3% para o período de 1904-1906) e mais fre- dade" foram cruciais para a ditadura de Vargas.
qüentemente indiciados por delitos graves (61,3% de todos os homicídios e 60,3% Refletindo o papel estratégico da polícia para o regime, Vargas efetuou uma
de todos casos de furtos e roubos em 1880-1924) (1984: 44, 62). Por outro lado, completa reestruturação da polícia em âmbito nacional. O departamento de polí-
eles tinham melhores condições de se defender, tanto denunciando a discriminação cia do Distrito federal (a polícia civil do Rio de Janeiro) foi colocado sob jurisdi-
que sofriam em vários jornais operários, como organizando redes de apoio para ção direta do presidente e do ministro da Justiça e Negócios Internos (1933). Em 2
ajudar a pagar por sua defesa legal. de julho de 1934, o governo promulgou um decreto de 500 páginas (Decreto 24.531 ),
Mas existem também indicações de que durante a Republica Velha as preo- que detalhava as funções da polícia em todos os níveis e fornecia um modelo para
cupações da elite paulista em relação à polícia não se concentraram exclusivamen- o patrulhamento das principais cidades. Este decreto estabeleceu as fundações para
te no controle de uma população potencialmente desordeira. Enquanto a polícia a federalização e centralização da polícia completadas depois de 1937 (Cancelli 1993:
civil continuava a lidar com o crime e o comportamento público dos trabalhado- 60-4 ). Na prática (ainda que não necessariamente na lei), todas as polícias estaduais
res, a elite traçou outros planos para a polícia militar. São Paulo abrigava na época ficavam subordinadas diretamente à polícia do Distrito federal (e não aos gover-
uma das principais oligarquias que disputavam o poder nacional, e uma das con- nos estaduais). De acordo com Cancelli, Filinto Müller, o poderoso chefe de polí-
quistas mais importantes da elite paulista foi estruturar a polícia provincial como cia do Distrito federal entre 1933 e 1942, tinha mais poder do que qualquer juiz e
uma contraforça tanto em relação ao Exército controlado pelo governo federal, como mesmo do .que os ministros da Justiça, e organizou todo o trabalho de repressão,
às forças policiais locais controladas por "coronéis". A partir de 1868, além da tanto política quanto do crime. Diretamente sob a jurisdição do chefe de polícia
polícia civil, São Paulo teve uma polícia provincial (o Corpo Policial Permanente). do Distrito federal estava a Delegacia Especial de Segurança Pública e Social, que
No final do século XIX, havia também criado forças policiais separadas para o depois de 1941 coordenou todos os serviços de informação, inteligência e censura
interior e para a capital. (1993: 54-5).
Em 1901, a província reorganizou suas forças policiais, unificando todo o A ação repressiva da polícia durante o Estado Novo visou especialmente os
patrulhamento na Força Pública. A polícia civil judiciária continuou a existir o tempo estrangeiros e supostos comunistas, freqüentemente identificados entre si (Cancelli
todo. Como Heloísa Fernandes (1974) mostra, durante as três décadas seguintes, 1993: 79-82). Para controlar os estrangeiros, o Estado brasileiro fez vários acor-
as autoridades provinciais agiram para equipar, treinar, institucionalizar e profis- dos de extradição com outras nações (1993: 82-92) e apoiou-se em delações feitas
sionalizar suas forças policiais "híbridas", que eram organizadas em termos mili- tanto por indivíduos quanto por instituições, como os vários sindicatos operários
tares mas controladas por autoridades civis. Como parte desse esforço, a província controlados pelo Ministério do Trabalho (1993: 92-7; 140-58). Além disso, 0 Es-
trouxe uma missão francesa a São Paulo em 1906 para organizar a Força Pública. tado Novo tomou várias medidas visando controlar a imigração, promover a nacio-
Além de controlar "desordens públicas", especialmente os crescentes movimentos nalização e monitorar a vida dos estrangeiros no país (1993: 121-59). Durante a
sindicais das décadas de 1910 e 1920, a Força Pública paulista transformou-se numa Segunda Guerra Mundial, residentes alemães, japoneses e judeus foram foco de re-
importante força local contra o governo federal, como provou a Revolução de 1932, pressão especial.
na qual a Força Pública teve papel central. Em 1926, a província criou também a . . A próxima grande mudança na estrutura da polícia veio durante o regime
Guarda Civil, encarregada do patrulhamento de ruas. Embora durante o Estado m1htar. 10 Este reorganizou as forças policiais, criando a versão atual da Polícia
Novo o governo federal tenha tentado controlar as forças policiais das províncias, Militar. O Decreto 667 de 1969 unificou todas as polícias estatais uniformizadas
a estrutura dual das forças de patrulhamento (Força Pública e Guarda Civil) coe-
xistiu com a polícia civil em São Paulo até 1969, quando o governo militar unifi-
cou as duas forças de patrulhamento na Polícia Militar. 10
Durante os anos da redemocratização, de 1945 a 1964, a estrutura das forças policias
A era Vargas e especialmente o Estado Novo foram marcados pela tentativa ter. permanecido a mesma pelo menos esse é o caso em São Paulo, onde as forças poli-
de colocar as forças estaduais sob o controle do governo federal. Além disso, a polícia Ciais contmuaram divididas entre a polícia civil, a Força Pública e a Guarda Civil. No entanto a
assumiu um papel estratégico para impor os desejos da administração federal e si- história da polícia nesse período ainda está por ser escrita. '
Janeiro se revoltaram contra o uso de chicotes em sua punição. Sua revolta teve o apoio das clas- 16 O projeto Brasil nunca mais, secretamente realizado pela Arquidiocese de São Paulo, fo-
ses trabalhadoras do Rio. Depois de alguns dias, os marinheiros se renderam em troca de anistia.
Apesar disso, foram presos com correntes de ferro num barco e mandados para a Amazônia. Ao tocopiou e analisou os documentos completos do tribunal militar correspondentes a 707 julga-
mesmo tempo, a polícia aproveitou a oportunidade- como ela costumava fazer em casos de re- mentos realizados de 1964 a 1979 e registros fragmentados de dúzias de outros julgamentos. Os
volta- para "limpar" a cidade de todas as pessoas consideradas inconvenientes, e mandou para documentos estão agora em vários arquivos pelo mundo. Um resumo das conclusões, do qual es-
a Amazônia pelo menos 292 presos comuns classificados como vagabundos: 105 marinheiros, 44 tou citando, foi publicado no Brasil em 1985. Uma versão editada desse resumo foi publicada em
mulheres prisioneiras e 50 recrutas do exército (Pinheiro 1981: 42). Em outras palavras, uma re- inglês como Torture in Brazil (1986). As mortes e desaparecimentos mencionados pelo BNM são
volta contra o castigo físico não só acabou punindo aqueles que haviam recebido a promessa de apenas aqueles documentados, seja direta, seja indiretamente, nos julgamentos, e não incluem ví-
anistia, como também serviu de pretexto para uma "limpeza" totalmente ilegal na prisão da cida- timas de abusos que nunca estiveram ligados a julgamentos, como, por exemplo, nos casos de vio-
de. Os marinheiros e presos foram mandados para trabalhar na Amazônia na instalação de cabos lência rural. Sigaud (1987: 7-8) calcula que, entre 1964 e 1986, 916 camponeses foram mortos
de telex com o marechal Rondon. por razões políticas, mas apenas 93 dessas mortes foram perpetradas por representantes do Estado.
1 Para uma discussão mais ampla da disjunção entre o respeito aos direitos políticos e sociais
e o desrespeito aos direitos individuais no Brasil contemporâneo, ver Holston e Caldeira 1998.
6 Até onde sei, a história do governo Montoro ainda não foi escrita. Contudo, a oposição a
7
José Carlos Dias, que começou no dia em que ele revelou suas intenções para o cargo, é bem do- Essa explicação coincide com o argumento de Bretas sobre a autonomia da polícia civil
cumentada pela imprensa. durante a República Velha (1995: Conclusão).
O que é particularmente impressionante nessa declaração é o modo pelo qual Na semana que se seguiu a essa declaração, a PM matou quatro pessoas que
a dúvida do secretário é expressa: ele vê uma escolha clara entre ceder aos grupos não tinham antecedentes criminais. Indagado sobre as mortes, o secretário de Se-
de defesa dos direitos humanos (a alusão à Igreja Católica e sua defesa de "crimi- gurança Pública Luís Antonio Fleury reencenou o discurso que tanto Muylaert como
nosos" é evidente) ou o crescimento das mortes, e apresenta ambas como opções Reale Jr. identificaram como contendo uma permissão tácita para a ação violenta
não desejáveis. Pimentel, ao contrário de outros secretários citados, parece não ver da polícia. Em um artigo na Folha de S. Paulo, em 28 de novembro de 1989 ["Fleury
maneiras de controlar a Rota: se ela agisse, ela obviamente mataria. É também diz que a PM vai matar mais este ano"], Fleury declarou que "o fato de este ano
surpreendente que essa possibilidade seja abertamente discutida pelo secretário de terem ocorrido mais mortes causadas pela PM significa que ela está mais atuante.
Segurança Pública com a imprensa como uma questão de rotina. Quanto mais polícia nas ruas, mais chances existem de um confronto entre margi-
Em agosto de 1983, um dia antes de Pimentel transferir o cargo para Reale nais e policiais". Ele também complementou:
Jr., a Folha de S. Paulo publicou outra pesquisa de opinião pública avaliando a
política de segurança pública de Montoro. 40,7% da população classificou-a como Continuamos respeitando a lei. Mas é preciso considerar que vi-
"regular" e 39,1 %, como "ruim". Além disso, 71,8% das pessoas entrevistadas vemos numa sociedade com problemas de violência.( ... ) O policial mi-
declararam que a política de segurança pública deveria ser "mais dura" no comba-
te à criminalidade. Mais dura significa mais violenta.
Foi, portanto, contra a opinião da maioria da população- e não apenas contra
11 "Para os eleitores, segurança é o maior problema de São Paulo", Folha de S. Paulo, 8 de
velhos hábitos e interesses da polícia- que o governo de Montoro continuou seus
setembro de 1985.
esforços de controlar os abusos e a violência policiais e estabelecer o estado de di-
12 Um dos primeiros episódios muito sérios de violação de direitos humanos ocorreu du-
reito. Em 1985, logo após as eleições municipais, outra pesquisa da Folha de S. Paulo
revelou que 4 7,6% da população achava que o principal problema da cidade no rante o carnaval de 1989. Dezoito dos 50 prisioneiros mantidos numa cela forte de três metros
quadrados morreram asfixiados no 42° Distrito Policial de São Paulo. Esse episódio revela os efei-
tos dos diferentes sistemas de accountability aos quais os policiais civis e militares estão sujeitos.
Os policiais civis envolvidos responderam a processo, foram condenados, e receberam penas de
prisão excepcionalmente longas (de até 516 anos). Os policiais militares, no entanto, não foram
10
"População quer a Rota", Folha de S. Paulo, 3 de dezembro de 1982. levados a julgamento pela Justiça Militar.
14
O massacre foi amplamente documentado pela mídia brasileira. Ele também foi registra- 16 A Casa de Detenção é a maior prisão de São Paulo, parte de um complexo penitenciário
do pela Anistia Internacional (1993), por Machado e Marques (1993) e por Pietá e Pereira (1993).
chamado Carandiru. Foi construída no início dos anos 60 no que era uma parte periférica da cidade
Vários massacres envolvendo policiais militares ocorreram no Rio de Janeiro no ano seguinte. Entre
para alojar 3.250 presos. No dia do massacre, porém, abrigava mais de 7.100 presos (as estatísticas
eles incluem-se o assassinato de oito menores que dormiam nas proximidades da Igreja da Can-
não são exatas, mas todas as versões mencionam mais de 7 mil). A superpopulação é comum na
delária, em 23 de julho de 1993, e o assassinato de 21 residentes da favela Vigário Geral, em 30
Casa de Detenção e em outras prisões brasileiras, onde as condições de vida são totalmente precárias
de agosto de 1993.
e degradantes. (Ver, por exemplo, Anistia Internacional (1993) e Americas Watch (1989). Revoltas
15
Analisei a cobertura da imprensa do massacre na Casa de Detenção em cinco jornais e na Casa de Detenção, considerada uma das piores prisões brasileiras, são relativamente comuns, e a
duas revistas, todos publicados em São Paulo, pelo período de dez dias seguintes ao massacre. A maior ocorrida anteriormente, em 1987, resultou em 31 mortes. O massacre de 1992 ocorreu em uma
amostra inclui os dois maiores jornais paulistas com circulação nacional, Folha de S. Paulo e O das alas da Casa de Detenção chamada Pavilhão 9. Naquele dia, esse pavilhão abrigava 2.069 presos
Estado de S. Paulo, e três jornais locais, Jornal da Tarde, Folha da Tarde e Notícias Populares. As em vez dos mil para que tinha sido planejado. Esse pavilhão é considerado especialmente violento.
renças muito significativas entre eles. De um lado, o Notícias Populares, tido como um jornal sen-
18 É interessante comparar as reações das autoridades estaduais paulistas após o massacre
sacionalista especializado em crimes e notícias com um conteúdo sexual, escreveu uma das mais
com as reações do presidente Fernando Henrique Cardoso depois do massacre de 19 integrantes
fortes críticas ao governador e à polícia. De outro, o Jornal da Tarde, um jornal do grupo O Esta-
do Movimento dos Sem-Terra no interior do Pará em abril de 1996. Cardoso condenou em ter-
do de S. Paulo, conhecido por sua preocupação com o estado de direito, surpreendentemente deu
mos bastante explícitos a ação da polícia militar e pediu ao Congresso que apreciasse um projeto
mais espaço que os outros jornais para os pontos de vista da polícia, e publicou vários relatos nos
quais membros da polícia justificavam sua ação. de lei que permitiria à justiça civil julgar policiais militares.
177
176 Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros
do dever" (Amnesty International 1993: 27). Em 8 de março de 1993, o juiz do to de Estado dos EUA creditou ao ombudsman "o aumento do número de investi-
Primeiro Tribunal Militar de São Paulo aceitou as acusações apresentadas pelo gações criminais internas abertas pela polícia de São Paulo de uma média anual de
promotor. Até dezembro de 1999, ainda não havia ocorrido o julgamento. Entre- cerca de quarenta para mais de cem entre novembro de 1995 e junho de 1996"
tanto, em maio de 1996, a 8a Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça (Human Rights Watch/Americas 1997: 53).
decidiu que o estado de São Paulo não era culpado pelo massacre. Após examinar Desde 1995, a política do estado de São Paulo de controlar a violência poli-
o caso, o juiz superior Raphael Salvador, também vice-presidente da Associação cial tem estado associada a um esforço federal na mesma direção, cujo principal
Paulista de Juízes, determinou que os presos eram responsáveis: "eles iniciaram a símbolo é o Plano Nacional dos Direitos Humanos adotado pela administração de
rebelião, destruíram um pavilhão e forçaram a sociedade, através de sua polícia, a Fernando Henrique Cardoso em maio de 1996. Sua administração também criou
se defender" (O Estado de S. Paulo, 4 de maio de 1996). Até agora, a única ação um Prêmio Nacional de Direitos Humanos para homenagear as pessoas que defen-
concreta gerada por esse episódio foi tomada pelo executivo. Sob pressão da mídia dem os direitos humanos, e começou a oferecer indenização a vítimas de abusos
e da população, Fleury demitiu os seis principais comandantes do massacre. Além durante o regime militar. Pela primeira vez nas últimas décadas, os direitos huma-
disso, embora tivesse no início apoiado o secretário de Segurança Pública, teve de nos estão sendo publicamente defendidos pelo governo federal. A administração
substituí-lo e mudar sua política de tolerância em relação à violência policial. Michel Cardoso também promoveu a transferência de julgamentos de homicídios envol-
Temer, que havia sido secretário durante a administração Montoro, foi convoca- vendo policiais militares da Justiça Militar para os tribunais civis (ver capítulo 4).
do para o posto. Ele adotou imediatamente um discurso de legalidade e tentou impor No âmbito estadual, a administração Covas adotou um Programa Estadual de Di-
novas regras: policiais envolvidos em tiroteios passaram a ser retirados do patru- reitos Humanos em 1997.
lhamento de rua e enviados para receber aconselhamento e um curso sobre direi- Apesar de as políticas de controle de abusos adotadas tanto no âmbito esta-
tos humanos dado pela Anistia Internacional. Sua política reduziu o número de dual quanto no federal terem efeitos positivos no combate ao desrespeito dos di-
mortes significativamente (ver Tabela 3 ), demonstrando que as autoridades públi- reitos humanos, elas não são fáceis de implementar. Isso se tornou claro nos meses
cas de fato têm meios para restringir a brutalidade policiai.1 9 de junho e julho de 1997, quando o Congresso estava debatendo a lei que transfe-
A administração de Mário Covas, que tomou posse em 1995 e foi reeleito em riria para os tribunais civis a atribuição de julgar crimes de policiais militares.
1998, está mais uma vez comprometida em controlar os abusos policiais. Como Concomitantemente, o governo federal, por intermédio de sua Secretaria Nacional
mostra a Tabela 3, as mortes de civis diminuíram nesse período. 20 O secretário de de Direitos Humanos, estava elaborando um projeto de reforma policial para ser
Segurança Pública, José Afonso da Silva, atribui essa queda a duas iniciativas. A enviado ao Congresso, e o governador Covas apresentou uma proposta para trans-
primeira é o PROAR, o Programa de Reciclagem de Policiais Envolvidos em Situa- ferir todas as atividades de patrulha para a polícia civil e eliminar a divisão entre
ções de Alto Risco, criado em 1995. Através desse programa, todos os policiais as duas corporações policiais. Com o pretexto de exigir aumentos de salários, a
envolvidos em tiroteios fatais - não só os policiais que atiraram, mas todos os polícia respondeu com greves e motins nas principais capitais e em alguns casos as
membros da equipe- são removidos de seus cargos de patrulha por três meses e duas forças policiais trocaram tiros e agressões. Esses incidentes foram amplamen-
enviados para um programa de reciclagem, onde também recebem aconselhamento te documentados pela mídia.
e são reavaliados antes de retornar a suas tarefas anteriores. A segunda é a criação A resistência a reformas vem não apenas da polícia, mas também da população
de um ombudsman para a polícia, um posto assumido por Benedito Domingos e da mídia. Apesar do ultraje público depois do massacre de 1992, da reversão das
Mariano, do Centro Santo Dias, um conhecido grupo de direitos humanos. Nos políticas públicas e de seus resultados positivos, continua a existir significativo apoio
primeiros seis meses (dezembro de 1995 a maio de 1996), o ombudsman recebeu a uma polícia "dura". Na semana seguinte ao massacre, por exemplo, policiais e alguns
1.241 denúncias, 246 das quais foram de violência policial cometida por ambas as políticos, como o deputado Conte Lopes, organizaram manifestações a favor da PM.
forças (abuso de autoridade, espancamentos, torturas e homicídios). Em sua avalia- Estas atraíram considerável número de pessoas, causando grandes congestionamentos.
ção de 1997 das práticas de direitos humanos ao redor do mundo, o Departamen- Eventos da campanha eleitoral de 1994 revelam outras perversidades e ambigüida-
des. O comandante da PM durante o massacre, coronel Ubiratan Guimarães, apre-
sentou-se como candidato a deputado estadual. Ele fazia parte de um grupo de políticos
19 Ao contrário do que aconteceu em São Paulo, a administração do Rio adotou uma polí-
de direita que apóiam a violência policial e que se auto-intitula "bancada da segu-
tica declaradamente "dura", gerando um drástico aumento nas mortes causadas por policiais
rança" .21 Tanto o coronel Ubiratan Guimarães como Afanasio Jazadji (que concor-
militares. Depois que o general Nilton Cerqueíra tomou posse como secretário da Segurança Pú-
blica em 1995, o número de civis mortos aumentou seis vezes, de uma média de 3,2 por mês para
20,55. (Human Rights Watch/Americas 1997: 15.) 2 1 Esse bloco incluí os seguintes deputados: Afanasio Jazadji, que defende a tortura e ataca os
20 A administração Covas também começou a publicar os números de mortes pela polícia direitos humanos em seus programas de rádio, e foi o deputado mais votado em São Paulo em 1986;
civil, antes não disponíveis. Elas foram 47 em 1996 e 18 em 1997. O número de policiais civis Erasmo Dias, ex-secretário da Segurança Pública sob o regime militar; o ex-policial militar Conte Lo-
mortos foi de 17 em 1996 e 11 em 1997. pes Lima, o mais ativo defensor da PM quando do massacre de 1992; e o delegado Hilkias de Oliveira.
22
Conte Lopes foi eleito com 66.772 votos; Afanasio Jazadji foi eleito com 58.326 votos;
Erasmo Dias foi eleito com 28.178 votos; o coronel Ubiratan teve 26.156 votos e não foi eleito; 23 Há também considerável violência doméstica em todas as classes da sociedade brasileira.
Hilkias de Oliveira obteve 11.799 votos e não foi reeleito. No capítulo 9 discuto o tema do castigo físico de crianças.
185
184 Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros
de algum crime, ou coisa parecida. Agora, se simplesmente a viatura passar e ela falar "olha de s. Paulo. Apesar disso, no entanto, sua opinião sobre a polícia continua inal-
tem dois bandidos dentro daquela casa ali" ... tudo bem, a gente vai lá e prende o cara, só terada: "Esse caso não me convenceu, mas até hoje eu admiro ele". Se levarmos
aquela pessoa depois fica à mercê dos bandidos. A gente não vai poder estar passando toda em consideração a arbitrariedade e a violência da polícia, a constante confusão
hora na frente da casa dela, olhar se está tudo bem e tal. Muito porque o material bélico nos- (trabalhadores tidos por criminosos, policiais tidos por crimin?sos), a identifica-
so - material bélico que eu digo é viatura, essas coisas - é frágil. ção de criminosos com policiais (tanto simbólica como matenal) e com
Eque mais que você acha que precisaria mudar para facilitar o trabalho de vocês? pobres- em suma, o contexto de incerteza, e medo poliCiais
PM - Nosso? Nosso não precisava mudar muita coisa, não. Só haver justiça. Porque é quanto dos criminosos - , podemos apenas conclmr que a pohCia esta longe de
desanimador você levar o indivíduo para o Distrito ... Porque a corrupção tem em todos os lu- ser capaz de oferecer um sentimento de segurança às classes trabalhadora e mé-
gares. Não estou querendo escapar a PM também disso. Tem certos policiais corruptos. Mas dia baixa. A população freqüentemente se sente pressionada contra a parede e sem
na área da polícia civil, aqui em São Paulo, é mais. É desanimador você pegar um indivíduo, alternativas.
levar para o Distrito e o delegado- coisa que eu já vi-, o delegado pegar o dinheiro do cara
e falar assim: "Deixa o PM sair pra não ficar mal, que eu vou te soltar atrás". Eu já vi isso acon- 5.12
tecer, eu sair e ficar olhando o cara sair pela outra porta. Quer dizer, já passa daí, né? Eu acho -Você vai procurar saída de que jeito? Não tem solução pra procurar uma saída des-
que no Brasil também deveria arrumar um jeito de acabar com a corrupção, porque está vi- sas ... que solução que você vai procurar? Você vai, você vai fazer reclamação de um polícia, ele
rando um ... Outro dia eu estava comentando com um colega meu que isso aqui virou um vai te perseguir depois... E a gente tem medo de morrer, que essa gente anda tudo armado!
Paraguai. Aqui é tudo na base do dinheiro. Você quer conseguir alguma coisa, você paga. En- Você vai fazer uma queixa de um político ... se ele descobrir que é você, eles vão mandar te
tendeu? ... Tem muita gente que deve na rua devido à corrupção. Teria também que haver uma prender ... Então, você não pode fazer nada. Você tá mal, você quer fazer as coisas e não pode
legislação eficiente em relação à corrupção( ... ) Se houvesse justiça, mais alguma reformulação fazer. Se você for fazer, você vai preso ... tá condenado à morte!
nas leis ... não precisava ser muito, o cara dar uma estudadinha melhor para ver se dá para Operário especializado aposentado, Jardim Marieta, cerca de 60 anos; casado, dois
reformular da forma que a gente quer. (. .. ) filhos.
O polícia militar é muito ridicularizado. Eu estava comentando que, antigamente, há uns
tempos atrás, o polícia militar, era um orgulho andar fardado na rua. Hoje em dia é motivo de O sistema judiciário está tão longe de ser visto como confiável que em muitas
vergonha, o policial anda fardado, ele anda meio assim olhando, pra ver se tá bem ... Os caras entrevistas nem foi mencionado como um elemento no controle do crime: o uni-
ficam olhando para ele, ele já acha que os caras estão rindo da cara dele(. ..) Às vezes por falta verso do crime parece incluir apenas criminosos, policiais e cidadãos impotentes,
de respeito, às vezes pela brutalidade dos próprios polícias. Que tem polícia hoje em dia ... Não que têm de negociar sua segurança por conta própria e entre si. O sistema judiciá-
vamos atribuir toda a falha à sociedade, eu acho que tem polícia hoje em dia também que não rio é visto como totalmente enviesado contra trabalhadores, a quem não oferece-
está preparado para exercer a função. Onde ele vai, já mostra a carteira: "sou polícia, não sei o ria a possibilidade de justiça. Nas entrevistas com pessoas de todas as classes so-
quê". Isso aí não devia acontecer, né? É o abuso. Ele gosta de prevalecer pela farda ou pelo ciais, a reação mais comum a menções do judiciário foi: "É uma brincadeira, uma
fato de ele ser polícia (... )A população fala mesmo, não gosta de polícia, não sei por quê. Não piada!". Freqüentemente, as pessoas não quiseram entrar em detalhes: era algo óbvio.
sei se é por causa das leis, sei lá, sei que de certa forma o pessoal não gosta de polícia. Inclu- Algumas pessoas, entretanto, estenderam-se em suas opiniões.
sive a população tem medo da polícia hoje em dia, né?
Policial militar, Jardim das Camélias, cerca de 30 anos, casado com uma mulher que tra- 5.13
balha como secretária em uma fábrica, um filho; nas horas de folga trabalha como segurança -A justiça neste país não funciona. Isto eu afirmo por mim mesmo porque eu vejo as
particular. coisas acontecerem e as coisas não têm uma resposta satisfatória para todos. A justiça, a lei,
neste país, não existe. O setor judiciário não·existe. Vida de advogado é meio que farsa neste
Em suas descrições de criminosos, as pessoas que entrevistei sempre melem- país. Infelizmente a maioria tem que se corromper para sobreviver, tem que favorecer a essas
bravam que é preciso ter cuidado com generalizações, que em qualquer catego- pessoas que têm poder. Eu adoro a imagem do advogado, mas a imagem universal do advo-
ria há bons e maus elementos. O mesmo deveria valer para discussões sobre a po- gado; a imagem do advogado no Brasil para mim é ultrajante. Para você conseguir uma coisa
lícia. Mas mesmo quando um policial age do modo como deveria, a desconfian- que você sofreu que você tem que remediar e depende da justiça, além de você ir envelhecen-
ça popular é tão difundida que as pessoas preferem manter suas avaliações ne- do com essa perda que você teve, de ela não ser remediada a curto prazo, além de você só
gativas e ver o caso como uma exceção. Essa foi a atitude de uma entrevistada da conseguir esta coisa daqui a anos, você gastou muito. Hoje quem usa um advogado tem que
Moóca que me disse que um policial tinha devolvido três correntes de ouro que ter dinheiro também ...
lhe haviam sido roubadas num semáforo. Quando o policial ligou, ela supôs que Universitário, 23 anos, Moóca, desempregado; tem diploma de comunicação com espe-
ele queria dinheiro. Quando percebeu que ele estava realmente devolvendo as cialização em rádio, mora com os país.
correntes, ela ficou tão abismada que escreveu para a coluna do leitor da Folha
O - Não. Esse tipo de lei, não, esse você tá vendo muito na cara. nais em relação às quais os ricos geralmente estão imunes, enquanto os ricos desfrutam de acesso
à lei civil e comercial, da qual os pobres são sistematicamente excluídos. Sobre as conseqüências
M - Mas leis, foi o que ela perguntou, você não tem que respeitar? Você tem que res-
desse duplo viés e outros aspectos do descrédito do judiciário no Brasil, ver Holston e Caldeira
peita r tudo!
(1998).
O- As leis foram colocadas, mas também não dá pra você respeitar assim fácil; você 29 V árias empresas que vendem equipamentos de segurança em São Paulo são filiais locais
sabe, o marido dela sabe, o meu -são donos de empresas, sabem ...
de empresas multinacionais. Nos Estados Unidos, há mais de 16 milhões de sistemas de segurança
M, Oe Psão mulheres e vizinhas no Morumbi, todas com quase 40 anos, e cada uma tem residencial em uso. Entre 1986 e 1991, a venda de sistemas de alarme cresceu 80%. The New York
gois filhos. Oe Psão donas de casa e casadas com homens de negócios; M trabalha como trei- Times, 9 de fevereiro de 1991, p. 4-1.
194
Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros 195
Além disso, nos EUA, os guardas particulares já ultrapassam em quase três vezes 0 a Secretaria Estadual de Segurança Pública e o chefe da polícia civil estavam encar-
número de policiais, e na Grã-Bretanha e no Canadá, em duas vezes (U.S. House regados de controlar os serviços privados de em e a polí-
1993: 28, 97, 135; Bayley e Shearing 1996: 587). Serviços privados são compra- cia civil deveria fornecer instrução e testar a capacidade dos vigilantes.
dos não só por empresas e instituições, mas também por cidadãos das classes mé- te, 0 decreto estabelecia que guardas particulares no cumprimento do dever tenam
dia e alta, e mesmo por algumas divisões do governo. Em todos os casos, os usuá- status de policiais. -- ..,,.
rios dependem dos serviços privados para identificação, triagem e isolamento de Essa situação mudou com a promulgação 4 de julho de 1983
pessoas indesejadas, assim como para vigilância e proteção. A privada (revisada pelo Decreto 89.056 de 24 de novembro 1983). Essa lei é
de
tornou-se um elemento central de) novo ejá muito difundido específica do que a precedente, mas o aumento dos regulamentos e responsabilida-
'úrbànabaseado em enclaves fortificados. des não significa necessariamente maior controle dos serviços. A Lei 7.102 transfe-
Mas, apesar do crescimento dos serviços e tecnologia de segurança privada riu 0 treinamento dos vigilantes da polícia para e o controle dos
ser uma tendência internacional, no Brasil ele assume algumas características dis- serviços e empresas de segurança privada das secretarias de segurança pública es-
31
tintas. 30 Num contexto em que a polícia desrespeita direitos e em que há imensa taduais e da polícia civil para o Ministério da Justiça e a Polícia Federal. Uma
desigualdade social, os serviços de segurança privada contribuem para piorar essas comissão de cinco membros do Ministério da Justiça deveria trabalhar com comis-
condições. sões nas divisões estaduais da Polícia Federal para inspecionar a indústria. No es-
A história da segurança privada no Brasil começa de uma forma peculiar: como tado de São Paulo, a Comissão de Vistoria tinha quatro membros em 1991 para
um produto do Estado militar. Um mês depois da promulgação da Lei de Seguran- controlar 108 empresas distribuídas por todo o estado. Em minhas entrevistas do
ça Nacional em 1969, o Decreto Federal1.034 (21 de outubro de 1969) estabele- começo dos anos 90 com empresários de segurança privada, havia um consenso de
ceu que os serviços de segurança privada eram obrigatórios para instituições finan- que o controle era mais brando do que antes, embora o número de exigências ti-
ceiras, principalmente bancos. Esse decreto foi contemporâneo da criação tanto da vesse aumentado, especialmente as de treinamento e trabalhistas.
polícia militar quanto da Rota, e fazia parte dos esforços do governo para enfren- Os cursos de treinamento, por exemplo, teriam de ser providos por empresas
tar assaltos terroristas a bancos. O fato de os serviços de segurança terem se torna- criadas especialmente para esse fim. Embora essas empresas sejam normalmente
do obrigatórios gerou um considerável mercado para esses serviços de um dia para associadas a uma ou mais empresas de segurança privada, elas têm que ser física e
o outro, um mercado que desde então só tem se expandido. judicialmente independentes, e, portanto, exigiram novos investimentos das empresas
Inicialmente, a demanda veio dos bancos e freqüentemente foi satisfeita por existentes. Esses cursos supostamente deveriam oferecer 120 horas de instrução e
empresas que já lhes prestavam outros serviços. O caso do Banco do Brasil é típi- fornecer certificados para os futuros vigilantes, que não eram mais submetidos a
co. Em São Paulo, esse banco solicitou à empresa que fornecia os serviços de limpeza um teste na Academia de Polícia. É amplamente reconhecido no setor que a maio-
para que também lhe prestasse serviços de segurança. A Pires Serviços de Seguran- ria dos cursos no estado de São Paulo (27 em 1991 e 35 em 1996) não dotava os
ça Ltda., criada como resposta a esse pedido, é hoje a maior empresa de segurança guardas das habilidades mínimas necessárias para o trabalho. Ao completar os
privada no estado de São Paulo, empregando 10 mil vigilantes (em 1996). Outros cursos, oferecidos pelos seus futuros patrões, os vigilantes deveriam registrar seus
grandes bancos, no entanto, decidiram criar seus próprios serviços, de acordo com diplomas na Secretaria de Segurança Pública e seus nomes seriam enviados ao Mi-
as linhas da chamada "segurança orgânica". O Banespa, Banco do Estado de São nistério do Trabalho. Finalmente, a Lei 7.102 estabeleceu que guardas privados
Paulo, é um desses. Segurança orgânica é a expressão usada para designar os servi- podiam portar armas de calibre 32 ou 38, mas apenas em seus postos. As armas
ços de segurança fornecidos internamente pelos empregados de uma certa empresa são propriedade da empresa e não dos vigilantes, que não mais têm o status de
- seja uma fábrica, banco, prédio de apartamentos, condomínio fechado ou mes- policiais.
mo uma residência-, em vez de contratados de uma outra empresa especializada. Em 1994, o governo federal introduziu mudanças na Lei 7.102 que alteraram
Desde 1969, houve três fases de regulamentação dos serviços de segurança consideravelmente seu alcance. A Lei 8.863, de 28 de março de 1994, mudou a
privada: de 1969 a 1983, de 1983 a 1995 e de 1995 até o presente. Na primeira
fase, regulamentada pelo Decreto 1.034, a definição da forma que os serviços de-
veriam assumir era vaga. No entanto, ela revelava uma preocupação em controlar 31 Coincidentemente ou não, essa mudança ocorreu logo depois de os primeiros governa-
os guardas e seu histórico político, já que seus nomes deveriam ser submetidos ao dores eleitos diretamente tomarem posse e seguiu-se à mudança dos arquivos políticos (do DOPS)
da Secretaria Estadual de Segurança Pública para a Polícia Federal. Na ocasião, os militares con-
Serviço Nacional de Informação (SNI). O decreto de 1969 também estabelecia que
tinuavam no governo federal, mas tinham perdido as eleições para governador na maior parte dos
estados. O controle dos serviços de segurança privada foi deslocado para uma comissão especial
do Ministério da Justiça, a Comissão Executiva para Assuntos de Vigilância e Transporte deVa-
30 Para análises do policiamento privado em países desenvolvidos, ver Bayley e Shearing lores do Ministério da Justiça, conforme regulamentado em 12 de dezembro de 1986 (Portaria 601
(1996), Johnston (1992), Ocqueteau (1997), Ocqueteau e Pottier (1995) e Shearing (1992). do Ministério da Justiça).
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vada apresenta sérios problemas, que discuto a seguir. Começo examinando o ain- parecem eliminar razão para continuarem a ao
da pequeno mercado legalizado e as iniciativas de seu poderoso lobby. Discuto r-" ontrole do Estado. As mais ambiCiosas dessas empresas, como de
então, a segurança orgânica, que se tornou irregular com a nova legislação; e, fi: I Ltda., pensam em criar prisões privadas modelares e vendér seus serviços
nalmente, trato do setor clandestino. Um dos principais problemas comuns a to- assim como criar um centro de treinamento tão sofisticado que seria capaz
dos os setores é o das relações entre segurança privada e polícia, que tende a exa- de vender serviços de treinamento para a polícia. 40 Elas sabem que seus serviços
cerbar a já imensa desigualdade social brasileira ao diferenciar o tipo de segurança são um bem de luxo que confere distinção e não se envergonham de mencionar seu
a que cada grupo social tem acesso e está submetido. efeito em termos de discriminação de classe. "Deixe a polícia civil e a militar para
O segmento legal da segurança privada é pequeno e bem-organizado. 37 Os os menos favorecidos, de acordo com a lei- que não funciona!", disse José Luiz Fer-
donos das empresas percebem claramente a crescente atração de seus serviços e 0 nandes, presidente da associação de proprietários Abrevis. 41 A acentuação da de-
potencial de expansão numa sociedade profundamente desigual, amedrontada com sigualdade social e a divisão da segurança entre um setor público para os pobres e
as altas taxas de crime e incapaz de contar com as forças policiais. Esse setor lite- um setor privado para os ricos não é simplesmente uma conseqüência negativa da
ralmente lucra com o medo do crime. Proprietários de empresas de segurança pri- expansão da segurança privada, como é normalmente o caso em países desenvolvi-
vada são a favor da regulamentação do setor pelo Estado se isso significa expan- dos, mas parte da política ativa das empresas que vendem esses serviços no Brasil.
são dos negócios, mas ao mesmo tempo resistem às regulamentações de suas ativi- Apesar das tentativas das empresas de se oporem ao policiamento público, o
dades. Para proteger seu mercado, pressionam o Ministério da Justiça a manter a relacionamento entre os dois setores é complexo. Isto está exemplificado pelo caso
lei que torna a segurança privada obrigatória para bancos; e querem estabelecer, do coronel Erasmo Dias. Ele foi secretário de Segurança Pública de São Paulo duas
por meio de um decreto, um número mínimo de guardas por agência bancária. Eles vezes durante o regime militar, depois deputado federal e deputado estadual (seu
lucraram com o aumento de exigências em relação à segurança orgânica e atacam terceiro mandato começou em 1995), cargo que tem usado para lutar contra os
o mercado clandestino. 38 Ao mesmo tempo, no entanto, opõem-se à supervisão de direitos humanos junto com a "bancada da segurança" e a favor das prisões priva-
seus serviços pelas secretarias estaduais de segurança pública porque temem que isso das. Enfrenta várias acusações de tortura por ex-presos políticos e é responsável,
pode significar um controle mais estrito, e reclamam amargamente de suas obriga- entre outros atos de repressão violenta de movimentos sociais, pela invasão da
ções trabalhistas. 39 Universidade Católica de São Paulo em 1978, na qual muitos estudantes foram gra-
Para evitar o controle do Estado, os donos de empresas de segurança privada vemente queimados. Desde 1986, tem sido um dos diretores da Pires Serviços de
estão desenvolvendo um discurso que enfatiza a natureza privada de seus serviços Segurança Ltda. e instrutor no curso de treinamento de vigilantes. Ele também es-
e opõe a eficiência privada à ineficiência pública. Eles insistem na separação entre creveu um livro (Dias 1990), no qual defende a necessidade de um serviço de segu-
privado e público e na especificidade de seus serviços, a tal ponto que alguns de seus rança privada, separado do serviço público de policiamento, para aqueles que po-
dem pagar por ele. Sua presença como diretor da Pires indica as intricadas ligações
entre a segurança pública e a privada em São Paulo, entre a polícia e as empresas
privadas de segurança, e entre comportamento legal e ilegaL
Seguindo a legislação trabalhista corporativa, o setor legal é organizado em dois sindica- Apesar de a segurança orgânica estar ainda basicamente não regularizada de
tos, um dos empregadores (Sindicato das Empresas de Segurança Privada e Cursos de Formação
acordo com os termos das novas leis, ela não representa um mercado ilegal, já que
do Estado de São Paulo) e um dos empregados (Sindicato dos Empregados em Empresas de Segu-
rança, Vigilância, Cursos de Formação de Vigilantes, Transporte de Valores e Segurança Privada
os guardas freqüentemente têm contratos trabalhistas formais. No entanto, sobre-
de São Paulo). Além disso, os donos de empresas têm sua própria associação nacional, a Abrevis. tudo em grandes empresas, eles podem estar registrados sob outras categorias ocupa-
Existe ainda uma associação nacional de empresas de transporte de valores, ABVT (Associação cionais, não como vigilantes, mesmo quando têm algum treinamento formal com
Brasileira das Empresas de Transporte de Valores). segurança. Muitos shopping centers, vários complexos de escritórios e prédios de
38 Recentemente, representantes das empresas registradas também têm escrito na imprensa apartamentos e condomínios fechados usam segurança orgânica. De acordo com
sobre os perigos do que eles chamam de segurança privada "clandestina" (por exemplo, artigo de os presidentes tanto dos sindicatos dos empregados quanto dos empregadores,
José Luiz Fernandes na Gazeta Mercantil, 30 de julho de 1996).
39
Empresários brasileiros da segurança privada estão ativamente envolvidos em expandir
seus negócios para os países do Mercosul e formaram uma associação com esse fim. O Brasil é o 40 A Pires Serviços de Segurança Ltda. é a maior empresa de segurança privada no estado
único país no Mercosul que tem uma legislação específica de segurança privada e os empresários de São Paulo e provavelmente uma das mais sofisticadas do Brasil. Ela tinha 6.116 guardas regis-
estão se preparando para influenciar aquelas que serão criadas por outros países. Eles estão espe- trados em 1990, 10 mil em 1996 e um imenso centro de treinamento. Visitei as instalações da Pires
cialmente preocupados em como moldar as legislações trabalhistas, argumentando que o custo de várias vezes, tive acesso às suas instalações de treinamento e entrevistei cinco de seus diretores.
um guarda privado no Brasil é 40% mais alto do que no Chile e 30°/c) mais caro do que na Argen- Seus planos de expansão estão claramente expostos no Jornal da Pires.
tina por causa das regulamentações brasileiras. (Entrevistas com representantes das associações
41 Entrevista, 12 de junho de 1991.
de empresas, julho de 1996.)
Embora a tradição de abusos por parte das instituições da ordem e de des- r Nosso"-sistel1la judj9a( (... )serve para desviar a ameaça de vingan-
crença no sistema judiciário no Brasil seja longa, sob o regime democrático essas )ça. O a vingança; em vez disso, limita-se efetivamente
tendências atingiram níveis sem precedentes. Enquanto em alguns campos consoli- \a um simples ato de represália, decretado por um soberano especializa-
daram-se procedimentos democráticos- com eleições livres, um Congresso legíti- ldo nessa função particular. As decisões do judiciário são invariavelmente
mo, livre organização de partidos, movimentos sindicais, movimentos sociais, im- apresentadas como a palavra final sobre a vingança (Girard 1977: 15).
prensa livre etc.- outros, como os do crime, das forças policiais e do sistema judi-
ciário, têm resistido à democratização e os abusos continuam a ser cometidos de O princípio que rege tanto a ação privada como a pública é o mesmo: vingança.
forma impune e, freqüentemente, com o apoio popular. Autoridades públicas, em- A diferença crucial, entretanto, e que tem enormes conseqüências sociais, é que "sob
presas privadas e cidadãos contribuem todos para o problema da violência em São o sistema público, um ato de vingança não é mais vingado; o processo é encerrado,
Paulo. À medida que o crime violento aumenta, os abusos persistem e as pessoas o perigo de uma escalada, afastado" (Girard 1977: 16). Para que o sistema judiciá-
procuram meios privados e freqüentemente ilegais de proteção, entramos num cír- rio interrompa efetivamente ciclos de vingança, ele tem que manter sua autoridade
culo vicioso que só vai resultar no aumento da violência. e legitimidade. Ele tem que ser capaz de estancar formas paralelas de vingança pri-
vada e ter o monopólio no exercício da vingança. Isto é exatamente o que não ocorre
\" na São Paulo contemporânea. Apesar de o judiciário nunca ter desfrutado de um
44
Esse problema com certeza não é exclusivo de sociedades altamente desiguais. "As socie- ) alto grau de legitimidade, recentemente-ele mais credibilidade em razão
dades democráticas ocidentais", argumentam Bayley e Shearing, "estão se transformando inexo-
ravelmente, receamos, num mundo tipo Laranja Mecânica, onde tanto o mercado quanto o go-
) de sua incapacidade de punir os responsáveis pelo número crescente de crimes vio-
verno protegem os ricos dos pobres- um construindo barricadas e excluindo, outro por meio da lentos, de conter as execuções sumárias extralegais cometidas pela polícia e a vin-
repressão e encarceramento e no qual a sociedade civil para os pobres desaparece diante da ( gança privada dos justiceiros e esquadrões da morte, e porque as pessoas tendem a
vitimização criminal e da repressão por parte do governo" (1996: 602). '--ignorá-lo e a resolver os conflitos pessoalmente ou por acordos privados.
207
Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros
206
"
6.
I SÃO PAULO: PADR0ES DE SEGREGAÇÃO ESPACIAL
/\
212 Teresa Pires do Rio \.\llc!Pir<>
Embora a elite e os trabalhadores vivessem relativamente próximos uns dos biliários exdusivos. Uma destas regiões era o novo bairro com o sugestivo nome
outros, havia uma tendência de a elite ocupar a parte mais alta da cidade - em de Higienópolis. Eles também se mudaram para duas outras áreas exclusivas: Cam-
direção ao espigão central onde se localizaria a Avenida Paulista- e os trabalhadores pos Elísios e a Avenida Paulista. Ao mesmo tempo, representantes das elites na
viverem nas áreas mais baixas, ladeando as margens dos rios Tamanduateí e Tietê administração municipal e em instituições como a Federação das Indústrias esta-
e próximo ao sistema ferroviário. No começo do século, a segregação social se ex- vam planejando organizar, limpar e abrir o centro da cidade como Haussmann fi-
pressava também nas moradias: enquanto a elite {da indústria e da produção de café) zera em Paris, e afastar os trabalhadores, instaliildo-os em casas unifamiliares que
e uma pequena classe média viviam em mansões ou casas próprias, mais de 80% elevariam seus padrões morais. Identificaram a concentração de trabalhadores e as
das habitações de São Paulo eram alugadas (Bonduki 1983: 146). A propriedade condições anti-higiênicas a eles associadas como um mal a ser eliminado da vida
qe uma casa não era definitivamente uma opção para os trabalhadores, que em sua da cidade. Imaginaram a dispersão, o isolamento, a abertura e a limpeza como
vtaioria viviam em cortiços ou casas de cômodos, todos superpovoados.3 Essas cons- soluções para o meio urbano caótico e suas tensões sociais.
tiuções precárias constituíam um bom investimento na época e proliferaram pela Durante as décadas de 20 e 30- anos que podem ser considerados um período
cidade. Não havia prédios de apartamentos para alugar na época. Uma minoria de de transição entre diferentes padrões de organização das diferenças sociais na ci-
trabalhadores, basicamente os especializados, alugavam casas só para suas famí- dade e entre diferentes modos de intervenção das autoridades públicas- as preo-
lias, em geral casas geminadas. Algumas fábricas construíam essas casas geminadas cupações Com o saneamento e o controle social são evidentes em pelo menos qua-
para seus trabalhadores especializados tanto como uma forma de atraí-los com a tro níveis políticos e institucionais: o governo municipal, a associação dos indus-
oferta de melhores moradias como para discipliná-los com a ameaça de despejo. triais, os movimentos sindicais e populares, e o governo federal.
Numa cidade concentrada corno era São Paulo, que havia crescido e mudado No âmbito municipal, os prefeitos e seus secretários procuraram abrir aveni- '
rapidamente, ás preocupações com a discriminação, classificação e controle da das, alargàr ruas, embelezar e organizar o centro da cidade. No entanto, a cidade
população eram intensas no começo do século. Como também foi típico nas cida- estava mal equipada para lidar com as transformações urbanas resultantes do imenso
des européias no início da industrialização, essas preocupações eram freqüentemente influxo de novos moradores da virada do século. As concepções sobre planejamento
expressas em termos de saúde e higiene, sempre associadas à moralidade. Questões urbano e sobre o papel da intervenção estatal no espaço eram bastante precárias
sobre como abrigar os pobres e como organizar o espaço urbano numa sociedade até a segunda década do século (Morse 1970: caps. 19 e 21; Leme 1991). A única
que se industrializava estavam ligadas ao saneamento. Em conjunto, elas se torna- legislação urbana anterior- o Código de Posturas de 1875, revisado e consolida-
ram o tema central das preocupações da elite e das políticas públicas durante as pri- do em 1886 -·mostrava uma preocupação com saneamento, recursos naturais' e
melras décadas do século XX. ordeóação do espaço público e do comportamento público. O código estabelecia a
A elite paulista diagnosticou as desordens sociais da cidade em termos de largura das ruas e avenidas, a altura dos prédios e o número de andares, a dimen-
doença, sujeira e promiscuidade, idéias· logo associadas ao crime. Em 1890, o esta- são das portas e janelas, além de proibir a maioria dos tipos de uso privado das ruas,
do de São Paulo criou o Serviço Sanitário, seguido pelo Código Sanitário de 1894. que deveriam ser mantidas abertas à circulação {ver Rolnik 1997: 32-5). As primeiras
Logo em seguida, agentes do estado começaram a visitar as moradias dos pobres, leis sobre construção e zoneamento foram editadas na metade da década de 1910,
especialmente os cortiços, procurando por doentes e mantendo estatísticas e regis- enquanto as peças mais importantes da intervenção e legislação urbana aparece-
tros. Essas visitas geravam reações negativas: era clara para as classes trabalhado- ram no final dos anos 20. 5
ras a associação de serviços sanitários com controle social.4 Além de controlar os
pobres, a elite começou a separar-se deles. Temendo epidemias- assim como te-
5 A Lei Municipal1.874,de 1915,criou a primeira divisão da cidade em quatro zonas (central,
mem o crime hoje- e·identificando os pobres e suas condições de vida a doenças
e epidemias, os membros das elites começaram a mudar-se das áreas densamente urbana, suburbana e rural) e exigiu que as plantas de construção fossem aprovadas pela adminis-
uação municipal. O Ato 849, de 1916, regulamentou a construção. A Lei Municipal 2.611, de
povoadas da cidade para regiões um pouco afastadas e com empreendimentos imo- 1923, estabeleceu dimensões mínimas para um lote urbano (300 m2 ) e regras para a pavimenta-
ção das ruas. Ela também estabeleceu que,para empreendimentos maiores que40 mil m2 , o incor-
porador deveria doar espaços para ruas e áreas verdes. Ao que parece, essa lei foi influenciada pela
3 City of São Paulo Improvements and Free Hold Land Co., Lrd., a companhia que estava lançando
Em 1900, a média de pessoas por prédio em São Paulo c;:ra de 11,07 (Bonduki 1982: 85). novos empreendimentos imobiliários inspirados nas cidades-jardins inglesas desde 1912. Esses
4 empreendimentos originaram os bairros chamados "jardins", que têm alojado as classes média e
Uma das principais revoltas populares na época não se originou no espaço de rrabalho,
mas seguiu-se à decisão do governo de vacinar a população cont.ra a varíola e mandar agentes sa- alta desde os anos 20 (São Paulo, Sempla 1995: 15). Em 1929, a cidade aprovou seu primeiro Código
nitários para as áreas pobres do Rio de Janeiro a fim de suas casas e destruir aquelas de Obras (Lei Municipal3.427, Código Arthur Saboya), que sistematizou a maior parte da legis-
supostamente A Revolta da Vacina Obrigatória ocorreu em 1904, quando o prefeito lação anterior e estabeleceu um mínimo de três andares por prédio na área central, dessa forma
Pereira Passos lançou um programa radical de reform;t urbana do tipo abrindo encorajando a construçã.o vertical. Esse código foi reconsolidado em 1934. Ver Morse (1970: 366-
grandes avenidas no centro da cidade e destruindo muitas de moradores pobres. 7) para uma crítica desse plano.
6 Ver Holston (1991b) para uma análise da relação entre as práticas ilegais e a ocupação da
terra no Brasil e especialmente na periferia de São Paulo. Ver Rolnik (1997) para uma análise da 8 Em 1937, o governo federal criou os Institutos de Previdência, e em 1946, a Fundação da
legislação urbana e da mesma dinâmica legaVilegal entre 1886 e 1936. Casa Popular, para construir casas de baixo custo para trabalhadores. Mas elas nunca cumpri·
1 Embora decisões importantes baseadas no plano teli:ham começado a ser tomadas no fi- ram seu mandato: as poucas casas construídas foram distribuídas de acordo com critérios diemew
nal da década de 20, as principais obras foram executadas depois de 1938, durante a administra- lísticos. Vargas também renovou as Caixas Econômicas, que começaram a financiar casas para a
ção de Prestes Maia. classe média.
216
•..
habitacionais das camadas trabalhadoras ocorreu em 1942, no contexto de uma dução de automóveis), e quando a cidade recebeu um grande fluxo de migrantes
crise de habitação marcada por aluguéis altos provocados pela crise econômica do Nordeste do Brasil.1 2 Durante esse período, a expansão urbana e a dinâmica
associada à Segunda Guerra Mundial e pela reforma das regiões centrais em várias industrial ultrapassaram os limites do município de São Paulo, provocando rápi-
cidades brasileiras. Esse fator foi a Lei do Inquilinato, que congelou todos os alu- das transformações nos municípios circundantes, oficialmente integrantes dare-
guéis residenciais nos valores de dezembro de 1941. Essa medida deveria durar dois gião metropolitana de São Paulo.
anos, mas foi .sucessivamente até 1964, com apenas alguns pequenos
aumentos em resposta à inflação.:Em São Paulo, a conseqüência imediata foi uma
diminuição do mercado de aluguéjs, já que deixou-"se de construir unidades de alu- 0NIBUS, ILEGALIDADE E AUTOCONSTRUÇÃO: A EXPANSÃO DA PERIFERIA
guel. 'Isso acelerou a partida de trabalhadores para a periferia, onde podiam encontrar
terrenos baratos (e irregulares) para construir suas casas.9 O do sistema de transporte público baseado em ônibus foi fun-
A interseção dessas várias iniciativas e políticas, associada ao pronunciado damental para o desenvolvimento do novo padrão de urbanização. Embora o pre-
aumento populacional causado por migrações internas desde o começo dos anos ço da terra na periferia fosse relativamente baixo e houvesse loteamentos à venda
30, levou a um novo padrão de urbana, que iria caracterizar São Paulo desde da década de 10,1 3 eles permaneceram desocupados principalmente devido
nos 50 anos seguintes. 10 No novo arranjo, pobres e ricos viveriam separados: dis- à falta de transporte. Até o final dos anos 30, os únicos loteamentos ocupados fora
tância, crescimento econômico e repressão política permitiriam uma peculiar de- da centro eram aqueles próximos às estações ferroviárias. No entanto, eles eram
satenção de um em relação ao outro. poucos e sua possibilidade de expansão, limitada, pois as pessoas precisavam an-
dar até a estação. H No final dos anos 30, a abertura de novas avenidas tornou
possível a difusão do uso dos ônibus. Os primeiros começaram a rodar em 1924 e
CENTRO-PERIFERIA: A CIDADE DISPERSA no final da década já desafiavam o monopólio do sistema de bondes pertencente à
São Paulo Tramway Light & Power Co., popularmente conhecida como Light.15
O novo padrão de urbanização é comumente chamado centro-periferia e tem Precisando de menos infra-estrutura e sendo portanto mais flexíveis, os ônibus
dominado o desenvolvimento de São Paulo desde os anos 40. Esse padrão tem passaram a circular por ruas não· asfaltadas de bairros distantes do centro da cida-
quatro características principais: 1) é disperso em vez de concentrado- a densi- de. Enquanto em 1948 os deslocamentos por bonde respondiam por 52,2% do total
dade populacional caiu de !!O hab/ha em 1914 para 53 hab/ha em 1963 (F. de viagens em transporte público, em 1966 eles haviam caído para 2,4% do total.
Villaça citado por Rolnik 1997: 165); 2) as classes sociais vivem longe uma das Ao mesmo tempo, os deslocamentos em ônibus subiram de 43,6% em 1948 para
outras no espaço da cidade: as classes média e alta nos bairros centrais, legaliza- 91,2% em 1966 (Velze, R., citado por Kowarick e Bonduki 1994: !53). Os bon-
dos e bem-equipados; os pobres na periferia, precária e quase sempre ilegal; 3) a des encerraram suas operações em 1968.
aquisição da casa própria torna-se a regra para a maioria dos moradores da cida- O principal agente da expansão dos serviços de ônibus não foi o governo, mas
de, ricos e pobres; 4) o sistema de transporte baseia-se no uso de ônibus para as empresários particulares, a maioria dos quais também eram especuladores imobiliá-
classes trabalhadoras e automóveis para as classes média e alta.tl Esse padrão de
urbanização consolidou-se ao mesmo tempo em que a cidade tornou-se o centro
industrial do país, com a expansão de indústrias pesadas enl substituição às ma-
nufaturas têxteis e de alimentos (uma mudança associada à .implantação da pro- 12 O crescimento da população é mostrado na Tabela 6. Entre 1950 e 1960, mais de 1 nii-
lhão de pessoas se estabeleceram na região metropolitana. Entre 1960 e 1970 e entre 1970 e 1980,
o número de migrantes ultrapassou 2 milhões por período (Perillo 1993: 2).
I3 Cf. Langenbuch 1971. Especuladores imobiliários compraram a maioria dos lotes vendi·
dos antes dos anos 30, os quais permaneceram desocupados. Para uma história de um bairro de
periferia criad_o na década de 20, mas ocupado apenas nos anos 60, ver Caldeira 1984.
uma análise das várias dimensões da Lei do Inquilinato, ver Bonduki (1983 e 1994).
Para uma análise da política trabalhista de Vargas, ver Santos {1979). 14 Em 1948, apenas 4,2% dos deslocamentos urbanos em transporte coletivo entre a casa e
10 o trabalho eram feitos por trem; durante os anos 50 e 60, a porcentagem dos deslocamentos por
Desde 1934 várias remições foram impostas à imigração estrangeira. No mesmo perío-
trem nunca ultrapassou 6,6% do total (Velze, R., citado por Kowarick e Bonduki 1994: 153).
do, secas no Nordeste fizeram com que muitos se deslocassem para São Paulo. Durante o período
de 1.935-1939, 96% das 285 mil pessoas que migraram para o estado de São Paulo eram brasilei- ts Esse monopólio foi quebrado no final dos anos 20, quando a cidade decidiu não renovar
ros (Morse 1970: 302). o contrato com a Light e negar-lhe o monopólio do sistema de ônibus. Ao mesmo tempo, o gover-
11 A análise que se segue é baseada em: Brant etal. (1989), Bonduki {1983), Caldeira (1984), no municipal decidiu começar a construir a Avenida 9 de Julho, a primeira das novas avenidas
Camargo et ai. (1976) e Langenbuch (1971). radiais.
16 Em 1948, os ônibus públicos respondiam por 31% dos deslocamentos entre a casa e o
tS Em 1977, na zona leste da cidade, onde se localiza o Jardim das Camélias, moradores
trabalho, e os ônibus particulares, por 12,6%. Em 1966, no entanto, a situação havia se inverti- que usavam ônibus para ir ao trabalho gastavam uma média de 13 horas fora de casa, indo ou
do: os ônibus particulares faziam 75,7% dos deslocamentos e os ônibus públicos,apenas 15,5% vindo para o trabalho e trabalhando. Em 1987 a situação permanecia inalterada {Caldeira 1984:
(Velze, R., citado por Kowarick e Bonduki 1994: 153). 62, Metrô 1989: 41).
17 Todas essas fo.çmas de- ilegalidade ou irregularidade afetam as pessoas que compram seus
19 Para 1920, Bonduki (1982: 146); para 1960 e 1991, Censo Brasileiro.
lotes de boa-fé e pagam por eles. Eles constituem um caso diferente do das favelas, que são
das pela invasão de terras e onde as pessoas normalmente nãO compram os lotes (embora possam 20 Agradeço ao Laboratório de Espacialização de Dados do Cebrap e especialmente a Ciro Bi·
comprar seus barracos). derman e Anderson Kazuo Nakano pela assistência na elaboração dos mapas usados neste capítulo.
Mapa 1
ExpansãO da Área Urbana, Região Metropolitana de São Paulo, 1949-1992
[Bjl1949
c::J 1962
. 1992
10 15
Fonte: Emplasa e Cebrap. LED OviiOmetros
.....
222 Teresa Pires do Rio Caldéira
. À medida que a metrópole se expandiu as preocupações das autoridades pú- possível vender separadamente unidades em prédios de apartamentos, mas a maioria
blicas em regular o espaço construído, domar a expansão descontrolada e reme- dos edifícios residenciais era para aluguei.23 De acordo com Carlos Lemos (1978:
diar os efeitos mais perversos também aumentaram. Os regulamentos e planos mul- 54), quando iniciou-se a construção de prédios de apartamentos residenciais nos
tiplicaram-se a partir dos anos 60. No entanto, como já havia acontecido antes seus anos 40, eles eram estigmatizados e associados a cortiços, pobreza e falta de priva-
efeitos foram sentidos principalmente nas áreas centrais ocupadas pelas classes cidade e liberdade. Os apartamentos eram, portanto, uma solução indesejada para
e alta, as periferias permaneceram negligenciadas até os anos 70. a classe média. Isso é confirmado por uma pesquisa realizada pelo Ibope (Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) em dezembro de 1945 entre os mora-
dores das classes média e alta da cidade de São Paulo, em que 90)8% dos entrevista-
ALOJANDo os Rrcos E o CENTRo dos declararam preferir casas a apartamentos e 83,3% estavam de fato vivendo em
Na época, a maioria dos entrevistados pagava aluguel: apenas 17,2% dos
O padrão de habitação da:classe média de São Paulo também mudou, espe- homens entrevistados possuíam residência própria; 53,2% tinham a intenção de
depois do final dos àúos 60. Seus membros também se tornaram pro- comprar uma casa, mas apenas 1,6% tinha a intenção de comprar um apartamento.
prietários, mas através de um processo completat:nente diferente. Ao contrário do Até o final da década de 50, a construção de edifícios não foi muito controla-
que acontecia com as camadas trabalhadoras, as classes média e alta receberam fi- da pela administração municipal. De 1957 em diante, no entanto, leis municipais
nanciamento e não tiveram de suas câsils. Mudaram-se para prédios de destinadas a controlar a expansão da cidade afetaram em particular a construção
o primeiro tipo de habitação a ser produzido por grandes empresas de edifícios. As leis tiveram dois efeitos principais: por um lado, fecharam o mer-
e cujo mercado se expandiu de forma significativa nos anos 70, transformando os cado imobiliário de prédios de apartamentos para a população de baixa renda; por
bairros centrais. Além disso, os edifícids eram o principal tipo de construção para outro, direcionaram os novos edifícios para fora· 'do centro. Ambos os efeitos acom-
escritórios, não apenas no centro mas também em novas áreas comerciais nas re- panharam o remodelamento da região central que expulsou os pobres para as no-
giões sul e oeste da cidade.
vas periferias. Essas tendências têm persistido dos anos 50 até o presente.
Uma análise da história da verticalização de São Paulo permite entender como Em 1957, a Lei Municipal 5.261 limitou pela primeira vez o coeficiente de
autoridades públicas, tanto locais quanto federais, tentaram regular a expansão aproveitamento do terreno: ele não poderia exceder a 6 vezes nos prédios comer·
l 1 rbana e estruturaram as áreas mais ricas da cidade. O zoneamento municipal e os dais e 4 vezes nos prédios residenciais (isto é, o total da área construída não podia
regulamentos de deternJinaram onde os edifícios podiam ser construídos ser maior do que 4 ou 6 vezes o tamanho do lote).25 Além disso, essa lei determi-
e .que dimensões podiam ter, além de terem criado barreiras à construção de pré- nou que a cota mínima de terreno por apartamento deveria ser de 35m2; isto é, a
diOs de apartamentos para camadas de baixa renda. Políticas federais ditaram as cada unidade deveria corresponder pelo menos 35 m2 da área do terreno. Embora
condições de financiamento de apartamentos para a classe média e para a prolife- essa lei nunca tenha sido inteiramente cumprida- as incorporadoras sempre en-
ração de grandes empreendimentos imobiliários que dominaram o mercado de re- viavam à prefeitura suas plantas de prédios residenciais como se fossem comerciais,
sidências coletivas a partir dos anos 70. Em conjunto, as políticas municipais e fe- conseguindo assim aumentar o coeficiente de aproveitamento-, ela acabou cau-
derais ajudaram a transformar os prédios de apartamentos no principal tipo de sando um aumento do tamanho dos.apartamentos e forçando o deslocamento de
moradia das classes média e alta. novos edifícios residenciais para regiões fora do centro da cidade, onde os lotes eram
A construção de edifícios em São Paulo começou na primeira década do sé- mais baratos .. Desde essa época, os apartamentos se tornaram uma forma de mo-
culo XX e localizou-se no centro da cidade. Conforme demonstra Nádia Somekh radia quase exclusiva da classe média. .
Martins Ferreira, até 1940, 70% de todos os edifícios localizavam-se nos bairros Se as leis municipais explicam porque a construção de apartamentos de bat-
centrais e 65% eram não-residenciais. Em 1940, apenas 4,6% da população de São xa renda foi interrompida e porque os edifícios começaram a ser erguidos fora
Paulo vivia em apartamentos e apenas 2,1% dos domicílios estavam em prédios de
apartamentos (Ferreira 1987: 75).22 Durante a década de 40, a construção de edi-
fíciús continuou limitada à região central e a uns poucos bairros circundantes, mas 23 O Decreto 5.481, de 25 de junho de 1928, regulamentou a venda de apartamentos indi·
a porcentagem de edifícios residenciais a aumentar. Naquela época já era viduais em prédjos com mais de cinco andares (Ferreira 1987: 72). Nos EUA, a propriedade em
condomínio foi regulamentada apenas em 1961 (McKenzie 1994: 94).
24 As pesquisas originais do Jbope estão no Arquivo Edgard Leuenroth, na Unicamp. Os
22 A análise da construção vertical de São Paulo para o pefíodo de 1940-1979 é baseada dados citados acima são do volume 2 das pesquisas de 1945. Os documentos não são numerados
em Ferreira (1987). A fonte de Ferreira é o registro de elevadores na cidade de São Paulo. Desde- e são identificados apenas pela data.
1940, wdos os elevadores devem ser registrados na prefeitura. Esses registros con rêm 0 endereço 2.1 Esta lei foi inspirada por Anhaia Melo, prefeito c pi:lnt'j:ldor de São Pnu!o, que era fnvo·
de cada edifício e o ano em que eles for:Hll co/f}Cados no merendo. rrivcl no controle da verricnl c d;l dcnsidndc popubdonnl dn cidade.
233 1 1\
232 Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros
tou os bairros tradicionais de classe média como Santo Amaro, Pinheiros, Conso- MELHORIA E EMPOBRECIMENTO NA PERIFERIA
lação, Perdizes, Vila Mariana e ltaim Bibi, que tinham crescido muito nas décadas
anteriores. Esses distritos continuaram a perder população a taxas ainda mais al- A expansão da: cidade em direção a suas áreas fronteiriças
tas durante os anos 90. 36 O mesmo processo afetou o primeiro anel da periferia sentamento de moradores mais pobres continuou, embora num ritmo mmto mats
que tinha sido formado principalmente nos anos 40 e 50 (Vila Maria, lpiranga, Vila lento do que nas décadas anteriores. Em 1991, os 20 distritos com maior porcen-
Guilherme, Vila Prudente, Santana). Além disso, áreas mais distantes da periferia tagem de chefes de domicílio ganhando em média menos de três salários mínimos
que haviam crescido mais do que 10% ao ano nos anos 60 praticamente não cres- 9
por mês eram disrritos nos limites da cidade, na região leste.3 E';l
ceram (menOs de 1% ao ano) durante :os anos 80 e perderam população durante o 11 desses distritos, mais de 50% dos chefes de dom1C1ho ganhavam menos de tres
começo dos anos 9b. Essas regiões induem Freguesia do Ó, Limão, Campo Belo, salários mínimos. Como seria de esperar, os distritos mais pobres tendem também
São MigUel, Jaçanã, Artur Alvim e Jaguaré, bairros.distribuídos em todas a ser homogeneamente pobres, com uma proporção muito pequena de moradores
as direções da periféria e que viram melhorias significativas em sua infra-estrutura com rendaS mais altas. Nos distritos mais pobres, a razão de moradores que ga-
urbana durante os anos 80. As únicas áreas que continuaram a .ter taxas altas de nhavam menos de três salários para aqueles que ganhavam mais de 20 está
crescimento foram aquelas nos limites da cidade e que não tinham sido urbaniza- em torno de 350 para 1. . .
das antes. 37 Os moradores mais pobres de São Paulo que estão se estabelecendo nos hml-
Nos outros municípios da região metropolitana, a média de crescimento da tes da cidatle continuam a se valer da e da ilegalidade, corno indica
população foi significativamente mais alta do que na capital (Tabela 6). As taxas uma comparação entre os dados do censo e o registro de propriedades urbanas da
mais baixas de crescimento foram ou dos municípios rurais nas fronteiras da re- cidade. As áreas da periferia que tiveram o maior crescimento de população e de
gião ou em importantes centros industriais como a região do ABCD e Osasco, for- número de domicílios são também aquelas em que há as maiores discrepâncias entre
mada1s pelos municípios mais urbanizados e com melhor infra-estrutura urbana. 0 número de ·domicílios contados pelo Censo de 1991 e o número de unidades
AJgUJt'.l desses municípios também tiveram emigração, enquanto todos os outros residenciais oficialmente registrado no "TPCL em 1990. O TPCL (Cadastro de Pro-
recebêram novos migrantes.38 As taxas mais altas registraram-se no oeste e norte priedades Urbanas) é o registro das construções do muni:ípio. Ele
da região metropolitana, e nos anos 80 em alguns municípios da parte leste. Em apenas as construções legais, enguanto o Censo registra. os t1pos _de dom1c;- .
geral, as áreas a oeste da capital revelam uma nova dinâmica econômica e sociaL lios.40 Assim sendo, a discrepânéia entre as duas fontes 1nd1ca a extensao do feno-
Seu crescimento populacional parece dever-se ao deslocamento de moradores da meno da construção ilegal ou irregular. A discrepância mais impressionante
cidade de São Paulo, especialmente os mais ricos,_ assim como a transformações re tl.o distrito de Guaianases, no limite leste da cidade, onde a diferença entre as duas
econômicas. A cidade com a mais alta taxa de migração na região metropolitana fontes era de 433,12%!41 Guaianases teve um crescimento populacional de 145%
foi Santana do Parnaíba. Este município recebeu intenso investimento imobiliário entre 1980" e 1991 (o maior da cidade) e um aumento de 230% no número de do-
para residências da classe alta assim como para novos conjuntos de escritórios e de micílios, mas o aumento na área residencial construída registrada foi de apenas
comércio. Enquanto isso, o crescimento do lado leste parece representar a conti-
nuação do modelo de autoconstrução. No entanto, estas são tendências gerais: a
região oeste também tem autoconstrução, enquanto a zona leste apresenta vários
novos empreendimentos para o terciário. J9 Em julho de 1997, a única informação disponível sobre do Censo 1991 de acor·
do com os diStritos da cidade referia-se à renda dos chefes de dom1c1ho. lnformaçoes sobre a_ for-
a de trabalho e a população economicamente ativa não estão disponíveis por distrito. Infelizmente,
informações sobre a renda dos chefes de famíHa não são disponíveis para o Censo de 1980, o
que novamente torna comparações e a análises difíceis. Em 1991 (setembro), o valor
36 As taxas médias anuais de crescimento populacional entre 1980 e 1991, e 1991 e 1996, do salário mínimo era de Cz$ 36.161,00, ou aprOXImadamente US$ 65,00; em 1997, era de R$
respectivamente, foram: -0,61 e -3,80 no Itaim Bibi, :1,90 e -3,57 em Santo Amaro, -1,35 e -2,53 na 112,00 ou US$ 100,00.
Consolação, -1,67 e -2,43 em Pinheiros, -0,68 e -1,33 na Vila Mariana, -0,69 e -0,95 em Perdizes.
4Cl Os dados TPCL são organizados de acordo com os velhos distritos. Para o Censo de 1991,
37 Por exemplo, em Cidade Tiradentes (antes uma parte do velho distrito de Guaianases, uso uma tabulação especial de domicílios com base nos velhos distritos feita pela Emplasa (São
no limite leste), que teve a maior taxa anual de crescimento populacional nos anos 80 (24,55%) e Paulo, Emplasa 1994: 349).
a segunda mais alta entre 1991 e 1996 (11,06%), 90,3% da população vive em áreas classificadas
41 o TPCL registrou 19.537 unidades residenciais em Guaianases em o censo
como rurais. Marsilac (anteriormente parte de Parelheiros, no limite sul), o distrito com as piores
registrou 104.155 domicílios em 1991. a cidade como um tod?, o censo 2.539:953
condições de infra-estrutura, é totalmente rural.
domicílios, enquanto o TPCL em 1990 registrou 1.684.994, uma diferença de 50,74 Yo. Este e um
38 Além de São Paulo, Osasco, Santo André, São CaetanO e Salesópolis tiveram emigração problema antigo. Rolnik descobriu altas proporções de construções não regularizadas no fmal do
entre 1980 e 1991 (São Paulo, Emplasa 1994: 136). século XIX e no início do século XXJ(1997: 60, 77).
anos 80. Com o objetivo de contornar esse problema e descrever o que ocorreu na
periferia, agreguei vários distritos e criei uma grande área comparável à periferia Enquanto os distritos centrais da cidade perderam população, a periferia mais
mais pobre dos anos 80. Usei como referência o estudo da Seplan que estabeleceu pobre cresceu em média 3,26% ao ano na década de 80. Em 1991, a região abriga-
oito áreas homogêneas da cidade em termos socioeconômicos (São Paulo, Seplan va aproximadamente um terço dos moradores de São Paulo. Sua infra-estrutura
1977). Considerei os 12 distritos que o estudo da Seplan classificou como perten- urbana melhorou significativamente: em 1991, 74% dos domicílios estavam liga-
à área VIII, a área mais pobre e precária da cidade em 1980. Estudei esses dos à rede de esgoto (çomparados a 19,1% em 1980), 96,03% tinham água encanada
12 distritos no mapa e identifiquei os 28 distritos correspondentes a eles em 1991. e 96,5% tinham coleta de lixo. O asfaltamento de ruas e a iluminação pública tam-
Seus limites não correspondem exatamente, mas são muito próximos. Os dados bém aumentaram e a região leste recebeu uma linha de metrô que melhorou o trans-
comparativos indicam amplos processos de mudança entre 1980 e 1991_44 A Ta- porte público. Além disso, inúmeros postos de saúde, creches e escolas foram cons·.
bela 7 resume indicadores para essa área e para a cidade em 1980 e 1991. truídos pelos governos municipal e estadual nesses distritos. Em conseqüência,
embora os rendimentos tenham permanecido baixos (48,78% dos chefes de domi-
cílio ganhavam menos de três salários mínimos em 1991), a qualidade de vida na
42
A área residencial construída corresponde ao número total de metros quadrados construí· periferia melhorou (ver Fotos 6 e 7). Um bom indicador é a taxa de mortalidade
dos registrados no município {TPCL). Os dados TPCL referentes aos velhos distritos para 1990 es-
infantil. Na capital, ela caiu de 50,62% (por mil nascidos vivos) em 1980 para
tão em São Paulo, Sempla (1992: 148-50); para 1977 e 1987 eles não foram publicados e se origina·
raro da Pesquisa OD. Outros exemplos de grandes diferenças na periferia são: 198% no ltaim Paulis· 26,03% em 1991. Na periferia mais pobre, a diminuição foi ainda mais radical.
ta, 189% no Jaraguá, 186% em São Mateus, 172% em Itaquera e 163% na Capela do Socorro. Em São Miguel Paulista, um dos distritos mais carentes- onde fica o jardim das
43 Algumas das diferenças são: 1,18% em Cerqueira César, 1,92% no Jardim América e ·6% Camélias-, a taxa de mortalidade infantil caiu de 134 em 1975 para 80,46 em
no Jardim Paulista. Em vários distritos centrais a diferença é negativa, isto é, o TPCL registra mais 1980 e para 27,29 em 1994. Outro indicador de mudança na qualidade de vida é a
unidades do que os domicílios encontrados pelo censo. Essa discrepância pode ser causada pela construção de uma série de modernos centros de consumo e lazer na periferia, como
existência de residências legais desocupadas (especialmente apartamentos) e pela transformação shopping centers e grandes supermercados. .
de ve\has residências em áreas comerciais. A melhora significativa na periferia é em grande parte o resultado da ação
44 Os 12 distritos precários de 1980 são: Brasilândia, Capela do Socorro, Ermelino Matarazzo,
política de seus moradores, que, desde o final dos anos 70, organizaram uma série
Guaianases,ltaim Paulista, ltaquera,jaraguá, Parelheiros, Perus, São Mateus (algumas vezes incluído de movimentos sociais para exigir seus direitos à cidade. Esses movimentos sociais
em Iiaquera-Guah'mases), São Miguel Paulista e Vila Nova Cachoeirinha. Os 28 distritos correspon· são um elemento fundamental tanto na democratização da sociedade brasileira
dentes em 1991 são: Anhangüera., Bmsilândia, Cachoeirinhu, Cidade Dutrn, Cidade Tiradentes, Er·
melino Matarazzo, Grajaú, Ângela, quanto na mudança da qualidade de vida em muitas grandes cidades. São Paulo é
Jardim Helenu,Jardim São luís,josé Bonifácio, Lajeado, Marsilac, Parelheiros, Parque do Carmo, provavelmente o melhor exemplo desses processos. Os movimentos sociais e a de·
Perus, Ponte Rasa, São Mateus, São Miguel, São Rafael, Socorro, Vila Curuçá e Vila jacuí. mocratização política forçaram transformações na ação do Estado, especialwente
Fotos 6 e 7: Uma rua no jardim das Camélias em 1980 e 1989. empreendimentos imobiliários ilegais na periferia de São Paulo, correspondendo a 35% da sua área
No começo dos anos 80, apenas uma rua do bairro era asfaltada, e nenhuma possuía urbana. Em 1990, os empreendimentos imobiliários ilegais tinham caído para 16% da área urba-
calçadas, iluminação ou esgoto. Em 1990, todas as ruas tinham asfalto, calçadas, na (Rolnik et a!. s.d.: 94-5).
iluminação e esgoto, embora muitas casas ainda estivessem em construção. Entrevistas com jovens moradores da periferia analisadas no capítulo 2 confirmam seus
sentimentos de que refazer o caminho de seus pais na cidade tinha ficado impossível para eles.
rica,'.! uma enorme população empobrecida. A desigualdade social tornou-se ainda pior durante veis era a associação da crise econômica com "apartamentos de luxo". Esse parece ser o setor do
os 90. Como conseqüência, não é de surpreender que a população mais rica seja bastante mercado de construção de apartamentos que mais flutuou nos últimos 15 anos. Apartamentos de.
pequena. Apenas 7,16% dos chefes de domicílio na cidade ganhavam mais de 20 SM em 1991. quatro dormitórios representavam 30,77% dos no me:cado em 1985, e
51 A razão dos chefes de domicílio que ganham mais de 20 SM em relação àqueles que ga-
20% em 1984 e 1986. No entanto, essa proporção caJU para uma media de 6,8 Yo de 1987 a 1993
(Embraesp 1994: 6). Ela aumentou novamente após e a. de 20,47'/o
nham menos de 3 é de 4,59 no Jardim Paulista e de 3,98 em Moema. Apenas em 11 distritos da (Embraesp 1997: 11). Houve também uma tendência de dJmmu1çao da area m&ha dos grandes
cidade essa razão é maior que 1,0. apartamentos depois de 1985. A despeito disso, a área média dos apartamentos
52 Os apartamentos representavam 20,8% do número total de domicílios na cidade de São mitórios é quase 0 dobro daquela dos.apartamentos com três dormitórios (185m area
Paulo em 1991, de acordo com o censo. d
comparaosa, 85 57 m'l · Além disso ' enquanto ,a área média dos apartamentos de tres dorm1tó·
d ··
rios manteve-se constante entre 1990 e 1997, a area med1a dos apartamentos de quatro ormlto-
53 A fonte para o número e a localização de prédios de apartamentos colocados no merca-
rios variou consideravelmente (Embraesp 1997: 9).
do entre 1976 e 1996 é a Embraesp- Empresa Brasileira de. Estudos de PatrimônioS/C Ltda.
(Relatórios Anuais). ss Houve 55 distritos dos anos 50 até os anos 80.
J, •..,
242 Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros
58
A mudança no estilo predominante de prédio de apartamentos é indicada por uma com mais de 14 mil novas unidades foram construídas entre 1980 e 1996. Ape-
alteração na relação entre área total do terreno e área construída. De acordo com sar disso o bairro ainda tem apenas 0,6% dos apartamentos da cidade, compara-
o TPCL, de 1980 a 1990, a área total construída de prédios residenciais na dos aos S,7S% do Jardim Paulista. Enquanto no Jardim Paulista 88% dos domicí-
cresceu 59,27%, enquanto a área total usada por prédios residenciais cresceu lios são apartamentos, no Morumbi eles são apenas 33,6%. A Andrade, adja-
Vi!•
75,34%. Como resultado, o coeficiente de aproveitamento de edifícios de aparta- cente ao Morumbi, é uma extensão do mesmo processo numa area era
mentos residenciais em São Paulo caiu de pata 3,95.56 O fato de que as cons- pobre e que continua a se expandir, enquanto a expansão do Morumbi parece v1r
truções de apartamentos mudaram das regiões centrais para as regiões mais perifé- perdendo dinamismo nos últimos anos. . . _ " ,
ricas é atestado pelo desenvolvimento sem precedentes de dois distritos a sudoeste Como mencionei, a novidade no Mo.rumbt e na Vtla Andrade na o e so o vo-
da cidade: Morumbi e Vila Andrade. lume de construção, mas também o tipo de edifícios: os conjuntos habitacionais
Esses doiS distritos não-centrais e adjacentes são emblemáticos das mudan- murados. Os condomínios fechados começaram a ser construídos nos anos
ças mais dramáticas que ocorreram na cidade. (Mudanças similares estão aconte- durante o boom do mercado imobiliário e do financiamento estatal. O empreendi-
cendo em alguns municípios a noroeste da região metropolitana.) Eles foram afe- mento que deu início ao desenvolvimento acderado do foi o "Portal do
tados pelo intenso investimento imobiliário não só dos novos tipos de residências Morumbi''. Esse conjunto de 16 prédios de 25 andares fm Inaugurado :m
para os ricos, mas também de novos conjuntos de ·edifícios comerciais e de escritó- Tem 800 apartamentos, metade com quatro dormitórios, metade rres, e a_bn-
rios. O fato de os novos empreendimentos terem se localizado nessas áreas deve-se ga 3.500 moradores, um terço dos com de 14. anis 1_dade. A area
parcialmente ao seu código de zoneamento favorável, que permitia tanto o uso misto total do empreendimento é de 160 m!l m2, dos quaiS 120 m1l m sao areas
(em vez de residencial, como ocorre em partes dos distritos centrais) que incluem parques e instalações esportivas. Esse conjunto_ f?i
quanto um coefiCiente de aproveitamento alto (4). Algumas dessas regiões eram ru- d no meio do nada. Toda a infra-estrutura urbana necessana (mclumdo eletncl-
rais ou habitadas por pessoas pobres. Como resultado, com a expansão dos novos água e asfalto) foi fornecida pelo incorporador imobiliário,
empreendimentos, os distritos passaram a apresentar um novo padrão de organi- Alfredo Mathias. Até hoje, as ruas que passam pelos fundos do conjunto continu-
zação espacial, que mistura moradores ricos e pobres de um lado, e residência e am sem urbanização e sem ou calçadas (ver Fotos 8 e. 9). . .,
trabalho de outro, criando assim ti:m novo padrão de desigualdade social e de hete- Esse tipo de empreendimento, com coeficiente de aproveitamento baixo Ja que
rogeneidade funcional. a transformação é recente e ainda há no bairro muitas mansões e espaços
O ·Morumbi e a Vila tiveram um significativo crescimento popula- pados, explica porque o Morumbi e a Vila Andrade tê:U uma densidade
cional nos anos 80.57 Apesar de o :Morumbi ser um bairro de classe alta há pelo populacional consideravelmente mais baixa do que o Jardtx:n Pauhsta e 4.200
menos 25 anos, ele mudou radicalrp.ente depois do início da década de 80. O que hab/km2, respectivamente, em comparação a 16.900). Exrstem tambem
er:a um bairro de .enormes mansões, terrenos vazios e áreas verdes, foi transforma- tes diferenças sociais entre as duas regiões. Embora concentrem
do, depois de uma década de construção frenética, nttm distrito de edifícios. No final Morumbi e Vila Andrade não são tão homogeneamente ncos como os velhos bair-
dos anos 70, ele foi "descoberto" por incorporadotes imobiliários que decidiram ros centrais. No Morumbi, hoje, 43,9% dos chefes de domicílio ganham mais de
aproveitar o baixo custo dos terrenos e o código de zoneamento favorável e o trans- 20 SM (a porcentagem mais alta da cidade), enquanto na essa
formaram no bairro com o mais alto número de novos empreendimentos imobiliá- ção é 26,2%. A renda média no Morumbi é de 28,82 salar10s mm1mos (a
rios da cidade durante os anos 80 e 90. Mais de 400 novas incorporações residenciais mais alta da cidade), e na Vila Andrade, de 17 No entanto, nas regwes a
proporção chefes de domicílio que ganham de 20 SM em. aos que
ganham menos de 3 é significativamente mais batxa do que no Jardim Pauhsta (2,55
56 Dados do TPCL para 1980 não foram publicados; para 1990 eles aparecem em São Pau· no Morumbi e 0,87 na Vila Andrade, comparados a 4,59 no Jardim Paulista e 3,98
lo, Sempla {1992). O coeficiente de aproveitamento pode ser calculado separadamente para áreas em Moema).59 Enquanto no Jardim Paulista apenas 8,36% dos moradores ganham
resiçlenciais horizontais ou verticais e é um indicador relativamente confiável de construções ver· menos de 3 SM, no Morumbi 17.).2% estão nessa faixa,e na Vil.aAndrade,
ticaJ'•, que em geral são registradas. Em 1990, o TPCL registrou 566.466 apartamentos, enquanto (mais do que os 26,19% que ganham mais de 20 SM). Essa maiOr heterogeneidade
o Cehso de 1991 registrou 529.991 na cidade de São Paulo, uma diferença de 6,9%. No que se
refere às casas, no entanto, o TPCL registrou 1.118.531 casos em 1990, enquanto o Censo de 1991
registrou 1.984.710, uma diferença de 77,4%. Os distritos nos quais a diferença entre proprieda-
d_: e os domicílios pelo censo é pequena são aqueles com maior propor- ss De 1980 a 1987 houve 217 novos empreendimentos imobiliários no Morumbi, corres·
çao de predJOs de apartamentos e famd1as de renda alta {Consolação, Jardim Paulista, jardim pondendo a 4.972 unidades, a maioria de luxo. De 1993 a 1996, o número de empreendimentos
América, Cerqueira César, Pinheiros e Perdizes). foi de 177, e as unidades, 8.849.
59 Além do Morumbi, as médias mais altas de rendas de chefes de domicílio em 1991 fo-
1980-1991 e para 1991-1996 são2,33%
57 As taxas anuais decrescimento da população para
e -0,75% no Morumbi, e 5,93% e 4,93% na Vila Andrade. ram: 22,53 no jardim Paulista, 21,44 no Alto de Pinheiros e 22,08 em Moema.
z4s lo.
244 Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros
na distribuição de renda é uma característica das novas áreas de expansão da cida ·
de e da região metropolitana, onde os empreendimentos imobiliários para pessoas
com rendas mais altas estão localizados em regiões que eram pobres e parcamente
habitadas, e onde os apartamentos para as classes altas são construídos ao lado de
imensas favelas.
Os vizinhos dos condomínios fechados em volta do Real Parque e da Aveni-
da Giovanni Gronchi, no coração do Morumbi, são moradores de duas das mais
famosas favelas de São Paulo. Em 1987, havia 233.429 pessoas morando em fave-
las no distritos do oeste e sudoeste da cidade, o que correspondia a 28,62% dos
moradores de favelas de São Paulo. 60 Em 1993, os moradores de favelas desses
distritos aumentaram para 482.304, o que representava 25,36% dos residentes de
favelas de São Paulo (São Paulo, Sempla 1995: 76).
Depois de 15 anos de intensa incorporação imobiliária para as classes mais
altas em regiões com infra·estrutura precária combinada com a proliferação de
favelas, o Morumbi exibe um quadro impressionante de desigualdade social e exem·
plifica a nova face da segregação social na cidade (ver Fotos 10 e 11). Quando se
observa a área em torno de sua avenida principal, a Avenida Giovanni Gronchi, e
os anúncios de seus edifícios, fica-se perplexo com a imaginação dos incorporadores \·
imobiliários para dotar cada conjunto de apartamentos de características "distin·
tas'?: além da arquitetura monumental e dos nomes vagamente aristocráticos, os
prédios têm características exóticas, como uma piscina para cada apartamento, três
quartos de empregada, salas de esPera para motoristas no térreo, salas especiais para
guardar cristais, porcelanas e pratarias e assim por diante. Todo esse luxo contras·
ta com a visão que se tem das janelas dos apartamentos: os mais de 5 mil barracos
da favela Paraisópolis, uma das maiores de São Paulo, que fornece os empregados
domésticos para os condomínios vizinhos. Para pessoas interessadas em viver ex·
clusivamente entre seus pares, os muros têm mesmo de ser altos, e as residências
para as classes altas não disfarçam suas cercas eletrificadas acima dos muros, asp
sim como câmaras de vídeo e guardas particulares.
A construção intensa de acordo com os interesses dos incorporadores imobi-
liários e com. pouco planejamento ou controle por parte do Estado, além de trans-
formar completamente a paisagem, criou um espaço caótico. Edifícios imensos fo·
ram.construídos um após o outro em ruas estreitas e com inadequa·
da. Na Vila Andrade, por exemplo, apenas 57,6% dos domicílios estão conectados
à rede de esgoto, uma porcentagem mais baixa do que em vários distritos da perife·
ria pobre (para o total da periferia a porcentagem é de 74%). Os edifícios são imenM
sos e muitas das novas ruas não têm calçadas- provavelmente com a intenção de
manter distantes as pessoas que não têm automóvel. O tráfego é intenso e os con-
Fotos 8 e 9: Condomínio fechado Portal do Morumbi: 60 Não estão disponíveis números exatos de favelas no Morumbi e na Vila Andrade porque
entrada.principal e rua lateral não pavimentada. os resultados do Censo de Favelas são fornecidos de acordo com uma outra classificação espacial:
as administrações regionais. Para a estimativa apresentada no texto, considerei a população que
vivia em favelas nas administrações regionais do Butantã e Campo Limpo, que incluem o Morumbi
e a Vila Andrade, mas são maiores do que esses distritos.
RECESSÃO, DESINDUSTRIALIZAÇAO E OS
NOVOS EsPAÇOS PARA ATIVIDADES TERCIÁRIAS
61 No Ponal do Morumbi, por exemplo, que está situado numa rua estreita e tem apenas
duas saídas, na hora do rush, especialmente de manhã, o congestionamento chega a ser tão inten-
so que os moradores podem levar mais de meia hora para cruzar os limites de seus muros e chegar
à avenida que os liga à cidade. :•·
62 Atraídas pelos terrenos baratos e pela possibilidade de construir grandes instalações, muitas
das tradicionais escolas particulares se mudaram para o Morumbi ou abriram novas filiais. Isso é
algumas vezes mencionado como um motivo para as pessoas se mudarem para o Morumbi.
Foto 11: Morumbi, vista aérea: 63 O valor adicionado total (VAT) corresponde, para cada município, ao valor das saídas de
edifícios de luxo lado a lado com mercadorias, acrescido do valor das prestações de serviços no seu território, deduzido o valor das
os barracos da favela, 1992. entradas de mercadorias, em cada ano civil. Este indicador é calculado pela Secretaria da Fazenda.
248
Teresa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros 249 /l/1'"'\
sido o mais dinâmico da cidade e da região metropolitana desde a década de 50. economia se expandam simultaneamente, provocando formas agudas de desigual-
Embora a produção industrial da região metropolitana de São Paulo continuasse a dade social.
representar 30,7% da produção nacional em 1987, essa proporção é significativa- Essas mudanças econômicas têm todo tipo de implicações para o meio urba-
mente mais baixa do que os 43,5% de 1970 (Araújo 1992: 56). no, ·do abandono ou conversão de fábricas à criação de novos espaços urbanos e
Enq.uanto 1970 a cidade de São Paulo detinha quase metade da força de novos tipos de instalações para comércio e escritórios. Depois de terem se desloca-
trabalho do estado, em 1991 ela detinha menos de um terço (Gonçalves do do centro velho para a Avenida Paulista e para a Avenida Faria Lima nos anos
e Semeghmt1992, e Leme e Meyer 1997: 71). A diminuição da participação do setor 60, os principais complexos de edifícios de escritórios estão agora se mudando para
industrial na economia urbana ocorreu em todo o estado de São Paulo mas foi sudoeste, ao longo do rio Pinheiros e na mesma direção dos novos cOnjuntos habi-
especialmente acentuada na capita1.64 Enquanto no .interior do estado o indus- tacionais, shopping centers e hipermercados. 67 Dessa forma, os novos espaços ur-
trial em 1991 tinha praticamente a mesma proporção da força de trabalho (38,4 %) banos para as atividades terciárias estão se desenvolvendo por meio de um proces-
(39,7%), depois de ter aumentado em 1980 (45,1%), na capital a so bem conhecido nos Estados Unidos: o deslocamento de empregos e residências
partiCipaçao do setor mdustnal .na força de trabalho diminuiu significativamente de áreas centrais e urbanizadas para áreas distantes nos subúrbios. Os novos con-
até alcançar em 1991, depois de ter crescido de forma consistente desde os juntos de edifícios são o resultado de grandes investimentos, freqüentemente de
anos 50, alcançado 42% em 1980 (Gonçalves e Semeghini 1992, e Leme e Meyer incorporadores imobiliários que abandonaram o mercado residencial quando este
65 se tornou muito difícil (Ferraz Filho 1992: 29). Eles seguem o mesmo padrão ar-
1997: 64!. Na.região metropolitana como um todo, o percentual de participação
do setor mdustrtal no total da força de trabalho ocupada caiu continuamente nos quitetônico e de planejamento dos condomínios fechados, e se não são necessaria-
últimos anos: de 36,5% em 1988 para 29,6% em 1993 (Leme e Meyer 1997: 77). mente murados como os complexos residenciais, certamente são fortificados e uti-
À medida que o setor industrial encolheu, o papel das atividades terciárias na lizam extertsos serviços de segurança para manter à distância pessoas indesejadas
economia urbana aumentou. 66 Há um debate entre os cientistas sociais so- - e para controlar seus próprios trabalhadores. Como mundos auto-suficientes,
bre se a expansão do setor terciário se deve a um aumento de atividades "moder- esses arranjos são extremamente versáteis ser instalados em qualquer
ou "tradicionais". Alguns (por exemplo, Gonçalves e Semeghini 1992, Araú- gar onde o terreno seja barato o suficiente para tornar o investimento lucrativo.
JO 1992) argumentam que a expansão do terciário é um reflexo do desenvolvimen- Como ocorre com os complexos residenciais, eles estão sendo instalados em regiões
to de um tipo de produção mais flexível, no qual muitas atividades antes registradas que antes eram pobres. A avenida que simboliza a nova expansão, a Eng. Luís Carlos
como produção industrial começaram a ser adquiridas como serviços, e no qual o Berriní, rapidamente deslocou uma antiga favela, graças a um programa pago pe-
papel da tecnologia moderna e das atividades de financeiras se expandiu. Outros, los novos ocupantes da região. Em 1998, a maioria das moradias precárias havia
no entanto, tentam relativizar essas asserções, mostrando que os setores do terciário desaParecido, mas ainda se viam algumas delas e alguns bares para as camadas mais
que de fato se expandiram são muito precários, como por exemplo o comércio am- pobres. Pode-se esperar, no entanto, que num curto período de tempo a avenida
bulante e atividades não especializadas e sub-remuneradas desempenhadas sem esteja completamente transformada pelos novos edifícios, que exibem uma versão
contratos formais de trabalho (por exemplo, Leme e Meyer 1997: 63-79). Embora local do estilo arquitetônico pós-moderno, e totalmente purgada dos moradores
esteja aléi? do áicance deste trabalho desenvolver essa hipótese, gostaria de sugerir pobres. Até que isso ocorra, a Berrini oferece um espetáculo de ·desigualdade social
que _os dOis processos provavelmente estão ocorrendo concomitantemente, e nesse da mesma qualidade que o do Morumbi, com seus condomínios fechados esprei-
sentido o que está acontecendo em São Paulo não seria diferente dos processos de tando as favelas.
reestruturação industrial que ocotrem em outras cidades, como Los Angeles e as Finalmente, o deslocamento das novas atividades terciárias em direção a oes-
chamadas cidades globais (Scott é Soja 1996, Sassen 1991). É uma característica te recria uma oposição entre as partes leste e oeste da cidade que o modelo centro-
processos que tahto o pólo imais dinâmico quanto o pólo mais precário da periferia tinha eclipsado. Enquanto os novos investimentos em conjuntos de escri-
tórios e condomínios fechados para a classe alta estão concentrados no lado oeste
da a região leste, tradicionalmente mais industrial, perdeu dinamismo
64
No estado de São Paulo, a participação do setor industrial na produção total caiu de 47,1%
com a diminuição das atividades industriais. Algumas das velhas fábricas foram
em 1980 para 41,3% em 1991. Simultaneamente, a participação das atividades terciárias aumen-
tou de 49,7% para 54,6%.
65 67
Ela cresceu de 34,7% em 1960 (Seade 1990: 24) para 39,6% em 1970 (Gonçalves e A área da cidade afetada pelo movimento das atj;vidades terciárias segue o rio Pinheiros,
Semeghini 1992) em ambas as margens, da Lapa- passando pelo Buran"tã e Morumbi- até o Campo Limpo a
66 Os estudos de economia urbana que estou citando consideram apenas dois setores: o in- oeste, e do Alto de Pinheiros até Santo Amaro, passando pelo Ibirapuera e pela Vila O !ímpia, a
dustrial e o terciário. Portanto, a porcentagem do setor terciário nas atividades econômicas é com- leste. Em todas essas áreas podemos observar a combinação de condomínios fechados da classe
à das atividades industriais: 67,9% para a cidade em 1991. alta com favelas e de enclaves residenciais com centros comerciais e de escritórios.
que é público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por mu- espaços interiores de shopping cemers, hotéis, aer?port?s etc_., que, embora sejam propriedade
privada, têm uso público. Eles não discutem a versao resJdencJnl dos enclaves.
ros, grades, espaços vazios e arquitetônicos .. São voltados para o interior e
25H T<.>rcsa Pires do Rio Caldeira Cidade de Muros 259 1\ " '
valores que haviam prevalecido dos anos 40 até os 80, quando o centro era a ser condomínios, já que a propriedade e o uso de áreas comuns são
vocamente associado aos ricos e a periferia, aos pobres. Pela primeira vez algo como dos coletivamente e os moradores têm de obedecer às convenções do condomímo.
o subúrbio americano popular entre a elite, e a distância centro foi Os condomínios fechados brasileiros não são obviamente uma invenção
resignificada para conferir status em vez de estigma. ginal, ma.s partilham várias características com os CIDs (common interest develop-
ments ou incorporações de interesses comuns) e subúrbios americanos. No entan-
to, algumas diferenças entre eles são esclarecedoras. 3 Primeiro, os condomínios
DE CORTIÇOS A ENCLAVES DE LUXO fechados brasileiros são invariavelmente murados e com acesso controlado, enquanto
nos EUA, os empreendimentos fechados (gated communities) constituem apenas
Yiver em edifícios com várias famílias, compartilhando tanto o uso quanto a cerca de 20% dos CIDs.4 Segundo, os tipos mais comuns de condomínios
propnedade de áteas comuns, não é uma experiência nova para a dasse média dos em São Paulo ainda são os de prédios de apartamentos, e, apesar de poderem
sileira. Os condomínios existem desde 1928 em São Paulo. Embora tenha levado ser vendidos como um meio de escapar da cidade e seus perigos, ainda são mais
um bom tempo para perderem o estigma de cortiço e se tornarem populares entre urbanos do que suburbanos. Os primeiros conjuntos construídos de acordo com o
a classe média, os apartamentos se. generalizaram a partir dos anos 70, dadas as modelo fechado são um.bom exemplo. O Ilha do Sul, construído em 1973, é um
mudanças nos financiamentos e o boom de construções que se seguiu. Vários ele- conjunto de classe média de seis edifícios, cada um com 80 apartamentos de três
mentos, no entanto, diferenciam os apartamentos da década de 70 dos condomí- dormitórios localizado na zona oeste da cidade (Alto de Pinheiros). Suas princi-
nios fechados dos anos 80 e 90. Apesar do antigo tipo de apartamento continuar a pais inovaçÕes eram, de um lado, oferecer comodidades como um clube de mais de
ser construído e ter expandido seu mercado até pará as camadas trabalhadoras, os 10 mil m2 incluindo instalações esportivas, um restaurante e um teatro e, de outro\
empreendimentos mais sofisticados e caros são de um outro tipo. Uma diferença é a segurança: ele é murado e o acesso é controlado por segurança privada. Na épo-:
a localização: enquanto nos anos 70 os prédios residenciais ainda estavam concen- ca o crime não e'ra a principal preocupação da cidade, e a prática de controlar a
trados nos bairros centrais, os condomínios fechados da década de 90 tendem a se ci;culação·era na verdade temida por vários grupos: 1973 era o auge da ditadura
situar em áreas distantes. Enquanto os antigos apartamentos integravam a rede militar e para muitos qualquer investigação de identidade era vista como
urbana, os condomínios recentes tendem a ignorá-la. Segundo, os condomínios dora. Esse fato indica como o enclausuramento foi uma estratégia imobiliária e de
chados são por definição murados, enquanto os edifícios dos anos 70 costumavam marketing que se tornou dominante nas décadas seguintes: hoje, os procedimentos
ser abertos para as ruas. Embora a maioria destes tenha sido cercada recentemen- de segurança são requisito em todos os tipos de prédios. aspirem a te:
te, o isolamento não era parte de sua concepção inicial, mas sim uma adaptação ao gio: Durante o final dos anos 70 e a 80, a dos
novo paradigma. Terceiro, o novo tipo de condomínio fechado costuma ter gran- chados construídos em São Paulo eram verttcats e locahzados no Morumbt, segumdo
des (algumas vezes muito grandes) áreas e equipamentos de uso coletivo, enquanto o exemplo do Portal do Morumbi.
na geração anterior os espaços comuns geialmente a garagens, áreas Os condomínios horizontais começaram a ser construídos no final dos anos
de circulação, pequenos playgrounds e talvez um salão de festas.2 70, especialmente nos municípios adjacentes à na parte da região
Enquanto os condomínios dos anos 70 eram basicamente prédios de metropolitana. Eles apresentam algumas interessantes dtferenças em relaçao aos seus
mentos, nos anos 90 eles podem ser de dois tipos: vertical ou horizontal. Os pri- equivalentes americanos. Embora a homogeneidade social seja obviamente
meiros são geré!lmente uma série de edifícios em grandes áreas com vários zada, a homogeneidade do projeto não o é: casas com a mesma planta e fachada
mentes de uso coletivo, e são o tipo predominante em São Paulo. Os últimos con-
sistem em uma série de casas- este tipo predomina nos outros municípios da re-
gião metropolitana. As casas são geralmente construídas pelos próprios proprietá- 3 Ver McKenzie (1994) para uma análise dos ClDs nos Estados Unidos. Segundo, McKenzie,
rios, não pelos incorporadores, ao contrário do que é a regra nos Estados Unidos. os CIOs compartilham três características que os distinguem de outros tipos de moradia: proprie·
dade em comum· participação obrigatória na associação de moradores; e regime privado de conven-
Em conseqüência, elas não têm um desenho uniforme, embora vários incorporadores
ções restritivas posto por moradores. Eles podem ser de três de
incluam nos títulos de venda vários regulamentos referentes a recuos, áreas aber- planejadas (ou PUDs-planned unit developments), que em cas:s .Isoladas
tas, muros e cercas, tamanho da casa e uso (apenas residencial). Mas eles continuam de acordo com um mesmo plano mesrre, em geral nos suburbtos; condommtos, comumente pre-
dios; e cooperativas (ou co-ofJS), isto é, apartamentos em que os çond6minos têm participação
acionária no prédio como um rodo em vez de serem proprietários de uma unidade (1994: 19).
4 Blakely e Snyder (1997: 7, 180) estimam que 19% de todas as 190 mil associações inte-
2 dos condomínios recentes têm mais de 100 mil m2 para uso coletivo e podem ser grantes do CAI (Community Association Institute) 19?6 e.ram fecha?os. Eles
comparados a clubes sofisticados. Alguns são tão grandes quanto um bairro, com mais 20 mil corresponderiam a mais de 3 milhões de unidades. Nao ha esnmattva d1spomvel do numero de
habitanres c várias ruas internas. Eles silo iiwariowelmenre fe-::hados. condomínios fechados em São Paulo.
261
260 Ten.•s;l Pires do Rio Caldcim Cidade de Mtlros
são desvalorizadas e pouco comuns. Tradicionalmente, em São Paulo, casas padroM projetadas nos anos 20. 7 Essas áreas, no entanto, sempre foram centrais, não ha-
nizadas têm sido construídas para as camadas trabalhadoras e são desvalorizadas via nenhuma propriedade comum, e as casas eram construídas individualmente. Além
não só pela população em geral, como também pelas pessoas que não têm outra disso, embora esses empreendimentos tivessem contratos com restrições em rela-
opção a não ser viver nelas. Os moradores fazem inctíveis esforços para transfor- ção a projeto e uso, alguns de seus regulamentos se tornaram a norma, já que fo-
mar suas casas e dar-lhes o que chamam de "personalidade", isto é, uma aparência ram incorporados ao Código de Obras da cidade em 1929. Hoje eles são regula-
individualizada.s mentados pelos códigos de zoneamento da cidade, não pelas determinações dos
O alto valor ligado à "personalidade" da casa, compartilhado por todas as contratos originais.
classes sociais, provavelmente explica por que casas padronizadas não são comuns Os empreendimentos imobiliários para a elite longe do centro da cidade tor-
entre a elite. Isso também é provavelmente responsável pelo fato de que prédios de naram-se significativos só no final dos anos 70. Foi também nessa época que uns
apartamentos também têm de mostrar "personalidade'', e os prédios do Morumbi poucos incorporadores começaram a construir algo semelhante às new towns e edge
exibem uma considerável variação na tentativa de distinguir-se individualmente. cities americanas, isto é, áreas suburbanas que combinam empreendimentos resi-
Mais importante, no entanto, é que essa rejeição da homogeneidade até entre pesM denciais com centros comerciais e espaço para escritórios. Algumas dessas incor-
soas que são parte de um mesmo grupo social pode estar relacionada ao fato de porações mais famosas e agressivas em termos de marketing são Alphaville, Aldeia
que na justificação ideológica dos conQomínios fechados de São Paulo não há ne- da Serra e Tamboré, nos municípios de Santana do Parnaíba e Barueri, a nova área
nhuma referência positiva à idéia de comunidade, algo sempre invocado nos em- de incorporações para as classes médias e altas na região metropolitana. Alphaville
preendimentos am:ericanos. Os condomínios nunca são chamados de "comunidaM começou nos anos 70, construída pelos mesmos incorporadores do Ilha do Sul, e
des"- como acontece nos Estados Unidos, onde recebem o nome de gated commu- que atualmente estão lançando outros condomínios horizontais nas áreas próximas.
nities -,nem são anunciados como um tipo de moradia que possa realçar o valor Construído numa área de 26 km 2 que se espalha por dois municípios (Barueri
de se fazer coisas em conjunto. Na verdade, os moradores brasileiros parecem des- Santana do Parnaíba), Alphaville é dividida em várias áreas residenciais muradas
prezar bastante esSa idéia de comunidade. Outro poqto interessante de compara- -cada uma enclausurada por muros de 3,5 m de altura e acessíveis apenas por
ção com os Estados Unidos é o uso de contratos e convenções restritivos (restrictive uma entrada controlada - , um conjunto de edifícios de escritórios (Centro Em-
covenants). Embora os condomínios brasileiros tenham necessariamente conven- presa.rial) e um oentro comercial ao redor de um shopping center (Centro Comer-
ções, e embora elas sejam segregadoras, historicamente não têm sido um instrumento cial). As primeiras partes a serem construídas, em meados dos anos 70, foram o
da indústria imobiliária, como é o caso nos Estados Unidos, segundo McKenzie centro de escritórios e duas das áreas residenciais. No início dos anos 90, Alphaville
(1994: especialmente cap. 2). Somente na última geração de grandes condomínios tinha uma área urbanizada de 13 km 2 e uma população fixa de cerca de 20 milha-
os incorporadores começaram a incluir suas restrições nos contratos de venda. Nos bitantes. O Centro Empresarial abrigava 360 empresas e o Centro Comercial, 600
velhos tipos de prédios de apartamentos, essas eram limitadas à preservação da arM empresas. Em média, a população flutuante diária era de 75 mil não-moradores.s
quitetura e da fachada, o que é um assunto totalmente diferente em prédios. No Em 1989, 55,4% da receita de impostos de Barueri vinha de Alphaville (Leme e
caso das casas padronizadas da classe trabalhadora, essas restrições nunca existiM Meyer 1997: 20). A segurança é um dos principais elementos na sua publicidade e
ram ou nunca foram cumpridas, e modificações constantes são a regra. uma principais obsessões "de todos os envolvidos com o empreendimento. Sua
Os condomíniás horizontais dos anos 80 e 90 representam o processo de força de segurança privada tinha mais de 800 homens e 80 veículos no início dos
suburbanização de São Paulo. Esse processo ainda é incipiente se comparado aos anos 90. Cada unidade (Residenciais, Centro Comercial e Centro Empresarial)
Estados Unidos.6 Antes dos anos 80, se empreendedores imobiliários agiram como contrad. sua própria segurança para manter a ordem interna, e existe ainda uma
planejadores urbanos privados, isso foi mais evidente na expansão d<). periferia pobre força de segurança comum para cuidar dos espaços públicos (as avenidas e mesmo
do que na criação de subúrbios ricos. Até muito recentemente, os casos mais famo- a estrada que liga a São Paulo).
sos de bairros planejados para a elite eram aqueles projetados no começo do sé-
culo XX, incluindo Higienópolis, a Avenida Paulista e as famosas cidades-jardins
7 Essas cidades-jardins existem até hoje e originaram a área mais rica da cidade, chamada
Jardins. Com suas típicas ruas circulares, a primeira delas, Jardim América, foi planejada na InM
5 Venho esmdando as transformações em moradias da classe trabalhadora comJames Hols- glarerra pela firma de Barry Parker e Raymond Unwin.
ton. Um dos bairros em nosso estudo foi inicialmente construído por um empreendedor imobiliá- 8 Dados da construtora Alburquerque, Takaoka S.A., publicados no informativo interno
rio nos anos 70 com casas padronizadas. As casas foram sendo alteradas a tal ponto que depois de Alphaville Uornal de Alphaville, XIV (3): 5, 1991). No final dos anos 90, a população residen-
de 20 anos é quase impossível identificar as plan[as e fachadas originais. te parece ter crescido para 30 mil, e a média de população flutuante, para 80 mil (comunicação
6 Para o caso americano, ver Jackson (1985) e McKenzie (1994). verbal de representantes da construtora).
bre a sociedade e sobre si mesmos. No caso dos trabalhadores pobres em São Pau- casa, mas abordagem alternativa seria identificar como eles expressam as variações das polí-
lo, o processo envolve não a compra de uma casa já pronta, mas todo um processo ticas habitacionais e códigos de construção analisados no capítulo 6. Apesar de os anúncios não
de construção, tanto material quanto simbólico. Eles não compram um casa, mas mencionarem os códigos de zoneamento, regulamentações restritivas, crise econômica e dificul-
dades de financiamento, todas essas questões podem ser lidas na linguagem específica da publici-
literalmente a constroem. Assim, basicamente não existem anúncios em jornais para dade. Na verdade, o "novo conceito de moradia" é uma resposta à necessidade dos empreende-
as casas da classe trabalhadora em São Paulo. Nos bairros da classe trabalhadora, dores imobiliários de construir prédios de apartamentos longe do centro e em imensos lotes por
causa dos códigos de zoneamento e do aumento do preço da terra. Nos anúncios, porém, essa
necessidade aparece transfigurada em "escolha de um estilo de vida". Da mesma maneira, se os
9 Ver Augé (1989) para uma análise do "sistema de propaganda imobiliária". apartamentos estão sendo construídos com áreas internas menores, tanto por causa do menor poder
aquisitivo dos compradores quanto da necessidade de manter uma certa taxa de utilização, o es-
10A amostra de anúncios analisada foi feita selecionando-se duas edições, geralmente de paço reduzido é anunciado como "solução racional" perfeitamente adaptada à "vida moderna de
domingo, de cada ano (uma da primeira metade do ano e uma da segunda). Examinei todos os pessoas dinâmicas". Apesar de os anúncios oferecerem material para uma interpretação da vida
anúncios imobiliários de cada edição selecionada. doméstica das famílias de classe média paulistanas (por exemplo, por meio de uma análise da dis-
11 Ver, por exemplo, a clássica análise de Bachelard (1964) sobre a relação entre casa e tribuição de espaços e funções, do uso de materiais e assim por diante), concentro a análise sobre-
memória; a de Bourdieu (1972) sobre a casa Kabyle; e a de Cunningham (1964) sobre a casa Atoni. tudo no que essas residências expressam publicamente no espaço da cidade.
O programa publicitário para a televisão transmitido em São Paulo pela Rede 1994: especialmente cap. 2). No Brasil, isso seria impensável, dada a etiqueta
Manchete no sábado, 16 de outubro de 1993, explicitamente ilustra as conexões dicional das relações raciais que faz com que a questão não seja nunca
com o modelo dos EUA, assim como algumas peculiaridades locais. O programa da. Como na vida cotidiana, o anúncio simplesmente silencia a referência a raça; e
combinou cenas das edge cities dos EUA (Reston, Virginia, e Columbia, Maryland)l9 como se isso não fosse um problema, os negros continuam a ser assediados e
e dos três empreendimentos sendo anunciados em São Paulo. Garreau - falando dados para a entrada de serviço.
em inglês com legendas em português - descreveu as edge cities como a forma
do crescimento urbano atual e usou Los Angeles e seus múltiplos
Cl:.1tros como exemplo. Havia interessantes difereJ?,Ças na forma como o programa MANTENDO A ÜRDEM DENTRO DOS MUROS
apresentou as edge cities brasileiras em comparação com as americanas.
res de enclaves em ambos os países foram entrevistados na frente de piscinas, lagos O ideal do condomínio fechado é a criação de uma ordem privada na qual os
e áreas verdes, enfatizando tanto o caráter luxuoso quanto o anti urbano dos moradores possam evitar muitos dos problemas da cidade e desfrutar um estilo de
porações. No entanto, se as edge cities americanas têm muros externos, controles vida alternativo com pessoas do mesmo grupo social. O anúncio de um empreen-
de entrada, e pessoal de segurança,·eles não foram mostrados. No caso paulista, dimento de luxo no Morumbi torna essa concepção inconfundivelmente clara. Cha-
no entanto, eles são cruciais e foram enfatizados. A uma certa altura, o programa mado de Place des Vosges, ele é uma réplica da famosa praça parisiense. Seus a
mostra uma cena filmada de um helicóptero: o pessoal da segurança privada do tamentos maiores têm quatro dormitórios e 268m2 (além de quatro garagens e áreas
condomínio brasileiro intercepta um "veículo suspeito"- urna Kombi- fora dos externas para um uma área total de 539m2 por unidade) e custavam US$ 476 mil.
muros; eles revistam fisicamente os ocupantes, que são forçados a colocar os Em 1993, quando a construção começou, foi anunciada com a frase: "Condomí-
ços para cima contra o automóvel. Embora seja ilegal para um serviço de nio Place.des Vosges. Outro igual a esse só em Paris" (O Estado de S. Paulo, 17 de
ça privado realizar em uma rua pública esse tipo de ação, isso, junto com cenas de outubro de 1993). Os anúncios do empreendimento se concentraram nas
visitantes apresentando documentos de identificação nos portões de entrada, dades eb1:re os dois até 1996, quando começaram a destacar as diferenças (ver
gura aos moradores ricos (e espectadores) que pessoas "suspeitas" (pobres) serão gura 1). A nova propaganda mostrava uma fotografia da praça parisiense e um
mantidas a distância e sob controle. Outra cena reveladora é uma entrevista em desenho do endave do Morumbi e anunciava: "Place des Vosges. A única
glês com um morador d.e uma edge city americana. Ele cita como uma das ça é que a de Paris é pública. E a sua é particular" (0 Estado de S. Paulo, 15 de
pais razões para se mudar para lá o fato de que queria viver numa comunidade março de 1996).
racialmente inregrada. Essa observação. é suprimida nas legendas em português e · Embora os novos enclaves valorizem o universo privado e rejeitem a cidade e
substituída pela formulação de que sua comunidade tinha "muitas pessoas seus espaços públicos, organizar a vida em comum dentro dos muros dessas áreas
santes". Em São Paulo, a idéia de uma comunidade racialmente integrada poria em residenciais coletivas tem se mostrado bastante complicado. Muitas pessoas que
risco todo o negócio. entrevistei nos condomínios concordam que eles resolveram a maioria dos proble-
Importar modelos de Primeiro Mundo e para vender todo tipo de mas associados ao mundo externo, mas estão continuamente enfrentando
mercadorias é obviamente uma prática comum em países de Terceiro Mundo. O tos internos. Elas sentem que os condomínios de fato são seguros, se com isso se
par.alelo entre os exemplos brasileiros e ainericanos sugere que, embora o grau de quer dizer que são capazes de evitar o crime e controlar interferências externas. No
segregação varie, ela ainda usa dispositivos semelhantes em ambos os casos. Colo- entanto, a vida entre iguais parece estar distante do ideal de harmonia que alguns
cados lado a lado com os casos americanos, os métodos brasileiros de segregação anúncios querem construir.
(muros altos, guardas armados por todos os lados, controle ostensivo dos pobres) . Igualdade social e uma comunidade de interesses não constituem
parecem óbvios e exagerados. Contudo, eles revelam de modo caricatura! algumas men,te as bases para uma vida pública. Concordar a respeito de regras comuns
características do modelo americano original. A questão da segregação racial rece ser um dos mais difíceis aspectos da vida cotidiana nas residências coletivas.
bém oferece um contraste interessante. Apontar a integração racial como algo Além disso, mesmo se se concorda com as regras, fazê-las cumprir pode ser difícil,
sitivo num CID americano é algo anômalo, dada a longa história de contratos especialmente no caso de crianças e adolescentes. O problema central dos condo-
tritivos e segregação racial nessa forma de moradia nos Estados Unidos (cf. McKenzie mínios e edifícios parece ser como funcionar éomo uma sociedade com algum tipo
de vida pública. Muitos moradores parecem tratar todo o complexo Como casas
particulares onde podem fazer o que lhes der na Cabeça. Eles interpretam liberdade
19 Ambas são "cidades novas" (new towns), construídas e financiadas privadamente e en- como sendo uma ausência de regras e responsabilidades em relação aos vizinhos.
tre as maiores desse tipo de empreendimento (McKenzie 1994: 100). Nos anos 90, Contudo, ambas Novamente é revelador fazer algumas comparações com os enclaves
foram assimiladas à conurbação da Grande Washington. Elas.não podem ser consideradas exem- canos. Nos Estados Unidos, "tommunity" é uma designação comum para
plos típicos das edge cities dos anos 90. mínios de vários tipos. Em São Paulo, os incorporadores imobiliários não vêem a
I 20 O livro de Blakely e Snyder (1997) avalia a vida dentro das gated communities em rela-
< &CBPO
- dfll!mrttlQ
-·- ção a um ideal de comunidade definido por dois critérios: as sensações de pertencimento e parti-
111 cipação pública (capítulos 2 e 6), Compartilhando com moradores dos subúrbios um sentimento
antiurbano e referindo-se a uma vida comunitária idealizada de "décadas passadas- bairros onde
as pessoas se conheciam e cuidavam umas das outras" (1997: 166), esses autores criticam as co-
munidades fechadas não pela segregação que elas podem impor, mas basicamente por falharem
em produzir boas comunidades. Seu conselho para a substituição de portões tem como objetivo
Figura 1: Anúncio do condomínio fechado ·Piace des Vosges principalmente a criação de ''comunidades melhores" e inclui receitas de "neotradicionalismo" e
publicado em O Estado de S. Paulo, 1510311996, p. A16. ' "espaço defensivo" (cap. 8).
Problemas como o dos adolescentes que desobedecem à lei são tópicos con· Um velho código de honra existente entre os presos foi aplicado
trovertidos dentro dos condomínios. Vários moradores acham que tornar esses no final de semana a dois envolvidos na morte da estudante. joanilson,
problemas vai diminuir d valor de sua propriedade. Além disso, eles vêem o Grande, e Antonio Carlos, o Cota, foram espancados e violentados
esses problemas como um assunto privado para ser tratado internamente: uma ques- pelos companheiros de cela na cadeia de Jandira. Entre os detentos, o
tão de disciplina, não de lei! Os s:egredos são mantidos especialmente no caso de estuprador é rejeitado e deve ser punido pelo crime que cometeu. (O
condomínios como Alphaville, famoso por sua segurança interna e onde houve um Estado de S. Paulo, 26 de fevereiro de 1991)
incrível aumento no valor da propriedade ao longo da última década. Às vezes, no
entanto, os moradores enfrentam a desaprovação dos vizinhos e quebram o silên- O jorrial Folha da Tarde informou os leitores sobre o destino do terceiro sus-
cio, fornecendo informações à imprensa. Um morador de Alphaville falou à Folha peito nos seguintes termos:
de S. Paulo em 1990 e seus comentários captam a essência dos problemas de uma
comunidade que se considera à parte do resto da sociedade. disse que a polícia Edgar, a exemplo de seus dois companheiros, não passou impune
não entra em Alphaville porque ela é mantida fora por parte dos moradores. pelá lei da cadeia: estuprador vira mulher;.dos outros presos. Ao ser in-
dagado se havia sido estuprado, "Baianinho" respondeu com um gesto
Eles inibem a polícia. Usam a velha frase do "você sabe com quem afirmativo feito com a cabeça. "Baianinho" não foi surrado como seu
está falando?". Tudo aqui é abafado. Há uma lei para os mortais mas companheiro Joanilson de Lima, "o Grande". Isso só aconteceu porque
não para os moradores de Alphaville. (Folha de S. Paulo, "Alphaville, o ele não reagiu ao estupro, segundo um carcereiro. Mesmo assim seu rosto
'condomínio·paraíso' de São Paulo, agora teme os assaltos", 20 de abril e seu braço estavam cheios de hematomas. "Eles me bateram um pouco
de 1990). 24 só", disse "Baianinho" .( ... )Um "cardeal" da Polícia Civil- diretor de
departamento-, que não quis se identificar, afirmou anteontem que os
Quando os problemas são classificados como internos, a atitude de evitar autores do estupro e do assassinato não ficarão mais de dois dias vivos
interferências e publicidade parece prevalecer. Contudo, as reações são diferentes dentro de um presídio como a Casa de Detenção. "Eles o pegarão du-
quando um problema de segurança "externo" muda a vida do condomínio, sur· rante o banho de sol ou de noite", disse. (Folha da Tarde, 27 fevereiro
gindo uma oportunidade de perceber alguns dos problemas dos mundos enclau- de 1991.) 25
surados. Um problema "externo" desse tipo trouxe Alphaville para as páginas de
crime de todos os jornais em fevereiro de 1991. Uma moça de 18 anos que crescera ·Tortura, estupro, espancamento de prisioneiros, sexismo, desrespeito à lei e
no condomínio foi seqüestrada no estacionamento do clube de tênis, estuprada e aos direitos humanos são tratados como fatos triviais pela imprensa. A trivialização
morta. O desdobramento desses eventos é notável em cada detalhe, revelando as· desses fatos faz com que pareçam tão "naturais" que reportá·los não causa nenhu·
pectos paradoxais não só da manutenção da ordem dentro de um lugar de elite como ma reação maior. Mas corno espancamentos e estupros não são uma rotina tão
Alphaville, mas também da sociedade brasileira em geral. Imediatamente depois de freqüente para a classe alta, o evento afetou o cotidiano e a segurança de Alphaville.
o caso ser tornado público, a autoria do crime foi imputada a ex·operários de cons· Parece que o assassinato da estudante e os acontecimentos que se seguiram mos·
que tinham trabalhado no condomínio. Por se tratar do assassinato de uma traram àqueles que haviam escolhido viver acima da lei que eles tinham problemas
pessoa da classe alta, a polícia agiu rapidamente, os meios de comunicação divul- a enfrentar. Alguns dias depois do assassinato, um grupo de moradores foi até o
garam cada aspecto das investigações, além de fotografias da menina e de sua fa- secretário de.Segurança Pública do estado para solicitar sua ajuda para resolver o
mília. Três homens (que.não eram opefários da construção) foram finalmente acusa- problema do crime interno que havia sido desconsiderado até o momento. Eles
dos do crime e presos. No dia seguinte, os jornais publicaram suas fotos: estava visível criaram o Conseg- Conselho de Segurança -, formado por representantes dos
que eles tinham sido espancados e suas sobrancelhas e bigodes haviam sido raspa- moradores e das polícias civil e militar. Os moradores simultaneamente criaram a
dos. Os jornais e revistas informaram à população que isso era um sinal de que eles Associação de Mães de Alphaville, que começou a promover palestras e debates no
tinham sido estuprados pelos outros prisioneiros, e que isso era um "tratamento condomínio. Todas as pessoas envolvidas com quem pude conversar, ou cujas opi·
comum" para as pessoas acusadas de estupro. Nada foi feito para investigar como niões saíram na imprensa, parecem ter decidido colocar a culpa dos problemas na
o abuso aconteceu ou para punir as pessoas responsáveis, e nenhuma medida foi
tomada para impedir que ocorresse; tudo foi relatado como uma rotina. O jornal 25 A cobertura desse evento revela a maneira rotineira e não·questionada pela qual os jor·
O Estado de S. Paulo informou a seus leitores: nalistas brasileiros usam fras.es sexistas, como a que define um homem que é sodomizado à força
como a "mulher" do violador; ou frases que reproduzem estereótipos, como aquela justificando o
24 Ver DaMatta (1979) para uma análise do uso da ffase "Você sabe com quem está falan· estupro de um estuprador como um comportamento que está de acordo com um "'código de hon·
do?" como um meio de impor distância social e o reconhecimento de inferioridade social. ra". Isso também reflete o que Michael Taussig chama de "terror as usual" (1992: capítulo 2).
Cercas, barras e muros são essenciais na cidade hoje não só por razões de
segurança e segregação, mas também por razões estéticas e de status. Todos os
mentos associados à segurança tornaram-se parte de um novo código para a ex-
pressão da distinção, um código que chamo de "estética da segurança". Esse é um
código que incorpora a segurança num discurso sobre gosto, transformando-a em
símbolo de status. Na São Paulo atual, cercas e barras são elementos de decoração
e de expressão de personalidade e inventividade. São elementos de um novo código
estético. Esses elementos têm de ser sofisticados não só para proteger contra o cri-
me, mas também para expressar o status social dos moradores: câmaras sofisticadas,
interfones e portões com abertura eletrônica, sem falar do projeto e da arquitetura
defensivos, tornam-se afirmações da posição social. São investimentos na aparên-
cia pública e devem permitir a comparação entre vizinhos, para mostrar tanto quem
está se saindo melhor socialmente quanto quem tem o gosto mais sofisticado.
Alguns anos atrás, moradores das classes média e alta viam a segurança como
algo imposto à arquitetura de uma forma artificial. Este ainda é o sentimento dos
moradores da Moóca e do Jardim das Camélias. Quando acrescentada a um proje·
to concebido sem ela, a segurança pode ainda parecer e ser sentida como estranha.
Mas agora que a segurança faz parte de qualquer projeto, os moradores vêem suas
exigências de modo distinto. Em 1980, ainda havia debates nos jornais de São Paulo
sobre os direitos dos proprietários de apartamentos de acrescentar cercas e muros
a seus edifícios, às vezes mudando projeto originat.34 Esse debate parece ter mor-
v
rido. São poucas as casas ou apart::-.mentos que não têm cercas- e ninguém anun-
ciaria um edifício sem muros e dis,positivos de segurança! No in,ício dos anos 90,
era a ilova "arquitetura da seguranÇa" que abria espaço nos artigos de jornal. 35 Essa
arquitetura cria meios explícitos de manter afastados os especialmen-
te os Depois de vinte anos de elaboração e de experimentos num novo
modo de segregação, a linguagem do isolamento e· distanciamento sociais está se
tornando cada vez mais explícita e se espalha pela cidade (ver Fotos 12 e 13).
lo sobre temas legais relacionados à vida em prédios de apartamentos, opinou que "é lícito con-
cluir que não existe impedimento jurídico capaz de obstar a implantação de grades cercando o
terreno do prédio, ainda que isso implique alguma mácula à harmonia arquitetônica de sua fa-
C:tada, se determinada pela maioria dos condôminos" (28 de janeiro de 1980).
35 Por exemplo: "A arquitetura do medo domina São Paulo", jornal da Tarde, 30 de se-
tembro de 1991. Esse artigo relata que o IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) estava promo-
vendo encontros para discutir a incorporação da segurança aos projetos não só de casas e aparta-
mentos, mas também de parques e praças. Nos Estados Unidos, existe hoje em dia um discurso
mais elaborado sobre a "arquitetura defensiva" que discuto no capítulo 8.
36 Por exemplo: "Cerca em árvore pretende evitar mendigos", Folha de S. Paulo, 10 de se- Fotos 12 e 13: No Morumbi, as casas se escondem por trás de fachadas
tembro de 1994. O artigo cita várias estratégias usadas para evitar que pessoas sem teto permane- de segurança. As aberturas nos muros, protegidas por vidro à pro.va
çam em determinadas áreas. Essas estratégias incluem o cercamento de árvores, instalação de es- de bala, indicam a presença de guardas particulares. 1994.
guichos de água em marquises de edifícios, colocação de co.i-rentes fechando áreas de entrada de
edifícios e assim por diante.
Foros 14, 15, 16 e 17: Casas autoconscruídas no Jardim das Camélias e suas grades e
portões de ferro. Os moradores escolhem cuidadosamente o estilo de cada um deles e
tentam sempre se diferenci-ar dos vizinhos. A foto 16 mostra uma solução comum:
o portão se projctn p:1r:t fur:1 pnm acomodar o c:1rro. 1994.
São Paulo é hoje uma cidade de muros. Os moradores da cidade não se arris-
cariam a ter uma casa sem grades ou barras nas janelas. Barreiras físicas cercam
espaços públicos e privados: casas, prédios, parques, praças, complexos empresa-
riais, áreas de comércio e escolas. À medida que as elites se retiram para seus enclaves
e abandonam os espaços públicos para os sem-teto e os pobres, o número de espa-
ços para encontros públicos de pessoas de diferentes grupos sociais diminui consi·
deravelmente. As rotinas diárias daqueles que habitam espaços segregados- pro-
tegidos por muros, sistemas de vigilância e acesso restrito- são bem diferentes das
rotinas anteriores em ambientes mais abertos e heterogêneos.
Moradores de todos os grupos sociais argumentam que constroem muros e
mudam seus hábitos a fim de se proteger do crime. Entretanto, os efeitos dessas
estratégias de segurança vão muito além da garantia de proteção. Ao transformar
a paisagem urbana, as estratégias de segurança dos cidadãos também afetam os
padrões de circulação, trajetos diários, hábitos e gestos relacionados ao uso de ruas,
do transporte público, de parques e de todos os espaços públicos. Como poderia a
experiência de andar nas ruas não ser transformada se o cenário é formado por altas
grades, guardas armados, ruas fechadas e câmaras de vídeo no lugar de jardins,
vizinhos conversando, e a possibilidade de espiar cenas familiares através das jane-
las? A idéia de sair para um passeio a pé, de passar naturalmente por estranhos, o
ato de passear em meio a uma multidão de pessoas anônimas, que simboliza a ex-
periência moderna da cidade, estão todos comprometidos numa cidade de muros.
As pessoas se sentem restringidas em seus movimentos, assustadas e controladas;
saem menos à noite; andam menos pelas ruas, e evitam as "zonas proibidas" que
só fazem crescer no mapa mental de qualquer morador da cidade, em especial no
caso das elites. Os encontros no espaço público se tornam a cada dia mais tensos,
até violentos, porque têm como referência os estereótipos e medos das pessoas.
Tensão, separação, discriminação e suspeição são as novas marcas da vida pública.
Este capítulo analisa as mudanças no espaço público e na qualidade de vida
pública que resultam da expansão das estratégias de segurança: segregação, distância
social e exclusão e a implosão da experiência da vida pública na cidade moderna.
Primeiro, discuto a noção moderna do públi<;o articulada aos ideais de abertura e
acessibilidade, tanto no espaço da cidade coiTio na comunidade política. Analiso
duas críticas a cidades industriais que permanecem comprometidas com valores
modernos: o modernismo e a cidade-jardim. Ambos influenciaram os enclaves for-
Fotos 24 25 e 26: As casas autoconstruídas do jardim das Camélias também mostram como tificados. Em seguida, comparo os espaços dos novos enclaves com aqueles do pla-
de segurança mudam o estilo das fachadas. A: foto 24 é um exemplo típico de
nejamento modernista da cidade, mostrando que aqueles usam convenções moder-
casa com jardim aberto na frente, construída até os anos 70. As fotos 25 e 26 mostram
tr:msformaçõcs lllllis recentes, com jnrdins fcch:Hios c um segundo andllr. 1994. nistas com a intenção de criar o que o último produziu involuntariamente: segre-
ximadamente um século para se consolidar. Esse ensaio não esconde o longo caminho que condu-
oferece uma a"rlálise do paradoxo que marcou a história do feminismo liberal francês: sua necessi-
ziu ao reconhecimento de cada direito, mas isso não ameaça a sUa tese mais geral de progresso dade de simultaneamente aceitar e recusar diferenças sexuais na política. Ver também os debates
contínuo da cidadania, apoiada na história de sua expansão. A imagem da expansão progressiva sobre multiculturalismo e, especialmente, as reivindicações por direitos indígenas em alguns
da cidadania encontra ecos em versões contemporâneas da teoria política que se concebem como ses da América Latina concebidas como direitos de nações dentro de um (Stavenhan-
"radicais" e que não enquadram a análise em termos de incorporação. Por exemplo, a análise de gen 1996; Findji 1992) e o debate sobre o nacionalismo em Quebec (Kymlicka 1996).
Laclau e Mouffe (1985) apresenta a democracia com base num imaginário caracterizado pelo
6 É interessante observar que em vez de formular um modelo de democracia em termos pu-
"deslocamento equivalencial" e que tenta considerar as possibilidades de sua hegemonia, de for-
ma radical, nas sociedades contemporâneas. Para críticas recentes da visão otimista e evolucionária ramente abstratos, Young o ancora na experiência moderna de vida na cidade. Embora insista nas
de Marshall, ver Hirschman (1991) e Turner (1992). várias injustiças sociais e de segregação encontradas nas cidades, é ainda de sua experiência que
4 O movimento pelos direitos civisJe o movimento feminista americanos nas décadas de 60
ela deriva o modelo de um espaço democrático no qual as diferenças permanecem "não-assimila-
das" e a heterogeneidade, a tolerância em relação ao outro, a acessibilidade e as fronteiras flexí-
e 70, assim como os movimentos sociais \1rbanos na América Latina no final dos anos 70 e come· veis existem de alguma maneira e podem ser resgatados como valores positivos. Ver Deutsche (1996)
ço dos 80 são exemplos do que estou de movimentos sociais "liberais", para uma crítica das concepções de espaço público em relação ao papel da ane pública num con-
s Para uma crítica feminista da te6ria do contrato sociál, ver Pateman (1988), e para uma texto democrático. Deutsche argumenta, inspirada por Lefort, que o papel dessa arte deve ser
crítica do entendimento legal de igualdade como sameness, ver Eisenstein (1988). Scott (1997) exatamente o de desestahilizar limites e identidades.
7 o livro .Yo·Morrow: A Peaceful Path to Social Re{orm, de Howard, foi publicado origi·
9 Ver acima e Young (1990: 227-36) para uma crítica ao comunitadanismo e seu caráter
nalmente em 1898. Em 1902, ele foi republicado como Garden Cities o{Tomorrow. Na Inglater- amiurbano e excludente.
ra, seus principais seguidores foram Raymond Unwin e Barry Parker, que planejaram a primeira
10 Para uma análise da expansão dos CIOs, ver McKenzie (1994). A associação de senti-
cidade-jardim e ajudaram a criar seu idioma. Eles também projetaram a primeira cidade-jardim
de São Paulo. Para diferentes análises da influência de Howard no planejamento urbano, ver Fishman mentos antiurbanoscom ideais comunitários é explícita na análise de Blakelye Snyder (1997) sobre
(1982: parte 1), Girouard (1985: 351-63),jacobs (1961: 17-25), Kostof (1991: 75-82, 194-9) e condomínios fechados nos Estados Unidos. Embora esses autores critiquem os portões, seu viés
McKenzie (1994: 1-6). anti urbano e sua preocupação com a "comunidade" os impedem de captar o caráter profunda·
mente antidemocrático das comunidades fechadas.
a .Ver jackson (1985) para uma visão da suburbanização dos Estados Unidos e Fishman
11 Para as afinidades entre Le Corbusier e Howard, ver Fishman (1988: 178 e cap. 21),jacobs
(1995), Beauregard (1995), Soja {1996.-i) e Garreau (1991) para diferentes visões das mudanças
do caráter do subúrbio americano. (1961: 21-5)' Girouacd 11985: 360).
tem uma longa história. O que é diferente em relação às novas tecnologias é o monitoramento de
qualquer um que use prédios públicos, como edifícios de escritórios, algo que há alguns anos não
era controlado.
20 Pessoas que viveram o regime militar sabem quanto os "procedimentos de segurança"
Fotos 27, 28 e 29: O uso público das ruas em São Paulo é extremamente variado. A foto:1 aparentemente inocentes podem ser usados para perseguir pessoas. Durante o regime militar, ze-
mostra a rua São Bento, no centro antigo: uma rua-corredor eii_I calçadao ladores de prédios de apartamentos tinham de preencher um cartão de informação para cada novo
abarrotado de pedestres e vendedores ambulantes (1990). No Morumb1, a ruas é morador e enviá-lo à polícia. Vários zeladores também foram colaboradores da polícia. Os carM
vazia sem pedestres como na foto 28 (1994). A foto 29 mostra uma esquma no Jard1m das tões desapareceram com a democratização, mas as mesmas pessoas que se opunham a eles duran-
' Camélias, o;de os moradores ainda se reúnem para conversar e jogar (1994). te o regime militar podem ser a favor dos métodos contemporâneos de triagem.
23 Em 1996, 69% das viagens por transporte público em São Paulo eram feitas por ônibus,
21 Centros regionais são as várias áreas na periferia que congregam comércio e e 26% por metrô e 5% por trem. Apenas o metrô transporta mais de 1 milhão de passageiros dia-
que geralmente servem como centros de transporte público. Por exemplo, o Largo 13, na penfena riamente (Seade, Anuário Estatístico do Estado de São Paulo 1996).
sul. 24 Para discussões sobre tráfego, desrespeito e violência, ver também DaMatta (1982) e
22 A mudança aqui não é apenas de espaços mistos para exclusivos, mas tal:\'lbém do consu-
O'Donnell (1986).
mo fragmentado e diário em pequenos mercados e vendas para as vi_sitas a um supermer-
cado, ou seja, de compras relativamente espontâneas para mats mudanças 2S Folha de S. Paulo, 13 de maio de 1989.
têm sido acompanhadas de transformações na vida onde se ?ovos apa· 26 Folha de S. Paulo, 11 de maio de 1986.
relhos como os freezers e fornos de microondas, novas mane1ras de preparar e servtr comtda e novos
27 O Estado de S. Paulo, 8 de outubro de 1989.
relacionamentos.
46 Soja, por exemplo, interpreta os distúrbios de 1992 conio o primeiro movimento de re·
sistência ao pós-modernismo e ao pós-fordismo conservadores (1996a: 459).