Livro 4 Filosofia Como Sistema PDF
Livro 4 Filosofia Como Sistema PDF
Livro 4 Filosofia Como Sistema PDF
Livro IV
Filosofia como Sistema
Artigos e entrevistas
Escritos
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Isso, à primeira vista, parece estar errado. Pois tanto em Lógica como em
Matemática dizemos que se um nexo pode ser, então ele necessariamente
é. Se dois mais dois podem ser quatro, então dois mais dois necessaria-
mente são quatro. – Parece, mas não é. O senso comum está, aqui, equi-
vocado. Trata-se, neste caso, de necessidade dura e não de possibilidade.
Dizer que dois mais dois podem ser quatro é, em poesia, uma licença de
Linguagem, no linguajar cotidiano, uma imprecisão, em Lógica é um erro.
Dois mais dois são sempre e necessariamente quatro.
O que há de verdadeiro por trás de tais maneiras de falar, algumas vezes uti-
lizadas até por filósofos, é que modalidades podem ser predicadas de outras
modalidades, como foi axiomatizado por Lewis no S51. Assim, há não só
uma necessidade da possibilidade como também uma possibilidade da ne-
cessidade. Pode até haver o acavalamento de três ou mais operadores modais
(possibilidade da necessidade da possibilidade de p); nestes casos, mostram os
lógicos, para fins de cálculo, basta ler e considerar o último operador. A neces-
sidade de dois mais dois serem quatro é algo possível. Há, pois, a possibilida-
de da necessidade de que dois mais dois sejam sempre quatro. Mas, quando
1 LEWIS, C. I.; LANGFORD, C. H. Symbolic Logic, New York, Dover, 1959 (primeira edição 1932). Cf. tam-
bém HUGHES, G. E.; CRESSWELL, M. J. An Introduction to Modal Logic, London, Methuen, p.213-238, 1972.
anterior próxima
sumário
dizemos que, se dois mais dois podem ser quatro, então eles necessariamente
têm que ser quatro, estamos sendo apenas inexatos em nossa fala, estamos
confundindo operadores modais simples, como no S1, com operadores mo-
dais aplicados sobre outros operadores modais, como no S5; dois mais dois
sempre e necessariamente são quatro. Não há, aqui, nesta relação de dois mais
dois, um poder, uma possibilidade no sentido contemporâneo do termo.
anterior próxima
sumário
O que aqui nos falta, falta a nós, filósofos que trabalhamos com horizontes e
problemas mais amplos que os lógicos, é a interligação entre os Sistemas mo-
dais tradicionais (possibilidade e necessidade) e os Sistemas menos tradicio-
nais – mas não menos lógicos ou menos exatos –, a saber, os Sistemas deôn-
3 CASTAÑEDA, H. -N. Thinking and Doing, The Philosophical Foundations of Institutions, Dordrecht, Reidel.
1975.
4 CASTANEDA, H. Thinking and Doing. The Philosophical Foundations of Institutions. Dordrecht, Reidel.
1975).
5 WEINGARTNER, P. Logisch-philosophische Untersuchungen zu Werten und Normen, Bern Lang. 1996.
anterior próxima
sumário
ticos, aléticos, etc. Falta esta interligação, falta uma hierarquização entre eles.
Este déficit hoje existente em Lógica Modal será certamente algum dia suprido,
mas hoje tal tabela das interligações e hierarquizações não existe. Isso, para
nosso trabalho especulativo sobre contingência e liberdade, é ruim, pois não
podemos contar com uma Lógica Modal Universal e abrangente que subsu-
ma, organize e interligue os subsistemas lógico-modais acima mencionados
e, assim, nos auxilie da determinação do que seja contingência, facticidade e
liberdade. Os subsistemas lógico-modais, ao ficarem apenas justapostos, pou-
co nos ajudam na solução do problema filosófico que nos interessa. Soma-se
a este déficit outro ainda mais importante: ninguém mais procura saber, em
Lógica, o que significam contingência e facticidade: os lógicos modais con-
temporâneos não sabem – com exatidão – como contingência e facticidade
se imbricam com demais operadores modais. Embora o conceito de contin-
gência seja conhecido já por Aristóteles e tenha sido por ele colocado em sua
tabela de modalidades, embora ele seja conhecido e tenha sido trabalhado
pelos pensadores da Idade Média e da Filosofia Moderna, embora ele seja
de importância central para a Filosofia Contemporânea (Dilthey, Nietzsche,
Heidegger, Gadamer, Habermas, Apel, etc.), contingência e facticidade não
são consideradas pelos lógicos contemporâneos como problemas de sua área
de pesquisa. Pior ainda. Os lógicos hoje não declaram abertamente que con-
tingência não tem nada a ver com Lógica Modal, mas, depois de eliminá-la
da tabela dos operadores modais, eles simplesmente sobre ela calam. Assim,
hoje ninguém mais sabe, pela Lógica, o que são contingência e facticidade.
Os lógicos não mais se ocupam delas, os filósofos que trabalham o problema
da liberdade sempre falam delas e as pressupõem, mas na maioria das vezes
não conseguem dizer o que elas realmente são. Eis por que, após um breve,
mas – espero – esclarecedor sobrevoo sobre algumas passagens marcantes da
História da Lógica Modal, vamos atacar a questão e tentar determinar com
a precisão que for possível o que seja contingência e o que seja facticidade.
Contingência e Facticidade
Eliminadas da tabela de operadores modais, contingência e facticidade
ficaram como que órfãs. Elas parecem ser operadores modais, mas, a jul-
gar pelos lógicos, não o são. O que são? O que significam? Veremos que
contingência possui um duplo sentido: ela pode ser pensada, sim, como
anterior próxima
sumário
um operador modal, ela pode ser tomada num sentido estritamente ló-
gico-formal; mas neste caso, embora ela seja um operador lógico-modal
absolutamente legítimo, ela não é um dos operadores primevos e pode e
deve ser reduzida a estes (a saber, ao operador da possibilidade). Quanto
à facticidade, a situação é mais complexa.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Mas Jungius, com sua ascese intelectual, é uma exceção em seu tempo. A
esmagadora maioria dos autores de sua época e dos dois séculos posterio-
res continua a utilizar os três pares de operadores consagrados por Petrus
Hispanus. Com um grande agravante: o termo contingência continua a
ser usado de maneira ambígua, às vezes em sentido lógico-formal estri-
to, às vezes em sentido ontológico. É isso que ocorre em lógicos, como
Crusius e Lambert, em filósofos, como Christian Wolff, mas também em
pensadores clássicos, como Kant e Hegel, e em autores contemporâneos,
como Nicolai Hartmann. E assim a confusão entre contingência no sen-
tido lógico e contingência no sentido ontológico se instala. A falta de
nitidez e rigor na distinção entre Lógica e Ontologia levou e leva a pro-
blemas, que, mal colocados e mal definidos, ficam insolúveis. Isso ocorre
tanto em Kant como também em Hegel. A imprecisão do conceito de
contingência levou o primeiro, Kant, a uma antinomia teoricamente inso-
lúvel e à teoria dos dois mundos; essa mesma imprecisão levou o segundo,
Hegel, a um Sistema necessitarista em que a contingência, a historicidade
e o livre arbítrio, existentes no começo de cada parte do Sistema, são
paulatinamente eliminados da estrutura sistêmica, de sorte que, no fim,
só resta pura necessidade. Antes, porém, de falar destes clássicos da mo-
dernidade, que, como sabemos, tanto lutaram para abrir, no projeto de
Sistema, um espaço de contingência que assim possibilitasse a liberdade,
voltemos à dura análise conceitual. Desta vez, não apenas numa perspec-
tiva de Lógica Modal, mas, antes, de Filosofia da Lógica Modal. Depois,
voltaremos à Ontologia, ao necessitarismo dos antigos e de Espinosa, ao
dualismo de Tomás de Aquino e a Hegel e sua Dialética das modalidades.
Contingência é aquilo que, por definição: tanto pode ser como também
pode não ser
anterior próxima
sumário
Algo bem diferente ocorre quando dizemos que contingência, por defi-
nição, é aquilo que:
anterior próxima
sumário
Kant faz entre os 100 Thaler meramente pensados e os 100 Thaler real-
mente existentes. Os primeiros inexistem e não servem para nada senão
para sonhar; os segundos existem e podem comprar coisas. Existência
não é um operador modal, pelo menos não em nossa Lógica Modal Con-
temporânea, que é estritamente formal. Quando introduzimos o conceito
de existência, abandonamos o terreno lógico-formal e entramos no reino
daquilo que de fato existe (ou de fato inexiste) no mundo concreto, no
mundo em que vivemos e pensamos. Os nexos lógicos não existem, eles
valem, eles vigem; os nexos lógicos não existem como algo concreto,
eles valem, eles vigem, eles são verdadeiros ou falsos. As coisas, porém,
boas ou más, certas ou erradas, existem ou não existem; e os nexos entre
as coisas existentes, às vezes, são necessários, às vezes, são contingentes.
É claro que três laranjas mais três laranjas necessariamente são seis laranjas.
A necessidade Lógica neste caso está encarnada em laranjas existentes e
o nexo lógico-matemático 3 + 3 = 6 tornou-se um nexo necessário que
passou a valer entre seres existentes, ele tornou-se uma relação realmente
existente entre seres existentes; esta relação realmente existente é como que
a encarnação no mundo das coisas, na Ontologia, da relação lógico-formal
que vige no mundo etéreo – e não existente – da Lógica. – Mas as laranjas,
no mundo real e existente, podem ser grandes ou pequenas, verdes ou ama-
relas. As laranjas podem ser tanto de uma maneira como da outra maneira;
isso é ontologicamente contingente. As laranjas podem existir ou não exis-
tir. A contingência lógico-formal aqui se transforma, ela deixa de ser algo
apenas lógico, e se encarna num nexo de fato existente ou não existente:
esta laranja é de fato verde, mas podia ser amarela; aquela laranja é de fato
amarela, mas podia ser verde. Para constatar o fato, que é sempre contin-
gente, temos que abrir os sentidos e através deles, a posteriori, verificar qual
das alternativas contingentes é a que de fato ocorre. Isso agora é Ontologia
e trata de seres existentes no mundo em que vivemos; ou de seres que pode-
riam perfeitamente existir em nosso mundo, mas que de momento de fato
nele não existem. A Lógica entra aí somente como Lógica aplicada: enquan-
to os seres existentes encarnam relações Lógicas, eles encarnam e realizam
ontologicamente as diversas modalidades Lógicas. Assim, é impossível que
uma mesma mesa existente sejam duas mesas; é possível que uma mesa seja
redonda ou quadrada; é necessário que uma mesa existente, se é realmente
anterior próxima
sumário
mesa, seja uma mesa e não uma cadeira, etc. As modalidades Lógicas aqui
se transformam em modalidades ontológicas e expressam um determinado
estatuto ontológico dos seres existentes e relações ontológicas entre eles
existentes. Os lógicos têm Razão quando fazem Lógica, mas os ontólogos
também têm Razão, desde que mostrem com clareza de que estão falando,
como estão utilizando os conceitos.
anterior próxima
sumário
E o fato que não existe? Isso não é uma mera possibilidade que, como tal,
nos remete de volta ao formalismo, vazio de existência, da Lógica Mo-
dal? Não. Pois mesmo o fato inexistente, enquanto entendido como fato,
contém um nexo explícito e indissolúvel para com a facticidade existente
anterior próxima
sumário
Pode existir
algo que < > e de fato existe (ou inexiste)
Pode não existir
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Dialética
Observação: CIRNE LIMA, C. R. V. Dialética. In: CIRNE LIMA, C. R. V.; LUFT, E. Ideia e
Movimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 13-31.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Dialética
meiro e último princípio para, descendo degrau por degrau, voltar à multi-
plicidade das coisas existentes. Só que agora o filósofo, que compreendeu
o princípio último, Uno, de toda a multiplicidade, vê as coisas singulares
como momentos do desenvolvimento do bem e do belo, a partir do qual
e por força do qual surge a multiplicidade das coisas. A substância, pois, é
uma única, una, mas sempre em Movimento, no qual ela se dobra (implica-
tio) e se desdobra (explicatio) em perpétuo Devir. Todas as coisas são, para
a Filosofia Dialética, momentos da evolução da substância, que é uma e
única, mas sempre também, dentro em si, multiplicidade em Movimento.
O Sistema filosófico que surge da Dialética é sempre monista e univer-
salista, é um Sistema do Uno e do Todo, da Totalidade em Movimento.
O elemento triádico (tese, antítese e síntese) às vezes, mas nem sempre,
está explícito. O mesmo vale para a unidade e unicidade da substância. A
Dialética descendente em muitos autores, Fichte, por exemplo, pretende
ser dedução estrita e aí fracassa; o descenso se faz por explicação, como
veremos nas observações ao final.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Dialética
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Dialética
Lógica do Ser
Como fazer o começo? Filosofia que se quer crítica, após Descartes e
Kant, não pode fazer nenhum pressuposto determinado. Se o faz, deixa
de ser crítica e fica dogmática. Por conseguinte, o começo de uma Filo-
sofia crítica só pode ser uma proposição que não pressuponha nada de
anterior próxima
sumário
Tudo é Ser, Ser sem nenhuma determinação, sem nenhum conteúdo, esta
é a primeira proposição do Sistema. Esta proposição – tese – é falsa, pois
já o ato de fala que a enuncia e expressa é algo determinado; surge assim
uma Contradição performativa, pois o ato de fala determinado desmen-
te o conteúdo falado. Assim fica demonstrada a falsidade da proposição
tética inicial.
anterior próxima
sumário
Dialética
Na Lógica do Ser ficam, desse modo, excluídas todas as filosofias que sejam
ou dualistas ou só idealistas ou só materialistas. A pior posição, é óbvio,
é a do dualista.
Lógica da Essência
Este segundo livro poderia ter como título Contra a Essência, pois nele a
própria noção de essência é dissolvida; para Hegel não existem essências,
mas apenas algumas configurações que são logicamente necessárias e ou-
tras configurações que são contingentemente mais ou menos estáveis. O
homem não tem uma essência; esta é apenas uma configuração estável
de relações em uma História contingente; o homem é fruto de um longo
processo evolutivo. A questão central, quando se trata de binômios, é
que inevitavelmente caímos na irracionalidade de um progressus ou de um
regressus ad infinitum; aquilo que Hegel chama de má infinitude. A tentativa
de resolver o problema de forma linear leva sempre, como levou Aris-
tóteles e Tomás de Aquino, à postulação arbitrária e dogmática de pôr,
em algum lugar, um primeiro começo (arkhé) ou um fim último (télos).
Pôr onde? Em que lugar da série? Em qualquer lugar da série? Ela não é
ad infinitum? Como, então, encontrar um começo ou um fim? A resposta
correta, que evita o dogmatismo arbitrário, encontra-se no pensamento
dialético, que põe os polos opostos em forma de círculo, o qual, girando,
se constitui e se retroalimenta. Este círculo, em que um polo constitui e
alimenta o polo a ele oposto, é o círculo virtuoso. Este, em sendo virtu-
oso, resolve a questão do regressus ad infinitum, já porque a causa sui ocorre
em múltiplos pontos da trama causal, como por exemplo, na vida, na
mente, na decisão livre, etc. O começo se dobra sobre si mesmo e encon-
tra seu fim em novo recomeçar. A causa causante e o efeito causado não
entram em regressus ad infinitum, porque a primeira causa é sempre a causa
sui; o Movimento causal é primeiramente Autocausação e só por abstra-
ção Analítica – análysis – é que temos, depois, a causa causante como algo
separado do efeito causado. Mas, não existe também o círculo vicioso?
Não é neste que se pensa quando se fala de circularidade? Certo, existem
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Dialética
Lógica do Conceito
Como a Lógica da Essência faz a dissolução de todas as essências, a Lógica do
Conceito faz a dissolução de todos os conceitos. O projeto de Hegel de fazer
uma Metalógica de todas as lógicas (conceito subjetivo) e uma Metaciência
de todas as ciências, Theory of Everything, (conceito objetivo) não foi até hoje
realizado. Não nego que a Filosofia um dia deva chegar lá, não nego que o
núcleo duro da Filosofia seja exatamente este. Mas estas tentativas de recons-
truir o Sistema Neoplatônico de Filosofia até agora sabidamente fracassaram.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Dialética
que ele se desdobra. Daí o termo “desdobrar” (explicatio). Somos todos do-
bras – plica – da substância única, que é o próprio sujeito objeto Absoluto.
Percebe-se claramente de onde vem a noção contemporânea de Sistema e
como este Sistema engendra seus subsistemas. Teoria de Sistema, Teoria da
Complexidade e Teoria da Evolução são os nomes modernos do neopla-
tonismo e do neo-hegelianismo. Meus agradecimentos, aqui, a Bertalanffy,
Maturana, Luhman, Kapra, Kaufmann e tantos outros que, embora não
na Linguagem da Filosofia, resgataram esta visão Neoplatônica do mundo,
mantiveram-na viva durante o século XX e a introduziram no século XXI.
anterior próxima
sumário
Analítica do Dever-ser
Observação: CIRNE LIMA, C. R. V. Analítica do dever-ser. In: CIRNE LIMA, C. R. V.; LUFT,
E. Ideia e Movimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 63-91.
1 CIRNE LIMA, C. R. V. Ética de Coerência Dialética. Obra completa – Filosofia como Sistema – Artigos e
entrevistas. A. Porto Alegre: Ed. Escritos. 5 vol. 2017.
2 HEGEL, G.W.F. Werke. Ed. Theorie Werkausgabe, MOLDENHAUER, E. / MICHEL, K. M., Frankfurt am
Main: Suhrkamp. 7 vol. 1970, p. 26-28. Cf. “Um noch über das Belehren, wie die Welt sein soll, ein Wort zu
sagen, so kommt dazu ohnehin die Philosophie immer zu spät.” Ibidem, p. 28.
anterior próxima
sumário
demais, para que Filosofia? Poucos anos depois, Schelling, em suas preleções
sobre História da Filosofia Contemporânea, ministradas na Universidade de
Munique3, mostrou que o Sistema de Hegel elimina gradativamente a contin-
gência de dentro do Sistema, impossibilitando, assim, verdadeira historicida-
de, liberdade, livre-arbítrio e responsabilidade. Kierkegaard acrescentou mais
uma crítica, que, na História do século XX, se mostrou não só exata, mas
também terrivelmente ameaçadora: o Sistema Dialético esmaga o indivíduo e
pode, assim, conduzir ao totalitarismo político; o estalinismo, de triste memó-
ria, é disso testemunha. Como se tudo isso ainda não bastasse, ainda somam-
se – às precedentes – as objeções levantadas contra o Sistema de Hegel por
Trendelenburg4 e, em nosso século, por Karl Popper5 e pela Filosofia Analí-
tica: a Contradição apenas destrói a Razão, jamais a constrói. Como pode a
Contradição ser o motor de um método filosófico que se quer racional?
3 SCHELLING, F.W.J. Ausgewählte Schriften, Frankfurt am Main: Suhrkamp. 4 vol.: Zur Geschichte der
neueren Philosophie (wohl 1833-1834), 1985, p. 417-616.
4 TRENDELENBURG, A. Logische Untersuchungen, 2 vol. Berlim, 1840.
5 POPPER, K., Was ist Dialektik?, in: Logik der Sozialwissenschaften, ed. E. Topitsck, Köln/Berlin, 1965, p.
262-290.
6 Sobra Espinosa cf. CHAUÍ, M. A Nervura do Real. Imanência e liberdade em Espinosa. São Paulo: Compa-
nhia das Letras. 2 vol., 1999. LEVY, L. O Autômato Espiritual. A subjetividade moderna segundo a Ética de
Espinosa. Porto Alegre: LPM Editores; cf. o magnífico resumo em CHAUÍ, M. Paixão, Ação e Liberdade em
Espinosa, Folha de São Paulo, 20 de agosto de 2000, caderno MAIS, p.15-19.
anterior próxima
sumário
7 A liberdade de Kant é a liberdade no sentido em que a compreendem quase todos os grandes éticos
do século XX, como Habermas, Apel, Höffe, Rawls, G. Singer, P. Singer, etc. Eu também a entendo neste
sentido: escolha entre alternativas que são possíveis por igual.
anterior próxima
sumário
Metalógica
Coloco como começo, como fundamento, de minha demonstração a pro-
posição tautológica A = A. Poderia utilizar aqui qualquer outra tautologia,
como B = B, ou Sócrates = Sócrates, Universo = Universo, etc. Interessa,
aqui, ao argumento a tautologia perfeita, pois a proposição tautológica é
sempre e necessariamente verdadeira. Ninguém jamais discordou disso,
ninguém consegue pôr isso em dúvida. Eis o primeiro princípio que le-
vanto: a Identidade expressa na proposição tautológica A = A. Denomi-
no-o Princípio da Identidade.
anterior próxima
sumário
Princípio da Identidade
Identidade simples: A
Identidade iterativa: A, A, A...
Identidade reflexa: A = A
O Princípio da Identidade, que eu saiba, jamais foi por alguém negado, pois
quem o pretende negar sempre o pressupõe de novo. A Identidade simples
e a Identidade iterativa são condições necessárias de possibilidade da pro-
posição tautológica e possuem, portanto, igual Verdade e necessidade. Este
é o primeiro princípio da Metalógica de toda e qualquer Linguagem.
anterior próxima
sumário
Princípio da Diferença
Emergência da alteridade: B, C, D...
Outros operadores lógico-semânticos (implicação,
disjunção, etc.)
As variáveis lógicas
O ato contingente de fala (facticidade)
Pergunta-se, agora, se esta Diferença, se esta alteridade pode ser deriva-
da de A por dedução rigorosa. Ou, em outras palavras: B, a Diferença,
está pré-programada em A, ou na série iterativa de A, A, A... ou na
tautologia A = A? Muitas entidades podem certamente ser derivadas da
tautologia, mas a pergunta aqui é dura e cabal: Pode-se deduzir toda e
qualquer Diferença existente no Universo da tautologia inicial? Tudo,
toda a Lógica, todo o Universo, todas as coisas, inclusive nosso ato con-
tingente de fala está pré-programado na tautologia inicial? Que eu saiba,
nenhum lógico jamais afirmou isso; para fazer Lógica são precisos, além
da tautologia, outros axiomas, as variáveis e os atos de fala. Mas, quan-
to à Natureza e ao Universo, há, sim, na História da Filosofia, autores
que pensavam poder deduzir tudo de um ou dois primeiros princípios.
Platão, Fichte, Schelling, e talvez Hegel, podem ser aqui citados como
defensores da tese de que tudo está pré-programado no primeiro prin-
cípio. O ovo inicial conteria, como implicatum, tudo o que depois dele
se desenvolveria necessariamente como explicatum. A Filosofia seria a
Ciência que faz a explicatio ab ovo, que reconstrói a partir do ovo inicial,
plica por plica, dobra por dobra, todo o desenvolvimento do Universo.
Todo o Universo com suas coisas, inclusive o nosso ato de fala, estaria
assim pré-programado no primeiro princípio; quem conseguisse captar
anterior próxima
sumário
9 KRUG, W.T. Gesammelte Schriften, 12 vol. Leipzig, 1830-1841; cf. 9 vol., p. 349-382, 383-434. HEGEL, G.W.F.
Werke. Theorie Werkausgabe, ed. MOLDENHAUER, E. / MICHEL, K. M., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2
vol. 1983, p. 164s., p. 188-207. Cf. tb. HOESLE, V. Hegels System. Der Idealismus der Subjektivität und das
Problem der Intersubjektivität. Hamburg: Felix Meiner, 2 vol., 1 vol., p. 88ss.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Princípio da Coerência
Eliminação de um dos dois polos opostos
Introdução de novos aspectos pela elaboração das devidas
distinções
Existem outras proposições, outros princípios de Metalógica? Existem,
sim, mas aqui não precisamos deles; eles são introduzidos quando elabo-
rados os diferentes subsistemas lógicos. Sintetizando, os três princípios
são os seguintes:
anterior próxima
sumário
Princípios da Metalógica
Identidade
Simples A
Iterativa A, A, A...
Reflexa A = A
Diferença
O novo, o diferente B
Coerência
Eliminação de um dos polos
Fazer as devidas distinções
Os três princípios metalógicos elaborados acima, como veremos, são
fundamento bastante para construir uma teoria geral do Dever-ser. O
Dever-ser é, aqui, introduzido e fundamentado como o operador modal
do Princípio da Contradição a ser evitado, da Contradição que deve ser
evitada (ou, como diz Apel, das Prinzip des zu vermeidenden Widerspruchs).
Face às posições de Apel, Habermas, Höffe e tantos outros, a questão que
aqui surge é a seguinte: Pode-se desta Metalógica ir direto para a Ética
Geral, sem passar por uma Filosofia da Natureza? A Ética do Discur-
so faz isso. Habermas e Apel partem da Contradição performativa a ser
evitada e constroem, de imediato, a Ética Geral, introduzindo já aqui os
princípios D e U. Não há, para eles, nenhuma mediação através da Natu-
reza, não há para eles nada que se interponha entre a Metalógica e a Ética
Geral. Além disso, para eles o discurso filosófico se concentra apenas em
dois pontos, uma Filosofia da Linguagem e uma Ética Geral. A Filosofia
da Natureza para eles, bom kantianos que são, desapareceu, o estudo da
Natureza é entregue às ciências empíricas, à Física e à Biologia. Seja-me
permitido discordar e fazer a mediação através de uma Filosofia da Natu-
reza. No projeto de Sistema que proponho, depois da Metalógica, coloco
uma Metafísica e uma Metabiologia, para só depois chegar à Ética Geral,
ou, na terminologia de Hegel, à Filosofia do Espírito. Restabeleço assim a
sequência hegeliana: Lógica, Natureza e Espírito.
Metafísica
A passagem da primeira parte do Sistema, da Metalógica, para a segunda
parte, a Natureza, sempre foi uma construção intelectual extremamente
anterior próxima
sumário
10 HEGEL, G.W.F. Werke. Theorie Werkausgabe, ed. MOLDENHAUER, E. / MICHEL, K. M., Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 20 vol. 1983, Wissenschaft der Logik, ibidem 6 vol., p. 573.
11 WANDSCHNEIDER, D.; HÖSLE,V. Die Entäusserung der Idee zur Natur und ihre zeitliche Entfaltung als Geist
bei Hegel. In: Hegelstudien 18, 1983, p.173-199.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
14 Quando a solução para uma antinomia é apenas uma construção lógica, sem que existam diferenças
reais de níveis, toda a estrutura antinômica fica circular, e a antinomia, depois de percorrer as etapas de
sua circularidade, volta a seu começo meramente lógico, continuando a ser, assim, um processo antinô-
mico, ou seja, um processo irracional. Os trabalhos de Blau mostram isso, embora ele não se dê conta
disso com clareza. Cf. BLAU, U. Die Logik der Unbestimmheitheiten und Paradoxien. In: Erkenntnis 22,
1985, p.369-459.
anterior próxima
sumário
Metabiologia
Princípios da Metalógica Princípios da Metabiologia
Identidade
Simples A indivíduo
Iterativa A, A, A... reprodução, família
Reflexa A = A espécie
Diferença
O novo, o diferente B emergência do novo,
mutação por acaso
Coerência
Eliminação de um dos polos morte = seleção natural
Fazer as devidas distinções adaptação = seleção natural
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
A Matemática do século XXI, diz David Munford num artigo que faz o
elenco dos problemas matemáticos pendentes de solução – em livro pu-
blicado por autores conhecidos, como M. A. Tiyha, V. Arnold, P. Lax e B.
Mazur16 –, deverá substituir a Lógica Clássica, núcleo duro da Matemática
tradicional, por uma Lógica soft, isto é, probabilística, com múltiplos graus
de contingência e de liberdade. Isso permitirá, então, em futuro próximo,
como diz W. Witten, no mesmo livro, a elaboração da assim chamada Te-
oria M (de mãe, mistério ou mágica), na qual estarão conciliadas as teorias
da Relatividade e da Mecânica Quântica, especificamente, as teorias das
cordas e das supercordas. A existência e a repetição dos mesmos padrões
e dos mesmos princípios básicos em todas as grandes teorias da Física e
da Biologia estão levando os cientistas mais e mais a procurar aquilo que
E. Wilson17, num livro que não pode ser bastante encomiado, chama de
Consilience. Sejam aqui citados, além de Wilson e de Witten, Ilia Prigogi-
ne18, Steven Kaufmann19, Richard Dawkins20, John D. Barrow21, David
Deutsch22 e tantos outros. Essa convergência marcante de pontos de vista
e esta Coerência de estrutura e de princípios – este é o sentido da palavra
do inglês antigo consilience –, apontam para uma teoria geral da Natureza,
que, se estão corretas as teses acima de Metalógica e de Metabiologia,
deverá girar em torno de Identidade, Diferença e Coerência.
Ética Geral
A passagem da Filosofia da Natureza para a Filosofia do Espírito, ou seja,
para uma Ética Geral, se faz como que ao natural. Ao transliterar os três
16 ARNOLD, V. Mathematics - Frontiers and Perspectives, Providence: American Mathematical Society,
et alii (editores) 2000, 459 p. Cf. a resenha de COSTA, N. C. em Folha de São Paulo, 9 de julho de 2000,
caderno MAIS, p.13.
17 WILSON, E. O. Consilience. The Unity of Knowledge. New York: Random House, 1999, 367 p.
18 PRIGOGINE, I. The End of Certainty. Time, Chaos and the New Laws of Nature. New York: Free Press,
1997, 228 p.
19 KAUFMANN, S. At Home in the Universe. The Search for the Laws of Self-Organization and Complexity.
New York/Oxford: Oxford University Press, 1995, 321 p.
20 DAWKINS, R. The Selfish Gene. Oxford: Oxford University Press, 1976.
21 BARROW, J.D. Teorias de Tudo. A Busca da Explicação Final. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, 292 p.
22 DEUTSCH, D. The Fabric of Reality. New York: Penguin, 1998.
anterior próxima
sumário
Identidade
Simples A indivíduo homem
Iterativa A, A, A... replicação, reprodução família, educação
Reflexa A = A espécie sociedade, cultura
Diferença
O novo, o diferente B emergência do novo, criatividade do ato
mutação por acaso livre, invenção, arte
Coerência
Eliminação de um morte = o mal -
dos polos seleção natural quanto há incoerência
O Dever-ser, em sua estrutura, foi introduzido e justificado já na Metaló-
gica como a formulação universalíssima do Princípio de Não Contradi-
ção, da Contradição a ser evitada. O Dever-ser já vale como lei na Metaló-
gica e diz tanto aos filósofos analíticos como também aos dialéticos o que
fazer quando surgir uma Contradição. O mesmo princípio reaparece na
Natureza como a lei de seleção natural, que elimina os não coerentes ou
os obriga a fazer as devidas distinções, no caso, as adaptações. Na Ética
Geral, este Princípio da Coerência surge, de novo, como aquele Dever-ser
que nos diz o que deve ser feito e o que não deve ser feito. O bem moral
e o mal moral são o que são por força da Coerência ou não Coerência do
agente moral consigo mesmo, com o outro eu, com o meio ambiente, com
o Universo. A característica, pois, do bem moral é a Coerência Universal.
Se e quando a regra que determina uma ação pode ser universalizada, isto
é, se está em Coerência Universal, então estamos fazendo o bem e não o
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
A verdade é o todo
Observação: CIRNE LIMA, C. R. V. A verdade é o todo. In: CIRNE LIMA, C. R. V.; LUFT,
E. Ideia e Movimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 113-136.
Contradição ou contrariedade?
A objeção que Trendelenbur24, Karl Popper25 e toda a Filosofia Analítica
contemporânea levantam contra Hegel consiste na radical irracionalida-
23 CIRNE LIMA, C. R. V. Liberdade e Razão. Obra completa – Filosofia como Sistema – Artigoe e entrevistas.
A. Porto Alegre: Ed. Escritos. 5 vol. 2017.
24 TRENDELENBURG, A. Logische Untersuchungen, 2 vol. Berlin, 1840.
25 POPPER, K. Was ist Dialektik?, in: Logik der Sozialwissenschaften, ed. E. Topitsch, Köln und Berlin, 1965,
p. 262-290.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
Esta objeção, desde que foi colocada por Trendelenburg no século XIX,
paira no ar sem resposta bastante. Todos, sim, literalmente todos os fi-
lósofos dialéticos procuram desde então por uma resposta que seja lo-
gicamente bastante e que seja aceita pelos lógicos. A Dialética, então, é
analisada sob os mais variados aspectos, é descrita, é parafraseada, é co-
mentada; ela é dissecada em suas partes, é colocada sobre os mais varia-
dos horizontes de interpretação. Não há nenhum livro minimamente re-
levante sobre a Filosofia de Hegel que não trate do problema. E nenhuma
resposta satisfatória se obteve que pudesse ser aceita pelos lógicos.
28 CIRNE LIMA, C. R. V. Dialética para Principiantes. Obra Completa - Filosofia como Sistema – O Núcleo.
Porto Alegre: Ed. Escritos. 3 vol. 2017.
anterior próxima
sumário
ele usa, como os juristas, outra terminologia que não aquela usual entre
os lógicos e entende por Contradição outro tipo de oposição, a saber, a
contrariedade. Este é o núcleo duro de minha proposta: Quando Hegel
diz e escreve Contradição, ele quer dizer contrariedade. Pois duas propo-
sições contraditórias não podem ser simultaneamente falsas, mas duas
proposições contrárias podem, sim, ser simultaneamente falsas. Desde
Aristóteles sabemos disso.
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
Penso ter resolvido, com clareza e rigor, a questão proposta por Tren-
delenburg e Popper: Onde Hegel diz Contradição, entenda-se contrarie-
dade. Se aceitarmos isso, o problema lógico desaparece e a objeção está
resolvida. Resolvida uma questão, entretanto, aparecem sempre novas
questões mais à frente. Duas linhas de objeções aqui se abrem. A primei-
ra linha de objeções vem dos comentadores e estudiosos de Hegel. Os
leitores tradicionais podem objetar que fiz exatamente aquilo que Hegel
sempre tentou evitar, ou seja, dizer explícita e expressamente, com todas
as letras, qual o sujeito lógico das proposições da Lógica. Eles têm, em
parte, Razão. Hegel pensa e diz que a proposição completa, constituída
de sujeito e predicado lógicos, não é a forma adequada de expressar a
Verdade. Não é por acaso que Hegel começa a Lógica com um anacoluto
e quase nunca nos diz qual o sujeito lógico do qual se predicam as catego-
rias. Lamentavelmente não posso alongar-me sobre este tema, que deve
ser tratado em outro contexto. A segunda linha de objeções vem dos lógi-
cos e filósofos analíticos, que, a esta altura, podem dizer o seguinte: Tudo
bem. Foi mostrado que a Dialética não é bobagem, pois tese e antítese
não são proposições contraditórias, mas sim contrárias; mas qual a força
motriz que nos faz subir a um nível supostamente mais alto? Como e por
32 HEGEL, WL, 5 vol., p. 65-79.
anterior próxima
sumário
Hegel passa, então, a mostrar a falsidade dessa tese. A certeza sensível nos dá
apenas este objeto. Hegel vai mostrar, a seguir, que este objeto não é a Verdade
e a essência da certeza sensível, pois ele é totalmente vazio de conteúdo.
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
Ele começa com o este do objeto, este objeto. O que é este? O que significa o
termo este36? O este se nos apresenta como o agora e o aqui. O que é o agora?
Agora é noite, respondemos e pensamos ter captado e dito a Verdade. Só que
perdemos esta pretensa Verdade quando a escrevemos. Pois, a frase escrita
Agora é noite, lida algum tempo depois, lida durante o dia, aparece em sua
inverdade, pois agora não é mais noite, mas sim dia. O mero ato de escrever
transformou a Verdade do agora em inverdade37. O mesmo acontece com
o aqui. Aqui há uma árvore, inicialmente uma proposição verdadeira, trans-
forma-se imediatamente em inverdade quando viramos o rosto e olhamos
para outro lado, para uma casa, pois agora Aqui é uma casa38. O este, o aqui e
o agora são um Universal totalmente vazio e sem conteúdo, eles não têm e
não mostram a Verdade e a essência da certeza sensível.
Só que este Eu é, de novo, um mero este, colocado num aqui e agora. Também
este Eu, sujeito da certeza sensível, é tão evanescente e inverdadeiro como o
objeto. Muitos outros eus dizem de si mesmos, com toda a Razão, que são este
Eu40. Conclui-se, assim, que também a proposição antitética é falsa. A Verdade
e a essência da certeza sensível estão no sujeito é uma proposição falsa.
anterior próxima
sumário
A seguir, Hegel mostra que, como a tese e a antítese são ambas falsas, somos
obrigados a admitir que a Verdade e a essência da certeza sensível estão no
Movimento, ou, com maior exatidão, na História do Movimento que se reali-
za entre o sujeito e o objeto41. O Movimento concreto – e, neste sentido, não
mais vazio de conteúdo – entre sujeito e objeto constitui uma História em que
um momento vem depois do outro, em que um momento leva ao outro, em
que cada momento possui sua Verdade. Mas trata-se aqui de uma Verdade
em Movimento, uma Verdade que, diríamos hoje, está na unidade de sujeito
e objeto em suas inter-relações concretas e, assim, históricas. A Verdade e a
essência da certeza sensível estão na unidade de sujeito e de objeto, ambos
tomados em sua concretude histórica. Essa é a síntese do primeiro capítulo.
Fica claro, assim, que tese e antítese também aqui são proposições contrá-
rias e não proposições contraditórias. A análise do sujeito lógico das pro-
posições téticas e antitéticas, na Fenomenologia, leva à mesma conclusão a que
chegávamos acima, quando do estudo da questão na Ciência da Lógica e na
Enciclopédia. Ou seja, quando Hegel diz Contradição, ele quer dizer aquilo
que os lógicos chamam de contrariedade, pois, tanto na tese como na antí-
tese, o quantificador continua sendo Universal. Neste caso, a universalidade
do quantificador se expressa nos termos, repetidos tanto na tese como na
antítese: A Verdade e a essência da certeza sensível estão no... O quantificador todos
não está expresso ipsis verbis neste sujeito lógico, mas está indubitavelmente
implícito. Pois a Verdade, para Hegel, é sempre o Todo.
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
42 A concepção de Verdade, em Hegel, se quisermos enquadrá-la na terminologia de hoje, está mais pró-
xima daquela que é tratada, pelos contemporâneos, na assim chamada Teoria da Coerência. A Verdade
como correspondência, que é a de Tarski, é refutada exatamente neste capítulo da Ph. Cf. PUNTEL, B. L.
Grundlagen einer Theorie der Wahrheit, Berlin. Gruyter, 1990. Idem, Wahrheitstheorien in der neueren Phi-
losophie. Eine kritisch-systematische Darstellung, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2.ed.,
1983.
43 Sobre a insuficiência como momento do método dialético cf. LUFT, E. As Sementes da Dúvida, São
Paulo: Mandarim, 2001.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
Isso não significa que tese e antítese, inverdades por serem verda-
des apenas parciais, devam ser jogadas no lixo, ou seja, devam ser
jogadas para fora do Sistema. Não, tese e antítese, mesmo não sendo
verdadeiras porque não o Todo, são conservadas e guardadas como
elementos constitutivos do Sistema. Tese e antítese, enquanto inver-
dades por não serem o Todo, são pontos de vista que ficam para trás
e são abandonados. Mas a Verdade parcial que contém não permite
que as joguemos no lixo, que as joguemos para fora do Sistema. Elas
são aufgehoben, elas são guardadas, e, além disso, elas são importantís-
simas porque constituem o degrau que nos permite subir ao patamar
superior da síntese. Tese e antítese, verdades apenas parciais e, neste
sentido, inverdades, são partes constituintes do Todo; elas são, assim,
parte legítima e importante do Sistema. É sobre a inverdade (= Ver-
dade apenas parcial) de tese e antítese que se constrói a Verdade da
síntese. E cada nova síntese, ao mostrar-se apenas Verdade parcial,
torna-se novamente uma tese, que é falsa, e nos impulsiona de novo
para o Sistema como um Todo. Só o Sistema como um Todo apresenta
a Totalidade, só ele se constitui como a Verdade que é o Todo. Surge
aqui o núcleo duro positivo, mas também o maior problema de Todo
e qualquer Sistema Dialético, a saber, o problema da Totalidade.
A Verdade é o Todo
Dois grupos de questões surgem aqui, ambos referentes ao conceito de Totali-
dade posto como núcleo de um método e de um Sistema filosófico. O primeiro
grupo de questões vem da perspectiva da Filosofia Analítica contemporânea,
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
conceito? Tudo indica que não, como, aliás, o curso da História da Filo-
sofia parece estar demonstrando.
45 Faço aqui a retratação formal de parte de minha tese de doutorado, onde ainda defendi a doutrina ne-
otomista sobre a abstração. Cf. CIRNE LIMA, C. R. V. Der personale Glaube. Eine erkenntnismetaphysische
Studie, Innsbruck: Felizian Rauch, 1958, p. 49-80.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
anterior próxima
sumário
Objetar-se-á, aqui, que esta Totalidade é apenas negativa, que este hori-
zonte último, exatamente por ser último, não possui determinação ne-
nhuma e que, por isso mesmo, não pode ser expresso mediante um con-
ceito determinado. Datum et etiam concessum que há uma Totalidade, ela é
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
indizível e, por isso, algo que foge da Razão. A Totalidade é uma Totalida-
de negativa, a Filosofia torna-se uma Filosofia Negativa.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
A Verdade é o todo
ções. Assim surge a explicatio mundi, assim surge, a partir do primeiro prin-
cípio, a multiplicidade variegada das coisas e entidades que, por evolução,
se constituem dentro da Totalidade em Movimento. O Universo, com sua
multiplicidade de formas, é a determinação ulterior da Totalidade, que é o
Absoluto; uma determinação que é interna. O Absoluto pode e deve ser
dito tanto de forma negativa como também de forma positiva. Dizê-lo
de maneira positiva significa reconstruir conceitualmente o desenvolvi-
mento das múltiplas coisas a partir da unidade inicial. Dizer o Absoluto
de maneira positiva significa concatenar todos os relativos, de sorte que,
formando um círculo, possamos dele dizer: É Absoluto que tudo seja
relativo. A maneira positiva de dizer o Absoluto é sempre de novo tentar
organizar, como teoria filosófica, o Sistema do Universo
Este Sistema, como se vê, é fechado para fora, mas é aberto para dentro
de si mesmo. Fora dele não existe Nada, pois ele é simplesmente Tudo.
Mas este Tudo é uma Totalidade em Movimento que continua em seu
processo de desenvolvimento e de evolução para dentro de si mesmo.
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
Observação: CIRNE LIMA, C. R. V. Casualidade e Auto-organização. In: CIRNE LIMA, C. R.
V.; LUFT, E. Ideia e Movimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 153- 197.
50 BERTALANFFY, L. V. Zur einer Allgemeinen Systemlehre. In: Blätter für Deutsche Philosophie, 3/4, 1945.
51 BERTALANFFY, L. V. An Outline of General System Theory. In: British Journal of Philosophy of Science 1,
1959. O livro principal (edição revisada) é BERTALANFFY, L. V. General System Theory. Foundations, Deve-
lopment, Applications. Braziller: New York,1969, 295 p.
52 GELL-MAN, M. Smolin? Oh, is he that young guy with those crazy ideas? He may not be wrong! in: www.
edge.org/3rd_culture/bios/smolin.html
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
Da fonte inicial, em seu começo tão singela, originou-se um fio d’água que
se transformou em rio caudaloso, que atravessa, hoje, quase todas as ciên-
cias, engendrando, por onde passa, um húmus rico, prenhe de promessas
de novos avanços científicos e de novas e revolucionárias soluções. Os de-
fensores da Teoria de Sistemas, os adeptos da Teoria de Auto-organização
estão hoje bem cientes de que formam, no panorama da Ciência, uma das
pesquisas de ponta que mais frutos promete. Estão eles, entretanto, comple-
tamente enganados no que toca ao conhecimento do horizonte filosófico
em que se situam e – por que não dizê-lo? – no que toca ao reconhecimento
de suas origens. Niklas Luhmann, em seu livro Die Wissenschaft der Gesells-
chaft53, escreve que a Teoria de Sistemas nasce no século XX com Ludwig
von Bertalanffy, sendo, assim, fruto ainda em fase de formação do pensa-
mento contemporâneo. Quando de sua longa estada em Porto Alegre, anos
atrás, muito discuti com Luhmann a esse respeito. Tentei mostrar-lhe que
a estrutura subjacente à Teoria de Sistemas dos cientistas contemporâneos
era exatamente a mesma que constituía o núcleo duro da teoria sobre causa
sui dos filósofos Neoplatônicos, de Plotino e também de Nicolaus Cusanus,
Espinosa, Goethe, Schelling e Hegel. Luhmann percebeu, é evidente, as
semelhanças estruturais existentes entre Auto-organização e causa sui, mas
nunca consegui convencê-lo de que houvesse uma ligação histórica entre
ambas as doutrinas, de que as teorias sobre Auto-organização eram uma
continuação orgânica das teorias Neoplatônicas sobre causa sui. Poucos
anos depois, Humberto Maturana, provocado a este respeito por Myriam
Graciano, respondeu de maneira igualmente negativa. Myriam, que antes
de ir estagiar com Maturana em Santiago do Chile, passara um semestre em
meu seminário, em Porto Alegre, e de mim ouvira que a Teoria de Sistemas
era a figuração contemporânea da antiga e veneranda doutrina Neoplatô-
nica sobre a causa sui, perguntou a Maturana de forma clara e direta qual
a origem da Teoria de Sistemas. Este asseverou-lhe que se tratava de uma
teoria contemporânea, criada por Bertalanffy, e que qualquer ligação com
teorias filosóficas do passado deveria ser desconsiderada.
anterior próxima
sumário
54 BERTALANFFY, L. V. General System Theory, New York: Braziller, 1998, p. v. (A primeira edição, em ale-
mão é de 1945, em inglês, de 1950. A primeira edição revisada é de 1969).
55 BERTALANFFY, L. V. Nikolaus von Kues, München: G. Müller, 1928.
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
Auto-organização
Aristóteles explica os seres vivos mediante o conceito de enteléquia, os
pensadores medievais nos falam de anima vegetativa e de anima sensibilis, a
alma que é própria da vida vegetativa das plantas e a alma que caracteriza
e possibilita a vida animal. O homem teria, segundo os pensadores clás-
sicos da Idade Média, uma alma intelectual ou espiritual; esta alma inte-
lectual conteria, dentro de si, além da força vegetativa e da força animal,
uma força capacitante mais alta e mais nobre, que daria origem a nossas
atividades intelectuais e volitivas. As almas dos seres vivos vegetais e ani-
mais, de acordo com a maioria dos medievais, se reproduziriam automa-
ticamente à medida que os corpos respectivos se reproduzissem; a alma
espiritual do homem, entretanto, seria criada, cada uma, individualmente,
pelo próprio Deus Criador do Universo. Daí a dignidade do homem e a
posição central que ele ocupa no cosmo.
Nos séculos XVI e XVII, ocorre a Revolução Científica, que começa com
Copérnico e Galileu, passa por Descartes e Bacon e atinge na Física de
Newton e no mecanicismo seu apogeu. A noção dualista de um ser vivo
composto de corpo e alma é substituída pela ideia de máquina. Todos os
seres vivos, sim, todo o Universo, têm que ser pensados como máquinas
construídas e governadas por leis matemáticas exatas. O dualismo antigo,
que distinguia corpo e alma e atribuía à alma a tarefa e a capacidade de
organizar o corpo em si e de per si inanimado e informe, ou seja, a tarefa
de transformar o corpo anorgânico em um ser vivo, foi gradativamen-
te abandonado. O mecanicismo, iniciado por Galileu, festeja seu grande
triunfo na Mecânica Clássica, inaugurada por Newton, pois esta explica
as coisas do Universo, inclusive os seres vivos, melhor e de maneira mais
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
deles; os cientistas sabem que não existe alma. Assim começa a grande cisão
que vai separar e afastar, cada vez mais, a Ciência, por um lado, e Filosofia,
Teologia e Religião, pelo outro lado.
56 HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985; idem, Na-
chmetaphysisches Denken, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988.
anterior próxima
sumário
57 DRIESCH, H. The Science and Philosophy of the Organism, Aberdeen: Aberdeen University Press, 1908.
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
diverso dele e a ele posterior, constituindo, assim, uma série causal linear.
Desde Aristóteles e Tomás de Aquino até a Mecânica Clássica de Newton
e a Teoria da Relatividade de Einstein, este conceito linear de causalidade é
a concepção dominante em grande parte da tradição filosófica e em quase
todas as ciências. Causa e efeito, nesta concepção, são entidades diversas,
sim, separadas, pois o efeito é sempre posterior à causa.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
62 SMOLIN, L. The Life of the Cosmos, New York/Oxford: Oxford University Press, 1998.
63 LASZLO, E. The Whispering Pond. A Personal Guide to the Emerging Vision of Science, Boston, Mass.:
Element, 1999.
64 LOVELOCK, J. Gaia, New York: Oxford University Press, 1979; idem, Healing Gaia, New York: Harmony
Books, 1991.
65 MARGULIS, L. Symbiosis in Cell Evolution, San Francisco: Freeman, 1993. Cf. tb. MARGULIS, L.; SAGAN,
D. What is Life?, New York: Simon & Schuster, 1995.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
deveria estar direcionada para a morte pelo frio, para uma desordem sem-
pre maior. Isso, porém, sempre pareceu estar em conflito com a comple-
xidade que observamos como fato. A teoria de Prigogine nos fornece,
agora, um segundo elemento a direcionar a flecha do tempo, desta vez em
direção a uma ordem cada vez mais rica e mais complexa. Em face da des-
coberta de Prigogine, o processo da evolução inclui, além da tendência da
ordem para a desordem, isto é, da entropia, uma tendência da desordem
para a ordem. A combinação de ambas as tendências é que molda, então,
o processo evolutivo.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
Filosofia da Auto-organização
O núcleo duro da Teoria de Auto-organização consiste na circularidade
da série causal. Na série causal linear, a causa está sempre e necessaria-
mente fora e antes do efeito, tanto lógica como ontologicamente; o efeito
vem sempre depois da causa. Se o efeito, por sua vez, se transforma em
causa e produz um novo efeito, este novo efeito está fora de sua causa e
depois dela; e assim surge a série causal linear. Auto-organização, como a
forma flexiva do termo já indica, consiste no fato de que a cadeia causal
se flecte sobre si mesma, de sorte que o último efeito da série se torna
causa determinante da primeira causa da série, da mesma série. O proces-
so causal fica, assim, circular, pois o último efeito torna-se também causa
e determina a primeira causa da série. Reduzindo a série causal linear a
seu tamanho mínimo, ou seja, a dois elementos, a causa produz um efeito,
que, por sua vez, produz a causa que o causou. A causa aparece, aqui,
como sendo causa de si mesma: causa sui. Esta é a teoria defendida por
Plotino e Proclo, por Nicolaus Cusanus, por Espinosa, Goethe, Schelling
e por Hegel; esta é a teoria sem a qual não se compreende o núcleo duro
dos Sistemas Neoplatônicos, de Plotino até Schelling e Hegel.
67 SCHOPENHAUER, Werke, Vierfache Wurzel des Satzes vom Zureichenden Grunde ed. FRAUENSTÄDT, J.;
HÜBSCHER, A. 1948, 1, 15 vol.
anterior próxima
sumário
68 HEGEL, G. W. F. Werke, ed. MOLDENHAUER, E.; MICHEL, K. M. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983;
Wissenschaft der Logik, 6 vol., p. 200-217.
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
69 Ibidem, p.237ss.
70 AQUINO, T. Summa Theologica, pars. I, quaest. III, art. IV, VI e VII, ed. R. Costa / L.A. de Boni, Caxias do
Sul: Sulina).
71 Cf. idem, Summa Theologica, pars I, quaest. XLIV e XLV.
anterior próxima
sumário
O Deus Criador, para poder ser uma causa incausada, tem que ser algo
que é necessário em sua essência e sua existência, isto é, ele não pode ser
contingente, ele não pode ter sua Razão Suficiente fora de si mesmo. Em
Deus, essência e existência são a mesma coisa, uma se funde na outra, am-
bas se fundem na simplicidade de um ser puro que é puro existir. Se Deus
não fosse necessário, se ele tivesse sua Razão Suficiente em algo fora dele,
este algo é que seria o verdadeiro Deus e a causa última incausada. Logo,
concluem os tomistas, Deus é necessário em sua simplicidade, na qual
a existência se funda em sua própria essência. Até aqui, aparentemente,
tudo bem. O problema começa agora. Se Deus é necessário em sua essên-
cia e sua existência, o ato livre mediante o qual ele decide criar o mundo,
em face da simplicidade de Deus, confunde-se com sua essência. Ora, a
essência de Deus é necessária. Logo, o ato livre mediante o qual Deus de-
cide criar o mundo é tão necessário quanto sua essência. Por conseguinte,
a criação é necessária. Mas se a criação é necessária, os seres criados exis-
tem necessariamente e deixam, assim, de ser contingentes.
A única saída desta aporia é dizer que o ato livre mediante o qual Deus
decide criar o mundo é necessário enquanto está dentro de Deus e é idên-
tico à sua essência, mas é contingente para fora, para com seus efeitos.
Esta é, de fato, a resposta usualmente dada pelos autores que seguem To-
más de Aquino. Mas como pensar um ato livre que é, ao mesmo tempo,
interno e externo a Deus? A Contradição inicial de que causa não pode
ser causa sui retorna agora sob outra roupagem: um ato que é idêntico à
essência simples de Deus tem que ser simultaneamente interno e externo
a ele. Este ato é idêntico à substância divina e não é idêntico a ela. O que
se pretendia como solução de um problema constitui-se em nova e po-
tenciada Contradição.
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
72 PLOTINUS, Ennead, ed. Loeb Classical Library, Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1 a 7 vol. As
citações serão feitas, como usual, pela indicação do livro, capítulo e linhas.
anterior próxima
sumário
73 HEGEL, G. W. F. Werke, ed. MOLDENHAUER, E.; MICHEL, K. M., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983;
Wissenschaft der Logik, 6 vol., p. 80-123, 222-240.
74 ibidem, p. 80
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
75 HEGEL, G. W. F. Werke, ed. MOLDENHAUER, E.; MICHEL, K. M., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1983;
Wissenschaft der Logik, 6 vol., p. 17-34.
anterior próxima
sumário
alemão, palavra que expresse essa unidade sintética entre essência e apa-
rência, mas nem por isso podemos abrir mão dessa poderosa síntese. A
unidade essência/aparência é uma tese central da Lógica de Hegel.
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
agendi, non est liberum in agendo; (Livre é somente aquele que é causa de si mesmo.
O que não é causa para si mesmo não é livre em seu agir)76.
Mas esta não é a solução geralmente proposta, nem por Tomás de Aqui-
no, nem pela maioria dos pensadores da Idade Média e da Renascença. A
doutrina usual é aquela que separa rigidamente causa e efeito, dizendo ser
impossível que exista algo como causa sui, como Auto-organização. Esta
dicotomia, nunca conciliada, entre causa e efeito entra na tradição filosófi-
ca que não é Neoplatônica, entra em Newton e em todas as ciências empí-
ricas, entra na concepção de causalidade da Crítica da Razão Pura de Kant e
encontra seu apogeu filosófico no livro que Schopenhauer apresenta para
obter sua Livre Docência. Grande parte da Filosofia e praticamente todas
as ciências, a partir do século XIII, adotam uma concepção do mundo em
que a causa está sempre separada do efeito e é anterior a ele. Isso, por um
lado, permitiu, sem dúvida, imensos progressos nas ciências, mas, pelo
outro lado, impediu que se pensasse corretamente o que é vida, o que é
liberdade, o que é democracia. Os processos em que a circularidade de
causa e efeito predomina ficaram sem explicação. Por isso, os processos
vitais e a liberdade como autodeterminação tornaram-se problemas sem
solução. Esse estado de coisas durou séculos, até que Ludwig von Berta-
lanffy, o qual, na Universidade de Viena, além de Biologia, estudou Filo-
sofia, entrou em contato com a tradição clássica, leu e escreveu um livro
sobre Nicolaus Cusanus, resgatou a tradição Neoplatônica e reformulou,
então, em Linguagem contemporânea, a Teoria de Sistemas, a doutrina
que, a partir da Autocausação, explica não só a Auto-organização dos
seres vivos, como também a autodeterminação do ato livre de decisão. A
Teoria da Autocausação da tradição filosófica, redescoberta e reformu-
lada por Bertalanffy com o nome de Teoria de Sistemas, é a Ontologia
Neoplatônica atualizada e trazida para a Ciência de nossos dias.
76 AQUINO, T. Summa contra Gentiles, II, cap. 48, 2. nr. 1243. Suma contra os Gentios. Edição bilíngue.
Tradução de O.Mourão, revisão de L. De Boni. Porto Alegre: Ed. Sulina, 1990. Tomás de Aquino afirma a
causa sui também no tratado De Veritate, 24, 1. Não obstante esta afirmação categórica da doutrina sobre
a causa sui como fundamento lógico e ontológico para resolver o problema da liberdade como autode-
terminação, Tomás de Aquino, em outros lugares, nega expressamente a doutrina Neoplatônica da causa
sui. Assim, por exemplo, na mesma Summa contra Gentiles (I, cap. 22, 3, nr. 207) escreve: Si primo modo,
essentia autem est secundum illud esse, sequitur quod aliquid sit sibi ipsi causa essendi. Hoc autem est
impossibile: quia prius secundum intellectum est causam esse quam effectum (Se, conforme a primeira
opção, sendo a essência referente somente àquele Ser, resulta algo que é causa de seu próprio Ser. Mas
isto implica impossibilidade, porque, segundo a ordem lógica, a causa é anterior ao efeito).
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
É neste exato contexto que surge a seguinte objeção. Tudo bem. Existe,
realmente, uma semelhança de padrões entre a Filosofia da Natureza de
Schelling e as teorias contemporâneas de Auto-organização. Mas há uma
grande diferença, uma diferença tão essencial que põe Schelling e os fi-
lósofos Neoplatônicos num planeta diferente do planeta habitado pelos
cientistas. Os filósofos, também Schelling, querem construir uma Filoso-
fia da Natureza como uma Ciência que é totalmente a priori. O filósofo
sentado em sua poltrona, sem jamais levantar-se, sem jamais olhar como
é que a realidade de fato é, pega papel e lápis, hoje, um computador, e
faz a dedução de todo o processo de evolução da Natureza. O cientista,
entretanto, trabalha a posteriori; ele primeiro observa cuidadosamente os
anterior próxima
sumário
Erro, muito erro. Erro duplo. O primeiro erro consiste em pensar que to-
dos os filósofos, em especial Schelling, só trabalhem a priori. Não é verda-
de. Embora haja entre os filósofos uma predominância do conhecimento
a priori, em alguns casos até uma exclusividade do a priori, o conhecimento
a posteriori também é parte essencial da Filosofia. O melhor exemplo disso
é exatamente Schelling, que no começo de sua vida filosófica pretendia
trabalhar só a priori, e que, então, descobriu a importância da contingência
e, assim, do conhecimento a posteriori. O Schelling tardio introduz o ter-
mo Filosofia Positiva exatamente para abrir espaços para o conhecimen-
to que, respeitando a contingência das coisas, trabalha a posteriori. Quem
ousaria afirmar que as figurações da Fenomenologia do Espírito de Hegel são
fruto de dedução a priori? Antígona a priori? A revolução Francesa a priori?
O Terror a priori? Certamente que não.
Para fazer justiça aos fatos históricos, é preciso dizer que muitos filósofos
exageraram a dose de a priori, que alguns filósofos ficaram tão obcecados
com o a priori que desconsideraram o campo do conhecimento a posteriori
e o entregaram aos cientistas. É preciso dizer que o jovem Schelling, no
começo de sua carreira, pretendia deduzir tudo, mas é preciso dizer tam-
bém que ele mesmo descobriu seu erro e introduziu a Filosofia Positiva.
No século XX, mais exatamente a partir de Dilthey e Droysen, a partir do
Dasein de Heidegger, nenhum filósofo pretende construir toda a Filoso-
fia utilizando somente o método a priori. Sabemos todos que o mundo é
contingente e que o contingente não se deixa deduzir; o que é contingente
precisa ser constatado em sua existência, que não é necessária, e historia-
do em seu desenvolvimento. Como o Universo é um processo contingen-
anterior próxima
sumário
Causalidade e auto-organização
O segundo erro está no lado dos cientistas. É verdade que desde o nomi-
nalismo inglês há um forte apelo ao método a posteriori. É certo que toda
a Ciência hoje parece trabalhar só a posteriori. É verdade que os cientistas
de Galileu até Einstein inclusive – primeiro trabalhavam e coletavam da-
dos do mundo empírico, para depois formular uma teoria. Mas a Verda-
de completa vai mais longe e é maior: segundo os cientistas, de Galileu,
Newton e Laplace até Einstein, a teoria, uma vez corretamente formula-
da, permitiria fazer uma dedução matematicamente rigorosa tanto para
trás, para o passado, como para frente, para o futuro. O sonho de todos
os cientistas de Galileu até Einstein era encontrar a fórmula que permi-
tisse deduzir absolutamente tudo. A hybris intelectual dos cientistas e sua
predileção pela dedução a priori não era, como se vê, menor que a hybris e
a pretensão dos filósofos. As deduções universais de Fichte e de Schelling
não são muito diferentes do sonho científico de Newton, de Laplace e
de Einstein, que, a partir de uma fórmula e de uma situação inicial, pre-
tendiam calcular e predizer rigorosamente todo o processo futuro. Foi
Heisenberg, com seu Princípio de Incerteza, quem começou a restringir a
força abrangente da dedução a priori na Física. Foi somente Ilya Prigogine
quem, há não muitos anos, demonstrou a irreversibilidade dos proces-
sos dinâmicos dissipativos e introduziu, assim, em Química e Física, o
elemento da historicidade, ou seja, o a posteriori. Depois de Prigogine, o
cientista sabe, em princípio, que não pode deduzir tudo que vai acontecer.
Isso nós, filósofos, entrementes também aprendemos.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
hoje um bem escasso em toda a Grécia. Pallas Atenas fincou seu cajado no
chão duro da acrópole e dele brotou a oliveira, dando aos atenienses o óleo
de oliva, tempero de todas as iguarias, unguento curativo de todas as feridas,
óleo para tratar a pele e dar beleza a mulheres e guerreiros, deuses, semideu-
ses e heróis. Pallas Atenas, como sabemos, foi escolhida e eleita pelos ate-
nienses como deusa padroeira. E até hoje quem subir à acrópole verá, como
que perdida entre templos, estátuas e as pedras onipresentes, uma árvore,
uma única árvore. E o guia turístico ateniense, orgulhoso de sua tradição,
vai confirmar ao turista tantas vezes desavisado: É, sim, esta é a árvore, a
única árvore que existe aqui em cima da acrópole, esta é a oliveira que Pallas
Atenas plantou e nos deu, a nós atenienses. – Zeus, Juno, Atenas, Apolo,
os deuses externos se multiplicaram e foram todos objeto de veneração e
respeito. Quem iria desafiar os raios de Zeus? Quem iria se aventurar nos
mares sem a proteção de Netuno? Como plantar e colher sem o beneplá-
cito de Ceres? Nossos antepassados remotos tinham muitos deuses, alguns
eram internos, outros eram externos, todos eram respeitados e invocados.
85 Existem, é claro, indícios de universalismo já no judaísmo antigo; já no livro Gênese, Deus aparece
como criador dos céus e da terra, como um princípio universalíssimo. Na história do judaísmo, apesar da
predominância do particularismo, há sempre de novo algumas tendências universalizantes. Até no estado
de Israel contemporâneo, em que o particularismo teológico se encarnou num estado nacional particular,
existem por vezes lampejos de universalismo.
anterior próxima
sumário
justiça e sua bondade valiam apenas para com os judeus. O Deus dos judeus
não reinava por sobre os outros povos, não, o Deus Uno e único do povo
judaico, Javé, era um Deus que numa contenda entre judeus e não judeus
estava sempre ao lado de seu povo e de seus adoradores contra todos os
seus adversários, quaisquer que fossem eles. O Deus dos judeus não era
Universal como o império romano com seu comércio, suas estradas e seu
jus inter gentes, mas sim um Deus particular de uma pequena tribo de nôma-
des sem nenhuma importância política e militar. Mas era um Deus Uno e
único, transcendente: surgia o monoteísmo.
anterior próxima
sumário
O Absoluto em Agostinho
O Sistema de Agostinho em sua positividade e universalidade é, nesta
exposição, a tese. O Sistema de Tomás de Aquino e dos neotomistas com
sua Theologia Negativa é a antítese. A proposta a ser feita mais adiante,
uma transformação corretiva da Filosofia de Hegel, – síntese – pretende
resgatar a universalidade e a positividade do Sistema de Agostinho, me-
diatizada, porém, criticamente pela passagem através da negatividade do
Sistema de Tomás de Aquino.
anterior próxima
sumário
88 Etimologicamente substantia e hypóstasis significam a mesma coisa: o que está subjacente. Não conse-
guindo articular dialeticamente a unidade que é síntese de tese e antítese; não conseguindo conciliar a de-
terminação da unidade com a determinação da tríade, os pensadores católicos da Antiguidade se dividiam
entre os que acentuavam a unidade de Deus e os que davam ênfase às três pessoas. Assim surge a formu-
lação que permitiu o consenso: Deus é Uno em latim (uma substância) e Trino em grego (três hipóstases).
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
O beco sem saída e a aporia sem solução podem ser expressos na Lin-
guagem do próprio Augustino, Linguagem sempre eloquente e em certos
casos, como nestes, exata e rigorosa: a graça aniquila a vontade livre? De
maneira nenhuma! A lei só pode ser cumprida mediante a vontade livre!
Mas se a graça é eficaz independentemente da decisão do homem, para
que serve esta decisão? No que influi? O segundo e o terceiro capítulo
do tratado De Libero Arbitrio bem como muitos textos da maturidade e da
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Deus Uno e Trino antes de criar o mundo; o que depois será chamado de
natura naturans. A segunda parte do Sistema é a Natureza, a natura naturata;
aqui estamos incluídos todos nós, inclusive e principalmente – lá, bem no
começo – Adão e Eva e o pecado original, ou seja, a Natureza decaída.
A terceira parte do Sistema é a síntese e a conciliação entre a primeira e
a segunda parte: Em Jesus Cristo, o Deus que se torna Homem, abre-se
o caminho para a História da Salvação, Historia salutis, no fim e no termo
da qual está a Jerusalém Celeste, estágio em que todos – Deus, homens,
animais, plantas e todas as coisas – seremos, mediante a graça santificante,
partícipes gloriosos e radiantes da Natureza divina. – Doutrina semelhan-
te encontramos em Plotino89 e em Proclo90. O núcleo do Sistema em Plo-
tino é o Uno, que também é chamado de divino. Do Uno emerge o Nous,
que é a presença intelectual e consciente do Uno em face de si mesmo.
Do Nous emerge, então, a Alma do Mundo, na qual fica visível a doutrina
Neoplatônica sobre a gênese das Diferenças, especialmente sobre a gêne-
se de coisas menos perfeitas que o próprio Uno. À medida que se afastam
do Uno e do Nous, os seres vão perdendo unidade; ao perder unidade,
perdem também perfeição. Ou seja, quanto mais longe estivermos do
Uno, mais imperfeitos e carentes somos. É por isso que devemos, num
Movimento circular, voltar ao Uno. Só assim, voltando à perfeição da pri-
meira parte do Sistema, é que nós homens, habitantes da terceira parte do
Sistema, podemos adquirir perfeição. O êxtase Neoplatônico, que depois
entra nos místicos cristãos e influencia poderosamente algumas correntes
do cristianismo, consiste exatamente neste retorno da terceira à primeira
parte do Sistema. A terceira parte do Sistema se completa no retorno
à primeira parte. – Em Proclo, a estrutura do Sistema é semelhante, só
que no centro temos, ao invés do Uno, o Universal. O que se afasta do
Universal, e na exata medida deste afastamento, vai ficando particular e
imperfeito. O homem que almeja a perfeição deve, portanto, retornar ao
Universal do qual originariamente saiu. Também aqui a terceira parte é a
89 PLOTINUS. Ennead. Edição bilíngüe, grego e inglês. Loeb Classical Library, Cambridge Mas. : Harvard
University Press, 1966, 5 vol. Cf. Tb. LLOYD, P. G. (org.), The Cambridge Companion to Plotinus. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996.
90 PROCLUS. The Elements of Theology. A revised text with translation, Introduction and commentary, by
DODDS, E. R. Oxford, 2 edit. 1963. Cf. BEIERWALTES, W. Proklos. Grundzüge seiner Metaphysik. Frankfurt
am Main: Klostermann, V. 1979. BEIERWALTES, W. Denken des Einen. Studien zur Neuplatonischen Philoso-
phie und ihrer Wirkungsgeschichte. Frankfurt am Main: Klostermann, V. 1985.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Em primeiro lugar, é preciso deixar bem claro que não se trata aqui de
dois deuses que sejam completamente distintos. Pelo contrário, o núcleo
duro de ambos é exatamente o mesmo. O Deus Uno e Trino, individual,
fechado sobre si mesmo, da primeira parte do Sistema, que é a tese, está
contido na terceira parte do Sistema; a tese foi aufgehoben, foi superada e
guardada na síntese. Foi superado o quê? Foi guardado o quê? Foi guar-
dado tudo que de positivo se diz no Deus Uno e Trino. Foi superada a
oposição excludente entre ele, o Criador, e a Natureza criada; foi superada
a oposição excludente entre tese e antítese. Na terceira parte, que é síntese
e conciliação, Deus Criador e a Natureza criada são conciliados e voltam à
unidade. Não se trata, portanto, de dois deuses, mas de um mesmo Deus
em dois estágios dialéticos diferentes; uma vez tético, outra vez sintéti-
co. Até aqui nenhum problema maior nesta grandiosa visão do Universo
que Agostinho e os filósofos Neoplatônicos constroem em seus Sistemas.
Como Hegel diz em suas Preleções sobre História da Filosofia, a respeito dos
Neoplatônicos: Raramente o espírito humano se levantou a tal altura e
atingiu regiões tão sublimes.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
93 Cf especialmente ERIUGENA, J. S. De Divisione Naturae. In: Patrologiae Cursus Completus, MIGNE, J.P.
Paris, 1853, 122 vol., col. 439-1022.
94 CUSA, N. De Docta Ignorantia. Die Belehrte Unwissenheit. Ed. latim-alemão. Hamburg: Felix Meiner. 1977, 3 vol.
95 AQUINO, T. Suma Teológica, 2.ed. bil. latim-português, COSTA, R.; BONI, L.A. Caxias do Sul: ESR, Sulina,
UCS, 11 vol. 1980.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
antes e fora dele nada que o fundamente, ele se basta a si mesmo. Ele é o
lugar onde a pergunta “O que vem atrás? O que está fundando?” perde
todo o sentido. – Qual a prova desta afirmação96? Qual a justificativa deste
postulado? Aristóteles e Tomás de Aquino sentiram, em toda sua profun-
didade, a dimensão do problema e a necessidade de uma justificação ra-
cional da arkhé. Aristóteles, no livro Gama da Metafísica, faz seis tentativas,
quase heroicas, para demonstrar o Princípio de Não Contradição. Mas
demonstrar para quê? Se o Princípio de Não Contradição não pode nem
precisa ser demonstrado, como demonstrá-lo? Para que demonstrá-lo? O
próprio Aristóteles não estava tão seguro de que a justificação da arkhé
não fosse necessária. A argumentação, em meandros, do livro Gama da
Metafísica é prova disso.
96 CIRNE LIMA, C. R. V. Dialética e Liberdade – Razões, Fundamentos e Causas. Obra completa – Filosofia
como Sistema – Artigo e entrevistas. Porto Alegre: Ed. Escritos. 5 vol. 2017.
anterior próxima
sumário
Mas como pensar uma perfeição perfeitíssima, infinita, sem limites? O que
não possui limite nenhum não possui nenhuma determinação. Como, en-
tão, pensar um Deus que não possui nenhuma determinação? Ele é um in-
determinado vazio? Tomás responde que, de fato, primeiro afirmamos uma
perfeição de Deus: Deus é bom. Mas, logo depois, precisamos usar a nega-
ção: mas ele não é bom como os homens são bons, pois nele a bondade não
está limitada. Mas se primeiro afirmamos (via affirmationis) e depois negamos
(via negationis) os predicados de Deus, afinal qual o predicado determinado
e específico que pode ser a ele atribuído? Tomás de Aquino, procurando
sair do impasse de uma Teologia meramente negativa, tenta seguir o ca-
minho indicado pelo Pseudo-Dionísio – que ele chama de conhecimento
por analogia – e afirma que predicamos a bondade de Deus primeiro pela
afirmação, depois corrigimos esta afirmação pela negação, para finalmente
dizer – por analogia – que Deus é superbom, ou seja, é bom de uma ma-
neira infinita, na qual a bondade não mais se opõe às outras determinações.
anterior próxima
sumário
97 Minha análise, muitos anos atrás, do problema da analogia foi me conduzindo lentamente ao abandono
do tomismo e à adesão à Dialética Neoplatônica. CIRNE LIMA, C. R. V. Realismo e Dialética. A Analogia
como Dialética do Realismo. Obra Completa – Realismo e Dialética. Porto Alegre: Ed. Escritos. 2 vol. 2017.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
non sense, uma contradictio in adjecto. E mais. A objeção fica mais pesada
ainda, quando se procura pensar racionalmente a encarnação. Significa
isso que, quando Deus se faz homem em Jesus Cristo, não há relação
real de Deus Filho – que é uma relação real interna à tríade necessária
existente dentro de Deus – para com sua Natureza humana? Isso pode
ser pensado sem Contradição98? Mais. E entramos agora no kérigma.
Isso significa que quando se diz que Deus nos ama, nós estamos, a
rigor, apenas dizendo que existe amor real de nós para com Deus, mas
não vice-versa, pois o amor de Deus para conosco não é uma relação
real, e sim um ens rationis. Também aqui as contradições se acumulam e
ficam a exigir soluções que sejam bastantes. Pode alguém admitir que
o princípio cristão que afirma “Deus ama os homens” significa apenas
que nós homens temos, sim, uma relação real de amor para com Deus,
mas que Deus não tem nenhuma relação de amor para conosco que
seja real? Dá para pensar, sem Contradição, em tal Deus? A tentativa de
síntese filosófica feita por Tomás de Aquino, toda ela centrada sobre o
conceito de Deus acima exposto, face às objeções acima formuladas, há
que ser posta em dúvida. Tal Deus pode ser pensado sem Contradição?
Sem uma Contradição violentamente destrutiva, sem que todo o projeto
de Sistema entre em implosão? Tudo indica que não. Mas, lembremos,
este é o Deus dos filósofos e teólogos tomistas dos séculos XIX e XX.
98 Há uma solução em Tomás de Aquino, que não seja apenas verbal, para a assim chamada união hipos-
tática? Penso que não.
anterior próxima
sumário
algo real? Nesse caso, Deus teria relações reais ad extra, e a construção
se esboroa pelo outro lado, pois Deus, então, não seria simples. Mas,
sem a encarnação, este conceito de Deus deixa de ser cristão para ficar
um conceito judaico. Bem diferente é a situação em Agostinho e na
tradição Neoplatônica cristã.
O Absoluto em Hegel
O Absoluto na Filosofia de Hegel99, síntese da universalidade positiva de
Agostinho e da Teologia negativa de Tomás de Aquino, está simplesmente
em todas as partes do Sistema. Como em nenhum outro autor, o Absoluto
na Filosofia Neoplatônica de Hegel perpassa todo o Sistema, permeia todas
as argumentações, marca as linhas de fuga de todas as perspectivas. Não
fosse Hegel tão objetivo, tão alheio a qualquer entusiasmo religioso, tão
distante de qualquer devoção sentimental ou arroubo místico, dele deveria
dizer-se que é o pensador religioso por excelência, o pensador que, mais
que todos os outros, soube encontrar Deus em todos os lugares, em todas
99 HEGEL, G.W.F. Werke. Ed. Theorie Werkausgabe. MOLDENHAUER, E.; MICHEL, K. M., Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 20 vol. 1971.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Corrigir o Sistema de Hegel neste ponto não seria difícil. Parece que ele
– como Espinosa e Kant, entre os filósofos, Newton, Laplace e Eins-
tein, entre os físicos – não consegue conceber racionalidade exceto como
uma rede conceitual (causal) necessitária, que não tem furos ou lacunas,
e que por isso não permite nunca a existência de alternativas contingen-
tes; contingência, em tais teorias, é sempre tão somente um déficit sub-
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
107 CIRNE LIMA, C. R. V. Dialética para Principiantes. Obra Completa - Filosofia como Sistema – O Núcleo.
Porto Alegre: Ed. Escritos. 3 vol. 2017. CIRNE LIMA, C. R. V. Ética de Coerência Dialética. Obra completa –
Filosofia como Sistema – Artigo A. Porto Alegre: Ed. Escritos. 5 vol. 2017.
CIRNE LIMA, C. R. V. Zu einer Analytik des Sollens, capítulo de livro organizado por Herrero, F. e Niquet, M.
anterior próxima
sumário
Começo, numa primeira parte, com uma análise Metalógica daquilo que
é sempre pressuposto em todo e qualquer discurso, a saber, a Identidade,
a Diferença e a Coerência, ou seja, o Princípio de Não Contradição, que,
juntos, constituem o primeiro grande princípio do Sistema. Numa segun-
da parte, verifico o que acontece quando o grande princípio metalógico,
elaborado na primeira parte, é traduzido, com os três momentos que o
compõem, para a Linguagem das ciências da Natureza e é a elas aplicado.
Na terceira parte, traço as linhas mestras de uma Filosofia do Espírito,
especificamente de uma Ética Geral, que brota como que ao natural da
primeira e da segunda parte.
Metalógica
Coloco como começo, como fundamento de minha demonstração a pro-
posição tautológica A = A. Poderia utilizar aqui qualquer outra tautologia,
anterior próxima
sumário
Princípio da Identidade
Identidade simples: A
Identidade iterativa: A, A, A...
Identidade reflexa: A = A
anterior próxima
sumário
Princípio da Diferença
anterior próxima
sumário
jamais afirmou isso; para fazer Lógica são precisos, além da tautologia,
outros axiomas, as variáveis e os atos de fala. Mas, quanto à Natureza
e ao Universo, há, sim, na História da Filosofia, autores que pensavam
poder deduzir tudo de um ou dois primeiros princípios. Platão, Fichte,
Schelling, e talvez Hegel, podem ser aqui citados como defensores da
tese de que tudo está pré-programado no primeiro princípio. O ovo ini-
cial conteria, como implicatum, tudo o que depois dele se desenvolveria
necessariamente como explicatum. A Filosofia seria a Ciência que faz a
explicatio ab ovo, que reconstrói a partir do ovo inicial, plica por plica, dobra
por dobra, todo o desenvolvimento do Universo. todo o Universo, com
a multiplicidade das coisas e entidades que o constituem, inclusive nosso
ato de fala, estaria assim pré-programado no primeiro subprincípio; quem
conseguisse captar e decodificar esta programação inicial poderia predizer
todos os acontecimentos que ocorreram, que ocorrem e que irão ocorrer
no curso do desenvolvimento do Universo. Temos aqui o determinismo
radical e o necessitarismo total, que eliminam a contingência do Siste-
ma e tornam assim a liberdade de escolha impossível. Estes pensadores
negam o Princípio da Diferença, pois toda e qualquer Diferença seria
apenas um ulterior e necessário desenvolvimento do primeiro subprincí-
pio, que é a Identidade. Repito a pergunta: está tudo pré-programado no
primeiro subprincípio? Ou existem entidades, seres, coisas, que não estão
pré-programados e se constituem assim em Diferença real, em alteridade
verdadeira, em facticidade de um B que se opõe à necessidade do A = A
e a esta não se deixam reduzir? Quem diz que tudo está pré-programado
não precisa do Princípio da Diferença, mas fica com o ônus da prova: ele
precisa deduzir realmente tudo, todo o Universo, a partir de A = A. O Se-
nhor Krug108, como sabemos, exigia de Fichte que deduzisse a pena com
a qual ele estava escrevendo. Isso é possível? Isso foi tentado; tentativas
existiram, mas há hoje entre os filósofos unanimidade sobre o fato de
que todas elas fracassaram. Além disso, temos hoje a demonstração feita
por Goedel: Foi demonstrado com exatidão e rigor que há, em qualquer
Sistema axiomatizado, proposições verdadeiras que não podem ser nele
deduzidas. Além do argumento de Goedel, há a facticidade indedutível
108 KRUG, W.T. Gesammelte Schriften, 12 vol. Leipzig, 1830-1841; cf. 9 vol., p. 349-382, 383-434. HEGEL.
Werke. Ed. Suhrkamp, 2 vol. p. 164s., p. 188-207. HÖESLE, V. Hegels System. Der Idealismus der Subjektivität
und das Problem der Intersubjektivität. Hamburg: Felix Meiner, 2 vol., 1 vol., p. 88ss.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Princípio da Coerência
Subprincípios da Metalógica
Identidade
Simples A
Iterativa A, A, A...
Reflexa A = A
Diferença
O novo, o diferente B
Coerência
Eliminação de um dos polos
Fazer as devidas distinções
anterior próxima
sumário
Metafísica
A passagem da primeira parte do Sistema, da Metalógica, para a segunda
parte, a Natureza, sempre foi uma construção intelectual extremamente
delicada, complexa e prenhe de graves consequências. Em Hegel, a últi-
ma categoria da Lógica, a ideia absoluta, “deixa sair de si, livremente”, a
Natureza. Nas exatas palavras de Hegel: “A passagem aqui deve ser entendi-
da de tal maneira que a ideia se deixa sair de si mesma, segura absolutamente de si
própria e repousando em si mesma”. (Das Übergehen ist hier vielmehr so zu fassen,
dass die Idee sich selbst frei entlässt, ihrer absolut sicher und in sich ruhend)109.
A Natureza, segundo as palavras de Hegel, seria algo que emana livre-
mente da Lógica; Natureza é a Lógica que saiu de dentro de si mesma e
está agora fora de si, está alienada. Sabemos, entretanto, que a dinâmica
interna do Sistema de Hegel não permite esta leitura contingente e li-
bertária; liberdade, em Hegel, é um processo necessário e necessitante,
pois a contingência vai sendo gradativamente eliminada do Sistema. A
Lógica engendra necessariamente a Natureza e, já por isso, esta Natu-
reza não tem espaço para a contingência e a verdadeira historicidade,
tornando todo o Sistema uma construção determinista e necessitária.
A passagem da Lógica para a Natureza é um Movimento logicamente
109 HEGEL, Werke. Ed. Suhrkamp, Wissenschaft der Logik, vol. 6, p. 573.
anterior próxima
sumário
110 Cf. a este respeito WANDSCHNEIDER, D.; HÖSLE,V. Die Entäusserung der Idee zur Natur und ihre zeitliche
Entfaltung als Geist bei Hegel, in: Hegelstudien 18 (1983) p.173-199.
anterior próxima
sumário
111 Agradeço a Luft E. por ter me apontado a emergência, neste exato lugar de meu raciocínio, de uma
antinomia lógica. Agradeço também a Kesselring T. pelas discussões, havidas há mais de uma década,
sobre este assunto, que à época ficaram inconclusas. Cf. sobre o tema HEISS, R. Logik des Widerspru-
chs. Berlin/Leipzig: Gruyter, 1932. Cf. tb. KESSELRING, T. Die Produktivität der Antinomie. Hegels Dialektik
im Lichte der Genetischen Erkenntnistheorie und der Formalen Logik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1984.
WANDSCHNEIDER, D. Grundzüge einer Theorie der Dialektik. Stuttgart: Klett-Cotta, 1995. Cf. tb., contra a
posição de Wandschneider, PUNTEL, L. B. Dialektik und Formalisierung. Discussion. In: Journal for General
Philosophy of Science 2 (1997) p.1-17. Penso que a objeção de Puntel atinge, sim, a teoria de Wandschnei-
der, mas não aquela por mim aqui proposta.
112 A Theory of Types é, em seu cerne, apenas uma distinção de níveis de linguagem.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Metabiologia
Identidade
Simples A indivíduo
Iterativa A, A, A ... reprodução, família
Reflexa A = A espécie
Diferença
O novo, o diferente B emergência do novo,
mutação por acaso
Coerência
Eliminação de um dos polos morte = seleção natural
Fazer as devidas distinções adaptação = seleção natural
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
115 Para uma visão geral, cf. GLEICK, J. Chaos. Making e New Science. New York: Penguin Books, 1988, 354
pág.
anterior próxima
sumário
Filosofia do Espírito
A passagem da Filosofia da Natureza para a Filosofia do Espírito, ou seja,
para uma Ética Geral, se faz como que ao natural. Ao transliterar os três
primeiros princípios da Linguagem Lógica, em que originariamente estão,
para uma Linguagem Ética, surge o seguinte quadro:
116 Cf. ARNOLD, V. et alii (editores). Mathematics - Frontiers and Perspectives. Providence: American Ma-
thematical Society, 2000, 459 pág. Cf. a resenha de Costa, N. C. da, em Folha de São Paulo, 9 de julho de
2000, caderno MAIS, p.13.
117 WILSON, E. O. Consilience. The Unity of Knowledge. New York: Random House, 1999, 367 p.
118 PRIGOGINE, I. The End of Certainty. Time, Chaos and the New Laws of Nature. New York: Free Press,
1997, 228 p.
119 KAUFMANN, S. At Home in the Universe. The Search for the Laws of Self-Organization and Complexity.
New York/Oxford: Oxford University Press, 1995, 321 p.
120 DAWKINS, R. The Selfish Gene. Oxford: Oxford University Press, 1976.
121 BARROW, J.D. Teorias de Tudo. A Busca da Explicação Final. Rio de Janeiro: Zahar, 1994, 292 p.
122 DEUTSCH, D. The Fabric of Reality. New York: Penguin, 1998, 390 p.
123 SMOLIN, L. The Life of the Cosmos. Oxford: Oxford University Press, 1997, 358 p.
anterior próxima
sumário
Identidade
Simples A indivíduo homem
Iterativa A,A,A... replicação, reprodução família, educação
Reflexa A = A espécie sociedade, cultura
Diferença
O novo, o diferente B emergência do novo, criatividade do ato
mutação por acaso livre, invenção, arte
Coerência
Eliminação de um dos polos morte = o mal - quando há
seleção natural incoerência
Fazer as devidas distinções adaptação = o bem – quando há
seleção natural Coerência
anterior próxima
sumário
também nesta realidade histórica concreta. Por isso e para isso tem que
haver o discurso real, no qual, antecipando a situação ideal do discurso,
buscamos o consenso. Apel e Habermas, aqui, têm toda a Razão.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
existir e de existir de outro modo; ora, existindo tal causa eficiente an-
terior, o ato livre deixa de ser livre por estar predeterminado na causa
eficiente que o explica e o traz à luz da existência; logo, o ato livre não é
livre e sim predeterminado. – Essa objeção, antiga, clássica, causou mui-
tas dores de cabeça a praticamente todos os filósofos, de Agostinho até
Apel e Habermas. Lembremos apenas o asinus Buridani do célebre Reitor
da Universidade de Paris: um asno, colocado entre dois montes de feno
exatamente iguais, por não possuir livre arbítrio, por não poder decidir-
se, vai morrer de fome. A solução para o problema da predeterminação
causal do ato livre de decisão, só a encontramos num caminho, trilhado,
aliás, pelo próprio Hegel, no conceito de Autocausação. É errado dizer
que todo o efeito tem que ter sempre uma causa a ele externa e anterior.
O erro aqui consiste nos termos externo e anterior. É claro que, havendo
efeito, tem que haver causa. Mas causa é sempre e primeiramente, nos
Sistemas Neoplatônicos, um Movimento circular de Autocausação, causa
é, antes de tudo, causa sui. Ela não é externa, mas sim interna; ela não é
anterior, mas sim simultânea. Plotino sabia isso, Espinosa também, He-
gel explica e demonstra esta tese. A causa separada de seu efeito é algo
derivado, posterior; tal causa existe, sim, na Natureza, aliás com muita
frequência. Mas esta causa exterior ao seu efeito é algo secundário, algo
derivado. Causa, primeiramente, é um Movimento circular de Autocausa-
ção. Só quando, por abstração, cortamos este círculo em duas metades, é
que causa e efeito se separam. Os Neoplatônicos sabiam disso; as ciências
contemporâneas tiveram que redescobrir isso e introduziram o conceito
de Auto-organização, que não é nada mais nada menos que a formula-
ção contemporânea da Autocausação dos Neoplatônicos. O problema
da predeterminação causal do ato livre para os filósofos analíticos é algo
insolúvel; para os Neoplatônicos, isso nem se constitui em problema: o
ato livre é uma forma de Autocausação como muitas outras que existem
na Natureza, como, por exemplo, a vida nos organismos, como os proces-
sos de Auto-organização que ocorrem inclusive na Natureza inanimada.
anterior próxima
sumário
mite, como na série numérica, andar para frente e para trás. Num mundo
totalmente necessitário, como Laplace o desenha, por exemplo, tudo se
transforma numa teia atemporal em que os processos são todos em prin-
cípio reversíveis. Não há, num mundo necessitário, a flecha do tempo que
impede a reversibilidade. A Física de Newton e a de Laplace, necessitárias,
não têm espaço para a flecha do tempo, para a verdadeira historicidade;
Todos os processos seriam, segundo a mecânica determinística, rever-
síveis. Quando, então, na termodinâmica se descobre a lei da entropia,
surge, pela primeira vez depois de Newton, a flecha do tempo como algo
que constitui verdadeira historicidade, ou seja, que não permite a reversi-
bilidade dos processos. É com as pesquisas de Prigogine – hoje, portanto
– que se aprofunda a convicção de que há uma flecha do tempo, que os
processos no Universo não são reversíveis, que há verdadeira historici-
dade e não apenas o eterno retorno do sempre mesmo. Isso a Física e a
Química contemporâneas nos ensinam. A Biologia, cem anos antes, já
nos havia ensinado a existência de verdadeira historicidade, pois evolução
por mutações ao acaso só pode existir onde há verdadeira historicidade,
isto é, onde a emergência do novo que não está pré-programado no que
vem antes introduz claramente a flecha do tempo. Mas nós, filósofos, não
havíamos levado a Biologia e a Teoria da Evolução de Charles Darwin
suficientemente a sério e, por isso, ainda hesitávamos quanto à verdadeira
historicidade. É mérito de Dilthey, de Droysen e de Heidegger ter pos-
to a historicidade como processo irreversível no centro das discussões
filosóficas. A entropia da termodinâmica e os Sistemas dissipativos de
Prigogine vieram comprovar empiricamente a irreversibilidade do tempo,
a verdadeira historicidade.
anterior próxima
sumário
124 FICHTE, J. G. Fichtes Werke. Ed. FICHTE, I. H. Berlin: Bruyter, 1971, 1 vol., p. 27-81.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
125 Uma lista finita de números aleatórios, quando é repetida, deixa de ser aleatória. Isto é, quando se che-
ga ao fim de uma lista finita de números aleatórios e se recomeça a contagem a partir do começo, entra-se
em circularidade e elimina-se o elemento aleatório. Dependendo do tamanho da lista, um computador
mais poderoso já na terceira ou quarta repetição pode engendrar um programa que tem menos bytes que
o conjunto analisado de números, a saber, a lista finita multiplicada por três ou por quatro. A definição
de aleatório, em informática, é de que a série de números não possa ser engendrada por um programa
que seja menor ou do mesmo tamanho que ela mesma. A repetição da série de números originariamente
aleatórios, num determinado momento do ciclo de repetições, torna a série conhecida e previsível, que,
assim, deixa de ser aleatória.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Pois o antes e o depois da linha reta não podem, por sua vez, voltar a ser
lineares. A linha reta pode e deve ser aberta para o futuro, sim, sem isso não
haveria contingência e historicidade. Mas ela tem que começar e terminar
em uma circularidade; numa circularidade que sempre de novo possibilita
e engendra linearidades contingentes. A metáfora da bicicleta tem que ser,
aqui, continuada e complementada. O ciclista, ao girar a roda da bicicleta,
engendra a linha reta no chão; mas essa linha não é geometricamente reta,
ela não pode ser tracejada ad infinitum para frente e para trás. Isso nos levaria
a um Sistema da má infinitude. Num tal Sistema, a má infinitude conteria
a boa infinitude, o que é um absurdo; o correto é exatamente o contrário:
a boa infinitude tem que conter, superada e guardada, a má infinitude. Para
que a metáfora funcione, temos que pensar o ciclista andando em círculos
que não coincidem exatamente uns com os outros. A linha assim traçada é
meio reta e meio torta: ela sai do círculo, para dentro ou para fora, e sempre
de novo volta para o círculo. O ciclista, pois, anda em círculos. Como os
círculos traçados no chão não são geometricamente iguais, ele está sempre
a desenhar linearidades, que possuem começo e fim e que, portanto, são
contingentes, mas que nascem do círculo e sempre a ele voltam. A circula-
ridade engendra aqui a linearidade, só que a linearidade sempre se origina
do círculo e a ele sempre volta, sem por isso perder seu caráter contingente
de linearidade. Não há começo nem fim do Sistema como um Todo, pois
ele é circular. Mas há, sim, dentro dele começo e fim de tempos lineares,
que começam sempre no círculo e nele desembocam, que, por isso, são
contingentes e absolutamente imprevisíveis, que são caracterizados pela li-
nearidade irreversível da flecha do tempo. É por esta Razão que o ciclista
precisa andar em círculos. Assim, e só assim, o círculo engendra linhas que
não têm nem começo nem fim, mas que, apesar disso, são lineares e abertas
para o futuro126.
Mas a metáfora da bicicleta ainda não está completa; falta algo importan-
te. Para que ela não seja falha e consiga expressar o que queremos dizer, é
preciso pôr em cima da bicicleta, que é um ser anorgânico e sem consciên-
cia, um ciclista, uma Autoconsciência pensante. A bicicleta, sendo matéria
126 Agradeço a meus colegas do GPI-Dialética, principalmente a Eduardo Luft e Custódio Almeida, que, na
reunião de maio de 2001 em Gramado/Canela, me alertaram para o modo como a metáfora da bicicleta –
em sua primeira redação - estava claudicando.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
127 Isso pode soar estranho num primeiro momento. Mas basta, como Agostinho diz, que olhemos para
dentro para percebermos o fato de que em cada momento que vivemos estão presentes em nossa Au-
toconsciência tanto as contingências de nossa vida temporal pregressa como também nossos projetos
para o futuro.
anterior próxima
sumário
Conclusão
O conceito de Absoluto no Sistema Neoplatônico que está sendo aqui
proposto apresenta semelhanças e dissemelhanças com a ideia absoluta
e com o saber Absoluto de Hegel. Ambos os Sistemas são semelhantes
e aparentados, é claro, e estão, assim, muito próximos um do outro. Mas
num ponto eles diferem profundamente, porque o de Hegel é necessitá-
rio, e o que estou propondo contém contingência e liberdade no sentido
contemporâneo do termo. Isso tem influência decisiva no conceito de
Absoluto de ambos os Sistemas. Na Filosofia de Hegel, a necessidade,
que perpassa todo o Sistema, vincula de forma dura a ideia absoluta com
o saber Absoluto. Afinal, o saber Absoluto decorre necessariamente da
ideia absoluta, sendo ele apenas uma ampliação desta (Erweiterung). Um
não é o outro, mas o nexo entre ambos é, pela estrutura do Sistema, o
de uma ampliação necessária. Desta maneira, em Hegel, a ideia absoluta
e o saber Absoluto – Lógica e Espírito –, embora diferentes, estão muito
próximos. Ambos são, no fundo, necessários e estritamente circulares.
Ideia absoluta e saber Absoluto, resumo e condensação máxima da Filo-
sofia hegeliana, são conceitos que estão impregnados da necessidade do
Sistema e são, como este, rigorosa e exclusivamente circulares. Isso sig-
nifica que – como Hegel mesmo diz –, ao chegarmos ao fim do Sistema,
devemos começar tudo de novo, pois o último elo da cadeia está ligado ao
primeiro. Isso significa que o enriquecimento havido entre a ideia absolu-
ta e o saber Absoluto – o curso da História –, na segunda rodada se repete
exatamente igual ao que era na primeira rodada. E assim na terceira, na
quarta rodada, etc. Com isso, todo o Sistema se transforma no perpétuo
retorno do sempre mesmo e a verdadeira historicidade, que Hegel tanto
queria resgatar, é diluída pela Lógica do Sistema. Hegel queria, sim, fazer
uma Filosofia que fosse Filosofia da História; o que conseguiu fazer, no
entanto, ao incorporar a História ao Sistema, foi exatamente o oposto.
Ao entrar no Sistema, a História perde sua historicidade contingente e
torna-se um nexo lógico-necessário. Ao invés de a Lógica e de a Ontolo-
gia tornarem-se históricas, a História torna-se Lógica. Esse é o erro que
afeta o Sistema e, assim, também o conceito de Absoluto de Hegel. O
Absoluto da primeira parte do Sistema, a ideia absoluta, e o Absoluto da
terceira parte, o saber Absoluto, são como que irmãos muito parecidos,
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Do que acima foi exposto seguem duas conclusões fortes, uma negati-
va, a outra positiva. A conclusão negativa é de que o conceito de Deus
das grandes religiões ocidentais, nestes últimos séculos, está mais e mais
se afastando daquilo que em boa Filosofia chamamos de Absoluto; la-
mentavelmente o pensamento mágico está voltando a prevalecer sobre o
pensamento racional, o Deus da magia e da superstição está voltando a
prevalecer sobre o Deus pensado pela Razão. A conclusão positiva é de
que, com algum esforço intelectual, é possível, sim, neste começo do sé-
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
Observação: CIRNE LIMA, C. R. V. Filosofia Unisinos, São Leopoldo, 13 (2-supplement),
2012. p.311-325.
128 GLOY, K. Vernunft und das Andere der Vernunft. Alber: Freiburg/München, 2001; HABERMAS, J. Der
Philosophische Diskurs der Moderne. Suhrkamp: Frankfurt am Main, 1985.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
132 SCHELLING, F.W.J. Zur Geschichte der neueren Philosophie (1833/1834), in: Ausgewählte Schriften, 6
vol., ed. FRANK, M. Suhrkamp: Frankfurt am Main, 4 vol., p. 417-616.
133 Cf. a este respeito as objeções de Kierkegaard e de Nietzsche.
anterior próxima
sumário
134 Esta conferência foi feita no simpósio da Internationale Gesellschaft “System der Philosophie”, reali-
zado em Lucerna, Suíça, em junho de 2003.
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
anterior próxima
sumário
Um projeto de Sistema
Três considerações prévias sejam-me, aqui, permitidas: sobre a Contradi-
ção, sobre o indivíduo e sobre a contingência.
135 CIRNE LIMA, C. R. V. Dialética para Principiantes. Obra Completa - Filosofia como Sistema – O Núcleo.
Porto Alegre: Ed. Escritos. 3 vol. 2017.
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
(Sistemas modais S1, S2, S3, S4 e S5). Trilhando este caminho, como nós,
filósofos, o fizemos tanto na Modernidade como no século XX, desemboca-
mos sempre num necessitarismo. E aí não existe, realmente, nenhum espaço
para a liberdade no sentido de livre escolha dentre alternativas contingentes.
Ficamos tão cegos que esquecemos que existem Sistemas com operadores
modais mais fracos; como quase nunca os utilizamos, esquecemos que eles
existem e nem por isso são menos racionais. E tais Sistemas com operadores
modais fracos são utilizados frequentemente na Física, na Biologia e em ou-
tras ciências; daí o uso tão frequente do cálculo de probabilidades. Penso aqui
também e especialmente na estrutura lógico-modal das lógicas paraconsisten-
tes, das lógicas deônticas e, de maneira toda especial, das Theories of Games138.
Todos esses Sistemas, aqui mencionados, trabalham com um operador lógi-
co-modal, que é mais fraco, não sendo simplesmente idêntico à necessidade
dura da Matemática e da Lógica clássica. Na Theory of Games, por exemplo,
no jogo de xadrez (ou no jogo de futebol), os operadores modais utilizados e
sempre pressupostos são os seguintes:
anterior próxima
sumário
139 CIRNE LIMA, C. R. V. Zu einer Analytik des Sollens, in: NIQUET, M. und HERRERO, F.X. Diskursethik. Grun-
dlegungen und Anwendungen, Königshausen & Neumann: Würzburg, 2001, p. 145-163; CIRNE LIMA, C. R. V.
O Absoluto e o Sistema: Agostinho, Tomás de Aquino e Hegel. Nesta coleção da Obra completa.
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
Metalógica
Metafísica
Metabiologia
Metaética
Identidade
Identidade simples A
Identidade iterativa A, A, A...
Identidade reflexa A=A
Diferença
B não pré-programado
Coerência
Um polo da oposição elimina o
outro polo
Diversos aspectos são elaborados
de sorte a restabelecer a Coerência
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
Metalógica Metabiologia
Identidade
Identidade simples A Indivíduo
Identidade iterativa A, A, A... Reprodução, replicação
Identidade reflexa A=A Espécie
Diferença
o novo, B Emergência do novo
Mutação por acaso
Coerência
Eliminação de um polo Morte (seleção natural)
Elaboração de aspectos Adaptação (seleção natural)
140 BERTALANFFY, L. General System Theory. Foundations, Development, Applications. Braziller: New York,
1998 (first published 1969).
141 LUHMANN, N. Soziale Systeme. Grundriss einer Allgemeinen Theorie. Suhrkamp: Frankfurt am Main,
1985.
142 MATURANA, H. R. e VARELA, F. J. A Árvore do Conhecimento. As Bases Biológicas da Compreensão
Humana. Palas Athena: São Paulo, 2002, tradução de MARIOTTI, H. e DISKIN, L. (edição original chilena
1984).
143 CAPRA, F. A Teia da Vida. Uma Nova Compreensão Científica dos Sistemas Vivos. Cultrix: São Paulo, s. a.,
tradução de EICHEMBERG, N.R. (original em inglês The Web of Life, 1996).
anterior próxima
sumário
Coerência
Eliminação de um polo Morte (seleção natural) O mal
Distinções necessárias Adaptação (seleção natural) O bem
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
144 Cf. a este respeito HEISS, R. Logik des Widerspruchs. Eine Untersuchung zur Methode der Philosophie
und zur Gültigkeit der formalen Logik. Berlin/Leipzig, 1932; KULENKAMPFF, A. Antinomie und Dialektik. Zur
Funktion des Widerspruchs in der Philosophie. Stuttgart, 1970; KESSELRING, T. Die Produktivität der An-
tinomie. Hegels Dialektik im Lichte der Genetischen Erkenntnistheorie und der formalen Logik. Suhrkamp:
Frankfurt am Main, 1984; WANDSCHNEIDER, D. Grundzüge einer Theorie der Dialektik. Klett-Cota: Stutt-
gart, 1995.
145 Em oposição a Kesselring e Wandschneider, não procuro, a partir deste primeiro começo, deduzir cate-
gorias determinadas. Como este projeto é deflacionário, basta que sejam distinguidos diversos aspectos,
níveis, etc.; estes precisam, no entanto, ser no mínimo fácticos, senão a antinomia volta.
anterior próxima
sumário
O Sistema e as Ciências
O Múltiplo se origina do Uno à maneira que foi descrita acima. De um
único primeiro princípio de Metalógica surge a multiplicidade e a variedade
das muitas entidades, algumas delas já apenas lógicas, outras já não mais
apenas lógicas, mas sim entidades fácticas da Natureza e, finalmente, pes-
soas do mundo do Espírito. Do Uno surge o Múltiplo, como ensinavam,
com toda Razão, Platão e os filósofos Neoplatônicos até Hegel. A partir do
Uno é explicado o Múltiplo; mas isso não se faz por mera dedução, pois
o processo de desenvolvimento da Natureza é contingente e nós, homens,
determinamos livremente o sentido de nossas vidas. A Filosofia do Espí-
rito é essencialmente uma Filosofia da História da liberdade. A Filosofia
da Natureza é, em princípio, uma História Natural, na qual muitas vezes o
acaso determina o curso dos eventos. Também na Filosofia da Lógica há
contingência e Dever-ser, pois sempre que a Coerência não exprime uma
necessidade dura, eliminando necessariamente um dos polos opostos, ela
se concretiza como um Dever-ser que manda fazer as devidas distinções
(due distinctions).
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
A emergência do novo sem uma causa que o anteceda não nega o Prin-
cípio de Razão Suficiente? Sim, se pensamos a Razão Suficiente como
algo que sempre e necessariamente está fora e a partir do exterior age.
A consequência de uma Razão Suficiente pensada assim é um necessita-
rismo férreo na Natureza e na História do Espírito. A resposta correta é
um não; a Razão Suficiente nem sempre está fora e é externa. Podemos
e devemos, com Plotino, Espinosa e Hegel pensar a relação causa-efeito
como um Movimento que é, às vezes, circular. Razão Suficiente, assim,
pode, às vezes, ser Razão interna, uma Razão que está dentro daquilo que
se origina, podendo ser uma causa sui, aitia eautou. A consequência, agora,
é um Sistema aberto, contingente, que abre espaços para a liberdade, a
responsabilidade e a ética.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Totalidade em movimento
assim é o defensor da tese oposta que tem o onus probandi, pois é ele, e não
eu, quem está afirmando algo mais. Também aqui o minimalismo é uma
Razão argumentativa; Ockham tem Razão. Mas a Razão decisiva para jus-
tificar o subprincípio Metalógico da Diferença consiste no fato de que o
Sistema assim construído – com o subprincípio da Diferença – é coerente
com o Universo no qual de fato vivemos. Só assim podemos explicar e
justificar a contingência, a facticidade, a historicidade, a liberdade, a respon-
sabilidade, o direito, etc. Um Sistema sem o Princípio da Diferença, como
acima definida e introduzida, não corresponde nem à Natureza nem ao
Espírito. O critério de Verdade, que está sendo aplicado aqui ao Sistema, é a
própria Coerência Universal: verdadeiro é sempre somente o Todo.
anterior próxima
sumário
Platão defende e ensina, nos diálogos da juventude, que o mundo das ideias
existe como algo separado do mundo das coisas. As ideias são universais, as
coisas são sempre singulares; as ideias são inextensas, as coisas são exten-
sas; as ideias são atemporais, as coisas estão sempre no fluxo do tempo. O
mundo das ideias, parece, é algo completamente diferente do mundo das
coisas. O mesmo Platão – nos diálogos Parmênides, Sofista e Filebo – refuta a
teoria de que os dois mundos sejam separados. Eles não só não são sepa-
rados, como se interpenetram a se completam. Como? Isso, afirma Platão
na Sétima Carta, deve ser ensinado oralmente, de mestre para discípulo, sem
jamais ser posto por escrito. O diálogo Timeu, no entanto, apresenta uma
tentativa – falha – de derivar todas as coisas do Universo a partir de um
primeiro princípio. A ideia do bem e do belo, as cinco ideias que são os
gêneros supremos (Ser, Identidade e Diferença, Repouso e Movimento) e
as ideias que são números constituem o princípio a partir do qual se deriva,
por diversas proporções geométricas, a multiplicidade de seres no Universo.
A questão foi colocada com clareza total; a solução apresentada é falha. A
História da Filosofia, desde então, é – como afirma, se não me engano, Ber-
trand Russell – apenas o comentário que se faz em torno desse núcleo duro.
anterior próxima
sumário
Universal ainda, é um signum que pode apontar para toda e qualquer coisa;
ele só aponta para a coisa singular se nós, os falantes, apontamos com o
dedo qual o “este” que estamos dizendo.
Uma fábula nos servirá de fio condutor. Quatro macacos desceram das
árvores, tiraram o rabo e se levantaram sobre as patas traseiras. Brincaram,
comeram e se fartaram com as bananas existentes no local. Depois, descan-
saram na clareira, à beira de um pequeno rio, onde moravam. Dormiram.
Um deles, ao acordar, sentiu fome de novo, olhou ao redor e constatou
que as últimas bananas neste lado do rio já tinham sido comidas. Mas, do
outro lado do rio, as bananeiras ostentavam fartura exuberante. As bananas,
amarelas de tão maduras, chamavam. Mas como chegar lá? Como cruzar o
rio? O macaco percebeu que troncos secos de árvore desciam, flutuando,
rio abaixo. Os troncos secos flutuam. Montado sobre um deles, o macaco
poderia chegar às bananas do outro lado do rio. Ele viu, então, a seus pés,
um tronco seco. A pouca distância até a margem não deveria ser problema
e o macaco tentou levantar o tronco. Não conseguiu, era pesado demais.
Empurrar, também não deu. Ele pegou, então, primeiro um pela mão, de-
pois mais dois companheiros macacos, e apontou para as bananas, para o
rio e para o tronco seco. Fez um movimento com as mãos e os pés: sentar
no tronco, atravessar o rio, chegar às bananas. Os outros três entenderam a
mensagem expressa na Linguagem corpórea e se colocaram dos dois lados
do tronco seco. Dois de cada lado. Um tentou, não conseguiu; o outro tam-
bém. Compreenderam que era preciso que os quatro puxassem ao mesmo
tempo, pois só o esforço conjunto, o trabalho conjunto, o agir em conjunto
permitiria levantar o tronco e levá-lo para o rio e para as bananas. O pri-
meiro macaco, aí, modulou os lábios e, coordenando o esforço dos outros,
soprou: “Ho-ruck”. Sopraram, juntos, “ho”, preparando, pegando e segu-
rando bem, sopraram “ruck” ao levantar, fazendo força todos ao mesmo
tempo. Trata-se de um sopro, um sopro apenas para coordenar a ação em
conjunto: tronco, rio, bananas.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
O que era uma pars in toto agora é uma pars pro toto. O primeiro sinal ritma,
sim, coordena a ação em conjunto que está sendo realizada concretamente
e da qual ele é uma parte real (pars in toto); o segundo sinal aponta para uma
Totalidade que não está presente e só é corretamente compreendido por
aqueles que participaram da primeira ação em conjunto (pars pro toto).
anterior próxima
sumário
Fazer uma Filosofia da Linguagem é, pois, atar num único nó o sinal con-
creto e o sinal abstrato, é distinguir para logo depois juntar a pars in toto
e a pars pro toto. A parte sempre remete para o Todo do qual ela é parte;
a parte sempre aponta para o Todo. Quando tiramos a parte de seu con-
texto concreto na ação em conjunto, ela continua sendo parte, mas agora
aponta para um Todo que não está de fato presente. A parte ficou abstra-
ta, o sinal agora remete e significa algo que não está fisicamente presente.
Surgiu assim a Linguagem em sua estrutura básica. Tudo o mais é apenas
um desenvolvimento ulterior deste ponto de partida.
Frisch nos levava a uma clareira grande num mato ao sul da cidade. Era
fim de inverno, começo da primavera, ainda não havia flores. O campo
ainda sem grama verde se estendia no meio do fichtenwald, cercado de ár-
146 Quem entende mesmo disso é o Pe. Oscar Nedel S.J., primeiro reitor da Unisinos, que fez o doutorado
em Biologia na Universidade de Munique sob a orientação do Prof. Karl von Frisch à época que refiro.
anterior próxima
sumário
vores pelos quatro lados; era como um campo de futebol, mas no meio
do mato. Frisch trazia uma mochila grande, e nesta, enrolado numa
lona, um favo de mel cheio de abelhas, muitas abelhas. Um pires cheio
de água com açúcar era, então, colocado por nós, alunos, a uma boa dis-
tância, uns cem metros mais ou menos. Frisch, enquanto colocávamos
o pires no chão, ficava de olhos vendados e não sabia onde iríamos pôr
o pires com a fonte de mel. Aí a lona era retirada e as abelhas, até então
fervilhando no favo, começavam a voar no entorno. Nem as abelhas
nem Frisch sabiam onde estava o pires com água com açúcar. As abe-
lhas, já agora liberadas, começavam a voar pela clareira de um lado para
o outro, procurando uma fonte de mel, qualquer fonte de mel. Voavam
para lá e para cá, cada abelha numa rota própria e quase nunca em linha
reta; parecia uma confusão muito grande. Eis que uma abelha, por sorte,
encontrava a fonte de mel. Esta abelha voltava então em linha reta para
o favo de onde tinha saído. Ao chegar ao favo, que como em qualquer
colmeia estava na posição vertical, a abelha dava início à “dança das abe-
lhas”. Ela cruzava o lado aberto do favo – na vertical – dançando, isto
é, movimentando o abdome em relação à cabeça e ao tórax. As outras
abelhas que porventura estivessem no favo e todas que retornavam a ele
viam a dança da primeira abelha e entendiam o que estava sendo dito.
Estavam sendo ditas, na dança da abelha, três coisas: 1) a fonte de mel
está colocada num ângulo, digamos, de 40 graus à direita; 2) a uma dis-
tância de cerca de 60 metros; 3) a fonte de mel é muito boa. Nessa co-
municação, feita pela dança, os 40 graus são medidos a partir da vertical,
ou seja, da força da gravidade. A distância é calculada pelo tamanho da
linha dançada. A qualidade da fonte de mel é expressa pela quantidade
de rabanadas. As outras abelhas, vendo esta dança da primeira delas ao
descobrir a fonte de mel, imediatamente cessam os movimentos e voos
aleatórios e, todas elas, seguem em linha reta por sobre a clareira na
direção da fonte de mel. Depois dos 60 metros, um pouquinho à direita
ou um pouquinho à esquerda, procuram e acham a fonte de mel. Daí
por diante, as abelhas, todas as abelhas do favo, fazem como que uma
ponte aérea entre o favo, colmeia mãe e a fonte de mel. Não há mais
o patrulhamento da esquerda para a direita por sobre o campo quase
gelado. A primeira abelha encontrou o pires com água de açúcar e co-
municou às outras o ângulo, a distância e a qualidade melíflua da fonte.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Estes sinais, já agora abstratos, têm as mais variadas relações entre eles.
Um contém o outro, um é maior que o outro, etc. Dentre estas relações
entre os sinais, algumas são contingentes, outras, entretanto, são necessá-
rias. É preciso saber distinguir umas das outras. Aqui temos a nascença da
Lógica e da Matemática.
O termo a priori, portanto, tem certa validade. Ele expressa aquelas re-
lações entre sinais que são necessárias e que, por isso, não precisam de
confirmação empírica a posteriori. Isso existe? Existe, sim, e chamamos de
Lógica formal. Mas antes que possamos elaborar uma Lógica formal em
seu alto grau de abstração, precisamos estabelecer no dia a dia um Sistema
de comunicações em que usamos alguns, sim, muitos sinais. Estes sinais
são a priori? Como que inatos a um eu transcendental? Não. Prefiro não
usar o esquematismo kantiano, prefiro dizer que há relações entre sinais,
algumas que são contingentes, outras que são necessárias. Os sinais, nós,
em ação conjunta, os criamos. Mas depois descobrimos que nosso inven-
to desde sempre contém algumas relações que são necessárias. A língua
portuguesa, nós a inventamos e dia a dia a utilizamos. Mas dentro dela en-
contramos as relações lógicas e matemáticas, que são necessárias. A língua
portuguesa é a priori? Certamente não, ela é histórica e contingente. Mas
dentro dela encontramos os nexos necessários da Lógica e da Matemáti-
ca. O a priori é, como se vê, anterior à Linguagem histórica e contingente
apenas num sentido bem relativo, embora importante.
147 Não sei se esta teoria é nova ou não. Se alguém souber de algum autor que a tenha proposto antes,
por favor, me avise.
anterior próxima
sumário
À guisa de Resposta
Observação: CIRNE LIMA, C. R. V. In: BRITO, A.N. (Org.). Cirne: Sistema e Objeções.
São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009. p. 229-239.
Filosofia no Brasil
Paulo Arantes reporta que, quando da fundação da Faculdade de Filosofia
em São Paulo, houve uma reunião dos professores do departamento, sob
a presidência de um colega francês, na qual foi decidido que, face à falta
de talento dos brasileiros para a especulação, a Filosofia no Brasil teria que
ser sempre História da Filosofia. Esse dogma – errado, é claro – entrou à
época nos órgãos de coordenação e controle do Ministério da Educação e
nas outras faculdades de Filosofia que foram sendo criadas. A CAPES e o
CNPq até hoje mantêm essa regra absurda como norma não escrita para a
avaliação de cursos, programas de pós-graduação e projetos de pesquisa. O
que não for História da Filosofia não é aceito. – Como estudei Filosofia na
Alemanha e fiz meu doutorado na Áustria, esse dogma me era estranho; ao
chegar ao Brasil, entretanto, a necessidade prática existente me obrigou a
camuflar meus trabalhos sob a égide histórica de Hegel. O estudo histórico
de Hegel, o último dos grandes filósofos da tradição Neoplatônica, seria
o disfarce sob o qual eu faria meus ensaios especulativos. Isso me ajudou
muito, é óbvio, mas também me prejudicou. Para mim, Hegel é o gigante e
eu sou aquele anão que tenta subir aos ombros do gigante para ver se con-
segue enxergar mais longe. – As críticas ao Sistema de Hegel, quase todas
já formuladas por Schelling, são conhecidas. Minha tarefa consistiria, então,
em reconstruir o Sistema de maneira a superar de saída tais objeções.
anterior próxima
sumário
versal. E assim se vai de horizonte para outro horizonte mais Universal num
processo ad infinitum. Heidegger e Gadamer perceberam isso claramente e
propõem como solução uma fusão de horizontes (Horizonten verschmelzung),
que é, então, o horizonte último. Pluralismo de conhecimentos, de teorias,
de hipóteses, etc. somente sobre o pano de fundo da unidade sempre pres-
suposta (ad Cabrera, Adriano).
anterior próxima
sumário
À guisa de resposta
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
À guisa de resposta
Doutrina
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
À guisa de resposta
anterior próxima
sumário
Posto assim, com a clareza dessa distinção, fica mais fácil situar os gran-
des pensadores dialéticos, como, por exemplo, Platão, Fichte, Schelling e
Hegel. A Dialética nos diálogos de Platão é um processo duramente de-
dutivo ou, ao contrário, um serpentear entre opostos contingentes para,
depois, chegar a um primeiro princípio? Uma resposta terminantemente
decisiva não parece possível. Em Fichte, é claro que a Dialética pretende
ser, toda ela, dedutiva; a partir de três primeiros princípios por ele formu-
lados, tudo o mais poderia ser deduzido (herleiten). Em Schelling, temos
ambas as formas de Dialética; nos escritos da juventude, encontramos
anterior próxima
sumário
À guisa de resposta
Outra Lógica, como a que Júlio Cabrera e Olavo da Silva estão apresen-
tando, poderá captar e expressar a Dialética como compreensiva e descri-
tiva? A resposta já está dada nos termos acima expostos. Se e enquanto a
Lógica lexical conseguir captar e expressar tanto a Totalidade compreen-
dida como a pluralidade descrita, então ela poderá fazer o que as lógicas
até hoje não conseguiram. Nesse caso, seria talvez possível formalizar a
Dialética com pretensões maiores que as meramente didáticas.
anterior próxima
sumário
148 HABERMAS, J. Nachmetaphysisches Denken. Philsophische Aufsätze. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1988.
anterior próxima
sumário
A intenção deste trabalho pode ser resumida em três perguntas bem bre-
ves: Há Metafísica? Com Deus? Sem Deus? Nas últimas trinta páginas de
Depois de Hegel apresentei à crítica de meus leitores a proposta de um Sis-
tema evolutivo complexo ou, usando os termos antigos, uma Ontologia,
uma Metafísica, uma Theory of Everything. Não estou inventando novida-
des, faço apenas uma reconstrução sóbria e, à medida do possível, exata
da Teoria de Sistemas entretecida com a Teoria da Evolução. O mesmo fi-
anterior próxima
sumário
154 BERTALANFFY, L. General System Theory. Foundations, Development, Applications. New York: Brazilller, 1969.
155 MATURANA, R. H.; VARELA, G. F. El Arbol del Conocimiento. Santiago: Editorial Universitária, 1984.
Idem, The Organization of the Living: A Theory of the Living Organization. In: International J.Man – Machi-
ne Studies, nr. 17 (1975) p. 313-332.
156 CAPRA, F. The Web of Life. A New Scientific Understading of Living Systems. New York: Random, 1996.
157 KAUFFMANN, S. The Origins of Order: Self-Organization and Selection in Evolution. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 1993.
158 CIRNE LIMA, C. R. V. Depois de Hegel. Obra Completa - Filosofia como Sistema – O Núcleo. Porto Alegre:
Ed. Escritos. 3 vol. 2017.
159 AQUINO. T. Summa Theologica. Edit. Leonina Roma 1888, edit. Alarcón, E. 2006. Cf. Summa Theologica.
I, a. 13, q. 2.
anterior próxima
sumário
Existe Movimento. Logo, existe algo que é movido. Ora, tudo que
é movido é movido por um movente que lhe é anterior. Se este
é também algo movido, pressupõe por sua vez um movente. E
como a série não pode ser ad infinitum, é preciso aceitar a existência
de um primeiro movente que é, em si, imóvel e que é o movente
primeiro-último da série de moventes e movidos. Este primeiro
movente não movido, Tomás de Aquino o chama de Deus.
anterior próxima
sumário
Ora, o ato no qual e pelo qual Deus decide livremente criar o mundo – ele
teria a opção de não tê-lo criado – é algo interno ou algo externo a Deus? Se
a decisão de criar o mundo fosse um ato externo a Deus, ele não teria criado
livremente o mundo; o ato do qual o mundo provém causalmente seria algo
exterior a Deus, algo como um demiurgo, um Deus de segunda ordem. Mas
Deus, o Deus que é substância simples, não seria mais o criador do mundo;
o ato livre de criar lhe seria externo. – Se, invertendo a questão, pensamos o
contrário e dizemos que o ato livre de criar o mundo é interno a Deus, en-
tão este ato deixa de ser livre. Pois a substância divina é simples e necessária.
O que é interno a Deus é, por isso mesmo, simples e necessário; não há aí
espaço para optar livremente entre criar ou não criar o mundo. A noção de
substância simples e de ser necessário – ambos pontos fundamentais para o
conceito de Deus de Tomás de Aquino – entram sempre em Contradição
com o ato livre de criar ou não criar o mundo.
anterior próxima
sumário
160 PUNTEL, L. B. A Totalidade do Ser, o Absoluto e o Tema “Deus”: Um Capítulo de uma Nova Metafísica.
In: IMAGUIRE, G.; ALMEIDA, C. L. S.; OLIVEIRA, M. A. Metafísica Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2007,
p. 191-222.
161 Ibidem p. 199.
162 Ibidem p. 200.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
178 CIRNE LIMA, C. R. V. Depois de Hegel. Obra Completa - Filosofia como Sistema – O Núcleo. Porto Alegre:
Ed. Escritos. 3 vol. 2017.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
180 À gratuidade da philía, por um lado, corresponde a contingência dos entes contingentes, pelo outro
lado. Cf. Depois de Hegel, nesta coleção, 4 vol.
anterior próxima
sumário
181 HEGEL, G. W. F. Enzyklopädie der Philosophischen Wissenschaften, in: Werke in zwanzig Bänden, ed.
MOLDENAUER, E.; MICHEL, K. M. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, ed. 1981, 8-10 vol. Hegel será cita-
do sempre de acordo com esta edição, que é mais acessível que a editio princeps do Felix Meiner Verlag,
Hamburg. Onde houver divergências seguiremos – anotando no texto – que estamos seguindo a edição
hamburguesa.
182 Idem, Wissenschaft der Logik, ibidem 5-6 vol. A Ciência da Lógica será citada pela página, a Enciclopédia,
pelo parágrafo.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Natureza e Contradição
Muito foi escrito sobre a Contradição em Hegel185, a bibliografia sobre isso
é imensa. Desde Trendelenburg186 até Popper187 e a Filosofia Analítica, este
tema foi posto no centro da discussão entre analíticos e dialéticos, e nós,
hegelianos, temos que confessar que nossas respostas até hoje deixam a
desejar. Há corajosas tentativas de explicar a Contradição como motor que
move o Universo e, assim, também a Natureza. Mas uma resposta suficien-
temente clara, razoavelmente transparente, singelamente simples – e por
que não? – cogente, esta ainda nos falta. Este trabalho vai tentar o talvez
impossível: responder à questão acima. Tentarei mostrar com a máxima
exatidão possível – e por isso também em Lógica simbólica – a estrutura da
Contradição em Hegel. Desde o começo se diga que Contradição em He-
gel não significa Contradição no sentido que os lógicos dão ao termo. Mas
então, o que é Contradição? Como pode ela mover a Natureza, sim, todo o
Universo? Não tem Razão Aristóteles quando afirma, no livro Gama, que
quem cai em Contradição não pode mais falar e fica reduzido ao estado
de planta? Contradição em Hegel é um conceito que inclui a oposição de
dois contrários, sua determinação mútua, sua Diferença e, finalmente, sua
Identidade Dialética. É isso que tentarei, passo a passo, mostrar e justificar.
anterior próxima
sumário
Este vai ser o primeiro passo de nossa demonstração. Quem fala em Iden-
tidade, em x = x, está falando de uma Identidade meramente formal, como,
aliás, sua instanciação 4 = 4, sem se dar conta do que estamos realmente fa-
lando. Além disso, como observa agudamente Hegel, para expressar a Iden-
tidade, temos que pôr um A antes e o outro A depois do sinal de igualdade.
Só assim conseguimos escrever A = A. Mas, objetará um filósofo analítico,
o referente de ambos os A é exatamente o mesmo, isto é, a primeira letra
de nosso alfabeto. Isso tudo, que é meramente formal, está obviamente
correto. O filósofo analítico argumenta: Mas essa Identidade A = A diz algo
que já não esteja expresso pelo primeiro A? O referente não é o mesmo? Se,
apesar disso, dizemos A = A, queremos dizer que o referente = o referente; nada
mais. Entretanto, este mesmo sinal de igualdade é usado quando se diz 3 +
2 = 5, onde em ambos os lados se encontram termos diferentes. Eles são,
num determinado Sistema axiomático, formalmente idênticos, sim, mas 3
+ 2 não é materialmente idêntico a 5. Estamos tão acostumados ao Siste-
ma numérico e a fazer cálculos com ele que não percebemos que o sinal
de Identidade não significa a mera e pura repetição do mesmo. Tomemos
como exemplo ulterior a fórmula de Einstein. Quem pretenderia, ao afir-
mar E = mc2, que energia, massa e velocidade da luz têm o mesmo referen-
te? Muito pelo contrário, o que está sendo dito é que entidades opostas e
claramente diferentes, numa determinada configuração, ficam idênticas. A
Diferença entre energia, massa e velocidade da luz, sim, a oposição entre
elas, é que permite que, sob um aspecto de Matemática aplicada à Física, as
três sejam idênticas, isto é, sejam ligadas pelo sinal de igualdade.
anterior próxima
sumário
Chave de formalização
ODxy: x é uma determinação que se opõe dialeticamente a y
DDxy: x é uma determinação que se determina por sua relação para com y
DIxy: x é uma determinação que é dialeticamente diferente de y
IDxy: x é uma determinação que é dialeticamente idêntica a y
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Temos, sim, oposição entre dois polos, determinação mútua entre eles, te-
mos Diferença, mas a Identidade verdadeira ficou dilacerada, morta como
um esqueleto branquejando à beira do caminho. Onde está a Identidade?
Falamos sempre de x e y. Mas onde está aquilo que verdadeiramente nos
interessa: a Identidade de x com x? Lembremos, por oportuno, que não
se trata mais aqui da Identidade meramente formal de x = x, mas de uma
Identidade que seja filosoficamente bem pensada e que exista na Natureza.
O predicado que utilizamos para esta relação de Identidade é IDxx. Repa-
remos que não se trata mais de uma relação entre x e y, mas de uma relação
entre x e x. Voltamos, assim, ao começo, ao conceito de Identidade.
O problema é que a categoria de Identidade Dialética é um conceito com-
plexo que contém dentro de si oposição, determinação mútua dos polos
opostos, Diferença e, fechando o círculo, novamente, Identidade. A cate-
anterior próxima
sumário
191 Estas foram dissolvidas na segunda parte da Ciência da Lógica: die Auflösung des Dings.
192 LUFT, E. Sobre a Coerência do Mundo. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2005.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
dade de tese e antítese, então, Hegel constrói a síntese que ele chama de
Contradição (Widerspruch). Contradição, em Hegel, não significa o mesmo
que em Aristóteles e nos lógicos. Contradição, no livro Gama de Aristó-
teles, é a impossibilidade de predicar e não predicar o mesmo do mesmo
sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo. Em Lógica, Contradição é
simplesmente (P Ù ~P); obtém-se a Contradição pela afirmação e a ne-
gação da mesma sentença, ou seja, os quadrados lógicos em suas diversas
formas, que conhecemos desde a Antiguidade.
anterior próxima
sumário
194 A doutrina das formas eternas existindo num mundo separado foi por ele mesmo refutada contra os
“amigos das ideias” (oi filoi ton ideon), no diálogo Parmênides. No Timeu, Filebo e em outros textos da
maturidade, vemos como Platão concebe o Universo como Movimento.
anterior próxima
sumário
Natureza e Movimento
O espaço à nossa disposição neste pequeno volume não nos permite
uma exposição mais alentada e, principalmente, mais amparada por uma
argumentação Lógico-simbólica. Nas páginas que nos restam, tentare-
mos explicitar os mais importantes elementos do Movimento em estilo
extremamente conciso. Como é natural, partiremos do que foi exposto
e elaborado na primeira parte, para introduzir filosoficamente as catego-
rias de Movimento, de quantidade, qualidade e tempo. Daremos ênfase
à categoria de Movimento, pois se esta for bem fundamentada, as res-
tantes categorias se seguirão como que sem esforço especulativo maior.
A concisão do texto, entretanto, exige uma leitura atenta.
195 CIRNE LIMA, C. R. V.; SOARES, A. C. Being, Nothing, Becoming. Hegel and us – A Formalization. Obra
completa – Filosofia como Sistema – Artigoe e entrevistas. Porto Alegre: Ed. Escritos. 5 vol. 2017.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
tidade primeva, sendo o próprio Universo, não pode ter nada fora de si.
Ela não recebe nenhuma influência ou determinação que venha de fora.
Neste caso, o círculo da Identidade é fechado sobre si mesmo e não pos-
sui nenhum meio ambiente (Umwelt), no qual possa ser colocado e do qual
possa receber uma influência de fora.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Mas há também Diferenças que não devem ser varridas para baixo do ta-
pete. A Teoria de Sistemas tem, primeiro, uma grande dificuldade em expli-
car exatamente o que seja Sistema. Cada autor parece utilizar um conceito
196 BERTALANFFY, L. General, System Theory. Braziller: New York, KAPRA, F. O Ponto de Mutação. Cultrix:
São Paulo 1982.
197 LUHMANN, N. Soziale Systeme. Grundriss einer Allgemeinen Theorie. Suhrkamp: Frankfurt am Main,
1985.
anterior próxima
sumário
198 SIEGWART, G. Verbete Systemtheorie In: MITTELSTRASS, J. er alii, Enzyklopädie Philosophie und Wissen-
schaftstheorie. Metzler: Stuttgart, 3 vol., col.190 ss.
anterior próxima
sumário
Observação: CIRNE LIMA, C.R.V. In: RAMBO, A. B.; GRÜTZMANN, I.; ARENDT, I. (Org.).
Pe. Balduino Rambo – A Pluralidade na Unidade. São Leopoldo: Editora Unisinos,
2007. p. 57-65.
A noite estava caindo. O caminhão do Exército que fora nos buscar no acam-
pamento de Vacaria, na Fazenda Ronda, às margens do Rio Uruguai, descia
do planalto dos Campos de Cima da Serra para a passagem no Rio das Antas.
O motorista, um sargento muito falante, estava na cabine com o Padre Ram-
bo e o Padre Soder, o qual não estivera no acampamento; viera apenas nos
buscar. Nós, a tropa de doze escoteiros, estávamos sentados, já meio dolori-
dos, nos bancos de madeira armados sob a lona do caminhão. Atrás de nós,
rabeando furiosamente de um lado para o outro, o reboque que carregava
nossas tralhas, barracas, mochilas, panelas e as mil pequenas preciosidades
que havíamos colecionado durante o acampamento. Estávamos todos exaus-
tos, pois desmontar um acampamento de quase um mês é coisa de desca-
deirar mesmo os melhores escoteiros. Alguns dormiam a sono solto, outros,
como eu, cabeceavam, entrando e saindo num leve cochilo.
Devo ter pegado no sono, porque acordei com o barulho do reboque, que
parecia um potro xucro corcoveando para todos os lados. Reparei que o
caminhão mais que dobrara a velocidade, como se o motorista tivesse
enlouquecido. A estrada, então sem asfalto, estreita e cheia de curvas,
nos jogava de um lado para o outro, batendo nos barrancos à beira da
estrada. Todos nós, já agora acordados e temerosos, sem poder perguntar
ao Padre Rambo ou ao motorista, que estavam na cabine, o que estava
acontecendo, não sabíamos o que fazer. Até que um gritou: “O cami-
nhão perdeu as travas, segurem-se bem...”. Ele não conseguiu terminar
anterior próxima
sumário
Padre Rambo tinha outra rotina diária. Começava rezando a missa, a que
todos nós assistíamos. Depois tomava o café de panela com charque des-
fiado e farofa, conosco, é claro. Mas depois o Padre Rambo vestia uma
batina velha, de cor indefinível, entre um fosco desbotado e um cinza claro,
arrebanhava as pontas de frente e de trás e as enfiava na cinta de couro que
substituía uma faixa eclesiástica cujo nome não sei mais. Com a batina assim
bem arregaçada, Rambo mais parecia um daqueles gaúchos de antigamente
que não usavam bombachas e sim chiripá. Mas aí é que vinha o momento
solene. Ele tirava da sua barraca um chapéu de explorador africano. Um
chapéu rígido, parecido com um capacete, mas feito de material mais leve,
com uma pequena aba que circundava todo o topo, de cor bege, com uns
anterior próxima
sumário
Com o facão na mão direita, ele ia abrindo caminho por entre macegas, ma-
tas ciliares e mato alto. De repente parava, olhava para mim e perguntava:
“Sabes o que é isso?”. Era uma árvore de tamanho médio, com flor típica,
que havia às centenas naquela região. Eu, é claro, uma ou outra vez, sabia
o nome gauchesco da planta, mas jamais o nome da classificação latina.
Rambo, então, com paciência que só um grande educador possui, virava-se
para mim, me fazia contar as pétalas, descrever o formato da flor, desenhar
– na terra, se não tivesse papel à mão – a estrutura da folha dizia: “Sabes
o nome?”. – algumas vezes, como neste caso, eu sabia: “Ora, isso todo o
mundo sabe, é uma capororoca”. – “Certo – dizia Rambo – mas sabes o
nome em latim?”. Eu ficava sempre em apuros. Como saber o nome em
latim de uma árvore que todo gaúcho conhece e chama de capororoca? Eu
sabia que dava um bom moirão. Mas o nome em latim? Rambo, sem per-
der a paciência, continuava: “A árvore comumente chamada de capororoca
pertence à família das leguminosas e o nome latino, de acordo com a classi-
ficação de Lineu, é Dialium divaricatum. Não é frequente vê-la em flor. Este
aspecto coriáceo das folhas é para protegê-la da seca e do calor do sol”. E
Rambo ia, com um canivete em formato de gancho, como aqueles usados
pelos gringos nos vinhedos de Caxias e Bento Gonçalves, cortando galhos
com folhas e flores que considerava mais típicos e, por isso, interessantes.
Isso feito, abria a bolsa de colecionador que trazia sempre a tiracolo e deli-
cadamente acomodava os galhos coletados entre folhas de papel jornal. No
fim do dia, todo o conteúdo daquela bolsa ia para as prensas de madeira, em
anterior próxima
sumário
que plantas entremeadas de papel jornal eram prensadas e por muitos dias
ficavam secando à meia sombra.
anterior próxima
sumário
teria criado, uma por uma, todas as espécies de plantas e animais. As es-
pécies seriam então fixas e imutáveis; seriam ainda hoje assim como eram
desde o começo dos tempos. Essa teoria está errada, ensinava Rambo,
por dois motivos, um científico, o outro teológico. O motivo científico
consiste no fato de que, pelo menos desde Charles Darwin, sabemos que
as espécies não são fixas e que uma descende da outra por mutações e por
seleção natural; a teoria científica, dizia Rambo, é clara, é convincente e
corresponde aos fatos da arqueologia e das ciências de hoje, que compro-
vam claramente o curso da evolução. E sorrindo acrescentava: contra facta
non valent argumenta. E a teoria criacionista, defendida pela esmagadora
maioria dos pensadores católicos? Rambo respondia: “Trata-se apenas de
uma metáfora bíblica, que deve ser substituída, tão logo o possamos, por
conhecimento científico. E, afinal, tu achas que Deus, podendo criar, isto
é, pôr em Movimento uma Teoria da Evolução que explica tudo, ia se dar
ao trabalho de manufaturar espécie por espécie, uma por uma, de todas as
plantas e de todos os animais? Deus é sábio e, por isso, ao invés de criar
espécie por espécie, num trabalho insano, criou as regras de um processo,
processo esse que pôs em Movimento e que engendrou a evolução, que
explica plantas e animais de maneira muito mais simples que a teoria cria-
cionista”. Numa época em que os evolucionistas ainda eram condenados
como hereges por várias igrejas, Rambo, impávido, defendia a Teoria da
Evolução. Até hoje admiro a sabedoria de seus superiores jesuítas e a
prudência dos bispos locais das décadas de 40 e 50 do século passado,
que não obrigaram Rambo a algum tipo de silêncio obsequioso. Rambo falava
abertamente e defendia sem subterfúgios a Teoria da Evolução. Chegou,
assim, também ao pensamento ecológico.
“Hans, ouvi dizê-lo a um colono da serra gaúcha, não corta aquelas ar-
vorezinhas à nascente e à beira do arroio. Se cortares essa vegetação, o
arroio vai definhar, ficar sujo e depois morrer. E tu, Hans, ficarás sem
água. Conserva aquele matinho porque é dele que vem a água que tua
mulher põe no feijão, é dele que vem a água que irriga toda a tua planta-
ção. Hans, todas as coisas na Natureza estão interligadas; mexendo errado
numa, tu podes destruir tudo que construíste com tanto esforço”. Eu
estava presente e vi Hans primeiro aborrecido por não poder aumentar
sua plantação de milho, depois, o vi ficar pensativo e finalmente entender
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
de sessenta anos depois, ainda leio, uma vez por ano, na edição bilíngue,
a Ilíada e a Odisseia. Rambo me ensinou, junto com a atitude de pesqui-
sador das ciências empíricas, a necessidade da formação clássica. Aprendi
que era preciso ler todos os clássicos, de Homero até aqueles ingleses e
alemães contemporâneos que, ao fazerem a fundamentação da Matemáti-
ca, estavam construindo uma nova Filosofia. Tratava-se – hoje o sei – de
Frege, Bertrand Russel e Wittgenstein.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Há duas facetas de Rambo com as quais tive um breve contato, mas que
conheço muito superficialmente. O Rambo místico, que escrevia, em có-
digo, seus diálogos com Deus e o Rambo popular, que escrevia em Plat-
tdeutsch – o dialeto falado na colônia alemã – as mais divertidas histórias
e contos.
Mas já que foi publicado, levanto aqui duas questões que hoje são muito
atuais na Igreja Católica. Rambo algum dia foi pedófilo? Cometeu um, ao
menos um, ato de pedofilia? A resposta é um sonoro não. Nunca. Rambo
jamais se aproximou de um jovem a não ser como sacerdote e professor.
Segunda questão: Rambo obedeceu fielmente a seu voto de castidade?
Ou teve uma vez que seja uma relação sexual com uma mulher? A respos-
ta é igualmente dura: Nunca. Rambo morreu virgem, como ele mesmo
escreve no diário secreto que ele pensou que jamais seria decodificado.
Quanto à primeira parte, quanto à inexistência de toda e qualquer pedofi-
lia ou atração pedófila, palmas e mais palmas. Um verdadeiro professor e
mestre jamais iria ferir seus discípulos e distorcer a psique de seus alunos.
anterior próxima
sumário
Quanto ao segundo ponto: Rambo nunca teve relação sexual com uma
mulher. Palmas e palmas porque Rambo cumpriu seus votos do começo
até o fim, fez exatamente aquilo que prometeu. Fica apenas a pergunta:
tais votos são bons votos? Mas essa não é uma pergunta para Rambo e
sim para toda a Igreja Católica, que até hoje cultiva um profundo despre-
zo por tudo que é feminino e declara pecado quase tudo que é sexo. E
a Virgem Maria? Exceção, ela é só exceção que confirma a regra. Sobre
as restantes partes do diário de Rambo seja-me permitido calar. O ho-
mem que ali aparece é o mestre, o educador e pesquisador, consequente
até o fim, homem sujeito a todas as tentações como nós, mas que – em
oposição a nós – impávido, sempre venceu e superou aquilo que julgava
serem fraquezas humanas. Rambo, anos depois, foi encontrado morto em
sua mesa de trabalho. Não se queixou, não ficou doente, não foi para o
hospital. Morreu, simplesmente morreu. Morreu como vivera: impavidum
ferient ruinae.
Certo dia, logo depois daquela conversa sobre o céu e a Jerusalém Celeste
– seriam uma chatice? – sentados à sombra de uma majestosa figueira e
comendo linguiça, que um colono amigo nos dera, a conversa se deslocou
para algo que para mim era muito importante: Qual conselho é realmente
válido a ser seguido? Contei todo o caso ao Rambo, que ouviu tudo, sem
nunca me interromper, pois percebera a relevância existencial que aquilo
tinha para mim.
anterior próxima
sumário
a caneca e ficava um café com leite cheio de espuma, gostoso que nem
pecado. A gauchada chamava aquilo de camargo e era a nossa primeira
refeição do dia. Lá pelas oito, havia pão feito em casa, café com leite,
charque desfiado e farofa. E aí laçávamos na mangueira os cavalos que ía-
mos montar, púnhamos o buçal, o cabeçalho com as rédeas e os freios, o
enxergão, os arreios, a cincha, os pelegos, o laço e o avio de creolina para
curar bicheira. Em cima do serigote, como todo o mundo sabe, vem a cin-
cha bem apertada, dois ou três pelegos e depois a sobrecincha. Essa era
a rotina do Padre Rambo. Mas um dia apareceu de visita nosso vizinho,
o Joaquim Jacques, herdeiro daqueles Jacques que há mais de duzentos
anos são fazendeiros nos pampas gaúchos. Ele era um jovem garboso. O
cavalo era um puro sangue, os arreios, uma obra de arte de couro com
enfeites de prata. Fiquei todo bobo. E estouvado e impertinente que era,
pedi a Seu Joaquim se podia me emprestar, para o dia, a badana de couro
veado campeiro. Badana é aquele último couro que se põe por sobre os
pelegos, para não ficar tão quente, mas principalmente para a belezura.
Joaquim riu e disse que me emprestava a badana, mas que eu fosse cuida-
doso porque ela era de couro de veado e toda trabalhada à mão.
Sorrindo o sorriso dos tontos, peguei a badana e a joguei por sobre meus
pelegos velhos e saí a galope, faceiro. Trabalhamos, a gauchada toda, pa-
rando rodeio e curando bicheiras. Mas aí veio um toró daqueles de molhar
lambari embaixo d’água. Serenou, mas uma hora depois veio outro toró
com mais água ainda. Não dava para trabalhar e assim voltamos molha-
dos até o fundo da alma para a sede da fazenda. Ao desencilhar meu ca-
valo, percebi que a preciosa badana de seu Joaquim estava completamente
encharcada. Ela pingava água.
Sem saber o que fazer para secar a badana, perguntei a um gaúcho velho,
daqueles que viram tudo e sabem tudo. “Seu Tonico, o que eu faço para
secar esta badana que não é minha? Ela tem que ficar como nova!”. A
resposta foi clara e parecia sensata: “Ora, torça ela bem para tirar a água e
depois bota ela em cima daquela taipa para secar ao sol.” Segui o conselho
do seu Tonico e fiz exatamente o que ele mandou.
Quando, horas depois, fui buscar a badana, ela estava dura que nem uma
tábua. Fiquei desesperado. O que fazer para transformar aquela tábua de
anterior próxima
sumário
Meu avô e Seu Joaquim caíram na maior gargalhada. Parecia que não iam
nunca mais parar. Meu avô se virou, então, para Seu Joaquim e disse: “Joa-
quim, semana que vem vou à cidade e te compro uma badana mais bonita
ainda.” Joaquim agradeceu, olhou para mim e disse: “Muitos cozinheiros
estragam a sopa”.
anterior próxima
sumário
Contei toda esta longa história para o Padre Rambo, que ficara todo o
tempo calado, e perguntei mais impertinente do que nunca; “Se nunca sei
se um conselho é bom ou ruim, como é que vou saber se os conselhos do
senhor são bons? Como é que vou saber se é esta ou aquela a interpreta-
ção da Bíblia que está certa?”.
Rambo olhava para a figueira e não dizia nada. Parecia que ele não estava
me ouvindo, que estava apenas olhando os frondosos galhos da árvore
majestosa. O céu azul, azul, como só aqui no Sul ele fica azul. Pássaros
voando, cigarras cantando, um lagarto grande nos olhando por detrás de
um cupinzeiro. Rambo olhava a figueira e, concentrado, não dizia nada.
Depois de longo silêncio, voltou-se para mim e disse: “Queres de saída
saber tudo, guri? Tua história da badana encerra um dos mais difíceis
problemas da Filosofia. Queres saber distinguir o bom conselho do mau
conselho. Queres, no fundo, saber o que é Verdade e o que não é Verdade.
Achas a pergunta fácil? Pois é uma das mais difíceis questões de toda a
Filosofia. Pilatus já perguntara a Cristo: O que é a Verdade? Bem, guri,
vou tentar te explicar, passo por passo, o que é a Verdade, pelo menos
quanto eu mesmo a entendi. ‘A figueira é verde’ é uma frase que eu digo.
Para saberes se ela é uma frase verdadeira, tens que olhar a figueira e ver
se ela é de fato verde; podia estar morta e ser de cor cinza escuro. Olha,
olha bem e vais verificar que esta figueira aqui é verde, é viçosa, tem
frutinha. Compara então a frase que eu disse: ‘A figueira é verde’, com
a realidade objetiva da figueira para a qual estás olhando e constatas que
frase está dizendo exatamente aquilo que de fato é. A figueira verde. Os
antigos chamavam isso de correspondência do intelecto com a coisa. Mas,
sejamos bem honestos, o que é correspondência? Não me contive: ‘Cor-
respondência é o fato que à figueira verde pensada e falada corresponde
uma figueira verde real e existente’”.
anterior próxima
sumário
os teus olhos e teu intelecto que te dizem o que é a figueira e que a figueira
pensada corresponde à figueira real. E se teus olhos te enganarem? Não
pensaste muitas vezes ver coisas que de fato são diferentes do que pare-
cem ser ou até não existem? A Verdade muitas vezes é a correspondência
entre a coisa pensada e a coisa real, mas nem sempre; não temos critérios
para dizer onde nos enganamos. Viste, voltamos ao ponto de partida:
Não temos critério para separar o verdadeiro e o não verdadeiro”.
“Honestamente não sei. A coisa está ficando muito complicada para mim”.
– “Não é tão complicado assim. Como é que sabes que um poço tem água?
Pega uma corda e um balde e vê se consegues tirar água; se consegues, o
poço tem água. Como é que sabes que um auto está funcionando? Entras
lá dentro, ligas a chave e ouves se o motor arrancou; botas na primeira mar-
cha, na segunda e na terceira. Fazes uma voltinha pela estrada e voltas. Me
entregas as chaves e dizes: Padre, o auto está funcionando. É Verdade que
o auto está funcionando, o auto está funcionando de Verdade. Mas isso é
uma Verdade apenas parcial, uma Verdade em parte. A estrada poderia ter
um buraco e aí tu não conseguirias voltar, e o auto estaria todo estragado.
Repara: Para que uma coisa seja verdadeira, ela tem que funcionar, ela tem
que estar – como dizem os filósofos – em Coerência consigo mesma, mas
também em Coerência com todo o meio ambiente. Esta figueira verde, por
exemplo, que sabemos ser verdadeira, seria ainda mais verdadeira se aquele
arroio logo ali embaixo não existisse?”.
“Mas, Padre Rambo, tudo está de certo modo interligado com tudo. E tu
mesmo nos ensinaste que se a gente mexe num átomo, todos os átomos
do Universo se mexem também um pouquinho”. “Verdade, pura Verda-
de. Percebeste agora por que é tão difícil dizer se uma coisa é verdadeira.
Precisamos em cada caso examinar a inserção daquela coisa em seu meio
ambiente, na Mãe Terra e, finalmente, no Universo. verdadeiro é sempre
somente o todo do Universo. Por isso só Deus é verdadeiro”.
anterior próxima
sumário
-”E nós, então, somos o quê? Não é Verdade que estamos embaixo desta
figueira?”. – “Isso é Verdade sim, parte pequena da Verdade. A Verdade
realmente verdadeira é somente o Todo”.
anterior próxima
sumário
“Vou para lá, disse eu, quero estar lá”. “Mas será que aguentas? Não é
melhor voltar para a cama e descansar como o médico mandou?”. “Não,
irmã, eu vou!”. E meio trôpego, com a enfermeira ao meu lado me segu-
rando, comecei a caminhar em direção à capela. A nave estava comple-
tamente cheia. A missa já havia começado. Lá na frente, perto do altar,
estavam os três caixões com os corpos de meus colegas: Rüdiger, Ribeiro,
Miotto. Dos meus colegas feridos, nenhum estava lá; nenhum podia sair
da cama. Eu fiquei sentado na ponta do último banco, ainda meio tonto.
Todo o mundo se virava e ficava olhando para mim, desgrenhado, imun-
do, cheio de sangue.
Voltei devagar para trás, para o último banco, e Rambo me disse no ouvi-
do: Impavidum ferient ruinae. Só então os outros presentes se levantaram e
foram, em fila, para a comunhão.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Fichte e Hegel
O projeto de Filosofia que norteou todos os esforços filosóficos de Fi-
chte, Schelling e Hegel encontra-se traçado com linhas claras e fortes no
livreto de Fichte intitulado Sobre o Conceito da Doutrina da Ciência ou da as-
199 CIRNE LIMA, C. R. V. Depois de Hegel. Uma reconstrução crítica do Sistema Neoplatônico. Obra Completa
- Filosofia como Sistema – O Núcleo. Porto Alegre: Ed. Escritos. 3 vol. 2017.
200 HEGEL, G.W.F. Werke in zwanzig Bänden. Edit. MOLDENHAUER, E.; MICHEL, K. M. Suhrkamp: Frankfurt
am Main, 1983, 5 vol., p.67. Cf. ibidem: Logisch ist der Anfang, indem es im Element des frei für sich seienden
Denkens, im reinen Wissen gemacht werden soll.
201 Cf. p.ex. Depois de Hegel, Obra Completa - Filosofia como Sistema – O Núcleo. Porto Alegre: Ed. Escri-
tos. 3 vol. 2017.
anterior próxima
sumário
sim chamada Filosofia (1794, 1802)202. Sabemos todos que o termo Doutrina
da Ciência não esconde nenhuma entidade ou Ciência desconhecida, pois
significa simplesmente aquilo que a tradição chama de Metafísica, ou, se
quiserem, de Filosofia Geral. Ao defender a posição nacionalista de que
a Filosofia deveria abandonar o latim e passar a ser lecionada e escrita na
língua do país, no caso em alemão, Fichte se sente na obrigação de evitar
a palavra Metafísica e introduz o termo Doutrina de Ciência.
Nos vários textos sobre a Doutrina da Ciência (1794, 1795, 1997, 1801,
1804, 1813), Fichte elabora e expõe o projeto de Filosofia, que será de-
terminante para os esforços sistemáticos de Schelling e Hegel e – apesar
de Nietzsche e dos pós-modernos – também para os de alguns poucos
filósofos contemporâneos, entre os quais eu me incluo.
Fichte começa afirmando, com o que todos concordam, que a Filosofia é uma
Ciência. Como Ciência, ela se compõe de múltiplas sentenças articuladas por
um princípio de ordem, de maneira que a Verdade de uma sentença provenha
da sentença que a antecede cientificamente. A Verdade da segunda, terceira
e posteriores sentenças é legitimada e garantida pela primeira sentença, ou
seja, aquela que sistematicamente antecede todas as outras e da qual todas as
outras provêm. Essa derivação da segunda sentença a partir da primeira cha-
ma-se dedução. É a Verdade da primeira sentença que fundamenta e garante
a Verdade das sentenças que dela forem deduzidas. O método por excelência
da Ciência é, pois, o método dedutivo, como já os gregos o praticavam na
geometria. Tanto a forma como o conteúdo de uma Ciência dependem, por-
tanto, de um ou de alguns poucos axiomas que são verdadeiros e dos quais se
deduzem todas as outras sentenças daquela Ciência.
anterior próxima
sumário
Sabemos que Fichte, incansável, várias vezes tentou deduzir toda a Fi-
losofia a partir de seus três primeiros princípios (o Eu, o Não Eu, o Eu
quantitativo); as tentativas de elaborar uma Doutrina da Ciência, todas elas,
fracassaram. Fichte, com seu admirável espírito crítico, percebia que havia
um erro na dedução por ele elaborada e deixava o trabalho inconcluso. É
por isso que nós, quando queremos citar alguma passagem da Doutrina da
Ciência, sempre temos que acrescentar o ano: Doutrina da Ciência, de 1794
ou 1804, etc. Fichte morreu sem ter conseguido escrever uma Doutrina da
Ciência que satisfizesse às rigorosas exigências de dedução que ele mesmo
havia formulado em seu projeto de Filosofia.
anterior próxima
sumário
tal puro Pensar, entretanto, exatamente por ser pensar, precisa pensar algo.
Este algo, entretanto, para não poluir a pureza do pensar, não pode ter, por
igual, nenhuma determinação. Ora o puro Pensar, para permanecer puro e
não obstante pensar, só pode ter como objeto o puro Ser vazio de todo e
qualquer conteúdo. Assim, o começo da Ciência pelo pensar começa com
o puro Ser, vazio de todo e qualquer conteúdo, sem nenhuma determinação
que o determine ulteriormente. Ao pressupor o puro Pensar e o puro Ser, não
estamos fazendo nenhuma pressuposição determinada, pois Pensar e Ser não
têm conteúdo nenhum. Se tivessem algum conteúdo, teriam alguma determi-
nação, e nós estaríamos a fazer um pressuposto determinado; ou seja, tería-
mos caído no dogmatismo. Mas quem pressupõe apenas o puro Ser, vazio,
sem nenhum conteúdo e sem nenhuma determinação, não está pressupondo
nada. Melhor: nada de determinado. Este puro Nada, sem nenhum conteúdo,
sem nenhuma determinação que o diferencie ulteriormente, diz apenas aqui-
lo que o puro Ser também diz: o indeterminado vazio. Este é, segundo Hegel,
o começo da Filosofia como Ciência crítica.
anterior próxima
sumário
Hegel tenta abrir um novo caminho para, a partir do puro Ser sem ne-
nhum conteúdo, obter ulteriores categorias de dentro do próprio começo
totalmente indeterminado. O puro Ser, mas também o puro Nada são
vazios de conteúdo, não contêm nenhuma determinação e, sob esse as-
pecto, são idênticos e não se constituem em pressuposto dogmático do
Sistema208. Mas o Ser e o Nada, por outro lado, se opõem e são diferentes,
pois o Ser tem como conotação o Vir-a-ser; o Nada conota o Deixar-
de-ser. O puro Ser e o puro Nada são intencional e extensionalmente
idênticos, mas possuem conotações opostas, o Movimento (Bewegung)209.
Vir-a-ser é o oposto de Deixar-de-ser. Ora, se Ser e Nada são idênticos,
por dizerem apenas o indeterminado vazio, e se Vir-a-ser e Deixar-de-ser
são opostos, temos aqui uma oposição de contrariedade que precisa ser
conciliada numa unidade. Se Ser e Nada são o mesmo (sind dasselbe210),
então Vir-a-ser e Deixar-de-ser também têm que ser o mesmo. Como? De
que maneira, como, onde Vir-a-ser é o mesmo que Deixar-de-ser? Hegel
responde, aliás, com toda Razão, no Devir (Werden). O Devir consiste
exatamente naquilo que vem a ser e que deixa de ser.
Parece que Hegel está nos dando exatamente aquilo que prometeu: de-
duzir de forma estrita a terceira categoria a partir das duas primeiras. A
“dedução” que Hegel faz do Devir é simplesmente brilhante. E, tendo
a categoria de Devir, temos também a categoria da Qualidade que de-
vém, bem como da Quantidade pressuposta em todo Devir, e também
da Medida que une e unifica Qualidade e Quantidade. Eis as principais
categorias da Lógica do Ser deduzidas, ao que parece de maneira estrita,
a partir do puro Pensar e do puro Ser, sem nenhuma determinação ou
conteúdo.
anterior próxima
sumário
Façamos a tentativa de explicitar, ponto por ponto, o que Hegel quer di-
zer com esta frase muito importante, mas pouco didática; como exemplo
tomemos a primeira tríade, Ser, Nada e Devir.
anterior próxima
sumário
A sentença lógica, segundo a qual Todo negativo também é positivo, e que estes
dois opostos contraditórios não se dissolvem em zero, no nada abstrato, mas
tão somente na negação determinada. Tomando o Ser como princípio
e como primeira categoria do Sistema, para “prosseguir” e para
“deduzir” a segunda categoria, é necessário, primeiro, procurar
e pôr a negação da primeira categoria. Ora, a negação de Ser é
Nada. Como segundo passo, pois, é preciso compreender que Ser
e Nada não se dissolvem no zero, no “nada abstrato”. Sim, Ser e
Nada não têm inicialmente nenhum conteúdo determinado, mas
ambos se opõem e não se dissolvem num jogo de soma zero. Pois,
Ser e Nada, embora sejam vazios de conteúdo determinado, isto
é, embora tenham como conceitos uma intenção e uma extensão
universalíssimas – que é o indeterminado vazio –, por um lado são
idênticos, por outro, não. Por sua extensão e extensão, os concei-
tos de Ser e Nada são idênticos e dizem o indeterminado vazio de
conteúdos. Se parássemos aqui, o Sistema ficaria travado e não ha-
veria nenhum prosseguimento. O Ser e o Nada ficariam escravos
dos conceitos de Parmênides.
Mas, se entendermos – e isso é uma pressuposição ulterior que vem
da experiência interna e externa da consciência – que Ser e Nada es-
tão numa relação dinâmica, tudo muda. De Parmênides passamos a
Heráclito. O Ser e o Nada adquirem, então, conotações opostas, sem
as quais não se pode falar nem de um nem do outro. Ser é sempre e
necessariamente Vir-a-ser; Nada é Deixar-de-ser. Estamos, neste pa-
tamar da argumentação, naquilo que Hegel chama de dois opostos
contraditórios, eu chamo de opostos por contrariedade. Estes opos-
tos, afirma Hegel com toda Razão, não são um jogo de soma zero,
não conduzem ao zero, não levam ao “nada abstrato”. Não é isso.
A oposição entre Ser e Nada, entre Vir-a-ser e Deixar-de-ser – que
Hegel chama de Contradição e que eu denomino de contrariedade
– se unem (Einigung), se conciliam (Versöhnung) e, deixando de ser
um par de opostos que se excluem, transformam-se numa unida-
de que, unindo aquilo que antes era oposto, agora restabelecem a
unidade. Ora, qual conceito de nossa língua expressa ao mesmo
tempo o Vir-a-ser e o Deixar-de-ser? O conceito de Devir. É por
isso que a síntese Dialética entre Ser e Nada é o Devir, que signi-
fica tanto o que Vir-a-ser como o que Deixar-de-ser. Os aspectos
opostos foram superados em sua oposição excludente e conserva-
dos naquilo que eles tinham de positivo.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Cajetanus e Suarez
A questão que nos interessa é a de saber se as ulteriores determinações do
Ser vêm de dentro ou de fora do Sistema. Cajetanus e Suarez tratam do
assunto no contexto do problema da analogia entis. Ambos se reportam,
como logo veremos, à doutrina de Tomás de Aquino.
O conceito de Ser (ens), afirma Tomás, não pode ser predicado no mesmo
sentido de Deus e da criatura. O Ser de Deus é tão mais perfeito que o Ser
da criatura que podemos, inicialmente, pensar que se trata de conceitos
equívocos, ou seja, com intenções e extensões completamente diferentes;
conceitos unívocos eles certamente não podem ser. Mas há alguma alter-
nativa que se situe entre a univocidade e a equivocidade de um conceito?
Tomás e os que o seguem dizem que sim, a saber, a analogia. O conceito
de Ser é predicado de Deus e da criatura, mas não de forma unívoca ou
equívoca, e sim de forma análoga. Analogia, no Aquinate, é a predicação
que, em oposição à equivocação e à univocidade, se faz secundum prius et
posterius212. O que significa isso? Significa que o conceito análogo é pre-
dicado primeiramente e em seu sentido pleno e original de um primeiro
sujeito (prius); do segundo sujeito (posterius) o conceito análogo é predica-
do somente de forma derivada e incompleta. Assim, a saúde é predicada
per prius do homem, a urina, porém, é predicada per posterius. Do homem
se predica o conceito de saúde ou de saudável no sentido primeiro, pleno
e original; da urina o mesmo conceito é predicado, mas em um sentido
derivado e incompleto. A urina é saudável, sim, mas o conceito de saúde
212 AQUINO, T. Summa Theologica. Org. COSTA, R.; DE BONI, L.A., editora E.S. Teologia S.Lourenço de
Brindes, Livraria Editora Sulina, Univ. Caxias do Sul, pars I, q. 13, a. 6. Cf. também os comentários de Tomás
à Metafísica e à Ética de Aristóteles.
anterior próxima
sumário
aqui não possui mais o sentido pleno e original que tem, quando aplicado
ao homem. A urina é saudável porque e enquanto provém de um homem
saudável, ela é a expressão da saúde do homem que, ele, sim, possui saúde
no sentido original.
213 CAJETANUS, T. C. De Nominum Analogia, 4-7, in: Opuscula omnia, Olms: Hildesheim, 1955.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Que Fichte e Hegel tinham isso por ideal a ser realizado, por meta
a ser alcançada, está fora de dúvida. Está também fora de dúvida
que autores clássicos da Escolástica aristotélico-tomista, bem antes
deles, tinham o mesmo programa. Também está fora de dúvida que
nem Cajetanus, nem Suarez, nem Fichte conseguiram atingir a meta
que se propunham. De Fichte, aliás, sabemos como ele sempre de
novo tentava e, em sua honestidade intelectual, verificava que não
conseguia continuar a dedução. Hegel é bem mais obscuro; que eu
saiba, ele nunca escreveu que a dedução das categorias da Lógica era
impossível. Mas já na Filosofia do Direito, livro escrito e revisado por
ele mesmo, Hegel pressupõe claramente a impossibilidade de deduzir
todas as figurações da Filosofia Real, como, por exemplo, no capítulo
sobre os contratos. Deste modo, volta a questão central deste traba-
lho: é possível deduzir a priori todas as ulteriores determinações do
Ser? Pode-se ter como meta a ser perseguida uma estrutura lógica à
semelhança da fundamentação da Matemática feita por Whitehead e
Bertrand Russel no Principia?
216 KLUXEN, W. Verbete Analogie. In: RITTER, J. et alii Historisches Wörterbuch der Philosophie. Schwabe:
Basel/Stuttgart, 1971, 1 vol., Spalte 225.
anterior próxima
sumário
Conclusões
É singular que autores tão diversos e tão espaçados no tempo tenham
dado a mesmíssima resposta ao mesmo problema. Segundo os autores
acima expostos, é, sim, possível deduzir do Ser inicial suas ulteriores
determinações. A esta resposta positiva contrapõe-se o fato inegável
de que ninguém, até hoje, tenha conseguido fazer a dedução almejada.
Após poucos passos, toda a construção entra em colapso e precisamos
buscar “de fora” as determinações necessárias para o prosseguimento
da tarefa.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
218 Em Depois de Hegel, via de regra, utilizamos o termo dedução no sentido escrito e expomos, assim,
o mesmo ponto de vista que os lógicos. Cf. verbete dedução de SÀÁGUA, J. in: (org. BRANQUINHO,
J.; MÚRCIO, D.; GOMES, N.G.) Enciclopédia de Termos Lógico-filosóficos. Martins Fontes: São Paulo, 2006,
p.229-238.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
CDs didáticos, mas eles ainda estão em construção e não têm o aspec-
to artístico como tem esse CD-ROM que realizamos. Comparando em
âmbito internacional, esse CD-ROM tem como concorrência artísti-
ca e em profundidade, que eu saiba, apenas o CD-ROM do Stephen
Hawking, sobre a Breve História do Tempo. O livro, com o mesmo título,
foi colocado em forma de CD-ROM pelo Scientific American e esse CD
-ROM americano, traduzido para o alemão, pelo menos, é uma aula que
corresponde ao livro, mas é mais complicado do que o meu. Os artistas
Maria Tomaselli e Maurício Santos conseguiram dar um nível artístico
fantástico ao CD-ROM. Levaram cerca de sete anos trabalhando, três
horas a cada noite.
Cirne Lima: Ele tem três partes: a primeira é uma introdução geral à
Filosofia, principalmente da Dialética, com base na Filosofia grega. Nessa
primeira parte, são expostos e discutidos os Sistemas filosóficos, princi-
palmente de Platão e Aristóteles. Na segunda parte, são discutidas a es-
trutura e as objeções que foram levantadas contra a Dialética no mundo
da modernidade.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Cirne Lima: O CD-ROM foi testado por colegas meus da UFRGS. Po-
demos dá-lo sem dizer nada para um rapaz de 14 anos, que está interessa-
do em Filosofia. Ele fará tudo sozinho: entra, navega e acha muito bom
e bonito. O adulto talvez tenha muito menos facilidade de navegar pelo
CD-ROM e de aprender do que o jovem, porque o CD-ROM fala a Lin-
guagem do jovem. Colocar Aristóteles com um controle remoto na mão
pode deixar alguns adultos ofendidos. Outros poderão achar ridículo. O
garoto de 15 anos vai achar fantástico. Ele sabe que Aristóteles não tinha
controle remoto, mas vai achar o máximo que, com o controle remoto, ele
está lá abrindo vários caminhos. Essa é a Diferença de Linguagem de um
livro técnico para um livro mais acessível e para o CD-ROM.
A Dialética e a historicidade.
A segunda grande coisa é que a Dialética usualmente desemboca em to-
talitarismo, porque elimina a verdadeira historicidade. Então, tinha que
ser corrigida a Dialética de Hegel, de Marx e dos anteriores, para que a
historicidade voltasse em seu pleno valor, porque em Marx, por exemplo,
a historicidade legítima não existe, nem em Hegel. As leis da História são,
segundo eles, inexoráveis, e é por isso que os velhos marxistas achavam
que a revolução vinha de forma inexorável, porque segue as leis inexo-
anterior próxima
sumário
O esmagamento do indivíduo.
O terceiro erro, que tinha que ser corrigido, é que a Dialética provoca um
esmagamento do indivíduo. Isso é o que vimos na União Soviética e que
ainda se vê hoje na parte chinesa, que ainda é marxista. Todos os chineses
têm roupa igual, rosto igual, de maneira que o indivíduo é esmagado em
benefício do coletivo. Isso é uma ideia errada dos dialéticos desde Platão
até Hegel e Marx.
Cirne Lima: As divergências que havia são essas três objeções, motivo
pelo qual, desde a Antiguidade, a árvore da Filosofia se divide em dois
grandes galhos: a corrente Dialética, que no começo é muito forte e de-
pois vai ficando mais fraca, principalmente nos últimos 200 anos, e a
corrente aristotélica, que depois vai entrar em Thomás de Aquino e na
Igreja Católica, e no século passado e atual, desembocou na Filosofia
Analítica. Hoje, essa segunda corrente da Filosofia, a Analítica, é muito
mais numerosa do que a Dialética. E não há diálogo entre uma e outra,
porque esses três grandes problemas não foram tratados de uma maneira
correta. E eu trato esses problemas, que são dialéticos, mas usando uma
Linguagem Analítica. Então, os analíticos dizem: “se é assim, não temos
nada contra”. É quando aproximamos as duas correntes.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
de por concurso público, porque iriam dizer que isso é bom jornalismo,
talvez até pedagogicamente muito bom, mas carece do cunho científico.
E sobre a expressão “cunho científico” eles entendem termos técnicos,
citações, etc.
anterior próxima
sumário
A primeira dessas críticas é a mais séria de todas: que Hegel nunca deu o
devido valor e importância para a contingência ou, em outras palavras, a
facticidade das coisas nesse mundo e, portanto, da História. Aquilo que
hoje Habermas chama de facticidade (o termo técnico é contingência), é
aquilo que pode ser e pode não ser, mas de fato é. Hegel tem a tendência
anterior próxima
sumário
muito forte de dizer que tudo que é a rigor tinha que ser. Ele nunca escreve
isso com essa força, com esse descaramento. Ele não é bobo... Inclusive
no começo da Filosofia do Direito, Hegel pressupõe claramente o mundo
contingente em que podemos e devemos fazer os mais variados contratos.
Esse é um lugar em que Hegel respeitou a contingência do mundo. Mas,
em muitos outros lugares, ele parece negar mais e mais a contingência do
mundo. Num texto importante, que tem como título A Razão na História,
que é a introdução à Filosofia da História de Hegel, ele escreve “para entender
a História é preciso afastar a contingência”. E a objeção que Schelling faz,
e depois repetida por muitos outros contemporâneos que trabalham sobre
Hegel, é que, embora ele tenha e fale sobre a contingência em vários lugares
e tenha certa importância, nas grandes linhas do Sistema, ela é negligencia-
da. Ela não recebe a importância que deveria ter, de sorte que a História
já em Hegel adquire um caráter necessitário, o que vai provocar o grande
erro de Marx de que a História é inexorável e que, portanto, a revolução
comunista é um momento inexorável da História, que necessariamente vai
acontecer. Esse é o primeiro grande erro de Hegel. Ele não foi suficiente-
mente claro em dar ênfase para a facticidade da História.
anterior próxima
sumário
e é impossível que ambos sejam falsos. Ora, em Hegel, tese e antíteses são
falsas, e isso é possível na contrariedade, mas não é possível na Contradição.
Daí então se coloca a minha correção em Hegel e dizer que quando ele fala
em Contradição, entenda-se contrariedade.
Professor, e após essas duas correções que o senhor sugere, como se po-
deria chegar a um conceito complexo de Identidade e no que ele impli-
ca em termos de uma ponte com o conceito de complexidade, Teoria da
Evolução, Caos e Sistemas?
Cirne Lima: No meu último livro, Depois de Hegel, toda a parte final trata
sobre a Teoria de Sistemas, Evolução e Complexidade. A partir do Sistema de
anterior próxima
sumário
Hegel, com as duas correções que indiquei, além de mais uma que outra mo-
dificação, eu desemboco na Teoria da Evolução e de Sistemas, que é a Teoria
da Complexidade. Isso, em Hegel, vem do conceito de Identidade, pois ela
mesma é complexa. Então, x = x vale apenas para um lógico. Quando Hegel
diz que x é idêntico a x, ele não está dizendo apenas que x = x. É por isso que
no meu livro está escrito que na fórmula x = x há Identidade Dialética de x e
de x. A Lógica implica nisso. A Identidade Dialética é diferente do x = x, pois
ela contém a oposição. Na Identidade simples, o pai é o pai, e tu podes esque-
cer completamente o filho. Na Identidade Dialética se está falando sempre do
pai e do filho ao mesmo tempo, portanto da filiação. Nessa Identidade, exis-
tem sempre dois pólos que numa primeira etapa são separados e se opõem, e
numa segunda etapa se unem, se conciliam, formando a síntese.
Identidade Dialética.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Cirne Lima: Hegel dizia que sua Filosofia não poderia ser formalizada.
Só que ele estava falando da Lógica do seu tempo. Entretanto, os seus
argumentos atingem as lógicas contemporâneas. Assim, o Soares, que é o
melhor lógico do Rio Grande do Sul, a meu convite, se debruçou sobre
o assunto e tentamos fazer a exposição da primeira parte da Lógica de
Hegel em Lógica simbólica. O que causa estranhamento é que nenhum
lógico lê nosso trabalho porque ele trata de Hegel, e nenhum hegeliano o
lê porque é Lógica. Então, nós fizemos algo que foi publicado numa re-
vista de circulação ampla e não recebemos nenhuma única manifestação,
quer positiva ou negativa. Em seguida, publiquei Depois de Hegel, e nele,
após cada capítulo, faço uma formalização. No trabalho sobre a Ciência da
Lógica, fizemos a primeira parte. Agora fiz as três partes numa Lógica mais
simples, acessível, que todos aprendem no primeiro ou segundo semestre
da Filosofia. Do ponto de vista lógico, esse trabalho é muito menos “bo-
nito”, “perfeito”, mas em compensação, mais fácil de ler para um lógico.
O texto de Depois de Hegel está muito claro, fácil de ler. Espero, num
futuro próximo, que haja uma reação maior do que aquela que tivemos
quando da formalização da Ciência da Lógica através dos dois artigos.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Mas antes, mostrando minha intenção de chegar ao núcleo das coisas, vou
começar fazendo uma exposição do universalismo iluminista. A presença
aqui desta corrente filosófica iluminista deve-se ao fato de que, quando a
gente descarta a pós-modernidade, é preciso pôr algo positivo no lugar
daquilo que foi descartado. É isso que hoje está causando o mal-estar da
anterior próxima
sumário
O que não significa que eu não tenha um grande apreço por grandes vitórias
do assim chamado Pós-Modernismo. Foram os pós-modernos que, ao grita-
anterior próxima
sumário
rem vive la différence, nos ensinaram o respeito pelo outro. Ensinaram-nos que
temos de olhar e ouvir o que o outro diz, que nós temos de abrir os olhos
para outras culturas. Em outras palavras, a pós-modernidade é um elemento
estrutural sem o qual não existe hoje universalidade. E sob este aspecto, sem
pós-modernidade também não existe nenhum universalismo iluminista.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
nenhuma mistura por 400 anos, de cabelo loiro. Porque os vândalos, que
eram povos germânicos, invadiram Portugal e se miscigenaram com a
população romana remanescente. Eu, quando criança, era completamen-
te loiro e não tenho ninguém da minha família que tenha um pingo de
sangue alemão ou nórdico.
anterior próxima
sumário
a dizer que Deus não era aquele dos bispos protestantes, foi expulso e
proibido de lecionar. Expulsaram Fichte da Universidade e ele amargou
décadas até conseguir uma cátedra em Berlim.
Tanto Fichte, como Schelling, como Hegel têm Deus em toda a parte. Nós
aqui somos divinos. E o católico, se estudou, vai saber que é participes naturae
dei “participantes da Natureza de Deus” que está aqui, porque o reino de
Deus já chegou. Isso, em Linguagem técnica, se chama hoje panenteísmo. E
eu me confesso e declaro solenemente: sou panenteísta. Acho que aqueles
que se ocupam com o problema de Deus precisam ler Nietzsche, mas não
demais. Nietzsche, com seu magnífico estilo, vai pôr em dúvida esse Deus
cristão. Uma das mais acerbas e exatas críticas contra o conceito tradicio-
nal de Deus encontra-se principalmente num lugar, na Ciência da Lógica de
Hegel. É na Ciência da Lógica que nós encontramos a mais exata e perfeita
destruição desse Deus tradicional, que é só transcendente.
Embora Hegel constantemente fale de Deus, ele não está a falar do Deus
transcendente dos judeus. Ele fala do Deus que está aqui, que nós somos,
que está entre nós. O Deus panenteísta, o Deus que está em todos os lugares.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Vocês reparem a metamorfose que era para ter sido feita na Igreja Cató-
lica e no mundo; ela consistiria na união de todos no Concílio Vaticano
Segundo. E não foi feito. Tudo que nós havíamos preparado foi paulati-
namente destruído. O Rahner, que foi para Roma como o grande “teólo-
go do concílio”, foi sendo solapado e, de repente, num passe de mágica,
o grande teólogo do concílio se chama Joseph Ratzinger, hoje Papa da
Igreja católica. E se alguém espera que nos próximos anos, se ele viver
20 anos ou 30 anos, nós tenhamos algum afrouxamento, pode abandonar
essa ilusão. O catolicismo está ficando e vai ficar mais fundamentalista do
que ele hoje é. Os protestantes já o ficaram. E os protestantes que vêm
para o Brasil dos Estados Unidos estão tão fundamentalistas que, se vocês
não se cuidam, em vez de encontrar um único diabo dentro de vocês, en-
contram dois ou três. E vai ser bem mais caro fazer a expulsão de tantos
diabos. Agora, os mencionados são os de menor importância. Eis que os
fundamentalistas americanos elegeram certo “senhor” – a palavra senhor
não cabe bem aqui – certo indivíduo chamado Bush. E este senhor Bush
anterior próxima
sumário
Mas os cacos não dão uma orientação, não nos dão pontos de apoio, prin-
cipalmente para aqueles que não têm condições de estudar tanto como nós
estudamos. E o que acontece? Esse povo começa a se agarrar com uma
enorme força a coisas totalmente ultrapassadas: fundamentalismo católico,
fundamentalismo protestante, fundamentalismo judeu e fundamentalismo
árabe, muito pior ainda. De certo, se me perguntarem o que vai acontecer,
seria uma coisa muito boa se eu pudesse responder que está em gestação
um império que vai fazer a encarnação da universalidade iluminista. Infeliz-
anterior próxima
sumário
mente, minha resposta não pode ser essa. O império, o império americano,
está tratando de problemas de óleo, de óleo no Iraque. Depois será a vez
do óleo no Iran e na Arábia Saudita. Depois será a substituição do petróleo
por energia renovável. Este império americano não é uma solução, é um
problema. A China tem tempo ainda de entrar nesse jogo. Porque não nos
enganemos. Grande parte da China tem muitos conceitos ocidentais. O
marxismo fez um bem imenso para a China. Embora ele tenha fracassado,
com toda a Razão, e existam erros que a gente pode apontar, ele fez coisas
muito boas. E com a China haverá um diálogo, mas ninguém sabe como ela
vai atuar nos próximos 20 ou 30 anos.
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
221 Os Sistemas Autopoiéticos interatuam entre si sem perder a identidade. Referem-se à ideia de auto-
poiese, introduzida por Humberto Maturana e Francisco Varela (filósofo e biólogo chileno) como uma
forma de organização sistêmica, na qual os Sistemas produzem e substituem seus próprios componentes,
numa contínua articulação com o meio (Nota da IHU On-Line).
anterior próxima
sumário
Cirne Lima: Tenho uma posição que é mais radical do que a dos meus
colegas. Aqui se pergunta pelo sujeito social. E sujeito pode aqui ter duplo
sentido: o indivíduo e o sujeito social como uma sociedade organizada. Eu
começaria com o indivíduo, que é social. Na tradição, Aristóteles tomou o
indivíduo como primeiro. E o indivíduo é social. E o social é carregado por
dois indivíduos com base em uma relação, isto é, nós temos substâncias
que são individuais, segundo Aristóteles, e, acima delas, temos uma relação,
e este é o ponto crucial, que pode ser e, eventualmente, pode não ser. Isso
significa que o social não pertence, necessariamente, a esta dimensão. Eu
defendo exatamente a opinião oposta, que é apresentada por pensadores
alemães, sobretudo por Hegel: o indivíduo singular só existe como nó de
uma rede. Isso quer dizer que sequer podemos falar do indivíduo singular,
sem que se fale simultaneamente do indivíduo social. Isso nem é possível. E
Hegel, no primeiro capítulo da Fenomenologia222, mostra que o singular sequer
pode ser pronunciado, só podendo ser apontado com o dedo. Quando se
pressupõe que o indivíduo sempre é somente um nó numa rede, se deve
perguntar, em segundo lugar, quais são os fios que amarram esse nós. Bem.
Estes fios são hoje explicados pela Teoria dos Sistemas e pela Teoria da
Auto-organização. A Teoria dos Sistemas consiste, se o expressarmos ma-
tematicamente, de seis séries de conjuntos teóricos, portanto uma grande
quantidade, que tem uma estrutura, e indivíduos no sentido da moderni-
222 Fenomenologia do Espírito, obra de HEGEL, G.W.F. publicada originalmente em 1807. No Brasil, foi pu-
blicada parcialmente na coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1980. Uma edição integral foi publicada
pela Editora Vozes, de Petrópolis (RJ), em 1997 (Nota da IHU On-Line).
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Karen Gloy: Posso fazer uma pergunta? Nós partimos do fato de que um
Sistema social é um produto emergente, isto é, você parte do individual.
Mas, com Buber226, também posso partir da dualidade, da relação eu-tu.
Primária é a família e ela já é um Sistema elementar, antes que o Sistema
social aflore.
anterior próxima
sumário
Cirne Lima: Estou de acordo com quase tudo. Converge para aquilo que
eu disse antes e o que disse Karen no final. Ela falou primeiro do indiví-
duo, da posição aristotélica, mas, em seguida, ela falou da relação eu-tu in-
troduzida por Buber, e o que eu queria propor era precisamente isso. Por-
tanto, a relação institui o indivíduo singular. Sequer posso ter o indivíduo
singular fora da relação e, por isso, a rede, e, por isso, os subsistemas. Eu
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Cirne Lima: Meus colegas não abordaram a origem da Teoria dos Sis-
temas e da Teoria do Caos. A Teoria dos Sistemas surgiu em Viena, nas
mãos e na cabeça de um zoólogo, que tinha estudado Filosofia, de nome
Ludwig von Bertalanffy227. Ele viajou ao Canadá e aos Estados Unidos
e, com outros colegas, viu que tudo isso deve ser pensado conjuntamen-
te, senão não teria sentido. Devemos lembrar que isso ocorreu precisa-
mente na época da construção da bomba atômica, e a pesquisa de ponta
teve, então, problemas que precisavam ser solucionados. E Bertalanffy e
a Teoria dos Sistemas tinham avançado muito nas pesquisas, e Küppers
trouxe agora bastantes informações a respeito. Mas Bertalanffy não é
o pai da Teoria dos Sistemas. Ele escreveu um livro sobre a Teoria dos
Sistemas cujo tema é o cardeal Cusanus228, da grande Renascença, Neo-
platônico, e que hoje ninguém conhece. Bertalanffy não apenas fez uma
longa introdução, mas também uma tradução ampliada, e só então, por
meio de Cusanus, ele entendeu o conceito de unidade. E o pensamen-
to da unidade é bem simples. Meus colegas falaram profissionalmente;
permitam-me falar bem brasileiramente. O que é um Sistema, dito de
um modo que um brasileiro possa entendê-lo? Um jogo de futebol. No
jogo de futebol, temos onze jogadores de um lado e onze jogadores do
outro, uma bola, um juiz, um campo, duas goleiras... Isso é um jogo de
227 BERTALANFFY, L.V. (1901-1972): autor do livro General Systems Theory – Essais on its Foundation and
Development. New York, 1968.Tradução francesa: Théoriegénérale des Systems: Physique, Biologie, Psy-
cologie, Sociologie, Philosophie. Paris. 1973. Publicou também The Theory of Open Systems, General Sys-
tem Yearboock. 1956. A primeira edição brasileira de Teoria Geral dos Sistemas foi publicada pela Editora
Vozes, de Petrópolis (RJ), em 1968 (Nota da IHU On-Line).
228 CUSA, N. (1401-1464): teólogo alemão. Secundou a ação dos papas na Alemanha. Foi educado com os
Irmãos da Vida Comum em Deventer, onde sofreu a influência do misticismo alemão. Estudou na Univer-
sidade de Heidelberg, foco de nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu Matemática, Direito e Astro-
nomia. Ordenado padre, teve parte notável no concílio de Basileia (1432). Foi legado pontifício, cardeal,
bispo. Viveu seus últimos anos na Itália. As obras fundamentais de Nicolau de Cusa são três: De Doctaig-
norantia, De Conjecturis, Apologia Doctaeignorantiae. As fontes prediletas e principais são o misticismo
alemão (Mestre Eckart), o Platonismo e o Neoplatonismo cristão e os autores de tendência Neoplatônica,
em geral (Nota da IHU On-Line).
anterior próxima
sumário
229 WILLIAMS, G. P.: meteorologista estadunidense, formulador da Teoria do Caos (Nota da IHU On-Line).
230 MAY, R. (1936): biomatemático australiano radicado nos Estados Unidos (Nota da IHU On-Line).
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Cirne Lima: Não estou em tudo de acordo com o que Karen Gloy disse.
Acrescentarei outros aspectos sobre a Diferença entre o antigo e o moder-
no. Segundo Platão e Plotino, por exemplo, havia uma evolução, havia um
processo, só que este processo era inverso. Em Platão e, sobretudo, em
Plotino, se partiu do Ser mais perfeito que estava bem no alto, e quanto
mais fundo se descia na pirâmide, menos perfeição havia, menos ordem,
menos necessidade. Isso hoje é precisamente o inverso. Nosso ponto de
partida não é a perfeição, o kalónkaiagatón de Platão, ou de Aristóteles; no
Timeu de Platão, não se tinha tanta certeza, já havia duas perspectivas, mas,
em seu Todo, se partia do mais perfeito para o menos perfeito, até o ínfimo.
E hoje o Movimento é praticamente inverso. Partimos de dados que são
muito simples, e esta é praticamente a definição da Teoria do Caos: formas
bem simples, se elas são suficientemente repetidas, e isso só se pode fazer
em computadores, geram imagens e estruturas de uma riqueza que sequer
se pode imaginar. E essa é, então, uma tremenda Diferença. Penso que, na
Antiguidade, havia uma evolução, só que se partia do perfeito para o im-
perfeito. Agora o invertemos e esta inversão coloca os colegas, pois eu sou
puramente filósofo, ou ante um dilema, ou ante uma solução: porque os
colegas físicos, até o século XVIII, sempre esperaram, no mais íntimo do
seu ser, que cada processo fosse reversível. E então um vienense que ela-
232 KUNH, T. (1922-1996): historiador da Ciência e epistemólogo estadunidense. Escreveu A Estrutura das
Revoluções Científicas, publicado no Brasil pela Editora Perspectiva, de São Paulo (Nota da IHU On-Line).
anterior próxima
sumário
233 BOLTZMANN, L.E. (1844-1906): matemático e físico austríaco, sistematizou o conceito de entropia,
segundo o qual há uma tendência natural de a energia se dispersar e de a ordem evoluir invariavelmente
para a desordem. Explica o desequilíbrio natural entre trabalho e calor (Nota da IHU On-Line).
234 PRIGOGINE, I. (1917-2003): cientista de origem russa. Recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1977. Na
62ª edição, de 2 de junho de 2003, IHU On-Line dedicou-lhe a editoria Memória e, dele, publicou o artigo A
Dimensão ”Narrativa” do Universo, na 64ª edição, em 16 de junho de 2003 (Nota da IHU On-Line).
anterior próxima
sumário
como tal, a dinâmica como tal, e tudo que realmente podemos observar
aqui na Terra, ocorrem em processos e no desequilíbrio. O desequilíbrio
é permanente e dinamicamente livre, quer sempre nivelar-se. Todo de-
sequilíbrio procura conquistar nivelamento e precisa ser externamente
conduzido pelo meio ambiente, compensar o desgaste e trazer energia e
matéria para este estado. Estes são os Sistemas produtivos, Sistemas de
equilíbrio podem ser estruturados ou caóticos, eles estão mortos e neles
nada ocorre; deve-se bater neles com o martelo para algo acontecer.
Nos Sistemas de desequilíbrio está a música.
anterior próxima
sumário
235 WEIZSÄCKE, C.F.F. (1912): físico e filósofo alemão (Nota da IHU On-Line).
anterior próxima
sumário
Cirne Lima: Esta é a Razão por que, segundo minha concepção, o concei-
to de Teoria dos Sistemas substituiu a Lógica, porque é uma teoria Universal
que conecta precisamente isso. Assim, então, podem, especializadamente,
ser encarados a Natureza, os não vivos, os viventes e as estruturas sociais.
Karen Gloy: Fica uma pergunta: como pode ser tudo explicado na Na-
tureza, na artificialidade, no Sistema social, segundo esta norma, uma
vez que se trata de uma estrutura cognitiva pela qual podemos interpre-
tar tudo? Chegamos, assim, ao problema da autorreferência, que é bem
complicado. E passamos para problemas de Filosofia transcendental e de
Dialética. Se, em nosso cérebro, há estruturas, pelas quais interpretamos
o mundo, tanto os animais, as plantas, o comportamento climático, as
curvas populacionais, que são construtos de nosso cérebro, poderíamos
assim dizer, estruturas epistêmicas de nosso cérebro que nós extrapola-
mos. Temos, então, um determinado construtivismo. E como devemos
constatar sua realidade?
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Cirne Lima: Não falemos dos macacos com a árvore, mas da pequena
Su, uma chimpanzé que, há 25 anos, falou com dois biólogos americanos.
A primeira vez que vi o site, ela sabia mais de 800 palavras e já dizia algu-
mas palavras: fome, arroz ou banana, etc. Já fizera uma espécie de síntese.
Por isso, penso que não queremos fazer sínteses altamente especializadas
e desmembrá-las, porque necessitamos dos elementos que estão em vá-
rios Sistemas. Creio que nós precisamos, falando antiquadamente, come-
çar com uma ontologia, ou seja, uma teoria de Sistemas e, se avançamos
bastante, levar a sério nela o subsistema “epistemologia” e retornar e tam-
bém pesquisar nossas raízes. Assim, se poderia pensar e propor uma epis-
temologia da língua alemã. Todavia, eu creio que, no começo, precisamos
iniciar com a ontologia que hoje se chama Teoria de Sistemas, na qual está
entretecida a epistemologia. Se então chegarmos tão longe que possamos
dizer: “Isto é o subsistema epistemologia, poderemos recuperá-la e trazê
-la à luz do dia”. Esta é minha posição e, quanto aos símios, tenho grande
sensibilidade por eles, e se, de repente, entra aqui um macaco e diz: “boa
tarde”, e se senta, também preciso cumprimentá-lo.
Günther Küppers: Há experimentos muito interessantes. Em Paris, há
um laboratório zonal onde fazem experimentos com fala. É uma sala com
duas câmeras, que podem movimentar-se e mostrar o que veem, onde
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
Produções multimídias
CD-Rom Dialética para Todos
Créditos
Computação Gráfica: Maurício N. Santos
Imagens: Maria Tomaselli
Música: Carlos Dohrn
Programação: Alípio Lippstein
Vídeos na internet
anterior próxima
sumário
Produções multimídias
CIRNE LIMA, C.R.V. Idealismo Alemão: de onde veio, para onde foi..., O
https://vimeo.com/45534142
anterior próxima
sumário
CIRNE LIMA, C.R.V. Sobre corpo e alma: para onde vou, depois de morrer
https://vimeo.com/95038257
anterior próxima
sumário
Produções multimídias
anterior próxima
sumário
LIVRO I
AINDA NEOTOMISTA (2017-1951)
Apresentação
Comentários preliminares (2017)
Notas Biográficas: Carlos Roberto Velho Cirne Lima (2011)
Aula inaugural (2007)
A Filosofia e as Ciências do Espírito (1962)
O espírito filosófico (1961)
A fé pessoal. Estudo com enfoque metafísico (1958)
Casualidade exemplar e existência de Deus (1953)
Os fundamentos metafísicos do Hilemorfismo (1951)
LIVRO II
RUPTURA: DIALÉTICA E REALISMO
LIVRO III
FILOSOFIA COMO SISTEMA – O NÚCLEO (2007-1993)
anterior próxima
sumário
anterior próxima
sumário
LIVRO V
FILOSOFIA COMO SISTEMA - ARTIGOS E ENTREVISTA (2006-1962)
anterior próxima
sumário
Coordenação Editorial
Ivete Keil
Assistente Editorial
André Portella
Katia Marko
Reunião do acervo
Ariel Koch Gomes
Revisão
Ivonir Coimbra
Tradução
Cláudia Pavan
CDD: 100
Agradecimentos
Bibliotecária Responsável Obrigado a todos que co-
Ginamara de Oliveira Lima laboraram para o aconteci-
CRB 10/1204 mento da Obra Completa.
Esta edição não teria sido
Escritos Editora possível sem o amor dos
www.escritoseditora.com.br tabeliães Fernanda Leitão e
www.facebook.com/escritoseditora Paulo Roberto Gaiger Fer-
reira, pela filosofia.
anterior próxima