PAIXÃO, Fernando. Poema em Prosa
PAIXÃO, Fernando. Poema em Prosa
PAIXÃO, Fernando. Poema em Prosa
Poema em prosa:
Problemática (in)definição
Fer na nd o Pa i x ã o Escritor e
professor de
Literatura
no Instituto
de Estudos
Brasileiros, da
E
Universidade
ste ensaio parte do princípio – a salientar desde já – que o de São Paulo.
poema em prosa constitui um gênero literário próprio, do-
tado de propriedades que devem ser percebidas e debatidas. Ainda
que seja um tipo de escrita comum na atualidade, sua história é
recente (se comparada a outros gêneros) e confunde-se com a tra-
jetória de ascensão da modernidade poética, ao longo dos séculos
XIX e XX.
Bem se sabe que o assunto é controverso. Alguns críticos, por
exemplo, preferem considerá-lo como um antigênero ou mesmo
não-gênero,1 pois dessa maneira realçam o traço de vanguarda im-
plícito nessa escrita. Contudo, essa mesma diversidade de caracteri-
1 Jonathan Holder, por exemplo, defende a ideia de que o poema em prosa constitui um
antigênero, no livro The Fate of American Poetry (Athens, University of Georgia Press, 1991).
Michel Delville estabelece um diálogo com Holder, em American Prose Poem: Poetic from and the
Boundaries of Genre. Gainesville, University Press of Florida, 1998, pp. 12-15.
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Fer nando Paixão
zação e de ênfase só faz por reafirmar o caráter sui generis desse tipo de criação
poética.
Para compreender a sua natureza, difícil de definir, há alguns aspectos es-
senciais a se levar em conta e que serão aqui lembrados. A começar por uma
questão semântica importante e que costuma gerar mal-entendidos. É comum
haver certa confusão no modo de designar os textos, sobretudo quando en-
volvem o poema em prosa e outra escrita que lhe é similar: a prosa poética.
Por conta da semelhança dos nomes, com frequência toma-se uma coisa pela
outra.
Perde-se de vista, no entanto, que os dois gêneros envolvem fenômenos
distintos de linguagem. De modo geral, pode-se afirmar que a ênfase dada
a estes dois tipos de texto encontra-se explicitada já na primeira palavra dos
respectivos nomes: poema em prosa e prosa poética. Conforme o gênero, a ênfase
recai sobre um impulso ou outro.
No caso da prosa poética, fica evidente que sua característica principal está
relacionada com as qualidades da prosa; por isso mesmo, apresenta uma ten-
dência voltada para acolher textos maiores – narrativos ou não –, mesmo que
procure fixar um olhar lírico sobre a realidade. As frases e parágrafos acabam
por supor uma dinâmica extensiva para o texto e as imagens evocadas.
Em geral, a prosa poética costuma recorrer a figuras típicas da poesia,
como a aliteração, a metáfora, a elipse, a sonoridade das frases etc. Contudo,
o emprego desses elementos subordina-se ao ritmo mais alongado do discur-
so, voltado para ser, ao final das contas, uma boa prosa.
No campo da tradição moderna, um dos exemplos mais radicais de prosa
poética a ser citado é o livro Finnegans Wake (1939), cuja elaboração custou
mais de uma década a James Joyce. Classificado habitualmente como roman-
ce – embora seja uma obra que escapa a qualquer classificação –, surpreende
pelo modo único com que explora de maneira integrada os aspectos formal,
musical e imagético da escrita.
Alguns críticos chegam mesmo a considerá-la como a obra máxima do
Modernismo, tal é o grau de experimentação que propõe, conseguindo efeitos
estéticos surpreendentes no uso criativo de palavras e frases. Ainda assim, com
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Fer nando Paixão
2 DECAUNES, Luc. “Introduction” In Le Poème en prose – Anthologie. Paris, Seghers, 1984, p. 16.
3 DECAUNES, Luc. Op. cit., 1984, p. 17.
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4 Um tema de controvérsia entre os críticos, por exemplo, diz respeito a considerar (ou não) como
poemas em prosa alguns trechos ou capítulos de obras heterodoxas, como no caso de Les Chants de Mal-
doror, de Lautréamont, ou Aurélia, de Gerard Nerval, ou Le Paysan de Paris, de Louis Aragon. Decaunes se
declara contrário a essa posição.
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5 BERNARD, Suzanne, Le poème en prose: de Baudelaire jusqu’à nos jours. Paris, Librairie A.-G. Nizet, 1994.
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6 Ibidem,
p. 766.
7 Cf.“La poésie sans vers”. In TZVETAN, Todorov, La notion de littérature et autres essais, Paris, Éditions
du Seuil, 1987, pp. 66-84.
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Fer nando Paixão
Para armar sua breve teoria, ele se inspira numa classificação criada pelo
escritor Étienne Souriau, ao propor os gêneros literários em dois grupos bási-
cos: o das “artes representativas” e o das “artes apresentativas”. De modo um
tanto esquemático, Todorov associa o poema em prosa ao campo da prosa e o
identifica com uma linguagem de caráter “apresentativo”, ou seja, que busca
criar na linguagem uma realidade própria, centrada no poder dissonante das
imagens e do ritmo.
Ele ainda cita como exemplo bem-sucedido desse tipo de escrita o livro
Illuminations, de Arthur Rimbaud, em que se pode notar um farto emprego
de frases indeterminadas ou alegóricas, com alto poder de surpresa. Expres-
sões como “luxo noturno”, “erva de outono” ou “influência fria”, e tantas
outras exploram sentidos próximos do inverossímil e da estranheza, pois
dessa maneira afastam também qualquer possibilidade de ilusão represen-
tativa.
A argumentação de Todorov motiva-se por um desejo de contrapor-se às
ideias da estudiosa francesa, conforme vem a explicitar no final do ensaio.
Segundo ele, “a intemporalidade, que S. Bernard desejou tornar em essência
da poeticidade, nada mais é do que uma consequência secundária da recusa
da representação, presente em Rimbaud, e da ordem de correspondências, em
Baudelaire...”8. Tal recusa, a seu ver, representaria uma atitude inovadora no
âmbito da criação literária.
Todorov conclui seu texto com uma argumentação em favor de um entendi-
mento das formas literárias, a partir de um contexto transformador. Segundo
ele, “a oposição apresentação/representação é universal e ‘natural’ (inscrita na
linguagem); mas a identificação da poesia com a função ‘apresentadora’ é um
fato historicamente circunscrito e culturalmente determinado”.9 No entanto,
pode-se contrapor que seu argumento supõe uma visão evolutiva das formas
poéticas, compreendendo o poema em prosa como um gênero associado à
sensibilidade que marcou a segunda metade do século XIX.
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10 COMBE, Dominique, Poésie et récit: une rhétorique des genres, Paris, José Corti, 1989.
11 Ibidem, p. 95.
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12 Cabe ainda citar a espanhola Maria Victoria Utrera Torremocha, que faz um ótimo recenseamento
no início do seu livro dedicado ao gênero na literatura espanhola. Em suas palavras, o poema em prosa
“se converte em signo de liberação da linguagem (...) abrindo um novo horizonte de expectativas dentro
das convenções líricas de leitura”. Mas, logo em seguida, lembra que o gênero “está sujeito ao artifício
literário e possui suas próprias regras (...) criando uma série de expectativas e determinando uma lei-
tura diferente”. A rigor, a sua definição reincide em polaridade semelhante às apontadas pelos críticos
anteriores. Ver TORREMOCHA, María Victoria Utrera. Teoría del poema en prosa. Sevilha: Universidade
de Sevilha, 1999, p. 18.
13 BRADBURY, Malcom e MCFARLANE, James, Modernismo: Guia Geral (1890-1910), São Paulo,
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14 Ibidem,
p. 287.
15 HARO, Pedro Aullón de. “Teoria del poema en prosa”. In Quimera: revista de literatura, n.o 262, 2005,
os. 22-25.
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“Linha de fé
É favor das estrelas nos convidar a falar, nos mostrar que não estamos a sós,
que a aurora tem um teto e meu fogo tuas mãos.”16
16 Este poema em prosa faz parte, juntamente com outros três poemas versificados, do conjunto “Qua-
tre-de-chiffre”. In CHAR, René. O nu perdido e outros poemas. São Paulo: Iluminuras, 1995, p. 54.
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P ro s a
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1 Tais afirmações encontram-se no livro da autora Coração andarilho, também de memórias publicado em
2009 pela Record. O episódio da cigana deu-se nas férias da garota em São Lourenço (p.69) e a men-
ção à Cassandra “que faz brotar segredos” (pp. 71-72) refere-se ao lendário grego. Alusões a pitonisas
espalham-se pelo universo mítico de toda a obra da escritora.
2 Michel de Montaigne (1533-1592) no pórtico dos Essais escreveu Je suis moi-même la matière de mon livre”
(Sou eu mesmo o tema do meu livro). As memórias de Nélida, desde a obra O pão de cada dia (1994),
aproximam-se das reflexões do escritor francês, conforme publicamos na Tribuna da Imprensa, Caderno
Bis, no dia do lançamento em 7/12/94, texto republicado, ampliado, em Estudos Galegos: Niterói, EDU-
FF, 1996, com o título O pão de cada dia, de Nélida Piñon.
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A liturgia não canônica do Livro das horas de Nélida Piñon
3 Elhombre de carne y hueso é o título do primeiro capítulo do livro Del sentimiento trágico de la vida, de Miguel
de Unamuno.
4 Unamuno (1864-1936) inicia Del sentimiento trágico de la vida com a asserção de Terêncio (190-159
a.C.): Homo sum; nihil humani a me alienum puto (Sou homem: julgo nada que seja do humano a mim
indiferente).
5 Nélida Piñon até comentou, em entrevista recente à TV Brasil na Conexão Roberto D’Ávila, que sua
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Dalma Nascimento
Por isso, suas histórias colocam logo o leitor no jogo do texto, quando ela,
por exemplo, relata as festivas Laudes da infância com o avô Daniel e os pais
Carmen e Lino na Galícia, no Rio e nas férias em São Lourenço, ou narra as
gradativas fases das Horas Intermediárias do seu desenvolvimento mental, os
estudos e leituras preparando-a para ser escritora, o grande amor pela Arte
e pela Língua Portuguesa, o vigor e esplendores da juventude transformados
em categoria estética. Mas, entre prazeres e alegrias, também descreve as cru-
zes encravadas no meio da jornada dos passos da sua paixão literária. Agora,
principia a entoar as Vésperas, sons crepusculares do anoitecer das ilusões,
apesar de a vida, ainda intensa, nela palpitar. Confessa, então, sua pequenez e
fragilidade humanas diante da inexorável força do destino, conforme escreve
nas frases iniciais do livro: “Não sou forte e nem poderosa. Tampouco estou
na flor dos 20 anos. (...) Mas quem seja eu hoje, não pude combater as rugas,
o declínio (...) Levo no rosto uma história curtida e que me ajuda a envelhe-
cer”. (p. 11)
Ao traduzir em folhas poéticas sentenças que a emoção vai ditando, cer-
tamente ela segue o preceito bíblico de que “a boca só fala do que inunda
o coração” (ex abundantia cordis os loquitur. Mateus: 12, 34). Aliás, também nas
celebrações da Liturgia das Horas da Idade Média exigia-se que a voz do
devoto, ao rezar, se harmonizasse com as batidas do seu coração. É precisa-
mente isso que ocorre nos textos tão singulares desta obra inventiva. Vindas
do coração aos lábios para a escrita6 poética, as palavras trazem humanas
recordações de “histórias bem curtidas”, compondo memórias bem diferen-
tes das convencionais. Tudo vai minando aleatoriamente aos borbotões sem
planos estabelecidos nos flashes de cenas literalizadas que fluem ao sabor das
sensações, segundo proclama o eu narrativo em páginas mais à frente com
eloquentes metáforas: “Apalpo a emoção que é a âncora humana” (p. 163) ou
“Tenho à disposição o repertório arqueológico dos sentimentos”. (p. 196)
6 Tal
é mesmo o pensamento da autora, porque, no livro Aprendiz de Homero (2008), ao iniciar o capítulo
“A descoberta do mundo”, ela assim se expressou: “A experiência humana, onde quer que se manifeste,
começa com o coração. Em meio às veias que irrigam o nosso ser.” (p. 217)
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7 Tal procedimento o semiologista francês desenvolveu na coletânea autobiográfica Roland Barthes por
Roland Barthes.
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A liturgia não canônica do Livro das horas de Nélida Piñon
8 Sobre o Künstlerroman de autoria feminina, ler: CAMPELLO, Eliane T.A. O Künstlerroman de autoria femi-
nina. A poética da artista em Atwwod, Tyler, Piñon e Valenzuela. Rio Grande do Sul: Editora da Furg, 2003.
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9 Quanto a temas e estrutura de O pão de cada dia, consultar: NASCIMENTO, Dalma. “O pão de cada dia,
de Nélida Piñon”. In: Tribuna da Imprensa: Rio de Janeiro, 7/7/1994. Republicado, com ampliações, em
Estudos Galegos. Niterói: EDUFF, 1996. pp. 129-135.
10 Bildungsroman e Künstlerroman em Aprendiz de Homero: NASCIMENTO, Dalma. Aprendiz de Homero, da
iconoclastia de Nélida Piñon, um romance de formação de artista ensaístico. In: De rupturas e seus prota-
gonistas. Encontros com a literatura universal. CD-ROM. UERG. Org. Delia Cambeiro & Magali Moura. Rio
de Janeiro: Botelho Editora, 2007-2008.
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A liturgia não canônica do Livro das horas de Nélida Piñon
fragmento, no entanto, obedece a uma lógica intrínseca das ideias. Para cor-
retamente articular o encadeamento descontínuo das peripécias romanceadas,
exigem-se, pois, mestria do escritor e cumplicidade do leitor, a fim de ambos
não perderem a sequência dos fatos no meio dos cortes, rupturas e desloca-
mentos da trama.
Nélida Piñon sabe jogar bem com tais formulações e leva o leitor a acom-
panhá-la. E nos fragmentos do discurso amoroso dos seus livros sempre
acolhe o que está por vir, sem perdas essenciais dos procedimentos formais
e dos assuntos básicos anteriores. Capta as novidades sem ser capturada
por elas. Não se fixa no sucesso da “mesmice”. Com segurança, ela não se
atém ao “mito do eterno retorno do mesmo”, questão, de resto, já pensada
por Giambatistta Vico (1668-1744) e, séculos mais tarde, por Friedrich
Nietzsche (1844-1900). De fato, tudo torna a vir, porém, sempre acrescido
da “outra volta da espiral”, alargando-se no horizonte da cultura, conforme
a tão propalada metáfora de Barthes. Acionada, pois, pela força da lingua-
gem criadora em tensão com a língua, código instituído, ela retoma seus
amados temas do passado, mas experimenta outros atalhos discursivos. E,
segura, realiza-os. Agora, neste Livro das horas, a “escriba” Nélida, segundo
se autodenomina em certos trechos do enredo11 – aliás, como já escrevera
em Aprendiz de Homero e em Coração andarilho12 –, deu um passo mais à frente
no seu filão memorialista. Ainda que aluda a lembranças já narradas nos
tomos precedentes e empregue o fragmento e o ensaio antes utilizados, a
“escriba” brasileira sempre reescreve seus textos de um jeito diferente com
traços inventivos.
11 Por que seria que se intitulou “escriba”, termo meio pejorativo, embora afetivo? Por modéstia? Ou
sagaz artifício pelo fato de o “eu da pessoa escritora” prender-se ao “eu da narradora do papel”?
Nos fingimentos do literário, nomeando-se assim, teria resolvido a polêmica? Dirimiu a “autoria” das
narradoras acopladas? Parece ser “escriba” a solução para juntar os dois “eus”.
12 Em Aprendiz de Homero, capítulo “A epopeia da leitora Nélida”, autodenominou-se “escriba” (p. 317).
No mesmo livro, intitulou outro capítulo de “O escriba Mario”, sobre Vargas Llosa. Na obra autobio-
gráfica do amigo e escritor peruano, ele é personagem e “escrevinhador” do texto literário. Isso confirma
o sentido afetivo e “congregador” de “escriba”. Em Coração andarilho, usou também “escriba”, cap. 17:”...
preocupava-me em saber que condições teria de tornar-me escriba” (p. 69).
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A liturgia não canônica do Livro das horas de Nélida Piñon
Lagoa (p. 107), onde atualmente mora. Recorda os familiares “que peregri-
naram na Terra” antes dela, e não se crê neste instante, iconoclasta, ao pro-
clamar: “Acato a herança que semearam nas reuniões familiares.” Decantando
os fatos, deixa o coração falar e, na mesa do banquete das palavras, conta a
ausência dos que já partiram.
Num fragmento curtinho, focaliza a amorosa humanidade de Jesus com
as mulheres e discute o mal inerente à humana condição: “Este Cristo que
perambulou pela Terra debruçou-se sobre as mulheres. Teve noção do pecado
e o quis expurgar da consciência humana. Sonhou ser possível desvincular
o homem do mal absoluto, sempre em curso. Mas ao aceitar a Cruz, enten-
deu ser inútil a Sua interferência.” (p. 202) Porém, de imediato na rotação
das memórias, circulam novos panoramas espirituais. Recorda-se de Teresa
de Ávila, postula a contemplação dos místicos Plotino ou Meister Eckhart, e
tudo aflora no fulgor das reminiscências. Entre ajuizamentos e leituras várias,
rebate “a santidade dos santos”, “as figuras que a Igreja entronizou”. Perplexa
e comparando-se a elas, afiança: “Cotejo-as com minha vida e saio perdendo.
Não sei me revestir de andrajos.” (p. 161) Wilgefortis é uma das mulheres
santificadas, cuja história nas folhas iluminadas das hagiografias medievais
teve seu sofrimento discutido pela escritora: “Ao manusear as páginas que a
ela se referem, seu martírio me é incompreensível. Como compreender a fé
que a animava e levou-a à morte?”
Sempre filosofando ao adejar por assuntos correlatos com “devaneios que
desembocam na realidade” (p. 159), denuncia os caminhos tão desiguais entre
os homens e sente a dor coletiva dos humilhados e ofendidos, sem posses,
para festejar o Cristo da manjedoura. Levanta, então, contundente grito social
e exclama que nenhuma sentença opera a favor dos injustiçados. Desmistifica
a farsa dos falsos religiosos, pois “dezembro é um mês propício aos postula-
dos cristãos e à exibição da hipocrisia social”. (p. 104) Súbito, do nicho das
lembranças emerge a comovente capelinha de Borela, da miúda aldeia galega
da infância onde lhe nasceu o pai. Logo depois, a Igreja de Nossa Senhora de
los Dolores no alto da colina (pp. 110-111), padroeira daquela rústica região.
Lá, dos 10 aos 12 anos, a garota rezou, seguindo a tradição dos ancestrais.
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transita por Paris. Visita a Plâce des Vosges, decantada por Dumas, e imagi-
nariamente “vê os intrépidos mosqueteiros do rei, enfrentando os verdugos
do cardeal Richelieu”. Mas sem pestanejar, já está na Academia Brasileira de
Letras e louva Machado, “gênio que admirava desde a infância” pois: “Cedo
tive a convicção de que, se aquele Machado de Assis existira, o Brasil era pos-
sível”. (p. 120)
Na pedregosa caminhada sisifiana da existência – quer nos afazeres da
casa da Lagoa, quer pelos séculos literários escalando a montanha mágica da
Arte –, é amiga dos aedos clássicos e dos goliardos medievos, aqueles poetas
caminhantes iconoclastas que vagavam pelas estradas da Europa dos séculos
XII-XIII, fazendo a crítica e a crônica da Idade Média em mutação. Deambu-
la com eles pelos vilarejos e cantões da época e proclama em frases primorosas
sua estreita ligação com os antigos narradores: “Quisera ser um poeta errante
que sabia de cor os poemas de Homero. (...) Não sendo eu um aedo, tenho-
lhe inveja.” Fascinada pela vida dos goliardos, eles até já se tornaram tema
recorrente em vários livros e discursos seus.13
Em louvor àqueles clérigos vagantes, autores dos versos dos Carmina Burana
musicados no século XX pelo genial Carl Orff, o eu narrativo confessa: “Des-
de a adolescência sonhava com os goliardos medievos equivalentes aos aedos
que perambulavam pela Europa a pé, sem pouso e destino, levando nas costas
a poesia e escassos pertences.” E arremata inebriada: “Como um goliardo,
vagabundo em andrajos, separaria com o cajado o trigo do joio para efeito
narrativo. (p. 75) Interessada por fatos abstratos e concretos, depressa se refe-
re ao nabo que ela, Nélida, “destemida” se um goliardo fosse, “arrancaria da
terra para saciar a fome daqueles intrépidos criadores”.
A poética do narrar encontra-se continuamente ligada à comida nas obras
da autora. Ambas são formas de criação, de testemunhar afeto e de celebrar
a vida. O alimento do espírito alia-se ao do corpo desde seus livros do início
13Os goliardos figuram em Aprendiz de Homero nos capítulos: “Galícia a nostalgia das palavras” e “As
memórias do mundo”. Estão também em O presumível coração da América. Ao ser laureada na Espanha com
o Prêmio Príncipe Astúrias-Letras, em 2005, Piñon ressaltou, no discurso de agradecimento, a marca
dos goliardos em sua escrita.
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Dalma Nascimento
e tornou-se inclusive título da obra O pão de cada dia. De fato, o Livro das horas
traz mesmo o ser humano de “carne e osso” com necessidades biológicas e
intelectuais presentes no pensamento de Unamuno. E tudo isso vige no ima-
ginário de Nélida ao entrelaçar cogitações cotidianas à fértil erudição. Em
verdade, conforme profere, qualquer coisa é matéria para escrever, divagar e
inventar: “Fabulo a qualquer pretexto” – diz (p. 156) – “Até quando espalho
manteiga na torrada, abandono a casa, a moldura do pensamento, os modis-
mos cariocas.”
Recorda-se também dos amigos escritores e intelectuais que partiram. De-
talha sua grande amizade a Clarice, as idas a cartomantes acompanhando-a ao
subúrbio, as conversas que tiveram sem relatar confidências pessoais. Lembra-
se de Marly de Oliveira, do poeta Bruno Tolentino, de Carlos Fuentes, de
Gabriel Garcia Márques, da sempre amiga Elza Tavares, a quem dedicou o
livro Aprendiz de Homero. Aliás, em 6 de novembro de 2012, no Colégio Es-
tadual Compositor Luiz Carlos da Vila, em Manguinhos, à Sala de Leitura
Nélida Piñon foi incorporado o acervo da filóloga falecida. De igual modo
a romancista se reporta aos frequentes encontros atuais com Mario Vargas
Llosa, eterno companheiro do literário e das causas latino-americanas, a pon-
to de ele ter-lhe dedicado sua obra A guerra do fim do mundo. Em dezembro úl-
timo, na Cidade de Lima (Peru), ambos participaram de um diálogo público
sobre questões estéticas e sociais.
Além das lembranças sentimentais o Livro das horas aborda a posição polí-
tica intimorata de Nélida diante da ditadura, sua militância, compromisso e
participação na viagem a Brasília para entregar ao ministro da Justiça, à época
Armando Falcão,14 o Manifesto dos Intelectuais, ou “Manifesto dos Mil”, “o
primeiro documento da sociedade civil a reclamar a oxigenação dos espaços
públicos, a abolição da censura, a abertura democrática”. (p. 29) Em pedaços
outros, comenta sua experiência vivida numa expedição ao Araguaia diante de
um jacaré à entrada de sua tenda de campanha, e sua coragem ao fotografá-lo,
14 O episódio foi igualmente relatado por Lygia Fagundes Telles, que participou da comitiva a Brasília,
no livro da escritora paulista Conspiração de nuvens. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. pp. 59-65.
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A liturgia não canônica do Livro das horas de Nélida Piñon
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Dalma Nascimento
ȄȄ 5 – Concluindo
Sob o signo da fantasia, a história dos seus andarilhantes périplos existen-
ciais no trânsito da memória e da invenção, continuamente acompanha o mo-
vimento do devir. Compartilha do “vir a ser” heraclitiano das transformações
do mundo. Porém, igual às metamorfoses do Proteu da lenda grega, que se
modificava em vários reinos, mas regressava ao estágio primitivo, ela também
sempre retorna às suas questões originárias, embora com novas insígnias e
configurações. Por isso, sua escrita lembra, ao mesmo tempo, o pensamento
de Parmênides, o filósofo da permanência, e o de Heráclito, o filósofo da
mudança, porque concilia as ideias básicas dos dois pré-socráticos na teoria
unitária da Arte.15 Esta coletânea recém-lançada representa o somatório disso
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A liturgia não canônica do Livro das horas de Nélida Piñon
185
P ro s a
Escutando a canção
U m t r i buto à m u l h e r e escritora, cujo
c o r a çã o n ã o s e c urvou ao s é culo crue l
So ni a Br a nc o Professora
de Língua
e Literatura
Russa do
Departamento
A despedida foi muito bonita, humana, calorosa. Toda a cidadezinha de
de Letras
Rio Claro lá estava, Svobóda era muito querida, inclusive pelos jovens, Orientais e
que a chamavam “dona Liberdade”. Um cemitério simples, nas montanhas, Eslavas da
Faculdade de
com uma linda vista. Ela, que nasceu nas montanhas búlgaras da
Letras da UFRJ.
Macedônia, despediu-se deste mundo nas montanhas brasileiras; o túmulo, Desenvolve
sob os ramos de uma goiabeira. Svobóda agora é para sempre... pesquisas sobre
crítica literária
russa e vem
187
Sonia Branco
1 Essa pequena maravilha da transfiguração da música em palavras foi lembrada por Akhmátova, que
a assinalou em seu diário como um bom sinal, em 23 de agosto de 1962: “Aquele dia começou com a
Bachiana Brasileira N.o 7.”
2 Versos da poesia “Escutando a canção”, tradução de Mário Ramos. Original russo do caderno de
188
Escutando a canção
coração. Cantava em seu sangue. Ela estava só, com essa canção... Não pôde
deixá-la livre na casa que não se tornou seu lar. Estava condenada a vaguear
à sombra sem teto, por soleiras alheias. Em seu antigo e querido lar, o fogo
extinguira-se. Os altares que conheceram as suas orações haviam sido aban-
donados, e os templos em que entrara, profanados. Sofria e se alegrava por
sua terra natal.
Assim como ocorre ao poeta, o vento livre com que respira a escrita de
Svobóda engendra a nascente que sacia a alma; para ela são suficientes alguns
sinais íntimos, surgidos em momentos de clarividência, para que no “paraíso
das canções ultramarinas abram-se caminhos já trilhados”.4
189
Sonia Branco
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Escutando a canção
“J’ai été très émue par mon arrivée en Bulgarie car Outre-Atlantique
j’avais entendu différentes choses, du mal et du bien, beaucoup de choses
contradictoires que je ne pouvais vérifier. Mais mon amour reste inchangé,
je reste liée à la Bulgarie et plus spécialement avec ma région natale du Pi-
rine où chaque maison, chaque pierre, chaque rue sont une histoire vivante.
C’est pour cela que je suis contente d’être ici et dans le même j’ai de la
peine à voir les problèmes de ce pays qui a tant souffert. Je vous souhaite
de tout cœur du courage, des succès et de la foi.”
191
P ro s a
O homem-menino-peregrino
Ar na l d o Ni s k i er Ocupante da
Cadeira 18
na Academia
Brasileira de
Letras.
193
Ar naldo Niskier
194
O homem-menino-pere g rino
195
Ar naldo Niskier
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O homem-menino-pere g rino
Para Rachel de Queiroz, sua grande amiga desde 1939, quando veio morar
no Rio, Peregrino, diferente do paroara nordestino, trouxe outra espécie de
ouro da Amazônia: a descoberta da beleza da terra, do mistério do grande rio,
que até então só se conhecia literariamente como “inferno verde”.
Acompanhados desse espírito, penetramos os igarapés, banhamo-nos de
verde, colocamo-nos sob o Sol coado e ouvimos os ruídos da mata e do rio.
Contando do homem amazônico e de seus costumes, Peregrino Jr. escreveu
Puçanga (1929), Matupá (1933), Histórias da Amazônia (1936) e A mata submersa
(1960), este último o próprio autor chamou de dívida de gratidão para com
a terra que o acolheu na adolescência.
Na realidade, para o homem-menino-peregrino, a Amazônia foi o ingresso
na Dor, aquela mesma Dor que opera a cisão e inscreve o homem na cultura.
Embora no conto Buenolândia, Peregrino Jr. diga que: “À luz morna da noi-
te tropical, minha infância voltou, sorriu-me, com um perdão unânime, para
todos os meus erros e debilidades, e envolveu-me num abraço manso, sem
palavras...”, e que era preciso “conhecer a Amazônia, estuprá-la e dominá-la
violentamente para poder possuí-la com amor”; também declarou ter sido
nela que “o menino mofino, rapaz frouxo, homem sem disposição para a luta”
reforçou “o caráter e endureceu a alma”. A Amazônia foi a sua aventura do
mundo – a aventura da liberdade e da solidão.
Peregrino, como escritor, no plano das letras puras, teve esta direção singu-
lar. Numa fase em que ainda predominava o esplendor verbal de Rui Barbosa
e Coelho Neto, vai ele buscar em Machado de Assis a afinidade natural do seu
espírito. Escreve com sobriedade, tem o gosto da forma simples, e é direto e
objetivo como compete a um genuíno homem de jornal.
É ele, no início da sua vida literária, o escritor que sabe o que pretende.
Adora o estilo que se ajusta ao seu temperamento, e nesse estilo, além de es-
crever os seus artigos, as suas reportagens e os seus comentários da vida social,
produz contos admiráveis.
Euclides da Cunha e Alberto Rangel, seguidos de perto por um mestre
esquecido, Raimundo de Morais, ajustaram o estilo literário à riqueza ama-
zônica. O estilo opulento, derramado, por vezes torcido na sua expressão
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Ar naldo Niskier
procurada, como que simétrico àquela região que Euclides definiu como
a última página do Gênesis, ainda por escrever. Muitos mestres que vieram
depois, como o citado Raimundo de Morais, autor de vasta bibliografia
amazônica, moldaram-se pelo metro literário de Euclides. Citarei ainda:
Alfredo Ladislau e também o saudoso Osvaldo Orico, autor do Vocabulário
de crendices amazônicas.
Convém não esquecer que a literatura da região amazônica teria um mes-
tre de outra linha, na prosa de José Veríssimo, notadamente nas Cenas da vida
amazônica. A sobriedade estilística daquele que seria o grande crítico da obra
machadiana, reconhecendo-lhe a preeminência no quadro geral da cultura
brasileira, faria também seus discípulos, criando uma outra linha de escritores
da região. Entre eles, Peregrino Júnior.
Ao transferir-se para o Rio de Janeiro, e aqui continuar seus estudos de
Medicina, Peregrino irá ser, na Santa Casa da Misericórdia, um dos grandes
discípulos do professor Antônio Austregésilo, como Deolindo Couto, outro
grande mestre, ao mesmo tempo em que desdobra a sua atividade literária
em duas direções: escreve contos e crônicas, além de reportagens e artigos de
jornal. O cronista social retoma aqui a sua pena de comentarista malicioso e
atento, em cenário maior.
Em 1922, com o Centenário da Independência, o Brasil como que se de-
bruça sobre si mesmo, na revisão do caminho percorrido, por um lado, e na
prospecção do caminho que irá percorrer, por outro lado. Surge o Modernis-
mo literário, com repercussões imediatas na Academia. Daqui sairá o líder do
movimento, na pessoa de Graça Aranha, e o seu grande opositor, na palavra de
Coelho Neto. E é nessa oportunidade que Peregrino Jr. se faz o grande repór-
ter do Modernismo. Não se limita a acompanhar a mudança de ordem cultu-
ral e social. Registra essa mudança. Objetiva e corretamente. E de tal modo,
que não se poderá recompor, hoje, a fase beligerante do Modernismo, sem
aludir ao que Peregrino Júnior recolheu nas suas primorosas reportagens.
A rigor, ele soubera ser modernista, antes do Modernismo. Mas, resguar-
dando a sua independência pessoal. Não participou da liderança da Revolu-
ção, mas soube ser o seu cronista – fino, polido, imparcial.
198
O homem-menino-pere g rino
199
Ar naldo Niskier
Afinal, acrescento eu, a rede era a montaria de Peregrino. Nela ele se punha
a sós, em viagens que só a memória e a fantasia podem empreender.
Expectador de uma sociedade que, segundo ele próprio, vivia com o cora-
ção e o pensamento em Paris, cujas “moças aprendiam História do Brasil e a
doutrina cristã, em francês, no Sion, e a cujos homens as cocotes da Glória e do
Catete ensinavam, na sua doce missão, não só a arte de amar, mas também a de
beber e comer, e ainda o gosto de falar francês”, frequentou os salões literários
onde o Parnasianismo ainda tinha vez.
Nele ecoavam, por perto, e conforme ele próprio afirmou, os autores lidos
no Pará, quando do seu contato com os mestres franceses. Verlaine, Mallar-
mé, Rimbaud se imortalizavam na medida em que a sua linha de pensamento
encontrava continuidade.
Desse diálogo entre os Peregrinos de dois tempos surgiram ainda as Re-
cordações de um cronista mundano aposentado que ele publicou no Correio da Manhã.
O “rapaz de jornal” iluminava o ensaísta, como outra dimensão daquele espírito
que mostrava afinidade com a Ciência, com o Magistério, com a Literatura.
Peregrino registrou e registrou-se, imortalizou e imortalizou-se. Lendo-se
o seu mosaico, é possível levantar as linhas de um homem, de um tempo, de
um pensamento.
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P ro s a
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Alberto Venancio Filho
E acrescentava:
“Por isso, quando João Neves e Rodrigo Otávio, cuidando servir à Acade-
mia, mas entregues, de fato, à cegueira de uma afeição que muito me honra e
me cativa, apareceram em nossa casa e me intimaram a me candidatar à vaga
de Afrânio Peixoto, senti um grande susto depois de apontar vários motivos
da recusa.”
“Acolhido com uma benevolência sem precedentes, aqui estou para fingir-
mos uma substituição impossível, acrescentando, quem sabe, – assim o disse
antes que dissessem – mais uma página àquela A Arte de furtar que tanto e tanto
estudei e que parecia ter esgotado os ardilosos processos de agatanhar o Além.”
202
Afonso Pena Júnior
“Seis anos semearás o teu campo e seis anos podarás a tua vinha e re-
colherás os seus frutos”, e para dizer que Afrânio submeteu não seis anos,
mais seis vezes seis ao duro regime de cultura forçada. “Escolheu a Acade-
mia para isto ao escritor bissexto de uma só obra suada e tressuada no curso
de dois decênios, e ordenou-lhe que substituísse, em gloriosa humilhação,
ao mestre insigne que ilustrou, in aeternum, este posto, com a produção de
cem volumes, cada qual mais belo, interessante e valioso.
Assim, o quisestes, Srs. Acadêmicos. E assim será feito. A cadeira número
sete vai entrar em pousio. Reinará silêncio na forja em que ecoaram sem ces-
sar, durante mais de um terço de século, os ecos de um saber ciclópico.”
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Afonso Pena Júnior
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Afonso Pena Júnior
Ao publicar em 1946 o livro A Arte de furtar e seu autor, Afonso Pena apresen-
tava obra de atribuição de autoria, a mais importante em nosso país.
Desde quando o livreiro genovês João Bautista Lerso, estabelecido no Lo-
reto, a matriz dos italianos em Lisboa, recebeu um manuscrito em cuja página
de rosto se lia título pitoresco.
“Teatros de Verdades, Espelhos de Enganos, Mostrador de Horas Min-
guadas, Gasoa Geral dos reinos de Portugal e Arte de Furtar. Composta em
Lisboa no ano de MDCLII por um português anônimo e muito zeloso da
Pátria”, a obra vem constituindo um verdadeiro enigma literário.
O livreiro e impressor genovês, em 1740, submeteu o manuscrito a um
especialista para que ajuizasse da obra, e decifrasse a autoria. Tempos depois,
o consultor devolveu o original, de que havia feito tirar cópia, além de apro-
priar-se de extensas passagens em obras de sua própria lavra. Quanto à autoria,
incluiu o nome do famoso pregador, o padre Antônio Vieira. Imaginando, por
isso, um grande sucesso editorial, o esperto genovês não hesitou em recorrer a
um truque de publicidade: inverteu a página de rosto, de forma a destacar, em
primeiro lugar, o título Arte de furtar, que o autor anônimo colocara em último
após “Teatro de Verdades e Espelho de Enganos”, com a supressão, do lugar
e a data da composição, dando esta última como data da impressão. Quanto
aos dois claros que restavam: “Impresso em ... Ano de ...”, o genovês escreveu,
sem vacilar: “Amsterdam, na oficina Elvizeriana 1652.”
A Arte de furtar só veio a lume tempo depois, nunca antes de 1743, impressa
em Lisboa e não em Amsterdã com a autoria do padre Antônio Vieira fora
invenção fraudulenta do genovês. O esperto genovês foi levado a tais contra-
fações pelo êxito comercial do empreendimento.
A autoria da Arte de furtar – cuja tese central é a da universalidade do roubo
– tem sido objeto de intensa controvérsia ao longo dos anos, direi mesmo dos
207
Alberto Venancio Filho
séculos. Retrata todas as mazelas do Portugal de então. Por não poupar as es-
feras oficiais e os abusos dos poderosos, a começar pelos reis, esse depoimento
cruel sobre a vida social da época da Restauração só poderia ser divulgado sob
rigoroso anonimato para assegurar a garantia do autor.
A primeira impugnação à autoria de Vieira partiu do padre Francisco José
Freire logo em 1744, em sua “Dissertação Apologética em que demonstra
que o Padre Antônio Vieira não era o autor do livro”. Posteriormente, Fran-
cisco José Freire iria indicar outro autor para a obra: João Pinto Ribeiro, um
dos heróis da Restauração. Surgem então outras autorias: Tomé Pinheiro da
Veiga, Duarte Ribeiro de Macedo, Antônio da Silva e Sousa, padre Manuel
da Costa, D. Francisco Manuel de Melo.
A autoria de Tomé Pinheiro da Veiga é criação do padre João Batista de
Castro. Em 1652, Tomé Pinheiro da Veiga já tinha 81 anos e esta idade era
já menos própria para a sátira fina e espirituosa da Arte de furtar, idade bem
diferente da de 34 anos, quando escreveu a Fastigimia.
Duarte Ribeiro de Macedo foi juiz de 1.a instância no interior de Portugal
e teve o nome sugerido para a autoria da Arte pelo padre Inácio José de Mace-
do, no seu Velho liberal do Douro.
Antônio da Silva e Sousa foi lembrado por Ataíde e Melo, em seu estudo
bibliográfico sobre a Arte de furtar publicado nos Anais das bibliotecas e arqui-
vos, vol. IX, onde julgou ter dado solução definitiva ao antigo, importante e
debatido problema:
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se pronunciar sobre a tese, mas Oliveira Lima foi explícito: “Acho os seus
argumentos de peso e não vejo que se possa melhor e com mais acerto atribuir
o famoso livro a outro que não seja Antônio Souza Macedo.”
Afonso Pena menciona que o ataque pouco generoso contra a pessoa de
Solidônio Leite impediu, talvez, que a tese deste conquistasse definitivamen-
te as opiniões competentes. E mostrava que o prestígio de João Ribeiro em
relação a Solidônio Leite, que era só conhecido por um pequeno número de
estudiosos, foi um combate desigual, mas o mal da polêmica estava feito.
Ao publicar A Arte de furtar e seu autor em 1946, Afonso Pena Júnior examina
as versões anteriormente levantadas e, ao mencionar Antônio Souza Macedo,
refere que a conclusão é de Solidônio Leite, primeiro a aventá-la. E, na conclu-
são, afirma que, se o leitor concordar com a autoria de Souza de Macedo, bem
pequeno será o seu merecimento em confronto com o de Solidônio Leite, que
primeiro descobriu e proclamou este autor.
Não há indicações precisas de como Afonso Pena Júnior se interessou pelo
estudo da Arte de furtar. Era pessoa de grande cultura humanística, conhecendo
bem os clássicos portugueses. É provável que a leitura do livro tenha desper-
tado interesse, sobretudo, quando muito se refere ao Brasil. No livro, declara
ter tido notícias de alguns resultados dos estudos de Solidônio Leite e insistiu
com ele para concluir-se sem demora, o que não ocorreu.
Atribui-se a Raul Soares ter incentivado a pesquisa de Afonso Pena Jú-
nior. Raul Soares foi político mineiro, primeiro ministro civil da Marinha do
Governo Epitácio Pessoa. Formado em direito pela Faculdade de São Paulo,
foi advogar em Campinas e conquistou em concurso a cadeira de Literatura
do ginásio local, sobrepujando a Otoniel Mota e Américo Moura. Escreveu
um opúsculo “O Poema Crisfal”, atribuindo a autoria a Cristóvão Falcão e
contestando a atribuição a Bernardim Ribeiro.
Afonso Pena Júnior desenvolveu os argumentos de Solidônio Leite e re-
digiu os dois volumes sobre A Arte de furtar e seu autor atribuindo a autoria a
Antônio de Souza Macedo, mas sempre dando o devido crédito a Solidônio
Leite, e alegando que apenas desenvolvera seus argumentos.
Justificava:
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“O que não hesito em propor para vossa obra, singular e eminente entre
os mais autorizados sob o tema, é o de obra-prima. Em 20 anos de país, do
mais paciente, mais indefeso esforço que já se fez aqui e em Portugal, para
desvendar um mistério literário, escrevestes uma autêntica obra-prima.”
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E prossegue:
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E conclui:
“O que Afonso Pena poderia ter feito é muito maior do que fez, mas o
que fez ele, é muito maior do que se supõe tenha feito. No Brasil não se
sabe o que nós perdemos: o jurista que foi ele, o homem, o cristão e final-
mente o herói intelectual que ele foi.”
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Afonso Pena Júnior
Em outro passo:
“Na sua verdadeira essência como na sua intenção final e nos seus efeitos
reais, o escotismo se pode definir como uma escola de formação completa,
um sistema perfeito de educação. Ele forma a criança na sua integridade
corpórea e pensante, utilizando processos no qual se condensam tesouros da
psicologia infantil, desenvolve física, moral e intelectualmente a criança.”
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“Afonso Pena Júnior era humanista, não porque aprendera o bom latim
do Caraça, mas porque, pelo conjunto de saber e experiência, tinha os
olhos e inteligência voltados para os problemas resultantes das condições,
exigências e motivações do mundo moderno.”
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A
Universidade
nalisamos o texto “Ensaio sobre a História da Literatura Federal de Ouro
Preto (UFOP),
do Brasil”, de Domingos José Gonçalves de Magalhães, onde realiza
publicado em 1836 na Niterói, Revista Brasiliense. Evidenciamos estágio de
que para Gonçalves de Magalhães o futuro do Império do Brasil Pós-Doutorado
desde 2011 sob
encontrava-se em perigo, e isto porque os seus homens e mulheres, a supervisão de
especialmente os dirigentes imperiais, orientavam-se a partir do ethos Valdei Lopes
egoísta imputado pelo elemento colonizador, o que significa dizer de Araujo.
É Doutor em
que seus pensamentos e ações eram determinados por inclinações História pela
e desejos. Como acompanharemos, Magalhães se dividira entre a PUC-Rio.
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Marcelo de Mello Rangel
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Teria o Império do Brasil um destino trágico?
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Teria o Império do Brasil um destino trágico?
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“(...) este vasto Éden separado por inormíssimas montanhas sempre es-
maltadas de verdura, em cujo topo colocado se crê o homem no espaço, mais
chegado ao céu, que à terra e debaixo de seus pés vendo desnovelar-se as
nuvens, roncar as tormentas, e disparar o raios; com tão felizes disposições
da Natureza do Brasil necessariamente espirar devera seus primeiros habita-
dores; os Brasileiros músicos e poetas nascer deviam. Quem o duvida? Eles o
foram, eles ainda o são. Por alguns escritos antigos sabemos que várias tribos
índias pelo talento da música e da poesia se avantajavam. Entre todas, os Ta-
moios, que mais perto das costas habitavam, eram também os mais talento-
sos; em suas festas e por ocasião de combates, inspirados pelas cenas, que os
tornavam guerreiros hinos improvisavam, com que acendiam a coragem nas
almas dos combatentes ou cantavam em coros alternados de música e dança
hinos herdados dos seus maiores (...)” (MAGALHÃES, 1978, pp. 154-155)
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Teria o Império do Brasil um destino trágico?
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perdida. Descreve uma união ideal que teria construído um tempo perfeito,
que teria composto a proporção perfeita à realização de uma sociedade civi-
lizada (de um destino faustoso), faltando para tanto, apenas o tom cristão e
algumas lições da cultura europeia. Em outras palavras, se a totalidade articu-
ladora natureza “brasileira” continuava sendo, no século XIX, o âmbito ideal
à experimentação da medida do eterno, da assunção de uma vida orientada
pela liberdade, pela independência, pela alegria e pela coragem, faltava, nos
tempos de Magalhães, um outro elemento fundamental à realização, uma vez
mais, dessa experiência, a saber, um tipo específico de homem, tipo que havia
sido dizimado pelo elemento português. O âmbito “Brasil” teria sofrido uma
radical alteração, não em suas formas, suas montanhas altíssimas continua-
vam ali, mas algo havia desaparecido, desapareceram os homens amantes da
liberdade, da independência, da alegria e corajosos, e tomara seu lugar um
novo tipo, o tipo egoísta, i(a)moral e covarde, incapaz, na compreensão de
Magalhães, de colocar o Império no caminho do progresso moral e material.
Como podemos ler:
“Que precioso monumento não fora para nós desses Povos incultos,
que quase tem desaparecido da superfície da Terra, sendo tão amigos da
liberdade e da independência, que com preferência ao cativeiro em cardu-
mes caíam debaixo das espadas dos Portugueses, que embalde tentavam
submetê-los a seu jugo tirânico. Talvez tivessem elas de influir sobre a atual
Poesia Brasileira, como os cânticos do Bardo da Escócia sobre a Poesia
influíram do Norte da Europa, e hoje, harmonizando seus melancólicos
acentos com a sublime gravidade do Cristianismo, em toda a Europa do-
minam.” (MAGALHÃES, 1978, p. 157)
232
Teria o Império do Brasil um destino trágico?
1 Segundo Magalhães: “Do que dito havemos, concluímos que à Poesia não se opõe o país, antes pelas
suas disposições físicas muito favorece o desenvolvimento intelectual; e se até hoje a nossa Poesia não
oferece um caráter inteiramente novo e particular, é que os Poetas, dominados pelos preceitos, atados
pela imitação dos Antigos, que como diz Pope, é imitar mesmo a Natureza (como se a Natureza se
ostentasse sempre a mesma nas regiões polares e nos Trópicos e diversos sendo os costumes, as leis e as
crenças, só a Poesia não partilhasse essa diversidade) não tiveram bastante força para despojarem-se do
jugo dessas leis, as mais das vezes arbitrárias, daqueles que se arrogaram o direito de torturar o Gênio,
arvorando-se Legisladores do Parnaso”. (MAGALHÃES, 1978, pp. 157-158)
A boa sociedade significa, conforme Ilmar Rohloff de Mattos: “Aqueles que eram livres, proprietários
de escravos e representados como brancos.” (MATTOS, 2010, p. 117)
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2 Como afirma Magalhães: “Através, porém, das espessas trevas em que estavam mergulhados os homens
no novo continente, viram-se alguns gênios superiores brilhar de passagem, bem semelhantes a essas
luzes errantes, que o peregrino investigador admira em solitária noite nos desertos do Brasil; sim, eles
eram como os Pirilampos, que no meio das trevas fosfoream. E poder-se-á com razão acusar o Brasil de
não ter produzido gênios de mais subido quilate? Mas que povo escravizado pode cantar com harmonia,
quando o retinido das cadeias, e o ardor das feridas sua existência torturam?”. (MAGALHÃES, 1978,
p. 142)
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Teria o Império do Brasil um destino trágico?
Bibliografia
ARAÚJO, V. L. de. A experiência do tempo. Conceitos e narrativa na formação nacional brasileira
(1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008.
BARRETO, L. A. “O romantismo e a organização da sociedade brasileira.” In: O
Pensamento de Domingos Gonçalves de Magalhães – Actas do II Colóquio Tobias Barreto.
Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileiro, 1994.
BARROS, R S. M. de. A significação educativa do Romantismo Brasileiro: Gonçalves de Maga-
lhães. São Paulo: Grijalbo, 1973.
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Marcelo de Mello Rangel
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P ro s a
E
e Português
m 1922, no ano da Semana de Arte Moderna em São Paulo, na Indiana
University-
Gilka Machado publicou seu quinto volume de poesia com o
Bloomington.
título simples mas provocante, Mulher nua. Nos primeiros anos da Autora de
década de 30, depois da publicação de mais dois livros de poemas, vários livros que
incluem mais
O meu glorioso pecado (1928) e a antologia Carne e alma (1931), a revis-
recentemente
ta literária, O malho, pediu a 200 inteletuais que votassem na poetisa Americans All: Good
mais importante do Brasil. Gilka Machado recebeu o maior número Neighbor Cultural
Diplomacy in World
de votos, ultrapassando escritoras notáveis como Henriqueta Lis-
War II (2012),
boa, Francisca Júlia e Cecília Meireles. Mas apesar de sua produção Nelson Pereira dos
considerável nas primeiras três décadas do século XX, e apesar da Santos (tradução
portuguesa,
atenção e elogios críticos que recebeu como poetisa, Gilka Macha-
2012) e Brazil
do está curiosamente ausente do panteão de escritores modernos Imagined: 1500 to
brasileiros. Embora não fosse a primeira pessoa a ser ignorada no the Present (2008).
processo da formação do cânone, a exclusão de Gilka Machado
parece diretamente ligada ao conteúdo erótico de seus versos – um
conteúdo que transgredia as regras literárias daquilo que era consi-
derado bom gosto – sobretudo para uma escritora.
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Darlene J. Sadlier
E disse:
238
O locus eroticus na poesia de Gilka Machado
“Ao ler-lhe as rimas cheirando ao pecado, toda a gente supôs que estas su-
biam dos subterrâneos escuros de um temperamento, quando elas, na realidade,
provinham do alto das nuvens de ouro de uma bizarra imaginação.” (314)
Campos cita Henrique Pongetti, que escreveu num ensaio em 1930 que,
para aqueles que, “lhe conhecem a intimidade, [Gilka é] a mais virtuosa das
mulheres e a mais abnegada das mães”. (315)
O que estes comentários nos dizem é que os defensores de Gilka se sentiam
tão pouco confortáveis com seu erotismo como seus críticos mais virulentos.
Ademais, ao descrever seu erotismo como espiritualizado – em vez de humano
e carnal –, Ribeiro ajudou a decidir-lhe para sempre o destino de ser classificada
como simbolista. Mas qualquer pessoa que leia Gilka Machado sabe que sua
poesia erótica não é espiritualizada – a não ser que se considere a rapsódia sexual
e o êxtase orgásmico como estados místicos. O fato que ela escreveu sobre um
erotismo feminino tornou-a voz única na literatura brasileira na primeira parte
do século XX. Esta é a razão por que ela foi excluída do cânone e por que agora
ela é o foco de considerável análise feminista e revisionista.1
Neste estudo, quero ir além dos comentários de Gilka Machado como
poetisa erótica, e que são na maior parte generalizados, para focalizar a
poesia em si e, mais especificamente, o papel da natureza na sua obra. Para-
doxalmente, o que seus defensores como Ribeiro e Grieco não perceberam
foi o fato que Gilka estava re-elaborando certas convenções clássicas liga-
das ao poeta, ao amor e à natureza às quais se dá o nome de locus amoenus.
A poesia de Gilka oferece um conceito totalmente novo e original da na-
tureza como locus eroticus e estímulo para uma lírica antitradicional na qual
uma voz feminina descreve as emoções e os atos associados com um amor
físico desenfreado. Ao contrário de outros autores modernistas, Gilka Ma-
chado nos mostra um diferente tipo de natureza – uma natureza mais pagã
e animista cujas implicações são freudianas em vez de espirituais – e é isso
que a distingue dos simbolistas. Na poesia de Gilka, a natureza não só
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Darlene J. Sadlier
240
O locus eroticus na poesia de Gilka Machado
ainda é um lugar real, mas funcionou também como um espelho para as emo-
ções angustiadas do poeta. Esse retrato da natureza mais dramático e subje-
tivado tornou-se comum na poesia do século XIX, e a natureza tornou-se
conhecida como o locus horrendus ou locus terribilus.
Gilka Machado reúne as ideias de prazer e amor associadas com o locus amoe-
nus clássico e a subjetividade dramática associada com o locus horrendus para criar
o locus eroticus. Como os românticos, ela é atraída para a natureza como um lugar
distante das vicissitudes do mundo moderno – mas com a importante diferença
que não é ao tumulto da vida urbana que ela quer escapar, senão ao “jugo atroz
dos homens e da ronda/da velha Sociedade” (Poesias completas 24). Repare que os
mesmos críticos que deploraram suas descrições do amor físico nunca comenta-
ram sua denúncia aqui e alhures da sociedade, dos homens e do estamento. Na
opinião dos críticos de Gilka, escrever sobre o desejo erótico – mesmo quando
este está encoberto numa linguagem sobre a natureza – é muito mais transgres-
sivo que escrevendo um poema como “Alerta, miseráveis” que explicitamente
denuncia a injustiça social ao referir-se àqueles “que sempre tudo nos rouba-
ram/que planejam agora/um roubo mais/audaz:/querem ainda esta migalha
que nos resta,/a independência de morrer de fome/em paz”. (391)
Ao mesmo tempo, seu retrato da natureza, que inclui “prados ondulados
pelo vento,” “mares molemente espreguiçados,” “praias espalmos” e “árvores
dançando”, é uma celebração dos prazeres físicos que encoragem a poetisa a
“cantar, vibrar e gozar”. (24-25) Na natureza, e já não debaixo do “jugo da So-
ciedade,” Gilka imagina a si mesma como “qual desenfreado potro [a correr],/
por estes campos/escampos” (25). O desejo e a necessidade de uma liberdade
(sexual) total e seu reconhecimento que a liberdade de qualquer tipo ainda está
fora de seu alcance, fazem com que ela olhe os aspectos mais humildes da na-
turezea como desejáveis para sua condição como mulher: “Ai! Antes pedra ser,
inseto, verme ou planta,/do que existir trazendo a forma de mulher.” (26)
O locos eroticus de Gilka Machado é povoado de árvores altas e sensuais
que balançam, rosas vermelhas cujo “aroma excita, enleva e estua” (34), e
“rios, espreguiçados à sesta, [como]/u[ns] sátiro[s], com o corpo encurvado,
a lamber/o ventre virginal e verde da floresta”. (67) As árvores têm papel
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O locus eroticus na poesia de Gilka Machado
ansiedade. Sua trepidação vem da ideia de entrar num estado de abandono ab-
soluto ou o “desagregamento dos átomos” pelo qual seu ser fica totalmente su-
perado pelas forças da natureza: “Sinto que o azul me absorve,/que a água tem
sede de mim,/que a terra de mim tem fome,/e pairo, ectoplásmica, desfeita/
em ar/em água, em pó,/misturada com as coisas/integrada no infinito”. (318)
Gilka é uma poetisa da natureza, ao mesmo tempo sua identificação com a natu-
reza é recíproca e absoluta: “Cantas nos meus versos;/vegeto nos teus cernes;/
voo com os pássaros,/espiralo com os perfumes/marejo com as ondas,/medito
com as montanhas/e espojo-me com as bestas”. (319) Aqui a natureza é o “tu”
que sabe “os caminhos secretos de [s]ua alma,” e quem, segundo ela, é o único
ser que a possui completamente. Na estrofe final do poema, há uma sugestão
não muito sutil que o que a poetisa está experimentando nesses “imortais mo-
mentos/em que confund[em] os seres,/em que rola[m] pelo infinito” (318)
não são só os prazeres do abandono sexual, mas também uma paixão que só as
mulheres enamoradas podem sentir. Assim, como a poetisa é transformada por
e torna-se a verdadeira essência da natureza, à natureza, nas linhas finais, é dada
uma recíproca forma humana como “fêmea enamorada”. O poema termina
com as duas fêmeas “loucas de liberdade” “num longo enleio.” (319)
É difícil determinar se Gilka Machado descreve um amor lésbico em “Ena-
moradas”, mas o poema está aberto a esta possibilidade. Em outro poema do
mesmo volume, intitulado “Na festa da beleza,” algo semelhante é sugerido.
A natureza é retratada tanto como lugar para os sentimentos e emoções da poe-
tisa, quanto como um ser que está enamorada da poetisa e que se identifica com
sua nudez e sensibilidade. O que é distinto neste poema é que o Homem (com
letra maiúscula) também aparece. Mas ele só aparece no fim do poema, onde é
descrito como ser receoso que mantém sua distância. Ou como diz no poema
“...o Homem,/receoso de se defrontar,/fugindo à projeção de si mesmo/na
objetiva/da minha frase/passou ao largo...” (323) Enquanto ela experimenta a
liberdade e êxtase na natureza, o Homem passa “incrédulo e...desconfiado” da
“carne de [s]eu espírito” e do “desatavio de [s]eu verso”. (323). O poema ter-
mina com uma pergunta feita pelo Homem: “`Por que te vestes assim?’” (323)
Nesse poema Gilka oferece uma visão positiva e libertadora duma mulher
que rejeita ser como a sociedade, ou o Homem, quaisquer que eles sejam.
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Darlene J. Sadlier
Obras citadas
Biblos: Enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa. Vol 3. São Paulo e Lisboa: Edi-
torial Verbo, 1999.
CAMPOS, Humberto de. Crítica: Segunda Série. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1935.
FERREIRA-PINTO, Cristina. “A mulher e o cânone poético brasileiro: Uma releitu-
ra de Gilka Machado. http://www.iacd.oas.org
GRIECO, Agripino. Evolução da poesia brasileira. 3.a ed. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1947.
MACHADO, Gilka. Poesias completas. Rio de Janeiro: Léo Christiano Editorial, Ltda.
1992.
PAIXÃO SYLVIA. “A fala de Eros.” A Fala-A-Menos. Rio de Janeiro: Numen Editora,
1991. 121-165.
_____. “`A sombra de Eros.” Anais do IV seminário nacional mulher e literatura. Org. Lúcia
Helena Vianna. Niterói: ABRALIC, 1992. 115-128.
RIBEIRO, João. Crítica. Vol. II. Poetas. Parnasianismo e Simbolismo. Rio de Janeiro: Edição
da Academia Brasileira de Letras, 1957.
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P ro s a
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logo haverá de mostrar-se como o tempo mais estranho no conto, uma vez
que o tempo predominante na narrativa é o tempo presente.4 E isso porque
a construção acabada é, na verdade, uma construção que não cessa e não
se cansa de construir, mudando e renovando a construção, a fim de assegu-
rar e preservar a construção. A construção é um estar em construção, é um
em se construindo.5 Esse em-construção, em-se-construindo indica, ainda,
o paradoxo de já se estar dentro da construção para ser possível adentrar
a construção. Como podemos ler no começo do conto: “Por fora, é visível
apenas um buraco, mas, na realidade, ele não leva a parte alguma, depois
de poucos passos já se bate em firme rocha natural. [...] A uns mil passos
de distância dessa cavidade localiza-se, coberta por uma camada removível de
musgo, a verdadeira entrada da construção, [...]”.6 A verdadeira entrada não é
o buraco. O buraco apenas cobre e encobre a entrada. É que a entrada precisa
ser camuflada para que se possa proteger a construção, “ela está tão segura
quanto algo no mundo pode ser seguro” contra invasões e ataques externos;
“existem muitos que são mais fortes do que eu e meus adversários são incon-
táveis; poderia acontecer que, fugindo de um inimigo, eu caísse nas garras de
outro”.7 De fato, a construção aparece como a mais vulnerável e, portanto,
como o que precisa ser continuamente protegida – gerúndios. O construtor,
o autor, “não tenho uma hora de completa tranquilidade”, sendo vulnerável
nesse “ponto escuro do musgo”, vendo em sonhos “um focinho lúbrico”. O
construtor diz, no entanto, que não é por medo que a construção está sendo
feita. É por falta de tranquilidade, por um sentimento de estar sendo continu-
amente ameaçado, que surge a necessidade de assegurá-la. A construção faz-se
por uma necessidade incontrolável de controlar cada parte e espaço da cons-
trução e de evitar que todo elemento estranho, que toda alteridade, adentre a
4 Cf. o comentário de J. M. Coetzee sobre o uso do tempo presente nesse conto de Kafka em “Time,
tense and aspect in Kafka’s The Burrow”. In: MLN, Vol. 96, No. 3, German Issue (Apr., 1981), pp.
556-579, versão digital http://research.uvu.edu/Albrecht-Crane/3090/links_files/Coetzee.pdf
5 Cf. a música de Chico Buarque chamada A construção.
6 Ibidem, trad. bras. p. 63.
7 Ibidem, pp. 64-65.
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Não vou discutir aqui essa resposta sedutora e as suas contradições. Sedu-
ção e contradição são, sem dúvida, a melhor parte tanto da filosofia como
da literatura. O que falta, porém, nessa contradição não é a coerência, mas
justamente o acolhimento da contradição, o deixá-la viver contraditoriamen-
te e, nela, o acolhimento dos arquétipos, pois linguagem é sempre obra de
arquiarquétipos. Mas essa não é minha questão aqui. O que cabe questionar
não são tanto as respostas, mas a questão que abre as discussões de Deleuze
e Guattari. Pode alguém adentrar a obra de Kafka? Lendo A construção e já na
primeira linha – “instalei a construção”, deveríamos dizer ao contrário: não
é possível entrar no mundo de Kafka porque já sempre nele estamos, porque
já sempre estamos “aí”. Esse fato constitui o kafkiano da obra de Kafka: o
fato de já sempre estarmos dentro dela, sem que nos seja possível nela entrar
ou dela sair. Na Construção, nós já sempre estamos e somos como já sempre
somos no ser, ou seja, não sendo capazes de nele adentrar e nem dele sair. Wir
sind schon da. Gostaria de propor que esse “já somos e estamos sempre aí”, wir
sind immer schon da – essa facticidade da existência deve ser entendida como o
fato político. Nesse sentido, pode-se entender igualmente o que Heidegger
quer dizer ao afirmar que o “Da” de Dasein, o “pre” da presença deve ser
entendido como polis, em sentido grego.
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8 Cf. as interpretações feitas por Walter Biemel deste conto de Kafka e de sua relação com a questão
da técnica em Heidegger. São três os textos de Biemel que tratam da relação entre Heidegger e Kafka
e, sobretudo, no tocante a este conto tardio de Kafka, A construção: um texto publicado já em 68 no
volume Philosophische Analysen zur Kunst der Gegenwart, Phaenomenologica, Bd 28; um de 1989, intitulado Zur
deutung unserer Zeit bei Kafka und Heidegger in Kunst und Technik. Gedächtnisschrift zum 100 Geburtstag von M. Hei-
degger (Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1989, pp. 425-439; e um outro com o título, Kafkas Dichten des
Wohnens am Ender der Neuzeit in Kunst und Wahrheit, Studia Phaenomenologica (Bucharest: Humanitas, 2003).
9 F. Kafka. Über das Schreiben, ed. E. Heller e J. Beug, Frankfurt am Main: Fischer, 1969, p. 60. Die
Verwandschaft mit dem Tier ist leichter als die mit den Menschen [...]. Jeder lebt hinter einem Gitter, das er mit sich herumträgt.
Darum schreibt man jetzt so viel von den Tieren. Es ist ein Ausdruck der Sehnsucht nach einem freien, natürlichen leben.
Das natürliche leben für den Menschen ist aber das Menschenleben. Doch das sieht man nicht. Man vill es nicht sehen. Das
menschlichen Dasein ist zu beschwerlich, darum will man es wenigstens in der Fantasie abschütteln.
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10 Cf. Particularmente o texto de W. Biemel intitulado Kafkas Dichten des Wohnens am Ender der Neuzeit in
Kunst und Wahrheit, Studia Phaenomenologica (Bucharest: Humanitas, 2003).
11 Cf. minha tradução de Construir, habitar, pensar em M. Heidegger. Ensaios e conferências, Petrópolis: Vozes,
2002.
12 W. Biemel, op.cit.
13 G. Agamben. Mezzi sensa fine: note sulla politica.
14 M. Heidegger/H. Arendt. Briefe.
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17 Cf.
A discussão de W. Biemel sobre a relação entre ficção e abstração, no texto já citado, publicado
em 2003 em Bucareste.
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literalidade do que à palavra falada. Sua oposição é ainda mais radical porque
emerge de dentro da literalidade da palavra escrita. Literatura é essencialmente
luta. É luta bem antes de tornar-se engajada. Literatura é rebelião ao seu ele-
mento de dentro do elemento. É a emergência de um novo sentido de dentro
de um sentido fechado e rígido, de dentro de um sentido sem saída, sem foras.
Esse rígido elemento de literalidade – sentidos literais – nutre-se ele mesmo
da capacidade de dizer no presente o que já foi dito. Ao lermos uma linha,
quer escrita há mil anos atrás ou há um minuto atrás –, lemos no presente, e
o já dito faz-se presente e por vezes até faz-se presença. Isso explica por que
o elemento rígido de literalidade está muito próximo de um outro elemento
rígido e fechado, que é o elemento de uma “vida nas letras”, no sentido em
que falamos de um “homem de letras”, do “letrado”, da linguagem escrita,
quando língua escrita significa erudição, intelectualismo – os monumentos e
a monumentalidade do já ter sido dito, da repetição, da citação. As bibliote-
cas de Borges! O homem que não consegue esquecer de Nietzsche! Contudo,
literatura não é nem a medianidade da literalidade e nem a futilidade de “uma
vida das letras”. Pois a Literatura faz aparecer no já dito, no já ter sido dito o
modo de se dizer, o acontecer do dizer. A Literatura diz o dizer. Na Litera-
tura, torna-se aparente que o acontecimento exibe seu próprio acontecer sem
metáforas. A Literatura mostra o acontecer do dizer dizendo os acontecimen-
tos, sendo assim radical ambiguidade. A Literatura mostra o aparecer como
a palavra da realidade. Por isso, é impossível para a literatura admitir que
haja palavra de um lado e realidade de outro. O conto de Kafka, A construção
revela a literatura em sua luta própria. Desejando controlar todo aconteci-
mento, a construção mostra ambiguamente que essa tentativa de controlar é
ela mesma um acontecimento. O desejo de controlar todo acontecer é tragi-
camente, perigosamente, ele mesmo, um acontecer. Nas descrições de Kafka,
nas suas distopias, discronias, descentralizações, desterritorializações, todas
essas experiências e elementos angustiantes descrevem não apenas as expres-
sões kafkianas de nossa realidade política e burocrática, mas o acontecer
nu e cru de um acontecer. Ler esse mostrar rude, nu, cru do acontecer
do acontecer é muito difícil porque nenhuma metáfora, nenhuma analogia,
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