Beatriz Factum - Joalheria Escrava Baiana - A Construção Histórica Do Design de Jóias Brasileiro
Beatriz Factum - Joalheria Escrava Baiana - A Construção Histórica Do Design de Jóias Brasileiro
Beatriz Factum - Joalheria Escrava Baiana - A Construção Histórica Do Design de Jóias Brasileiro
São Paulo
2009
ANA BEATRIZ SIMON FACTUM
Área de Concentração:
Design e Arquitetura
São Paulo
2009
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR
QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA,
DESDE QUE CITADA A FONTE.
E-MAIL: anabiasimon@uol.com.br
Catalogação da Publicação
Biblioteca da Pós-Graduação
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
CDU 7.05(091)(81)
FACTUM, A. B. S. Joalheria escrava baiana: a construção histórica do design de jóias
brasileiro. Tese apresentada a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de Doutor em Arquitetura e Urbanismo.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Ao meu companheiro de vida Ulysses Factum por sempre apoiar todos os meus projetos,
mesmo que lhe exija enorme sacrifício e as minhas tão amadas filhas Amanda e Clarissa, que
constantemente são privadas dos cuidados maternos, mas, apesar disto torcem sempre pelo
êxito dos trabalhos realizados pela mãe. Como designer, elas são meu melhor projeto.
Aos meus pais Laudice e Roberto Simon por tudo que fizeram por mim e por ainda
continuarem fazendo, sem eles seria, literalmente, impossível estar aqui. E aos meus irmãos
Roberto e Ana Cristina por sempre estarem na torcida da caçula da família e, em nome dos
meus trabalhos acadêmicos, vivem me poupando de inúmeras obrigações familiares.
A Professora Dra. Maria Cecília Loschiavo dos Santos, minha orientadora dos estudos de
doutorado e da vida, muito mais do que mestra, é amiga, a vida nos uniu para realizarmos o
sonho de diminuir as diferenças sociais do nosso país através da capacidade propositiva do
design.
A minha ex-colega da UNEB e amiga Mônica Tavares que ao retornar do seu processo de
doutoramento, tratou logo de elaborar e implantar o projeto PQI-CAPES UNEB/FAU-USP
para oportunizar a qualificação de seus colegas do curso de Desenho Industrial, absolutamente
apoiado pelo colega, amigo e na época Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Manoelito
Damasceno, foram eles os responsáveis iniciais, pela oportunidade de ter realizado minha
pós-graduação na USP, uma das melhores universidades da América Latina, quiçá do mundo.
Dando continuidade ao projeto, devo apontar os esforços do gerente da pós-graduação
Professor Edgard Lira sempre solícito as nossas necessidades.
Ao meu amigo, colega de doutorado e ex-colega de instituição Paulo Souza por ter
compartilhado todas as angustias e alegrias desse processo. Porém, o mais importante foi
sonharmos com a possibilidade de um ensino de excelência para o design na Bahia e por
continuarmos não medindo esforços para sua realização.
Aos professores que participaram das minhas diversas bancas examinadoras Profa. Dra.
Mirian Mirna Korokolvas, Prof. Dr. João Spinelli e a Profa. Dra. Marizilda Menezes pelos
valiosos comentários e sugestões.
Aos grandes amigos e amigas que conquistei na cidade de São Paulo, que adotei como minha
segunda naturalidade, Valéria Contessa, Rodrigo Boufleur, Ana Célia Leitão, Manoel da
Coopamare, Rosane Muniz, Luciana Coin, Alessandro Faria e muitos outros tão queridos
quanto os aqui nominados. A COOPAMARE por sempre nos acolher de braços abertos, nos
ensinar com suas práticas coletivas de cooperação, sempre baseadas na solidariedade. E por
nos dar exemplos de construção de caminhos para vencer a exclusão.
Ao Museu Carlos Costa Pinto por sua grande colaboração no desenvolvimento desta tese,
disponibilizando para registro fotográfico o seu acervo de jóias escravas. A Diretora Mercedes
Rosa e a Diretora Adjunta Bárbara Santos por não ter medido esforços para que o referido
trabalho lograsse êxito. E em especial á museóloga Simone Trindade pela sua inestimável
ajuda, sempre acompanhada de uma inigualável simpatia e boa vontade. Também foi de
fundamental importância todo apoio que recebemos da museóloga Ana Maria Azevedo e de
todo o corpo de funcionários desta organização, que tanto orgulha nossa Bahia.
Aos meus queridos amigos, ex-alunos e excelentes designers gráficos Carlo Freitas e Carolina
Garrido responsáveis pelo excelente projeto gráfico desta tese, eles são exemplo de
competência projetual e retidão de caráter, casal 20, com certeza. E ao meu também querido
amigo e ex-aluno Antônio Barbosa pela elaboração do abstract.
Aos meus alunos e alunas que ao longo dos meus 23 anos de docência em design sempre me
ensinaram muito mais do que eu a eles e pela oportunidade de sempre estar a beber da fonte
da juventude.
RESUMO
FACTUM, Ana Beatriz Simon. Joalheria escrava baiana: a construção histórica do design
de jóias brasileiro. 2009. 335 p. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Esta tese é uma investigação sobre a joalheria escrava na Bahia dos séculos XVIII e XIX,
design no Brasil, no que se refere aos objetos classificados como afro-brasileiros, que são
brasileira.
FACTUM, Ana Beatriz Simon. Slaves jewelry from the State of Bahia: the historical
construction of the Brazilian jewelry design. 2009. 335 p. Thesis (Doctoral) – Faculty of
Architecture and Urbanism, University of São Paulo, São Paulo, 2009.
This thesis consists of an investigation about slave Brazilian jewelry in Bahia, in the
Eighteenth and Nineteenth centuries. In order to provide the best understanding of the
phenomena, it goes back and further in time, as it turns out to be necessary. It contributes to
both deepen and widen the knowledge on the history of design in Brazil, in relation to the
objects classified as Afro- Brazilian, which are an outgrowth of the complex relation between
masters and slaves, materialized in the shape, function and meaning of their design.
on the participation of black people in the building process of Brazilian material culture.
Key words: History of design, Jewel, slavery, miscegenation, gender relations, ethnic and
racial relations.
SUMÁRIO
CAPÍTULO I - INTRODUÇÃO
PERMEABILIDADES
IMPERMEABILIDADES
CAPÍTULO V – CONCLUSÃO......................................................................................263
REFERÊNCIAS
ANEXOS II - DOCUMENTO I
CAPÍTULO I
________________________________________________________________
INTRODUÇÃO
1.1 APRESENTAÇÃO
25
O interesse em pesquisar a joalheria escrava baiana nasceu a partir da leitura de um
artigo da designer de jóias, Virginia Moraes I-1, intitulado “A Joalheria Baiana do Século XIX”,
que suscitou em mim a seguinte reflexão: sou uma mulher brasileira e baiana; sou designer de
jóias e professora de design; nasci em Salvador, a segunda cidade mais negra do mundo; a
escravidão no meu país durou 300 (trezentos) anos, o mais longo período de escravidão do
mundo. Então, se eu sou mulher, se eu sou designer de jóias e professora de design, se pesquiso
sobre história do design e se minha cidade é negra... Eu devo mostrar ao mundo a grande
contribuição africana para a história do design e para a história da cultura material brasileira.
Para mim, a joalheria escrava baiana é um dos melhores exemplos desta contribuição porque
mostra como os objetos representam ideologias, relações de poder, questões de gênero e raça,
Vale esclarecer a escolha do título e subtítulo desta tese, Joalheria Escrava Baiana
outra atribuição de nome para estes artefatos: “Jóias de Crioulas”. Mas, deu-se preferência ao
primeiro por contemplar o local de origem do objeto de pesquisa, considerando esta identificação
construção histórica foi eleito para exprimir que o objeto de estudo é produto do longo tempo,
do tempo histórico, entendendo que sua existência só foi possível devido a um longo período
de convivência entre culturas diversas. Considera-se, assim, que o Brasil, devido a sua condição
de colônia, só se constitui enquanto nação através deste processo de vasta extensão temporal,
tanto em relação aos aspectos políticos e econômicos, mas, principalmente, no que diz respeito
à consciência coletiva de sentir-se um povo. Pode-se também afirmar que os objetos, para serem
26 los brasileiros. Esta questão será paulatinamente problematizada ao longo desta tese.
1.2 OBJETO
As jóias das ‘crioulas baianas’ I-2 confeccionadas nos séculos XVIII e XIX consistem
em uma coleção de peças de joalheria, tais como: colares, pulseiras, argolas ou brincos, anéis,
pencas de balangandãsI-3 e outros. Hoje, esses adornos são exemplares de museus, apresentados
2 I- Segundo Reis (2003, p.23): “A população da cidade dividia-se, segundo sua origem, em brasileiros, africanos
e europeus. [...] Mas havia também diferentes cores entre os nascidos no Brasil: o negro, que se chamava crioulo;
o cabra, mestiço de mulato com crioulo; o mulato, também chamado pardo; e o branco”. Portanto, crioulas são as
negras nascidas no Brasil.
3 I- Balangandãs - ornamento de metal em forma de figa, fruto, animal etc., que, preso a outros, forma uma penca
usado pelas baianas em dias de festa; serve também como objeto decorativo, lembrança ou, se miniaturizada, jóia
ou bijuteria; berenguendém [No passado era usado especialmente na festa do Senhor do Bonfim, em Salvador,
pendente da cintura ou do pescoço das afro-brasileiras, e constituía amuleto contra o mau-olhado e outras
forças adversas.]. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/ busca.jhtm?verbete= Balangand%E3. Acessado em
29/08/2004.
Investigar a joalheria escrava baiana traz em seu bojo uma série de pautas que desafiam,
Isso ocorre pois essas jóias eram ornamentos de uso exclusivo das mulheres negras ou mestiças,
sob a condição de escravas, alforriadas, ou libertas. Esta destinação específica, associada a outras
–– A história do design do mundo europeu, que se pretende universal, não possui parâme-
do mundo, bem como das classes subalternas, das mulheres e das etnias historicamente
quase sempre ignorada, tanto como usuária e mais ainda, quanto como projetista.
–– É fato o uso das diferenças biológicas, como as de sexo e raça, para justificar a naturali-
zação das diferenças sociais. A existência de jóias confeccionadas para uso exclusivo das
mulheres negras nos leva a conjecturar sobre a possibilidade de estas jóias significarem
uma manutenção, ou melhor, uma re-construção de identidade cultural para suas usuárias.
Mas, nos leva também a constatar um processo de racialização dos objetos, devido ao di-
recionamento de usuários, já que as mulheres brancas não usavam o mesmo tipo de jóia.
Pretende-se investigar como os objetos de adorno foram utilizados para estabelecer dife-
renças de gênero e raça na história do design, no sentido de provocar uma reflexão sobre
relações de poder do colonialismo têm sobre a interpretação dos objetos. Para isso,
dêmicos, sendo que esta pesquisa se concentra no campo da cultura material e mais
–– Hibridismo cultural - estas jóias são frutos deste fenômeno, enquanto objeto em si re-
técnicas de feitura, na mistura de heranças culturais diversas, e, por isso, não podem
ser classificadas como jóias européias ou jóias africanas. Trata-se de adornos com ca-
de iniciada desde a década de 80 do século XX, sabendo-se, hoje, que ela não existiu
sem uma intensa resistência por parte dos negros e das negras escravizados. A jóia es-
à condição de mercadoria.
Pelo exposto, é possível verificar as inúmeras questões que envolvem o objeto de estudo
seja, a história do design necessita dialogar com um corpo amplo de disciplinas, tais como
antropologia, sociologia, psicologia cognitiva, etc., tal como argumenta Jonathan Woodham I-4
1.3 OBJETIVOS
Demonstrar que a joalheria escrava baiana pode ser considerada como o primeiro
aspectos, exercem uma função hegemônica sobre a forma como os objetos são entendidos na era
pós-colonial, explicando como os artefatos são provas materiais das relações de poder em uma
visa as seguintes metas: promover avanços nas investigações em design, formar designers mais
conscientes do seu papel social por conhecer a história o seu país e sistematizar referências
técnico-produtivo.
–– Sistematizar padrões históricos para fomentar a produção de jóias com uma identi-
sua linguagem. Acredita-se que estes estudos possam se constituir em uma impor-
A presente investigação traz em seu bojo uma série de indagações, mas possui uma
de jóias brasileiro?
Responder sim ou não a essa questão não contempla a complexidade dos objetos que foram
um paradoxo, são, ao mesmo tempo, uma adaptação e uma resistência, tal como afirmava Mahatma
Gandhi I-5 “Adaptabilidade não é imitação. Ela significa poder de resistência e assimilação”.
O conceito de adaptação é definido por Peter Burke (2003, p. 77), quando coloca que a
troca é uma conseqüência dos encontros e que a conseqüência das trocas é distinguível em quatro
segregação e adaptação. A jóia escrava é um fenômeno que pode ser considerado como de
adaptação cultural, que pode ser analisada como um movimento duplo de des-contextualização 31
Para exemplificar Burke (idem, p. 92) apresenta o exemplo das cadeiras de design inglês
que tiveram suas formas alteradas quando copiadas no Brasil, afirmando que as modificações
podem ter sido menos deliberadas, quer por resultarem de diferenças entre tradições artesanais
locais (inclusive tradições africanas, no caso do Brasil), quer pela substituição da madeira inglesa
(nogueira, por exemplo) por madeiras brasileiras como o jacarandá. Burke aponta que as sua
linhas retas e os seus ângulos das cadeiras inglesas foram suavizados quando seus designs foram
copiados no início do século XIX no Brasil, citando Gilberto Freyre: “O estilo inglês de móvel
5 I- O objetivo desta citação não é fazer apologia aos ideais pacifistas de Mahatma Gandhi, e sim demonstrar que
conceitos opostos coexistem e se materializam em objetos que são a expressão de fenômenos sociais. Citação
publicada no catálogo de divulgação do Museu da Diáspora Africana, São Francisco, Califórnia, EUA, S/D
(tradução da autora).
Até o momento, argumentou-se sobre a assimilação, mas a adaptabilidade é também
poder de resistência, como defende Raul Lody (2001, p. 17), no livro Jóias de Axé: fios-de-
mais recente tomado pela historiografia da escravidão. Tal posicionamento difere dos dois
representado pelos estudos da “Escola Paulista”, ou seja, por aquela antiga visão do senhor
vítima respectivamente, que evidentemente, são diferentes, porém ambas não consideram os
32
escravos como agentes da sua própria história, (Reis, 1999, p. 437-438).
Com isso, pode-se constatar que o direcionamento desta investigação não corrobora
com os pressupostos da democracia racial brasileira, aliás, enfaticamente combatida pelos mais
renomados acadêmicos brasileiros, como na opinião de Maria Suely Kofes (2001, p.1),
Contudo, é necessário entender como a fusão das culturas francesa, espanhola, africana
produziu o Jazz nos Estados Unidos e como o convívio entre a cultura africana e a portuguesa
gerou a joalheria escrava baiana no Brasil. É preciso atentar para o que alerta o historiador
A partir do que foi colocado são propostas as seguintes hipóteses para a tese:
mistura de heranças culturais diversas, que não podem ser classificadas como européias
resistência, não na sua forma, que é híbrida, mas no seu significado de uso, da resistên-
cia negra ao sistema escravocrata. Portar estas jóias, para a mulher negra ou mestiça,
1.5 METODOLOGIA
Considera-se que uma das maiores contribuições desta pesquisa, sem, obviamente
recente. Os primeiros ensaios datam da década de 1920, mas pode-se dizer que a área só começou
Cardoso (idem, p.15) ainda afirma que “As primeiras histórias do design, escritas durante
o período modernista, tendem a impor uma série de normas e restrições do tipo ‘isto é design e
aquilo não’, ‘este é designer e aquele não’...”. Uma tendência tão opressora que muitas vezes,
principalmente nos momentos inicias deste estudo, indagava-se: a joalheria escrava baiana é
de estudo, do qual o próprio campo do design não foi e não é capaz de dar conta, sem nenhuma
poder contribuir com os iniciantes da investigação científica na área da história do design e, mais
especificamente, com aqueles que desejam incluir nesta história os objetos afro-brasileiros.
de uma forma complexa e problematizada, sem apenas estudar suas características enquanto
objeto em si (estilo, características físicas, tais como: peso, tamanho, aparência, etc.), mas
entendê-lo nas suas dimensões sociais, políticas, econômicas, culturais, etc. Ou seja, entendê-
lo enquanto cultura objetificada, “já que são os objetos culturais que viajam e transitam, sendo
resignificados na medida em difundem tanto a cultura de onde partiram, quanto aquela a qual
Por adotar este caminho de diálogo com vários campos do saber, foi necessário percorrer
6 I- Margolin, Calvera, Bonsiepe, Woodham, Loschiavo, Sparke, Fry, Cardoso, Balcioglu, Salinas, Cooper, Moraes,
entre outros.
por uma extensa bibliografia (história, arte, joalheria, sociologia, hibridismo cultural, escravidão,
etc.) e por quase não existir bibliografia específica sobre as jóias escravas baianas (dois livros
e uma dissertação) foi necessário ampliar significativamente a revisão de literatura e, com uma
atitude de detetive, identificar cada pequeno trecho deste vasto universo que pudesse revelar
Universidade de São Paulo adotou a Nouvelle Histoire, de Fernand Braudel e outros historiadores.
Esta opção significou eleger a ruptura por eles proposta, ou seja, posicionar-se contra o que eles
Consolidou-se o acerto na escolha dos pressupostos teóricos de Braudel e nasceu uma convicção:
é insuficiente o uso único da Nova História, “os Analles I-7 tem clara percepção da sua riqueza
Em relação ao acerto na adoção da linha braudeliana como alicerce teórico da pesquisa, se inclui
o livro da professora Marina Waisman (1990, p. 54), de título “El Interior de la Historia – historiografia
arquitetônica para uso de latino-americanos”. A autora, a partir de sua investigação, constatou que a
estudos, identificou-se que ocorria o mesmo na joalheria escrava baiana e que estes artefatos possuíam a
condição dos objetos forjados nas condições sócio-históricas dos países da America Latina,
capa de longa duração na estratificação histórica, que nos permita uma aproximação a pautas
como proposto por Fernand Braudel, argumentando que, para o campo de estudos da arquitetura
latino-americana, podem-se aplicar estas distinções com grande utilidade, ou seja, a curta
urbana, com alguns códigos lingüísticos como das ordens clássicas, como certas “invariantes”
I-8
nacionais ou regionais e como certos tipos arquitetônicos. Segue argumentando sobre a
pertinência da metodologia braudeliana em situações que exigem uma dupla leitura dos fatos
arquitetônicos, tanto conjuntural, quanto estrutural, sendo uma condição comum a quase todas
Reconhecer a capa de longa duração na jóia escrava baiana é possível em dois eventos
inerentes a estes artefatos, o primeiro deles é o da sua aparição, só possível no tempo estrutural,
no Brasil. O segundo, é a condição da jóia escrava ser um evento que excede, e muito, a sua
concretude espaço-temporal, exige a longa duração para formar as condições objetivas para sua
aparição nos séculos XVIII e XIX, bem como a sua permanência no tempo, pois algumas destas
jóias são confeccionadas ainda hoje. Alguns exemplos são os balangandãs, um souvenir típico da
Bahia muito apreciado pelos turistas estrangeiros; os adornos usados pelas mulheres que participam
37
da Irmandade da Boa Morte I-9 da cidade de Cachoeira, mantendo a tradição do uso das jóias em
termos de arranjo e quantidade, talvez ainda existam algumas em ouro, outras são em prata ou em
prata dourada e a maioria são colares em metal dourado e colares de contas dos orixás.
Também no candomblé, algumas de suas adeptas ainda usam réplicas em prata de alguns
tipos destas jóias, principalmente o colar de crioula de contas de ouro filigranadas. Não importa
Apesar de a ênfase estar sendo dada ao aspecto da permanência, sabe-se que a proposta
9 I- Originária da cidade de Cachoeira na Bahia, a Irmandade da Boa Morte é uma das diversas confrarias católicas
do século XIX (até anterior segundo alguns estudiosos), que reuniam escravos e escravas emancipados de diversas
etnias africanas existentes na Bahia.
10 I- Vernacular é um termo muito usado no campo do design apropriado da área de línguas, na história do ocidente
a língua considerada culta era o latim e as demais eram línguas vernáculas. Portanto se estar a usar o termo
vernacular por entender-se que as jóias escravas e suas permanências são fruto desta condição, ou seja, por força
da cultura popular, do povo, da rua e não da cultura erudita, da academia, dos museus (Stair, 2002, p. 70-88).
da Nouvelle Histoire observa tanto as continuidades quanto as rupturas. Não resta dúvida que
muita coisa mudou, mas muita coisa permanece como antes, várias práticas iniciadas no período
que se refere aos opressores, como no que se refere aos oprimidos (Pinho, 2004, p. 235).
Ainda nos momentos iniciais da pesquisa, os estudos de Eduardo França Paiva (2001)
contribuíram significativamente para uma melhor compreensão das jóias escravas e de suas
usuárias. Apesar de ser uma investigação em Minas Gerais, termina por estudar a jóia escrava como
demonstração da mobilidade soc ial das mulheres negras do século XVIII, ao analisar seus inventários
post-mortem e testamentos. Faz uso dos pressupostos da longa duração, tal como coloca,
Adere-se também à proposta de Paiva (2001), que trabalha em duas perspectivas: entende a
jóia escrava como objeto híbrido, indicando a existência da permeabilidade cultural, e como design de
resistência, demonstrando a impermeabilidade cultural, fenômenos típicos da longue durée. Uma via
de mão dupla, como se pode perceber na afirmação do autor supramencionado (idem, p.38):
Para estudar a joalheria escrava baiana como um fenômeno do hibridismo cultural, existe
etc., até os contemporâneos como Homi Bhabha, Stuart Hall, Ien Ang, Nestor Canclini, Serge
Gruzinski, Edward Said, Peter Burke, entre outros (Burke, 2003, p.15 a 20).
investigar a fundo questões a ele inerentes. Para realizar este procedimento de forma ordenada,
Universidade Federal da Bahia, a FCH 762 - A Nova História da Escravidão, ministrada pelo
Professor Doutor João José Reis e a FHC 764 - África Negra: Colonialismo, Modernização,
O motivo que conduziu ao curso da disciplina Nova História da Escravidão é óbvio: não
seria possível discorrer sobre jóia escrava sem a compreensão do que foi e como interpretamos hoje
objeto de uso exclusivo das mulheres afro-descendentes sem conhecer a sua herança africana.
agentes de sua própria história, compreendendo que a rebeldia escrava não se constitui
unicamente de atos coletivos e de grande vulto, mas também de pequenas e cotidianas
produzido (Guyatt, 2000, p.95), possibilitando desvelar como estes adornos se constituíram
vigente no Brasil por mais de 300 anos. Para tanto, é necessário apontar que o que possibilita
a realização desta investigação, sem dúvida, se deve ao direcionamento mais recente tomado
A visão do escravo como incapaz de ser agente da sua própria história sempre existiu. Na
Inglaterra do século XVIII, dentro do próprio movimento abolicionista da época, que adotou-se
40
como símbolo a sua adesão o medalhão escravo de Wedgwood I-12. No medalhão, há a figura
de “um homem com características negras, com as mãos amarradas e elevadas para o céu,
e o escravo era claramente a parte submissa”, como tão bem analisa Guyatt (2000, p. 99).
12 I-Josiah Wedgwood (1730-95), um dos mais famosos ceramistas britânicos e empresário, produziu o medalhão
escravo em 1787, como contribuição pessoal para a campanha da abolição do tráfico escravo (Guyatt, 2000, p.93).
13 I- Disponível em http://www.overmundo.com.br/blogs/os-estudos-africanos-no-brasil-parte-1. Acessado
em 12/06/2008.
À vista da colocação acima, como não ir à África? Como não verificar que são Áfricas,
um continente formado por 54 países e que nesta divisão territorial coexistem vários povos?
Como abordar um artefato denominado “jóia escrava” sem conhecer o legado que veio da África,
não toda ela, por ser tarefa hercúlea, para não dizer impossível, porém nacos significativos de
instância, necessário compreender que as pessoas se apropriam dos artefatos no seu cotidiano
de modos que nem sempre são pré-determinados. Os usos que são dados aos artefatos têm
mostrado que os seres humanos são mais criativos quando se trata de manter as relações de poder
existentes ou iniciar e implementar novas. Como um significativo exemplo disso, a jóia escrava
permite uma intrigante discussão sobre design e poder. Como fundamentação teórica para essa
discussão foi empregada a teoria de Michel Foucault que ainda é uma das mais valiosas fontes
41
usadas para desvelar relações de poder que atuam sobre o corpo, e como os efeitos do poder são
A contribuição de Michel Foucault nesta tese deve ser notada nas entrelinhas e de forma
a questão do poder nas sociedades capitalistas, principalmente sua relação com a produção da
do autor sobre o sujeito na sua relação com o poder sobre si mesmo e sobre os outros (História
da Sexualidade I, II e III) e nos três aspectos essenciais da sua atitude como pensador apontados
por Marisa Eizirik (2005, orelha do livro): “o trabalho como experiência em desenvolvimento
14 I- Contribuição do(a) avaliador(a) do Congresso EAD06 (European Academy of Design - 2006), 2005.
Pelo dito, pode-se perceber o quão além da Nouvelle Histoire o presente estudo se
encontra, não por abandono e sim por entendimento dos seus limites, tal como coloca Reis
questão não é desta seara. Concorda-se com ele na medida em que é detentor da capacidade
de expressar o Zeitgeist, o espírito da época, o que se estar a vivenciar desde o final do século
XX até os nossos dias. Com isso, há a confortável sensação de não estar só e almejar pertencer
ao coletivo composto por teóricos e historiadores do design que contribuem para colocá-lo a
Cardoso, Victor Margolin, Jonathan Woodham, Cheryl Buckley, Penny Sparke, Marina Garone,
15 I- Tema do Congresso Internacional de Sociedades do Design Industrial (International Congresso of Societies
of Industrial Design – ICSID), em 1997, Toronto-Canadá.
ainda foi necessário mais um exame para a efetiva mudança de nível e finalmente, após a banca
de passagem do nível de mestrado para o nível de doutorado em junho de 2006, novos avanços
de 2006. A disciplina História e Narrativas sob a responsabilidade da Profa. Dra. Maria Helena
Toledo Machado, indicou que a investigação sobre as jóias escravas pertence também à área
de estudo denominada Hermenêutica do Cotidiano na vertente proposta pela Profa. Dra. Maria
de dar voz aos silenciados da história, como indica Maria Odila Dias (idem, p. 252):
Jóia Escrava Baiana: Questões de gênero e raça na história do design no Brasil indicou uma
se impõe a análise das relações entre poder e design numa abordagem conjunta. Logo, foi
necessária a modificação da estrutura inicial da tese para uma nova versão apresentada no
exame de qualificação (Quadro 1.1). No entanto, a escritura final de uma tese incorpora em seu
processo o refinamento de todo o trabalho realizando, exigindo novas mudanças que podem
ser conferidas comparativamente no Quadro 1.2., que termina por mudar também o nome do
1. INTRODUÇÃO 1. INTRODUÇÃO
2. CAPÍTULO I: HISTÓRIA DO DESIGN NO 1.1.
Objeto
BRASIL: CONTRIBUIÇÃO NEGRA 1.2.
Objetivos
1.3.
Hipóteses
3. CAPÍTULO II: JÓIA COMO OBJETO DO 1.4.
Metodologia
44 DESIGN
2. HISTÓRIA DO DESIGN NO BRASIL:
4. CAPÍTULO III: QUESTÕES DE GÊNERO CONTRIBUIÇÃO NEGRA
E RAÇA NA HISTÓRIA DO DESIGN NO 1.1. Visão Panorâmica
BRASIL 1.2. Ourivesaria: as técnicas de confecção da
jóia escrava
5. CAPÍTULO IV: DESIGN DE RESISTÊNCIA –
IMPERMEABILIDADE X OBJETO HÍBRIDO 2. A JÓIA COMO OBJETO DO DESIGN
– PERMEABILIDADE 1.2. Jóia Escrava: objeto híbrido -
permeabilidade
6. CAPÍTULO V: TÉCNICAS DE CONFECÇÃO
E DESCRIÇÃO DA JOALHERIA ESCRAVA 3. JÓIA ESCRAVA: QUESTÕES DE
(CATALOGAÇÃO) GÊNERO E RAÇA NA HISTÓRIA DO DESIGN
NO BRASIL
7. CONCLUSÕES 1.3. Gênero e Raça
1.4. Design de Resistência - impermeabilidade
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
QUADRO 1.2 – Comparação entre a estrutura da tese no exame de qualificação e ao final.
existe um sem número de dúvidas, hesitações, incertezas. Contudo, neste processo se configurou
mas que paradoxalmente terminam por fundamentar uma mesma conclusão I-16.
O principal conflito teórico se dava no campo das representações sociais destas jóias, muitas
vezes exemplificavam-se situações, simbolizadas pelo artefato, da relação senhor versus escrava,
na linha do modelo freyreano, senhor paternalista/escravo conformado, indicando que estas jóias
representavam essa permeabilidade, como uma adesão ao que se denominou democracia racial
brasileira. Essa suposta democracia racial nasce do mito de origem tão difundido no país, uma
46 história que é contada e recontada, o mito fundador: os brasileiros são um resultado da mistura
racial dos europeus, índios e negros, ou seja, a idéia e a noção de miscigenação amistosa, como se
a ordem social do país não fosse tensa e conflituosa desde o século XVI. Ao contrário disso, o que
se tem na relação senhor versus escravo são situações de negociação e conflito. E as situações de
Mas, com o aprofundamento dos estudos sobre arte afro-brasileira, logrou-se um caminho
engajados no Movimento Negro, ao afirmar que esta arte nada tem a ver com os ideais de pureza.
Com isso, nossa dupla abordagem em relação à jóia escrava baiana se dará da seguinte forma:
–– Ao tratar a jóia escrava em si mesma, ou seja, nas suas características estilísticas, será
16 I- A definição da palavra dilema é oriunda do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Disponível em: http://
houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=dilema&stype=k. Acessado em: 13/06/2008.
–– Ao abordar a jóia escrava como símbolo das relações sociais e como significado para
como a sociologia para mencionar as mais importantes e de maior recorrência, promove o risco
efetivo de sair da área de investigação, a área Desenho Industrial (Design) nome de classificação
da área no CNPq, vinculada à grande área de Ciências Sociais Aplicadas. Para não perder a
área, O Design Posto em Questão e Design e Cenografia, ambas ministradas pela Profa. Dra.
Maria Cecília Loschiavo dos Santos, pela vasta bibliografia estudada sobre a teoria e história
do design, bem como as suas orientações, devido ao corpo de conhecimento já construído pela 47
referida pesquisadora, sendo basilar e estrutural nos processos e resultados desta tese. Destaca-
se como fundamental a sua sensibilidade tanto vivencial, quanto teórica, dos assuntos baianos,
que pode ser constatada em sua própria fala (SANTOS, 2004, p.51),
A autora ainda acrescenta que a Bahia lhe deu as primeiras lições de diversidade cultural,
um povo, percepções fundamentais à compreensão do fenômeno das jóias crioulas baianas, essa
ao significado (simbolismo) que possuíam para suas usuárias, como argumenta em relação aos
referida autora vem se dedicando nos últimos anos, onde examina temas relativos ao design e
48
suas relações com a exclusão sócio-cultural e espacial, design e atendimento a necessidades de
supracitada são alicerces do conceito de design de resistência vinculado às jóias das escravas da
Além disso, poderá se constatar, ao longo da obra da professora Maria Cecília Loschiavo
dos Santos, a busca por um ensino do design e uma prática profissional do designer que não se
submetem às exigências de uma sociedade que se apropria do design com uma compreensão
restrita a objetos de luxo, para o consumo de poucos. Ao contrário disso, forma pesquisadores
que buscam o compromisso ético do design, aquele que está a serviço das reais necessidades da
população deste país, como se averigua na colocação a seguir (ibidem, 2008, p. 65):
Mais do que nunca a palavra design ganha um sentido muito próximo, quase
um sinônimo a luxo e a alto poder aquisitivo. Essa compreensão restrita do
design repercutiu fortemente numa visão autoral da história do design, bem
como favoreceu discursos sobre a identidade cultural do design, equivocados
e distorcidos. No caso da identidade cultural brasileira, esse processo gerou
a imagem exótica de um Brasil tropical, à la Carmem Miranda, tão ao
gosto da cultura caricata de aeroporto. Essa concepção acaba obliterando
a diversidade, o hibridismo e a mestiçagem cultural dos grupos sociais e
étnicos que deram origem à formação cultural de nosso país.
Não é só elaborar uma tese, é uma adesão ao que Mª Cecília Loschiavo (2002, p.122)
número maior de pesquisas empregando fontes primárias, que possuem uma considerável
49
diversidade, mas do que uma característica se trata de uma indicação teórico-metodológica
ou testamentos de ourives do século XIX foi uma estratégia sugerida pela Profa. Dra. Maria
Helena Toledo Machado, quando cursamos sua disciplina no segundo semestre de 2006. O
objetivo era encontrar relacionada no inventário alguma encomenda de jóia escrava solicitada
por uma mulher negra e, a partir desta descoberta, verificar se a contratante possuía também
inventário post-mortem e/ou testamento. Tal investigação, além de ser uma necessidade imposta
pela metodologia escolhida, reverte-se da maior importância por ser a única maneira de dar voz
a estas mulheres, tal como fez Eduardo Paiva em suas pesquisas em Minas Gerais, como aponta
Graças a este livro, distantes do retrato embaçado que lhes costuma fazer
a historiografia, figuras como a de Bárbara saem das sombras para a luz.
Não se trata aqui de descrever mais uma escrava que passeia publicamente
os bens de seus senhores imediatamente devolvidos ao voltar para a
senzala. Não! Seus enfeites e bens lhe pertenciam, sendo a prova de sua
eficaz mobilidade social. A mobilidade, por sua vez, comprova as astúcias
e manobras engendradas para consolidar tal fortuna. Bárbara, uma exceção
que confirma a regra? Mais uma vez, não. Mulheres como Maria da Costa
Silva, crioula forra, também possuía objetos em ouro e aljôfar entre outros
bens enquanto a africana Joana Silva Machada, comerciante e aventureira,
enriquecera transitando com desenvoltura entre autoridades e “homens
bons”. Por sua vez as pretas forras Joana da Costa Pontes e Antonia Barreta
de Faria eram possuidoras de escravos e de outros bens.
que seja capaz de reconstruir, ainda que parcialmente, a vida das mulheres que usavam as
jóias escravas é uma forma a desvelar com maior precisão as razões da existência destes
ourives com inventário post-mortem. Trata-se de Joaquim de Santana e Almeida, cuja transcrição
foi realizada pela historiadora Jacira Primo. Chega-se ao nome do ourives e a informação que
o mesmo possuía inventário, devido ao trabalho realizado pela historiadora Marieta Alves,
no livro “Dicionário de artistas e artífices na Bahia” (1976, p.21), no ANEXO II, há uma
foto digital da primeira página do inventário e sua transcrição. Porém, não existia nenhuma
encomenda realizada por qualquer mulher, nem branca, nem negra. Ainda se tentou localizar os
esposa, filhos, uma escrava e um escravo. Não foi encontrado no Arquivo Público do Estado da
pesquisadora não possuir formação na área de história e a impossibilidade de uma tese ser
realiza por uma equipe multidisciplinar. Também existem limitações no que se refere aos
ao design e à cultura material devem ser realizadas por equipes multidisciplinares, que
Esta tese está estruturada em 5 (cinco) capítulos, como relatado a seguir. O primeiro e presente
capítulo trata da introdução da tese, onde constam as informações sobre os percursos teóricos-
metodológicos da elaboração de tese, tais como: motivações e justificativa, o objeto de estudo e sua
uma visão panorâmica das contribuições africanas para o design brasileiro, desde a sua pré- 51
figuração até os dias atuais. A seleção dos objetos seguiu a metodologia usada pela história da arte
ambíguo da sociedade brasileira, na qual as cercas das identidades vacilam, os deuses se tocam,
os sangues se misturam, na qual as identidades étnicas, embora defensáveis, nada têm a ver com
leis de “pureza” I-17. Então, os objetos serão selecionados conforme as diferentes seções propostas
por Silva e Alcântara (2004). Como resultado tem-se a produção de material bibliográfico para
inicia-se com uma breve explicação sobre a jóia escrava como objeto do design, a condição
quais os executores destas jóias na Bahia dos séculos XVIII e XIX e finaliza com um dossiê
no objeto jóia e mais especificamente na jóia escrava. Prossegue com o objetivo de revelar como
os objetos de adorno foram utilizados para estabelecer diferenças de gênero e raça na história
do design no Brasil, no sentido de provocar uma reflexão sobre as atuais práticas de projeto que
costumam perpetuar os objetos como símbolo de desigualdade entre os sexos e os povos. Com
e inter-raça, inter-gênero e intra-raça e como os objetos de adorno, as jóias usadas pelas mulheres
O Anexo I é composto por fichas das jóias escravas por tipologia, trata-se de uma organização
de parte do registro fotográfico das jóias escravas existentes em museus da cidade do Salvador.
Esse trabalho de catalogação e fichamento teve início no ano de 2002, portanto, antes de pertencer
Paulo. Neste período foram registradas todas as peças do acervo Museu de Arte da Bahia e todo o
acervo de jóias do Museu do Traje e do Têxtil do Instituto Feminino da Bahia. Porém, o principal
acervo, devido à maior quantidade, variedade e porte das jóias que o compõe, é o da coleção de
jóias escravas do Museu Carlos Costa Pinto. Em 2005, foi realizado o trabalho neste museu com o
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com todos os africanos que aqui foram escravizados e, pelas mesmas razões da recente implantação
das ações afirmativas, não existe margem para questionamento, pois dívida não se questiona, se
paga! E assim sendo, é fundamental concordar com Emanuel Araújo (2004, p. 243),
Também aspira proporcionar uma visão panorâmica das contribuições africanas II-1 para
1 II- Neste capítulo sempre que houver referência a África trata-se da África negra, a subsaariana, pois os povos
que vieram para o Brasil como escravos são procedentes dessa região.
o Design brasileiro, desde a sua pré-figuração até os dias atuais. Por isso, este capítulo constitui
uma parcela dos esforços, ora existentes no Brasil, para a construção da história do Design
brasileiro, que não pretende repetir o erro do lamentável desinteresse pelos assuntos não-brancos
do discurso histórico anterior. Ou seja, a História do Design do mundo europeu, que se pretende
universal, não possui parâmetros que dêem conta da especificidade de objetos forjados em
incorporar à História do Design novo material, das regiões menos desenvolvidas do mundo,
bem como das classes subalternas, das mulheres e das etnias historicamente discriminadas,
tarefa também assumida pela exposição comemorativa deste fato denominada “Mostra do
Redescobrimento”. Tem-se aqui a mesma questão vivenciada pelo Prof. Kabengele Munanga
2 II- Refere-se à ausência de parâmetros em relação ao estudo das contribuições africanas para o design brasileiro.
Considera-se que a história do design no Brasil tem avançado significativamente devido aos esforços de inúmeros
atores, tais como: congressos científicos, revistas acadêmicas, professores e pesquisadores da área e de outras áreas
do conhecimento devido ao crescente interesse pelo design.
brasileiros, a forma, a técnica e o estilo, isoladamente, podem ser inspirados
na tradição artística africana sem necessariamente integrar a temática,
as fontes de inspiração, a iconografia e o universo simbólico familiares
ao mundo africano tradicional e contemporâneo. Em outras obras, estas
últimas características podem aparecer reinterpretadas e recriadas dentro de
estruturas e de estilísticas que nada ou pouco têm a ver com as africanas.
Excluir uma ou outra deste módulo, em nome de uma arte afro-brasileira
autêntica que não seriamos capazes de delimitar nitidamente, uma obra
que, além da origem étnica do artista, integraria no mesmo corpo todas as
características acima evocadas, seria ignorar as ambigüidades da sociedade
brasileira, sociedade na qual as cercas das identidades vacilam, os deuses
se tocam, os sangues se misturam, na qual as identidades étnicas, embora
defensáveis, nada têm a ver com leis de “pureza” (grifo do autor).
questões de fundo que devem ser explicitadas. Em primeiro lugar, como se entende o sincretismo
cultural da citação acima em relação à cultura material brasileira, não se irá advogar em favor
do mito fundador, nem a favor da fábula das três raças, mas é sabido que são as premissas do
busca a “essência” da identidade brasileira, nem da identidade africana nos exemplos mais adiante
elencados. Estes são frutos da valorização e reconhecimento da particularidade negra que é social
Em segundo lugar, será observado que a maioria dos objetos possui procedência baiana
(exceto os exemplos vindos da África), sem dúvida pela Bahia ser constantemente citada como
a parte mais africana do Brasil, e mais, como coloca Pinho (2004, p.19),
de qualquer período histórico (do colonial até hoje) perpassam pela tese de Eric Hobsbawm
(2002, p.13) das tradições inventadas, afirmando que “houve adaptação quando foi necessário
conservar velhos costumes em condições novas ou usar velhos modelos para novos fins”. Visto
que, quando se é retirado da sua terra natal de forma brutal para ser escravizado, se passa por
um processo de perda de identidade étnica, não existindo, portanto, o que se manter e sim, a
objetificadas da cultura negra no Brasil estão profundamente atravessadas por modos e códigos
Após essa breve fala sobre os pressupostos teóricos que embasam esta pesquisa,
retoma-se o assunto da categorização da arte afro-brasileira como referência para este estudo.
Elegeram-se as sessões propostas (vide abaixo relacionadas) por Silva & Alcântara (2004, p.
119) que são oriundas das proposições dos curadores da Mostra do Redescobrimento (2000),
muito diversificado em estilística e intenção, por isto será mais facilmente compreendido se
60
colocado em diferentes sessões. São elas:
3 II- Segundo o Dicionário Houaiss: Indivíduo dos nagôs, designação de qualquer negro escravizado,
comerciado na antiga Costa dos Escravos e que falava o ioruba. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.
jhtm?verbete=nag%F4&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
4 II- Povo que habita o Togo, Gana, Benin e regiões vizinhas, representado entre o contingente de escravos africanos
trazidos para o Brasil. (HOUAISS. Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=jeje&cod=112851.
Acesso em 10/02/2009).
5 II- Grupo étnico que habitava a região da atual República de Angola; andongos [Representados em grande
número no contingente de escravos trazidos para o Brasil entre o início do sXVI e 1850, quando foi proibido
o tráfico negreiro.]. (HOUAISS. Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=angola&stype=k.
Acesso em 10/02/2009).
–– Objetos de uso ritual: onde fica muito clara a dialética Aié-Orúm II-6, importante
aspecto do ideário africano;
–– O momento atual: artistas como Rosana Paulino, Rego Monteiro, Mestre
Didi, Rubem Valentim e fotógrafos como Walter Firmo, Pierre Verger,
Madalena Scharwartz, Mario Cravo Neto, retratando a situação atual da
cultura afro no país;
–– Campo antropológico: como proposta de Raul Lody que estuda a cultura material
corporificada, as Jóias de Axé, pencas guisos dos orixás e fios de contas.
Pretende-se seguir tanto quanto possível as sessões acima estabelecidas, mas existirá
uma ênfase maior nos objetos classificados como design ou artes aplicadas, tanto por ser
o campo específico da pesquisa, como também por haver maior quantidade de registros
em relação às peças classificadas como arte pura ou belas-artes. Esta proposta será seguida
mesmo estando consciente do fato de que a África desconhece uma separação estrita entre arte
aplicada e arte pura. Como aponta Junge (2003, p.39), curador da exposição “Arte da África”
explicando a parte da exposição denominada “Design”, ilustrada na Figura 2.1 um dos objetos
africanos possuem uma utilidade que vai além do seu embelezamento, pois são produzidos para
explicitar a situação social do seu proprietário, salientar seu status com insígnias de prestígio. Mas
também são produzidos assim porque podem ser instrumentos cerimoniais ou evocar um mito
6 II- Segundo Ribeiro (2008, p.35 e 36): Entres os iorubas, enquanto Olodumaré, deus supremo, e os orixás estão
associados ao Orun, mundo transcendental, o homem está associado ao Aiyê, mundo físico composto pelo céu,
pelo mar, pela terra e, mais especificamente ainda, ligado a ilê (terra, casa, território).
62
Figura 2.1 – Apoio para nuca. Uganda, Lango. Séc. XIX (madeira, fibra vegetal, comprimento 24 cm).
Imagem digitalizada do catálogo da exposição Arte da África (JUNGE, 2003, p. 219). Para dar a este
apoio para nuca esta forma elegantemente arqueada, a madeira cortada e polida foi vergada enquanto
estava molhada. Este processo de fabricação lembra o das chamadas “cadeiras vienenses” da marca
Thonet, fabricadas na Europa desde meados do século XIX. / Anke Scharnbeck (2003, p.219).
compartilhado pela cultura local, já que transmitem um significado simbólico. Ou seja, “em categorias
colheres, a ornamentação ou a forma devem ser significantes e tão belas quanto possível, porque os
do Design é o fato desta área de estudo, talvez por sua existência bem mais recente, não
seja, qual é a arte africana tradicional e autêntica. Destituída deste foco, pode-se ampliar
Analisando a citação acima, percebe-se que as pessoas que produzem qualquer artefato
na África, seja ele considerado objeto de arte ou não pelos ocidentais, se aproximam mais da
do branco, como um legado dos portugueses, principalmente. Quanto aos índios e aos
negros, o que se tinha em conta como legado era uma força bruta destituída de qualquer
capacidade intelectual.
invenção brasileira, ele tem uma longa existência no Ocidente. Ele prevalece desde a
Antiguidade, quando quase não existia esta noção, o que não impediu Heródoto (século
voz humana, até o estabelecimento da teoria da raça no século XIX, quando ocorreu um
fenômeno no mínimo intrigante: quanto mais antiescravagista se tornava a sociedade do
século das Luzes, mais se intensificava o racismo de cor, ao final do século já se constituía
intensa de escravos negros, pelos árabes, na Idade Média, que os consideravam como
uma raça inferior reservada à escravidão, para exemplificar que não apenas os ocidentais
engendraram tudo.
A escravização dos negros africanos, antes de ocorrer nas Américas, foi testada
nos anos de 1470, em uma ilha não habitada chamada São Tomé ao fundo do golfo da
de escravos ao longo dos anos, explodindo uma grande revolta entre 1530/36: “Foi a partir
do século XVI até a assinatura do denominado código negro por Luís XIV em 1685, sendo
necessário justificar essa discriminação. Por isso, os teólogos trataram de demonstrá-la através
da maldição de Cam II-9, acrescentando-se ao texto sagrado II-10, vários contos, entre os quais
aquele em que Cam concebe um filho durante o dilúvio e é amaldiçoado por Deus que faz a
No século XIX, antes mesmo de Darwin publicar (1859) a sua teoria da evolução das
7 II- No Brasil (meados do século XVII), nas Antilhas (fim do século XVII), na Martinica (século XVIII) Cuba
(ultimo terço do século XVIII).
8 II- Nos Estados Unidos no inicio século XIX.
9 II- Filho de Noé.
10 II- “Em si mesma, a Bíblia não é portadora de racismo antinegro, pelo contrário. A questão aparece duas ou três
vezes – e não se trata de da maldição de Cam, já que, nela, a referência ao povo negro é uma invenção apócrifa
ulterior” (COQUERY-VIDROVITCH, 2004, p. 750).
espécies, o conde Arthur Gobineau, entre 1853 e 1855, já propalava seu ensaio II-11, no qual
defende abertamente a superioridade branca. Sabe-se que ele não era o único teórico racista
de seu tempo, mas ganha importância para o Brasil, pois em sua visita de 15 meses como
enviado francês, aponta a inviabilidade do país, em termos “civilizatórios”, por ser composto
predominantemente por raças mistas. Esta breve exposição demonstra como a superioridade
de Portugal com a África, no século XV, os diversos povos africanos, fossem eles da região
sudanesa ou bantu II-12, possuíam o mesmo desenvolvimento técnico dos europeus. Porém, mais
do que desenvolvimento técnico, os povos africanos que vieram escravizados para o Brasil
possuíam uma cultura vigorosa, da região que abrange o leste do rio Volta até o delta do rio
65
Níger (vide mapa da região na Figura 2.2), onde viviam os akans II-13, ewes II-14, fons II-15, iorubas
II-16
, entre outros, e onde existiam grandes áreas dominadas por reis que ostentavam muito luxo e
11 II-Essai sur l’inégalité des races humaines (1855), em português: Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas.
12 II- Regiões de concentração do tráfico para o Brasil: 1) Ewe-fon (mina-jeje): Gana, Togo, Benim; 2) Nagô-
Iorubá: Reino de Queto (Benim) e Nigéria; 3) Bantos: Gabão, Congo, Congo-Kinshasa, Angola e Moçambique.
CASTRO, Yêda Pessoa de. Das línguas africanas ao português brasileiro. In: Patrimônio – Revista Eletrônica do
IPHAN, 2007. (http://www.revista.iphan.gov.br/materia.php?id=214).
13 II- Conforme o Dicionário Houaiss: diz-se de membro de qualquer povo falante da língua akan ou língua falada
na região do golfo da Guiné (República de Gana e República da Costa do Marfim) [Freq. considerada conjunto de
línguas nigero-congolesas, subgrupo do Kwa.]. Disponível em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=
akan&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
14 II- Etimologia: africanismo; o ing. é de 1890; diversamente transliterado tb. como awuna, ehue, evé, yewe etc.
Ewe = Jeje. Segundo Cacciatore, prov. do ior. ajeji ‘estrangeiro, estranho’, design. que os iorubas, no Daomei,
atribuíam aos povos vizinhos, os daomeanos. ( Dicionário Houaiss. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/
busca.jhtm?verbete=jeje&stype=k. Acesso em 10/02/ 2009.
15 II- Indivíduo dos fons ou dialeto do Ewe, da família nigero-congolesa de línguas africanas, falado por eles. Povo
de agricultores do Sul da República de Benin e da República Federal da Nigéria. Disponível em: http://houaiss.
uol.com.br/busca.jhtm?verbete=fon&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
16 II- Povo africano do Sudoeste da República Federal da Nigéria, com grupos espalhados tb. pela República de
Benin e pelo Norte da República do Togo [Trazido em grandes levas para o Brasil, onde recebeu a denominação
de nagô (ver)... Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=ioruba&cod=110455. Acesso em
10/02/2009.
riqueza, incentivando a construção de edifícios sofisticados e fomentando a produção de objetos
de rara beleza. Eram reinos vinculados à cidade de Ifé II-17 e foi dessa região que saiu grande
parte dos africanos traficados para América, prisioneiros de guerras entre os grupos aí existentes
Já os povos bantos (um termo que serve para designar todos os africanos que possuem falas
aparentadas), antes dos portugueses aportarem na foz do rio Congo, já havia ocorrido à denominada
historicamente expansão banta, que em 2500 anos modificou a face da África. Ocupando regiões (vide
mapa da região na Figura 2.3) que antes eram habitadas por povos nômades, eles eram agricultores,
viviam em aldeias e dominavam a metalurgia. Esta atividade, fundição de metais, exigia altas
temperaturas e para obtê-la, queimava-se uma grande quantidade de madeira das florestas do entorno,
terminando por abrir amplas clareiras, que por sua vez eram propícias à agropecuária (idem, p. 21).
O reino do Congo (de língua banto) foi uma das civilizações de grande prestígio desta região,
66
o seu soberano relacionava-se com o rei de Portugal de igual para igual e dentro da complexa estrutura
social e administrativa (rede comercial, sistema monetário, sociedade hierárquica rígida) que organizava o
território, era autoridade suprema e terapeuta sagrado de toda a nação. Nessa região, além dos congoleses,
viviam os cokwes II-18 (quioco, tchokwe, khoi, chokwe, etc.), os lubas II-19, entre outros, e como já visto
com os povos iorubas, o rei era o núcleo em que repousam e de onde se irradiam as forças de vida que
mantêm a coesão e a prosperidade do reino. Foram os objetos de suas cortes que subsistiram como raros
17 II-Segundo MEYER (2001, p.21): Os Yoruba atribuem a Ifé, a sua cidade santa, uma origem mitológica. Seria
o lugar onde os deuses teriam descido do céu para povoar o mundo. Os filhos do primeiro grande deus Oduduwa
teriam criado os seus próprios reinos, e os soberanos de Ifé são ainda considerados pelos seus súditos como
semideuses.
18 II- Povo indígena que habita o Sul da República Democrática do Congo (ex-Zaire), do rio Kwango a Lualaba, a
Nordeste de Angola e Noroeste da Zâmbia. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=quioco
&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
19 II- Luba = Baluba, povo que habita o Sul da República Democrática do Congo (ex-Zaire). Disponível em: http://
houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=baluba&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
Todos os exemplos de objetos, técnicas e processos produtivos aqui relacionados
não possuem necessariamente uma relação direta com os artefatos afro-brasileiros, mesmo
porque vários deles, principalmente aqueles que tinham funções e significados simbólicos
67
Figura 2.2 - Mapa de uma das regiões da África onde viviam alguns dos povos que vieram
como escravos para o Brasil. Imagem digitalizada do catálogo Mostra do redescobrimento: Arte
Afro-Brasileira (AGUILAR, 2000, p. 36).
Figura 2.3 - Mapa de uma das regiões da África onde viviam alguns dos povos que vieram
como escravos para o Brasil. Imagem digitalizada do catálogo Mostra do redescobrimento: Arte
Afro-Brasileira (AGUILAR, 2000, p. 37).
enquanto suportes materiais e espirituais do poder e da autoridade, não puderam encontrar um
espaço para continuidade e recriação no Brasil por uma simples razão: as cortes e instituições
reais que eles representavam não foram trazidas também. Aqui, foi no campo religioso onde
Os povos africanos que foram trazidos para o Brasil já dominavam a metalurgia desde
o primeiro milênio a.C. e produziam peças em bronze pelo processo da cera perdida e em
terracota; praticavam o artesanato em vidro e possuíam uma grande perfeição na arte cerâmica;
desde o Paleolítico Inferior até os nossos dias, em que as pinturas dos Bosquímanos chegam a
incluir até automóveis e outros bens de consumo da tecnologia ocidental; além disso, há a arte
em escultura, considerada por Cunha como a maior contribuição da África negra do ponto de
68
vista técnico e artístico (Cunha, 1993, p. 977).
Vários povos da África possuem uma forte tradição metalúrgica, segundo Marina de
Mello e Souza (2006, p. 20) “a transformação do minério em metal era vista como uma atividade
mágica, ensinada pelos deuses, ancestrais e espíritos, o que conferia grande prestígio àqueles
que detinham esse conhecimento”. Laure Meyer (2001, p. 160) define a situação do ferreiro em
Nas sociedades africanas, é sempre temido por causa dos seus laços com
o fogo, que levam a supor práticas de magia ou feitiçaria. É igualmente
receado pela sua familiaridade com os metais saídos do ventre da terra-mãe.
Finalmente é também visto como uma personagem ambivalente, mediadora
entre os vivos e mortos.
A sua situação social, variável de acordo com as regiões, é sempre extrema.
No Senegal, está confinado ao interior de uma casta. No Mali e Costa do
Marfim, é temido. No antigo Congo e Angola, pelo contrário, o trabalho
dos metais era feito pelos notáveis. Os mitos fundadores evocam a memória
do herói civilizador Tshibinda Ilunga, que ensinou aos Tshokwe a produzir
e utilizar armas mais eficazes para caça e a guerra. Entre os Kuba por fim
Mbop Pelyeeng era um rei-ferreiro identificado por uma bigorna que figura
diante dele na sua estatua.
Os axântis II-20 (ashanti), e todos os grupos étnicos pertencentes ao complexo cultural
Akan, habitavam uma região com ouro abundante, e era o ouro em pó o meio tradicional de troca.
Esses povos também fabricavam jóias e outros objetos em ouro, considerados como insígnias
de poder e prestígio, conforme será estudado mais adiante. Devido ao ouro em pó ser utilizado
como meio de troca, seu valor era medido por peso, conseqüentemente foi necessária a produção
de uma grande quantidade de pesos em bronze ou latão para medi-lo, denominados como “peso
de ouro” e usados durante um longo período como afirma Lucia Chirinos (2004),
Um dos aspectos mais importantes destes pesos de ouro e da maioria dos objetos africanos
é possuir funções além da utilitária. Neste caso veículam provérbios e são símbolos cosmogônicos
69
da cultura axânti, indo muito além da função de contrapeso. No acervo do Museu de Arqueologia
e Etnologia da Universidade de São Paulo – MAE, existem sete destes pesos, em latão, figurativos
manufaturada pela técnica de cera perdida. A pesquisadora Chirinos (2004) considera essas peças
como transmissoras de idéias que concernem não a uma escrita formal, mas a uma oralidade que
representado com uma presa, normalmente um peixe, na boca (vide figura 2.5), pois o peixe
20 II- Tal como escrito no Dicionário Houaiss. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=ax%
E2nti&stype=k. Acesso em 10/02/2009.
constitui sua vítima natural, tendo o valor
do súdito sempre beneficia o rei (Carise, Figura 2.4 - Pesos para Ouro. Tombo: 73/2.2
(Axânti – Gana). Imagem disponível no site: http://
1991, p. 220). www.arteafricana.usp.br/codigos/galeria/albuns/pe-
sos/pesos.html S/D. Acesso em 10/02/2009.
Não se tem notícia que existiram os
em liga metálica e com a técnica de cera perdida são os edans, usados em uma associação dos
relata que a organização social dos iorubas é baseada em comunidades familiares patrilineares,
A relação entre estes grupos era mediada por sociedades religiosas chamadas
Ogboni. Esta sociedade tinha funções reguladoras, determinava penas aos
criminosos e efetuava julgamentos de disputas eventualmente ocorridas entre
os diferentes grupos familiares. Além disto, tinha função de eleger o chefe
principal da cidade, intitulado Oba. As ações deliberadas pela sociedade
Ogboni, eram executadas por outra sociedade religiosa conectada a esta,
chamada Oro (grifos do autor).
Como se pode observar na figura 2.6, o edan é uma peça metálica que representa um
casal. Algumas vezes os pares estão colocados sob espetos curtos e ligados na parte superior por
uma corrente. O edan pode ser um amuleto ou identificador pessoal dos membros da associação
Ogboni, cujos componentes realizam o culto a Onilé, entidade que personifica a terra ou o território,
algumas vezes considerada como mais poderosa que os orixás e como a mãe de todas as deidades
21 II- O livro Os Africanos no Brasil [1905] foi publicado em 1932, anos depois da morte de Nina Rodrigues, por
Homero Pires (Ribeiro Junior, 2008, p. 72).
22 II- Disponível em: http://www.arteafricana.usp.br/codigos/artigos/003/edan.html. Acesso em 10/02/2009.
quando foi leitor na Universidade de Ifé-Ifé na Nigéria. É ele que explica a técnica de
fundição por cera perdida, tal como produzido em África (vide na Figura 2.7 as etapas de
fabricação de um edan):
72
Figura 2.7 - Etapas de produção dos edan. Acervo MAE-USP. Fotografias: Wagner Souza e
Silva, 2000. Imagem disponível em: http://www.arteafricana.usp.br/codigos/artigos/003/edan.
html. Acesso em 05/02/2009.
serem menos detalhados em relação a sua concepção formal, em alguns casos, parecem ter
sido fundidos por um processo mais simples que o da cera perdida, em outros, aparentemente,
foi utilizada a técnica da forja (martelamento de placas ou barras metálicas a quente), muito
freqüente até hoje na confecção de objetos rituais do candomblé na Bahia e na África. Na Figura
2.8, há um ferreiro executando o trabalho de forja no Quênia, século XX, como demonstração
Dentro da sociedade Ogboni, os edans eram usados de diversas formas, desde uso
associação Ogboni, passando por rituais de promoção dos seus membros, ofensas entre
cidadãos, disputas entre membros Ogboni, contra o abuso de pessoas poderosas e briga entre
Figura 2.8 - Jua Kali, ferreiro, sangue vertido e os envolvidos na briga pagam multa
mercado de Kamakunji, Nairobi, 73
Quénia, 1987. Fotografia: Sidney e providenciam animais para sacrifício, cujo sangue é
Kasfir. Imagem retirada do artigo
Arte africana e autenticidade: um despejado sobre o edan. Também se encontram edans
texto com uma sombra (KASFIR,
2008. Disponível em: http://www.
em forma de jóias (anéis e pendentes) que servem para
artafrica.info/Pdfs/artigo_14_pt.pdf.
Acesso em 02/02/2009).
identificar os membros dessa associação.
veiculam uma mensagem simbólica, de particular interesse são os tecidos e o vestuário. Como
Roupas são um importante meio através do qual o status social pode ser
construído e mostrado. Tanto para os trajes cerimoniais como para os do
quotidiano, as diferentes sociedades na África desenvolveram sistemas
complexos e sofisticados através dos quais as idéias locais sobre autoridade,
gênero, idade, ancianidade e riqueza podem ser expressas.
23 II- Nem pelo texto, nem pela fotografia se pode identificar qual objeto estava sendo elaborado.
vegetais, lã, algodão, seda, ráfia e casca de árvore. Quanto às tintas, existem plantas nativas que
produzem cores como tonalidades de marrom, verde, amarelo e vermelho. Porém, a mais importante
tintura tem sido o índigo, como percebe-se na cerimônia fúnebre da figura 2.9, em que todos estão
com vestimentas elaboradas com tecido nesta cor (Clarke, 1998, p.58).
Fiar é uma atividade eminentemente feminina e tecer fica geralmente reservado aos homens,
apesar de, em algumas regiões, as mulheres também tecerem, contudo a atividade de costurar é
(vide Figura 2.10), apesar de existirem uma Figura 2.9 - Visitantes de um importante fune-
74 ral em Assamang, Gana, 1994. Nesta imagem
enorme variedade de teares, que produzem homens usando tecido adinkra cumprimentam
as mulheres sentadas da “abusua”, uma clã ma-
faixas de 10 a 20 cm de largura, são cortadas trilinear dos povos akan. O tecido escuro usado
pelo homem do centro é estampado de fábri-
ca ladeado por homens usando “biris”, tecido
e costuradas para confecção dos trajes
tradicional. Estes tecidos escuros de azul-preto
são estampados com adinkra marrom muito
tradicionais (Menezes, 2000) II-24. escuro, próximo ao preto, com os tradicionais
motivos adinkra. Foto e informações de auto-
Tecidos decorados com motivos que ria do Professor Emérito de História da Arte
Dan Mato, Universidade de Calgary. Imagem
correspondem a uma escrita, cujos símbolos e informações relativas a ela estão disponíveis
no site: http://africa.si.edu/exhibits/ inscribing/
são denominados adinkra , que significa
II-25 adinkra.html. Acesso em 10/02/2009.
“adeus”, como aqueles elaborados pelos axânti, eram elementos de decoração do vestuário utilizado
em cerimônias fúnebres. A figura 2.11 apresenta um símbolo adinkra e seu significado. Centenas deles
já foram documentados e observa-se que os mais antigos estão mais freqüentemente relacionados aos
provérbios, contos e canções folclóricas e ditados populares. Os mais novos estão associados a temas
mais comuns como flora, fauna, objetos do cotidiano, etc. Controlar as nuances dessas formas gráficas
de comunicação exige que os adinkra sejam elaborados por especialistas, artistas bem treinados
e anciãos (tradição recorrente para vários povos africanos) que, através de estudo, são capazes de
pedaço de cabaça, sobre o tecido ou desenhando os adinkra no tecido com um pente de dois
76
Figura 2.12 - Um pintor de tecido trabalhan-
do em Ntonso, Gana, 1988. Foto e informações
de autoria do Professor Emérito de História
da Arte Dan Mato, Universidade de Calgary.
Os artistas que estampam e pintam tecidos tra-
balham sobre uma mesa comprida que tem uma
esteira por baixo para absorver a tinta e fornecer
trabalho de superfície, ou seja, uma textura espe-
cial. Ele traça os quadrados e alterna os motivos
inseridos em cada quadrado. Seu estilo é exclusivo,
usando um pente de dois dentes para desenhar as
padronagens de quadrados e triângulos. O eviden-
te motivo da cruz é chamado “Musuyide” e é um
talismã contra o mal. É uma herança do traçado
padrão do metal islâmico proveniente do norte,
uma região do país predominantemente mulçuma-
na. Este motivo também está associado ao provér-
bio: “Kerapa te se okera, okyiri fi” - “Puro como um
gato que abomina sujeira,” significa que alguém
deve levar uma vida boa/sem erros para ser uma
pessoa decente. Os triângulos opostos são conheci-
dos como “Mframandam” - “Casa de Vento”, uma
referência que sugere arejamento, uma casa bem
ventilada, uma metáfora para a disposição para
enfrentar as mudanças circunstanciais da vida.
Já o Kente é um tecido também produzido pelos axântis e pelos ewes II-26 em Gana.
Antigamente ele só podia ser usado por reis. O material básico para sua produção é o
algodão do norte do Gana ou a seda. Como não havia a criação do bicho-da-seda na região,
cuja textura em revelo é obtida pela inserção de pequenos tufos de fibra entre o fio da trama
26 II- Etimologia: africanismo; o ing. é de 1890; diversamente transliterado tb. como awuna, ehue, ev é, yewe etc. Ewe
= Jeje. Segundo Cacciatore, prov. do ior. ajeji ‘estrangeiro, estranho’, design. que os iorubas, no Daomei, atribuíam
aos povos vizinhos, os daomeanos. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=jeje&stype=k.
Acesso em 10/02/ 2009.
Figura 2.14 - Tecido axânti mascu- Figura 2.15 - Tecido axânti femi-
lino. Século XX, Gana, alternando nino em seda, século XX, Gana.
seções de urdidura e trama de face Imagem digitalizada do livro Afri-
plana, suplementado por decoração can Hats and Jewelr (CLARKE,
de trama flutuante. Imagem digi- 1998, p. 67).
78
talizada do livro African Hats and
Jewelry (CLARKE, 1998, p. 66).
claro (bronzeado), como os Kasaï das Figuras 2.16 e 2.17. Figura 2.16 - Veludo do Ka-
saï, República Democrática
Outro modelo de veste é uma saia-envelope ou tanga
do Congo, Ráfia, 56x54 cm
de dança (vide figuras 2.18 e 2.19), denominada ntshak, aproximadamente. Musée
Barbier Muller – Gene-
com mais de 5 metros de comprimento, formada com bra. S/D. Imagem digitali-
zada do livro África Negra
pedaços de tecido de ráfia. Entre os Kuba, a fabricação (MEYER, 2001, p.212).
muitos artistas europeus, como Paul Klee, entre outros. Em cerimônias oficiais, essas
Segundo a tradição, esse tingimento com plantas, que são também medicinais (basi = curar),
dá ao tecido não só tons de ocre, marrom e amarelo, mas também propriedades curativas.
Figura 2.18 - Ntshak, aplique sobre pano de oito larguras. Ráfia. 525 x 78 cm. Arquivo do Museé
Dapper, Paris. S/D. Conservada em sua integridade, essa tanga decorada por apliques era usada
pelas esposas do rei, sua mãe e suas filhas por ocasião das danças do Itul, espécie de reconstitui-
ção do mito da origem do mundo. É vestida enrolada em torno da cintura, o busto nu, e cobrindo
até o tornozelo (Neyt e Vanderhaeghe, 2000, p. 52). Imagem digitalizada do catálogo da exposi-
ção Mostra do redescobrimento: arte afro-brasileira (AGUILAR, 2000, p. 52).
27 II- Subgrupo dos mandingas da África ocidental, povo negróide de cultura guineano-sudanesa islamizada
e que habita esp. o Mali e o Senegal e tb. a Guiné-Bissau. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.
jhtm?verbete=bambara&stype=k. Acesso em 15/02/2009.
Com alta concentração de tanino, as plantas
longo: primeiro as folhas do N’galama e do Figura 2.19 - Saia-envelope (detalhe), ntshak. Re-
pública Democrática do Congo, Kuba. Século XX.
Cangara e as cascas do N’péku são secas Fibras de ráfia comprimento 535 cm. Coleção A.
Henseler. Imagem digitalizada do catálogo da ex-
ao sol e depois piladas, então são fervidas posição Arte da África (JUNGE, 2003, p. 212).
entrevista dada à jornalista Bordas (2008) para uma matéria na revista Marie Claire,
Madame Traoré explica que os tecidos tingidos absorvem as virtudes das plantas
terapêuticas e, portanto, são protetores, uma segunda pele que cobre e protege o
corpo, em momentos cruciais ao longo da vida, como o nascimento, a menstruação,
a circuncisão dos meninos e a excisão da meninas em algumas etnias -segundo
vários estudos científicos, a planta N’galama tem alto poder cicatrizante.
80
O tecido é colocado ao sol para reforçar a tinta amarela. A fazenda é então estampada com
aplicação de lama, que, para torná-la preta, passa por um processo de fermentação em potes fechados
por duas II-28 ou três semanas. A área que recebe a lama preta (que serão os espaços negativos do
grafismo) recebe o contorno dos motivos (vide na Figura 2.20 os motivos e seus significados), feito
com um pincel, graveto ou outra ferramenta. Às vezes estêncil é utilizado para facilitar a execução.
Depois de lavados, para ser retirado o excesso de lama, são novamente secados ao sol. Nas áreas
onde se deseja o branco, e não o ocre de base, é aplicada com pincel ou graveto uma receita local de
sabão corrosivo pastoso, alvejando os motivos desejados. Finalmente uma nova camada de tintura
vegetal é aplicada e, em reação química com a lama, torna a tinta negra inapagável (Menezes, 2000).
28 II- Existem controvérsias quanto ao período de fermentação, também é dito ser necessário o período de um ano
para a conclusão desse processo.
Os símbolos do Bogolam
81
Kalabanci ka sira: caminho feito pelo impostor, aquele que finge ser
quem não é.
Figura 2.20 - Símbolos do Bologan e seus respectivos significados. Disponível em: http://revista-
marieclaire.globo.com/EditoraGlobo/componentes/article/edg_article_print/1,3916,1678951-
1738-1,00.html. Acesso em 10/02/2009.
Figura 2.21 - Tecido Bologanfini (detalhe). Figura 2.22 - Bubu masculino de algodão
S/D. Imagem digitalizada do livro African e seda importada. 1950. Sem indicação de
Hats and Jewelry (CLARKE, 1998, p. 71) local de origem. Imagem digitalizada do li-
vro African Hats and Jewelry (CLARKE,
1998, p. 62 e 63).
parcela desta contribuição milenar e para finalizar essa amostragem, apresenta-se uma vestimenta
que está na memória de todos, é um espécie de robe de grande largura com mangas também
muito amplas, usado na maior parte da África Ocidental e da África do Norte. Denominado em
82
português de Boubou/Bubu, é também conhecido por outros nomes, dependendo do idioma do
2.22, tem-se o detalhe de um bubu, e, na Figura 2.23, Figura 2.23 - Chefe da tribo em casa.
Shedan, Nigéria. 1910–20. Imagem
disponível no site: http://www.adi-
o chefe da tribo usando um dos incontáveis modelos
reafricantextiles.com/images1nige-
ria7.htm.Acesso 10/10/2009.
dessa tradicional indumentária.
Usar roupas como metáfora é um antigo costume entre vários povos africanos e é
este caráter simbólico que será mais evidente na indumentária afro-brasileira. Tal como em
candomblé. Por isso, é tão importante conhecer como a questão do vestir-se sucedia e sucede na
África subsaariana. O espírito das roupas II-29 também deve ser observado na maneira de trajar
as impurezas... A África faz parte do mundo e tem longa história, neste escopo não
cabe retornar ao advento do islã na África (século VII), mas com certeza nos interessa
a chegada dos portugueses (século XV) e o impacto provocado por este encontro na
produção de objetos.
povos que passaram a ter contato direto com os portugueses, uma referência conveniente
colonização só vai acontecer efetivamente, a partir do século XIX (a despeito dos séculos
icnografia cristã se dá com a conversão do mani (rei) Congo ao cristianismo. Objetos de uso
cotidiano e de culto cristão denotam a mescla híbrida de traços africanos e europeus, típicas
de regiões de contato entre as culturas. O bastão de marfim (Figura 2.24), elemento de suporte
e decorativo para rede de transporte, é encabeçado por uma figura masculina com roupas que
modelo europeu, mas seu rosto não; as três figuras menores, longe do figurativo europeu,
São João. O simbolismo da cruz tem uma interpretação com base na cosmovisão Congo,
em que o universo é um entrecruzamento entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.
símbolos cristãos foram incorporados às práticas religiosas locais como objetos poderosos,
31 II- Nkisi é para os bantos o mesmo que é o orixá para os iorubas e o mesmo que é o vodun para os ewes.
Figura 2.24 – Suporte para rede com figura
masculina. República Democrática do Con-
go. Século XIX inicio do século XX. Marfim,
26 cm de comprimento. Imagem digitalizada
do catálogo Arte da África (JUNGE, 2003, p.
80).
85
se o exemplo do trono ou cadeira real (Figuras 2.26, 2.27 e 2.28), principal sinal distintivo de poder
entre os chokwes. No entanto, antes da chegada dos portugueses, os tronos eram bancos, um tipo
relação a uma imagem (estátua) ancestral, como admirava a perfeição de suas formas. Em
contrapartida, explica que, aos olhos dos navegantes e mercadores europeus, as estatuetas
87
Figura 2.27 – Trono de Chefe. Ango- Figura 2.28 – Cadeira Real. An-
la, Balombo. Madeira, pele de animal gola. Chokwe. Século XIX inicio
e latão. Museu Etnográfico – Socie- do século XX. Madeira, pele e la-
dade de Geografia de Lisboa, Lisboa. tão. Altura: 114,50 cm. “Sintetiza
As cenas que ornamentam a parte o cosmos local: as duas máscaras
inferior do trono são inspiradas na de lideres e as cenas de iniciação
vida cotidiana, do nascimento a mor- dos rapazes esculpidas no encosto
te, com os seus pés anteriores assu- simbolizam os princípios do poder
mindo a forma de cariátides, tutores político masculino associados, por
ancestrais (Neyt e Vanderhaeghe, outro lado, à fertilidade feminina
2000, p. 81). Imagem digitalizada do (detectável nas imagens de con-
catálogo Mostra do Redescobrimen- teúdo erótico e na cena de parto
to: arte afro-brasileira (AGUILAR, que decoram a parte da frente da
2000, p. 80) cadeira) e, por outro, ao poder
dos ancestrais, simbolizado pelas
cariátides nas pernas da cadeira”
(IVANOV, 2003, p.78). Imagem
digitalizada do catálogo Arte da
África (JUNGE, 2003, p. 78).
eram consideradas mal-acabadas, de traços duros, feiíssimas e ainda provocavam aflição e
africanos para o mercado europeu e que, em conjunto com o texto que acompanha esta peça
no catálogo da exposição Arte da África, mostra que classificar a África e suas produções de
Com base na citação acima, pode-se extrapolar a reflexão de Junge e dizer que o artista
de Sapi, no contexto deste estudo, denominar-se-ia designer, e este, em pleno século XV ou XVI,
já dominava o que muitas empresas, hoje, usam como estratégia para exportar seus produtos:
atendem de certa forma aos padrões estéticos da sociedade em que almejam inserir seu produto
escravos estão os cachimbos e as contas, como aponta Camilla Agostini (1998, p.116),
89
Ao que parece, os cachimbos cerâmicos e as contas são constantes nos
sítios arqueológicos históricos que tiveram o escravo dentro da sua rede de
relações sociais. Estes objetos aparecem também como uma constante na
iconografia dos viajantes que vieram ao Brasil no século XIX.
Quanto ao cachimbo, não é surpresa seu achado tendo em vista que nas relações
escravistas entre portugueses e africanos o tabaco era um produto de alta cotação na compra de
costa ocidental africana ao final do século XVI e penetrou para o interior do continente por
volta de 1600 a 1650, tendo como atores os navegantes e comerciantes holandeses, portugueses
e árabes. Porém todo o aparato para seu consumo já era existente devido ao consumo da
cannabis sativa introduzido pelos árabes e persas na costa oriental africana. Os materiais em
que eram elaborados os cachimbos são diversos: metal, madeira e principalmente cerâmica.
Sua confecção era exclusivamente masculina. Na Figura 2.30, há um cachimbo africano e sua
no Brasil, eram cerâmicos e com grande variedade de padrões decorativos, alguns, com maior
boquilha e com duas concentrações de linhas onduladas no meio da peça (Rio de Janeiro).
Outro padrão possui características barrocas (Minas Gerais), com decorações mais rebuscadas,
compostas por duas seqüências de semi-esferas menores, mediadas por uma das semi-esferas
maiores, no meio da peça duas concentrações de linhas onduladas. Também existiam padrões
decorativos antropomorfos nestas duas regiões (Agostini, 1998, p. 128 e 129).
no Pelourinho (centro histórico), técnicos que trabalhavam no local encontraram uma série de
cultura africana, com diversos padrões decorativos. Através das Figuras 2.31 e 2.32 constata-se
que são semelhantes à descrição dos que foram encontrados em sítios arqueológicos do Rio de
que eram realmente acessos, pois os de grandes dimensões eram apenas objetos de prestígio.
período barroco, usados de maneira excessiva na arte sacra barroca da América portuguesa,
aplicados em todas as tipologias de arte religiosa, desde o entalhe até a imaginária, passando
pela pintura em azulejos, tanto que passaram a ser denominados anjos barrocos. Os estudiosos
anjos com traços negróides e o amulatamento das figuras representadas, reforçando a idéia
Atentando para os anjos barrocos da figura 2.33, nota-se que são bochechudos, assim como
Figura 2.33 – Detalhe dos anjos esculpidos na base da escultura de Nossa Senhora da Conceição da Praia
– Portugal. Século XVIII. Imagem digitalizada do livro Bahia: tesouros da Fé (JORDAN, 2000, p. 227).
com turbante, cachimbo, o pano bamburol II-32 e as escarificações.
Entre os cachimbos e as contas, não resta dúvida que usar contas é uma permanência
proteção e cura; para indicar uma adesão religiosa; como sinais de fases da vida e como indicador
de identidade grupal, e para diversos fins, como a confecção de jóias, peças de vestuários e
instrumentos musicais cerimoniais. Na Figura 2.36, há contas de vidro usadas na África, porém
África subsaariana, sendo os principais centros produtores desse artefato Veneza, Amsterdã
e um pouco mais tarde, a cidade de Jablonec, na atual República Checa. As fábricas, nessas
cidades, tornaram-se peritas em fornecer para África gostos e preferências em termos de cores,
32 Segundo nota do artigo de Lara (2000): Vocábulo mandinga que significa “trazer ao dorso” e que designa
o pano utilizado para carregar as crianças às costas. Cf. Antonio Carreira - Notas sobre o tráfico português de
escravos (1983, p. 118).
94
Figura 2.35 – Mulher negra baiana. Foto de Aristides Alves (1997). Imagem digitalizada do livro
Mágica Bahia (RISÉRIO et alli, 1997, p. 27).
tamanhos e formas de contas, geralmente tentando imitar
Figura 2.37 – As contas do colar externo e as duas em decorações azul, vermelha e branca são feitas em
Veneza desde o século XVI. O segundo colar possui contas de âmbar da Mauritânia. As contas tubulares
multicoloridas são de vidro mil flores (millfiore) importados de Veneza; as contas vermelhas são de Ams-
terdã. Somente as contas grandes brancas-azuladas do sul da Nigéria podem ser de fabricação local de
vidro reciclado. Imagem digitalizada do livro African Hats and Jewelry (CLARKE, 1998, p. 40).
Não é surpreendente o achado de contas em túmulos dentro de uma igreja, pois as
práticas religiosas católicas e africanas sempre coexistiram, mesmo que às vezes de forma
conflito sobre a datação do seu início, mas se sabe que são anteriores ao século XVIII. Tanto na
Há muito tempo, Salvador tem sido reconhecida como uma das localidades
do Brasil onde podem ser visualizadas, independente de outros cultos
existentes no seu território, a presença de instituições religiosas, marcadas
por princípios originários de diferentes sistemas de cultos africanos
pertencentes às diferentes culturas que chegaram através de indivíduos que
foram escravizados.
Aqui no Brasil o uso das contas é preservado principalmente pelos adeptos das religiões
afro-brasileiras. No candomblé, por exemplo, seus seguidores, ao morrer, devem ser enterrados
com o colar de contas de seu orixá, podendo ser acrescentado um colar de contas brancas que
96 representa Oxalá, o mais importante dos orixás, e um colar de contas vermelho-terra, vinculado
dos cultos afro-brasileiros, mas na África seu uso foi e é mais amplo, principalmente
prestígio (tronos, coroas, bastões, cachimbos, etc.); em vestimentas, como os saiotes para
Quadro 2.1 - Comparação entre contas arqueológicas e contemporâneas. Fonte: Dissertação Ves-
tígios Materiais nos Enterramentos na Antiga Sé de Salvador: Postura das instituições religiosas
africanas frente à igreja católica em Salvador no período escravista (TAVARES, 2006, p. 116).
97
meninas e mulheres; ornamentos de instrumento musical e em ornamentação de estatuária
vestuário oriundas do leste e do sul da África. Este era geralmente um trabalho feito por
mulheres, e os motivos, as cores e a quantidade deste tipo de roupa sobre o corpo indicavam
e grande parte dos sítios arqueológicos são descobertos ao acaso, em meio a uma construção
ou uma obra. Diante desse quadro, pode-se inferir que muito ainda está porvir do estudo
Várias ponderações sobre a questão do ser ou ter o selo de objeto afro-brasileiro já foram
realizadas ao longo deste capítulo, mas pretende-se, nesta seção, reforçar o seguinte aspecto:
ao terem que construir novos objetos, bem como se inserir em uma sociedade dominada pelo
recorrem não apenas aos saberes trazidos por determinados indivíduos, mas também ao que
havia de comum aos sistemas cognitivos das pessoas pertencentes a grupos étnicos diversos,
criados (Mello e Souza, 2002, p. 146). Trata- Figura 2.39 – Saiote de miçanga para crianças (es-
querda). Tanzânia, Sukuma. Século XIX ou início
se de uma das linhas de investigação desta do século XX, em vidro e altura de 20 cm. Saio-
te de miçanga para meninas (direita). Tanzânia,
Nyamwezi. Século XIX, em vidro e altura de 15,70
tese no que se refere à cultura material afro- cm. Imagem digitalizada do catálogo da exposição
Arte da África (JUNGE, 2003, p. 241).
brasileira, que é muito bem pontuada por
Os objetos estudados são a expressão material dessas culturas que nascem do convívio
de distintos povos. No que se refere à produção de objetos em metal, foi utilizada a competência
milenar em metalurgia dos diversos grupos africanos escravizados, com os limites das
circunstâncias impostas pelos colonizadores que eram detentores dos instrumentos de poder,
restou para si (uso próprio) fabricar objetos mágico-religiosos. Dos objetos em metal, destacam-
se dois: objetos que compõem a presença imanente do orixá na forma de altar individualizado
que manifestam a relação entre o orixá e seu filho (por meio do corpo deste que é possuído
pela entidade), usados em cerimônias públicas, também chamados ferramentas dos orixás.
Dentre os inúmeros anônimos que geralmente possuem vínculo com um terreiro de candomblé,
fazendo parte de uma equipe encarregada das diversas necessidades desta prática religiosa,
têm-se aqueles que galgam as galerias de arte e museus por produzirem peças de reconhecido
valor estético, segundo a classificação de curadores, colecionadores, críticos de arte etc.. Alguns
Obras de Mário Proença, Clodomir Menezes da Silva (Mimito), José Adário dos
Santos, Gilmar Tavares, Wuelyton Ferreiro, Adilson Martins, Jorge Rodrigues, 99
Junior de Odé, apenas para citar alguns entre tantos outros que trabalham nas
artes da pintura, modelagem de metal, olaria, escultura em madeira, produção
de vestimenta, adornos, fios de contas etc., são representativas dessa arte
religiosa afro-brasileira transitiva entre o campo estético e o religioso. Em
geral, esses artistas são iniciados na religião e eles próprios, como suas obras,
transitam entre o terreiro, o atelier e os museus de arte.
nos pejis dos orixás, com peças em vários museus nacionais e internacionais. Uma das mais
conhecidas são imagens de Ossain (Figura 2.40) por ele idealizada, com figurações de folhas de
flandres em pontas de hastes de ferro: uma espécie de buquê, perfazendo um pequeno arbusto
com seus ramos plenos de delicadas formas laminares recortadas, mas evidenciadas pelo
tamanho e pelo metal branco como se fosse para refletir um verde entorno. Ele começou como
aprendiz ainda criança, levando para vender no Mercado Modelo (Salvador-Bahia) os “exus de
ferro” de seu mestre. Uma produção que, apesar do caráter estético e da alta qualidade artística,
sua vocação primeira é ritual, portanto, não é feita para contemplação, nem para ser exibida
Figura 2.40 – José Adário fazendo ferramenta Figura 2.41 – GilmarTavares repuxando o metal para
de Ossain, Salvador-Bahia, 2004. Foto: Adenor imprimir o rendilhado característico das ferramen-
Godim. Imagem digitalizada do livro Arte Afro- tas dos orixás. Imagem disponível: http://www.atarde.
brasileira (CONDURU, 2007, p. 36). com.br/fotos/index.jsf?id=1012147&foto=64604#17.
Acesso em 20/02/2009.
como arte (Salum e Silva, 2006, p. 295-296). A principal técnica utilizada para elaboração dos
artefatos metálicos é a forja, sendo necessário também o recorte das folhas metálicas, a solda e
as gravações (riscos intencionais no metal), como pode ser observado na figura 2.40.
100
Gilmar Tavares (Figura 2.41) é outro baiano especializado nas ferramentas dos orixás:
coroas, braceletes, capacetes, cetros, couraças, espelhos e leques. Peças metálicas, que
apresentam uma riqueza muito grande de detalhes, resultados da técnica de puncionar II-33 sua
superfície, muito usada na ourivesaria barroca portuguesa e brasileira. Agnes Mariano (2007,
O seu ingresso nesse ofício aconteceu há 18 anos. “Peguei uma peça e senti
que podia e queria fazer aquilo. Na época, eu era bancário, trabalhava com
computador. Todo mundo ficou chocado”, conta ele, rindo. O aprendizado,
explica Gilmar, veio da sua iniciação religiosa: “Sou ogã do terreiro Tingongo
Muende, sou filho de Oxalá”. De Mimito, ganhou uma ferramenta “que tinha sido
do pai dele” e valiosas orientações sobre os segredos dos metais. Aos poucos, seu
trabalho foi sendo conhecido e hoje é difícil encontrar um terreiro em Salvador
que não tenha alguma ferramenta sua. Depois, também meio por acaso, suas peças
foram chegando às exposições, museus e galerias, sendo reconhecidas como arte:
“Tenho trabalhos expostos na Alemanha, Chicago, França, Portugal, Argentina e
em vários estados do Brasil”.
33 II- O puncionamento da superfície é realizado com a técnica de cinzelar e repuxar que será detalhada no próximo
capítulo.
Gilmar Tavares, entre março a
Figura 2.42 – Alunos e alunas do curso em aula do candomblé (ferramentas dos orixás)
de desenho. Ao fundo da sala, em pé, Gilmar
Tavares. Imagem retirada do documento Casa denominado “Casa dos Objetos Mágicos”
dos objetos mágicos (IPHAN, 2007, p. 42). Dis-
ponível em: http://www.monu menta.gov.br/site/ (Figuras 2.42 e 2.43), patrocinado pelo
wp-content/uploads/2008/04/objetosmagicos96-
dpi.pdf. Acesso em 20/02/2009. Programa Monumenta, em acordo com um
que os mestres artífices mais velhos foram desaparecendo e outras pessoas ocuparam seu lugar,
com uma produção em série, distanciada do universo simbólico original. O projeto tem como
meta formar novos artesãos, para lhes garantir uma ocupação remunerada e a possibilidade de
desenvolver seus dotes artísticos. Diplomaram-se dezenove alunos ao final do curso e parte
Lina Bo Bardi (1994, p. 21), quando (re)afirma a necessidade de ações como a supracitada para
que o orixá carrega na cabeça, pescoço, peito, ombros, pulsos, mãos e pernas e se constituem
em uma parte da indumentária litúrgica dos orixás. A outra parte se refere às roupas que
vestem efetivamente o corpo do adepto no momento do culto. Para melhor compreensão dessa
composição de vestes e ferramentas, apesar da sua grande popularidade, a Figura 2.44 mostra o
traje de Ogum, deus do ferro e das guerras, em uma interpretação fotográfica de Aristides Alves.
O adê (coroa, chapéu ou capacete) que traz na cabeça é um acessório obrigatório de quase todo
orixá, e indica a sua condição de antepassado divinizado. Nos orixás femininos, ao adê está
preso o filá, que são fios de conta enfileirados, possuindo um comprimento que cubra os olhos
e nariz. Por conta do contato das culturas africana e européia no Brasil, alguns adês são coroas
103
Figura 2.44 – Orixá Ogum. Fotografia de Aristides Alves. Imagem digitalizada do livro Mágica
Bahia (RISÉRIO et alli, 1997, p. 81).
tipicamente européias, observe na Figura 2.44 que o cinturão e os braceletes de Ogum remetem
Além das indumentárias dos orixás, existe outro traje, o da baiana, composto pelo torço
branco ou colorido, saia rodada e camizu (pequena bata) de richelieu e o pano da Costa, levado
sobre o ombro, que as religiões afro-brasileiras tiveram participação ativa na sua perenização
e reconhecimento, “um exemplo dessa arte religiosa do vestir derivada tanto de uma estética
africana como da imposição de uma moda européia” (VAGNER, 2008, p. 101). Nesta seção nos
interessa particularmente o pano de alacá ou pano da Costa, começando por esclarecer o porquê
Chama-se ao pano, “da Costa” como se dizia dos demais produtos importados
da África e que tinham uso popular: sabão da Costa, limo da Costa, búzio da
Costa, muito embora a origem de alguns deles seja vária e ainda controversa.
A princípio estendia-se a denominação a todos os tecidos importados da
África, qualquer que fosse a sua aplicação; o uso lhe foi restringindo o
campo até a limitação ao xale.
104
Nobre (Figura 2.45) que, segundo Lody (1999, p. 248), recebeu os ensinamentos da arte de tecer
pano da Costa de seu padrinho Alexandre Gerardis II-34 da Conceição, que, por sua vez, aprendeu
a tecer com seu pai, Ezequiel Antônio Geraldes da Conceição (nascido livre). Este não foi só
tecelão, era pedreiro e seu filho Alexandre foi funcionário dos Correios. Ezequiel aprendeu o
ofício com seu pai, Antonio Campos (nascido ioruba), que veio para o Brasil muito jovem e foi
forro por uma Junta de patrícios; a alforria se justificou pela alegação de que Antônio conhecia
ofício (Torres, 2004, p. 425). De acordo com os relatos de Lody sobre Abdias e de Torres
sobre Alexandre, ambos teciam conforme a tradição africana, com a técnica supracitada de unir
34 II- Alexandre Geraldes da Conceição, conforme a antropóloga Heloísa Alberto Torres que o entrevistou para sua
pesquisa Alguns aspectos da indumentária da crioula baiana, tese apresentada no concurso para provimento da
Cadeira de Antropologia e Etnografia da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, 1950.
tiras estreitas até a largura desejada pelo usuário/a. Os panos pesquisados por Torres datam de
ser um traje híbrido, o seu significado remete a uma compreensão africana de mundo, indica
hierarquia, pois, pela maneira de usar o pano sabe-se a posição da usuária. As cores estão
vida religiosa de um adepto, e, para serem usadas como objeto litúrgico, passam por um
106
Figura 2.46 – Desenhos explicativos dos modos de usar o pano da costa. Imagem retirada do
documento Alguns aspectos da indumentária da crioula baiana (TORRES, 2004, p. 453).
iniciação (abiã) recebe o colar de seu orixá e o de oxalá, para entender a sua importância.
No período da iniciação, já chamado de iaô, vai ter direito a uma coleção de fios de contas
que obrigatoriamente devem ter um comprimento até a altura do umbigo (inhãs) e contas
que indicam sua condição de iniciado, sendo sacralizadas em sangue. Antes dos sete anos,
período que dura a iniciação, sempre recebe alguma conta enfeitada, lá pelos três anos
(Lemos, 2002).
de conta, aqueles concebidos por Jorge Rodrigues, resultado de uma vasta pesquisa sobre a
iconografia africana tradicional e uma convivência de longa data com o candomblé. Na Figura
Figura 2.48 – Fios de conta da autoria de Jor- Figura 2.49 – Fios de conta da autoria de Ju-
ge Rodrigues, o da esquerda refere-se a oxa- nior de Odé, o da esquerda refere-se a oxalá, e
lá, e o da direita, a xangô. Fotos de Francisco o da direita, a xangô. Fotos de Francisco Mo-
2.47 está da
Moreira Ângela
Costa,de2002.
Oyá usando
Imagensfios de contas da autoria de Jorge Rodrigues (Figura 2.48) e de
disponíveis reira da Costa, 2002. Imagens disponíveis em:
em: http://www.studium.iar.unicamp.br/10/id/ http://www.studium.iar.unicamp.br/10/id/ga-
Junior de OdéAcesso
galeria.html. (Figuraem2.49).
20/02/2009. leria.html. Acesso em 20/02/2009.
É justo lembrar que a cultura brasileira, nascida do contato inicial de três diferentes
povos e mais tarde de outros, mas sempre sobre a supremacia branca européia que agia de
comunidades de negros. A permanência das contribuições africanas até os nossos dias é fruto de
muita resistência, que soube aproveitar a complacência se unindo aos portugueses, mesmo que
como é o caso de quase todas as festas populares deste país, principalmente em Salvador e no
Estado da Bahia. As proibições foram superadas de diversas formas, desde o fazer às escondidas
até a rebeldia aberta e coletiva. O combate ao candomblé perdurou, aproximadamente, até 1930,
sendo intenso e sistemático, “por denuncias de gente grande e pequena, sobretudo da imprensa,
2.5 AFRODESIGN
Desde o início da escravidão até hoje, muitas faces tiveram a questão racial no Brasil e
a sua respectiva expressão material. O poder de agrupamento do povo negro sempre se revelou,
seja nas irmandades, nos candomblés, nas festas, nos levantes ou revoltas e continuou pós-
abolição da escravatura, mesmo acontecendo em clima, muitas vezes, marcado pelo desejo de
negros e mestiços seguiram a sua capacidade de organizar-se coletivamente e, entre 1931 e 1937,
criaram: a imprensa negra, já que não conseguiam penetrar na imprensa oficial; organizações
sociais, pois também não eram bem-vindos nos clubes da elite; e um movimento político próprio,
pois aí também, até hoje, é um espaço majoritariamente branco. Todos voltados para a defesa
dos direitos civis e políticos da população afro-brasileira, foram fundados jornais como A Voz
da Raça, O Clarim da Alvorada, clubes sociais negros e a Frente Negra Brasileira. Tanto em São
Paulo como na Bahia, a Frente tinha como estratégia fazer com que o negro se sentisse parte da
religião, danças, etc.. A proposta era de, mesmo sendo negro, tornar-se culturalmente branco.
Assumir atitudes da classe hegemônica não era novidade, sempre ocorreu, todavia era a
primeira vez que acontecia de forma organizada e coletiva. E é a partir daí que se tem a negação
de uma estética afro-brasileira que vinha sendo construída por séculos. Por outro lado, nessa
mesma época e um pouco antes, no marco inaugural da arte moderna brasileira - a semana de
demonstrar que “brasileiro tão bonzinho”, o governo brasileiro banca o projeto de imagem
oficial do país à “La Carmem Miranda”. Portanto, aquele momento foi marcado pela seguinte
Porém, o Movimento Negro (assim será chamado) não estaciona na Frente. A partir da
década de 70 do século passado, os negros conquistam uma discussão mais honesta no país sobre
a questão racial. Desde então, a população da cidade de Salvador vem exercitando uma prática
de retomada e reafirmação de valores da cultura negra. Esses valores, que foram secularmente
o candomblé). Nas Figuras 2.50 e 2.51, há trabalhos do Figura 2.51 - Capa de disco para
o bloco Ylê-Ayê. Imagem digita-
designer desenvolvido para o bloco. lizada do livro Design na Bahia
(GUERRA et alli, 2002, p.73).
A designer baiana Goya Lopes desenvolve
pelos seus antepassados. É conhecido internacionalmente por sua extensa produção de esculturas,
e suas obras fazem parte do acervo do Museu Picasso, em Paris, do MAM de Salvador e do Rio de
Janeiro, entre vários outros museus estrangeiros. As peças da Figura 2.56 são elaboradas em ossos e
miçangas, criações em design de jóias do Mestre, pouco conhecidas pelo grande público.
por opção ou por demanda. Trabalhos significativos, principalmente por estarem envolvidos
trata-se de uma preocupação em relação à dicotomia de certa forma existente hoje entre a
militância do movimento negro, cuja presença e voz sempre existiram na academia baiana, e
os debates universitários.
Sem negar a dívida que se tem em relação aos povos africanos e afro-descendentes, os
recentes estudos já revelam uma África que não era culturalmente uniforme, não era marcada por
113
uma harmonia nas relações sociais e nem pela pureza de formas ancestrais e também esclarecem
que o africano, aqui escravizado, foi “um negociador de sua própria condição, marcado por
uma democracia racial no Brasil que, obviamente, não existia, por outro, adotar a regra norte-americana
de “basta apenas uma gota de sangue negro” para ser negro, também não vingou, pois se não agradava
concretas e seculares. João Reis (2000, p.9) propõe “buscar o ponto em que mestiçagem e negritude se
Essa utopia, que circula sem pouso e sem rumo certos entre nós, precisa
ser promovida e dirigida a mudanças concretas, ao invés de ser apenas
celebrada ou combatida sem razões convincentes. Ela é compatível com
políticas compensatórias reivindicadas pelos negros, ela, aliás, já é praticada
há muito tempo no interior de instituições predominantemente negras. Quem
há de negar que o Candomblé possa ensinar democracia racial ao Brasil?
114 A preocupação em relação à opção do movimento negro pela negritude, em busca de uma
referência exclusivamente africana, seja ela qual for, gera uma rejeição, ou não consideração,
dos objetos afro-brasileiros, fato que pode levar à extinção histórica ou propriamente dita, de
parte importante da cultura material brasileira, tanto no que se refere aos valores materiais
É neste ponto que se desejava chegar, pois não se pode negar uma condição factual: somos
mestiços, quer se queira ou não. E em termos estéticos, sem fazer apologia, contudo, vale considerar
como um dos possíveis caminhos para uma estética mestiça brasileira, a proposta “fashion periferia”
do músico Carlinhos Brown (Figura 2.57), que ao falar da sua vida, sempre afirma ter sido vendedor
de picolé e continua sendo. O seu conceito visual II-35 inspirou a coleção de jóias da H. Stern (Figura
35 II- O conceito visual de Carlinhos Brown está divulgado no site oficial do músico: “Extremamente ligado a
símbolos, Carlinhos Brown é um admirador da beleza, da alegoria, das formas, das cores e das texturas. Seja
através das artes barrocas que tem marcante presença na Bahia, passando pelas pinturas indígenas e ornamentações
africanas até chegar a elementos de arte contemporânea, Carlinhos Brown é um liquidificador de imagens”.
Disponível em: http://www.carlinhosbrown.com.br/mosaico/estetica-carlinhos-brown/. Acesso em 20/02/2009.
Figura 2.57 – Carlinhos Brown, can-
tor e compositor baiano (2008). Foto
de João Meirelles. Imagem digitali-
zada da Revista Muito (2008, p.31).
115
2.58), denominada miscigens e as quatro linhas que compõem a coleção recebem nomes de músicas
africanas e também urbanas”, de acordo com o seu site oficial. É algo que se revela materialmente,
mas é também imaterial e não é uma condição exclusiva e premeditada de um músico famoso, pois
está também em Aglailson Santos (Figura 2.59), vendedor de picolé capelinha II-36 nas praias da
cidade da Bahia, como em tantos exemplos anônimos por esse Brasil afora.
36 II- Picolé fabricado em Salvador-Bahia desde 1971 que possui esse nome devido ao local de sua produção,
bairro popular denominado Capelinha de São Caetano. Muito conhecido e apreciado entre os soteropolitanos.
116
Figura 2.59 – Aglailson Santos, vendedor de picolé baiano (2008). Foto de Sebastião Bisneto.
Imagem digitalizada da Revista Muito (2008, capa).
Essa investigação evidencia o quanto ainda precisa ser estudado para compreender a
como para consolidar a tendência detectada pelo designer e pesquisador Dijon de Moraes
capitalista e por mais bem intencionados que os designers estejam nas suas concepções, neste
para cumprir a estratégia maior de manutenção de status quo mesmo que com diferentes 117
roupagens.
118
CAPÍTULO III
________________________________________________________________
- PERMEABILIDADES
No Brasil, a Bahia foi o centro produtor das chamadas jóias escravas ou jóias de crioulas,
como descreve Simone Silva (2005, p.19) e como pode ser observado na Figura 3.1,
Portanto, trata-se de jóias que foram elaboradas para uso exclusivo das mulheres negras
e mestiças (escravas, alforriadas ou libertas) e são entendidas como objeto do design devido às
efetivamente no campo do design. Tem-se a clareza de que, no período em que estas jóias foram
confeccionadas, não eram entendidas como produto do design, mas, “... em última análise,
quem determina o sentido que se dá aos termos é a própria construção da sua história, feita
quando se ornavam com pinturas corporais, dentes ou ossos de animais caçados, pedras
fundição dos metais, estes objetos passaram a ser confeccionados, também, com este
material, constatando-se que a joalheria foi uma das primeiras atividades a utilizar técnicas
de produção em série. Ou seja, para entender as jóias escravas como objeto o design, é
Considerando o que coloca Deforges (1996) em um dos seus artigos, onde intenciona
chamar a atenção dos leitores para os “Avatares III-1 do Design” e particularmente para o “design
antes do design” em uma abordagem que isola o termo design temporariamente e considera
muito genericamente o fato de que todo objeto tecnológico, isto é, todo objeto produzido por
seres humanos sempre tem duas funções: a utilitária e a simbólica. É neste entrelaçamento da 125
utilidade com o simbolismo que se compreende o objeto jóia de uma maneira geral e, mais
melhores exemplos para demonstrar esta condição comum a todos os objetos, sejam eles
características objetivas e são “quantificáveis” (por exemplo: suportar peso, medir temperatura,
aspecto mais atraente às pessoas. Neste direcionamento, observa-se que adornar é uma
1 III-Avatar. [Do sânscr. avatara, 'descida' (do Céu à Terra), pelo fr. avatar.] S. m. 1. Rel. Reencarnação de um
deus, e, especialmente, no hinduísmo, reencarnação do deus Vixnu.
função utilitária repleta de simbolismo, pois, ainda na pré-história, o homem já utilizava
as jóias para suprir necessidades pessoais, explicitar suas posses e sua posição social, além
de demonstrar vaidade, superstição, desejo de riqueza material, etc.. Nas mais diferentes
Para apresentar a função utilitária das jóias tem-se, na Figura 3.2, uma mulher
africana do povo peul, com suas jóias de grandes dimensões, como os brincos em forma
da fruta carambola, pesando por volta de 500 g. cada par. Na Figura 3.3, há uma mulher
européia, com o seu colar em estilo geométrico e em ouro 18 kt. Na Figura 3.4, um chefe
de estado africano, com uma grande quantidade de jóias em ouro, cuja função utilitário-
simbólica é a de expressar a sua posição social, e na Figura 3.5, o príncipe do Nepal e suas
jóias (coroa e medalhas) como insígnias do seu status. Vale ressaltar que todas as fotos são
126
oriundas do século XX.
Deste modo, a jóia pode ser designada também como símbolo de poder, seja ele
Também pedras (esmeraldas, rubis, safiras, diamantes, coral e outras), metais e uma série de
2 III- Ernest Cassirer (1874-1945): “historiador da filosofia e antropólogo, teve seu reconhecimento após a 2ª Guerra
Mundial, a partir de 1945, pelo seu denso estudo da filosofia das formas simbólicas, impregnado de um racionalismo
no qual estende a problemática kantiana às formas simbólicas como o campo das produções constitutivas da cultura”
(MOURA, 2000, p.76). Disponível em: http://www.uefs.br/nef/marinaide5.pdf. Acesso em 10/03/2009.
materiais coletados na natureza, vêm sendo
Há exemplos desse caráter híbrido dos adornos nas mais diversas culturas, como é o caso
da África, onde o povo Baoule (Costa do Marfim) usa pendentes em forma de face humana, de
concepção mais realista, como a da Figura 3.6, ou mais estilizada, apenas uma oval perfurada
por triângulos numa superfície feita por fios de ouro justapostos, como o da Figura 3.7. Estas
“máscaras”, miniaturas em ouro, fundidas por cera perdida, poderiam ser uma cabeça de um
antepassado, apesar de não serem retratos. De acordo G. Niangoran Bouah, estes pendentes
serviam para defender seus usuários, que, quando envolvidos em alguma briga, revelavam ao
129
Figura 3.6 – Pendente em ouro em forma de Figura 3.7 – Pendente em ouro em forma de face
face humana – Costa do Marfim. Imagem humana – Costa do Marfim. Imagem digitalizada
digitalizada do livro África Negra: Máscaras, do livro África Negra: Máscaras, Esculturas, Jóias
Esculturas, Jóias (MEYER, 2001, p. 192). (MEYER, 2001, p. 193).
adversário estar usando uma cabeça de homem, o que significava estar sob a proteção dos
Na Inglaterra, por volta da segunda metade do século dezessete, era comum o uso de
jóias ornamentadas com símbolos denominados de Memento Mori III-3, tal qual o anel com a
caveira e dois ossos cruzados da Figura 3.8, usado em memória de um indivíduo já morto.
p.7) identifica nos objetos históricos em seu texto sobre “Memória e cultura material: documentos
3 III- Memento Mori é uma expressão latina que significa "lembra-te que és mortal". Este tipo de pensamento é
muito utilizado dentro da literatura, principalmente na literatura barroca. Disponível em http://pt.wikipedia.org/
wiki/Memento_Mori. Acessado em 30/05/2006.
São ‘semióforos’ III-4, expressão rebarbativa forjada por Pomian (1977) para
identificar objetos excepcionalmente apropriados e (exclusivamente) capazes
de portar sentido, estabelecendo uma mediação de ordem existencial (e não
cognitiva) entre o visível e o invisível, outros espaços e tempos, outras faixas de
realidade. Escusado insistir que o conceito de relíquia, no campo religioso, condiz
com os anteriores, ressaltando a necessidade de contigüidade, contato com um
transcendente, para que o objeto prolongue esse transcendente, seja, entre nós,
o que dele ficou (relicta). Todos funcionam como fetiches, significantes cujo
significado lhes é imanente, dispensando demonstração: as relíquias do Santo
Lenho, por exemplo, impunham credibilidade, não pela autenticidade de suas
origens, mas pelo poder manifestado. (grifos do autor, exceto negrito, nosso).
Diante do exposto, conclui-se pelo inapelável fetiche das jóias, entendendo que este
funciona ao mesmo tempo como atribuição de valores subjetivos ao objeto e como apropriação
de valores subjetivos representados pelo objeto ou nele embutidos (Cardoso, 1998, p. 24 e 25).
Em um artigo exemplar, Cardoso (idem, p.15 a 39) faz um estudo das origens e significados do
termo fetichismo e inicia afirmando que a palavra ‘fetiche’ em português é uma adaptação do
vocábulo francês fetiche, cuja origem é uma transposição da palavra portuguesa ‘feitiço’:
130
A palavra ‘feitiço’ já era usada na língua portuguesa desde o século XV para
denotar qualquer amuleto usado para fins de bruxaria e não é difícil entender que
os portugueses tenham empregado a mesma palavra para descrever as práticas
religiosas dos povos africanos que encontraram no século XVI (Idem, p.25).
4 III- Segundo Chauí (2000, p. 11-14), “Semeiophoros é uma palavra grega composta de duas outras: semeion “sinal”
ou “signo”, e phoros, “trazer para frente”, “expor”, “carregar”, “brotar” e “pegar” (no sentido que, em português,
dizemos que uma planta “pegou”, isto é, refere-se a fecundidade de alguma coisa)” (grifos da autora). Então, Chauí
define: “Um semióforo é, pois, um acontecimento, um objeto, uma pessoa ou uma instituição retirados do circuito
do uso ou sem utilidade direta imediata na vida cotidiana porque são coisas providas de significação ou de valor
simbólico, capazes de relacionar o visível e o invisível, seja no espaço, seja no tempo, pois o invisível pode ser o
sagrado (um espaço além de todo espaço) ou o passado ou o futuro distantes (um tempo sem tempo ou eternidade),
e expostos à visibilidade, pois é nessa exposição que realizam sua significação e sua existência” (grifos da autora).
Após essa definição de semióforo, argumenta a possibilidade de inexistência do mesmo no modo de produção
capitalista, devido a tudo ser transformado em mercadoria, anulando um aspecto decisivo dos semióforos: a
condição de serem signos de poder e prestígio. Portanto, afirma a autora, “[...] ele é também posse e propriedade
daqueles que detêm o poder para produzir e conservar um sistema de crenças ou um sistema de instituições que
lhes permite dominar um meio social. Chefias religiosas ou igrejas, detentoras do saber sobre o sagrado, e chefias
político-militares, detentoras do saber sobre o profano, são os detentores iniciais do semióforos. É nesse contexto
que a entrada da mercadoria e do dinheiro como mercadoria universal pode acontecer sem destruir os semióforos
e, mais do que isso, com capacidade para fazer crescer a quantidade desses objetos especiais”. Entendem-se as
jóias escravas nessas duas situações apontadas por Chauí, como também na terceira via explicada pela autora, a
condição atual de serem patrimônio artístico e cultural da nação, pois as jóias em destaque fazem parte do traje da
baiana (atualizadas para materiais do contexto econômico da contemporaneidade), que foi considerada como bem
cultural do Patrimônio Imaterial no Livro dos Saberes em 01/12/2004, como a autora explica mais uma vez: “Em
outras palavras, os semióforos religiosos são particulares de cada crença, os semióforos da riqueza são propriedade
privada, mas o patrimônio histórico-geográfico e artístico é nacional”.
É ainda Cardoso (Ibidem) que
comum: fetichismo é o ato de investir os objetos de significados que não lhes são inerentes.
Pergunta-se, então: existe melhor exemplo de objeto que possua de forma explícita estes
Com base neste conceito de design, fica explícito que tanto as jóias de uma forma geral,
baiana é um conjunto de artefatos votivos, pois estão associados às crenças religiosas de suas
colonial, que adornava suas escravas com uma quantidade exacerbada de jóias de ouro para
Os senhores de engenho são opulentos não só nas alfaias com que povoam
suas casas e no modo de trajar seu e de sua mulher, mas também nos escravos
domésticos que acompanham a família em ocasiões especiais e solenes.
Mas é também e principalmente o que Pierre Bourdieu (2005, p. 102) define como a
No quadro 3.1, apresenta-se uma mulher negra usuária das jóias escravas com as
indicações das três condições fetichistas destes objetos. Com base nos pressupostos acima
passar por uma profunda revisão, tendo como pauta incluir uma série de objetos que ficaram
fora dela, desde os que povoam o cotidiano das pessoas no Ocidente desenvolvido até os
132
excluídos III-5 de diversos tipos; todos os designs e designers que não haviam encontrado um
lugar apropriado segundo o modelo imperante e, portanto, também ficaram de fora da história
A legitimidade dos estudos sobre jóia escrava baiana no campo da história do design
fica, de certa forma, mais evidente, já que estes artefatos, segundo Cardoso (2005, p.15),
sociedade, tecnologia e criação individual que precisam ser decodificadas pelo trabalho de
A jóia, como objeto do design, é entendida em sua complexidade, não é apenas objeto
5 III- O termo excluído foi usado por manter o significado do texto original, porém Anna Calvera utiliza a palavra
hispânica ‘marginados’ para explicar o direcionamento da história oficial do design, tal como: preferiu o culto em
detrimento do popular; deixou à margem as distintas culturas urbanas, especialmente se provinham das periferias
pobres das grandes cidades; e também os coletivos sociais, entre os quais está o coletivo feminino.
6 III- Cardoso, no seu texto, se refere aos objetos em geral e não especificamente, é claro, à jóia escrava baiana.
1- Fetichismo de caráter etimológico: penca de balangandãs,
objeto místico, significava as inúmeras crenças das suas
usuárias – fetichismo - um tipo de culto religioso em que se
atribui aos objetos poderes sobrenaturais.
2- Fetichismo de caráter mercadológico: indicativo de poder e riqueza
das usuárias ou dos seus senhores, acumulo de riqueza para compra
da liberdade ou como herança para seus descendentes - fetichismo –
um aspecto da teoria econômica que explica a atribuição de um valor
transcendental a certos objetos (mercadorias).
3- Fetichismo de caráter sexual: os brancos portugueses fascinados
pelas mulheres negras e mulatas e toda a indumentária por elas usada,
inclusive suas jóias, compunham o quadro desta sedução. Comporta-
mento em que o indivíduo atribui ao objeto uma carga sexual.
que possibilita entender, através de um ponto de vista privilegiado, a diversidade das práticas
MATERIALIZAÇÃO DA MESTIÇAGEM
crioulo III-7 e, para compreender esta condição, é necessário conhecer a formação da sociedade
7 III- O uso de vários termos deve-se à concordância com as explicações de Nestor Canclini (2006, p. 29): “estes termos
– mestiçagem, sincretismo, crioulização – continuam a ser utilizados em boa parte da bibliografia antropológica e etno-
histórica para especificar formas particulares de hibridação mais ou menos clássicas. Existe uma grande discussão
teórica sobre o termo mais adequado para o fenômeno em questão, inclusive com longos estudos argumentando a
favor deste ou daquele termo, circunscrevendo-o em uma determinada linha teórica. O ponto de vista aqui adotado
é: não se considera um problema os diversos nomes dados para identificar o fenômeno (mestiçagem, hibridismo,
sincretismo, crioulização ou multiculturalismo), mas entender os mecanismos pelos quais se dá.
o destino deste continente tomou, inexoravelmente, novos rumos, conforme se compreende
brasileira e o seu resultado: uma sociedade híbrida. Quem primeiro assim a definiu de modo
favorável foi o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre III-8, como se pode constatar no título do
primeiro capítulo do seu livro Casa Grande & Senzala (1933) “Características gerais da
Mesmo com todas as críticas em relação ao seu trabalho, deve-se levar em conta o aspecto
134 positivo de sua obra, apontado por Fernando Henrique Cardoso (2003, p. 28) ao prefaciar a 47ª
De alguma forma Gilberto Freyre nos faz fazer as pazes com o que somos.
Valorizou o negro. Chamou atenção para a região. Reinterpretou a raça pela
cultura e até pelo meio físico. Mostrou, com mais força de que todos, que
a mestiçagem, o hibridismo, e mesmo (mistificação à parte) a plasticidade
cultural da convivência entre contrários, não são apenas uma característica,
mas uma vantagem do Brasil.
relação à condição do Brasil como terra de mestiços, devido à concepção das teorias racistas
8 III- Manoel Bonfim, Darcy Ribeiro e Roberto DaMatta são considerados intérpretes da cultura brasileira que
seguiram a tônica valorativa e otimista de Gilberto Freyre.
e estabeleciam hierarquias culturais, étnicas e raciais entre os povos. Nesta
escala de valor, que dos indivíduos se estendiam às nações, o futuro do Brasil
se achava fortemente comprometido. Belo país, um dos mais belos que existem
no mundo, dizia um periódico francês por ocasião da participação brasileira
na exposição universal de Paris, em 1889. Mas era terra de mestiços, cheia
de negros e doenças, que futuro teria o país, amaldiçoado pelos pressupostos
científicos que condenavam a miscigenação? (grifos da autora).
O mérito dos estudos de Gilberto Freyre é inegável, todavia traz em seu bojo aspectos
Brasil. Nas entrelinhas de sua obra, existe um posicionamento político que tolera o intolerável:
um país repleto de injustiças sociais, mas que possui uma imagem positiva de si mesmo,
considerando-se um povo sem preconceitos. Por isso e também pela sua adesão ao governo
militar, Gilberto Freyre permanece no ostracismo por quase 30 anos. É a partir da década de 90,
o seu resgate como primeiro estudioso da mestiçagem, porém totalmente revisado por diversos
135
pesquisadores que serão citados ao longo desta investigação focada na cultura material, ou
seja, na mestiçagem cultural e não mestiçagem biológica, seguindo a linha de estudo de Serge
Pelo exposto, averigua-se que a existência da condição mestiça, tanto no processo como
se constrói a identidade cultural de uma nação, de um povo, de um país. Stuart Hall (2003,
p. 29), analisando a questão da identidade cultural caribenha, alerta para a questão do mito
fundador que está relacionado a uma “concepção fechada de “tribo”, diáspora e pátria” (grifos
do autor). Ser portador deste tipo de identidade cultural é estar associado a um núcleo “imutável
e atemporal”, constituindo-se na “tradição” que tem compromisso com as origens e com a sua
“autencidade”, ou seja, um mito - “com todo o potencial real dos nossos mitos dominantes de
moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações, conferir significado às nossas vidas e dar
a mesma seqüência de Hall (2003, p.30), uma sociedade composta de muitos povos e não
um passado constituído de rupturas e não de continuidades e mais, com uma associação civil
imposta, enfim, substitua na citação abaixo o nome Caribe por Brasil e tudo permanecerá válido:
“O que denominamos Caribe renasceu de dentro da violência e através dela. A via para nossa
modernidade está marcada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, pelo sistema de
Tal como Hall III-10 descreve para o Caribe, Darci Ribeiro (1995, p.19) descreve para o Brasil,
10 III- “A distinção de nossa cultura é manifestamente o resultado do maior entrelaçamento e fusão, na fornalha da
sociedade colonial, de diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e europeus”. (HALL, 2003, p. 31)
Para se atribuir aos objetos o status de brasileiro tem que se ter em conta as condições
históricas de sua formação enquanto povo. Proveniente de uma interação cultural de longo
prazo, apenas ao final do século XVIII, quase trezentos anos após a frota de Cabral ter aportado
Entretanto, o foco dessa pesquisa está na cultura material, por isso, pergunta-se:
Tal como ocorre em todas as sociedades híbridas, a sua cultura material é descendente de
processos que o tempo demora muito a desgastar e a transportar, como uma “atualidade” que reúne
anteontem, de outrora (Braudel, 1958, p.18). Considera-se que estes objetos são oriundos dos
137
processos de hibridação tal como é conceituado por Nestor Canclini (2006, p.19),
textos. Para exemplificar, aponta que as linhas retas e os ângulos dos móveis ingleses foram
suavizados quando seus designs foram copiados no início do século XIX no Brasil, citando
obviamente. Apesar das circunstâncias de uma conquista nos trópicos e do contato com os
índios que já ocupavam as terras encontradas, existia a tentativa de preservar, ou pelo menos
reproduzir, o que se tinha na Lusitânia III-11, tanto que, ao final do século XVI, já se afirmava que
O povo português possui uma grande plasticidade, que é originária das especificidades
do seu passado cultural devido à convivência com os mouros, esta característica é fortemente
Apesar dessa prévia condição mestiça dos portugueses, em relação à cultura material
eles representavam o imperialismo cultural europeu, impondo aos demais povos que integravam
a sociedade colonial brasileira seus padrões estéticos, como é o caso da jóia da Figura 3.9, que
apesar de produzida no Brasil, possui o estilo das jóias européias. Trata-se de um broche em
crisólitas e prata, do século XVIII, no padrão formal denominado girândola, como descreve
11 III- Nova Lusitânia foi nome que o donatário Duarte Coelho deu à capitania que lhe doara D. João III, inclusive
todas as cartas que enviava ao el-rei eram identificadas como originárias desta localidade, nunca de Pernambuco
(Mello, 2000, p. 73).
12 III- Frase do jesuíta Fernão Cardim encontrada na obra de sua autoria Tratados da terra e gente do Brasil (1585).
(Couto, 2000, p. 64).
No século XVII, os desenhos do francês Gilles Légaré, joalheiro do rei Luís
XIV da França, influenciaram a decoração e composição de peças em todo
o mundo e originaram vários tipos de jóias, como a girândola e o savigné.
A girândola ou girandole foi um modelo criado baseado em um tipo de
candelabro assim denominado. A partir de um elemento central pendem
três a cinco pingentes em forma de gotas. Era uma peça bastante apreciada
pelas damas por ser muito vistosa, apresentando-se como brincos, broches,
pendentes ou parte central de um colar. (grifos da autora)
índios pelo conquistador português, cuja diversidade foi retratada por Debret nas Figuras 3.11
e 3.12. Seja como aliados ou adversários, os povos indígenas foram de suma importância e
na cultura brasileira é notável, basta observar o que Freire (2003, p.232) aponta,
140
b- Jovens
da elite.
Aquarela; 9
x 13,3 cm; C.
1817-1829
c- Senhoras
brasileiras
sentadas no
chão da igreja.
Aquarela; 12
x 18 cm; C.
1817-1829
Figura 3. 10 - Indumentária dos brasileiros e brasileiras de ascendência européia. Imagem digitali-
zada do livro Debret e o Brasil (BANDEIRA & LAGO, 2008, p. 443, 350 e 444 respectivamente).
Figura 3. 11 – Tipos indígenas. Aquarela; 16,5 x 19,5 cm; Figura 3. 12 – Bastão e cabeça indí-
C. 1817-1829. Imagem digitalizada do livro Debret e o gena com cocar. Aquarela; 20,5 x 17
Brasil (BANDEIRA & LAGO, 2008, p. 382). cm; 1828. Imagem digitalizada do li-
vro Debret e o Brasil (BANDEIRA &
LAGO, 2008, p. 374).
enorme diversidade desses artefatos que são, além de emblemas tribais, insígnias de faixa
confeccionam, durante a sua vida, certa quantidade de conjuntos ornamentais adequados a sua
condição social, tais como: colares de materiais diversos, adornos faciais (brincos, narigueira e
labrete), bandoleira III-13, cintos, estojo peniano, amarrações, pinturas corporais e a especialíssima
arte plumária. Nas figuras 3.13 e 3.14, há dois exemplos de adornos indígenas, que, segundo
13 III- Enfeite usado a tiracolo constituído de cordéis de algodão com ou sem pingentes ornamentais.
eramutilizados, não existindo, obviamente, qualquer colaboração de
máquinas específicas para o setor.
142
Figura 3.13 – Colares de contas de noz de tucúm Figura 3.14 – Colar de dentes de onça, brin-
e rodelas de casco de tatú: usa ainda, outros de cos de contas de porcelanas. Pintura facial fei-
fibra de palmeira de tucúm e um pintado com ta com extrato de semente de urucum. Tribo
sementes de urucum. Indiazinha Surrui, Cinta Mentuktire (Kaiapó). Imagem digitalizada do
Larga. Imagem digitalizada do livro Jóia Con- livro Jóia Contemporânea Brasileira (WAG-
temporânea Brasileira (WAGNER, 1980, p. 25). NER, 1980, p. 25).
forçosamente foram trazidos para o Brasil e suas incalculáveis contribuições para a existência
de uma cultura material dita brasileira. Nas primeiras décadas do século XIX, a multiplicidade
desses indivíduos ainda era notada aqui no Brasil, como se pode constatar nos registros de
Tão diversos quanto os grupos são os seus adornos, e suas diferenças de forma e
a uma divindade, região (dentro de uma área de mesma linguagem), urbano/rural, artista,
etc.. Também são utilizados para iniciação (feminina e masculina), agricultura (colheita e
Figura 3. 15 – Negros de diferentes na- Figura 3. 16 – Tipos de negras. Aquarela; 9,7 x 16,46
ções. Aquarela; 10,2 x 19,6 cm; C. 1817- cm; C. 1817-1829. Imagem digitalizada do livro De-
1829. Imagem digitalizada do livro De- bret e o Brasil (BANDEIRA & LAGO, 2008, p. 422).
bret e o Brasil (BANDEIRA & LAGO,
2008, p. 422).
A joalheria africana também possui uma grande variedade de materiais e cada um deles
era da preferência de um determinado povo. Uns apreciavam mais o marfim, outros o cobre,
143
também havia os que admiravam a prata, como os tuaregues, que era até mais valorizada do
que o ouro por não estar disponível em algumas regiões, além do bronze e das contas de vidro
(outro materiais também eram usados), que possuem um papel proeminente ao longo de toda a
história da joalheria e do adorno na África. Por outro lado, o uso do ouro como jóia foi limitado a
determinadas áreas, só mais recentemente foi que se deu o uso das jóias em ouro, e particularmente
associada aos povos akans, como se pode verificar na Figura 3.17 o colar em ouro de 108 contas,
uma jóia africana akan do século XIX, contextualizada por Meyer (2001, p.187),
Quando Jean Barbot III-14 esteve na Costa do Ouro, em 1678, foram as jóias
Akan que desenhou. Embora mencione no seu texto numerosos motivos
figurativos, animais em particular, as contas dos desenhos têm formas
abstractas, discos, espirais, rectângulos, losangos, cones ou tubos. Alguns
desses motivos sobreviveram durante séculos.
14 III-Da ourivesaria Africana dos séculos XVII e XVIII praticamente não se encontram exemplares, apenas tem-se
as informações deixadas por um francês, Jean Barbot, no Journal de voyage que foi escrito logo após a sua estadia na
Costa do Ouro, em 1678-1679. Ele fez esboços exatos que provam a existência de formas que foram transmitidas aos
ourives Akan da Costa do Marfim desde essa época e que ainda hoje são fabricadas (Meyer, 2001, p. 178).
A Costa do Ouro, atualmente República de Gana, onde viviam os axântis/akans que
dominavam a técnica de fundição por cera perdida, técnica esta altamente desenvolvida, tanto
que alguns trabalhos fundidos têm a delicadeza de filigranas. A arte da ourivesaria conservou-se
até hoje, como se pode observar na Figura 3. 18, um exemplar da joalheira axânti, um escudo
peitoral de ouro em forma de disco que fazia parte do equipamento dos mensageiros reais.
Cada um dos exemplos apresentados mantém suas matrizes étnicas culturais, não
espelha o caldeamento, apontado por Darci (1995, p. 455), do invasor português com índios
foram criadas as condições objetivas para que nos séculos XVIII e XIX surgisse a joalheria
escrava baiana forjada em uma estética “... mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma, porque
Portanto, retoma-se a questão da riqueza cultural produzida pela mestiçagem das tradições
144
africanas e européias. Segundo Gruzinski (2001), toda cultura é uma mistura de maneiras de
ser, de acreditar, de imaginar, de idéias, etc.. Não é o que a visão eurocêntrica determina como
autor entende como um conjunto de meios de dominação aplicados pela Europa renascentista na
América via catolicismo, mercantilismo, força através das armas e de informações orais, escritas
Nessa confluência formativa de um modus vivendi, nem luso, nem afro, tem-se uma
peculiar criação de trajes, cujas jóias escravas fazem parte, numa clara tentativa de re- construção
identitária sob novas condições. Desde 1641 pode ser averiguado na tela a óleo intitulada
Mulher Negra (vide Figura 3.19), do pintor holandês Albert Eckhout, um traje forjado pela
145
Figura 3.17 - Colar de 108 contas. Gana. Akan. Ouro. Séc. XIX. Imagem digitalizada do livro
África Negra (MEYER, 2001, p. 184). A peça pertence ao Musée Barbier-Mueller, Genebra.
mulher africana na sua nova condição nas terras do além-mar, imagem deste algo novo que está
e, para ampliar o mix, usa um chapéu cônico oriental III-15. De um lado, o cesto africano repleto
de frutas tropicais brasileiras e do outro, uma criança, provavelmente seu filho mestiço pela
condição da pele mais clara, segurando uma espiga de milho em uma das mãos e na outra, um
15 III- Segundo Freyre (2003, p. 339), o Brasil foi a parte do império lusitano que, graças a suas condições
sociais e clima, mais largamente se aproveitou dos produtos de finas, opulentas e velhas civilizações asiáticas
e africanas, como: o chapéu-de-sol, o palanquim, o leque, a bengala, a colcha de seda, a telha à moda sino-
japonesa, o telhado das casas caído dos lados e recurvado nas pontas em cornos de lua, a porcelana da China e a
louça da Índia. Plantas, especiarias, animais, quitutes. O coqueiro, a jaqueira, a mangueira, a canela, a fruta-pão,
o cuscuz. Móveis da Índia e da China.
papagaio, ave encontrada em abundância no
impõe aos demais, sem conseguir destruí-los. Com isso, termina por se reconstruir uma cultura a
partir de um relacionamento de colaboração/embate. É desta maneira que Kalina Silva (2005, p.3),
com quem concordamos aqui nesta tese, crê que ocorreu na América portuguesa:
Cremos que assim ocorreu com a sociedade das vilas açucareiras da América
portuguesa no período que se estende das últimas décadas do XVI ao final do
XVIII. Se um sistema de valores engloba valores éticos e morais, noções de
certo e errado, de Bem e de Mal, concepções religiosas e hierarquia social,
nas vilas açucareiras de Pernambuco e Bahia, tais concepções e valores eram
definidos, a priori, pela cultura da Igreja Católica, da monarquia e fidalguia
ibérica. Constituía-se assim um sistema de valores oficial. Mas se, por um
lado, tais noções eram impostas, aceitas e adaptadas por escravos, forros,
índios aldeados e mestiços, por outro, diversos grupos compostos por esses
personagens construíam suas próprias noções mestiças, com variado grau
de herança indígena ou africana, de Bem e Mal, de divindade, de hierarquia
social, como nos mostram diversas instituições de caráter mestiço da
sociedade urbana açucareira.
Este sistema de valores é denominado
incluindo sua expansão no novo mundo, e, dentre as inúmeras estratégias de alcançar seus
objetivos, uma delas, sem dúvida era a tolerância aos elementos significativos daqueles a quem
se queria conquistar. Um exemplo é a igreja de Santa Efigênia (Ouro Preto), construída por
Chico Rei, senhor na África e escravo no Brasil, que enriquece com a mineração de ouro e
compra sua liberdade. Como toda a arte barroca é oriunda de encomenda, a talha (Figura 3.20)
desta igreja possui elementos próprios das crenças africanas, como búzios, chifres de carneiro
a fazer parte do universo mestiço e não mais dos seus referenciais de origem, têm-se iconografia
dos santos Cosme e Damião. Estes eram dois médicos norte-africanos ou médio-orientais que
nunca foram irmãos e que a Igreja Católica, para substituir o culto africano aos Ibejis (Gêmeos),
transformou em irmãos gêmeos (Cunha 1993, p. 990). Vê-se na Figura 3.21 Ibejis africanos,
149
cultural III-16. Gruzinski (2001) demonstra que a concepção européia de reprodução deixava um
16 III- Segundo Fernandes (2002, p.6): A cultura popular filtra elementos da cultura letrada de acordo com seu
conjunto de valores e condições de vida. Já o contrário é recíproco – a cultura letrada/oficial também capta
elementos da popular. O historiador italiano Carlo Ginzburg busca analisar, não a cultura popular em si, ao analisar
o caso específico do moleiro friuliano, em O queijo e os vermes, mas o processo de circularidade cultural que
campo considerável à interpretação e à invenção.
Em conformidade com a pesquisa de Affonso Ávila (1994, p.32) o barroco está presente
É deste ponto, templos suntuosos da Bahia III-17 - possíveis devido à opulência gerada
pelos engenhos de açúcar - que se irá atentar para o denominado mundo Afrobarroco III-18
portuguesa, já modificada pelos ameríndios. Concordando com Ávila, Antonio Risério relata o
Foi do ventre desta Bahia Afrobarroca que nasceu o traje da baiana, inicialmente
formava suas idéias tão originais, e que demonstra as interelações entre a cultura letrada e a popular.
17 III- A Bahia ao qual nos referimos é, na verdade, Salvador, a Cidade da Bahia e seu Recôncavo.
18 III- Como o antropólogo Antonio Risério (1997, p.18) denomina a cultura baiana.
a serviço de externar a riqueza de suas senhoras e seus senhores, e, mais tarde ou ao
mesmo tempo, constituindo-se em insígnias de poder para suas usuárias. Trata-se de uma
indumentária híbrida, que foi sendo elaborada muito vagarosamente, no século XVII, cuja
ascendência pode ser averiguada na pintura “Mulher Negra” de Albert Eckhout (Figura 3.19),
passando pelo século XVIII com as pinturas de Carlos Julião III-19, produzidas provavelmente
entre 1776 e 1799 - “Ditos de Figurinhos de Brancos e Negros dos Uzos do Rio de Janeiro e
Conjunto de
151
pinturas de
Carlos Julião,
guardado pela
Biblioteca
Nacional do
Rio de Janeiro
- 1776 e 1799
- “Ditos
de Figurinhos
de Brancos e
Negros
dos Uzos do
Rio de Janeiro
e Serro
do Frio”.
Figura 3.22 - Indumentárias de mulheres negras. Carlos Julião. Imagens capturadas do artigo
Mulheres Escravas, Identidades Africanas (LARA, 2000, p. 3, 4 e 6).
19 III- Os riscos referentes ao Rio de Janeiro e Serro do Frio compõem um conjunto de 43 pranchas de traços delicados
e cores fortes, com algumas iluminuras. Guardado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, este conjunto
constitui um dos raros documentos iconográficos sobre escravos e libertos na América portuguesa setecentista.
Homens e mulheres de pele bem escura aparecem em 21 das pranchas: 10 representam situações de trabalho
individual ou coletivo, 6 referem-se a ocasiões festivas, 4 contêm figuras isoladas destacando a indumentária, e
finalmente, uma traz uma cena em que dois feitores revistam um escravo garimpeiro (LARA, 2000, p.1).
Figura 3.23 – Indumentárias de Baianas. Imagens digitalizadas do livro Debret e o Brasil
(BANDEIRA & LAGO, 2008, páginas 406 e 416 respectivamente).
152
Figura 3.24). Esse tipo de vestimenta que se tornou traje típico brasileiro, sendo um mix
inseridas as jóias escravas, que podem ser conferidas tanto nas figuras anteriores, como na
e poder, que, neste caso, envolve design e raça e design e gênero, será assunto do próximo
mestiça da mulher negra baiana. Não interessa, entretanto, destacar minuciosamente quais
as contribuições européias e quais as africanas, elas existem, bem como os estudos que
153
as destacam, dando-se maior importância a uma ou outra em consonância com a adesão
objeto mestiço, em que, neste ponto, já se pode dizer objeto brasileiro, conceito elaborado
O mesmo ocorre com as vestes das negras baianas dos séculos XVIII e XIX, seja o traje
cotidiano de trabalho ou os trajes festivos (a roupa de baiana e o traje de beca), que estavam
relacionados com a indumentária das trabalhadoras portuguesas (Silva, 2005, p. 47-66). Nossas
personagens retiraram da cultura européia aquilo que lhes parecia interessante e mantiveram de
africano: o turbante, o pano da costa e o gosto pelos adornos como jóias. A partir daí criaram
154 uma indumentária misturada, que pertence simultaneamente aos dois mundos e a nenhum. “Um
objeto mestiço é aquele que pertence a várias civilizações ao mesmo tempo. Por exemplo, ele é
Em campo estético, as coisas foram ainda mais fáceis. A tradição visual africana
não se choca com as formas barrocas. Prima pelo excesso e a extravagância. Por
floreios e volutas. É uma festa de movimentos, cores, detalhes. Um mundo de
procissões sacro-carnavalescas e danças multicoloridas – de mascaras e brilhos
e insígnias e artifícios, todos capazes de seduzir de chofre um temperamento
barroco. Apesar das diferenças culturais, um homem barroco se sentiria à
vontade diante da plástica em movimento de orixás e eguns. Assim, a conjunção
e o parentesco formais facilitaram a articulação de sincretismos entre nós.
Brasil. Na Figura 3.27, apontam-se os trajes festivos das mulheres portuguesas e das crioulas
baianas, incluindo o traje de beca III-21, e na Figura 3.28, o traje de baiana III-22, também festivo.
“O traje de beca era de uso mais restrito, cerimonial, de solenidades como as procissões
Nas vestes destas mulheres, como também nas suas jóias, manifesta-se a mistura dos
elementos da cultura européia com as questões locais para se criar uma nova realidade, ambígua
corporais femininos, tecidos coloridos e diferentes tipos de penteados são legítimos objetos
historiográficos, e uma maior atenção dispensada a eles ajuda-nos a melhor compreender o passado e
21 III- “O traje de beca consistia em torço de seda branca enfeitado de finíssimo bico condizente, que podia ser
também em gorgorão preto; camisas brancas em tecido finíssimo, primorosamente bordadas, de mangas curtas,
decote arredondado alargado e pouco profundo; saias de beca de tecido preto plissado de comprimento até o
tornozelo; anáguas; lenço de cambraia bordada posto na cintura; pano preto, possivelmente pano da costa, usado
como xale; sapatinhas de pelica branca com enfeite de seda, de biqueira revirada para cima à morisca e salto
de carretel; e uma profusão de jóias como grosas correntes de ouro no colo, braceletes cobrindo os punhos e os
antebraços até a altura dos cotovelos” (SILVA, 2005, p. 63).
22 III- “A parte superior, acima da saia, é feita de fina musselina, lisa ou enfeitada, algumas vezes tão transparente
que não chega a disfarçar o corpo, da cintura para cima. A parte que cobre o busto é bordada com largas rendas
e pequenos tubos, lindamente trabalhados, reunidos por meio de uma abotoadura de ouro; esta parte superior do
vestido é sempre tão folgada que um dos ombros da mulher fica quase inteiramente descoberto. A saia do vestido
é muito volumosa, sua orla é bordada com renda ou leva um arabesco branco aplicado sobre a mesma; a saia de
baixo também é bordada com rendas. Os pés, sem meias, são enfiados em pequenos sapatos que cobrem a ponta
dos dedos e os saltos, muito altos e pequenos, não alcançam o calcanhar. Os braços são cobertos de pulseiras de
coral e de ouro, etc; o pescoço e o peito carregados de colares e as mãos de anéis (...) Um elegante pano da costa é
jogado sobre o ombro. (...) Um elegante lenço de renda branco ou musselina de cor, com uma orla de renda branca
ou preta, é transformado da maneira mais elegante num turbante para a cabeça, e curiosos brincos completam esse
vestuário. (...) Uma pequena cesta, usada mais como adorno do que como objeto de uso, é por vezes carregada na
cabeça” (WETHERELL apud SILVA, 2005, p. 62).
156
Traje de trabalhadora portuguesa. S/D. Imagem digitalizada Lavadeira - Bahia. Foto: Lindemann
do livro Ouro Popular Português (COSTA e FREITAS, - Séc. XIX - Imagem digitalizada do
1992, p. 26). Foto: Manuel e Lucila Valle - 1992 livro O negro na fotografia brasile-
ira do século XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 212)
design de jóias brasileiro, sendo um produto do hibridismo cultural. Essa joalheria é composta
por artefatos híbridos na sua aparência, nas técnicas de feitura, na mistura de heranças culturais
diversas, que não podem ser classificados como europeus ou africanos. Tal como argumenta
Mariano Cunha (1983, p. 1027), depois de apontar que “a metalurgia aplicada à fabricação de
adornos e ornamentos pessoais já era fato corrente na África negra muito antes de qualquer
Crioulas da Bahia. Foto: Lindemann - Séc. Lavradeiras portuguesas - Vila Nova de Gaia -
XIX Imagem digitalizada do livro O negro na Séc. XX Imagem digitalizada do livro Círculo das
fotografia brasileira do século XIX contas (GODOY, 2006, p. 69).
(ERMAKOFF, 2004, p. 216)
Figura 3.27: Trajes festivos das lavradeiras portuguesas e das crioulas baianas (traje de beca).
à arquitetura mexicana,
No México, por exemplo, se entreviram góticos tardios com maneirismos
e renascimentos, platerescos e finos renascimentos italianos, vestígios
românicos e estruturas indígenas, contemporaneamente e até em uma
mesma obra. Daí que uma periodização baseada em critérios estilísticos, ou
de concepção espacial ou de desenvolvimento estrutural, resulte artificial
para a nossa arquitetura, e possa indicar, em resumo, alguma coincidência
temporal com períodos europeus.
desenvolvimento estilístico coerente aos padrões europeus. São jóias que possuem características
158
Por exemplo, a pulseira da Figura 3.29 é um “bracelete cilíndrico que se assemelha a
um copo. Traz geralmente como elemento decorativo central, medalhão com figura feminina de
perfil. Decoração comumente em filigrana” (SILVA, 2005, p.46). É, então, denominada pulseira
‘copo’. Analisando a peça, percebe-se que a concepção formal da pulseira possui matriz africana,
apesar dos muitos elementos europeus, como expõe Cunha (1983, p. 996),
do tipo ‘copo’ de filigrana dourada com as pulseiras de aparato em bronze da África Ocidental,
na África nas pulseiras de menor tamanho. Portanto, estes artefatos, podem ser considerados
como versões mais sofisticadas das usadas nos cultos afro-brasileiros III-24 (Figura 3.30).
24 III- O Professor de Antropologia da USP Vagner Gonçalves da Silva faz outra interpretação das origens da
influência em relação à forma de pulseira “copo”: “Outra grande influência estrangeira na vestimenta dos orixás
encontra-se na forma do peitoral e dos braceletes e pulseiras que os orixás, em geral os guerreiros, usam. Feitas
também de metal trabalhado, em forma de “copo”, estas peças lembram as armaduras típicas dos cavaleiros
romanos ou medievais” (2008, p. 102).
tradicional (Figura 3.32). A Cabília é uma
as do tipo ‘copo’.
no século XIX, várias igrejas passam por reformas ornamentais, passando do barroco
para o neoclássico, como detalha o pesquisador baiano, professor Luis Freire (2006, p.
339), ao abordar o hibridismo estilístico
joanino, o rococó mais refinado de cariz Figura 3.33 – Bracelete cabila tradicional da
autoria de Salima Hadj e Oukali Saliha (ouri-
francês e o Luís XVI (França)”. E afirma ves da Cabília). Imagem digitalizada do livro A
Ourivesaria (CODINA, 2002, p.152-154).
algo sobre a talha neoclássica baiana que se
considera absolutamente valido para a coleção de peças que compõem a joalheria escrava
baiana: “Por mais que decorra ou faça referências aos elementos estilísticos europeus, a
162
talha baiana oitocentista é resultado de criações bastante singulares e identificadas com
maneira mais contundente os propósitos da arte neoclássica como arte a serviço do Estado,
pois, depois da vinda da Família Real para o Brasil, da Missão Francesa, da Independência e
principalmente, no reinado de D. Pedro II, o culto a personalidade não podia ser feit o através
de uma efígie feminina qualquer, precisava haver identidade com um projeto de nação e este
elegeu o índio como o seu representante. Em uma encomenda oficial ao escultor Francisco
que se faz representar como índio (Pereira, 2008, p. 38). Então, tem-se, no exemplar da
peça em questão, a efígie de um indígena e não mais de uma mulher com traços idealizados
greco-romanos, demonstrando mais uma vez como as jóias, objetos, cultura material, enfim,
Pulseira Copo ou Punho. Foto da peça: Acervo do India Guarani (Detalhe de litografia de Debret).
Museu de Carlos Costa Pinto.Júlio Acevedo/2005 Imagem digitalizada do livro Debret e o Brasil
1834 - (BANDEIRA & LAGO, 2008, p.526)
Figura 3.34 – Pulseira “copo” e suas referências.
163
A pulseira de placas (Figuras 3.35 e 3.36), peça da jóia de crioula, composta por chapas
retangulares decoradas com motivos fitomorfos ou efígies e as partes são conectadas entre si
por elos ou cilindros no mesmo metal, ou em coral ou pedra colorida encastoados. (Trindade,
2005, p.46). O estilo neoclássico francês também está presente nessas pulseiras em termos de
culto à personalidade, onde era esculpida em baixo-relevo a efígie de membros do império (D.
João VI, D. Pedro I e D. Pedro II), como descreve Oliveira (1948, p.30),
Figura 3.35 – Pulseira de Placas. Foto da peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio
Acevedo/2005.
Figura 3.36 – Pulseira de Placas. Efígie de D. Pedro I jovem e na idade madura intercaladas.
Foto da peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio Acevedo/2005.
164
Em termos estéticos, portar os membros da família real do Brasil nas jóias era o
padrão da época e, portanto, necessário aos significados sociais destas jóias que faziam
3.37) e, no centro dele, havia a efígie do amásio, neste caso, por padrão e provavelmente
por paixão.
Nas pulseiras de placa (Figura 3.38) existem aquelas que possuem conexões de
cilindros em coral, indicando uma tradição africana tanto na forma cilíndrica, como na
O uso do coral foi bem diversificado e intenso entre as mulheres forras e livres,
várias formas: em contas (cilíndrica ou esférica) à moda africana, em rama como amuleto
europeu, ou ainda, lapidados em forma
Figura 3.37 – Colar de Ametistas com a efígie de escravidão. Eduardo Paiva relata como
de D. Pedro na peça central. Pertenceu a Mar-
quesa de Santos – S/D. Imagem digitalizada do foi na África (2004, p. 61):
livro Jóia Contemporânea Brasileira (WAG-
NER, 1980, p. 31).
165
Figura 3.38 – Pulseira de Placas - placas com efígie do imperador menino e conexões em cilindros
de coral e ouro. Foto da peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio Acevedo/2005.
Tanto o coral vermelho quanto o azul possuem função e significado nos cultos afro-
brasileiro. Por exemplo, só as adeptas do candomblé com mais de sete anos de iniciação podem
166
Figura 3.39 – Diversas jóias escravas em ouro e coral. Foto da peça do acervo do Museu de Car-
los Costa Pinto - Júlio Acevedo/2005.
usar “os brajás, colares truncados por “firmas” (contas maiores feitas de coral) que formam
“gomos” em sua extensão (VAGNER, 2008, p. 103) (grifos do autor). E Gerlaine Martini ainda
Quanto ao coral em rama (Figura 3.40), ele é mais um exemplo de circularidade cultural
- quando a cultura popular filtra elementos da cultura letrada de acordo com seu conjunto de
valores e condições de vida – por ser um dos elementos encontrados na penca de balangandã e
Figura 3.40 – Penca de Balangandã. Imagem digitalizada do catálogo Mostra do redescobrimen-
to: negro de corpo e alma (AGUILAR, 2000, p. 262).
aparecer pendurado muitas vezes pendendo no colar em torno do pescoço do menino Jesus nas
representações dos pintores renascentistas italianos da Virgem com o menino, como amuleto contra
167
o mau-olhado e outros males. Nessas diversas pinturas também aparecem vários componentes das
usado por certas negras e mulatas, até a primeira metade do século XX, na região da cintura/
quadris. (Silva, 2005, p.46). A museóloga Simone Silva realizou em sua dissertação de mestrado
um extensivo estudo sobre as pencas de balangandã, tomando por base as 27 (vinte e sete)
unidades pertencentes ao acervo do Museu Carlos Costa Pinto, descortinando através da análise
histórica e semiótica, todos os componentes da penca: corrente, nave ou galera e os seus vários
Na Figura 3.41 identifica-se essa estrutura da penca de balangandã e também se notam seus
elementos pendentes mais freqüentes, que são: figas, côco de água, chave, moedas, cilindro, romã,
cacho de uva, peixe e dentes de animais encastoados em prata (Silva, 2005, p.94). Em relação à
questão estética pertinente à penca de balangandãs, existem, na decoração das naves e nos ornatos
si mesmo e em composição com as demais peças usadas pelas mulheres negras ou mestiças, “onde
muito ouro e prata barrocamente ajaezavam corpos e trajes de gala [...]” (LODY, 2001, p. 42). O que
se considera mais importante na estética da penca de balangandã, apesar da sua estrutura formal ser
bem definida, é a sua condição de obra aberta, por possibilitar a sua proprietária agregar ao longo da
sua vida, a materialização da própria vida... E é essa condição que leva a penca de balangandã a ser o
Os colares nomeados por correntão de crioula são compostos por bolas ou contas
confeitadas, que podem ser lisas ou gomiladas. Alguns exemplares trazem pendentes do tipo:
borla, pomba do Espírito Santo, roseta e/ou cruzes, crucifixos (Silva, 2005, p. 44). Neste caso,
há uma apropriação formal total de um tipo de jóia portuguesa da região de Viana do Castelo, lá
chamados simplesmente de colares de contas, e são as contas propriamente ditas que recebem
mais usuais eram a pedra, o vidro e o coral, que antecederam os metais como matéria-prima
das contas fundidas. Quanto à importância das contas para as mulheres desta região de Portugal
O colar de contas era adquirido pela mulher de Viana antes do tão desejado
cordão e, muitas vezes comprado, conta a conta, à custa das poucas
economias dessas jovens, em geral provenientes da venda de ovos ou do
comércio de frangos. As contas usavam-se em número variável consoante
a localidade, mas nunca, como agora, a rodear todo o pescoço. As contas 169
iam só até o meio dele, ligadas por um fio de correr, podendo aumentar ou
diminuir o colar, consoante a necessidade, e terminando na parte de trás
com um “pompom”. O fio era feito manualmente, de algodão, que podia ser
vermelho, amarelo ou azul, e os “pompons” das mesmas cores ou com fios
mesclados. (grifos dos autores).
As jóias de crioulas baianas guardam semelhança com as jóias africanas akan, mas também
Essas conexões percebidas por Godoy são parte do que o historiador Grunziski (2004,
pois, entre 1580 a 1640, com a integração dos reinos de Portugal e Espanha, aconteceu o que se
Macau (China), Nagasaki (Japão), Goa (Índia), na África, no Brasil, no México, em Milão, etc.
O colar de alianças é outro (Figuras 3.44 e 3.45) que pode ser formado elo por elo, usando-
se da mesma estratégia das trabalhadoras portuguesas, comprando conta a conta para ter seu
colar completo que, aliás, pode ser assim também para as pencas de balangandãs e para quase
todas as peças da joalheria escrava baiana, excetuando-se, talvez, a pulseira copo. Designado
elos em formato de alianças, lisas ou decoradas, que se entrelaçam. Também trazem pendentes
com símbolos católicos, e até a figa, considerada como de matriz africana, tem essa origem
Figura 3.43 – Correntão de criou- Figura 3.44 – Colares de alianças ou grilhões. Foto da
la - colar de contas filigranadas em peça do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Jú-
dimensões maiores do que as portu- lio Acevedo/2005.
guesas. Foto da peça do acervo do
Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio
Acevedo/2005.
O colar de gramalheira, também de Viana, possui uma concepção formal bem diferente
do colar de alianças produzido no Brasil, mas seus elos constitutivos, mesmo que menores, são
172
como anéis com a superfície lisa ou decorada. No exemplar da Figura 3.46, confere-se essa
semelhança, apesar da decoração ter motivos geométricos e não florais, em outros colares de
Do conjunto das jóias escravas, ainda existem duas peças a serem consideradas: os
brincos de crioulas e os anéis. Na Figura 3.47, observa-se o tradicional brinco tipo argola ou
pitanga (por lembrar a fruta). A forma mais comum é redonda, convexa, em coral lapidado em
forma de pitanga, entretanto, existem em outros materiais (ágata, turquesa, cornalina, tartaruga,
173
Figura 3.48 – Anéis diversos. Foto de peças do acervo do Museu de Carlos Costa Pinto - Júlio
Acevedo/2005.
a estrutura em ouro que craveja estes materiais nestes diversos formatos não se modifica. Ainda
hoje, as adeptas do candomblé e as baianas de acarajé usam comumente este tipo de argola, com
dourada barroca, tanto as jóias escravas baianas como as jóias populares portuguesas perseguiam
o mimetismo com a decoração das igrejas de forma tão intensa que nos leva a conjecturar ser uma
busca a sua consagração, talvez uma razão a mais para este perfil da arte barroca. Os anéis do
lado direito e do centro são de concepção híbrida, base do anel conforme estilo da talha dourada
barroca e topo central em metal oxidado e pedra branca, provavelmente um diamante ou uma safira
branca, característico da jóia vitoriana, pois quando, o Príncipe Albert morreu repentinamente, a
Rainha Vitória (Inglaterra) entrou em luto para o resto de sua vida. Suas roupas, sempre pretas
e com poucos e discretos enfeites, necessitavam de jóias que acompanhassem este novo estilo,
174
também entrou em voga as jóias feitas com o cabelo de entes queridos mortos, e a utilização do
Foi visto no capítulo anterior que vários povos africanos possuíam sua escrita impressa
nos objetos e a pesquisadora Silvia Escorel III-25 (1998) aponta como provável esse mesmo uso
das roupas pela população negra e mestiça do Rio de Janeiro colonial e sem maiores temores,
Sabe-se que entre os ashanti da atual Gana, “cada tecido e a maneira como
era usado servia para transmitir uma mensagem específica”. Da mesma
forma, é provável que a população negra, mulata e parda, majoritária no
Rio de Janeiro colonial, quase toda sem acesso à escrita e à leitura, usasse
a linguagem das roupas e adereços para expressar suas identidades e
pertencimentos. Dessa forma, a análise das suas imagens, um dos legados
mais eloqüentes a sobreviver os séculos que nos separam, traz à luz indícios
de seus valores, de sua concepção de mundo e das condições materiais de
sua produção. (grifos da autora).
Apesar de ainda não se ter uma fonte documental, há dados bibliográficos que apontam a
escravas baianas. Se não eram negros ou mestiços, esses profissionais possuíam aprendizes escravos
e forros, ou os próprios eram ex-escravos e, em sua maioria, possivelmente adeptos dos cultos
religiosas de escravos, forros e seus descendentes, como relata Paiva (2001, p. 221e 222),
granulação e a filigrana. Estes processos de trabalhar o metal vêm sendo utilizados há milênios
pela humanidade, mas, nos ornamentos corporais reservados às escravas baianas ganham uma
inquestionável singularidade.
É difícil determinar a origem dos objetos de adorno os quais, mais tarde, serão
nomeados como jóias, mas pode-se datar alguns documentos provenientes
do período chatel perroniano antigo (entre 35.000 e 30.000 a.C.). Em seu
texto ‘Pré-História da Arte Ocidental’ Leroi-Gourhan cataloga os objetos de
adorno como ‘Objetos para dependurar’ atravessados por um buraco, para
enfiamento, ou providos de ranhuras, para assegurar um laço. São nomeados
como ‘objetos de adereço’ ou ‘pingentes’ e pode-se considerar estes objetos
os ancestrais das jóias. (grifos da autora).
O que tem se difundido ao longo da história deste país é a capacidade técnica originária
do homem branco, como um legado dos europeus. Quanto aos índios e aos negros, geralmente
eram considerados apenas como força bruta, destituída de qualquer capacidade intelectual.
Retrocedendo no tempo, quando se iniciou a relação de Portugal com a África no século XV, nota-
se que os diversos povos africanos possuíam o mesmo desenvolvimento técnico dos europeus e,
176 no que diz respeito à joalheria, a África conheceu o ouro através dos árabes no século VII, bem
antes do seu contato com os portugueses, como explica Meyer (2001, p. 177):
Na Figura 3.50, há uma tela (século XVI) retratando uma “oficina de ourives com
Figura 3.51, encontra-se a imagem de uma oficina de um ourives do povo Peul, elaborando
brincos gigantes em forma de carambola (ver Figura 3.2). As mulheres Peul adoram jóias e
chegam a colocar nove brincos e anéis em uma única orelha. Foram essas culturas, com tão
prevaleceu o modelo de ourivesaria européia, não em sua forma “pura”, mas um modelo de
terras o metal precioso, o ouro. Indicando uma prévia vocação para esta atividade, mesmo
que nascida de uma vontade dos colonizadores e não de uma descoberta espontânea da sua
Itacolomi, nos arredores do que viria ser a cidade Figura 3.51 – Ourives do povo
Peul - África. S/D. Imagem di-
gitalizada do livro Círculo de
de Ouro Preto e assim teve início o ciclo do ouro contas: jóias de crioulas baianas
(GODOY, 2006, p. 9).
(Almeida, 1989, p. 46-50).
escravos da África que já dominavam as técnicas de mineração, como aponta Paiva (2002,
26 III- A frase dita é: “Tudo que corre, grita, trabalha, tudo que transporta e carrega é negro [...]” em relação à cidade
de Salvador, da autoria do viajante Robert AVÉ-LALLEMANT. Viagens pelas Províncias da Bahia, Pernambuco,
Alagoas e Sergipe. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 22-23.
da Colônia com mão-de-obra especializada. Ao contrario, então, do que se
tem pensado em geral, o tráfico atlântico de escravos obedeceu, ainda que
parcialmente, a parâmetros originados de demandas especificas, como, por
exemplo, as surgidas entre os mineradores coloniais.
não se pode também deixar de mencionar a história de Chico Rei, capturado juntamente com
sua tribo, foi trazido para o Brasil e vendido para um proprietário de áreas de mineração
em Vila Rica, através de trabalho extra, comprou sua alforria e a do seu filho, e, usando da
mesma estratégia, foi comprando a liberdade de todos os membros da sua tribo. Na condição
mestiços e índios neste ofício, como afirma Octávia Oliveira (1948, p. 30):
Também Oliva de Menezes (1941, p.36) afirma que seriam negros islamizados os
O que Oliva de Menezes afirma sobre os balangandãs desperta algumas dúvidas, primeiro
pela afirmativa da ausência de ornatos barrocos, o que afastaria a influência portuguesa. Porém,
como já foi visto anteriormente na análise das jóias escravas, elas, além de possuidoras de
popular portuguesa, da região do Douro, onde, na sua manufatura, são empregadas técnicas
decorativas das jóias árabes, como o cinzelado e o repuxado, a granulação e a filigrana. Quiçá,
essa hipótese tenha por base, a nítida incorporação de técnicas moçárabes nas pencas de
balangandãs (Lody, 2000, p.42) e da reputação dos negros Malês - organizadores da rebelião
180
ocorrida em Salvador em 1835 - na elaboração e uso de amuletos, tais como: bolsa de mandinga
A bolsa de mandinga (Figura 3.53), também chamada de patuá, era usada da mesma
forma que o escapulário católico sobre o peito e as costas. Era feita por entendidos, composta de
folhas de papéis com escritos em árabe e dobradas até um tamanho de três a cinco centímetros,
era comum o uso de outros ingredientes, tudo colocado em uma bolsinha de couro ou pano
totalmente costurada, eram carregadas junto ao corpo. A bolsa de mandinga ganhou também a
simpatia de pessoas de fora da comunidade malê, possivelmente por não obrigar um compromisso
O anel de malê ou kendé é formado por dois grandes anéis de ferro usados nos dedos
polegar e anular ou no médio da mão esquerda, que, quando batidos um contra o outro
produzem um som forte e seco. Na África eram usados pelos guardas de caravanas comerciais
e na Salvador colonial eram usados como marcas de identidade dos negros islamizados. Já
tessubá era o rosário malê, com cinqüenta
Outra forma de atestar a sua autoria seria através da marca do ourives que as tinha elaborado,
181
entretanto essas jóias, na sua maioria, não possuíam nem as marcas dos ourives, nem as dos
ensaiadores como a regulamentação da época obrigava e exigia seu registro na Câmara. Esta
ausência das marcas indica uma possível clandestinidade da atividade, facilitada por ser
encomenda de particular.
Considera-se que os objetos precisam ser vistos de forma documental, tal como um
documento escrito, assim sendo, ele revela seus produtores: a sociedade colonial brasileira que
possuía um enorme contingente de população africana, crioula ou parda que realizava todo o
trabalho necessário a sua existência. “Segundo Koster (1818), os negros crioulos eram, por
Ouro, do latim aurum, que significa brilhante, elemento químico de número atômico 79,
símbolo Au, é um metal considerado nobre, precioso e raro. Possui características inigualáveis,
a sua cor dourada e o seu brilho são como um sol brotando da terra, uma luz que fascina. Não
oxida, não escurece, não se modifica com o passar dos anos e, por assim ser, vários povos
africanos o consideraram como um material maléfico, mas a grande maioria de todos os povos
habitantes do planeta terra se renderam aos seus encantos. Uma das suas qualidades que mais
impressiona é a alta ductilidade, de todos os metais o ouro é o único que possibilita transformar
apenas um grama do seu material em dois mil metros de fio praticamente invisível ao olho nu.
Essa ductilidade do ouro serviu ao Brasil no trabalho de douramento da talha das igrejas,
O ouro, durante muito tempo, foi obtido dos depósitos secundários como vales, encostas
de montanhas ou colinas e leito dos rios. Apresenta-se usualmente puro, em massas denominadas
pepitas (Figura 3.54) quando atingem certas dimensões. Atualmente são mais raros os depósitos
transformá-lo em barras de ouro maciço, ouro puro. O ouro extraído das minas, era levado
para Casas de Fundição27 pelos mineradores, sendo pesado e quintado. Para o processo de
refratário), leva-se ao forno coberto com carvão vegetal, até que o cadinho incandescesse e
o ouro se tornasse líquido, sendo possível adicionar o mercúrio, que provoca a calcinação e
volatilização do ferro, cobre antimônio e impurezas de uma maneira geral, a partir das quais
se forma uma escória que é eliminada. Adicionava-se mercúrio até a sua completa purificação,
em estado ainda líquido derrama-se em uma forma de ferro besuntada, até esfriar e ficar com
outras técnicas para se produzir jóias, principalmente aquelas que foram incorporadas ao
longo do século XX, mas que fogem ao escopo do assunto tratado nesta tese.
27 Foi uma determinação do rei de Portugal a instalação das Casas de Fundição, subordinadas à Intendência. Nelas,
todo ouro extraído em pó ou em pepitas, seria fundido e "quintado"- ou seja, retirados os 20% correspondentes
a coroa portuguesa. As barras obtidas eram cunhadas, comprovante do pagamento do tributo, e devolvidas ao
portador acompanhadas de um certificado de origem, confirmando o cumprimento das formalidades legais.
3.4.1 Fundição
prata e cobre, para resultar no ouro amarelo mais característico do imaginário de qualquer
indivíduo. Essa liga conserva a cor dourada e é mais dura, o que é desejável para que as jóias
não se amassem com o uso. A quantidade de ouro das ligas é medida em quilates, ouro puro
tem 24 quilates e as ligas mais usadas na indústria joalheira hoje são: 14 quilates (Estados
povos africanos, é a cera perdida (modelos Figura 3.56 – Ouro em estado líquido. Imagem
digitalizada do livro A Ourivesaria (CODINA,
2002, p. 48).
perdidos) proveniente de Gana, como já foi
visto no primeiro capítulo. “É um método que propicia a fundição de peças de metal mediante
a fundição em cera perdida” (CODINA, 2002, p.50) (Figura 3.57). Elabora-se um modelo em
cera da peça final e une-se a ele uma espécie de cabo também em cera, nas Figuras 3.57 a 3.62,
Figura 3.60 – Selam-se as duas partes, cadinho e corpo do molde. Antes de colocar ao fogo para
fundição, deve-se assegurar estar livre de toda umidade, depois, leva-se a um forno rústico de
tijolos refratários, tendo como combustível uma mistura de carvão vegetal e mineral. Põe-se,
então, o conjunto na vertical. Tal processo que deve perdurar até o conjunto ganhar uma cor
vermelha-alaranjada. Imagem digitalizada do livro A Ourivesaria (CODINA, 2002, p. 51).
Na Figura 3.63, estão indicados, na penca de
3.4.2 Gravação
fermenta que está sendo usada para fazê-lo. No processo Figura 3.62 – Branqueia-se a peça
e elimina o cabo. Na imagem da
de formar as linhas, ranhuras, caracteres, padrões, direita, o resultado da fundição
por cera perdida. Imagem digita-
retratos, etc., ocorre a retirada de material da superfície lizada do livro A Ourivesaria (CO-
DINA, 2002, p. 51).
que está sendo trabalhada. Figura 3.58 – Aplica ainda mais
uma camada da mesma mistura,
subtraindo o carvão, deixa secar e
A gravação em ouro existe desde o terceiro milênio elimina a cera do seu interior por
aquecimento. Imagem digitaliza-
a.C. e era executada com ferramentas primitivas de pedra, da do livro A Ourivesaria (CODI-
NA, 2002, p. 50).
bronze, cobre, e depois com o ferro. Como uma técnica
decorativa, a gravação sobre o metal foi precedida por ornamentos gráficos realizados em uma
variedade de materiais não-metálicos, tais como: concha, osso, marfim, cabaça, casca de coco, dentes
de animais, bambu, madeira e pedra. “Quando as superfícies dos materiais eram suficientemente
componentes da penca de
balangandã que podem ter
sido produzidos pela técnica
de fundição em cera perdida
planas poderia se utilizar ou não, expressões gráficas, feitas com incisões e entalhes, que muitas
28 A citação está escrita no mesmo idioma do texto original, português de Portugal.
Figura 3.65 - Buris
diversos. Imagem
digitalizada do livro
Acabados decorativos
en Joyería (MCGRA-
TH, 2007, p. 102).
188
Nas gravações feitas à mão são empregadas ferramentas de aço pontiagudas e afiadas,
chamadas buril (Figura 3.65), que possuem duas partes, um cabo de madeira e uma lamina
de aço tratado e temperado de extraordinária dureza. Para que se possa executar o trabalho de
Para se executar uma gravação devem-se cumprir várias etapas. O buril é a ferramenta
básica de execução dessa técnica, devendo estar afiado antes de se dar inicio ao processo (Figura
3.66). A placa de metal que irá ser gravada deverá ser fixada em um pedaço de madeira com breu
ou lacre de cera, ou solta em cima de uma superfície antiderrapante, como um coxim revestido
de couro. Para desenhos mais complexos, é necessário transferi-los para a chapa de metal, essa
etapa pode se eliminada quando o desejo é fazer riscos decorativos aleatórios, contudo, em
ambos os casos, antes, a superfície deve ser lixada para garantir um bom acabamento. O ângulo
que o buril deve fazer com a chapa que será gravada é de dez ou quinze graus.
Figura 3.67: gravação de linhas retas. Imagem digitaliza-
da do livro Acabados decorativos en Joyería (MCGRATH,
2007, p. 104).
Nas Figuras 3.67 a 3.68, há exemplos de gravações em linha reta, linha curva e gravação
pois os dois processos são alternados em uma mesma peça. Na seqüência convencional do
trabalho, as linhas são cinzeladas na parte da frente do metal e o repuxado é aplicado na parte
Assíria, Mesopotâmia, Grécia, Roma, Nepal, do rococó europeu incluindo Portugal, da África
e do Brasil produziram peças com estas técnicas. São o que se chama de processo associado,
permanece continua.
são utilizadas como objeto de decoração das residências baianas, penduradas nas paredes ou
linhas de um desenho ao longo da face do metal. O metal não é afastado, como se uma
ferramenta de gravura fosse usada e como já foi dito, não há perda de material. Ele é movido
empurrada ao longo da linha. O cinzelado é usado para esboçar e definir áreas que serão
Repuxado é a arte de trabalhar com cinzéis por trás do metal, formando relevos
e linhas que dão ao trabalho uma aparência tridimensional quando visto pela frente,
192
Figura 3.76: emprega-se o lado plano do martelo com o cinzel para acentuar mais as marcas de
transferência do desenho pelo lado frontal da peça. Imagem digitalizada do livro Acabados deco-
rativos en Joyería (MCGRATH, 2007, p. 119).
3.4.4 Granulação
A granulação é um trabalho em metal que recebe este nome por juntar pequenas bolas ou
minúsculos grãos em uma base. Normalmente essa base é uma lâmina de metal. Estes grãos se fundem
O processo de granulações do
soldados aparentemente isolados através do uso de uma técnica de solda invisível ‘a olho nu’.
Nos exemplos Etruscos, grânulos de ouro minúsculos (às vezes só 0.25 mm para 0.14 mm de
diâmetro) eram borrifados na superfície, mais tarde, passam a ser utilizados grãos maiores.
A mais recente técnica foi desenvolvida em Roma por F. Magi e V. Federici, e envolve
a fabricação dos grânulos de ouro vertendo o metal fundido de certa altura sobre uma laje de
pedra. Depois os grânulos formados são soldados ao objeto de metal através de uma resina que,
É um tipo de decoração empregada em peças de metal com o uso de fios bem finos, lisos
e torcidos. O fio empregado é normalmente de ouro ou prata (às vezes de bronze no recente
trabalho romano), e é usado para formar desenhos ao mesmo tempo delicados e com formas
metal, sendo fixado à mesma por soldagem - este método foi muito utilizado pelos Bizantinos
um desenho vazado; 3) uma combinação dos dois anteriores, unidades completas do arame não
aplicado na base de metal com a filigrana aplicada na base de metal ou outras bases; 4) o quarto
e último tipo é a filigrana associada a outros materiais, tais como: esmalte, ornato de esmalte
O mais recente método é o encontrado nas jóias européias desde o século XV, e foi
revitalizado na Inglaterra da era vitoriana, sendo usado especialmente em colares e anéis que
tinham em sua composição pedras preciosas cercadas por tal filigrana. É extremamente ampla a
distribuição do processo de filigrana na produção joalheira, o que indica que esta técnica continua
popular. A filigrana é uma tradição presente nas jóias portuguesas da região do Minho, como
Segue o passo a passo de um trabalho em filigrana sem base de metal. As imagens das
196
vazado.
Figura 3.89: preenchendo os espaços entre os
arames com novos elementos em fio retorcido. As diversas técnicas apresentadas para
Figura 3.90: trabalho finalizado. mero jogo, mas como meio de transmissão de
desnuda a alma dos materiais e a sua condição de mutáveis e mutantes, aumentando a capacidade 197
de explorar, seja qual for, os valores que permanecem nos produtos advindos da sua matéria-prima
Figura 3.91: Conta em ouro ornada com cír- Contrariando a tentativa histórica de
culos em filigrana. Foto da peça original do
invisibilizar o negro como projetista e executor
acervo do Museu do Traje e do Têxtil. Júlio
Acevedo/2003. da cultura material brasileira, afirma-se que o
primeiro exemplo de design de jóias no Brasil
é inegável e, para não acreditar que admiti- Figura 3.92: Na filigrana da peça ao lado o fio
retorcido é usado sem uma base de metal, for-
lo seja uma adesão à democracia racial, mando um desenho vazado. Foto da peça ori-
ginal do acervo do Museu do Traje e do Têxtil.
compreende-se a mestiçagem, hibridismo, Júlio Acevedo/2003.
multiculturalismo, sincretismo, tenha o nome que tenha, como mistura sim, mas sem significar
igualdade. Ela é resultado de um processo brutal de escravidão (Gruzinski, 2004, p. 52) e como
198 Em tudo isso pode-se ver uma dimensão transgressiva que aproxima as
mestiçagens daquilo que o sociólogo francês Michel Maffesoli chama de
“potência subterrânea” da vida social. Aqui pensamos sobretudo em todas
essas pequenas transgressões cotidianas que nascem das misturas, das
substituições, das recriações que se pratica a todo instante na vida brasileira,
animando o corpo social, estruturando-o e regenerando-o. Nesse sentido,
as mestiçagens, para além das formas instituídas e legitimadas do social,
asseguram a circulação dos sentimentos, das paixões, do sexo, asseguram
diversas trocas anônimas, engendram diversos acordos secretos, sem que se
possa classificá-los, prevê-los, controlá-los.
É essa argumentação que faz o design mestiço ser o design de resistência conceituado
e analisado no próximo capítulo. Para apresentar mais exemplares da joalheria escrava baiana
dos séculos XVIII e XIX, há as fichas de jóias por tipologia anexas a esta tese.
CAPÍTULO IV
________________________________________________________________
IMPERMEABILIDADES
203
4.1 DESIGN DE RESISTÊNCIA: CONSTRUINDO UM CONCEITO
O conceito design de resistência foi construído no âmbito desta tese com o objetivo
de atender as características do objeto de estudo, a joalheria escrava baiana, que, como já foi
visto no capítulo anterior, é mestiça. Entretanto, é, também, a objetificação de uma das várias
formas de resistência escrava, as jóias usadas pelas mulheres negras nos séculos XVIII e XIX
“eram seus sinais diacríticos, marcas de sua identidade. Vítimas de guerras e do tráfico em
suas Áfricas, essas mulheres conseguiram fazer a travessia do Atlântico acompanhadas de uma
bagagem cultural que serviria para reconstituir e dar sentido as suas vidas sob (e contra) a
Tanto jóias quanto vestimentas são sinais exteriores da posição social dos indivíduos
nos séculos XVIII e XIX, e hoje igualmente. São elementos simbólicos importantes que
1 IV- Reis em seu texto está se referindo aos escravos malês (Salvador-Bahia, século XIX). Onde se lê: essas
mulheres, leia-se: os malês, no texto de João Reis.
evidenciam as diferenças existentes entre os grupos sociais, tornando visível a hierarquia social
(Bittencourt, 2005, p. 25). Foi dito, reiteradas vezes nesta pesquisa que as jóias são símbolo de
riqueza, ostentação e poder e possuí-las estava reservado aos afortunados, ou seja, às elites de
tecnológico, além de ser um objeto de adoração, contemplação e desejo (Santos, 2004, p.1)
e destas maneiras, por isso, são utilizadas tanto pelas elites e quanto pelas classes populares,
concorda-se com Santos (2003, p. 24) citando Focault, na compreensão de como se operam
204
as relações de poder:
que escravizados, minorias, excluídos, desclassificados, etc. encontram as brechas para reagir
à força opressora. E, para isso, é também em Santos (idem, p. 28 e 29) que se tem a diferença
entre estratégia e tática. A autora faz uso do pensamento de Michel Certeau para elucidar que
a estratégia pressupõe um lócus de poder, diferenciado-a das táticas: “são práticas individuais
e defensivas, cremos que podem ser pensadas como práticas de resistência, ainda que não
que se explica a possibilidade de existir as pequenas resistências escravas, àquelas que ocorrem
cotidianamente e onde se incluem o uso de jóias específicas pelas mulheres negras nos séculos
XVIII e XIX. Como será visto, essas mulheres já empregavam a marginalidade, para o período
talvez seja mais adequado dizer subalternidade, como espaço de resistência, de uma forma
semelhante à explicada pela escritora norte-americana bell hooks IV-2, uma mulher negra deste
Ainda em relação às jóias serem suporte de ideologias irá se usar como exemplo uma
peça muito comum na história da joalheria ocidental e muito usada desde o final do século
XVIII e, praticamente, por todo o século XIX, na Europa e no Brasil. Trata-se do medalhão, uma
peça que tem forma comumente redonda ou ovalada e que geralmente emoldura uma miniatura 205
usados por ambos os sexos de diversas maneiras: os homens usavam montados em uma placa
de metal, como broche ou como pendente de corrente e decorando caixas de guardar rapé. As
mulheres, da mesma forma que os homens, os usavam como pendentes presos a correntes, ou
medalhas renascentistas, que, por sua vez, têm origem nas medalhas do período clássico grego,
que parece ser a época mais remota da sua existência. Tinham uma função comemorativa e,
2 IV- A autora deseja que seu nome seja escrito com iniciais minúsculas.
associadas às celebrações dos eventos esportivos, eram dadas como prêmios. Com os romanos, as
medalhas passaram a ser produzidas para serem distribuídas pelo soberano àqueles que ele desejava
homenagear. Este costume é retomado no início do século XVI, quando, no seu ressurgimento, essas
com inúmeras finalidades de causas. Como exemplo, será visto o medalhão escravo (Figura
4.1) já mencionado no capítulo I, produzido em 1787 por Josiah Wedgwood, como uma
contribuição sua à campanha para abolição do tráfico escravo. O medalhão foi adotado pelo
comitê abolicionista inglês e funcionava como a peça central de sua propaganda. Ao analisá-lo
em um primeiro momento, percebe-se que ele representa o sofrimento humano e foi desenhado
profundamente, vê-se com mais clareza que os abolicionistas ingleses, apesar de contrários
206
à escravidão, eram adeptos da sociedade hierarquizada. Isto está indicado pela condição de
súplica do escravo na imagem, demonstrando que será o senhor branco o seu libertador,
período de Napoleão Bonaparte. Conforme dito no capítulo anterior, ele restabelece na história
neoclássica, que foi o mais eficiente artista no que se classifica como arte a serviço do Estado. Ele,
“imitando o exemplo dos gregos e romanos mandou cunhar medalhas (Figura 4.2) para comemorar
207
Figura 4.2 – Medalhas com o retrato de Napoleão Bonaparte. Imagens disponíveis em: http://
blackwatch.napoleonicmedals.org/Empire/Empire-index%20page.htm. Acesso em 10/06/2009.
de como o feitiço vira-se contra o feiticeiro. Napoleão Bonaparte e outros assemelhados recebem
o troco de sua estética personalista com a mesma moeda, ou melhor, com o mesmo medalhão,
em toda a América latina. No Brasil, o episódio tanto foi utilizado para convencimento da
necessidade de reformular a escravidão, visando sua extinção paulatina, quanto foi razão para
se ao ponto de o Ouvidor do Crime da Corte do Rio de Janeiro mandar “arrancar dos peitos de
208 alguns cabras e crioulos forros, o retrato de Dessalines, imperador dos negros da ilha de São
Domingos” (MOREL, 2004, p. 61). Na Figura 4.3, há uma tentativa de concepção do medalhão
p. 31) quando ela faz uso da análise de Thesome Gabriel sobre a estética nômade no cinema
negro independente, uma situação contemporânea que tem suas origens na diáspora africana,
nos povos desterritorializados. Entende-se a citação de Gabriel (apud Santos, idem) aplicada
à construção de uma estética própria pelas mulheres negras no período do Brasil colonial,
população negra, o que lhes dava ancoragem e inventividade durante o longo período de
Ao longo deste capítulo ver-se-á em inúmeras situações como a jóia escrava se expressa
de uso exclusivo das mulheres negras ou mestiças, se impõe o estudo do seu contexto
raça, para justificar a naturalização das diferenças sociais. Explicando mais claramente,
foi o artefato e a quem ele se destinava que exigiu a incorporação das categorias de análise
gênero e raça e isso sucede devido às características do mundo material identificadas por
Porque o mundo material resiste, porque ele pode preservar suas marcas, ele
pode servir como um monumento para seus esforços e ideais; e ainda por
esta mesma razão, artefatos sobrevivem de maneira involuntária em relação
aos seus produtores e proprietários, para tornarem-se evidência em que
outras interpretações do passado podem ser reconstruídas. Esta propriedade
das coisas – compartilhada em algum grau com os textos escritos – tem dado
a alguns artefatos um lugar especial como símbolos do passado. Culturas
diferem quanto ao grau em que artefatos são usados deste modo.
escrava baiana não davam conta de inúmeras indagações, especialmente àquelas que desejam
contemplar a voz e a visão da usuária destas jóias, pois, as mulheres ainda são os silêncios da
história, “[...] este relato que, por muito tempo, “esqueceu” as mulheres, como se, por serem
raça não está só vinculado à sua destinação à mulher negra, mas se deve principalmente ao fato
de tanto a dominação racista quanto a de gênero possuírem muito mais do que algo em comum,
O conceito de raça adotado nas análises deste trabalho é o mesmo apontado por
Osmundo Pinho (2002, p. 416) na sua resenha sobre o livro do cientista político afro-
3 IV- HANCHARD, Michael. Orfeu e Poder. Movimento Negro no Rio e São Paulo. Rio de Janeiro: EdUERJ/
UCAM-Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
O termo “raça” refere-se, neste livro, ao uso de diferenças fenótipicas
como símbolos de distinção social. Significados raciais são, nesse sentido,
culturalmente e não biologicamente construídos, distinguindo-se, a partir da
inserção nestas categorias, lugares sociais dominantes e dominados. “Raça”
é, assim, síntese de diferenças fenotípicas, mas também de status, de classe,
de diferenças, em suma, políticas. De modo que podemos dizer que relações
de raça são relações de poder (grifos do autor).
Tal como explicado para o conceito de raça, as diferenças de gênero são aqui entendidas
como uma dominação masculina em relação à mulher, uma construção de mulher na sociedade
Deve-se elucidar que os conceitos de gênero e raça não estavam cunhados no período
apontado como o de origem e uso das jóias estudadas (séculos XVIII e XIX), nem a questão
de gênero enquanto uma categoria útil à história e esclarecedora sobre a “[...] história das
mulheres, mas também a dos homens, das relações entre homens e mulheres, dos homens
entre si e igualmente das mulheres entre si, além de propiciar um campo fértil de análise das
211
desigualdades e das hierarquias sociais” (TORRÃO Fº, 2005, p.129).
determinismo biológico nas relações entre sexos, passando a ser encarada como de caráter
essencialmente social. Já o termo raça passa a existir a partir da segunda metade dos oitocentos,
possuindo certa contemporaneidade com o objeto de estudo desta tese. Por conseguinte, as
categorias de análise gênero e raça são resultados de uma historiografia interessada na história
Pelo que foi colocado, observa-se que o fato de serem conceitos criados a posteriori do
fenômeno pesquisado, não quer dizer que não existissem no Brasil colônia as desigualdades
torna-se fundamental a incorporação dessa abordagem à análise das jóias, já que são materiais
gênero e “raça”, que são tidas como relações de poder, então, estabelece-se nessa situação,
de modo quase inevitável, o seu vínculo com o conceito foucaultiano de bio-poder. Em razão
de se considerar os ornamentos colocados sobre o corpo (aparência) como uma das formas e
Vale ressaltar a necessidade de se atentar para o fato de que o bio-poder é, tal como gênero
e raça, um construto contemporâneo para, também, entender o passado. Apesar da indicação dos
séculos XVII e XVIII como o período de aparecimento das técnicas essencialmente centradas no
corpo (Foucault, 1999, p.288), o autor supracitado se referia à Europa. No período e no local desta
pesquisa (Século XIX/Brasil) identifica-se, ainda, uma situação de transição entre o poder soberano
IV-4
e o bio-poder, porque o capitalismo não se disseminou no mundo de maneira uniforme. Nanci
Sanches (2007, p. 80) caracteriza o século XIX, Bahia-Brasil, da seguinte forma: 213
ornamentos usados no corpo, inclusive jóias, como matéria da aparência enquanto uma
(SANT’ANNA, 2007, p. 18). Isso em razão do que os trajes conotam, como pondera Jocélio
Afinal, é de se notar, como faz Braunstein (1990:566), que o traje vai além
do tecido e ornamento, estendendo-se ao comportamento, determinando- o e
evidenciando-o, marcando as etapas da vida, contribuindo para a construção
da personalidade e distanciamento dos sexos, das classes, dos grupos étnicos,
de status, de idade, etc.
4 IV- Segundo Foucault (1988, p.131): “A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é
agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida”.
Na Salvador do século XIX havia elementos vestimentares constitutivos da ordem social
dominante, isto é, a oficial, que era composta de padrões rígidos para ambos os sexos. “Esta
Pelo dito, a questão a ser feita não é mais: “o que é que a baiana tem?”, nem tampouco:
“por que a baiana tem?” O foco está no que se considera a questão das questões: o que as jóias
RAÇA E AS JÓIAS
214
Não existe objeto sem usuário, portanto, é fundamental a investigação sobre as mulheres
utentes das supracitadas jóias, tais como: suas origens, as heranças trazidas da África, o processo
de reconstrução de suas identidades, etc.. Para não se incorrer no velho erro de considerar este
continente como possuidor de uma única cultura, único povo, é claro, que existiram e ainda
existem: Áfricas. Segundo vários autores, a maioria dos escravos baianos, no século XIX, eram
Verger (1992, p. 98) afirma o mesmo, só que denomina os nagôs como iorubas, ou como nagô-
iorubas. Outros autores também utilizam uma ou outra denominação, ou então as duas associadas,
O segundo sistema de tráfico negreiro fora organizando por e em proveito dos
negociantes fixados na Bahia e em Recife que tinham estabelecido relações
diretas (tabaco por escravos) entre os seus portos e os da Costa dos Escravos,
os quais lhes forneciam cativos iorubas em grande número (idem).
Hoje, a averiguação das origens dos homens e mulheres, que foram capturados na
África e trazidos à força para o Brasil, possui argumentos mais que históricos, os suportes
são de estudos genéticos. Os geneticistas Sérgio Danilo Pena e Maria Cátira Bortolin,
confirmaram as informações históricas que indicam terem sido três as regiões da África –
Brasil. Segundo Ricardo Zorzetto (2007, p. 37), o que surpreende é o aumento significativo
Os números anteriores de participação das regiões eram: 10% da Oeste, 17% da Sudeste
E mais, pelo menos em termos biológicos e no caso brasileiro, não faz o menor sentido
5 IV- Do século XVI ao século XIX, o tráfico transatlântico trouxe em cativeiro para o Brasil quatro a cinco milhões
de falantes africanos originários de duas regiões da África subsaariana: a região banto, situada ao longo da extensão
sul da linha do equador, e a região oeste africana ou “sudanesa”, que abrange territórios que vão do Senegal à
Nigéria (CASTRO, Yeda Pessoa de. A influência das línguas africanas no português brasileiro. Disponível em:
http://www.smec.salvador.ba.gov.br/documentos/linguas-africanas.pdf. Acesso em 10/06/2009.
falar em “raças”, tendo-se a expectativa destas conclusões auxiliarem na eliminação das
ao que foi levantado por Zorzetto (idem, p.41) junto aos geneticistas:
Com base nesses resultados obtidos em dez anos de investigação das características
genéticas do brasileiro, Pena e Maria Cátira não têm dúvida em afirmar que, ao
menos no caso brasileiro, não faz o menor sentido falar em raças, uma vez que
a cor da pele, determinada por apenas 6 dos quase 30 mil genes humanos, não
permite saber quem foram os ancestrais de uma pessoa.
Na Figura 4.4 há mapas que apresentam a atual divisão territorial do continente africano,
a distribuição espacial dos povos de línguas banto e iorubá e as principais rotas do tráfico de
Mulheres escravas, identidades africanas, da historiadora Silvia Hunold Lara (2000),IV-6 que
analisa as ilustrações elaboradas por Carlos Julião ao final do século XVIII IV-7 e as gravuras
216
elaboradas por Johann Moritz Rugendas na segunda década do século XIX IV-8, disponíveis na
Debret (apud VERGER, 1992, p. 103 e 104) também descreve a maneira particular que
Principais rotas do tráfico de escravos.Ima- Mapa de localização na África dos falantes banto e
gem disponível em: http://navionegreiro. iorubá. Imagem digitalizada do Jornal A Tarde. Salva- 217
arteblog.com.br/image/1195855879.jpg/. dor: 18/09/2005
Acesso em 10/06/2009.
Figura 4.4 – Mapas com várias informações sobre a África e o tráfico de escravos.
Com isso, se pode afirmar que as usuárias destas jóias eram, em sua maioria, de origem
nagô-ioruba. Essas mulheres traziam consigo heranças da sociedade iorubana em que viviam na
África, tais como: integravam uma organização familiar polígama, que lhe proporcionava maior
de filhos para perpetuar a linhagem familiar do marido, não sendo totalmente integradas ao
Mulher negra Negra e Negro da Bahia
Carlos Julião. Séc. XVIII Rugendas. Séc XIX
218
Figura 4.5 – Mulheres negras em aquarelas de Carlos Julião e gravuras de Rugendas. Imagens
capturadas do artigo Mulheres escravas, identidades africanas (LARA, 2000, web).
núcleo familiar do esposo, situação que lhes conferia uma relativa independência; ao casarem
não tinham obrigação de praticar o culto da família dos esposos, continuavam vinculadas à
religião de suas famílias; não podiam manter relações sexuais com o marido durante a gravidez
jóias, tecidos e enfeites, e este se via obrigado a presentear todas para evitar ciúmes; também
circulavam livremente e faziam os mercados das cidades vizinhas e outras mais afastadas;
sendo boas comerciantes se tornam mais ricas que seus maridos e às vezes amealham fortunas
Apesar de no século de XIX a cidade do Salvador contar com uma quantidade semelhante de
situação terminava por determinar uma responsabilidade exclusiva sobre os filhos, preservando,
que, devido a inúmeras razões, gerou o predomínio das mulheres negras no setor de serviços
urbanos IV-9 e no pequeno comércio ambulante, colocadas no sistema de ganho por seus senhores
na condição de escravas e por conta própria se livres ou libertas. Este era “um traço comum às
sul dos Estados Unidos, do Haiti, da Jamaica, das Antilhas em geral, assim como das cidades
9 IV- Segundo Dias (1985, p. 91), esse predomínio decorria provavelmente do baixo valor relativo das escravas
mulheres, quando comparadas aos homens, e da maior demanda de escravos homens para setores economicamente
mais estratégicos, propriamente produtivos, de monocultura rural exportadora.
A historiadora Cecília Soares (2007, p. 38), em seu livro Mulher negra na Bahia no
século XIX, identifica em uma tabela, reproduzida na Figura 4.6, as ocupações das escravas
no século XIX. Duas destas atividades possuem uma relação mais direta com as jóias, a de
saíssem à noite ou nos domingos e feriados Figura 4.6 – Ocupações das escravas no
220 século XIX. Imagem digitalizada do livro
para trabalhar neste sistema, como mascates ou Mulher negra na Bahia no século XIX
(SOARES, 2007, p. 38).
prostitutas (Nishida, 1993, p. 235 e 236).
essenciais à vida urbana. Também participavam desse sistema mulheres negras livres e
libertas que, pagando ao senhor ou a senhora o acertado, podiam guardar para si as sobras,
as quais eram economizadas até juntar uma determinada quantia para a compra de sua
alforria ou ainda gastar conforme seus desejos e necessidades. A moradia podia continuar
Herança iorubana que assim acontece na Cidade da Bahia IV-10, apresentada por Gerlaine
Martini (2007, p. 14) na sua tese de doutorado em antropologia sobre Baianas do Acarajé,
10 IV- Conforme Reis (2003, p.19), Salvador no século XIX era mais conhecida como Cidade da Bahia.
Mais tarde, essa característica iorubana vai se destacar dentre os costumes
soteropolitanos, quando este povo for transportado, em grande número para
a capital a partir do século XVIII. No entanto os dados demonstram uma
atividade feminina muito mais anterior, demonstrando que, às antigas formas
de venda pela rua, decerto empreendidas por mulheres de regiões africanas
mais ao sul do continente, foram agregadas maneiras mais recentes e iorubanas
do pregão. Essas formas mais antigas também possuíam um forte aspecto luso-
africano centro-ocidental, pois foram criadas a partir das adaptações culturais
realizadas entre Portugal e as regiões de Congo e Angola desde o século XV.
O próprio tabuleiro era um instrumento de trabalho usado por vendedoras nas
ruas de Portugal, naquele período, como pode ser observado em detalhes de
monumentos históricos em azulejo, dos quais a atividade representada está
atestada por documentos portugueses do século XV.
Existiam características desejáveis para exercer o trabalho de ganhadeira, uma delas era
ser ladina, o que significava ter vivacidade de espírito, astúcia, além de exigir um bom domínio
que pode ser confirmado, também, nas investigações sobre alforria de Mikeo Nishida (1993, p.
221
250): “Os senhores negociavam com os cativos o preço da alforria, cientes de que as mulheres
africanas eram capazes de pagar mais do que seu preço como mercadoria, dada a excelência de
A relação da joalheria escrava baiana com o mundo das libertas africanas, ex-escravas
ser comprovada nas investigações do historiador João Reis em sua mais recente publicação
XIX (2008), cujos pertences foram listados em um inquérito policial “por ter sido denunciado
por suas adivinhações e “feitiçarias” objetos roubados por escravos a seus senhores” (REIS,
2008, p. 15; grifos do autor). As jóias arroladas no Auto de busca e achada, que o pesquisador
considera provável pertencer a Delfina, esposa de Domingos e a outras pretas ganhadeiras que
Um traço comum às mulheres negras livres, libertas e escravas ganhadeiras era a posse
dessas jóias. Elas saíam para labuta faustosamente embrincadas e os motivos dessa peculiaridade
Aqueles adornos, cujo uso pelas negras chegou a ser proibido no período
colonial, indicavam prosperidade, clientela numerosa e, portanto, sinal de
que a ganhadeira vendia produtos de boa qualidade. Mas, além de adornos,
jóias podiam servir como amuletos - o balangandã, e sobretudo as duas
pequenas figas encontradas IV-11, o confirmam – e método de poupança quiçá
considerado mais seguro do que moeda corrente.
Reunir em jóias o valor necessário para a própria alforria era, quiçá, um modelo de
222
juntas de alforria feminino. Essas juntas, certamente se inspiravam na esusu, uma instituição de
rotativo de crédito usado pelos nagôs para acumular fundos e fazer frente às despesas. No Brasil,
os nagôs chamavam o esusu de caixinha IV-12 e utilizavam o mesmo sistema rotativo, com cada
membro do grupo depositando um valor igual, que depois era usado na compra das alforrias. “À
11 IV- Reis (idem) refere-se às jóias encontradas na casa de Domingos Sodré.
12 IV- “Geralmente, as caixinhas reúnem um determinado número de pessoas que têm o compromisso de uma vez
por mês doar um valor pré-estabelecido. Também uma vez por mês, todo o dinheiro arrecadado é entregue a um
dos membros da caixinha, que assim consegue juntar dinheiro mais depressa para pagar uma dívida ou adquirir
algum bem de consumo”. Matéria jornalística sem identificação do autor. Disponível em: http://www.correioda
bahia.com.br/2003/06/17/noticia.asp?link=not000077420.xml. Acesso em 14/06/2004.
13 IV- “Para sobreviver no ganho, os negros cativos ou livres se organizavam nos cantos de trabalho, uma espécie de
empreiteira. Embora alguns atuassem sozinhos, mediante autorização do senhor e licença prévia da Câmara Municipal,
a maioria preferia agir em grupo, pois assim competiam melhor no mercado. Entre as profissões exercidas, a de
carregador era a mais comum e necessária”. Matéria jornalística sem identificação do autor. Disponível em: http://
www.correiodabahia.com.br/2003/06/17/noticia.asp?link=not000077420.xml. Acesso em 14/06/2004.
Um exemplo significativo e demonstrativo de posse de quantidades expressivas de jóias
por vendeiras é a história de uma preta forra de nome Delindra Maria de Pinho, que demandou
judicialmente a posse de uns “corazes” IV-14 engranzados em ouro, supostamente furtados por um
homem livre e sua mulher. O local do episódio é o Estado de Pernambuco da primeira metade do
século XIX. O roubo ocorreu em uma parada para descanso do condutor contratado por Delindra
para levar seu baú de pertences de Recife para Olinda, onde participaria de um batizado. Foram
levados o cavalo e o baú, durante o cochilo do condutor e depois foram encontrados o cavalo
e o baú, este, porém, vazio no sítio de Belchior José dos Reis, que será acusado judicialmente
pela forra. O historiador Maciel Henrique Silva, que investiga o fato (2005, p. 223), relaciona
cunho moral das ex-escravas em provar que, apesar da sua condição anterior, eram honestas
especificamente, uns corais encastoados em ouro, que encabeçavam a lista e tinham o valor de
16$800 réis. Tendo em vista que foram roubadas outras jóias de maior valor monetário como: o
par de brincos de diamantes que valia 28$000 réis, e o relicário e seu cordão que valiam juntos
“corazes” engrazados em ouro que talvez se Figura 4.7 – Corais engrazados em ouro for-
mando colar – Século XIX. Júlio Acevedo –
assemelhem aos da protagonista. 2005. Foto da peça do acervo de jóias escravas
do Museu Carlos Costa Pinto.
Já na Figura 4.8 há mulheres negras
exercendo suas atividades de ganho, que pressupunham a liberdade de circulação e uma permanência
demorada nas ruas, possibilitando a construção de um universo próprio, que “dependeu das
Quanto à atividade de fazer conta de ouro na prensa, se já era diminuta no século XIX,
hoje é inexistente. Como já mencionado no capítulo III, esta é uma tradição portuguesa e lá está
de fazer semi-esferas que serão soldadas para tornarem-se contas, bem como as outras etapas do
1- Vendedora no mercado. Marc
Ferrez - 1875. Imagem digitali-
zada do livro O negro na foto-
grafia brasileira do século XIX
(ERMAKOFF, 2004, p. 142).
processo até a sua constituição final de colar, intensamente usado pelas mulheres negras. Aqui no
Brasil mantêm-se a tradição do uso das contas em materiais mais baratos do que o ouro, tais como:
prata, metais não-preciosos, pedras, inclusive o coral, vidro e mais comumente em plástico.
As contas possuem profunda importância para as mulheres negras, até mesmo nas
situações em que elas pretendem, o mais fortemente possível, se aproximar dos padrões brancos
de vestir. Na Figura 4.10, a retratada está vestida à moda das senhoras brancas e livra-se de quase
tudo que faça referência a sua condição anterior, exceto os colares de contas de ouro, talvez pelo
forte vínculo identitário com as suas origens africanas. Existe uma dissertação de mestrado de
título Modos de negra e modos de branca: o retrato “baiana” e a imagem da negra na arte
do século XIX, da autoria de Renata Bitencourt (2005, p. 9), cujo foco da investigação é esse
226
Até mesmo a Igreja Católica era complacente com o uso das contas, como está colocado
nos dizeres de Padre Antonio Vieira, século XVII, citado por Marco Aurélio Luz (2003, p. 346 e
347) quando relata sobre as irmandades negras aqui no Brasil e diz que Antonio Vieira foi um dos
incentivadores da aproximação dos negros com a Igreja, autorizando-os a usarem colares de contas
em homenagem ao rosário,
227
Figura 4.10: Baiana. Século XIX. Autor: Anônimo. Obra da Coleção do Museu do Ipiranga.
Imagem digitalizada do livro Círculo das Contas. (GODOY, 2005, p. 17).
Assim quer que tragais a sua marca a Senhora do Rosário: Pone me ut
signaculum super cor tuum, ut signaculum super brachium tuum; as voltas
de contas que trazeis nos pulsos e no pescoço (falo com as pretas), sejam
todas as contas do Rosário. As do pescoço, caídas sobre os peitos, serão a
marca do peito. Pone me ut signaculum super cor tuum. E a dos pulsos como
braceletes, serão marcas do braço: ut signaculum brachium tuum. E uma
e outra marca, assim no coração, como nas obras. Serão um testemunho e
desengano para todos de que já estão livres vossas almas do cativeiro e do
demônio e do pecado, para nunca mais o servir.
Deve-se também salientar o importante papel da liderança religiosa feminina nas questões
que se referem à identidade negra, conforme explica Mãe Stella (apud Joaquim, 2001, p. 140),
228
Mãe Meninha do Gantuá. Sé- Creoula - Bahia. Século Luzia, Iyakekere da Casa
culo XX. Foto do acervo do XIX. Foto: Rodolpho Linde- Branca. Salvador-Bahia.
Jornal Correio da Bahia (S/D) mann. Cartão Postal Imagem Imagem digitalizada do livro
capturada no site http://sotero- digitalizada do livro O negro Círculo de Contas (GODOY,
politanosculturaafro.wordpress. na fotografia brasileira do- 2006, p. 64).
com/2007/11/08/maes-de-san- século XIX. (ERMAKOFF,
to/. Acesso em 29/03/2008. 2004, p. 220).
ouro, além de outros, e duas importantes representantes de candomblés já no século XX, Mãe
Menininha do Gantuá e a Iyakekere Luzia da Casa Branca, ambas usam versões em prata do
“Nos terreiros de candomblé esses colares são indícios de nobrezas e são patrimônios que
circulam pelas gerações descendentes na hierarquia dos terreiros e nas relações entre famílias-
de-santo” (LODY, 2001, p. 82). As mais emblemáticas maneiras de resistir via ornamento de
corpo são aquelas vinculadas as suas funções de uso e simbólicas, isto é, dar aspecto mais
Deve-se esclarecer que apesar da tolerância da Igreja Católica com o uso das contas,
havia uma grande intolerância com as religiões africanas, ignorando até mesmo a adesão de
229
outros setores da população, cujo objetivo político subjacente “era impedir reuniões de africanos
para garantir a paz nas senzalas e cortiços da Cidade da Bahia” (REIS, 2008, p. 37).
Existem inúmeros exemplos de escravas bem sucedidas em seu projeto de alforria e ascensão
social. O antropólogo Luiz Mott (1988), no artigo De Escravas a Senhoras relata a história de quatro
africanas nascidas no antigo Reino do Daomé (Benim), selecionou-se das quatro Marias pesquisadas
aquela que galgou elevação na pirâmide social através da mineração, acumulando ouro, muito ouro
Portanto, essas mulheres, descendentes dos nagô-iorubas, trazidas de forma brutal para
que elas criaram com a intenção de auto preservar-se em todos os sentidos, que se tem como
acessório as jóias de crioulas baianas. O assunto vestimenta no âmbito desta tese foi analisado
em várias perspectivas, mas ainda não se apontou que entre as mulheres negras (intra-gênero e
intra-raça) existiam diferenças no trajar. As que se vestiam de maneira suntuosa (Figura 4.12),
...mulatas e pretas vestidas com ricas saias de cetim branco, becas de lemiste
finíssimo, e camisas de cambraia, ou cassa, bordados de forma tal, que
IV-15
vale o lavor, três, ou quatro vezes mais que a peça; e tanto é o ouro, que cada
uma leva em fivelas, cordões, pulseiras, colares ou braceletes, e bentinhos
que sem hipérbole, basta para comprar dois ou três negras ou mulatas...
(VILHENA, 1969, p. 54 e 55)
231
Figura 4.12 – Mulheres negras suntuosamente vestidas. Marc Ferrez – 1885. Imagem digitaliza-
da do livro O Negro na fotografia brasileira do século XIX (ERMAKOFF, 2004, p. 138).
Aquelas que trabalhavam na lavoura e habitavam a senzala não possuíam vestes tão
ricas quanto as outras que tinham a função de mucamas IV-16 e habitavam a casa grande ou
eram libertas, demonstrando como os artefatos são materializações de posições sociais. Basta
observar como Nina Rodrigues (idem, p. 465) descreve as vestes das operárias,
O que estas diferentes roupas revelam? Elas falam, porque o vestuário possui um valor
232 diferenças em suas vestimentas, principalmente na ausência das jóias escravas e na qualidade
inferior dos materiais com que eram confeccionados os trajes (Figura 4.13).
mais ou menos luxuosas, possuíam significados diversos. Na sua origem havia um duplo
significado: para a usuária, uma resignificação de si mesma, diante do lugar social reservado
a sua condição de escrava, e, para a classe dominante, uma afirmação explícita do lugar do
‘Outro’ que relega a mulher negra a um lugar social subordinado. No entanto, ao longo dos
anos, essas mulheres associadas aos seus trajes típicos tornam-se ícones da indústria turística
16 IV- No Brasil e na África portuguesa, a mucama era a escrava ou criada negra, geralmente jovem, que vivia
mais próxima dos senhores, ajudava nos serviços caseiros e acompanhava sua senhora em passeios; ama-de-leite
dos filhos de seus senhores. Disponível em: http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=mucama&stype=k.
Acessado em 15/07/2006.
17 IV- Texto disponível em um dos painéis da Exposição Mulher Negra na Bahia – Imagens de Gênero e Raça –
Museu Tempostal – Salvador/Bahia. Período: novembro de 2005 a agosto de 2006.
1- Lavadeira. Rodolpho
Lindemann Séc. XIX. Ima-
gem digitalizada do livro
O negro na fotografia bra-
sileira do século XIX (ER-
MAKOFF, 2004, p. 212).
4- Vendedora.Christiano
Júnior, 1865. Imagem di-
gitalizada do livro O negro
na fotografia brasileira do
século XIX.(ERMAKOFF,
2004, p. 133).
Nas situações acima descritas se observa o que alertava Foucault (1999, p. 73-95) em
relação à força dos dispositivos de poder que permeiam a sociedade e o jogo de coações e
Esses trajes estão preservados até hoje pelas vendedoras de quitutes afro-baianos, a
famosa Baiana de Acarajé (Figura 4.14), no culto religioso do Candomblé (Figura 4.15), nas
festas típicas baianas como a Lavagem do Bonfim (Figura 4.16) e também na Irmandade da Boa
234
Figura 4.14 - Baiana de Acarajé – 2003. Imagem digitalizada do livro As Cores do Bonfim
(FRANÇA, 2003, p. 128)
Quanto à baiana de acarajé é relevante detalhar esta ocupação da mulher negra que se
“originou das práticas votivas dos cultos afro-brasileiros, tornando-se uma atividade secular na
história da cidade de Salvador, caracterizada como um ofício feminino” (MARTINI, 2007, p. 4):
Historicamente, a figura da baiana de acarajé esta ligada á tradição religiosa
afro-brasileira; era parte das obrigações, sobretudo, das filhas de Iansã dos
terreiros da Bahia sair ás ruas para vender o bolinho conhecido na África
Ocidental por acará.
Ao longo do século XX, essa atividade foi perdendo seu caráter religioso
original, tornando-se meio de geração de renda (uma “carreira típica”)
para mulheres negras pobres em Salvador, mesmo as evangélicas, que
transformaram um símbolo originário da cultura africana no “acarajé de
Jesus”. Da tradição original restou, sobretudo o uso da indumentária de origem
africana e a preparação dos bolinhos – o acarajé. Porém, percebe-se que
tanto o traje como o tabuleiro da baiana sofisticaram-se progressivamente.
E de vendeira, a baiana tornou-se figura emblemática, ganhando agora o
status de Patrimônio Histórico Nacional (SARDENBERG e BARROS, op.
cit. IV-18) (grifos das autoras).
235
Figura 4.15: Candomblé - Sem data. Autor des- Figura 4.16: - Baianas participando da festa
conhecido. da lavagem do Bonfim - 2003. Imagem digita-
lizada do livro As Cores do Bonfim (FRANÇA,
2003, p. 122).
O aspecto religioso em relação à condição das mulheres negras na escravidão e até mesmo
pós-escravidão é dos mais importantes, tanto no que se refere ao adorno de corpo, como no que
se refere à convivência entre elas, mesmo sabendo que o comportamento adotado por algumas
mulheres negras que galgavam ascensão social, era de assumir comportamentos similares ao
da dominação branca, demonstrando que o padrão hegemônico termina por dominar também
aquele que está excluído do processo e consegue estrategicamente sua inclusão, passando a
18 IV- Texto disponível em um dos painéis da Exposição Mulher Negra na Bahia – Imagens de Gênero e Raça –
Museu Tempostal – Salvador/Bahia. Período: novembro de 2005 a agosto de 2006.
Nessa dinâmica perversa do sistema colonial, a escravidão foi, sem dúvida,
o fator mais negativo, junto com a grande propriedade privada, para o
desenvolvimento da cidadania. Uma análise pormenorizada da escravidão
é de suma importância para a compreensão da precariedade da cidadania
hodierna, já que a mentalidade escravista foi um modus operandi bastante
difundido, os libertos, uma vez livres, possuíam escravos, e mesmo os
quilombolas os possuíam, cerca de 78% dos libertos da Bahia possuíam
escravos (ALVES, 2005, web).
aqueles que conquistavam um espaço nesta sociedade, não foi rara. Existem inúmeros exemplos
a serem apontados, dentre eles o mais divulgado e conhecido é o de Chica da SilvaIV-19, conforme
Chica da Silva foi uma mulher mestiça que vivia na cidade de Tejuco, no Estado de
Minas Gerais. Na cidade de Salvador, no Estado da Bahia, existiu Ritta Sebola, possuidora de
Vinha Ritta vestida com uma magnificência que, dizia Pedro Ribeiro,
jamais vira nas princesas que depois estiveram na Bahia: vestido de seda de
primeira ordem bordados e toucado riquíssimo. As lacaias brancas também
traziam ricos vestidos de seda. As escravas, mulatas e negras jejes, usavam
o pitoresco traje das negras baianas, hoje tão raro: saia, camisa bordada e
becas, tudo de grande luxo.
Ainda sobre a questão das crenças, é relevante apontar que a influência das mulheres africanas
se fazia particularmente marcante pela via religiosa, conforme episódio narrado abaixo sobre a
19 IV- Cuja biografia inspirou o filme Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, e a novela homônima da Rede
Manchete (1996-1997), escrita por Walcyr Carrasco, dirigida por Walter Avancini e reprisada em 2005.
Ao promover a união entre africanos e crioulos, o candomblé do Accú
revelou-se intolerável ameaça a um importante aspecto da dominação
escravocrata na Bahia. Desunidos na rebelião, escravos nacionais e
africanos se uniam na religião. É possível que nisso a sabedoria feminina
tenha sido decisiva. As africanas acolhiam crioulas que provavelmente
buscavam no Accú respostas a problemas cotidianos, do corpo e do espírito,
impossíveis de serem resolvidos nos marcos paternalistas. Construíam
assim uma identidade própria, ao mesmo tempo que imprimiam uma
nova identidade ao candomblé que as recebia. Pela surpresa do juiz, a
significativa presença crioula representava uma novidade dos tempos,
um fenômeno que seguramente vinha fortalecer a religião escrava, que
aos poucos deixava de ser africana para tornar-se afro-baiana. Nesse
movimento de absorção de gente nova, que implicava em recriação de
signos culturais, o candomblé ensinava a seus adeptos que às tradições
da África podia e devia conviver com o espírito de mudança do Novo
Mundo. Era o que poderíamos chamar de reinvenção da tradição. Aliás,
como vimos a religião africana desde antes, desde muito cedo, procurou
furar o bloqueio do isolamento, conseguido seduzir não só crioulos, mas
também mulatos e brancos que procuravam os serviços de seus sacerdotes
ou o encanto de seus rituais (REIS e SILVA, 1989, p. 47).
mulheres pela via religiosa, seja no Candomblé, seja nas irmandades católicas de negras.
237
A pesquisadora Maria Salete Joaquim (2001, p.140) relata sobre o papel do candomblé
elementos fundamentais neste processo. Nesta religião os adornos são de importância ímpar,
como se constata na fala de Mãe Stella: “Os adereços, as ferramentas, ajudam as filhas-de-santo
a incorporarem o deus, porque tudo tem a ver com os Oriquis, com a vida toda do Orixá” (apud
JOAQUIM, 2001, p.80). Observe na Figura 4.17, a senhora Pulchéria Maria da Conceição
Nazaré (1840-1918) segunda Iyálorixá do Terreiro de Gantois, usando vários exemplares das
ostentam nas poses, essas mulheres sinalizam Figura 4.17 - Pulchéria Maria da Conceição
Nazaré. Mãe-de-santo do Terreiro de Gan-
o desejo de transformação desta condição, tois. Imagem digitalizada do livro Círculo de
Contas (GODOY, 2006, p. 77)
apesar da sociedade excludente em que tentam
Essa postura de consciência do próprio valor foi tomada como soberba das mulheres
inúmeras fotografias de mulheres de cor (negra e mestiça) que compunham a Exposição Mulher
A respeito das irmandades de pretos e pardos, sabe-se que eram associações de atividades
e também exerciam atribuições de caráter social como: ajuda aos necessitados, assistência aos
doentes, visita aos prisioneiros, concessão de dotes, proteção contra os maus tratos de seus
sociais e raciais que caracterizavam e ainda caracterizam a sociedade brasileira (Quintão, 2000,
doando suas jóias para caixa de alforrias (fundos comuns para a libertação de escravos). Esta
é uma das principais razões de se classificar estas jóias como um design de resistência, pois
aqui, igualmente ao que ocorre em outras situações já mencionadas, estes adornos de corpo
até hoje o uso das jóias (Figura 4.19), mesmo que a maioria delas sejam réplicas em metal
20 IV- Texto disponível em um dos painéis da Exposição Mulher Negra na Bahia – Imagens de Gênero e Raça –
Museu Tempostal – Salvador/Bahia. Novembro de 2005 a agosto de 2006.
não precioso, e realizam uma grande festa religiosa todos os anos na segunda semana
mulheres africanas na diáspora, o que conclui Aureanice de Mello Corrêa (2008, p. 131 e
Outro exemplo de resistência das mulheres via ornamento de corpo são as pencas de
pela concepção do objeto em si e pelo implícito projeto de preservação cultural das suas usuárias,
som que produzem esses berloques quando em contato uns com os outros” (OLIVA, 1941, p.
242
Figura 4.19 - Componentes da Irmandade da Boa Morte com suas jóias e em vários momentos
da festa. Júlio Acevedo, Cachoeira-Bahia, 2004.
38), ela está presente no Novo Dicionário Banto no Brasil e o seu autor, Nei Lopes, classifica-a
objeto que tilinta quando é transportado de um lado para outro. Também aponta o quimbundo
mbalanjanga, como brigão, conflituoso e por fim o zulu bulungana, sendo porções que formam
243
Figura 4.21 – Vendedora de cajus com penca de balangandã na cintura. Imagem digitalizada do
livro Debret e o Brasil (BANDEIRA & LAGO, 2008, p. 205).
Após a fuga do Egito, no deserto do Sinai, Deus estabeleceu uma aliança
com os filhos de Israel e entre as leis havia as prescrições referentes às
vestimentas dos sacerdotes que estabelecia que “haverá em toda a orla do
manto uma campainha de ouro e uma romã, outra campainha de ouro e outra
romã. Aarão o vestirá para oficiar para que se ouça o seu sonido quando
entrar no santuário diante de Iahweh, ou quando sair, e assim não morra”
(Ex 28, 34-35). Essa citação na Bíblia de Jerusalém (1985, p. 148) traz a
seguinte nota “vestígio de uma concepção primitiva amplamente espalhada,
segundo a qual o tilintar das campainhas afastava os demônios”. Com essa
intenção são usados os chocalhos indígenas brasileiros (manacá) nos rituais
de pajelança. Também no candomblé, o adjá, “instrumento idiófono formado
por uma, duas ou três campânulas” (LODY, 2003, p. 63) funciona como
meio evocatório das entidades de outros planos. (grifos da autora).
da chegada da ganhadeira, que vendia em pontos fixos na cidade, mas também de porta em
porta, como faz até hoje o vendedor de taboca IV-21, vendedor ambulante de balas, chocolates,
chicletes, etc. (baleiro), o amolador de tesouras, reminiscências de um passado não tão distante,
negras na formação social, econômica e cultural deste país, comprova-se que, em sua condição
formação educacional, a cura, a que dá forma material aos legados culturais de estética, de arte,
a proximidade com o sagrado, etc.. Foi aquela que criou os meios para a convivência humana
21 IV- Na Bahia é um doce tipo casquinha de sorvete em formato cilíndrico feito com consistência de hóstia,
quase transparente. O vendedor carrega um grande latão nas costas e toca o triângulo (o mesmo dos trios de forró)
anunciando a sua presença nos bairros.
4.2.2 MULHERES NEGRAS E MULHERES BRANCAS: AS RELAÇÕES INTRA-GÊNERO,
INTER-RAÇA E AS JÓIAS
mulheres negras e as mulheres brancas, todas mulheres, todas partícipes de um sistema patriarcal
onde a figura dominante era o homem branco? Segundo bell hooks (1994, p. 94), essa interação
O ponto de contato entre uma mulher negra e uma mulher branca se dava
através do modelo servidora-servida, uma hierarquia, uma relação baseada
em poder sem mediação do desejo sexual. Mulheres negras são servidoras,
e mulheres brancas as servidas.
Na Figura 4.22 está retratado o grau de servidão existente entre brancas e negras.
Enquanto a mulher branca faz sua sesta, a mulher negra permanece em pé, abanando-a em seu
cochilo, numa cena que representa a extrema exploração de um ser humano pelo outro.
245
Figura 4.22 – Escrava doméstica abanado a senhora branca. James Henderson, 1821.Imagem
disponível em: http://hitchcock.itc.virginia.edu/Slavery/details.php?categorynum=9&category
Name=Domestic%20Servants%20and%20Free%20People%20of%20Color&theRecord=15&
recordCount=58. Acesso em 10/06/2009.
Nem o fato de estarem submetidas ao mesmo jugo dominador, que fazia das mulheres
pelo patriarcado, levava a mulher branca a solidarizar-se com a mulher negra, aquela que
cuidava e amamentava os seus filhos. Na Figura 4.23 existem vários exemplos das amas negras
cuidando das crianças brancas. Inclusive, uma das imagens mostra uma ama carregando a
criança branca à moda da África, com o auxílio do pano da costa, que prendia a criança ao
seu corpo para facilitar sua mobilidade, tendo em vista que eram obrigadas a realizar outras
tarefas, e, ao mesmo tempo, garantir a segurança dos filhos das servidas. Muitas vezes lhes
Este zelo com os filhos das mulheres brancas lhes rendia presentes dos pais e dos
próprios filhos já adultos, que iam de pequenos mimos, passando pelas jóias escravas, até a
prestados pelas escravas, como também cuidar de um ente querido por doença ou velhice. Este
trabalho realizado por anos a fio, algumas vezes, provocava nos favorecidos uma profunda
gratidão, ao ponto de muitos deles concederem a escrava bondosa e prestativa, o prêmio máximo,
a sua alforria. Ora, se havia concessão de tamanha envergadura, existiam outros agrados e não
há que pôr dúvidas que muitos destes fossem as tais jóias, tão do gosto da “escrava sublime”
IV-22
. Não era sem propósito o comportamento amistoso das escravas,
prostitutas, exploradas pelas mulheres brancas, como afirma Bittencourt (2005, p.148):
22 IV- Escravo sublime é um termo de Paul Gilroy encontrado no livro de sua autoria O Atlântico Negro:
modernidade e dupla consciência, tradução de Cid Knipel Moreira - São Paulo: Ed. 34, 2001.
1- Negra com criança.
Rodolpho Lindemann
Século XIX. Imagem
digitalizada do livro
O negro na fotografia
brasileira do século
XIX (ERMAKOFF,
2004, p. 102)
mulher. Neste caso se trata, principalmente, do corpo da mulher branca, que deveria submetê-
lo (seu corpo) aos ditames do casamento e à geração de filhos, versus o mito da mulher negra
super sexuada, que deveria subjugar-se aos desejos sexuais dos senhores,
As jóias escravas são provas materiais da situação acima descrita, pois tudo era de
como também a mulher branca e seus filhos. Na Figura 4.24, são apresentadas as diferenças e
248 semelhanças das indumentárias das mulheres negras e brancas do século XIX. As diferenças nas
indumentárias são necessárias para identificar os espaços sociais diferenciados entre a mulher
Condessa de Iguaçu. Óleo sobre tela. Krumholz Moça cafuza. Fotografia. Henschel – 1869.
– 1852. Imagem disponível em:http://upload. Imagem digitalizada do livro O negro na foto-
wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e7/Con- grafia brasileira do século XIX (ERMAKOFF,
dessa_de_Igua%C3%A7u.JPG 2004, p. 177)
Como já foi visto anteriormente com as ganhadeiras, a rua foi tomada pelas mulheres
negras como espaço de sobrevivência e, por conta do enorme esforço empreendido para superar
movimento feminista negro possui as especificidades de luta, que Siqueira (2000, p. 9), citando
E AS JÓIAS
Continuando a discussão da relação entre design e poder, o que as jóias crioulas revelam
250
do relacionamento entre a mulher negra e o homem branco?
branca, mas, quando essa relação se dá com a mulher negra, o que se observa é a prevalência do
mito da mulher negra super sexuada, conforme Helena Lopes (idem) relata,
preocupação governamental em relação à beleza e sensualidade delas, tanto que foi estabelecida
uma portaria real no ano de 1636 limitando o luxo vestimentar das escravas:
Na Figura 4.25 há o exemplo da rica indumentária usada por escravas e libertas que a
dos conflitos raciais no Brasil, que, através de medidas ideológicas e da violência material,
criaram imagens de raça e gênero, estereótipos que povoam o imaginário social, fixando as
Nos séculos XVIII e XIX, a rica indumentária e as jóias escravas expressavam uma
mistura de desejos, pelo ouro e pelo corpo da mulher negra, sendo o lascivo imputado
ao gestual das mulheres negras e não a sua nudez, o que era apropriado ao padrão
racial brasileira, o mito da mulher negra super sexuada se transfere para a mulher mulata
Não é de hoje que chama atenção a recorrência com que na literatura, nas
artes, na música popular e alhures, se reinventa um ideal de mulher, que
sendo mulata (mestiça), preserva características da sensualidade bestial
da negra em modos “afinados” pelo sangue branco. Mariza Corrêa revela
252
como a mulata é pensada como “puro corpo”, recém saída do estado natural,
maliciosa e pura, embaralhando as categorias raciais e sexuais, apresentando-
se como um híbrido, que pelo intermédio do sexo cruza as raças e funda uma
cultura. A operação de invenção do Brasil, mito fundacional brasileiro, está
carregada de significado sexual porque é pensada como a miscigenação racial
por via sexual. Ora, a mulata é o símbolo gracioso desta miscigenação que,
segundo ocorre, ainda ajuda a revelar o que pretende esconder: a rejeição da
“negra preta”. (PINHO, 2004, p. 113)
Além do estereótipo acima descrito, existem outros dois que perduram até hoje, o da baiana
situação que as feministas negras lutam combativamente para mudar, como já foi mencionado.
para o período analisado é mais apropriado dizer escrava versus senhor, onde existe a
homem branco transforma-se em uma das peças da joalheria escrava. O colar de alianças
aliança portuguesa conquistada pela escrava ou liberta após uma noite de amor (Lody,
as vendeiras portuguesas da região do Minho, comprando conta de ouro a conta de ouro para
por fim ter o seu colar finalizado. A história das mulheres afro-descedentes no solo brasileiro é
Inclusive o mito da mais frajola e sensual mulher de cor do Brasil, a Chica da Silva, foi
desconstruído pela historiadora Junia Furtado (2003, p. 119 e 121), como ela relata,
ano do século XX e a reduzida quantidade de filhos em relação aos de Chica e João Fernandes,
poderia ser o retrato da família Silva Oliveira. Ressalta-se o fato de que esta família tenha se
formado pós-abolição da escravatura, quando não mais existia a imposição do senhor que decidia
sobre a possibilidade e qualidade da relação entre homem e mulher escrava, sobre se haveria ou
não vida familiar, se casados ou concubinados seriam ou não separados, se conviveriam com os
filhos e onde, como e em que condição morariam, etc. (Giocomini, 1988, p. 37).
254
Figura 4.27: Casal inter-racial e família. Zaramella. 1990. Imagem digitalizada do livro O negro
na fotografia brasileira do século XIX (ERMAKOFF, 2004, p. 92)
4.2.4 MULHERES NEGRAS E HOMENS NEGROS: AS RELAÇÕES DE GÊNERO, INTRA-
RAÇA E AS JÓIAS
visibilidade é o relacionamento da mulher negra com o homem negro, condição imposta pela
escravidão,
Apesar de verdadeira a situação acima descrita, os estudos mais recentes da historiografia 255
da escravidão apontam para a constituição de famílias (Figura 4.28) entre a população escrava,
A família escrava muitas vezes proporcionou uma tendência destituída de conflito nas
rebelde em função da pressão senhorial sobre a parentela escrava (Reis, 2001, p. 30).
Diante do quadro atitudinal acima descrito, nele também se inclui a estratégia de acumular
valores para a compra da libertação familiar.
vários amuletos para lhe dar proteção e evitar o “mau olhado”, como rezava a tradição.
Por outro lado, existiam situações de conflito entre mulheres negras e homens negros
e, se envolvia jóias, podia haver morte. O assassinato do crioulo João Manoel pela crioula
Maria Joana da Conceição se deu em 1875, por causa de uma argola de ouro vendida a crédito.
Como Maria não pagou todas as prestações acertadas, João conseguiu reaver a argola de ouro,
certamente pelo uso de força física, e procurou devolver o dinheiro dado como entrada. Mas,
a contenda não parou por aí e o vendedor foi chamado pela crioula para acertar as contas e
acabaram entrando em luta corporal, morrendo João esfaqueado por Maria, que foi presa em
flagrante pelos transeuntes e por um soldado da polícia (Soares, 2007, p. 112-118). “[...] Através
dos relatos percebe-se que o desgosto de Maria Joana por lhe terem sido tiradas as argolas,
levara a praticar o crime. Aquelas argolas
nas fímbrias da sociedade colonial. Se para os senhores e senhoras as jóias eram acúmulo de
riqueza material, para as mulheres negras eram uma arma de inserção social, de resgate da auto-
Figura 4.30 – Argolas em ouro e cabochão em vidro azul – Século XIX. Júlio Acevedo – 2005.
Foto da peça do acervo de jóias escravas do Museu Carlos Costa Pinto.
258
Figura 4.31: Mulher Negra. Klumb - 1862. Imagem digitalizada do livro O negro na fotografia
brasileira do século XIX (ERMAKOFF, 2004, p. 202).
CAPÍTULO V
________________________________________________________________
CONCLUSÃO
Com o que foi apresentado nesta tese sobre a joalheria escrava baiana, ou seja, demonstrá-
cultura brasileira, como materialização da resistência ao jugo da exclusão, e, ao mesmo tempo, 263
considerando tais características como circunstâncias indispensáveis para estes artefatos serem
o que são: uma centralização das culturas antes consideradas marginais. Conclui-se, então, pela
importância e necessidade de estudos como esse que encontraram rumos alternativos aos que
modo secular de pensar fragmentado, limitado no que se refere a apreender o “todo”, ou seja,
não examina o objeto em seu contexto, na sua complexidade, no seu conjunto. A superação da
hegemonia do paradigma cartesiano, que reduz o conhecimento do todo ao conhecimento das
Com isso, se quer dizer que as conclusões aqui colocadas serão parametrizadas pelas
proposições concebidas pelo filósofo e sociólogo francês Edgar Morin para a educação em seu
livro Os sete saberes necessários a educação do futuro (2007). Assumir este posicionamento é um
na cosmologia da cultura ioruba, que usa a história oral para perpetuar as suas tradições milenares
e, ao mesmo tempo, é portadora de uma abertura de pensamento/atitude que não encara o “Outro”
como “Outro”, mas, como si mesmo. Segundo essa tradição, tudo começou na cidade sagrada de
Ifé e depois se espalhou pelo mundo, então, todos os povos que habitam o planeta Terra de lá se
originam. Tornando evidente a adesão teórico-ideológica desta pesquisadora, fica manifesto o seu
Na medida em que as jóias estudadas são uma estratégia para entender o processo
histórico que constituiu este país, e tudo que está em seu bojo, inclusive o seu design, e se
concorrem para revelar a significativa herança de projeto existente na matriz africana formadora
de primeiro exemplo de design de jóias brasileiro. O seu mérito está em oferecer referenciais
fenômeno por contemplar as exigências do saber para o século XXI. Comprovar a condição
da joalheria escrava baiana como um objeto híbrido é contemplá-la como elemento da história
comunicação entre todos os continentes no século XVI, sendo que o artefato em questão possui
a capacidade de “mostrar como todas as partes do mundo se tornaram solidárias, sem, contudo,
ocultar as opressões e a dominação que devastaram a humanidade e que ainda não desapareceram”
265
(idem, p. 15). Os objetos forjados no seio de encontros de culturas, mesmo que sob a escravidão,
fazendo com que se entenda que todos os seres humanos partilham um destino comum.
Ao tornar evidente que as jóias são o resultado de idéias transculturadas, que foram
riqueza da humanidade reside na sua diversidade criadora, mas a fonte da sua criatividade está
pretende como processo de formação educacional que dê conta das pautas éticas que desafiam
Já a hipótese H2, imbricada na hipótese H1, por serem entendidas como partes inseparáveis
resistência, não na sua forma, que é híbrida, mas no seu significado de uso, da resistên-
cia negra ao sistema escravocrata. Portar estas jóias, para a mulher negra ou mestiça,
Este estudo é tanto mais necessário porque enfocaria não os sintomas, mas
as causas do racismo, da xenofobia, do desprezo. Constituiria, ao mesmo
tempo, uma das bases mais seguras da educação para a paz, à qual estamos
ligados por essência e por vocação.
este mundo que insiste em ser injusto, precisa, urgentemente, da ética da compreensão. Aquele
que está escravizado compreende aquele que o escraviza e isso as mulheres negras conseguiram
tudo o que elas fizeram e fazem por este país, como detalha Lourdes Siqueira (2000, p. 11 e 12),
Vale a pena repetir que a mulher negra sempre esteve presente em todas as
esferas da vida social brasileira, de mucama, a ama de leite, a quituteira, a
vendedora de ganho, a cuidadora das alcovas de seus senhores e tudo isso
aliado às suas lutas etno-políticos-culturais nas Imandades, nas Congadas,
nos Reizados, nos Terreiros, nas guerras, revoltas. Em todos estes espaços
ela lutava pela continuidade e sobrevivência da família negra, enquanto raça,
enquanto grupos étnicos específicos, enquanto representações culturais das
tradições que vinham de seus antepassados. E era aí que elas desenvolviam
as primeiras lutas contra o racismo, contra a ideologia básica que alimentava
a colonização e a escravidão. Nestas lutas elas organizavam, politizavam,
conscientizavam criando consciência entre a população negra, ao mesmo
tempo lutando por direitos de cidadania, guardando memória histórico
cultural, criando formas associativistas, promovendo ações educativas,
formando pessoas, desenvolvendo projetos culturais de música, dança,
revivendo e recriando contos, lendas, mitos, hoje à nossa disposição, sobre
o qual reelaboramos, reinventamos, recriamos o patrimônio civilizatório
africano na Diáspora.
usuárias das jóias escravas, conscientes do seu poder feminino, pois são elas que fazem a vida
acontecer, adaptando-a sob a escravidão, e sem abandonar as tradições de suas culturas, com a
267
consciência de ter sido criada pela sua cabeça e que ninguém criou a sua cabeça, demonstraram
Trabalhar as duas hipóteses postas nesta tese de maneira integrada, exercitando a abertura
um “feitiço” colocado na encruzilhada, por ser nela que as forças do norte e do sul, do leste e
noite/dia, bom/mal, e todas as antíteses existentes, é desnecessário elencar aqui todo o universo
das dualidades, pois são bem conhecidas. Segundo Babatude Lawal V-1: “a mesma mão que cria
1 V- Conteúdo do curso ministrado por pelo pesquisador e professor de História da Arte nigeriano Babatunde
Lawal, da Virginia Commonwealth University, em Richmond, no estado norte-americano de Virginia (EUA), no
período de 6 a 10 de julho de 2009, na Universidade do Estado da Bahia – UNEB, em Salvador-Bahia.
a caneta, cria também a borracha”. Ao final, este trabalho é apenas uma tentativa de superar as
cegueiras do conhecimento.
joalheria escrava baiana demonstra que as histórias e as culturas africanas e afro-brasileiras não
interessam somente aos afro-descendentes, “mas à humanidade como um todo e ao Brasil como
Acredita-se que o resultado deste trabalho faça parte da história não-oficial deste país,
que ainda está sendo escrita, principalmente quando se trata das tradições dos povos africanos,
brasileira, onde tudo está por ser construído, pensa-se estarem alicerçadas nesta pesquisa
as bases onde podem ser fincados os pilares para o avanço das investigações em história da
baiana dos séculos XVIII e XIX foi, também, uma referenciação e uma sistematização de
padrões históricos, que incorpora a possibilidade de fomentar a produção de jóias com uma
identidade regional, através do uso da sua simbologia, da suas técnicas de manufatura e da sua
linguagem. Esses estudos podem se constituir em uma importante estratégia para a promoção
econômica, social e cultural do segmento baiano de produção de jóias, enaltecendo suas raízes
que a mesma possui a legítima condição de projeto local, merecedora de ser levada em conta
tanto nacionalmente, quanto internacionalmente.
Contudo, insiste-se que ainda há muito a fazer, para que a prática projetual dos atuais e
futuros designers possa contemplar aspectos como a diversidade, a justiça social, o tratamento
igualitário, que promova a solidariedade, enfim, para que se construa em pilares sólidos uma
limitações existentes nesta pesquisa, tal como colocado no capítulo introdutório desta tese.
transdisciplinariedade, que reúna uma diversidade de atores, tais como, adeptos do candomblé,
historiadores, antropólogos, designers, educadores, estudantes dos três níveis de ensino, ativistas
dos movimentos sociais, sociólogos e todos aqueles que têm interesse na reflexão e pesquisa
na área dos objetos afro-brasileiros. O foco de estudos contemplará as conexões entre design,
269
história, cultura, e outras que se avalie no processo como necessárias, no contexto brasileiro e
mais especificamente no contexto baiano. O objetivo é cobrir questões referentes aos objetos
história do design no Brasil, ou seja, parâmetros que dêem conta da especificidade de objetos
Adicionalmente, espera-se que esta tese possa colaborar na promoção de uma mudança
igualdade entre os sexos e entre os povos, tornando possíveis novos comportamentos projetuais
através do conhecimento histórico que se alcança uma postura social e profissional pautada na
ética, compreendendo que o fato de sermos diferentes não nos faz desiguais.
REFERÊNCIAS
________________________________________________________________
REFERÊNCIAS
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Bo e P. M. Bardi, 1994.
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ANEXOS II
ANEXOS II – DOCUMENTO 1
Transcrição de Inventário
Página 1
1842
Joaquim de Santa Anna de
Almeida
Juízo do direito cível da 2 vara
Meeira
D. Joaquina Maria d’Almeida
Herdeiros
O Reverendo Cônego Manoel
Joaquim d’ Almeida
O Padre Jose Mara de Almeida
Parella
D. Maria Joaquina d’ Almeida