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Caso Intoxicação Por Sulfato Ferroso

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Relato de Caso

Choque refratário e óbito após intoxicação por sulfato ferroso


Refractory shock and death by iron poisoning

Marith Graciano Berber1, Lívia Meirelles de Araújo1, Cláudio Flauzino Oliveira2, Eduardo Juan Troster3, Flávio Adolfo C. Vaz4

RESUMO ABSTRACT

Objetivo: Descrever um caso de intoxicação por ferro em Objective: To present a case of a child with iron intoxi-
uma criança após ingestão acidental de sulfato ferroso. cation due to an accidental ingestion of ferrous sulfate.
Descrição do caso: Lactente de 11 meses de idade admi- Case description: An eleven-month-old child was ad-
tida após ingestão acidental de sulfato ferroso (dose desco- mitted to the hospital after an accidental ingestion of ferrous
nhecida); apresentava diarréia, desidratação grave e torpor. sulfate, presenting diarrhea, severe dehydration and drow-
Inicialmente, foram adotadas medidas para estabilização siness. Initially, therapies for hemodynamic stabilization,
hemodinâmica, suporte ventilatório e terapia vasopressora. ventilatory support and vasopressor drugs were adopted.
A dosagem de ferro sérico era de 259μmol/L, sendo iniciado Laboratory test revealed high serum iron level (259μmol/L)
desferoxamina. Apesar do tratamento, manteve quadro de and deferoxamine administration was started. Despite tre-
instabilidade hemodinâmica, sem melhora após associação atment, the child persisted with hemodynamic instability,
de adrenalina. Evoluiu para óbito 50 horas após admissão without improvement after epinephrine infusion and died
no hospital por choque refratário. 50 hours after admission, due to refractory shock.
Comentários: O sulfato ferroso é uma medicação ampla- Comments: The ferrous sulfate is widely used and easily
mente utilizada em nosso meio e de fácil acesso às crianças nos accessible for children in their homes. In this case report,
domicílios. No caso descrito, apesar do diagnóstico precoce e despite prompt diagnosis and early institution of adequate
dos cuidados prestados prontamente, não foi possível evitar treatment, it was not possible to avoid the development of
grave evolução para choque refratário e óbito. Portanto, é refractory shock and death. Therefore, it is important to
importante prevenir a intoxicação e conhecer a evolução de avoid intoxication as well as to improve medical knowledge
uma intoxicação por ferro, uma vez que o tratamento nem about the pathophysiology of iron intoxication, acknowled-
sempre evita a má evolução. ging that treatment not always avoids a poor outcome.

Palavras-chave: criança; sulfato ferroso; sobrecarga de Key-words: child; ferrous sulfate; iron overload; shock.
ferro; choque.

1
Residente do Departamento de Pediatria do Instituto da Criança (ICr) do Endereço para correspondência:
Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da Universidade de Marith Graciano Berber
São Paulo (FMUSP), São Paulo, SP, Brasil Rua Rio Grande, 308, apto. 111
2
Pós-graduando do Departamento de Pediatria do ICr/HC-FMUSP, São CEP 04018-000 – São Paulo/SP
Paulo, SP, Brasil E-mail: marith@terra.com.br
3
Professor livre docente pelo Departamento de Pediatria e coordenador do Cen-
tro de Terapia Intensiva Pediátrica do ICr/HC-FMUSP, São Paulo, SP, Brasil
4
Professor titular de Pediatria e diretor do Centro de Terapia Intensiva Pe- Recebido em: 27/4/2007
diátrica do ICr/HC-FMUSP, São Paulo, SP, Brasil Aprovado em:31/7/2007

Rev Paul Pediatr 2007;25(4):385-8.


Choque refratário e óbito após intoxicação por sulfato ferroso

Introdução a estabilização hemodinâmica, sendo prescrita expansão


de volume com cristalóide (três alíquotas de 20mL/kg em
A ingestão excessiva de ferro é uma causa importante 20 minutos cada), intubação orotraqueal e suporte venti-
de intoxicação acidental na infância. O primeiro registro latório, além de infusão contínua de dopamina (titulada
de intoxicação por ferro ocorreu na década de 1940, nos até 15mcg/kg/min). Após 12 horas da ingestão, foi dosado
Estados Unidos. O uso de altas doses de ferro em compri- nível sérico de ferro de 259μmol/L (valor de referência de
midos, utilizados em gestantes e no tratamento de doenças 9 a 21,5μmol/L) e iniciada infusão contínua de desferoxa-
hematológicas, constitui a causa mais freqüente de óbito por mina (15mg/kg/hora). Apesar do tratamento, evoluiu com
intoxicação em crianças de um a quatro anos(1). Em 1991, a deterioração do quadro hemodinâmico e crise convulsiva tô-
incidência de intoxicação por ferro nos Estados Unidos foi nico-clônica generalizada, controlada com benzodiazepínico
de 18.450 casos, sendo a causa mais freqüente de intoxicação intravascular. Mantinha instabilidade hemodinâmica, acidose
na infância. A maior parte dos casos ocorreu em crianças com metabólica e hiperglicemia, mesmo após nova reposição flu-
menos de seis anos(2). ídica (duas alíquotas de 20mL/kg de cristalóide) e titulação
Em 1997, o Food and Drug Administration iniciou campa- da dopamina (até 20mcg/kg/min), além de anemia, embora
nhas preventivas e limitou em 30mg a concentração de ferro sem foco de sangramento aparente.
por comprimido. Desde então, houve queda considerável na Foi transferida para a UTI em mau estado geral, descorada,
incidência e na mortalidade da intoxicação pelo ferro: 29 hipotensa (PAM de 35mmHg), Glasgow 3, pupilas isocóricas
óbitos foram registrados entre 1988 e 1997 e apenas um e fotorreagentes, pulsos não palpáveis, extremidades frias
óbito ocorreu entre 1998 e 2002. Além disso, os registros e edema em membros. Após a passagem de cateter venoso
telefônicos caíram de 2,99/1.000 chamadas entre 1988 e central, foi iniciada adrenalina, sendo titulada a dose de 0,2 a
1997 para 1,99/1. 000 chamadas de 1998 e 2002(3,4). 4mcg/kg/min, sem resposta. A pressão venosa central variou
No Brasil, como na maioria dos países, os medicamentos de 9 a 14cm de água. Foram corrigidos distúrbios ácido-bá-
são os principais agentes tóxicos, respondendo por 28% dos sicos e glicemia e foi realizada transfusão de hemoderivados.
casos de intoxicação humana registrados anualmente, pelo Evoluiu com anemia, coagulopatia, hipoproteinemia e cho-
Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas que refratário, falecendo 50 horas após a ingestão do sulfato
(Sinitox). Os benzodiazepínicos, os antigripais, antidepres- ferroso (Tabela 1).
sivos e os antiinflamatórios são os medicamentos que mais
intoxicam, sendo que as crianças menores de cinco anos Comentários
representam cerca de 35% destas intoxicações(5).
No caso descrito a seguir, apesar do diagnóstico precoce A intoxicação pelo ferro geralmente ocorre em cinco
de intoxicação pelo sulfato ferroso e de cuidados adequada- etapas. No primeiro estágio, predominam os sintomas
mente prestados, não foi possível evitar a grave evolução para gastrintestinais, em geral, seis horas após a ingestão, como
choque refratário e óbito. O objetivo é discutir a evolução descrito no caso acima. O ferro é corrosivo à mucosa gástrica
da intoxicação grave por ferro e destacar a necessidade do causando diarréia, náuseas, vômitos e sangramento gas-
diagnóstico precoce e de ações preventivas. trointestinal(6). Apesar de a paciente não apresentar sangra-
mento ativo evidente, provavelmente, a agressão à mucosa
Descrição do caso gastrintestinal causou perda de sangue, não evidenciada
clinicamente pela rápida evolução do caso, justificando a
Paciente de 11 meses, sexo feminino, sem antecedentes queda tão significativa da hemoglobina. O segundo estágio,
mórbidos, admitida na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) que ocorre entre seis e 24 horas, também é conhecido como
após ingestão excessiva de sulfato ferroso. latente, no qual aparecem acidose metabólica, hiperven-
Seis horas após a ingestão, iniciou quadro de vômitos e tilação e oligúria. Hiperglicemia e leucocitose também
diarréia enegrecida, sendo trazida ao pronto-socorro com podem estar presentes, como observado no caso descrito.
desidratação grave, rebaixamento do nível de consciência Neste momento, o uso de quelante do ferro pode evitar uma
e má perfusão periférica. A mãe relatava ingestão acidental toxicidade maior. Se não é tomada uma conduta adequada,
de sulfato ferroso pela criança, sem quantificar o número de ocorre progressão para o terceiro estágio, caracterizado pelo
comprimidos. Inicialmente, foram adotadas medidas para choque refratário e falência hepática e renal, demonstrados

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Marith Graciano Berber et al

pelo aumento significativo de aspartato-aminotranferase Foi possível notar que a condução adequada do caso não
(AST), alanino-aminotransferase (ALT), uréia e creatinina. foi capaz de prevenir o óbito e, mesmo com uso de desfero-
A falência múltipla de órgãos ocorre de 12 a 48 horas após xamina, a criança evoluiu com choque refratário, indicando
a ingestão. Tanto a perda volêmica pelos vômitos e diarréia, a necessidade de ações preventivas. Relatos de casos sugerem
quanto a toxicidade direta do ferro levam à necrose tubular que a presença de acidose metabólica inexplicada e persistente
aguda e falência hepática. No quarto estágio, há melhora pode ser o único sinal da intoxicação(5).
clínica e, no quinto, o desenvolvimento de estenose do trato Na investigação, uma radiografia do abdome deve ser
gastrintestinal, como complicação do efeito corrosivo do realizada. Se visualizados comprimidos de ferro no interior
ferro sobre a mucosa. das alças, a lavagem intestinal está indicada. Se a medicação
Altas concentrações intracelulares de ferro resultam em ainda estiver no estômago, deve-se realizar lavagem gástrica
disfunção mitocondrial e morte celular. A acidose metabólica ou remoção por endoscopia.
causada pela intoxicação pelo ferro é resultado de diversos Em pacientes assintomáticos, o nível sérico de ferro deve
mecanismos. Depois de absorvido, o ferro é convertido da ser dosado após a quarta hora da ingestão. Quando o nível
forma ferrosa para a férrica, liberando radicais de hidrogênio sérico do ferro for menor que 55μmol/L, não é necessária
no plasma. A absorção do ferro pelos hepatócitos acarreta qualquer intervenção. Pacientes com nível sérico entre
liberação de radicais livres e conversão para o metabolismo 55-90μmol/L devem permanecer em observação por pelo
anaeróbio, com produção de ácido lático. Além disso, a menos 24 horas. Se, mesmo assim, permanecerem assintomá-
presença de ferro livre no plasma causa aumento da perme- ticos, nenhuma outra conduta específica deve ser tomada.
abilidade capilar e perda do tônus venoso, o que culmina Pacientes com nível sérico de ferro superior a 90μmol/L
com o choque(7). necessitam de tratamento intravenoso com desferoxamina.
As crianças que ingerem mais de 30mg/kg de ferro elemen- Os que apresentam sinais e sintomas sugestivos de falência
tar têm risco de intoxicação por ferro e devem ser investiga- de múltiplos órgãos necessitam de cuidados intensivos. Uma
das. Os principais sintomas são enterorragia, choque, acidose vez que a desferoxamina interfere no nível sérico do ferro,
metabólica com ânion gap elevado, disfunção hepática com uma amostra de sangue deve ser coletada antes do início do
aumento de AST, ALT, fosfatase alcalina e creatinoquinase tratamento. Entretanto, o mesmo não deve ser postergado
(CK), leucocitose, necrose tubular aguda e mioglobinúria(6). na espera dos resultados(6).
No caso, a mãe não soube quantificar a dose ingerida, mas o A desferoxamina quela o ferro livre e seus metabólitos são
nível sérico do ferro confirmou a intoxicação. excretados na urina, conferindo-lhe uma coloração acastanha-

Tabela 1 – Progressão dos exames laboratoriais


6 horas após ingestão 48 horas após ingestão
Hemoglobina/hematócrito 16g/dL/51% 7g/dL/21%
Leucócitos 45.000/mm3 1.400/mm3
Plaquetas 210.000/mm3 83.000/mm3
AST 3.502U/L 8.448U/L
ALT 2.193U/L 5.428U/L
Lactato 10mmol/L 167mmol/L
Ferro 259μmol/L 144μmol/L
Uréia/creatinina 86/1,0mg/dL 50/0,8mg/dL
Proteína total/albumina 5,6/3,2g/dL 3,4/2,5g/dL
Gasometria pH 7,09/pCO2 38,3 pH 7,39/pCO2 68
Bicarbonato 11,9 Bicarbonato 42
Glicemia 156mg/dL 22mg/dL

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Choque refratário e óbito após intoxicação por sulfato ferroso

da. Caso haja comprometimento significativo da função renal, após a saturação de todas as proteínas carreadoras e que
esses metabólitos podem também ser removidos por meio de o ferro livre na circulação é um risco para a toxicidade e
diálise. A desferoxamina deve ser mantida até que os sintomas necessita de tratamento. Quando o TIBC for maior que o
desapareçam. Optar pela infusão contínua, iniciando-se com nível sérico, todo ferro está ligado à transferrina e não está
a dose de 10-15mg/kg/h, sempre intravascular, uma vez que disponível para causar toxicidade(9).
a droga é pouco absorvida após a administração oral(8). O sulfato ferroso é uma medicação utilizada amplamente
Diversos marcadores laboratoriais têm sido avaliados em nosso meio e de fácil acesso às crianças nos domicílios.
para determinar a toxicidade do ferro. A dosagem do nível Embora o risco da intoxicação seja grande, pode ser facil-
sérico do ferro parece ser o melhor exame para determi- mente prevenida, por meio de orientação aos familiares e
nar essa toxicidade. Entretanto, questiona-se se apenas a embalagens de medicamentos com trava de segurança. Além
dosagem sérica pode determinar o risco de toxicidade. A disso, uma vez que o uso de sulfato ferroso é amplamente
dosagem da capacidade total de ligação do ferro (TIBC) difundido em nosso meio, deve-se estar atento aos sinais
é recomendada para estimar a presença de ferro livre e a precoces de intoxicação pelo ferro para que seja tomada a
necessidade do uso de quelante. O uso racional de TIBC conduta adequada, tentando evitar a evolução para choque
é baseado na teoria de que o nível sérico de ferro se eleva refratário intratável.

Referências bibliográficas
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