Mitos e Lendas Egípcias - PHILIP ARDAGH
Mitos e Lendas Egípcias - PHILIP ARDAGH
Mitos e Lendas Egípcias - PHILIP ARDAGH
MITO ou LENDA?
Muito antes de as pessoas saberem ler ou escrever, as histórias eram transmitidas
oralmente. De cada vez que eram contadas, mudavam um pouco, acrescentando-se uma
nova personagem aqui e uma mudança na trama acolá.
Os mitos e as lendas nasceram dessas histórias em constante mutação.
O QUE É UM MITO? Um mito é uma história tradicional que não se
baseia em algo que realmente aconteceu e, normalmente, fala de seres sobrenaturais.
Os mitos são inventados, mas ajudam a explicar os
costumes locais ou os fenômenos naturais.
O QUE É UMA LENDA? A lenda assemelha-se muito ao mito. A diferença está no facto de
a lenda poder basear-se num acontecimento real ou numa
pessoa que realmente existiu. O que não significa que a história não tenha mudado
ao
longo dos anos.
ANTIGO EGIPTO
O Egipto era origimariamente constituído por dois países. Há cerca de 5OOO anos,
por volta de
3000 a. C., esses países tornaram-se um só. Nos
3000 anos seguintes, o Egipto foi um
dos países mais ricos e mais
poderosos do mundo.
O olho wedjat simbolizava o olho
dos deuses Rã e Hórus. Segundo o
mito, o olho de Hórusfoi arrancado, mas, como por milagre, voltou a crescer. O olho
wedjat era
tido como um amuleto da sorte.
O VALE Do NILO
A maior parte do Egipto era conhecida como Terra Vermelha. Era o deserto quente e
seco, e
poucas pessoas o habitavam. Quase todos os
egípcios viviam na Terra Negra, no vale do rio
Nilo, Sempre que o rio transbordava, a terra
ficava mais fértil e mais escura, razão pela qual recebeu esta denominação.
PIRÂMIDES E FARAóS
O Egipto é famoso pelas suas pirâmides, que ainda se mantêm de pé nos nossos dias.
Eram
os túmulos dos antigos governantes, às vezes
chamados faraós. As pessoas acreditavam na
qualidade divina dos faraós. Os últimos foram sepultados nas colinas rochosas ou em
túmulos
subterrâneos num local chamado vale dos Reis.
DIVINDADES Do ANTIGO EGIPTO os mitos e as lendas dos antigos Egípcios foram criados
a
partir de muitos credos diferentes. Cada aldeia e cidade
adorava os seus próprios deuses e deusas. A popularidade de
alguns espalhou-se, e mais tarde as histórias desses deuses
fundiram-se para formar aquilo que conhecemos como
mitologia do Antigo Egipto.
MUITOS DEUSES, A MESMA FUNÇÃO Uma das consequências do facto de os antigos
Egípcios adorarem muitos deuses é que muitos
destes tinham os mesmos deveres. Por exemplo, havia muitos deuses do Sol. Cada deus
era
adorado por um grupo diferente de pessoas e
nenhuma dessas pessoas acreditava em todos os deuses. Mais tarde, Rã tomou-se
conhecido como deus do Sol e todos os demais deuses do Sol foram considerados meras
manifestaçoes de Rã. os diferentes deuses fundiram-se num Só.
Em MARCHA o comércio deve ter desempenhado um
papel importante na divulgação dos mitos e
das lendas. Dado que as pessoas das diferentes partes do Egipto viajavam pela Terra
Negra a vender coisas, provavelmente partilhavam as suas histórias e as suas
crenças. As pessoas começaram a ouvir falar
de diferentes deuses, deusas, mitos e lendas e assimilaram-nos.
A CRIAÇÃO Até uma coisa tão importante corno a criação da
Terra e do povo que a habitava era contada em
muitas versões diferentes. Urna das primeiras, originária da cidade de Heliópolis,
dizia que Áton era o criador. Mais tarde, quando Rã se tornou o
rai is mais poderoso de todos os deuses egípcios, ele próprio se tornou o
criador e - nessa forma era conhecido como Rá-Áton.
NOMES MAIS CONHECIDOS No Antigo Egipto eram adorados centenas de deuses e deusas.
Segue-se uma lista dos
mais importantes.
RÁ O deus do Sol. Aparecia sob multas
formas. Muitas vezes representado corri
cabeça de falcão. Tornou-se o deus mais
importante. Os deuses com que ele se
fundiu viam acrescentada ao seu nome a palavra Rã (por exemplo Rá-Áton e Ámon-Rá).
Rã, o poderoso deus do Sol, fez de Osíris e ísis o rei e a rainha do Egipto. Embora
fossem deuses, andavam entre os
humanos espalhando sabedoria e compreensão. Tudo teria
corrido bem, se o irmão deles, Seth, não tivesse sentido
ciúmes do seu poder.
O
povo do Egipto amava o seu rei e a sua rainha. Osíris e ísis tornavam agradável a
vida do seus súbditos. Ensinavam ao povo egípcio a melhor forma de tratar da terra
e levavam ao seu país a
lei e a ordem, para que todos pudessem ser tratados com justiça. Em troca, os
Egípcios tomavam conhecimento dos deuses e da forma como deveriam adorá-los. As
pessoas eram felizes, os deuses eram felizes e o Egipto prosperava.
Mas chegou uma altura em que Osíris decidiu que devia espalhar a
boa sorte por todos os países da Terra, não ficando apenas pelo Egipto.
- E necessário que os outros povos aprendam a tirar o melhor partido da sua terra e
a viver em paz e harmonia - disse ele um dia à mulher.
- Isso é verdade, irmão e marido - concordou ísis. - Enviemos
mensageiros ao estrangeiro para espalhar a nova sobre o poder e a
sabedoria de Rã.
Osíris abanou a cabeça.
- Eu próprio tenho de fazer essa viagem - disse ele. - Se as
pessoas virem que é um deus que lhes traz essas dádivas de conhecimento e
prosperidade estarão mais dispostas a aceitá-las e a melhorar as suas vidas.
- Mas quem é que diz que o povo irá obedecer-te, se te apoderares do trono enquanto
o teu irmão, o rei, estiver ausente? - perguntou um dos cortesãos.
- Não irei apoderar-me do trono - respondeu Seth. - Iremos esperar a ocasião.
Aguardaremos que o meu irmão regresse e dar-lhe-emos as boas-vindas de braços
abertos.
- E depois?
- Depois? - Seth sorriu. - Depois executaremos o meu plano!
Quando o rei Osíris regressou finalmente, todo o reino festejou. ísis, a sua
rainha, foi a primeira a saudá-lo.
- Bem-vindo a casa, marido e irmão! - exclamou ela. - Tive muitas saudades tuas.
- Todos tivemos - disse Seth, saindo de trás do trono da irmã. Um sorriso maldoso
pairou nos seus lábios, mas Isis pareceu ser a única a reparar nele. E não
tencionava permitir que Seth estragasse uma ocasião tão feliz.
Houve danças e acrobacias, celebrações e canções. Os festejos duraram vários dias.
Osíris estava de novo ao lado da mulher e no selo do seu povo. E Seth continuava a
não atacar. Estava à espera... à espera que surgisse a sua oportunidade.
E ela acabou por surgir, na forma de um convite para um grande banquete que iria
ter lugar no palácio real. Naquela noite, a rainha ísis não iria estar presente.
Era o momento que Seth aguardara com tanta
paciência. Sem os olhos atentos da irmã para o vigiarem, poderia pôr em prática o
seu plano.
Ao banquete assistiu o pequeno grupo de cortesãos descontentes que se
haviam tornado aliados de Seth. Antes de este chegar, puseram-se a falar de uma
arca fabulosa que Seth recebera.
- Dizem que foi feita com as melhores madeiras pelos artesãos mais hábeis - afirmou
um deles.
- Ouvi dizer que tem tanto ouro que brilha como o Sol -
acrescentou outro.
Disseram-me que era mais bela do que muitos dos tesouros do próprio rei - murmurou
outro suficientemente alto para que as suas
palavras chegassem aos ouvidos de Osíris.
Quando Seth entrou na sala do banquete - propositadamente tarde para que a sua
entrada fosse grandiosa - todos falavam desta fabulosa arca dourada.
- É verdade que possuis um tesouro tão belo? - perguntou Osíris.
- Sim, irmão - respondeu Seth. - Depois de comermos darei
ordens para que o tragam ao palácio.
Então começou a grande festa. Mais tarde, quando o banquete estava a chegar ao fim,
um grupo de criados entrou com a arca dourada. Na sala ouviu-se um murmúrio de
espanto e de deleite. A arca era realmente bela.
- Tenho uma ideia! - exclamou Seth. - Vejamos se alguém cabe na
minha arca... com a cabeça a tocar num lado e os pés no outro. Quem lá
couber melhor, pode ficar com a arca!
Porém, o que os convidados, incluindo o rei Osíris, não sabiam Iera
que a ideia de Seth fazia parte de um plano cuidadosamente elaborado.
Tal como haviam ensaiado, um dos conspiradores avançou e deitou-se
dentro da arca aberta, enquanto alguns faziam fila atrás dele, e outros encorajavam
os restantes a juntarem-se a eles. Alguns eram demasiado altos
para a arca, tendo de dobrar os joelhos para lá caberem. Outros eram demasiado
baixos.
Por fim, a única pessoa que ainda não tinha entrado na arca era o
próprio rei Osíris.
- Irmão! - chamou Seth. - Não te juntas à brincadeira? Osíris hesitou por um
momento.
- Porque não? - respondeu ele então, com uma gargalhada. Entrou na arca e deitou-
se. Ficou admirado ao ver que cabia lá dentro na perfeição. Isso não foi surpresa
para Seth. Ordenara aos artesãos que construíssem a arca de acordo com as suas
indicações - para que ela pudesse ser o caixão ideal para o irmão.
circundados Com os conspiradores
em volta da arca para que os outros convivas
não vissem o que estava a acontecer, Seth fechou a tampa da arca,
trancou-a e selou-a com chumbo derretido. Os seus cúmplices afastaram-se
então, permitindo que todos vissem um Seth sorridente ao lado da arca.
- Não há vencedor - anunciou ele. - A arca continua a ser minha. Com isto, os seus
aliados gananciosos agarraram na arca e levaram-na para fora da sala. Por dentro, a
arca não tinha ar e estava tão bem selada como um túmulo. O seu tamanho ideal não
permitia que Osíris dobrasse as pernas e batesse com os pés na tampa, ou levantasse
os braços e batesse nos lados. Estava encurralado. Os seus gritos de socorro foram
abafados e ninguém os ouviu. Então, o pouco ar que havia dentro da arca esgotou-se
e, incapaz de respirar, o rei do Egipto morreu. Sem levantar um dedo contra Osíris,
o seu irmão Seth assassinara-o.
A coberto da noite, o caixão falso foi levado para junto do Nilo e
atirado ao rio. Na manhã seguinte, Seth anunciou a trágica morte do irmão, e
autoproclamou-se rei. Nesse mesmo dia foi coroado.
Quando a rainha ísis tomou conhecimento da morte do marido, ficou muito triste e
começou a chorar. Depois, vestiu as roupas de viúva e cortou uma madeixa do seu
cabelo. Mas o seu período de luto iria ter de esperar. Precisava de saber de que
forma o rei Osíris
morrera e o que acontecera ao seu corpo.
Afastada do seu próprio palácio pelo novo rei, o seu malvado irmão Seth, ísis andou
de aldeia em aldeia tentando descobrir a verdade do que acontecera ao
seu marido assassinado. Corriam muitos boatos, mas
ela soube finalmente a verdade por um grupo de
crianças. As crianças contaram à antiga rainha do Egipto que haviam visto
uns homens lançarem uma arca no Nilo. Era uma arca muito bela - viram-na bem à luz
dos archotes - e tinham ouvido os homens vangloriarem-se de que lá dentro se
encontrava o corpo do rei morto, Osíris. Quando os homens se foram embora, as
crianças tinham saído das sombras e visto a arca a ser arrastada rio abaixo pela
corrente.
- Então ainda há esperança! - exclamou ísis, sentindo-se invadida por uma grande
alegria. Correu junto à margem do rio, seguindo a corrente, e desejando com todas
as suas forças que a arca
tivesse encalhado na margem. Viajou até chegar ao mar, mas não viu sinais dela. No
entanto, não estava disposta a desistir.
Ísis viajou para norte ao longo da costa e ouviu dizer que algumas pessoas tinham
avistado uma estranha e bela arca a flutuar no mar.
Nunca chegou a vê-la com os seus próprios olhos, mas tinha a certeza de que a iria
encontrar em breve.
A deusa viajou por vários países, seguindo os relatos da arca, até ter chegado ao
reino de Biblo. Falava-se não de uma arca dourada no mar, mas sim de uma fabulosa
tamargueira que crescera da noite para o dia na praia.
Assim, Ísis, disfarçada de mulher simples, foi levada à presença da rainha que lhe
pediu que penteasse e perfumasse o seu cabelo. ísis assim fez, e Athenais ficou
encantada. Pediu a ísis que permanecesse ali.
Nessa noite, Isis foi até à sala onde se encontrava o pilar. Este era feito de um
único tronco de uma árvore incrível que nascera na praia. Quando encostou a mão à
madeira macia, percebeu de imediato o que acontecera.
O caixão do seu marido fora ter à praia e ficara preso nas raízes de uma jovem
tamargueira. Embora morto, alguns dos poderes divinos de Osíris tinham de alguma
forma escapado da arca selada, fazendo com que a pequena árvore se transformasse
noutra gigantesca, tendo no meio o deus no seu caixão... O corpo de Osíris estava
dentro daquele pilar! A chorar, ísis voltou para a cama.
Dali a pouco tempo, a rainha Athenais de Biblo afeiçoara-sejá muito a Ísis, e esta
à rainha e ao seu filho bebé, de quem agora cuidava. ísis contentava-se em ficar
ali no palácio, perto do corpo do seu amado marido. De dia, desempenhava o papel de
ama dedicada do príncipe. À noite era uma viúva que chorava a morte do marido no
seu caixão em forma de pilar.
À medida que o tempo ia passando, ísis começou a amar tanto o príncipe que não
podia sequer pensar que ele iria morrer, tal como Osíris. Todas as noites levava o
rapazinho adormecido até à sala do pilar. Acendia uma fogueira mágica que ardia
vigorosamente com as chamas da mortalidade. Com cuidado, colocava o bebé no centro
da fogueira e, a cada noite que passava, um pouco mais da sua mortalidade ia sendo
queimada. Ele acabaria por poder viver para sempre.
Enquanto esperava que aquele processo se completasse, ísis transformava-se num
pássaro e voava em redor do pilar que continha o corpo de Osíris dentro da arca
dourada.
Intrigada e preocupada com os rumores das visitas secretas da ama à sala, a rainha
Athenais entrou na sala uma noite. Gritou aterrorizada ao ver o seu filho, que
parecia estar no meio das chamas. Retirou-o de lá e
- Então uma pessoa não devia roubar aquilo que pertence a um homem se o seu filho
ainda for vivo! - exclamou ela. - Será que isso inclui o trono do Egipto? Tu
próprio te condenaste, com as tuas palavras, irmão. O trono pertence a Hórus, e
sabe-lo bem!
Ísis informou os outros deuses que Seth confessara, mas nem assim ele desistiu.
Alguns dizem que foi o próprio Osíris, agora Senhor dos Mortos, que acabou por
obrigar os deuses a decidir a favor do seu filho e a colocá-lo no trono. Havia
demónios no seu reino que apenas eram leais a Osíris - não a Rã - e ele ameaçou
libertá-los na Terra, se o assunto não fosse resolvido.
Outras versões dizem que a decisão final coube a Neith. Neith era mãe de Rã, o que
fazia dela a mãe do próprio criador. Ela ordenou que Hórus fosse coroado rei.
Senão, faria com que os céus tombassem sobre a Terra, provocando o fim do mundo.
Depois de oitenta anos de luta, Hórus e Seth fizeram as pazes. Hórus governou um
país satisfeito durante muitos anos e foi ele o antepassado de todos os faraós que
se lhe seguiram.
Durante algum tempo, Rã esteve na Terra, tendo tomado uma das suas muitas formas,
de modo a poder viver no
seio do seu próprio povo. Foi bastante venerado e
respeitado, até finalmente ter começado a envelhecer. E
de aspecto, Rã já não era o grande deus todo-poderoso que fora outrora. Seria ele
realmente o senhor de todos os deuses, o deus
da luz e da saúde? Não tinha um ar muito saudável. Os seus ossos
eram como a prata, a pele de ouro e o cabelo da cor de lápis-lazúll -
um azul-escuro que fazia lembrar às pessoas o cabelo grisalho de um velho.
Em breve, o respeito das pessoas foi desaparecendo e, passado algum tempo, essa
falta de respeito transformou-se em zombaria.
- Porque devemos respeitá-lo? - perguntavam. - Daqui a
pouco, ele desaparece. Porque temos de o honrar desta forma?
Rã ficou furioso quando ouviu a forma como era tratado pelas pessoas que ele
próprio criara. Diz a lenda que os primeiros seres humanos nasceram das lágrimas
que ele chorou; no entanto, agora, os seres humanos tratavam-no como se ele não
fosse mais impor ante nas
suas vidas que um mero pedaço de terra.
Muitos humanos conspiravam abertamente contra ele.
Vamos destruir este velho deus para poder decidir o nosso
proprio destino - disseram. Como crianças rebeldes que se voltam
contra o próprio pai, os humanos tornaram-se os piores traidores.
Rã convocou o deus Nun, pois fora das antigas águas de Nun que o próprio Rã
nascera.
- Muitos dos humanos que eu criei sentem agora por mim um grande desprezo - contou
ele a Nun. - Tenciono destruí-los, mas quero pedir
primeiro a tua opinião. Achas correcto um tamanho castigo?
Os seres humanos nasceram das tuas lágrimas - disse Nun. - Não
dizes que a tua filha Hátor é o teu "Olho"? Ela não vê por ti e relata aquilo
que vê?
- Sim - anuiu Rã. - Continua.
- Então não achas que devia ser o teu olho a limpar as tuas lágrimas... a destruí-
los por ti? - sugeriu Nun.
- Sim! - exclamou Rã, furioso. - Mandarei Hátor matar as pessoas
mal-agradecidas que criei... todas elas, até à última, mulheres e
crianças.
Rã ordenou a Sliu, Tefnut, Geb e Nut que fossem em segredo ao seu
palácio. Também enviou uma mensagem especial à sua filha Hátor,
informando-a de que tinha de a incumbir de uma missão importante.
Em breve, todos chegaram ao palácio, mas era dificil manter em segredo uma reunião
tão importante de deuses e deusas. Correu a notícia
de que Rã mandara reunir as suas tropas.
Os homens e as mulheres que haviam falado mal dele abertamente
sentiram medo. Alguns abandonaram os seus lares e as suas famílias e
foram esconder-se nos desertos da Terra Vermelha.
- Tenciono destruir aqueles que se viraram contra mim - anunciou
Rã aos deuses. - O seu tempo na Terra está a chegar ao fim.
- Toda a humanidade, ou só aqueles que te traíram@ - perguntou um
deus.
- Todos! - exclamou Nun. - Em breve iriam virar-se contra Rã, por isso é melhor
acabarmos já com eles!
- Sim! - concordou Rã, cheio de ódio. Como podiam as pessoas
ousar falar dele como se ele fosse um velho caquéctico? Ele era o criador.
Dera-lhes vida... pelo que podia facilmente tirá-la. - Cabe-te a ti fazer
isso, filha - disse ele a Hátor. - Tu tomas multas formas. Muitos
conhece m-te pela tua bondade, como deusa da Lua, ou pela tua cabeça de
vaca e olhos meigos, mas quero que assumas a tua forma mais terrível...
Transforma-te numa leoa e desmembra-os!
O castigo de Rã foi rápido e terrível. A sua filha, Hátor, agora transformada numa
leoa feroz, começou a perseguir os traidores. Gostava bastante de os matar com as
suas temíveis garras e de lhes arrancar a pele e os ossos com os dentes medonhos.
Em breve começara a gostar do sabor do sangue, e era-lhe indiferente quem com-
ia ou matava - homens, mulheres ou crianças, inocentes Ou culpados. Não fazia
diferença. A sua missão era destruir a raça humana e ela adorava matar.
Depois de um dia cheio de mortes, regressou ao palácio do pai. Estava ex austa e
tinha o pêlo sujo do sangue das vítimas. -O pai deu-lhe as boas-vindas e disse-lhe
que fosse descansar.
Por dentro, Rã sentia-se atormentado. Agora que as mortes tinham começado, estava
arrependido. Talvez fossejusto destruir os traidores, mas sentira-se atormentado
com os gritos dos moribundos inocentes. Tinham chegado até ele as orações dos seus
fiéis seguidores, mas ainda assim ele permitira que a sua filha os matasse devido
ao seu gosto por sangue - um gosto que ele próprio fomentara com as ordens que lhe
dera. A morte não era solução. Não criara a raça humana para que agora a
destruísse.
No entanto, Rã não podia voltar atrás com a sua palavra. Numa altura em que as
pessoas - e talvez alguns deuses e deusas - haviam começado a duvidar da sua força
e do seu poder absoluto, não podia dar-se ao luxo de mostrar fraqueza ou indecisão.
Dera a Hátor as suas ordens e não podia voltar atrás. Teria de arranjar forma de
salvar o que restava da humanidade enquanto Hátor dormia.
Rã sabia que não podia perder tempo. Nessa noite, chamou os seus mensageiros.
- Corram mais depressa que as sombras até ao Assuão e tragan-me Ocre
- ordenou ele, informando-os da enorme quantidade que Pretendia- (O ocre é uma
espécie de terra mui 'to vermelha. Era muitas vezes usada em tintas.)
caçar, Hátor chegou ao local onde terminara no dia anterior. À sua frente
estava uma enorme poça, que parecia cheia de sangue humano.
Deliciada, começou a bebê-lo, tal como um gato bebe leite. Era bom. Bebeu mais. Só
que não sabia que aquilo não era sangue, mas sim cerveja vermelha... e, deusa ou
não deusa, depois de ter bebido tanta cerveja, ficou embriagada e cheia de sono.
Pouco depois, Hátor desistiu da missão de destruir a raça humana. Não tinha vontade
de matar nem de beber sangue. Só lhe apetecia... dormir... Cambaleando sobre as
suas enormes patas, Hátor regressou ao palácio com
um sorriso na sua cara de felino.
- Olá, filha - saudou-a Rã, e Hátor pousou a cabeça no seu colo. Deixou de pensar
em mortes e dormiu um sono profundo. Rã acariciou o seu pêlo, satisfeito. A sua
honra fora salva e a humanidade também.
Às vezes, quando o Nilo transborda, a água molha a terra ocre e
fica vermelha. Talvez Rã tivesse ido buscar ali a sua ideia. Ou talvez tenha feito
com que isso acontecesse para não nos esquecermos de que ele podia facilmente ter-
nos destruído.
"Então a mão de um ladrão é assim", pensou a Princesa. Apertou-a com fOrÇa e Chamou
os guardas.
Quando eles entraram na sala a correr, o astuto ladrão já tinha desaparecido. E a
princesa desatara aos gritos. Segurava uma mão humana, mas na extremidade do braço
não havia mais nada! Não era o seu braço que o ladrão estendera sob a capa. Fora
suficientemente inteligente para perceber logo que aquilo era uma armadilha, mas
não quisera perder a oportunidade de contar a sua história!
Rampsinito ficou tão impressionado e espantado com a volta que os acontecimentos
tinham levado que anunciou que perdoava ao ladrão e lhe dava uma grande recompensa
se ele se entregasse. O ladrão acreditou nele e o faraó cumpriu a sua palavra.
O ladrão inteligente recebeu ainda mais recompensas. Não só recebeu a mão da
princesa em casamento como foi feito ministro. E porque não? Aflinal, era um dos
homens mais inteligentes do Egipto!
Esta lenda inclui um conto dentro de outro conto. Começa com um barco a regressar
ao Egipto, depois de uma missão na Núbia. A missão é comandada por um
emissário e destina-se a trazer riquezas ao faraó. A missão foi mal sucedida e o
emissário sabe que o faraó
não aceita de ânimo leve uma derrota.
O
emissário encontrava-se sozinho na proa do navio a observar as estrelas quando um
dos marinheiros veio ter com ele.
O que se passa, senhor? - perguntou o marinheiro.
O emissário olhou para o marinheiro, que era, tal como ele, um oficial bem
respeitado na corte do faraó.
- Esta missão foi um desastre - respondeu ele com um suspiro.
- Amanhã terei de enfrentar o faraó com pouco ou nada para lhe mostrar.
- Um desastre? - perguntou o marinheiro. - Não pode chamar-lhe isso. Não perdemos
ninguém no mar nem nenhum homem morreu em terra. Isso vale alguma coisa, não acha?
- Acho que o faraó não vai ser dessa opinião - retorquiu o emissário com um aperto
no coração.
O marinheiro sorriu.
- As coisas nem sempre acabam como se espera - disse ele. Veja o meu exemplo. Sabe
que sou um cortesão respeitado, mas nem sempre assim foi. Outrora, não passava de
um pobre marinheiro e, como se não bastasse, fiz parte de uma expedição que foi um
verdadeiro desastre.
"Confesso que estava demasiado assustado para responder. Atirei-me para o chão,
pondo-me à mercê dela. Que mais poderia eu fazer? Antes de perceber o que estava a
acontecer, a cobra agarrara-me com as suas mandíbulas. Tive a certeza de que iria
comer-me, mas sentia-me paralisado pelo terror, não conseguindo implorar
misericórdia ou gritar por ajuda. Contudo, em vez de me fazer mal, ela levou-me
para o seu covil.
"Ali, pousou-me no chão e perguntou-me pela segunda vez: "_ Como vieste aqui parar,
pequenote? - Havia uma certa ternura na voz da cobra gigante e, daquela vez, reuni
toda a coragem para responder. Falei-lhe da viagem às minas, da terrível tempestade
e dos cento e dezanove homens que se tinham afogado.
"Então fiz uma descoberta espantosa. A enorme criatura era meiga. Disse-me que eu
não devia ter medo, mas sim dar graças por ter sido salvo.
"- Tiveste razão em agradecer aos deuses - disse ela. - Eles decidiram salvar-te
das águas para que pudesses viver aqui comigo durante quatro meses. Depois desse
tempo, serás salvo pela tripulação de um barco que vai passar por aqui. Levar-te-ão
de volta para o Egipto e é aí que vais morrer, de velhice.
"Claro que fiquei admirado, e também aliviado, pois, como sabe, morrer longe do
Egipto e da família significa que os preparativos e as
cerimônias não podem ter lugar, e que o nosso espírito não alcança o Reino dos
Mortos. Mas eu continuava triste por causa da morte dos meus colegas marinheiros.
"A cobra gigante compreendeu os meus sentimentos. Aproximou a cabeça da minha, a
sua língua bifurcada a entrar e a sair enquanto falava.
"- Eu sei o que é perder uma pessoa que nos é chegada, pequenote -
disse ela com um ar muito triste. - Agora estou sozinha nesta ilha, mas nem sempre
foi assim. A minha família costumava Partilhar comigo este paraíso, os meus irmãos,
irmãs, a minha mulher e os meus filhos. Éramos ao todo setenta e cinco, e a nossa
vida era cheia de felicidade. Mas, um dia, tudo terminou. Uma estrela-cadente
tombou dos céus e matou-os todos. Durante bastante tempo, desejei também ter sido
engolida pelas chamas. Sem eles, sentia-me desesperada e sozinha. Partilho da tua
dor.
Não vi ali fantasmas, apenas beleza. Creio que era antes um local
encantado... Então, tal como a cobra havia previsto, depois de terem
passado quatro meses, vi um barco no horizonte. Creio que a cobra se
serviu dos seus poderes para o aproximar da costa, onde eu lhe fiz sinal e
reconheci a tripulação.
"Embora me sentisse feliz por regressar a casa e à minha família, tive
multa pena de deixar para trás a cobra com escamas de ouro e lápis-lazúli.
"- Adeus, pequenote - disse a cobra. - Não te esqueças de mim.
"Não posso negar que senti um nó na garganta quando aceitei os
presentes que ela me deu. Eram tesouros de todos os tipos, desde especiarias raras
a jóias, passando por óleos e animais. Beijei o chão diante
da cobra e prometi-lhe que um dia regressaria.
"- Nunca voltarás a encontrar este sítio - anunciou ela. - Quando te fores embora,
ele cobrir-se-á de água.
"Depois, fez outra profecia. Disse que eu regressaria a casa são e salvo
dali a dois meses. Despedimo-nos e eu levei os meus presentes para o navio.
"Quando cheguei ao Egipto, fui com a tripulação até ao palácio do faraó. Dei-lhe os
presentes que a nobre cobra me oferecera. Também
Ísis era a deusa da fertilidade e da vida. Era a senhora da magia e mulher de
Osíris, Senhor dos Mortos. Era mais esperta do que muitos deuses e deusas, mas
desejava o maior poder de todos -
o poder de Rã.
deus do Sol, Rã, tinha multas formas diferentes e cada uma delas possuía um nome
diferente. Estes nomes eram usados nas orações e nos louvores, por todo o Egipto.
Eram invocados para o honrar e para celebrar a sua importância e o seu poder.
Excepto um nome. Esse nome era secreto, conhecido apenas pelo próprio deus. Fora-
lhe dado no princípio dos tempos - pois fora ele que criara o tempo - e encontrava-
se bem escondido no seu interior.
O nome secreto de Rã era a chave do seu poder. Conhecer o nome secreto era ter o
controlo do mais poderoso de todos os deuses. ísis queria esse nome.
Poucos estavam a salvo da magia de ísis, mas essa magia não tinha qualquer efeito
em Rã, o criador, o maior de todos os deuses. Então, se não podia usar a sua magia,
como poderia ísis obter o nome? Através da astúcia?
Embora fosse todo-poderoso, Rã não parecia Já ser o deus magnífico que fora no
início. O seu corpo estava velho e frágil e, embora ele continuasse a ser a maior
força da Terra, a sua pele mostrava-se flácida e, por vezes, babava-se pelo canto
da boca.
de Rã, e elogiaram Ísis pela sua perícia em curar o deus. Ela sabia que seria
perigoso declarar-se melhor que o deus. os Outros virar-se-iam contra ela, e Ísis
não desejava isso. Não, usaria o conhecimento de forma sensata e
servir-se-ia do nome quando precisasse de ajuda. Se alguma vez quisesse que
Rã lhe desse alguma coisa, ele teria de ceder.
Rã, de novo saudável e tão - jovem como no princípio dos tempos,
subiu a bordo da sua barca de milhões de anos e continuou a sua viagem pelos céus.
Satisfeita pelo facto de os seus planos teren sido bem sucedidos, ísis viu o deus
do Sol partir. Sabia que, um dia, usaria o none secreto de Rã para ajudar o seu
filho Hórus. Ísis faria tudo para que, no futuro, Hórus fosse tão Poderoso quanto
Rã.
.O INDICE REMISSIVO
Ámon, rei dos deuses 5 Antigo Egipto, povo do 2 Anúbis, deus dos mortos 5, 17
Athenais, rainha de Biblo 14-16 Áton, o deus criador
Bastet, a deusa-mãe 5
cobra, mitos da 38-4O, 44-5 criação, mitos da 4
deuses e deusas 4-5
ver também nos nomes individuais ex: ísis, Osíris, Rã
Egipto, o país 2-3 emissário, um oficial do faraó 37, 41 escrita 2, 3
faraó, mito do 31-5 faraós 2
Geb, a própria Terra 5
Flátor, filha de Rã 5, 26-9 hieréglifos 2-3 Hórus, filho de Osíris e ísis 3, 5, 19-
23, 47 humanidade, sua destruição, por Rã 25-9
ísis, deusa da fertilidade 5, 7-11, 22-3
descobre o nome secreto, de Rã 43-7 procura Osíris 13-18
Ka, ilha de 4O
Maat, deusa da justiça 45
marinheiro, mito do 37-41 Melcarte, rei de Biblo 14, 16
naufrágio, mito do 37-41 Néfitis, mulher de Seth 17 Neith, mãe de Rã 23 Nilo, rio 2
Nun, um deus 25-6 Nut, deusa do céu 5
ocre, terra muito vermelha 27-8 Osíris, senhor dos mortos 5
morte de 7-11 procura de 13-18
papiro 2 pirâmides 2
Rã, o deus do Sol 3, 4, 7, 17, 2O
destrói a humanidade 25-9 nome secreto de, 43-7 Rampsinito, um faraó rico 31-5
Reis, vale dos 2, 3
Sekhmet, filha de Rã 5 Seth, deus do caos 5, 8-11, 16-17, 19-23 Shu, pai de Nut 5,
19 Sol, deuses do 4
ver também Rã sumo sacerdote, servidor de Rã 28
tamargueira 14, 15 Teflaut, uma deusa da Lua 5 Terra Negra 2, 4 Tutankamon 3
wedjat, olho 3
Primeira edição publicada na Grã-Bretanha
em 1999 por Belitha Press Limited, Londres Copyright O neste formato Belitha Press
Ud. 1999
Belitha Press 1999
Copyright de texto O Philip Ardagh 1999 Copyright de ilustração O Belitha Press
1999 Copyright C Círculo de Leitores 1999
Título original: Ancient Egyptian Myths & Legends Responsável pelo texto: Stephanie
Bellwood Maquetista: Jarme Asher Consultora: Liz Bassant Responsável pela colecção:
Mary-Jane Wilkins Tradução: João Brito
Impresso e acabado para Círculo de Leitores por Printer Portuguesa
Casais de Mem Martins, Rio de Mouro em Dezembro de 1999 Número de edição: 4721
Depósito legal número 143 323/99 ISBN 972-42-2148-2