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Mitos e Lendas Egípcias - PHILIP ARDAGH

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MITOS e LENDAS EGÍPCIAS

CONTADAS POR PHILIP ARDAGH


ILUSTRADAS PORDANUTA MAYER
MITO ou LENDA?
DIVINDADES Do ANTIGO EGIPTO
O ASSASSíNIO DE Um DEUS
À PROCURA DE OSíRIS
A LUTA PELO TRONO
O FIM DA HUMANIDADE
O FARAó E o LADRÃO
NAUFRAGADOS NA ILHA DE KA
O NOME SECRETO DE RÁ
ÍNDICE REMISSIVO
EDITORIAL EsTAmPA

MITO ou LENDA?
Muito antes de as pessoas saberem ler ou escrever, as histórias eram transmitidas
oralmente. De cada vez que eram contadas, mudavam um pouco, acrescentando-se uma
nova personagem aqui e uma mudança na trama acolá.
Os mitos e as lendas nasceram dessas histórias em constante mutação.
O QUE É UM MITO? Um mito é uma história tradicional que não se
baseia em algo que realmente aconteceu e, normalmente, fala de seres sobrenaturais.
Os mitos são inventados, mas ajudam a explicar os
costumes locais ou os fenômenos naturais.
O QUE É UMA LENDA? A lenda assemelha-se muito ao mito. A diferença está no facto de
a lenda poder basear-se num acontecimento real ou numa
pessoa que realmente existiu. O que não significa que a história não tenha mudado
ao
longo dos anos.
ANTIGO EGIPTO
O Egipto era origimariamente constituído por dois países. Há cerca de 5OOO anos,
por volta de
3000 a. C., esses países tornaram-se um só. Nos
3000 anos seguintes, o Egipto foi um
dos países mais ricos e mais
poderosos do mundo.
O olho wedjat simbolizava o olho
dos deuses Rã e Hórus. Segundo o
mito, o olho de Hórusfoi arrancado, mas, como por milagre, voltou a crescer. O olho
wedjat era
tido como um amuleto da sorte.
O VALE Do NILO
A maior parte do Egipto era conhecida como Terra Vermelha. Era o deserto quente e
seco, e
poucas pessoas o habitavam. Quase todos os
egípcios viviam na Terra Negra, no vale do rio
Nilo, Sempre que o rio transbordava, a terra
ficava mais fértil e mais escura, razão pela qual recebeu esta denominação.
PIRÂMIDES E FARAóS
O Egipto é famoso pelas suas pirâmides, que ainda se mantêm de pé nos nossos dias.
Eram
os túmulos dos antigos governantes, às vezes
chamados faraós. As pessoas acreditavam na
qualidade divina dos faraós. Os últimos foram sepultados nas colinas rochosas ou em
túmulos
subterrâneos num local chamado vale dos Reis.

A ESCRITA ANTIGA Os antigos Egípcios cobriam os seus


monumentos de hieróglifos, uma linguagem escrita formada por letras e símbolos.
Muitas vezes, estas letras eram esculpidas na pedra, e ainda hoje podem ser vistas.
Muitas histórias eram escritas em papiro - uma espécie de papel feito de juncos
entrelaçados. Chegou até nós um número surpreendente de papiros.
DECIFRAR O CóDIGO Só na década de 2O do século passado é que os
peritos conseguiram decifrar os hieróglifos egípcios. Antes dessa altura, os
historiadores baseavam-se nos registos escritos de outras línguas, tal como o grego
antigo. Os antigos Gregos tinham registos muito precisos das crenças dos antigos
Egípcios.
As zonas habitadas pelos antigos Egípcios localizavam-se na Terra Negra, nos vales
férteis do rio Nilo. Este encontrava-se rodeado por desertos a Terra Vermelha.
UMA LENDA MODERNA Os mitos e as lendas deste livro são todas do Antigo Egipto.
Existe uma outra lenda egípcia famosa, mas moderna - a maldição de Tutankámon. O
túmulo de Tutankamon, um jovem rei do Antigo Egipto, foi descoberto no vale dos
Reis em 1922. A busca foi financiada por um homem chamado Lord Carnarvon. Começou a
correr o boato de que o túmulo estava amaldiçoado. Segundo esta lenda moderna,
todas as luzes se apagaram no Cairo no momento em que Lord Carnarvon morreu e, em
Inglaterra, o seu cão morreu também.

DIVINDADES Do ANTIGO EGIPTO os mitos e as lendas dos antigos Egípcios foram criados
a
partir de muitos credos diferentes. Cada aldeia e cidade
adorava os seus próprios deuses e deusas. A popularidade de
alguns espalhou-se, e mais tarde as histórias desses deuses
fundiram-se para formar aquilo que conhecemos como
mitologia do Antigo Egipto.
MUITOS DEUSES, A MESMA FUNÇÃO Uma das consequências do facto de os antigos
Egípcios adorarem muitos deuses é que muitos
destes tinham os mesmos deveres. Por exemplo, havia muitos deuses do Sol. Cada deus
era
adorado por um grupo diferente de pessoas e
nenhuma dessas pessoas acreditava em todos os deuses. Mais tarde, Rã tomou-se
conhecido como deus do Sol e todos os demais deuses do Sol foram considerados meras
manifestaçoes de Rã. os diferentes deuses fundiram-se num Só.
Em MARCHA o comércio deve ter desempenhado um
papel importante na divulgação dos mitos e
das lendas. Dado que as pessoas das diferentes partes do Egipto viajavam pela Terra
Negra a vender coisas, provavelmente partilhavam as suas histórias e as suas
crenças. As pessoas começaram a ouvir falar
de diferentes deuses, deusas, mitos e lendas e assimilaram-nos.
A CRIAÇÃO Até uma coisa tão importante corno a criação da
Terra e do povo que a habitava era contada em
muitas versões diferentes. Urna das primeiras, originária da cidade de Heliópolis,
dizia que Áton era o criador. Mais tarde, quando Rã se tornou o
rai is mais poderoso de todos os deuses egípcios, ele próprio se tornou o
criador e - nessa forma era conhecido como Rá-Áton.
NOMES MAIS CONHECIDOS No Antigo Egipto eram adorados centenas de deuses e deusas.
Segue-se uma lista dos
mais importantes.
RÁ O deus do Sol. Aparecia sob multas
formas. Muitas vezes representado corri
cabeça de falcão. Tornou-se o deus mais
importante. Os deuses com que ele se
fundiu viam acrescentada ao seu nome a palavra Rã (por exemplo Rá-Áton e Ámon-Rá).

ÁTON (mais tarde RÁ-ÁTON) "O Tudo".


O deus criador. Pai de Sliu e Tefinit.
SHU Pai de Nut, a deusa do céu. Era seu
dever mantê-la acima de Geb, a Terra, para que os dois nunca se juntassem.
TEI`NUT Irmã e mulher de Sliu. Uma deusa da Lua. Mãe de Nut e Geb.
NUT A deusa do céu, sustentada pelo pai, Sliu. Mulher de Geb. Mãe de Osíris, ísis,
Seth e Néftis.
GEB A própria Terra. Todas as plantas e
árvores cresciam nas suas costas. Marido de Nut. Pai de Osíris, ísis, Seth e
Néftis.
OSíRIS Senhor dos mortos. Irmão e
marido de ísis. Pai de Hórus. Representado multas vezes com um corpo mumificado,
envolto em ligaduras.
íSIS Deusa da fertilidade. Senhora da magia. Irmã e mulher de Osíris. Mãe de Hórus.
Tornou-se a mais poderosa de todas as deusas e deuses.
SETH Deus do caos e da confusão. Filho mau de Geb e Nut. Lutou contra Hórus
para governar o Egipto.
HóRUS Filho de ísis e Osíris. Tinha
cabeça de falcão e corpo de humano. Lutou contra Seth para governar o Egipto.
ANúBIS Deus dos mortos, com cabeça de chacal. Assistente de Osíris.
ÁMON (mais tarde ÁMON-RÁ) Rei dos deuses na mitologia posterior, mais tarde
considerado outra manifestação de Rã.
BASTET A deusa-mãe representada por vezes como uma gata. Filha de Rã, irmã de Hátor
e Seklimet.
HÁTOR Adorada como vaca. Por vezes, tomava a forma de uma leoa enfurecida.
Filha de Rã, irmã de Bastet e Sekhmet.
SEKl-IMET Filha de Rã, com cabeça de leoa, irmã de Bastet e Hátor.
NOTA Do AUTOR
Os mitos e as lendas de diferentes culturas são contados de diferentes maneiras. O
objectivo deste livro é contar novas versões destas velhas histórias e não tentar
apresentá-las da forma como teriam sido contadas, segundo a tradição. Podem ser
lidas isoladamente, ou umas a seguir às outras, como uma história. Espero que
gostem delas e que este livro vos faça querer saber mais sobre os antigos Egípcios.

Rã, o poderoso deus do Sol, fez de Osíris e ísis o rei e a rainha do Egipto. Embora
fossem deuses, andavam entre os
humanos espalhando sabedoria e compreensão. Tudo teria
corrido bem, se o irmão deles, Seth, não tivesse sentido
ciúmes do seu poder.
O
povo do Egipto amava o seu rei e a sua rainha. Osíris e ísis tornavam agradável a
vida do seus súbditos. Ensinavam ao povo egípcio a melhor forma de tratar da terra
e levavam ao seu país a
lei e a ordem, para que todos pudessem ser tratados com justiça. Em troca, os
Egípcios tomavam conhecimento dos deuses e da forma como deveriam adorá-los. As
pessoas eram felizes, os deuses eram felizes e o Egipto prosperava.
Mas chegou uma altura em que Osíris decidiu que devia espalhar a
boa sorte por todos os países da Terra, não ficando apenas pelo Egipto.
- E necessário que os outros povos aprendam a tirar o melhor partido da sua terra e
a viver em paz e harmonia - disse ele um dia à mulher.
- Isso é verdade, irmão e marido - concordou ísis. - Enviemos
mensageiros ao estrangeiro para espalhar a nova sobre o poder e a
sabedoria de Rã.
Osíris abanou a cabeça.
- Eu próprio tenho de fazer essa viagem - disse ele. - Se as
pessoas virem que é um deus que lhes traz essas dádivas de conhecimento e
prosperidade estarão mais dispostas a aceitá-las e a melhorar as suas vidas.

Então e o nosso Povo, Os Egípcios? Quem olhará por eles enquanto


1 franzindo o sobrolho. estiveres ausente? - perguntou ísis,
Osíris pousou a mão no ombro da mulher.
- Ora, claro que serás tu, irmã. És a minha rainha. És muito amada e
respeitada, tal como eu. - Sorriu. - Deves ficar aqui e governar o nosso
reino na Minha ausência.
- Muito bem - anuiu ísis- Sabia que Osíris tinha razão. Era justo que os deuses
partilhassem a sua sabedoria com os povos da Terra. E Osíris, o
rei do Egipto, era a escolha ideal para uma tarefa tão importante.
ísis estava certa de que conseguiria governar o Egipto na sua ausência, tal
como ele sugerira. Mas havia algo que a incomodava. Alguém, na verdade.
Esse alguém era o irmão de ambos, Seth. Seth nunca dissera a Osíris ou a
ísis que queria governar o Egipto - que achava injusto que o irmão tivesse
sido coroado rei, e não ele. Mas ísis sabia. Conhecia muito bem Seth. Ouvia a
inveja na voz do irmão quando ele falava. Apercebia-se de que ele tentava controlar
a sua ira por causa do que considerava ser uma grande injustiça.
Assim, depois dos preparativos, Osíris saiu do reino do Egipto e
começou a sua viagem pelo estrangeiro. A viagem foi longa, visitando país
após país. Entretanto, no seu palácio, ísis aguardava que Seth avançasse e
tentasse apoderar-se do trono... mas nada aconteceu.
Seth passava a maior parte do tempo no palácio com os cortesãos.
Sempre que via ísis, tratava-a com o respeito devido a uma rainha. Era bem-educado
e multas vezes simpático, mas ísis não confiava nele.
O que ísis não sabia era que o ardiloso Seth travara amizade com
alguns cortesãos descontentes. Embora a vida possa ser boa, há sempre
pessoas gananciosas que querem mais. O Egipto era próspero. A vida era
boa. Porém, estes homens egoístas queriam ser ainda mais prósperos e
viver ainda melhor.
Seth explorou esta fraqueza. Fez destes cortesãos idiotas e gananciosos
os seus aliados.
- Quando for rei do Egipto, não irei esquecer os meus amigos. Quem me ajudar agora
será ricamente recompensado mais tarde - sussurrou
Seth aos conspiradores num canto escuro, longe de ísis e da sala do trono.
- E quero mesmo dizer ricamente.

- Mas quem é que diz que o povo irá obedecer-te, se te apoderares do trono enquanto
o teu irmão, o rei, estiver ausente? - perguntou um dos cortesãos.
- Não irei apoderar-me do trono - respondeu Seth. - Iremos esperar a ocasião.
Aguardaremos que o meu irmão regresse e dar-lhe-emos as boas-vindas de braços
abertos.
- E depois?
- Depois? - Seth sorriu. - Depois executaremos o meu plano!
Quando o rei Osíris regressou finalmente, todo o reino festejou. ísis, a sua
rainha, foi a primeira a saudá-lo.
- Bem-vindo a casa, marido e irmão! - exclamou ela. - Tive muitas saudades tuas.
- Todos tivemos - disse Seth, saindo de trás do trono da irmã. Um sorriso maldoso
pairou nos seus lábios, mas Isis pareceu ser a única a reparar nele. E não
tencionava permitir que Seth estragasse uma ocasião tão feliz.
Houve danças e acrobacias, celebrações e canções. Os festejos duraram vários dias.
Osíris estava de novo ao lado da mulher e no selo do seu povo. E Seth continuava a
não atacar. Estava à espera... à espera que surgisse a sua oportunidade.
E ela acabou por surgir, na forma de um convite para um grande banquete que iria
ter lugar no palácio real. Naquela noite, a rainha ísis não iria estar presente.
Era o momento que Seth aguardara com tanta
paciência. Sem os olhos atentos da irmã para o vigiarem, poderia pôr em prática o
seu plano.
Ao banquete assistiu o pequeno grupo de cortesãos descontentes que se
haviam tornado aliados de Seth. Antes de este chegar, puseram-se a falar de uma
arca fabulosa que Seth recebera.
- Dizem que foi feita com as melhores madeiras pelos artesãos mais hábeis - afirmou
um deles.
- Ouvi dizer que tem tanto ouro que brilha como o Sol -
acrescentou outro.

Disseram-me que era mais bela do que muitos dos tesouros do próprio rei - murmurou
outro suficientemente alto para que as suas
palavras chegassem aos ouvidos de Osíris.
Quando Seth entrou na sala do banquete - propositadamente tarde para que a sua
entrada fosse grandiosa - todos falavam desta fabulosa arca dourada.
- É verdade que possuis um tesouro tão belo? - perguntou Osíris.
- Sim, irmão - respondeu Seth. - Depois de comermos darei
ordens para que o tragam ao palácio.
Então começou a grande festa. Mais tarde, quando o banquete estava a chegar ao fim,
um grupo de criados entrou com a arca dourada. Na sala ouviu-se um murmúrio de
espanto e de deleite. A arca era realmente bela.
- Tenho uma ideia! - exclamou Seth. - Vejamos se alguém cabe na
minha arca... com a cabeça a tocar num lado e os pés no outro. Quem lá
couber melhor, pode ficar com a arca!
Porém, o que os convidados, incluindo o rei Osíris, não sabiam Iera
que a ideia de Seth fazia parte de um plano cuidadosamente elaborado.
Tal como haviam ensaiado, um dos conspiradores avançou e deitou-se
dentro da arca aberta, enquanto alguns faziam fila atrás dele, e outros encorajavam
os restantes a juntarem-se a eles. Alguns eram demasiado altos
para a arca, tendo de dobrar os joelhos para lá caberem. Outros eram demasiado
baixos.
Por fim, a única pessoa que ainda não tinha entrado na arca era o
próprio rei Osíris.
- Irmão! - chamou Seth. - Não te juntas à brincadeira? Osíris hesitou por um
momento.
- Porque não? - respondeu ele então, com uma gargalhada. Entrou na arca e deitou-
se. Ficou admirado ao ver que cabia lá dentro na perfeição. Isso não foi surpresa
para Seth. Ordenara aos artesãos que construíssem a arca de acordo com as suas
indicações - para que ela pudesse ser o caixão ideal para o irmão.
circundados Com os conspiradores
em volta da arca para que os outros convivas
não vissem o que estava a acontecer, Seth fechou a tampa da arca,
trancou-a e selou-a com chumbo derretido. Os seus cúmplices afastaram-se
então, permitindo que todos vissem um Seth sorridente ao lado da arca.

- Não há vencedor - anunciou ele. - A arca continua a ser minha. Com isto, os seus
aliados gananciosos agarraram na arca e levaram-na para fora da sala. Por dentro, a
arca não tinha ar e estava tão bem selada como um túmulo. O seu tamanho ideal não
permitia que Osíris dobrasse as pernas e batesse com os pés na tampa, ou levantasse
os braços e batesse nos lados. Estava encurralado. Os seus gritos de socorro foram
abafados e ninguém os ouviu. Então, o pouco ar que havia dentro da arca esgotou-se
e, incapaz de respirar, o rei do Egipto morreu. Sem levantar um dedo contra Osíris,
o seu irmão Seth assassinara-o.
A coberto da noite, o caixão falso foi levado para junto do Nilo e
atirado ao rio. Na manhã seguinte, Seth anunciou a trágica morte do irmão, e
autoproclamou-se rei. Nesse mesmo dia foi coroado.
Quando a rainha ísis tomou conhecimento da morte do marido, ficou muito triste e
começou a chorar. Depois, vestiu as roupas de viúva e cortou uma madeixa do seu
cabelo. Mas o seu período de luto iria ter de esperar. Precisava de saber de que
forma o rei Osíris
morrera e o que acontecera ao seu corpo.

Afastada do seu próprio palácio pelo novo rei, o seu malvado irmão Seth, ísis andou
de aldeia em aldeia tentando descobrir a verdade do que acontecera ao
seu marido assassinado. Corriam muitos boatos, mas
ela soube finalmente a verdade por um grupo de
crianças. As crianças contaram à antiga rainha do Egipto que haviam visto
uns homens lançarem uma arca no Nilo. Era uma arca muito bela - viram-na bem à luz
dos archotes - e tinham ouvido os homens vangloriarem-se de que lá dentro se
encontrava o corpo do rei morto, Osíris. Quando os homens se foram embora, as
crianças tinham saído das sombras e visto a arca a ser arrastada rio abaixo pela
corrente.
- Então ainda há esperança! - exclamou ísis, sentindo-se invadida por uma grande
alegria. Correu junto à margem do rio, seguindo a corrente, e desejando com todas
as suas forças que a arca
tivesse encalhado na margem. Viajou até chegar ao mar, mas não viu sinais dela. No
entanto, não estava disposta a desistir.
Ísis viajou para norte ao longo da costa e ouviu dizer que algumas pessoas tinham
avistado uma estranha e bela arca a flutuar no mar.
Nunca chegou a vê-la com os seus próprios olhos, mas tinha a certeza de que a iria
encontrar em breve.
A deusa viajou por vários países, seguindo os relatos da arca, até ter chegado ao
reino de Biblo. Falava-se não de uma arca dourada no mar, mas sim de uma fabulosa
tamargueira que crescera da noite para o dia na praia.

ísis descobriu que o rei Melcarte de Biblo mandara cortar a


tamargueira e levá-la para a cidade, a fim de a utilizar como pilar no seu
palácio. Estava convencida de que a árvore mágica devia ter algo a ver
com o caixão de Osíris, e correu até ao palácio.
Quando a deusa chegou, sentou-se num pátio junto à entrada e
esperou. É claro que podia ter usado os seus poderes para roubar o pilar e
descobrir o seu segredo. Mas não quis fazê-lo. O seu irmão Seth já abusara
suficientemente do poder. Ela iria aguardar e procurar outra forma de entrar no
palácio.
Não teve de esperar muito. Algumas criadas da rainha Athenais de Biblo saíram do
palácio e viram ísis. Pela sua beleza e pelo seu aspecto
calcularam que ela não era dali; por isso, correram a perguntar-lhe de onde era. A
sua senhora adorava saber coisas de longe, e a mulher misteriosa podia ter notícias
para lhe dar.
ísis explicou-lhes que viera do Egipto. Depois ofereceu-se para pentear o cabelo de
uma das criadas segundo a última moda. As suas
mãos foram tão rápidas e tão hábeis que a rapariga ficou encantada com o resultado,
e pouco depois ísis tinha penteado o cabelo de todas as criadas.
- Puseste algum óleo? - perguntou uma delas. - Que cheiro
delicioso é este?
Não se tinham apercebido de que ísis, enquanto as penteava, lançara o
seu bafo sobre cada rapariga e - como era deusa e uma senhora da magia
- o divino cheiro do seu hálito ficara agarrado à pele delas.
Quando chegou a altura de regressarem ao palácio, as jovens criadas tiveram pena de
partir.
- Obrigada! - agradeceram com um sorriso, correndo para a entrada.
A rainha Athenais ficou encantada com os novos penteados das suas
criadas, mas foi o cheiro que a encantou ainda mais.
- Deve ser um daqueles magníficos novos perfumes egípcios de que tanto se fala -
comentou ela. - Mandem chamar imediatamente essa mulher!

Assim, Ísis, disfarçada de mulher simples, foi levada à presença da rainha que lhe
pediu que penteasse e perfumasse o seu cabelo. ísis assim fez, e Athenais ficou
encantada. Pediu a ísis que permanecesse ali.
Nessa noite, Isis foi até à sala onde se encontrava o pilar. Este era feito de um
único tronco de uma árvore incrível que nascera na praia. Quando encostou a mão à
madeira macia, percebeu de imediato o que acontecera.
O caixão do seu marido fora ter à praia e ficara preso nas raízes de uma jovem
tamargueira. Embora morto, alguns dos poderes divinos de Osíris tinham de alguma
forma escapado da arca selada, fazendo com que a pequena árvore se transformasse
noutra gigantesca, tendo no meio o deus no seu caixão... O corpo de Osíris estava
dentro daquele pilar! A chorar, ísis voltou para a cama.
Dali a pouco tempo, a rainha Athenais de Biblo afeiçoara-sejá muito a Ísis, e esta
à rainha e ao seu filho bebé, de quem agora cuidava. ísis contentava-se em ficar
ali no palácio, perto do corpo do seu amado marido. De dia, desempenhava o papel de
ama dedicada do príncipe. À noite era uma viúva que chorava a morte do marido no
seu caixão em forma de pilar.
À medida que o tempo ia passando, ísis começou a amar tanto o príncipe que não
podia sequer pensar que ele iria morrer, tal como Osíris. Todas as noites levava o
rapazinho adormecido até à sala do pilar. Acendia uma fogueira mágica que ardia
vigorosamente com as chamas da mortalidade. Com cuidado, colocava o bebé no centro
da fogueira e, a cada noite que passava, um pouco mais da sua mortalidade ia sendo
queimada. Ele acabaria por poder viver para sempre.
Enquanto esperava que aquele processo se completasse, ísis transformava-se num
pássaro e voava em redor do pilar que continha o corpo de Osíris dentro da arca
dourada.
Intrigada e preocupada com os rumores das visitas secretas da ama à sala, a rainha
Athenais entrou na sala uma noite. Gritou aterrorizada ao ver o seu filho, que
parecia estar no meio das chamas. Retirou-o de lá e

segurou-o bem junto de si no momento em que ísis passava de andorinha


a ser humano.
- Feiticeira! - gritou a rainha. - Não te aproximes de mim! Percebendo o medo da
rainha, a deusa apressou-se a acalmá-la.
Explicou-lhe que as chamas não magoavam a criança mas que, como ele fora arrancado
da fogueira mágica, não poderia viver para sempre.
Explicou então quem era e porque estava ali.
Aliviada com o facto de o filho estar ileso, mas triste por ter quebrado o feitiço
que lhe podia ter permitido viver para sempre, Athenais perguntou de que forma
poderia servir a deusa ísis.
ísis pediu-lhe autorização para retirar dali o pilar, e Athenais concordou
prontamente. A deusa arrancou o tronco e tirou do seu interior o caixão.
O rei Melcarte e a rainha Athenais deram à deusa o melhor barco da
sua frota e uma tripulação que o dirigisse. Na manhã seguinte, ísis despediu-se
deles e começou a sua viagem de regresso com Osíris na arca.
De novo em terra, ísis ordenou à tripulação que transportasse a arca até
ao deserto, onde ninguém pudesse vê-Ia. Depois, mandou levá-la para os
pântanos de Buto, no caso de a notícia da sua descoberta chegar aos
ouvidos de Seth. De vez em quando, abria o caixão e olhava para o corpo
de Osíris. Ele parecia tão calmo como se estivesse a dormir, e não morto.
Certa noite, enquanto ísis se encontrava a dormir, Seth apareceu no
pântano. Os seus espiões andavam por toda a parte, e fora informado do local onde a
arca estava escondida.
Levantando a tampa, olhou para o corpo do irmão que tinha assassinado.
- Pareces tão perfeito - desdenhou. - Tão completo. E se a magia
da tua querida irmã for suficientemente forte para te dar vida? Podias sair
daí... Tenho de me certificar de que isso nunca irá acontecer.
Assim, retirou o corpo do caixão e cortou-o em catorze bocados. Depois espalhou os
bocados por todo o Egipto.

- Agora vamos ver se a minha irmã consegue pôr-te de novo inteiro!


- exclamou ele com um sorriso maldoso nos lábios cruéis.
Quando ísis descobriu que o corpo do marido tinha desaparecido, pôs-se a gritar
cheia de angústia e desespero.
Os seus gritos eram tão fortes e tão cheios de dor que chegaram aos ouvidos da irmã
de ísis, Néftis, a mulher de Seth. Néftis teve tanta pena de ísis que decidiu
ajudá-la a encontrar os bocados do corpo do irmão de ambas.
Esta tarefa terrível foi bastante demorada, tendo levado vários anos, mas, por fim,
todos os bocados foram reunidos. Alguns dizem que Anúbis, o deus com cabeça de
chacal, aJudou as irmãs. Depois, usando a sua magia, ísis fez com que o corpo de
Osíris voltasse de novo ao que era.
No entanto, ísis não foi capaz de lhe dar vida. Em vez disso, Rã, o deus do Sol,
fez do espírito de Osíris o senhor dos mortos no reino do Oeste. Daí em diante,
quando as pessoas morriam, os seus espíritos passavam a ser julgados e a ter a
oportunidade de gozar a vida depois da morte.

Apesar da morte de Osíris, Rã permitiu que ísis tivesse um


filho do rei. O seu nome era Hórus e, quando cresceu, ele
reclamou para si o direito de governar o Egipto como
herdeiro do seu pai. Seth estava furioso. Tivera de matar o seu irmão Osíris para
poder ficar com o trono, e agora o filho de Osíris queria roubar-lho... Bom, com
certeza não tencionava desistir sem dar luta. Se houvesse necessidade, talvez
matasse também aquele rapaz. Tentara matar Hórus quando ele era bebé, e não
conseguira, mas não iria falhar uma segunda vez. Entretanto, tentaria resolver
aquela disputa de outra forma.
O assunto foi apresentado ao tribunal dos deuses. Todos se puseram do lado de
Hórus.
- Ele tem direito ao que reclama - afirmou Sliu que, como filho mais velho de Rã,
presidia ao tribunal.
- A justiça está do lado dele - concordou outro.
- Seth apoderou-se do trono à força - disse outro. - Hórus tem direito a ele.
- Então estamos todos de acordo - afirmou Sliu. Os outros deuses assentiram. -
Tomem todos conhecimento que, por decisão unânime...
- Unânime? - interveio Seth. - Isso significa que todos aqui estão contra mim?
Sliti olhou em volta para os deuses e deusas reunidos.
- Sim - respondeu.
- Mas não sou eu um deus? - perguntou Seth, esboçando um
sorriso cruel.

- Com certeza. Um dos que se serve da força e da traição... Seth voltou a


interromper.
- Então, eu sou um deus e digo que o trono é meu... o que significa que a decisão
não é unânime.
- Tu não podes ter voz - interveio Shu. - És um dos arguidos. Foi decidido...
Como é que ousam decidir! - bramou uma voz. E desta vez não foi Seth, mas sim o
próprio Rã. - Por que motivo nenhum de vocês me consultou? Não é verdade que eu sou
o criador? Não é verdade que sou Khepri de manhã, Rã à tarde e Áton à noite? Não é
verdade que sou o moldador das montanhas? Não é verdade que sou o senhor dos
deuses?
-S... sim - respondeu Sliu, um pouco a medo.
- E no entanto não pensam em consultar-me neste assunto? -
perguntou Rã.
- Mas é tão óbvio que Hórus tem direito ao trono! - protestou ísis.
- Como se a minha irmã... a mãe dele... fosse uma testemunha imparcial! - queixou-
se Seth. - Ela esteve sempre contra mim!
- É verdade o que Seth diz - declarou Rã, ainda zangado por ter sido posto de
parte. Para ele devia ser também evidente que Seth não tinha razão, mas parecia
decidido a aborrecer os outros. - Iremos decidir isto de outra forma!
- Como? - perguntou ísis, temerosa. O seu filho estivera prestes a conseguir aquilo
a que tinha direito por nascimento. Agora, tudo corria mal. - Como podes entregar o
trono do Egipto ao tio enquanto o filho e herdeiro ainda é vivo? - insistiu.
- Como é que o trono pode ser retirado a uma pessoa mais velha e entregue a um
jovem? - retorquiu Rã.
e A discussão continuou, com inutos Juízes escolffidos e
irritados por ambas as facções. No fim, Seth e Hórus decidiram de que forma o
assunto iria ser resolvido. Tencionavam defrontar-se várias vezes, e o vencedor
seria o governante do Egipto.
Durante uma luta terrível, Seth e Hórus transformaram-se em hipopótamos e lutaram
no Nilo. As suas enormes bocarras ficaram presas
uma na outra. ísis, que assistia a tudo na margem, teve medo que eles se afogassem
e lançou uma seta a Seth.
Infelizmente para Hórus, a mãe tinha má pontaria. A seta feriu Hórus
na perna. Isto colocou Seth em vantagem. Se ísis não tivesse voltado a
disparar, atingindo Seth, poderia ter sido o fim para Hórus.
Seth contorceu-se agonizante, a seta profundamente enfiada na carne.
- Não sou teu irmão? - gritou ele. - Como foste capaz de me fazer isto?
- O meu pai era teu irmão! - retorquiu Hórus. - Lembra-te do que lhe fizeste!
Isis, porém, teve pena de Seth e utilizou a sua magia para tirar a seta da
sua carne. O primeiro confronto chegara ao fim, sem um claro vencedor.
De outra vez, Seth encontrou Hórus a dormir junto a um oásis e
arrancou-lhe um olho - há quem diga que foram os dois - mas, graças a Hátor, a sua
mulher, conseguiu reavê-lo e recuperou a visão.
E assim as lutas continuaram. Por vezes, Hórus servia-se da astúcia em vez da
força. Numa dessas ocasiões, insistiu para que fizessem uma corrida de barco. Mas
aquela corrida não estava destinada a ser uma corrida vulgar.
- Os barcos têm de ser feitos de pedra - disse Hórus.
- Mas isso é impossível! - protestou Seth. - Os barcos de pedra afundam-se!
- Se eu consigo fazer um barco de pedra, com certeza que o grande Seth também
consegue - retorquiu Hórus cheio de astúcia.
- Muito bem - disse Seth, aceitando o desafio -, mas tens de me prometer que não
usaras a magia da tua mãe. Esta luta é entre nós os dois.
- Tens a minha palavra! - ripostou Hórus, furioso com a sugestão de poder sequer
pensar em pedir ajuda a ísis.
Assim, Seth afastou-se e foi construir um barco de pedra. Quando chegou à beira da
água, o barco de Hórus já estava no rio. Parecia ter sido
w
esculpido numa única rocha, mas flutuava na perfeição. O seu peso assemelhava-se ao
de um simples tronco.
Seth ficou impressionado, e empurrou o seu barco para o Nilo.
O barco afundou-se com ele lá dentro.

- Ganhei! - exclamou Hórus, tentando não se rir.


Soltando um bramido de fúria, Seth voltou a transformar-se em hipopótamo e atirou-
se a Hórus. Quando as suas poderosas mandíbulas se
fecharam em torno do barco, ele descobriu que este não era feito de pedra
- era um barco de madeira coberto de gesso para imitar pedra.
Os deuses que estavam a observar tudo também viram isso.
- Parem já tudo! - ordenou Rã, e Seth teve de obedecer. Este último desafio foi
invalidado, tal como todos os outros. Ambos tinham feito
batota: Hórus com o barco e Seth ao transformar-se em hipopótamo.
Isís usou a magia de várias maneiras para ajudar o seu filho Hórus a recuperar o
trono que ela sabia pertencer-lhe por direito. Uma vez,
Transformou-se numa bela mulher e vestiu-se de viúva. Sentou-se num local
onde sabia que Seth passava. Quando este se aproximou, ela estava a chorar.
- Porque estás tão triste? - perguntou ele, fascinado com a sua beleza.
- O meu marido morreu e o nosso gado foi levado - gemeu ela.
- Conta-me o que aconteceu - pediu Seth, pondo um braço sobre os
ombros dela. Era realmente a mulher mais bela que ele alguma vez vira.
- O meu marido era pastor e, quando ele morreu, o gado e a nossa
casa passaram a pertencer ao nosso filho - chorou ísis, disfarçada. - Mas
agora um desconhecido apareceu e tirou-nos tudo. Diz que tudo lhe pertence.
Seth olhou para a mulher. Achou estranho que um simples pastor pudesse ter casado
com uma mulher tão bela. Uma mulher daquelas era
digna de casar com um deus. Como é que um desconhecido podia ter feito
uma coisa daquelas?
- Como ousa um desconhecido apoderar-se do que pertencia ao teu
marido, se o filho deste ainda é vivo? - perguntou ele, furioso.
ísis riu-se e voltou a mudar de forma - desta vez transformando-se num pássaro que
voou para uma árvore e piou, deliciada com a armadilha
em que o irmão fora cair.

- Então uma pessoa não devia roubar aquilo que pertence a um homem se o seu filho
ainda for vivo! - exclamou ela. - Será que isso inclui o trono do Egipto? Tu
próprio te condenaste, com as tuas palavras, irmão. O trono pertence a Hórus, e
sabe-lo bem!
Ísis informou os outros deuses que Seth confessara, mas nem assim ele desistiu.
Alguns dizem que foi o próprio Osíris, agora Senhor dos Mortos, que acabou por
obrigar os deuses a decidir a favor do seu filho e a colocá-lo no trono. Havia
demónios no seu reino que apenas eram leais a Osíris - não a Rã - e ele ameaçou
libertá-los na Terra, se o assunto não fosse resolvido.
Outras versões dizem que a decisão final coube a Neith. Neith era mãe de Rã, o que
fazia dela a mãe do próprio criador. Ela ordenou que Hórus fosse coroado rei.
Senão, faria com que os céus tombassem sobre a Terra, provocando o fim do mundo.
Depois de oitenta anos de luta, Hórus e Seth fizeram as pazes. Hórus governou um
país satisfeito durante muitos anos e foi ele o antepassado de todos os faraós que
se lhe seguiram.

Durante algum tempo, Rã esteve na Terra, tendo tomado uma das suas muitas formas,
de modo a poder viver no
seio do seu próprio povo. Foi bastante venerado e
respeitado, até finalmente ter começado a envelhecer. E
de aspecto, Rã já não era o grande deus todo-poderoso que fora outrora. Seria ele
realmente o senhor de todos os deuses, o deus
da luz e da saúde? Não tinha um ar muito saudável. Os seus ossos
eram como a prata, a pele de ouro e o cabelo da cor de lápis-lazúll -
um azul-escuro que fazia lembrar às pessoas o cabelo grisalho de um velho.
Em breve, o respeito das pessoas foi desaparecendo e, passado algum tempo, essa
falta de respeito transformou-se em zombaria.
- Porque devemos respeitá-lo? - perguntavam. - Daqui a
pouco, ele desaparece. Porque temos de o honrar desta forma?
Rã ficou furioso quando ouviu a forma como era tratado pelas pessoas que ele
próprio criara. Diz a lenda que os primeiros seres humanos nasceram das lágrimas
que ele chorou; no entanto, agora, os seres humanos tratavam-no como se ele não
fosse mais impor ante nas
suas vidas que um mero pedaço de terra.
Muitos humanos conspiravam abertamente contra ele.
Vamos destruir este velho deus para poder decidir o nosso
proprio destino - disseram. Como crianças rebeldes que se voltam
contra o próprio pai, os humanos tornaram-se os piores traidores.
Rã convocou o deus Nun, pois fora das antigas águas de Nun que o próprio Rã
nascera.

- Muitos dos humanos que eu criei sentem agora por mim um grande desprezo - contou
ele a Nun. - Tenciono destruí-los, mas quero pedir
primeiro a tua opinião. Achas correcto um tamanho castigo?
Os seres humanos nasceram das tuas lágrimas - disse Nun. - Não
dizes que a tua filha Hátor é o teu "Olho"? Ela não vê por ti e relata aquilo
que vê?
- Sim - anuiu Rã. - Continua.
- Então não achas que devia ser o teu olho a limpar as tuas lágrimas... a destruí-
los por ti? - sugeriu Nun.
- Sim! - exclamou Rã, furioso. - Mandarei Hátor matar as pessoas
mal-agradecidas que criei... todas elas, até à última, mulheres e
crianças.
Rã ordenou a Sliu, Tefnut, Geb e Nut que fossem em segredo ao seu
palácio. Também enviou uma mensagem especial à sua filha Hátor,
informando-a de que tinha de a incumbir de uma missão importante.
Em breve, todos chegaram ao palácio, mas era dificil manter em segredo uma reunião
tão importante de deuses e deusas. Correu a notícia
de que Rã mandara reunir as suas tropas.
Os homens e as mulheres que haviam falado mal dele abertamente
sentiram medo. Alguns abandonaram os seus lares e as suas famílias e
foram esconder-se nos desertos da Terra Vermelha.
- Tenciono destruir aqueles que se viraram contra mim - anunciou
Rã aos deuses. - O seu tempo na Terra está a chegar ao fim.
- Toda a humanidade, ou só aqueles que te traíram@ - perguntou um
deus.
- Todos! - exclamou Nun. - Em breve iriam virar-se contra Rã, por isso é melhor
acabarmos já com eles!
- Sim! - concordou Rã, cheio de ódio. Como podiam as pessoas
ousar falar dele como se ele fosse um velho caquéctico? Ele era o criador.
Dera-lhes vida... pelo que podia facilmente tirá-la. - Cabe-te a ti fazer
isso, filha - disse ele a Hátor. - Tu tomas multas formas. Muitos
conhece m-te pela tua bondade, como deusa da Lua, ou pela tua cabeça de
vaca e olhos meigos, mas quero que assumas a tua forma mais terrível...
Transforma-te numa leoa e desmembra-os!

O castigo de Rã foi rápido e terrível. A sua filha, Hátor, agora transformada numa
leoa feroz, começou a perseguir os traidores. Gostava bastante de os matar com as
suas temíveis garras e de lhes arrancar a pele e os ossos com os dentes medonhos.
Em breve começara a gostar do sabor do sangue, e era-lhe indiferente quem com-
ia ou matava - homens, mulheres ou crianças, inocentes Ou culpados. Não fazia
diferença. A sua missão era destruir a raça humana e ela adorava matar.
Depois de um dia cheio de mortes, regressou ao palácio do pai. Estava ex austa e
tinha o pêlo sujo do sangue das vítimas. -O pai deu-lhe as boas-vindas e disse-lhe
que fosse descansar.
Por dentro, Rã sentia-se atormentado. Agora que as mortes tinham começado, estava
arrependido. Talvez fossejusto destruir os traidores, mas sentira-se atormentado
com os gritos dos moribundos inocentes. Tinham chegado até ele as orações dos seus
fiéis seguidores, mas ainda assim ele permitira que a sua filha os matasse devido
ao seu gosto por sangue - um gosto que ele próprio fomentara com as ordens que lhe
dera. A morte não era solução. Não criara a raça humana para que agora a
destruísse.
No entanto, Rã não podia voltar atrás com a sua palavra. Numa altura em que as
pessoas - e talvez alguns deuses e deusas - haviam começado a duvidar da sua força
e do seu poder absoluto, não podia dar-se ao luxo de mostrar fraqueza ou indecisão.
Dera a Hátor as suas ordens e não podia voltar atrás. Teria de arranjar forma de
salvar o que restava da humanidade enquanto Hátor dormia.
Rã sabia que não podia perder tempo. Nessa noite, chamou os seus mensageiros.
- Corram mais depressa que as sombras até ao Assuão e tragan-me Ocre
- ordenou ele, informando-os da enorme quantidade que Pretendia- (O ocre é uma
espécie de terra mui 'to vermelha. Era muitas vezes usada em tintas.)

Enquanto os mensageiros cumpriam a sua missão secreta e Hátor dormia - continuando


transformada em leoa e sonhando com a morte -
Rã mandou chamar o sumo sacerdote da cidade de Heliópolis.
O sumo sacerdote lançou-se aos pés do deus.
- Em que posso servir-te, poderoso Rã? - perguntou ele. Observara as mortes e sabia
que o criador estava furioso com aqueles que criara.
Rã apontou para uma pilha de cestos que os mensageiros lhe haviam trazido.
- Leva aqueles cestos e manda misturar o ocre em sete mil jarros de
cerveja. Esta tarefa muito importante tem de ser concluída antes de amanhecer.
- Assim será feito - disse o sumo sacerdote, afastando-se, cheio de
pressa. Com a ajuda de um exército de escravas, a terra vermelha foi
metida nos jarros de cerveja, tornando o líquido mais espesso e vermelho.
A seguir, Rã conduziu o sumo sacerdote e as muitas escravas que transportavam os
sete mil jarros. A ninguém era permitido falar ou fazer
barulho. Este exército silencioso, cumprindo sem saber uma missão que iria salvar a
própria humanidade, avançava sem ruído através da noite. Por
fim, chegaram ao local que Rã tinha escolhido.
Ao nascer do dia, a um sinal do seu deus e senhor, as escravas verteram
o conteúdo dos jarros sobre a terra, e em breve se formou uma grande poça de
espesso líquido vermelho.
- O vosso trabalho está terminado - disse Rã, virando-se e começando a afastar-se.
- Não falem disto a ninguém.
Nessa manhã, Hátor acordou com as forças revigoradas. Como continuava sob a forma,
de uma leoa assustadora, estava ansiosa por obedecer às ordens do pai e matar mais
seres humanos. Isso ensiná-los-ia a
não falarem de Rã num tom desrespeitoso... embora as pessoas não pudessem ensinar
esta lição aos filhos. Em breve, todos os seres humanos
estariam mortos!
O cheiro do sangue humano já estava entranhado nas suas narinas e Hátor sentia-se
impaciente por começar. Correndo com a velocidade de uma leoa a

caçar, Hátor chegou ao local onde terminara no dia anterior. À sua frente
estava uma enorme poça, que parecia cheia de sangue humano.
Deliciada, começou a bebê-lo, tal como um gato bebe leite. Era bom. Bebeu mais. Só
que não sabia que aquilo não era sangue, mas sim cerveja vermelha... e, deusa ou
não deusa, depois de ter bebido tanta cerveja, ficou embriagada e cheia de sono.
Pouco depois, Hátor desistiu da missão de destruir a raça humana. Não tinha vontade
de matar nem de beber sangue. Só lhe apetecia... dormir... Cambaleando sobre as
suas enormes patas, Hátor regressou ao palácio com
um sorriso na sua cara de felino.
- Olá, filha - saudou-a Rã, e Hátor pousou a cabeça no seu colo. Deixou de pensar
em mortes e dormiu um sono profundo. Rã acariciou o seu pêlo, satisfeito. A sua
honra fora salva e a humanidade também.
Às vezes, quando o Nilo transborda, a água molha a terra ocre e
fica vermelha. Talvez Rã tivesse ido buscar ali a sua ideia. Ou talvez tenha feito
com que isso acontecesse para não nos esquecermos de que ele podia facilmente ter-
nos destruído.

Esta história assustadora fala-nos de uma sala trancada contendo um tesouro, um


corpo sem cabeça e um bandido
muito esperto. Embora nunca tenha existido um faraó chamado Rampsinito, há quem
acredite que esta história
pode ter sido baseada em factos reais. R
ampsinito era imensamente rico, até pelos padrões dos faraós, e o seu maior receio
era que os tesouros que possuía fossem roubados. Nem as pirâmides - os túmulos dos
seus antepassados -
estavam a salvo dos ladrões, apesar das suas armadilhas e passagens secretas. Por
conseguinte, Rampsinito decidiu que iria mandar construir um edificio de pedra para
guardar os seus bens. Mandou chamar um bom arquitecto, ordenou-lhe que desenhasse
uma casa e estudou os planos até ao ínfimo pormenor antes de autorizar o inicio das
obras.
Só os homens de maior confiança foram postos a trabalhar no projecto e todos eram
vigiados pelo próprio arquitecto. Quando o edificio ficou completo, Rampsinito fez
uma última inspecção. Era constituído por uma única sala. As paredes, o tecto e o
chão eram de pedra maciça. Não haviajanelas e existia apenas uma única Porta.
Satisfeito, Rampsinito mandou encher o edificio com os seus tesouros e pôs guardas
à porta. Depois fechou com o seu selo a entrada, para que ninguém lá pudesse entrar
sem o quebrar, revelando assim o seu crime.
O tempo foi passando e, embora fossem efectuados outros roubos pelo reino, os
tesouros do faraó permaneceram a salvo.

Só depois de o arquitecto que construíra esta caixa de pedra gigante ter


morrido é que coisas estranhas começaram a acontecer.
Numa ocasião em que Rampsinito passou pelos guardas, quebrou o
selo da porta, entrou na sala para admirar o seu tesouro e sentiu que algo estava
diferente. Não sabia se faltava alguma coisa. O seu tesouro possuía
tantas coisas - estatuetas, amuletos, perfumes, móveis de ouro e prata -
amontoadas pela sala que era impossível saber onde estava tudo. Mas havia qualquer
coisa estranha.
Os guardas insistiram, dizendo que ninguém passara por eles, e
recordaram ao faraó que o selo não fora quebrado até ele próprio ter
entrado. Intrigado, Rampsinito colocou um novo selo na porta e foi tratar
dos seus assuntos.
Uma semana mais tarde, quando o faraó voltou a entrar na sala, não teve dúvidas de
que desta vez faltavam coisas. Havia espaços vazios. Fora
roubado! Sentindo-se tão intrigado como furioso, Rampsinito espalhou armadilhas
pelo tesouro, voltou a selar a sala e duplicou o número de
guardas à porta. Agora iria apanhar o espertinho do ladrão!
Na manhã seguinte, o faraó deparou com uma cena inesperada. Um homem fora na
verdade apanhado numa das armadilhas. As mandíbulas de
metal tinham-no preso pela perna, pelo que ele não pudera fugir... mas
não era essa a única razão por que este homem não podia ir a lado
nenhum. O ladrão capturado não tinha cabeça.
- Como é que pode isto ser possível? - bramiu o faraó. - Ninguém pode ter entrado
aqui através de um túnel escavado no chão. O chão é de
pedra, bem como as paredes e o tecto. A porta estava selada e guardada... No
entanto, falta a cabeça deste homem e peças do meu tesouro!
Ordenou que o corpo fosse pendurado nos muros do palácio, como
aviso para outros ladrões que pudessem tentar roubar o seu tesouro. Isso
foi uma coisa muito má, pois até um ladrão tinha direito a um funeral
decente. Cabia aos deuses julgar o morto.

- Prestem atenção e vejam se alguém chora ao avistar o morto -


ordenou Rampsinito. - Podem ser os cúmplices ou os familiares do ladrão, e devem
ser trazidos à minha presença. Eu irei solucionar este mistério!
Assim, o corpo foi pendurado para que todos pudessem vê-lo. embora muita gente
ficasse horrorizada com a crueldade, ninguém chorou. Depois o corpo foi roubado.
O furto foi executado com uma grande ousadia. Começou quando um homem apareceu a
dizer que vinha entregar vinho ao palácio. O vinho era transportado em sacos de
pele de cabra no dorso dos seus burros, em vez de 'hab'tuais. Quando os burros
passaram pelos guardas, algumas nos arros 1
peles caíram ao chão, as rolhas saltaram e o vinho entornou-se. Os guardas
precipitaram-se para a frente, a fim de as agarrar, e o homem agradeceu-lhes por
terem salvado aquele vinho. Deu-lhes uma pele meio cheia, como forma de
agradecimento, e eles insistiram para que bebesse com eles.
Em breve, os guardas tinham bebido demasiado e, depois de muitas anedotas e de
multas gargalhadas, adormeceram. Foi nessa altura que o pretenso mercador de vinho
cortou a corda que prendia o corpo sem cabeça, o meteu às costas de um burro e
desapareceu na noite.
Quando o faraó Rampsinito foi informado do que acontecera, ficou furioso. Os
guardas tinham acordado com grandes dores de cabeça devido ao excesso de vinho...
mas essa dor não foi nada quando comparada com o castigo que receberam devido ao
seu descuido. Porém, apesar de tudo, Rampsinito não pôde deixar de admirar
secretamente este inteligente ladrão que parecia ir sempre um passo à frente.
Agora era a vez de o faraó ser astuto. Calculou que uma das coisas que um ladrão
esperto devia gostar de fazer, quase tanto como roubar, era vangloriar-se dos seus
roubos. De que valia cometer crimes ousados se não se podia contar nada a ninguém?
Assim, Rampsinito anunciou que daria a mão da sua filha ao homem que revelasse o
segredo mais astuto, independentemente da sua crueldade. Tinham apenas de visitar a
princesa e de lhe contar o segredo. Ela escolheria o vencedor, depois de ter ouvido
as confissões.

É claro que o faraó estava apenas interessado numa confissão, ou s . a, na do


ladrão. Combinaram que - se ele aparecesse - a filha o agarraria pela mão e
chamaria os guardas, que entrariam logo em acção.
É claro que o ladrão apareceu. Olhava, nervoso, para um lado e
para o outro e vinha coberto com uma grande capa. A história que tinha para contar
era de facto extraordinária.
- O meu pai foi o principal arquitecto do teu pai - explicou. -
Construiu a sala de pedra onde o teu pai guarda os seus tesouros.
Desenhou-a e controlou a sua construção, mas ninguém o controlava a elé. Uma das
pedras era, na realidade... duas, unidas de forma tão perfeita que ninguém
conseguia ver a junta. O meu pai contou o segredo ao meu irmão e a mim antes de
morrer. Nós descobrimos a pedra, dividimo-la em duas e rastejámos através do
buraco. - A princesa escutava-o, maravilhada. - Da primeira vez que o meu irmão e
eu
entrámos na sala, levámos apenas algumas coisas, para que ninguém desse por falta
de nada. À medida que o tempo foi passando, ficámos mais gananciosos, até o teu pai
ter posto lá as armadilhas - continuou o ladrão, com uma expressão cheia de
tristeza. - O meu irmão foi apanhado numa e partiu a perna. Teve imensas dores e
não havia
possibilidade de ele fugir. Insistiu para que eu lhe cortasse a cabeça. Preferia
morrer depressa do que em agonia... e, se eu levasse comigo a
cabeça do meu pobre irmão, ninguém poderia identificá-lo e vir atrás de
mim ou da minha família. - A filha de Rampsinito estava fascinada pela confissão do
ladrão. - Entreguei a cabeça à minha mãe e enterrámo-la - prosseguiu o ladrão. -
Mais tarde, fui buscar o corpo dele. já o juntámos à cabeça, e o meu irmão teve um
funeral digno. Bom, apesar de triste, não achas que foi a melhor confissão que já
ouviste até hoje?
- Oli, sim - respondeu a princesa com um sorriso, admirando a inteligência dele,
mas também feliz por imaginar a satisfação que o seu
pai iria ter ao apanhar aquele homem. - Dá-me a tua mão.
- Muito bem - concordou o homem. Por entre as pregas da capa apareceu um braço, e a
princesa agarrou na mão, que estava estranhamente fria.

"Então a mão de um ladrão é assim", pensou a Princesa. Apertou-a com fOrÇa e Chamou
os guardas.
Quando eles entraram na sala a correr, o astuto ladrão já tinha desaparecido. E a
princesa desatara aos gritos. Segurava uma mão humana, mas na extremidade do braço
não havia mais nada! Não era o seu braço que o ladrão estendera sob a capa. Fora
suficientemente inteligente para perceber logo que aquilo era uma armadilha, mas
não quisera perder a oportunidade de contar a sua história!
Rampsinito ficou tão impressionado e espantado com a volta que os acontecimentos
tinham levado que anunciou que perdoava ao ladrão e lhe dava uma grande recompensa
se ele se entregasse. O ladrão acreditou nele e o faraó cumpriu a sua palavra.
O ladrão inteligente recebeu ainda mais recompensas. Não só recebeu a mão da
princesa em casamento como foi feito ministro. E porque não? Aflinal, era um dos
homens mais inteligentes do Egipto!

Esta lenda inclui um conto dentro de outro conto. Começa com um barco a regressar
ao Egipto, depois de uma missão na Núbia. A missão é comandada por um
emissário e destina-se a trazer riquezas ao faraó. A missão foi mal sucedida e o
emissário sabe que o faraó
não aceita de ânimo leve uma derrota.
O
emissário encontrava-se sozinho na proa do navio a observar as estrelas quando um
dos marinheiros veio ter com ele.
O que se passa, senhor? - perguntou o marinheiro.
O emissário olhou para o marinheiro, que era, tal como ele, um oficial bem
respeitado na corte do faraó.
- Esta missão foi um desastre - respondeu ele com um suspiro.
- Amanhã terei de enfrentar o faraó com pouco ou nada para lhe mostrar.
- Um desastre? - perguntou o marinheiro. - Não pode chamar-lhe isso. Não perdemos
ninguém no mar nem nenhum homem morreu em terra. Isso vale alguma coisa, não acha?
- Acho que o faraó não vai ser dessa opinião - retorquiu o emissário com um aperto
no coração.
O marinheiro sorriu.
- As coisas nem sempre acabam como se espera - disse ele. Veja o meu exemplo. Sabe
que sou um cortesão respeitado, mas nem sempre assim foi. Outrora, não passava de
um pobre marinheiro e, como se não bastasse, fiz parte de uma expedição que foi um
verdadeiro desastre.

E assim começou a contar ao emissário a sua espantosa história.


- Foi a minha primeira viagem e estava cheio de orgulho por fazer parte de uma
tripulação tão boa - contou o marinheiro. - Éramos cento e vinte, e havíamos sido
todos escolhidos a dedo. O navio era enorme e os meus companheiros destemidos.
Sabiam tudo o que havia para saber sobre a arte de navegar. Se um marinheiro pode
sentir-se em segurança no mar, é junto de homens como eles.
"Como fui tolo em esquecer-me de que estávamos todos nas mãos
de Deus. O nosso navio atravessava o mar Vermelho, rumo às minas
reais de turquesas, quando o azar nos atingiu. O nosso navio foi
fustigado de todos os lados até que uma onda enorme, inimaginável na sua força e no
seu tamanho, nos cobriu e afogou todos a bordo, excepto
a mim.
"Essa onda que matou os meus companheiros pegou em mim e
atirou-me para a costa de uma ilha desconhecida. Gelado, ensopado e atordoado,
reuni todas as minhas forças e arrastei-me para a praia e para fora da água. Com um
último esforço, abriguei-me sob uma
pilha de madeira. Ali fiquei durante três dias e três noites.
"Por fim, acordei e arrastei-me para o interior da ilha, à procura de comida e de
água doce, para não morrer. Descobri que a ilha era um
paraíso. Assemelhava-se ao jardim mais luxuriante que possa imaginar. Estava
repleto de árvores, de relva e dos melhores frutos e legumes, havia aves e outros
animais e lagos de água fresca cheios de peixe. Preparei um
festim e depois queimei uma oferenda aos deuses, agradecendo-lhes terem-me salvo a
vida e levado para um local tão farto.
"Pouco depois, a terra sob os meus pés começou a tremer e ouvi um
ruído muito estranho. Uma cobra enorme, atraída pelo fumo, surgiu entre as árvores.
Era de uma beleza aterradora, comprida como uma dezena de
homens, com escamas de ouro e lápis-lazúli. Também tinha uma barba
como a dos deuses, tão comprida como eu! A cobra empinou-se, como se
estivesse prestes a atacar, e depois falou... sim, falou... perguntando-me como é
que eu fora parar à sua ilha.

"Confesso que estava demasiado assustado para responder. Atirei-me para o chão,
pondo-me à mercê dela. Que mais poderia eu fazer? Antes de perceber o que estava a
acontecer, a cobra agarrara-me com as suas mandíbulas. Tive a certeza de que iria
comer-me, mas sentia-me paralisado pelo terror, não conseguindo implorar
misericórdia ou gritar por ajuda. Contudo, em vez de me fazer mal, ela levou-me
para o seu covil.
"Ali, pousou-me no chão e perguntou-me pela segunda vez: "_ Como vieste aqui parar,
pequenote? - Havia uma certa ternura na voz da cobra gigante e, daquela vez, reuni
toda a coragem para responder. Falei-lhe da viagem às minas, da terrível tempestade
e dos cento e dezanove homens que se tinham afogado.
"Então fiz uma descoberta espantosa. A enorme criatura era meiga. Disse-me que eu
não devia ter medo, mas sim dar graças por ter sido salvo.
"- Tiveste razão em agradecer aos deuses - disse ela. - Eles decidiram salvar-te
das águas para que pudesses viver aqui comigo durante quatro meses. Depois desse
tempo, serás salvo pela tripulação de um barco que vai passar por aqui. Levar-te-ão
de volta para o Egipto e é aí que vais morrer, de velhice.
"Claro que fiquei admirado, e também aliviado, pois, como sabe, morrer longe do
Egipto e da família significa que os preparativos e as
cerimônias não podem ter lugar, e que o nosso espírito não alcança o Reino dos
Mortos. Mas eu continuava triste por causa da morte dos meus colegas marinheiros.
"A cobra gigante compreendeu os meus sentimentos. Aproximou a cabeça da minha, a
sua língua bifurcada a entrar e a sair enquanto falava.
"- Eu sei o que é perder uma pessoa que nos é chegada, pequenote -
disse ela com um ar muito triste. - Agora estou sozinha nesta ilha, mas nem sempre
foi assim. A minha família costumava Partilhar comigo este paraíso, os meus irmãos,
irmãs, a minha mulher e os meus filhos. Éramos ao todo setenta e cinco, e a nossa
vida era cheia de felicidade. Mas, um dia, tudo terminou. Uma estrela-cadente
tombou dos céus e matou-os todos. Durante bastante tempo, desejei também ter sido
engolida pelas chamas. Sem eles, sentia-me desesperada e sozinha. Partilho da tua
dor.

"Fiquei muito comovido com a história que aquela magnífica criatura


me contara. Todo o medo que eu sentia desapareceu.
"- Quando regressar ao Egipto, como tu previste, informarei o faraó
do teu esplendor e da tua bondade - disse eu. - Pedir-lhe-ei que te mande óleos
perfumados e tesouros exóticos.
"Mas a cobra riu-se. Sabia que eu era um pobre marinheiro, não um
homem abastado, e que não seria ouvido pelo faraó.
"- E o que faria eu com esses presentes? - perguntou então a cobra.
- Sou um príncipe, e esta ilha tem mais riquezas do que aquelas que o teu
faraó me poderia dar. Do que mais gosto é da tua companhia.
"Durante quatro meses, fomos os melhores companheiros. A cobra chamava à ilha a
ilha de Ka, e ka, como sabe, é o espírito que vive dentro
de nós. Mas não creio que ela quisesse dizer que era uma illa de espíritos
malditos.

Não vi ali fantasmas, apenas beleza. Creio que era antes um local
encantado... Então, tal como a cobra havia previsto, depois de terem
passado quatro meses, vi um barco no horizonte. Creio que a cobra se
serviu dos seus poderes para o aproximar da costa, onde eu lhe fiz sinal e
reconheci a tripulação.
"Embora me sentisse feliz por regressar a casa e à minha família, tive
multa pena de deixar para trás a cobra com escamas de ouro e lápis-lazúli.
"- Adeus, pequenote - disse a cobra. - Não te esqueças de mim.
"Não posso negar que senti um nó na garganta quando aceitei os
presentes que ela me deu. Eram tesouros de todos os tipos, desde especiarias raras
a jóias, passando por óleos e animais. Beijei o chão diante
da cobra e prometi-lhe que um dia regressaria.
"- Nunca voltarás a encontrar este sítio - anunciou ela. - Quando te fores embora,
ele cobrir-se-á de água.
"Depois, fez outra profecia. Disse que eu regressaria a casa são e salvo
dali a dois meses. Despedimo-nos e eu levei os meus presentes para o navio.
"Quando cheguei ao Egipto, fui com a tripulação até ao palácio do faraó. Dei-lhe os
presentes que a nobre cobra me oferecera. Também
Ísis era a deusa da fertilidade e da vida. Era a senhora da magia e mulher de
Osíris, Senhor dos Mortos. Era mais esperta do que muitos deuses e deusas, mas
desejava o maior poder de todos -
o poder de Rã.
deus do Sol, Rã, tinha multas formas diferentes e cada uma delas possuía um nome
diferente. Estes nomes eram usados nas orações e nos louvores, por todo o Egipto.
Eram invocados para o honrar e para celebrar a sua importância e o seu poder.
Excepto um nome. Esse nome era secreto, conhecido apenas pelo próprio deus. Fora-
lhe dado no princípio dos tempos - pois fora ele que criara o tempo - e encontrava-
se bem escondido no seu interior.
O nome secreto de Rã era a chave do seu poder. Conhecer o nome secreto era ter o
controlo do mais poderoso de todos os deuses. ísis queria esse nome.
Poucos estavam a salvo da magia de ísis, mas essa magia não tinha qualquer efeito
em Rã, o criador, o maior de todos os deuses. Então, se não podia usar a sua magia,
como poderia ísis obter o nome? Através da astúcia?
Embora fosse todo-poderoso, Rã não parecia Já ser o deus magnífico que fora no
início. O seu corpo estava velho e frágil e, embora ele continuasse a ser a maior
força da Terra, a sua pele mostrava-se flácida e, por vezes, babava-se pelo canto
da boca.

Na mente de ísis começou a formar-se uma ideia. A única maneira de


enganar Rã e fazê-lo revelar o seu nome era utilizar o poder do próprio deus e
virá-lo contra ele!
Uma manhã, ela juntou-se a Rã, enquanto ele passeava pela Terra, rodeado por um
grupo de outros deuses e deusas. Entre estes estavam Sliu, Tefnut, Seth, Sekhmet,
Hátor, Anúbis, Tot e Néftls.'
Rã já não via tão bem como dantes, e os seus passos também já não eram tão seguros.
Uma vez, quando se calou, uma gota da sua saliva
pingou até ao chão. Agora era a oportunidade de ísis. Uma gota da saliva do próprio
criador seria uma arma mais poderosa contra ele do que um
exército de mil homens!
Quando os outros avançaram, ísis ficou para trás e pegou cuidadosamente na terra
com a saliva do criador. Depois afastou-se, sem
ser vista, e regressou ao seu palácio. Longe dos olhares indiscretos, amassou a
terra macia até ela se ter transforrnado em barro e, enquanto trabalhava, ia
dizendo palavras mágicas.
Trabalhou durante toda a noite, murmurando os seus feitiços para que eles se
misturassem com o poder da saliva de Rã e com a terra. Com esse
barro fez uma cobra. Mas esta cobra não era uma estatueta. Estava viva.
Agora, só restava a ísis esperar.
Na manhã seguinte, Rã seguia pelo caminho habitual no seu passeio com os outros
deuses e deusas. Só que não sabia que ísis já ali estivera
antes dele e libertara a cobra.
De súbito, Rã sentiu uma picada no tornozelo. Soltou um grito. O que teria sido?
Nada do que ele criara podia magoá-lo, e ele era o criador de
todas as coisas. No entanto, a dor era terrível e ia-se alastrando pela perna. E
com a dor surgiu uma agonia interior.

- Fui envenenado! - exclamou ele, caindo. Os deuses e deusas que o acompanhavam


ficaram abismados. Era impensável verem o poderoso Rã tropeçar e cair. E era
impossível ter sido envenenado.
- Como é que isto pode ter acontecido? - perguntou um dos deuses. Maat, a deusa
alada da justiça, lançou-se para a frente e viu a cobra a desaparecer na erva alta.
Não podia acreditar nos seus olhos. Nenhuma cobra era capaz de envenenar o senhor
dos deuses.
- Ajudem-me! - suplicou Rã. - Estou a morrer! Estou a arder! Os de uses e deusas
tentaram ajudá-lo, um de cada vez, mas os seus feitiços e os seus poderes de nada
serviram contra aquela força desconhecida que ia sugando a vida a Rã.
Sabia-se que Ísis era mais esperta que mil homens e que a sua magia só era inferior
à de Rã. Era a úMica que poderia fazer qualquer coisa para salvar o deus do Sol, e,
por isso, mandaram-na chamar. Ele parecia ainda mais frágil e vulnerável ali
deitado, com a cabeça pousada no regaço dela. Mal sabiam os outros deuses que fora
ísis quem virara o poder de Rã contra ele próprio.
- O que aconteceu? - perguntou ela, fingindo estar chocada e não saber o que
acontecera. - Como pode o Senhor da Criação estar tão doente?
- Doente? Estou é a morrer! Fui mordido por uma serpente - disse o deus do Sol com
os dentes cerrados, enquanto tentava lutar contra a dor.
- Mas esta cobra não foi criada por mim. Há aqui tramóia.
- Não podes morrer, pai divino - declarou a deusa.
- Sinto-o... - gemeu Rã, contorcendo-se quando a dor aumentou. Na sua testa
surgiram gotas de suor.
- Eu posso salvar-te - disse Ísis -, mas preciso de saber o teu nome.
- Chamo-me Rã. Sou o criador dos céus e da Terra. De manhã, sou Khepri, um
escaravelho que veleja pelo céu na Barca dos Milhões de Anos, Rã, o Sol forte do
meio-dia, e Áton, o Sol no ocaso, à tarde...
- Fez uma pausa e contorceu-se de dores. - Sou o moldador das montanhas...
- Não é a esses nomes que me refiro, senhor - interrompeu ísis. -
Esses nomes são do conhecimento de todos. Se quiser salvar-te, tenho de saber o teu
nome secreto.

- Não posso dizê-lo a ninguém - gemeu Rã -, pois é nele que está


o meu poder!
- Sem o saber, não posso salvar-te, senhor - retorquiu ísis. - E não
posso deixar-te morrer. Tens de me dizer.
- Como poderá um segredo desses ajudar-me? - perguntou Rã, lutando contra a dor.
- Porque a única cura possível é haver alguém que te chame por esse nome - explicou
ísis. - Nenhum veneno pode fazer-te mal se fores
chamado pelo nome do poder máximo.
O 'veneno - proveniente de uma cobra criada a partir da própria saliva de Rã e com
o seu poder - corria agora pelas velas do deus. Ele ficou
cheio de tonturas e começou a ver tudo desfocado. Tinha a boca seca e a
voz áspera.
- Tenho de dizer-te - concordou ele, por fim. Reunindo todas as suas forças,
conseguiu sentar-se e dar uma ordem. - Deixem-nos! -
exclamou para o grupo de deusas e deuses ansiosos e, embora a sua voz
fosse fraca, ninguém ousou questioná-lo. Rã e ísis ficaram sozinhos.
- O meu nome secreto é o meu poder... e só o direi a ti.
Leitor, não posso dizer-te que nome era esse. Mas posso dizer-te que Rã o passou a
ísis e ela sentiu o seu corpo encher-se de um novo poder.
No Egipto há monumentos, chamados obeliscos, que apontam para o
céu. Cada um deles foi construído em memória de Rã e está coberto de hieróglifos
que louvam o deus do Sol e enumeram os seus muitos nomes. Há histórias de Rã
esculpidas em colunas e nas paredes dos túmulos. Há murais e papiros. Nenhum deles
- nem sequer um - revela o nome secreto de Rã. Continuou a ser um segredo entre o
deus do Sol e a senhora da magia. ,
Agora que ísis tinha o que queria, curou imediatamente Rã da picada da cobra. Mas
Rã ficou mais do que curado. Recuperou a glória perdida. Brilhou tal como brilhara
no início.
Os deuses e as deusas ficaram muito satisfeitos com o rejuvenescimento

de Rã, e elogiaram Ísis pela sua perícia em curar o deus. Ela sabia que seria
perigoso declarar-se melhor que o deus. os Outros virar-se-iam contra ela, e Ísis
não desejava isso. Não, usaria o conhecimento de forma sensata e
servir-se-ia do nome quando precisasse de ajuda. Se alguma vez quisesse que
Rã lhe desse alguma coisa, ele teria de ceder.
Rã, de novo saudável e tão - jovem como no princípio dos tempos,
subiu a bordo da sua barca de milhões de anos e continuou a sua viagem pelos céus.
Satisfeita pelo facto de os seus planos teren sido bem sucedidos, ísis viu o deus
do Sol partir. Sabia que, um dia, usaria o none secreto de Rã para ajudar o seu
filho Hórus. Ísis faria tudo para que, no futuro, Hórus fosse tão Poderoso quanto
Rã.

.O INDICE REMISSIVO
Ámon, rei dos deuses 5 Antigo Egipto, povo do 2 Anúbis, deus dos mortos 5, 17
Athenais, rainha de Biblo 14-16 Áton, o deus criador
Bastet, a deusa-mãe 5
cobra, mitos da 38-4O, 44-5 criação, mitos da 4
deuses e deusas 4-5
ver também nos nomes individuais ex: ísis, Osíris, Rã
Egipto, o país 2-3 emissário, um oficial do faraó 37, 41 escrita 2, 3
faraó, mito do 31-5 faraós 2
Geb, a própria Terra 5
Flátor, filha de Rã 5, 26-9 hieréglifos 2-3 Hórus, filho de Osíris e ísis 3, 5, 19-
23, 47 humanidade, sua destruição, por Rã 25-9
ísis, deusa da fertilidade 5, 7-11, 22-3
descobre o nome secreto, de Rã 43-7 procura Osíris 13-18
Ka, ilha de 4O
Maat, deusa da justiça 45
marinheiro, mito do 37-41 Melcarte, rei de Biblo 14, 16
naufrágio, mito do 37-41 Néfitis, mulher de Seth 17 Neith, mãe de Rã 23 Nilo, rio 2
Nun, um deus 25-6 Nut, deusa do céu 5
ocre, terra muito vermelha 27-8 Osíris, senhor dos mortos 5
morte de 7-11 procura de 13-18
papiro 2 pirâmides 2
Rã, o deus do Sol 3, 4, 7, 17, 2O
destrói a humanidade 25-9 nome secreto de, 43-7 Rampsinito, um faraó rico 31-5
Reis, vale dos 2, 3
Sekhmet, filha de Rã 5 Seth, deus do caos 5, 8-11, 16-17, 19-23 Shu, pai de Nut 5,
19 Sol, deuses do 4
ver também Rã sumo sacerdote, servidor de Rã 28
tamargueira 14, 15 Teflaut, uma deusa da Lua 5 Terra Negra 2, 4 Tutankamon 3
wedjat, olho 3
Primeira edição publicada na Grã-Bretanha
em 1999 por Belitha Press Limited, Londres Copyright O neste formato Belitha Press
Ud. 1999
Belitha Press 1999
Copyright de texto O Philip Ardagh 1999 Copyright de ilustração O Belitha Press
1999 Copyright C Círculo de Leitores 1999
Título original: Ancient Egyptian Myths & Legends Responsável pelo texto: Stephanie
Bellwood Maquetista: Jarme Asher Consultora: Liz Bassant Responsável pela colecção:
Mary-Jane Wilkins Tradução: João Brito
Impresso e acabado para Círculo de Leitores por Printer Portuguesa
Casais de Mem Martins, Rio de Mouro em Dezembro de 1999 Número de edição: 4721
Depósito legal número 143 323/99 ISBN 972-42-2148-2

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