Introducao Aos Enfoques Cts Na Educacao e No Ensino Final
Introducao Aos Enfoques Cts Na Educacao e No Ensino Final
Introducao Aos Enfoques Cts Na Educacao e No Ensino Final
o 4
Alvaro Chrispino
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.o 4
Alvaro Chrispino
La colección Documentos de Trabajo es una iniciativa
del Centro de Altos Estudios Universitarios de la Organización
de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia
y la Cultura (OEI) y su objetivo principal es difundir estudios,
informes e investigaciones de carácter iberoamericano en
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978-84-7666-247-2
Estos materiales están pensados para que tengan la mayor difusión posible
y de esa forma contribuir al conocimiento y al intercambio de ideas.
Se autoriza, por tanto, su reproducción, siempre que se cite la fuente
y se realice sin ánimo de lucro.
Estes materiais estão pensados para que tenham mayor divulgação possível
e dessa forma contribuir para o conhecimento e o intercâmbio de idéias.
Autoriza-se, por tanto, sua reprodução, sempre que se cite a fonte
e se realize sem fins lucrativos
Índice
5 Introdução
155 Referencias
Introducción
Os trabalhos – tanto artigos quanto teses e dissertações – que tratam do Enfoque CTS possuem, na
sua maioria, um sequencia histórica de fatos e de acontecimentos que pretendem apresentar o que
seja este campo do conhecimento para professores, alunos e cidadãos. Porque sua estrutura de apre-
sentação é semelhante e os argumentos repetidos, vivemos um grande dilema na apresentação de um
trabalho construído coletivamente com turmas de estudantes dos programas de mestrado e douto-
rado do CEFET/RJ. Se não nos utilizamos da narrativa padrão, corremos o risco de sermos alijados,
visto que não estamos “falando a mesma língua da área”, mesmo que isso busque demonstrar que os
caminhos percorridos na produção deste material foram marcados por idas e vindas, na grande arena
das ideias e interpretações oriundas de estudantes de mestrado e doutorado que militam em diferen-
tes áreas do conhecimento, sendo que a educação e/ou o ensino são seus pontos de aproximação ou
convergência.
A primeira preocupação era demonstrar que a Ciência e a Tecnologia são produzidas e mantidas
por seres humanos que possuem intencionalidades, interesses, limites, crenças, valores e planos de
futuro. Esse conjunto de características se potencializa quando os indivíduos se reúnem em grupos
de interesse e organizam os chamados grupos de pesquisa, que buscam ampliar fronteiras do conhe-
cimento e produzir aparatos ou sistemas tecnológicos inovadores. Fica claro que a Ciência e a Tec-
nologia são produções humanas e, por isso, impregnadas de humanidade em todos os seus matizes
era o primeiro objetivo.
Após isso, buscávamos demonstrar que toda ciência e tecnologia produzidas – como produtos cons-
truidos socialmente – retornam para a sociedade, impactando-a de diversas formas, quer explícita,
quer implicitamente. Alguns destes impactos podem ser benéficos se vistos como solução para um
problema atual, mas podem ser portadores de futuro incerto, quando produzem riscos no médio ou
longo prazos.
Consideramos também que os textos gerais sobre CTS apontam o surgimento de movimentos sociais
que se contrapunham aos impactos danosos dos avanços científicos e tecnológicos e a isso chamaram
de Movimento CTS, dando inúmeros exemplos de fatos e personagens.
Da mesma forma, apontam para as ações reflexivas de profissionais da Ciência e da Tecnologia que
iniciaram discussões a cerca das consequências deste saber para a Sociedade. De forma geral, essa
ação foi chamada didaticamente de Estudos CTS.
Se considerarmos que CTS defende a construção social da ciência e da tecnologia devemos, por de-
ver de ofício, defender que o próprio CTS é de difícil consenso, visto que cada grupo ou pesquisador,
5 INTRODUCCIÓN
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
dependendo de sua formação, de seus valores, de suas crenças etc, irá ler e interpretar os mesmos
fenômenos de forma singular, identificando grandes eixos comuns, mas impregnando-os com suas
particularidades, com suas idiossincrasias. Logo, esperar que tenhamos um único conceito sobre o
que seja CTS é uma ingenuidade. Encontramos, sim, alguns consensos e aproximações sucessivas
que permitem que a área se comunique e produza conhecimento a fim de contribuir para o amadu-
recimento das relações ciência, tecnologia e sociedade.
Este trabalho enfrenta as mesmas dificuldades que seus congêneres! Para não se distanciar de seus
pares, apresenta temas e debates que são comuns à área, na busca da reconceitualização da ciência
e da tecnologia e na apresentação dos impactos que estas causam na sociedade. Faz isso buscando
obras e autores consagrados na área, sem deixar de recrutar novos autores de diferentes áreas que
sejam capazes de trazer luzes para o melhor entendimento da Abordagem CTS. Esta não é uma obra
autoral, mas, sim, de apresentação da área CTS por meio do pensamento de muitos colaboradores.
Nossa participação está no risco de reunir autores da área e outros colaboradores de áreas distintas.
O risco da inovação e da ampliação de fronteiras é sempre necessário.
Deixamos claro desde já que, para nós, a Abordagem CTS é um campo complexo, interdisciplinar,
contextualizado e transversal, fundamentado especialmente nos saberes da sociologia, da filosofia,
na história, da economia, da política, da psicologia, dos valores etc. Trazemos para este primeiro mo-
mento a reflexão de Cutcliffe (2003):
[...] em resumo, pode dizer-se que o campo de CTS deixou para tras qualquer tendência
inicial que pudesse ser relacionado com alguns grupos e que implicasse em uma visão sim-
plista em branco e negro da ciência e da tecnologia na sociedade, buscando alcançar uma
compreensão mais complexa da relação de CTS. Na atualidade, CTS concebe a ciência e a
tecnologia como projetos complexos que se dão em contextos históricos e culturais especí-
ficos. O que tem surgido é um consenso com respeito a que, se bem a ciência e a tecnologia
nos trazem diversos benefícios, também provocam certos impactos negativos, alguns dos
quais imprevisíveis, mas todos refletem os valores, pontos de vistas e visões daqueles que
estão em situação de tomar decisão com respeito aos conhecimentos científicos e tecnológi-
cos dentro de seus âmbitos. A missão central do campo CTS até a data de hoje tem sido a
de expressar a interpretação da ciência e da tecnologia como um processo social. Deste
ponto de vista, a ciência e a tecnologia são vistos como projetos complexos em que os valo-
res culturais, políticos e econômicos nos ajudam a configurar os processos tecnocientíficos,
os quais, por sua vez, afetam os valores mesmos e a sociedade que os mantém. (p. 18) grifos
nossos
6 INTRODUCCIÓN
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
condições de vida de uma sociedade cada vez mais impregnada de ciência e, sobretudo,
de tecnologia. (Acevedo, Vázquez e Manassero, 2001, grifos nossos)
E quanto a sua pertinência para o momento atual do Ensino de Ciência e Tecnologia, podemos lem-
brar que este tema está fortemente indicado na Base Nacional Comum Curricular, que se ensaia no
cenário educacional brasileiro, como se apresenta desde antes no cenário internacional como infor-
mam desde antes Acevedo, Vázquez e Manassero (2003a):
Movimento CTS é entendido como uma inovação educacional que está em consonância
com as mais relevantes e atuais recomendações internacionais para proporcionar no ensino
de ciências a alfabetização científica e tecnológica mais completa e útil possível para todas
as pessoas (p. 101)
Essa é nossa melhor contribuição para aqueles que buscam conhecer o que seja a Abordagem CTS.
Deixamos claro desde já que esta é a nossa visão da Abordagem CTS, por mais que tenhamos tentado
garantir que as diversas visões e escolas de pensamento estivessem aqui representadas. Consideran-
do a amplitude da área, as escolhas buscam cumprir a intencionalidade da obra, desde já apresentada.
Fica o agradecimento aos mestrandos e doutorandos que desfilaram nas arenas do conhecimento
CTS dando suas contribuições para que o trabalho pudesse ser apresentado como uma alternativa de
estudo para a área de educação e ensino CTS.
Da mesma forma, como este é um trabalho que faz convergir pesquisas e ações de nosso grupo ao
longo do tempo, é indispensável o agradecimento ao CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico que viabilizou as diversas pesquisas que resultaram neste trabalho por meio
dos recursos oriundos dos Editais Universais de 2007, 2010 e 2013.
Que seja útil às reflexões, produzindo novas questões e inquietações e nunca saberes acabados.
Alvaro Chrispino
7 INTRODUCCIÓN
1. CTS como campo de estudo em construção
(...) é importante que a educação tecnocientífica esteja orientada para propiciar uma formação da
cidadania que a capacite para compreender, para ser manejada e para participar de um mundo no qual
a ciência e a tecnologia estão, a miúdo, mais presentes. Sem dúvida, o enfoque da Ciência, Tecnologia
e Sociedade (CTS) é especialmente apropriado para fomentar uma educação tecnocientífica dirigida
à aprendizagem da participação, trazendo um novo significado para conceitos tão aceitos como
alfabetização tecnocientífica, ciência para todos ou difusão da cultura científica.
Martín Gordillo e Osorio M.
2003
A concepção clássica das relações entre a Ciência e a Tecnologia com a Sociedade é uma concepção
eminentemente otimista e que reflete uma postura linear de progresso, que pode ser simbolizada
pela expressão encontrada no Guia da Exposição Universal de Chicago de 1933, segundo Sanmartín
(1990, p. 168):
A ciência descobre, o gênio inventa, a indústria aplica e homem se adapta, ou é moldado
pelas coisas novas.
O espírito contido nesta frase é mais facilmente identificado por uma equação simples: + ciência =
+ tecnologia = + riqueza = + bem-estar social (Bazzo, Linsingen e Pereira, 2003; López Cerezo, 1997,
1998). Este é o chamado “modelo linear de desenvolvimento” que pode ser mais resumido conforme
apresentam Gonzalez Garcia1, López Cerezo e Lujan López (1996, p. 31) como progresso científico
=> Progresso tecnológico => progresso econômico => progresso social. Esta concepção, segundo Sa-
rewitz (1996, p. 17), foi apresentada originalmente por Vannevar Bush2 (1945, 1999):
Os avanços na ciência, quando colocados no uso prático significam: mais trabalho, salários
mais altos, horas mais curtas, colheita mais abundante, tempo mais livre para a recreação,
para o estudo, para aprender a viver sem o trabalho fatigoso e enfraquecedor que tem sido
a carga do homem comum do período passado. Mas, para alcançar estes objetivos... o fluxo
do conhecimento científico novo deve ser contínuo e significativo.
O Relatório Bush solicitou uma liberdade plena para a pesquisa científica e tecnológica que, confor-
me tentou justificar seu autor, traria benefícios e vantagens, tal qual fez ao encerrar a Segunda Gran-
de Guerra com um artefato tecnológico produzido pela ciência mais avançada da época: a bomba
atômica.
Por mais que a tradição tenha contemplado essa relação direta, ela não se sustenta quando buscamos
algumas informações históricas que sintetizamos de Acevedo, Vasquez e Manassero (2001):
• “6 de agosto de 1945: o Enola Gay, um avião B-29, sobrevoou a ilha de Hondo, e despejou
sobre a cidade de Hiroshima a Little Boy, a primeira bomba atômica de urânio. Em 9 de
agosto é lançada outra sobre Nagasaki, uma importante cidade situada a noroeste da
ilha japonesa de Kyushu. O sucesso dos artefatos tecnológicos põe fim a segunda guerra
1
Neste trabalho, optou-se pela utilização da referencia de autores espanhóis pelo penúltimo nome. Então, o leitor encontrará, por
exemplo, Gonzalez Garcia, López Cerezo e Lujan López ao invés de Garcia, Cerezo e López.
2
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Vannevar_Bush. Como estamos em um curso que trata de ciência e de tecnolo-
gia, propomos que o aprofundamento sobre alguns assuntos possa contar com a contribuição da Wikipédia, mas, desde já, lem-
bramos sobre a importância de ler com critério considerando o processo de construção coletiva da Wikipedia.
todos terão morrido vítimas dos inseticidas. Esse movimento permitiu o fortalecimento
dos chamados movimentos ecológicos. Hoje o DDT é um produto proibido (Cutcliffe,
2003, p .8; 1990, p. 21).
• Ralph Nader4, ativista dos direitos do consumidor, promoveu um grande movimento
contra o que chamou de arrogância da indústria automobilística em torno da segurança
e dos perigos dos modelos Corvair, fabricados pela Chevrolet entre 1960 e 1969. Escre-
veu Unsafe at Any Speed: The Designed-In Dangers of the American Automobile 91965).
(Cutcliffe, 2003, p. 8; 1990, p. 21).
• Vance Packard5 escreveu The Hidden Persuaders (1957) onde já defendia que a indústria
da propaganda criava artificialmente as necessidades e demandas para o consumidor.
• John Kenneth Galbraith6 escreveu The Affluent Society (1958) e The New Industrial Sta-
te (1967) e defendia que no Estado industrial o poder econômico havia se desprendido
das necessidades dos consumidores e que uma “tecnoestrutura” controlava a tecnolo-
gia visando o crescimento e benefício da organização (Cutcliffe, 1990, p. 21).
• Mario Molina7 e Frank S. Rowland8 (1974), publicam na revista Nature uma pesquisa
apontando a ação dos clorofluorcarbonos (CFC), dentre outros compostos, na dimi-
nuição da camada de ozônio. O CFC foi sintetizado em 1928 e é especialmente utilizado
geladeiras e aparelhos de ar condicionado para refrigeração. O Protocolo de Montreal
baniu o consumo destes gases em 2010. Molina, Rowland e Paul Crutzen dividiram o
Prêmio Nobel de Química de 1995. Em seu sitio, Molina apresenta a seguinte frase: “Os
cientistas podem descrever os problemas que afectam o ambiente com base nas evi-
dências disponíveis, mas sua solução não é da responsabilidade dos cientistas, mas da
sociedade como um todo”.
• Derek J. de Solla Price9, em 1963, escreveu Little Science, Big Science, onde debatia o
cresci-mento do financiamento da tecnologia por parte do Estado e que resultou na ne-
cessidade de se discutir uma “ciência da ciência”, produzindo a Fundação para a Ciência
da Ciência, em 1965, e diversas sociedades voltadas para a “responsabilidade social da
ciência”, na Inglaterra e em outros lugares (Cutcliffe, 2003, p. 11)
• Barry Commoner10, em 1963, escreveu Science and survival, onde alerta para perda de
controle sobre as consequências sociais da ciência e da tecnologia. Para ele, os cientistas
deveriam divulgar mais seus trabalhos e suas consequências para quem ele chama de
não-cientistas. Conclui que a Ciência e os cientistas são capazes de revelar o tamanho
do problema, mas somente a ação social pode resolvê-lo (Beck, 2010)
Além destes grupos sociais, que se organizaram e produziram efeitos importantes para a reflexão
em torno dos riscos que envolviam as tecnologias, esse período da história presenciou o surgimen-
to de inúmeros grupos chamados ativistas que, cada uma sua maneira, buscavam chamar atenção
para os riscos a que estavam expostos os cidadãos. Durante a década de 1970, os mais significativos
movimentos giravam em torno da energia nuclear e seus riscos, dos mísseis balísticos, do transporte
supersônico, dos CFC-Clorofluorcarbono usados em aerossóis, as primeiras discussões sobre o im-
pacto de pesquisas genéticas, dentre outros. A década de 1980 presenciou uma importante discussão
levantada por um sindicato de operários que solicitava uma
4
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Ralph_Nader
5
Conheça mais em https://en.wikipedia.org/wiki/Vance_Packard
6
Conheça mais em https://pt.wikipedia.org/wiki/John_Kenneth_Galbraith
7
Conheça mais em https://es.wikipedia.org/wiki/Mario_Molina e http://centromariomolina.org/mario-molina/biografia/
8
Conheça mais em https://en.wikipedia.org/wiki/F._Sherwood_Rowland
9
Conheça mais em http://en.wikipedia.org/wiki/Derek_J._de_Solla_Price
10
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Barry_Commoner
“Declaração de Direitos sobre a Nova Tecnologia” que exigia algum tipo de controle sobre
o processo de trabalho, refletia a problemática laboral surgida do impacto das novas tec-
nologias de automação sobre a estabilidade no trabalho, a segurança dos trabalhadores e a
redução de habilidades necessárias (Cutcliffe, 2003, p. 9).
Sobre este surgimento e evolução, Mitcham11 (1990, p. 15) apresenta outro ângulo de estudo. Diz que
os Estudos CTS tiveram duas fontes: a primeira é a formação, na década de 1950, do que se chamou
de Science, Technology and Public Policy (STPP) e, a segunda, é a crítica social e política à ciência e à
tecnologia, surgidas no final da década de 1960. Ao analisar cada uma das fontes, escreve o autor que:
• Os programas STPP: O processo de institucionalização da ciência mo-derna pode ser
estudada a partir de três etapas principais:
• A primeira etapa, em torno dos séculos XVII e XVIII, a ciência foi um trabalho
de indivíduos, geralmente oriundos da aristocracia.
• A segunda etapa de institucionalização da ciência ocorre durante o século XIX
quando ela é profissionalizada em departamentos específicos como departa-
mentos de química, de física etc, nas universidades e nos laboratórios de pes-
quisa e desenvolvimento industrial. Esta institucionalização requereu uma or-
ganização um pouco mais complexa, mas ainda em pequena escala.
• A terceira institucionalização da ciência moderna ocorreu durante a Segunda
Guerra Mundial como resultado do apoio governamental e a criação de proje-
tos de pesquisa e desenvolvimento de larga escala, como projeto Manhattan,
que resultou na bomba atômica. Tais projetos e ações governamentais intro-
duziram na atividade científica e tecnológica estruturas administrativas, pro-
cessos de gestão e um contingente de profissionais até então desconhecidos
destas áreas.
Os programas STPP foram desenvolvidos depois da guerra com o propósito de
estudar a gestão em grande escala da ciência e da tecnologia. Escreve o autor
que os programas STPP em universidades tecnológicas mais importantes –
tais como o Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT) e a Universidade
Carnegie Mellon – estão estreitamente relacionados as faculdades formadoras
de engenheiros. A mobilização científica e tecnológica no período da segunda
grande guerra demonstrou que a gestão da ciência e da tecnologia em suas no-
vas e complexas inter-relações com o governo e a sociedade exigia capacidades
(competências) especiais. “A experiência não é suficiente para que os engen-
heiros aprendam a fazê-lo, assim como os gestores carecem, em geral, da edu-
cação e habilidade necessárias para comunicar-se efetivamente com o corpo
científico.” (p. 16). Os programas STPP surgiram no interior da comunidade de
ciência e tecnologia.
• Os programas CTS: estes surgiram, na visão de Mitcham, como respostas a influên-
cias externas à ciência e a tecnologia. Os movimentos ecológicos e de consumidores,
preocupados com as mudanças tecnológicas, iniciaram um movimento de aproximação
da ciência e da tecnologia com a sociedade e a cultura. Nos EUA, os primeiros progra-
mas CTS foram produzidos por profissionais oriundos das ciências sociais (Universida-
de de Cornell) como por engenheiros preocupados com problemas sociais (Universida-
des de Pennsylvania e Etenford). Escreve o autor que os primeiros tinham um caráter
mais críticos da ciência e da tecnologia como métodos de conhecimento, como soluções
11
Conheça mais https://en.wikipedia.org/wiki/Carl_Mitcham
Em uma obra clássica intitulada Sceince, Technology and Society – A crosssisciplinary Perspective, or-
ganizada por Ina Spiegel-Rösing e Derek Solla Price (1977), encontramos a proposta de estruturação
dos estudos CTS suportada por diversas áreas do conhecimento (sociologia, política, psicologia, va-
lores etc) e também temas contemporâneos ou demarcadores de fatos sociais (guerra, militarismo,
sistema e relações internacionais, modelos etc), com um capítulo inicial que se intitula The Study of
Science, technology and Society (SSTS): Recent Trends and Future Challenges (Spiegel-Roösing, 1977),
reafirmando a polissemia que impera na área.
Outros autores apontam para origem distinta do CTS em Educação. Pedretti e Nazir (2011) e Aiken-
head (2005), em excelentes artigos de revisão, defendem que Jim Gallagher (1971) introduz a visão
CTS quando escreve “Para futuros cidadãos em uma sociedade democrática, comprender a interre-
lação entre ciência, tecnologia e sociedade pode ser tão importante como entender os conceitos e os
processos da ciência” (Gallagher, 1971, p. 337). Ele é seguido de uma série de publicações que desdo-
bram a ideia, com especial atenção ao artigo de Paul Hurd (1975) intitulado Science, Technology, and
Society: New Goals for Interdisciplinary Science Teaching.
Figaredo Curiel (2013), por sua vez, informa a opinião de Jose Antonio Lopez Cerezo, em comuni-
cação pessoal quando questionado sobre o inicio do uso do acrônimo CTS:
Até onde eu sei, e com independência de utilizações esporádicas que não se ligam com a
tradição acadêmica principal de CTS, “science, technology and society” foi usado pela pri-
meira vez por Rustum Roy, o fundador do STS Programa da Universidade do Estado de Pen-
silvania, no final da década de 1960 ou principio da década de 1970. Eu cheguei a conhecê-lo
em uma visita a sua universidade. Era um engenheiro de origem hindú ou paquistanesa,
mas com nacionalidade americana, que se queixava de não haver tido a visão de chamar
de “society, technology and science” o seu programa, o que segundo ele (no princípio da
década de 1990, quando o conheci) refletia melhor a realidade das coisas. (tradução livre
do autor)
A nosso ver, como trataremos no próximo capítulo, o surgimento da idéia CTS é de difícil identidade,
visto que, de acordo com a percepção do leitor, pode ser percebido por analogia em várias correntes
de pensamento, na filosofia, na sociologia, na política etc. Como necessitamos iniciar os estudos em
algum ponto, vamos arbitrar, com devida justificativa, que as ideias CTS podem iniciar com Robert
Merton e Jonh Bernal, especialmente, conforme detalharemos em item próprio deste trabalho.
Há, certamente, uma grande semelhança das ideias CTS com as questões que marcam o mundo mo-
derno. Foram estas antecipações que permitiram que o tema impacto da ciência e tecnologia sobre
a sociedade fosse ocupando espaços importantes no debate social e político, fosse ganhando espaço
nas mídias e fazendo com que os cidadãos participassem um pouco mais sobre o conjunto de polí-
ticas públicas de Ciência e Tecnologia. Isto é, passassem a influenciar mais sobre os recursos públi-
cos dirigidos para estes setores, sobre as escolhas de prioridades a serem financiadas com recursos
públicos, sobre as análises de impactos destes aparatos sobre as pessoas, sobre a sociedade e sobre o
meio ambiente.
O crescimento do movimento CTS foi de tal ordem que levou os governos e os organismos multila-
terais a abrirem espaços nas agendas políticas para eventos/documentos internacionais que acolhes-
sem estas preocupações e a criação de associações voltadas para esta temática.
Dentre os eventos/documentos, podemos enumerar: Nosso Futuro em Comum, que discutia padrões
para o desenvolvimento sustentável, e que foi organizado pela Comissão Mundial para o Meio Am-
biente e Desenvolvimento e, também, a Rio-92.
Dentre as comissões surgidas para atender a esta demanda, podemos citar como exemplos:
• Em 1966, a Associação Nacional de Segurança Viária (EUA)
• Em 1969, a Agência de Proteção do Meio Ambiente (EUA)
• Em 1970, a Administração de Segurança e Saúde do Trabalho (EUA)
• Em 1972, a Oficina de Avaliação da Tecnologia (EUA)
• Em 1975, a Comissão de Energia Nuclear (EUA)
• Em 1982, o Conselho de Investigações Sociais da Dinamarca criou uma Subcomissão de
Tecnologia e Sociedade e, depois, o Conselho de Tecnologia.
• Em 1976, o Centro para a Vida laboral, em Estocolmo, Suécia.
A comunidade científica também apresentou suas preocupações por meio de organizações dirigi-
das às questões derivadas das relações CTS e os impactos da ciência e da tecnologia para a pessoa,
a sociedade e o meio ambiente. São inúmeras as organizações ou grupos profissionais que criaram
instituições voltadas para este campo de estudo. Segundo Clutcliffe (2003), ressalta-se:
• A Fundação Nacional de Ciências dos Estados Unidos criou o Programa de Ética e Va-
lores em Ciência e Tecnologia, depois Programa de Dimensões sociais da Engenharia,
da Ciência e da tecnologia;
• A Fundação Nacional de Humanidades criou o Programa de Ciência, Tecnologia e Va-
lores, agora Humanidades, Ciência e Tecnologia;
• A Associação Americana para o Avanço da Ciência criou o Programa de Ciências e Polí-
ticas de Atuação e a Comissão para as Liberdades e Responsabilidades Científicas;
• Os engenheiros e cientistas criaram a União dos Cientistas Comprometidos (1969), ins-
pirando-se na Federação dos Cientistas Americanos (1945), surgida das preocupações
com as implicações do projeto Manhattan, que resultou na Bomba Atômica;
• Os cientistas e tecnólogos criaram, mais recentemente (1983), a Organização para a
Responsabilidade Social dos Informáticos, dedicada a examinar as implicações sociais
relacionadas com a informática em âmbito militar, nos locais de trabalho etc.
A preocupação social, por meios organizados, com os impactos econômicos, sociais, ambientais, po-
líticos, éticos e culturais da Ciência e Tecnologia e a busca de maior participação da Sociedade nas
decisões envolvendo Ciência e Tecnologia são as marcas do que definiremos como Movimento CTS.
Certamente, esta definição e a trajetória histórica que culmina numa definição é resultado da for-
mação do autor ou da visão do analista. A tríade CTS envolve três grandes áreas com histórias e fun-
damentos distintos e, quando analisados por profissionais de diferentes áreas e formações, oferecem
outras tantas visões e ângulos, todos pertinentes e merecedores de nossa atenção. Deixamos claro e
explícito que a visão de CTS que apresentamos aqui é construída a partir dos aspectos educacionais
de CTS. Se encaramos o processo educacional como aquele que oferece condições de transformação,
não podemos desconsiderar os aspectos fundantes possíveis – e que oferecem visões e fundamentos
distintos e inter-complementares – que são os aspectos sociais, históricos, políticos, axiológicos e os
aspectos econômicos de CTS.
Mas, se por um lado, a história registrou um grande número de ações organizadas por segmentos
sociais preocupadas com os impactos da Ciência e da Tecnologia, por outro, também podemos e de-
vemos enumerar os acontecimentos que transformaram essa relação triádica em Campo de Estudos
CTS, que se caracteriza pelos estudos acadêmicos que buscam explicar a Natureza da Ciência, da
Tecnologia e da Sociedade e como o entendimento diferente sobre estes campos do saber resulta em
relações estreitas entre estes três campos. Fica claro para os estudiosos que marcam o Campo CTS –
filósofos da ciência e da tecnologia, historiadores da ciência e da tecnologia, sociólogos da ciência e
da tecnologia, educadores em CTS, cientistas políticos etc – que não há um único, exclusivo e “corre-
to” conceito para Ciência, assim como não o há para Tecnologia e muito menos para Sociedade. Há,
sim, muitas maneiras de interpretar cada um desses campos/conceitos e, por consequência, interfe-
rir na maneira com os três se relacionam. Sobre isso, escrevem Vázquez et al (2008, p. 34):
O conceito de Natureza da Ciência engloba uma variedade de aspectos sobre o que é a ciên-
cia, seu funcionamento interno e externo, como constrói e desenvolve o conhecimento que
produz, os métodos que usa para validar esse conhecimento, os valores envolvidos nas ati-
vidades científicas, a natureza da comunidade científica, os vínculos com a tecnologia, as
relações da sociedade com o sistema tecnocientífico e vice-versa, as contribuições desta
para a cultura e o progresso da sociedade.
Sobre a mesma temática, Adúriz-Bravo (2016) buscará diferenciar Natureza da Ciência e CTS para,
depois, tentar uma convergência ou mesmo intercomplementaridade entre eles. Escreve ele:
Para esta discussão, entendo o enfoque ciência-tecnologia-sociedade (CTS) como uma co-
rrente de pensamento com incidência no campo da educação científica que aborda o ensino
das ciências desde os pontos de vista político, econômico, social, histórico, tecnológico etc.
(Lacolla, 2004). Entendo por natureza da ciência (NOS) uma área curricular emergente que
agrupa um conjunto de conteúdos metateóricos (transpostos da filosofía, história e socio-
logía da ciência, principalmente) considerados valiosos para a educação científica (Adúriz-
Bravo, 2005).
[...]
A luz do proposto, parece possível postular uma complementariedade entre NOS e CTS:
ambas poderiam potencializar-se mutuamente para gerar mudanças articuladas no saber e
no saber fazer dos professores de ciências. A partir desta premissa, estou propondo que o
enfoque CTS ajudaria aos professores a encontrar umas maneiras de fazer que deixem de
lado rotinas e incorporem alternativas didáticas que construam em classe uma imagem de
ciência mais ajustada a produção NOS.
Na verdade, alguns autores não fazem diferença entre os termos Movimento CTS e Estudos CTS,
utilizando as duas expressões indistintamente. A nosso ver, as expressões querem representar movi-
mentos diferentes: o Movimento CTS representa melhor as consequências sociais e ações da socie-
dade em torno dos temas Ciência e Tecnologia e a expressão Estudos CTS identifica um campo de
estudo que busca melhor entender as relações que compõem a tríade CTS, o que pode dar ideia de
antecedência. Vacarezza (2002, p. 67) escreverá que
Reservamos o conceito de campo às funções estritamente cognitivas que levam a cabo os
distintos cultores da reflexão sobre as relações entre ciência, tecnologia e o social. O concei-
to de movimento faz referência à conformação de um sujeito político (ou a um conjunto
mais ou menos integrado ou contraditório de sujeitos políticos) que pretende intervir em
situações de poder social global sobre a base de reivindicações ou objetivos de mudanças
específicas (sejam setoriais ou globais).
Há, entre os estudiosos da Abordagem CTS, uma outra importante distinção entre a tradição ame-
ricana (numa visão meramente didática preocupada com as consequências) e a tradição europeia
(numa visão meramente didática preocupada com a antecedência). Assim escrevem Cachapuz et al
(2008, p. 29) sobre as distintas facetas da perspectiva CTS:
a norte-americana, que coloca maior ênfase na abordagem das consequências sociais das
inovações tecnológicas e nas influências sobre a forma de vida dos cidadãos e das insti-
tuições e a européia que coloca a ênfase na dimensão social antecedente aos desenvolvi-
mentos científicos e tecnológicos, evidenciando a diversidade de fatores econômicos, polí-
ticos e culturais que participam na gênese e aceitação das teorias científicas. Contudo, para
além destas facetas apontadas não poderem ser disjuntas, o que muitos autores têm vindo a
sobrepor é a importância social do conhecimento proporcionado pela ciência e tecnologia
que, ao mesmo tempo que proporciona melhor compreensão do mundo natural, representa
um instrumento essencial para o transformar.
Parece haver uma concordância sobre aspectos de antecedência e consequência de CTS entre os au-
tores citados Cachapuz et al. (2008), Vacarezza (2002) e Mitcham (1990). Fazem essa categorização
González García, López Cerezo e Luján López (1996).
Autores como Vaccarezza (2002), Dagnino, Thomas e Davyt (2003) e Kreimer e Thomas (2004),
especialmente, defendem a existência de um Pensamento Latinoamericano de CTS (PLACTS), ba-
seados no cenário sociopolítico existente nas décadas de 60 e 70 em vários países da America Latina,
chegando a listar os especialistas que, à época, defendiam ideias que se assemelham às ideias dos
Enfoques CTS hoje. Segundo eles, os principais são: Oscar Varsavsky (2010), Jorge Sábato (2004),
Francisco R. Sagasti (1986), Amilcar Herrera (1973), Miguel Wionseck, Máximo Halty-Carrére, Os-
valdo Sunkel, Marcel Roche, José Leite Lopes, entre outros.
Este tema mereceu de nós maiores pesquisas a fim de conhecer mais esta interessante hipótese de
trabalho. Em recente pesquisa, Silva (2015), pesquisando o CTS Latino Americano em obras primá-
rias, encontrou
127 autores relacionados com os temas de estudo do CTS latino-americano, e [identificou]
suas nacionalidades. Destes 127 autores, 94 foram enquadrados na categoria autores-funda-
dores, 21 na categoria autores-discípulos e 12 não puderam ser relacionados a nenhuma das
duas categorias por falta de maiores informações disponíveis sobre eles (p. 53)
Por mais pertinentes que sejam as análises feitas pelos autores-fundadores do CTS latino-
americano quanto as interrelações de fatores políticos e econômicos com o desenvolvimen-
to da ciência e da tecnologia, conclui-se neste trabalho que estes temas são pouco abordados
no contexto de ensino CTS. Ao correlacionar o referencial bibliográfico de artigos recentes
publicados na área de ensino CTS no Brasil, foram poucas as citações a autores-fundadores
do CTS latino-americano e suas obras. Em sua maioria, as obras originais foram citadas por
pessoas que já estudavam o tema nos dias de hoje, se destacando entre todos o autor Renato
Dagnino, um dos autores-discípulos da tradição CTS latino-americana. Foi possível cons-
tatar um hiato entre o que foi produzido pelos autores-fundadores nas décadas de 60 e 70
com o que se produz sobre CTS hoje, mostrando que não parece haver uma apropriação por
parte dos autores de artigos na área de ensino CTS dos questionamentos e considerações
desenvolvidas pelos autores relacionados à tradição latino-americana de CTS (p. 127-128).
Em recente publicação, Roso e Auler (2016) resgatam as ideias do PLACTS e suas contribuições (ou
não) para as praticas educativas do movimento CTS.
A história da relação CTS teve, como primeira característica, uma reação àquela visão acrítica e neu-
tra que se deu à Ciência e à Tecnologia ao longo do tempo. Com o amadurecimento dos estudos
CTS, este se transformou efetivamente numa área inter/transdisciplinar que atraia estudantes e pro-
fissionais da área das chamadas ciências exatas e da natureza, mas que também recrutou alunos e
pesquisadores das chamadas ciências humanas e sociais. Essa é uma importante oportunidade de
aproximar duas culturas, a chamada humanística e a dita científico-tecnológica que foram separadas
em algum momento da história, como propõe Snow (1995) em sua obra clássica As duas culturas.
O segundo momento dos Estudos CTS foi marcado pela superação do processo reativo, criando ações
planejadas e mecanismos de multiplicação das ideias defendidas e organizadas até então. O segundo
momento é marcado pelo surgimento de cursos e programas de estudos CTS voltados, principalmen-
te, para a alfabetização sobre tecnologia, o que transcende a alfabetização em tecnologia e que não
deve permitir a visão ingênua de achar que “se nos entendesse melhor (a tecnologia), nos quereria
mais” (Cutcliffe, 2003, p. 16).
De acordo com Cutcliffe (2003, p. 18), atualmente CTS concebe a Ciência e a Tecnologia como proje-
tos complexos que ocorrem em contextos históricos e culturais específicos. Escreve ele:
Podemos dizer que, em resumo, pode dizer-se que o campo de CTS deixou para tras qualquer
tendência inicial que pudesse ser relacionado com alguns grupos e que implicasse em uma
visão simplista em branco e negro da ciência e da tecnologia na sociedade, buscando alcançar
uma compreensão mais complexa da relação de CTS. Na atualidade, CTS concebe a ciência e
a tecnologia como projetos complexos que se dão em contextos históricos e culturais específi-
cos. O que tem surgido é um consenso com respeito a que, se bem a ciência e a tecnologia nos
trazem diversos benefícios, também provocam certos impactos negativos, alguns dos quais
imprevisíveis, mas todos refletem os valores, pontos de vistas e visões daqueles que estão em
situação de tomar decisão com respeito aos conhecimentos científicos e tecnológicos dentro
de seus âmbitos. A missão central do campo CTS até a data de hoje tem sido a de expressar
a interpretação da ciência e da tecnologia como um processo social. Deste ponto de vista, a
ciência e a tecnologia são vistos como projetos complexos em que os valores culturais, políti-
cos e econômicos nos ajudam a configurar os processos tecnocientíficos, os quais, por sua vez,
afetam os valores mesmos e a sociedade que os mantém. (p. 18) grifos nossos
O mesmo autor, Cutcliffe (2003), concluindo os acontecimentos sociais nas décadas de 1960 e 70,
escreve que CTS é um “campo de estudo ativista, interdisciplinar e orientado a problemas que tratava
de entender e responder as complexidades da ciência moderna e da tecnologia na sociedade contem-
porânea” (p. 25).
Para Aibar e Quintanilla (2012), os estudos CTS podem ser estudados em dois aspectos básicos:
Por um lado, exploram os impactos ou efeitos da ciência e da tecnologia na estrutura social,
na indústria e a economia, na política, no meio ambiente, no pensamento e, em geral, na
cultura. Por outro, de forma paralela, os estudos CTS tentam determinar em que medida e
de que forma diferentes fatores (valores de diferentes ordens, forças econômicas e políticas,
culturas profissionais ou empresariais, grupos de pressão, movimentos sociais, etc.) confi-
guram ou influenciam no desenvolvimento científico e tecnológico. (p. 12)
Zaiuth e Hayashi (2011, p. 279) veem o Movimento CTS “como apelo para a responsabilidade social
dos cientistas, os quais devem se comprometer com padrões éticos, tanto na sua própria formação e
também nos que estão na primeira linha da educação para cidadania, os professores”.
No que concerne a Abordagem CTS com ênfase na Educação e no currículo, Acevedo, Vázquez e
Manasero (2001) informam que no momento atual
emerge a educação CTS (Ciência, tecnologia e Sociedade) como inovação do currículo es-
colar (Acevedo, 1996a, 1997a, Vázquez, 1999), de caráter geral, que proporciona propostas
de alfabetização em ciência e tecnologia (Science and Technology Literacy, STL) para todas
as pessoas (Science and Technology for All, STA) uma determinada visão centrada na for-
mação de atitudes, valores e normas de comportamento a respeito da intervenção da ciência
e da tecnologia na sociedade (e vice-versa) com o fim de exercer responsavelmente como
cidadãos e poder tomar decisões racionais e democráticas na sociedade civil12. Desde este
ponto de vista, CTS é uma opção educativa transversal (Acevedo, 1996b), que prioriza so-
bretudo os conteúdos atitudinais (cognitivos, afetivos e valorativos) e axiológicos (valores
e normas)
Desde a perspectiva da dimensão cognitiva atitudinal, a educação CTS pretende também
uma melhor compreensão da ciência e da tecnologia em seu contexto social, incidindo nas
12
Neste ponto, os autores acrescentam a seguinte nota no original: “La posición de los autores respecto al papel que debe tener el
movimiento CTS en la alfabetización científica y tecnológica para todas las personas ha sido expuesta numerosas veces; recien-
temente se muestra con rotundidad en Acevedo, Manassero y Vázquez (2002a, b). Por su interés, véase también el punto de vista
sostenido por Solbes, Vilches y Gil (2002b).”
Ainda sobre os aspectos educacionais e curriculares podemos elencar as posições de Santos e Morti-
mer (2002), Amaral, Xavier e Maciel (2009) e Santos, Amaral e Maciel (2012).
cos são estudados juntamente com a discussão de seus aspectos históricos, éticos, políticos
e sócio-econômicos.
Segundo Osorio M. (s/d), CTS corresponde a um nome que se dá a uma linha de trabalho acadêmico
e investigativo, que tem por objeto perguntar-se pela natureza social do conhecimento científico-
tecnológico e suas incidências nos diferentes âmbitos econômicos, sociais, ambientais e culturais das
sociedades.
Ainda segundo Osorio M. (s/d), e também López Cerezo (2009), os estudos CTS estão dirigidos prin-
cipalmente:
• No plano da investigação, promovendo uma visão socialmente con-textualizada da
Ciência e da Tecnologia;
• No âmbito das políticas públicas de Ciência e Tecnologia, defendendo a participação
pública na tomada de decisão em questões de política e de gestão científico-tecnológica
e
• No plano educativo, tanto o ensino médio quanto o ensino superior, contribuindo com
uma nova e mais ampla percepção da Ciência e da Tecnologia com o propósito de for-
mar um cidadão alfabetizado científica e tecnologicamente.
Para Mackenzie (2008), “ciência, tecnologia e sociedade (CTS) é um nome genérico para uma co-
leção de estudos das ciências sociais e humanas que examinam os contextos e conteúdos da ciência
e da tecnologia” (p. 163), realçando que, por conta dessa diversidade, no desenvolvimento de seu
trabalho, não cabe dizer que é utilizado o enfoque CTS mas sim um enfoque CTS, dai nossa proposta
de grafar enfoques CTS ou abordagens CTS, no plural.
A função de alfabetização científica e tecnológica como propósito da educação CTS está muita clara
para diversos autores. Para Miembiela (2001), citando vários autores o propósito da educação CTS,
apesar de haver muito debate e pouco consenso,
é promover a alfabetização em ciência e tecnologia, de maneira que se capacite os cidadãos
para participarem no processo democrático de tomada de decisão e se promova a ação ci-
dadã encaminhada a resolução de problemas relacionadas com a ciência e a tecnologia em
nossa sociedade (p. 91).
A mesma ideia é defendida por Waks (1990, p. 43) quando escreve que
o propósito da educação CTS é promover a alfabetização em ciência e tecnologia, de ma-
neira que se capacite os cidadãos para participar da tomada de decisão e se promova a ação
cidadã encaminhada a resolução de problemas relacionados com a ciência e a tecnologia na
sociedade industrial.
Fourez (1997), ao relacionar Alfabetização Científica e Tecnológica (ACT) com CTS, faz interessante
distinção entre ambos. Escreve que
Em certos meios se fala menos de ACT que de movimento “Ciência, Tecnologia e Socieda-
de” (CTS). Às vezes a realidade designada é a mesma, mas a escolha das palavras aporta
diferenças. CTS traz à consciência um problema que não era considerado como tal há meio
século: os vínculos entre os polos em que se apoia. Enquanto que falar de uma ACT (como
da promoção de uma cultura científica e tecnológica) não questiona o lugar das ciências e
das tecnologias na sociedade, o movimento CTS o faz, pelo menos implicitamente (p. 18).
(grifos nossos)
Como os movimentos educacionais são motivados por interesses de grupo, por relações de poder dos
mais diversos, não é surpresa que o chamado Movimento CTS (em suas mais diversas manifestações)
sofra oscilações na sua aceitação e produção nas áreas em que se manifesta como atividade de pes-
quisa e ensino. Santos (2011) chega a referir-se como movimento declinante. Sustenta sua percepção
a partir do fato de que as publicações com títulos CTS esta diminuindo nos últimos anos. A nosso
ver, mesmo que o rótulo CTS esteja sendo menos aplicado aos produtos de ensino e pesquisa, sua
essência é anterior ao acróstico CTS e posterior a ele. CTS como movimento de construção social da
Ciência e da Tecnologia e como área de estudos sobre impactos da Ciência e da Tecnologia na Socie-
dade se mantém ativo e produtivo. Outros slogans estão ocupando os espaços do ensino de ciência e
tecnologia, como sempre ocorreu com os modismos que imperam temporariamente, mas a ideia se
mantém e deve tornar-se mais madura entre grupos que – passada a febre – percebem nas dinâmicas
internas da área CTS ferramentas de contribuição para a formação de cidadãos mais bem preparados
para a participação social.
Parece ficar claro que este não é um campo de convergência fácil ou simples. Por isso, certamente,
John Ziman (1980) – tido por alguns como o responsável pela criação e divulgação da tríade CTS no
meio educacional através de seu trabalho Teaching and Learning about Science and Society – diz que
CTS é um campo de estudos que responde por diversos outros nomes como, por exemplo:
Estudos Sociais da Ciência, Ciência da Ciência, Ciência e Sociedade, Responsabilidade So-
cial na Ciência, Teoria da Ciência, Estudos de Políticas de Ciências, Ciência num Contexto
Social; Estudos Liberais em Ciências, Relações Sociais de Ciência e Tecnologia, História/
Filosofia/Sociologia da Ciência/Tecnologia/Conhecimento (p. 01).
Para nós, a visão sobre CTS diverge de acordo com o objetivo ou local (origem) visto que a definição
e a trajetória histórica que culmina numa definição é resultado da formação do autor ou da visão do
analista.
Em síntese, temos que as relações CTS buscam oferecer aos cidadãos ferramentas para melhor en-
tenderem como os conhecimentos científicos e os conhecimentos, artefatos e sistemas tecnológicos
impactam a sociedade de modo geral e os grupos sociais, em especial. No sentido inverso, busca-se
que os especialistas em Ciência e em Tecnologia percebam que a interlocução com os cidadãos é
indispensável e necessária, permitindo que se acolha maior participação social nos processos de de-
cisão social envolvendo temas e aspectos que povoam o universo da Ciência e da Tecnologia.
1. Pesquise como o STF organizou a audiência pública sobre células embrionárias. Identifique as
instituições convidadas para o debate e suas posições. Faça um esquema geral das posições, clas-
sificando-as como “contra” ou “favorável” e o argumento utilizado.
2. Proponha um esquema semelhante para o debate tecnocientífico e social sobre o tema “Trans-
posição do Rio São Francisco”. Imagine que você seja chamado a organizar um grande debate e
depois terá que decidir se a transposição do Rio São Francisco deve ou não ser efetivada.
Nenhum período da história foi mais penetrado pelas ciências naturais nem mais dependente delas do
que o século XX. Contudo, nenhum período, desde a retratação de Galileu, se sentiu menos à vontade
com elas. Este é o paradoxo que tem que enfrentar o historiador do século.
Eric Hobsbawm
in A Era dos Extremos – O breve século XX
A falta do interesse, e mesmo a rejeição para o estudo das ciências, associado à falha escolar de uma
porcentagem elevada dos estudantes, constituem um problema de especial gravidade, tanto na região
ibero-americana como nos países desenvolvidos. Um problema que merece uma atenção prioritária
porque, como foram indicadas na Conferência Mundial sobre a Ciência para o Século XXI, organizada
pela UNESCO, e pelo Conselho Internacional para a Ciência, “para que um país esteja em condições
de atender as necessidades fundamentais de sua população, o ensino das ciências e da tecnologia é um
imperativo estratégico”.
Declaração de Budapeste, 1999.
A frase de Eric Hobsbawm13 – considerado o maior historiador de nosso século – expressa a dificul-
dade de tratar este tema: a Ciência. Ele aponta a importância da Ciência para o século XX e, para-
doxalmente, a dificuldade de se lidar com ela. Estamos efetivamente envolvidos e impactado pelo
resultado da Ciência e nos sentimos desconfortáveis com o desconhecimento sobre ela. Formamos,
como cidadãos, opiniões sobre a produção científica e tecnológica, sobre os especialistas, sobre os
impactos e, certamente, sabemos muito pouco sobre este campo do conhecimento. Este conhecimen-
to, aliás, já é considerado fator estratégico para o desenvolvimento dos países.
Além disso, os impactos da ciência e da tecnologia na sociedade deixam de ser pontuais para serem
amplos e genéricos, solicitando dos cidadãos uma nova maneira de lidar com esses conhecimentos.
Como afirma Casassus (2007):
Se antigamente a ciência e a tecnologia eram importantes somente para as pessoas que diri-
giam para as carreiras científicas, hoje isto mudou, pois, as tecnologias com base matemáti-
ca moldam nossa existência (p. 79)
Alguns problemas se apresentam na preparação deste texto-debate: a extensão dos assuntos que
compõe o tema e a exiguidade de tempo e espaço. Isso nos obriga a fazer escolhas e traçar um camin-
ho possível onde as discussões sobre Ciência se tornam instrumentais para o melhor entendimento
das relações CTS.
Alan Chalmers (1993), em sua obra intitulada O que é ciência afinal? Busca analisar a evolução da
ideia recente sobre ciência e método científico, apresentando críticas e argumentos importantes a
fim de contrapor-se a ideia herdada de ciência desde Karl Popper e Imre Lakatos. Faz uma simples
mas rica trajetória pedagógica para, ao final, concluir sobre a dificuldade que é tratar desta pergunta
“O que é ciência?”. Escreve ele: “Poder-se-ia dizer que o livro procede de acordo com um velho pro-
vérbio: ‘Nós começamos confusos, e terminamos confusos num nível mais elevado’ ”. (p. 21).
13
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Eric_Hobsbawm
León Olivé (2000), em sua obra intitulada El bien, el mal y la razón, inicia seus trabalhos com a mes-
ma questão que enfrentamos agora: O que é ciência?. O autor busca responder à provocação de duas
maneiras: a primeira seria responder por meio das ideias fundamentais e métodos próprios da ciên-
cia. Parafraseando Courant e Robbins – que enfrentaram o mesmo problema quando buscavam res-
ponder o que é a matemática? – lembra da expressão usada por eles: “Tanto para entendidos como
para profanos não é a filosofia, e sim unicamente a experiência ativa em matemática, a que pode res-
ponder a pergunta que é a matemática?”. Complementa Olivé: “Nisso se equivocam redondamente”
(p. 25). Logo, sobre a matemática e a ciência, há algo mais a dizer que seus métodos e ideias.
A segunda maneira de responder à provocação, ainda segundo Olivé (2000), é considerar que a pro-
vocação não é uma pergunta científica. Isto é, a resposta deve basear-se em algo mais do que méto-
dos, ideias e descrições tidas como exatas. Defende que para responder à questão, cientistas e não-
cientistas devem refletir sobre o que fazem os cientistas, sobre como o fazem, sobre os resultados que
obtêm e como é a que está condicionado todo esse sistema. Conclui escrevendo: “Dado que se trata
de uma pergunta sobre a ciência – de uma pergunta metacientífica –, não se requer fazer o mesmo que
se faz na ciência para respondê-la” (p. 26).
Para a análise desta pergunta metacientífica e seus problemas, Olivé (2000) diz que há três disci-
plinas que podem dar conta da reflexão: a história da ciência, a sociologia da ciência e a filosofia da
ciência. Parece que fica claro que a tarefa de responde a provocação não é simples nem trivial.
Para nós, parece haver uma relação direta entre o que sabemos sobre ciência [e tecnologia] e o que en-
sinamos e como ensinamos ciência [e tecnologia]. Some-se a isso a visão ampliada que poderemos ter
com as contribuições advindas das disciplinas história, sociologia e filosofia da ciência [e tecnologia].
Assim como Chalmers (1993), Olivé (2000) e muito outros, não temos a pretensão de responder à
pergunta, considerando os argumentos dos autores e, também, porque este não é nosso objetivo neste
trabalho. Buscaremos uma trajetória instrumental e intencional do(s) conceito(s) de ciência, visto
que queremos refletir sobre o conceito herdado de ciência, a participação de fatores sociais e indivi-
dual na produção da ciência e da tecnologia e a relação destas com a sociedade, espelhada na imagem
pública da ciência e da tecnologia.
Vamos, pois, em nosso trajeto provocativo, (1) descrever as diferentes visões sobre ciência e as con-
tribuições da sociologia da ciência e da tecnologia, (2) apresentar os resultados de pesquisas de opi-
nião sobre Ciência e Tecnologia a fim de identificarmos pontos fortes e paradoxos na opinião dos
cidadãos. Depois, vamos (3) estudar as visões distorcidas de Ciência que alimentam as concepções
dos cidadãos para, ao final, (4) apresentarmos algumas especificidades que devem ser consideradas
no esforço de entender o que seja Ciência nas suas mais diversas concepções.
Deixamos claro, desde já, que não há nenhuma pretensão de obter um conceito de ciência, tarefa a
que se dedicam faz tempo os epistemólogos da ciência. A proposta aqui é levantar reflexões e apre-
sentar visões pouco comuns nas discussões sobre Educação em Ciências e CTS que são, forte e infe-
lizmente, pautados na tradição que precisa ser superada. Por tal, buscaremos apresentar pesquisas
sobre como a população em geral vê a Ciência e a Tecnologia e as reflexões sobre o que não se deseja
na aprendizagem de Ciência e Tecnologia. Daremos espaço para transcrições avantajadas dos textos
escolhidos para exemplificar a ideia que necessitamos para seguir a diante na discussão CTS.
Sobre o escopo e intencionalidade deste capítulo, é importante antecipar que, ao apresentar a evo-
lução da Sociologia da Ciência, Oliver Martin (2003) – como poderíamos lançar de mão de Berger e
Luckmann 2014, Vega Encabo (2012), Bennàssar et al (2011), Chikara Sasaki (2010), Pierre Bourdieu
(2003, 2008), Shinn e Ragouet (2008), Jesús Valero (2004), Stephen Cutcliffe (2003), dentre outros
– elenca as ideias norteadoras dos pensadores em Sociologia iniciando com Auguste Comte (1789-
1857), Karl Marx (1818-1883), Levy-Bruhl (1857-1939), Émile Durkheim (1858-1917) para, após isso,
iniciar o período que chamou de Sociologia do Conhecimento Científico. Chama atenção para o fato
que nenhum dos autores clássicos, apesar de citarem o conhecimento científico, “o converteu em
objeto central de seus propósitos” (p. 18) e apresenta três autores que, em sua visão, abordaram preci-
samente o conhecimento científico como objeto de estudo: Max Scheller (1874-1928), Karl Mannhein
(1893-1947) e Pitirim Sorokin (1889-1968).
O autor deixa claro que as discussões sobre verdadeiro e falso; objetivo e subjetivo, ciência e não-
ciência e tudo mais que trate de um relativismo em ciência não possui espaço nem apoio até então.
Essa visão ingênua será ampliada e enriquecida quando, nas décadas de 1920 e 1930, a ciência co-
meçou a ser encarada de forma diferente, especialmente no processo diferenciado de elaboração e
de construção, bem como o sistema de difusão do conhecimento científico e de como os cientistas
se organizavam. Esta nova fase é personalizada e demarcada, ainda segundo Martin (2003), tendo
como símbolo Robert Merton, que inaugura uma corrente chamada por Shinn e Ragouet (2008) de
diferenciacionistas.
A nosso ver, a primeira ideia que derivará no Campo CTS pode ter origem nas reflexões mertonia-
nas, nas décadas de 1940-50, quando deixa claro que a ciência não é natural – o que indica que é de
produção social – e que estrutura a sociologia normativa, dando mostra que é necessário o estabele-
cimento de regras externas a fim de regrar interesses e crenças na produção científica.
No mesmo período, John D. Bernal (1937) publica, na Inglaterra, A Função Social da Ciência, trazen-
do para a arena das ideias as questões que hoje são próprias da Construção Social da Ciência (e da
Tecnologia).
Merton e Bernal podem ser resgatados como possíveis precursores dos estudos atuais do Campo
CTS.
Esta nova fase recebe as contribuições de Thomas Kuhn (1922-1996), cujas ideias servem como ponto
de partida para reflexões e surgimento de abordagens importantes para esta nova etapa da sociologia
da ciência. Dentre as manifestações inovadoras desta fase, podemos enumerar:
1. O grupo de estudos franco-britânico (PAREX: Paris e Sussex), fundado em 1971 e que pas-
sou a se chamar, em 1981, European Association for the Study of Science and Technology.
2. O chamado Programa Forte em Sociologia do Conhecimento Científico, criado e manti-
do por sociólogos da Universidade de Edimburgo e
3. O chamado Programa Empírico do Relativismo, criado e mantido por especialistas da
Universidade de Bath, na Inglaterra.
Estes programas de estudos sociais da ciência trouxeram à tona questões que demonstram que o
conhecimento científico é socialmente construído, que a comunidade científica trabalha a partir de
crenças e interesses, que os cientistas e grupos possuem valores prévios que, em alguma medida,
interferem nas decisões que tomam.
Não temos, pois, a pretensão de tratar do conceito de ciência como fazem – e muito bem – os epis-
temólogos. Muito menos trazer para este espaço as questões e reflexões daquele grupo. Aqui vamos
descontruir a ideia de Ciência herdada, neutra, positiva, individual e fechada nos laboratórios.
Podemos, a título de ilustração das questões em torno da Ciência e dos embates calorosos, socorrer-
nos, por exemplo, de Steve Woolgar (1991), de Pierre Bourdieu (2003, dentre outros) ou Boaventura
de Sousa Santos (2003, dentre outros). Optamos por Boaventura de Sousa Santos (2003), por sua
proximidade com o universo ibero-americano e escolhemos sua obra Conhecimento Prudente para
uma vida decente: Um discurso sobre as ciências revisitado14, quando descreve sucintamente um dos
muitos aspectos que podem exemplificar a complexidade do tema que é a chamada “guerras da ciên-
cia” que “foi, acima de tudo, um debate entre cientistas em geral e cientistas cujo objeto de investi-
gação é a própria ciência enquanto fenômeno social” (2003, p. 17).
Este confronto de ideias e posições, inclusive de visão pessoal, teve momentos mais agudos como,
por exemplo, as publicações de Lewis Wolpert (1992) e de Gross e Levitt (1994).
Sempre pela descrição de Boaventura de Sousa Santos (2003) – reiterando nossa intencionalidade e
escolha assumida de posição e de narrativa –, Lewis Wolpert (1992) escreve The Unnatural Nature of
Science, tendo como alvo os autores do Programa Forte da Sociologia do Conhecimento e do Progra-
14
Esta obra é uma reflexão coletiva sobre outra obra clássica de Boaventura de Souza Santos: Um discurso sobre as ciências, de
1987
ma Empirico do Relativismo.
Gross e Levitt (1994) publicam o Higher Supertition, que seria “inspiração para muitos violentos ata-
ques que vieram a seguir” (2003, p. 18), contra os estudos culturais, os estudos feministas, os estudos
sobre raça e etnia e as “anticiência” (astrologia, terapias alternativas etc).
Boaventura de Sousa Santos (2003) lembra ainda, em sua descrição da “guerras da ciência”, do caso
Sokal, considerado um dos mais agudos episódios deste conjunto de eventos. Em 1996, a revista So-
cial Text publicou um número sobre o tema Science Wars15. Neste número, o físico Alan Sokal (1996)
apresentou um artigo “Transgressing the boundaries: towards a transformative hermeneutics of
quantum gravity”. Nele, Sokal apresentou uma “reinterpretação pós-moderna do domínio dos estu-
dos sobre a gravidade quântica, [sendo que] o texto apoiava-se num extenso rol de autores invariavel-
mente associados às correntes rotuladas de ‘anticiência’” (2003, p. 19), com o intuito de demonstrar
que o embuste produzido por ele poderia ser publicado se contivesse sinais externos que o caracteri-
zasse como aceitável pela corrente que ele desejava criticar (pós-modernistas).
A polêmica continuaria mais tarde com a publicação Impostures Intellectualles (Sokal e Bricmont,
1997), que tinha como alvo os intelectuais franceses pós-modernos como, por exemplo, Lacan, La-
tour, Deleuze, dentre outros. A resposta a este texto veio a público por meio da obra Impostures
Scientifiques, de Jurdant (1998).
Para concluir a narrativa sintética deste conjunto de episódios que busca representar a dificuldade de
tratar o tema ciência e aqueles a que produzem, daremos a palavra a Boaventura de Sousa Santos (2003):
Naturalmente que os grandes debates epistemológicos permanecem, mas parecm ter deixa-
do de ser campos de batalha para se acolherem no âmbito e no estilo de discussões acadêmi-
cas, sem dúvida intensas, mas pacíficas e com repeito mútuo pelas diferenças (p. 22).
O decorrer da “guerra” tornou ainda mais claro que as diferenças epistemológicas não co-
rriam apenas entre cientistas naturais e cientistas sociais, mas também entre cientistas
naturais e entre cientistas sociais, e que tais diferenças se articulavam de modo complexo
com as diferenças culturais e políticas, com diferentes concepções sobre a relação entre
conhecimento científico e outras formas de conhecimento. Em suma, tornaram-se mais cla-
ras as divergências e as suas causas, e, se não aumentou a tolerância, aumentou, pelo menos,
o conhecimento da diversidade de perspectivas (p. 23). Grifos nossos
Posto o nosso entendimento sobre a Ciência e a maneira como trabalham os cientistas, vamso am-
pliar o escopo de nossos estudos buscando conhecer como a população em geral percebe a Ciência.
Santos (2003) chama atenção para o fato de que “uma versão ampliada do número temático se Social Text viria a ser publicada
15
no mesmo ano, sem o texto de Sokal e com a adição de textos não incluídos na publicação original (Ross, 1996). Este volume seria
uma das respostas mais importantes aos atoaques dos “guerreiros da ciência” (p. 19, nota de rodapé)
A pesquisa é resumida pelos autores da seguinte forma (Vogt e Polino, 2003, p.19-27):
Representação social da ciência: A imagem que prevalece na pesquisa apresenta “a ciência como
epopéia de grandes descobertas" (35,3% em média), a ciência como condição de ’avanço tecnológico’
(46,4% em média) e, por último, a ciência como fonte de benefícios para a vida do ser humano (45,4%
em média) ”. Apesar de ser bastante comum na mídia, por exemplo, imagens que apresentam uma
valoração negativa ("perigo de descontrole", "concentração de poder" ou "idéias que poucos enten-
dem") estão em posição secundária.
Utilidade da ciência: Os entrevistados dos quatro países (72% em média) consideram que o desen-
volvimento da ciência e da tecnologia é o principal motivo da melhoria da qualidade de vida da so-
ciedade. Interessante comparar esta resposta com o fato de que os respondentes não esperam que a
Ciência e a tecnologia sejam capazes de solucionar todos os problemas (85,9% em média).
A imagem da ciência como conhecimento legítimo: Os resultados indicam que a “sociedade moderna
enfatiza a racionalidade científica e deposita sua confiança na verdade da ciência, em detrimento da
fé religiosa”. As respostas brasileiras sobre legitimidade da ciência alcançam 70,4%, enquanto a dis-
cordância está em 27,2%. Nos demais países, as respostas são equilibradas.
A ciência na vida cotidiana: Para a afirmação de que "o mundo da ciência não pode ser compreen-
dido pelas pessoas comuns" encontra-se equilíbrio entre a concordância e a discordância. Quando
são analisados os resultados globais, a discordância sobe para 53,4% e a concordância alcança 45,7%,
em média. A maioria dos entrevistados nos quatro países (aproximadamente 60%) “considera que
ela opera como fator de racionalidade da cultura humana, uma vez que, se se descuidasse da ciência,
‘nossa sociedade seria cada vez mais irracional’.”
A ciência e a tecnologia como fontes de risco: 74,3%, em média, dos entrevistados considera que "os
benefícios da ciência e da tecnologia são maiores que os efeitos negativos", mas, diante da afirmação
de que "o desenvolvimento da ciência traz problemas para a humanidade", encontramos diferentes
posições nos quatro países participantes:
• Na Argentina, as respostas estão muito equilibradas, embora, como no Brasil, sobressaia
a discordância (pouco mais de 50%, em média).
• Na Espanha e no Uruguai as respostas se inclinam para a concordância (57% em média).
Nesse sentido, apesar da tendência geral da imagem favorável da ciência, a percepção é
de que ela não está livre de ter conseqüências negativas.
Entre os principais problemas, mencionam-se "os perigos de aplicar alguns conhecimentos" e "a uti-
lização do conhecimento para a guerra”.
A imagem dos cientistas e da atividade científico-tecnológica: Nos quatro países a vocação para o
conhecimento aparece como o é o principal motivo que leva os cientistas a desenvolver seu trabalho
Percepção da ciência e tecnologia local: Nos quatro países predomina uma imagem do desenvol-
vimento científico-tecnológico local segundo a qual existe "um pouco de ciência e tecnologia em
algumas áreas (temáticas)".
• Na Argentina, no Brasil e na Espanha, as respostas oscilam entre 55% e 64% de adesões.
• No Uruguai as respostas são mais numerosas, chegando a 80%.
No que se refere ao financiamento pelo Estado da Ciência e Tecnologia, parece haver uma ideia de
que este financiamento é insuficiente.
• Na Argentina, Espanha e Uruguai, a adesão chega a 87% das respostas. Apesar disso, o
Brasil apresenta novamente um comportamento diferenciado, pois uma porcentagem
nitidamente superior (27,8%) à dos demais países opina que o Estado financia a pesqui-
sa nesse país de maneira "razoavelmente suficiente".
• Do mesmo modo, 82% dos entrevistados na Argentina, 62,3% no Brasil e 78,9% na Es-
panha indicam que o "pouco apoio estatal" é o principal fator que limita o desenvolvi-
mento da ciência e tecnologia, descartando a responsabilidade de outros setores.
• Por outro lado, no Uruguai (66%), Argentina (59,4%) e, em menor escala, Espanha
(43,2%), os entrevistados opinam que os conhecimenos gerados em seus países "têm
utilidade, mas não se difundem".
Informação científica incorporada: Na Argentina (80%), Brasil (71 %) e Espanha (67%), os entrevis-
tados se consideram "pouco informados" no que se refere à ciência e tecnologia.
Valorações a respeito de cientistas e jornalistas: Nos quatro países se tende a considerar que só em
algumas ocasiões a comunicação dos cientistas com a sociedade é de difícil compreensão. Os en-
trevistados pressupõem, com isso, que a eventual incapacidade de comunicação dos cientistas não
é uma condição estrutural de suas competências profissionais, mas, fundamentalmente, depende
de outros fatores.
Nos quatro países participantes, 94,5%, em média, acredita ser importante participar em questões de
ciência e tecnologia, mas, ao mesmo tempo, somente 7,3%, em média, informaram já ter tido expe-
riências concretas de participação.
Assim, observa-se que, no caso da Espanha, apesar de seu caráter minoritário, o nível de
participação efetiva é praticamente o dobro daquele dos outros países. Além disso, observa-
se que, para a ampla maioria dos entrevistados dos quatro países, "o cuidado com a vida e a
saúde" constitui o principal motivo que justifica a utilidade da participação. Outras opções,
como "controlar o funcionamento das empresas" ou "controlar a atividade dos cientistas",
recebem adesões que não superam os 25% em nenhum dos casos. Do mesmo modo, um dos
principais obstáculos que a maioria nos quatro países coincide em assinalar - sempre com
uma frequência superior aos 50% - é que as pessoas não têm conhecimentos suficientes
para exercer tal prática. No caso do Brasil, Espanha e Uruguai, esse motivo é o principal
entre os as-sinalados. Diverso é o caso da Argentina, onde ocupa o segundo lugar, prece-
dido pela categoria "as pessoas têm problemas mais importantes pelos quais reclamar e
participar". Entretanto, essa escolha, prioritária na Argentina e no Uruguai – onde detém a
segunda colocação –, ocupa o último lugar no Brasil e na Espanha.
Na mesma linha de ação, foi realizada uma pesquisa nacional promovida pelo Ministério da Ciência
e Tecnologia, com a parceria da Academia Brasileira de Ciências, coordenada pelo DEP-DI/SECIS/
MCT e pelo Museu da Vida/COC/FIOCRUZ, com colaboração do LABJOR/UNICAMP e da FAPESP,
intitulada “Percepção Pública da Ciência”16 e, também, a versão da pesquisa realizada em 201517.
A pesquisa quantitativa tinha como objetivo o levantamento do interesse, grau de informação, atitu-
des, visões e conhecimento que os brasileiros têm da Ciência. O público alvo era a população brasilei-
ra adulta, constituída de homens e de mulheres, com idade igual ou superior a 16 anos. Foi realizado
por meio de entrevistas domiciliares e pessoais, com questionário estruturado, realizadas entre no-
vembro e dezembro de 2006. A amostra representativa de 16 estados foi de 2004 (duas mil e quatro)
entrevistas18.
A análise, mesmo que rápida, permite extrair alguns pontos interessantes e deixa claro um grande
interesse da população por temas como Medicina e Saúde, Meio Ambiente e Ciência e Tecnologia.
Deixa patente também que os jovens e adultos possuem uma percepção própria de ciência que deve
ser considerada no processo de ensino-aprendizagem o que, na maioria das vezes, não é sequer con-
siderado pelos docentes das disciplinas científicas.
Por fim, podemos elencar uma série de crenças em torno da ciência e do conhecimento científico que
o Campo CTS procura desconsturir e reconceitualizar, conforme Ziman (1980):
• Cientificismo: crença antiga, originária do nascimento da ciência moderna e de pen-
samentos filosóficos e políticos europeus, baseia-se na ideia de que qualquer atividade
16
Ministério da Ciência e Tecnologia. Percepção Pública da Ciência e Tecnologia. Departamento de Popularização e Difusão
da C&T. Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social. Ministério da Ciência e Tecnologia, www.mct.gov.br/index.
php/content/view/50875.html, obtido em 07/09/2007, cujo resumo pode ser encontrado em http://www.mct.gov.br/upd_
blob/0013/13511.pdf
17
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. http://percepcaocti.cgee.org.br/ ou http://www.mcti.gov.br/noticia/-/asset_pu-
blisher/epbV0pr6eIS0/content/mcti-lanca-estudo-sobre-a-percepcao-publica-da-c-t;jsessionid=E908832B10803193C5020620
B6E628E7 , obtidos em 12/10/2015
18
Intervalo de confiança de 95%, tem uma margem de erro máxima de 2,2 pontos percentuais para mais ou para menos
científica é valiosa, sem realizar análises profundas sobre a mesma e sobre suas conse-
quências;
• Anti-cientificismo: ideia que surge como oposição ao cientificismo, julgando como ne-
gativas as atividades científicas, como causadoras de todos os males sociais;
• Método Científico: suposição de que o método científico valida todo conhecimento
científico produzido, fazendo com que haja pouca discussão em sala de aula sobre a
natureza da metodologia científica, sobre seus limites e aplicações;
• Positivismo: mito atrelado ao cientificismo, no qual a ciência é vista como única forma
de obter a verdade, podendo, em seu extremo, negar qualquer outra fonte de conheci-
mento que não científico;
• “Ciência pura”: crença baseada na ideia de que os cientistas devem alcançar a ciência
pura através da busca desinteressada pela verdade, sendo financiados pela sociedade, a
qual irá receber em troca os benefícios que advirem da procura da verdade;
• Otimismo tecnológico: a crença de que qualquer coisa que seja tecnicamente possível
será um dia desenvolvida;
• Visão instrumental da ciência: a ideia de que basta realizar pesquisas o suficiente sobre
determinado tema para que qualquer objetivo seja atingido;
• Tecnocracia: baseia-se no mito de que apenas cientistas ou especialistas podem dar
conselhos confiáveis sobre quaisquer assuntos;
• Religiosidade científica: a fé que se deposita no valor da ciência passa a ser projetada
para os seus praticantes, cientistas e especialistas. Estes devem pertencer a uma classe
de indivíduos com virtudes condizentes com a dita atitude científica;
• Neutralidade moral da ciência: a crença de que a ciência é boa por natureza e que, por
isso, na busca pela verdade não existiria a necessidade de se questionar se as ações fei-
tas seriam éticas e humanas.
Pesquisas como essas permitem perceber o quanto se desconsidera os conhecimentos prévios dos
jovens e adultos no processo de construção da Ciência e da Tecnologia e o quanto o processo tradi-
cional de Ensino de Ciências e Tecnologia às vezes alimenta imagens que não correspondem àquelas
reconceitualizadas pela História da Ciência e Tecnologia, pela Filosofia da Ciência e Tecnologia e
pela Sociologia da Ciência e Tecnologia, principalmente.
A UNESCO, no conjunto de ações que marcam a Década da Educação para o Desenvolvimento Sus-
tentado (2005-2014), lançou recentemente um livro intitulado Como promover interés por la cultura
científica? – Uma propuesta didáctica fundamentada para la educacion científica de jóvenes de 15 a 18
años (2005), onde defende a chamada Alfabetização Científica. O livro, que reúne um grande número
São as hipóteses, pois, as que orientam a procura de dados. Umas hipóteses que, por sua vez,
nos remetem ao paradigma conceptual de partida, pondo de novo em evidencia o erro das
propostas empíricas.
A concepção algorítmica, como a empiro-inductivista, em que se apóia, pode manter-se na
mesma medida em que o conhecimento científico se transmite de forma acabada para a sua
simples recepção, sem que os estudantes, nem os professores tenham ocasião de constatar
praticamente as limitações desse suposto "Método Científico". Pela mesma razão incorrese
com facilidade numa visão aproblemática e ahistórica da atividade científica à que nos referi-
remos em seguida.
5. Uma visão aproblemática e a-histórica (ou acabada e dogmática) (p. 49-50)
Como já referimos, o fato de transmitir conhecimentos já elaborados, conduz muito freqüen-
temente a ignorar quais foram os problemas que se pretendiam resolver, qual tem sido a evo-
lução de ditos conhecimentos, as dificuldades encontradas etc., e mais ainda, a não ter em
conta as limitações do conhecimento científico atual ou as perspectivas abertas.
Ao apresentar uns conhecimentos já elaborados, sem sequer se referir aos problemas que es-
tão na sua origem, perdese de vista que, como afirma Bachelard, "todo o conhecimento é a res-
posta a uma questão", a um problema. Este esquecimento dificulta captar a racionalidade do
processo científico e faz com que os conhecimentos apareçam como construções arbitrárias.
Por outra parte, ao não completar a evolução dos conhecimentos, ou seja, ao não ter em conta
a história das ciências, desconhece-se quais foram as dificuldades, os obstáculos epistemoló-
gicos que foram preciso superar, o que resulta fundamental para compreender as dificuldades
dos alunos.
Devemos insistir, uma vez mais, na estreita relação existente entre as deformações contem-
pladas até aqui. Esta visão aproblemática e ahistórica, por exemplo, torna possível as conce-
pções simplistas sobre as relações ciência-tecnologia. Pensemos que se toda a investigação
responde a problemas, com frequência esses problemas têm uma vinculação directa com ne-
cessidades humanas e, portanto, com a procura de soluções adequadas para problemas tecno-
lógicos prévios.
De facto, o esquecimento da dimensão tecnológica na educação científica impregna a visão
distorcida da ciência socialmente aceite que evidenciamos aqui. Precisamente por isto, escol-
hemos dar o nome de "Possíveis visões deformadas da ciência e da tecnologia", tratando assim
de superar um esquecimento que historicamente tem a sua origem na distinta valorização do
trabalho intelectual e manual, e que afecta gravemente a necessária alfabetização científica e
tecnológica do conjunto da cidadania.
A visão distorcida e empobrecida da natureza da ciência e da construção do conhecimento
científico, em que o ensino das ciências incorre por acção ou omissão, inclui outras visões
deformadas, que têm em comum esquecer a dimensão da ciência como construção de corpos
coerentes de conhecimentos.
6. Uma visão exclusivamente analítica (p. 50-51)
Referimo-nos em primeiro lugar, ao que temos denominado visão "exclusivamente analíti-
ca", que está associada a uma incorreta apreciação do papel da análise no processo cientí-
fico.
Assinalemos, para iniciar, que uma característica essencial de uma aproximação científica é
a vontade explícita de simplificação e de controle rigoroso em condições préestabelecidas,
o que introduz elementos de artificialidade indubitáveis, que não devem ser ignorados nem
ocultados: os cientistas decidem abordar problemas resolúveis e começam ignorando cons-
ciente e voluntariamente muitas das características das situações estudadas, o que eviden-
temente os "afasta" da realidade; e continuam afastando-se mediante o que, sem dúvida, há
que considerar a essência do trabalho científico: A invenção de hipóteses e modelos...
O trabalho científico exige, pois, tratamentos analíticos, simplificatórios, artificiais. Mas
isto não supõe, como às vezes se critica, incorrer necessariamente em visões parcializadas
e simplistas: na medida em que se trata de análises e simplificações conscientes, tem-se
presente a necessidade de síntese e de estudos de complexidade crescente. Pensemos, por
exemplo, que o estabelecimento da unidade da matéria - que constitui um claro apoio a
uma visão global, não parcializada – é uma das maiores conquistas do desenvolvimento
científico dos últimos séculos: os princípios de conservação e transformação da matéria e da
energia foram estabelecidos, respectivamente, nos séculos XVIII e XIX, e foi só nos finais
do século XIX quando se produziu a fusão de três domínios aparentemente autônomos -
electricidade, óptica e magnetismo - na teoria eletromagnética, que se abriu um enorme
campo de aplicações que seguem revolucionando a nossa vida de cada dia. E não há que
esquecer que os proces¬sos de unificação exigiram, com freqüência, atitudes críticas nada
cômodas que tiveram que vencer fortes resistências ideológicas e inclusive perseguições e
condenações, como nos casos, bem conhecidos, do heliocentrismo ou do evolucionismo. A
história do pensamento científico é uma constante confirmação de que os avanços têm lugar
profundizando o conhecimento da realidade em campos definidos; é esta profundização
inicial a que permite chegar posteriormente a estabelecer laços entre campos aparentemen-
te desligados.
sobre a ciência não garante que o comportamento docente seja coerente com estas concepções. O es-
tudo destas ditas concepções tem-se convertido, por essa razão, numa potente linha de investigação
(Cachapuz et al, 2005; UNESCO, 2005).
Uma outra linha de pesquisa que se amplia no universo da Ciência e Tecnologia é aquela que busca
identificar e entender as crenças e atitudes perante a Ciência, Tecnologia e Sociedade e que têm em
Acevedo, Vasquez e Manassero produtivos pesquisadores na região iberoamericana, dentre outros.
Os autores partem das premissas contemporâneas – que não há um conceito correto ou mais co-
rreto de Ciência e de Tecnologia, que não há um único método científico e que as atitudes podem
ser classificadas em ingênuas (i), plausíveis (p) ou adequadas (a) –, e desenvolvem neste momento
extensa pesquisa sobre as atitudes frente aos conceitos CTS, envolvendo seis países da iberoamérica,
inclusive Brasil. Para ter ideia de o quanto se flexibiliza os conceitos de Ciência, podemos citar uma
das questões:
10111 Definir o que é a ciência é difícil porque ela é complexa e engloba muitas coisas. Mas
a ciência é, PRINCIPALMENTE:
A. o estudo de áreas tais como biologia, química, geologia e física.
B. um corpo de conhecimentos, como princípios, leis e teorias que explicam o mundo que
nos rodeia (matéria, energia e vida).
C. explorar o desconhecido e descobrir coisas novas sobre o mundo e o universo, e como
funcionam.
D. realizar experiências para resolver problemas de interesse sobre o mundo que nos rodeia.
E. inventar ou conceber coisas (por exemplo corações artificiais, computadores, veículos
espaciais).
F. pesquisar e usar conhecimentos para fazer deste mundo um lugar melhor para viver (por
exemplo curar doenças, solucionar a contaminação e melhorar a agricultura).
G. uma organização de pessoas (chamados cientistas) que têm ideias e técnicas para desco-
brir novos conhecimentos.
H. um processo de investigação sistemático e o conhecimento que daí resulta.
I. não se pode definir ciência.
Em uma de suas pesquisas, Acevedo, Vasquez e Manassero (2002) comentam o resultado sobre a
questão:
Definição da ciência. Predominam as respostas adequadas e aplausíveis (algo mais menos
do que a metade em cada caso). A opção da ciência como um corpo do conhecimento foi
escolhida por mais de um terço. Segue a grande distância (16,8%) a frase plausível que con-
sidera a ciência como uma forma de explorar o desconhecido e fazer descobertas sobre o
mundo e seu funcionamento. Conseqüentemente, de maneira global, a conceitualização da
ciência feita pelos estudantes poderia ser avaliada como apropriado, já que majoritariamen-
te captam muitos aspectos da essência da ciência.
A maneira mais segura de diminuirmos a possibilidade de sermos “contaminados” por estas visões
deformadas de ciência e, pior, de multiplicarmos esses conceitos é buscarmos enxergar as ciências
por vários ângulos, por vários campos definidos do saber que, ao longo do tempo, vêm se estabelecen-
do no delicado processo de entendimento do que seja Ciência e de sua relação com a Tecnologia e a
Sociedade. Estes estudos são desenvolvidos por meio de ramos de estudos definidos como Filosofia
da Ciência e da Tecnologia, História da Ciência e da Tecnologia e Sociologia da Ciência e da Tecno-
logia, principalmente, que podem assim ser definidas sinteticamente:
Olivé (2000), ao classificar esta área de estudo, apresentará outra interessante conceituação. Ele cha-
mará de construtivismo social aquela posição que sustenta que “os produtos das ciências, e as práti-
cas responsáveis de produzí-los, devem estão sujeitos ao mesmo tipo de análise que se realiza sobre
textos e outros produtos culturais” (p. 172). Após isso, propõe a seguinte categorização:
• Construtivismo social – defendida por representantes da Escola de Edimburgo (Da-
vid Bloor e Barry Barnes, principalmente);
• Construtivismo (neo)kantiano – que trata da construção social do mundo a que se
refere as teorias científicas. Relembra Kuhn e escreve: “São os grupos, e as práticas
de gruposque constituem o mundo (e são constituídos por eles). E a prática-no-
Uma maneira objetiva de construir uma imagem mais realista da Ciência é abdicar dos modelos tra-
dicionais de ensino de Ciências, que vê e apresenta nos manuais a Ciência como uma “marcha gran-
diosa” onde os capítulos possuem uma fluência e seqüência lógica sem nenhum tipo de percalço ou
dificuldade. Nessa visão, toda a Ciência produzida em século pode ser resumida em algumas horas de
explanação linear e sem sobressaltos de qualquer ordem.
Sobre isso, Hellman (1999) lembra que é o processo que caracteriza a Ciência e este processo é desen-
volvido por homens e, por conta disso, este processo esta impregnado de sentimentos e erros huma-
nos. Ao contrário dos erros tecnológicos que são imediatamente percebidos, por conta dos desastres
que causam, os erros científicos não são propalados nem divulgados... a Ciência é sempre apresen-
tada com um crescimento linear. Hellman escreveu uma obra que trata dos dez grandes embates no
campo da Ciência tentando provar que a Ciência não tem crescimento linear como é ensinada e que
há sim dificuldades das mais diversas entre os cientistas e as comunidades de homens de ciência.
Para citar a dificuldade vivida por um cientista quando a ideia que defende é derrotada num emba-
te científico por outro cientista que apresenta uma explicação mais adequada para um fenômeno,
Hellman lembra a batalha travada por 25 anos entre Thomas Hobbes e o matemático John Wallis. O
primeiro defendendo a geometria e desdenhado a álgebra do segundo.
Para exemplificar as lutas pela de “paternidade de uma ideia” (o que chama de prioridade), neces-
sária para identificar o primeiro autor de uma ideia, Hellman informa que isso é um fato muito co-
mum entre os cientistas, e exemplifica esta dificuldade lembrando que esta dificuldade ocorreu entre
Newton e Leibniz (cálculo), Faraday e Henry (indução eletromagnética), Adams e Leverrier (des-
coberta de Netuno), Darwin e Wallace (teoria da evolução) e Heisenberg e Schrödinger (mecânica
quântica).
Conheça mais:
Fernández, I.; Gil, D.; Vilches, A.; Valdés, P.; Cachapuz, A.; Praia, J.; Salinas, J.. El olvido de la tecnología como
refuerzo de las visiones deformadas de la ciência. Revista Electrónica de Enseñanza de las Ciencias Vol. 2 Nº 3
(2003) http://www.saum.uvigo.es/reec/volumenes/volumen2/Numero3/Art8.pdf
Segundo Kneller (1980, p. 245s), a palavra Tecnologia deriva do grego techne, que significa arte ou
habilidade, permitindo pensar que a tecnologia resulta e se produz essencialmente em uma ação prá-
tica que busca alterar o mundo a sua volta mais do que compreendê-lo. Diz o autor que
onde a Ciência persegue a verdade, a tecnologia prega a eficiência. Enquanto a Ciência pro-
cura formular as leis a que a natureza obedece, a tecnologia utiliza essas formulações para
criar implementos e aparelhos que façam a natureza obedecer ao homem (p. 245).
Essa proposta de definição pode se confundir com uma visão simplista de Tecnologia. Mesmo nesta
visão ingênua de Tecnologia (Tecnologia como aparato resultante da Ciência) são necessários con-
hecimentos específicos desenvolvidos em campo do saber específico, técnicas cada vez mais apura-
das, instituições de apoio e fomento, sistema capaz de ampliar a escala dos produtos etc. e, ao final,
a Tecnologia resultante pode gerar mais conhecimento tecnológico, rompendo o vínculo frágil de
causalidade entre Tecnologia e Ciência.
19
Conheça mais em http://en.wikipedia.org/wiki/Melvin_Kranzberg (em inglês)
20
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Ortega_y_Gasset
tal; Ele não percebe que a sua capacidade é um muito especial que lhe permite remode-
lar a natureza no sentido de seus desejos” (p. 28).
• O segundo estágio é chamado de técnica do artesão. É a arte da Grécia antiga, de Roma
pré-imperial e da Idade Média. Aqui, os atos técnicos desenvolveram-se fazendo com
que alguns homens se encarreguem deles: os artesãos.
• O terceiro estágio é chamado a técnica do técnico. “O homem adquire consciência su-
ficientemente clara que tem uma certa capacidade completamente diferente da rígida,
imutável, que compõem o seu animal natural ou porção. Percebe que a técnica não é
aleatória, como no estado primitivo, ou um determinado tipo de dado e homem-artesão
limitada; a técnica não é tecnicamente ou determinada e, portanto, fixa, mas exatamen-
te um manancial de actividades humanas, em princípio, ilimitado” (p. 31).
Quanto a segunda visão ingênua de Tecnologia, a que a reduz a Ciência aplicada, podemos recorrer
a diversos autores a fim de melhor entender como estes dois campo do conhecimentos podem se
relacionar sem a visão estreita de submissão obrigatória de um deles ao outro.
Segundo Kneller (1980), o estudo das relações entre Ciência e Tecnologia permite, pelo menos, três
ângulos distintos:
• O primeiro é aquele que afirma que a produção tecnológica, especialmente a partir do
século XVII, assentou em leis, teorias ou dados estabelecidos pela Ciência dita pura. Se-
gundo Kneller, Joseph Henry teria dito em conferência, no ano de 1832, que “toda arte
mecânica se baseia em princípio ou lei geral da natureza e... quanto mais familiarizados
estamos com essas leis, mais capazes devemos ser de acelerar e aperfeiçoar as artes
úteis”. Exemplificando sua tese com o fato de que
James Watt inventou sua máquina a vapor usando a teoria do sobre calor latente de
Joseph Black; os construtores navais empregaram os estudos matemáticos de Eu-
ler sobre curvatura dos cascos, e Humphry Davy inventou a lâmpada de segurança
para minas depois de ter estudado cientificamente o grisu. Do mesmo modo, as
realizações de Robert Fulton na navegação à vapor e a invenção por Eli Whitney do
descaroçador de algodão ‘dependeram de seus amplos conhecimentos científicos’.
• O segundo ângulo é aquele que aponta a Tecnologia como parceira decisiva, visto que im-
portantes avanços tecnológicos dependem da pesquisa científica. Esta se realiza em primeiro
lugar a fim de apresentar e organizar os conhecimentos necessários aos avanços. “São as ne-
cessidades tecnológicas que dão vigor e direção à pesquisa científica fundamental” (p. 248).
• O terceiro ângulo é aquele que defende a tese de que a Ciência e a Tecnologia se desenvolve-
ram independentemente (até 100 anos atrás, pelo menos!). Diversos historiadores da Ciência
defendem que
• até uns 200 anos atrás, as técnicas foram desenvolvidas por homens incultos e
anônimos (Rupert Hall),
• os primórdios da tecnologia moderna nada deveram à Ciência pois foram fruto
da tradição de invenção das artes mecânicas (Rupert Hall e Marie Boas Hall);
• a Revolução Industrial foi realizada por cabeças teimosas e dedos ágeis, por ho-
mens sem educação sistemática em Ciências ou Tecnologia, pois não havia pra-
ticamente intercâmbio entre cientistas e os inventores dos processos industriais
(Eric Ashby);
• alguns defendem que a Tecnologia só começou a fazer uso significativo da Ciên-
cia em fins do século XIX, com a indústria química (Hall e Granger).
Percebe-se que os conceitos simplistas e reducionistas que buscam vincular a Tecnologia como conse-
quência da Ciência não se sustentam. Esta é uma visão ingênua da Tecnologia. São inúmeros os exem-
plos de avanços tecnológicos dos quais podemos citar o interesse de Galileu pela mecânica despertado
pela observação dos estaleiros de Veneza; o surgimento da geologia por conta dos problemas efetivos
apresentados pela mineração, o uso por Darwin da experiência de criadores de gado etc. Por outro lado,
a Ciência vem alimentando a Tecnologia com conhecimentos indispensáveis ao surgimento e aper-
feiçoamento que aparatos tecnológicos.
Outro autor que contribuiu com a reflexão sobre a dissociação da Ciência e da Tecnologia em algum
momento da história é Granger (1994), que enumera uma série de exemplos, de onde extraímos o que
se segue:
O mesmo ocorreu com a construção e com a manobra dos navios, em que prevaleceram as
práticas empíricas ou certas teorias ambiciosas, mas errôneas. Convém, no entanto, res-
saltar a importância assumida entre os cientistas, já no final do século XVII, pela disputa
entre o marinheiro Renau d'Eliçagaray (Teoria da manobra dos navios, 1689) e Huygens,
Jean Bernoulli (Ensaio de lima nova teoria da manobra dos navios, 1714) e Euler (Scientia na-
valis, 1749). Quem estabelecerá cientificamente as condições de estabilidade e as regras de
manobra será Bouger (Tratado do navio, 1746, e Da manobra dos navios, 1757), sem que dele,
porém, tirem partido, antes do século XIX, os armadores ou os navegadores. A indústria
química é revolucionada por descobertas como a do cloro (1774) e a do método Leblanc de
fabricação da soda artificial (1780); mas o Tratado de química industrial, de Chaptal (1806)
mostra ainda a distância que separa da ciência, na época, até mesmo as receitas industriais.
Chaptal foi, porém, um dos químicos que mais contribuíram para as aplicações da ciência
na indústria, como também na agricultura... (p. 28)
Continuando as possíveis análises quanto às relações da Ciência e Tecnologia, podemos buscar a clas-
sificação de Niiniluoto21 (apud Bazzo, Linsingen e Pereira, 2003) nos oferece a seguinte classificação:
• Ciência seria redutível à tecnologia;
• Tecnologia seria redutível à ciência;
• Ciência e tecnologia são a mesma coisa;
• Ciência e tecnologia são independentes;
• Há uma interação entre ciência e tecnologia.
O ponto de vista mais amplamente aceito sobre a relação ciência-tecnologia é o que conceitua
a tecnologia como ciência aplicada, sendo portanto a tecnologia redutível à ciência. Este pon-
to de vista é o subjacente ao modelo linear do desenvolvimento que tem influenciado políticas
públicas de ciência e tecnologia até tempos recentes. Tal conceito tem estado presente tam-
bém, ainda que às vezes de modo implícito, na filosofia da ciência. Afirmar que a tecnologia é
ciência aplicada é afirmar que:
• Uma tecnologia é principalmente um conjunto de regras tecnológicas;
• As regras tecnológicas são consequências dedutíveis das leis científicas;
• Desenvolvimento tecnológico depende da investigação científica.
Acevedo, Vázquez, Manassero e Acevedo (2003) – e também Rebollo León (2008), Garcia-Palácio et al.
(2001) –, discorrendo sobre o mesmo autor detalham um pouco mais esta posição. Escrevem sobre os
21
Ver detalhes em http://en.wikipedia.org/wiki/Ilkka_Niiniluoto (em inglês)
Ampliando nossa análise, podemos recorrer a John M. Staundenmaier (1985 apud Bazzo, Lisingen e
Pereira, 2003) que, numa visão da historia da tecnologia, apresenta uma série de argumentos que nos
fazem refletir sobre a visão de Tecnologia como Ciência aplicada. Eis alguns dos argumentos:
• A tecnologia modifica os conceitos científicos. Thomas Smith estudou o Whirlwind
project, desenvolvido, após a Segunda Guerra Mundial, no MIT para criar um computa-
dor digital. Concluiu que a maior parte dos conceitos utilizados era endógena à própria
engenharia, e os que procediam das ciências (especialmente da física em relação com
o armazenamento magnético de informação) foram substancialmente transformados
para a sua utilização no desenvolvimento do projeto.
• A tecnologia utiliza dados problemáticos diferentes dos da ciência. Walter Vincenti
estudou o projeto aeronáutico, mostrando que a engenharia realiza abordagens impor-
tantes para problemas dos quais a ciência não se tem ocupado. Realiza uma categori-
zação do conhecimento tecnológico:
1) Conceitos fundamentais de projeto,
2) Critérios e especificações,
3) Ferramentas teóricas,
4) Dados quantitativos,
5) Considerações práticas, e
6) Instrumentação de desenhos.
• O conhecimento científico é importante nos casos 2, 3 e 4, mas parte destes
tipos de conhecimento procedem do próprio desenvolvimento tecnológico.
• A especificidade do conhecimento tecnológico. Ainda que existam fortes paralelis-
mos entre as teorias científicas e as tecnológicas, os pressupostos subjacentes são di-
ferentes. Segundo Layton, a tecnologia, por sua própria natureza, é menos abstrata e
idealizada que a ciência.
• A dependência da tecnologia das habilidades técnicas. A distinção entre a técnica
e a tecnologia se realiza em função da conexão desta última com a ciência (tanto em
relação com o conhecimento como com a metodologia, o uso de ferramentas teóricas,
etc.). Esta distinção não implica que na tecnologia atual não desempenhem nenhum
papel as habilidades técnicas.
Outra maneira de categorizar a tecnologia é proposta por Osorio (2002), quando propõe que a tecno-
logia seja observada pelos enfoques instrumental, cogntivo e sistêmico.
22
Para os que se interessem pelo aprofundamento das análises de Niiluoto, sugerimos o texto de Acevedo (2006)
Sobre este tipo de categorização da tecnologia podemos dizer, lembrando Lissingen (2002), que o en-
foque sistêmico é aquele que permite, por ver a tecnologia como prática social, perceber as delicadas
e, as vezes, intensas relações entre os aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais e valorativos,
especialmente entre aqueles que produzem tecnologia, que fomentam tecnologia, que optam por
usar tecnologia, que sofrem os efeitos de uma tecnologia que não optaram por usar e os que estão
privados do uso e das vantagens da tecnologia (mas recebem suas consequências). O enfoque sistê-
mico da tecnologia, a nosso ver, atende de forma mais ampla e mais densa a visão CTS de tecnologia.
Retomando a Bazzo, Linsingen e Pereira (2003), veremos que os mesmos autores propõem que tecno-
logia seja definida como um conjunto de sistemas projetados para realizar funções, incluindo desde
os aparatos e artefatos até as tecnologias como sistemas organizacionais. Os mesmo autores chamam
atenção para as aplicações e consequências da tecnologia, lembrando Radder (1996) e Pacey (1990).
Radder (1996, apud Bazzo, Linsingen e Pereira, 2003) enumera importantes características associa-
das à tecnologia:
• Exequibilidade: que lhe confere a possibilidade de realização ou de passar a existir no
mundo real;
• Caráter sistêmico; que inclui a rede de relações sócio-técnicas que pode torna-la viável;
• Heterogeneidade: se os sistemas tecnológicos existem, eles são por si só diferenciados;
• Relação com a Ciência: encara a relação com a Ciência como ampla e diversificada, mas
não acolhe a visão ingênua de que tecnologia é ciência aplicada;
• Divisão do trabalho: Informa que existem relações de dependência entre os diferentes
atores sociais envolvidos no sistema tecnológico. Há os que desenvolvem, os que produ-
zem e os que utilizam tecnologia.
Pacey (1990, apud Bazzo, Linsingen e Pereira, 2003) propõe três dimensões para a prática tecnoló-
gica:
• A dimensão técnica: que envolve as técnicas, conhecimentos e máquinas que objetivam
fazer com que as coisas funcionem;
• A dimensão organizacional: que relaciona os aspectos de política pública e de gestão às
ações que caracterizam os produtores de tecnologia (engenheiros, técnicos, gestores,
trabalhadores em geral) e usuários;
• A dimensão cultural/ideológica: que considera os valores, as ideias e as atividades cria-
doras.
Bazzo, Linsingen e Pereira (2003) ainda propõem abordagens de cunho mais filosófica para a tecno-
logia:
• Abordagem engenheiril: é aquela que atende a visão tradicional de tecnologia onde
enge-nheiros e técnicos têm a tarefa de produzir artefatos, estruturas e sistemas tecno-
lógicos. Assemelha-se a categoria de Enfoque instrumental de Osorio (2002);
No que se refere à percepção de professores, podemos recorrer aos estudos de Espíndola e Ricardo
(2004) que pesquisaram o ensino da tecnologia na concepção dos professores das ciências do nível
médio e concluíram que o conceito de Tecnologia se aproxima daquele que aponta a tecnologia como
ciência aplicada. Os autores relembram Fourez (2003) quando este escreve que
A ideologia dominante dos professores é que as tecnologias são aplicações das ciências.
Quando as tecnologias são assim apresentadas, é como se uma vez compreendidas as ciên-
cias, as tecnologias seguissem automaticamente. E isto, apesar de que, na maior parte do
tempo, a construção de uma tecnologia implica em considerações sociais, econômicas e cul-
turais que vão muito além de uma aplicação das ciências. A compreensão desta implicação
do social na construção das tecnologias torna possível um estudo crítico destas, como o fa-
zem os trabalhos de avaliação social das tecnologias. Uma formação para a negociação com
as tecnologias devem tornar os alunos capazes de analisar os efeitos organizacionais de uma
tecnologia. (Fourez, 2003, p. 10)
Em relação a tecnologia entendida de uma forma holística, podemos resgatar a proposta de Gutiérrez
e Serna (2012):
1- Um conjunto de atividades humanas ou processos altamente sis-tematizados, organi-
zados e complexos que requerem conhecimentos teóricos igualmente complexos, consti-
tuindo uma técnica teorizada cujo resultado são entidades materiais e imateriais de alta
sofisticação. 2- Processos e produtos que permitem a modificação e transformação radical
e igualmente extensa da natureza ou entorno. 3- Uma reconceitualização da natureza como
uma coisa ou objeto suscetível de manipulação e intervenção por parte de um sujeito inde-
pendente da mesma (Gutiérrez and Serna, 2012, p. 80).
Concepção de
Nº Compreensão do conceito Referências
tecnologia
Compreende a tecnologia como um conheci- Acevedo, 1998; Acevedo Díaz, 1997,2001;
mento prático derivado diretamentedo desen- González García; López Cerezo; Luján Ló-
1 Intelectualista volvimento do conhecimento científico através pez, 2000; Layton, 1988; Osorio M., 2002
de processos progressivos e acumulativos
Considera a tecnologia como sendo sinônimo Acevedo Díaz, 1997; Agazzi, 1997; Bunge,
de técnica. Ou seja, o processo envolvido em 1972, 1986 apud Osorio M,2002; Veraszto,
2 Utilitarista sua elaboração não temrelação com a tecnolo- 2004
gia, apenas a suafinalidade e utilização.
Tecnologia como Encara a tecnologia como sendo Ciência Na- Acevedo Díaz, 1997, 2001; Hilst, 1994; Martín
3 sinônimo de ciên- tural e Matemática, com as mesmas lógicas e Gordillo, 2001; Sancho, 1998; Silva; Barros
cia mesmas formas de produção e concepção. Filho, 2001; Valdés et al.,2002.
Acevedo Díaz, 1997, 2001; González García;
Instrumentalista Considera a tecnologia como sendo simples López Cerezo; Luján López, 2000; Osorio
4 ferramentas, artefatos ou produtos, geralmen- M., 2002; Lion, 1997; Pacey, 1983; Silva et
(ou artefatual) te sofisticados al., 2000; Silva; Barros Filho, 2001; Veraszto,
2004
Cáceres Gómez, 2001; Dagnino, 2007; Du-
Compreende que a tecnologia não é boa nem
Neutralidade tec- rán Carrera, 2001; González García; López
5 nológica má. Seu uso é que pode ser inadequado, não o Cerezo; Luján López,2000; Osorio M., 2002;
artefato em si. Winner, 2008
Determinismo Considera a tecnologia como sendo autônoma, Cáceres Gómez, 2001; Dagnino, 2007; Durán
tecnológico autoevolutiva, seguindo naturalmente sua pró- Carrera, 2001; González García; López Cere-
6 pria inércia e lógica de evolução, desprovida do zo; Luján López,2000; Osorio M., 2002
(tecnologia autô-
noma controle dos seres humanos
Até aqui, tentamos demonstrar que não há um conceito “correto” de Tecnologia, assim como não
havia um conceito “correto” de Ciência, visto que estes conceitos são construídos na interação entre
o ser e o meio em que se desenvolve. Os conceitos de Ciência e de Tecnologia podem ser diferentes
para diferentes pessoas sem serem “errados” visto que cada um pode construir socialmente seu en-
tendimento.
Buscamos apresentar as construções das relações de Ciência e de Tecnologia a fim de indicar o fato
de que a Tecnologia não é simplesmente a aplicação da Ciência, ou viceversa. Que elas caminharam
separadamente em alguns períodos de nossa história, mas que, agora, possuem uma estreita relação
que permite que ambos os campos do conhecimento se ajudem. Esta nova postura tem sido denomi-
nada de tecnociência.
Vejamos o que nos diz Dyson (2001) sobre a origem comum de diferentes posições sobre a Ciência e
a Tecnologia ao narrar a produção de Peter Galison23 e de Thomaz Kuhn24, ambos formados em Física
e, mais tarde, produziram como historiadores da Ciência. Diz-nos, Dyson que ambos exploraram em
profundidade o processo de descoberta científica na era moderna: Galison com sua obra Image and
logic (publicada em 1997) e Kuhn com sua obra A Estrutura das Revoluções Científicas, lançada 35
anos antes. Escreve Dyson (2001, p. 29-30):
Os dois estão interessados na história da física e ambos dominaram os detalhes técnicos da
física, assim como o ofício erudito da historiografia. Contudo, eles têm visões totalmente
diferentes da história da ciência. Seus livros não têm praticamente nada em comum. O livro
de Galison contém centenas de imagens de aparelhos científicos; o de Kuhn, só palavras.
Para Galison o processo de descoberta científica é impulsionado por novas ferramentas;
para Kuhn, por novos conceitos. As duas concepções são verdadeiras e nenhuma delas é
completa. O progresso da ciência requer tanto novos conceitos como novas ferramentas.
A diferença entre Galison e Kuhn é basicamente uma diferença de ênfase. Kuhn enfatizava
ideias e Galison enfatiza coisas.
Infelizmente, a versão da história de Kuhn foi dominante durante trinta anos, antes que
a versão de Galison aparecesse para restaurar o equilíbrio. O livro de Kuhn tornou-se um
clássico e deu a seus leitores não cientistas uma visão unilateral da ciência. Kuhn escreveu
sobre as batalhas entre conceitos rivais, e alguns de seus leitores ficaram com a impressão
de que a ciência é, em grande parte uma questão subjetiva, uma luta entre pontos de vista
humanos conflitantes, e não uma luta objetiva entre precisão das ferramentas e as ambigüi-
dades da natureza.
Para concluir este tópico, nada mais objetivo que o texto de Cachapuz, Paixão, Lopes e Guerra (2008)
que apresenta as ideias de Edgar Morin25 sobre o assunto:
O que é seguro, são as ideias de Morin e Le Moigne (1999, p. 33) de que hoje em dia a ciência
está no centro da sociedade, o conhecimento científico e o conhecimento técnico se estimu-
lam reciprocamente, de que é preciso distingui-los, mas não dissociá-los e de que o verdadeiro
problema moral nasce da enormidade de poderes vindos da ciência. Como referem Cachapuz
et al. (2002, p.33), “temos de rever e aprofundar o diálogo entre as várias ciências que o car-
tesianismo separou” e, principalmente, entre as ciências da natureza e as ciências sociais e
humanas onde “quase tudo está por fazer”. O quadro CTS aponta exactamente para essa dire-
cção de posicionamento face ao conhecimento e à acção que a ciência e a tecnologia propor-
cionam e implicam, necessariamente, num invólucro epistemológico externalista (Cachapuz
et al, 2008)
Leia mais:
José Antonio Acevedo Díaz
Tres criterios para diferenciar entre Ciencia y Tecnología
http://www.oei.es/salactsi/acevedo12.htm
Análisis de algunos criterios para diferenciar entre ciencia y tecnologia
23
Conheça mais em http://en.wikipedia.org/wiki/Peter_Galison (em inglês)
24
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Kuhn
25
Conheça mais em http://edgarmorin.sescsp.org.br/
Parece não haver dúvida de que a Sociedade moderna está bastante ligada à Tecnologia. Os hábitos e
rotinas são. De tempos em tempos, modificados, de mais ou menos intensa, de forma mais ou menos
explícita, por influência de aparatos tecnológicos que chegam e passam a ocupar os espaços cotidia-
nos, tornando-se, em tempo reduzido, indispensáveis ao dia-a-dia e ás relações sociais. Foi (e ainda
é) assim com o aparelho celular, com o MP3 (e até a hora do fechamento deste texto ainda estávamos
no MP4) etc. Se sairmos às ruas hoje, poderemos perceber o quanto o aparelho celular está ligado a
vida cotidiana. Quem poderia imaginar, tempos atrás, que aquele aparelho grande, pesado, disforme,
caro, sem nenhum atrativo maior no seu desenho fosse tornar-se o que é hoje?!
Conforme o aparelho de telefone celular foi se popularizando, seu custo foi se reduzindo permitindo
que um maior número de pessoas de todas as faixas sociais pudessem se beneficiar dele. Poderíamos
também imaginar que foi o barateamento do custo que permitiu acesso massivo...
O fato é que a Tecnologia pode influenciar de forma decisiva as pessoas, as famílias e a sociedade como
um todo. Freeman Dyson26 (2001), é um físico e matemático teórico que, em 1997, foi convidado a apre-
sentar uma série de conferências sobre histórias da Ciência, na New York Public Library. As conferên-
cias se dirigiam a público leigo, não-cientistas, e em uma delas, Dyson apresenta as 4 tecnologias que
impactaram a sociedade trazendo, a seu ver, mais justiça social, além das discussões sobre as chamadas
tecnologias negativas. São elas:
• A tecnologia da impressão, permitindo que um número maior de pessoas tivesse acesso ao
conhecimento acumulado, antes restrito aqueles que tivessem acesso a educação distribuí-
da a pouco pelos mosteiros.
• As tecnologias de saúde pública (abastecimento de água limpa, de tratamento de esgotos,
de vacinação e de antibióticos) que não poderiam ficar restritas aos ricos visto que a conta-
minação do pobre por determinadas doenças põe em risco a chamada classe rica. Diz-nos
que “em países onde as tecnologias de saúde pública são impostas por lei, não há grande
diferença de expectativa de vida entre ricos e pobres” (p.66-67). Esperemos que uma lei
como esta seja promulgada no Brasil...
• A tecnologia dos aparelhos domésticos, que permitiu que um sem número de pessoas
deixasse as funções de empregados domésticos e migrassem para empregos que exigissem
melhor e maior preparação. Por outro lado, o surgimento, de acordo com a longa análise de
Dyson, permitiu que as mulheres, antes relegadas exclusivamente as funções domésticas,
pudessem almejar realizações fora do lar, no campo do estudo, do trabalho, da participação
social etc.
• A tecnologia da mobilidade ascendente, surgida com a bicicleta motorizada e que foi
se aperfeiçoando até os meios de transporte de massa ou os automóveis como os con-
hecemos hoje.
• As chamadas tecnologias negativas são as da câmara de gás e de armas nucleares, por exem-
plo.
26
Conheça mais em http://en.wikipedia.org/wiki/Freeman_Dyson (em inglês) e http://super.abril.com.br/superarquivo/2001/
conteudo_119120.shtml
Nesta mesma conferência, Dyson relembra que em 1985, também em uma dê suas conferências,
dessa vez na Escócia27, apresentou uma lista com as mais importantes tecnologias para o século
XXI. Eram elas: engenharia genética, inteligência artificial e as viagens espaciais. Passados mais
de dez anos, o autor faz uma autocrítica pública e reescreve a lista das tecnologias mais importan-
tes para a sociedade, sobre as quais desenvolve outra de suas conferências. São elas: a engenharia
genética, o Sol e a internet.
O que Dyson fez de forma brilhante – e nós reproduzimos de forma reduzida – foi fazer uma Aná-
lise de Tecnologia, fenômeno este que pode ser realizado com qualquer tecnologia. Coates (1971,
apud Bazzo, Linsingen e Pereira, 2003) faz esta análise de impacto com a televisão. Diz ele:
A Sociedade, por sua vez, também pode produzir uma classificação para as suas relações com a
Tecnologia, como bem apresenta Manzano (1997, apud SILVA, 2003):
Posição tecnófila: identificase com a confiança e bondade intrínseca na Ciência, com seu
potencial esclarecedor, e na Tecnologia com seu poder de resolver todos os problemas da
humanidade, exaltando os benefícios do progresso com os avanços da medicina, agricul-
tura e indústria, podendo ser estendidos a toda a população. Já as consequências negati-
vas podem ser facilmente corrigidas.
Posição intermediária: onde a Tecnologia pode ter simultaneamente efeitos positivos e
negativos, e que se deve procurar aumentar os primeiros em detrimento dos outros. Esses
aspectos dependem de como se utiliza e promove o uso de valores de âmbito ético e polí-
27
Publicadas no Brasil com o título “Infinito em todas as direções”.
28
A posição tecnófoba encontra sua base, também, no Movimento Ludita, que teve seu auge entre 1811 e 1816. Esse movimento ex-
tremamente organizado e disciplinado tinha grande apoio, pois a população se encontrava amargurada com as reduções salariais,
exploração infantil e supressão das leis que protegiam os trabalhadores qualificados. Todo esse descontentamento se expressou
na destruição de máquinas, principalmente da indústria têxtil (Palacios et al., 2001).
Quer parecer que não é possível imaginar que exista neutralidade entre Tecnologia e Sociedade. A
Sociedade pode ser estudada também pela maneira como se relaciona – ou se deixa influenciar – pela
Tecnologia.
Esta relação pode ser estudada por diversos ângulos. Vamos, aqui, apresentar resumidamente as po-
sições de Castells30 (2007) e Echeverria (2000).
Essa posição de Castells pode ser entendida como uma interdependência da relação tecnologia e
sociedade. Ocorre que, como está posto, a tecnologia aqui está reduzida a ferramentas, aparatos ou
objetos. Como tal, este conceito reduzido também reduz as possibilidades de interação como mi-
nimiza suas potencialidades de imprimir mudanças recíprocas nesta relação. Para atendermos ao
conceito ampliado que estamos trabalhando, necessitamos considerar as observações de Castells,
mas adequando-as aos novos conceitos de tecnologia. Para tal, podemos buscar o auxílio de Echeve-
rria (2000).
Echeverria vai considerar que quando utilizar a expressão ‘ações que transformam objetos’, estamos
optando por uma antologia. O autor lembra Quintanilla, e informa que a “história da técnica não é só
a história dos artefatos ou dos conhecimentos técnico, mas sim toda a história das ações e resultados
produzidos graças a eles”, e que “filosofia da técnica não é só uma teoria do conhecimento técnico,
mas também uma ação guiada por este conhecimento”. Isso deixa claro que não é possível reduzir a
relação tecnologia e sociedade a uma relação baseada em artefatos, visto que estes artefatos possuem
uma história socialmente construída e, ao surgirem, provocam uma re-estruturação no meio social
onde surgem, provocando uma outra possível antologia: objetos que transformam ações. Até aqui, os
pontos de vista dos autores são próximos.
Uma diferença mais acentuada é percebida quando passamos a considerar “que essas ações técnicas,
e em particular as ações telemáticas, não só transformam objetos materiais, como também transfor-
mam, podem modificar relações e inclusive funções”. A antologia aqui precisa distinguir objetos,
relações e funções, e entendendo conceitos (e os valores consequentes destes conceitos) “como um
29
O ecologismo reconhece a irreversibilidade da civilização científica e tecnológica e propõe, de certo modo, a busca de um novo
equilíbrio dentro da relação tecnologia-natureza, dando relevância ao estabelecimento de valores sociais e políticos que sirvam
para a tomada de decisões sobre as opções de desenvolvimento econômico e tecnológico.
30
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Castells
tipo particular de função”, e se aproxima das antologias aplicáveis a teorias de sistemas. Ampliando
o conceito de tecnologia e aplicando-o ao universo da teletecnologia percebemos que as ações tecno-
lógicas modificam objetos, modificam relações e possuem múltiplas consequências, especialmente
quando essas relações são espaciais e temporais, visto que interferem sobre maneira na interação
entre seres humanos e também entre pessoas e objetos materiais.
Logo, a maneira como conceituamos tecnologia é, de certa forma, a maneira como desenhamos as
possibilidades/necessidades de atenção a construção social da tecnologia (e da ciência), bem como
da precaução que devemos ter quando, olhando o futuro, percebemos as possíveis consequência da
tecnologia na sociedade.
Conheça mais:
Dyson Freeman. O Sol, o Genoma e a Internet – ferramentas das revoluções científicas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
Wiebe Bijker (1995): Of Bicycles, Bakelites, and Bulbs: Toward a Theory of Sociotechnical Change
Osorio, Carlos. La participación pública en sistemas tecnológicos: Lecciones para la educación CTS. Rev. iberoam.
cienc. tecnol. soc., Ciudad Autónoma de Buenos Aires, v. 2, n. 6, dic. 2005. accedido en 02 sept. 2014. Disponible
en http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1850-00132005000300009&lng=es&nrm=iso
A melhor maneira de iniciar um texto, que pretende ser lido e estudado por pessoas com formações
distintas e diferentes experiências, é definir a priori os conceitos chave. Isso é o que se pretende com
o tema Sociedade, buscando conectá-lo aos dois anteriores: Ciência e Tecnologia.
Eis que surge o primeiro problema quando se consulta o Dicionário de Ciências Sociais no seu ver-
bete Sociedade/society:
A. Não há, até agora, uma definição de sociedade que seja única e aceita de modo geral, pois
cada um dos três usos mais comuns do termo refere-se a aspectos significativos da vida
social.
A.1. Em sentido mais lato, refere-se à totalidade das relações sociais entre as criaturas hu-
manas.
A.2. Cada agregado de seres humanos de ambos os sexos e de todas as idades, unidos num
grupo que se autoperpetua e possui suas próprias instituições e cultura distintas em maior
ou menor grau, pode ser uma sociedade. É de se notar que, na prática, os limites das socie-
dades especificas baseiam-se, nesse sentido, freqüentemente, em fronteiras políticas, pro-
cedimento que gera problemas fundamentais quanto às relações entre Estado e sociedade.
A.3. Sociedade também tem sido definida como as instituições e a cultura de um grupo de
pessoas de ambos os sexos e todas as idades, grupo esse inclusivo, mais ou menos distinto e
que se autoperpetua. Existem convicções óbvias entre a segunda e a terceira definições, pois
ambas se referem a duas premissas fundamentais e inter-relacionadas da pesquisa socioló-
gica, de que homens, onde quer que estejam vivem em grupos, e que seu comportamento
é substancialmente afetado pelas normas e valores de que compartilham. (CHINOY, 1986,
p.1139-1140)
Se por um lado isso dificulta a construção do texto didático, por outro fortalece a tese que estamos
defendendo desde o início de nosso estudo CTS: a flexibilização dos conceitos de Ciência e de Tec-
nologia e a reflexão em torno da ideia de que mais Ciência e mais Tecnologia resultam objetivamente
em progresso e bem-estar social.
Para superarmos esta dificuldade conceitual aparente – digo aparente porque isso que pode parecer
difícil para as profissionais das chamadas ciências exatas formados pelas “escolas clássicas”, é uma
constante para os profissionais das ditas ciências sociais – precisamos estabelecer algumas premissas
que nos permitam conectar o tema Sociedade com Ciência e Tecnologia e construir nossa hipótese
de trabalho.
A primeira é a flexibilização necessária da definição de sociedade. Antes esta definição era estabele-
cida por (1) fronteiras políticas/geográficas e por (2) origens étnicas e, agora, também se define por
sociedades estruturadas por (3) interesses e por (4) relacionamentos (MORSE, 1998). Esta hipótese
de trabalho é importante por conta da função da tecnologia no desenho e na manutenção destes mo-
delos inovadores de sociedade.
A segunda é a natureza processual da Sociedade, o que nos leva a necessidade de considerar que a
análise deve ser realizada ao longo da linha do tempo, conectando modelos passados, com os mo-
delos do presente e os possíveis modelos prospectados para o futuro. Sobre isso, escreve Sztompka
(1998, p. 111s)
As sociedades humanas, em todos os níveis de sua complexidade interna, mudam sem ces-
sar. Mudam no nível macro da economia, da política e da cultura; no nível meso das comu-
nidades, grupos e organizações; e no nível micro das ações e interações individuais. A socie-
dade não é uma entidade, é um conjunto de processos interconectados de múltiplos níveis.
Segundo Edward Shils: "A sociedade é um fenômeno 'transtemporal'. Ela não é constituída
de sua existência em um dado instante de tempo. Ela só existe no decorrer do tempo. A so-
ciedade é temporalmente constituída" (1981: 327).
A sociedade está, portanto, em constante movimento do passado para o futuro. O presente
é apenas uma fase transitória entre o que aconteceu e o que está por acontecer. No estado
presente da sociedade, os efeitos, vestígios e traços do passado coexistem com as sementes
e potencialidades do futuro. A natureza processual da sociedade implica fases anteriores
ligadas por vínculos causais à fase presente, por sua vez portadora das condições causais
determinantes da fase seguinte.
31
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Adam_Ferguson
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Auguste_Comte
32
33
Conheça mais em http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2510.html e http://en.wikipedia.org/wiki/Lewis_H._Mor-
gan (em inglês)
34
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Karl_Marx
35
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Engels
36
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Herbert_Spencer e http://virtualbooks.terra.com.br/osmelhoresautores/bio-
grafias/Herbert_Spencer.htm
37
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Lewis_Mumford
38
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Talcott_Parsons
• Arado
• Desenvolvimento da metalurgia
• Roda e vela
• Grandes cidades
Sociedades 4.000 a 3.000 anos Cultivos em grande • Energia de animais, eólica e de água
• Grandes poderes políticos
agrícolas a.C. escala (moinhos)
• Impérios
• Sistema de irrigação
• Grandes obras públicas (templos, pa-
lácios, pirâmides, muralhas etc)
• Máquinas
Produção fabril
• Fábricas
Fabricação de bens
Sociedades • Energia elétrica, do gás, do carvão
Séculos XIX e XX Estado-Nação de consumo du-
industriais (vapor) etc.
ráveis em grande
• Novas tecnologias (mecanização, fer-
escala
tilizantes, inseticidas etc)
Sociedades Final do Sécu-lo XX e Internacionalização e coorde- Produção de mer- • Robôs industriais
tecnológicas século XXI nação supraestatal cadorias e produ- • Sistemas automáticos de trabalho
avançadas Mundialização da economia tos cada vez mais • Revolução microeletrônica, microbio-
sofisticados lógica e novas fontes de energia
Prestação de ser- • Organização flexível da produção
viços
Importância cres-
cente do ócio
Como foi possível perceber no estudo das duas tabelas anteriores, a tipologia de sociedades ocorre
a partir de padrões de análise externos. Cada um dos estudiosos citados estudos a evolução das so-
ciedades utilizando-se de critérios específicos, permitindo-nos uma complexa gama de estudos que,
antes de se contradizerem, se completam.
Podemos fazer o mesmo exercício de análise das sociedades utilizando-nos de critérios que se
apóiem em princípios da Ciência e da Tecnologia ou melhor, da Tecnociência. Para isso, escolhe-
remos os textos de Peter Drucker (1996), Lewis Mumford (apud Bazzo, Linsingen e Pereira, 2003 e
Martin Gordillo, 2001), Javier Echeverría (1999) e Ferreira (2010).
Peter Drucker (1996), em sua obra A Sociedade Pós-capitalista, explora a evolução dos modelos de
sociedade a partir de conquistas marcadas por aparatos tecnológicos e chega a proposta de estabele-
cimento da Sociedade do Conhecimento. Para ele,
A cada dois ou três séculos ocorre na história ocidental uma grande transformação. Cruza-
mos aquilo que chamei de "divisor" em um livro anterior*. Em poucas décadas sociedade se
reorganiza - sua visão do mundo, seus valores básicos, sua estrutura social e política, suas
artes, suas instituições mais importantes. Depois de cinqüenta anos, existe um novo mundo.
E as pessoas nascidas nele não conseguem imaginar o mundo em que seus avós viviam e no
qual nasceram seus pais.
Estamos atualmente atravessando uma dessas transformações. Ela está criando a sociedade
pós-capitalista, que é o assunto deste livro.
Uma dessas transformações ocorreu no século XIII, quando o mundo europeu, quase da
noite para o dia, passou a centralizarse na nova cidade - com a emergência das guildas mu-
nicipais como grupos sociais dominantes e o renascimento do comércio a grandes distân-
cias; com a arquitetura gótica, eminentemente urbana e praticamente burguesa, e os novos
pintores de Siena; com a mudança para Aristóteles como a fonte da sabedoria e as universi-
dades urbanas substituindo os monastérios e seu isolamento rural como centros de cultura;
com as novas ordens religiosas urbanas, os dominicanos e franciscanos, emergindo como
carreiras de religião, aprendizado e espiritualidade e, em poucas décadas, com a mudança
Lewis Mumford, em sua obra Técnica y Civilización (1934), apresenta as mudanças que a má-quina
introduziu nas formas da civilização ocidental permitindo-nos, mais uma vez, estabelecer uma ana-
logia entre as mudanças e a tipologia das sociedades, desta vez considerando o desenvolvimento
tecnológico. O autor apresenta três tipos de sociedades (Bazzo, Linsingen e Pereira 2003, p. 94-99):
• A fase eotécnica: As técnicas que permitem definir a sociedade eotécnica são as que
aproveitam a água e a madeira. O período de desenvolvimento dessa etapa se estende
aproximadamente desde o ano 1000 até 1750.
Na sociedade eotécnica diminui a importância que os seres humanos tinham tido como
fonte de energia e aumenta o uso da energia proveniente do cavalo, graças ao seu melhor
aproveitamento mediante duas novas peças: a ferradura e a moderna forma de arreios,
com a qual a tração se realiza a partir dos ombros e não do pescoço. O maior progresso
técnico do ponto de vista energético se deu em regiões que tinham abundantes fontes
de água e de vento, graças à aparição de rodas e moinhos hidráulicos e de vento que
permitiram uma melhora substancial em seu aproveitamento.
Junto a estas fontes de energia, a madeira era o material universal da sociedade eo-
técnica, todas as construções utilizavam madeira em sua estrutura e de madeira eram
também as ferramentas utilizadas na construção. Inclusive a maior parte das máquinas
e invenções-chave da idade industrial se desenvolveram em madeira antes de serem
trabalhadas em metal. Apesar dessa utilização intensa, Mumford considera que o que
propiciou a destruição da mata na época foi o uso intensivo da madeira na mineração, na
forja e na fundição. Outro dos materiais desse período é o vidro, cuja contribuição à so-
ciedade da época foi muito importante. Mudou a vida no interior das casas mediante
seu uso em recipientes e sobretudo em janelas, ampliou a visão por meio das lentes em
óculos, telescópios e microscópios, e foi um fator essencial no desenvolvimento da quí-
mica e no aperfeiçoamento dos espelhos.
• A sociedade paleotécnica: A sociedade paleotécnica teria seu início por volta de 1700,
e seu auge teria se produzido entre 1870 e 1900, sendo esta última data coincidente com
o início de um movimento de decadência. Nesta etapa a sociedade abandonou seus va-
lores vitais e passou a centrar-se somente nos valores pecuniários. As mudanças nesses
valores foram motivadas pela introdução do carvão como fonte de energia mecânica.
Essa nova fonte de energia tornou-se efetiva mediante novos meios, como a máquina a
vapor, e também foi utilizada nos novos métodos de fundir e trabalhar o ferro. A nova
sociedade é, pois, um produto do carvão e do ferro.
Em torno de 1780, cristaliza-se o modelo paleotécnico, que se pode ver em uma série
de inventos e artefatos técnicos: o carro a vapor de Murdock, o forno de reverbero de
Cort, o barco de ferro de Wilkinson, o tear mecânico de Cartwright e os barcos a vapor
de Jouffroy e de Fitch. Realizações típicas da sociedade paleotécnica são a ponte e o
barco de ferro. A construção de estruturas de ferro, como o Crystal Palace, os primeiros
arranha-céus, a torre Eiffel etc. converteram o ferro em material universal. A indústria
militar fez um amplo uso dele. É também um período em que a sociedade se dedica a
uma sistemática destruição do meio ambiente. É a sociedade da poluição do ar e da con-
taminação das águas. (...)
Junto a isso, Mumford assinala que se produziu a passagem de tecnologias democrá-
ticas para outras mais autoritárias: enquanto a energia do vento e da água, próprias da
fase eotécnica, eram grátis, o carvão era caro e a máquina a vapor, custosa, de modo que
tendia à concentração e ao monopólio. A sociedade paleotécnica se desenvolveu como
uma sociedade auto-suficiente, o que só foi possível com o estabelecimento, desde o
século XVIII, da noção de progresso. Considerava-se evidente a existência de leis do
progresso que se refletiam nas contínuas invenções de máquinas, de novas comodida-
des, etc. (...)
Deve se dizer que houve resistências a tudo isso não só individuais (Ruskin, Nietzsche,
Melville…), mas também coletivas, como as que se propôs o movimento ludista -sobre os
luditas veja-se o capítulo "O que é tecnologia?" e Noble, 1995. A introdução da máquina
nessa fase teve outra importante consequência social: a divisão do mundo em zonas de
produção de máquinas e zonas de produção de alimentos e matérias-primas, o que, se-
gundo Mumford, trouxe consequências nefastas que serviram de motivo para a Guerra
Civil Americana, ao provocar a queda no consumo de algodão, que reduziu os habitan-
tes de Lancashire à extrema pobreza.
• A fase neotécnica: Mumford considera que na sociedade dessa época há uma ruptura
com o período paleotécnico e, em certo sentido, um retorno a algumas características
da sociedade eotécnica. É difícil defini-la como um período determinado posto que ain-
da estamos imersos nela. Tampouco foi produzida uma ruptura com o período paleo-
técnico, como a que este realizou com relação ao eotécnico.
Mumford fixa os começos da fase neotécnica no momento em que os geradores de ener-
gia tornam-se mais eficientes, por volta de 1832. Em 1850, grande parte das descobertas
fundamentais dessa nova fase já haviam sido produzidas: a pilha elétrica, a bateria, o dí-
Javier Echeverría, em sua obra “Los señores del aire: Telépolis y El tercer entorno” (1999) apresentou
as relações entre sociedade e tecnologia, sob a ótica das tecnologias telemáticas, oferecendo-nos seus
três entornos sendo que, cada um deles se apresenta como uma tipologia social.
Conheça mais:
Ouça a entrevista de Javier Echeverría sobre o E3 em http://portal.educ.ar/noticias/actualidad-educar/javier-
echeverria-en-educar.php
Ferreira (2010), em sua dissertação, sintetiza a ideia de paradigma tecnoeconômico, a partir da re-
flexão de uma série de outros autores. O paradigma tecnoeconômico se caracteriza como a
combinação de inovações de produto, técnicas, organizacionais e administrativas capazes
de abrir oportunidades de investimento e lucro. Verificase que além dos fatores técnicos,
este conceito abrange também os fatores institucionais. Cada paradigma tecnoeconômico
possui um conjunto específico de fatores-chave e indústrias-chave propulsores do cresci-
mento econômico e as formas de organização industrial e de competição também se alte-
ram.
O quadro a seguir indica os períodos históricos que foram marcados por acontecimentos tecnoló-
gicos, redundando em indústrias específicas, fatores que favorecem o chamado progresso naquele
período e o tipo de organização industrial favorecida. A nosso ver, é possível ainda avaliar estes itens
combinados considerando os impactos sociais.
Por tal, é possível imaginar que os paradigmas tecnocientíficos desenham modelos de sociedades de
forma direta ou por acomodação. Vejamos o que nos apresenta
Tabela 3
Organização
Períodos Descrição Indústrias-chave Fatores-chave
industrial
Têxtil, química, metal-mecânica, cerâ-
1770-1840 Mecanização Algodão e ferro Pequenas empresas locais
mica
Pequenas e grandes empresas
Máquinas a vapor e Motores a vapor, máquinas-ferramenta, Carvão e sistemas de
1840-1890 e crescimento das sociedades
ferrovias máquinas para ferrovias transportes
anônimas
Cada período marcado por um tipo de indústria e de fatores chaves, floresceu em locais geografica-
mente distintos, mesmo que alguns deles reiterasse a capacidade produtiva de determinado país ou
região. A cada ciclo novo tínhamos, pelo menos, dois movimentos contraditórios: uma cadeia produ-
tiva que se enfraquecia (ou desaparecia) e uma cadeia produtiva que surgia. Logo, em torno da cadeia
produtiva que surgia temos uma região, um país, um conjunto de tributos que passa a alimentar o
setor público, uma concentração de pessoas e instituições que buscam o “novo eldorado”. Há certa-
mente o que se convencionou chamar de progresso...
Por outro lado, a indústria que se enfraqueceu, ou mesmo desapareceu, deixa suas “cicatrizes so-
ciais”. Ficam aqueles que perderam os empregos, os setores públicos que não mais receberão os tri-
butos próprios da produção ou da comercialização, ficam os passivos sociais de toda ordem.
Essa questão que apresentamos fica melhor desenhada quando identificamos as ênfases tecnológicas
e os campos do saber e/ou da produção que foram privilegiados, o que foi designado como ondas,
segundo Tigre (2006 apud Ferreira, 2010):
Tabela 4
C&T e Transporte e
Ondas Energia
Educação Comunicações
1ª revolução industria Aprender-fazendo Canais Roda d’água
(1780-1830) Sociedades científicas Estradas de ferro (moinhos)
2ª revolução industrial Estradas de ferro
Engenheiros civis e mecânicos Vapor
(1830-1880) Telégrafo
P&D industrial
Idade da eletricidade Ferrovias (aço)
Química e eltricidade Eletricidade
(1880-1930) Telefone
Laboratórios nacionais
P&D industrial em escala
Idade da produção em massa Rodovias
(Governos e empresas) Petróleo
(1930-1980) Rádio
Educação em massa
Redes de dados
Idade da microeletrônica Redes de convergentes de comuni-
Redes globais de P&D Petróleo e gás
(a partir de 1980) cações em multimídia
Treinamento contínuo
Tecnologias ambientais e de Biotecnologia
Telemática
saúde Genética Energias renováveis
Teletrabalho
( ?) Nanotecnologia
Durante minha vida profissional, encontrei, felizmente, áreas da ciência em que minhas ap-
tidões matemáticas puderam ser utilmente empregadas. Trabalhei numa variedade de pro-
blemas em física de partículas, em mecânica estatística, em física da matéria condensada,
em astronomia e em biologia. Também trabalhei em problemas de engenharia, aplicando a
matemática ao projeto de instrumentos e máquinas. Quando eu estava projetando máqui-
nas, costumava pensar na mais famosa declaração do livro de Hardy, aquela que expressava
em poucas e amargas palavras sua aversão pela ciência aplicada: "Uma ciência é dita útil
se seu desenvolvimento tende a acentuar as desigualdades existentes na distribuição
de riqueza, ou se promove mais diretamente a destruição da vida humana". Eu tentava
provar que Hardy estava errado, que a ciência pode ser útil sem ser nociva. Ao escolher em
quais problemas trabalhar, eu sempre tinha em mente a advertência de Hardy. Sua decla-
ração é muitas vezes verdadeira, e é uma advertência que todos os cientistas aplicados
devem levara sério. (grifos nossos)
Freeman Dyson, 2001, p.7 e 9
5.1 Introdução
Vamos retornar a nossa equação ingênua da ciência obtida após o relatório Bush (capítulo 1): + ciên-
cia = + tecnologia = + riqueza = + bem-estar social. Se ela é tomada como verdade – e tem sido assim – a
Ciência e sua companheira, a Tecnologia passam a ter grande poder frente as comunidades em geral,
considerando a (1) dependência estabelecida por meio dos aparatos tecnológicos e (2) pela distância
entre o fazer científico e o entendimento pelas camadas gerais da população. Essa dependência pela
Tecnologia e o não-entendimento dos códigos da Ciência enfraquecem a capacidade de enfrenta-
mento e de participação dos membros da Sociedade, ao mesmo tempo em que conferem aqueles
primeiros um razoável poder e status.
A Ciência e a Tecnologia estão de tal forma interligadas à Sociedade que esta última não sabe mais
como viver sem aquelas primeiras. Com esta ideia, Gerard Fourez (1995) inicia um capítulo intitula-
do Ciência, Poder Político e Ético, que nos utilizaremos para balizar algumas questões em torno das
relações da tríade CTS.
Ainda conduzidos por Fourez, vamos lembrar que o filósofo Jürgen Habermas39 classifica as inte-
rações ente Ciência e Sociedade em três grupos distintos: As interações tecnocráticas, as decisionis-
tas e as pragmático-políticas, deixando claro desde já que essas interações jamais existem em estado
puro. Esses modelos de interação de Habermas podem ser resumidos da seguinte forma (Fourez,
1995, p. 224):
• Tecnocráticos: as ciências e a técnica (os especialistas) determinam as políticas;
39
Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%BCrgen_Habermas
A fim de exemplificar as três interações, Fourez propõe exemplos de interação entre o médico e seu
paciente e entre um mecânico e o dono do carro.
No modelo Tecnocrático, supõe-se que o médico e o mecânico sabem o que é melhor para o pa-
ciente e para o dono do carro, respectivamente. Afinal de contas, ambos possuem o conhecimento
específico de suas áreas de atuação. Tanto o médico quanto o mecânico dirão: “Não se preocupe, vou
resolver todos os seus problemas”. Para o modelo tecnocrático de interação, “as decisões cabem ao
especialista”.
De acordo com o modelo Decisionista, a situação é um pouco diferente. Nele, o especialista pergun-
tará ao cliente o que ele tem em vista ou quais são seus objetivos ao procurá-lo. O dono do carro pode
querer um automóvel veloz, ou econômico, ou seguro, ou que dê pouca despesa, ou vários desses
itens. Após tomar conhecimento das finalidades ou objetivos do seu cliente, o especialista buscará o
melhor meio para atingir o objetivo pretendido. Em síntese,
Esse modelo, portanto, faz a distinção entre tomadores de decisão e técnicos. Uns determi-
nam os fins, outros, os meios. Esse modelo diminui a dependência em relação ao técnico,
uma vez que são as próprias pessoas que decidem sobre seus objetivos.
Uma sociedade decisionista considerará que cabe às instituições políticas determinar os ob-
jetivos visados por essa sociedade. Cabe aos técnicos, após, encontrar os meios adequados.
(p. 208)
É possível perceber que as interações em estudo fortalecem a posição da Ciência como detentora do
conhecimento que melhor observa, que melhor organiza, que melhor decide, que melhor realiza, que
melhor avalia. Esse é o “C” de Ciência...
Por outro lado, o cidadão se sente bastante familiarizado com os aparatos tecnológicos. Afinal, sua
vida cotidiana esta repleta destes aparatos que, deixam de ser suporte para serem indispensáveis. O
risco dessa dependência do homem a tecnologias diversas, pode ser representado por dois exemplos
envolvendo Hegel e Mary Shelley:
• Na dialética Hegel, podemos lembrar das reflexões envolvendo o amo e o servo. O amo
ordenava ao servo que realizasse todos os serviços e, com o tempo, o amo deixava de
saber como fazer, enquanto que o servo dominava todas as rotinas do como fazer. Ao
final, quem dominava quem? Quem era dependente de quem?
• Quanto a Mary Shelley, vale a lembrança dos escritos em sua famosa novela Frankstein,
em 1818. A chamada síndrome de Frankstein se deve ao medo de que as forças que nos
utilizamos para dominar a natureza se voltem contra nós, como faz o “monstro” nos
diversos filmes existentes. Ao final, diz o “monstro” a Victor Frankstein: "Tu és meu
criador, mas eu sou o teu senhor” (Bazzo, Linsingen e Pereira, 2003, p. 125).
Desde as tecnologias de transporte até os aparelhos celular modernos, os homens vêm se deixando
“escravizar” pelas tecnologias, pois que estas tornam suas vidas mais confortáveis, ou tornam suas
tarefas cotidianas menos penosas. Esse é o “T” de Tecnologia...
Por fim, devemos considerar as ações que estruturam as comunidades e as sociedades, quais-quer
que sejam suas tipologias. Elas pressupõem a participação como corolário do processo social. Cer-
tamente essa participação pode se dar por diversos canais institucionalizados que, no nosso modelo,
esta baseado em processos democráticos. A participação dos cidadãos na estrutura democrática bra-
sileira pode se dar das seguintes formas: a democracia representativa, a democracia participativa, a
democracia direta e a democracia consociativa, a saber (Chrispino, 2016, p. 142-143):
• A democracia representativa, que resulta na eleição de representantes do povo para os
Poderes Legislativo e Executivo, nos três níveis de governo (federal, estadual e muni-
cipal). Isso quer significar que o povo tem participação direta na qualidade dos seus
representantes, sendo certo a qualidade dos governantes espelha o pensamento dos
eleitores, visto que nenhum deles chegou ao poder por concurso ou por sorteio.
• A democracia participativa faculta a participação mais efetiva de cidadãos em espaços
de decisão e/ou de acompanhamento. Os exemplos são os conselhos de acompanha-
mento de ações de governo ou conselhos temáticos. Não passa despercebido que um dos
grandes entraves na consolidação da boa representação é o fato de que os que buscam
representar se utilizam deste instituto como trampolim para projetos políticos pessoais
tais como chegar a vereador, chegar a deputado, chegar a prefeito etc.
• A democracia direta se dá pela participação efetiva do cidadão visando a decisão. São
exemplos de participação direta o plebiscito e o referendo. Não devemos confundir os
institutos da democracia direta com as ferramentas de política populista como foi o
caso da denominada “Democracia Plebiscitária”, que mais se assemelha a populismo
oportunista, quando um governante, com alto índice de aceitação, propõe consulta à
população sobre temas de interesse, como a possibilidade de reeleição sem limites.
• A democracia consociativa, que não deixa de ser uma derivada da democracia partici-
pativa, se caracteriza pela busca de consensos para o convívio entre os diferentes ato-
res e interesses que compõem a sociedade (Toba, 2004). As conferências nacionais, os
planos diretores, os documentos de impacto de vizinhança e de impacto ambiental, são
exemplos deste novo instituto. Aqui, ganha aquele que demonstrar mais organização e
capacidade de articulação. A chamada construção de consenso é uma tecnologia social
que tende a ocupar importantes espaços nas relações sociais contemporâneas.
É certo que o especialista não é a pessoa mais capaz para decidir sobre os caminhos a serem trilhados
para a sociedade. Ele não é o representante da sociedade legitimado para escolher “se a ponte deve
ou não ser construída”. O representante que melhor se aproxima desta função é o político. Se esta-
mos escolhendo bons políticos para essa função de representação social, isso é lá outro problema que
não cabe neste espaço!
O “S” da sigla CTS deve representar a Sociedade na tríade CTS... digamos que esta representação seja
um caminho em construção (Vacarezza, 2002)... um sonho que vai se tornando realidade apesar de
todas as dificuldades!
Essa última afirmação não é de forma alguma uma demonstração de pessimismo. A primeira ação
frente a uma dificuldade ou limitação deve ser a de assumir que ela existe, identificar suas carac-
terísticas e planejar o que fazer. Assumir que a Sociedade não possui instrumentos cognitivos para
entender os temas tecnocientíficos e que isso a impede de participar das decisões sociopolíticas é
indispensável para propor instrumentos eficazes de superação do problema.
Por tal, é indispensável que se proceda a vulgarização científica (Fourez, 1995) por meio da alfabeti-
zação tecnocientífica40 do cidadão (Zaragoza, 1999; Santos e Mortimer, 2002; Eduarda Santos, 2001;
Auler, 2003; Acevedo, Vázquez e Manassero, 2003; Chassot, 2003; Krasilchik e Marandino, 2006;
Santos, 2007; Praia, Gil e Vilches, 2007).
Segundo a proposta de Fourez (1995, p. 221-222), a vulgarização científica – e diríamos nós também a
tecnológica – pode dar-se de duas maneiras:
• Efeito vitrine: a primeira por meio de uma operação de relações públicas da comuni-
dade científica, demonstrando ao povo as “maravilhas que os cientistas são capazes de
produzir”, resultando em uma sociedade tecnocrática com pouca liberdade e a
• Transmissão de poder social: aquela que transmite certo conhecimento científico ao
40
Os diversos autores utilizam Alfabetização Científica, alguns preferem alfabetização científica e tecnológica, letramento cien-
tífico ou literácia científica. Parece-nos mais adequado no contexto deste trabalho o termo alfabetização tecnocientífica que irá
significar a "capacidade de ler, compreender e expressar opiniões sobre ciência e tecnologia" (Krasilchik e Marandino , 2004, p.
26). Para nós, CTS é um Enfoque mais amplo que a ACT, por considerar as relações sociais, tal qual indicou Fourez (1997, p. 18)
Santos (2007), em seu estudo sobre alfabetização científica, chama a atenção para o fato de que a
alfabetização científica tem sido objeto de preocupação de profissionais de diversas áreas:
• Educadores em ciência, que se preocupam com a educação nos sistemas de ensino;
• Cientistas sociais, que estão voltados para o interesse do público em geral por questões
científicas;
• Sociólogos da ciência, que estão envolvidos com a interpretação diária da ciência;
• Comunicadores da ciência, que estão com a atenção voltada para a di-vulgação científi-
ca em sistemas não-formais;
• Economistas, que estão interessados no crescimento econômico decorrente do maior
consumo da população por bens tecnológicos mais sofisticados que requerem conheci-
mentos especializados, como o uso da informática.
A partir dos ângulos de análise e de procedimentos específicos de cada grupo de interesse que carac-
teriza as diversas áreas preocupadas com a alfabetização científica, é possível, segundo Millar (1996
apud Santos, 2007), agrupar os diversos argumentos em cinco categorias:
a) argumento econômico, que conecta o nível de conhecimento público da ciência com o
desenvolvimento econômico do país;
b) utilitário, que justifica o letramento por razões práticas e úteis;
c) democrático, que ajuda os cidadãos a participar das discussões, do debate e da tomada de
decisão sobre questões científicas;
d) social, que vincula a ciência à cultura, fazendo com que as pessoas fiquem mais simpáti-
cas à ciência e à tecnologia; e
e) cultural, que tem como meta fornecer aos alunos o conhecimento científico como pro-
duto cultural.
41
Em inglês no original
O quadro a seguir sintetiza, de acordo com Santos e Schnetzler (2003, p. 65), os aspectos CTS que
devem ser considerados no processo de Alfabetização Tecnocientífica quando este se dá a partir da
Abordagem CTS:
Apresentamos até aqui uma defesa da ideia de que a participação do cidadão na construção da ciên-
cia e da tecnologia, bem como a percepção dos impactos causados pela produção da ciência e da tec-
nologia, quer como conhecimento e artefato, quer como corporação social instituída para defesa de
seus interesses, pode ser alcançada pela alfabetização científica e tecnológica para todos.
Essa é uma discussão importante que, como em outros temas CTS, possui interessantes divergências
e alguns pontos de convergência sobre os quais espera-se pautar as modificações necessárias para
alcançarmos os objetivos pretendidos no ensino das ciências. Esta divergência que, ao final, permite
uma leitura madura sobre as dificuldades da área CTS e indica pontos de convergência é bem repre-
sentada pelo debate mantido entre Acevedo e colaboradores (2005) e Praia, Gil e Vilches (2007). Não
temos a pretensão de sintetizar a riqueza de informação que ambos os trabalhos disponibilizam, mas,
sim, extrair reflexões para o que propõe este texto, convidando o leitor atento e interessado a leitura
nos originais.
Inicialmente Acevedo et al (2005) apontam que é cada vez maior, em didática das ciências, o consenso de
considerar que um dos objetivos mais importantes da educação científica é que os estudantes da educação
Básica adquiriram uma melhor compreensão da natureza da ciência (NdC). “Deste modo, a presença da
NdC no currículo de ciências é valorizada pelos que concebem uma educação científica mais apropriada
para o século XXI”. Dizem os autores que vários países (Austrália, Canadá, Inglaterra, Nova Zelândia,
USA etc.) incluem explicitamente o ensino da NdC nos seus currículos científicos e muitos outros o fazem
de uma forma mais ou menos parcial ou implícita. As razões para inclusão de NdC nos currículos varia
com o tempo e, atualmente, percebemos duas grandes razões: a alfabetização científica e tecnológica para
todas as pessoas e a educação CTS. “Pensa-se que um dos principais objetivos do ensino das ciências é a
aprendizagem da NdC, tanto para desenvolver uma melhor compreensão da ciência e seus métodos como
para contribuir para tomar mais consciência das interações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade”.
Iniciando o raciocínio crítico sobre o ensino da NdC, Acevedo et al (2005) lembram que
• NdC é um metaconhecimento que surge da reflexão sobre a própria ciência e, por isso,
é um objetivo pouco razoável;
• “Sendo que a metacognição constitui o nível de maior complexidade no desenvolvi-
mento cognitivo humano, a compreensão da NdC poderia ficar de fora do alcance da
grande maioria dos alunos”
• Há dificuldades para estabelecer que conteúdos de NdC devem ser ensinados. Os pró-
prios filósofos e sociólogos da ciência [e incluiríamos os da tecnologia] têm desacordos
sobre os princípios básicos da área, considerando o caráter dialético e controversos das
questões em jogo, além, claro, da maior tendência destes profissionais para a polêmica.
(Veja também Vázquez et al, 2008)
• Esclarece que estas discrepâncias são por demais abstratas e que não ajudam, se ensi-
nadas ou postas no currículo, a formar um melhor cidadão, pois não contribuem para
melhor entendimento da ciência e da tecnologia contemporâneos.
• Talvez seja possível algum consenso se forem definidos “objetivos e conteúdos mais
modestos, mais adaptados ao nível de desenvolvimento dos alunos e mais ajustados aos
requisitos de ensino de ciências destinado a uma alfabetização científica e tecnológica
para todos”. De acordo com esta ideia, os métodos para ensinar NdC têm-se mostrado
eficazes quando:
• Abordam alguns dos seus aspectos básicos de maneira explícita e reflexiva
(se tal se faz com uma boa planificação, desenvolvendo os conteúdos em ati-
vidades variadas e avaliando os processos desenvolvidos e os resultados con-
seguidos);
• Se usam atividades baseadas na pesquisa científica
• Se usam atividades baseadas na História e Filosofia da Ciência
• Se usam atividades contextualizadas com um enfoque CTS do tipo IOS – Is-
sue-Oriented-Science
• Se usam atividades capazes de relacionar o mundo real e quotidiano dos alu-
nos
• “Mesmo assim, têm sido conduzidos projetos expressamente concebidos
para melhorar a compreensão da NdC que colocam o acento nos processos
sociais da construção do conhecimento científico e na resolução das con-
trovérsias científicas. Estas linhas de trabalho puseram também em ques-
tão a crença de que um ensino implícito da NdC, baseado na prática dos
procedimentos da ciência e outros conteúdos indiretos, permite alcançar
uma boa compreensão da NdC” (p. 3)
Dando continuidade ao estudo crítico, Acevedo et al (2005) aponta para dois importantes temas que
parecem não merecer a atenção devida dos profissionais do ensino de ciências e tecnologia. O primei-
ro deles é a que as “crenças dos professores sobre a NdC se relacionam diretamente com a sua prática
docente” e, o segundo tema, é a afirmação de “que uma boa compreensão da NdC se apresenta como
um fator decisivo para tomar melhores decisões sobre questões tecnocientíficas de interesse social”
No que se refere ao primeiro tema, indicam as hipóteses que são sustentadas:
• A compreensão dos professores acerca da NdC tem uma certa relação com a dos seus
alunos e com a imagem que estes adquirem da ciência.
• As crenças dos professores sobre a NdC influenciam significativamente na sua forma de
ensinar ciências e nas decisões que tomam na aula.
Diversos estudos têm mostrado que estas afirmativas não se sustentam desta forma simples e direta.
Sobre este tema simplificamos a ideia geral dos autores:
Por outro lado, diversos investigadores têm assinalado vários fatores que influem quando
o professor transfere para a aula conteúdos de NdC. A maioria desses fatores não tem a ver
com os próprios conteúdos de NdC, mas sim com resistências gerais às inovações educati-
vas e, principalmente, com o conhecimento didático do conteúdo,[uma noção introduzida
por Shulman] para expressar o conhecimento profissional específico que os professores
desenvolvem sobre a forma de ensinar a sua disciplina e que é, afinal, a intersecção entre os
conhecimentos didáticos, do tema e do objeto de ensino – a NdC, neste caso –, que também
se relaciona com a necessária transposição didática dos conteúdos que devem transferir
para a aula. Sem dúvida, estes aspectos adicionam muito mais complexidade ao que se sus-
tenta linearmente nas duas hipóteses indicadas. (p. 4, adaptado)
No que se refere ao segundo tema, parece clara a ideia de que é necessária a alfabetização científica
e tecnológica de todas as pessoas. Para isso, muitos apresentam um argumento democrático: uma
melhor compreensão da NdC permite tomar decisões mais refletidas sobre questões tecnocientíficas
de interesse social outros vêm esta decisão do estudante como aquela decisão dos cientistas para
justificarem o conhecimento que geram. Ao final perguntam os autores: “Mas, é o conhecimento da
NdC um fator chave para tomar este tipo de decisão? ”
A resposta para esta provocante questão pode estar no resultado de pesquisas envolvendo alunos do
ensino secundário e universitário que demonstrou que, no momento de tomar alguma decisão, eles
consideram irrelevantes os conhecimentos científicos que não estejam de acordo com suas crenças
prévias. Outros aceitaram os conhecimentos tecnocientíficos necessários a uma “melhor” decisão,
mas preferiam não os utilizar, dando preferência a suas próprias crenças. Outros tantos desprezaram
o ponto de vista ético de seus colegas quando estes conflitavam com o seu próprio ponto de vista.
Outros ainda, que possuem pontos de vista diferentes sobre NdC, tomam decisões semelhantes sobre
temas tecnocientíficos, o que pode sugerir que “os fatores mais influentes foram os valores morais e
pessoais, assim como os aspectos culturais, sociais e políticos, relacionados com as questões coloca-
das”.
Esse conjunto de dificuldades pode sugerir que seja necessário dar mais atenção aos aspectos cul-
turais, sociais, morais e emotivos e aos atitudinais e axiológicos, como defendem os que apoiam a
abordagem CTS para o ensino das ciências, que pretende educar para a participação dos cidadãos
nos assuntos tecnocientíficos de interesse social.
Outro aspecto levantado no artigo é o fato de que a NdC ensinada no currículo escolar está baseada
na ciência acadêmica, na ciência herdada, na ciência triunfalista. Antes de atender a esse pressupos-
to, que não atende aos pressupostos da abordagem CTS, seria mais interessante que o currículo esco-
lar se baseasse numa NdC apoiada na ideia, por exemplo, de tecnociência, por estar mais próxima da
realidade do estudante e da sociedade e, por isso, ser alvo mais próximo de suas possíveis decisões.
Dando sequência a discussão bem fundamentada, Praia, Gil-Perez e Vilches (2007) discutem o “pa-
pel da natureza da ciência na educação científica e, em particular, na formação de uma cidadania
para a participação na tomada de decisões”, a partir das reflexões de Acevedo et al (2005). Os autores
desenvolvem seu trabalho a partir de dois eixos principais: Formação científica para uma cidadania
que permita participar em discussões tecnocientíficas e a importância da natureza da ciência na edu-
cação científica e, em particular, na preparação para a tomada de decisões tecnocientíficas de inte-
resse social. Busquemos, como fizemos anteriormente, sintetizar as ideias dos autores, convidando o
leitor à leitura original pelos fundamentos que apresenta.
Aos autores partem do chamado argumento “democrático”, defendido especialmente no que propõe
a Declaração de Budapeste (1999):
Para que um país esteja em condições de atender às necessidades fundamentais da sua po-
pulação, o ensino das ciências e da tecnologia é um imperativo estratégico […]. Hoje, mais do
que nunca, é necessário fomentar e difundir a alfabetização científica em todas as culturas
e em todos os sectores da sociedade, [...] a fim de melhorar a participação dos cidadãos na
adopção de decisões relativas à aplicação de novos conhecimentos.
Após isso, apresentam diferentes autores contrários a ideia de alfabetização científica, que buscam
“abalar aparentes evidências”. Para demonstrar a dificuldade de consenso sobre os conteúdos que
devem ser dominados pelos estudantes a fim de se sentirem preparados para tomar decisões em
torno de temas tecnocientíficos de impacto social como o aquecimento global ou o uso de defensivos
agrícolas. Exemplificam com o resultado do
Project 2061, financiado pela American Association for the Advancement of Sciences (AAAS),
projecto que consistiu em pedir a uma centena de eminentes cientistas de distintas disci-
plinas que enumerassem os conhecimentos científicos que, em sua opinião, deveriam fazer
parte da escolaridade obrigatória para garantir uma adequada alfabetização científica das
crianças norte-americanas. O número total de aspectos que seriam exigidos (...), desafia o
nosso entendimento e resulta superior à soma de todos os conhecimentos atualmente ensi-
nados aos estudantes de elite que se preparam como futuros científicos.
Frente a essa constatação – muito comum aliás nas nossas discussões curriculares que são pródigas
em acrescentar novos conteúdos e possuem extrema dificuldade em dizer o que é efetivamente im-
portante nas matérias da ciência da natureza – os autores propõem que o conteúdo a ser ensinado
com vista a alfabetização científica possua um mínimo de conhecimento específico, com planeja-
mentos globais e considerações éticas, que não solicitam maiores especializações mas sim “exigem
enfoques que contemplem os problemas numa perspectiva mais ampla”.
Em síntese, a participação, para a cidadania, na tomada de decisões é, hoje, um fato positi-
vo, uma garantia de aplicação do principio da precaução, que se apoia em uma crescente
sensibilidade social frente às implicações do desenvolvimento técnico-científico que po-
dem comportar riscos para as pessoas ou para o meio ambiente (...). A referida participação,
temos de insistir, reclama um mínimo de formação científica que torne possível a com-
preensão dos problemas e das opções - que se podem e se devem expressar numa lin-
guagem acessível - para não se ver recusada com o argumento de que problemas como
a mudança climática ou a manipulação genética são de uma grande complexidade. Na-
turalmente, são necessários estudos científicos rigorosos, mas tão pouco eles, por si sós,
bastam para adotar decisões adequadas, dado que, por vezes, a dificuldade não está na falta
de conhecimentos, mas na ausência de um planejamento global que avalie os riscos e
Os autores informam que a literatura tem demonstrado uma série de distorções cuja superação pode
servir de base a um consenso que oriente a “imersão numa cultura científica e tecnológica”, desde
que se deixe a margem as discrepâncias e diferença pontuais e se busque os consensos básicos já
apontados por diversos epistemólogos. Os autores apontam os seguintes consensos:
1. “a recusa da própria ideia de “Método Científico”, com maiúsculas, como um conjunto
de regras perfeitamente definidas a aplicar mecanicamente e independentes do domí-
nio investigado”.
2. “a recusa de um empirismo que concebe os conhecimentos como resultado da inferência
indutiva a partir de “dados puros”. Esses dados não significam nada em si mesmos, mas
devem ser interpretados de acordo com um sistema teórico”. (...) “Tudo isto deve partir do
corpus de conhecimento existente no campo específico em que se realiza a investigação”.
No que refere à Importância da superação das visões distorcidas da natureza da ciência na educação
científica, os autores propõem buscar uma metodologia que supere os reducionismos comuns e que
alcancem uma aprendizagem significativa e duradoura, o que pode ser obtido mais facilmente quan-
do o estudante participa da construção do conhecimento científico e pela familiarização com estra-
tégias de ensino. Propõem uma “a aprendizagem como um trabalho de investigação e de inovação
por meio do tratamento de situações problemáticas relevantes para a construção de conhecimentos
científicos e a conquista de inovações tecnológicas susceptíveis de satisfazer determinadas necessi-
dades”, cujos aspectos são enumerados a seguir:
• “A discussão do possível interesse e da relevância das situações propostas, que dê
sentido ao seu estudo e evite que os alunos se vejam submergidos no tratamento de uma
situação sem terem sequer podido formar uma primeira ideia motivadora ou percebido
a necessária tomada de decisões, por parte da sociedade e da comunidade científica,
acerca da conveniência ou da inconveniência do referido trabalho, tendo em conta a sua
possível contribuição para a compreensão e transformação do mundo, suas repercus-
sões sociais e do meio ambiente etc”.
• “O estudo qualitativo, significativo, das situações problemáticas abordadas, que aju-
de a compreender e a precisar tais situações à luz dos conhecimentos disponíveis, dos
objectivos perseguidos… e a formular perguntas operativas sobre o que se procura, o
que supõe uma oportunidade para os estudantes começarem a explicitar funcional-
mente as suas ‘concepções alternativas’.”
Em uma sociedade tecno-dependente é indispensável que os cidadãos estejam aparelhados para en-
tender como se dá as relações entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, sob o risco de delegarem aos
especialistas não só a tarefa de como fazer, mas também quando fazer, onde fazer e, pior, se se quer
fazer alguma coisa no campo da tecnociência.
No momento em que falamos de lacunas formadoras do cidadão como participante ativo do proces-
so social de construção da ciência e da tecnologia, trazemos à discussão a inexistência, nos textos
de Ensino CTS brasileiro, do tema apropriação social da ciência e da tecnologia42. Surpreendeu-nos
que esta temática não estivesse explicitamente contemplada nos artigos constantes da base de dados
sobre Ensino CTS, apesar de constar das discussões da área de estudos sociais da ciência e da tecno-
logia e de políticas em ciência e tecnologia, bem como da área intitulada de cultura científica. Esta
área propõe-se a discutir, como escreve Estébanez (2015, p. 62), em capítulo de revisão sobre o tema:
Nos últimos trinta anos, ampliando a noção de cultura científica é produzido, com a adição
de novas dimensões, além da cognitiva, relacionadas com a aquisição de novos valores e
padrões de avaliação da atividade de pesquisa, dimensões afetivas nas atitudes em relação
à ciência e tecnologia, a percepção de risco. Dentro desta nova concepção, a ideia de que
CCyT inclui as capacidades dos "leigos" - ou cidadãos - para interagir com especialistas - ou
científicos - mediante a compreensão dos aspectos institucionais da ciência e da tecnologia
(quem a produz, para que fim, com que conseqüências) e predisposição para o exercício da
cidadania nos debates relacionados com a ciência e tecnologia. (Vacarrezza et ai, 2004, pp.
25-26).
Sob essa noção ampliada da cultura, a ideia de apropriação está ligada à contextualização
da ciência e da tecnologia e a variabilidade de aplicação e significados que adquirem nas
condições locais de uso. Contextualizar remete a dar significado específico para o usa em
áreas específicas de atuação social. Considera-se a cultura como um fator ativo, uma "ma-
triz de uso" da ciência e da tecnologia e componente transformador ou resignificante do
conhecimento.
A autora (p. 67-68) apresenta ainda uma síntese que pode nos dar alguma noção quanto a importân-
cia deste tema para efetivação daquilo que é buscado com a Educação CTS:
Nesta revisão de literatura ajustado com base na apropriação social da ciência e da tecnolo-
gia se propõe aqui proposto, para resumir, as seguintes definições e diferenças em torno dos
múltiplos significados encontrados:
- Refere-se a sujeitos colectivos e neste sentido, a sociedade como um grupo central. Dife-
rencia-se do fenômeno de apropriação individual (protagonizado por pessoas particulares)
e da apropriação privado (industrial, comercial).
- Envolve processos de coprodução de conhecimento por parte de cientistas e cidadãos-
usuários, e desenvolvimento cooperativo de tecnologias, a partir do qual valores e interes-
ses públicos são registrados nos resultados alcançados.
- O uso competente do conhecimento científico e tecnológico é o resultado de processos de
apropriação. Neste sentido específico, a dimensão social da apropriação é fortalecer a capa-
cidade coletiva de usar tal conhecimento para o bem estar comum.
- Os processos de apropriação social ocorrem quando a capacidade de usar conhecimento
se integra à matriz cultural da sociedade, em ligação sinérgica e não excludente, com outros
tipos de conhecimento (tradicional, empírica, originários). A participação cidadã intervem
positivamente na ampliação dos processos de apropriação social da ciência e da tecnologia,
colocando em ação a cultura científica e tecnológica.
- A apropriação social é a capacidade relativa dos cidadãos para: o conhecimento dos bene-
42
Há um número monográfico da revista CTS que pode ser obtido em http://www.revistacts.net/volumen-4-numero-10
Indispensável que a formação do cidadão considere estes aspectos e o prepare minimamente, por
meio da alfabetização tecnocientífica, para entender e interferir – no campo dos conhecimentos, da
política, da economia, da inovação, dos valores e da ética – nas possíveis interações dos sistemas CTS:
sistema tecnocientífico, sistema sócio-científico e sistema sócio-tecnológico, afastando-se quanto
possível dos chamados Determinismo Social, Determinismo Tecnológico e Determinismo Científico,
que buscam avocar para si a prevalência, a precedência e a centralidade nos processos de produção,
de análises e de decisão.
Apesar desta visão que nos parece defensável, percebemos que a comunidade de ciência e tecnologia
ainda está longe de construir consensos em torno da participação cidadão na construção da ciência
e da tecnologia e sobre o processo decisório de temas tecnocientíficos de impacto social. Por conta
disso, é indispensável não atribuir à abordagem CTS mais valor do que ela efetivamente possui; não
a transformar em panaceia; não desconsiderar a contribuição de outras visões de ensino, de outras
áreas do conhecimento e das diversas experiências que se desenvolvem em contextos distintos e
que, ao final, poderão chegar ao mesmo fim, mas por caminhos diversos... o que também é válido e
necessário.
Que matemática ensinar no Ensino Médio? Como os matemáticos identificariam estes conteúdos
(modelo tecnocrático)? Como uma equipe multidisciplinar identificaria os conteúdos (ainda o mo-
delo tecnocrático)? Como seriam as negociações entre matemáticos e pedagogos na busca dos con-
teúdos (modelo decisionista)? Como seria a negociação entre diferentes atores sociais na decisão dos
conteúdos (modelo pragmático-político)?
O enfoque CTS inserido nos currículos é um impulsionador inicial para estimular o aluno a refletir sobre
as inúmeras possibilidades de leitura acerca da tríade: ciência, tecnologia e sociedade, com a expectativa
de que ele possa vir a assumir postura questionadora e crítica num futuro próximo. Isso implica dizer
que a aplicação da postura CTS ocorre não somente dentro da escola, mas também extramuros.
Pinheiro, Matos e Bazzo
2007
6.1 Introdução
Certamente, a Abordagem CTS é uma alternativa poderosa para a formação tecnocientífica, sob a
ótica da formação do cidadão. E isso é facilitado visto que a premissa CTS é a do acolhimento de
posições divergente e o exercício do entendimento, do respeito às diferenças, da construção de con-
senso e da tolerância, sem perder de vista os deveres, direitos, a ética, a cultura e a visão de curto,
médio e longo prazos. Podemos dizer que os fundamentos CTS estão acentados nas grandes áreas
da Política, da Economia, dos Valores, do Ambiente, das Relações pessoais e sociais, principalmente.
No que se refere ao acolhimento pelos estudantes, não se deve esquecer que a Abordagem CTS se
propõe a trabalhar a realidade, instrumentalizando os estudantes para que estes interajam com esta
realidade, modificando-a a partir de suas reflexões pessoais e/ou decisões coletivas.
No que concerne a sua contribuição social, a Abordagem CTS também é importante. Uma vez que
a proposta de fundo é a aceitação da Construção Social da Ciência e da Tecnologia e no estudo do
impacto da Ciência e da Tecnologia sobre a Sociedade, espera-se que o conhecimento sobre a huma-
nização da Ciência e da Tecnologia e a relativização do bem absoluto da Ciência e da Tecnologia se
transformem em aprendizado social e sejam patrimônio coletivo a influir no fazer cotidiano de cada
cidadão. Sob este ângulo, não se espera que a Abordagem CTS seja mais uma técnica didática, mas,
sim, uma cultura: a cultura CTS que se manifesta em qualquer técnica de ensino ou manifestação
docente...
Esta cultura que deverá se manifestar por meio das diversas técnicas deve contemplar de forma am-
pla alguns pressupostos que caracterizam e norteiam a ação didática CTS. Ao final e ao longo da ativi-
dade os estudantes devem vivenciar a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade, mesmo que por diferentes
óticas: o conhecimento, as habilidades e as atitudes (Chrispino, 1992), ideias, máquinas e valores
(Cutcliffe, 2003), conhecer, manejar e participar (Martin Gordillo e Osorio, 2003) e, numa visão mais
ampla de educação e ensino, o saber, fazer, saber-fazer e saber-ser (UNESCO, 1994).
Por tudo isso, parece ficar claro que a Abordagem CTS não é uma abordagem exclusivamente para as
disciplinas do chamado grupo de ciências exatas e da natureza. A Abordagem CTS, ao solicitar para o
mesmo fato social a visão tanto da cultura cientifico-tecnológica como da cultura sócio-humanística,
favorece a aproximação destas, separadas por um abismo que não se explica na atualidade.
Temos defendido que a Abordagem CTS é uma maneira de abordar o currículo escolar ou mesmo de
posicionar-se frente à Educação e ao mundo real, nos seus mais diversos aspectos. Mais do que uma
técnica (pois não é uma ferramenta didática que conduz a um fim de aprendizado especifico para
81 CTS E O ENSINO
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
encerrarse logo após), nem uma metodologia (pois que abarca aspectos muito mais amplos que aque-
les que caracterizam uma metodologia), CTS é uma abordagem curricular e uma escolha de política
educacional. A isso classificamos de Educação CTS.
Partindo-se desta premissa, pode-se esperar que a maneira de ver e de fazer educação por meio do
ensino na abordagem CTS se materializará em várias esferas de ação didática (desde o ensino funda-
mental até a educação de jovens e adultos), nos ambientes de ensino tradicional ou inovador (visto
que a abordagem CTS não está restrita aos instrumentos mas está sob a égide do professor e sua
proposta de apresentar o mundo por outra ótica), em ações de formação educacional de longo porte
(como cursos de formação) ou mesmo em atividades pontuais (como estudos pontuais e temáticos).
A isso classificamos de Ensino CTS.
Longe de ser uma panacéia, A abordagem CTS deve ser encarada como uma das maneiras de apre-
sentar, organizar e multiplicar os conhecimentos, independentemente das características ou res-
trições impostas externamente.
Robert E. Yager (Yager, 1991, 1992, 1993, 2000) vem publicando há décadas uma análise que busca
diferenciar o que seja ensino tradicional e o ensino CTS, diferença essa interessante para nossas re-
flexões neste ponto do estudo. Mais recentemente, Yager e Akcay (2008, p. 4) retomam o tema e nos
apresentam a seguinte comparação:
Faremos aqui uma apresentação ampla de CTS e suas relações com o ensino. Recomendamos para
aqueles que desejem uma visão educacional mais específica das abordagens teóricas a leitura de Ca-
chapuz et al (2008) e Aikenhead (2005), bem como Santos e Mortimer (2002).
82 CTS E O ENSINO
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
Buscando alternativas para este tipo de dificuldade, dentre outras, surgiu um movimento intitulado
CTS-Ciência, Tecnologia e Sociedade, no final da década de 60 e início da década de 70. Bazzo, Lin-
singen e Pereira (2003) escrevem:
Os estudos CTS definem hoje um campo de trabalho recente e heterogêneo, ainda que bem
consolidado, de caráter crítico a respeito da tradicional imagem essencialista da ciência e
da tecnologia, e de caráter interdisciplinar por convergirem nele disciplinas como a filosofia
e a história da ciência e da tecnologia, a sociologia do conhecimento científico, a teoria da
educação e a economia da mudança técnica. Os estudos CTS buscam compreender a di-
mensão social da ciência e da tecnologia, tanto desde o ponto de vista dos seus antecedentes
sociais como de suas consequências sociais e ambientais, ou seja, tanto no que diz respeito
aos fatores de natureza social, política ou econômica que modulam a mudança científico-
tecnológica, como pelo que concerne às repercussões éticas, ambientais ou culturais dessa
mudança.
O aspecto mais inovador deste novo enfoque se encontra na caracterização social dos fato-
res responsáveis pela mudança científica. Propõe-se em geral entender a ciência-tecnologia
não como um processo ou atividade autônoma que segue uma lógica interna de desenvolvi-
mento em seu funcionamento ótimo (resultante da aplicação de um método cognitivo e um
código de conduta), mas sim como um processo ou produto inerentemente social onde os
elementos não-epistêmicos ou técnicos (por exemplo: valores morais, convicções religio-
sas, interesses profissionais, pressões econômicas, etc.) desempenham um papel decisivo na
gênese e na consolidação das ideias científicas e dos artefatos tecnológicos. (p. 125)
Para Manassero e Vázquez (2001), já se referindo a didática própria que solicita a Abordagem CTS,
escrevem:
O movimento didático ciência-tecnlogia-sociedade (CTS) tem como um de seus objetivos
o desenvolvimento das atitudes relacionadas com a ciência nos alunos e propõe como
referência para sua avaliação o corpo de conhecimentos que emerge das análises históri-
cas, filosóficas e sociológicas sobre a ciência (Aikenhead, 1994a, 1994b; Bybee, 1987). No
espírito deste movimento está o desejo de oferecer, através da educação das atitudes re-
lacionadas com a ciência, uma visão mais autêntica da ciência e da tecnologia em seu
contexto social, desvinculadas de imagens mitificadas e tendenciosas (cientificismo e
tecnocracia) ao mesmo tempo que reconhece a tecnologia, como atividade diferente, in-
tegrada e equiparável com a ciência, e não só como mera ciência aplicada. A equiparação
entre e tecnologia aumenta imediatamente os valores contidos na natureza das atividades
científicas, de modo que a educação atitudinal – moral ou ética – é uma consequência
inevitável da Educação CTS (Layton, 1994). Como afirma Ziman (1994), a debilidade da
ciência tradicional não reside no que ensina sobre a natureza, mas sim no que não ensina,
em particular, suas relações com a tecnologia e a sociedade, vazio que pretende preencher
a Educação CTS (p. 16)
83 CTS E O ENSINO
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
A Associação Nacional dos Professores de Ciências nos Estados Unidos, tem endossado uma extensa
definição para o movimento CTS:
CTS é um termo que denomina os últimos esforços para se promover um contexto de mun-
do real para o estudo da ciência. É um termo que eleva a retórica da Ciência da educação
para uma posição que vai além de conteúdos e debates sobre o escopo e a sequencia dos
conceitos básicos e habilidades processuais. CTS inclui toda a gama de críticas conexas no
processo de educação, incluindo objetivos, conteúdos, estratégias instrucionais, avaliação e
a preparação/performance do professor. Ninguém pode "fazer" CTS apenas aderindo cer-
tos tópicos e lições ao conteúdo, ou cursos, ou livros texto. Os alunos têm que estar envol-
vidos com o objetivo, com os procedimentos planejados, com as informações alocadas, e
com a avaliação de tudo. O básico para os esforços em CTS é a formação de uma cidadania
instruída, capaz de tomar decisões cruciais sobre problemas correntes e ter atitudes pessoa-
is como resultado dessas decisões. CTS significa enfocar debates correntes e tentativas de
sua solução como a melhor maneira de se preparar as pessoas para exercerem a cidadania
no futuro. Isto significa identificar problemas (locais, regionais, nacionais e internacionais)
com os alunos, planejando atividades indivi-duais ou em grupo e movendo ações designa-
das a resolver o que foi debatido. Os alunos são envolvidos na totalidade do processo, eles
não são receptáculos de qualquer conteúdo pré-determinado ou dos ditames do professor.
Não há um conceito ou processo único para o CTS, no lugar disso, o CTS provê um ambiente
e uma razão para considerar os conceitos e processos da ciência e da tecnologia. Isto signi-
fica determinar maneiras de como essas ideias e habilidades básicas podem ser vistas como
úteis. CTS significa um enfoque dos problemas do mundo real, em vez de se começar com
conceitos e procedimentos que os professores e conteúdos desenvolvidos sustentam em
termos de utilidades para os alunos. (Yager, 1991, p. 21).
Auler (2007), estudando os pressupostos CTS para o contexto brasileiro, escreve que os objetivos da
educação CTS podem ser sintetizados em:
• Promover o interesse dos estudantes em relacionar a ciência com aspectos tecnológicos
e sociais, discutir as implicações sociais e éticas relacionadas ao uso da ciência-tecno-
logia (CT);
• Adquirir uma compreensão da natureza da ciência e do trabalho científico;
• Formar cidadãos científica e tecnologicamente alfabetizados capazes de tomar decisões
informadas e desenvolver o pensamento crítico e a independência intelectual.
Segundo Membiela (2001, p. 91), o propósito da educação CTS é promover a Alfabetização tecno-
científica, de maneira que se capacite os cidadãos a participar do processo democrático de tomada
de decisão e se promova a ação cidadã voltada para a resolução de problemas relacionados com a
84 CTS E O ENSINO
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
Ciência e com a Tecnologia. O mesmo autor chama a atenção para fato de ser este um dos conceitos
possíveis de CTS, visto que há “muito debate e pouco consenso entre a comunidade CTS”, certamen-
te porque o espaço CTS é, por conceito, um espaço interdisciplinar, onde se encontram áreas que
possuem conceitos polissêmicos, tal qual ciência, tecnologia, sociedade, valores, ambiente etc. Essa
aparente dificuldade pode ser encarada como confirmação do postulado de que há espaço e neces-
sidade de divergir, de perceber diferente, de interpretar sob outra ótica e, mesmo assim, caminhar e
conquistar espaços.
Para Yager (2013, p. X), “CTS é o ensino e a aprendizagem de ciência-tecnologia no contexto da ex-
periência humana”.
Uma definição que muito nos impressiona pela clareza é a de Cutcliffe (2003, p. 18), quando escreve
que
a missão central do campo CTS até a presente data é expressar a interpretação da ciência
e da tecnologia como um processo social. Neste ponto de vista, a ciência e a tecnologia são
vistos como projetos complexos em que os valores culturais, políticos e econômicos, nos
ajudam a configurar os processos tecnocientíficos, os quais, por sua vez, afetam os valores
mesmos e a sociedade que os sutenta.
Portanto, cada realidade social (caracterizada pela diversidade cultural, política, de crenças, valores
etc) produzirá um conjunto de significados, acarretando distintos entendimentos sobre o que seja ou
o que possa ser CTS. Sobre isso, Ainkenhead escreveu:
[...] cada país tem sua própria história, associada, principalmente, à sua realidade social, fa-
zendo com que as relações entre a ciência e a sociedade assumam diferentes características.
Em virtude disso, muitas vezes pode não haver um acordo no significado preciso de CTS,
ou uma definição única, que seja um consenso, em todas as partes do mundo. (Aikenhead,
2005, p. 119)
e
Um projeto particularmente CTS, desenvolvidos em um país pode definir o que é ciência
CTS para educadores desse grupo ou país. A crítica sobre CTS nesse país podem na realida-
de resultar ser a crítica de um tipo particular de projeto CTS; mesmo que outros educadores
CTS possam achar inadequado também. ” (Aikenhead, 2005, p. 119)
Para Pedretti e Nazir (2011), “o CTS educacional pode ser compreendido como um vasto oceano de
ideias e princípios, que se cruzam e se sobrepõe em diversos contextos” (p. 603).
Recentemente, frente às dificuldades causadas pelas consequências do uso de tecnologias mais es-
pecialmente no meio ambiente, tais como efeito estufa, acidentes petrolíferos, buraco na camada de
85 CTS E O ENSINO
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
ozônio etc, o Movimento CTS ganhou novos adeptos. Era necessário que a sociedade percebesse os
riscos que podem trazer o uso não responsável de conhecimentos e tecnologias para o individuo, para
a coletividade e para o ambiente. Surge então um movimento derivado intitulado CTS+A ou CTSA:
Ciência, Tecnologia, Sociedade e Ambiente que, na verdade, resgata a origem do Movimento CTS,
produzido por conta da preocupação dos impactos tecnológicos sobre o meio ambiente na década
de 60. Pode-se ainda apontar outras tendências ou focos como o CTS+I (de Inovação), CTS+V (de
Valores) e CTS+P (de Política), que são realçados para o grande público como identificador da ver-
tente de estudo a que se dirige o trabalho, mas que estão contidos – tanto ambiente, como inovação,
como valores, como política – nas fundações mesmas dos Enfoques CTS. Mais recentemente, é pos-
sível encontrar CTS+S (de sustentabilidade), proposto por Costa, Ribeiro e Machado (2012) quando
defendem que “a postura CTS/CTSA deve adquirir explicitamente esta componente e evoluir para
Ciência-Tecnologia-Sociedade-Sustentabilidade o que pede uma sigla alternativa mais adequada,
CTSS ou, em estilo de fórmula química, CTS2” – e também Costa (2011) – e a proposta Figaredo Cu-
riel (2013) que acredita ser mais adequado aos tempos modernos o acrônimo SOCITEI (do original
em espanhol: So: sociedad; Ci: conocimiento y ciencia; Te: tecnología; In: innovación). A nosso ver,
algumas desses acréscimos representam uma área fundadora de CTS e, por isso, uma redundância.
Outras querem representar uma área de interesse que ganha visibilidade quando se agrupa a tríade
CTS, o que não se justifica. Por outro lado, é possível vislumbrar a vantagem de que o acréscimo à
sigla original indica a área ou tema tratado no trabalho ou pesquisa.
Essa preocupação crescente pela qualidade de vida e pelo futuro, ameaçados por acontecimentos
tecnocientíficos e pela falta de condições de reação da Sociedade por desconhecimento, deve chamar
a atenção de professores e gestores para a função social do ensino e da educação. Afinal, a escola tem
a função de perpetuar os valores da sociedade em que está inserida e a de conscientizar o estudante
para contribuir de forma mais veemente com a melhoria dessa mesma sociedade. A partir disso,
espera-se que, dentro do possível, ele possa utilizar o conhecimento científico contextualizado a fim
de melhor entender o mundo que o cerca, vindo a decidir com mais acerto. Isso pedirá atenção maior
à interdisciplinariade, à contextualização do conhecimento, à cotidianização do fato tecnocientífico,
a problematização do aprendizado (Chrispino, 1992) e a transversalidade dos temas.
Neste bloco de aspectos necessários a Abordagem CTS cabe um esclarecimento quanto ao que se
pode entender por contextualização e por cotidianização que, em geral, são tratados como sinôni-
mos. Para nós, a cotidianização esta ligada ao fazer pontual do estudante/cidadão, enquanto a con-
textualização está vinculada a capacidade de relação com os demais aspectos da sociedade (políticos,
filosóficos, sociológicos, econômicos etc) e se constrói por meio de vários conceitos. Para nós, a coti-
dianização é disciplinar e a contextualização é obrigatoriamente interdisciplinar ou transdisciplinar.
Nesta visão, contexto/contextualização é mais amplo que o fato/cotidianização, mas a prática pode
restringir as possibilidades do contexto/contextualização, como alertam Young e Muller (2016, p.
529): “o conhecimento emerge dos – mas não é redutível aos – contextos nos quais ele é produzido
e adquirido” (negritos no original). Análises das diferentes concepções de contextualização podem
ser obtidas em Martins (2015) e Kato e Kawasaki (2011).
Por conta desta necessidade imperiosa de exercitar as múltiplas visões sobre o mesmo fato, buscando
superar a visão única produzida pelos mitos, pelas posturas ingênuas, pela ideologia, pela tradição,
pelo preconceito, pela limitação de conhecimento, pela perda de objetivo da escola etc, temos bus-
cado alternativas didáticas que busquem exercitar as múltiplas visões sobre um mesmo fenômeno
educacional ou social. Para executar tal proposta, defende-se o modelo da Abordagem CTS (Chris-
pino, 2005a; 2005b).
86 CTS E O ENSINO
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
Para atender a necessidade de todos os atores envolvidos no fato tecnocientífico relevante – as pes-
quisas com células-tronco embrionárias, a transposição do Rio São Francisco, a instalação de usinas
hidrelétricas no Rio Madeira e outros rios, a expansão da agropecuária no espaço de preservação am-
biental, a utilização de vacinas experimentais em seres humanos, a instalação de antenas de telefonia
celular em ambientes urbanos, a produção de alimentos transgênicos etc – é necessário vislumbrar
uma técnica que reúna as divergências de opinião e de análise, que desenvolva condições de troca
de experiência e de percepção, que aproxime o grau de conhecimento formal (e também de conhe-
cimentos prévios não-formais) e ofereça condições para que o debate ocorra a fim de esclarecer as
consciência e orientar melhores decisões.
Os teóricos da Abordagem CTS informam que as experiências didáticas já realizadas – aqui mais
especificamente no ensino médio – se fundamentam na chamada investigação-ação e podem ser, ge-
nericamente, classificadas em três grandes grupos (Walks, 1990; Sanmartim, 1992; González García,
López Cerezo e Luján Lopez, 1996; Bazzo, Linsingen e Pereira, 2003; Pinheiro, Matos e Bazzo, 2007):
1. Os enxertos CTS,
2. Ciência e Tecnologia por meio CTS e
3. CTS puro
Buch (2003) prefere resgatar a classificação de Lopez Cerezo (1998, 2002 e 2009) que propõe classi-
ficar a introdução de conteúdos CTS em:
1. CTS como conteúdo de outras matérias (ou enxerto CTS)
2. Ciência e Tecnologia por meio CTS e
3. CTS como disciplina (como complemento curricular),
Silva (1999) e Miembiela (2001) evocam a classificação proposta por Hickman, Patrick e Bybee (1987)
assinalam maneiras de introduzir o tema nos currículos, são elas:
1. A inclusão de módulos com enfoque CTS nas matérias tradicionais;
2. A infusão do enfoque CTS em matérias já existentes, através de repetidas inclusões
pontuais ao longo do currículo;
3. A criação de uma matéria CTS;
4. A transformação completa do enfoque de um tema já existente, mediante seu desenvol-
vimento na perspectiva CTS.
Dois autores apresentam detalhes importantes dessas abordagens: Bazzo, Linsingen e Pereira. (2003,
p. 119-155) e López Cerezo (1998 e 2002, p. 3-39), a partir dos quais construiremos este item:
Trata-se de introduzir nas disciplinas já existentes nos currículos os chamados temas CTS, especial-
mente relacionados com acontecimentos tecnocientificos que permitam reflexão e motivação para o
estudo e debate. O tipo de material para estratégia de ensino são unidades curtas de temas CTS para
alunos e para professores. Exemplos dessa modalidade de ensino CTS é o projeto SATIS (Ciência e
Tecnologia na Sociedade), que consiste em 370 unidades curtas CTS, desenvolvidas por professo-
87 CTS E O ENSINO
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
res de ciências do Reino Unido, com o objetivo principal de complementar os cursos de ciências de
crianças e jovens (grupos de idade 8-14, 14-16 e 16-19 anos). Alguns títulos são:
• O que há em nossos alimentos? Uma olhada em suas etiquetas
• Beber álcool
• O uso da radioatividade
• Os bebês de proveta
• Óculos e lentes de contato
• Produtos Químicos derivados do sal
• A reciclagem do alumínio
• A etiqueta ao avesso: uma olhada nas fibras têxteis
• A chuva ácida
• A AIDS
• 220 volts podem matar
A vantagem do enxerto CTS é a vantagem de se manter a estrutura curricular a que o professor está
acostumado e seguro e incluir a Abordagem CTS.
López Cerezo (2009) assinala as vantagens desta abordagem e lembra que ela favorece as discussões
pela ótica da tradição americana, mais voltada para as consequências da técnica e menos da tradição
européia, que solicita uma formação mais especializada.
Ensina-se mediante a estruturação dos conteúdos das disciplinas, a partir de CTS ou com orientação
CTS. Essa abordagem permite estruturação de atividades por disciplinas isoladas como também por
atividades interdisciplinares. López Cerezo (2009) escreve que esta é “a mais infreqüente opção e
consiste em reconstruir os conteúdos de ensino de ciência e da tecnologia através de uma ótica CTS”
(p. 27).
Discordamos daqueles autores que descrevem estes modelos e defendem a ideia de que essas ativi-
dades se destinam a professores de ciências, as disciplinas chamadas exatas ou para a área do ensino
de ciências que, certamente, já absorveu a Abordagem CTS, como bem nos apresenta o estudo de
Cachapuz et al (2008). Há temas que podem ser tratados por disciplinas da chamada área social/
humana. Por exemplo, a instalação de Shopping Center na região da escola, ou furtos de energia (“ga-
tos”) etc. Podem ter apelos ou facilidades para uma ou outra disciplina, mas a abordagem CTS prima
pela interdisciplinaridade, quiçá, a transdisciplinaridade.
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
Outro projeto é o APQUA, que procura proporcionar conteúdos e habilidades na resolução de pro-
blemas e na análise crítica de situações tecnocientíficas. Um exemplo de unidade APQUA é “O Risco
e a gestão de produtos químicos”, que se desdobra nos módulos “Risco: o jogo da vida”, “Toxicologia:
determinação de valores-limites” e “Tratamento de resíduos industriais” (ver também: Mercé e Au-
lés, 2001).
Para Pinheiro, Matos e Bazzo (2007) no CTS Puro “ensina-se ciência, tecnologia e sociedade por
intermédio do CTS, no qual o conteúdo científico tem papel subordinado”.
Para González García, López Cerezo e Luján Lopez (1996) e Bazzo, Linsingen e Pereira (2003), nesta
categoria, o conteúdo científico passa a ter um papel subordinado. Em alguns casos o conteúdo cien-
tífico é incluído para enriquecer a explicação dos conteúdos CTS em sentido estrito, em outros as re-
ferências aos temas científicos ou tecnológicos são apenas mencionadas, porém não são explicadas.
Em outras palavras, cremos que a categoria de CTS puro busca reestruturar o ensino dos conteúdos
das matérias científicas sob uma seqüência e estrutura organizada para/sobre a exposição e discus-
são de problemas sociais relacionados com a ciência e a tecnologia, sendo que a ênfase está no fato
social e a explicação pelo conhecimento científico-tecnológico, também. Esta categoria busca ser
uma alternativa a situação habitual, onde encontramos menção de problemas sociais vinculados a
ciência onde o fio condutor é uma sequenciação e estruturação de conteúdos baseados na lógica
interna das disciplinas científicas.
Como exemplo de projetos CTS puro temos: SISCON in the Schools (Science in a Social Context), IST
(Innovations: The social consequence of Science and Technology), S in S (Science in Society).
Grande parte dos autores indica o SISCON na escola como o programa que melhor representa o CTS
puro.
Trata-se de uma adaptação para a educação secundária do programa universitário britânico
SISCON (ciência no contexto social). Na educação secundária SISCON é um projeto que
usa a história da ciência e da sociologia da ciência e também da tecnologia para mostrar
89 CTS E O ENSINO
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
A partir da mesma fonte – Glen Aikenhead – podemos extrair outra categorização didática mais
detalhada para a ciência escolar, onde o autor mostra os diversos graus de interação da Ciência e a
Tecnologia em um contexto de assuntos sociais (2009, apud Vieira, Tenreiro-Vieira e Martins, 2011,
p. 19). O autor propõe 8 categorias CTS para a ciência escolar.
Categorias Descrição
O conteúdo CTS é apenas mencionado, pontualmente, pelo professor para tornar uma aula mais interes-
1. CTS como motivação
sante para os alunos.
O conteúdo CTS não é escolhido para abordar temas unificadores sobre questões sociais internas e
2. Integração pontual
externas à Ciência. Ao invés, os conteúdos CTS são acrescentados ou infundidos em tópicos do currículo
de conteúdo CTS
de Ciências existentes.
Uma série de cursos ou pequenos estudos de conteúdo CTS são integrados nos tópicos de Ciências num
3. Integração sistemáti-
curso tradicional de Ciências, para sistematicamente explorar conteúdos CTS, focando temas unificado-
ca de conteúdo CTS
res.
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
4. Disciplina científica
O conteúdo de Ciências e a sua sequência são escolhidos e organizados amplamente pelo conteúdo CTS.
através de conteúdo
Haverá uma biologia CTS, uma Química CTS, uma física CTS.
CTS
O conteúdo CTS serve como organizador para o conteúdo de Ciências e sua sequência. O curso Logical
5. Ciência através de Reasoning in Science and Technology [LoRST] exemplifica inclusão da conteúdo de Ciência e de Tecnolo-
conteúdo CTS gia que normalmente não se encontra nos cursos tradicionais de Ciência mas que é relevante para um
acontecimento ou questão do dia a dia.
6. Ciência como con- O conteúdo CTS é o foco da instrução. Os conteúdos relevantes de Ciências enriquecem esta aprendi-
teúdo CTS zagem.
7. Infusão da Ciência no O conteúdo CTS é o grande foco da instrução. O conteúdo relevante de Ciências é mencionado, mas não
conteúdo CTS sistematicamente ensinado. A ênfase pode ser dada a princípios científicos amplos.
8. Conteúdo CTS Uma questão central de Ciência ou Tecnologia é estudada.
Para o autor, a categoria 1 representa a mais baixa prioridade de conteúdo CTS, e a categoria 8 re-
presenta a mais alta prioridade em conteúdo CTS. Sendo que uma grande diferença pode ser notada
entre as categorias 3 e 4. Na categoria 3, a estrutura de conteúdo está definida por uma disciplina
que se utiliza de motivações CTS. Na categoria 4, é definida pelo próprio assunto tecnocientífico
com impacto social. A ciência com visão interdisciplinar é percebida na categoria 5. Escreve o autor
que, mais do que discutir as categorias, devemos ver essa categoria como orientação para aquilo que
é mais importante: projetos que atendam às necessidades dos alunos e as características de cada
categoria.
Esses modelos podem ser encontrados em diversos trabalhos CTS publicados no Brasil, tais como
os estudos de Bazzo (1998); Bazzo e Colombo (2001); Bazzo e Cury (2001); Silva Correa de Souza
(2001); Auler (2002); Santos e Schnetzler (2003); Koepsel (2003), Pinheiro e Bazzo (2004), Pinheiro
(2005), além de vários outros trabalhos apresentados em eventos científicos, em geral na modalidade
enxerto CTS. (Pinheiro, Matos e Bazzo, 2007). A estes podemos agregar ainda trabalhos mais recen-
tes de Chrispino (2005a), Alves (2005), Carvalho et al . (2006) e Faria e Carvalho (2007).
No âmbito do ensino médio43, é possível incluir neste item a chamada disciplina CTS, que seria um
componente curricular especialmente voltado para a alfabetização tecnocientífica do estudante e do
cidadão, nos moldes que temos apresentado. Vamos buscar exemplificar como uma disciplina pode
ser estruturada:
O primeiro exemplo é a implantação da disciplina CTS na Espanha. A disciplina CTS, segundo López
Cerezo (1998 e 2002), foi implantada recentemente na Espanha, com caráter optativo em todos os
cursos de bachilleratos (16-18 anos) e como complemento transversal para as disciplinas de ciências
(14-16 anos). A disciplina CTS pode ser dividida em 5 blocos:
1. Ciência, técnica e tecnologia: perspectivas históricas
2. O sistema tecnológico
3. Repercussões sociais do desenvolvimento científico e técnico
43
Vamos tratar aqui das disciplinas votadas para o ensino médio ou que formem professores para atuar na Educação Básica. Há,
no Brasil, algumas interessantes experiências de disciplinas CTS especialmente voltadas para a área de engenharia. CTS – pro-
gramas universitarios: http://www.chass.ncsu.edu/ids/sts/other.html
91 CTS E O ENSINO
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
O segundo exemplo é o Curso de formação de professores de nível médio e superior sobre o enfoque
CTS no ensino44, feito à distância e patrocinado pela OEI-Organização dos Estados Iberoamericanos,
a Universidade de Oviedo, na Espanha e o NEPET/UFSC, no Brasil. O curso é estruturado em blocos
de conhecimento: O que é Ciência, o que é Tecnologia, o que é sociedade, o que é CTS e Estudos de
Casos. Após isso, os participantes do curso são convidados a estudar exemplos de casos de controvér-
sia simulada e de proporem atividades utilizando-se desta estratégia de alguma forma.
O terceiro exemplo pode ser a disciplina CTS do Curso de Especialização em Educação Tecnológica-
EAD. Ela está estruturada em dez encontros e busca inicialmente estabelecer o chamado Campo
CTS, depois discute as possíveis concepções de Ciência, de Tecnologia e de Sociedade; após isto,
estuda a interação desta tríade e os fatores que podem influir nesta relação. No momento seguinte,
busca relacionar os conceitos CTS coerentemente com Educação e Educação Tecnológica e, ao fim,
apresenta as possibilidade de materializar as ideias CTS no ensino, indicando a controvérsia contro-
lada como técnica preferencial.
Conheça mais:
CTS – programas universitarios: http://www.chass.ncsu.edu/ids/sts/other.html
Um modelo de como se ensina e se aprende por meio da abordagem CTS é intitulado espiral de
responsabilidade de Waks (1992 apud Miembiela, 2001, p. 96), que considera cinco fases suces-
sivas:
• Autocompreensão: onde aprende a considerar suas necessidades, valores, planos e res-
ponsabilidades.
• Estudo e reflexão: aqui o estudante toma consciência e conhecimento da ciência e da
tecnologia e seus impactos sociais, e isto supõe uma conexão com as chamadas disci-
plinas básicas.
• Tomada de decisão: aqui o estudante aprende sobre os processos de tomada de decisão
e de negociação, para mais tarde, tomar realmente decisões e defendêlas com razão e
evidências.
44
http://www.oeibrpt.org/programacion/ctsi/curso.htm
92 CTS E O ENSINO
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
• Ação responsável: nela o estudante planeja e executa a ação, tanto de maneira indivi-
dual como coletiva.
• Integração: aqui o estudante deve aventurar-se para além do tema específico e fazer
consideração CTS mais amplas, incluindo os valores pessoais e sociais.
Dagnino e Thomas (2002) lembram que a particularidade da Abordagem CTS não está nos temas a
que ela se propõe discutir ou investigar mas, sim, na forma em que esses são abordados, dando espe-
cial atenção ao fato de que os problemas reais de uma sociedade não se restringem a explicação de
uma disciplina, acentuando a importância da Abordagem CTS ser desenvolvida sob a égide da inter/
transdisciplinaridade . Nesta perspectiva, a Abordagem CTS
refere-se ao estudo da ciência e da tecnologia na sociedade, isto é, da forma na qual os fenô-
menos técnicos e sociais interatuam e influenciam uns nos outros. Por exemplo, entre os
temas abordados por pesquisadores CTS encontram-se o papel da ciência e a tecnologia na
transformação de instituições sociais, como o trabalho e a família; a relação entre a ciência
e a tecnologia e o crescimento econômico e a reflexão acerca dos valores éticos e morais
implicados nas descobertas científicas e inovações tecnológicas. Por outro lado, revertendo
o sentido da influência, pesquisadores têm estudado a forma como a ciência e a tecnologia
são influenciados por fatores sociais, como interesses políticos e econômicos, a ideologia e
valores culturais. (p. 8-9)
Quanto aos critérios a serem seguidos na escolha de temas CTS, Hickman, Patrick e Bybee (1987 apud
Miembiela, 2001) consideram as questões:
• É diretamente aplicável a vida dos estudantes?
• É adequado ao nível cognitivo e a maturidade social dos estudantes?
• É um tema importante no mundo atual dos estudantes e provavelmente permanecerá
como tal para uma parte deles na vida adulta?
• Os estudantes podem aplicar estes conhecimentos em outros espaços que não a escola?
• É um tema pelo qual os estudantes mostram interesse e entusiasmo?
A abordagem CTS, por mais que apresente vantagens e emocione alguns professores e alunos, não
pode ser tratada como panaceia, ou como solução para todos os problemas, ou mesmo como a única
alternativa para o ensino de ciência e tecnologia. Ela precisa ser encarada como mais uma alterna-
tiva, talvez uma alternativa potente, para melhoria do ensino de ciência e tecnologia, baseando-se
nos princípios da formação tecnocientífica do cidadão, da educação tecnocientífica para todos e na
alfabetização tecnocientífica.
Por isso, é importante que conheçamos os limites desta abordagem. Vamos recorrer, mais uma vez, a
experiência de Miembiela (2001), ao citar Cheek (1992):
93 CTS E O ENSINO
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
O mesmo autor aponta as vantagens de se usar os enfoques CTS, utilizando as reflexões de Aikenhead
(1990 apud Miembiela, 2001), que resumimos a seguir:
• Uma melhora em sua compreensão sobre os desafios sociais da ciência e das interações
entre a ciência e a tecnologia, e entre ciência e sociedade;
• Uma melhora em suas atitudes para com a ciência, para com os cursos de ciência, para
com a aprendizagem do conteúdo CTS e os métodos de ensino que utilizam a interação
entre os estudantes;
• Um efetivo aprendizado por meio do enfoque CTS se recebem um ensino com uma
orientação clara nesta linha, se dispõem de um material curricular adequado, e se há
correspondência adequada entre o modelo de ensino de ciências aplicado e a aproxi-
mação CTS escolhida para as atividades de ensino-aprendizagem.
Após estudarmos as possíveis categorias que permitem perceber como CTS se estrutura para interfe-
rir na realidade escolar, podemos – e devemos – conhecer como ele se estrutura no Brasil. Sendo um
movimento que surgiu e se fortaleceu no hemisfério norte, não é surpresa dizer que no Brasil ainda
não temos uma área de estudo definida e estruturada e, por isso, temos dificuldade de conceituar e
delimitar as ações que envolvem CTS. Por aqui, CTS é uma área em emergência e em consolidação.
O grupo de pesquisa do Diretório do CNPq, CTS e Educação, do CEFET/RJ foi criado em 2010 e
desde 2012 trabalha no mapeamento do CTS brasileiro e, também, em analises comparativas com as
pectos observados no campo CTS em outras partes do mundo. Por conta deste amplo levantamento
ainda em processo, podemos antecipar que:
• A primeira tese de doutorado sobre CTS que pode ser encontrada, usando os parâ-
metros de busca do grupo, foi defendida na Faculdade de Educação da USP por Silvia
Luzia Frateschi Trivelato, datada de 1993 e intitulada Ciência/Tecnologia/Sociedade –
mudanças curriculares e formação de professores (Toledo et al., 2016).
• No que concerne às dissertações de mestrado, usando os mesmos parâmetros de busca,
temos duas dissertações em 1992, defendidas em mestrados de Educação:
•
A defendida na Unicamp por Wildson Luiz Pereira dos Santos e intitulada O En-
sino de química para formar o cidadão: principais características e condições para
a sua implantação na escola secundária brasileira.
• A defendida na UFRJ por Alvaro Chrispino e intitulada Didática Especial de Quí-
mica e Prática de Ensino de Química: uma proposta voltada para química e socie-
dade.
• No que tange aos artigos publicados, ainda sob os mesmos parâmetros de busca e restri-
to a periódicos abertos e disponíveis em sistemas online (o que compreende o período
94 CTS E O ENSINO
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
de 1996 a 2014), podemos indicar como o primeiro deles aquele publicado por Antonio
Carlos Rodrigues de Amorim intitulado Biologia, tecnologia e inovação no currículo do
ensino médio e publicado no periódico Investigações em Ensino de Ciências, em 1998.
• É importante ressaltar que este resultado surge a partir dos parâmetso de pes-
quisa, visto que, por exemplo, nós mesmos tivemos um artigo publicado em 1989,
intitulado A Função Social do Ensino de Química, na Revista de Química Indus-
trial, que tratava efetivamente da Abordagem CTS, mas não é encontrado pelos
critérios de busca adotados pelo grupo. Como este, certamente há outros.
Ainda no esforço de posicionar o Ensino CTS na realidade educacional barsileira, Strieder et al.
(2016) realizaram levantamento buscando identificar “possibilidades e desafios associados ao desen-
volvimento de práticas educativas CTS” (p. 87), no contexto da educação científica brasileira, espe-
cialmente no ensino médio. Foram objetos de análise:
Os documentos relativos ao ensino de Biologia, Física e Química desse nível de ensino [mé-
dio], quais sejam: as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio publicadas em
1998 – DCNEM/98, incluindo a Resolução CEB nº 3/98 e o Parecer CEB/CNE nº 15/98; os
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - PCNEM; as Orientações Com-
plementares aos PCNEM - PCN+; as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Mé-
dio - OCNEM; as novas Diretrizes Curriculares Nacionais publicadas em 2013 – DCN/13;
o edital de convocação para o processo de inscrição e avaliação de obras didáticas do Pro-
grama Nacional de Livro Didático de 2015 – PNLD/15; a Matriz de Referência do Exame
Nacional do Ensino Médio de 2016- MR-ENEM/16 e a 2ª versão revista da Base Nacional
Comum Curricular publicada em 2016 – BNCC/16 (p. 89-90).
Auler (2007), estudando os pressupostos CTS para o contexto brasileiro, escreve que (1) possuímos
ações individuais, incipientes e isoladas; que (2) os objetivos da educação CTS podem ser sintetiza-
dos em:
1. Promover o interesse dos estudantes em relacionar a ciência com aspectos tecnológicos
e sociais, discutir as implicações sociais e éticas relacionadas ao uso da ciência-tecno-
logia (CT),
2. Adquirir uma compreensão da natureza da ciência e do trabalho científico,
3. Formar cidadãos científica e tecnologicamente alfabetizados capazes de tomar decisões
informadas e desenvolver o pensamento crítico e a independência intelectual
A área CTS tem recebido importantes contribuições oriundas de pesquisas realizadas nas instituições
de ensino que mantem programas de pós-graduação e, em contraposição, vem deixando lacunas impor-
tantes nas ações didáticas que envolvam grupos significativos de professores e/ou alunos e/ou escolas.
Mezalira (2008) e Pansera-de-Araújo et al. (2009) escrevem sobre a produção CTS nos eventos espe-
cíficos da área de ensino de ciência e tecnologia e identificam o crescimento da área, com seus mais
significativos agentes.
Hunsche et al (2009) buscaram trabalhos on-line no período de 1998 a 2008, na Revista Brasileira de Pesqui-
sa em Educação em Ciências, na Revista Ciência & Educação e na Revista Ensaio – Pesquisa em Educação
em Ciências. O problema de pesquisa foi enunciado foi: Quais têm sido os encaminhamentos dados, em
termos teórico-metodológicos, ao campo CTS, no contexto brasileiro? Neste trabalho, os autores dividem os
12 artigos encontrados em três categorias: Implementações, Concepções e Pressupostos/Reflexões.
95 CTS E O ENSINO
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Abreu, Fernandes e Martins (2009) realizaram pesquisa em 10 revistas da área de Ensino de Ciên-
cias. Encontraram 23 artigos sobre CTS e CTSA e concluíram “que a produção nacional em CTS tem
se preocupado tanto com situações do ensino em sala de aula e espaços não formais como também na
elaboração teórica de um pensamento autônomo em relação às linhas européias e norte-americanas”.
Araújo (2009) faz um mapeamento preliminar dos Grupos de Pesquisa registrados no Diretório de
Pesquisa do CNPq que tratam de CTS. O artigo informa que há 30 grupos, 95 linhas de pesquisa e 217
pesquisadores nos diversos grupos de pesquisa. As regiões sul e sudeste concentram a esmagadora
maioria dos grupos.
Chrispino et al. (2013), em ampla pesquisa envolvendo 22 periódicos entre 1996 e 2010, encontraram
88 artigos que, por meio de software de redes sociais, resultou nos 13 trabalhos mais citados. Identifi-
caram que os mais citados são trabalhos de valor acadêmico, mas com quase nenhuma fonte primária
ou autores pioneiros da área.
É Auler (2007) que chama a atenção para as possíveis dimensões e avanços dos trabalhos em uma
área em expansão:
Na perspectiva de buscar delimitações, bem como potencializar ações para o contexto bra-
sileiro, serão analisadas [neste artigo] três dimensões interdependentes que, em maior ou
menor intensidade, comparecem na literatura sobre o tema: a abordagem de temas de
relevância social, a interdisciplinaridade e a democratização de processos de tomada
de decisão em temas envolvendo Ciência-Tecnologia. Defende-se a necessidade de mu-
danças profundas no campo curricular. Ou seja, configurações curriculares mais sensíveis
ao entorno, mais abertas a temas, a problemas contemporâneos marcados pela componen-
te científico-tecnológica, enfatizando-se a necessidade de superar configurações pautadas
unicamente pela lógica interna das disciplinas, passando a serem configuradas a partir de
temas/problemas sociais relevantes, cuja complexidade não é abarcável pelo viés unica-
mente disciplinar.
As reflexões estruturadas por Auler trazem a tona algumas questões importantes: como fazer com
que a abordagem CTS se transforme em ação efetiva na melhoria da qualidade do ensino e assim
possa contribuir para a melhor formação dos estudantes como cidadãos críticos?
Sem entrar no mérito por conta do objetivo central deste estudo, podemos afirmar que a Educação
possui uma taxa de transformação muito lenta. Ela é naturalmente reativa a mudanças ao mesmo
tempo que, paradoxalmente, é suscetível a modismos teóricos e espasmos instrumentais.
Uma das funções da escola é manutenção dos valores tidos como primordiais pela sociedade e essa
manutenção da tradição não absorve facilmente novos valores... mas, ao mesmo tempo, exigisse da
escola a atualidade com os avanços da tecnologia (novos equipamentos, novas linguagens, novas
competências etc) sem se exigir a mesma atualização no que se refere aos conhecimentos organi-
zados (a grosso modo, a ciência) visto que ainda ensinamos a física e química do século XIX, por
exemplo.
96 CTS E O ENSINO
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
Se encararmos a abordagem CTS como mais um modismo poderemos incorrer nos mesmos erros
que estas “ondas” incorreram: são implantadas até que surjam novas modas... elas têm o tempo de
vida relacionado com o tempo da novidade.
Por tal, temos defendido que a abordagem CTS não seja mais uma técnica, ou uma técnica que venha
a substituir as já existentes e, messianicamente, resolver todos os problemas do ensino e da formação
do cidadão. CTS precisa ser encarado primeiramente como uma cultura, um modo de ser, um modo
de estruturar a atividade didática independentemente da formação do professor, independentemen-
te da escola de pensamento em que ele se desenvolveu, independentemente dos autores que dão
suporte teórico à sua atividade didática.
A abordagem CTS no ensino não deve ser encarada como mais um livro que se coloca na vasta biblio-
teca de alternativas, mas, antes de tudo, deve ser percebida como uma maneira de organizar a biblio-
teca de alternativas que cada um de nós professores possui como resultado de sua ação profissional
pessoal e singular.
97 CTS E O ENSINO
7. CTS e a técnica da controvérsia controlada
O que é conhecido sempre parece sistemático, provado, aplicável e evidente para aquele que conhece. Da
mesma forma, todo sistema alheio de conhecimento sempre parece contraditório, não provado, inapli-
cável, irreal ou místico.
Ludwik Fleck
Após esta visão panorâmica sobre as possibilidades de estruturação CTS, acompanhamos os autores
e indicamos o enxerto CTS como ação mais acessível aos professores, visto não ser preciso modificar
sua estrutura de trabalho para oferecer aos alunos a abordagem CTS. Basta apenas ordenar as ques-
tões que estruturam a relação didática.
Por outro lado, vamos propor como ação didática ou técnica de ensino, a controvérsia controlada em
torno de um tema tecnocientífico, que pode ser incluída na categoria Ciência e Tecnologia através de
CTS, a partir do que nos ensina López Cerezo (2002):
Uma (...) opção consiste em reconstruir os conteúdos do ensino da ciência e da tecnolo-
gia através de uma ótica CTS. Em disciplinas isoladas, ou por meio de cursos científicos
pluridisciplinares, se fundem os conteúdos técnicos e CTS, de acordo com a exposição e
discussão de problemas sociais dados. (...) O formato padrão de apresentação de conteúdos
nesta opção é, em primeiro lugar, eleger um problema importante relacionado com os pa-
péis futuros o estudante (cidadão, profissional, consumidor, etc.) e, em segundo lugar, sobre
tal base, selecionar e estruturar o conhecimento científico-tecnológico necessário para que
o estudante possa entender um equipamento, tomar uma decisão ou entender um problema
social relacionado com a ciência ou a tecnologia. (p. 15)
O que ocorreu ao longo da historia da Abordagem CTS foi o conflito ou divergência sobre a maneira
de ver a origem, o desenvolvimento, a aplicação e as consequências dos conhecimentos/aparatos tec-
nocientíficos. Houve, portanto, uma controvérsia em torno dos temas e a sociedade – nas suas mais
diferentes manifestações – solicitou espaço para ouvir e se fazer ouvir sobre o futuro que também
lhe pertence. Logo, a controvérsia de visões/opiniões entre atores sociais é a melhor e mais autêntica
manifestação da Abordagem CTS. A mesma ideia de controvérsia também é encontrada no interior
da comunidade científica que já não mais se contenta com as tradicionais visões (e mitos) da Ciência.
Eis por que propomos que as atividades didáticas de CTS tenham sua culminância no exercício da
análise fundamentada e da crítica pertinente de fatos ou decisões que afetam de alguma forma o
cidadão ou a sua comunidade. Se visto desta forma, a controvérsia controlada pode ser utilizada em
temas tecnocientíficos relevantes, mas também em qualquer fato social que permita interpretações
variadas visando a decisão.
Flechsig e Schiefelbein (2003) apresentam a ideia de que a origem da técnica de controvérsia está na
disputatio, que remonta a idade média e consistia em disputas públicas entre os estudantes e também
serviam como exames para os exercícios de retórica, visto que era considerado um método de busca
pela verdade a partir da argumentação e da contra-argumentação.
Já Johnson e Johnson (2004), numa abordagem mais contemporânea, escreverão que as raízes teóri-
cas da controvérsia estão no desenvolvimento cognitivo, nas teorias do equilíbrio psicológico-social
e nas teorias do conflito. Os autores defendem que estas três perspectivas explicam o fato de que os
esforços cooperativos da técnica de controvérsia produzem discussões, que geram conflitos cogniti-
vos que serão resolvidos no debate orientado. Essa satisfação do conflito – causado pela diferença de
percepção/opinião – acarreta uma racionalidade e um novo aprendizado, gerando a reconceituali-
zação sobre o tema em debate. Essa reconceitualização não é, obrigatoriamente, uma modificação da
posição anterior. O debate não visa a abdicação de posições, mas a oportunidade de apresentar suas
ideias e de ouvir a argumentação do outro que pensa/sente diferentemente.
A controvérsia controlada pode ser definida como um método didático de construção de consenso
(pelo menos no processo de debate) minuciosamente preparado a partir de regras previamente de-
finidas visando o exercício de (1) identificação de problemas comuns para fomentar a controvérsia;
(2) o exercício de estabelecer padrões mutuamente aceitáveis para sustentar um debate; (3) a busca
organizada de informações pertinentes ao tema definido; (4) a preparação da exposição em defesa
da posição; (5) a capacidade de escutar a posição controversa apresentada racionalmente pelos de-
mais participantes; (6) o exercício de contra-argumentar a partir do conhecimento dos argumentos
utilizados pelos demais debatedores e (7) reavaliar as posições – a sua e as demais – a partir de novas
informações.
Para que se cumpram todas as etapas didáticas, o tema a ser utilizado na controvérsia deve combinar
a interdependência social com o conflito intelectual, visto que quanto maior for o número de elemen-
tos potencialmente cooperativos e menor o número de elementos competitivos, mais construtivo
será conflito e a controvérsia. Importante perceber que não é somente o componente cooperativo
que contribui para uma controvérsia, mas, também, o componente conflito, visto que é este que per-
mitirá a chance de ouvir outras posições e refletir sobre elas.
Johnson e Johnson (2004), ao tratarem das vantagens desta técnica, comparam quatro métodos de
ensino: a controvérsia, o debate, o proselitismo e o trabalho individual. Dizem que os estudos experi-
mentais que desenvolveram nos últimos vinte anos permitem concluir que os alunos que participam
das controvérsias recordam mais informações corretas, transferem com mais facilidade a aprendiza-
gem a situações novas, empregam estratégias de racionalidade mais complexas e são mais capazes de
generalizar os princípios que aprenderam e aplicá-los a um número maior de situações. Dizem que
a controvérsia tende a gerar uma visão mais criativa das questões examinadas e mais sínteses permi-
tem combinar as perspectivas em debate. Quando comparada com o debate, a busca de adesão (pro-
selitismo) e trabalho individual, a controvérsia promove mais simpatia, apoio social e auto-estima
nos participantes do exercício. Os mesmos autores escrevem que
A controvérsia programada é sumamente promissora do ponto de vista didático. Nela en-
contramos os quatro elementos essenciais: teoria (Johnson, 1970), investigações validado-
ras, integração nos procedimentos pedagógicos e formação permanente de docentes. A con-
trovérsia programada se baseia no emprego da cooperação para ensinar, e integra o manejo
construtivo dos conflitos nas experiências cotidianas de aprendizagem. À medida que os
alunos adquirem perícia na resolução de conflitos intelectuais, vai se construindo o cenário
para que aprendam a manejar conflitos de interesses entre eles e seus companheiros. (p.
150)
Com outros objetivos, mas utilizando-se do mesmo principio didático, Lipman, Sharp e Oscanyan
(1992) propõem a controvérsia controlada como técnica de aprendizagem no projeto de ensino de
filosofia para crianças.
realizada na Search the Thesaurus, com a expressão Controversial Issues resulta em 1.698 itens das
mais diversas áreas do conhecimento.
Como escrevemos antes, o uso da cultura da controvérsia – que é um pouco mais que a simples
técnica de controvérsia – resgata a origem da Abordagem CTS, considerando (1) sua origem como
movimento CTS, (2) a maneira de entender as disputas internas da Ciência e da Tecnologia, que
chamamos de Estudos CTS e (3) no seu aspecto de orientador de gestores de políticas que decidem
sobre temas chamados CTS. Há uma semelhança ontológica entre a proposta da Abordagem CTS e a
técnica de ensino da controvérsia controlada, visto que em ambos os casos as diferenças de opinião
existem mas precisam ser conhecidas a fim de se construir um entendimento e um consenso possível.
Um dos autores que mais tem produzido no campo da controvérsia controlada no campo CTS é Ma-
riano Martín Gordillo, cujos textos servirão de base para a apresentação da técnica de controvérsia
controlada. Escreve o autor que,
se tivéssemos que enunciar em poucas palavras o propósito dos enfoques CTS no campo
da educação, seria possível resumir em dois pontos: mostrar que a Ciência e a Tecnolo-
gia são acessíveis e importantes para os cidadãos (portanto, é necessária a Alfabetização
Tecnocientífica) e propiciar o aprendizado social da participação pública nas decisões tec-
nocientíficas (portanto, é necessária a educação para a participação também em Ciência e
Tecnologia). (Martín Gordillo, 2003)
Ambos os objetivos não podem ser alcançados a partir dos paradigmas tradicionais que norteiam o
ensino de modo geral que mostra uma ciência positiva e linear. Apesar de Martin Gordillo e os de-
mais autores referirem-se sempre a disciplinas de ciências e tecnologia, proponho que ampliemos
este leque visto que, como já demonstramos anteriormente, a natureza não se explica somente pelos
canais das chamadas ciências exatas. Ela necessita das ciências sócio-humanisticas para se comple-
tar o entendimento da natureza, recortado para fins de ensino pelo artifício das disciplinas.
Outra referência que merece nossa atenção é Reis (2008) que, ao discutir a aplicação de controvér-
sias sociocientíficas nas escolas portuguesas, apresenta rico fundamento teórico sobre o tema e sua
relação com CTS.
A fim de melhor fundamentar o porquê devemos estender às ciências humanas e sociais as oportuni-
dade de atuarem na Abordagem CTS e, principalmente, na construção de atividades interdisciplina-
res com as chamadas tecnociências, lembremos que o ato social é sempre um ato complexo por conta
dos atores que envolve (cada um com sua história, seu sentido de vida, sua expectativa de futuro, seus
valores, sua linguagem etc) e pela trama de áreas que em geral são chamadas a interpretar um mesmo
acontecimento social. Há coisas que são próprias do conjunto de saberes que se padronizou chamar
de técnicas ou científicas mas há coisas que são características do que se estabeleceu pela tradição
olhar como humanas. (Depois de todo este estudo, poderíamos dizer que a Ciência também não é
humana?). Não se opera o ato social, ou o acontecimento comunitário, ou a gestão de conflito ou a de-
cisão política sem conhecer o valor das disciplinas humanísticas. Fukuyama (2005, p.39) escreve que
A comunidade de políticas de desenvolvimento está numa situação irônica. A Era Pós-Gue-
rra Fria começou sob o domínio intelectual dos economistas, que defenderam fortemente
a liberalização e um Estado menor. Dez anos depois, muitos economistas concluíram que
algumas das variáveis mais importantes que afetam o desenvolvimento não eram econômi-
cas, mas estavam ligadas à instituições e à política.
As instituições e a política estão permeadas pelas práticas oriundas das ciências exatas tanto quanto
das ciências sociais e humanas. E isso nos leva a crer que o ato social tecnopolítico relevante é pro-
movido (ou ainda não) pela ação política e é materializado pelo canal institucional. Para exemplificar
esta estreita vinculação, Fukuyama (2005) estabelece quatro níveis de ação institucional e relaciona as
disciplinas com a capacidade de transferência de conhecimento, conforme resume o quadro a seguir.
Quando estudamos, por exemplo, os chamados “gatos” (furto de energia elétrica) percebemos que a
justificativa apontada pelos “gatunos” remonta ao tempo em que a energia era do “estado” e se era
do estado, “não era de ninguém”. Por mais que esteja claro que a distribuição de energia hoje é ação
privada, a memória social teima em se manter nas comunidades de baixa renda e reafirma a imagem
e a sensação de que é do estado... e se é do estado, não é de ninguém. As distribuidoras fazem um
caro trabalho de gestão operacional mas não conseguem resultados satisfatórios pois este tipo de
contribuição ao ato social cristalizado não se dá por meio de planilhas e programas de computador
mas sim pela transformação de mentalidade e pela mudança de hábito. Funções explicitamente da
competência das disciplinas das ciências humanas e sociais.
Neste momento, cabe refletir sobre a importância de escolher problemas ou temas CTS que permi-
tam o desdobramento esperado. Uma maneira de ver os problemas é proposta por Dagnino (2007),
que considerando que a conceituação de problema deve dar conta de quatro aspectos fundamentais,
a saber:
1. Um problema social não é uma entidade objetiva que se manifesta na esfera pública de
modo naturalizado, como se ela fosse neutra e independente em relação aos atores - ativos
e passivos - do problema;
2. Não há situação social problemática senão em relação aos atores que a constroem como tal;
3. Reconhecer uma situação como um problema envolve um paradoxo, pois são justamente
os atores mais afetados os que menos têm poder para fazer com que a opinião pública (e as
elites de poder) a considere como problema social;
4. A condição de penalizados pela situação-problema dos atores mais fracos costuma ser obs-
curecida por um complexo sistema de manipulação ideológica que, com seu consentimen-
to, os prejudica.
Esperamos ter esclarecido porque não nos limitamos a sugerir as técnicas de controvérsia CTS para
disciplinas dos campos da Ciência e da Tecnologia. Essa é uma tese que defenderemos sempre!
Para alcançarmos o segundo objetivo proposto por Martín Gordillo – a educação para a participação
também em Ciência e Tecnologia – é necessário o aprendizado de uma ciência contextualizada, por
meio de uma aula que possibilite o desenvolvimento das capacidades, atitudes, hábitos e destrezas
que favoreçam o diálogo e a tomada de decisão sobre controvérsias relacionadas com Ciência e Tec-
nologia (e nós complementaríamos, não só C&T), pelos instrumentos comuns a esta prática que são,
por exemplo, a confrontação pública e a democratização.
É certo que o experimento social de controvérsia simulada será um recorte da realidade. Por mais das
vezes, um recorte tímido mas que poderá ser a única chance de alguns alunos debaterem um tema
social problemático e de ouvirem opiniões diferentes da sua, num processo de troca indispensável à
melhor decisão.
Essa é, pois, a fundamentação para a técnica de simulação de uma controvérsia cujas variáveis e
confronto de posições está sob o controle do professor que, para nós, é a técnica da controvérsia
controlada.
dade que, em cada caso, podem constituir a rede de atores que aparecem em cada um
dos casos simulados CTS para seu uso educativo.
(...)
As simulações CTS pretendem ser uma alternativa educativa para propiciar a aprendiza-
gem social da participação nas controvérsias tecnocientíficas. Daí que seu principal signi-
ficado não está na veracidade última de suas propostas, mas sim em sua verossimilhança e
relevância social e educativa.
Os autores propõem que os casos de controvérsia controlada possuam um conjunto de materiais para
o bom desempenho da ação educativa. A lista proposta, com as alterações próprias de nossa expe-
riência, indica os seguintes materiais:
• Uma noticia real45, que se apresenta aos alunos no formato de um jornal real, e de onde
se parte para o desenvolvimento da controvérsia de que se deseja tratar.
• Um questionário inicial e final, que serve para conhecer as informações e as atitudes
previas dos alunos sobre as questões objeto do trabalho, e para demonstrar as mudanças
produzidas ao final da atividade. São questões utilizadas como pré-teste e pós-teste,
permitindo avaliar o ganho de cada equipe com a atividade.
• Uma rede de atores que aparece na controvérsia descrita na noticia inicial, e cujos per-
fis representem efetivamente os grupos com posições contrárias que estabelecerão a
controvérsia.
• Documentos obtidos para dar apoio aos argumentos dos atores participantes, relacio-
nando o conhecimento específico da área que o caso trata com o centro da controvérsia
simulada.
• Documentos selecionados por sua pertinência e claridade para apresentar a informação
científica do campo em que se situa controvérsia.
• Fichas específicas onde cada equipe escreve seus argumentos e como vai defendê-los
no momento em que as ideias diferentes são apresentadas.
• Fichas específicas onde cada equipe antecipa como cada equipe com posição contrária
irá fundamentar sua posição e como, com os argumentos que possui, deverá rebatê-los.
• Fichas contendo os critérios de avaliação para a equipe e para os membros de cada equipe.
Já Albe (2006, apud Ramos e Silva, 2007) enumera uma série de perguntas que podem servir de nor-
teadores desde a escolha do tema de controvérsia até a maneira como se desenrola a sua aplicação
pelo professor. Pergunta ele:
Favorece a aprendizagem? Trata-se de argumentar para aprender? Para convencer? Para
tomar uma decisão? Para refletir sobre o tema em questão? Sobre a atividade proposta? Para
analisar, criticar resultados, ideologias e posições opostas? ... o papel do professor no debate
também se coloca em questão: deve dar sua opinião pessoal? Que opções didáticas escolher?
Que recursos utilizar? Que saberes de referência levar em conta? Que estratégias didáticas
elaborar? (p. 96)
O grupo ARGOS desenvolveu dez casos de simulação46 (Martín Gordillo, 2005, 2006), a saber:
• A vacina da AIDS. (Martín Gordillo, 2005a)
• Uso de estimulantes no esporte. Um caso sobre esporte, farmacologia e avaliação públi-
45
Os autores propõem uma notícia fictícia, porém verossímil. Cremos que a realidade brasileira está repleta de temas que possam
servir de ponto de partida para a controvérsia. Além do que a realidade é um espetacular motivador de estudos e debates.
46
A OEI disponibiliza eletronicamente estes materiais no site http://www.oei.es/materialescts.htm
Ramos e Silva (2007) – relembrando Nelkin (1989), Juan (2006), Hines (2006), Albe (2006) – pro-
põem temas como a construção de aeroporto numa área metropolitana no Canadá, alocação de lixo
nuclear proveniente de usinas, utilização de tecnologia de DNA recombinante nas pesquisas cien-
tíficas, mudança climática na Terra, organismos geneticamente modificados, o perigo dos telefones
celulares para a saúde.
De nossa parte, temos recolhido um interessante conjunto de casos a partir dos debates realizados na
disciplina CTS dos Programas de Pós-Graduação, desde o Mestrado Profissional em Ensino de Ciên-
cias e Matemática do CEFET/RJ. A avaliação dos professores participantes do exercício de análise
da construção social da ciência e da tecnologia é sempre positiva e, culmina, na realização de casos
de controvérsia simulada como, por exemplo, Criacionismo ou evolucionismo, uso de células tronco,
os riscos da mina de carvão, Implantação de usina nuclear, “Gatos” de luz, Internacionalização da
Amazônia, Uso de tecnologia 4G, dentre outros.
Nossa maior contribuição nesta área até o momento foi, certamente, a capacitação em serviço para
professores do Estado do Espírito Santo, nos anos de 2008 e 2009. A capacitação trabalhou com 120
professores voluntários que teriam a tarefa de replicar o Curso CTS com foco em Tecnica de Contro-
vérsia para seus colegas: Química (572 professores), Física (594 professores), Biologia (604 professo-
res) e Matemática (870 professores). O curso de formação poderia também atender a professores das
séries finais do Ensino Fundamental. (Chrispino, 2013).
Após etapas de estudos e debates presenciais e de disseminação nas escolas, os representantes cons-
truíram controvérsias controladas a partir de temas escolhidos pela comunidade escolar, testaram
cada uma delas em várias escolas e propuseram um texto final que foi impresso e distribuído para
todas as escolas e todos os professores da rede estadual do Espírito Santo. As atividades de testagem
estão descrias no quadro X a seguir:
É possível obter casos de controvérsia controlada em revistas eletrônicas. Alguns estão listados a seguir:
Aguirre del Busto, R. L.; Macias Llanes, Ma. E. ¿Existe la verdad científica? Controver-
sia histórica en torno al descubrimiento de Carlos J. Finlay. Rev Hum Med , Ciudad de
Camaguey, v. 4, n. 3, 2004 . Disponível em: http://scielo.sld.cu/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S1727-81202004000300008&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 30 Jul 2008.
Bernardo, J. R. da R., Vianna, D. M., Fontoura, H. A. da. Produção e consumo da energia elé-
trica: a construção de uma proposta baseada no enfoque ciência-tecnologia-sociedade-am-
biente (CTSA). Ciência & Ensino, vol. 1, número especial, novembro de 2007 http://www.
ige.unicamp.br/ojs/index.php/cienciaeensino/article/view/157/114
García Carmona, A. Relaciones CTS en el estudio de la contaminación atmosférica: una ex-
periencia con estudiantes de Secundaria http://saum.uvigo.es/reec/volumenes/volumen4/
ART3_Vol4_N2.pdf
Carvalho, W. L. P.; Farias, C. R.; Zocoler, J. V. S.; Momesso, N. F. G.; Lucindo, J.; Gonçalves,
Eliane Cristina. Estudo do impacto sócio-ambiental causado pela construção das usinas hi-
droelétricas da região de Ilha Solteira. In: Pinho, S. Z.; Saglietti, J. R. C. (Org.). Núcleos de
Ensino da Unesp - Publicação 2006. São Paulo: Editora Unesp, 2006, v. 1, p. 117-125. http://
www.unesp.br/prograd/PDFNE2004/artigos/eixo2/estudoimpactosocioambiental.pdf
Castro, Carolina M. Los usos sociales del periodismo científico y de la divulgación. El caso de
la controversia sobre el riesgo o La inocuidad de las antenas de telefonía móvil. http://www.
revistacts.net/4/10/013/file
Chrispino, A. O uso da técnica de controvérsia controlada na abordagem CTS: Proibição do
Fumo: decisão pessoal ou social? Simulação educativa de um caso CTS sobre a saúde. 2005.
http://www.campus-oei.org/salactsi/alvaro.htm
Delgado, M. y Vallverdú, J. Valores en controversias: la investigación con células madre http://
www.revistacts.net/3/9/01
Farias, C. R. de O. e Carvalho, W. L. P. de. O direito ambiental na sala de aula: significados
de uma prática educativa no ensino médio. Ciência & Educação, v. 13, n. 2, p. 157-174, 2007.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-73132007000200002&lng=
en&nrm=iso&tlng=pt
Vieira, K. R.C.F., Bazzo, W. A. Discussões acerca do aquecimento global: uma proposta CTS
para abordar esse tema controverso em sala de aula. Ciência & Ensino, vol. 1, número espe-
cial, novembro de 2007. http://www.ige.unicamp.br/ojs/index.php/cienciaeensino/article/
view/155/119
Os bons resultados da aplicação da técnica são também identificados por Martín Gordillo e Osorio
(2003) e Reis e Galvão (2004 apud Ramos e Silva, 2007) quando escrevem que os casos de controvér-
sia controlada favorecem, resumidamente:
4. Uma consciência da necessidade de que os não especialistas também participem 2. Reforçar a ideia de que ciência e
nas decisões de política científica. tecnologia representam uma fon-
te tanto de progresso como de
5. Uma aprendizagem das disciplinas tecnocientíficas em interação efetiva com os preocupação ao mesmo tempo, e
campos próprios das disciplinas sociais. que deveria ser regrada por prin-
cípios morais e éticos; e
6. Uma incorporação da dimensão criativa e lúdica da aprendizagem dos conteúdos
tecnocientíficos, o que não é mais que reivindicar a própria essência da atividade 3. Reconhecer como é importante
criadora própria da ciência e da tecnologia, pois que muitas vezes está ausente do que os cidadãos e o Estado par-
ensino das ciências e das tecnologias, mais orientado para a reprodução dos sabe- ticipem, acompanhando, aces-
res estabelecidos do que para o desenvolvimento das capacidades que permitam sando e controlando o progresso
aos alunos aprenderem a indagar, a apropriar-se e a construir novos saberes, algo científico e tecnológico e suas
que resulta essencial nas propostas participativas dos casos simulados. implicações.
Conheça mais:
Reis, Pedro Rocha dos. A escola e as controvérsias sociocientíficas – Perspectivas de alunos e professores. Lisboa:
Escolar Editora, 2008.
Por conta dela reavaliamos a onipotência da Ciência e da Tecnologia, percebemos que o conheci-
mento não é por si só bom, percebemos que o aparato tecnológico que nos auxilia a principio pode
estar carregado de ideologia, observamos que a Ciência e a Tecnologia e seus melhores especialistas
possuem um “quê” de humanos com todas as suas idiossincrasias, vislumbramos um espaço de par-
ticipação na decisão dos caminhos a serem traçados para o futuro da sociedade tecnocientífica a que
todos estamos vinculados...
Percebemos que não estamos preparados, nem habituados a ocupar o espaço da controvérsia e de-
fender posições diferentes do grande grupo...
Percebemos que o nosso conhecimento que possuímos não está organizado de forma a contribuir
para todas as superações que a contemporaneidade nos solicita...
Percebemos que não fomos educados para uma efetiva participação social, lúcida e esclarecida...
Se hoje percebemos isso, por coerência, não podemos mais ser multiplicadores destas mesmas po-
sições que nos impediram de desenvolver estas importantes competências sociais a partir do conhe-
cimento organizado do campo de nossa atuação profissional específica.
A participação social só se aprende participando... criemos os espaços de participação para que os
nossos alunos em todos os níveis simulem e antecipem as dificuldades que poderão viver proxima-
mente e, quando estivermos ofertando a eles as simulações da realidade e oferecendo as ferramentas
do conhecimento que a pode transformar, estaremos oferecendo a nós mesmos o que não tivemos
antes. A cada controvérsia controlada que coordenarmos, estaremos abrindo janelas de novas per-
cepções aos jovens sob nossa direção e estaremos reafirmando a nós mesmos que uma sociedade
melhor é possível.
Toda crença na neutralidade moral da ciência deveria ter evaporado no calor da explosão de Hiroshima
Joan Solomon
8.1 Introdução
Tomando o conceito ampliado de tecnologia como sistema – o sistema tecnológico –, não será difícil
enumerar acidentes de grandes proporções em diferentes sistemas científicos e tecnológicos, ou sis-
47
Wiebe Bijker é um dos nomes mais consagrado na área de Construção Social da Tecnologia ou Construti-vismo Social da Tec-
nologia (Social construction of technology, conhecida por SCOT). Conheça mais em http://en.wikipedia.org/wiki/Wiebe_Bijker
111 MODELAGEM PARA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NAS RELAÇÕES CTS: UTILIZANDO AS ORDENS DE COMTE-SPONVILLE.
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
temas tecnocientíficos, como bem relaciona a literatura CTS: o acidente químico em Bophal, Índia; o
desastre do Challenger; os acidentes na aviação; os acidentes nucleares, dentre outros. Certamente,
estes acidentes em diferentes sistemas tecnocientíficos complexos e interconectados (sistema quí-
mico, sistema espacial, sistema aeronáutico, sistema nuclear etc) são, de alguma forma, esperáveis,
ou como prefere Perrow (1999 apud Bijker, 2008), são “normais”. Talvez o mais impactante no 11
de setembro tenha sido o fato dele ter sido inusitado: sequestros simultâneos de aviões de grande
porte planejados por longo tempo para colidirem com prédios densamente habitados no coração da
América do Norte. Ficamos surpresos! Impactados! Não era esperável, não era previsível! A socie-
dade quedou-se inerte frente a um acidente causado por um sistema tecnocientífico complexo. Após
isso, o acidente e o retorno do choque, reuniram-se os representantes da sociedade para entender o
ocorrido e buscar impedir que se repetisse no esforço de definir limites que diminuíssem a sua vul-
nerabilidade.
Aproveitando o exemplo de reflexão de Wiebe Bijker sobre o 11 de setembro e suas consequências
desastrosas, podemos trazer à discussão o que foi batizado pelo Presidente Barak Obama de 11 de set-
embro ambiental que é o desastre no Golfo do México, causado pela explosão da plataforma de petró-
leo Deepwater Horizon, em 20 de abril de 2010, provocando o derramamento de 60 mil barris/dia de
petróleo, fazendo com que o óleo alcançasse os estados da Louisiana, Mississipi, Alabama e Flórida.
O que aconteceu com a plataforma Deepwater Horizon não é novo. Podemos enumerar outros ca-
sos como o Ixtok 1, o Exxon Valdez, Prestige ou Piper Alpha. Esse tipo de acidente em um sistema
tecnocientífico como o sistema petrolífero é esperável. Ficamos impactados com o volume de óleo
derramado, com a incapacidade técnica da empresa de fazer cessar o vazamento e pelo impacto no
ambiente e na vida de milhares de pessoas que vivem ou se relacionam com o ecossistema afetado.
Exemplos como o 11 de setembro e sua versão ambiental, são exemplos extremos de fatos que pro-
vocaram o choque e a posterior reflexão social, redundando em decisões que limitam e regulam os
sistemas tecnocientíficos. Percebemos que os representantes da sociedade, as instituições do terceiro
setor, a mídia de todo tipo se mobilizaram para aprender com o fato e deliberar sobre as suas conse-
quências, buscando impedir ou diminuir a chance de repetição.
Outro importante exemplo de como a sociedade interfere com seus valores na atividade uso na con-
dução das ações tecnocientíficas é o automóvel. Desde a exigência de itens de segurança inexistentes
até o surgimento da Lei Seca que estipula no extremo: Se beber, não dirija.
112 MODELAGEM PARA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NAS RELAÇÕES CTS: UTILIZANDO AS ORDENS DE COMTE-SPONVILLE.
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
com uma decisão social de regular o uso e as rotinas que envolvem os automóveis no Brasil (que é o
nosso espaço de estudo). Temos, por exemplo:
• A obrigatoriedade do uso de cinto de segurança. Apesar de alguns acharem que usar ou
não usar cinto de segurança é uma decisão de cunho pessoal, o Estado determina que
seja obrigatório considerando a segurança e, também, pelo elevado número de aciden-
tes. As vítimas de acidentes de trânsito ficam as expensas dos cofres públicos nos hos-
pitais de trauma, na aposentadoria por invalidez muitas vezes precoces ou pensão por
morte causada por acidentes automobilísticos. Alguns decidem se querem usar cinto,
mas todos pagamos suas despesas...
• Idade mínima para obter habilitação. Outro assunto polêmico é a idade mínima para
obter habilitação para condução de veículos automotores. Argumentam alguns que o
jovem de dezesseis anos pode escolher o Presidente da República, mas não pode diri-
gir carros. Esquecem-se, ou desconhecem, que a decisão de escolher o Presidente aos
dezesseis anos é facultativa. Logo, ao fazer a opção por isso, o jovem já demonstrou
alguma maturidade ou mesmo interesse pelos destinos do país, demonstrando a racio-
nalidade do processo e da escolha. Ao contrário, a relação jovem-máquina é eminente-
mente emocional. Carros cada vez mais possantes – apesar das limitações de velocidade
– unem-se a estradas irresponsavelmente (não) preservadas e ao fator grupo-de-jovens-
juntos, fazendo com que o resultado, em média, possa ser “explosivo”, bem desenhado
nas sequências cinematográficas de Velozes e Furiosos (I, II, III e IV, por enquanto).
• Por fim, há a deliberação social de não concordar com a relação uso de álcool e direção
de veículos. Por mais que possamos argumentar que há limites variados nessa relação,
a sociedade brasileira fez sua opção pela regulamentação, e ela é extrema (talvez para
evitar interpretações distorcidas ou casuísmos), pois determina: “Se beber, não dirija”.
Por conta destes acontecimentos e outros tantos, parece-nos importante discutir sobre a necessidade
de a sociedade participar mais e de melhor forma, não só na construção da ciência e da tecnologia,
mas também na definição sobre os limites, a velocidade de conquista, as consequências e a trans-
parência da ciência, da tecnologia e dos sistemas tecnocientíficos.
Chrétien (1994), ao discutir as propostas de ética do conhecimento, apresentadas por Jacques Mo-
nod, e contrapô-las com os chamados teoremas de incompletude, estabelecidos em 1931 por Kurt
Gödel, escreve que “a esperança de fazer emergir do próprio sistema a normatividade ou a legiti-
midade é, portanto, vã” (p. 25). Deixa apontado que “um sistema formal não pode fechar-se em si
113 MODELAGEM PARA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NAS RELAÇÕES CTS: UTILIZANDO AS ORDENS DE COMTE-SPONVILLE.
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
mesmo”.
Ao se fazer essas mesmas questões, Comte-Sponville48 (2005 e 2008) inicia um longo processo de
reflexão com um exemplo dos limites para as tecnociências. A partir daí, irá propor o que chamare-
mos de modelagem de sistema de construção e participação social sobre tecnociências. Antecipamos
desde já que não estamos propondo com a analise das ordens uma visão compartimentada do evento
real, que sempre será contextualizado e interdisciplinar. Propomos uma lógica de análise baseada
nas fronteiras de ação dos atores sociais e a indispensável sistemas de pesos-e-contra-pesos a fim de
buscar um consenso para o convívio social.
O modelo de Comte-Sponville (2005) resgata o conceito de ordens em Pascal49 definido como “um
conjunto homogêneo e autônomo, regido por leis, alinhado a certo modelo, de quem deriva sua inde-
pendência em relação a uma ou a várias outras ordens” (p. 51). Com esse entendimento, propõe uma
sequência de ordens e um processo de relação e interconexão entre elas.
O estudo de Comte-Sponville esclarece a origem de expressões muito utilizadas no cotidiano e cujo
conhecimento de suas origens perderam-se no tempo como, por exemplo, o que seja ridículo. O ri-
dículo, na visão pascalina, é a utilização de valores de uma ordem para avaliar fenômenos que estão
contidos em outra ordem. Sobre isso, informa Comte-Sponville (2008):
“O coração tem sua ordem, o espírito a sua, que é por princípio e demonstração... ninguém
prova que deve ser amado expondo ordenadamente as causas do amor; isso seria ridículo”
(Pascal). O ridículo é confundir ordens diferentes (o coração e a razão, o espírito e a for-
ça...), e é também o que Pascal chama de tirania: “A tirania consiste no desejo de dominação,
universal e fora da sua ordem”. É o caso do rei que quer reinar sobre os espíritos ou do em-
presário que aspira ao amor de seus empregados. Vê-se que a tirania é o ridículo no poder,
assim como o ridículo é uma tirania virtual ou decaída. Mas cada época tem seus ridículos,
cada época tem seus tiranos. (p. 287-288)
Após isso, o filósofo pergunta que ordens responderiam as necessidades de hoje e propõem aquelas
que se seguem.
Comte-Sponville (2005) inicia perguntando qual o limite para a ciência dos seres vivos? Para a biolo-
gia? Mais especificamente qual o limite para a manipulação genética ou a clonagem humana? O faz,
como ele próprio informa, considerando sua longa experiência com médicos e com os problemas da
bioética. Apesar destes exemplos, essa ordem vai muito além disso como exemplifica a seguir:
Se incluirmos nela, como convêm, as técnicas de produção, de venda, de gestão, assim como
as ciências humanas (dentre as quais a economia), logo constatamos que essa ordem agrupa
na verdade a totalidade do mundo social, em seu confronto – tanto teórico quanto prático –
com seu ambiente e com seus próprios meios de existência. (Comte-Sponville, 2008, p. 288)
Diz o filósofo que essas respostas a biologia, bem como outras tecnociências, não pode dar. Não por-
que não esteja avançada ou avançando, mas porque esta não é sua competência. A biologia – e as de-
mais tecnociências – “nos diz como fazer, mas não se devemos fazer” (2005, p.50), ou quais os limites
48
André Comte-Sponville (1952- ), Professor de Filosofia da Universidade de Paris I (Pantheón-Sorbonne).
49
Blaise Pascal (Clermont-Ferrand, 19 de Junho de 1623 — Paris, 19 de Agosto de 1662) foi um físico, matemático, filósofo mora-
lista e teólogo francês. Conheça mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Blaise_Pascal
114 MODELAGEM PARA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NAS RELAÇÕES CTS: UTILIZANDO AS ORDENS DE COMTE-SPONVILLE.
DOCUMENTOS DE TRABAJO DE IBERCIENCIA | N.º 4
INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
que não devem ser ultrapassados. São ações que estão em ordens diferentes no conceito pascalino.
Lembra Carnap quando este diz que “em lógica, não há moral” e imagina que no livrão de Wittgen-
tein, que conteria o conjunto das proposições verdadeiras, mas “nele só haveria fatos, fatos – fatos,
mas não ética” (apud Comte-Sponville, 2008, p. 288 e 289)
A ordem tecnocientífica estrutura-se internamente pelo binômio possível e impossível que, apesar
de orientarem as rotinas próprias dessa ordem, são incapazes de limitar a ordem em si mesma. A
ordem tecnocientífica não se limita a si mesma até porque a tecnociência tende sempre a ampliar os
seus próprios limites, como expressa a chamada Lei de Gabor: “Todo possível será sempre feito”. Ela
não limita um espaço, ela mede o desenvolvimento.
Se analisado com a coerência da ordem, “não há nenhuma razão científica para diminuir a velocidade
do progresso das ciências, nenhuma razão técnica para limitar as técnicas” (2008, p. 289).
Comte-Sponville propõe que existe uma 2ª ordem que limitará a 1ª ordem pelo exterior. A essa 2ª
ordem ele chamou de jurídico-política que será, concretamente, a Lei, o Estado. Essa ordem se estru-
tura internamente pelo binômio legal e ilegal, considerando como legal o que a lei autoriza e conside-
rando que a lei foi produzida legitimamente em um Estado Democrático e Republicano.
Após definir o que seja e como se estrutura a segunda ordem, o autor pergunta: “Coloca-se, entre-
tanto a questão de saber o que vai limitar essa segunda ordem” (2005, p.53). Não seria, pois, limitar a
Democracia? Limitar os Direitos? E, por fim, limitar a liberdade?
Frente a estas questões, Comte-Sponville (2005 e 2008) apresenta duas classes de argumentos que
sintetizamos a seguir:
1. Razão individual:
Um homem que repeite integralmente o conjunto de leis de seu país, que faz o que a lei lhe
impõe e nunca faz o que ela proíbe poderia ser chamado de “legalista perfeito”. Indica o
autor um ponto de análise interessante: nenhuma lei veda o egoísmo, o desprezo, o ódio,
a maldade, etc. Logo, todas essas coisas poderiam fazer parte do “legalista perfeito” e isso
o tornaria um “canalha legalista”. Então, um “canalha legalista” pode ser cientificamente
competente e tecnicamente eficiente. Se assim for – e é –, devemos buscar uma alternativa
para que “tudo o que é tecnicamente possível e legalmente autorizado nem por isso seja
feito” (2005, p. 55).
2. Razão coletiva:
Comte-Sponville exemplifica este item com uma questão que apresentou para dissertação de
seus alunos no curso de filosofia: “O povo tem todos os direitos?”. Ao corrigir os trabalhos de
seus alunos, que se acreditavam portadores de excelente “consciência democrática”, sur-
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preendeu-se com as respostas que indicavam que “sim, claro. O povo tinha todos os pode-
res”. Os alunos justificavam que o povo era soberano e, como tal, possuía todos os direitos.
Ao devolver os trabalhos corrigidos, ele apresentava a seguinte provocação: “se o povo tem
todos os direitos, ele tem portanto o direito de oprimir as minorias (por exemplo, votar leis
antijudaicas), praticar eugenia ou assassinato legal, deflagrar guerras de agressão... O que
seria isso senão uma barbárie democrática?” (2008, p. 291)
Informa que os alunos responderam não ter sido essa sua intenção (o que ele diz já saber)
e que há uma Constituição que proíbe todos esses exemplos apresentados. Ocorre que a
Constituição democrática pode ser mudada pela própria vontade do povo. Uma lei muda
outra. E a lei seguinte não precisa ser “melhor” que a anterior. Lembra Rousseau quando
este diz que não há lei que se imponha ao povo que ele não possa modificar (2008, p. 292).
Não há, pois, limites democráticos para a democracia, assim como, não há limites biológicos para a
biologia.
Conclui escrevendo:
Temos portanto duas razões para querer limitar essa ordem jurídico-política: uma razão
individual, para escapar do espectro do canalha legalista, e uma razão coletiva, para escapar
do espectro do povo que teria todos os direitos, inclusive de fazer o pior. E como essa ordem
é incapaz, tal como a precedente, de se limitar a si mesma (não há limites democrático à
democracia, não limites jurídicos ou políticos ao direito e a política), só podemos limitá-la,
mais uma vez, do exterior” (2005, p. 59)
8.2.3. A Ordem da Moral
A ordem que deve limitar externamente a 2ª ordem é chamada por Comte-Sponville (2005 e 2008)
de Ordem da Moral e se estrutura internamente pelos binômios bem e mal e o dever e o proibido e
se dirige a consciência de todos e de cada um. Daí diferencia-se, em essência, da ordem moral, bem
a gosto dos sensores e daqueles que desejam ditar regras morais para serem seguidas pelo coletivo.
O filósofo explicita o que entende por Moral a fim de diminuir a possibilidade de confundir-se ordem
da Moral com ordem moral.
O que é a moral? Para abreviar, responderei com Kant: a moral é o conjunto de nossos de-
veres – o conjunto, para dizer com outras palavras, das obrigações ou das proibições que
impomos a nós mesmos, não necessariamente a priori (ao contrário do que queria Kant),
mas independentemente de qualquer recompensa ou sanção esperada, e até de qualquer
esperança. É o conjunto do que vale ou se impõe incondicionalmente, para uma consciên-
cia”. (2005, p. 64)
A fim de esclarecer a importância dessa ordem, Comte-Sponville (2005, p. 60-62) apresenta três
pontos para reflexão:
1. “A soberania não tem limites, mas tem marcos”. O povo não pode, em nome da segunda
ordem, atentar por exemplo, contra fatos da primeira ordem, pois o povo está submeti-
do às leis da natureza e da razão.
2. A política excede o Direito. A força da multidão não se restringe ás forças institucionais
que as representam. Ela é responsável pelas suas fundações, mas é por meio da resis-
tência a elas que a força da multidão calibra e equilibra a força dos poderes, bem como
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identifica e reage aos interesses instalados nos poderes e que não são próprios destes
como representantes do povo. É certo que o poder soberano do povo possui direitos na
visão jurídica, mas é a própria força das multidões que produz o poder político para o
exercício do equilíbrio social50.
3. A Moral existe. Na discussão sobre o poder absoluto do povo, o filósofo retoma a ideia
de resistência ou mesmo limite a segunda ordem informando sobre a resistência da Mo-
ral e da necessidade de interconexão entre as ordens. Escreve ele que o chamado povo
soberano não é capaz de modificar uma exigência moral (terceira ordem), nem uma
verdade tecnocientíficas (primeira ordem) e que mesmo que ele decidisse
“soberanamente” (isto é, neste caso, ridiculamente) que o sol gira em torno da
Terra ou que os homens são desiguais em direito e dignidade, isso não mudaria
em nada a verdade (no primeiro caso) ou a justiça (no segundo) do contrário.
Distinção das ordens: não se vota o verdadeiro ou o falso, nem o bem ou o mal. É
por isso que a democracia não substitui nem a consciência nem a competência.
E vice-versa: consciência moral (ordem n. 3) e competência (ordem n. 1) não
poderiam substituir a democracia (ordem n. 2). (2005, p. 62)
Quando busca consolidar o argumento de controle da ordem segunda pela ordem terceira, Comte-
Sponville (2005, p. 62) lança mão de um interessante exemplo para distinguir as consequências
da lei e da Moral. Escreve que há coisas que a lei permite, mas que a Moral do indivíduo não se
permite realizar. Em contrapartida, há coisa que a lei não impõe ao indivíduo, mas que este se
impõe por outros valores no exercício cotidiano. Conclui que a Moral se soma à lei e, por isso, “a
consciência de um homem de bem é mais exigente que o legislador; o indivíduo tem mais deveres
que o cidadão”.
No campo do povo – reunião de indivíduos – ocorre fenômeno semelhante. Há casos em que a Cons-
tituição poderá permitir, mas que será moralmente rejeitado (como o racismo, por exemplo) pela
sociedade. Escreve ele:
O conjunto do que é moralmente aceitável (o legítimo) é mais restrito do que o conjunto do
que é juridicamente cogitável (o legal, inclusive em potencial). E como um limite negativo:
o povo tem menos direitos (por causa da Moral) do que o próprio direito lhe concede” (p.63)
A questão da moral não necessita de limites visto que não é possível ser moral demais. Nada há de
ruim que alguém que tem deveres, cumpra exatamente os seus deveres.
A quarta ordem não produz limites externos à terceira ordem, antes a complementa.
Se entendemos Moral, numa visão didática e simplificada para modelar o sistema que apresentamos,
como “tudo aquilo que se faz por dever” e conceituamos ética como “tudo aquilo que se faz por
amor”, como propõe Comte-Sponville, percebemos que esta ordem potencializa a anterior.
Esta ordem se estrutura internamente pelo binômio alegria e tristeza, relembrando Aristóteles que
dizia que amar é “regozijar-se”. Já Espinosa completará que o “amor é uma alegria que a ideia de
uma causa exterior acompanha; o ódio é uma tristeza que a ideia de uma causa exterior acompanha”
Citando Alain, como bom leitor de Spinosa, em nota de rodapé (2005, p. 61) escreve: “Resistência e obediência, eis duas virtudes
50
do cidadão. Pela obediência, ele garante a ordem; pela resistência, garante a liberdade”.
117 MODELAGEM PARA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NAS RELAÇÕES CTS: UTILIZANDO AS ORDENS DE COMTE-SPONVILLE.
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O Amor intervém nas quatro ordens. Todas elas são importantes a sua maneira e devem acontecer
ao mesmo tempo no mundo real, com sua independência relativa, visto que cada uma possui lógica
própria, e uma inter-relação, visto que uma não funciona excelentemente sem o equilíbrio de força
das demais. Ao final, declara Comte-Sponville (2005, p. 69): “As quatro são necessárias; nenhuma é
suficiente”.
Na conclusão sobre as ordens, Comte-Sponville (2005 e 2008) ainda apresenta outros conceitos que
nos auxiliam a entender a dinâmica entre as ordens: o de ridículo, de tirania, de angelitude e o de
barbárie.
1. Ridículo: é a confusão das ordens. Exemplo: “amem-me, sou o professor de vocês”. Isso
é ridículo! pois ninguém é amado porque expos as razões de seu amor.
2. Tirania: é o desejo de dominação universal e fora de sua ordem. Aquele que quer obter
por um caminho o que só pode obter por outro caminho. Por exemplo: Alguém que quer
ser amado por ser forte, ou obedecido por ser sábio, ou temido por ser belo! (2005, p.
91).
3. Angelismo (ou tirania do superior): é a tentação de pretender anular uma ordem, ou sua
lógica, em nome de uma ordem superior. Um exemplo de angelismo jurídico-político
seria a tentativa da segunda ordem tentar anular a primeira ordem (imposições técni-
cas e científicas ou mesmo técnico econômicas). O angelismo ético seria a tentativa de
libertar-se de seus deveres em nome de um pretenso amor universal (2008, p. 296).
4. Barbárie (tirania do inferior): é o inverso do angelismo. Consiste na tentativa de uma
ordem inferior submeter uma ordem superior. Por exemplo, reduzir a política à técnica
seria uma barbárie tecnocientífica (tirania dos especialistas). Submeter ou reduzir o
amor ao respeito pelos deveres seria a barbárie moralizadora (tirania da ordem moral).
Logo, o que se busca como ideal para o modelo em estudo não é a valorização ou exclusividade de
uma das ordens, mas a comunicação dinâmica entre as quatro ordens. Mais do que cada uma, o valor
está no conjunto, no sistema que elas compõem.
Ocorrido um fato que atinja a sociedade, independentemente de onde este possa ser posicionado no
sistema, espera-se, primeiro, que não haja ridículo, isto é, pergunte-se corretamente a ordem adequa-
da e, segundo, permita-se que as ordens dialoguem entre si numa contribuição dinâmica para melhor
entendimento do fenômeno e de suas causas e efeitos.
Como contribuição especial ao trabalho a que nos dedicamos, resgatamos uma frase do filósofo em
discussão, quando discute que é possível prolongar estas ordens para baixo ou mesmo para cima.
Escreve ele: “Eu prolongaria de bom grado essas quatro ordens para baixo, assinalando o lugar de
uma ordem zero, que seria a da natureza ou do real e que conteria todas as outras”. (2008, p. 295).
Nosso interesse por esta frase se justifica por aquilo que temos defendido ao longo das atividades
de reflexão em torno da educação, do ensino e da abordagem CTS: O mundo real é interdisciplinar
e contextualizado. Logo, o exemplo apresentado reforça esta ideia: as quatro ordens estão presentes
e contidas de forma interativa no mundo real, na ordem zero. Não cabe repetir o equívoco de frag-
mentar as ordens, como fizemos com a natureza para distribuí-la em pedaços para as “disciplinas
científicas”.
O modelo que apresentamos é bastante para o entendimento CTS se for aplicado com as quatro or-
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Freeman Dyson (2008) ao comentar a ampliação das fronteiras e os impactos das novas tecnologias
do século XXI, aponta a necessidade de as normas éticas dos cientistas modificarem na medida em
que haja mudança nos limites do bem e do mal, causados pela tecnociência. De modo geral, escreve
ele, o progresso da ética é a cura para os danos causados pelo progresso tecnocientífico (p. 48).
Na mesma linha de raciocínio, indica o perigo das novas tecnologias ampliarem o fosso que separa
os pobres dos ricos com, por exemplo, a desativação de fábricas antigas para substituí-las por outras
mais modernas, que exigem maior e melhor educação geral e profissional que, aliás, os pobres não
possuem.
Alain Peyrefitte (1999), em sua obra de fôlego, A Sociedade de Confiança, busca indicar como os valo-
res religiosos influenciaram na construção das nações em todo o mundo. Defende a tese, e faz longo
percurso no esforço de justificativa, de que os valores difundidos pela Igreja Católica produziram
um tipo de nação e um tipo de desenvolvimento, enquanto as nações cuja orientação era protestante
possuem outro conjunto de valores e um traçado de desenvolvimento diferenciado. Aqui é possível
perceber as diferenças entre países como a França, Holanda e Inglaterra, assim como buscar perce-
ber o que a ideia da salvação pela fé ou pelas obras ajudou a impulsionar as nações de base protestan-
te. Quando está descrevendo o plano de sua obra, Peyrefitte propõe lançar as bases de uma etologia
comparada do desenvolvimento. “ Etologia, isto é, estudo dos comportamentos e mentalidades res-
pectivos das diversas comunidades humanas, quando fornecem fatores de ativação ou de inibição em
matéria de intercâmbio, de mobilidade intelectual e geográfica, de inovação.” (p. 29)
Na dinâmica de comunicação das ordens, valores morais de fundo religioso na terceira ordem podem
influenciar a produção de primeira e segunda ordens.
Javier Echeverria (2001a, 2001b e 2003) parte das discussões sobre a superação da ideia de ciência
herdada – neutra, imparcial, atemporal etc – e informa sobre as ideias atuais de ciência e tecnologia
a partir dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia. Ao longo de seus trabalhos sobre a possibili-
dade real de relação entre valores e Ciência e Tecnologia, Echeverria chega propor uma axiologia da
ciência e da tecnologia.
Lia-se informações sobre questões que não apenas os cidadãos não têm voz, mas que, se-
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gundo os especialistas, não devem mesmo aprender. O resultado é que não dispõem de “in-
formações verídicas e completas sobre vírus ou bactérias, algumas delas geneticamente mo-
dificadas para resistir a todas as vacinas ou antibióticos, desenvolvidos no mundo”
A exposição de Olivé parece nos remeter a questões que estão ligadas à concepção herdada de ciên-
cia e tecnologia, baseada na ideia de que os especialistas estão mais bem preparados para orientar os
demais cidadãos em assuntos que não são dominados pela coletividade. Os mesmos especialistas que
se oferecem para ajudar democracias jovens não foram capazes de antecipar os acontecimentos infe-
lizes do 11 de setembro de 2001, do 11 de setembro ambiental, como os demais acontecimentos infelizes
produzidos por acidentes tecnocientíficos. Parece-nos que o conhecimento que eles acreditam ter
não foi capaz de ajudar nestes fatos... por que ajudariam em outros da mesma ordem? Isso é ridículo!
Como diria Pascal.
Pode ser que o cidadão não seja capaz de opinar de forma estruturada sobre um conhecimento cien-
tífico específico ou sobre a possibilidade de realização tecnológica, mas ele é muito bem preparado
para dizer se o conhecimento e o aparato são de interesse da sociedade. Gerard Fourez (1995) inicia
um capítulo intitulado Ciência, Poder Político e Ético, onde defende a necessidade de refletirmos
sobre as relações entre CTS e afirma:
A questão do vínculo entre os conhecimentos e as decisões se impõe, portanto. Que existe
um vínculo, isto é indicado pelo bom senso: se se sabe que é possível construir uma ponte de
uma margem a outra de um rio, pode-se questionar se ela é ou não desejável (p. 207).
Na tentativa de concretizar as possibilidades de participação social, é possível identificar alguns mo-
delos de exercício democrático (Chrispino, 2015). Hoje, é possível identificar alguns importantes
canais de exercício democrático no Brasil. Podemos enumerar a democracia representativa, a demo-
cracia participativa, a democracia direta e a democracia consociativa, a saber:
• A democracia representativa, que resulta na eleição de representantes do povo para
os Poderes Legislativo e Executivo, nos três níveis de governo (federal, estadual e mu-
nicipal). Isso quer significar que o povo tem participação direta na qualidade dos seus
representantes, sendo certo que a qualidade dos governantes espelha o pensamento e
a prática dos eleitores, visto que nenhum deles chegou ao poder por concurso ou por
sorteio.
• A democracia participativa faculta a participação mais efetiva de cidadãos em es-
paços de decisão e/ou de acompanhamento. Os exemplos são os conselhos de acom-
panhamento de ações de governo ou conselhos temáticos. Não passa despercebido que
um dos grandes entraves na consolidação da boa representação é o fato de que os que
buscam representar se utilizam deste instituto como trampolim para projetos políticos
pessoais tais como chegar a vereador, chegar a deputado, chegar a prefeito etc.
• A democracia direta se dá pela participação efetiva do cidadão visando a decisão. São
exemplos de participação direta o plebiscito e o referendo. Não devemos confundir os
institutos da democracia direta com as ferramentas de política populista como foi o
caso da denominada “Democracia Plebiscitária”, que mais se assemelha a populismo
oportunista, quando um governante, com alto índice de aceitação, propõe consulta à
população sobre temas de interesse, como a possibilidade de reeleição sem limites.
Também temos que observar com critério a diferença entre a democracia Direta legíti-
ma e as ações populistas de consulta a população por meio de expedientes que possuem
“endereço certo” e “resultado previsível” como as conferências temáticas, organizadas
a partir de frações definidas de segmentos sociais organizados, que mais representam as
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
Ao discutir sobre a participação social em decisões tecnocientíficas, López Cerezo (2009, p. 138),
apresenta três blocos de temas: Qual o público que deve participar das discussões e sob que argumen-
tos, quem pode e deve participar e os modos possíveis de participação.
A escolha do público que deve participar dos debates envolvendo ciência e tecnologia não é sim-
ples nem trivial. Quando definimos um problema tecnocientífico de alto impacto social precisamos
responder a primeira pergunta: que coletivo está envolvido nesta questão? Ou ainda que coletivos
estão de alguma forma envolvidos na questão? Quando conseguimos responder a esta primeira etapa
passamos a outra ordem de problema: Dos envolvidos, qual possui opinião mais importante, ou mais
relevante ou mais prevalente? Tudo isso se torna mais complexo quando consideramos as mesmas
questões na linha do tempo: no presente estas perguntas podem ser respondidas de uma forma, mas,
se considerada a visão de futuro, seriam as mesmas respostas?
López Cerezo (2009, p. 138) cita Daniel Fiorino (1990) quando propõe resumir os motivos de partici-
pação social em três argumentos:
• Argumento instrumental: A participação é a melhor garantia para evitar a resistência
social e a desconfiança sobre as instituições.
• Argumento normativo: A tecnocracia é incompatível com os valores democráticos.
• Argumento substantivo: O juízo dos não especialistas são tão razoáveis quanto o juízo
dos especialistas.
No que se refere a Quem pode ou deve participar das discussões que envolvam temas tecnocientífi-
cos, a discussão não é mais simples. Considerando a diversidade de cidadãos e de segmentos sociais
que estão direta ou potencialmente envolvidos neste processo, López Cerezo (2009, p. 139) informa
que a literatura sobre participação pública apresenta, em geral, “um conjunto de critérios para ava-
liar o caráter democrático de iniciativas de gestão pública em política científico-tecnológica”:
• Caráter representativo: deve produzir uma ampla participação em um processo de to-
mada de decisão. Em princípio, quanto maior é o número e a diversidade dos indivíduos
ou grupos envolvidos, mais democrático pode considerar-se o mecanismo participativo
em questão.
• Caráter igualitário: deve permitir a participação cidadã em pé de igualdade com os es-
pecialistas e as autoridades governamentais. Ele implica, entre outras coisas, transmis-
são de toda informação, disponibilidade de meios, não intimidação, igualdade de trato
e transparência no processo.
• Caráter efetivo: deve traduzir-se em um fluxo real sobre as decisões adotadas. Para ele é
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
Rigolin (2014), ao estudar a participação pública e avaliação social da Ciência e da Tecnologia, escre-
ve que a emergência de inovações tecnológicas de caráter controverso produziria maior
demanda pública por informação e maior inclusão no processo decisório [e] refletiria uma
reação pública contra o hermetismo que caracteriza os modelos regulatórios fundados nos-
princípios incontestáveis e inacessíveis da sound Science (Young et al., 2001). Para alguns
autores (Callon, 1998; Young et al., 2001; Kluver et al., 2000; Smith, 2001) e certas organi-
zações internacionais (FAO, 2001), o melhor arranjo para a orquestração de conflitos (po-
líticos, jurídicos etc.) que envolvem incerteza, complexidade e controvérsia científica,tem
sido a ampliação do conceito de expertise, incorporando a visão e os interesses dos diferen-
tes atores sociais potencialmente afetados pela difusão de novas tecnologias, no processo
de formulação, implementação ou avaliação de políticas públicas, via procedimentos parti-
cipativos (p. 131).
No que se refere a espaços institucionais possíveis para a participação social em ciência e tecnologia,
López Cerezo (2009) – assim como Bazzo, Linsingen e Pereira (2003) –, informa as principais opções
que foram ensaiadas em diversos países tais como Estados Unidos, Austrália, Reino Unido, Suécia e
Países Baixos, que buscamos sintetizar a seguir:
• Audiências públicas: são habitualmente foros abertos e pouco estruturados onde, a par-
tir de um programa previamente determinado pelos representantes da administração,
se convida o público a escutar as propostas governamentais e comentá-las.
• Gestão negociada: se desenvolve a partir de um comitê negociador composto por repre-
sentantes da administração e grupos de interesse implicados, por exemplo, indústria,
associações profissionais e organizações ecologistas. Os participantes têm acesso a a
informações relevantes, assim como a oportunidade de persuadir a outros e alinhá-los
com suas posições.
• Painéis de cidadãos: este tipo de mecanismo está baseado no modelo do jurado, só que
aplicado a temas científico-tecnológicos e ambientais. Sob este tipo de técnica, reúnem-
se modelos de caráter decisório ou meramente consultivo. A ideia central é que os
cidadãos comuns (escolhidos por sorteio ou por amostra aleatória) se reúnam para con-
siderar sobre um assunto sobre o qual não são especialistas e, após terem recebido das
autoridades e especialistas as informações pertinentes, apresentem recomendações ou
alternativas aos organismos oficiais. Comparada a audiência pública, esta técnica é mais
ativa e permite maior participação e maior questionamento inclusive aos especialistas.
• Pesquisas de opinião sobre assuntos tecnocientíficos permitem conhecer a percepção
pública sobre determinado assunto, de forma a orientar as decisões dos poderes legis-
lativo e executivo.
• Consumo diferenciado de produtos de acordo com sua origem científica-tecnológica:
são escolhas feitas pelos cidadãos a favor do consumo de produtos marcados com algum
tipo de selo indicativo de qualidade ou de diferenciação
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INTRODUÇÃO AOS ENFOQUES CTS – CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE – NA EDUCAÇÃO E NO ENSINO
Podemos identificar especialmente no Brasil alguns outros instrumentos, tais como o referendum,
o plebiscito, o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), o Relatório de Impacto de Vizinhança, ações
civis públicas e sempre o direito de questionar em Juízo quando se sentir lesado.
Conheça mais:
Aibar, E. La participacion del público em las decisiones científico-tecnológicas. In Aibar, E.; Quintanilla, M.A.
(edit.). Ciencia, Tecnologia y Sociedad.Madrid: Editorial Trotta; Consejo superior de Investigaciones Cientificas,
2012.
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9. Sobre as abordagens CTS
Em resumo, a solução não consiste em “mais ciência e tecnologia”, mas sim em um tipo diferente de
ciência e tecnologia.
González García, López Cerezo e Luján López
No livro que escolhemos para ilustrar nossas questões, Chalmers (1994) está preocupado
em identificar e caracterizar a meta da ciência, distinguindo-a de outras atividades com di-
ferentes objetivos. Disso não se deve concluir que eu considere a meta da ciência algum bem
absoluto e sem restrições, necessariamente superior a outras metas. Um exemplo ajudará a
colocar a glorificação irrestrita da ciência dentro de uma perspectiva mais realista.
Humphrey Davy inventou em 1815 a chamada lâmpada de segurança dos mineiros. Não há
nenhuma dúvida de que isso tenha sido uma bemlograda consequência de uma pesquisa
científica pura (possivelmente realizada por Faraday), que envolvia a determinação da tem-
peratura de ignição do metano e a eficácia de um véu de arame atuando como barreira para
a temperatura. J. A. Paris, um dos biógrafos de Davy, referiu-se a essa pesquisa bem suce-
dida como" orgulho da ciência, triunfo da humanidade e glória da época em que vivemos"
(...), e, mais recentemente, a Union Carbide Chemicals and Plastics exaltou as virtudes da
pesquisa de Davy e comparou suas contribuições para a humanidade às da Union Carbide.
"Afinal de contas, Humphrey Davy acendeu uma lâmpada para benefício da humanidade e
não desejamos que ela se apague" (Albury e Schwartz, 1982, p. 13). Isso não é muito inco-
mum em relação à maneira como o valor intrínseco da ciência é retratado e glorificado.
No entanto, (...) um exame mais circunspecto da história real desse episódio nos leva a uma
avaliação bem mais moderada. Um efeito imediato da introdução da lâmpada de Davy nas
minas de carvão foi um aumento acentuado no número de explosões e fatalidades. Não é
difícil discernir a razão para isso. Do ponto de vista dos proprietários das minas, o problema
que pressionava não era tanto a segurança da mina, mas o fato de que as operações em mi-
nas ricas de carvão se tomavam inacessíveis por causa da acumulação do metano. O proble-
ma deles, que era o que expuseram a Davy, era saber como fazer os mineiros entrarem nas
51
Allan Chalmers (1939- ) é inglês, naturalizado australiano, formou-se em física e dedicou-se aos estudos da Filosofia e da His-
tória. É professor de História e Filosofia da Ciência na Universidade de Sydney, Austrália.
minas perigosas, cheias do gás venenoso. A pesquisa de Davy proporcionava uma resposta,
mas, naturalmente, sua lâmpada estava longe de ser perfeita. O véu poderia soltar-se, as co-
rrentes de ar poderiam soprar a chama para fora e as partículas de carvão que se grudavam
em seu exterior se tornariam vermelhas com o calor. Os mineiros admitiam que o problema
mais sério nas minas era uma ventilação precária. Eles percebiam que as principais fatalida-
des depois de uma explosão ocorriam por sufocação pelo monóxido e dióxido de carbono,
em consequência da explosão. Eles propunham medidas como o aprofundamento de mais
poços, mas essas sugestões foram em geral deixadas de lado, presumivelmente devido aos
custos que encerravam. Os mineiros poderiam ser perdoados pelo ceticismo a respeito de
qualquer afirmação de que o progresso da ciência é um bem sem reservas. (p. 160-161)
O autor conclui o item informando que existe na atualidade situações comparáveis a essa, onde, pelos
efeitos adversos que a ciência possibilita,
é razoável em muitos contextos reivindicar que um uso socialmente mais eqüitativo do con-
hecimento cientifico que temos é um problema de maior urgência do que a produção de
mais conhecimento científico. Mesmo quando basta atribuir grande prioridade à aquisição
do conheci¬mento científico, resta a questão de qual das muitas linhas possíveis de pesquisa
científica deveria ser seguida. Resta então a questão: que espécie de ciência desejamos? É
inquestionável que uma grande força por trás da direção do desenvolvimento da ciência
ocidental é proveniente dos interesses militares e econômicos das agências governamentais
e dos interesses aliados das corporações multinacionais. Muitos de nós desejariam que as
coisas fossem diferentes e que a ciência se tivesse desenvolvido em direções mais de acordo
com os interesses e as necessidades das pessoas comuns. De qualquer maneira, a ciência
tem que ser avaliada e articulada segundo interesses e valores. As avaliações e as lutas polí-
ticas aí encerradas não são por si só receptivas às soluções científicas. (p. 161).
Leia mais
Sobre Humphry Davy
Beltran, Ma H. Roxo. Humphry Davy e as cores dos antigos, Quím. Nova, vol.31, n.1, São Paulo, 2008. http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422008000100033&lng=en&nrm=iso
Dwyer, Tom. O surgimento da engenharia de segurança: Empregadores, trabalhadores e a lâmpada de Davy. Mul-
tiCiência. UNICAMP. http://www.multiciencia.unicamp.br/artigos_06/a_04_6.pdf
Dwyer, Tom. Vida e morte no trabalho - acidentes do trabalho e a produção social do erro. São Paulo: Editora
Unicamp, 2006.
A discussão então passa a ser não mais “se a tecnociência interfere no dia-a-dia” ou
“se a tecnociência produz resultados somente para o bem-estar” mas, sim, “que forças
impulsionadoras podem ser identificadas em cada movimento que favorece um avanço
tecnocientífico”. Certamente este é um movimento muito mais complexo do que simplesmente
aplaudir as conquistas tecnocientíficas que nos chegam por meio de produtos de consumo. O
que se está apontando é a necessidade da alfabetização tecnocientífica capaz de identificar
os movimentos que orientam e sustentam uma ou outra linha de pesquisa e/ou produção
tecnocientífica. Não há, nessa visão, a possibilidade de acharmos que o movimento da ciência
e tecnologia – a tecnociência – existe sem a ação e decisão socialmente dirigidas. Essas ações
possuem um viés político (Política com P maiúsculo e política com p minúsculo). O que não
é obrigatoriamente ruim! Chalmers (1994) nos relembra e comenta uma história clássica
apresentada por Bruno Latour (1987) e que ilustra de forma espetacular essa necessária relação
entre Ciência, Tecnologia, Sociedade e Política, que chamaremos de CTS+P.
Os fatores que se ocultam por trás da satisfação das condições materiais necessárias para
o trabalho científico envolvem uma ampla série de interesses outros que não a produção
do conheci¬mento cientifico. Esse ponto é graficamente ilustrado por Bruno Latour (1987,
p. 153-7) num trecho impressionante, em que ele compara a atividade cotidiana de uma
cientista num importante laboratório californiano com o diretor do laboratório, a quem se
refere como "o chefe". A cientista se considera interessada no desenvolvimento da ciência
pura e desinteressada das questões políticas ou sociais. Procura distanciar-se do governo e
do setor privado, para concentrar-se em sua pesquisa pura. Em compensação, o chefe está
sempre envolvido em atividades políticas em todos os níveis, o que muitas vezes lhe vale a
zombaria da cientista.
O exemplo de Latour trata da pesquisa de uma nova substância, o pandorin, que promete ter
grande significado na fisiologia. Na lista das atividades em que o chefe se envolve numa se-
mana comum, estão as seguintes, entre outras: negociações com as grandes companhias far-
macêuticas a respeito do possível patenteamento do pandorin; um encontro com o ministro
da Saúde francês, onde será discutida a possibilidade de abertura de um novo laboratório na
França; uma reunião na Academia Nacional de Ciência, em que o chefe defende a necessi-
dade de mais um subdepartamento; reunião da diretoria da revista médica Endocrinology,
onde pede mais espaço para sua área e, reclama de conselheiros que pouco sabem sobre a
disciplina; uma visita ao matadouro local, em que discute a possibilidade de decapitar ove-
lha, de modo a causar menos danos ao hipotálamo; reunião na universidade, onde propõe
um novo programa de curso contendo mais biologia nuclear e informática; discussão com
um cientista sueco sobre os instrumentos recentemente criados por ele para detectar pep-
tídeos e possíveis estratégias para desenvolvê-los; e discurso na Associação dos Diabéticos.
Continuemos acompanhando Latour, voltando nossa atenção para o trabalho da cientista
no laboratório pouco depois. Descobrimos que ela conseguiu empregar um novo técnico, o
que foi possível graças a uma bolsa recebida da Associação dos Diabéticos; há também dois
novos estudantes já formados que entraram no campo através dos novos cursos criados pelo
chefe. Sua pesquisa beneficiou-se com amostras mais limpas de hipotálamo, que são agora
recebidas do matadouro, e com um novo instrumento de grande sensibilidade, recentemen-
te adquirido da Suécia, que aumenta sua capacidade de detectar traços insignificantes de
pandorin no cérebro. Os resultados preliminares de sua pesquisa serão publicados numa
nova seção de Endocrinology. Ela está refletindo sobre um novo cargo que lhe foi oferecido
pelo governo francês para a implantação de um laboratório na França.
Se a cientista da história muito realista de Latour considera envolvida na ciência pura, que
não é perturbada por questões políticas e sociais mais amplas, ela está muito enganada. A
satisfação das condições materiais, que é um pré-requisito para a realização de sua pesquisa,
só pode ser obtida como resultado da atividade política, que encerra uma série de interesses
sociais, como ilustram as atividades do chefe. Se, por exemplo, investigamos o suficiente a
respeito da origem dos fundos para qualquer área de pesquisa na física, nos Estados Unidos,
quase sempre damos de frente com os interesses dos militares e do Departamento de Defesa
no desen¬volvimento dos modernos sistemas armamentistas. E. L Woollett (1980, p. 109)
expõe a situação, num artigo revelador: "... qualquer pessoa com o diploma de física que leia
o Relatório Anual da Secretaria da Defesa admitirá a maneira essencial como o progresso
da ciência está hoje associado ao 'progresso' nos modernos sistemas armamentistas". Minha
insistência em fazer uma distinção entre a ciência e outras atividades com metas diferentes
deixa pouco mais que farelos para a análise do sociólogo.
O simples fato de que a atividade cientifica não pode ser separada das outras que atendem a
outros interesses não implica em si que o objetivo da ciência esteja subvertido. A análise um
Leia mais:
Sobre Bruno Latour e sua publicação
Teixeira, Márcia de Oliveira. A ciência em ação: seguindo Bruno Latour. Hist. cienc. saude-Manguinhos, vol.8, n.1,
Rio de Janeiro, Mar./June, 2001.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702001000200012
Sobre Robert K. Merton (1910-2003)
Nunes, Everardo D. Merton e a sociologia médica. Hist. cienc. saude-Manguinhos vol.14, n.1, Rio de Janeiro, Jan./
Mar, 2007.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702007000100008&script=sci_arttext
Sociedades/cidadãos mais esclarecidos quanto à Ciência e Tecnologia estão mais aptos a solicitar
explicações mais efetivas sobre o porquê e sobre os resultados de projetos de base tecnocientíficos.
Podem questionar os valores que fundamentam os objetivos das políticas públicas (manifestação da
vontade de fazer dos governos), tanto quanto são capazes de questionar sobre as consequências das
tecnociências a curto, médio e longo prazos.
Essa diferença do antes e do depois é comumente chamada nos estudos CTS de tradição de origem
européia e de tradição de origem americana. Sendo certo que esta divisão, hoje, pela diversidade
grupos de estudos CTS, é mais didática do que geográfica.
A tradição Européia considera, na dimensão social, os antecedentes ou condicionantes sociais do CTS
que contribuem para a formação e consolidação dos complexos tecnocientíficos (González García,
López Cerezo e Luján López, 1996, p. 56). Esta tradição, que remonta o suporte teórico de Thomas
Kuhn, realiza seus estudos baseados principalmente nas ciências sociais e possui trabalhos importantes
a partir das contribuições de S. Woolgar e B. Latour, principalmente. (López Cerezo, 2002, p. 8)
Já a chamada tradição americana considera, na dimensão social, a consequência social ou a forma
como os produtos da tecnociência incidem sobre nossa vida e na organização social (González García,
López Cerezo e Luján López, 1996, p. 56). A atenção está mais voltada para as consequências sociais
e ambientais dos produtos tecnológicos, deixando em segundo plano, geralmente, os antecedentes
sociais destes produtos. Esta tradição tem origem nos movimentos sociais dos anos 60 e 70 e que
marcaram sua época e contribuíram sobremaneira para a consolidação dos estudos CTS. Numa visão
eminentemente acadêmica, é possível dizer que seus estudos estão apoiados na área das ciências
humanas e se consolida institucionalmente por meio do ensino e da reflexão política, conforme
escreve López Cerezo (2002, p. 8).
Pode parecer que ambas as abordagens sejam excludentes entre si, “devido à diversidade de suas
perspectivas e âmbitos de trabalho: pesquisa acadêmica, por um lado; política e educação, por outro”.
Na verdade, essas duas tradições são elementos complementares de uma visão crítica da tecnociência,
como pretende demonstrar López Cerezo (2002, p. 21):
• O desenvolvimento científico-tecnológico é um processo conformado por fatores cul-
turais, políticos e econômicos e ademais, epistemológicos. Trata-se de valores e interes-
ses, que fazem da ciência e da tecnologia um processo social.
• A mudança científico-tecnológica é um fator determinante que contribui para modelar
nossas formas de vida e nosso ordenamento institucional. Constitui um assunto público
de primeira magnitude.
Já Cutcliffe (2003), quando estuda as diferentes abordagens prefere fazê-lo pela ótica de Steve Fuller
(1992) que propõe dividir os estudos CTS em “alta igreja e baixa igreja”, em resposta a artigo de Ilerbaig
(1992). Esta divisão, muito difundida entre os estudiosos de CTS, separa aqueles estudos com “inclinação
acadêmica e centrada em disciplinas” e com orientação sócio/explicativa daqueles estudos com
“inclinação ativista social e centrada em problemas” e com orientação social/ativista (p. 104 e 106).
A classificação entre Baixa e Alta Igrejas leva uma dicotomia e força estereótipos que podem ser
perniciosos para o bem entendimento do que seja e o que pretende ser a Abordagem CTS. Pode-se
reduzir a Baixa Igreja ao Movimento CTS, de base ativista e, em paralelo, pode-se dizer que Alta
Igreja está centrada na preocupação de estudos e reflexões em torno de disciplinas estruturadas.
Cozzens (1990) chama a Alta Igreja de Pensamento CTS. Buscando ampliar a visão estreita que lkeva
a reducionismos perversos, Robin Williams e David Edge propuseram a expressão Ampla Igreja,
agrupando os comportamentos descritivos e prescritivos, diminuindo a tensão entre as categorias,
evitando perdas desnecessárias de energia e atenção dos especialistas em CTS.
O próprio Cutcliffe, ao longo de seu estudo, propõe outra maneira de categorizar os estudos CTS,
utilizando-se tangencialmente da divisão de Steve Fuller. Ele informa que a chamada alta igreja se
manifesta em programas CTS apresentados de Estudos de Ciência e Tecnologia, enquanto a baixa
igreja se apresenta em programas CTS intitulados como Ciência, Tecnologia e Sociedade. Ao chamar
atenção para estes dois representantes da divisão proposta por Fuller, Cutcliffe aponta a possível e
necessária existência de um terceiro grupo que ele vê se manifestar nos programas denominados de
Ciência, Tecnologia e Política ou Ciência, Engenharia e Política. Para o autor, os programas deste
terceiro grupo “têm uma orientação profissional dirigida para as interações sócio-técnicas em grande
escala e sua gestão. Consideram a necessidade de e a preparação em estudos das políticas de atuação
e gestão adequadas”. (p. 106)
Esta divisão didática proposta por Cutcliffe é importante por conta da análise de Vacarezza (2002)
que, ao analisar o desenvolvimento do CTS na América Latina: Queremos lembrar do PLACTS-
Pensamento Latinoamericano de CTS, que tratamos no capítulo 1, especialmente p. 16 e seguintes,
escreve que
na America Latina a origem do movimento se encontra na reflexão da ciência e da tecnolo-
gia como uma competência das políticas públicas”, tendo “surgido como uma crítica dife-
renciada à situação da ciência e da tecnologia e de alguns aspectos da política estatal nessa
matéria (p. 52).
Vacarezza (2002) diz ainda que a política se transformou em gestão, que a militância característica do
movimento CTS se transformou em formação de especialistas e que estes movimentos administrativos
prescindem do caráter mobilizador e da pretensão de mudança próprias do movimento CTS. A
existência de uma abordagem CTS na América Latina, quer como Movimento CTS, quer como
Estudo CTS, ou outra necessária categorização, deve merecer nossa atenção de pesquisa.
Spiegel-Rösing e SollaPrice (1977, p. 13) propõem que CTS possa ser precebido em 16 áreas distintas
Abordagem Foco(s)
Evolução da Ciência e da tecnologia com a evolução da Sociedade: influência da atividade científica e
Histórica tecnológica na história da humanidade; e influência de acontecimentos históricos no desenvolvimento da
Ciência e Tecnologia.
Aspectos éticos do trabalho científico e responsabilidade social dos cientistas no exercício da atividade
Filosófica /
científica.
Epistemológica
Natureza do conhecimento científico, seus limites e validade dos seus enunciados.
A Ciência e a tecnologia como empreendimentos sociais.
Frente as propostas de organização da área que chamamos de Construção Social da Ciência e da Tec-
nologia, gostaríamos de apresentar uma possível ideia de evolução deste segmento a partir de Oliver
Martin (2003) – como poderia ser a partir de Vega Encabo (2012), Bennàssar et al (2011), Chikara
Sasaki (2010), Pierre Bourdieu (2008), Jesús Valero (2004), Javier Echeverría (2003), Stephen Cut-
cliffe (2003), dentre outros – que elenca as ideias norteadoras dos pensadores em Sociologia inician-
do com Auguste Comte (1789-1857), Karl Marx (1818-1883), Levy-Bruhl (1857-1939), Émile Durkheim
(1858-1917) para, após isso, iniciar o período que chamou de Sociologia do Conhecimento Científico.
Chama atenção para o fato que nenhum dos autores clássicos, apesar de citarem o conhecimento
científico, “o converteu em objeto central de seus propósitos” (p. 18) e apresenta três autores que, em
sua visão, abordaram precisamente o conhecimento científico como objeto de estudo: Max Scheller
(1874-1928), Karl Mannhein (1893-1947) e Pitirim Sorokin (1889-!968).
O autor deixa claro que as discussões sobre verdadeiro e falso; objetivo e subjetivo, ciência e não-
ciência e tudo mais que trate de um relativismo em ciência não possui espaço nem apoio até então.
Essa visão ingênua será ampliada e enriquecida quando, nas décadas de 1920 e 1930, a ciência começou
a ser encarada de forma diferente, especialmente no processo de elaboração e de construção, bem
como o sistema de difusão do conhecimento científico e de como os cientistas se organizavam. Esta
nova fase é personalizada e demarcada, ainda segundo Martin (2003), tendo como símbolo Robert
Merton.
Esta nova fase recebe, como já estudado anteriormente no capítulo 2, as contribuições de Thomas
Kuhn (1922-1996) cujas ideias servem como ponto de partida para reflexões e surgimento de
abordagens importantes para esta nova etapa da sociologia da ciência, do grupo de estudos franco-
britânico (PAREX: Paris e Sussex) que passou a se chamar European Association for the Study of
Science and Technology, do chamado Programa Forte em Sociologia do Conhecimento Científico
e do chamado Programa Empírico do Relativismo e, mais recentemente, a chamada sociologia da
tecnologia, que se apropria também de saberes oriundos da filosofia da tecnologia.
A segunda sub-área da Natureza da Ciência e da Tecnologia, pode ser identificada com a abordagem
CTS-Ciência, Tecnologia e Sociedade, cuja definição caminha para um consenso como sendo a
construção social da ciência e da tecnologia e o estudo destas na sociedade que lhes abriga e dá
origem. Esta área, mais afeta aos ditames da sociologia (e a sociologia do conhecimento, sociologia
Os meios de comunicação vêm trazendo informações sobre os conflitos violentos envolvendo índios,
governo e população de modo geral a partir das divergências sobre a instalação de hidrelétricas em
alguns pontos da região amazônica.
Considerando o que foi apresentado, (1) identifique as premissas que cada um desses atores sociais
utiliza para defender sua posição no conflito e (2) proponha uma abordagem CTS para este conflito
de interesse.
10.1 Introdução
Temos buscado apresentar a necessidade de não oferecermos à Tecnologia e à Ciência um atributo
de infalibilidade, mas, sim, demonstrar que a Tecnociência (Tecnologia + Ciência) são construídos
socialmente e interagem fortemente, de forma explícita e implícita, com atores sociais e com dinâmi-
cas de grupos e comunidades organizadas.
Vázquez, Manassero, Acevedo e Acevedo (2008), escrevendo sobre a Natureza da Ciência (NdC)
apresentam uma concepção mais ampla que inclui as relações da sociedade com o sistema tecnocien-
tífico. Dizem que o conceito deve englobar
uma variedade de aspectos sobre o que é a ciência, seu funcionamento interno e externo,
como constrói e desenvolve o conhecimento que produz, os métodos que usa para validar
esse conhecimento, os valores envolvidos nas atividades científicas, a natureza da comuni-
dade científica, os vínculos com a tecnologia, as relações da sociedade com o sistema tecno-
científico e vice-versa, as contribuições desta para a cultura e o progresso da sociedade. Este
estudo analisa os potenciais consensos entre os especialistas com relação às duas últimas
questões.
Alguns autores (...) afirmam que a sociedade mantém com a ciência e a tecnologia (a partir
de agora CeT) um contrato social, um tanto implícito, que estabelece a pauta dessas relações:
a sociedade financia economicamente as necessidades da CeT e estas, em troca, oferecem
à sociedade benefícios que melhoram a qualidade de vida e contribuem ao seu progresso e
desenvolvimento econômico e social. Por esse motivo, a CeT alcançaram uma relevância tão
grande nas sociedades avançadas atuais a ponto de desenvolver um universo de relações e
vínculos entre elas, o que resultou numa nova construção social, denominada tecnociência,
como o compêndio da integração da pesquisa, do desenvolvimento e da inovação (...).
A partir de um ponto de vista educacional, o argumento democrático é um elemento subs-
tancial a favor da inclusão da NdC numa educação científica que procura a finalidade da
alfabetização científica e tecnológica de todas as pessoas, pois segundo os peritos, a parti-
cipação dos cidadãos nas decisões tecnocientíficas de interesse social requer a compreen-
são de elementos da NdC (...). Com relação a esse assunto, a pesquisa didática mostra um
panorama complexo em que confluem os conhecimentos científicos dos temas colocados
em jogo e da NdC: o raciocínio moral (valores e normas); as emoções e os sentimentos;
as crenças culturais, sociais, religiosas e políticas; os aspectos que estão implicados de
alguma forma nas relações entre a sociedade e a CeT. (grifos nossos)
Frente ao que escrevem os autores, é pertinente buscarmos o impacto dos valores morais, normas
sociais estabelecidas, emoções, sentimentos, crenças culturais, sociais e religiosas nas relações
CTS. Certamente, se defendemos, na abordagem CTS, que a Ciência e a Tecnologia são socialmente
construídas, é de se esperar que o que chamaremos de visões de mundo (as ideologias, os valores, as
crenças, a religião, as expectativas etc) e tudo mais que caracteriza essa Sociedade tenham alguma
participação na construção social da Ciência e da Tecnologia.
Por tal, vamos estudar um pouco mais o quanto alguns desses fatores que compõem a visão de mundo
parafraseando Kneller (1980) podem afetar a Ciência e a Tecnologia. Na impossibilidade de estu-
darmos de forma mais avantajada todos os itens, como ética (Fourez, 1995; Mitcham, 1996; Dyson,
1998; Olivé, 2000, 2007; Valero, 2006; Johnson e Wetmore, 2008; Briggle e Mitcham, 2012), jus-
tiça social (Dyson, 2001), gênero em seus variados aspectos (Porro e Arango, 2011; González Garcia,
2001; Chassot, 2003; Pérez Sedeño, 2001; Suchman, 2008; Etzkowitz, 2008; Keller, 1995), valores
(Echeverría, 2001, 2002; Lacey, 2008, 2010; López Cerezo e Luján, 2012; Martínez e Hoyos, 2006),
Política (Dagnino e Thomas, 1996; Hedge, 1998; Dagnino, 2007; Maldonado, 2005; Thorpe, 2008;
Hackett, 2008; Vessuri e Sánchez-Rose, 2012), religião (Merton, 1938; Kneller, 1980; Henry, 1998;
Martin, 2003; Gould, 2007) e/ou participação social em Ciência e Tecnologia (Martin e Richards,
1995; Lacey, 2008, 2010; Bucchi e Neresini, 2008; Hess et al, 2008; Aibar, 2012; Jasanoff, 2012), CTS
em outras culturas (Feenbeerg, 1995; Low, Nakayama, Yoshioka, 1999) escolhemos a Ideologia para
este capítulo de estudo.
Chrispino (2005), tratando da mesma temática, mas aplicada ao universo da Educação, dirá52 que “as
Políticas Públicas [definidas como ação de governo] sofrem influência decisiva oriunda da diversi-
dade de entendimento sobre o que seja ideologia e como ela se manifesta”. Cita Michael Löwy (apud
Konder, 2002), que escreve:
Existem poucos conceitos na história da ciência social moderna que sejam tão enigmáti-
cos e polissêmicos como esse de ideologia. Ao longo dos últimos dois séculos ele se tornou
objeto de uma acumulação incrível, até mesmo fabulosa, de ambigüidades, paradoxos,
arbitrariedades, contra-sensos e equívocos. (grifos nossos)
Esta posição apresentada por Konder (2002) fortalece a tese de que as decisões de governo concre-
tizadas nas chamadas Políticas Públicas são contaminadas por processos ideológicos nem sempre
explícitos. Se por um lado podemos dizer que isto é esperado no universo político, com especial
atenção ao brasileiro, devemos também atentar para a necessidade de se estudar a submissão das de-
cisões de toda ordem a ideologias políticas de forma mais ou menos explícitas – estas infinitamente
mais perigosas do que as primeiras. No momento, e para melhor esclarecer o que pretendemos aqui,
lembramos que os estudiosos da ideologia indicam o surgimento da palavra na década de 1790, com o
filósofo francês De Tracy (Crespigny & Cronin,1999 e Vincent, 1995), sendo depois derivada pelo uso
dado por Napoleão quando se contrapõe àqueles que se perderam no “nevoeiro das ideias abstratas”,
como escrevem Crespigny & Cronin (1999):
Ideologia adquiriu conotação mais nossa conhecida quando Napoleão e os liberais do Insti-
tut se desentenderam. Quando os liberais se opuseram a suas tendências centralizantes, Na-
poleão os repudiou, caracterizando-os como simples ideólogos. A ideologia se perdeu num
nevoeiro de ideias abs-tratas, na busca vã dos primeiros princípios. “Os canhões mataram o
feudalismo. A tinta matará a sociedade moderna”.
Ideologia como acusação, usada em contraste com tudo o que deve ser realista; eis, natu-
ralmente, um dos sentidos em que a palavra ainda hoje é empregada. Seu significado mais
abrangente, para caracterizar os sistemas de crenças de grupos sociais, tem origem ainda
mais recente, que data da década de 1840 e das primeiras obras de Marx. Certamente não foi
ele o primeiro a perceber que os grupos sociais carregam consigo sistemas de maneiras
A partir de Chrispino, Alvaro. Binóculo ou luneta: Os conceitos de política pública e ideologia e seus impactos na educação.
52
Revista Brasileira de Política e Administração da Educação. Brasília, n. 21-1 e 21-2, jan/dez.2005. p.61-90
de ver, freqüentemente mais implícitos do que explícitos, sistemas que limitam os hori-
zontes conceituais e que influenciam não apenas as respostas que os homens encontram
mas até mesmo as próprias perguntas que tendem a fazer. (p. 6) (grifos nossos)
Sobre as relações da Tecnologia com a Ideologia, podemos recorrer a Chrétien (1994), Fourez (1995)
e Dyson (1998), dentre outros.
Chrétien (1994) tratará da ideologia com ênfase na visão marxista, apresentando suas principais ca-
racterísticas e seus possíveis impactos na ciência. O autor apresenta detalhamento o caso de T.D. Lys-
senko (1898-1976) que chama de “símbolo das pretensões e ilusões de uma descontaminação ideoló-
gica da ciência” (p. 137).
Fourez (1995) definirá ideologia como um discurso que se dá a conhecer como uma representação
adequada do mundo, mas que possuem mais um caráter de legitimação do que um caráter descritivo.
Considera-se discurso ideológico aquele que
veicula uma representação do mundo que tem por resultado motivar as pessoas, legitimar
certas práticas e mascarar uma parte dos pontos de vista e critérios utilizados. Dito de outro
modo, quando tiver como efeito mais o reforço da coesão de um grupo do que uma des-
crição do mundo (p. 179)
Dyson (1998), que utilizaremos para aprofundar nossos estudos, tem oportunidade de apresentar os
problemas causados quando as decisões tecnológicas são orientadas rigidamente pela ideologia. Ele
enumera 4 casos clássicos no campo da tecnologia: o do dirigível R 101, o dos jatos Comet construídos
pelo Império Britânico, o do projeto Tokamak de fusão e os Tanques de Gelo de Taylor. Conta o autor
que Nevil Shute Norway53 – antes de se tornar o famoso romancista, fora engenheiro aeronáutico,
tendo trabalhado com igual dedicação em projetos de aviões e de dirigíveis e escreveu uma autobio-
grafia intitulada Slide Rule: Autobiography of an Engineer [Régua de cálculo], em que descreve sua
vida como engenheiro. Orgulhava-se
particularmente de seu papel no projeto do dirigível R 100. Trabalhou nele por seis anos,
desde o momento de sua concepção, em 1924, até a entrega, em 1930; nesse ano, participou
de sua triunfal viagem inaugural, de ida e volta, Londres-Montreal. Sob o ponto de vista
técnico, os dirigíveis apresentavam muitas vantagens sobre os aviões, e o R 100 foi um su-
cesso técnico. Contudo, Norway viu claramente que o destino dos aviões e dirigíveis não
dependeria apenas de fatores técnicos. Mesmo antes que se tornasse escritor profissional,
interessava-se mais pelas pessoas do que por porcas e parafusos. Testemunhou e registrou
53
Conheça mais http://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2829.html e http://en.wikipedia.org/wiki/Nevil_Shute
Dyson (1998) lembra que a o caminho que marca a evolução do dirigível é bastante diferente da his-
tória dos aviões. A história dos dirigíveis foi “dominada por políticos e não por inventores”.
Para explicar esta posição, o autor inicia o estudo do contexto político da época, na década de 20,
que era marcada pela decadência do poder e hegemonia naval construída e mantida nos últimos cem
anos. Os políticos e seus assessores defendiam que, no mundo moderno,
o poder aéreo substituía o poder naval como emblema de grandeza. De modo que eles bus-
cavam o poder aéreo como a onda do futuro, que manteria a Grã-Bretanha no topo do mun-
do. E, nesse contexto, era natural pen¬sar em dirigíveis, e não em aviões, como os veículos
da autoridade imperial. Superficialmente, dirigíveis pareciam-se com navios ¬grandes e
visualmente notáveis. Dirigíveis seriam capazes de voar sem escalas de uma ponta do impé-
rio à outra. Políticos importantes poderiam viajar de domínios remotos a Londres, sem ser
forçados a negligenciar seu público doméstico durante todo um mês. Em contraste, aviões
eram pequenos, barulhentos e feios, totalmente inadequados para uma finalidade tão ele-
vada. Naquela época, eles não conseguiam atravessar rotineiramente oceanos. Não podiam
permanecer no ar por muito tempo e dependiam de bases terrestres por toda parte. Aviões
eram úteis para batalhas locais, mas não para administrar um império global (p. 23-24).
Dentre os políticos que alimentavam esta ideia estava Lord Thompson, Secretário de Estado para a
Aviação nos governos trabalhistas de 1924 e 1929 e seria o incentivador do projeto de construção do
dirigível R10154, na Royal Airship Works, empresa governamental situada em Cardington. Conta-se
que, para acalmar a oposição, a construção de uma segunda nave chamada de R10055 foi oferecida a
uma empresa privada, a Vickers Limited.
Esperava-se com este empreendimento que o R100 e o R101 se tornassem símbolos: “as naus capitâ-
nias do Império Britânico na nova era”. O maior, o R101, deveria voar sem escalas de Londres à Índia
e, mais tarde, talvez até a Austrália. O menor, o R100, projeto mais modesto, deveria realizar serviço
aéreo regular através do Atlântico, ligando a Inglaterra ao Canadá.
ria estar pronto para voar até a Índia numa data fixa de outubro de 1930, quando o próprio
Lord Thompson embarcaria em sua viagem inaugural de ida e volta a Carachi, retomando
a tempo de participar da Conferência Imperial, em Londres. Sua chegada dramática à con-
ferência, a bordo de um dirigível, trazendo flores frescas da Índia, demonstraria a grandeza
da Grã-Bretanha e do Império para um mundo admirado; incidentalmente, demonstraria a
superioridade da indústria socialista e do próprio Lord Thompson. O enorme tamanho e a
data fixada formaram lima combinação fatal. (...) Não havia tempo para submeter o aparel-
ho a vôos de teste exaustivos antes da viagem até a Índia. O dirigível partiu finalmente para
sua viagem inaugural, ensopado e sob terrível mau tempo (...). O dirigível mal tinha empuxo
suficiente para elevá-lo acima de seu mastro de ancoragem. Oito horas depois, caiu e se in-
cendiou numa lavoura no norte da França. Das 54 pessoas a bordo, seis sobreviveram. Lord
Thompson não estava entre elas.
Enquanto isso, com a ajuda de Norway, o R100 era construí¬do de uma forma mais razoável.
Seus compartimentos de gás não vazavam e o aparelho tinha margem de empuxo suficien-
te para levar sua carga projetada. O R100 completou sua viagem inaugural de ida e vol-
ta a Montreal sem desastres, sete semanas antes que o R101 partisse da Inglaterra. Mas
Norway achou que a viagem esteve longe de ser tranqüilizadora. Ele informou que o R100
foi violentamente agitado numa tempestade local sobre o Canadá, tendo tido sorte de não
se despedaçar. Norway não o considerou seguro o suficiente para prestar serviços regula-
res no transporte de passageiros. A questão de saber se o aparelho seria suficientemente
seguro esvaziou-se após o desastre do R101. Depois de tal desastre, seria improvável que
algum passageiro assumisse o ris¬co. O R100 foi discretamente desmantelado e vendido aos
peda¬ços. A era dos di-rigíveis imperiais chegava ao fim (p. 26).
Se, por um lado, o Boeing 707 triunfou frente aos navios de passageiro, ele pode ter provocado um
outro desastroso exemplo de impulso ideológico a tecnologia envolvendo, agora, os jatos de passa-
geiros Comet.
56
Conheça mais http://pt.wikipedia.org/wiki/RMS_Queen_Mary
57
Conheça mais http://pt.wikipedia.org/wiki/RMS_Queen_Elizabeth
58
Conheça mais http://www.portalbrasil.net/boeing_707.htm
Se o objetivo fosse alcançado conforme o planejado, continua Dyson (1998), a Grã-Bretanha teria do-
mínio sobre a “era do jato” cinco anos antes que os norte-americanos. Diz ele que, “enquanto a Boeing
Company hesitava, os Comet estariam voando. Os Comet mostrariam ao mundo a superioridade da
tecnologia britânica e, incidentalmente, demonstrariam que o Império, rebatizado de Comunidade,
continuava vivo” (p. 28). De certa forma, esses desejos e aspirações para o Comet repetiam o que
se esperava dos R 101, vinte anos antes... os decisores da época não aprenderam nada com os erros
anteriores.
O projeto Comet repetiu o problema de antes: ditou politicamente um cronograma para o desenvol-
vimento de uma tecnologia difícil, exigente e sensível. A decisão política levou ao lançamento do
Comet em 1952 obedecendo a ideia de estar 5 anos a frente do concorrente norte-americano. Uma
pessoa anteviu o desastre que se prenunciava. O mesmo Nevil Shute, que havia vivido experiência
semelhante com os dirigíveis R100 e R101, “publicou em 1948 um romance com o título No highway,
que descreve o modo como as pressões políticas podem forçar a entrada em serviço de um avião
inseguro. O romance conta a história de um desastre notavelmente semelhante aos desastres com o
Comet, que aconteceriam quatro anos depois” (p. 28).
O defeito do Comet, uma concentração de tensões nos cantos de suas janelas, que só ocorria apenas
em grande altitude quando o aparelho estava pressurizado, acarretava a rachadura do revestimen-
to metálico causando, literalmente, o esfacelamento do avião. Depois que dois aparelhos foram
destruídos dessa forma, um sobre a Índia e outro sobre a África, os Comet foram tirados de serviço.
“Foi preciso que cem pessoas morressem para dar fim aos vôos do Comet, duas vezes mais do que
no caso dos dirigíveis. Se o secretário de Estado para a Aviação estivesse a bordo do primeiro Co-
met quando de seu desastre, é possível que o segundo não tivesse sido necessário” (Dyson, 1998,
p. 28.).
Diz Dyson (1998), ao questionar como foi possível levar passageiros em dirigíveis e aviões sem que os
testes mínimos fossem realizados, que
isso ocorreu devido ao choque entre duas culturas, a cultura da política e a cultura da en-
genharia. Políticos tomaram decisões cruciais sobre assuntos técnicos que não compreen-
diam. A tarefa de um político em posição de responsabilidade é tomar decisões. Decisões
políticas são freqüentemente tomadas com base em conhecimento inadequado, e geralmen-
te não causam grande dano. Quando políticos são encarregados de um empreendimento de
engenharia, as duas culturas se chocam. Quando o empreendimento envolve máquinas que
voam, esse choque tende a levar ao desastre.
A aviação é o ramo da engenharia menos tolerante a enganos. Mas sob um ponto de vista
mais amplo, a inflexibilidade pode ser uma virtude. Na longa perspectiva da história, as víti-
mas do R 101 e do Comet não morreram em vão. Como legado de suas tragédias, deixaram os
aviões extraordinariamente seguros e confiáveis que voam todos os dias através de oceanos
e continentes por todo o mundo. Sem as duras lições trazidas pelo desastre e pela morte, o
moderno jato de passageiros não teria evoluído.
Um terceiro exemplo dos efeitos da ideologia sobre a tecnologia é apresentado no interessante tra-
balho de Dyson (1998): a da energia nuclear. Comentando o impacto do uso da tecnologia nuclear,
simbolizado por Hiroshima e de Nagasaki, Dyson (1998) nos apresenta um espetacular argumento
para este convívio perigoso da ideologia que precisa fazer funcionar a tecnologia a fim de obter re-
sultados políticos:
Quando se permite a uma tecnologia fracassar quando em concorrência com outras tecno-
logias, o fracasso faz parte do processo normal de evolução darwinista, que leva a melhorias
e a um possível sucesso posterior. Quando não se permite à tecnologia falhar, e ainda assim
ela falha, o fracasso é muito mais danoso. Caso se tivesse permitido que a energia nuclear
fracassasse no início, ela poderia muito bem ter evoluído para uma tecnologia melhor, fa-
zendo com que, hoje, o público confiasse nela e a apoiasse. Nada existe nas leis da Natureza
que nos impeça de construir usinas nucleares melhores. Somos impedidos por uma pro-
funda e justificada desconfiança por parte do público. O público desconfia dos especialistas
porque estes afirmaram ser infalíveis. O público sabe que o ser humano é falível. Somente
pessoas cegas pela ideologia caem na armadilha de acreditar em sua própria infalibilidade
(p. 34).
Comenta o autor que os promotores da fusão estão cometendo os mesmos erros que os da fissão,
trinta anos atrás. Esses promotores decidiram concentrar seus esforços num aparato, o Tokamak que,
por decreto ideológico, é declarado o produtor de energia para o século XXI. O Tokamak
foi inventado na Rússia, e seus inventores lhe deram um nome que se translitera eufonica-
mente em outras línguas. Todos os países com programas sérios de pesquisa sobre fusão
construíram Tokamaks. Um dos maiores e mais caros fica em Princeton.
(...)
Planeja-se que os diversos programas nacionais de fusão convirjam num imenso Tokamak
internacional, a um custo de muitos bilhões de dólares, o qual viria a ser o protótipo dos
geradores de fusão do futuro (p. 35).
O quarto e último exemplo de Dyson (1998) sobre “tecnologia conduzida ideologicamente é a dos tan-
ques de gelo”, cujo principal nome foi Ted Taylor que, na sua juventude, foi projetista de armas nu-
cleares em Los Alamos. Decidiu, após abandonar as atividades nucleares, “devotar o resto de sua vida
ao desenvolvimento de alternativas tecnológicas à energia nuclear. A busca por uma fonte de energia
sustentável e ambientalmente benigna conduziuo aos tanques de gelo” (p. 36), cujo objetivo era
armazenar um grande volume de neve por meio ano, de modo que a neve possa ser produzi-
da no inverno e usada para refrigeração durante o verão. A neve é produzida no inverno
aspergindo-se água numa nuvem fina, com uma mangueira igual às usadas pelos bombeiros.
Desde que a temperatura do ar esteja abaixo de zero, a nuvem cai no solo na forma de neve,
que se acumula no tanque. A pilha de neve é coberta por uma superfície termicamente iso-
lante. O tanque comunica-se com o prédio a ser refrigerado por meio de canos de água. No
verão, água fria é extraída do fundo do tanque e água quente retoma ao topo. Se o tanque é
grande e fundo o suficiente, a neve persiste por todo o verão e o prédio permanece fresco. A
energia necessária para produzir a neve e bombear a água é muito menor do que a energia
requerida na refrigeração elétrica convencional.
Foram construídos pilotos na Universidade de Princeton (usado para refrigerar um prédio pequeno),
na companhia de seguros Prudential (usado para condicionamento de ar a um edifício maior), na
empresa de queijos Kutter (usado para refrigerar sua fábrica) e na pequena cidade de Greenport, em
Long Island (usado para purificar a água do mar). Os tanques fracassaram mas causaram perdas mí-
nimas para a sociedade, escreve Dyson, realçando que a “tecnologia dos tanques de gelo mantém-se
como possibilidade para o futuro. Um dia, talvez, uma reencarnação mais astuta de Taylor encontra-
rá um modo de transformar os tanques de gelo num pacote conveniente e amigável, que materializa-
rá as esperanças de Taylor” (p. 40).
Outro interessante exemplo é apresentado por Sasaki59 (2010) quando compara os aviões japone-
ses e aliados durante a Segunda Grande Guerra. Diz o autor, que é japonês, que o pricipal avião de
combate japonês – os chamados Zeros – eram leves, o que favorecia muitas manobras nas mãos dos
pilotos tecnicamente preparados. Ocorre que, para ser leve, foi retirada a parede de metal protetora
da retaguarda dos pilotos. Ao contrário dos EUA que mantinham a parede protetora sólida, “porque
o respeito à vida humana tinha importância primordial” (p. 122), o que gerou a necessidade de des-
envolver motores mais potentes para os aviões mais pesados.
Olivier Martin (2003), ao estudar a sociologia do conhecimento científico, apresenta a visão de três
autores que trataram do conhecimento científico e o fato deste ser socialmente influenciado: Max
Scheler, Karl Mannheim e Pitirim Sorokin. Interessa-nos agora a proposta de Sorokin.
Pitirim Sorokin60 apresenta três grandes classes de sistemas ideológicos culturais identificados ao
longo da história da humanidade:
As culturas espiritualistas (que concebem a realidade como situada além do mundo, em um
ser imaterial eterno); as culturas sensualistas61 (que concebem que não existe nada além da
experiência sensória/sensível); e as culturas idealistas (uma combinação das anteriores).
[...]
O progresso científico (e técnico) é muito diferente nas três culturas: e função do interesse
dedicado ao mundo exclusivamente sensível, em função da presença ou não de uma hipó-
tese que aceita a existência de um Deus o de um espírito superior, as sociedades procu-
ram desenvolver, ou não, tecnologias e saberes científicos. Sorokin encontra em seu estudo
quantitativo uma confirmação para a sua teoria: ao comparar o número de descobrimentos
científicos em função das classes de cultura de diversas sociedades e momentos históri-
cos, demonstra que as ciências positivas se desenvolveram principalmente nas sociedades
sensualistas (que, por coerência, privilegiam a experiência e a observação). Ao inverso, as
culturas espiritualistas (que privilegiam as noções do bem e do justo) desenvolveram mais
seus sistemas filosóficos e religiosos. (Martin, 2003, p. 22-23)
Usando o exemplo dos tanques de gelo, de Dyson (1998) podemos concluir que
a tecnologia inspirada ideologicamente não precisa levar ao desastre. Só leva ao desastre se
for protegida da concorrência. Uma vez que se garanta que uma tecnologia seja exposta ao
processo darwinista de seleção, não importa que tenha sido motivada pela busca do lu¬cro
ou pela ideologia. O estímulo ideológico pode ser uma força positiva para o bem, caso con-
duza a tecnologias ambientalmente benignas, que possam ser testadas no mercado. Não
lamento os dias felizes que passei com Ted Taylor e seus estudantes, ajudando-o a construir
o tanque de gelo de Princeton. Tivemos mais sorte do que os construtores de dirigíveis e de
usinas nucleares, pois nos foi permitido fracassar (p. 40)
59
Chikara Sasaki é Professor de História e Filosofia da Ciência na Universidade de Tóquio.
60
Sociólogo norte americano de origem russa (1889-1968) escreveu Social and Cultural Dynamics, New York, American Book
Company, 1937
61
sensualismo s. m. Doutrina dos que atribuem aos sentidos a origem de todas as ideias. (opõe-se a idealismo). Diconário Priberan
orientação ideológica – e muito menos elas estão explícitas – nas decisões de Ciência e Tecnologia e,
por conseguinte, nas políticas de C&T e na Política em geral.
A escolha de uma tecnologia não é somente uma escolha de um meio neutro. Quando se escolhe uma
tecnologia, porque ela não é neutra, escolhe-se também um modelo sociedade, de organização entre
os membros desta sociedade, um modelo de produção econômica, uma área de conhecimento a ser
fomentada, uma cadeia produtiva a ser incentivada e outras a serem descontinuadas. Toda escolha
política, mesmo que lastreada na ética e na correção e focada no interesse público efetivo, é fundada
no interesse de grupos ou pessoas. A escolha política não é neutra.
Quando uma sociedade, por meio dos seus representantes políticos, produz uma política de trans-
porte e faz a escolha do meio rodoviário em detrimento aos meios ferroviário e aquaviário está, na
verdade, fazendo opção por uma cadeia produtiva de base econômica (com todos os setores pro-
dutivos ligados a ela de forma direta ou indireta), que privilegia (1) uma área do conhecimentos (e
seus membros), (2) a extração do petróleo como fator diferenciador de crescimento que fortalecerá
econômica e politicamente determinados estados da federação, (3) as indústrias de produção se-
cundária como máquinas pesadas para o setor petrolífero, (4) as cidades que possuem ou possuirão
refinarias e indústrias alimentadas por matérias primas a partir do petróleo, (5) uma segmento de
mercado que manterá seguramente um movimento financeiro de largo porte por décadas, visto que
este tipo de decisão não é revertida com facilidade. Ao fazer uma escolha, deixa de escolher outra,
obviamente. Uma escolha atinge inenarráveis níveis de produção e grupos sociais específicos, de
forma positiva ou negativa.
Da mesma forma, podemos construir a cadeia produtiva atingida positiva ou negativamente quando
se decide substituir os vasilhames de transporte de leite para o consumidor. Antes, essa comercia-
lização para o consumidor era realizada por frasco de vidro, depois decidiu-se pelo saco plástico e,
agora, por embalagens tetrapak. Cada escolha desta privilegia um segmento de mercado, uma região
do país, um conjunto de cidades, um conjunto de cidadãos, um setor tecnológico e científico e possui
um quantum de impostos que novamente beneficiará estados e cidades que estejam na cadeia pro-
dutiva.
A ideologia não é neutra mas direciona as decisões. No Brasil, neste momento, vivemos a hora de de-
cisão tecnológica que terá impactos variados (explícitos e ocultos aos olhos pouco preparados para
as leituras). Temos a decisão sobre a ampliação da energia nuclear na matriz energética brasileira.
Temos a valorização do biocombustível como alternativa para o alto consumo de combustíveis resul-
tantes do petróleo.
Eis nossa chance de estudar as matrizes de consequência destas decisões a serem tomada por nossos
representantes... é a chance de exercitarmos a máxima: Ciência e Tecnologia com Sociedade!
Este módulo desenvolveu as possíveis relações entre Ideologia e Tecnologia. Deixou indicado que
existem outros fatores que interferem na construção da tecnociência como, por exemplo, ética, gê-
nero, grupos sociais, religião etc.
Um interessante tema de estudo em política pública é a “diferenciação de gênero”. Realize uma pes-
quisa e responda se o “fator gênero” tem alguma influência no sistema de Ciência, Tecnologia e So-
ciedade.
Atividade prévia
Responda as questões a seguir. Faça-o por escrito e guarde sua resposta até o final do estudo deste
módulo.
1. “Qual é, na sua opinião, a mais importante invenção dos últimos dois mil anos? ” e
2. “Por quê?
11.1 Introdução
Um homem que possua hoje 100 anos foi testemunha de inúmeras mudanças tecnológicas, mas tam-
bém sociais. Ele presenciou o surgimento e a sequência de mudanças nos sistemas de transportes,
da carroça ao avião supersônico. Ele observou as guerras ditas mundiais e outras tantas de menor
tamanho, mas com impactos não menos danosos e catalogou os poucos anos sem guerra neste sécu-
lo. Viu o surgimento da televisão, do telégrafo, do telefone, do avião comercial, dos antibióticos, do
computador, da internet, dos transplantes e muito mais. Certamente seus pais não poderiam anteci-
par o mundo em que ele estaria ao completar 100 anos de existência numa sociedade em constante
transformação tecnocientífica. No campo social, ele presenciou a revolução soviética e a cubana
bem como a queda da primeira e flexibilização da segunda; foi observador privilegiado quando da
instalação da guerra fria e das recentes glasnost62 (transparência) e perestroika63 (reconstrução) e viu
o surgimento de ditadores e déspotas, de ambos os lados da política; aplaudiu homens e mulheres
valorosos que defendiam direitos sem abrir mão de deveres... este foi um século breve, como escreve
Eric Hobsbawm (1995).
Taylor e Wacker (1999) escreveram um livro com um subtítulo bastante provocativo: o que acontece
depois do que vem a seguir. Esse livro fala da história e direção de futuro a curto e longo prazos. In-
dica qualidades e estruturas mentais que serão valorizadas. Reafirma, como os demais, a existência
da mudança rápida e maciça.
Dentre as muitas antecipações, algumas são comuns: a lógica baseada no caos; a fragmentação das
organizações sociais, políticas e econômicas; o fortalecimento da realidade individual e os estilos
de vida situacionais, dentre outros. Mas chama a atenção para um ponto novo nesse cenário futuro
fundado na informação e na conectividade: a emergência da gestão da privacidade como uma das
atividades de maior crescimento na próxima década.
62
Conheça mais http://pt.wikipedia.org/wiki/Glasnost
63
Conheça mais http://pt.wikipedia.org/wiki/Perestr%C3%B3ica
Em 1960 Em 1995
925 mil americanos tinham 85 anos ou mais... Chegam a 3,8 milhões.
95 milhões de domicílios com 213 milhões de apare-
45,7 milhões de domicílios tinham televisão com apenas um aparelho por domicílio...
lhos.
O computador típico conseguia processar menos de 1,5 MIPS-milhões de instruções
150 MIPS e atende a apenas uma pessoa.
por segundo e atendia a 550 pessoas...
O executivo principal típico viajava 19.320 quilômetros por ano... Viaja 180.320 quilômetros por ano
23 milhões de mulheres trabalhavam por um salário... São 61 milhões.
A pessoa típica tinha um emprego e uma carreira em sua vida profissional... Tem expectativa de sete empregos e duas carreiras.
Uma pessoa típica tinha que aprender uma habilidade por ano para prosperar no
Tem que aprender uma habilidade por dia.
trabalho..
5% mais ricos controlavam 17% da riqueza da nação... Os mesmos 5% controlam 21,5% das riquezas.
O americano típico era de classe média... É pobre ou rico.
A criança típica tinha 1 conjunto de pais e 2 conjuntos de avós... Tem 2,5 conjuntos de pais e 6 conjuntos de avós.
O pai americano típico conversava com seu filho 45 minutos por dia... Conversa apenas 6 minutos por dia.
O setor econômico mais importante dos EUA era a indústria... O setor mais importante são as ideias.
Vejamos, a seguir, alguns eventos tecnocientíficos relevantes (Quadro I) presenciados pelo nosso
centenário observador, bem como os eventos que influenciaram o meio ambiente (Quadro II):
Quadro I
1961 A talidomida é proibida na Europa depois de causar deficiência em mais de 2.500 bebês
1962 Publicação de Primavera Silenciosa, de Rachel Carson
1963 Larry Robert concebe e desenha para o exército americano o ARPAnet, que deu origem à INTERNET.
1967 Primeiro transplante de coração em seres humanos
1968 A Kawasaki implanta robôs em linhas de produção
1969 O Homem pisa na Lua
1970 Khorana e colaboradores conseguem a síntese de gens em laboratório
1971 Primeiro microprocessador Intel
1972 Inicia o funcionamento da primeira TV a cabo (EUA)
1973 Primeiro organismo produzido por engenharia genética
Conferência de Asilomar, sobre os perigos da biogenética
1975
Criação da Microsoft por Bill Gates e Paul Allen
1978 Primeiro bebê de proveta
Primeiro voo espacial do Columbia
1981 IBM inventa o PC
Isolado o vírus da AIDS
1982 Criação dos primeiros ratos transgênicos
1985 Confirmado o “buraco na Camada de Ozônio”, na Antártica.
1986 Catástrofe de Chernobyl (Ucrânia): 20 milhões de afetados e mais de 5 mil mortos até 1994.
1989 Queda do Muro de Berlim
Primeira terapia genética em humanos.
1990
Projeto Genoma Humano.
1991 Surgimento do Disco Laser
1994 Surgimento do CD-Room
Produzida a Ovelha Dolly (clonagem)
1997
O supercomputador Deep Blue derrota pela primeira vez um mestre do xadrez, Kasparov.
(sobre os trabalhos de González García, López Cerezo e Luján López, 1996; Tortajada e Peláez, 1997)
Quadro II
Alguns acontecimentos históricos que influenciaram no meio ambiente
Observada como história, a trajetória da Tecnociência e os efetivos impactos na sociedade é algo mais
simples. Temos condição de melhor avaliar esta relação nos aspectos positivos ou negativos quanto
mais distantes estamos dos acontecimentos. Quanto mais próximos dos fatos e acontecimentos, mais
difícil a isenção para uma análise imparcial. Mesmo assim, a leitura do passado da tecnociência não
traz consensos.
Em 1998, Jonh Brockman, editor da prestigiada agência literária Brockman Inc., enviou um questio-
nário a diversas personalidades dos mais diversos campos do conhecimento onde fazia as seguintes
perguntas: “Qual é a mais importante invenção dos últimos dois mil anos?” e “Por quê?”. As respostas
foram reunidas em um livro e percebe-se que, mesmo observando a história das descobertas e das in-
venções, mesmo tendo oportunidade de refletir sobre o conjunto de consequências, não há consenso
entre os diversos especialistas entrevistados. Cada qual aponta uma invenção e justifica de acordo
com suas convicções. E, os poucos que repetem a opção, justificam de maneira distinta. Vamos ilus-
trar algumas das opções e das justificativas, a fim de refletirmos como as relações CTS podem ser
ricas em observações e análises (Brockman, 2000):
• Freeman Dyson, professor de física do Instituto de Estudos Avançados, em Princeton,
muito citado nos módulos anteriores, diz que é o feno. Diz ele que, antes da existência
do feno, a civilização só podia existir em climas quentes, onde os cavalos podiam pastar
durante o inverno. Quando o feno passou a existir, a partir do momento que o homem
foi capaz de armazená-lo, foi possível expandir suas fronteiras, dando origem a Viena,
Paris, Berlim e depois Moscou e Nova Iorque;
• Douglas Rushkoff, professor de cultura virtual na Universidade de Nova York e reno-
mado escritor, diz que é a borracha de apagar. “Assim como a tecla delete, o fluido de
correção, a emenda constitucional e todos os outros instrumentos que nos permitem
voltar e corrigir nossos erros” (p. 31);
• Steven Rose, neurobiólogo, diretor do Grupo de Pesquisa de Cérebro e Comportamento
na Universidade Aberta em Londres, apresenta uma interessante resposta. Escreve ele
que não precisa de uma página. “A resposta é clara: invenções são conceitos, não apenas
tecnologias. Logo, as mais importantes invenções são os conceitos de democracia e de
justiça social, e a crença na possibilidade de criar uma sociedade livre de opressão de
classe, raça e gênero” (p. 98);
• Stanislas Dehaene, neurocientista cognitivo no Institut National de La Santé et La re-
cherche Médicale, em Orsay, diz que “a mais importante invenção humana não é um
artefato, como a pílula ou o barbeador elétrico. É uma ideia – a ideia mesma que tornou
possível todos esses sucessos técnicos –, e esta é o conceito de educação” (p. 104);
Na curiosa pesquisa de surpreendentes resultados realizada por Brockman (2000), a imprensa, de
Gutemberg, foi bem votada. A pílula anticoncepcional oral, também. Houve a lembrança do estribo
e do arreio do cavalo, do leme, da luz elétrica e outros tantos aparatos tecnológicos. Houve a lem-
brança de conhecimentos importantes como o bem votado cálculo, a geometria, o método científico,
a ciência organizada, dentre outros. Mas, o que nos impressiona é a quantidade de indicações que
certamente não seriam lembrados pela maioria de nós frente a questão apresentada na pergunta: as
estruturas sociais que possibilitam as invenções, o Cristianismo e o Islã, o autogoverno, o livre arbí-
trio, a ideia do inconsciente, para falar de alguns.
Se os conceitos estreitos de Tecnologia e de Ciência já permitiam que apresentássemos um sem nú-
mero de opções a questão levantada, imaginemos a janela de possibilidade que se abre quando am-
pliamos o entendimento de invenção e a tomamos como um conceito. Eis que mais uma vez somos
convidados a reconceitualizar aquilo que aprendemos com a tradição: Uma Tecnologia amparada
pelo aparato físico e palpável e uma Ciência que segue linearmente para frente acima de dúvidas e
questões. Visto desta forma, as interações CTS se enriquecem e se desdobram em um número muito
maior de possibilidades e de questões que nos convidam a mais refletir para melhor participar da
construção social da Ciência e da Tecnologia.
Frente a isso, podemos ampliar um pouco nossa visão sobre a Tecnologia e propor uma abordagem
que permita trazer a visão de sistema às organizações e ações sociais aproximando-se de algo que
podemos chamar de tecnologia social. No dizer de Bazzo, Linsingen e Pereira (2003, p. 44):
De maneira mais precisa, podemos definir tentativamente a tecnologia como uma coleção
de sistemas projetados para realizar alguma função. Fala-se então de tecnologia como siste-
ma e não somente como artefato, para incluir tanto instrumentos materiais como tecnolo-
gias de caráter organizativo (sistemas impositivos, de saúde ou educativos, que podem estar
fundamentados no conhecimento científico).
A educação é um exemplo claro de tecnologia de organização social. Mas também o são o
urbanismo, a arquitetura, as terapias psicológicas, a medicina ou os meios de comunicação.
Nestes casos, a organização social resulta ser um artefato relevante. Portanto, se o desenvol-
vimento tecnológico não pode reduzir-se a uma mera aplicação prática dos conhecimentos
científicos, tampouco a própria tecnologia, nem seus resultados, os artefatos, podem limi-
tar-se ao âmbito dos objetos materiais. Tecnológico não é só o que transforma e constrói
a realidade física, bem como aquilo que transforma e constrói a realidade social. (grifos
nossos)
Nesta mesma direção, Tortajada e Peláez (1997) informam que da mesma maneira que o modelo de
sociedade industrial substituiu a sociedade agrícola, hoje vemos a sociedade industrial perdendo
Quadro III
Realização Tempo
Descoberta Concepção
tecnológica em anos
Fotografia 1782 1836 54
Zíper 1883 1913 30
Celofane 1900 1940 40
Radar 1907 1939 32
Milho híbrido 1908 1933 25
Antibiótico 1910 1940 30
Energia nuclear 1919 1945 26
Apesar das críticas que possam surgir à dependência dos cidadãos aos aparatos tecnológicos, é certo
que muitos deles trouxeram qualidade de vida e conforto aos trabalhadores, sendo responsáveis cer-
tamente pela ampliação da expectativa de vida da população atual. Considerando os ciclos de apare-
cimento desses utensílios úteis para a melhoria da qualidade de vida, Tortajada e Peláez (1997, p. 145)
propõem a seguinte relação entre modelos de sociedade e o surgimento de utensílios nas diferentes
áreas da sociedade, conforme o quadro IV.
Funções e Ponto de partida Primeiro ciclo de Segundo ciclo de Terceiro ciclo de consumo:
serviços Modelo tradicional consumo: sociedade consumo: sociedade sociedade tecnológica
industrial industrial desenvolvida avançada
Fogões e fornos inteligentes que
Fogão de carvão e Fogão em cerâmica e mi- permitem a programação de acor-
Cozinhar Fogão elétrico e a gás
lenha croondas do com os pratos desejados e os
ingredientes
Depósitos e despensas com novas
Consevação Frasqueiras e panelas
Depósito de gelo Frigoríficos elétricos técnicas de conservação de alimen-
de alimentos de barro
tos que não utilizam gases.
Sistemas manuais que Lavadoras com ação por ar, que
Lavadoras manuais e elétri- Lavadoras automáticas
Lavadoras utilizavam tabuas de economiza água e diminui o contato
cas para roupas e para louças
esfregar com detergente.
Informação Sistema de TV, vídeo e áudio inte-
Primeiros rádios. Es- Transistores TV preto e bran- TV colorida Vídeos Com-
e entreteni- grados. Visão em três dimensões e
petáculos ao vivo. co Toca-discos pact-disk
mento realidade virtual
Refrigeração Aquecimento por óleo, es-
Lareiras e bra-seiros. Aquecedor programado e Climatização integral de ambiente
e aquecimen- tufas a gás e ventiladores
Ventiladores manuais aparelho de ar refrigerado se emprego de energia alternativa
to elétricos
Quinta geração de computadores
Informação, Calculadoras elétricas de de grande capacidade e sistemas
Ábacos, tabuas de cál- Primeira geração de com-
cálculo e es- bolso, máquinas de escrever lógicos e sensíveis de funcionamen-
culo etc. putadores pessoais
crita elétricas etc. to. Acesso a grandes redes de in-
formação, comunicação e serviços
Carros com motor elétrico e/ou
Carros de motor à gasolina. Carros à gasolina com
Transporte Públicos e ferroviários outras formas de energia mais ba-
Surgimento dos utilitários maior cilindrada
ratas e não contaminantes
Casas próximas, bai- Grandes urbanizações, cida- Urbanizações modernas Nova arquitetura interior com
Residência rros urbanos tradi- des dormitório; apartamen- com jardins e serviços, mo- maior polivalência de espaços, de
cionais tos etc. radias unifamiliares. acordo com as funções e serviços.
O quadro apresentado ilustra de maneira ampla os impactos dos aparatos tecnológicos no cotidiano
e permite perceber as categorizações propostas pelos autores a fim de, didaticamente, demonstrar
os ciclos a que estamos sujeitos. É apenas uma das possíveis maneiras de realizar esta comparação...
certamente há outras!
Até aqui, estudamos como as repercussões da Ciência e Tecnologia atingiram a Sociedade no passado
e nos esforçamos para sermos analistas isentos (o quanto isso é possível!) para avaliarmos os mesmos
efeitos na sociedade contemporânea.
Para que nossa viagem em torno do tema “Repercussão social do desenvolvimento científico e tecno-
lógico” seja mais completa, falta-nos o exercício de realizar a mesma ação agora voltada para o futuro
e os seus possíveis cenários (Chrispino, 2000 e 2001).
Certamente, poderíamos lançar mão de uma série de autores que são conhecidos pelas suas histórias
de ficção científica quer nos livros, quer no cinema. Desde Julio Verne a Isaac Assimov, de Arthur
Clark a Alvin Toffler, há muito o que discutir, estudar e prospectar. Mas, considerando que o tema
em estudo é o futuro das relações CTS, vamos escolher alguns autores que projetem possibilidades e
abram novos espaços para nossa reflexão, obtidos de Chrispino (2001).
Blur é uma interessante publicação de Davis e Meyer (1999), do Ernst & Young Center for Business
Innovation, traz uma nova maneira de observar as mudanças na economia a partir dos impactos da
tecnociência. Os autores apresentam os princípios da conectividade, da velocidade e da intangibili-
dade e os conceituam assim:
• Velocidade: todos os aspectos que envolvem negócios e a organização ocorrem e mu-
dam em tempo real;
Esses três princípios se propõem a antagonizar os limites da física: massa, tempo e espaço. Dizem
os autores que
A comunicação e a computação quase instantâneas, por exemplo, estão reduzindo o tempo
e nos concentrando no aspecto da Velocidade. A Conectividade está colocando todo mundo
on line de uma forma ou de outra e tem provocado a “morte da distância”, um encolhimento
do espaço. A Intangibilidade de valores de todos os tipos, como serviços e informação, cres-
ce em ritmo vertiginoso, reduzindo a importância da massa tangível. (p. 6)
Oliver (1999) aproveita sua experiência como consultor e membro de conselhos de administração de
grandes empresas para apontar as futuras mudanças no mercado. Numa bem cuidada e rica análise
da história dos negócios e do conhecimento, o autor apresenta três etapas distintas e consecutivas: a
era agrária, a era industrial e a era da informação. Aponta nova era econômica: a era dos biomateriais.
Na sua visão de futuro, além dos sete mandamentos estratégicos e das sete empresas do século XXI,
ele apresenta os sete produtos e tecnologias do século XXI, que são:
• Cartões inteligentes;
• Sensores;
• Knowbots (robôs com conhecimento);
• Redes neurais/lógica fuzzy;
• Materiais inteligentes;
• Biotecnologia e
• Máquinas nano e pico
Quando vamos à escola e aprendemos as regras da linguística ou da linguagem erudita, já sabemos fa-
lar... esse é um aprendizado lastreado na relação social e que se dá ao longo da vida. Da mesma forma
a Ciência e a Tecnologia. Quando somos apresentados aos estudos formais da área tecnocientífica,
na verdade já estamos impregnados de concepções prévias e de conceitos que elaboramos a partir
das relações com o “tecno-mundo” e, no que tange aos aparatos tecnológicos, nós já os possuímos ou
somos possuídos pela vontade de possuí-los. E, em alguns casos, somos possuídos por eles. (Martín
Gordillo e Osorio, 2003)
As interações CTS, e mais especificamente o tema deste módulo, “Repercussão social do desenvolvi-
mento científico e tecnológico”, devem servir como “divisor de águas” para a maneira como reagía-
mos as interações e a maneira como nos deixávamos conduzir pela ideia da Ciência e da Tecnologia
como entes neutros e produtores do Bem e do Bom!
Os acontecimentos atuais nos convidam a reavaliar o que se pensava até recentemente sobre a re-
percussão social do desenvolvimento científico e tecnológico: éramos beneficiários contemplativos
e exploradores da mãe Terra. Hoje, o efeito estufa é um acontecimento real, o degelo da calota polar
caminha para consequências ainda não calculadas mas preocupantes, a emissão de CO2 se mostra um
verdugo que nos atingirá, a frota de automóveis e demais motores à combustão exigem cada vez mais
dos derivados do petróleo, a água é escassa e de desenha como objeto de disputa no futuro, os ciclos
de reaproveitamento dos produtos pela natureza é quebrado quando produzimos os plásticos, os vi-
dros e as ligas, os dejetos industriais e de consumo doméstico se acumulam no colo da mãe natureza.
Esses são efeitos que chamaremos de segunda ordem, que não é propriamente o sistema de interação
entre Ciência, Tecnologia e Sociedade, mas, sim, os efeitos deste sistema em direção à Natureza, que
é um macro sistema. É certo que devemos estudar o quanto a Ciência e a Tecnologia repercutem na
Sociedade. Também é certo que precisamos estudar como a Sociedade controla e acompanha a Ciên-
cia e a Tecnologia. Mas não é menos importante refletir sobre onde depositamos nosso olhar:
1. Exclusivamente no presente esclarecido pelas discussões CTS de resultado imediatos,
a fim de ordenarmos o Princípio da Satisfação ou
2. Postamos o olhar no futuro – uma história a ser construída – que será o resultado dos
efeitos exteriorizados por esta tríade CTS esclarecida e que se pautará no Principio da
Precaução.
Em ambos os casos, trabalharemos pela alfabetização tecnocientífica efetiva que resulta em partici-
pação social esclarecida. A diferença está na intensidade da submissão das relações de causa e efeito
entre os binômios Homem-Natureza e supérfluo-necessário. Na primeira, preparamos o mundo para
nossa velhice, na segunda preparamos o mundo para as gerações futuras.
Não basta agora falar em Ciência e Sociedade ou Tecnologia e Sociedade, mas, sim, Ciência com So-
ciedade e Tecnologia com Sociedade.
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Sobre el autor
Alvaro Chrispino é Doutor em Educação, pela UFRJ-Universidade Federal do Rio de Janeiro, Licen-
ciado em Química e Coordenador do programa de Pós-graduação em Ciência, Tecnologia e Educa-
ção do CEFET/RJ. É Bolsista de Produtividade em Pesquisa/Educação do CNPq e Lider de Grupo de
Pesquisa/CNPq CTS e Educação.
O ocupou diversos cargos públicos no campo da Educação e das Políticas Públicas e possui livros e
artigos em educação, CTS e políticas públicas.
Iniciou seus estudos em CTS quando da realização de seu Mestrado em Educação, na UFRJ, em 1992.
Documento n.° 1
Década de la educación para la sostenibilidad. Temas de acción clave
Amparo Vilches, Óscar Macías y Daniel Gil Pérez
Documento n.° 2
Concepción y tendencias de la educación a distancia en América Latina
Lorenzo García Areito (coord.)
Documento n.° 3
Educación, ciencia, tecnología y sociedad
Mariano Martín Gordillo (coord.)
Documento n.° 4
La nanotecnología en Iberoamérica
Observatorio Iberoamericano de la Ciencia, la Tecnología y la Sociedad
Documento n.° 5
Ciencia, tecnología y sociedad en Iberoamérica: una evaluación de la
comprensión de la naturaleza de ciencia y tecnología
Antoni Bennássar Roig, Ángel Vázquez Alonso, María Antonia Manassero
Mas y Antonio García Carmona (coordinadores)
Introdução aos Enfoques CTS – Ciência, Tecnologia e
Sociedade – na educação e no ensino
Foi elaborada ao longo dos anos nas disciplinas do programa de Pós-graduação em Ciên-
cia, Tecnologia e Educação, especialmente na linha de pesquisa CTS e Ensino, do CEFET/
RJ- Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, no Rio de Janeiro.