1) A língua portuguesa é mais antiga do que o próprio Reino de Portugal, tendo se desenvolvido na região da Galécia Magna séculos antes da fundação do reino.
2) Em vez de 1214, o ano de 1400 marca melhor o surgimento do português moderno com a centralização da corte em Lisboa e o abandono do projeto de anexação da Galiza.
3) Expressões como "a língua portuguesa é a minha pátria" são retóricas e vazias, tendo origem em um contexto
1) A língua portuguesa é mais antiga do que o próprio Reino de Portugal, tendo se desenvolvido na região da Galécia Magna séculos antes da fundação do reino.
2) Em vez de 1214, o ano de 1400 marca melhor o surgimento do português moderno com a centralização da corte em Lisboa e o abandono do projeto de anexação da Galiza.
3) Expressões como "a língua portuguesa é a minha pátria" são retóricas e vazias, tendo origem em um contexto
1) A língua portuguesa é mais antiga do que o próprio Reino de Portugal, tendo se desenvolvido na região da Galécia Magna séculos antes da fundação do reino.
2) Em vez de 1214, o ano de 1400 marca melhor o surgimento do português moderno com a centralização da corte em Lisboa e o abandono do projeto de anexação da Galiza.
3) Expressões como "a língua portuguesa é a minha pátria" são retóricas e vazias, tendo origem em um contexto
1) A língua portuguesa é mais antiga do que o próprio Reino de Portugal, tendo se desenvolvido na região da Galécia Magna séculos antes da fundação do reino.
2) Em vez de 1214, o ano de 1400 marca melhor o surgimento do português moderno com a centralização da corte em Lisboa e o abandono do projeto de anexação da Galiza.
3) Expressões como "a língua portuguesa é a minha pátria" são retóricas e vazias, tendo origem em um contexto
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Originalidades da lngua portuguesa
Fernando Venncio Universidade de Amsterdam
Bruxelas, 15 de Maio de 2014
A lngua portuguesa um sistema dctil, gracioso e inventivo. Nele se exprimiram, e continuam a exprimir, para deleite e proveito universais, muitos homens e mulheres pelo Planeta afora. Na fala e na escrita. bom, uma felicidade, que este idioma exista.
Acerca da lngua portuguesa contaram-se sempre muitas verdades e alguns mitos. Tanto os mitos como as verdades so de interesse, e, mais do que isso, so instrutivos. As verdades porque nos levam a conhecer e entender melhor a realidade, a comear pela realidade nossa volta. Os mitos porque denunciam concepes complexas, quando no singelamente irracionais, mas mesmo assim motivadoras. Todos os idiomas tm os seus mitos. De alguns deles se afirma que foram a lngua do Paraso terrestre. De alguns mais, que nasceram na noite dos tempos, estando entre as lnguas originadas na confuso de Babel. Possivelmente todas a lnguas tm falantes convencidos de que a sua 'a lngua mais difcil de todas'. Vendo bem, trata- se de um elogio em causa prpria. Porque, se a minha lngua a mais difcil de todas, ento eu sou, desculpem l, um fulano superdotado.
Estamos, a, no domnio dos mitos folclricos, inofensivos. Outro mito, tambm ele inofensivo, alm de recentssimo, mas j mais problemtico, aquele que atribui lngua portuguesa a
2 idade de 800 anos. Algum, h poucos meses, se deu conta de que em certo dia do prximo ms de Junho se completam oito exactos sculos do testamento de um rei portugus, Afonso II, no precisamente o primeiro documento exarado em portugus, mas o primeiro 'apresentvel'. Noblesse oblige. A lngua portuguesa teria, assim, nascido em Junho de 1214. engraado como 'relaes pblicas', mas jamais um historiador da lngua portuguesa afirmaria tal coisa. Por dois ou trs motivos.
O primeiro motivo de natureza extralingustica. Um documento escrito um testemunho de um estado de coisas, nada tem de 'fundador'. Mais ainda, um testemunho inteiramente fortuito. Amanh, ou daqui a dez anos, descobre-se um documento, tambm ele 'apresentvel', mas cinquenta anos mais antigo, e l se foi, a posteriori, a grande comemorao.
Mas ele h questes mais decisivas. A primeira que nem 1214 nem cem anos para diante ou para trs indiciam o comeo ou o fim de qualquer fase da lngua portuguesa. Os historiadores mais argutos do nosso idioma concordam, sim, em que volta de 1400 se assiste, no Sul de Portugal, e mais precisamente em Lisboa, a um conjunto de fenmenos que vo mudar a face da lngua. o momento em que toda a aco poltica, legislativa e cultural se vai centrar na capital, na 'corte', como se dizia. Isto implica uma ruptura com o Norte, tambm territorial, ao abandonar-se o velho sonho de anexar a Galiza. Desenvolve-se, ento, uma norma lingustica nova, onde se aglutinam caractersticas dos falares do Centro e do Sul, ao mesmo tempo que comea uma rejeio das marcas nortenhas, quase todas coincidentes com as galegas. Em suma: o ano de 1400 serviria
3 bem melhor como momento simblico do surgimento do portugus.
Existe, contudo, um motivo ainda mais crucial para esquecermos estes '800 anos de lngua portuguesa'. Vejamos. Em 1143, incio do Reino de Portugal, portanto mais cedo que 1214, j este idioma apresentava particularidades de toda a ordem (fonticas, morfolgicas, lexicais, fraseolgicas) que o distinguiam, de modo irredutvel, de toda a restante romanidade, e mais particularmente do vizinho castelhano. Essas particularidades eram to nicas, e envolviam processos elaborativos to complexos e to vastos, que s uma concluso se impe: as feies desse idioma estavam desde h sculos definitivamente marcadas. Por outras palavras: o portugus aquilo que hoje chamamos portugus um produto lingustico mais antigo, bem mais antigo, do que o Reino de Portugal. Ele nasceu e desenvolveu-se num vasto territrio do noroeste peninsular, a Galcia Magna, que (segundo Joseph Piel, o maior estudioso destas matrias) descia obliquamente da costa do Cantbrico at ao vale do Vouga, abarcando, portanto, s uma pequena parte do futuro reino portugus. certo que era uma parte nuclear dele. Mas para todo o resto Trs-os-Montes, grande parte das Beiras, a Estremadura, o Alentejo, o Algarve era um idioma geogrfica e historicamente estrangeiro. Que nome tinha ele, ento? Chamavam-lhe linguagem, uma designao neutra, que significava, simplesmente, 'no latim'. Mas, se a lngua de Afonso Henriques algum nome pudesse ter tido, era s este: galego.
Tudo isto ser a lngua portuguesa sculos mais antiga do que o prprio Portugal , reconheamo-lo, contra-intuitivo, e mesmo
4 inaceitvel para as concepes tradicionalmente reinantes entre ns, para a auto-imagem do cidado portugus, e fere-lhe profundamente o orgulho. Mas esta , tambm, uma tremenda originalidade do portugus: ter sido lngua de comunicao numa comunidade economicamente desenvolvida, como era a da Galcia, e continuar a s-lo, com naturalidade, sem estados dalma, agora tambm no reino que os ricos senhores da Maia e do Porto, na sua empenhada e bem-sucedida conquista de espao econmico, foram estendendo para Sul. Foi esse idioma, agora j chamado portugus, que, nos sculos de Quatrocentos e de Quinhentos, os portugueses levaram pelo mar fora.
Todas as lnguas, porque lnguas de comunidades humanas, tm os seus mitos de origens, quase sempre descoincidentes dos triviais dados da Histria, que so frios, e pouco teis para a retrica. Mas existe um outro tipo de mal-entendidos, j menos inofensivos, e que recomendvel encarar. Vou dar-lhes dois exemplos.
Decerto j lhes aconteceu ouvir esta frase: A lngua portuguesa muito traioeira. Habitualmente serve de comentrio a qualquer dito mais inadequado, ou mais brejeiro, do prprio falante. uma forma de evasiva, apontando essa grande culpada: a lngua portuguesa. Para infelicidade do utente em causa, todas, sim, todas as lnguas so, no sentido pretendido, traioeiras. Todas se prestam a equvocos, a trocadilhos, acidentais ou procurados. As lnguas so construes complexssimas, extremamente inteligentes e, mais fascinante ainda, todas elas o so. Existem comunidades humanas que dispensam, no dia a dia, os nossos refinamentos civilizacionais, habitualmente classificadas como 'primitivas', e que se servem
5 de idiomas de uma expressividade e uma inventividade e portanto de uma capacidade de brejeirice que ultrapassam confortavelmente as do francs, ou do espanhol, ou do portugus.
Existe, contudo, uma afirmao, uma frase, se possvel mais infeliz ainda, e tambm muito corrente. esta: A minha ptria a lngua portuguesa. infeliz, logo de entrada, porque vazia. S teria real significado se algum pretendesse, com ela, dizer isto: 'Renego qualquer outra ptria que no seja a lngua portuguesa'. No creio que algum o diga com sinceridade.
S que as infelicidades no se ficam por aqui. O equvoco seguinte atribuir-se essa frase a Fernando Pessoa. Ora, ela foi da responsabilidade de um dos seus disfarces, o semi- heternimo Bernardo Soares, e acabou arquivada na pasta do que iria ser O Livro do Desassossego. Para cmulo do desastre, essa afirmao figurava num contexto que, julgo eu, nenhum portugus assinaria. Dizia assim:
No tenho sentimento nenhum poltico ou social. Tenho, porm, num sentido, um alto sentimento patritico. Minha ptria a lngua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que no me incomodassem pessoalmente.
Trata-se, pois, de uma afirmao antipatritica, sem mais, e que diz factualmente isto: 'Eu no tenho ptria nem quero t-la'.
No sou o nico, nem serei o ltimo, a lembrar estas circunstncias. Mas o facto que a sonorosa frase surge hoje por
6 toda a parte, com deliciosas variantes como A lngua portuguesa a minha ptria, A lngua portuguesa a nossa ptria, ou a extasiada exclamao Lngua portuguesa, minha ptria!
Estamos no terreno da pura retrica, do gosto de fazer-se ouvir, ou de, simplesmente, deixar-se embalar nas prprias sonoridades. Mas at isso, esse espalhafato, continua a ser incuo se comparado com afirmaes que, essas sim, nunca nos deveriam ser consentidas.
Penso numa pretenso, viva em certos crculos portugueses, a da 'vocao universal' que a lngua portuguesa teria como virtude prpria. Trata-se de uma afirmao disparatada, e at perigosa. Vou dizer porqu. Muito antes de falantes de portugus comearem a pensar assim, j esses termos eram correntes entre idelogos de lngua espanhola. Confrontados com o facto histrico da absoro e do aniquilamento que o castelhano, durante sculos, fez dos idiomas que, a leste e a oeste, o flanqueavam, esses idelogos conceberam uma tese deveras espectacular. Ningum, disseram eles, deveria admirar-se com tal coisa. Porqu? Porque o castelhano carregava em si um germe constitutivo de superioridade, um indomvel instinto de dominao. Sim, insistiam, o castelhano estava, linguisticamente, estruturalmente, construdo para dominar, para submeter. Nunca eles conseguiram mostrar onde se escondiam, concretamente, tal germe ou tal instinto. Os utentes do castelhano e alguns deles escreveram e escrevem autnticas maravilhas mereceriam algum respeito mais. No, no so as lnguas que tm propriedades anmicas. Se o espanhol dizimou
7 os antigos idiomas vizinhos, foi porque os seus falantes eram governados por elites, essas sim, ambiciosas e implacveis.
Esse um problema do espanhol? Sim, um problema do espanhol. Mas no nos enganemos. Existe um nmero suficiente de portugueses dispostos a atrelar-se a essa mensagem castelhana de superioridade. Inacreditvel? Dou-lhes dois exemplos. O primeiro envolve um ministro portugus, o segundo um acadmico lisboeta.
Em Abril de 2006, o ministro portugus das Obras Pblicas visitou Santiago de Compostela, a capital da Galiza, para dar uma conferncia sobre El papel de las infraestructuras en el desarrollo del Noroeste Peninsular. provvel que o ministro se tenha, de facto, expressado em espanhol. Assim fazem habitualmente, em Espanha, os dirigentes portugueses. Segundo o jornal Faro de Vigo, o ministro ter feito, entre outras, as seguintes declaraes: Soy iberista confeso. Tenemos una historia comn, una lengua comn y una cultura comn. Hay unidad histrica y cultural e Iberia es una realidad que persigue tanto el Gobierno espaol como el portugus. Com efeito, pouco tempo antes, o prprio primeiro-ministro afirmara que as suas trs prioridades em poltica externa eram Espanha, Espanha, Espanha.
Um segundo caso, esse mais recente. Em Outubro de 2012, um membro da Academia de Cincias de Lisboa discursou em Ourense, tambm na Galiza, numa sesso solene de certa colectividade acadmica. No final da alocuo, fez esta recomendao aos seus anfitries galegos: No tenham medo do bilinguismo, ou seja, da convivncia pacfica entre duas
8 lnguas que so irms na ascendncia lingustica, que so prximas, e pujantes, no apenas na Pennsula Ibrica, mas tambm na Amrica do Sul e no Mundo. Trabalhando em conjunto, o Portugus e o Espanhol constituiro talvez o maior bloco lingustico do Mundo.
Esta gente perdeu, nitidamente, as estribeiras. Tamanho triunfalismo e tamanha subservincia deveriam envergonhar- nos. Tanto mais que nunca os outros, os espanhis, se pronunciam em tais termos a nosso respeito. Tudo isto deveria pr-nos de sobreaviso. Quando h responsveis portugueses que se tornam, sem uma reserva, sem um rubor, objectivos propagandistas da grandeza espanhola, caso para travarmos entusiasmos, e perguntar-nos se a dominao e o engrandecimento so os parmetros mais recomendveis quando inculcamos o portugus.
O nosso idioma tem, felizmente, outras virtudes, talvez mais modestas, mas essas sim essenciais, que apontam a horizontes mais saudveis, e que verdadeiramente no nos deixam mal no mundo.
Uma grande virtude da lngua portuguesa, e decerto no a menor, o que chamaramos o seu intrnseco cosmopolitismo. Trata-se sobretudo de uma qualidade do nosso lxico, que permitiu, ao longo dos sculos, a justaposio de materiais com diferente gnese e diferente histria. A lngua mostrou sempre a capacidade de gerir essa hibridez, de conviver bem com ela. Vou dar um exemplo simples.
9 Observemos palavras como perfeito, conceito, direito, defeito. So palavras de conformao notoriamente portuguesa. Existem formas afins dessas, como perfeio, conceituado, direitista, defeituoso. Mas todas elas convivem com os vocbulos perfeccionismo e perfectvel, conceptual e conceptualizar, direccionar e directiva, defectivo e indefectvel. Isto , em vez de forar este segundo grupo, de cariz mais 'culto', a conformaes tradicionais, no, integrou-o s com um mnimo de adaptao. E, assim, onde j havia espao e espaoso cabe tambm espacial, onde reinavam vio e vioso pode crescer vicioso.
Este cenrio repete-se centenas de vezes no nosso idioma. O portugus no foi esquisito, no se entregou a manigncias puristas. Melhor, ameaava faz-lo, mas depois esquecia-se, contemporizava. Sem dvida: todos os idiomas tm um maior ou menor grau de hibridez, admitindo solues recentes em coabitao com formas evoludas. So os fatais reflexos da histria, da temporalidade. S que o portugus , nisso, um autntico campeo. Isto revela uma fundamental atitude de convivialidade, de autntico cosmopolitismo, que teve uma traduo social na facilidade com que estabeleceu relaes por esse Mundo fora.
Linguisticamente, isso fez do portugus o que ele : uma lngua policntrica, com uma disperso de normas bem definidas e a promessa de outras mais. mais uma das suas virtudes. Proveio tudo isso de uma opo consciente, ou at ponderada? No creio. Portugal nunca verdadeiramente desenvolveu uma poltica lingustica nos territrios que controlava. Achava a aceitao do portugus por outros povos um dado bvio. E, mesmo quando
10 fez algo parecido a uma poltica lingustica, os resultados escaparam-lhe. O caso do Brasil parece-me ilustrativo.
A norma lingustica brasileira, to marcada como a conhecemos, , paradoxalmente, uma criao portuguesa. Ao impedir a imprensa em territrio brasileiro at incios do sculo XIX, ao no ter fundado no Brasil uma s universidade (quando a Espanha, em finais de Quinhentos, j fundara vrias no continente americano), ao ter permitido e bem o desenvolvimento, durante sculos, de uma chamada 'lngua geral' ao longo da costa do Brasil, Portugal objectivamente estimulou o desenvolvimento de uma norma lingustica brasileira.
Certo: ns podemos ler sem problema de maior a imprensa e a fico brasileiras, e eles podem ler as nossas. Uma percepo 'culta' e tolerante no tropea nas diferenas. Mas, para o consumidor comum, sobretudo o brasileiro, as diferenas so decisivas. O mercado livreiro portugus ainda admite, em certas circunstncias, uma edio brasileira de literatura inglesa, espanhola ou outra. Mas o mundo brasileiro da edio no comercializa nenhuma traduo (literria ou tcnica) europeia. O consumidor brasileiro no est disposto a pagar um livro tcnico, de divulgao, ou de fico, com a nossa sintaxe, o nosso lxico, a nossa semntica, a nossa fraseologia. Ele sente- os como marcas estrangeiras, e, para ele, so-no efectivamente. O Acordo Ortogrfico no veio, nem vir, modificar nada neste cenrio. A euforia inicial dos editores portugueses com o Acordo j se esvaiu, e eles sabem-se hoje enganados, descobrindo por si mesmos aquilo que os linguistas desde h dezenas de anos lhes afianavam: que a questo no era
11 ortogrfica mas essencialmente lingustica, e que s na cabea dos idelogos unitaristas, existia, ou existe, uma 'norma internacional' do portugus.
Insisto: Portugal nunca desenvolveu, menos ainda imps, uma observncia gramatical ou vocabular a que o Brasil deveria submeter-se para ser aceite e respeitado. Ainda que o quisesse e sabiamente no o quis no teria tido xito.
Esse precedente brasileiro deve ser encarado como da maior relevncia para o portugus em frica. Ele oferece todo o espao para que os pases africanos de expresso oficial portuguesa desenvolvam, e mesmo estimulem, normas prprias. No h motivos para recear uma 'desagregao' da lngua portuguesa, como fazem os idelogos unitaristas portugueses, e mesmo alguns brasileiros, saudosos da bela ordem gramatical europeia, ela prpria um produto histrico de doutrinrios do sculo XVIII, que como qualquer norma lingustica nada tem de sagrado, de 'natural', de intrinsecamente correcto, que nos proporciona decerto uma confortvel segurana, mas que menos estvel do que pudera supor-se. Sim, tambm a norma do portugus europeu est, ela prpria, em movimento.
O Brasil avana hoje, pois, na dianteira da defesa de uma norma prpria, a chamada norma urbana culta (surpreendentemente homognea num to imenso territrio), e so os melhores linguistas que sustentam essa dinmica. A lingustica brasileira assume, decididamente, o portugus como lngua pluricntrica. Assim podero fazer, daqui em diante, os sbios de outros pases, acolhendo, gerindo e at estimulando normas prprias, desatendendo as quimeras de um portugus 'ideal', que , se
12 virmos bem, uma fantasmagoria. Atentemos, antes, em mais essa originalidade da lngua portuguesa, uma das suas virtudes tambm, que a de ser descentralizada, e no refm de uma qualquer prepotncia acadmica centralizadora.
Em suma: sobre o conjunto da lngua portuguesa agem, saudavelmente, foras centrfugas, o que vem sendo assinalado at por linguistas portugueses, com destaque para Ivo Castro, da universidade de Lisboa, porventura o mais conceituado de todos, que fala numa pulso separativa do portugus. So foras, essas, que nenhuma medida poderia contrariar, muito simplesmente porque ningum, linguistas includos, saberia que medidas tomar para conservar uniforme o portugus. A realidade lingustica demasiado complexa para se dobrar a aces voluntaristas. Tudo o que podemos, e devemos, tentar gerir essa realidade complexa e em movimento, alertando, sim, para tendncias pontuais que reputemos menos merecedoras de estmulo. Globalmente, porm, as derivas so inelutveis, irreversveis mesmo, e nem um nem dez Acordos Ortogrficos reaproximaro, um centmetro que seja, as normas do portugus j to definidas normas que, mais que ortogrficas, so fonolgicas, gramaticais, lexicais, fraseolgicas. Claro: a nossa linguagem 'culta' ainda muito homognea. Simplesmente, o idioma bem mais do que o conservador jargo dos intelectuais. Vendo bem, o padro portugus europeu acha-se, no Brasil, num processo de reelaborao, tal como, h sculos, no Sul de Portugal, o modelo nortenho e galego foi, ele tambm, reelaborado, para produzir esse mesmo padro portugus europeu.
13 No h, autenticamente, motivos para alarme. Tudo quanto estruturalmente nos distingue, e sempre distinguiu, de qualquer outro idioma est para durar. Nada, no espao da lngua portuguesa, ameaa as sete vogais tnicas, a preferncia pelos ditongos decrescentes, os nossos produtivos e sugestivos sufixos, a extrema condensao das formas (s, n, d, p / vir, voar / cor, dor), o emprego do infinito pessoal e do futuro do conjuntivo, a resposta em eco (Sabes? Sei), mais os muitos vocbulos e so largas centenas de substantivos, de adjectivos, de verbos exclusivos nossos, bastantes deles enxertados no rico latim da velha Galcia.
Nenhuma deriva africana, brasileira ou portuguesa atentar contra esse sistema lingustico criado h mil e quinhentos anos. Ele, esse sistema, est de pedra e cal. essa armao, essa firme arquitectura, que nos mantm, e manter, juntos por muito tempo ainda. Os nossos ps esto em cima de quinze magnficos sculos de idioma.