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Schnaiderman - Quental e Tolstói
Schnaiderman - Quental e Tolstói
Schnaiderman - Quental e Tolstói
Antero
e
Tolsti
Leo
de Quental
BORIS
SCHNAIDERMAN
professor aposentado
da FFLCH-USP, tradutor
e ensasta. autor de,
entre outros, Dostoivski
Prosa e Poesia
(Perspectiva).
Um episdio
das relaes culturais
Rssia/Ocidente
BORIS SCHNAIDERMAN
Agradeo muito o convite que me foi feito para vir aqui
falar a vocs e vou aproveitar a oportunidade para voltar a
um tema que j abordei anteriormente e sobre o qual tenho
agora mais dados a acrescentar, tema este que nos ajuda a
repensar muitos aspectos de nosso mundo. Trata-se do encontro de Leo Tolsti e Antero de Quental e das respectivas
implicaes.
Veja-se bem: no pretendo comparar o incomparvel
(estou repetindo agora o ttulo de um livro do historiador Marcel Detienne, Comparer lIncomparable)1, nem entregar-me
ao jogo vo que Lon Robel apelidou de comparao entre
o pssego e o abric 2. O que me interessa, neste momento,
a reao de Tolsti a textos de Quental e vice-versa.
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lismo e uma preocupao intensa com a
problemtica social, mas, segundo tudo
indica, no chegou a ter verdadeira militncia socialista, como foi o caso de
Antero, que ele considerava o seu mestre.
A atuao poltica de Magalhes Lima se
deu nas fileiras do Partido Republicano
Portugus.
Na dcada de 80, estava desiludido com
as possibilidades de uma revoluo social,
e isso certamente contribuiu para que se
entusiasmasse pela doutrina tolstoiana da
no-resistncia ao mal pela fora. Esse entusiasmo o impeliu a viajar para a Rssia,
sobretudo para ir propriedade rural de
Tolsti em Isnaia Poliana, onde permane-
A sua prosso?
Proprietrio e jornalista.
E deste homem? acrescentou apontando
meu intrprete. meu intrprete.
O que h de melhor, disse severo e duramente, pedir esmola , ser intrprete j
melhor do que ser proprietrio, mas ser
proprietrio o que conheo de pior7.
Tenho pena de que se no tivesse demorado mais na Rssia para nos poder dar mais
algumas impresses daquela nao destinada a exercer inuncia decisiva na futura
civilizao. Que espcie de inuncia? Confesso-lhe que tenho graves apreenses a tal
respeito e que descono bastante de gente
de tanta imaginao. O Tolsti certamente
admirvel como indivduo: mas que signica e que pode dar de si aquela renovao
do Evangelismo? O pensamento da Rssia,
at agora, parece-me perfeitamente catico.
Mas o mundo comea a estar to cansado de
lgica, de cincia, de anlise, que talvez se
deixe levar mais uma vez pelos entusiastas
e visionrios. Creio que isto o que explica o engouement atual pelos russos. Mas,
em suma, ser sempre necessrio voltar
razo e aos seus processos severos. []
verdade que, quando a dita razo, como j
tem sucedido, se mostra inferior sua tarefa,
hesita e abdica, o inconsciente, o instinto,
o sentimento voltam a entrar em cena. Mas
no posso considerar tal fato seno como
um retrocesso. Foi isso o Cristianismo. Pode
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L-se em outra carta de Antero a Magalhes Lima: Quem me dera viver sempre
com doidos como o Conde Tolsti! No
s um santo, tambm um sbio8.
Realmente, pode parecer estranho que
eu s tenha tomado conhecimento desses
materiais graas ao referido estudo de
William B. Edgerton, mas encontro um
libi no mesmo artigo, em que se diz de
Magalhes Lima: Seu papel como um intermedirio entre a literatura russa e Portugal
ainda no devidamente reconhecido em
seu pas e completamente desconhecido no
estrangeiro; seu nome no se encontra em
parte alguma em toda a vasta bibliograa
sobre Tolsti.
verdade que o referido estudo de Edgerton provocou grande celeuma em Portugal, aparecendo ali diversos artigos em que
se frisava a importncia daquela descoberta.
Mas, embora alguns articulistas revelassem
conhecimento de Magalhes Lima, este
no voltaria a ter presena na vida literria.
Pelo menos, quando estive em Lisboa, em
dezembro de 2004, procurei livros seus no
catlogo da Biblioteca Nacional, e no havia nenhum no chrio. Pedi a uma pessoa
amiga que procurasse o seu nome nos sites
de outras bibliotecas universitrias lisboetas, e s havia um livro seu na biblioteca
da Universidade Catlica.
O curioso que a Biblioteca Mrio de
Andrade, de So Paulo, tem vrios livros de
Magalhes Lima, e eu pude consult-los ali,
alm de um livro que recebi de presente de
um amigo que grande freqentador de sebos, o professor Joo Alexandre Barbosa.
Procurei o nome do escritor em vrias
histrias da literatura portuguesa, mas em
vo, embora algumas sejam bastante volumosas. Fui encontrar uma notcia razovel
sobre sua vida e obra na Grande Enciclopdia Portuguesa e Brasileira, publicada
em ns da dcada de 1960.
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Levantei-me cedo como sempre, trabalhei muito, li Quental. bom. Ele diz ter
percebido que, apesar de todas as provas
irrefutveis (do determinismo), no sentido
de que a vida depende das causas externas,
a liberdade existe mas ela existe somente
para o santo. Pelo contrrio, ele (o santo)
se torna o senhor do mundo, porque ele
o seu intrprete supremo. E somente por
seu intermdio que o mundo sabe para que
ele existe. Somente ele realiza a nalidade
do mundo. bom.
Ainda resta muito a esclarecer sobre esse
contato do universo de Tolsti com o de Antero de Quental. Fica-nos, porm, a imagem
da conuncia entre a viso tolstoiana e a do
poeta portugus no perodo imediatamente
anterior a seu suicdio. No importa, pelo
menos em relao a este caso, que ele tenha
se assustado, anteriormente, com a intensidade onrica do mundo russo, numa anteviso
realmente proftica dos caminhos que a humanidade iria seguir. Fica-nos a lembrana
do encontro entre aqueles dois mundos, to
diferentes entre si e, ao mesmo tempo, com
tantos pontos de contato.