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Poirot Investiga
Poirot Investiga
Poirot Investiga
Agatha Christie
OBS.:
As notas de rodap esto marcadas com os sinais "**", seguidos dos nmeros na sequncia.
--ndice
I. A aventura do Estrela do Ocidente . . 5
II. A tragdia de Marsdon Manor . . 31
III. A aventura do apartamento barato . . 47
IV. O mistrio de Hunter's Lodge . . 65
V. O roubo de um milho de dlares em obrigaes do Tesouro . . 81
VI. A aventura da tumba egpcia . . 95
VII. O roubo das jias no Grand Metropolitan . . 113
VIII. O primeiro-ministro seqestrado . . 133
IX. O desaparecimento do sr. Davenheim . . 155
X. A aventura do nobre italiano . . 173
XI. O caso do testamento desaparecido . . 187
XII. A dama de vu . . 199
XIII. A mina perdida. . 215
XIV. A caixa de bombons . 225
-I
A aventura do Estrela do Ocidente
Eu estava parado na janela da sala de Poirot, olhando ociosamente para
a rua l embaixo.
- Mas que coisa estranha! - murmurei de repente.
- O que , mon amz? - perguntou Poirot, placidamente, das
profundezas de sua confortvel poltrona.
- Quero ver a deduo que tira dos fatos, Poirot.
Estou vendo uma jovem, ricamente vestida, com um chapu elegante e uma
pele suntuosa. Est subindo a rua lentamente, olhando para os nmeros
das casas. Ela no sabe, mas est sendo seguida por trs homens e uma
mulher de meiaidade. Um pequeno mensageiro acaba de se juntar ao grupo,
aponta para a jovem, gesticula. Que drama estar ocorrendo l embaixo?
Ser que a jovem uma vigarista e os seguidores so detetives
preparando-se para prend-la? Ou ser que so criminosos, planejando
atacar uma vtima inocente?
O que o grande detetive tem a dizer?
- O grande detetive, mon ami, escolhe como sempre o caminho mais
simples. Ele se levanta para ver pessoalmente o que se passa.
E meu amigo veio postar-se tambm janela. Um instante depois, soltou
uma risadinha divertida.
- Como sempre, mon ami, os seus fatos esto impregnados de um
romantismo incurvel. Aquela Mary Marvell, estrela de cinema. Est
sendo seguida por um bando de admiradores que a reconheceram. E, en
passant, meu caro
Hastings, devo dizer que ela est perfeitamente a par da ocorrncia!
Soltei uma risada.
- Est tudo explicado! Mas no merece aplausos por isso, Poirot.
Foi uma simples questo de reconhecimento.
7
- En vrit!' E quantas vezes j viu Mary Marvell nas telas, mon
cher?
Pensei um pouco.
- Talvez uma dzia de vezes.
- E eu a vi apenas uma vez! Mas, apesar disso, eu a reconheci e
voc, no.
- Mas ela parece to diferente ...
- Ah! Sacr! Estava esperando que ela passeasse pelas ruas de
Londres com um chapu de cowboy ou descala e com cabelos cacheados
como uma garota irlandesa?
S percebe as coisas no essenciais, meu amigo! Lembre-se do caso
daquela danarina, Valerie Saintclair.
Dei de ombros, ligeiramente aborrecido.
- Mas console-se, mon ami. Nem todos podem ser como Hercule
Poirot. Sei disso perfeitamente.
- Nunca vi ningum ter to boa opinio a respeito de si mesmo! exclamei, dividido entre o divertimento e a irritao.
- O que estava querendo? Quando se nico, no se pode ignorar o
fato. E h outros que partilham dessa opinio... inclusive, se no
estou enganado, at a srta.
Mary Marvell.
- Como assim?
- No tenho a menor dvida de que ela est vindo procurar-me.
- E como pode saber disso?
- muito simples. Esta rua no aristocrtica, mon ami. No tem
um mdico ou um dentista em moda... nem mesmo uma chapeleira em moda!
Mas tem um detetive em moda. Oui, meu amigo, verdade... estou em
moda, sou o dernier cri z! Uma pessoa diz a outra: Comment?
8
9
"O grande diamante, que o olho esquerdo do deus, deve voltar para o
lugar de onde veio".
O segundo envelope continha uma mensagem exatamente igual. Mas a
terceira mensagem era mais explcita: "j foi avisada. No obedeceu.
Agora, o diamante lhe ser tomado. Na lua cheia, os dois diamantes,
que so o olho esquerdo e o olho direito do deus, voltaro. Assim est
escrito".
- Encarei a primeira carta como uma brincadeira explicou Mary
Marvell. - Quando recebi a segunda, comecei a me perguntar se seria
mesmo. A terceira chegou ontem. E achei que, no final das contas,
podia ser algo muito mais srio do que eu imaginara a princpio.
- Estou vendo que as cartas no foram despachadas pelo correio.
- Tem razo. Foram entregues pessoalmente ... por um chins. E
justamente isso o que me assusta.
- Por qu?
- Porque Gregory comprou o diamante, h trs anos, de um chins em
San Francisco. -Estou vendo, madame, que acredita que o diamante a
que se referem as mensagens o ...
- Estrela do Ocidente - arrematou Mary Marvell.
- isso mesmo. Gregory recorda que havia alguma histria ligada ao
diamante. Mas o chins no deu qualquer informao. Gregory diz que
ele parecia estar apavorado e com pressa de se livrar logo do diamante.
Pediu apenas um dcimo do valor. Foi o presente de casamento que Greg
me deu.
Poirot assentiu, pensativo.
- A histria parece ser de um romantismo inacreditvel, madame. Mas
... quem sabe? Por gentileza, Hastings, pegue meu pequeno almanaque.
Atendi prontamente.
- Voyons!' - disse Poirot, folheando rapidamente o almanaque. Vamos ver quando a prxima lua cheia ... Ah, aqui est! Ser na
sexta-feira. Ou seja, dentro de trs dias. Eh bien, madame, veio pedir
meu conselho... e vou d-lo. Essa belle histoire pode ser uma
brincadeira... e pode no ser! Portanto, eu a aconselho a colocar o
diamante sob minha guarda at a prxima sexta-feira. Depois,
**1 "Vejamos!" Em francs no original. (N. do E.)
poderemos adotar as medidas que julgarmos necessrias.
Uma ligeira expresso de contrariedade se estampou no rosto da jovem
atriz, que respondeu, constrangida:
- Receio que isso seja impossvel.
- O diamante est com a senhora ... hein?
Poirot observava-a atentamente. A jovem' hesitou por um momento, antes
de enfiar a mo dentro do vestido e retirar uma corrente fina e
comprida. Inclinou-se para a frente, abrindo a mo. Na palma, estava
uma pedra que parecia de fogo, engastada delicadamente em platina,
faiscando solenemente para ns.
Poirot aspirou fundo, com um longo silvo.
- patant! t Permite, madame?
Ele pegou a jia, examinou-a atentamente e depois devolveu-a, com uma
pequena mesura.
- Uma pedra magnfica ... sem a menor falha. Ah, cent tonnerres! z
E a leva com a senhora, comme a!
- Isso no acontece normalmente, M. Poirot. Sou realmente
cuidadosa. O diamante sempre fica trancado em minha caixa de jias, que
guardo no cofre do hotel. Estamos hospedados no Magnificent. S o
trouxe comigo hoje para mostr-lo ao senhor.
- E vai deix-lo comigo, n'est-ce pas? Vai seguir o conselho de
Papa Poirot?
- Deixe-me explicar-lhe, M. Poirot. Na sexta-feira, vamos para
Yardly Chase, onde passaremos alguns dias com
Lorde e Lady Yardly.
As palavras dela despertaram uma recordao vaga em minha mente. Algum
boato ... O que seria? Poucos antes,
Lorde e Lady Yardly haviam visitado os Estados Unidos, e correra o
rumor de que ele andara saindo da linha por l, com a prazerosa
assistncia de algumas jovens amigas. Mas havia algo mais, algum rumor
ligando o nome de Lady
Yardly ao de um astro de cinema da Califrnia... Ora, mas era isso
mesmo! Recordei-me subitamente. O tal artista de cinema no fora outro
seno Gregory B. Rolf.
- Vou revelar-lhe um. pequeno segredo, M. Poirot
- continuou a atriz. - Estamos fazendo um acordo com
Lorde Yardly. possvel que nosso prximo filme seja rodado na
propriedade de seus ancestrais.
**1 "Espantoso!" Em francs no original. (N. do E.)
**2 "Raios!" Em francs no original. (N. do E.)
10 a 11
- Em Yardly Chase? - falei, interessado. - uma das
propriedades mais famosas da Inglaterra!
A srta. Marvell assentiu.
- Acho que de fato uma antiga manso feudal e tudo o mais. Porm,
Lorde Yardly est pedindo um preo muito alto, e ainda no sei se o
negcio ser fechado. Mas
Greg e eu sempre gostamos de misturar negcios com prazer.
- Mas... (peo perdo se estou sendo obtuso, madame) no poderia
visitar Yardly Chase sem levar o diamante?
Uma expresso dura e astuciosa apareceu nos olhos de
Mary Marvell, totalmente em desacordo com a aparncia infantil.
- Quero usar o Estrela do Ocidente em Yardly.
- No h jias famosas na coleo Yardly, entre as quais um imenso
diamante? - indaguei, subitamente.
- H, sim - respondeu a srta. Marvell, laconicamente.
Ouvi Poirot murmurar baixinho:
- Ah, c'est comme a!' - E um instante depois, acrescentou, com a
sua fantstica sorte habitual de acertar sempre na mosca (o que procura
dignificar dando o nome de psicologia): - Quer dizer que j conhecia
Lady Yardly?
Ou era seu marido que a conhecia?
jias.
- No diga bobagem, Gregory! - protestou Mary
Marvell, rispidamente. Mas a verdade que ela corou, com uma
expresso furiosa.
12 a 13
Poirot deu de ombros.
- j lhe dei meu conselho, madame. No posso fazer mais nada. C'est
f ini.
Fez uma mesura e acompanhou os dois at a porta. Ao voltar, exclamou:
- Ah! Histoire de f emmes! O bom marido est querendo fazer o que
certo... tout de mme', ele no teve o menor tato. Absolutamente
nenhum!
Falei-lhe sobre minhas vagas recordaes, e ele assentiu vigorosamente.
- Era o que eu j estava imaginando. Seja como for, h algo de
estranho por trs dessa histria. Com sua permisso, mon ami, vou sair
para respirar um pouco de ar fresco. Peo que me espere. No vou
demorar.
Eu estava meio adormecido na poltrona quando a senhoria bateu na porta
e abriu-a.
- H uma outra dama querendo falar com o sr. Poirot. Eu disse que
ele tinha sado, mas ela falou que vai esperar, j que veio do campo.
- Mande-a entrar, sra. Murchison. Talvez eu possa ajud-la de
alguma forma.
Um momento depois, a mulher entrou na sala. Senti meu corao disparar
ao reconhec-la. O retrato de Lady
Yardly j havia aparecido vezes demais nas colunas sociais dos jornais
para que ela pudesse permanecer no anonimato.
- Sente-se, por gentileza, Lady Yardly - disse eu, puxando uma
cadeira. - Meu amigo Poirot saiu, mas no deve demorar.
Ela agradeceu e sentou-se. Era muito diferente de Mary
Marvell. Uma mulher alta, morena, de olhos faiscantes, rosto plido e
uma expresso orgulhosa e altiva. Mas havia algo ansioso e triste
transparecendo nas curvas de sua boca.
Senti um desejo de me mostrar altura da ocasio.
Por que no? Na presena de Poirot, eu me sentia freqentemente
constrangido, parecia incapaz de demonstrar o que podia fazer. Contudo,
no tenho a menor dvida de que tambm possuo uma grande capacidade de
deduo.
Inclinei-me para a frente, num impulso sbito, e disse:
- Lady Yardly, sei por que veio aqui. Recebeu cartas ameaadoras a
respeito do diamante.
No houve a menor dvida de que eu tinha acertado
**1 "Ainda assim." Em francs no original. (N. do E.)
em cheio. Ela ficou me olhando, boquiaberta, e toda a cor desapareceu
de suas faces.
- j sabe? Mas como?
Sorri.
- Por um processo perfeitamente lgico. Se a srta.
longe demais!
- Mon Dieu! Mas como voc fica furioso por nada, mon ami!
- Estou farto!
E sa, batendo a porta. Poirot me forara a assumir um papel ridculo.
Decidi que ele estava precisando de uma boa lio. Deixaria passar
algum tempo antes de perdo-lo.
Afinal, ele me estimulara a bancar um tolo rematado!
**1 "Boa me, muito feminina!" Em francs no original. (N. do E.)
j
**2 "De jeito nenhum!" Em francs no original. (N. do E.)
28 a 29
II
A tragdia de Marsdon Manor
Eu precisara me ausentar de Londres durante alguns dias. Ao voltar,
encontrei Poirot terminando de arrumar sua pequena valise.
- la bonne beure', Hastings. Receava que no voltasse a tempo de
acompanhar-me.
- Foi chamado para investigar algum caso?
- Exatamente. Mas devo admitir que, aparentemente, no dos mais
promissores. A Companhia de Seguros
Northern Union pediu-me para investigar a morte de um certo sr.
Maltravers, que h poucas semanas fez um seguro de vida no valor de
cinqenta mil libras.
- E o que mais sabe? - indaguei, j bastante interessado.
- claro que a aplice continha a clusula habitual sobre suicdio.
Caso ele se suicidasse no prazo de um ano, o seguro no seria pago. O
sr. Maltravers foi devidamente examinado pelo prprio mdico da
companhia. Embora j tivesse passado do chamado vigor dos anos, o
mdico declarou que gozava de sade excelente. Contudo, na ltima
quarta-feira, ou seja, anteontem, o sr. Maltravers foi encontrado morto
no jardim de sua propriedade, Marsdon Manor, em Essex. A causa da
morte foi descrita como alguma espcie de hemorragia interna. O caso em
si nada teria de extraordinrio, se no tivessem surgido rumores
sinistros sobre a situao financeira do sr. Maltravers. A Northern
LJnion verificou, alm de qualquer dvida, que ele estava beira da
bancarrota. O que muda consideravelmente o caso. Maltravers tinha uma
esposa linda e jovem, e insinuou-se que reunira todo o dinheiro de que
podia dispor a fim de pagar os prmios de um seguro de vida em benefcio
da esposa,
**1 "At que enfim!" Em /rancs no original. (N. do E.)
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suicidando-se em seguida. Tal fato no to raro quanto se possa
imaginar. Seja como for, meu amigo Alfred Wright, que diretor da
Northern Union, pediu-me que eu investigasse o caso. Mas no tenho
- Obrigado.
Poirot ficou calado por um momento e depois disse, gentilmente:
- Com sua permisso, eu gostaria de fazer uma pequena experincia.
J nos contou tudo o que seu consciente sabe, mas eu gostaria agora de
interrogar seu subconsciente.
- Psicanlise? - indagou Black, visivelmente alarmado.
- Claro que no! - respondeu Poirot, procurando tranqiliz-lo. algo muito simples. Eu digo uma palavra, e o senhor me responde com
outra, a primeira que lhe passar pela cabea. E assim por diante.
Podemos comear?
- Est certo - consentiu Black, embora ainda parecesse bastante
apreensivo.
- Anote as palavras, por favor, Hastings - pediu
Poirot. Depois, tirou do bolso o relgio imenso, cujo mostrador tinha
o formato de um nabo, colocando-o na mesa, a seu lado. - Vamos
comear. Dia.
Houve um momento de silncio, e depois Black respondeu:
- Noite.
A medida que Poirot foi falando, as respostas dele foram se tornando
mais rpidas.
- Nome - disse Poirot.
- Lugar.
- Bernard.
- Shaw.
- Tera-feira.
- Jantar.
- Viagem.
- Navio.
- Pas.
- Uganda.
- Histria.
- Lees.
- Espingarda.
- Fazenda.
- Tiro.
- Suicdio.
- Elefantes.
- Presas.
- Dinheiro.
- Advogados.
- Obrigado, capito Black. Poderia dispensar-me alguns minutos de
seu tempo dentro de aproximadamente meia hora?
- Claro!
O jovem militar fitou-o com uma expresso curiosa, enxugando o suor da
testa ao se levantar. Assim que a porta se fechou, Poirot virou-se
para mim, sorrindo, e disse:
- E agora, Hastings, j percebeu tudo, no mesmo?
- No tenho a menor idia do que est querendo insinuar.
- Ser que essa relao de palavras no lhe disse nada?
Examinei a lista meticulosamente, mas acabei sacudindo a cabea em
negativa, desolado.
- Vou ajud-lo, Hastings. Antes de mais nada, quero ressaltar que
ligeiramente.
- No estranho? Ser que... o apartamento malassombrado?
- Nunca ouvi falar de um apartamento mal-assombrado - declarou
Parker, categoricamente.
- Tem razo... - murmurou a sra. Robinson, longe de estar
convencida. - Ms h vrias coisas que me atraram a ateno, coisas
um tanto ... esquisitas.
- Por exemplo? - indaguei.
- Ah, a ateno do nosso criminologista foi despertada! - exclamou
Parker. - Conte-lhe tudo, sra. Robinson. Hastings um grande
decifrador de mistrios.
Soltei uma risada, um tanto embaraado, mas no de todo insatisfeito
com o papel que me era atribudo.
- No chega a ser nada realmente estranho, capito
Hastings, apenas ... esquisito. Fomos procurar os agentes imobilirios
Stosser Paul. No os tnhamos procurado antes porque normalmente
eles s tm apartamentos muito caros, em Mayfair. Mas achamos que no
haveria mal algum em tentar. Eles s tinham apartamentos de
quatrocentas ou quinhentas libras por ano, ou ento com luvas muito
altas.
Quando j amos embora, o homem que nos atendeu informou que tinha um
apartamento de oitenta libras por ano.
Acrescentou que duvidava muito de que nossa ida at l pudesse ser de
algum proveito. O apartamento j estava registrado ali h bastante
tempo, e tinham enviado diversas pessoas para v-lo. Provavelmente j
devia estar ocupado, mas eles no tinham sido avisados. No gostavam de
mandar pessoas l, pois as pessoas costumam irritar-se ao visitar um
apartamento j alugado.
A sra. Robinson teve que fazer uma pausa para recuperar o flego,
antes de continuar:
- Agradecemos e declaramos que compreendamos perfeitamente que o
apartamento talvez j estivesse alugado. Mesmo assim, no custava nada
ir at l para verificar. O homem nos deu uma autorizao, e seguimos
de txi para o .apartamento. Afinal, pensamos, no custava nada tentar.
O apartamento nmero 4 ficava no segundo andar. Estvamos esperando o
elevador quando Elsie Ferguson ( uma amiga minha, capito Hastings,
que tambm est procurando apartamento) desceu a escada e disse, ao me
ver: "Para variar, cheguei na sua frente, minha cara. Mas nem adianta
subir. J est alugado". Aquilo parecia encerrar o caso. Mas, como
disse John, o apartamento estava muito barato, podamos pagar um pouco
mais. Quem sabe, se oferecssemos luvas ... Sei que isso uma coisa
horrvel e sinto-me envergonhada por contar, mas sabe como difcil
encontrar-se um bom apartamento e o que se precisa fazer para
consegui-lo.
Assegurei-lhe que sabia perfeitamente que, na luta em busca de moradia,
o lado inferior da natureza humana freqentemente triunfava sobre o
superior, e que a lei to conhecida do lobo que devora a ovelha sempre
prevalecia.
- Subimos para ver o apartamento. E descobrimos que no estava
alugado. Uma criada nos mostrou todos os cmodos, e depois falamos com
a patroa dela. Ficou tudo acertado. Ocuparamos o apartamento
imediatamente, pagando cinqenta libras pelos mveis. Assinamos o
Poirot.
- Impossvel! - gritei. - Deve estar cometendo um engano!
- Seis meses.
- Tem certeza? A mulher a que estou me referindo alta, de cabelos
avermelhados.
- E ela mesma - interrompeu-me o porteiro. Vieram de Michaelmas.
H apenas seis meses.
Ele pareceu perder o interesse por ns e retirou-se lentamente para o
saguo do prdio. Afastei-me com Poirot.
- Eh bien, Hastings? - indagou meu amigo, maliciosamente. Ainda
est convencido de que as mulheres deslumbrantes sempre dizem a verdade?
No respondi.
Poirot j havia se encaminhado para a Brompton Road antes que eu
tivesse tempo de lhe perguntar o que ia fazer e para onde estvamos
indo.
- Vamos procurar a imobiliria do prdio, Hastings.
Tenho o maior desejo de ter um apartamento em Montagu.
Se no estou enganado, muitas coisas interessantes vo acontecer por
l, antes que se passe muito tempo.
Tivemos sorte em nossa busca. O apartamento 8, no
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quarto andar, estava para alugar, mobiliado, a dez g:hinus pOr semana.
Poirot prontamente o alugou por um ms, Ao sairmos para a rua, ele
tratou de silenciar meus protestos:
- Mas estou ganhando dinheiro suficiente agora,
I-lastings! Por que no poderia satisfazer um pequeno caprieRa? Por
falar nisso, /vOfl a/vi, por acaso tem um revlver?
- Tenho, sim... em algum lugar, no me lembro direito onde o
deixei... - respondi prontamente, um pouco excitado. - Acha que...
- Que ir precisar us-lo? bem possvel. Estou vendo que a idia
lhe agrada. Ah, o espetacular e o romntico o atraem invariavelmente!
No dia seguinte, fomos nos instalar em nossos aposentos temporrios. O
apartamento era agradavelmente mobiliado. Ocupava a mesma posio no
prdio que o apartamento dos Robinsons, s que dois andares acima.
O dia seguinte ao da nossa mudana foi um domingo.
De tarde, Poirot deixou a porta da frente entreaberta e # chamou-me
apressadamente assim que soou a batida de uma porta em algum lugar l
embaixo.
- D uma olhada por cima da balaustrada, Hastings.
So os seus amigos? Torne cuidado para que no o vejam.
Estiquei a cabea e sussurrei:
- So eles mesmos.
- timo! Vamos esperar um pouco.
Cerca de meia hora depois, uma jovem saiu do apartamenro, em roupas
vistosas. Com um suspiro de satisfao,
Poiror voltou para o nosso apartamento na ponta dos ps.
- C'est a. Depois que os patres saem, a vez da empregada. O
apartamento deve estar vazio agora.
- E o que vamos fazer? - indaguei, apreensivo.
Poirot fora at a copa e estava puxando a corda do elevador de carvo.
E explicou, jovialmente:
- Vamos descer pelo mesmo caminho do lixo. Ningum nos ir
observar. O concerto de domingo, o "passeio" de domingo e, finalmente,
o cochilo de domingo, depois do tradicional almoo de domingo ingls...
lo rosbif... tudo isso ir impedir que algum repare nas aes de
Hercule
Poirot. Vamos, meu amigo.
Ele entrou na pequena plataforma de madeira e eu o
Segui, cautelosamente.
- Vamos arrombar o apartamento? - indaguei, desconfiado.
A resposta de Poirot no foi nada tranquilizante:
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- Hoje no.
Puxando a corda, descemos lentamente at o segundo andar. Poirot
soltou uma exclamao de satisfao ao verificar que a porta de madeira
da copa estava aberta.
- Est vendo, I-lastings? Ningum se lembra de trancar essas
portas durante o dia. E, no entanto, qualquer um pode subir ou descer,
como fizemos. De noite costumam trancar, embora nem sempre. Mas vamos
tomar as providncias necessrias para evitar que isso acontea.
Ele tirou algumas ferramentas do bolso, enquanto falava, e comeou a
trabalhar imediatamente, com extrema habilidade. Seu objetivo era dar
um jeito no ferrolho, de maneira a que pudesse ser aberto do elevador.
Toda a operao durou apenas trs minutos. Depois, Poirot guardou as
ferramentas no bolso, e subimos de volta a nossos domnios.
Poirot passou toda a segunda-feira fora. Ao voltar, no fim da tarde,
afundou-se numa poltrona com um suspiro de sausf ao.
- Gostaria de ouvir uma pequena histria, Hastings? lima histria
do tipo que aprecia e que o far recordar-se de um dos seus filmes
prediletos?
- Pode contar respondi, rindo. Presumo que seja uma histria
verdadeira e n~o apenas mais um dos seus esforos de imagina3o.
- A histria verdica. O inspetor Japp, da Scotland
Yard, pode confirm-la, j que foi atravs de seus bons ofcios que
dela tomei conhecimento. E agora, Hastings, vamos histria. H
pouco mais de seis meses, alguns planos navais de grande importncia
foram roubados de uma repartio do governo americano. Mostravam as
posies de algumas defesas costeiras essenciais e valeriam uma soma
considervel para qualquer potncia estrangeira.. como o Japo, por
exemplo. As suspeitas recaram num jovem chamado
Lui Valdarno, italiano de nascimento, funcionlijo subalterna do
departamento de onde sumiram os documentos.
Ele desapareceu na mesma ocasio. Quer fosse ele ou no o ladro dos
documentos, o fato que dois dias depois encontraram o corpo de Luigi
Valdarno no East Side, em Nova
Ycrk, morto com um tiro. Os documentos no estavam em seu poder.
Algum tempo antes, Luigi Valdarno vinha saindo com uma jovem cantora,
Elsa Hardt, que apare# cera recentemente e morava com um irmo num
apartamento em Washington. Nada se sabia a respeito do passado
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de Elsa Hardt, que desapareceu subitamente, na mesma ocasio da morte
de Valdarno. H razes para se acreditar que ela era na realidade uma
consumada espi internacional, que j realizara diversas misses
infames, sob vrios pseudnimos. Ao mesmo tempo em que se empenhava em
localiz-la, o servio secreto americano tambm vigiava alguns
cavalheiros japoneses, aparentemente sem a menor importncia, que viviam
em Washington. Eles tinham certeza de que Elsa Hardt, assim que
despistasse seus perseguidores, iria procurar os referidos cavalheiros.
H quinze dias, um deles partiu subitamente para a Inglaterra.
Assim, ao que tudo indica, Elsa Hardt encontra-se neste momento aqui
na Inglaterra. - Poirot fez uma pausa e depois acrescentou,
suavemente: A descrio oficial de Elsa Hardt a seguinte: um metro
e setenta de altura, olhos azuis, cabelos castanho-avermelhados, pele
alva, nariz reto, sem quaisquer marcas caractersticas.
- E a sra. Robinson!
- possvel que seja - corrigiu-me Poirot. - E eu soube tambm
que um homem moreno, um estrangeiro, andou fazendo perguntas esta manh
a respeito dos moradores do apartamento 4. Portanto, mon ami, receio
que ter que renunciar a seu sono esta noite e me acompanhar numa
viglia no apartamento l de baixo.., armado com aquele seu bom
revlver, bien entendul
Mas claro! - gritei, entusiasmado. - Quando comearemos?
- Meia-noite uma hora ao mesmo tempo solene e apropriada. No
provNe que ocorra alguma coisa antes disso.
Precisamente meia-noite, descemos no elevador de carvo at o segundo
andar. Poirot abriu rapidamente a porta de madeira e entramos no
apartamento. Passamos para a cozinha, onde nos acomodamos
confortavelmente em duas cadeiras, deixando a porta para o vestbulo
entreaberta.
E agora s nos resta esperar disse Poirot, visivelmente satisfeito,
fechando os olhos.
Para mim, a espera pareceu interminvel, pois fiquei apavorado com a
possibilidade de acabar dormindo. Quando me parecia que j estava ali
h mais de oito horas, embora se tivesse passado apenas uma hora e vinte
minutos, conforme verifiquei mais tarde, ouvi um barulho muito fraco. A
mo de Poirot tocou na minha. Levantei-me e, juntos, nos encaminhamos
para o vestbulo. Era de l que vinha o barulho.
57
Poirot quase encostou os lbios em meu ouvido e sussurrou:
- Do lado de fora da porta da frente. Esto arrombando a fechadura.
Quando eu der um aviso, no antes, caia em cima dele por trs e
segure-o depressa. Tome cuidado, pois ele estar armado de faca.
Dali a pouco, ouvimos um rudo mais forte. Um pequeno crculo de luz
surgiu atravs da porta. Extinguiu-se imediatamente, e a porta foi
aberta devagar. Poirot e eu ficamos colados contra a parede. Ouvi a
respirao do homem quando ele passou por trs de ns, tornando a
acender a lanterna. E foi nesse momento que Poirot sussurrou ao meu
ouvido:
- Allex!
Avanamos juntos. Com um movimento rpido, Poirot envolveu a cabea
do intruso com um cachecol de l, enquanto eu lhe imobilizava os braos.
Toda a ao foi rpida e silenciosa. Arranquei uma faca da mo dele,
enquanto
Poirot lhe baixava o cachecol dos olhos para a boca. Saquei o revlver
e brandi-o diante do rosto do homem, para que ele compreendesse que
qualquer tentativa de resistncia era absolutamente intil. Quando o
homem finalmente cessou de se debater, Poirot aproximou os lbios de
seu ouvido e comeou a sussurrar rapidamente. Um minuto depois, o homem
assentiu. Depois, pedindo silncio com um gesto da mo, Poirot saiu do
apartamento e desceu a escada. Fomos atrs dele. Eu ia por ltimo,
empunhando o revlver. Ao chegarmos rua, Poirot virou-se para mim:
- H um txi esperando logo depois da esquina. Pode dar-me o
revlver, Hastings. No vamos mais precisar dele.
- E se o sujeito tentar escapar?
Poirot sorriu.
- Ele no tentar.
Voltei logo depois, com o txi. Poirot tirara o cachecol do rosto do
estrangeiro, e deixei escapar uma exclamao de surpresa ao v-lo. E
sussurrei para Poirot:
- - Mas ele no japons!
- A observao sempre foi o seu ponto forte, Hastings. Nada lhe
escapa. Tem razo, o homem no japons.
Ele italiano.
Entramos no txi, e Poirot deu ao motorista um endereo em St.
John's Wood. Aquela altura, eu estava totalmente aturdido. No
queria perguntar a Poirot para onde estvamos indo na presena do
prisioneiro e esforcei-me em vo em tentar esclarecer por mim mesmo o
que acontecera.
Saltamos diante de uma casa pequena e bastante recuada. Algum
retardatrio; ligeiramente embriagado, estava cambaleando pela calada e
quase esbarrou em Poirot, que lhe disse algo rispidamente. No
consegui ouvir direito. Subimos os degraus da casa. Poirot tocou a
sineta e fez sinal para que ficssemos esperando de lado. Ningum
atendeu.
Ele tocou novamente e depois bateu com a aldraba por alguns minutos,
vigorosamente.
Uma luz apareceu na bandeira da porta, que foi cautelosamente
entreaberta.
- Que diabo est querendo a esta hora? - perguntou uma voz de
homem, rispidamente.
- Quero falar com o mdico. Minha esposa est muito doente.
- No h nenhum mdico aqui!
O homem j ia fechar a porta, mas Poirot rapidamente enfiou o p na
abertura. E tornou-se, subitamente, a caricatura perfeita de um francs
enfurecido.
- Como no h mdico? Vou chamar a polcia! Tem que vir comigo!
Vou ficar aqui e tocar e bater a noite inteira ...
- Meu caro senhor...
A porta foi novamente aberta. O homem estava de chambre e de chinelas.
Adiantou-se, para apaziguar Poirot, lanando um olhar apreensivo ao
redor.
- Vou chamar a polcia!
Poirot fez meno de descer os degraus.
- No! No faa isso, pelo amor de Deus!
O homem saiu atrs dele. Com um empurro sbito,
Poirot f-lo descer os degraus, cambaleando. Um instante depois, ns
trs estvamos dentro da casa, fechando a porta e passando a tranca.
- Depressa ... vamos entrar ali! - Poirot seguiu na frente, para a
sala mais prxima, acendendo a luz na passagem. - E voc... fique
atrs da cortina!
- Si, signore - disse o italiano, indo rapidamente esconder-se
atrs da cortina de veludo rosa que cobria a janela.
E foi bem a tempo. No momento exato em que ele desaparecia, uma mulher
entrou correndo na sala. Era alta, de cabelos avermelhados, e um
quimono vermelho lhe envolvia o corpo esguio.
58 a 59
- Onde est meu marido? - gritou ela, com uma expresso assustada.
- Quem so vocs?
Poirot deu um passo frente, seguido por um gesto corts.
- de se esperar que seu marido no v apanhar um resfriado. Pude
observar que ele calava chinelas e que seu roupo era bem grosso.
- Quem voc? O que est fazendo em minha casa?
- verdade que nenhum de ns teve o prazer de conhec-la
pessoalmente at agora, madame. E isso ainda mais lamentvel porque
um dos nossos veio especialmente de Nova York para encontr-la.
A cortina se abriu, e o italiano avanou. Para minha surpresa e
consternao, vi que ele estava brandindo meu revlver, que Poirot,
inadvertidamente, devia ter deixado no assento do txi.
A mulher soltou um grito desesperado e virou-se para fugir. Mas
Poirot estava parado diante da porta fechada.
- Deixe-me sair! - gritou a mulher. - Ele vai me matar!
- Quem foi que matou Luigi Valdarno? - indagou o italiano, com
voz spera. Ele brandia o revlver ameaadoramente, apontando
alternadamente para os trs. No nos atrevamos a fazer nenhum
movimento.
- Santo Deus, Porot! - gritei. - Isso terrvel!
O que vamos fazer agora?
- Voc me faria um favor se se abstivesse de falar,
Hastings. Posso assegurar-lhe que nosso amigo no ir atirar, a menos
que eu lhe diga para faz-lo.
- Tem certeza disso? - perguntou o italiano, com um olhar que me
provocou um calafrio.
A mulher virou-se bruscamente para Poirot.
- O que est querendo?
Poirot fez uma mesura.
- No creio que seja necessrio insultar a inteligncia de Elsa
Hardt dizendo-lhe isso explicitamente.
Com um movimento rpido, a mulher pegou um gato preto de veludo que
servia como cobertura para o telefone.
- Esto costurados no forro deste gato!
- No final das contas, bem possvel que eu no morra desta vez declarou Poirot.
Recebi esse comentrio, impregnado de um otimismo benfico, de um
convalescente de uma forte gripe. Eu fora o primeiro a pegar a gripe, e
Poirot a contrara logo depois.
Ele agora estava sentado na cama, apoiado em travesseiros, com a cabea
envolta por um xale de l, tomando lentamente uma tisane particularmente
insalubre, que eu preparara de acordo com suas instrues meticulosas.
Contemplou, com evidente satisfao, a fileira de vidros de remdio
impecavelmente arrumados sobre a cornija da lareira.
- isso mesmo - continuou meu pequeno amigo.
- Mais uma vez, voltarei a ser eu mesmo, o grande Hercule
Poirot, o terror dos malfeitores! Imagine s, mon ami, que h uma
pequena nota a meu respeito no Society Gossip.
Isso mesmo! E aqui est! "Depressa, criminosos, podem sair s ruas!
Hercule Poirot (e acreditem, meninas, ele de fato um Hrcules! ),
nosso detetive predileto da sociedade, no est em condies de
agarr-los! E querem saber por qu? Ora, porque ele prprio foi
agarrado ... por la gripe!"
No pude deixar de soltar uma risada.
- Isso timo para voc, Poirot. Est se tornando uma personagem
pblica. E, felizmente, no perdeu nenhum caso interessante durante
esse perodo.
- Tem toda a razo. Os poucos casos que fui obrigado a recusar no
me causam o menor arrependimento.
Nesse momento, nossa senhoria enfiou a cabea pela porta entreaberta e
disse:
- H um cavalheiro l embaixo que deseja falar com
M. Poirot ou com o capito Hastings. Como ele estava muito
67
nervoso (mas nem por isso deixou de se comportar como um cavalheiro),
resolvi trazer seu carto.
Ela me entregou o carto, e eu o li em voz alta:
- Sr. Roger Havering.
Poirot sacudiu a cabea na direo da estante, e obedientemente fui
pegar o Quem Quem. Poirot folheou-o rapidamente.
- Segundo filho do quinto baro Windsor. Casado em 1913 com Zoe,
quarta filha de William Crabb.
- Hum... - murmurei. - Imagino que seja a jovem que se
apresentava no Frivolity com o nome de Zoe
Carrisbrook. Lembro-me de que ela se casou pouco antes da guerra.
- No gostaria de descer e ouvir o problema do nosso visitante,
Hastings? Apresente-lhe minhas desculpas por no poder receb-lo
pessoalmente.
Roger Havering era um homem com cerca de quarenta anos, aprumado e
vestido com elegncia. Mas sua expresso era angustiada, indicando
intenso nervosismo.
- Capito Hastings? Pelo que me disseram, o s- cio de M.
Poirot, no? ir indispensvel que ele me acompanhe hoje mesmo at
Derbyshire.
72 a 73
o mesmo acontecia com o outro. curioso o que as pessoas tolas costumam
fazer. Como se pode deixar dois revlveres carregados na parede?
Ao sairmos da cmara morturia, perguntei a Japp:
- O que acha do caso?
- Meu primeiro suspeito foi Havering. - Japp fez uma breve pausa.
Notando minha expresso de espanto, logo acrescentou: - Isso mesmo!
Havering tem alguns incidentes escusos em seu passado. Quando estava
em Oxford, houve um caso meio confuso. Parece que ele assinou um
cheque do prprio pai. claro que o caso foi abafado. E no podemos
esquecer que, no momento, ele est bastante endividado. Diga-se de
passagem, so dvidas que o tio provavelmente no ia gostar de saldar.
Ao mesmo tempo, sabemos que o testamento do tio a favor dele. Por
tudo isso, suspeitei dele e quis falar-lhe antes que se encontrasse com
a esposa. Mas a histria que me contou se ajusta perfeitamente ao que
eu j sabia. Estive na estao, e parece no haver a menor dvida de
que ele realmente embarcou no trem das seis e quinze. Assim, deve ter
chegado a Londres por volta das dez e meia da noite. Ele disse que foi
diretamente para o seu clube. Se isso for confirmado, no haveria a
menor possibilidade de ele estar aqui s nove horas, para, disfarado
com uma barba preta, matar o tio.
- Eu estava mesmo querendo falar a respeito disso.
O que acha dessa barba preta?
Japp piscou-me o olho.
- Acho que cresceu muito depressa ... nos oito quilmetros entre
Elmer's Dale e Hunter's Lodge. Quase todos os americanos que tenho
conhecido costumam raspar o rosto.
isso mesmo, acho que teremos de procurar o assassino entre os
americanos ligados ao sr. Pace. Interroguei a governanta primeiro e
depois a sra. Havering. Os depoimentos das duas se coadunam. S
lamento que a sra. Havering no tenha visto o homem. uma mulher
inteligente, e poderia ter percebido alguma coisa que nos desse uma
pista.
Escrevi um relato longo e meticuloso para Poirot. E pude acrescentar
mais algumas informaes adicionais, antes de despachar a carta.
A bala foi extrada, e verificou-se que havia sido disparada por um
revlver idntico ao que a polcia apreendera em Hunter's Lodge. Alm
disso, os movimentos do sr.
Havering na noite do crime foram devidamente verificados e confirmados.
No havia a menor dvida de que ele chegara a Londres no trem que
passara por Elmer's Dale s seis e quinze. E havia ocorrido ainda
outro fato sensacional. Naquela manh, um homem que vivia em Ealing,
Londres, ao atravessar Haven Green para chegar estao
ferroviria, avistara um embrulho de papel pardo cado entre os trilhos.
Ao abri-lo, descobriu que continha um revlver.
Entregou-o delegacia de polcia do lugar. Antes que a noite casse,
j estava constatado que se tratava do revlver que estvamos
procurando, idntico ao que a sra. Havering entregara polcia. Uma
bala fora disparada.
Acrescentei tudo isso ao meu relatrio. Na manh segunte, na hora do
Havering, Hastings.
- Mas isso impossvel! A governanta estava junto dela, quando o
crime foi cometido!
- Ah, sim, a governanta ... Mas ela desapareceu, no mesmo?
- Tenho certeza de que acabar sendo encontrada, mais cedo ou mais
tarde.
- No creio. No acha que h algo bastante misterioso nessa
governanta, Hastings? Percebi isso imediatamente.
- Imagino que ela tivesse um papel a desempenhar, tendo escapado em
seguida, no momento preciso.
- E qual foi o papel dela?
- Presumivelmente, abrir a porta para seu cmplice, o homem de barba
preta.
- Oh, no, no foi esse o papel mais importante dela.
Foi justamente o que voc acabou de mencionar. Ou seja, proporcionar
um libi para a sra. Havering no momento em que o tiro foi disparado.
E ningum jamais a encontrar, mon ami, simplesmente porque ela no
existe! "No h tal pessoa", como disse o seu grande Shakespeare.
- Foi Dickens quem escreveu isso - murmurei, incapaz de reter um
sorriso. - Mas o que est querendo insinuar, Poirot?
- Zoe Havering era uma atriz antes de se casar. Voc e Japp viram
a governanta apenas num vestbulo mal-iluminado, uma mulher
aparentemente de meia-idade, vestida de preto, de voz contida. Nenhum
dos dois, nem mesmo a polcia local, viu a sra. Middleton e a patroa
juntas, em nenhuma ocasio. Foi uma brincadeira de criana para aquela
mulher esperta e audaciosa. Sob o pretexto de chamar a patroa, ela
subiu correndo a escada, vestiu uma blusa berrante e ps um chapu de
couro, prendendo cachos pretos sobre os cabelos grisalhos com que se
disfarara. Removeu rapidamente a maquilagem, passou um pouco de ruge
no rosto. E, em poucos minutos, quem desceu a escada foi a esfuziante
Zoe Havering, com sua voz vibrante. Ningum se preocupou em examinar
mais atentamente a governanta.
Por que algum haveria de fazer isso? No existia coisa alguma a
lig-la ao crime. Alm do mais, ela tambm tinha um libi.
- E o que me diz do revlver que foi encontrado em
Ealing? A sra. Havering no poderia t-lo levado at l.
- Tem razo. Foi Roger Havering quem deixou o revlver l. Mas
isso foi um erro da parte deles. Foi o que me levou pista certa. Um
homem que cometesse um assassinato com um revlver encontrado no local
do crime certamente o jogaria fora imediatamente, no o levaria at
Londres. O motivo para isso era evidente: os criminosos desejavam
desviar a ateno da polcia para longe de Derbyshire. Queriam afastar
a polcia das vizinhanas o mais depressa possvel. claro que o
revlver encontrado em
Ealing no foi aquele com que o sr. Pace foi morto. Roger
Haverng deu um tiro com esse revlver e levou-o para
Londres. Foi direto para o seu clube, a fim de estabelecer o libi,
saiu em seguida para Ealing, uma viagem de menos de vinte minutos,
deixando ali o embrulho com o revlver, e voltou imediatamente.
Enquanto isso, aquela criatura encantadora, sua esposa, matava
calmamente o sr. Pace, logo depois do jantar. Est lembrado de que o
tiro foi disparado pelas costas? Depois, e um ponto muito importante,
aspectos, com a que a srta. Farquhar j nos contara. Assim que ele
acabou de falar, Poirot assumiu o comando da situao com uma pergunta:
- O que exatamente o levou a descobrir que os ttulos haviam sido
roubados, sr. Ridgeway?
Ele riu, amargamente.
- A coisa saltava aos olhos, M. Poirot. Eu no poderia deixar de
perceber. Apenas metade da valise estava debaixo do beliche, toda
arranhada e cortada no ponto em que haviam tentado arrombar a
fechadura.
- Mas no tinha sido aberta com uma chave?
- Exatamente. Tentaram arromb-la, mas no conseguiram. Ao final,
devem ter conseguido encontrar um meio qualquer de abri-la.
- Estranho ... - murmurou Poirot, e seus olhos brilharam com
aquela tonalidade esverdeada que eu conhecia to bem. - Muito
estranho... Desperdiam tanto tempo tentando arrombar a fechadura e
depois... sapristi!, descobrem que estavam com a chave desde o incio
... embora cada fechadura da Hubb's seja nica.
- justamente por isso que eles no poderiam ter a chave. Nunca a
larguei, em momento algum, de dia ou de noite.
- Tem certeza absoluta?
- Posso at jurar. Alm do mais, se eles tivessem a chave ou uma
duplicata, por que iriam perder tempo tentando arrombar uma fechadura
obviamente inviolvel?
- Ah, eis justamente a pergunta que temos de nos fazer! Arrisco-me
a profetizar que a soluo para o mistrio, se que a encontraremos,
depender da explicao desse fato estranho. Peo que no fique zangado
comigo por mais uma pergunta que no posso deixar de lhe fazer: est
absolutamente certo de que no deixou a valise destrancada?
Philip Ridgeway limitou-se a olhar fixamente para
Poirot, que fez um gesto de desculpas.
- Ah, mas posso lhe assegurar que essas coisas podem perfeitamente
acontecer! Est certo, os ttulos foram roubados da valise. O que o
ladro fez com eles? Como conseguiu lev-los para terra?
- Mas esse o problema! - gritou Philip. - Como?
As autoridades alfandegrias foram avisadas e todas as pessoas que
deixaram o navio foram meticulosamente revistadas!
- E imagino que os ttulos constitussem um pacote volumoso, no
mesmo?
- Exatamente. Dificilmente poderiam ser escondidos a bordo. Alm
do mais, sabemos que no estavam no navio, porque foram postos venda
meia hora depois da chegada do Olympia, muito antes que eu recebesse os
cabogramas que informavam os nmeros e sries. Um corretor jura que
comprou alguns dos ttulos antes mesmo de o Olympia atracar. Mas no
se pode mandar ttulos pelo telgrafo sem fio!
- Tem toda a razo. Nenhum rebocador se aproximou do navio?
- S as embarcaes oficiais chegaram perto do
Olympia, e mesmo assim depois que o alarma tinha sido dado, quando
todos j estavam de vigia. Eu mesmo fiquei observando, para ver se os
ttulos no seriam transferidos para uma dessas embarcaes. Essa
histria est me deixando maluco, M. Poirot! J esto comeando a
dizer que fui eu quem roubou os ttulos!
- Mas tambm foi revistado ao desembarcar, no mesmo? - indagou
Poirot, suavemente.
- Fui, sim.
O jovem estava um tanto perplexo, e Poirot acrescentou, com um sorriso
enigmtico:
- Estou vendo que no percebeu o sentido da minha
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pergunta. Mas no faz mal. Agora, eu gostaria de fazer algumas
indagaes no banco.
Ridgeway tirou um carto do bolso e escreveu rapidamente algumas
palavras.
- Apresente este carto, e meu tio o receber imediatamente.
Poirot agradeceu, e nos despedimos de ambos. Seguimos diretamente para
a Threadneedle Street, onde ficava a matriz do Banco de Londres e da
Esccia. Apresentamos o carto de Ridgeway e fomos levados por um
labirinto de balces e escrivaninhas, contornando caixas recebedoras e
pagadoras, at um pequeno escritrio no segundo andar, onde os dois
gerentes-gerais nos receberam. Eram dois cavalheiros sisudos, que
tinham ficado de cabelos brancos a servio do banco. O sr. Vavasour
usava uma barba branca aparada e o sr. Shaw tinha o rosto raspado.
- Pelo que sei, so investigadores particulares, no mesmo? disse o sr. Vavasour. - Est certo. claro que j entregamos o caso
aos cuidados da Scotland Yard.
O inspetor McNeil que est encarregado das investigaes.
Segundo ouvi dizer, trata-se de um policial muito competente.
- No tenho a menor dvida quanto a isso - disse
Poirot, polidamente. - Mas permite que eu lhes faa algumas
perguntas, por conta de seu sobrinho? Obrigado. Poderiam nformar-me
quem encomendou a fechadura especial na Hubb's?
- Fui eu que a encomendei pessoalmente - informou o sr. Shaw. No poderia confiar num funcionrio, em assunto de tamanha importncia.
Quanto s chaves, o sr.
Ridgeway ficou com uma, e as outras duas ficaram uma comigo e a outra
com meu colega.
- E nenhum funcionrio teve acesso a essas chaves?
O sr. Shaw virou-se para o sr. Vavasour com uma expresso
inquisitiva.
- Creio que posso garantir que as chaves permaneceram no cofre onde
as colocamos no dia 23 - declarou o sr. Vavasour. - Infelizmente,
meu colega ficou doente h cerca de quinze dias. Para ser mais exato,
ele caiu doente no mesmo dia em que Philip partiu. Acaba de se
recuperar.
- Bronquite aguda no brincadeira na minha idade
- disse o sr. Shaw, tristemente. - Minha ausna acarretou uma
sobrecarga de trabalho para o sr. Vavasour, especialmente depois que
ocorreu essa catstrofe inesperada.
Poirot fez mais algumas perguntas. Tive a impresso de que estava
querendo avaliar o grau de intimidade entre tio e sobrinho. As
respostas do sr. Vavasour foram breves e escrupulosas. O sobrinho era
um funcionrio de confiana do banco, no tinha dvidas nem dificuldades
financeiras, ao que ele soubesse. J realizara antes misses similares.
Finalmente, despedimo-nos.
Ao chegarmos rua, Poirot comentou:
- Estou desapontado.
- Esperava descobrir mais alguma coisa? So dois velhos difceis de
tratar, talvez um tanto obtusos.
- No isso o que me desaponta, mon ami. No estava esperando
encontrar num gerente de banco "um financsta astucioso, com um olho de
guia", como costumam dizer as suas obras de fico prediletas. Estou
desapontado com o caso. fcil demais!
- Fcil!
- Exatamente. No o achou infantilmente simples?
- Est querendo dizer que j sabe quem roubou os ttulos?
- Claro que sei.
- Mas ento ... devemos ... por qu ...
- No fique to confuso e aturdido, Hastings. No vamos fazer
coisa alguma, por enquanto.
- Mas por qu? O que estamos esperando?
- Pela volta do Olympia. Deve voltar de Nova York na prxima
tera-feira.
- Mas se sabe quem roubou os ttulos, por que esperar? O homem pode
fugir.
- Para uma ilha dos mares do sul, que no tenha nenhum tratado de
extradio? No, meu amigo, o ladro descobriria que a vida por l no
nada agradvel. Quanto ao motivo para a espera ... eh bien, para a
inteligncia de
Hercule Poirot, o caso est perfeitamente esclarecido. Mas em
benefcio dos outros, que no foram to bem dotados pelo bom Deus, como
o caso, por exemplo, do inspetor
McNeil, ser necessrio efetuar algumas indagaes adicionais.
preciso sempre ter alguma considerao com aqueles que so menos
dotados.
- Santo Deus, Poirot! Sabe que eu daria um bom dinheiro para
v-lo bancar o idiota rematado, por uma vez que fosse? Nunca vi ningum
to abominavelmente presunoso!
- No fique to furioso, Hastings. J observei que
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h algumas ocasies em que voc quase me detesta. Ai de mim! Tenho que
sofrer os inconvenientes resultantes da grandeza!
O homenzinho estofou o peito e suspirou, to comicamente que no pude
deixar de rir.
Seguimos na tera-feira para Liverpool, num compartimento de primeira
classe do trem. Poirot se recusara obstinadamente a contar-me tudo a
respeito de suas suspeitas ... ou certezas. Limitou-se a manifestar
sua surpresa por eu no estar igualmente au fait ` da situao.
Recusei-me a argumentar, escondendo minha curiosidade por detrs de uma
indiferena simulada.
Chegando ao cais onde estava atracado o imenso transatlntico, Poirot
tornou-se imediatamente ativo e alerta.
Nosso trabalho consistiu em interrogar quatro camaroteiros, indagando
por um amigo de Poirot que partira para Nova
no assunto.
- Mas o sr. Bleibner, pelo que sei, no era mais ou menos um
amador?
- Isso mesmo. Era um homem muito rico, que volta e meia se dedicava
com afinco a qualquer coisa que lhe atrasse a fantasia. Meu marido
conseguiu interess-lo em egiptologia. E o dinheiro dele foi
extremamente til no financiamento da expedio.
- E o que me diz do sobrinho? Conhece por acaso os interesses dele?
O rapaz tambm participou da expedio?
- Creio que no. Para dizer a verdade, eu no sabia de sua
existncia at o momento em que li a notcia de sua morte nos jornais.
Tambm no creio que fosse muito chegado ao sr. Bleibner, que nunca
nos falou sobre nenhum parente.
- Quem eram os outros membros da expedio?
- H o dr. Tosswill, funcionrio subalterno do Museu Britnico; o
sr. Schneider, do Museu Metropolitano de Nova York; um jovem
secretrio americano; o dr. Ames, que acompanhou a expedio, em
carter profissional; e
Hassan, o devotado criado nativo de meu marido.
- Lembra-se do nome do secretrio americano?
98 a 99
- Harper, se no me engano. Mas no tenho certeza.
Sei que ele no estava h muito tempo com o sr. Bleibner.
Pareceu-me um rapaz extremamente simptico.
- Obrigado, Lady Willard.
- Se houver mais alguma coisa ... ?
- No momento, no h mais nada. Deixe tudo em minhas mos, e pode
estar certa de que farei o que for humanamente possvel para proteger
seu filho.
No eram palavras das mais tranqilizadoras, e observei que Lady
Willard estremeceu ao ouvi-Ias. Contudo, o fato de Poirot no ter
escarnecido de seus temores pareceu representar um alvio imenso para
ela.
De minha parte, devo dizer que nunca antes suspeitara de que Poirot
possusse um veio supersticioso to profundo em sua natureza. Abordei o
assunto quando voltamos para casa. A atitude dele foi extremamente
grave e compenetrada.
- Claro que acredito nessas coisas, Hastings. No deve subestimar
a fora da superstio.
- O que vamos fazer?
- Toujours pratique ', o bom Hastings! Eh bien, para comear,
vamos passar um cabograma para Nova York, pedindo mais detalhes a
respeito da morte do jovem
Bleibner.
Poirot passou o cabograma. A resposta foi completa e detalhada. O
jovem Rupert Bleibner estava em pssima situao havia vrios anos.
Vagabundeara pelas ilhas dos mares do sul durante muito tempo. Voltara
para Nova York dois anos antes e rapidamente afundara ainda mais. O
fato mais significativo, em minha opinio, o dinheiro que conseguira
emprestado, necessrio para ir ao Egito. "Tenho um bom amigo l no
104 a 105
Depois, virando-se bruscamente, meu pequeno amigo saiu da tenda. O
mdico ficou olhando para mim, aturdido.
- Que idia luminosa ter tido ele?
A expresso, to familiar nos lbios de Poirot, fez-me sorrir, ao
ouvi-la de outro.
- No sei exatamente. Mas tenho a impresso de que ele tem um plano
para exorcizar os espritos do mal.
Sa procura de Poirot e encontrei-o conversando com o jovem de rosto
encovado que fora secretrio do falecido sr. Bleibner.
- No. Estou com a expedio h apenas seis meses
- estava dizendo o sr. Harper. - Eu realmente conhecia bastante
bem todos os negcios do sr. Bleibner.
- Poderia me contar tudo o que sabe a respeito do sobrinho dele?
- O rapaz apareceu aqui um belo dia, inesperadamente. At que era
simptico. Eu nunca o tinha visto antes, mas alguns dos outros j o
conheciam... creio que Ames e Schneider. O velho no ficou nada
satisfeito com a presena do sobrinho. E no demoraram a ter uma
discusso violenta. "No lhe vou dar um s centavo! ", gritou o velho.
"Nem agora nem depois que eu estiver morto! Tenciono deixar todo o meu
dinheiro para financiar o trabalho da minha vida. Hoje mesmo conversei
com o sr. Schneider a esse respeito." E continuou a falar mais algum
tempo, repisando as mesmas coisas. O jovem Bleibner voltou
imediatamente para o Cairo.
- Ele gozava de sade perfeita na ocasio?
- O velho?
- No, o rapaz.
- Tenho a impresso de que ele mencionou haver alguma coisa errada
consigo. Mas no devia ser nada srio, caso contrrio eu me lembraria
agora.
- S mais uma coisa: o sr. Bleibner deixou testamento?
- No, pelo que sabemos.
- Vai ficar com a expedio, sr. Harper?
- No, senhor. Partirei para Nova York assim que deixar tudo aqui
acertado. Pode rir, se quiser, mas no pretendo ser a prxima vtima
desse maldito Men-her-Ra.
Vai acabar me pegando, se eu continuar por aqui.
O jovem secretrio enxugou o suor da testa. Poirot virou-se e comeou
a se afastar. Parou por um momento, virou a cabea para trs e
comentou, com um sorriso estranho:
- No se esquea de que ele foi pegar uma de suas vtimas em Nova
York.
- Oh, diabo! - exclamou o sr. Harper, angustiado.
Assim que nos afastamos, Poirot disse, pensativo:
- O rapaz est nervoso ... muito nervoso ...
Olhei para Poirot, curioso, mas seu sorriso enigmtico nada me disse.
Em companhia de Sir Guy Willard e do dr.
Tosswill, demos uma volta pelas escavaes. Os principais achados
tinham sido transferidos para o Cairo, mas alguns dos ornamentos da
tumba que ainda restavam eram extremamente interessantes. O entusiasmo
do jovem baronete era evidente, mas tive a impresso de perceber uma
- O assunto deve ser realmente muito srio. Ah, era como eu estava
pensando! A vem a polcia!
Dois homens tinham acabado de entrar no hotel, um de uniforme, o outro
paisana. Falaram com um dos funcionrios e foram imediatamente
levados l para cima.
Alguns minutos depois, o mesmo funcionrio desceu e se aproximou do
lugar em que estvamos sentados.
- O sr. Opalsen envia seus cumprimentos e solicita a presena dos
dois cavalheiros l em cima.
Poirot levantou-se agilmente. Um observador diria certamente que ele
estava esperando aquele chamado. Eu o segui com um entusiasmo igual.
O apartamento dos Opalsens ficava no segundo andar.
Depois de bater na porta, o funcionrio retirou-se, e atendemos ao
chamado de "Entrem!" Deparamos com uma cena estranha. Era o quarto da
sra. Opalsen, e, bem no meio, derreada numa poltrona, estava a prpria,
soluando desesperadamente. Por si s, ela constitua um espetculo
extraordinrio, pois lgrimas abriam imensos sulcos no p-dearroz que
revestia generosamente suas faces. O sr. Opalsen andava de um lado
para outro, furioso. Os dois policiais estavam parados no meio do
quarto, um deles com um caderninho de anotaes nas mos. Uma
camareira, visivelmente apavorada, estava parada junto lareira. Do
outro lado do quarto, uma francesa, obviamente a criada pessoal da sra.
Opalsen, estava chorando e retorcendo as mos, com um sofrimento to
intenso que chegava mesmo a rivalizar com o desespero da patroa.
Foi nesse pandemnio que Poirot entrou, impecvel e sorridente. No
mesmo instante, com uma energia surpreendente para uma pessoa to
volumosa, a sra. Opalsen saltou da poltrona, na direo dele.
- Pronto! Ed pode dizer o que quiser, mas acredito na sorte. E foi
a sorte que me fez encontr-lo esta noite!
Tenho a impresso de que, se o senhor no puder recuperar minhas
prolas, ningum mais ser capaz de faz-lo!
- Por gentileza, madame, acalme-se - murmurou
Poirot suavemente, afagando a mo dela. - Fique tranqila. Tudo vai
acabar bem. Hercule Poirot est aqui para ajud-la.
O sr. Opalsen virou-se para o inspetor da polcia.
- Espero que no faa qualquer objeo ao fato de eu ter chamado
este cavalheiro.
- Absolutamente, senhor - respondeu o inspetor polidamente, mas com
a mais completa indiferena. - Talvez agora sua esposa se sinta um
pouco melhor e nos possa relatar todos os fatos.
A sra. Opalsen olhou para Poirot, desorientada. Ele levou-a de volta
poltrona.
- Sente-se, madame, e conte-nos toda a histria, sem ficar nervosa.
Assim tratada, a sra. Opalsen enxugou os olhos cautelosamente e
comeou a falar:
- Subi logo depois do jantar para buscar as prolas, a fim de
mostr-las ao sr. Poirot. A camareira e Clestine estavam no quarto,
como de hbito...
- Com licena, madame, mas o que exatamente est querendo dizer com
esse "como de hbito"?
Foi o sr. Opalsen quem se encarregou de explicar:
- Determinei que ningum entrasse neste quarto a menos que
chave-mestra, e entramos.
Poirot deteve-a quando ela j ia se afastando:
- Um momento, por gentileza. Por acaso viu um carto igual a este
entre os pertences do sr. Opalsen?
Ele estendeu um carto branco, liso, que parecia vitrificado, de
aparncia incomum. A camareira pegou-o e examinou-o cuidadosamente.
- No, senhor, no me lembro de ter visto. De qualquer maneira, o
valete que cuida de quase tudo nos aposentos dos cavalheiros.
- Est certo. Obrigado.
Poirot pegou novamente o carto. A mulher foi embora. Meu amigo ficou
imvel por um momento, pensativo.
Depois, sacudiu a cabea bruscamente.
- Por gentileza, Hastings, toque a sineta trs vezes, para chamar o
valete.
Obedeci, dominado por intensa curiosidade. Enquanto isso, Poirot
despejava no cho o cesto de papis e examinava rapidamente o seu
contedo.
126 a 127
Momentos depois, o valete atendeu ao chamado. Poirot fez-lhe a mesma
pergunta e entregou-lhe o carto para que o examinasse. Mas a resposta
foi a mesma. O valete nunca vira um carto como aquele entre os
pertences do sr. Opalsen. Poirot agradeceu, e o homem retirou-se, sem
muita vontade, lanando um olhar para o cesto virado e o lixo espalhado
pelo cho. No pde deixar de ouvir o comentrio pensativo de Poirot,
que voltara a remexer nos papis amarrotados, espalhados pelo cho:
- E o colar estava no seguro ...
- Estou percebendo agora, Poirot!
- No est percebendo nada, meu amigo, como sempre. Absolutamente
nada! inacreditvel... mas isso mesmo. Vamos voltar para os nossos
aposentos.
Voltamos em silncio. Assim que chegamos, para minha intensa surpresa,
Poirot mudou de roupa rapidamente.
- Vou para Londres esta noite, meu amigo. indispensvel.
- O qu?
- absolutamente indispensvel. O verdadeiro trabalho, o do
crebro (ah, essas pequenas e maravilhosas clulas cinzentas!), j est
feito. Mas tenho que buscar a confirmao. E irei encontr-la!
impossvel enganar Hercule
Poirot!
- Um dia desses ainda vai acabar levando um tombo e tanto comentei, um pouco irritado com a vaidade dele.
- Peo-lhe que no fique zangado comigo, mon ami.
Conto com voc para prestar-me um servio ... um servio de amigo.
- Claro, claro - declarei ansiosamente, envergonhado do meu mau
humor. - O que ?
- A manga do casaco que acabei de tirar ... pode escov-la? Como
est vendo, um pouco de p branco ficou grudado na manga. Certamente
observou-me passar o dedo em torno da gaveta da penteadeira, no
mesmo?
- No, no observei.
- Deveria observar minhas aes, meu amigo. Foi assim que fiquei
com um pouco de p branco na ponta do dedo. Como estava muito excitado,
esfreguei o dedo na manga, uma ao sem mtodo, que deploro
profundamente, contrria a todos os meus princpios.
- Mas o que era esse p? - indaguei, no muito interessado nos
princpios de Poirot.
- Posso garantir-lhe que no era o veneno dos Brgias - respondeu
Poirot, piscando os olhos, maliciosamente.
- Estou vendo sua imaginao alar vo. Eu diria que era giz de
alfaite.
- Giz?
- Isso mesmo. Os fabricantes de mveis usam-no para fazer as
gavetas correrem suavemente.
Soltei uma risada.
- Ah, seu velho pecador! Pensei que estivesse me apresentando algo
emocionante.
- Au revoir, meu amigo. J estou indo. E escaparei daqui!
A porta foi fechada por Poirot. Sorrindo, meio por desdm, meio por
afeio, peguei o casaco e estendi a mo para a escova.
Na manh seguinte, como no tivesse recebido qualquer notcia de
Poirot, sa para dar uma volta, encontrei alguns amigos e fui almoar
no hotel deles. De tarde, fomos dar outra volta. Um pneu furado nos
atrasou, e j passavam das oito horas quando voltei ao Grand
Metropolitan.
A primeira pessoa que avistei foi Poirot, que parecia ainda menor,
espremido entre os Opalsens, radiante, num estado de plcida
satisfao.
- Mon ami Hastings! - gritou ele, adiantando-se para receber-me.
- Abrace-me, meu amigo! Tudo saiu s mil maravilhas!
Felizmente, o abrao foi apenas simblico ... no um abrao de verdade,
como sempre se pode esperar de Poirot.
- Est querendo dizer, Poirot .
- Ele foi simplesmente maravilhoso! - interveio a sra. Opalsen,
com um sorriso radiante no rosto gordo. Eu no lhe disse, Ed, que, se
ele no pudesse recuperar minhas prolas, ningum mais poderia?
- Disse, minha cara, disse... E estava certa.
Olhei para Poirot, aturdido, e ele imediatamente compreendeu.
- Meu amigo Hastings est totalmente por fora, como vocs costumam
dizer. Mas sente-se, e lhe contarei todo o caso, que terminou muito
bem.
- Terminou?
- Exatamente. Eles esto presos.
- Eles, quem?
- A camareira e o valete, parbleu! No tinha desconfiado?
128 a 129
Nem mesmo com aquela insinuao a respeito do giz que fiz ao partir?
- Disse que era usado pelos fabricantes de mveis.
- Claro que sim ... para fazerem as gavetas deslizarem suavemente.
Algum queria que aquela gaveta deslizasse para fora e para dentro sem
fazer nenhum barulho.
- O senhor me conhece?
Poirot sorriu.
- Certamente. Costumo ler os pequenos jornais ilustrados. Como
poderia deixar de conhec-lo?
- M. Poirot, vim consult-lo sobre um assunto de urgncia vital. E
devo pedir-lhe sigilo absoluto.
- Tem a palavra de Hercule Poirot ... No posso dizer mais nada!
- declarou meu amigo, grandiloqente como sempre.
- um problema que envolve o primeiro-ministro.
Estamos numa tremenda dificuldade.
- Estamos no mato sem cachorro! - interveio o sr.
Dodge.
- Quer dizer que o ferimento srio? - indaguei.
- Que ferimento?
- O ferimento a bala.
- Ah, isso! - exclamou o sr. Dodge, desdenhosamente. - Ora, isso
j histria antiga!
Lorde Estair retomou o comando da conversa:
- Como disse meu colega, esse caso j est resolvido.
137
Felizmente, fracassou. Eu gostaria de poder dizer a mesma coisa sobre
o segundo atentado.
- Quer dizer que houve outro atentado?
- Houve, s que no da mesma natureza. M. Poirot, o
primeiro-ministro desapareceu.
- Como assim?
- Foi seqestrado!
- Impossvel! - gritei, atnito.
Poirot lanou-me um olhar fulminante, uma indicao clara de que eu
deveria ficar de boca fechada.
- Infelizmente, por mais impossvel que possa parecer, verdade continuou Lorde Estair.
Poirot olhou para o sr. Dodge.
- Disse que o tempo era tudo, monsieur. O que estava querendo dizer
com isso?
Os dois homens se entreolharam, e foi Lorde Estair quem falou:
- j ouviu falar da iminente Conferncia Aliada, M.
Poirot?
Meu amigo assentiu.
- Por motivos bvios, no foram divulgados os detalhes a respeito do
local e da data em que dever ser realizada. Embora a informao no
tenha sido revelada para os jornais, amplamente conhecida nos
crculos diplomticos. A conferncia dever ser realizada amanh,
tera-feira, noite, em Versalhes. Pode compreender agora a terrvel
gravidade da situao. No lhe esconderei o fato de que a presena do
primeiro-ministro na conferncia uma necessidade vital. A propaganda
pacifista, desencadeada e insuflada pelos agentes alemes infiltrados
aqui, tem sido bastante ativa. A opinio geral de que a tnica da
conferncia ser determinada pela forte personalidade do
primeiro-ministro.
138 a 139
o secretrio do primeiro-ministro, Daniels, cloroformizado, amarrado e
amordaado, numa fazenda abandonada perto de C ... Ele no se recorda
de coisa alguma, exceto de que algo foi comprimido por trs, contra sua
boca e seu nariz, e ele se debateu para se desvencilhar. A polcia est
convencida de que o depoimento dele genuno.
- E no descobriram mais nada?
- No.
- Nem o cadver do primeiro-minstro? Sendo assim, ainda resta uma
esperana. Mas muito estranho. Por que, depois de tentarem mat-lo a
tiros esta manh, esto agora se dando a tanto trabalho para mant-lo
vivo?
Dodge meneou a cabea.
- S tenho certeza de uma coisa: eles esto determinados a impedir
de qualquer maneira a presena do primeiroministro na conferncia.
- Se for humanamente possvel, o primeiro-ministro estar presente.
S peo a Deus que no seja tarde demais.
E agora, messieurs, contem-me tudo... desde o incio. Gostaria que me
falassem tambm desse atentado contra a vida dele.
- Ontem noite, o primeiro-ministro, acompanhado por um dos seus
secretrios, o capito Daniels ...
- O mesmo que o acompanhou Frana?
- Exatamente. Como eu estava dizendo, os dois foram de carro at
Windsor, onde o primeiro-ministro teve uma audincia. Ele voltou para
Londres no incio desta manh. A tentativa de assassinato ocorreu no
caminho.
- Um momento, por gentileza. Quem esse capito
Daniels? Tem o dossi dele?
Lorde Estair sorriu.
- Imaginei que fosse me pedir isso. No sabemos muita coisa a
respeito dele. No de nenhuma famlia importante. Integra o exrcito
e um secretrio extremamente capaz, sendo, inclusive, um poliglota
excepcional. Creio que fala fluentemente sete lnguas. Foi justamente
por isso que o primeiro-ministro o escolheu para acompanh-lo Frana.
- Ele tem parentes na Inglaterra?
- Duas tias, a sra. Everard, que vive em Hampstead, e uma certa
srta. Daniels, que vive perto de Ascot.
- Ascot? No fica prximo a Windsor?
- No esquecemos esse detalhe. Mas as investigaes no levaram a
nada.
- Quer dizer que considera o capito Daniels acima de qualquer
suspeita?
Uma insinuao de amargura surgiu na voz de Lorde
Estair quando ele respondeu:
- No, M. Poirot. Nos dias atuais, eu hesitaria antes de declarar
qualquer um acima de suspeita.
- Trs Nen. Vamos adiante. Presumo, milorde, que o
primeiro-ministro estivesse sob permanente proteo policial, a fim de
tornar impossvel qualquer atentado, no mesmo?
Lorde Estair baixou a cabea.
persistncia fatal.
- Por falar nisso, um dos jardineiros diz ter visto um vulto
contornando a casa, na direo do roseiral. As portas do escritrio do
para o roseiral, e o sr. Davenheim freqentemente entrava e saa por
esse caminho. Mas o jardineiro estava bem longe, trabalhando nuns
canteiros de pepinos, e no pde dizer com certeza se era ou no seu
patro.
Tambm no pde determinar a hora com preciso. Deve ter sido antes
das seis horas, j que os jardineiros normalmente param de trabalhar a
essa hora.
- E quando o sr. Davenheim saiu de casa?
- Por volta das cinco e meia.
- O que existe alm do roseiral?
- Um lago.
- Com uma casa de barcos?
- Isso mesmo. Dois pequenos botes so guardados na casa de barcos.
Est pensando em suicdio, M. Poirot?
Pois no me importo de dizer que Miller j providenciou tudo para que
o pequeno lago seja dragado amanh. Por a pode perceber o tipo de
homem que ele !
Poirot sorriu debilmente e virou-se para mim:
- Hastings, por favor, passe-me o exemplar do Daily
Megaphone que est ali em cima. Se no me engano, h uma fotografia
excepcionalmente ntida do homem desaparecido.
Levantei-me e fui buscar o jornal. Poirot examinou a fotografia
atentamente.
- Hum, hum ... - murmurou ele, pensativo. - Os cabelos so um
tanto compridos e ondulados, o bigode espesso, a barba, pontuda e as
sobrancelhas, densas. Olhos escuros?
- Exatamente.
- Os cabelos e a barba comeando a ficar grisalhos?
O inspetor assentiu.
- E ento, M. Poirot, o que tem a dizer? Tudo claro como o dia?
- Ao contrrio, o caso parece-me extremamente obscuro.
O homem da Scotland Yard ficou visivelmente satisfeito. Mas Poirot
acrescentou, placidamente:
- O que me d grandes esperanas de resolv-lo.
- Hein?
- Sempre considero um bom sinal um caso obscuro.
Se uma coisa est clara como o dia... eh bien, desconfie!
Algum deve ter providenciado para que fosse assim.
Japp sacudiu a cabea, quase compassivamente.
- Cada um com sua fantasia. Mas no nada ruim ver claramente o
caminho nossa frente.
- Pois eu no vejo - murmurou Poirot. - Fecho os olhos... e
penso.
Japp suspirou.
- Tem uma semana inteira para pensar.
- E ir informar-me de toda e qualquer novidade... como, por
exemplo, o resultado dos trabalhos do infatigvel inspetor Miller, o
homem dos olhos de lince?
- Claro! Isso faz parte do acordo!
estrada, na direo de
Chingside. Sentou-se na vala beira da estrada, para descansar um
pouco, antes de entrar na aldeia. Alguns minutos depois, avistou um
homem avanando pela estrada, na direo da aldeia. `Um sujeito de pele
escura, com um bigode imenso, um gr-fino da cidade', foi a descrio
que ele fez. "Kellett estava meio escondido da estrada por uma pilha de
pedras. O homem parou de repente, olhou para um lado e outro da
estrada, constatou que estava aparentemente deserta, depois tirou um
pequeno objeto do bolso e jogou-o no mato. E seguiu adiante, na direo
da estao. O objeto arremessado no mato fez um clique metlico ao
cair, o que despertou a curiosidade do farrapo humano que estava na
vala. Ele foi ver o que era, procurou um pouco, e acabou descobrindo o
anel. Essa a histria de Kellett. claro que
Lowen nega tudo veementemente, e claro, tambm, que no podemos
absolutamente confiar na palavra de um homem como Kellett. No
impossvel que ele tenha encontrado Davenheim num trecho deserto da
estrada, acabando por roub-lo e mat-lo."
Poirot sacudiu a cabea.
- extremamente improvvel, mon ami. Ele no teria condies de
dar sumio no corpo. A esta altura dos acontecimentos, j teria sido
encontrado. Em segundo lugar, a maneira aberta como empenhou o anel
torna bem improvvel a possibilidade de que ele tenha assassinado para
consegui-lo. Em terceiro lugar, o ladro sorrateiro raramente
assassino. Em quarto lugar, como ele est na priso desde sbado, seria
coincidncia demais que pudesse dar uma des- crio to acurada de
Lowen.
Japp assentiu.
- No estou dizendo que voc no esteja certo. No obstante, ser
impossvel convencer um jri com base no depoimento de um ladro
reincidente. O que me parece estranho que Lowen no tivesse
encontrado um meio mais nteligente de se livrar do anel.
Poirot deu de ombros.
- Ora, se o anel fosse encontrado nas vizinhanas, sempre se poderia
alegar que fora o prprio Davenheim quem o deixara cair.
- Mas por que tirar o anel do corpo? - indaguei.
- Pode ter 4ravido uma razo para isso - explicou
Japp. - Um pouco alm do lago, h um pequeno porto que d acesso ao
morro. E a menos de trs minutos de caminhada, chega-se imaginem a qu?
... a um forno de cal!
- Santo Deus! - exclamei. - Est querendo dizer que a cal que
destruiu o corpo no iria afetar o metal do anel?
- Exatamente.
- Tenho a impresso de que isso explica tudo. Mas que crime
horrvel!
Por consenso tcito, ambos nos viramos e olhamos para
Poirot. Ele parecia estar imerso em seus pensamentos, com as
sobrancelhas unidas, como se fizesse um supremo esforo mental. Senti
que sua grande inteligncia estava finalmente se manifestando. Quais
seriam suas primeiras palavras? No ficamos em dvida por muito tempo.
Com um suspiro, Poirot relaxou-se, virou-se para Japp e perguntou:
- Tem alguma idia, meu amigo, se o sr. e a sra.
Davenheim ocupavam o mesmo quarto?
164 a 165
Sua pergunta parecia to ridiculamente inadequada que, por um momento,
eu e o homem da Scotland Yard ficamos aturdidos, no mais completo
silncio. Depois, Japp deu uma risada e disse:
- Essa no, M. Poirot! Pensei que fosse sair com alguma coisa
surpreendente e sensacional. Quanto sua pergunta, devo dizer que no
tenho a menor idia.
- Mas poderia descobrir? - indagou Poirot, com uma estranha
persistncia.
- Certamente ... se est mesmo querendo saber.
- Merci, mon ami. Eu agradeceria se no esquecesse.
Japp ficou olhando para ele, desconcertado. Mas Poirot parecia ter
esquecido inteiramente nossa presena. Dali a pouco, o inspetor sacudiu
a cabea tristemente e murmurou para mim:
- Pobre coitado! A guerra foi demais para ele! - E, com essas
palavras, Japp retirou-se.
Como Poirot continuasse mergulhado em seus devaneios, peguei um pedao
de papel e, para me distrair, comecei a escrever. No demorou muito
para que a voz dele me despertasse de meus prprios devaneios. Poirot
parecia novamente ativo e alerta.
- Que faltes-vous l, mon ami?'
- Estava anotando o que me parecem ser os pontos . de maior
interesse no caso.
- Est se tornando metdico... finalmente!
O tom de Poirot era de aprovao, e no consegui disfarar minha
satisfao.
- Quer que eu leia?
- Claro!
- "Um: tudo aponta para Lowen como o homem que arrombou o cofre. "
`Dois: ele tinha motivos de ressentimento contra
Davenheim. " `Trs: mentiu em sua declarao inicial de que no sara
do escritrio em momento algum. "Quatro: a se aceitar como verdadeira a
histria de
Billy Kellett, Lowen est inegavelmente incriminado."
Fiz uma pausa e depois indaguei:
- O que acha, Poirot?
Eu estava absolutamente convencido de que anotara "O que est
Jazendo, meu amigo?" Em francs no original. (N. do E.) todos os
fatos de importncia vital. Mas Poirot fitou-me com uma expresso
compassiva, meneando a cabea gentilmente.
- Mon pauvre ami! Mas preciso desculp-lo, pois no possui o
talento! Jamais seria capaz de perceber o detalhe realmente importante!
Alm disso, seu raciocnio falso.
- Como assim?
- Vamos analisar os quatro pontos que voc destacou. Um: o sr.
Lowen no poderia saber que teria uma oportunidade de abrir o cofre.
Foi casa para um encontro de negcios. No poderia saber de antemo
que o sr. Davenheim estaria ausente, tendo ido aldeia despachar uma
carta, o que lhe permitiu ficar sozinho no escritrio.
- Mas ele no poderia ter aproveitado a oportunidade, mesmo sem
seu rtulo ... assim como a chave da cristaleira. E veja a preciso com
que toda a porcelana est arrumada! de sensibilizar o corao de
qualquer um! No h nada aqui que possa ofender a vista...
Fez uma pausa abrupta, quando sua ateno foi atrada pela chave da
prpria escrivaninha, qual estava afixado um envelope sujo. Poirot
franziu o rosto, retirando-a da fechadura. No envelope estavam
rabiscadas as palavras "Chave da escrivaninha de tampo corredio", numa
letra irregular, muito diferente das inscries impecveis encontradas
nas outras chaves.
- Uma estranha anotao - comentou Poirot, ainda de rosto
franzido. - Eu poderia jurar que aqui no temos mais a personalidade
do sr. Marsh. Mas quem mais esteve na casa? Somente a srta. Marsh
... a qual, se no me engano, tambm uma jovem metdica e ordeira.
Baker apareceu na porta, atendendo a nosso chamado.
- Pode fazer o favor de buscar a senhora sua esposa, e responder a
algumas perguntas?
Baker retirou-se e voltou logo depois, acompanhado pela sra. Baker,
que enxugava as mos no avental e exibia uma expresso radiante.
Em poucas palavras, Poirot explicou o objetivo de sua . misso. Os
Bakers prontamente se declararam dispostos a cooperar.
- No queremos ver a srta. Violet sem aquilo a que tem direito disse a mulher. - Seria horrvel se tudo fosse para os hospitais.
Poirot comeou a fazer suas perguntas. O sr. e sra.
Baker recordavam-se perfeitamente de terem sido
192 a 193
testemunhas do testamento. Baker recebera antes a ordem de ir bus- car
dois formulrios impressos de testamento na aldeia vizinha.
- Dois? - indagou Poirot, abruptamente.
- Isso mesmo, senhor. Acho que era uma medida de precauo, no caso
de o sr. Marsh estragar um ... e foi justamente o que aconteceu.
Assinamos um ...
- A que horas foi isso?
Baker coou a cabea, mas a esposa foi mais rpida:
- Eu tinha acabado de pr no fogo o leite para o chocolate das onze
horas. No se lembra? Estava todo derramado em cima do fogo, quando
voltamos cozinha.
- E depois?
- Deve ter sido uma hora mais tarde. Fomos chamados novamente. "
Cometi um erro e tive que rasgar o testamento", disse o velho patro. "
Vo ter que assinar de novo." E ns assinamos. O patro deu ento um
bom dinheiro para cada um e disse: "No deixei nada para vocs no meu
testamento, mas todos os anos, enquanto eu viver, recebero um dinheiro
assim, para terem um p-de-meia depois que eu morrer". E nunca se
esqueceu de fazer isso.
Porot pensou um momento.
- Depois que assinou pela segunda vez, lembra-se do que o sr. Marsh
fez?
- Foi at a aldeia para pagar ao homem da papelaria.
Isso no parecia muito promissor. Poirot tentou outra coisa. Mostrou
a chave da escrivaninha e perguntou:
194 a 195
apenas um fragmento de papel chamuscado. A no ser por aquilo, a
cavidade estava vazia.
- Sacr! - gritou Poirot,-furioso. - Algum deve ter estado aqui
antes de ns! '
Examinamos ansiosamnt~ o fragmento de papel. No havia a menor dvida
de qu era o resto do que procur. vamos. Ainda se podia ver urna parte
da assinatura de
Baker, mas no havia a menor indicao de quais tinham sido os termos
do testamento.
Poirot ficou de ccoras. Sua expresso teria sido cmica, se no
estivssemos to abalados.
- No estou compreendendo - murmurou ele. Quem destruiu este
testamento? E qual seria o objetivo deles?
- Dos Bakers?
- Pourquoi? Nenhum dos testamentos deixa qualquer coisa para eles,
e mais provvel que sejam mantidos pela srta. Marsh se ela ficar com
Crabtree Manor, em vez de esta passar a ser propriedade de um
hospital. Que proveito algum poderia tirar da destruio do
testamento? Os hospitais se beneficiariam, verdade, mas no se pode
desconfiar de instituies desse tipo.
- Talvez o velho tenha mudado de idia e tenha ele mesmo destrudo o
testamento.
Poirot levantou-se, limpando a poeira da cala, com o cuidado habitual.
- bem possvel, Hastings. Eis uma observao das mais sensatas.
Bem, nada mais temos a fazer aqui. J fizemos tudo o que um mortal
poderia fazer. Tivemos sucesso no embate de inteligncia com o falecido
Andrew Marsh.
Mas, infelizmente, a sobrinha dele nada ir ganhar com nosso sucesso.
Seguindo imediatamente para a estao, conseguimos pegar um trem para
Londres, embora no fosse o expresso.
Poirot estava triste e insatisfeito. Eu estava muito cansado e
cochilei. Subitamente, quando estvamos comeando a sair de Taunton,
Poirot soltou um grito estridente.
- Vite, Hastings!' Acorde e pule! Vamos, estou dizendo para pular
logo!
Antes que eu tivesse alguma idia do que acontecia, estvamos parados
na plataforma, sem chapu e sem nossas valises, enquanto o trem
desaparecia na noite. Fiquei furioso.
**1 "Depressa, Hastings!" Em francs no original. (N. do E.)
Mas Poirot no me deu a menor ateno, gritando para si mesmo:
- Ah, que imbecil que tenho sido! Trs vezes imbecil! Nunca mais
vou me gabar de minhas pequenas clulas cinzentas!
- J alguma coisa - murmurei, irritado. - Mas pode explicar-me
por que saltamos aqui?
Como sempre acontecia quando estava imerso em uma de suas idias,
Poirot no me deu a menor ateno.
- No levei em considerao o homem dos livros... o homem da
XII
A dama de vu
H algum tempo que Poirot vinha se tornando cada vez mais insatisfeito
e inquieto. No tivramos recentemente nenhum caso interessante, nada
em que meu pequeno amigo pudesse exercitar sua inteligncia e seus
extraordinrios poderes de deduo. Naquela manh, ele largou o jornal
com um impaciente "Tchah!", uma de suas exclamaes prediletas, que
soava exatamente como um gato espirrando.
- Eles me temem, Hastings! Os criminosos da sua
Inglaterra me temem! Quando o gato est espera, os ratos no mais
aparecem procura do queijo!
- Tenho a impresso de que a maioria nem mesmo sabe de sua
existncia - comentei, rindo.
Poirot lanou-me um olhar de censura. Ele sempre imagina que o mundo
inteiro est pensando e falando em Hercule Poirot. No restava a
menor dvida de que ele conquistara uma respeitvel reputao em
Londres, mas eu no podia acreditar que sua existncia semeasse o
terror no mundo do crime.
- O que me diz daquele roubo de jias em plena luz do dia, na Bond
Street, Poirot?
- Um excelente coup - respondeu meu amigo, com um ar de aprovao.
- Mas no na minha linha. Pas de f messe, seulement de l'audace!'
Um homem quebra a vitrine de uma joalheria com a bengala e pega
diversas jias. imediatamente agarrado por respeitveis cidados. Um
guarda se aproxima. O ladro apanhado em flagrante, com as jias nas
mos. conduzido delegacia, e s ento se descobre que as jias no
passam de imitaes. Ele entregara as
**1 "Nenhuma sutileza, somente audcia." Em francs no original. (i
N. do E.)
201
verdadeiras a um cmplice, um dos cidados respeitveis antes
mencionados. O homem vai para a priso, verdade; mas, ao sair, ter
uma considervel fortuna sua espera. Foi um golpe dado com
imaginao. Mas eu poderia ter feito melhor. As vezes, Hastings,
lamento minha disposio moral. At que seria agradvel trabalhar
contra a lei, para variar.
- nimo, Poirot. Voc sabe perfeitamente que nico em seu campo.
- - Mas o que tenho para fazer em meu campo de atividade?
Peguei o jornal.
- Eis aqui o caso de um ingls que morreu misteriosamente na
Holanda.
- o que sempre dizem... e mais tarde se descobre que o homem
simplesmente comeu peixe estragado e que sua morte foi perfeitamente
natural.
- Ora, se est querendo apenas reclamar e resmungar, ento continue
de braos cruzados!
Para meu espanto, Japp saiu nesse momento do quarto de Porot, que
disse para Lady Millicent, polidamente:
- Creio que se trata de um velho amigo seu.
- Por Deus, fui apanhada em flagrante! - gritou
Lady Millicent, mudando inteiramente de atitude. - Ah, seu demnio
velho e esperto!
E olhou para Poirot, com uma expresso de raiva e respeito quase
afetuosa.
- Acho que desta vez chegou ao fim da linha, minha cara Gertie disse Japp. - No imaginava rev-la to cedo. E j agarramos tambm
seu companheiro, o cavalheiro que esteve aqui outro dia, dizendo
chamar-se Lavington.
Quanto ao verdadeiro Lavington, alis Croker, alis Reed, foi o
homem esfaqueado outro dia l na Holanda. Qual foi o membro da
quadrilha que o atacou? Pensavam que ele estivesse com a mercadoria,
no mesmo? Mas acontece que no estava. Traiu-os direitinho...
escondendo as jias em sua prpria casa. Mandaram dois sujeitos
revistarem a casa, mas nada foi encontrado. Resolveram ento armar um
estratagema para usar M. Poirot. E, num golpe de sorte surpreendente,
ele conseguiu encontrar as jias.
- Gosta um bocado de falar, hem? - disse a ex-Lady
Millicent. - Calma, calma, no precisa nada disso. Pode deixar que
irei quietinha. Ningum pode dizer que no sou uma perfeita dama!
Assim que eles se retiraram, quando eu ainda estava aturdido demais
para dizer qualquer coisa, Poirot explicou:
- Os sapatos estavam errados, Hastings. Tenho feito algumas
pequenas observaes a respeito de sua nao inglesa. E uma dama, uma
dama de verdade, sempre exigente e cuidadosa com seus sapatos. As
roupas podem estar em pssimo estado, mas ela estar sempre bem
calada. Contudo, essa lady que aqui se apresentou tinha roupas
elegantes e caras, mas sapatos ordinrios. No era provvel que voc
ou eu j tivssemos visto pessoalmente a verdadeira
Lady Millcent. Ela esteve muito poucas vezes em Londres, e a jovem
que nos veio procurar tinha uma semelhana superficial com ela. Como eu
disse, foram os sapatos que inicialmente despertaram minhas suspeitas.
Depois, a histria dela... e o vu... no acha que eram um pouco
melodramticos? A caixa chinesa, com a falsa carta comprometedora,
deveria ser do conhecimento de toda a quadrilha. Mas a acha foi uma
idia particular do prprio sr. Lavington.
Eh, par exemple, Hastings, espero que no v novamente ferir meus
sentimentos, como fez ontem, ao dizer que sou conhecido das classes
criminosas. Ma foi, eles at mesmo querem me contratar quando tm algum
problema no qual j fracassaram!
210 a 211
XIII
A mina perdida
Larguei o talo de cheques com um suspiro e comentei:
- curioso, mas parece que nunca consigo diminuir meu saque a
descoberto.
- E isso no o perturba? - indagou Poirot. - Se acontecesse
comigo, eu no conseguiria dormir a noite inteira.
- que voc deve manter sempre um saldo considervel.
- Tenho um saldo de exatamente quatrocentas e quarenta e quatro
libras e quarenta e quatro pence - informou meu amigo, com alguma
complacncia. - No acha que uma cifra extraordinria?
- O gerente de seu banco deve ser um homem de muito tato.
Evidentemente, conhece sua paixo pelos detalhes simtricos. Mas o que
me diz de investir umas trezentas libras nos campos petrolferos de
Porcupine? A perspectiva, pelo que se pode ler nos jornais de hoje,
de que pagaro cem por cento de dividendos no prximo ano.
- No para mim - disse Poirot, sacudindo a cabea. - No gosto
do que sensacional. Prefiro o investimento seguro, prudente, les
rentes'.
- Nunca fez um investimento especulativo?
- No, mon ami. E os nicos ttulos que possuo e que podem ser
assim considerados so catorze mil aes das
Minas da Birmnia Ltda.
Poirot fez uma pausa, com o ar de quem esperava ser encorajado a
continuar. No me fiz de rogado e disse:
- mesmo?
- E no gastei nenhum dinheiro para adquiri-las.
Nada disso. Ganhei-as como recompensa pelo exerccio de
**1 "Os rendimentos." Em francs no original. (N. do E.)
215
minhas pequenas clulas cinzentas. No gostaria de ouvir a histria?
- Claro que gostaria!
- Essas minas esto situadas no interior da Birmnia, a mais de
trezentos quilmetros de Rangum. Foram descobertas pelos chineses no
sculo XV e exploradas at a poca da Rebelio Maometana, sendo
finalmente abandonadas em 1868. Os chineses extraram minrio rico em
chumbo e prata da camada superior do sedimento, ficando apenas com a
prata e deixando grandes quantidades de escria de chum. bo. i; claro
que isso foi. imediatamente descoberto, assim que se iniciaram os
trabalhos de prospeco na Birmnia.
Mas como as antigas escavaes estavam cheias de refugos e gua, todas
as tentativas de se descobrir a fonte do minrio falharam. Os grandes
grupos mineiros despacharam expedies para a rea, que em vo
realizaram inmeras escavaes. Finalmente, o representante de um
desses grupos mineiros foi informado da existncia de uma famlia
chinesa que ainda possua, segundo se dizia, um registro completo da
situao e da posio das minas. O chefe da famlia chamava-se Wu
Ling.
- Mas que pgina fascinante de romance comercial!
- exclamei, num sbito impulso.
- No mesmo? Ah, mon ami, podem-se ter romances sem jovens de
beleza inigualvel e cabelos dourados ... no, no, estou enganado; so
os cabelos ruivos os que mais o excitam! Est lembrado ...
216 a 217
praticamente no se envolvera com os outros passageiros durante a
viagem. S tivera um contato maior com dois outros passageiros: um
europeu arruinado, chamado Dyer, que mais parecia um urso e tinha uma
pssima reputao; e um jovem bancrio, Charles Lester, que estava
voltando de Hong Kong. Tivemos sorte de obter fotografias de ambos.
A essa altura, parecia no haver a menor dvida de que, se um dos dois
estava implicado no crime, s podia ser Dyer. Sabia-se que ele andara
envolvido com uma quadrilha de chineses e, por isso tudo, era o suspeito
mais provvel. "Nossa prxima providncia foi visitar o Russell
Square
Hotel. Mostramos uma fotografia de Wu Ling, que foi prontamente
reconhecido. Apresentamos em seguida a fotografia de Dyer. Mas, para
nosso desapontamento, o recepcionista declarou taxativamente que no
fora aquele homem que aparecera no hotel na manh fatdica. Num sbito
impulso, mostrei a fotografia de Lester. E ficamos espantados quando o
recepcionista imediatamente o reconheceu. " - Foi esse o cavalheiro que
apareceu aqui por volta das dez e meia e pediu para falar com o sr. Wu
Ling - declarou o recepcionista do hotel. - - Logo em seguida, os
dois saram juntos. "O caso estava progredindo rapidamente. Nossa
prxma providncia foi interrogar o sr. Charles Lester. Ele nos
recebeu prazerosamente, declarou-se desolado com a morte prematura do
chins e colocou-se inteiramente nossa disposio, para ajudar no que
fosse possvel. Contou-nos uma estranha histria. Combinara com Wu
Ling que o iria procurar no hotel, s dez e meia da manh. Wu Ling,
no entanto, no aparecera. Em vez disso, o criado dele se apresentou,
explicando que o patro tivera de sair e se oferecendo para conduzi-lo
ao lugar onde ele se encontrava naquele momento. Sem desconfiar de
nada, Lester concordou.
O chins chamou um txi. Seguiram na direo das docas.
Subitamente, Lester desconfiou que alguma coisa estava errada, mandou
o txi parar e saltou, ignorando os protestos do criado. Assegurou-nos
que isso era tudo o que sabia. "Aparentemente satisfeitos, agradecemos
e nos despedimos. No demoramos a verificar que a histria dele era um
tanto inexata. Para comear, Wu Ling no se apresentara com nenhum
criado, nem no navio nem no hotel. Depois, o motorista de txi que
conduzira os dois homens, naquela manh, apresentou-se polcia.
Declarou que Lester no deixara o txi no meio do caminho, como nos
dissera.
Ao contrrio, o chofer levara os dois a uma casa de pssima reputao,
em Limehouse, no corao de Chinatown.
A casa era relativamente bem conhecida como um antro de fumadores de
pio. Os dois homens entraram. Cerca de uma hora depois, o ingls, a
quem ele identificou pela fotografia, saiu sozinho. Estava plido,
parecia estar passando mal.
Ordenou ao motorista que o levasse estao do metr mais prxima. '`
Investigamos a situao de Charles Lester e descobrimos que, apesar de
sua excelente reputao, estava bastante endividado e tinha uma paixo
secreta pelo jogo. claro que no tnhamos perdido Dyer de vista.
Afinal, havia uma ligeira possibilidade de que ele tivesse se
finalmente escapar dali, pagando caro pelo pio que no tnhamos fumado.
Assim que deixamos
Limehouse para trs, Pearson soltou um longo suspiro. " - Estou
contente por ter sado daquele lugar -_ disse ele. - Mas valeu a pena,
porque agora temos certeza. " - Tem toda a razo - concordei. - E
imagino agora que no teremos muita dificuldade em descobrir o que
estamos querendo ... depois da mascarada desta noite. "E no houve
realmente a menor dificuldade", concluiu Poirot, subitamente.
Aquele final abrupto parecia to extraordinrio que fiquei olhando para
ele, aturdido, em silncio, por um minuto. S depois que perguntei:
- Mas ... mas onde estavam os documentos?
- No bolso dele... tout simplement.
- Mas no bolso de quem?
- Do sr. Pearson, parbleu! - Percebendo meu espanto, Poirot
acrescentou, suavemente: - Ainda no percebeu? O sr. Pearson, como
Charles Lester, estava bastante endividado. O sr. Pearson, como
Charles Lester, gostava de jogar. E teve a idia de roubar os
documentos do chins.
Encontrou-se com Wu Ling em Southampton, veio com ele para Londres
e levou-o diretamente para Limehouse. Era um dia enevoado, o chins
no podia perceber direito para onde estava indo. Imagino que o sr.
Pearson tivesse o hbito de ir at l fumar pio e por isso tinha
inmeros amigos chineses. No creio que tivesse inicialmente a inteno
de assassinar Wu Ling. Sua idia era fazer com que um dos seus amigos
chineses passasse por Wu Ling e recebesse o dinheiro pela venda dos
documentos. Mas, para a mente oriental, era muito mais simples matar
Wu Ling e jogar o corpo no rio. Os cmplices chineses de Pearson
seguiram seus prprios mtodos, sem o consultar. Imagine o desespero
que deve ter dominado Pearson. Algum poderia t-lo visto no trem com
Wu Ling, e um assassinato muito mais grave do que um simples
seqestro. "A salvao dele dependia do chins que estava se fazendo
passar por Wu Ling no Russell Square Hotel. Se o corpo no fosse
descoberto antes do tempo, talvez conseguisse escapar. Provavelmente
Wu Ling lhe tinha falado que combinara encontrar-se com Charles
Lester no hotel.
Pearson compreendeu que esse era o caminho para desviar as suspeitas de
si mesmo. Charles Lester seria a ltima pessoa a ser vista em
companhia de Wu Ling. O chins impostor recebeu ordens de se
apresentar a Lester como o criado de Wu Ling, devendo lev-lo o mais
depressa possvel para Limehouse. Ali, provavelmente, ofereceram um
drinque a Lester. O drinque devia conter alguma droga.
Quando Lester saiu, uma hora depois, no podia deixar de ter uma idia
muito vaga e nebulosa sobre o que acontecera. Foi por isso que, ao
saber da morte de Wu Ling, perdeu inteiramente a coragem e negou que
sequer tivesse chegado a Limehouse. "E, com isso, ele fez justamente o
jogo de Pearson.
Mas este se contentou? Absolutamente! Estava apreensivo com minha
atitude e decidiu tornar ainda mais patente a culpa de Lester, no
deixando a menor margem a dvidas.
Por isso, providenciou aquela mascarada. Eu deveria engolir a isca com
anzol e tudo. No acabei de dizer que ele parecia um menino fantasiado,
brincando de charadas? Eh bien, desempenhei meu papel. Ele voltou para
casa no maior regozijo. Mas, pela manh, o inspetor Miller foi bater
sua porta. Os documentos foram encontrados em seu poder.
Era o fim da linha para Pearson. Amargurado, ele se lamentou pela
ousadia de ter tentado representar uma farsa diante de Hercule Poirot!
S houve realmente uma nica dificuldade em todo o caso."
- E qual foi? - indaguei, curioso.
- Foi convencer o inspetor Miller! Mas que animal!
Ele ao mesmo tempo teimoso e imbecil! E, no final, foi ele que
acabou ficando com todo o crdito pela soluo!
- O que lamentvel, Poirot.
- Mas no se pode dizer que eu no tenha tido minhas compensaes.
Os outros diretores das Minas da Birmnia Ltda. deram-me catorze mil
aes da empresa, como uma pequena recompensa por meus servios. Nada
mau, hein? Mas, em matria de investir dinheiro, Hastings, eu lhe peo
que seja sempre conservador. As notcias que lemos nos jornais podem
no ser verdadeiras. Os diretores da Porcupine... podem perfeitamente
ser outros senhores
Pearsons!
222 a 223
XIV
A caixa de bombons
Estava uma noite horrvel. L fora, o vento uivava furiosamente e a
chuva batia em rajadas violentas contra as janelas.
Poirot e eu estvamos sentados diante da lareira, com as pernas
estendidas na direo do fogo revigorante. Entre ns estava colocada
uma mesa pequena. Do meu lado da mesa havia um grogue quente,
cuidadosamente preparado.
Do lado de Poirot, havia uma xcara com uma mistura espessa e forte de
chocolate, que eu no beberia nem que me dessem cem libras. Poirot
pegou a xcara de porcelana rosa e tomou um gole da beberagem,
suspirando, contente.
- Quelle belle vie! - murmurou ele.
- Tem toda a razo. um mundo dos melhores.
Aqui estou eu, com um bom emprego, como no podia querer melhor. E a
est voc, famoso...
- Oh, mon ami! - protestou Poirot.
- Mas voc realmente famoso, Poirot. E com toda a justia,
diga-se de passagem. Quando penso em sua longa sucesso de triunfos
espetaculares, no posso deixar de ficar espantado. No acredito que
tenha sofrido um fracasso!
- S um doido ou um palhao poderia afirmar que jamais conheceu o
fracasso.
- Falando srio, Poirot: alguma vez j fracassou?
- Inmeras vezes, meu amigo. O que voc queria?
La bonne chance' nem sempre pode estar do nosso lado.
Muitas vezes fui chamado quando j era tarde demais. Em outras
ocasies, certos homens, que trabalhavam com o mesmo objetivo,
conseguiram chegar na minha frente. Por duas vezes, fui acometido por
- Bon! Neste caso, quero que saiba que sou da polcia. Pode
localizar-me a outra caixa?
- Sem a menor dvida, monsieur. Deve estar ainda na lata de lixo.
Franois retirou-se. Voltou minutos depois, com um objeto coberto de
poeira. Era exatamente igual caixa que estava no gabinete, com uma
nica diferena: a caixa propriamente dita era azul, enquanto a tampa
era rosa. Agradeci a Franois, recomendei-lhe novamente que nada
revelasse e deixei a casa da Avenue Louise.
Fui visitar o mdico que atendera M. Droulard. No foi uma
entrevista fcil. Ele se entrincheirou por trs de uma muralha de
fraseologia erudita. Mas tive a impresso de que no estava to seguro
a respeito do caso quanto queria aparentar. Quando consegui finalmente
desarm-lo um pouco, ele comentou:
- Tem havido muitas ocorrncias desse tipo. Um sbito acesso de
raiva, uma emoo violenta... depois de um copioso jantar, c'est entendu
... o sangue sobe cabea e... pronto! Temos mais uma vtima!
- Mas M. Droulard no teve nenhuma emoo violenta.
- No? Pelo que eu soube, ele estava tendo uma violenta discusso
com M. de Saint-Alard.
- Por que os dois iriam discutir?
- C'est vident! - O mdico deu de ombros e acrescentou: - M. de
Saint-Alard no era um catlico dos mais fanticos? A amizade entre
os dois estava sendo destruda pela questo entre a Igreja e o Estado.
No se passava um s dia sem que discutissem. Para M. de SaintAlard, M.
Droulard era quase como se fosse o Anticristo.
Era uma revelao inesperada e deu-me o que pensar.
- S mais uma pergunta, doutor: seria possvel introduzir uma dose
fatal de veneno num chocolate?
- Acho que sim. cido prssico puro poderia ser introduzido num
bombom, se no houvesse possibilidade de evaporao. Poderia ser
engolido sem que a pessoa percebesse. Mas no parece ser uma suposio
das mais provveis.
Um bombom cheio de morfina ou estricnina ... - O mdico fez uma
careta antes de continuar: - Uma s mordida seria suficiente, M.
Poirot. O incauto morreria quase instantaneamente.
232 a 233
- Obrigado, monsieur le docteur.
Retirei-me. Em seguida, fui interrogar os farmacuticos, especialmente
os estabelecidos nas proximidades da
Avenue Louise. muito bom ser da polcia. Obtive a informao que
desejav a sem maiores dificuldades. Somente um dos farmacuticos
vendera veneno para a casa em questo. Tinham sido algumas gotas de
sulfato de atropina, que Mme Droulard usava nos olhos. A atropina
um veneno poderoso. No momento, fiquei exultante. Mas os sintomas de
envenenamento por atropina so muito parecidos com os da ptomana. No
tinham a menor semelhana com o caso que eu estava investigando. Alm
do mais, a receita era antiga. Mme Droulard sofria de catarata em
ambos os olhos havia muitos anos.
Eu j ia me afastando, desanimado, quando o farmacutico me chamou:
no era verdade que o sr. Wilson perdera um vidro h algum tempo. Ela
respondeu, com a maior ansiedade, que era verdade, que inclusive fora
responsabilizada por isso. O cavalheiro ingls pensara que ela quebrara
o vidro e ficara com medo de confessar. Mas ela, Flicie, nem sequer
tocara nele. Certamente fora Jeannette ... sempre bisbilhotando onde
no devia ...
Tratei de estancar seu fluxo de palavras e me retirei.
J sabia tudo o que precisava saber. Restava-me agora obter as provas
necessrias. Tinha certeza de que no seria fcil.
Eu podia estar absolutamente convencido de que SaintAlard tirara o
vidro de trinitrina de John Wilson, mas teria
234 a 235
que obter provas para convencer os outros. E no tinha nenhuma para
apresentar!
Mas no importava. Eu sabia ... e isso era o mais importante.
Lembra-se de nossa dificuldade no caso de Styles,
Hastings? Eu tambm sabia de tudo, mas levei bastante tempo para
descobrir o ltimo elo que iria incriminar o assassino.
Solicitei uma entrevista com Mlle Virginie. Ela foi procurar-me
imediatamente. Pedi-lhe o endereo de M. SaintAlard. Uma expresso
ansiosa se estampou em seu rosto.
- Por que deseja saber, monsieur?
- absolutamente necessrio, mademoiselle.
Ela parecia desconfiada, apreensiva.
- Ele nada poder dizer-lhe. um homem cujos pensamentos no esto
neste mundo. Mal percebe o que est acontecendo a seu redor.
- possvel, mademoiselle. No obstante, era um velho amigo de M.
Droulard. Talvez possa nos dar informaes teis ... coisas do
passado ... velhos ressentimentos ... antigos casos de amor ...
A jovem corou e mordeu levemente o lbio.
- Como quiser ... mas ... mas ... tenho certeza agora de que me
enganei. Foi muito generoso ao atender meu pedido, mas eu estava na
ocasio bastante transtornada... profundamente abalada. Compreendo
agora que no h mistrio algum para ser esclarecido. Abandone o caso,
por favor, monsieur.
Fitei-a atentamente.
- Mademoiselle, s vezes difcil para um cachorro farejar um
cheiro. Mas a partir do momento em que consegue farej-lo, nada no
mundo poder fazer com que se desvie da pista. Isto , se for um bom
cachorro. E eu, mademoiselle, eu, Hercule Poirot, sou um excelente
perdigueiro!
Sem dizer mais nada, ela se retirou. Voltou alguns minutos depois, com
o endereo escrito num pedao de papel. Deixei a casa. Franois estava
me esperando do lado de fora. Parecia nervoso.
- Alguma novidade, monsieur?
- Ainda no, meu amigo.
- Ah, pauvre M. Droulard! Tambm penso como ele. No gosto dos
padres. verdade que jamais diria isso nesta casa. As mulheres so
tidas devotas ... o que talvez seja uma boa coisa. Madame est trs
pieuse... et Mlle Virginie aussi 1.