Este trabalho analisa a memória de imigrantes representada em túmulos e lápides nos cemitérios da Consolação e do Brás em São Paulo entre os séculos XIX e XX. O estudo comparativo desses dois cemitérios, que receberam diferentes grupos imigrantes, busca entender como eles mantiveram vínculos com suas terras de origem e construíram sua imagem após a morte. A pesquisa se baseia em análise de imagens tumulares e documentação para compreender como a memória imigrante foi representada nesses
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Este trabalho analisa a memória de imigrantes representada em túmulos e lápides nos cemitérios da Consolação e do Brás em São Paulo entre os séculos XIX e XX. O estudo comparativo desses dois cemitérios, que receberam diferentes grupos imigrantes, busca entender como eles mantiveram vínculos com suas terras de origem e construíram sua imagem após a morte. A pesquisa se baseia em análise de imagens tumulares e documentação para compreender como a memória imigrante foi representada nesses
Este trabalho analisa a memória de imigrantes representada em túmulos e lápides nos cemitérios da Consolação e do Brás em São Paulo entre os séculos XIX e XX. O estudo comparativo desses dois cemitérios, que receberam diferentes grupos imigrantes, busca entender como eles mantiveram vínculos com suas terras de origem e construíram sua imagem após a morte. A pesquisa se baseia em análise de imagens tumulares e documentação para compreender como a memória imigrante foi representada nesses
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Este trabalho analisa a memória de imigrantes representada em túmulos e lápides nos cemitérios da Consolação e do Brás em São Paulo entre os séculos XIX e XX. O estudo comparativo desses dois cemitérios, que receberam diferentes grupos imigrantes, busca entender como eles mantiveram vínculos com suas terras de origem e construíram sua imagem após a morte. A pesquisa se baseia em análise de imagens tumulares e documentação para compreender como a memória imigrante foi representada nesses
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Mirtes Timpanaro
A morte como memria:
imigrantes nos cemitrios da Consolao e do Brs.
Orientador: Prof. Dr. Jlio Pimentel Pinto
UNIVERSIDADE DE SO PAULO So Paulo 2006
2 MIRTES TIMPANARO
A morte como memria: imigrantes nos cemitrios da Consolao e do Brs.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo como requisito parcial para obteno do ttulo de mestre.
Orientador: Prof. Dr. Jlio Pimentel Pinto 3
RESUMO
Este trabalho estuda a presena imigrante nos cemitrios da Consolao e do Brs, necrpoles que se tornaram museus a cu aberto. Famlias de imigrantes construram, intencionalmente ou no, em suas sepulturas nesses dois cemitrios atravs de esculturas, monumentos, inscries, localizao memrias de experincias histricas da cidade de So Paulo na passagem do sculo XIX para o XX. O processo de constituio de ambos cemitrios e sua atual condio revelam a diversidade das trajetrias imigrantes. A pesquisa se baseou, alm dos registros bibliogrficos, em livros de inumao e de arrecadao e um grupo de tmulos, que foi analisado sob a tica da memria imigrante.
PALAVRAS-CHAVE: Cemitrio, imigrao, memria e So Paulo
ABSTRACT
This paper discusses the immigrants presence in Consolao Cemetery and in Brs Cemetery two necropolises which have become open air museums. In these two cemeteries, intentionally or not, immigrant families had built through sculptures, monuments, inscriptions, places memories of historical experiences of So Paulo city in the turn from the 19 th century to the 20 th century. The constitution of these two cemeteries as well as their current condition, reveal the differences among diverse groups of immigrants. The research was conducted based on bibliographical records, on burying records, and on some sepulchral structures, which were analyzed from the immigrant memory point of view.
KEYWORDS: Cemetery, immigration, memory and So Paulo 4
Ao Helio, ao Guilherme e Lusa, que chegou por ltimo. Todos descendentes de imigrantes.
5
Aos vivos e aos mortos
Quando eu morrer quero ficar, No contem aos meus inimigos, Sepultado em minha cidade, Saudade.
Mrio de Andrade
PUC/SP, pela slida formao na graduao em Histria. USP, pela possibilidade de realizar esta pesquisa. Aos professores dessas duas instituies, que em tudo contriburam para a minha vida profissional. Secretaria do Estado de Educao de So Paulo, pela bolsa- mestrado concedida nos dois ltimos anos e meio, e que em muito contribuiu para a realizao e finalizao deste trabalho. Ao Arquivo Municipal e a todos os seus funcionrios sempre solcitos em atender todos os pedidos. Ao setor de Imprensa do Servio Funerrio de So Paulo, em especial Isaura, que possibilitou todo o material fotogrfico estudado aqui. Ao Sr. Francivaldo, pessoa de mxima importncia nos caminhos do Consolao; seu amor a esse cemitrio um dos motivos que o fazem, ainda, estar de p. Aos funcionrios do Brs - coveiros, pessoal da limpeza e da administrao -, sempre prontos a tirar dvidas, contar histrias e nos localizar no labirinto que o Quarta Parada. Aos membros da banca do exame de qualificao, Professora Eni Smara e Professor Guilherme Simes Gomes Jnior, pelas importantes contribuies dadas. 6 Ao Professor Jlio Pimentel Pinto, pela confiana que depositou na realizao deste trabalho, na pacincia com os meus percalos durante a pesquisa e pela liberdade intelectual durante todo o percurso. Ao amigo Jlio, de todas, todas as horas, e que no faltou neste momento. Gi e Lia, que souberam como ningum cuidar do Gui quando a Lusa chegou, meus dois lindos percalos que nasceram durante o fazer desta pesquisa. Ao Joo, Tnia e ao Felipe; de tempos em tempos, nos encontros ao redor da mesa, descontraamos das dificuldades de enfrentar uma pesquisa acadmica. Mrcia, pelo abstract e pelas keywords, feitos toque de caixa, e por indicar a existncia da bolsa-mestrado. Ao Olival, Mrcia, novamente, ao Dudu e ao F, por todos os nossos encontros, sempre alegres, e por estarem sempre presentes. confraria, um grupo especial em que, entre vinhos, jantares e discusses futebolsticas, reside uma grande amizade. Ao Pedro, Elaine, Letcia e Bia, por todo um passado to presente, uma adolescncia feliz e inesquecvel, pelas perdas compartilhadas; vocs todos sabem mas, claro, sobretudo voc, Elaine, sabe o porqu desta pesquisa. minha me, que mesmo tendo estudado muito pouco sempre deu um grande valor ao estudo e me estimulou ao mximo para chegar at aqui; com seus oitenta anos traz o conhecimento do mundo na simplicidade em que o vive. Ao meu pai, que no me viu completar o ento segundo grau, que teria lido todos os meus livros e textos de histria da graduao antes de mim, que teria se orgulhado de ver sua filha ter chegado aonde chegou e, mais que tudo, teria vibrado ao segurar os seus netos, os quatro, que no viu nascer. 7 Ao Gui e Luisinha, minhas duas prolas, meus dois amores, fonte de aprendizagem e conhecimento maior do que qualquer trabalho acadmico. Ao Helio que fotografou todo este rico material com os olhos carinhosos de quem sabe o quanto este trabalho importante para mim, que me estimulou, deu fora e, acima de tudo, continua a me fazer rir. Ao Helio pai do Gui e da L, que me faz muito feliz e que eu amo tanto.
8 NDICE
I. Cemitrios, imigrantes e memrias............................... 9
II. Pensando sobre a morte.............................................. 28
III. Museus a cu aberto: Consolao e Brs........................ 66
1. Museus a cu aberto............................................... 66
2. Os nossos museus: So Paulo e o nascimento do Consolao e do Brs (Quarta Parada)....................... 77
IV. A fala dos cones:.......................................................111
1. A voz do Consolao...............................................116
1.1. As mulheres de mrmore branco.......................116 1.2. Os imigrantes.................................................119
2. A voz do Brs........................................................171
2.1. A ala mais antiga do Quarta Parada...................171 2.2. Os imigrantes.................................................174
V. A memria dos vivos e dos mortos..............................220
VI. Anexos....................................................................225
VII. Fontes.....................................................................236
VIII. Bibliografia...............................................................238 9
I. Cemitrios, imigrantes e memrias
A comparao a varinha de condo da Histria. Marc Bloch
1. A proposta deste trabalho discutir a memria imigrante em seu momento mais delicado: a morte. As imagens tumulares, as lpides e a documentao de dois cemitrios (Consolao e Brs) foram estudadas para entender as diferentes formas de representao e de construo da memria imigrante. A inteno, portanto, perceber como aqueles que passaram por um desenraizamento definitivo mantiveram vnculos com o seu passado (a terra de origem) e seu presente (a terra escolhida para viver), construindo uma imagem, intencionalmente ou no, de si mesmos e usando para isso o espao tumular. O ponto principal desta pesquisa reside na comparao de dois diferentes cemitrios, oriundos de diferentes regies, recebendo diferentes famlias imigrantes, porm todos pertencendo mesma cidade: So Paulo. A inteno buscar nessa comparao semelhanas (e ou diferenas) dentro desse grupo imigrante, quanto forma de marcar sua existncia aps a morte. O intervalo cronolgico delimitado pelo final do sculo XIX e pela dcada de quarenta do sculo XX, perodo de maior entrada de imigrantes no Brasil e de sua fixao nestas terras estrangeiras. Para isso foram realizadas leituras de obras de historiadores, arquitetos, arquelogos, crticos de arte, que so comentados em todo o percurso deste trabalho e que serviram para esclarecer um campo de pesquisa cada vez mais procurado: os cemitrios e as imagens funerrias que povoam o seu interior. A bibliografia, focada em diferentes temas de pesquisa buscou, cada qual, entender melhor um 10 pedao da sociedade brasileira e sua atitude, sua relao, seu convvio com a morte e com seus mortos. Todas essas discusses levaram a um tema que ainda no foi suficientemente estudado: o estudo da memria do imigrante (italiano, espanhol, portugus, rabe...) encontrada nos tmulos localizados nos cemitrios do Consolao e do Brs, estudo comparativo entre dois tipos de imigrantes separados por sua condio econmica e por seu lugar de enterro - que refizeram suas vidas e deixaram para os vivos algo mais do que uma mera lembrana. Uma memria construda numa terra distante, um local de pertena da nova famlia ali instituda e transportada para dentro dos campos santos de maneira to forte como a presena imigrante que percebemos na cidade de So Paulo. Essa proposta de pesquisa analisa as imagens funerrias, somadas s epgrafes, s localizaes no interior dos cemitrios e a uma documentao escrita: os livros de inumao e os de arrecadao dos cemitrios da Consolao e do Brs, as leis provinciais que esclareciam as formas de enterro e a conduo dos cadveres at a necrpole e algumas plantas da cidade que demonstravam a distncia desses dois cemitrios, cada um a seu momento, em relao ao centro da cidade. Os tmulos foram escolhidos pelas datas de sepultamento, uma vez que nem todos os tmulos trazem a datao obra que foi ali colocada, de quando este ou aquele detalhe foi incorporado ou retirado da sepultura e menos ainda quando foram construdos. Na verdade bem poucos possuem esse registro privilegiado do escultor ou da marmoraria. Utilizei, nesses casos a data mais antiga encontrada no tmulo, sem deixar de lado o fato de que a obra final possa ter sido colocada posteriormente, o que vale como constatao de que a famlia tem um papel importantssimo na manuteno da memria do imigrante ali enterrado e do seu sobrenome para aqueles que viro.
11 2. O Consolao e o Quarta Parada (cemitrio do Brs) guardam dentro de si bem mais do que anjos, santos e figuras alegricas, como muitos pesquisadores j vm demonstrando. So necessrios olhos que busquem ver mais do que as aes representadas nos tmulos os olhos de especialista propostos por Ginzburg 1 e preciso procurar a poro invisvel de histria e de memria existente ali. Nessa procura se encontra a minha questo quanto existncia de elos entre os imigrantes bem sucedidos que residem no Consolao e os imigrantes dos bairros fabris que se encontram no cemitrio da Quarta Parada. Mantiveram seus laos com a terra natal ou procuraram se misturar s famlias j h muito estabelecidas no Brasil? Havia uma autenticidade, um trao imigrante que se incorporou no cuidado com os seus mortos, na maneira como suas memrias foram colocadas a pblico? Estas foram algumas das questes que busquei trabalhar nesta pesquisa.
3. Vejo o espao da necrpole como Wachtel 2 : ligao de dois mundos, o dos mortos e o dos vivos (no caso desta pesquisa de maneira mais literal) um lugar de encontro de duas disciplinas - a histria e a antropologia. Entender o nascimento, os caminhos e descaminhos da antropologia ajudou a preparar melhor uma trilha de pesquisa que se presta a uma discusso histrico-antropolgica, mesmo que o outro em questo seja bem diferente do selvagem to estudado pela antropologia. O antroplogo Marcel Mauss, intelectual de grande influncia para os Annales, fala do estudo, ou melhor, da busca de um fato social total como forma de entrada numa sociedade. A morte, os ritos que compem a atitude dos
1 GINZBURG, Carlo. Mitos emblemas sinais. Morfologia e Histria. So Paulo: Companhia das Letras, 1989. 2 Nathan Wachtel, antroplogo e historiador, realizou uma conferncia no anfiteatro da histria da Universidade de So Paulo em 23 de outubro de 2002 e, para explicar seu trabalho interdisciplinar, citou o historiador Marc Bloch em uma de suas frases instigantes: o papel da histria est em ser a ligao entre o estudo dos mortos com o dos vivos.... teria sido esta ponte que lhe trouxe o desejo de estudar ao mesmo tempo a antropologia e a histria. 12 homens diante da morte, as representaes oriundas desses ritos, a memria ali deixada pode ser encarada como um fato social total a ser estudado e entendido por antroplogos e historiadores. A sociedade ocidental procurou, em tempos diferentes e de formas diferentes, guardar a memria de seus mortos. Essas formas foram transmitidas gerao aps gerao e, nos momentos de grandes fluxos populacionais, foram levadas pelas famlias que migraram para lugares distantes. Ao chegar nova terra a famlia imigrante tentou manter suas tradies, seus costumes e mais: teve, longe de casa, a necessidade de manter vivo o nome de sua famlia, mesmo aps a morte. No final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX, a capital paulista passava por um grande momento de transformao. As mudanas de comportamento diante de novas linguagens a do cinema, do rdio, e mesmo de um novo tipo de msica que cantava a cidade veloz e frentica no seu pulsar incessante e moderno j eram percebidas no dia a dia da cidade. Some-se a esse momento a chegada dos imigrantes e teremos uma outra cidade. So Paulo, ao receber os milhares de imigrantes vindos de vrios lugares do mundo, sofreu mudanas comportamentais irreversveis. Na fala, nos trejeitos, nos hbitos alimentares e at mesmo dentro de nossos cemitrios a presena imigrante era percebida. A cidade vivia um difcil paradoxo: o passado colonial ainda presente em suas ruas sem asfaltos, ladeadas por casas de taipa e por onde passeavam burros, cabras e galinhas, convivia com um (tambm presente) desejo de modernidade, estampado nos trilhos dos bondes, nas construes de Ramos de Azevedo e nos diferentes idiomas espalhados pelos bairros de So Paulo.
13
3
Tmulo de Elias Calfat
3 Todas as fotografias, atuais, dos cemitrios da Consolao e do Brs pertencem ao meu acervo particular e foram feitas por Helio Gastaldi Filho. 14
Detalhe do tmulo de Demetrio Calfat
15
Detalhe do tmulo de Demetrio Calfat
16
Tmulo de Demetrio Calfat
As quatro imagens anteriores sugerem algumas dessas transformaes, ou melhor, de interferncias feitas pelos imigrantes no interior do cemitrio da Consolao. A famlia Calfat, dois tmulos diferentes, marcou as origens e a importncia de seus patriarcas no local da ltima morada de Elias Calfat e de Demetrio Calfat. Esse feito trazia consigo a certeza de que aqueles que visitassem o cemitrio passariam pelo tmulo e perceberiam nele as origens de seu proprietrio, assim como algumas caractersticas de seu cotidiano, o 17 gosto pelo trabalho e at mesmo a prosperidade de sua vida nesta terra estrangeira. Os desenraizados marcaram sua posio e seu valor no s nos nomes deixados a seus descendentes nas lojas, fbricas, manses ou mesmo em ruas e avenidas; elas foram estrategicamente colocadas no interior de cemitrios como o da Consolao, e casualmente em cemitrios como o do Brs. Eram vozes prontas a serem ouvidas por aqueles que ali passassem.
4. Ainda na terra natal depois de tomada a deciso de sair de seu lugar de origem, deixar sua terra, seus amigos e muitos de seus familiares, iniciava-se o longo e difcil percurso rumo vida nova. Os problemas comeavam em seu prprio territrio, com as dificuldades para chegar ao porto onde o navio que os conduziria os esperava. 4
Dentro da embarcao se tornavam explcitos os contrastes culturais existentes em sua prpria ptria
Os choques aconteceram entre imigrantes de um mesmo pas, demonstrando que entre um alemo do Palatinado e um da Baixa Saxnia, ou entre um italiano do Vneto e outro de Npoles, as diferenas de hbitos, lngua etc. eram significativas. Assim, Luigi Toniazzo, vneto tambm, descreve sua viagem com destino ao Rio Grande do Sul, em 1893, indignado: Como estvamos amontoados naquele navio meu Deus, quando embarcaram outros passageiros. (...) No compreendia patavina de quanto falavam aqueles napolitanos e eu, tmido por natureza, no conseguia compreender como havia tido coragem de lanar-me no meio de tantos desconhecidos (...)
4 Algumas dessas referncias so percebidas nos tmulos do Consolao: o mar e o navio que levou a famlia para a nova terra (tmulo de Baslio Jafet). 18 At o dia 13, no encontrei nada de novo em relao natureza, mas acho necessrio anotar as malditas rixas daqueles nojentos napolitanos, que a todos serviam de fastio por causa de seus modos imundos e de sua incivilidade mais que terrvel. Assuavam o nariz com as mos, bem aos nossos ps, quando estvamos a comer, sem perceber-se da imprudncia e estavam, cheios de piolhos como galinhas; coavam-se nos seios de suas mulheres e estas ficavam a matar piolhos na presena de todos. E este trabalho era feito sem a mnima vergonha, como se estivessem fazendo bordados. 5
Quando diferentes lnguas e origens se encontravam, as dificuldades em compreender o outro ainda eram maiores, principalmente quando o pblico e o privado eram entendidos de maneira diferente:
Mais do que tudo, esse choque entre pblico e privado se concretizou nas novas atividades produtoras que os imigrantes foram obrigados a exercer para sobreviver, nos hbitos de morar, de cuidar da higiene pessoal de se alimentar e ainda nas prticas religiosas, educacionais e sanitrias, to diferentes daquelas do seu mundo natal. Entre uma italiana pauprrima que no via nenhum mal em liberar a cabea de seus filhos e do marido dos piolhos na frente de todos os passageiros do navio que os transportava para o Novo Mundo e um grupo de japoneses, to habituados ao banho dirio, que no hesitaram em desnudar-se e jogar- se no rio Iguape, em Registro, para se banhar na
5 ALVIM, Zuleika. Imigrantes: a vida privada dos pobres do campo., In: SEVCENKO, Nicolau (Org.). Histria da vida privada no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 3. p. 239/240. 19 frente dos moradores da cidade, sculos de hbitos, educao e cultura estavam em jogo. 6
Tanto estranhamento entre pessoas de um mesmo pas, de pases diferentes e de todos com relao aos habitantes da nova terra nos mostra o caos inicial nesse fenmeno histrico chamado imigrao. A nova terra guardava segredos em seu clima, em sua vegetao, em seus animais, em suas moradias e no comportamento muitas vezes arredio de parte dos brasileiros frente ao estrangeiro. Os abusos iniciais entre fazendeiros e colonos, e depois entre donos das fbricas e operrios, a moradia nas rsticas casas de colonos e nos cortios foram moldando um comportamento que mesclava a recriao de tradies mistura cultural ali vivida. Foi nesse misto de pertencer a um outro lugar, das memrias trazidas desse lugar, no contato com o novo, na difcil percepo de que o retorno se transformava em algo distante e na criao de um novo lar (novo pelo espao, mas tambm novo pelos novos casamentos, novos filhos, novos sobrenomes) que permitiu entender a conflitante memria que reside nesses dois importantes cemitrios que guardam em seus interior a presena da imigrao. No Brasil, mais especificamente na cidade de So Paulo, as famlias imigrantes que passaram a residir em bairros como Brs, Bexiga, Mooca, Liberdade, Ipiranga e Lapa, entre outros, modificaram seus hbitos e a vida desses bairros e de toda a cidade.
A viso corrente que temos da So Paulo dos primeiros decnios do sculo XX como cidade dos italianos, reala a significativa presena dos peninsulares, mas tende a obscurecer o impacto contraditrio que produziu a instalao em grande
6 Op. cit. p. 216/217. 20 nmero de imigrantes, desta ou daquela origem, na cidade. (...) Em uma srie de reportagens, datadas de 1929, Guilherme de Almeida narra um passeio de automvel, real ou imaginrio, no caso pouco importa, que faz em visita aos bairros tnicos de So Paulo, habitados por portugueses, espanhis, rabes, judeus, lituanos, japoneses, italianos. Desce em alguns lugares colhendo impresses em que a estranheza brota dos contatos com as etnias mais extica: judeus religiosos e japoneses. O primeiro contato com a paisagem humana do bairro do Bom Retiro sintetiza-se nesta descrio: O auto passou rente da sobrecasaca larga. E a sobrecasaca foi se afinando de novo, logo depois, vista de frente. Cara a cara com a primeira cara do gueto paulistano. Cara? Barba e nariz. O primeiro judeu. Andava com um vagar digno de sua sobrecasaca. (...) Em outra passagem, Guilherme de Almeida refere- se ao ento minsculo bairro japons, praticamente concentrado na rua Conde de Sarzedas. Ele entra em um restaurante e pergunta o que h para comer. A resposta parte de uma japonesinha sria, distinta, honesta, toda entre cortinas de cretone alegre, de desenhos quase to japoneses como ela, em voz seca:- No tem comida pra branco. 7
Os preconceitos eram correntes de lado a lado dessa nova experincia. Os brasileiros viam na entrada do estrangeiro uma mudana irreversvel no viver da cidade: no som dos novos idiomas
7 FAUSTO, Boris. Imigrao: cortes e continuidades, In: SCHWARCZ, Lilia M. (Org.). Histria da vida privada no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. v. 4. p.21 a 24. 21 falados pelas ruas, nos cheiros e gostos das novas comidas, na viso das novas construes que visavam, em alguma coisa, parecer com o que foi deixado para trs. Uma mudana que modificaria a velha So Paulo colonial, quatrocentona, da tradio de fortes bandeirantes e velhas damas:
O normal destino da nossa memria ir-se desintegrando com o perpassar do tempo, e em regra na idade da autora descai para o desarranjo a que chamamos de caduquice ou reverte infantilidade a segunda infncia. Mas h excees, como no caso de Dona Maria. Graas a esse verdadeiro fenmeno, temos hoje diante de ns um quadro panormico do que fomos socialmente muitas dcadas atrs, na reconstituio das idias, dos costumes, dos preconceitos, dos brinquedos, dos passeios, das diverses, da mesa e de tudo mais que formava o modus vivendi duma numerosa famlia de alto estado e severos princpios de moralidade. (...) Dona Maria Paes de Barros oferece sociedade paulista de hoje o daguerretipo do que essa sociedade foi antes da invaso imigrantista que a descristalizou e ainda a mantm na instabilidade atual .8 .
Esse sentimento de perda criou e fortaleceu imagens preconceituosas do estrangeiro, o italiano carcamano, o judeu de prestao, o espanhol encrenqueiro, o turco embrulho etc. Do lado do estrangeiro a viso sobre os brasileiros tambm era recheada de dados preconcebidos, em que aparece o preguioso, que se arroga o direito sobre a terra sem nada fazer por ela. Seja como for os locais
8 LOBATO, Monteiro. Breve Explicao, In: BARROS, Maria Paes de. So Paulo, Paz e Terra, 1998, p.3. 22 e estrangeiros acabaram por criar seus vnculos nos casamentos, na mistura dos sabores, na msica, nos jogos de futebol das vrzeas paulistanas, na criao de seus times e clubes, nos problemas polticos e econmicos enfrentados por todos, e mesmo no seu lugar de descanso final.
5. Pensando na experincia vivida pelos imigrantes de diferentes nacionalidades que arriscaram uma nova vida em So Paulo, e sua relao com os antigos moradores desta terra teremos aqui um tema humano universal 9 , ou seja um grupo de outsiders buscando espao onde j existe um grupo estabelecido que se v como superior e com mais direito do que estes estrangeiros recm- chegados ao pas. Esta discusso interessa no que ela traz de conseqncia para dentro dos cemitrios, local onde este encontro ou, no caso do Brs, onde esta expulso ficou caracterizado como um palco de luta, de espao de poder. Em Os estabelecidos e os outsiders, Norbert Elias e John L. Scotson destacam o quanto era importante para o grupo estabelecido criar rtulos de inferioridade para os recm-chegados: ao outro grupo:
Afixar o rtulo de valor humano inferior a outro grupo uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade social. Nessa situao, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto- imagem deste ltimo e, com isso, enfraquece-lo e desarma-lo. Conseqentemente, a capacidade de estigmatizar diminui ou se inverte, quando um grupo deixa de estar em condies de manter seu
9 Termo usado em ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L.. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. 23 monoplio das principais fontes de poder existentes numa sociedade e de excluir da participao nessas fontes outros grupos interdependentes os antigos outsiders. 10
Num primeiro momento os imigrantes receberam rtulos, insultos j mencionados nas falas de Monteiro Lobato ou de Guilherme de Almeida, mas o fato de terem sido levas de italianos, japoneses, espanhis, rabes, vindos de regies diferentes dentro de seu pas de origem, provocou a internalizao nesses grupos de um sentimento de pertencerem a um mesmo lugar. Aqui napolitanos, sicilianos, milaneses, calabreses, passaram, aos poucos, a ser todos italianos aos olhos dos estabelecidos, uma generalizao que de incio preconceituosa, pois no percebe as diferenas culturais destes grupos, mas que com o passar do tempo criou um vnculo dentro do grupo dos outsiders. Os imigrantes tinham um passado em comum: a luta por uma vida nova, a deciso de sair de suas vilas, cidades, a coragem de enfrentar o novo, a difcil viagem de navio, a chegada, a construo de seu espao e o desejo de um futuro melhor. Tudo isso criou um passado de orgulho e glria a ser lembrado por seus descendentes. Esse sentimento de orgulho por pertencer a um grupo corajoso, misturado ao sucesso de muitos imigrantes em seus negcios, obrigou os estabelecidos, gradativamente, a aceitarem e a receberem este outro dentro de seus espaos de convvio. Esses espaos foram as fazendas, os negcios industriais, o comrcio, suas prprias famlias (nos casamentos realizados entre a oligarquia paulista e a burguesia imigrante) e dentro dos cemitrios. Essas mudanas ficaram mais claras quando os migrantes obtiveram sucesso financeiro:
10 Op. cit. p. 24. 24 Nas colunas sociais das revistas da poca (anos vinte), em reportagens sobre casamentos, recepes e outras festividades, misturavam-se aos j conhecidos sobrenomes das elites paulistas, como os Prado e os Penteado, outros mais recentes, como os dos imigrantes Crespi, Matarazzo e Jafet. Dean justifica a formao de sociedades e alianas matrimoniais e a formao de uma identidade de elite regional entre os donos das fazendas e das fbricas e entre a aristocracia nativa brasileira e o imigrante nouveau riche pela dependncia que a elite brasileira tinha da europia para a obteno de capital, mquinas, mercados, artigos de luxo e literatura e pela expectativa de que os europeus trouxessem sugestes de um comportamento social aceitvel para a vida urbana. 11
No foi o caso dos imigrantes fabris que tambm ganhavam seus espaos entre os operrios brasileiros, mas estavam fora de um campo de poder maior. De qualquer forma, os imigrantes ganharam espao e para isso tiveram como vantagem o fato de terem montado uma comunidade forte deste lado do Atlntico, comunidade que auxiliava os recm-chegados, e o fato de que na maioria das vezes no eram indivduos isolados e sim famlias inteiras que apostaram no sonho de fazer a Amrica, o que deu fora e legitimidade ao grupo como um todo. Com a famlia ficava garantida a unio, a moral, o respeito, e aumentava ainda mais o orgulho do feito, armas importantes contra o preconceito, armas demonstradas em alguns tmulos existentes nas necrpoles paulistas. O Consolao foi um espao utilizado pelos imigrantes que atingiram o sucesso econmico. Nesse espao no era necessrio um
11 PADILHA, Mrcia. A cidade como espetculo; publicidade e vida urbana na So Paulo dos anos 20. So Paulo: Annablume Editorial, 2001. p.19. 25 convite prvio, uma permisso para a entrada, ou ainda a possibilidade de impedir uma famlia de ali comprar um terreno e construir um jazigo ou uma pequena capela. Vale lembrar que por muito tempo os cemitrios pblicos eram tabelados quanto ao valor das sepulturas (gerais ou perptuas), dos carneiros e das diferentes quadras, e que s depois houve diferenciao nos seus valores. Uma poca em que todos os tipos de pessoa habitavam o Consolao. Mais tarde so aqueles que pudessem pagar os valores estabelecidos e, ainda mais, quisessem contratar os trabalhos das marmorarias e de escultores, de dentro ou de fora do Brasil, tinham o direito de estar ali compartilhando o espao com os influentes polticos, engenheiros, doutores e bares do caf. 12 Esses imigrantes adotavam os brases e os ttulos de Conde para se aproximarem da elite nacional e, como forma de diferenciao, utilizavam o tema do trabalho (il lavore) para marcar uma nova moral, a forma pela qual desejavam ser lembrados. A mensagem que traziam era de que o trabalho os levou a ser quem eram, e no apenas um ttulo familiar. O que garantia sua presena no interior de um campo santo como o Consolao era o fazer e no o ser. O tempo dos bares havia passado. Sobre a vida dos imigrantes que se fixaram nos bairros fabris de So Paulo, ainda encontramos suas memrias nas falas de avs e avs que relembram os passeios com toda a famlia no domingo tarde. So memrias de pessoas comuns que ainda vivem nos velhos bairros, bairros que j perderam sua caracterstica imigrante do incio do sculo XX. O cinema Oberdan e suas matins, o Teatro Colombo (onde importantes tenores se apresentavam para a comunidade italiana), 13 as capuchetas empinadas e os jogos infantis realizados nas ruas dos bairros do Brs, Mooca, Belenzinho e da Lapa so
12 Como o caso dos jazigos monumentais do Conde Siciliano e do Conde Matarazzo prximos respectivamente do Conde de So Joaquim e do presidente Campos Sales. 13 Tanto o cinema Oberdan, na Rua Min.Firmino Whitaker, como o teatro Colombo, no Largo da Concrdia, j no existem mais ambos no Brs. 26 algumas dessas lembranas. Suas memrias tambm so encontradas no cemitrio da Quarta Parada, a quarta parada do trem, onde as famlias desses imigrantes construram suas sepulturas, por exemplo, em forma de pequenas capelas, formando ruas que tanto se parecem com as antigas ruas de porta direto na calada encontradas ainda no Belenzinho e no Tatuap. Imigrantes operrios ou bem sucedidos imigrantes industriais deixaram, portanto, suas marcas no comportamento, no falar, numa nova moral instituda na valorizao do trabalho. Essas marcas esto representadas em seus tmulos: nos jazigos monumentais ou nas pequenas capelas dos cemitrios estudados, como veremos no captulo VI.
Detalhe do mausolu do Comendador Matarazzo. Ateno para a coroa e para o elmo, smbolos da monarquia e da nobreza europia e para o braso com a guia ao centro. 27
Ateno para a palavra Labor na lateral do tmulo ao centro do crculo, no interior de uma faixa.
28 II. Pensando sobre a morte
No Ptio do Colgio afundem O meu corao paulistano: Um corao vivo e um defunto Bem juntos.
Mrio de Andrade
Depois que as portas foram abertas para a discusso sobre o homem diante da morte por pioneiros como Philippe Aris 14 , nunca mais historiadores, arquitetos, antroplogos, gegrafos deixaram de passar por elas trazendo contribuies que nos ajudam a compreender, cada vez mais, a sociedade e suas relaes com a morte. Insistentemente as pesquisas nesse campo, sobretudo no que se referem s cidades de So Paulo e Rio de Janeiro, discutem o homem diante da morte no momento da troca dos lugares de enterro: a sada do interior das igrejas para o chamado enterro extramuros. Insistentemente esse tema traz questes referentes ao momento vivido, dentro e fora do Brasil, quanto higienizao, o medo dos mortos contaminarem os vivos:
Mdicos e qumicos clebres publicaram na mesma poca suas observaes de cientistas sobre o perigo mortal dos enterros nas igrejas, contavam casos apavorantes de crianas do catecismo dizimadas aps a abertura de um jazigo, de coveiros fulminados ao estripar desajeitadamente
14 ARIS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. v. 1 e 2. 29 um cadver. Magistrados e eclesisticos esclarecidos contriburam para o debate com sua erudio e sabedoria, mostrando que o enterro nas igrejas era contrrio ao direito romano assim como ao direito cannico 15 .
A possibilidade de ter seu prprio jazigo, a perda do domnio da igreja, ou melhor, das irmandades, sobre o mundo dos mortos, agora pertencentes ao poder pblico, e as disputas entre diferentes grupos da sociedade interessados em defender este ou aquele lado da questo:
a transio dos sepultamentos dentro das igrejas para locais abertos no se faz rapidamente no Brasil. Essa resistncia foi em grande parte motivada pela vaidade das elites, j que nas igrejas se podia avaliar a importncia social do falecido pela proximidade de seu tmulo em relao ao altarmor. Por outro lado, a populao em geral resistiu bastante a aceit-la como parte do cotidiano, principalmente porque a Igreja, grande interessada na preservao do costume funerrio ento vigente, procurou abafar os ecos de reprovao vindos da Europa 16
O estudo das imagens funerrias vem tambm ganhando espao de discusso entre livros e teses de mestrado e doutorado e permitindo ampliar nossos conhecimentos sobre as atitudes do homem diante da morte e, como no poderia ser diferente, da
15 ARIS, Philippe. Histria da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003, p. 205. 16 RIBEIRO, Josefina Elona. Escultores italianos e sua contribuio arte tumular paulistana. So Paulo, 1999. Tese de Doutorado defendida no Programa de Ps- Graduao em Histria Social da FFLCH-USP. 2 v. p. 25.
30 sociedade qual ele pertence. A percepo de que as imagens, reunidas no interior dos cemitrios, gritam informaes, dizeres, sentimentos e esperam por estudiosos pacientes que formulem suas teorias j foi sentida por alguns nomes que sero aqui mencionados e seus trabalhos, a forma de tratar com este tipo de imagem, sero brevemente estudados. Cada um deles abriu portas, janelas e mesmo pequenas frestas que puderam ajudar a entender melhor as atitudes do homem diante da morte, a criao dos cemitrios, as esculturas e suas representaes tumulares, enfim a montagem de um mosaico capaz de responder questo: imigrantes de lugares diferentes da cidade (num certo sentido de lugares opostos dessa mesma cidade), vindos de diferentes regies do mundo, enterrados em dois diferentes cemitrios pblicos, puderam alimentar sua memria de que forma? Foram autnticos, cada um sua maneira? Ou precisaram imitar outros grupos, por exemplo, os quatrocentes paulistas? A memria desses imigrantes se construiu da mesma maneira? Em que ela difere? Separaram-se no campo da memria? Philippe Aris, em O homem diante da morte, obra preocupada em abarcar cerca de mil anos de comportamentos e atitudes relacionando o homem e a morte, apresenta anlises da arte funerria, em exemplos especficos. bom salientar que Aris aborda aqui e ali o trato com os tmulos e suas imagens, no sendo este seu interesse central. Mais precisamente no volume 2 encontramos dois estudos de caso que nos interessam. O primeiro referente tentao do nada na arte funerria, o nihil. Aris encontra um exemplo clssico desse sentimento no interior da capela de Santa Maria em Campitelli, na cidade de Roma. O tmulo pertence aos Altieri, marido e esposa e o historiador realiza uma descrio acompanhada da anlise do tmulo, identificando o sentimento do nada:
31 Cada tmulo constitudo, na parte inferior, por um enorme sarcfago de mrmore vermelho. Sobre a tampa do sarcfago, dois anjos tristes seguram uma tocha invertida e uma inscrio, onde apenas uma palavra est escrita, imensa, em letras de ouro que se destacam como as letras de um grande anncio de publicidade. Essa palavra nihil sobre o tmulo do marido, e umbra sobre o tmulo da mulher. Nihil e Umbra, ltima confisso dos homens que j no crem em nada, poderamos pensar, detendo a vista na parte inferior do tmulo, como se tomssemos Bossuet letra, separado do contexto. Porm olhe-se mais para o alto, acima do ttulo terrvel, e tudo muda: encontramos formas bem- conhecidas e confortadoras. Os dois mortos esto ajoelhados na atitude tradicional do orante voltado para o cu. O homem tem as mo cruzadas sobre o peito e sua orao est prxima do xtase. Olha para o altar que , ao mesmo tempo, o da sua parquia terrestre e o da morada celeste. A esposa, pelo contrrio, inclina a cabea, olha para o outro lado, para a entrada da capela. Segura seu livro de oraes meio fechado com o dedo. Tem expresso melanclica, como se estivesse em espera. Dois sentimentos aparecem nessa obra magnfica. Por um lado, a melancolia da sombra que no a noite escura nem a secura do nada; por outro lado, mas num mundo completamente separado, a beatitude do alm. O contraste violento e cru. 17
A partir dessa anlise e de outros trs estudos de tmulos que discorrem sobre o mesmo tema, Aris chega concluso de que os
17 ARIS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. v. 2. p. 375-376. 32 cristos do sculo XVII e incio do XVIII carregavam dentro de si muita f, mas ao mesmo tempo se sentiam tentados pelo nada, o que causava um equilbrio frgil, uma vacilao entre a f, de um, lado e o sentimento escatolgico, de outro, que, segundo o autor, podia facilmente ocilar. Para chegar a isso Aris utilizou escritos sobre o Nihil, o conhecimento da existncia de um forte sentimento escatolgico que circulava por esses sculos, e o encontrou na anlise dos movimentos, olhares, e posies dos personagens e das palavras nas obras, que revelaram essa atitude. No se preocupou com o estilo artstico da poca ou com a autoria da obra, nem mesmo buscou conhecer o casal em questo; portanto sua anlise se balizou fundamentalmente no tmulo, nas imagens, retirando delas as informaes que o levaram a conhecer um sentimento diante da morte existente nesse perodo. O segundo estudo referente a uma cena de gnero do sculo XIX no cemitrio de Nice, na Frana:
uma menina de oito anos recebe no cu seu irmozinho, que a ela vai se reunir. As duas crianas, em tamanho natural, estendem-se os braos, e o menino em camisa se lana para a irm que o espera (final do sculo XIX e incio do sculo XX). Encontrei a mesma cena, da mesma poca, no cemitrio de San Miniato, acima de Florena, a ponto de se ter vontade de perguntar se no seriam do mesmo artista ou se o tema era banal: Emma e Bianca se reencontram no cu. Correm uma para a outra, igualmente com os braos estendidos. Mas a menor est cercada de rosas e em parte transformada em rosa. Uma primeira inscrio nos diz que as duas menininhas deixaram este mundo com pequeno intervalo. 18
18 Op. cit. p. 584. 33
Neste estudo Aris at cogita a possibilidade de um escultor por trs das imagens, buscando nisso uma explicao para tamanha semelhana , mas no avana alm disso. Mais frente descarta a possibilidade de que tal atitude tenha uma ligao com a classe social, diro, provinham de famlias ricas que podiam pagar bons escultores e obedeciam s convenincias de classe 19 . Aris reconhece essas mesmas atitudes em tmulos populares: no importa, portanto, o gosto dessa ou daquela classe mas sim algo mais amplo. Mais uma vez percebemos que sua preocupao se localiza na obra em si, naquilo que dela possvel extrair e no tanto do artista, do estilo de poca ou dos grupos sociais a que as famlias pertenceram. Sigo Aris na inteno de enxergar o indivduo em si, no tornando o histrico da famlia como o ponto central. Interessam-me os sobrenomes das famlias uma vez que esta a forma de chegar ao imigrante dentro dos cemitrios, mas no percorrer minuciosamente as histrias familiares. Os tmulos esto expostos por aquilo que eles so, ou seja, pela mensagem ali posta em circulao. Porm a questo social est no fundo da discusso, s a meno do nome desses dois cemitrios j nos remete a dois mundos distanciados fsica e economicamente. Este quadro importante at mesmo para chegarmos concluso se esses imigrantes, mesmo experimentando situaes diferentes, buscaram construes de memrias semelhantes. Os escultores, individualmente, no interessam, mas seus dizeres sim, e se no Brs esses dizeres esculturais so mais raros foi porque esse grupo social, dada a impossibilidade do acesso a essa esculturas, aos trabalhos mais requintados das marmorarias, criou outras formas de deixar a sua presena para ns.
19 Op. cit. p. 584.
34 O historiador francs Michel Vovelle realizou um estudo de caso do monumento-cenotfio do burgus Joseph Sec. Em Imagens e imaginrio na histria. Fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Mdia at o sculo XX, Vovelle descreveu e analisou esse tmulo vazio usando ferramentas no utilizadas por Aris. Preocupou-se em abordar a elite aristocrtica e comercial (dando importncia, portanto, s divises de classe), utilizando dirios, memrias e testemunhos de atos polticos. Reconstituiu a vida de Joseph Sec, sua ascenso burguesa, mapeou seus contatos sociais em Aix-en-Provence no sculo XVIII, um caminho que inicia como filho de arrendatrio at tornar-se um notvel e ingressar na elite da regio. Com o estudo das imagens que compem o monumento, e suas devidas posies dialogando entre si, Vovelle chegou a algumas concluses sobre a forma de agir e pensar de um burgus do final do sculo XVIII:
Crena na Lei? Sim, mas na nova Lei, cujo carter revolucionrio realado pelo contraste Moiss/S. Joo Batista. Alm disso, h as glosas em forma de baixos-relevos, que do um carter mais explcito profisso de f. As miudezas da nova Lei so as cdulas, gravadas em fac-smile, com as quais o autor decorou seu mausolu. A elas acrescentou duas cenas simblicas altamente reveladoras de seu pensamento ntimo, quando se lhes compreende o sentido; de um lado, o gnio alado (o Fortitudo da iconologia clssica) pe no forno os sinos dos conventos; de outro, uma mulher segurando um espelho ( a Prudentia da simbologia antiga) recebe com circunspeco um pedinte bem gordo vestido com um hbito de monge, que estende uma mo para pedir uma esmola, enquanto de sua sacola cai uma torrente 35 de moedas personagem este diretamente derivado da gravura revolucionria popular. Sob o aparente sucesso da aculturao, Joseph Sec opunha uma rejeio autntica e motivada ao sistema do qual viveu. S na aparncia ele partilhava o sistema de valores e toda a filosofia do Iluminismo como aqueles que continuaram a ser seus adversrios aristocratas e parlamentares -, ainda que estivesse ligado a eles por toda uma dialtica de relaes que passou do mimetismo rejeio. 20
Conhecer a trajetria deste homem foi fundamental para sua anlise final. Todas as imagens do tmulo foram observadas, descritas, buscando entender suas alegorias e relacionando-as histria do burgus. O estilo do tmulo no foi preocupao de Vovelle, mas houve uma especulao quanto autoria, uma vez que no existem documentos sobre a mesma. Teria sido Chastel ou Chardigny? Seja como for, chega concluso que a obra de artistas de mrito e, mais do que tudo, uma obra que camuflava sentimentos ocultos do burgus sobre a elite na qual ingressou. Uma anlise to pormenorizada, com tantas relaes sobre a vida do homem a quem foi dedicado, pesquisando dcada a dcada o seu crescimento econmico at o momento em que ele entrou para a elite do lugar, propiciou a Vovelle uma viso do monumento que um visitante, um transeunte, uma pessoa comum jamais teria. A quem, portanto, este monumento-cenotfio diz a que veio? Quem poderia entender todas as entrelinhas ali colocadas? Os revolucionrios iluministas ou os membros da maonaria? Essa no foi a minha preocupao com os tmulos que foram analisados. A inteno foi
20 VOVELLE, Michel Imagens e imaginrio na histria. Fantasmas e certezas nas mentalidades desde a Idade Mdia at o sculo XX. So Paulo: tica, 1997, p. 227- 228.
36 analisar e refletir sobre tais tmulos sem saber pormenores da vida de seus proprietrios, apenas com o conhecimento prvio do ser imigrante. Claro que num monumento como o do Conde Matarazzo, to conhecido de todos ns, fica muito difcil no fazer as relaes e agir como se no houvesse um prvio conhecimento da histria dessa famlia; porm, com as demais obras o tratamento foi o de estud-las procurando enxergar a memria que a famlia deixou ali marcada, usando as informaes oriundas do prprio objeto de estudo. Na obra analisada por Vovelle ficou a dvida de quem pensou todos aqueles detalhes. Foi uma interveno, uma encomenda do prprio Joseph Sc? No existem testamentos que o comprovem, apenas especulaes. Teria sido sua famlia? Uma inspirao do escultor, que no deixou assinatura? Ou seja, quem foi o responsvel pela criao de todo um significado implcito, to difcil de ser percebido e que s um especialista pde fazer? Minha pesquisa no partiu da vontade, no de desvendar, mas de ler um espelho de si que os imigrantes dos dois cemitrios deixaram, intencionalmente ou no, para os seus e para todos que circulassem pelo Brs e pelo Consolao. No Brasil, Clarival do Prado Valladares nome de referncia para todos os trabalhos que se propem a discutir arte e cemitrios, tanto por sua abrangncia como por ter sido o primeiro a realizar uma anlise sociolgica dos cemitrios brasileiros. Em Arte e Sociedade nos cemitrios Brasileiros, de 1972, seu tratamento das imagens apontou quatro vertentes: obras importadas de estilo neoclssico e art-nouveau, obras erigidas por canteiros entalhados do granito fluminense, obras raras de artistas brasileiros ou de imigrantes denominados de academicistas e, por ltimo, obras predominantes, advindas da interpretao e construo leiga das pequenas comunidades e que o autor considera de nvel esttico de razovel autenticidade e por isso de valor universal. Neste trabalho realizou a descrio concomitante anlise dos tmulos secularizados que julgou mais representativos: 37
Os mais custosos procedem da Europa, especialmente da Itlia, como, por exemplo, o da Famlia do CONDE MATARAZZO () Trata-se, provavelmente, do maior e mais custoso mausolu de famlia construdo em cemitrio brasileiro. De dimenses gigantescas, forma-se de uma capela de excessiva exteriorizao, com cinco conjuntos escultricos interligados, em bronze, de cenas e alegorias de mltiplas figuras, alm de enormes massas granticas dos elementos de base e de estrutura, sem contar o solene prtico encimado pelo braso papino, de topo de elmo e coroa real, ladeado por figuras guardies, em mrmore, do tamanho humano natural, e sob o bafejo de estilo ps-renascena. Raros monumentos de praa pblica, neste Pas, se comparam a este mausolu em volume de massa, e de lavratura em pedra e bronze. Se tais predicados no implicam em valor artstico, e nem sequer garantem a monumentalidade intencionada, conferem entretanto extraordinrio carter ao documento. a evidncia do desnvel social de rpidas e imensas fortunas a se refletirem na vaidade tumulria com pujana faranica. () Este estudo no proposto para chamar de arte aquilo que do ponto-de-vista da esttica e da histria, carece de qualidade criativa e de sentido de contemporaneidade, mas a falta da qualidade artstica no impede considerar as construes tumulrias como documentos e expresses merecedoras de anlise. Sob este aspecto o mausolu MATARAZZO corresponde ao pice de um grfico onde se procura caracterizar o enriquecimento do 38 empresariado da industrializao do Pas, dando formao a fortunas, to poderosas e excepcionais que se semantizam nos ttulos de neo-nobiliarquia papina. Apenas sob excessivo feudalismo, com as comunidades rebaixadas ao subdesenvolvimento, poder ocorrer, noutras partes do mundo situao parecida. Quem constri um mausolu mais custoso que o bastante para alguns hospitais e escolas, mais dispendioso que o suficiente para o crdito de vrias iniciativas progressistas, no est usando somente do seu capital ocioso, mas em boa parte est paralisando o desenvolvimento da comunidade. 21
A exemplo da anlise do tmulo faranico do Conde Matarazzo, Valladares emite a cada descrio, uma interveno sobre as questes sociais que fazem um tmulo ter esta ou aquela proporo, este ou aquele apelo nas inscries. O tmulo responde no tanto s questes provenientes de detalhes de sua composio, mas sua dimenso exagerada, sobretudo diante do olhar de um crtico de arte, que emite, ao final, sua posio pessoal quanto ao uso econmico, no caso, realizado pelos Matarazzo. Valladares, alm de sua anlise artstica e sociolgica, reuniu um excelente conjunto de fotos dos cemitrios brasileiros, sobretudo pensando que seu trabalho foi realizado na dcada de setenta e que de l para c muito se perdeu. Alguns desses cemitrios passaram por descaracterizaes e vrios tmulos sofreram mutilaes, como o caso do tmulo de Luisa Crema Marzorati. No livro de Valladares a serpente est l, inteira, o bote foi dado, e ela sinuosamente se desenrolava das pernas de Eurdice em busca de, quem sabe?, outra vtima. Hoje a serpente continua ali, sinuosa sim, mas sem sua
21 VALLADARES, Clarival do Prado. Arte e sociedade nos cemitrios brasileiros. Rio de Janeiro: MEC, 1972. v. 1 e 2. p. 1075-1076.
39 cabea, parecendo mais uma raiz que se prendeu perna da pobre Eurdice para sempre.
Tmulo de Luisa Crema Mazorati Eurdice picada pela serpente
Detalhe do tmulo de Lusa Cremma Marzoratti a serpente sem cabea. 40 Valladares preocupou-se em mapear os cemitrios brasileiros e em buscar em seu interior tmulos representativos quanto ao valor artstico e para a compreenso da sociedade brasileira, da sua critica to veemente ao mausolu dos Matarazzo. No me prendi durante a pesquisa a fazer recortes artsticos dos tmulos escolhidos para anlise, afinal no era essa a proposta, e nem criticar a falta de valor artstico deste ou daquele conjunto, muito menos recriminar esta ou aquela famlia por possveis exageros. Na verdade, a forma desse mausolu se expressar (e a de outros que repetem a mesma pompa e circunstncia) me interessou no por serem objetos artsticos e muito menos por significarem a expresso de uma sociedade presa a um feudalismo qualquer, mas sim pela memria que essas famlias fizeram questo de construir de si mesmas. Se verdadeira ou no, se com teor histrico ou no, o certo que todos que j visitaram o Consolao contemplaram, embasbacados, esse mausolu como algo nico, belo, grandioso e representativo de uma grande famlia, de um grande nome: os desejos daqueles que pensaram este monumento foram alcanados. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, artigo escrito pelo historiador Joo Jos Reis para o vol. 2 da Histria da vida privada no Brasil, retrata as atitudes dos brasileiros do sculo XIX diante da morte e dos mortos, num momento em que o cemitrio pblico andava pela cmaras a ser institucionalizado e a secularizao dessas atitudes estava prxima. Reis no trabalha propriamente com as imagens funerrias, mas toca num tema interessante: as cruzes existentes nas beiras das estradas, as cruzes para as almas no Purgatrio:
Quando viajava pelo interior de Minas Gerais em 1817, Saint-Hilaire passou por uma cruz erguida beira da estrada e lhe contaram como ela fora parar ali: Um homem, viajando nessa regio, 41 acreditou ter visto almas do Purgatrio, que volteavam ao redor do seu cavalo, sob a forma de pombos, pedindo-lhe preces. Em memria dessa apario ele fez erguer a cruz; a histria que venho a relatar acha-se gravada ao p da mesma. Essas cruzes, que ainda continuam a ser erguidas em nossas estradas no interior, serviam tambm para marcar o lugar onde algum havia morrido tragicamente, vtima de acidente ou assassinato, por exemplo, e lembravam a quem passasse a obrigao de rezar pela alma do infeliz. Duas mortes sofre, quem por mo alheia morre, dizia o ditado portugus colhido no sculo XVIII e que podia significar o acmulo de morte fsica e espiritual. 22
A cruz na beira da estrada marca um lugar onde de fato o morto no se encontra, apenas um lugar de memria, memria do trgico acontecimento, memria do ltimo lugar onde o morto esteve vivo, memria que os vivos buscam guardar daquele que se foi. No podemos nos esquecer que as cruzes invadiram o terreno dos cemitrios. Em outra obra de Joo Jos Reis, A morte uma festa, temos um estudo de caso sobre uma revolta ocorrida em Salvador em 25 de outubro de 1836: a Cemiterada. A discusso sobre a higienizao das igrejas, seus interiores e terrenos murados atrs das igrejas havia chegado a Salvador. Mdicos higienistas e polticos defendiam o fim dos enterros nos interiores das igrejas e a criao de um cemitrio murado e a cu aberto. Dessa discusso veio a proposta, seguida de uma imposio legal, da construo de um cemitrio pblico, retirando, portanto, das mos das igrejas e das irmandades o papel
22 REIS, Joo Jos. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista, In: ALENCASTRO, Luiz F. de (Org.). Histria da vida privada no Brasil. So Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 98. 42 de cuidar dos mortos e de seu lugar de descanso. Tal imposio resultou numa revolta que acabou em depredaes e ataques inclusive capela construda no interior do novo cemitrio:
No Campo Santo, o estrago foi quase completo, e os manifestantes no gastaram apenas uma hora, mas quase toda a tarde. Uma avaliao dos danos feita posteriormente por uma equipe de pedreiros, carpinteiros, canteiros e ferreiros, enumerou: destruio do porto e colunas da entrada principal; dos pilares, grades, porto de ferro em frente cavalaria e cocheira; de sessenta carneiros de tijolo e inmeras pedras de mrmore de sepulturas; demolio e incndio do muro de adobe que cercava o local; arrombamento do porto de fundos. A essa lista devem ser acrescentados os coches, carruagens e panos funerrios, que foram quebrados, rasgados ou queimados. Nem a capela foi poupada, sendo atacada ao som de seu prprio sino. As bicas de flandre foram roubadas, os vidros quebrados, o telhado destrudo, perdendo-se cerca de cem milheiros de telhas. Mossas profundas foram feitas na porta principal, na tentativa de arromb-la. 23
Para entender essa revolta, seus motivos e intenes, Reis discute os ritos fnebres do Brasil do sculo XIX e a busca por civilizar esses costumes. Nesta obra dois captulos foram de grande importncia nas reflexes sobre os cemitrios que foram construdos em So Paulo: O espao sagrado do morto: o lugar da sepultura (7) e Civilizar os costumes (II): a morte legislada (11). A importncia reside na discusso sobre o lugar onde o morto seria enterrado. Esse
23 REIS, Joo Jos. A morte uma festa: ritos fnebres e revolta popular no Brasil do /sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 17. 43 lugar, o espao do sagrado, era o interior das igrejas e fazia parte dos passos para se ter uma boa morte:
Ser enterrado prximo aos altares era um privilgio e uma segurana mais para a alma, atitude relacionada prtica medieval de valorizar a sepultura prxima aos tmulos de santos e mrtires da cristandade. Acreditava- se que essa intimidade contaria no momento do Juzo Final, alm de favorecer a alma por ocasio do julgamento pessoal que se seguia morte. 24
Algumas transformaes no lugar dos mortos no interior da igreja so percebidas ainda na primeira metade do sculo XIX em Salvador, local dos estudos de Reis, por exemplo, a introduo de carneiros para o depsito dos mortos, que deixariam portanto de ser pisados e lembrados cotidianamente pelos vivos e passariam a ser reclusos, at mesmo ocultos, uma vez que s seriam vistos por aqueles que se lembrassem de descer aos subsolos para reverenci- los em seu novo espao nas cavidades longitudinais que formavam paredes. Iniciava-se assim gradativamente a separao entre os mortos e os vivos, que perdurou por todo o sculo XIX at definitivamente serem implantados, como forma de lei, os cemitrios extramuros. Como ressalva vale dizer que um trabalho muito interessante, e que ainda est por ser feito, o mapeamento dos tmulos mais antigos encontrados no Consolao. Estes tmulos ainda fazem parte da antiga tradio do tmulo humilde e sem pompa, lembrando em muito as lpides que eram postas no cho das igrejas, atitude tomada por imigrantes e no imigrantes antes da nova tendncia de se erigirem tmulos com esculturas e dizeres
24 Op. cit. p. 175-176. 44 pessoais, indicando fortemente, e sem tanta humildade, quem eram as famlias e as pessoas que ocupavam aquele local.
Tmulo de Escolstica Joaquina de Campos Melchert 1902 A simplicidade de um tmulo de poucas palavras: alguns detalhes nas laterais e a cruz marcam a religiosidade de quem se encontra ali. Cemitrio da Consolao
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Detalhe frontal do tmulo de Escolstica Joaquina de Campos Melchert 1902 - Cemitrio da Consolao
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AQUI JAZEM OS RESTOS MORTAES DO DOUTOR FRANCISCO LEANDRO DE TOLEDO FALLECIDO A 27 DE MARO 1875 Cemitrio da Consolao Esta sepultura um bom exemplo das lpides encontradas no cho das antigas igrejas, simples, desprovido de luxo, poucas palavras e se encontra ao lado da capela. Pode ser uma tentativa de estar mais prximo de Deus e da salvao.
Ainda nesta obra Reis destaca o fato de que os enterros em cemitrios no incio do sculo XVIII eram reservados aos suicidas, criminosos, indigentes e escravos que morriam e eram abandonados 47 por seus donos esta atitude, porm, no era uma regra, muitos escravos conseguiam um local no interior das igrejas graas s irmandades s quais pertenciam:
O medo de acabarem nesses cemitrios levou muitos escravos a se associarem a irmandades, com vistas a um local decente para sepultura. No era o mesmo que um tmulo na prpria casa, como acontecia na frica dos nags, jejes e tapas, por exemplo. (...) Para o africano, viver entre parentes reais tornara-se difcil pelo trauma da escravido, mas morrer numa famlia ritual, e com ela passar ao alm, tornou-se possvel com a irmandade. 25
Revela-se a enorme importncia ritualstica da morte no interior das igrejas e a briga, que chegou s vias de fato, entre a sociedade e os rgos pblicos. Mesmo que Reis no realize em seu trabalho uma discusso sobre os cemitrios extramuros, j civilizados, em plena atividade, vale pela percepo do que viria: a ritualizao que passaria para dentro dos cemitrios pblicos, tamanha a importncia dada salvao das almas. A necessidade de, num primeiro momento, levar o sagrado para seu interior atravs das cruzes, to caras para os usurios do cemitrio do Brs, nos faz lembrar das cruzes de antes, e ainda hoje, colocadas nas estradas, memorando os mortos de maneira informal, e movidas pela emoo da perda e pela necessidade de lembrar e de fazer lembrar a todos que algum ali se foi. No momento da civilizao dos ritos relacionados morte as cruzes foram gradativamente substitudas por uma memria mais formal, mais pensada, e em alguns casos, bem mais calculada. No necessariamente este ritual era religioso, pois a nova forma de
25 Op. cit. p. 198. 48 enterrar os mortos abriu espao para que temas laicos fossem utilizados nos tmulos. Aqui entram os imigrantes. Religiosos sim, mas muitos deles fizeram questo de usar esse novo espao para personalizar a morte. Na tese de doutorado Arte tumular: a produo dos marmoristas de Ribeiro Preto no perodo da primeira Repblica, Maria Elizia Borges discute o marmorista de Ribeiro Preto, seu papel como artista-arteso, a condio de Ribeiro Preto como uma cidade de luxo e poder no perodo da monocultura cafeeira e as representaes disso nos cemitrios da cidade. Descreve o histrico das marmorarias da regio, realiza um inventrio tipolgico da produo tumular na cidade e uma catalogao tumulria (de 50 tmulos). Nessa catalogao Maria Elizia apresenta a rubrica, as dimenses, o material utilizado, uma descrio formal, a escultura funerria, os adornos, seu estado de conservao e, s vezes, algumas observaes sobre a famlia ou sobre seu principal representante:
JAZIGO DA FAMLIA ANTONIO DE AZEVEDO SOUZA () DESCRIO FORMAL: o jazigo-capela de maior destaque do Cemitrio de Cravinhos devido a sua monumentalidade e seu verticalismo. Segue, precisamente, os postulados da arquitetura neogtica ao empregar colunas finas, arcos ogivais, tmpanos trabalhados, pinculos bem decorados e um belo nicho ogivado. Diramos tratar-se de uma rplica de igreja gtica flamejante, em tamanho reduzido. A construo pode ser vista de todos os lados, uma vez que eles so idnticos. ESCULTURA FUNERRIA: No topo da obra tumulria o nicho protege o Anjo da desolao, com expresso triste e meditativa. 49 ADORNO: Os ornatos tornam esta construo mais exuberante atravs dos arabescos estilizados que decoram os tmpanos, os frontes e os pinculos. So eles: falsas rosceas, falsos culos, tringulos e flores em baixo-relevo. Provavelmente as grades foram colocadas numa fase posterior para dar maior proteo ao jazigo-capela. () OBSERVAES: O cel. Antonio de Azevedo Souza nasceu na Ilha de So Jorge, Portugal, em 1835. Vindo menino para o Brasil, radicou-se inicialmente no Estado do Rio de Janeiro. Foi para Cravinhos com o objetivo de acumular grande fortuna com o plantio do caf. Uma das primeiras terras adquiridas por ele, ainda incultas, foi a Fazenda Pau D Alho, que tornou-se uma das melhores propriedades agrcolas da regio. Ela contava nos idos de 1920 com 220 alqueires de terras, dos quais 100 eram explorados com culturas (150.000 ps de caf) e 120 em pastos. 26
O trabalho de descrio excelente, sobretudo nos pormenores arquitetnicos encontrados em alguns dos tmulos catalogados, porm no buscou relacionar as observaes descritas e alguns detalhes sobre a famlia com o tmulo em si. A descrio ajuda a perceber o gosto de uma poca, a mudana de estilos no decorrer de algumas dcadas ajuda a reconhecer o estilo desta ou daquela marmoraria e a qualidade dos trabalhos realizados pelos artistas- artesos, j que muitos desses trabalhos eram realizados em srie. A autora buscou provar a mudana nos gostos burgueses, passados na cidade dos vivos quanto msica, o teatro e as artes plsticas e
26 BORGES, Maria Elizia. Arte tumular: a produo dos marmoristas de Ribeiro Preto no perodo da primeira Repblica. So Paulo, 1991. Tese de Doutorado defendida no Programa de Ps-Graduao do Departamento de Artes Plsticas da ECA-USP. 2 v. p. 234-235.
50 tambm revelados na cidade dos mortos. Mas o tmulo no estudado de maneira to pormenorizada a ponto de retirar dele informaes que pudessem nos dizer algo sobre os grupos sociais existentes e na regio de Ribeiro Preto. Ao trabalhar com os tmulos, com suas imagens, Elizia resgatou, no pelos dizeres ou por uma leitura dos cdigos existentes nos conjuntos esculturais, o luxo do poder republicano cafeeiro no incio do sculo XX. Esse resgate se deu por um trabalho externo: as marmorarias, seus artistas, os materiais usados, e como tudo isso foi aplicado internamente nos cemitrios, para ento perceber ali as mudanas nos costumes burgueses. Famlias so citadas, pequenas biografias incluem a descrio, mas sem fazer referncia direta construo da memria republicana de Ribeiro Preto. As anlises so carregadas de termos tcnicos quanto aos ornamentos artsticos encontrados nos tmulos, pois atravs deles que a autora pensou uma forma de compreender as mudanas sociais da elite ribero- pretana. Meu estudo no remontou s marmorarias a e seus artistas, trabalho feito em grande parte por Josefina Elona Ribeiro, e nem buscou uma descrio to pormenorizada de colunas, arabescos ou estilos artsticos. Partiu de um grupo de estudo, os imigrantes da cidade de So Paulo, dois cemitrios dessa cidade, para compreender de maneira mais pontual uma memria imigrante que saiu da cidade dos vivos e invadiu os cemitrios, assim como ela hoje, tenta, sair da necrpole para ser lembrada pela acrpole. No artigo intitulado De morcego e caveiras a cruzes e livros: a representao da morte nos cemitrios cariocas do sculo XIX (estudo de identidade e mobilidade sociais), Tnia Andrade Lima percorreu os cemitrios cariocas e realizou um mapeamento arqueolgico da transio do Brasil Imprio para o Brasil Repblica atravs das imagens tumulares.
51 As representaes da morte no imprio escravista so escatolgicas, macabras, mrbidas. Signos que remetem consumao dos tempos, como caveiras com tbias cruzadas; orubouros, a serpente alqumica que engole o prprio rabo; fachos e tochas acesas, porm voltadas para baixo; ampulhetas aladas, foices, machados, globos alados, alm de morcegos, corujas e plantas narcticas, entre outros, so os leitmotiv da arte tumular nesta fase. 27
Com esse mapeamento a autora pde, atravs da cultura material, compreender os fenmenos de dinmica cultural e mudana social no Rio de Janeiro no sculo XIX. No transcorrer desse artigo Tnia A. Lima dialoga com a histria do Brasil e demonstra como as modificaes de postura poltica e social foram transferidas para dentro dos cemitrios:
Este clima de suspeio (entre 1893 e 1897), de insegurana generalizada, de restries severas s liberdades individuais civis atemorizava a populao, que, apavorada, temia ser confundida com monarquistas. () A eliminao de sinais aparentes de identificao com os adeptos do antigo regime era uma questo de sobrevivncia, que parece ter se estendido tambm aos espaos funerais. Esta foi, sem dvida, uma das razes pelas quais o cemitrio da monarquia por excelncia, o velho Catumbi, entrou em declnio, saiu de moda, repudiado pelas novas elites da repblica que
27 LIMA, Tania Andrade. Dos morcegos e caveiras a cruzes e livros: a representao da morte nos cemitrios cariocas do sculo XIX (estudo de identidade e mobilidade sociais). Anais do Museu Paulista. Histria e cultura material. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado/Imesp, jan-dez, 1994. v. 2. p. 103. 52 elegeram o So Joo Batista como seu espao funerrio 28
O tratamento que a autora deu s imagens funerrias foi o de identificao de signos que caracterizam este e aquele tmulo, relacionando-os com seu tempo dentro da transio do Imprio para a Repblica. Signos antropomrficos, zoomrficos, fitomrficos, signos ligados ao fogo, signos de nobreza ou distino social, objetos. Percebemos em seu trabalho um olhar preocupado em entender a constituio dos cemitrios, dispensando-lhes um olhar mais amplo do que o centrado neste ou naquele tmulo. Encontramos um exemplo de um olhar mais focado no que tange ao Mausolu de Clarisse Indio do Brasil nas legendas que acompanham algumas fotos desse tmulo:
FOTO 26: Mausolu de Clarisse Indio do Brasil, no Cemitrio de So Joo Batista. Esta rica senhora, que tinha por hbito sair noite distribuindo esmolas entre mendigos, morreu assassinada por um deles. A sua sepultura sintetiza e perpetua, em uma cena, a sua vida. FOTO 27: Em tamanho maior do que o natural, a filantropa representada simplesmente vestida como uma Madona. Colocada em um plano mais elevado, tem aos seus ps os mendigos e padecentes maltrapilhos a quem socorria. FOTO 28: Entretanto, de modo a no deixar nenhuma dvida quanto sua condio social, a santa senhora porta um colar de prolas, smbolo da burguesia qual pertencia. 29
28 Op. cit. p. 110. 29 Op. cit. p. 147-148.
53 Nesta pesquisa a autora estudou o interior dos cemitrios do Rio de Janeiro com a inteno de chegar a um espelho, que teria permanecido todo este tempo ali vivo, da sociedade brasileira que transitava da Monarquia para a Repblica. Aqui sim temos um tratamento com os tmulos de maneira a faz-los responder s inquietaes da autora. No o fazem por um fator externo - quem era o escultor ou a marmoraria qual pertencia - mas por aquilo que exibem fisicamente. Claro que Lima possui um farto conhecimento dos signos que compem o dicionrio da necrpole, o que no o caso dos desavisados que circulam por seus interiores, porm ela trabalha mais fortemente na busca de uma representao da morte dentro dos cemitrios e o faz de maneira mais apropriada, ou seja, ficando mais prxima daquilo que entendo como uma anlise mais satisfatria desses objetos dos que as obras anteriores. Estudou signos, realizou interpretaes, foi capaz de mapear a existncia de dois diferentes cemitrios dentro do Rio de Janeiro, o cemitrio monrquico e o republicano, muitas vezes ambos dentro de um s, como o caso do So Joo Batista. Por tudo isso sinto o meu trabalho dialogando com esta forma de tratar e refletir os cemitrios e seus preciosos contedos. No busco uma passagem poltico- temporal nos cemitrios aqui estudados, todavia as formas de anlise aplicadas por esta autora inspiraram muitas das anlises aqui realizadas, deu subsdios para que eu caminhasse em busca de respostas: imigrantes residentes em pontos distantes desta cidade representaram a morte da mesma forma? Como construram sua memria nesse espao? Um trabalho mais recente, de 1999, de Josefina Elona Ribeiro, em sua tese de doutorado Escultores italianos e sua contribuio arte tumular paulistana, retoma o estudo dos marmoristas, dessa vez buscando a origem dos ecos encontrados em So Paulo, vindos dos marmoristas italianos. Sua pesquisa remontou arte tumulria italiana, estudando importantes cemitrios mediterrneos e suas 54 esculturas funerrias. Essa arte atravessou o Atlntico com o gosto trazido pelos imigrantes e deixou influncias dentro dos cemitrios paulistanos, onde muitas obras artsticas foram importadas diretamente da Itlia. A autora realiza comparaes do trabalho dos marmoristas l e c, e na constncia dos temas religiosos, monumentais, alegricos Em um dos captulos estuda onze escultores, seus atelis e suas obras, descrevendo e comentando cada uma, transitando pelas diversas tendncias artsticas encontradas no interior dos cemitrios estudados (Consolao, Ara, So Paulo, Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, Redentor e Brs). Essa catalogao, de grande valor, chega a cerca de 250 obras, e em cada uma Elona Ribeiro destaca o material, as dimenses, a descrio e anlise do tmulo:
FAMLIA SEBASTIO FERREIRA (1930) Cemitrio da Consolao MATERIAL: granito polido rosa e bronze DIMENSES: Jazigo alt.: 0,88 / larg.: 2,20 / prof. : 2,27. Piet alt. : 1,18 / larg.: 2,18 / prof. : 0,93.
DESCRIO/ANLISE: Jazigo de pequenas dimenses, totalmente retilneo. O conjunto, bastante baixo (0,88), formado por cinco blocos de granito. Os dois blocos laterais no cobrem toda a profundidade do jazigo, pois a cabeceira abrange a largura integral da construo. Os outros trs blocos posicionam-se transversalmente laterais, em sentido ascendente. O ltimo deles, que a prpria cabeceira, serve de base, em toda a sua extenso para uma Piet em bronze. 55 Maria, sentada, esquerda, mantm a cabea e a parte superior do tronco de Cristo, cujas pernas levemente dobradas se estendem para a direita. A escultura corresponde praticamente a um tringulo retngulo, com a hipotenusa indo da cabea de Maria aos ps de Cristo. A expresso fisionmica das duas figuras bastante parecida, o que permite duas interpretaes: associar Cristo serenidade de Maria ou aproximar os rostos de ambos na imobilidade da morte. O corpo de Cristo apresenta- se quase descarnado, com tendes e ossos salientes. Esta a primeira Piet produzida por Emendabili. Suas caractersticas bastante expressionistas permitem-nos situ-la dentro do Modernismo. 30
Em sua descrio e anlise, Elona Ribeiro valoriza muito a classificao do estilo artstico da obra, se Art Dco ou Modernista, assim como os detalhes que a compem, desde os acessrios at a posio dos personagens, seus gestos e olhares. a partir de tais observaes que a autora prope um elo entre Brasil, mais precisamente So Paulo, e Itlia. A relao proposta por Elona, marmoristas italianos trabalhando no Brasil, a arte tumular italiana e sua assimilao pelos cemitrios da cidade de So Paulo, resultou num bonito e delicado dilogo artstico entre dois mundos unidos pelo processo imigratrio vivido no final do sculo XIX e incio do XX. A autora no pretendeu discutir a memria do imigrante enterrado em solo paulista, mas a memria dos escultores italianos atravs da sua presena artstica
30 RIBEIRO, Josefina Elona. Escultores italianos e sua contribuio arte tumular paulistana. So Paulo, 1999. Tese de Doutorado defendida no Programa de Ps- Graduao em Histria Social da FFLCH-USP. 2 v. p. 463.
56 nas necrpoles paulistanas. Dentre essas obras apenas uma foi encontrada no cemitrio do Brs assinada por Bertozzi scultori P. Santa:
DESCRIO/ANLISE: Jazigo em mrmore de grandes dimenses, produzido pela Marmoraria Maia (Av. Municipal, 14, So Paulo) A escultura, em mrmore, de autoria de Silvio Bertozzi, escultor italiano de Pietrasanta. Representa uma mulher em posio semigenuflexa, encostada a uma cruz anormalmente larga, cujas partes lateral e superior so demasiado curtas em relao ao todo. A cruz decorada com um ramo de hera. Como recurso escultrico, o artista incluiu no conjunto uma espcie de mureta, guisa de apoi para a mo esquerda e o cotovelo direito da figura feminina tornando possvel testa apoiar-se na mo direita, para caracterizar um atitude de desolao. A figura feminina traja veste longas e um vu igualmente longo, que se estende at base da escultura. E, embora a data da primeira inumao do jazigo seja 1939, devemos observar que a temtica e o estilo da escultura, bem como as linhas do prprio jazigo e a utilizao de mrmore em todo o conjunto, nos remetem Belle Epoque. 31
Apesar do cemitrio do Brs claramente marcar a sua presena com tmulos mais simples, que contam o passado de um bairro fabril, encontramos ali algum ou uma famlia que acreditou valer a pena encomendar os trabalhos de uma marmoraria e de seu artista
31 Op. cit. p. 182/183. 57 para se diferenciar das outras sepulturas. Uma forma de destacar uma memria de elegncia frente aos demais grupos tumulares. Renato Cymbalista realizou estudo dos cemitrios paulistas discutindo a forma arquitetnica que assumiram desde o momento em que os enterros foram definitivamente transferidos para o interior dos cemitrios: Cidades dos Vivos. Neste livro o autor pesquisou os cemitrios das cidades de It, Mato, Brodsqui, Moji-Mirim, Ribeiro Preto, So Manuel, Penpolis, Lenis Paulista, Marlia e outras, identificando as construes tumulares como prolongamentos da arquitetura dessas mesmas cidades. No tratamento dado s imagens, Cymbalista centralizou seus estudos nas formas tumulares, identificando quatro grandes temas de agrupamento: religiosidade, monumentalidade, domesticidade e humildade. Dentro desses temas a morfologia recorrente por ele catalogada foi a seguinte: altares, torres e obeliscos, cruzes, capelas, casas, flores e um chamado modelo recorrente:
o caso de um modelo de tmulo em granito marrom, que surge recorrentemente a partir da dcada de 1920 em vrios cemitrios. Esse modelo de jazigo relaciona-se com algumas das construes monumentais que proliferaram nos cemitrios mais importantes a partir do sculo XX. Que vo deixando as referncias diretas aos espaos sagrados e partem para uma busca plstica mais secularizada, envolvendo a pesquisa geomtrica e se apropriando da linguagem da monumentalidade. Mas a verso mais simples aquela que, com algumas variaes, absorvida pelas populaes das cidades do oeste paulista. possvel imaginar alguns motivos para essa disseminao: esses tmulos provavelmente apresentavam uma correlao satisfatria entre preo e requinte; suas linhas retas 58 devem ter seduzido os vivos que no mais queriam se fazer representar pelas evocaes to explicitamente catlicas dos tmulos de mrmore; deve ter sido produzido em srie pelas primeiras marmorarias, no pressupondo dos artesos a mesma habilidade que a estaturia belle poque exigia; sua estrutura escalonada permitia a diviso em partes, otimizando o uso da matria prima, facilitando o transporte e a montagem no destino final. O fato que o estado de So Paulo est cheio desses tmulos, utilizados no pelos mais ricos de cada cidade estes podiam encomendar tmulos mais personalizados e ostensivos , e sim por famlias de alguma forma conseguiam pagar por servios de marmoristas, dispondo portanto de razoveis posses. 32
Suas anlises foram feitas, portanto, tomando como campo de pesquisa vrios cemitrios, em busca de um olhar geral. No se deteve nas imagens funerrias como fontes documentais em si, mas sim quantitativamente (relacionando anjos, cruzes, flores). O olhar arquitetnico de Cymbalista no se preocupou em detalhar este ou aquele tmulo em seus cdigos individuais nem buscou discutir um grupo social, pois seu interesse estava em perceber a conexo entre a arquitetura da cidade dos vivos e a da necrpole. interessante pensar algumas sepulturas existentes no cemitrio do Brs, onde percebemos as casas das vilas operrias invadindo a cidade dos mortos. Mesmo falando de cemitrios no interior, e da arquitetura existente em seus interiores, ele deixou pistas para um trabalho em que as peculiaridades de um grupo podem ser identificados em seus tmulos.
32 CYMBALISTA, Renato. Cidade dos vivos. So Paulo: Annablume/Fapesp, 2002. p. 92. 59 Sobre a morte e a cidade de So Paulo vale mencionar os trabalhos de Luiz Soares de Camargo (Os sepultamentos na cidade de So Paulo: 1800-1858), Amanda Aparecida Pagoto (Do mbito sagrado da igreja ao cemitrio pblico; transformaes fnebres em So Paulo (1850 - 1860)) e Suzana Podkolinski Pasqua (Mortalidade e populao no processo de urbanizao da cidade de So Paulo (1890 1920) O caso do Brs). O historiador Luiz Soares de Camargo realizou um excelente trabalho de pesquisa documental para reconstruir as prticas fnebres da cidade de So Paulo muito antes da inaugurao do Consolao, em 1858. Antes de entrar na discusso higienista e das disputas entre a igreja e o Estado, Camargo aborda a importncia do bem morrer nos sculos XVI, XVII, XVIII e primeira metade do XIX. Utilizou vasto material testamental para reconstruir o que significavam as atitudes diante da morte para os habitantes da pequena vila de So Paulo.
Na anlise, ainda das primeiras palavras de um testamento, pode-se perceber que as pessoas desejavam ardentemente salvar as suas almas e, para isso, a simples escrita deste, j seria um passo muito importante. Em outras palavras, a elaborao do documento era uma das maneiras pelas quais as pessoas poderiam alcanar a salvao. Este um dado importante, pois demonstra que o testamento era um documento essencial para que, no final da vida, as pessoas pudessem se redimir dos erros, confessar seus pecados mais graves, registrar passagens de sua vida e, atravs disso, alcanar um lugar no cu. 33
33 CAMARGO, Luiz Soares de. Os sepultamentos na cidade de So Paulo: 1800- 1858. So Paulo, 1992. Dissertao de Mestrado defendida no Programa de Ps- Graduao em Histria da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. p. 24. 60 Alm disso, era nos testamentos que as pessoas revelavam o desejo de ser enterrados nesta ou naquela igreja, localizando precisamente o local onde o corpo deveria ser enterrado, prximo de um santo padroeiro ou da nave central, a quantidade de missas que deveriam ser rezadas para sua alma, assim como a quantidade de velas a serem usadas no velrio, o nmero de dobres de sino ou uma romaria prometida. Todos esses desejos deveriam ser cumpridos pelos familiares mediante uma quantia deixada pelo morto.
Se por qualquer motivo essas promessas no pudessem ser cumpridas, tanto pela prpria pessoa, quanto por familiares, resolvia-se a questo dando-se determinadas esmolas, que deveriam substituir e pagar a promessa. 34
Esse estudo d uma dimenso de como a morte e a forma de lidar com ela estavam presentes no cotidiano dos paulistas, o que refora ainda mais as dificuldades vividas pelos rgos pblicos quando da implantao do cemitrio extramuros. Tal mudana significava a perda do controle da famlia sobre seus mortos e, sobretudo, das parquias que arrecadavam um bom rendimento na prestao desses servios. Essa disputa entre a cincia, defendendo os cemitrios pblicos, e a igreja, defendendo a permanncia dos enterros no interior dos templos, discutida na segunda parte de sua pesquisa e continua na tese de Mestrado de Amanda Aparecida Pagoto. Sua tese se volta aos primeiros dez anos de existncia do Consolao e usa como documentao, entre outros, os peridicos da poca. Pagoto buscou explicar as dificuldades na aceitao do novo cemitrio e como os rituais fnebres foram gradativamente se modificando.
34 Op. cit. p. 26. 61 Todos os cuidados foram tomados para preservar a religio no novo campo e, com isso, tentar causar poucas alteraes nos ritos fnebres. Em seu espao deveria haver uma capella com a capacidade e arranjos necessrios para a celebrao de missa, as irmandades e confrarias podiam adquirir seus terrenos e construir os seus jazigos preservando a tradio dos cortejos, monumentos poderiam ser erguidos para homenagear os mortos, etc. 35
Tentou entender, ainda, como foi difcil para a populao paulista modificar seus hbitos, pensar num novo local de sepultamento, a cu aberto, sem a proteo de um teto e um solo verdadeiramente sagrados, e misturando num mesmo local as famlias de posses e os indigentes, uma vez que este cemitrio pblico deveria dar conta de todas as almas da provncia. Suzana Podkolinski Pasqua, em Mortalidade e populao no processo de urbanizao da cidade de So Paulo (1890 1920) O caso do Brs, no discutiu os cemitrios da cidade ou seus sepultamentos, e menos ainda os tmulos que foram erigidos. Sua preocupao residiu em discutir a mortalidade na regio do Brs. A tese possui excelentes dados demogrficos e de mortalidade da regio do Brs, o que oferece uma tima percepo de como era esse bairro entre 1890 e 1920, perodo escolhido pela autora para situar a sua pesquisa.
Entre a cidade e o Brs, aparentemente apenas h um riozinho, o Tamanduate, prosaico e barrento, correndo em um canal. Mas, na verdade, entre a
35 PAGOTO, Amanda Aparecida. Do mbito sagrado da igreja ao cemitrio pblico; transformaes fnebres em So Paulo (1850 - 1860). So Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2004. p. 119. 62 cidade e o Brs h separaes mais profundas. como se fossem duas cidades distintas. O trecho acima, transcrito do jornal o Correio da Manh do Rio de janeiro, de maro de 1944, nos revela uma geografia social da cidade, conceito este utilizado por Rolnik, que extrapola a prpria topografia da cidade, determinando uma urbanizao coerente com a mentalidade hierarquizada daquela sociedade. De um lado as partes altas, as colinas, reservadas s elites territrios da riqueza; de outro lado as baixas, os pntanos e os alagadios da vrzea do Tamanduate territrio da pobreza 36
Seu material de estudo foram os livros de inumao do Cemitrio do Brs (1893, 1899, 1905, 1911, 1917). Nesses livros, manuscritos, so encontrados a data da morte, o nome de quem morreu, sua idade, seu estado civil, sua nacionalidade, s vezes a filiao, a causa da morte e o local onde foi enterrado no cemitrio, se na quadra geral, se foi enterrado como pobre ou no, etc. A partir desse material Pasqua prope relacionar a incidncia do tipo de morte urbanizao da cidade e situao vivida pelos moradores da regio do Brs.
O motivo para o agravamento desta morbidade e de outras que atacavam o trato digestivo, foi finalmente reconhecido: a distribuio, in natura, das guas do rio Tite pela Repartio de guas e Esgotos (ERA), em 1914 e 1915. Desta maneira, o leite, os legumes crus, as frutas e os demais alimentos, muitas vezes responsabilizados pela
36 PASQUA, Suzana Podkolinski. Mortalidade e populao no processo de urbanizao da cidade de So Paulo (1890 1920) O caso do Brs. So Paulo, 1998. Tese de mestrado defendida na Universidade de So Paulo. p. 47 63 evoluo da febre tifide em So Paulo, foram caracterizados como secundrios na propagao daquele mal. 37 (...)
Desta forma, como tentamos demonstrar ao longo de nosso trabalho, estes bairros operrios eram os que mais careciam de infra-estruturas bsicas como: esgoto, abastecimento de gua, limpeza pblica e pavimentao. O histrico descompasso entre a demanda e a oferta de moradias, a incompatibilidade entre os salrios e os, aluguis, obrigaram a populao a viver encortiada e entregue prpria sorte. 38
Estes trs historiadores, Camargo, Pagoto e Pasqua, no trabalharam com os cemitrios propriamente ditos. No entraram por suas portas para dialogar com os tmulos e as memrias estampadas por todas as quadras e, ruas de organizao catica. Direcionaram seus trabalhos para outros lugares. Todavia, a pertinncia com a minha pesquisa se faz pelo fato de todos terem estudado a cidade de So Paulo. Camargo e Pagoto pesquisaram as atitudes dos paulistas diante da morte, dando nfase importncia do bem morrer. Essa preocupao, de diferentes formas, foi transposta para o interior de cemitrios, como o Consolao e o Brs. O medo da mudana, as discusses realizadas nos jornais e por vias jurdicas, tudo isso mostra o quanto a entrada dos cemitrios na vida da cidade trouxe incertezas, desconfortos e o sentimento de perda do controle de algo to caro quelas famlias como cuidar de seus mortos. Todo este palco montado anteriormente chegada definitiva dos cemitrios pblicos e dos conjuntos tumulares existentes nesses dois cemitrios nos d a clareza da importncia assumida pelas necrpoles quando o
37 Op. cit. p. 127. 38 Op. cit. p. 154. 64 bem morrer se transferiu definitivamente para l. As memrias no estavam mais na Igreja do Carmo ou na S ou ainda na Igreja de So Francisco de Assis; passaram a ser construdas como forma de projeo para o futuro nos cemitrios a cu aberto. Aqui entram os imigrantes. Quanto a Pasqua, o dilogo com meu estudo se deve a seu excelente mapeamento da morte no Brs. Demonstrando a situao vivida pelos moradores do bairro, que por muito tempo abarcou dentro de si a Mooca e o Belenzinho. Discute o cemitrio do Brs quanto necessidade de sua criao, dos pedidos populares pela construo de um cemitrio mais prximo e que evitasse os transtornos de uma viagem to longa at o Consolao ou, depois, ao Ara. O descaso das autoridades fica patente em sua pesquisa quando mostra o alto ndice de mortalidade infantil (crianas com menos de cinco anos de idade) e o alto ndice de mortalidade por molstias do aparelho digestivo, fatos que sempre me intrigaram desde as minhas primeiras pesquisas com este material os livros de inumao do Brs e do Consolao e que foram estudados pela autora e intimamente relacionados a uma condio de vida precria dos moradores da regio, que eram enterrados nesse cemitrio. Mesmo no trabalhando com o interior do Quarta Parada este mapeamento me levou a entender as dificuldades vividas por aqueles que gradativamente construram suas sepulturas neste cemitrio. O Brs, regio de imigrantes de diferentes nacionalidades, mas sobretudo de italianos, viveu na pele as diferenas de uma cidade onde as administraes pblicas levavam, j no incio do XX, gua e gs encanado, para a iluminao pblica, rede de esgoto e, mais tarde, energia eltrica por cabos subterrneos Av Paulista, transformando-a num carto postal, e essas mesmas administraes permitiam que as guas do Tite, sem nenhum tratamento, invadissem as casas dos moradores do Brs. Esses moradores, os imigrantes, deixaram, apesar das intempries da vida, seus traos, suas recordaes, suas memrias de si e dos seus. O cemitrio do 65 Brs uma memria ainda viva da passagem desses imigrantes por essa regio fabril da cidade de So Paulo.
Diante desses autores, de seus trabalhos e suas reflexes, fica uma certeza: o da existncia de um grande campo de estudos a ser abordado sobre a morte em seus diferentes aspectos. Entender a morte como uma forma de construo da memria imigrante, comparar essa memria existente nos cemitrios da Consolao e do Brs, cemitrios separados pelo riozinho, o Tamanduate, prosaico e barrento. Essa comparao pode dar a dimenso das diferenas ou semelhanas que os estrangeiros e suas famlias, localizados no apenas em regies diferentes da cidade, mas tambm fazendo parte de camadas sociais diferentes, possuem quanto memria legada s futuras geraes. 66 III. Museus a cu aberto: Consolao e Brs
1. Museus a cu aberto
Garoa do meu So Paulo, - Timbre triste de martrios Um negro vem vindo, branco! S bem perto fica negro,
Mrio de Andrade
No sculo XIX dois importantes cemitrios se transformaram no lugar de encontro entre os amigos dos mortos, pelo menos em seu incio. Foram eles o Pre-Lachaise, em Paris (1803), e o Mount Auburn, em Massachussets (1831). O Pre-Lachaise nasceu com o esprito dos Campos Elseos, grandes jardins, bosques e belos monumentos compondo o ambiente. Despojos famosos foram transladados como forma de ganhar a confiana da populao para o novo cemitrio extramuros. Ao que parece o prprio Napoleo Bonaparte teria se intrometido nessa ao como forma de estimular a burguesia a procurar por um cemitrio pblico, e no mais o interior das igrejas - por trs dessa atitude estava a preocupao com a higienizao de Paris, e de toda a Frana. Criou-se um novo estilo de sepultamento, menos religioso e mais racional. Entre os famosos transladados estavam os supostos despojos de Abelardo e Helosa. Nascia o Pre-Lachaise como uma grande atrao para os franceses. O Mount Auburn foi criado por particulares, uma vez que nos Estados Unidos os cemitrios no eram monoplio da municipalidade, como na Frana. As questes de higiene tambm davam o tom para estimular o uso do novo cemitrio e afastar os mortos do enterro caseiro e dos cemitrios pblicos, ambos vtimas freqentes de 67 profanaes. J em sua inaugurao, o Mount Auburn assumiu um papel diferente: deveria ser o lugar da filosofia, do aprendizado no do fim, mas do ciclo da criao, quase uma escola religiosa. Seu espao deveria ser o lugar da lembrana, da comoo dos entes queridos, um lugar que atrasse, se no pela terra, pela emoo. No nascimento ambos estiveram muito prximos: lembrana a cu aberto, esttuas aqui e ali seguindo diferentes estilos e tipos como estelas neoclssicas, personagens realistas, bustos, etc. Contudo, durante a segunda metade do sculo XIX, os destinos desses dois cemitrios seguiram rumos opostos. O Mount Auburn passou a valorizar cada vez mais a terra, o campo, o verde das colinas e cada vez menos a arte em pedras das esttuas. Era a supremacia da relva sobre a arte estaturia, da simplicidade da natureza sobre a antiga presuno dos tmulos fruto do exagero humano. Nascia a tradio americana das sepulturas marcadas por pequenas cruzes ou estelas arredondas com nomes e datas circulando por seus cemitrios. Parques urbanos, como o Central Park, em Nova Iorque, foram inspirados nesses espaos abertos e convidativos reflexo. No Pre-Lachaise, por sua vez, a natureza recuou e cedeu espao arte de seus tmulos. Era a imposio do homem natureza, transformando o campo em cidade: a necrpole. Na Frana do sculo XIX havia os defensores da natureza sobre a arte e os seus opositores, que venceram esta disputa. Os romnticos franceses falavam em vaidade dos herdeiros escondida no pretexto de homenagear os mortos, acusavam as famlias do desejo de serem vistas e homenageadas por todos. No cemitrio francs, assim como em cemitrios de toda Europa continental, o tmulo visvel teve suas dimenses ampliadas Os monumentos funerrios imitavam belos tmulos da igreja uma tentativa de levar para dentro dos cemitrios o que havia sido proibido fora dele -, construes da Antiguidade e do neoclassicismo, pirmides uma meno vida aps a morte -, obeliscos, esfinges e pseudosarcfagos. No Brasil os 68 cemitrios extramuros, inaugurados na segunda metade do sculo XIX, seguiram a tradio francesa, por exemplo, o Consolao. Todas essas reflexes provenientes do trabalho de Philippe Aris, O homem diante da morte, nos remetem discusso do cemitrio como um museu a cu aberto: a cidade dos mortos (necrpole), onde do cho brotam imagens recheadas de significados, visitadas no apenas pela comoo, mas pelo belo, pelo histrico, pelo memorvel. Em seu livro Histria da arte como histria da cidade, Giulio Carlo Argan defende a idia de que o termo Centro Histrico teoricamente absurdo, pois a cidade, em nossos dias, vive uma crise, a da historicidade intrnseca, congnita. Para ele a crise se encontra na briga entre o que resta de passado e a vida atual da metrpole. Corremos, afirma, o risco de nos tornarmos uma sociedade cuja estrutura social no mais a histria. A questo que em breve no ser mais possvel relacionar os objetos e obras de arte espalhados pelo espao urbano, com a prpria cidade. O museu lhe parece ser a nica forma de salvaguardar esses objetos, apesar de saber quo doloroso retir-los de seu local de criao. Nossos cemitrios, por sua prpria constituio, j so verdadeiros museus, porm a cu aberto. Tudo, a princpio, permanece e permanecer em seu local de origem ainda por muito tempo. Para Argan um historiador da cidade deve ajudar a pens-la no seu todo, e no apenas naquele pequeno quadriltero que chamado de centro histrico. Portanto, buscar o significado dos cemitrios, de suas sepulturas, artsticas ou no, trancafiadas em seu interior, pode, por exemplo, auxiliar a compreenso dos diferentes espaos existentes em So Paulo como espaos recheados de histria e de memria, pronta a ser estudada, refletida e contada. A cidade de So Paulo caminhava, no final do sculo XIX, para se incorporar no mundo industrial, colocando em crise a concepo tradicional da cidade. A cidade modificava seu espao fsico gerao aps gerao num processo hoje visto como vertiginoso: 69 No que diz respeito aos conflitos e tenses que envolveram o processo de urbanizao de So Paulo, aos padres de ordenao da vida cotidiana e s modificaes da sociabilidade no espao pblico, o perodo privilegiado por estar situado como que a meio do caminho, entre a promessa de uma So Paulo civilizada, metropolitana e agigantada e a memria de uma cidade pacata e modorrenta. Nos anos 20, So Paulo encarnava a imagem de uma metrpole moderna e a realidade de um pas perifrico, das enchentes e da pobreza, equilibrando-se entre um modelo europeu de urbanidade e o cotidiano inventivo e improvisado das inmeras etnias e novos grupos sociais que se formavam. 39
O sentimento de que a cidade estava em plena mudana percebido no depoimento do senhor Junius, na comparao feita entre a So Paulo de sua primeira visita e a de trinta anos depois:
Junius (Firmo de Albuquerque Diniz), que estudara na Academia de Direito de So Paulo entre 1848 e 1852, trinta anos depois maravilha-se com muitos hbitos novos na cidade. Suas Notas de Viagem registram com surpresa o movimento, a animao, a vida da cidade, o incessante rodar de carros e carroas, grupos de senhoras, que passeiam, desacompanhadas do chefe de famlia ou de outro qualquer homem, fazendo compras (...) o afluxo da populao flutuante a certas festividades em grandes ondas nas ruas, nas praas (...) dando visivelmente mais animao ao
39 PADILHA, Mrcia. A cidade como espetculo; publicidade e vida urbana na So Paulo dos anos 20. So Paulo: Annablume Editorial, 2001. p. 18. 70 comrcio, mais vida cidade e fazendo circular mais dinheiro, o aspecto alegre, bonito das ruas Direita, de So Bento, do Rosrio, o emprio parisiense representado pela ltima. 40
Argan destaca o significado dessa transformao ampla:
imaginamos as cidades do futuro, como se a degradao das cidades dependessem do destino e no da nossa incapacidade de as conservar e como se a forma das cidades futuras dependessem de ns e no das geraes vindouras. 41
J as necrpoles da Consolao e do Brs passavam por transformaes infinitamente mais lentas, uma vez que seus tmulos no foram postos abaixo com a mesma facilidade que um sobrado ou um antigo edifcio. Esses cemitrios viveram um processo de ampliao territorial, novas construes foram e so realizadas, porm, por enquanto, se mantiveram as antigas, s vezes preservando, outras vezes reformando.
40 FABRIS, Annateresa. O futurismo paulista: hipteses para o estudo da chegada da vanguarda ao Brasil. So Paulo: Perspectiva, 1995. p.12. 41 ARGAN, Giulio Carlo. Histria da arte como histria da cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p.225. 71
Esta imagem fazia parte de um conjunto tumular que foi reformado. Um dos funcionrios da administrao do cemitrio da Consolao a salvou e trouxe para perto da capela compondo com outras sepulturas.
Exemplo interessante so as pinturas realizadas em antigos tmulos, dentro do cemitrio do Brs, como se fosse uma reforma da casa, com as tintas do momento, ou seja, com as cores existentes em nossas ruas levando um pouco da vida externa para dentro do cemitrio -, mas de qualquer forma, sem os modificar substancialmente. Os planos diretores por trs dos projetos de urbanizao da cidade orientam as transformaes que podem ocorrer nela, porm no interferem no interior dos cemitrios, espaos vistos como sagrados e de dinmica prpria, de tempo prprio e, por isso, distantes das transformaes sentidas do lado de fora, do outro lado do muro. 72 A quem esse muro protege tambm uma boa questo. No momento de sua construo, da determinao legal que obrigou a populao a transferir seus rituais de sepultamento do interior das igrejas para o interior dos chamados cemitrios extramuros, a inteno era proteger os vivos dos mortos e de seus miasmas, que eram vistos como causadores de doenas, epidemias, males que rondavam a cidade em meados do sculo XIX. Hoje os muros protegem os mortos dos vivos em vrios sentidos: da depredao constante que sofrem os tmulos, sobretudo aqueles que esto mais prximos dos muros e tm suas paredes pichadas, algumas de suas obras quebradas, placas de bronze roubadas; da profanao dos tmulos em que os ladres buscam objetos preciosos que os mortos poderiam trazer consigo; do uso dos tmulos como locais de despacho para outras religies; do espao do cemitrio como local de pernoite; ou ainda como forma de proteger esse espao das constantes transformaes pelas quais a cidade vive, preservando ali diferentes tempos histricos. So problemas que um museu tradicional no carrega, alm do museu a cu aberto ter contra si at as intempries do tempo. Para Argan o conflito que a cidade moderna vive est em entender o que deve ser preservado ou no, difcil questo. As construes realizadas pelos antigos tinham um significado prprio para aquele momento adquiriram novos significados para as geraes posteriores:
os antigos construram esses edifcios para as suas exigncias, no para as nossas e sem dvida construram-nos slidos e imponentes para que permanecessem no futuro, mas com a idia de que permanecessem eternamente vlidos os valores que esses edifcios deveriam representar. Livres as geraes posteriores para demoli-los, 73 como foi feito e, infelizmente, se continua a fazer. Trata-se, enfim, de uma herana, no de um planejamento. Se conservamos esses monumentos, o fazemos porque esta uma exigncia da nossa cultura, tanto assim que atribumos a eles um significado completamente diferente daquele para o qual foram construdos. 42
Os monumentos conseguiram sobreviver nos cemitrios, at os dias de hoje, mais por manterem sua funo de uso, receber os mortos, do que por uma escolha consciente das geraes presentes.
A cidade, dizia Marslio Ficino, no feita de pedras, mas de homens. So os homens que atribuem um valor s pedras e todos os homens, no apenas os arquelogos ou os literatos. 43
Se os homens, cidados de uma cidade, no se sensibilizarem por suas pedras, elas esto fadadas ao esquecimento e posteriormente destruio. Como proteger um cemitrio se nos dias de hoje as pessoas se afastam dele? Como proteger algo que pouco visto, e em alguns casos at sofre rejeio? H um sculo a relao da sociedade com seus mortos era diferente. O acompanhamento de cada passo at o momento final era to ou mais importante que o nascimento de uma pessoa. A manuteno da memria do morto, de sua famlia, para a comoo e, claro, para ser vista por todos perdeu o sentido na medida que os cdigos foram sendo esquecidos e, mais que isso, poucos so os que desejam decifr-los:
42 Op. cit. p. 236. 43 Op. cit. p. 228. 74 Sua verdadeira tarefa (do administrador dos valores culturais da cidade) mais de educador do que de tcnico; sua verdadeira finalidade no criar uma cidade, mas formar um conjunto de pessoas que tenham o sentimento da cidade. E a esse sentimento confuso, fragmentado em milhares e milhes de indivduos, dar uma forma em que cada qual possa reconhecer a si mesmo e sua experincia da vida associada. 44
O Consolao e o Brs, em pleno sculo XXI, possuem tmulos em forma de capelas, onde residem anjos, santos, alegorias, dizeres, fotos, ou seja, um lugar transformado verdadeiramente num espao para os monumentos aos mortos, e por excelncia um lugar onde a memria foi cristalizada. Nesses espaos se manteve viva, mesmo que pouco vista, a memria dos diferentes grupos imigrantes de So Paulo. A mudana ocorre fora dos portes dos cemitrios; l dentro as famlias mantm seus retratos, suas cadeiras, (no interior das capelas), suas toalhas de renda ou mesmo suas flores de plstico (Brs). Ou suas grandiosas esculturas, seus monumentos que chamam a ateno at mesmo dos que se encontram fora dos muros (Consolao).
44 Op. cit. p. 240-241. 75
No museu da Consolao, andando sem compromisso, temos a possibilidade de apreciar pequenos detalhes.
prprio do monumento comunicar um contedo ou um significado de valor por exemplo, a autoridade do Estado ou da lei, a importncia da memria de um fato ou de uma personalidade da histria, o sentido mstico ou asctico de uma igreja ou a fora da f religiosa. 45
45 Op. cit. p. 235-236. 76
Detalhe da Piet de Victor Brecheret Tmulo da famlia lvares Penteado Escultores reconhecidos dentro do cemitrio da Consolao.
O museu a cu aberto e mais especificamente os dois cemitrios estudados neste trabalho esto carregados de valores trazidos, pensados e incorporados pelos imigrantes, os bem sucedidos e os operrios. Uma parte da memria imigrante e de sua histria. Nesse lugar da memria, prevalece a tentativa de construir uma histria a ser celebrada trancafiada entre seus muros. um museu visitado de forma peculiar, sem que deixemos nossos nomes na entrada ou nos probam de tocar nas obras. 77
2. Os nossos museus: So Paulo e o nascimento do Consolao e do Brs (Quarta Parada)
Meu So Paulo da garoa, - Londres das neblinas finas- Um pobre vem vindo, rico! S bem perto fica pobre, Passa e torna a ficar rico.
Mrio de Andrade
Em So Paulo a neve no nos toca como na imagem final do conto de James Joyce, Os vivos e os mortos, na cidade de Dublin. 46
Quando muito uma garoa aqui e ali cobre as noites dessa cidade. Aqui tambm os campos santos permanecem em silncio recebendo chuva, vento, raios de sol... suas cruzes e lpides se mantm firmes espera de olhos curiosos que tragam vida a emoes, sentimentos, memrias guardadas. Seus portes, fechados durante a noite, protegendo os vivos dos mortos (ou seriam os mortos dos vivos?), abrem-se todas as manhs para receberem parentes saudosos, mendigos e, de vez em quando, pesquisadores em busca de conhecer mais dessa cidade atravs daquilo que ela mesma esconde.
46 Umas batidas leves na vidraa fizeram-no virar-se em direo janela. Recomeava a nevar. Sonolento, ele observou os flocos prateados e escuros, caindo obliquamente contra a luz do lampio. Chegara o momento de iniciar sua viagem para o oeste. , os jornais tinham acertado: nevava em toda a Irlanda. Caa neve por toda a sombria plancie central, nas montanhas desprovidas de rvores, nevava com brandura sobre o Bog of Allen e, mais para o oeste, nevava delicadamente sobre as ondas escuras e rebeldes de Shannon. Caa tambm no cemitrio solitrio da colina onde jazia Michael Furey. Acumulava sobre as cruzes inclinadas e sobre as lpides, sobre as pontas das grades do porto, sobre os espinhos. Sua alma desfalecia-se lentamente enquanto ele ouvia a neve precipitando-se placidamente no universo, placidamente precipitando-se, descendo como a hora final sobre todos os vivos e todos os mortos. JOYCE, James. Os mortos. Dublinenses. So Paulo: Siciliano, 1993. p. 221-222. 78 O ano 1858, mais precisamente 10 de julho de 1858. Nessa data os paulistanos vem nascer seu primeiro cemitrio pblico, chamado de cemitrio extramuros. Levava o mesmo nome da famosa rua onde se localizava: Cemitrio da Consolao. Nesse dia o cemitrio foi benzido, podendo ser usado como um campo sagrado, mas, segundo a historiadora Maria Amlia Salgado Loureiro, devido epidemia de varola seu funcionamento no respeitou os cdigos religiosos, entrando em funcionamento alguns dias antes. 47 O Livro de bitos da S, referente ao Cemitrio da Consolao, anotou como primeiro sepultamento o de D a Tereza de Jesus, agregada de Major Matheus Fernandes Coutinho, no dia 15 de agosto de 1858. Em termos documentais esta teria sido sua inaugurao oficial. Depois de D a Tereza seguiram-se por todo o ms de agosto enterros de pessoas que hoje seriam improvveis: presos da cadeia da cidade, escravos maiores e menores de idade, indigentes misturados a doutores e prpria Marquesa de Santos, benfeitora do Cemitrio da Consolao por ter doado quatro contos de ris Capela que seria erigida no primeiro cemitrio pblico do municpio de So Paulo. Estvamos portanto bem distantes do que este cemitrio viria a se transformar, o ltimo descanso dos bares do caf, das famlias quatrocentonas, de presidentes, de imigrantes que fizeram de So Paulo seu lar e seu imprio. O local para sua construo no foi desde o incio a Rua da Consolao. Outras regies da cidade foram cogitadas e rapidamente descartadas, como o lado esquerdo da rua da Forca:
porque alm de ficar superior Cidade, donde sopra efetivamente os ventos reinantes, lugar escabroso e desigual, e no pode preencher os fins desejados. 48
47 LOUREIRO, Maria Amlia Salgado. Origem histrica dos cemitrios. So Paulo: Secretaria de Servios e Obras da Prefeitura do Municpio de So Paulo, 1977. 48 Op. cit. p. 62. 79 Primeira pgina do livro n 01 do Cemitrio da Consolao, o primeiro da cidade: em 1858 registrou-se o primeiro bito. 49
49 http://www.quarteiraopaulista.com.br/n0090.htm. Acesso em 15 de abril de 2006. 80 Muitas foram as reclamaes quanto construo de um cemitrio extramuros no municpio de So Paulo. A populao paulistana da metade do XIX, acostumada aos enterros no interior das igrejas, no via com bons olhos essa mudana. Implicava com essa modernidade de um lugar a cu aberto, exposto aos ventos e s chuvas, que os colocava longe da proteo divina dos altares e de seus santos de devoo. Tudo era motivo para questionar tal empreendimento:
Assim, j em 1858, pouco antes da inaugurao do cemitrio, a Cmara Municipal, informando a representao de alguns moradores da cidade contra a instalao do novo Cemitrio da Consolao, situado no fim do mundo, na beira da estrada para Sorocaba, ladeado de capinzais e vacarias, segundo expresso de Everaldo Valim Pereira de Souza, diz concluindo: Tambm no procede a reclamao quanto distncia, porque, alm de ser extemporneo, a experincia tem demonstrado que em 25 minutos vai e volta um carro ao Cemitrio, sendo certo que os do Rio de Janeiro e outros lugares so situados a maiores distncias. 50
Na planta da imperial cidade de So Paulo, levantada em 1810 e copiada em 1841 com todas as alteraes (Anexo 1), no encontramos e estrada para Sorocaba, atual Rua da Consolao, nem mesmo a igreja da Consolao. O mapa mostra a distncia do futuro cemitrio pblico, em 1841, da cidade de So Paulo; mais do que a distncia: sua construo fora da cidade. Se a lonjura era vista como um incmodo por uma parte da populao, para os rgos pblicos
50 LOUREIRO, Maria Amlia Salgado. Origem histrica dos cemitrios. So Paulo: Secretaria de Servios e Obras da Prefeitura do Municpio de So Paulo, 1977. p.67.
81 ela motivava sua criao ali. O discurso que alimentava a implantao de cemitrios extramuros era exatamente a exigncia de tir-los do convvio direto com os vivos:
O ilustre filosofo Plato refferia no seu tempo, q. o homem se havia portar de modo q nem vivo, nem morto, e por maneira alguma fosse enfadonho ao gnero do homem, e portanto recomendava muito, q os mortos fosses sepultados fora do povoado, e em campo estril. 51
O Cemitrio apontado no mapa com a indicao S o Cemitrio dos Aflitos, localizado prximo ao Largo da Forca, atual Praa da Liberdade.
Pelos informes que chegados at ns, verifica-se que o Cemitrio dos Aflitos foi criado precipuamente para nele serem enterrados os indigentes, escravos e sentenciados. Mas, embora no tenhamos encontrado nenhuma referncia a respeito, tudo nos leva a supor que os estrangeiros acatlicos tambm nele deveriam ser enterrados, pois era um terrvel problema a designao de um local para eles. Haja visto o caso de Jlio Frank, o misterioso alemo que apareceu em So Paulo e foi professor de Histria no curso Anexo Academia de Direito, e que morrendo em 1841, teve de ser sepultado em um pequeno ptio do antigo edifcio da faculdade, pois no podia ser
51 PAGOTO, Amanda Aparecida. Do mbito sagrado da igreja ao cemitrio pblico; transformaes fnebres em So Paulo (1850 - 1860). So Paulo: Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2004. p.144. in Anexos: Dissertao sobre os cemitrios pblicos. Autor Annimo. 82 enterrado nos cemitrios de igreja, por motivo de crena religiosa. 52
No era s a populao que desconfiava dessa mudana. A prpria igreja aceitou de mau grado as novas ordens da Cmara Municipal. Elas representavam uma diminuio do espao do sagrado a partir da perda das esmolas - dependendo da igreja escolhida as esmolas eram bem altas; por exemplo 14.000 ris (no sculo XVII) era o preo dos lugares mais caros no interior da igreja Nossa Senhora do Carmo e, mais do que isso, era na verdade a perda do domnio sobre o mundo dos mortos, agora pertencentes ao poder pblico. 53 No mesmo perodo:
Um stio pequeno nos arredores da cidade........... 25.000 ris Uma casa simples na Rua So Bento................... 16.000 ris Uma vaca........................................................ 1.300 ris Uma foice........................................................ 320 ris 54
Apesar de todos os desagravos que tal medida possa ter causado, o aumento populacional percebido a partir do ano de 1855 (a cidade contava ento com 15.471 habitantes) e mais a crescente percepo da perniciosidade dos sepultamentos dentro das igrejas considerado como um dos fatores responsveis pelas epidemias da poca prepararam a populao para a inaugurao e o incio dos trabalhos no novo Cemitrio. Inaugurado em 1858, teve sua construo continuada nas dcadas seguintes:
52 LOUREIRO, Maria Amlia Salgado. Origem histrica dos cemitrios. So Paulo: Secretaria de Servios e Obras da Prefeitura do Municpio de So Paulo, 1977. p. 50. 53 Sobre as formas de sepultamento anteriores aos cemitrios extramuros ver CAMARGO, Luiz Soares de. Os sepultamentos na cidade de So Paulo: 1800-1858. So Paulo, 1992. Dissertao de Mestrado defendida na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. 54 Essas informaes foram retiradas da Dissertao de Mestrado de CAMARGO, Luiz Soares de. Op. cit. p. 35.
83
Os anos correram e as construes no Cemitrio Pblico da Consolao continuaram a ser efetuadas. Ora um novo porto, ora um gradil ou um muro. Assim, a 7 de janeiro de 1869, a Cmara autorizada pela Lei de 19 de julho de 1867, tratou de vender os quartos que possua na Ladeira do Carmo, com o fim de aplicar o produto da venda na construo de uma casa perto do Cemitrio, com as necessrias acomodaes para moradia do Administrador e do Capelo do Cemitrio, bem como um local destinado s autpsias. 55
Mesmo estando em funcionamento desde 1858, sua regulamentao foi aprovada apenas no dia 14 de abril de 1868, e assim:
Devidamente oficializado, substituiu ele como cemitrio pblico da cidade de So Paulo, as pequenas necrpoles, mais ou menos provisrias, ento existentes: Cemitrios dos Aflitos, e os do Campo da Luz, Irmandade da Divina Providncia, Cemitrios dos Alemes e dos Protestantes), tornando-se, mais tarde o de mais alto nvel social da cidade. 56
Novas leis e regras foram redigidas e oficializadas para o funcionamento do cemitrio da Consolao, a venda de terrenos, seus valores, quem cuidaria dos enterros e mesmo como deveria ser o transporte dos cadveres. Todos os mortos paulistanos eram sepultados neste primeiro e at ento nico cemitrio pblico da
55 LOUREIRO, Maria Amlia Salgado. Origem histrica dos cemitrios. So Paulo: Secretaria de Servios e Obras da Prefeitura do Municpio de So Paulo, 1977. p. 70. 56 Op. cit. p. 72. O negrito meu. 84 cidade. Todos, portanto, deviam obedecer s novas normas de sepultamento: Lei n 548 de 28 de abril de 1856
O Bacharel formado Antono Roberto dAlmeida, vice-presidente da Provncia de S. paulo etc. Fao a saber a todos os seus habitantes que a Assemblia Legislativa Provincial decretou e eu sanccionei a lei seguinte:
Art. 1. O governo fica autorizado para contractar com Joaquim Marcellus da Silva o servio de conduo dos cadveres da capital para o cemitrio erecto na Consolao, pago o transporte pelos particulares em vehculos classificados conforme a tabella junto, e pelos preos, e com os acessrios na mesma indicados, transportando gratuitamente os cadveres dos indigentes que fallecerem fora das casa de caridade.
Art. 2. No caso de ser a capital invadida por epidemias, aos preos de trabalho tero diminuio da quarta parte.
Art. 3. O governo conceder ao empresrio o privilgio de conduco do cadver em vehculos at quinze annos, no ficando prohibido aos particulares a conduco por qualquer outro meio ; e designara os limites das freguesias das da S, Santa Iphigenia e Brz dentro dos quais ter vigor o contrato.
Tabella n 1
Para Adultos 1 Classe 85 Conduco do Cadaver Carro de seis colunnas, guarnecida de filetes de ouro, sanefas de velludo com franjas de ouro, puxado a quatro animaes, ricamente ajaezado, cocheiro completamente fardado. 30$000
Conduco do Parocho
Carro de quatro rodas 10$000
Para Adultos 2 Classe Conduco do Cadaver
Carro de seis colunnas, todo pintado de preto com sanefas de belbute e franjas pretas, puxado a dois animaes, cocheiro com fardamento mais inferior que o de 1 classe. 20$000
Conduco do Parocho
Sege mais inferior que o de 1 classe. 8$000
Para Adultos 3 Classe Conduco do Cadaver
Sege de quatro rodas para ir o caixo atravessado, puxado a dois animaes. 10$000.
Conduco do Parocho
Sege mais inferior do que a 2 classe. - 6$000
Para Adultos 4 Classe Conduco do Cadaver
86 Carroa toda feixada, pintada de preto, com uma cruz em cima, tambm pintada e puxada por um s animal. 5$000
No caso de epidemias as conduces de 3 classe ficara reduzida a 8$000 e a de 4 a 4$000. 57
A ttulo de comparao, com relao aos preos cobrados pelos condutores, em 1856 o salrio de um cirurgio do servio pblico era de 400$000, enquanto o salrio do caseiro do matadouro era de 150$000. Se as diferenas no existiam quanto ocupao do mesmo cemitrio - toda a populao deveria ser sepultada no mesmo Cemitrio Pblico (1856) - ela era sentida no tipo de sepultura comprada, se era perptua (300$000) ou no, carneiro por 5 anos (100$000), se era uma sepultura na quadra geral (10$000), com ou sem cruz (2$000) e, pelo que vimos na Lei n. 548 de 28 de abril de 1856, transcrita acima, pelo modo como as famlias chegavam ao cemitrio com seu morto. No limite, a 4 classe, no havia a necessidade do acompanhamento de um proco, e com certeza esse grupo era sepultado na quadra geral, sem cruz, que poderia ser adquirida mais tarde. Ainda no livro de Leis da Provncia de S. Paulo de 1850-1862 menciona-se a tentativa, com sucesso, de burlar as novas diretrizes de sepultamento. Dentro da prpria legislao da provncia, neste caso recheada de determinaes quanto s novas formas de sepultamento, um cidado conseguiu a permisso de ser enterrado dentro da igreja, conforme os antigos ritos:
1855 (?) Fica autorizada a cmara municipal da Villa de Limeira a conceder ao cidado Bento Manoel de Barros faculdade para construir na
57 ARQUIVO MUNICIPAL Washington Lus . Leis da Provncia de S. Paulo. 1850 a 1862. 87 matriz daquela Villa quatro catacumbas, as quais serviro de sepultura somente para si e sua famlia (...) devendo a cmara municipal estabelecer as condies necessrias para que a sade pblica no seja prejudicada. 58
Essas transformaes sentidas nos rituais da morte (o transporte do morto, seu lugar de enterro, o tipo de sepultura etc.) so as primeiras marcas da segunda metade do sculo XIX que retratam na capital, e em todo o pas, o desejo de alinhar suas atitudes e pensamentos aos pases da Europa e os EUA. As palavras de ordem eram modernidade e urbanizao. Para ser moderno e urbano alguns sacrifcios deveriam ser feitos, sobretudo por parte da populao, que, sem entender muito bem, era levada nesse turbilho da virada do sculo XIX para XX. A regularizao dos enterros na cidade, fora do interior das igrejas, imitava os procedimentos europeus no trato com os mortos. Vrios relatrios, comisses de estudo e discusses foram montadas e realizadas para pensar e, depois, para convencer a populao arredia s mudanas, sobretudo quelas que significavam um novo comportamento quanto aos cuidados com seus mortos: de que um cemitrio pblico geral, extramuros, era o mais correto pensando na higienizao trao da modernidade da cidade. O argumento era o aumento populacional registrado em 1855, segundo Richard Morse:
Distrito Habitantes S 7.484 Santa Efignia 3.646 Braz 974 Penha 1.337 N. S. do 2.030 Total 15.471
58 Op. cit.. 88
O cemitrio da Consolao, que anos depois se tornaria o local preferido dos bares do caf, de polticos paulistas e dos imigrantes enriquecidos como sua ltima morada, foi escolhido por sua localizao. O alto da Consolao era ideal por ser um lugar bastante afastado da cidade e sem moradores, portanto perfeito para a construo de uma necrpole que ajudaria no processo civilizatrio da populao paulistana, separando os mortos dos vivos, higienizando a Provncia, preocupao do governo que temia pela invaso do Clera. (Anexo 1). Enquanto o Consolao ainda no era dominado pela elite cafeeira e industrial, senhores e escravos eram sepultados, no lado a lado, mas no mesmo campo santo. S no ano de 1858 encontramos os seguintes nomes de escravos: Eullia, Gregrio, Luiza, Leonor, Thereza Africana, Maria (de seis meses), Joo Africano, Pedro Africano... todos sepultados pelos seus senhores, que pagaram 6$000 pela sepultura nas quadras gerais.
Primeiro nome Eullia escrava de Jos (Tito) Nabuco de Arajo - 6$000. O Capp. m Luiz Igncio Bitencourt na compra que fez de sua catacumba para ser sepultado o seu filho Alfredo - 50$000. 59
59 ARQUIVO MUNICIPAL Washington Lus . Livros de Compra e Venda de 1858 a 1866 da Consolao vol 33 Arrecadao: So Paulo. Nov 1858. Essas informaes foram obtidas nas pesquisas realizadas no acervo documental do Arquivo Municipal Washington Lus . O estudo ficou centrado nos Livros de Arrecadao dos cemitrios da Consolao e do Brs. Desses livros vieram as informaes sobre os gastos na compra de sepulturas e catacumbas, os nomes dos compradores e dos sepultados, se o pagamento foi vista ou parcelado e o momento em que tais anotaes deixavam de ser feitas mo e passaram para um livro pblico oficial, tabelando os servios (igualmente) para todos os cemitrios da cidade, pelo menos at o final do sculo XIX. Em 1930 os valores j se diferenciavam e muito. Uma sepultura perptua no Brs custava 500$000, enquanto no cemitrio da Consolao ela sairia por 3:000$000. Como comparao em 1928 a Revista da Antropofagia, o exemplar avulso, custava $500 e a assinatura anual 5$000. Fonte: http://www.unicamp.br/iel/memoria/Teses/Milena2/teseanexo.doc.
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Em estudos realizados na Biblioteca Mrio de Andrade, referentes s imagens do Consolao, encontramos o lbum comparativo da cidade de So Paulo at 1916 Washington Luiz, e nele uma vista panormica do Cemitrio da Consolao em 1898. Nessa fotografia possvel presenciar uma cena inexistente no imaginrio paulistano: o cemitrio da Consolao praticamente vazio. Vemos apenas algumas sepulturas de pequeno porte, bem distantes das que hoje encontramos em seu interior, e uma parte do campo santo, o que parece destinado para as chamadas quadras gerais, onde eram enterrados escravos, pessoas sem posses, indigentes... tendo como nico anncio de sua existncia uma cruz.
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Vista area do Cemitrio da Consolao em 1898 lbum comparativo da cidade de So Paulo at 1916 Washington Luiz A capela sofreu alteraes na sua fachada. Ganhou colunas na entrada e nas janelas. Ela mudou, assim como o cemitrio tambm tomou outros contornos. 91
Entrada Principal do Cemitrio da Consolao Ao centro a capela do cemitrio So Paulo - 1916 lbum comparativo da cidade de So Paulo at 1916 Washington Luiz
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Entrada Principal do Cemitrio da Consolao Ao centro a capela do cemitrio So Paulo - 2006
Noventa anos depois, a entrada principal do Consolao continua quase a mesma. A capela, que recebeu donativos da prpria marquesa de Santos, continua l com suas colunas, sua forma circular, todavia mais escondida pelas rvores que cresceram nas ltimas dcadas. A pavimentao sofreu alteraes, assim como as laterais. Parece mesmo ter diminudo. Uma pequena murada foi colocada para separar quem entra de um acesso direto aos tmulos; preciso caminhar at perto da capela para acess-los. Arbustos foram colocados entre as rvores, deixando a entrada mais verde, frondosa, porm cobrindo os tmulos de uma viso mais direta do visitante. A inteno parece ter sido a de transformar a entrada do cemitrio a algo prximo de um parque, onde os tmulos mais parecem esttuas e monumentos de uma praa: dar leveza ao espao camuflando um pouco a realidade do lugar. Por estas duas fotos difcil afirmar o que mudou por trs das rvores. 93 Aparentemente os mesmos tmulos de 1916 continuam ali, porm, hoje, eles tm maior dificuldade para ver quem chega ao Consolao. So Paulo crescia a passos largos e no final do sculo XIX viu a fundao de um outro cemitrio, nascido tambm da preocupao das epidemias e inserido num processo de modernizao de alguns espaos da cidade: o cemitrio do Brs. A partir de 1870 bairros como o Brs atraiam imigrantes e industriais:
Significativo o exemplo do Brs que, a partir de 1870, comea a atrair imigrantes e industriais, os primeiros em busca de aluguis baratos, os segundos procura de galpes que se transformaro, anos depois, em grandes indstrias como a fbrica de tecidos de aniagem pertencentes a Antnio lvares Penteado, e o moinho e a tecelagem de Matarazzo. Sede da Hospedaria dos Emigrantes e, portanto, fulcro daquele mercado de homens de que fala Denis, o bairro conta com mais de 50.000 habitantes no comeo do sculo, em sua maioria italianos. 60
Uma grande quantidade de trabalhadores, a maioria imigrantes, povoou os bairros perifricos da cidade, lugares onde as chamins funcionavam a todo o vapor. Junto s fbricas e a seus operrios, os cortios tomaram uma proporo at ento desconhecida. A pobreza marcava essas regies da cidade, assim como tambm o descaso dos rgos pblicos, que no ouviam as reivindicaes dos cidados desta parte de So Paulo:
60 FABRIS, Annateresa. O futurismo paulista: hipteses para o estudo da chegada da vanguarda ao Brasil, So Paulo, Editora Perspectiva, 1995 , p. 18.
94 Num sentido mais amplo havia bairros inteiros que iam sofrendo esse processo crescente de encortiameto, abandono e descaso, como o Bexiga, o Cambuci e o Brs. Mas o Brs era certamente um caso parte no conjunto da cidade. A seu respeito O Estado deflagraria uma das mais provocativas sries de artigos, sob o ttulo geral de Um bairro desprezado, que desencadeou uma chuva de protestos, achincalhes e ameaas na Cmara Municipal, com os vereadores se declarando insultados ao extremo e tentando denegrir e intimidar o jornal. 61
Regies afastadas como o Brs comearam a reivindicar seu prprio cemitrio. O desejo era evitar o longo caminho rumo ao Consolao. Este por sua vez no comportava mais os mortos de toda a cidade, e em breve mostraria sua vocao para ser o lugar de descanso da alta sociedade paulista, deixando de lado essa poro da sociedade. Em 1893 foi inaugurado o cemitrio do Brs, mais conhecido como Cemitrio da Quarta Parada, a quarta parada do trem que viajava em direo ao Rio de Janeiro. No final do sculo XIX o segregacionismo chegava aos cemitrios, era o momento de cada bairro perifrico dar conta de seus mortos. A regio da vrzea - terra de operrios, de fbricas e imigrantes e do nascimento de times de futebol - iniciava sua histria de enterramentos no interior do Quarta Parada 6 de janeiro de 1893 -, histria que deixou como marca a memria de uma massa operria, a memria imigrante, ou seja, a memria dos desenraizados, que saram de seus lugares de origem, fincaram p nesta terra e aqui marcaram as suas memrias de saudade, de existncia e de futuro. Populao pobre que teve sua entrada na vida moderna retardada em alguns pontos e acelerada em
61 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na metrpole: So Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 129. 95 outros, conforme o interesse de sucessivos governos preocupados com o caf e com a industrializao de So Paulo, rumo ao progresso, sem que isso significasse de fato uma melhoria nas condies de vida dos habitantes das vrzeas paulistas. A fundao do cemitrio do Brs, em contrapartida ao da Consolao, foi desejada. A populao da regio h muito pedia um cemitrio prprio, ao contrrio das discusses em jornais, e das brigas populares pela manuteno dos sepultamentos nas igrejas, quando da inaugurao do primeiro cemitrio extramuros. Em 1889 um abaixo-assinado foi enviado ao Presidente e aos vereadores da Cmara Municipal, pedindo por um cemitrio para o Brs:
Ill. mos Snr. es Presid e e Vereadores da Camara Municipal. Para a Sesso 30 de abril de 1889 (...) Os abaixo assignados, fregueses da parochia do Braz, desta Capital, sendo (excessivamente vexados) pela falta de um cemitrio onde mais commodamente possam fazer os enterramentos especialmente os moradores da Marca de Meia Lgua, cuja populao tem augmentado consideravelmente, vm com todo o respeito impetrar de V. S. as que se dignem tomar as necessrias providencias, afim de sanar-se esta falta por demais sensvel. A immensa distancia em que se acha o cemitrio Municipal e a magnitude do assumpto da presente petio, so to poderosos, que dispensam demonstraes; tanto mais que os abaixo assignados esto convictos do interesse, que tomo V. S. as pelo desempenho desse elevado mandato. 96 S. Paulo, 27 de Abril de 1889. Jos Custodio de Carvalho. 62
Os moradores da Marca de Meia Lgua correspondem ao que hoje chamamos de Belenzinho. Essa poro da Zona Leste da cidade chamava a ateno das autoridades para as dificuldades,de sepultar seus mortos. A resposta viria em 1891
Em agosto de 1891, o Presidente do Conselho comunica que o Cemitrio da Consolao j se acha completamente cheio, em vista do aumento da populao, e consequentemente crescimento da mortalidade, tanto que s no ms de julho prximo findo elevou-se o nmero de enterramentos cifra de 480. Que, em virtude disto, urgia que se estabelecessem cemitrios para os distritos do Brs e de Santana, assim como um outro na Vila Mariana. (...) Finalmente a escolha fixada nos terrenos j anteriormente designados e na sesso de 22 de outubro de 1892, a Cmara decide fazer a nomeao do pessoal necessrio administrao do mesmo e que sejam comeados os enterramentos no dito Cemitrio, visto ser grande a distncia para o transporte de cadveres desse ponto Consolao. A 6 de janeiro de 1893 d-se o primeiro enterro, na Quadra Geral 1, Terreno 1, de um indivduo chamado Benedito. 63
62 ARQUIVO HISTRICO MUNICIPAL Washington Lus (AHWL). Fundo: Cmara Municipal. Srie: Representaes Populares Caixa n. 27. Assunto: Construo de um Cemitrio no Brs. So Paulo, 1889. 63 LOUREIRO, Maria Amlia Salgado. Origem histrica dos cemitrios. So Paulo: Secretaria de Servios e Obras da Prefeitura do Municpio de So Paulo, 1977. p. 79. 97
Para melhor entender as distncias e mesmo a importncia desses cemitrios vale uma breve anlise das plantas da cidade em1897 e em 1914. Na Planta Geral da Capital de So Paulo, Dirigida pelo Dr. Gomes Cardim, datada de 1897 (Anexo 2), o cemitrio da Consolao aparece como cemitrio velho da Consolao e na ento Avenida Municipal, atual Avenida Dr. Arnaldo, localizamos o cemitrio Municipal, atual cemitrio do Ara. Na regio da Vila Gomes Cardim, atual Tatuap, aparece a Quarta Parada do trem, mas no o espao do cemitrio que j havia sido inaugurado em 1893. Mesmo sem a sua representao na planta, podemos perceber sua importncia para cobrir uma rea de sepultamentos, que antes deviam atravessar a cidade para chegar at o cemitrio da Consolao. Dezessete anos depois, na Planta Geral da Cidade de So Paulo com indicaes diversas de 1914 (Anexo 3), temos o cemitrio da Consolao e o cemitrio do Ara bem localizados e de novo a ausncia do cemitrio do Brs. Nesta planta temos um pequeno retngulo sem identificao, prximo V. Gomes Cardim, na esquina da Rua Amador Bueno com a Rua Serra da Bocaina: era ali que funcionava, e ainda hoje funciona, o Quarta Parada. Essa ausncia d uma pista da importncia dessa regio para as autoridades da cidade. Existia, sim, a importncia econmica das fbricas, do trabalho, da produo para a riqueza da cidade e do Estado, mas no campo social praticamente tudo ainda estava por ser feito. A diviso inicial desse cemitrio inexistente nas plantas, porm em plena atividade para a populao do Brs, era: Quadra Geral dos Anjos Pequenos, Quadra Geral dos Anjos Grandes, Quadra Geral dos Adultos e Quadra Geral dos Fetos -as quadras dos anjos e dos fetos eram as mais utilizadas, uma flagrante demonstrao do nvel de pobreza da regio. Nos livros de inumao do Brs era freqente encontrar a seguinte descrio, feita de prprio punho pelo escrivo de paz do cemitrio: 98
N. 518
Sepultado na Quadra Geral 2 dos Anjos Pequenos Sepultura N. 152 Imigrante (grifo meu)
Maria. Nos 21 dias do mez de maio de 1897 sepultou-se na Quadra Geral dos Anjos Pequenos. Sepultura n. 152, o cadaver de maria, com 8 meses filha do imigrante Barotho (?) Izidoro, falleceu hontem s 2 horas da tarde victima de enterocolite . Attestado do F. (?) Bueno e o que certificou o Escrivo de Paz desta freguesia - Joo Francisco Carneiro. 64
Nos livros de inumao temos detalhes de quem eram as pessoas, seu nome, sua idade, origem (social e nacionalidade), estado civil, algumas vezes a paternidade e a causa da morte. Esta ltima demonstra a dificuldade e a incerteza em precisar a doena e a verdadeira causa da morte; exemplo: inviabilidade (criana de trs dias), marasmo senil (homem de 81 anos), febre perniciosa (menina de doze anos), catarro sufocante (menino de um ano), etc. O livro de arrecadao de 1900 do cemitrio do Brs mostra que, diferentemente do encontrado no mesmo perodo na Consolao, as compras feitas ali eram basicamente de sepulturas gerais, no valor de 10$000, sem o acompanhamento de uma cruz, um acrscimo de mais 2$000 s despesas com o enterro. Nota-se que algumas famlias preferiam comprar as cruzes posteriormente e ento acrescent-las sepultura.
64 . ARQUIVO HISTRICO MUNICIPAL Washington Lus . Livro de Inumao Vol. 36. Cemitrio do Brs. So Paulo. 1897. 99 O cemitrio do Brs, assim como o da Consolao, foi extremamente alterado em seu aspecto inicial, fato que percebemos ao andar por ele e encontrarmos no meio do caminho, literalmente no meio da rua, pequenas sepulturas perptuas e, portanto, com o direito de permanecerem eternamente, ou enquanto este cemitrio durar. No sairo nunca do cemitrio. Pertencentes aos anjos pequenos, situam-se no lugar onde provavelmente funcionava essa quadra geral.
Sepultura Perptua localizada no meio da rua, ladeada por tmulos que vieram substituir as antigas sepulturas das Quadras Gerais. Nesta, em especial, a pequena capela parece ter sido construda tempos depois, um local para acender velas ao anjo sepultado e aos pedidos feitos e alcanados.
Essas sepulturas fazem parte dos pequenos traos que ainda restam do antigo cemitrio do Brs, pequenas evidncias que permaneceram de um cemitrio que, ao contrrio do Consolao, no 100 foi tombado pelo Patrimnio Histrico e nem possui dentro de si tmulos tombados pelo DPH.
Duas sepulturas perptuas, hoje no meio da rua, onde antes funcionava a quadra geral dos anjos menores. Em algumas encontramos placas de agradecimento por graas alcanadas. So placas datadas da dcada de trinta e que no continuaram a aparecer depois. Nem todas as sepulturas possuem identificaes de quem so as crianas, nome, data e idade. Por isso nas placas o agradecimento vai ao anjo ali enterrado.
Os imigrantes que passaram a fazer parte do cemitrio do Brs (pois faziam parte desse bairro fabril) representaram, como j foi dito anteriormente, um papel importante nas sensveis mudanas pelas quais a cidade de So Paulo passava. O corre corre das ruas, um aumento significativo da populao, o conseqente aumento da mortalidade, novos hbitos alimentares agregados aos j existentes: novas palavras so incorporadas ao vocabulrio paulistano; enfim uma nova cidade se descortinava diante do pas. Para alguns a presena imigrante, por si s, era perniciosa e causava problemas em todas as classes sociais. Junto aos pobres pelo inconformismo e as 101 lutas trabalhistas, junto aos ricos por fazer frente e se fazer presente diante da antiga e tradicional aristocracia cafeeira:
A presena macia de contingentes imigrantes em So Paulo se constitua por si s, com sua turbulncia ameaadora, num primeiro front interno. De um lado havia a ascenso irrefrevel de membros das colnias estrangeiras, envolvidos principalmente com indstrias e comrcio de gneros bsicos, cuja solidez, confiabilidade e tendncia ao predomnio eram monitoradas pelo consulado ingls na cidade, aconselhando as autoridades e sditos da coroa britnica a orientarem para esses elementos seus capitais, sociedades e interesses. Do outro lado havia a massa dos proletrios, eternamente inconformados com as extensas jornadas de trabalho, a insuficincia dos salrios e a precariedade de suas condies de vida, excitados por pregaes radicais, em estado de guerra ingente. 65
A modernidade manifestou-se, durante a segunda metade do sculo XIX, na mudana cultural imposta pelas autoridades com relao aos sepultamentos em cemitrios pblicos, depois com a chegada de imigrantes trazendo marcas culturais prprias para mesclar s existentes aqui. Some-se a isso a modernizao tecnolgica, cultural, de veias que pulsam rapidamente como rapidamente funcionam os motores dos carros, to propagandeada pelos vanguardistas das primeiras dcadas do sculo XX, colocadas como sinnimo da cidade de So Paulo, cidade nascida para alcanar
65 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na metrpole: So Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 138-139. 102 os mais altos lugares do mundo, e teremos a So Paulo que viria a ser a locomotiva do Brasil. As propagandas chegavam s telas de cinema, lugar prprio da disseminao e formao de idias, hbitos e costumes. O cinema se tornava veculo civilizador. Um exemplo disso foi o filme So Paulo, uma sinfonia da metrpole de Kemeny e Lusting:
A So Paulo que dominava o filme de Kemeny era uma cidade dinmica, com as ruas formigando de trnsito. A sociedade posta a produzir tanto na dinmica vertiginosa como na dinmica exemplar das seqncias mais longas, e a o filme assume uma funo educativa e propagandstica de demonstrar que a maneira pela qual a cidade produz e a maneira pela qual ela vive so uma mesma coisa, se identificam absolutamente; e a ordem que condiciona o trabalho a dinmica da metrpole. E assim, a vida urbana se reduz no filme a este quadro de trabalho e ordem. 66
As propagandas que faziam de So Paulo a cidade que dominava por completo a natureza; a tecnologia que dominou o mundo selvagem; o sul moderno substituindo economicamente e politicamente o nordeste. Tudo isso saia das salas de cinema, avanava pelo tempo e podem ser vistas, ainda hoje, nas imagens deixadas pela fotgrafa alem Hildegard Rosenthal nos anos 40.
66 PINTO, Maria Ins Machado Borges. O cinema, tecnologias de comunicao de massa e representao da So Paulo moderna. In: Histria e cidadania. So Paulo: Humanitas Publicaes FFLCH/USP, 1998. XIX Simpsio Nacional da ANPUH, Belo Horizonte, jul. 1997. p. 361. 103
Bonde na Praa do Correio (c. 1940) No bonde a seguinte inscrio: So Paulo o maior centro industrial da Amrica Latina.
Este era o quadro da cidade de So Paulo onde os imigrantes sepultados, nos dois cemitrios aqui pesquisados, buscaram ser eternizados, lembrados ou meramente vistos por quem passasse por seus tmulos, grandiosos ou no, de postura reservada ou no. Enquanto no Consolao a formalidade se espalha na massa de anjos, santos, mulheres de mrmore e sepulturas suntuosas, no Brs o despojamento prprio daquela classe social marca a memria imigrante de uma maneira diferente, mais prxima do cotidiano daquelas pessoas.
Esse era o mundo marcado por fbricas, pequenas casas em ruas sem calamento, circos, matinns dos cinemas de bairro, encontros em associaes operrias e de imigrantes, bailes, piqueniques nos 104 parques pblicos, festas de rua e cadeiras nas caladas. 67
Vista geral do cemitrio da Consolao, hoje.
Vista geral do cemitrio do Brs, hoje.
67 PADILHA, Mrcia. A cidade como espetculo; publicidade e vida urbana na So Paulo dos anos 20. So Paulo: Annablume Editorial, 2001. p.20. 105
As diferenas entre esses dois cemitrios permanecem at nossos dias. O Consolao visitado por professores, estudantes, turistas nacionais e estrangeiros, alm dos familiares; o Brs, basicamente por familiares. O Consolao possui uma rea verde maior, mais cuidada, que se relaciona com as imagens e com os tmulos; o Brs possui uma pequena rea verde e em alguns lugares beira a aridez. O Consolao possui uma planta esquematizada, no uma planta com todas as ruas e quadras (Anexos 4 e 5), de que constam as personalidades enterradas e as obras de arte; o Brs no possui nenhum tipo de planta e a organizao de suas ruas e quadras se d de forma catica - s com o auxlio dos funcionrios conseguimos circular por ele. S o Consolao visto como um museu a cu aberto pelos rgos pblicos. Tombado recentemente, em 9 de julho de 2005, se distanciou ainda mais de cemitrios como o Brs. Com o tombamento:
A partir de agora, todas as intervenes a serem realizadas nos jazigos do cemitrio, especialmente em suas esculturas, devero ser submetidas aprovao do Condephaat (conselho estadual de preservao). Outras mudanas no seu traado interno ou nos prdios internos (capela, ossrio e portal), projetados por Ramos de Azevedo, tambm devem passar pelo crivo do conselho. "Esses elementos so representativos da tipologia dos cemitrios construdos entre o final do sculo 19 e comeo do 20", explica Jos Roberto Melhem, presidente do Condephaat. At cortes de rvores no cemitrio devem ser aprovados pelo rgo. "Muito da beleza do cemitrio depende da vegetao que l existe. Se 106 comeam a depenar as rvores, isso acaba prejudicado", diz Melhem. O rgo no precisar ser consultado para sepultamentos ou remoo de despojos, exceto se a ao implicar na alterao das caractersticas do patrimnio. A resoluo aprovada tambm protege a rea que circunda o cemitrio (ruas da Consolao, Coronel Jos Eusbio, Mato Grosso e Sergipe). Na quadra tombada, por exemplo, no sero permitidos anncios, exceto placas de utilidade pblica quando autorizadas pelo Condephaat. De acordo com presidente do Condephaat, durante muitos anos houve dvidas se o tombamento deveria ser total ou parcial. "Mas, devido grandeza do acervo, decidiu-se por tombar tudo. Assim, todos os aspectos culturais ficam protegidos." 68
o cemitrio arte; o Brs no, o cemitrio popular, nele todos os cortes de rvores e todas as modificaes nos tmulos so permitidos. Muitas sepulturas da ala mais antiga do cemitrio do Brs, por estarem abandonadas, esto passando por um processo de despejo: se os proprietrios no reivindicarem sua propriedade elas voltaro s mos da administrao do cemitrio e podero ser postas venda. J existem centenas de processos desse tipo em andamento. Em breve poderemos perder os poucos traos que ligam este cemitrio ao seu passado e ao passado de todo um grupo social que viveu e morreu na regio do Brs (Brs, Moca, Belm e Tatuap). No Brs no esto sepultadas grandes personalidades e nem grandes escultores deixaram trabalhos em seu solo, mesmo assim
68 http://www.funerarianet.com.br/?id=61&codigo=91. Acesso em 25 de maio de 2006. 107 no deixa de contar a histria do bairro: as diferentes fases tumulares existentes em seu interior, sua topografia, seu local de escolha, posteriores expanses e, claro, a memria do grupo imigrante instalado nessa parte da cidade.
No cemitrio do Brs um dos raros traos de sua formao no final do sculo XIX
Todas essas diferenas revelam a forma como os rgos pblicos vem um e outro cemitrio. O Consolao representaria a arte, a histria e a memria da cidade; j o Brs no: ele um cemitrio em atividade, supostamente sem valor artstico e histrico, (evidente engano), pois uma parte da histria dessa regio de So Paulo se apaga lentamente. uma parte da memria de um bairro imigrante, hoje de seus descendentes. L eles reproduziram uma viso de si mesmos. Sem o saber, tentaram perpetuar uma imagem, manter viva a presena de suas famlias e at mesmo de atitudes do cotidiano as cadeiras dentro das pequenas capelas, as flores e toalhinhas de plstico cuidadosamente colocadas no altar, junto aos porta-retratos. Difcil situao por ns vivida. Como preservar sem matar os desejos e a forma de ser das geraes futuras? Como 108 manter presente uma memria sem matar a memria dos que vivem o presente?
Alm disso, com que direito ou mandato se pode determinar hoje quais sero as condies da vida social dentro de vinte ou cinqenta anos? (...) Se conservamos esses monumentos, o fazemos porque esta uma exigncia da nossa cultura, tanto assim que atribumos a eles um significado completamente diferente daquele para o qual foram construdos. Ao contrrio disso, o redator de um plano diretor, se realmente planejasse para o futuro, procuraria impor cultura do futuro exigncias da nossa, pois aquele que prev ou procura prever o futuro sempre um homem do presente e sua previso nada mais do que uma projeo da situao atual, ou, mais exatamente, uma avaliao das suas possibilidades de durao ou mudana. 69
Os imigrantes bem sucedidos souberam usar os cemitrios de So Paulo para obter status, ser fonte de memria; na verdade construir uma memria de si para a populao paulistana. No Consolao deixaram seus tmulos altura dos grandes e tradicionais nomes da cidade: Caetano de Campos, Cerqueira Csar, Albuquerque Lins, Cesrio Mota Jr., Prudente de Moraes, Bernardino de Campos, Campos Salles, Gomes Cardim, Alvarez Penteado, Paes de Barros, Eduardo Prado e etc.
69 ARGAN, Giulio Carlo. Histria da arte como histria da cidade. So Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 226-227. 109 Assim ocorre com o anncio da casa A Cidade de Londres, que pertence aos Irmos Ricardi, dignos proprietrios (A CIGARRA, 1 de julho de 1922). O texto procurava criar uma imagem positiva dos donos e marcar seus nomes para os leitores, com o devido destaque para a condio de proprietrios. J no se tratava de ter prestgio entre um grupo de imigrantes, mas de t-lo projetado em toda a cidade. 70
Mausolu da Famlia Conde Matarazzo Cemitrio da Consolao
70 PADILHA, Mrcia. A cidade como espetculo; publicidade e vida urbana na So Paulo dos anos 20. So Paulo: Annablume Editorial, 2001. p. 68. 110
No Brs, os imigrantes operrios e pequenos comerciantes povoaram aleatoriamente esse espao, salvo raras excees, deixando no gosto e no tratamento de suas sepulturas seu carter informal, despojado e livre da obrigao de dizer coisas a uma aristocracia inexistente nesse cemitrio. Outra memria pode ser lida ali, mais emocional e pessoal em seu despojamento. No existe o sentimento de superao, nem o compromisso de construir uma histria de glria e fora. Existe, sim, a inteno de existir, de se manter vivos para os seus - famlia e vizinhos. Enfim, sem o esforo em marcar um espao, uma notoriedade, uma demonstrao ao mesmo tempo de igualdade (no poder) e de diferena (no imigrante que venceu pelo trabalho), to necessria aos imigrantes do Consolao.
111 IV. A fala dos cones
Garoa do meu So Paulo, - Costureira de malditos Vem um rico, vem um branco, So sempre brancos e ricos....
Mrio de Andrade
As pesquisas de campo foram extremamente importantes para compreender o espao cemiterial, a organizao das sepulturas e, por fim, para a escolha do grupo tumular que seria usado no estudo da existncia de uma memria imigrante em seus interiores. Tmulos que antes foram fonte de orgulho e de existncia contnua daquelas famlias, e que hoje so memrias guardadas, muitas at esquecidas, do passado desta cidade, tmulos que demonstravam um palco de disputas polticas e econmicas, o Consolao. Tmulos que buscaram, na sua autenticidade, falar um pouco da forma de ser do imigrante do Brs, tmulos que tentaram se sobressair diante de seus iguais na tentativa de imitar a grandiosidade existente no Consolao -, e no seu conjunto demonstram uma organizao catica, to indesejada dentro de um cemitrio, o Brs. Na mostra desses dois cemitrios que contaram a experincia imigrante to conhecida por seus afazeres pela cidade, na sua veia trabalhadora, nos rostos estampados em seus descendentes, nos sotaques espalhados pela cidade, na formao deste e daquele bairro.... , desta feita no mbito da saudade, da afirmao do lugar de onde vieram e da Amrica que fizeram, buscou-se estabelecer dilogos entre tmulos imigrantes e outros no imigrantes, que auxiliaram na 112 reflexo sobre a perpetuao de uma memria, e uma celebrao de si mesmos. No cemitrio da Consolao temos a demonstrao, atravs do uso da arte morturia, das atitudes em vida de muitos desses imigrantes:
Os comerciantes mais abastados comeavam a integrar a boa sociedade paulistana. Alm da prosperidade nos negcios, outras atividades garantiram espao e reconhecimento social aos imigrantes aqui estabelecidos. (...) A construo de manses na Avenida Paulista clubes refinados e outras iniciativas que colaboravam com o aparelhamento urbano, conferiam prestgio aos imigrantes afortunados que, dessa maneira, passavam a integrar ao lado das elites locais, a aristocracia paulistana 71
Os outsiders ganharam seu espao entre os estabelecidos, mas precisavam reforar a todo o momento a importncia de seu papel e demonstrar sua igualdade poltica e econmica. Nos anos 1920, havia ainda uma atitude negativa por parte de alguns grupos que incitavam a sociedade ao nacionalismo, explicitamente na luta contra os estrangeiros por mais espao para os verdadeiros brasileiros:
A chamada Reao Nacionalista em So Paulo, e um de seus lderes, o dr. Sampaio Dria, em discurso de campanha, alertava: Os brasileiros esto ameaados de passar, por imprudncia, de senhores da terra a colonos dos estrangeiros, que vencem. Um outro publicista, Bruno Ferraz do Amaral, clamando quanto demora de uma
71 PADILHA, Mrcia. A cidade como espetculo; publicidade e vida urbana na So Paulo dos anos 20. So Paulo: Annablume Editorial, 2001. p. 68. 113 reao, se perguntava alarmado: De fato, quando frutificar o nacionalismo, que restar brasileiro em So Paulo? Capitais, estrangeiros; indstria dita nacional, estrangeira; colonos, estrangeiros; fazendeiros, estrangeiros; proprietrios, estrangeiros... 72
Como defesa frente a essas atitudes xenfobas, o imigrante bem sucedido carregou nas tintas para eternizar um passado glorioso, valorizou a famlia e o trabalho - imagens repetidas em vrios tmulos do Consolao - e buscou imitar um gosto aristocrtico no af de demonstrar-se e sentir-se igual aristocracia local.
A construo da cidade no implicou somente a remodelagem da paisagem urbana ou a criao de espaos de lazer e consumo, onde tudo e todos deveriam estar de acordo com os novos tempos (...) Ela implicou, tambm, o estabelecimento de um comportamento segundo o qual a publicidade pessoal passava a ser um fundante ds personalidades e dos papis sociais que s se concretizavam na teatralizao, a cada momento dos gostos, hbitos e preferncias. 73
No cemitrio do Brs essa publicidade pessoal e familiar percebida de maneira grandiosa em um ou outro tmulo, que foge completamente do padro dessa necrpole, demonstra peculiaridade e transporta os comportamentos cotidianos, mais caseiros, para dentro dele. Internamente, competio por espao e notoriedade
72 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na metrpole: So Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 139. 73 PADILHA, Mrcia. A cidade como espetculo; publicidade e vida urbana na So Paulo dos anos 20. So Paulo: Annablume Editorial, 2001. p. 104. 114 so menos visveis. Os que tentaram marcar seu status com grandes mausolus no cemitrio do Brs foram sufocados pelas demais sepulturas que no respeitaram este pseudo poder:
P. (o reprter andarilho) distinguia, com muita sensibilidade, as pores da cidade que, sob um padro de urbanizao arrebicado e sfrego, haviam minado a inclinao natural solidariedade das gentes convizinhas, substituda por impulsos causticantes de emulao, e aquelas reas que, ou por serem mais antigas ou por implicarem em condies mais aflitivas de sobrevivncia, apresentavam um forte esprito comunitrio e um esforo constante de ritualizao dos laos afetivos das pessoas entre si e com seu ambiente. 74
Talvez seja por esses laos afetivos sentidos nas dificuldades de uma regio sempre posta de lado pelas autoridades que as ruas do cemitrio do Brs parecem tanto as antigas ruas do Tatuap, Belenzinho, da Mooca ou do prprio Brs. Para saber ao certo os montantes gastos pelas famlias imigrantes de l e c (valores pagos pelos tmulos e pelas obras construdas), seria necessrio remontar s marmorarias, aos artistas, ou a documentos particulares. Mesmo nos livros de Josefina Elona Ribeiro e Maria Elizia Borges, que trabalharam diretamente com as obras e seus artistas, esses valores no so mencionados. No caminhei, portanto, para uma reflexo onde os valores tumulares tivessem um papel decisivo. A riqueza de uma obra ficou constatada pelos materiais utilizados, por ser assinada, pela sua grandiosidade, entre outras caractersticas. Cerca de quarenta tmulos foram escolhidos para ajudarem nas reflexes propostas neste trabalho.
74 SEVCENKO, Nicolau. Orfeu exttico na metrpole: So Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 131. 115 Seguem aqui algumas anlises, que so na verdade um grande desejo de conversar com estes cones. 116
1. A voz do Consolao
1.1. As mulheres de mrmore branco
As mulheres de mrmore branco que parecem flutuar, caminhando lentamente por entre os tmulos, povoam este campo santo, concedendo a ele convvio com a leveza e a graciosidade silenciosa.
FAMLIA SAMPAIO MOREIRA JR
Tmulo da Famlia Sampaio Moreira Jr. (sem data vista)
Em granito marrom, uma cruz se eleva ladeada por duas chamas flamejantes (chamas dentro de uma pequena caldeira uma tocha), como se o vento as fizesse tremer. No Zoroastrismo, a chama 117 o smbolo de Ahura Mazda, portador da luz, e comprometido na contnua luta com Ahriman, o criador do mal e da noite. A chama acesa noite e dia simboliza a proteo contnua do bem sobre aqueles que esto enterrados ali, afastando-os do mal. Ao mesmo tempo, a chama, o fogo nos remete memria de Prometeu: o fogo divino, o conhecimento. Ao lado e debruada na placa de granito com as inscries Famlia Sampaio Moreira Junior, temos uma mulher em mrmore branco envolta por um tecido leve, grudado em seu corpom revelando a sensualidade da figura. A dama prope uma revisitao aos gregos (seus cabelos lembram as antigas esttuas greco- romanas), mas essa figura pag, que suaviza o tmulo, traz em suas mos um crucifixo, smbolo do cristianismo. Seus olhos esto voltados completamente para este objeto, sua ateno tomada por ele, o que faz saltar ainda mais aos nossos olhos o conflito entre a devoo de seu olhar e a sensualidade de seu corpo. Isto sugere uma reflexo quanto ao cemitrio pblico ser um lugar que permite determinadas ousadias, que d espao para que as famlias escolham como querem ser vistas por aqueles que circulam por seu interior. 118 FAMLIA CRUZ DE OLIVEIRA (1923)
Tmulo da Famlia Cruz de Oliveira
Ao p da cruz, uma dama em seu vestido leve, brao apoiado no pilar do tmulo, com os ps mostra, o esquerdo sobre o segundo degrau enquanto o direito repousa no primeiro, carregando flores na mo esquerda. Seu rosto encontra-se inclinado, olhos baixos, expresso de tristeza contida e coberta por um manto. A mo direita segura a cabea, dando um ar de lamentao imagem. No cristianismo, a rosa vermelha simboliza a Virgem Maria ou o sangue derramado por Jesus na cruz. Representa o segredo, o sigilo (confessionrios so freqentemente adornados com cinco ptalas de rosa); trs rosas podem representar o forte smbolo da maonaria (luz, amor e vida). No conjunto geral o branco da dama contrasta fortemente com o enegrecido da sepultura e sua cruz. 119 1.2. Os imigrantes
TMULO DA FAMLIA TREVISIOLI (1920)
Detalhe do tmulo da famlia Trevisioli
A composio artstica deste tmulo possui uma assinatura, a de Nicola Rollo. uma das primeiras obras de temtica profana dentro do cemitrio da Consolao (1920), manifesta nas figuras de Orfeu e Eurdice. A perda de Orfeu, a sua amada morta, misturada dor da perda dos membros da famlia Trevisioli. No existe, externamente, aos olhos de quem o observa, os nomes das pessoas sepultadas ali, nem mesmo as respectivas datas. Optou-se por uma dor maior sobre todo o tmulo e, portanto, por toda a famlia. Mas no uma dor de origem crist, e sim da mitologia grega, da cultura clssica do mediterrneo. Uma tradio dos grandes homens da 120 antiguidade, dos quais os italianos so seus descendentes, penetrando no interior do campo santo da cidade que os recebeu.
121 TMULO DA FAMLIA SERON (1929)
Tmulo da famlia Seron
No tmulo da famlia Seron, o esquife feito em pedra sustentado por ps de leo e no possui assinatura. Apresenta, nas laterais, argolas que sugerem a conduo do morto para dentro do cemitrio, e at poderia passar desapercebido no fossem as flores, igualmente de pedra, e a faixa com os dizeres: A querida MAMA. 122
Detalhe do tmulo da famlia Seron. Rosas e margaridas eternas enfeitam a faixa e o esquife onde repousa a Mama
123 TMULO DE JOS CESTARI (1934)
Detalhe do tmulo de Jos Cestari
O tmulo da Famlia Cestari traz consigo uma forte marca personalista, expressa nas figuras de seu patriarca, Jos Cestari, e de sua matriarca, Vicentina Votta Cestari. O busto de Jos Cestari expressa altivez, seriedade, elegncia, atributos que a famlia desejou transmitir aos visitantes do cemitrio. Em outras palavras, Jos Cestari foi um patriarca correto que deu estabilidade aos seus, tanto que lhes reservou este espao precioso entre os homens de bem da cidade de So Paulo. A matriarca italiana (falecida em 1954), aos ps do patriarca, exibe um rosto sorridente, cabelo preso num coque, na melhor verso da nonna italiana: os traos de imigrantes que demonstram, por um lado, fora e atitude: o bigode altivo, lembrando a aristocracia cafeeira, dos que conseguiram o seu lugar 124 nesta terra estrangeira; e, por outro, o carinho e a afetuosidade da mamma italiana. Imagens que criaram um imaginrio sobre o imigrante que perdura at os nossos dias.
Tmulo da Famlia Cestari (lateral esquerda)
O tmulo da Famlia Cestari traz consigo uma imagem crist, a da cruz, que se localiza atrs da figura do patriarca, remetendo religiosidade da famlia. Fica, porm, em segundo plano diante da forte figura de Jos Cestari, que se encontra aos ps da santa cruz como um filho devoto, digno e forte. 125
Detalhe do tmulo de Jos Cestari. A efgie da nonna Vicentina.
Tmulo da Famlia Cestari (lateral esquerda) 126 TMULO DE LUISA CREMA MARZORATI (1922)
Detalhe do tmulo de Luisa Crema Marzorati
Aos ps do tmulo de Luisa Crema Marzorati temos as datas de seu nascimento e de sua morte, assim como os lugares especficos onde tais acontecimentos se deram. Ela nasceu no dia 29 de agosto de 1896 em Novi Liguire, Itlia, e morreu no dia 01 de maio de 1922 em So Paulo. Abaixo dessas informaes encontramos uma placa de bronze que traz a ltima mensagem de sua me, tua madre, escrita em sua lngua materna, o italiano. Uma lembrana da origem, ou, mais do que isso, a lngua em que sua me pde verdadeiramente dizer seus sentimentos. Os visitantes que traduzam suas palavras, que procurem correr atrs do que diz esta imigrante, no cdigo em que detm seu domnio. Neste momento da dor, da perda de uma 127 filha, a demonstrao de que, talvez, o estrangeiro seja o outro, aquele que nasceu nesta terra e no quem dela se apropriou.
Tmulo de Luisa Crema Marzorati
A imagem que encontramos sobre o tmulo de Luisa a representao de Eurdice sendo picada por uma serpente, no momento em que foge de Aristeu. Orfeu, seu marido, desce ao inferno, graas ajuda do barqueiro Caronte e de sua lira que faz adormecer o guardio do inferno, Crbero. Para trazer Eurdice de volta luz da vida, Orfeu conta ainda com a interveno de Persefone, esposa de Hades, rei dos mortos, que pede pelo amante e sua amada. O mito, sabemos, no tem final feliz. Orfeu toca sua lira feliz por estar de novo com Eurdice, e faz a nica coisa que Hades havia lhe imposto como condio para a sua volta ao mundo dos vivos: no olhar para ela durante todo o percurso. Quando atingiu a 128 luz do dia volta-se para trs e a v, porm ela ainda est no interior do tnel, prxima da sada. Orfeu a v apenas por um instante, e Eurdice torna-se novamente um fino fantasma. Na placa de bronze, abaixo de Eurdice picada pela serpente, temos a figura de Orfeu, com sua Lira, deitado sobre o esquife da amada. Mais uma imagem profana se sobrepondo aos temas religiosos dentro do cemitrio. Alm da inscrio feita em italiano, o mito grego faz referncias tradio mediterrnea, to ao gosto do estilo art nouveau. Aqui Eurdice veste uma fina roupa, to colada que a vemos praticamente nua, e seu corpo jovem, belo e sensual mostrado num misto de morte e prazer. Sensualidade, beleza, juventude, dor e morte fazem referncias Luisa Crema Marzorati. Alm de entender italiano o visitante ter que saber tambm sobre a trgica histria de Orfeu e Eurdice.
129
Eurdice aps ser picada pela serpente
130 FAMLIA DAUD CONSTANTINO CERVY (1937)
Detalhe do tmulo da famlia Daud Constantino Cervy
Bloco em mrmore preto e imagens em bronze. Anjo carregando toda a famlia para o alto, na direo da cruz, simbolizando a figura de Cristo. A famlia unida: pai me, seu beb, e outros componentes, juntos em todos os momentos. A demonstrao de um valor importante ao imigrante, um valor que os agregou e os manteve em terras estrangeiras: a famlia. 131 JAZIGO DA FAMLIA INFANTI (1923)
Urna funerria da famlia Infanti
Tmulo localizado ao fundo do cemitrio da Consolao, prxima ao Mausolu dos Matarazzo e do tmulo do ex-presidente da repblica Campos Salles. Possui a seguinte inscrio:
Jasigo da Famlia Infanti
e duas tbuas de pedra indicando os nomes de pessoas enterradas ali: Miguel Infanti Jr. Cezira Todeschini Infante *19.8.1930 *1.8.1910 +13.11.1993 +14.4.1995. 132 Entre as tbuas, uma inscrio feita na pedra central: PAX (Paz). Cabeas de lees com a boca semi-aberta foram colocadas no alto das quatro pontas do jazigo. Na lateral direita de onde se encontra o nome da famlia h smbolos gregos que representam o comeo e o fim (alfa e mega). Entre as duas letras gregas, um signo escatolgico: uma cabea de caveira acima de dois ossos cruzados. Aos ps da urna, quatro esfinges sustentam em seus ombros o peso do jazigo. O leo como uso emblemtico remonta Idade Mdia e simboliza o emblema de valor, realeza e demonstrao de poder. Esta figura a encarnao da sabedoria e da sensatez. A esfinge, intimamente ligada mitologia egpcia, combina as quatro criaturas, que simbolizam os quatro elementos cabea de homem, corpo de touro, patas de leo e as asas de guia. Esse ser mtico deu acesso sabedoria e simboliza o mistrio da existncia humana. A mistura de smbolos pagos com smbolos religiosos (a cruz, no alto do jazigo, e a meno escatolgica) demonstra um espao de liberdade no interior do cemitrio pblico, algo inexistente no interior das igrejas. 133 FAMLIA SICILIANO (ANTERIOR A 1927)
Tmulo da Famlia Siciliano
Jazigo monumental, todo em mrmore, assinado pelo escultor Amadeu Zani. O prtico de bronze, ladeado por dois lees que sustentam sobre si as colunas frontais do monumento. O leo simboliza valor, realeza e a proteo do poder - smbolo perfeito para este imigrante, que construiu seu tmulo na mesma rua, uma quadra frente, e do lado oposto ao do Conde lvares Penteado o leo ainda incorpora o valor da sabedoria, um animal real. A grandiosidade deste tmulo est, alm dos materiais que o compem, na sua altura e na figura ao alto. Uma alegoria do anjo 134 guardio protegendo uma urna funerria, simbolizando a proteo ao conde.
Leo que sustenta o Jazigo Monumental da Famlia Siciliano
direita do prtico, ao cho, se encontra uma coroa de flores em bronze, colocada posteriormente, com a seguinte epgrafe consagratria:
AO CONDE ALEXANDRE SICILIANO GRATIDO DA LAVOURA BRASILEIRA 2. CENTENRIO DO CAFEEIRO NO BRASIL 1927 135
Detalhe: Coroa de flores
A lavoura de caf, tradicionalmente ligada aos bares da aristocracia local, rende homenagem ao imigrante italiano que chegou depois. Aos ps de seu mausolu a prova da superioridade e da demonstrao de quem conquistou a Amrica. Coincidncia ou no, o tmulo do Conde lvares Penteado possui tambm uma coroa de flores, sem inscrio e na parte de trs do tmulo. 136 CONDE DE LVARES PENTEADO (1912)
Jazigo do Conde lvares Penteado (industrial)
Monumento em mrmore marrom, colunas em mrmore preto e prtico em bronze. Como cabe aristocracia tradicional paulistana, este tmulo traz sobriedade e silncio. No busca gritar a ningum suas origens ou suas armas, pois apenas o seu nome deveria dizer a todos a importncia do morto ali presente. Nada de devaneios e grandes cones: apenas um nome e um braso. Com a chegada do Mausolu do Conde Siciliano, este, que j era silencioso ficou praticamente mudo. 137
Coroa de flores em bronze, apoiada na parte de trs do tmulo do Conde lvares Penteado.
138 CONDE DE SO JOAQUIM (1909)
Frente do tmulo do Conde de So Joaquim
Mais um conde da tradicional aristocracia local. Localizado em frente ao tmulo do Conde lvares Penteado, apresenta leveza e silncio na sua composio feita em mrmore branco. Smbolos escatolgicos nas laterais - tochas voltadas para baixo, cruzadas e unidas por um lao e ao alto uma referncia religiosidade: uma cruz (a presena do sagrado e da crena na ressurreio), a delicadeza na semelhana de uma catedral europia e um anjo segurando flores de cabea baixa, desolado. Um jazigo acanhado quando comparado ao vizinho Conde Siciliano. 139 FAMLIA VAUTIER (1908)
Tmulo da Famlia Vautier (sem data vista)
No encontramos nenhum nome, alm do sobrenome da famlia, que pudesse identificar quem se encontra enterrado ali. Temos, nesse tmulo, a representao em tamanho pequeno da entrada de um tmulo faranico. Uma cabea egpcia de homem se coloca posicionada na lateral esquerda da porta central. A coluna egpcia, sugerindo as flores de ltus, se coloca como um pilar esquerda da porta de entrada. As flores de ltus crescem na lama, no fundo de pequenos lagos, levantando-se sobre as guas, revelando sua beleza. Simbolizam, assim, a postura da alma em ascenso, contraposta confuso da matria, demonstrando clareza e lucidez diante das impurezas do mundo. No alto da porta foi colocada a 140 serpente de asas, smbolo dos faras, do poder de seu imprio. Temos portanto, numa primeira vista, o desejo de rememorar a grandiosidade dos tmulos egpcios e a vontade correlata de tambm marcar, de maneira mais modesta em comparao a outros, a sua existncia dentro da necrpole, a liberdade de construir o tmulo que bem entendesse dentro de um cemitrio pblico, ousando e diferenciando-se de uma tradio crist.
Viso frontal do tmulo da famlia Vautier
141 FAMLIA SINISCHALCHI
(1913)
Tmulo da famlia Sinischalchi
142
Vitral pertencente ao tmulo da famlia Sinischalchi
Neste tmulo temos a exemplificao de um tmulo-capela, na verdade um tmulo-catedral, onde o espao catlico, que havia sido proibido de guardar os corpos de seus fiis, foi levado para dentro da necrpole. A representao a de uma catedral gtica, com sua arquitetura valorizando o flamboyant. Traz memria catedrais, como Notre-Dame ou tantas outras encontradas em territrio europeu. A roscea no alto e ao centro e a figura de Cristo segurando o globo terrestre com a mo esquerda e nos dando sua beno com a direita, cercado por apstolos e santos, no nos deixam dvidas da inteno dessa famlia: estar enterrada em um cemitrio pblico localizado nos trpicos, mas com todas as pompas, externas, de uma grande catedral medieval. 143
Lateral direita do monumental jazigo da famlia Matarazzo
O monumental jazigo da famlia do Conde Matarazzo mereceria um captulo a parte s para estudar cada pormenor que o compe: cada alegoria, figura sagrada, emblema, a mistura do religioso com o secular, suas dimenses, os materiais que o compem, etc. Ficarei apenas com alguns temas. Monumento trazido da Itlia e assinado pela oficina de arte tumulria de L. Brizzolara, de Gnova, possui cinco conjuntos escultricos interligados e o maior mausolu do Consolao. Sua 145 presena impressiona pela altura e pela quantidade de detalhes que o compem. Feito em pedra e bronze, busca valorizar, por seu tamanho, pela preciosidade dos materiais e por seus brases, a importncia dessa famlia. Localizado no canto esquerdo do cemitrio, de muro com a rua Mato Grosso, transformou seus vizinhos em pequenos anes diante do gigante, inclusive o tmulo do presidente Campos Salles. Neste jazigo a memria transmitida a da glria do vencedor, a imagem produzida de si a do imigrante trabalhador, religioso e que obteve seu espao dentro do universo da aristocracia local e j h muito estabelecida em So Paulo. Aos visitantes a mensagem clara: esto diante de uma famlia de fortes.
Detalhe: conjunto escultrico esquerda e ao alto do jazigo.
Neste conjunto escultrico, uma das palavras-chave dos imigrantes bem sucedidos e sepultados no cemitrio da Consolao Labor. Trabalho o valor proposto por esses imigrantes como forma de se contrapor ao braso fcil da aristocracia local. No possuem o sangue nobre, mas conquistaram o direito de estar ali e 146 de ser vistos; e no caso dos Matarazzo muito vistos, por todos, sobretudo pelas famlias aristocratas. Vale ressaltar o fato de que o primeiro sepultamento foi o do Comendador Matarazzo em 1925 falecido em 1920 na cidade de Bruzola, Itlia e o Conde Francisco Matarazzo s veio a falecer em 1937. Portanto, o Conde esteve presente durante todo o processo de encomenda e compra do jazigo e pde opinar em vida sobre seu lugar aps a morte.
Detalhe do Jazigo da Famlia Conde Matarazzo
147 TMULO DO PRESIDENTE CAMPOS SALLES (1913)
Tmulo do presidente Campos Salles
O tmulo do presidente Manoel Ferraz de Campos Salles de autoria do escultor Rodolpho Bernardelli. Sua composio de granito, mrmore e bronze. Considerado de bom gosto, elegante e bem proporcionado pelo especialista Clarioval do Prado Valladares, um dos vizinhos anes do Conde Matarazzo. Requinte, sobriedade, esculturas pontuadas pela dor e pelo silncio, o braso da Repblica brasileira ao centro, e os quatro anos em que esteve frente da presidncia competem com a grandiosidade do vizinho. Lado a lado, duas formas de poder. O poder poltico representado pelo ex- presidente da Repblica (1898-1902) e o poder econmico do empresrio imigrante. 148
A Repblica depositando flores como um ltimo adeus ao Presidente Campos Salles. Ao fundo a efgie do Presidente.
149 TMULO DE RAPHAEL CARDONE (1910)
Tmulo de Raphael Cardone
Um dos tmulos que ladeiam a rua principal do cemitrio e ficavam de frente para os visitantes (Avenida Consolao), est agora encoberto pelas rvores e arbustos. A inteno era ser visto. Tmulo de imagem realista, apresenta o busto do patriarca bem trajado terno, colete, gravata borboleta, e do boto da camisa sai uma corrente sugerindo um relgio de bolso , posto num pedestal protegido do sol por uma cobertura sustentada por quatro colunas detalhadas com arabescos. Quem visitava o Consolao, antes da 150 obstruo existente hoje, encontrava logo na entrada um homem de postura altiva, rosto erguido, olhar de frente, pronto para ser visto e respeitado por todos.
Detalhe: busto de Raphael Cardone 151 TMULO DA FAMLIA RIZKALLAH JORGE (1949)
Detalhe do tmulo da Famlia Rizkallah Jorge
Exemplo de tmulo imigrante onde a memria, sua experincia histrica e os valores da famlia ou de seu patriarca so contados com o mximo de detalhamento possvel. A foto acima mostra um detalhe do conjunto escultrico sobre o trabalho. Roda dentada de um lado - o trabalho fabril -, a marreta do outro - o trabalho da construo -, trs homens fortes, trabalhadores: a figura do meio carrega uma balana, instrumento de pesagem tambm utilizado no mundo do trabalho. O valor defendido aqui novamente o trabalho. 152
Detalhe do tmulo da Famlia Rizkallah Jorge
Outro conjunto escultrico que demonstra a religiosidade do patriarca da famlia Rizkallah Jorge e faz referncia doao feita a uma igreja, representada pela igreja que est nas mos da criana, da mulher e do Santo. O valor implcito a religio, no caso, catlica.
153
Vitral localizado no interior da sepultura da famlia Rizkallah Jorge
O vitral mostra a tradicional cena de So Jorge matando o drago com sua lana, espada, seu manto vermelho, o elmo e o cavalo branco. Sugere a devoo do patriarca e de sua famlia a este santo e refora o sentido guerreiro de sua trajetria.
Detalhe da porta de bronze do tmulo da famlia Rizkallah Jorge 154 As inscries em rabe fazem referncia lngua materna. Bem poucos podem decifrar esse cdigo, uma demonstrao clara e pblica por parte da famlia do desejo de manter um elo com seu lugar de origem, no caso a Sria. Internamente, temos a seguinte inscrio Rizkallah Jorge 1869 (Alepo, Sria), 1949 (S. Paulo). curioso o fato de determinar a cidade e o pas de nascimento, porm apenas a cidade de morte, o que pode sugerir que, para esse imigrante e para sua famlia, a cidade de So Paulo, por si s, vale como todo um pas, como sua nao adotiva, pois foi nela que fizeram a Amrica.
Detalhe do tmulo da Famlia Rizkallah Jorge
Neste outro conjunto escultrico o valor apregoado o da famlia: unio, fora e carinho. 155 VINCENZO FRONTINI (1932)
Tmulo de Vincenzo Frontini
Localiza-se bem prximo ao jazigo monumental dos Matarazzo. Tmulo composto de granito e bronze, traz uma figura alada em alegoria de glria. Sua posio de coroamento, simbolizando o coroamento definitivo do grande Ufficialle Vincenzo Frontini. Este imigrante no deixou um monumento grandioso em tamanho, mas deixou sua grandiosidade, ricamente coroada, escrita na parte frontal do tmulo para ser vista por todos os visitantes: 156
Detalhe das inscries do tmulo de Vicenzzo Frontini, grande ufficiale. Funciona como uma breve biografia do morto, aos que entendem italiano.
A SALVATORE FRONTINI SOTTOTENENTE AL 202 REG. FANTARIA COMENDANTE IL RIPARTO AUDITI GADUTO A S. DONA SUL PIAVE IL 30. 10. 1918 I GENITORI
157 Seu valor na Itlia foi, assim, transposto e exposto em seu tmulo, trazendo o pas de origem, no que teve de mais significativo, para a cidade de destino. 158 FAMLIA BUONGERMINO (1892)
Tmulo da famlia Buongermino
Tmulo localizado ao lado da capela, mostrando a religiosidade dessa famlia imigrante pela escolha do lugar e pela imagem colocada ao centro e frente do tmulo: a Piet em mrmore branco. Protegido por correntes, este tmulo no traz a memria imigrante em imagens que representam o trabalho ou seu valor poltico, mas em seus rostos cunhados em moedas de bronze, expressando a seriedade de uma famlia religiosa, de respeito, e que se firmou nesta terra a ponto de construir seu tmulo numa regio central do cemitrio da Consolao.
159
Detalhe do tmulo da famlia Buongermino. Efgie cunhada em forma de moeda de um dos componentes da famlia Buongermino.
160
FAMLIA CIBELLA (1919)
Tmulo da famlia Cibella
Duas belas mulheres de branco ladeiam a porta de entrada deste tmulo, que remonta uma pequena capela medieval. Colunas nos cantos, nas portas e nas janelas, em forma de arcos, do aspecto europeu a este jazigo. As duas figuras funcionam como guardis do templo, porm guardis em movimento. Suas posturas corporais, pernas em posio de andar, cabeas para baixo e para cima revelam um contnuo andar ao redor do tmulo, encontrando-se aqui e ali, parecendo refletir e orar numa eterna vigilncia
161
Detalhe do tmulo da Famlia Cibella
Nas laterais do tmulo-capela os sentimentos esto escritos em outro idioma. Duas importantes perdas da mesma pessoa no mesmo ano foram registradas na lngua materna desta famlia imigrante: o italiano. Me e irm mortas no ano de 1919. Seriam elas as eternas guardis deste pequeno templo? Guardis de sua famlia?
162
Detalhe do tmulo da Famlia Cibella
Detalhe do tmulo da Famlia Cibella
Neste tmulo a memria exibida, alm da beleza do templo europeu, lembranas de outro lugar, est na perda e nos sentimentos transcritos pelo corao que ainda era italiano, para melhor ser dito e para melhor ser ouvido. 163 FAMLIA NAMI JAFET (1932)
Detalhe do tmulo de Nami Jafet
O tmulo da famlia Nami Jafet passa ao visitante o impacto da ousadia. Movimento a palavra-chave para defini-lo. Conjunto escultrico de bronze e granito, assinado pelo italiano Materno Giribaldi, apresenta uma grande quantidade de figuras em pleno movimento, projetando-se para cima e para frente, dando a impresso de que a qualquer momento se jogaro para fora do tmulo. A famlia imigrante no procurou marcar sua notoriedade pelo trabalho, religiosidade ou apego famlia, mas pela ousadia. Memria de imigrantes to bem posicionados social e economicamente, que podiam surpreender, fugindo da obviedade. 164
Tmulo de Nami Jaffet
Viso da Rua 37, esquerda tmulo de Nami Jafet
Na foto acima possvel perceber o contraste do tmulo da famlia Nami Jafet com os tmulos bem comportados sua volta. 165 FAMLIA BASLIO JAFET (1947)
Tmulo da famlia Baslio Jafet
Jazigo monumental, o tmulo da famlia Jafet conta, tanto na sua parte frontal quanto na sua parte de trs, a histria de Baslio Jafet, o patriarca. Monumento em mrmore, possui nove conjuntos escultricos em bronze. No alto, sobre o jazigo, a figura de Jesus Cristo, com trs crianas ao redor, marcando a importncia da religio catlica para essa famlia. Os ensinamentos cristos deveriam vir desde cedo, na infncia, e a demonstrao disso o conjunto colocado ao alto e sua afirmao visual: Deus est acima de tudo. 166 Os mesmos quatro grupos escultricos vistos frente do tmulo se encontram em sua parte de trs, propiciando ao visitante a dupla oportunidade de conhecer a histria dessa famlia - ao visitante que passar pela sua frente e ao visitante que passar por suas costas. Histria familiar, valores morais e f so memorados por todo o jazigo. Ao centro, o busto realista de Baslio Jafet, construtor desse universo familiar.
Detalhe do tmulo da famlia Baslio Jafet
O trabalho expresso pela bigorna, pela roda dentada e pelas marretas destacando seu valor. O conjunto apresenta dois homens e uma mulher ao centro, todos de cabea e olhos erguidos uma referncia a um passado de trabalho duro, hoje sinnimo de orgulho para a famlia. Trabalho que no poupou ningum. Homens e mulheres da famlia arregaaram suas mangas para este tmulo estar onde ele est hoje. 167
Detalhe do tmulo da famlia Baslio Jafet
A famlia representada neste conjunto em que pai, me e filhos, de diferentes idades, demonstram afeto, respeito e unio. A forte figura paterna, ao centro, o fiel da balana desses sentimentos, uma vez que todas as figuras do conjunto centralizam nele a ateno, e dele que emana a segurana de todos. 168
Detalhe do tmulo da famlia Baslio Jafet
A referncia a grande viagem da terra natal ao novo mundo. Duas figuras guardis ladeiam o navio para que chegue em segurana. Para os imigrantes de todas as nacionalidades, a viagem era um ponto em comum: fim de uma vida e incio de outra, incerta, mas que figurava como um sonho possvel. Ao coloc-lo frente do jazigo, esta famlia demonstra o quanto esse momento difcil deve ser lembrado por seus descendentes e por todos que passarem por ali. Que todos saibam at onde foram capazes de chegar aqueles que trabalharam, constituram uma famlia slida, fizeram So Paulo e tiveram f em Deus. Essa a memria a ser guardada e passada adiante. 169 PRASSADE PINOTTI (1884)
Tmulo de Prassade Pinotti
A mulher de mrmore branco olhando tristemente para a sepultura, encostada cruz e segurando uma flor alegoriza a saudade. A cruz marca a religiosidade e o desejo da ressurreio. A mulher saudosa uma das vrias que circulam por todo o cemitrio da Consolao. Esta famlia imigrante preferiu demonstrar sua existncia, sua importncia, na possibilidade de estar ali como um igual, seguindo as tendncias artsticas do uso de imagens art nouveau. Sua diferena se d na inscrio delicada e silenciosa aos ps do tmulo:
170
MORTO IL 26 DECEMBRE 1884 NELLET DANNI 47
Detalhe do tmulo de Prassade Pinotti 171 2. A voz do Brs
2. 1. A ala mais antiga do Quarta Parada
FAMLIA QUARESMA (FINAL DO SCULO XIX)
Menina deitada - Tmulo da Famlia Quaresma
Na Rua 1 est a rea mais antiga do cemitrio do Brs. Com uma de suas entradas originais hoje fechada, muitos dos tmulos desta rua se encontram abandonados, como o da famlia Quaresma. Na poca de sua construo os tmulos do Brs ainda reproduziam os gostos existentes no Consolao, como esta alegoria da morte, um anjinho, no caso uma menina deitada. 172 DR. MONSENHOR ANACLETO JOS RIBEIRO COUTINHO (1881)
Detalhe do anjo espreme limo. Tmulo do Dr. Monsenhor Anacleto Jos Ribeiro Coutinho
Tmulo do Dr. Monsenhor Anacleto Jos Ribeiro Coutinho
173 O anjo espreme-limo, ou anjo-orante, alado ou sem asas, foi muito tempo uma alegoria presente em cemitrios de todo o Brasil. No Consolao so encontrados em grande nmero, feitos em mrmore branco; no Brs o nmero bem menor. No tmulo do Dr. Monsenhor Anacleto Jos Ribeiro Coutinho o anjo espreme-limo sem asas e de cimento, material mais simples, porm com a mesma inteno de orar a Deus por aquele que se foi. O gradil parece posterior sepultura, uma forma de proteg-lo dos vivos, atitude comum tambm no Consolao.
Anjo espreme-limo. Um dos muitos existentes no Consolao.
174 2.2. Os imigrantes
FAMLIA BOSSA (1914)
Detalhe do tmulo da Famlia Bossa (Brs)
Esta famlia optou por uma escultura recorrente no Consolao no final do sculo XIX: um nicho-colunado com um anjo alado. A memria dessa famlia imigrante est apenas no nome da famlia, no nome das pessoas que se foram data de nascimento e morte. Buscou-se transmitir um toque de beleza e doura com o anjo protegido do sol segurando algumas flores. 175 O tmulo da Marquesa de Santos , com certeza, o exemplo mais conhecido de nicho-colunado com um amorino. Percebe-se a semelhana entre os dois, contudo a diferena dos materiais cimento e mrmore - e o estado de conservao de um e outro mostra que a ala mais antiga do Brs foi deixada de lado tanto por seus familiares quanto pela administrao.
Detalhe do tmulo da Marquesa de Santos (1867) (Consolao) 176
Tmulo da famlia Bossa (Brs)
177 CHRISTIANO ENDRES (1897)
Detalhe do tmulo de Christiano Endres 178
Tmulo de Christiano Endres
Uma das primeiras sepulturas do cemitrio do Brs, localizada na Rua 1, o tmulo do alemo Christiano Endres sepultado em 11 de janeiro de 1897, na Quadra Geral (6) dos adultos, sepultura n 148 aos 74 anos, motivo da morte corao 75 - demonstra bem a organizao catica deste cemitrio. Novas sepulturas foram sendo abertas, ladeando o tmulo aqui e ali a ponto de deix-lo completamente encaixotado, dificultando a viso do visitante. A alegoria semi-ajoelhada pede, com doura, aos cus pela alma dos que esto ali. Ao que tudo indica, pelo estilo da escultura, esta imagem foi colocada anos depois para dar um toque de beleza sepultura.
75 Livro de inumao n 35 Brs Arquivo.... 179 FAMLIAS BELLAZAIMA TIBRIO CARVALHINHO IAZZETTI FERREIRA DIAS (1932)
Tmulos-capela de BELLAZAIMA TIBRIO CARVALHINHO IAZZETTI FERREIRA DIAS
Estes cinco tmulos-capela mostram uma caracterstica importante do cemitrio do Brs: as ruas do Belm, da Mooca ou do Brs transportadas para dentro do cemitrio. Os tmulos parecem as pequenas casas operrias de porta na rua to comuns, e ainda presentes, nos bairros que antes faziam parte do Brs. Outra caracterstica transportada para a necrpole a vizinhana. Sobrenomes italianos ao lado, de sobrenomes portugueses convivendo lado a lado como suas famlias o faziam nos bairros de origem. As famlias imigrantes no gritam em seus tmulos, neste caso, por notoriedade poltica e econmica, mas deixam a memria no intencional do morar, da convivncia existente fora, transferida para dentro do cemitrio entremuros. 180
Detalhe dos telhados dos tmulos de Bellazaima Tibrio Carvalhinho Iazzetti Ferreira Dias
Os cinco tmulos muito parecidos diferenciam-se pelas cores, por pequenos detalhes aqui e ali e pelos anjos ou santos protetores colocados sobre eles. 181 FAMLIA CARDONE FERRETE (1942)
Tmulo da Famlia Cardone Ferrete
No tmulo acima ficam claras as lembranas pessoais dos componentes da famlia Ferrete. Fotografias em preto e branco ladeiam o tmulo em pequenas molduras incrustadas no cimento. No Consolao ocasionalmente encontramos fotos dos mortos nas sepulturas, mas no Brs isso constante.Transformou-se quase numa exigncia na forma de memorar colocar as fotos dos mortos 182 em seus tmulos, externamente, como neste caso ou internamente, como veremos mais adiante. V-las manter, de alguma forma, viva e real a presena de quem j se foi para quem visita o tmulo ou o cemitrio. As fotografias escolhidas trazem o morto bem vestido, s vezes sorrindo, s vezes srio, buscando transmitir um trao pessoal qualquer.
Detalhe do tmulo da Famlia Cardone Ferrete
183
INOLVIDVEL EUGENIA
Alma minha gentil que te partiste To cdo desta vida descontente Repousa l no cu eternamente E viva eu c na terra sempre triste!
Se l no assento Ethreo, onde subiste, Memria desta vida se consente No te esqueas daquelle amor ardente Que j nos olhos meus to puro viste
E se vires que pode merecer-te Alguma cousa a dor que me ficou Da magoa sem remdio de perder-te
Roga a Deus que teus annos encurtou Que to cedo de c me leve a ver-te Quao cedo dos meus olhos te levou!
No centro do tmulo um soneto de Cames, com a dedicatria inolvidvel Eugenia, viva eternamente na memria. Nada mais pessoal do que a declarao pblica de amor ardente e o pedido de ser levado o mais cedo possvel para encontr-la novamente. 184 FAMLIA DE CARLOS MALATESTA E FAMLIA DE NICOLA AURICHIO (1915)
Tmulos das Famlias de Carlos Malatesta e de Nicola Aurichio
De novo, a caracterstica das casas vizinhas, ou melhor dos tmulos vizinhos, sugerindo at a possibilidade de amigos, famlias amigas, que construram suas casas dentro do cemitrio. Os dois tmulos-capela so praticamente idnticos. Apenas pequenos detalhes e as cores que os cobrem que do a diferena. Lembram as casas geminadas das vilas operrias desta regio da cidade. Sem querer esses dois tmulos mantiveram vivo um tipo de moradia que vem desaparecendo de nossas ruas, e o fizeram pois o cotidiano foi levado para dentro do cemitrio. A memria imigrante de como 185 viviam passou para o Brs atravs da forma como eram enterrados. Memria expressa no ato de construir algo para sempre.
Tmulos das Famlias de Carlos Malatesta e de Nicola Aurichio
Os dois tmulos foram recentemente pintados, o que demonstra a preocupao e a ao das famlias em reformar e manter seu patrimnio. o museu a cu aberto sofrendo modificaes de maneira positiva, no pela ao do tempo e do abandono que destruiu muitos tmulos desta rea mais antiga do cemitrio do Brs. 186 FAMLIA JOO FIORE (1917)
Jazigo da Famlia de Joo Fiore
Tmulo em forma de capelinha, de pequeno oratrio residencial. Detalhes em dourado recm-pintados, assim como o tom rosa que o reveste. Os detalhes do arco ogival evocam templos rabes e do um toque especial ao jazigo. Este exemplo de tmulo, simples como um oratrio, traz a religiosidade do imigrante para dentro do cemitrio, reiterada pelas duas Nossas Senhoras que compem o tmulo. A pintura revela, mais uma vez, o cuidado familiar com o seu patrimnio eterno. 187
Detalhe do Jazigo da Famlia de Joo Fiore
Detalhe do Jazigo da Famlia de Joo Fiore
188 CSAR CASALI (1912)
Tmulo de Csar Casali
Este tmulo traz a figura do patriarca Csar Casali em destaque, com sua efgie no alto de um pedestal, e sobre ele delicadamente um tecido desce, quase cobrindo o seu rosto. Este imigrante mantm sua memria gravada na pedra e ladeada por dois vasos contendo chamas que o iluminaro eternamente. Neste pequeno tmulo esto inseridas duas fotos emolduradas, marcando a presena de outras pessoas da famlia. No existe meno a quem ele foi, seu tipo de trabalho, se teve famlia numerosa ou no, sabemos somente como era seu rosto: barba e bigode bem aparados, cabelos bem penteados para trs, bem trajado, rosto forte, com o olhar firme e distante. Em nada sugere um imigrante operrio; pelo contrrio, mais parece um oligarca do final do sculo XIX. A memria deixada aos visitantes e para as geraes futuras da famlia personalista. Sugere a importncia do patriarca para a existncia dos 189 Casali, tanto que a as chamas - que tm, entre seus vrios significados, o de iluminar, proteger e acompanhar os mortos so apenas para ele e no para toda a famlia. o patriarca que est no altar.
Detalhe do tmulo de Csar Casali
190 D. GIUSEPPE AHCLLI (191_)
Detalhe do tmulo de D. Giuseppe Ahclli
Tmulo abandonado, composto de um quadrado de concreto marcado com uma cruz, em pedaos, ao centro, e de trs suportes de correntes usadas no passado para proteo do tmulo -, uma coluna cortada apresentando em sua base uma fotografia, provavelmente de D. Giuseppe Ahclli em porcelana, ao lado um anjo orante. Tmulo simples, onde a memria pessoal estabelece-se nica e exclusivamente por um nome e uma fotografia. Tmulos como estes so os provveis espaos a serem vendidos futuramente se a famlia no for encontrada ou abrir mo deste patrimnio.
191
Tmulo de D. Giuseppe Ahclli
192 FAMLIA ANTICO (1937)
Detalhe do tmulo da famlia Antico
Alegoria da desolao, segurando flores, em mrmore branco, uma das raras figuras em estilo art nouveau e em mrmore branco dentro do cemitrio do Brs (as imagens representadas, anjos pequenos, anjos grandes, alados ou no, Nossas Senhoras, santos e etc., so na sua imensa maioria feitas de cimento). Esta alegoria ajoelhada ao tmulo em muito lembra as inmeras alegorias de desolao existentes no Consolao. Esta famlia imigrante ousou dentro do Brs. Buscou se diferenciar das demais sepulturas, mostrando gosto diferente, e estando mais prxima da antiga capela e da entrada, o que sugere uma maior visibilidade. 193
FAMLIA BIAGINI (1919)
Tmulo da famlia Biagini
Alegoria da Saudade em mrmore branco, apoiada a uma coluna cortada ao meio, simbolizando a morte prematura de algum. outra escultura que se destaca dos demais tmulos. Com o olhar triste e cabisbaixo, a alegoria fixa seus olhos na sepultura, lembrando e lastimando por quem est ali. A semelhana com as brancas mulheres do cemitrio da Consolao ntida. Esta famlia imigrante, como na sepultura anterior, pretendeu ousar na escolha de uma alegoria feminina, e no de uma figura religiosa, para guardar sua 194 sepultura por toda a eternidade. Localiza-se na rua detrs da antiga capela e sugere uma famlia imigrante marcando sua presena com sofisticao, aos moldes do Consolao, na hora de demonstrar sua dor.
Detalhe do tmulo da famlia Biagini (Brs)
As brancas mulheres do Consolao. Um estilo imitado em outros cemitrios, at mesmo no Brs. (Cemitrio da Consolao) 195 FAMLIA ARTHUR RAMONDINI (1934)
Detalhe do tmulo da famlia Arthur Ramondini
No tmulo da famlia Ramondini o que est em questo lembrar a perda da esposa Constncia. Tmulo retangular reproduz na sua parte de cima pedras em coluna cortada e retrata a morte precoce provavelmente da esposa. Uma pomba repousa sobre a coluna, figura representativa de paz e tranqilidade tambm do Esprito Santo, sugere trazer reconforto a quem foi e a quem ficou. A memria imigrante, pessoal, emocional na perda se faz com seus dizeres em italiano, mais precisamente num manuscrito em italiano. A mensagem e a imagem da perda so colocadas praticamente ao lado da capela. Quem entra e segue direita da capela no passa sem ver a dor de Arthur Ramondini e seus filhos. 196
Tmulo da famlia Arthur Ramondini
197 FAMLIA COLOMBO LEONI (1941)
Tmulo da famlia Colombo Leoni
Este tmulo se localiza na Rua central na antiga entrada principal, pela Rua Tobias Barreto. Ao entrarmos por ela somos ladeados por tmulos bem cuidados, trazendo esculturas em sua composio. Era o local oficial por onde os visitantes eram obrigados a passar antes de chegarem aos tmulos de suas famlias, o lugar de serem vistos. A religiosidade a grande marca dos imigrantes que conseguiram colocar seu tmulo neste local de destaque. Imagens em tamanho natural como a da Famlia Colombo Leoni: Maria sendo consolada diante do filho, que carrega a cruz. No existem fotos ou identificaes pessoais dos mortos da famlia, apenas seus nomes e as datas de nascimento e morte. Estar frente, com a responsabilidade de receber a todos, supe um endurecimento no comportamento e a memria se torna menos natural, se molda num padro escultrico. Cabe aqui uma breve observao: uma das 198 mulheres, a da esquerda de quem olha, traz em sua mo um rosrio azul colocado por algum. Este mesmo rosrio, em uma outra sada a campo, se encontrava no pescoo da mulher da direita. Esta uma caracterstica interessante de um museu a cu aberto: os visitantes sentem-se livres para tocar e dar uma contribuio uma interveno mesmo, sepultura de outrem.
Tmulo da famlia Colombo Leoni
199 FAMLIA SILVA CAMPANELLA (1934)
Detalhe do Jazigo Silva Campanella
Tmulo localizado, tambm, na rua central da antiga entrada do Quarta Parada. Feito em granito e bronze, se diferencia visualmente dos tmulos a sua volta. Embaixo de um arco em granito, a figura de So Pedro na sua tradicional posio: segurando seus escritos e as chaves do cu. Tmulo semelhante foi encontrado no Consolao. Nossa Senhora debaixo de um arco e a sepultura a seus ps. Mais uma vez a demonstrao religiosa da famlia imigrante, de l e c. O tmulo da famlia Campanella no possui fotos, somente as placas com os nomes e as datas de nascimento e morte. Como no tmulo anterior, a marca a procura por uma imagem bela, porm impessoal, quando comparada aos tmulos que predominam no cemitrio do Brs. 200
Jazigo monumental da famlia Gaetano Cardamone. Construo em granito e alto-relevo, em bronze, assinado pelo escultor Armando Zago. O maior tmulo do cemitrio do Brs parece abandonado. Em seu interior ainda possvel ver a existncia de uma pequena cripta. Trs grandes placas de mrmore, como tmulos na parede, indicam os nomes dos mortos: acima de todos, Gaetano Cardamone; abaixo, Josephina F. Cardamone e, mais abaixo, Jos Cardamone. Nas gavetas de Gaetano e Josephina, as indicaes do lugar de nascimento - Malito Prov. de Cosenza/Itlia (1872) e S. Domanico 202 Prov. de Cosenza (1880) respectivamente. Jos Cardamone (1898) nasceu e morreu em So Paulo. Na capela, um busto em madeira e bronze e as seguintes inscries:
FILI REDEMPTOR MUNDI DEUS MISERE NOBIS.
Externamente o jazigo traz imagens religiosas - Jesus Cristo descido da cruz -, duas guardis segurando a chama eterna, como eterna tambm a grande chama, em bronze, sobre a cpula do jazigo. Luz para iluminar os mortos desta famlia, luz para iluminar a memria, mas uma memria que no ressaltou as atividades econmicas, as dificuldades passadas, o valor da famlia, etc.. Por ele no sabemos muito sobre esta famlia, nada alm de sua procedncia, enriquecimento e desejo de notoriedade dentro de um cemitrio em que os imigrantes, na sua grande maioria, eram operrios e pequenos comerciantes, gente que alugava sua casa ou a construa com grande esforo.
Detalhe do tmulo da Famlia Gaetano Cardamone 203 O tmulo impressiona pelo seu tamanho. impossvel fotograf-lo por inteiro; ao seu redor uma grande quantidade de sepulturas dificulta um olhar mais distanciado. O desejo de ser visto claro pelo seu tamanho, mais ainda quando comparado s demais sepulturas e pelos materiais utilizados em sua composio. Porm, se a memria a ser deixada era a da grandiosidade desta famlia, vinda da Calbria, o abandono atual indica que algo deu errado. Hoje o jazigo funciona como uma presena quase incmoda de um elefante branco, que foi sufocado pela naturalidade da grande maioria das sepulturas do Quarta Parada. Situado no lado esquerdo de quem entra pela Rua Tobias Barreto antiga entrada principal e sufocado pelas sepulturas aglomeradas ao seu redor e por estado de quase abandono, otmulo deixou como memria a tentativa de uma famlia imigrante, ao que parece bem sucedida, de notada entre seus iguais, e o posterior fracasso dessa tentativa.
Detalhe do tmulo da Famlia Gaetano Cardamone
204 FAMLIA JOS CIRILLO (1930)
Tmulo da famlia Jos Cirillo
Prximo ao Jazigo Monumental de Gaetano Cardamone encontra-se o tmulo da famlia Jos Cirillo. Construo em Mrmore e bonze,aproxima-se do vizinho na inteno de marcar a diferena desta famlia com os demais ocupantes do cemitrio. No h nenhuma inscrio pessoal, salvo o nome da famlia. frente, ladeando a porta de entrada, Santa Rita esquerda e So Jos com o menino Jesus direita. No alto, Jesus Cristo em posio de beno e, do seu lado esquerdo, uma tocha acesa. No detalhe, a triste cena do tmulo aberto. As portas foram retiradas, sugerindo o abandono deste jazigo. Como o tmulo da famlia Cardamone, tambm foi 205 sufocado pela grande quantidade de sepulturas que foram gradativamente ocupando espaos ao seu redor. A notoriedade, como um lugar de visitao, de beleza aos visitantes no foi alcanada, ou pelo menos no sobreviveu at nossos dias. Uma memria do desejo de ser visto que se perdeu.
Detalhe do tmulo da famlia Jos Cirillo
206 FAMLIA GIACOMO BIFULCO (1943)
Tmulo da Famlia Giacomo Bifulco
Detalhe do tmulo da Famlia Giacomo Bifulco
O tmulo da famlia Bifulco, em mrmore e bronze, optou por uma representao religiosa. Em cima do tmulo, uma Santa segura a cruz e l um livro, uma orao. Na pequena porta de entrada, uma mulher chora, se lastima diante de uma urna funerria com uma 207 chama em sua tampa. A referncia familiar dada pelas duas fotos emolduradas no lado direito. Uma orao eterna e uma eterna saudade so os sentimentos expostos neste jazigo. 208 FAMLIA ROSSON (SEM DATA)
Detalhe do tmulo da famlia Rosson
Detalhe do tmulo da famlia Rosson 209
Detalhe do tmulo da famlia Rosson
O tmulo do leo, como conhecido no cemitrio, se encontra na Rua do leo (usado como referncia de localizao) e no possui datas, no possui fotos, nem mesmo nomes, salvo da famlia ao alto, e um braso sugere a existncia de um ttulo gasto pelo tempo. Este jazigo abandonado possui um alpendre, mais parecendo um pequeno templo aberto, onde repousa um leo prateado. Como j vimos, o leo sinnimo de fora e realeza. O leo guarda os mortos desta famlia imigrante, que trouxe sua realeza para dentro do cemitrio. A memria que ficou deste jazigo a de uma famlia que procurou se destacar, atravs de um braso, de um leo e de um templo, das demais sepulturas, e hoje o lugar carrega o peso da decadncia e do abandono.
210 FAMLIA SCAFFIDI (1917)
Tmulo da Famlia Scaffidi
Tmulo bem cuidado, demonstrando a presena da famlia, indicada pela recente pintura das paredes, das colunas e dos detalhes em dourado. Este tmulo-capela de 1917 mostra o gosto por tmulos que podem servir de lugar de orao e de antesala do morto. Lugar onde a famlia imigrante, como j foi visto, pde colocar um pouco de sua sala de estar dentro dos jazigos, dentro do cemitrio. Externamente o jazigo traz fotografias emolduradas e incrustadas na parede, nos cantos da porta. A famlia reunida em vida - com as cadeiras na porta cumprimentando os vizinhos que passam - e na 211 morte, pronta para ser vista e respeitada pelos que passam pelo cemitrio e a identificam como a famlia que cuida de sua casa dentro do Brs.
Detalhe do tmulo da Famlia Scaffidi
212 Famlia Sanchez Trujillo (1925)
Tmulo da famlia Sanches Trujillo
Tmulo bem cuidado, demonstrando a presena constante da famlia - letras e detalhes da porta pintados recentemente de dourado possui colunas nas duas laterais, janelas e porta em arco. No alto vem-se detalhes que revelam o carter cristo do conjunto: a coroa de flores representando salvao alcanada; no centro da coroa, as letras X P uma sobre a outra: no grego so as iniciais de CHRISTS e 213 tem como significado a palavra Messias ou Cristo. Este tmulo-capela traduz, sim, a memria de uma famlia imigrante que optou por ser vista como temente a Deus. Contudo a verdadeira memria no externa e sim interna: no interior de sua capela, a demonstrao da memria cotidiana dos imigrantes transposta para os cemitrios, prtica vista em inmeros tmulos.
Detalhe interno do tmulo da famlia Sanches Trujillo
O altar, que bem poderia ser uma mesa, um aparador, uma cmoda onde foram colocados porta-retratos antigos e novos da famlia, a toalhinha de renda, os vasos com flores de plstico e. no 214 alto uma imagem religiosa Nossa Senhora e o menino Jesus. Esta a memria imigrante manifesta regularmente no interior do Brs: a sala de estar dentro do tmulo-capela. Sem grandes alardes, sem competir com esta ou aquela famlia, trocando sentimentos de saudade, mantendo o tmulo bem cuidado, como bem cuidados eram os assobradados do Brs. Memria sensvel e familiar para todos que se aproximarem olharem entre o vidro e o gradil, espiando pela janela o que se passa na casa do vizinho.
215 FAMLIA NGELA GENEROSO (1934)
Detalhe do Jazigo da Famlia ngela Generoso Nossa Senhora de Aparecida ao alto
O tmulo da Famlia ngela Generoso, tochas acesas no alto - representando a iluminao deste pequeno templo - descascado e de aparncia abandonada, vem sofrendo claramente as aes do tempo. Este tmulo-capela possui ao seu redor placas com nomes dos mortos sepultados, duas fotografias emolduradas e incrustadas em sua parede externa. Chama a ateno pelo que est por trs da porta de vidro e ferro. A fotografia a seguir mostra seu interior iluminado pelo sol que entra pela janela lateral. A mesa com a toalha de renda, o vasinho de porcelana, a cesta de flores, o sol batendo pela janela passa a impresso de um lugar habitado, e no de um tmulo. Levar o bairro para dentro do Quarta Parada manter viva a memria de uma existncia e, dos afazeres cotidianos. 216
Jazigo da Famlia ngela Generoso Mais uma vez o cotidiano do bairro, das casas ensolaradas pela manh, pode ser visto nesta cena de aparncia to familiar.
217 FAMLIA CHICONETTO ELAVSIO
Detalhe do tmulo da famlia Chiconetto Elavsio (Brs)
Estes dois tmulos no esto datados, porm a curiosidade de sua semelhana vale para uma breve reflexo. Duas famlia imigrantes, dois jazigos, dois cemitrios e os mesmos anjos protetores. Famlia Chiconetto Elavsio, no cemitrio do Brs, famlia Abdalla Azem, no cemitrio da Consolao, ambas encomendaram para os seus respectivos tmulos a mesma dupla de anjos protetores para guardarem seu sono eterno. A diferena se d pelo estado de conservao e pelo espao ao redor de cada um. No Brs, um dos anjos foi praticamente emparedado por outra sepultura, resultado do 218 crescimento catico deste cemitrio. No Consolao, com seu crescimento mais planejado e organizado, o visitante pode ver e apreciar os anjos praticando sua funo, guardar o tmulo da famlia Azem. Memrias vistas ou no vistas, pela dificuldade ou facilidade que cada cemitrio traz aos seus mortos.
Detalhe do tmulo da famlia Chiconetto Elavsio (Brs)
219
Famlia Abdalla Azem - Cemitrio da Consolao
Famlia Abdalla Azem - Cemitrio da Consolao 220
V. A memria dos vivos e dos mortos
Garoa, sai dos meus olhos.
Mrio de Andrade
O silncio uma das caractersticas do interior dos cemitrios. Vento, chuva e, em alguns lugares do mundo, a neve cobrem esses espaos, tornando-os ainda mais distantes da presena dos vivos. Contudo esses cemitrios solitrios carregam dentro de si uma incrvel quantidade de vozes prontas para serem ouvidas, basta ter ouvidos e olhos treinados para isso. O sol, o cu azul, a brisa fresca e reconfortante tambm passam por ali, e se para o personagem de Joyce, Gabriel, a neve desce como a hora final sobre todos os mortos e os vivos 76 , a luz do sol pode iluminar todos os vivos e todos os mortos. Foi no desejo de ouvir essas vozes, vozes imigrantes, o que elas teriam para dizer, as memrias guardadas por este grupo, que est pesquisa se iniciou. Os lugares escolhidos e percorridos foram os cemitrios da Consolao e do Brs, necrpoles nascidas dos desejos estatais de organizao, controle e limpeza do espao pblico. As novas leis de sepultamento trouxeram muitas incertezas populao acostumada, pela tradio, ao sepultamento no interior das igrejas. Os mortos no eram mais sepultados em solo sagrado, mas a cu aberto, em tmulos que s lentamente tomariam formas e significados para a populao. Antes dos cemitrios extramuros pagava-se mais ou menos pela localizao da sepultura dentro da igreja. Com os cemitrios pblicos as preocupaes se tornaram outras. Num primeiro momento procurou-se a proximidade com a
76 JOYCE, James. Os mortos. Dublinenses. So Paulo: Siciliano, 1993. p. 222. 221 capela, depois uma localizao de visibilidade, perto deste ou daquele vizinho, nas alamedas mais belas e centrais pensando no Consolao ou simplesmente habitar o espao da necrpole de maneira pessoal e familiar. Internamente os cemitrios foram ganhando forma e, por que no?, identidade. Tmulos com imagens religiosas santos, virgens, anjos -, tmulos com sinais apocalpticos, tmulos em forma de pequenas igrejas gticas, de capelas de bairro ou casas de porta direto na rua passaram a povoar estes dois cemitrios. A presena imigrante em seus interiores, com sua herana cultural, um passado trazido da terra natal e um presente de luta na nova terra contribuiu para a formao da identidade do Brs e do Consolao. O cemitrio da Consolao, adotado pela elite local - cafeeira e industrial -, recebeu, do final do sculo XIX em diante, imigrantes enriquecidos. Lugar da memria, da celebrao de um passado e da competio entre os estabelecidos da oligarquia local e os outsiders, os imigrantes bem sucedidos, o Consolao rendeu importantes reflexes sobre como criar e manter uma memria. Sobre como foi necessrio para as famlias imigrantes marcar seu espao nessa necrpole, ao mesmo tempo, como um igual e um diferente em relao oligarquia local. Igual pelo poder econmico, pela importncia de seu papel para So Paulo e pelo respeito conquistado e merecido. Diferente, pois se orgulhavam da travessia do Atlntico, de sua origem imigrante, mantendo sua lngua nas inscries, referncias de nascimento, etc., e pelo valor que davam ao trabalho como fonte de crescimento. No Consolao era celebrada a memria da famlia unida e forte, do trabalho duro mas recompensador, da presena de Deus, da f em todos os momentos. Enfim, da trajetria de quem fez a Amrica e buscou reconhecimento e notoriedade; por isso os mausolus, os lugares onde se encontram e os vizinhos a que procuram ofuscar. 222 O cemitrio do Brs, lugar escolhido pelos imigrantes operrios e pequenos comerciantes, se localizava prximo ao ponto de chegada da grande viagem: a hospedaria dos imigrantes. Bairro escolhido para morar e trabalhar, foi tambm o lugar onde essas famlias deixaram suas marcas nos cardpios, nas moradias, no sotaque e nas atitudes cotidianas. Algumas dessas caractersticas foram levadas para dentro do Quarta Parada. No encontramos em seu interior a profuso de mausolus monumentais, preciosidades artsticas, porm ouvimos as vozes das famlias imigrantes num tom mais familiar. O cemitrio do Brs foi (e ) tambm um lugar de celebrao para esse imigrantes. Celebrou-se a trajetria pessoal ou familiar no atravs do mrmore e do bronze, mas nos rostos das famlias formadas deste lado do Atlntico; celebrou-se a memria da perda, de seus amores e, de maneira espontnea, perpetuaram suas experincias de vida, suas moradias, seu cotidiano. O tema famlia, assim como no Consolao, teve um papel importante como clula aglutinadora que dava fora para a sobrevivncia numa terra estrangeira. Ela no vinha ligada dureza do trabalho que fez enriquecer ou na unio em torno do patriarca que construiu um imprio, mas nas relaes de afetividade, na segurana, nos porta- retratos e dizeres estampados dentro e fora de suas sepulturas. Os que procuraram, no Brs, a notoriedade exacerbada, construindo mausolus para serem vistos, ficaram em segundo plano, e tiveram seus espaos diminudos diante da grande quantidade de sepulturas que brotaram ao seu redor. Os que buscaram apenas visibilidade trouxeram frieza ao lugar. O cemitrio como campo de competio de poder no coube no Brs. A competio ficou no plano do tmulo mais cuidado, arrumado, bem pintado, com este ou aquele detalhe que lhe d uma graa diferente, como acontece entre as casas de um bairro. Eles no gritam para provar o quanto seu passado foi importante, apenas existem dentro dele, levando para l 223 sua sala de estar, seu lugar de orao, suas cadeiras, toalhinhas de renda, vasos de porcelana e, claro, as flores de plstico.
Cemitrio do Brs - Dcada de 1930 Acervo de Clarival do Prado Valladares
Este cemitrio j no existe mais, apenas algumas memrias permanecem aqui e ali - algumas delas estudadas neste trabalho. Na fotografia do Quarta Parada na dcada de 1930 estamos diante de um cemitrio-bairro, com seus jardins gradeados de aspecto leve, sem o mar de esculturas se projetando no espao para dizer quem o grande destaque. Um universo infinitamente diferente do Consolao.
Seja como for, esses dois grupos imigrantes, os bem sucedidos e os operrios e pequenos comerciantes, transpuseram para dentro destes dois espaos murados suas experincias histricas celebradas como memria. Cada qual fez a sua So Paulo e a viveu de maneira diferente. Na mistura dessas experincias o Conde, o sapateiro, o padeiro e o operrio contriburam para as transformaes vividas pela cidade de So Paulo nas primeiras dcadas do sculo XX. Novos valores foram criados e o percurso de ambos ainda pode ser visto. A proposta no foi buscar a histria verdadeira da imigrao ou do imigrante dentro dos muros do Consolao e do Brs, e sim a construo de uma memria. At porque o cemitrio o lugar da 224 memria, de uma memria no espontnea, pois no admite o esquecimento: est l todos os dias para celebrar a presena desta ou daquela famlia, seu nome, seus feitos, sua existncia. No Brs, a espontaneidade parece mais visvel na medida que as memrias se apresentam pessoais e cotidianas, sem a formalidade dos ttulos e do aparato, do busto em pose altiva, o que resulta, por exemplo, em imagens como esta:
Detalhes de tmulo Brs 1935
Nela, o rosto do imigrante, que morreu aos 76 anos, fala de uma poca, de uma saudade, e da escolha da famlia em memorar o jovem que veio fazer a Amrica. 225
VI. ANEXOS
Anexo 1
226
Anexo 2 227
Detalhe do Anexo 2 Cemitrio Velho da Consolao e Cemitrio Municipal 228
Detalhe do Anexo 2 - Regio onde foi construdo o Cemitrio do Brs
229
Anexo 3 230
Detalhe do Anexo 3 Cemitrio da Consolao 1914 231
Detalhe do Anexo 3 Cemitrio do Brs Prximo Estrada de Ferro (Central do Brasil) entre o Belm e o Tatuap 232
Anexo 4
233
Parte de trs do Anexo 4
234
Anexo 5
235
1. Planta da Imperial Cidade de So Paulo - Levantada em 1810 pelo Capito de Engenheiros J. Felizardo e Costa e copiada em 1841 com todas as alteraes. (Anexo 1)
2. ARQUIVO MUNICIPAL WASHINGTON LUIZ (AMWL). Planta geral da Capital de So Paulo. Dirigida pelo Dr. Gomes Cardim: Intendente de obras 1897. Fac- smile ..1954. (Anexo 2)
3. Planta Geral da Cidade de So Paulo com indicaes diversas. Organizada pela Commisso Geographica e Geolgica. Engenheiro Joo Pedro Cardoso: Chefe 1914. In: MEMRIA URBANA. A grande So Paulo at 1940. Volume I e II. So Paulo: Arquivo do Estado/Emplasa/Imprensa Oficial, 2001. (Anexo 3)
4. Planta do Cemitrio da Consolao. Servio Funerrio do Municpio de So Paulo. (Anexo 4)
5. Planta do Cemitrio da Consolao. Mapa das obras. http://nourau.smarcos.br/document/?view=192. Acesso em 20 de maio de 2006. (Anexo 5)
236 VII. FONTES
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SO PAULO (Cidade). DIVISO DO ARQUIVO HISTRICO MUNICIPAL WASHINGTON LUS. Livros de Inumaes do Cemitrio da Consolao, vol. 1, contendo os registros dos ano de 1858.
SO PAULO (Cidade). DIVISO DO ARQUIVO HISTRICO MUNICIPAL WASHINGTON LUS. Livros de Arrecadao do Cemitrio do Brs, contendo os registros dos anos de 1899, 1904, 1909 e 1930.
SO PAULO (Cidade). DIVISO DO ARQUIVO HISTRICO MUNICIPAL WASHINGTON LUS.Livros de Arrecadao do Cemitrio da Consolao, contendo os registros dos anos de 1899, 1904, 1909 e 1930.
237
2. Fontes Impressas
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