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Morro e Pista - Carolina Grillo

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O morro e a pista: Um estudo comparado de dinmicas do comrcio ilegal de drogas

Carolina Christoph Grillo


Pesquisadora assistente no Ncleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violncia Urbana (NECVU/IFCS/UFRJ)

Neste artigo so distinguidas duas modalidades da prtica do comrcio ilegal de drogas na cidade do Rio de Janeiro a partir dos modos de sociabilidade predominantes que particularizam as redes do trfico do morro e da pista. So observados os aspectos circunstanciais sob os quais elas operam, ressaltando o papel das diferentes relaes com o territrio e as dinmicas organizacionais e hierrquicas distintas na produo dos modos violentos ou normalizados de sociabilidade encontrados no mercado ilegal de drogas. Em se tratando de redes interconectadas, so apontadas algumas notas sobre seus pontos de contato.

In the article Morro versus pista: A comparative study on different dynamics of illegal drug trade, two modalities of the illegal drug trade practice in Rio de Janeiro are distinguished with basis on the prevailing sociability modes which particularize the slum(mono)s and the middle cluss (pista)s traffic networks. The circumstantial aspects under which they operate are observed. Emphasis is given to the role of the different relations with territory and the distinct hierarchical and organizational dynamics in the production of violent or normalized sociability modes found in the illegal drug market. As they are interconnected networks, some notes on the intersection between the two are pointed out.

Introduo Joo e Bernardo estavam numa boca do Morro dos Prazeres, em Santa Teresa, onde vinham pegando alguns quilos de maconha para a sua revenda tanto no varejo (25g ou 50g) quanto no atacado (250g, 500g, 1Kg). Aguardavam pela planta (maconha) que seria buscada no seu entoque (esconderijo) e essa espera costumava estender-se por vrias horas, sem que houvesse qualquer previso do tempo que eles precisariam permanecer ali. Alm da demora efetivamente necessria, parecia haver sempre um desdm pela ansiedade dos playboys1 e at mesmo certo prazer em demonstrar essa falta de considerao. Desta vez, o desconforto de encontrar-se vulnervel aos possveis imprevistos fora acentuado pela chegada de um carregamento de armas. Os integrantes do movimento2 tiravam-nas de sacos enormes

Recebido em: 04/05/08 Aprovado em: 10/07/08

1 Para os traficantes de drogas do movimento, essa categoria engloba todos os moradores do asfalto. 2 Categoria nativa que denomina as redes do varejo de drogas nos redutos de moradia de baixa renda.

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3 Entre os envolvidos no mundo do crime, bandido corresponde a uma identidade social construda em torno de caracterstica pessoal e interna: a disposio pra matar. (Zaluar, 1994, p.139). 4 Os recortes etrio e de classe no so eficientes para distinguir essa modalidade de trfico, pois as redes de relaes incluem pessoas com mais de 30 anos e menos de 18, alm de comportar indivduos oriundos de famlias que compem os extratos mais baixos e os mais altos das camadas mdias urbanas do Rio de Janeiro. Ainda assim, pode-se afirmar que estas redes so constitudas principalmente por jovens de entre 20 e 35 anos de idade cuja origem social preponderante de classe mdia, compreendendo classe mdia enquanto categoria nativa, isto , levando em conta a autodefinio dos indivduos pesquisados.

e as experimentavam, simulando os olhares e a postura corporal de quem est prestes a atirar e com disposio pra matar3. No se preocupavam em avaliar a qualidade da arma, mas em ver qual pea compunha melhor o seu visual. Sobre esse episdio narrado por Joo e Bernardo, eles comentaram que o clima tava pesado. Os dois comercializam drogas ilcitas, mas no portam armas e nem sabem atirar. Bernardo no v graa alguma nesses artigos blicos, ao passo que Joo saboreia imaginarse manejando uma, mas lhe falta a disposio. J chegou a comprar um revlver calibre 38 aos 20 anos de idade, porm confessou que se sentia extremamente inseguro quando o portava, temendo que algum entrasse numa com ele. Afinal, eu no posso levar porrada armado, mas tambm no quero ter que atirar em ningum. Aps ter a sua arma travada(confiscada) pelo pai de um amigo que a encontrara em sua casa, onde Joo a tinha deixado guardada, ele desistiu de seu fetiche sem jamais ter atirado em ningum. Assim como eles, diversos outros jovens de classe mdia compem o chamado trfico da pista e uma parte substancial dos fluxos do mercado de entorpecentes no Rio de Janeiro passa pelas redes de comerciantes do asfalto, que estabelecem relaes com os do morro ou mesmo realizam transaes que os excluem. Apesar de se encontrarem inseridas no contexto mais amplo desse mercado ilegal, essas redes funcionam de maneira independente e se distinguem das demais por uma sociabilidade especfica que particulariza essa modalidade do comrcio ilegal de drogas. Em minha pesquisa de dissertao (GRILLO, 2008), tive acesso a uma rede social de traficantes jovens de classe mdia4 em liberdade, acionada a partir de um informante principal, que denominei Joo, e composta por traficantes que, em sua maioria, j eram meus conhecidos desde antes do engajamento neste estudo. Procurei me inserir nos contextos de socializao desses traficantes e, apesar de revelar as minhas intenes de pesquisadora, a coleta dos dados transcorreu de maneira discreta, sendo a minha presena interpretada com naturalidade. Atravs de entrevistas informais nas quais era perguntado apenas o que fosse coerente com o andamento da conversa e da observao
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participante, foi possvel perceber o repdio ao emprego da violncia na rede estudada. O objetivo deste estudo consistiu em identificar as circunstncias sob as quais esse mercado opera, alm das estratgias, valores e cdigos de conduta compartilhados pelos traficantes, compreendendo o que possibilita a manuteno de uma sociabilidade normalizada, a despeito do carter ilegal dos empreendimentos. No presente artigo ser privilegiada uma abordagem comparativa entre duas dinmicas do mercado ilegal de drogas, identificando algumas das relaes de semelhana e diferena, cooperao e concorrncia, que se estabelecem entre as modalidades do trfico da pista e da favela, considerando a bibliografia existente sobre a organizao social das redes do mercado ilegal de drogas que operam nas reas de moradia de baixa renda da cidade. Ao contrastar os distintos modos de funcionamento do trfico suscitada a necessidade de se compreender as territorialidades alternativas (GRILLO, 2008) e as formas de organizao e hierarquia presentes nessa modalidade do mercado ilegal de drogas praticada principalmente embora no exclusivamente por jovens de classe mdia e que articulada em redes relacionais fundadas na amizade, cuja operao no se encontra territorializada, mas pulverizada, sem que existam pontos de venda reconhecveis. Empreendedores individuais associam-se, mas no compem grupos com diferenciao funcional interna e nem devem respeito a uma hierarquia de mando. Observei, em campo, uma sociabilidade especfica em torno do trfico de drogas que se distingue de todas as demais formas de interao observadas no conjunto mais amplo desse mercado. Aps o desenvolvimento dessa perspectiva comparada, sero apresentadas algumas passagens etnogrficas referentes aos pontos de contato entre as redes da pista e da favela. O objetivo consiste em demonstrar como nenhum esquema simplista capaz de abarcar o potencial inovador da contnua reconfigurao das prticas no mercado ilegal de drogas. A complexidade dos arranjos relacionais observados aponta para a necessidade de se compreender o trfico de maneira menos esttica, ressaltando a informalidade e o improviso como elementos fundamentais nas redes que se espalham pela cidade.
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Sociabilidade normalizada O mercado informal ilegal de drogas operante nas aglomeraes urbanas de baixa renda do Rio de Janeiro, ou o movimento, tem sido representado na mdia pelo grande volume de violncia ao qual est associado e isso tambm aparece de forma homognea na bibliografia especializada sobre o tema (ZALUAR, 1994; BARBOSA, 1998; MISSE, 1999; MACHADO DA SILVA, 1999 e outros). Para Machado da Silva (1999), este caracteriza-se pela sociabilidade violenta, isto , pela interao baseada em um individualismo que promove a relao objetal com o outro e a interao fundada nos princpios de subjugao pela fora. Segundo a hiptese do autor, as organizaes criminosas so portadoras de uma viso de mundo em formao que cancela a relao de alteridade que tem sido pensada como fundamento da vida coletiva (p.123). Tal volume de violncia, por sua vez, no prprio ao trfico de drogas, uma vez que o mesmo no se verifica em outras grandes cidades de outros pases (MISSE, 2003) e a particularidade do movimento pode ser compreendida atravs da anlise dos processos de acumulao social da violncia (MISSE,1999) que caracterizam a especificidade da histria social do banditismo no Rio de Janeiro. Para Zaluar (2004, p. 62), dentre os elementos que produzem uma cultura na qual generalizado o recurso violncia para a resoluo de conflitos esto a interiorizao de uma ideologia individualista moderna em que a iluso quanto liberdade da pessoa est atrelada a uma concepo extremamente autoritria de poder e o ethos da virilidade, que impe ao homem que no deixe nenhuma provocao sem resposta. Por outro lado, pude observar nas redes de trfico da pista que o emprego da fora condenado e evitado, mesmo nas situaes como a volta (o no pagamento de dbitos) ou a suspeita de delao, em que, segundo a lgica habitual dos mercados nos quais so comercializadas mercadorias criminalizadas, uma ao violenta se faria necessria. No so raros os casos de vacilao (falha ou trapaa) nas relaes de crdito entre os prprios traficantes e houve casos narrados em que a retaliao violenta foi at cogitada, mas nunca colocada em prtica. A prpria ausncia de posse de armas pelos traficantes j um forte indicador da predom130 DILEMAS O morro e a pista Carolina Christoph Grillo

nio do que proponho chamar de sociabilidade normalizada (GRILLO, 2008) nas interaes em torno da negociao das drogas. Tomo por referncia o conceito de normalizao, tal como utilizado por Misse (1999, p. 48), que, inspirado por Elias, Foucault, Hirshman, Bellah e outros, o definiu como o
complexo processo histrico-social que mobilizou os indivduos (que so por definio, imaginados como potencialmente desafiliados no interior de uma formao social que reclama a sua filiao) a auto-regularem sua premncia e sua ganncia (de necessidades, interesses e desejos), atravs da socializao do valor de si como valor prprio que deriva do desempenho do autocontrole.

A criminalizao das mercadorias determina que o comrcio das mesmas no esteja sujeito ao controle do Estado, portanto comum que se desenvolvam estratgias violentas para a regulao dos mercados ilegais, especialmente por envolver a circulao do capital econmico. Ainda assim, insisto em afirmar que, mesmo que alguns informantes possam lembrar-se de algum caso no qual algum tenha sido coagido por uma arma durante algum procedimento de cobrana, esse comportamento moralmente condenado pelos traficantes da pista e as armas lhes so artigos dispensveis. Outros mecanismos de controle social atuam na inibio traio da confiana depositada em um agente. Como ento possvel a existncia de um rentvel mercado informal de drogas ilegais caracterizado por uma sociabilidade normalizada? O contraponto com a as redes de trfico que se espalham pelos redutos de moradia de baixa renda no Rio de Janeiro evidencia as diferenas das circunstncias nas quais se desenvolvem estas distintas modalidades de associao para a mesma transgresso. A comparao das dinmicas territorial e organizacional dessas redes fornece elementos importantes para a compreenso dos aspectos que contribuem ou no para a demanda pelas armas e toda a cultura de violncia que se constri em torno delas. possvel destacar tambm, o papel das diferentes relaes com o Estado e da circulao do que Misse (1999) chama de mercadoria poltica aquela cuja produo ou reproduo depende fundamentalmente da combinao de custos e recursos polCarolina Christoph Grillo O morro e a pista DILEMAS 131

ticos, para produzir um valor de troca poltico ou econmico (MISSE,1999) na formao dos modos violentos ou normalizados de interao, na associao para o trfico. Territorialidade As redes do trfico das favelas apostam na visibilidade para facilitar a identificao dos pontos de venda pelos consumidores, que no so apenas conhecidos, mas tambm estranhos que procuram as bocas para comprar drogas, estabelecendo relaes estritamente comerciais. A dimenso territorial ganha, ento, uma enorme importncia, de modo que os traficantes passam a disputar os territrios para a venda entre si e ainda precisam defend-los da polcia que, sabendo localiz-los, cobram o arrego (suborno) para no as invadirem em combate armado. bastante bvia a relao da territorialidade desse trfico com a demanda pelas armas, com a organizao do crime e com a compra de mercadorias polticas. Essa associao tambm se encontra em Barbosa (2005), segundo quem o trfico de drogas, por se tratar de um comrcio, precisa estar plantado num territrio e formar uma freguesia, o que implica em negociar um alvar de funcionamento com a polcia. Zaluar (1994, p. 109) chamou a ateno para o papel do ethos da masculinidade na interpretao da invaso da rea ou vizinhana como uma tentativa de emasculao, articulando o territrio a um valor da cultura viril:
rea invadida rea emasculada. Seus defensores ficam desmoralizados no local. Do mesmo modo que um homem no pode levar uma ofensa sem resposta tem que ter volta , a rea no pode ser pisada ou tomar tiros sem reagir, o que pode provocar as rixas interminveis e um processo interminvel de violncia, ou seja, a guerra.

Ao aplicar a Teoria dos Grafos para modelar as redes e os sistemas do trfico da drogas no Rio de Janeiro, Souza (1996), apesar de privilegiar vrtices diretamente vinculados com as favelas enquanto loci do trfico, inclui tambm (p.51): vrtices representativos de diversos loci do asfalto de onde ope132 DILEMAS O morro e a pista Carolina Christoph Grillo

ram atores sociais envolvidos com o trfico que mantm relaes com (...) pequenos traficantes, usurios-revendedores, etc. utilizando-se de apartamentos de classe mdia, boates, estabelecimentos de ensino etc. O autor ainda faz uma distino entre essas ramificaes e as redes dos grandes atacadistas residentes no asfalto, classificando-as como subssistemas do varejo. No entanto, a pesquisa que realizei com traficantes da pista identifica uma autonomia desses mesmos subssistemas em relao s redes articuladas nas favelas: ao no obedecer a vnculos de subordinao; ao diversificar as fontes para o fornecimento de drogas que, s vezes, excluem tais redes dessa intermediao; ao comercializar paralelamente mercadorias obtidas diretamente atravs do trfico internacional, como no caso das drogas sintticas; e, por fim, chegando a inverter os fluxos comerciais, isto , fornecendo drogas para algumas bocas, em ocasies espordicas, sem que isso os coloque na posio de grandes atacadistas. Por mais fecunda que seja a iniciativa de modelar as redes e os sistemas do trfico de drogas tomando por referncia os territrios nos quais operam os diferentes atores, no se pode perder de vista as diferentes relaes que os traficantes mantm com esses territrios no cotidiano de suas prticas. Nos estudos sobre o varejo de drogas nas favelas do Rio de Janeiro, a dimenso scio-espacial central, de modo que possvel falar (SOUZA, 1995) em territrios contnuos, as favelas, e territrios descontnuos, que abrangeriam vrias favelas como base territorial de um dono. Contudo, as redes do trfico que operam no asfalto apresentam uma dinmica scio-espacial de outra ordem, conferindo novos significados ao territrio e se utilizando de territorialidades alternativas. Os traficantes de classe mdia encontram em seus prprios crculos de amigos e conhecidos os clientes com quem comercializam drogas, tanto para o consumo quanto para a revenda. atravs das relaes de amizade que se estabelecem todos os contatos que viabilizam a circulao desse mercado, configurando redes complexas e interconectadas. Mesmo quando o objetivo da relao estritamente comercial, fora-se alguma amizade, de modo que as partes se conheam melhor, uma vez que eles procuram sempre vender s para os camaradas.
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Tal caracterstica dessa modalidade de trfico permite o funcionamento de uma rede pulverizada, sem que seja preciso estabelecer pontos comerciais reconhecveis e, portanto, no se produz uma necessidade imediata de defesa armada, uma vez que no h um territrio em jogo. Surgem novas territorialidades a serem exploradas, envolvendo desde os espaos em que se do as negociaes, como na internet, em telefonemas, lugares pblicos, academias de ginstica, universidades e residncias particulares, at a noo de clientela, que demarca reas relacionais (no espaciais) fluidas para a atuao dos traficantes, implicando na existncia de uma espcie de diplomacia entre eles. E, segundo Velho (1998, p.14), a invisibilidade dessas redes s possvel mediante o desenvolvimento de complexos sistemas de reconhecimento para garantir alguma segurana de maneira a compor um mapa de classificao das pessoas e lugares, permitindo uma certa flexibilizao de reaes e comportamentos. Em contraste com a postura de enfrentamento e/ou suborno das autoridades, assumida pelos traficantes das favelas em sua relao com a polcia, os traficantes da pista encobrem suas atividades e s recorrem ao suborno quando rodam, isto , quando so pegos em flagrante ou com provas obtidas em escutas telefnicas, durante prolongadas investigaes policiais, normalmente iniciadas a partir de denncias. Colocase ento uma importante contradio a ser aprofundada: os traficantes devem ampliar suas redes relacionais para a comercializao das drogas, lucrando com a sua popularidade, mas eles, ao mesmo tempo, precisam restringir seus contatos para minimizar o risco de serem descobertos. Em uma reportagem de 2007 sobre a priso de um traficante de classe mdia na Barra da Tijuca, surge uma referncia s disputas por territrios para a atuao nesse comrcio ilegal:
Mercado da droga conquistado tapa O delegado explicou que Carlo mantinha a exclusividade na venda de ecstasy em festas, principalmente na Regio da Zona Sul, com uma ttica simples. Acompanhado de amigos fortes como ele, costumava espancar eventuais concorrentes. No raro, o traficante se envolvia em brigas. Ele tem cinco passagens pela polcia por agresso e ameaa. Nas festas que realizava em
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casa, as confuses com vizinhos eram freqentes. tarde no condomnio, os vizinhos chegaram a comemorar a priso. (Jornal O Globo, 09/10/2007)

Apesar de o delegado alegar ter prendido o maior traficante de ecstasy do estado, observei em campo que aqueles responsveis por movimentar grandes quantidades da droga sinttica no as vendem no varejo, como foi dito sobre o acusado em questo, mas procuram restringir suas vendas ao atacado, comercializando-as entre os amigos de confiana, tornando-se cada vez mais discretos e, principalmente, jamais vendendo em festas. Os grandes traficantes desse mercado vendem muito mais do que mil comprimidos por semana, tal como a reportagem sugeriu que o acusado vendesse, e no compram de fornecedores de So Paulo, mas trazem a mercadoria da Europa com as suas prprias mulas (portadores). Tomemos o caso da disputa por territrio. Por mais improvvel que seja a idia de que um comerciante varejista pudesse monopolizar a venda de ecstasy na Barra da Tijuca e na Zona Sul do Rio de Janeiro, sendo este um mercado to amplo, de fato possvel supor que o pitboy do trfico, como foi chamado, de fato brigasse com seus concorrentes. Mas ele no poderia conquistar com isso qualquer exclusividade, pois a noite carioca se multiplica em inmeros espaos, enquanto um simples mortal s consegue ocupar um de cada vez, alm de a venda dessas drogas ocorrer de maneira discreta, para no chamar a ateno dos seguranas dos estabelecimentos e nem dos possveis policiais infiltrados. Sem contar que uma prtica comum entre os consumidores tm sido comprar com antecedncia, para garantir a droga, pois atualmente s os mais inexperientes ou inconseqentes vendem na noitada. Se a disputa territorial violenta era realmente praticada pelo acusado, sendo o seu envolvimento com o trfico ostensivo e exposto ao conhecimento pblico, no parece restar dvida sobre o motivo da sua priso, enquanto tantos outros traficantes passam despercebidos pela vigilncia policial e as festas continuam regadas (bem abastecidas) s drogas sintticas por eles vendidas. conhecida dos traficantes de classe mdia a necessidade de no se explanar, isto , cair em evidncia, para evitar problemas com a polcia. Os casos de
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priso desses jovens costumam resultar da desconsiderao de recomendaes compartilhadas como: limitar os contatos para a negociao das drogas; preservar o prprio local de moradia; manter a boa disposio alheia, no intuito de evitar denncias sobre as suas prticas; etc. Organizao e hierarquia As disputas por territrios, constitudas em guerras de fato, esto intimamente relacionadas com a organizao do movimento sob uma estrutura hierrquica local (em constante reorganizao) na qual os diferentes cargos se distribuem entre os integrantes, distinguindo as funes blicas das comerciais, que precisam estar coordenadas sob uma dominao legtima. Essa dinmica organizacional fundamental para a eficcia do comrcio e para a manuteno do poder sobre o territrio. O movimento no est diretamente subordinado a grupos estratgicos do crime organizado, mas constitui redes horizontais de proteo mtua (MISSE, 2003) para articular a defesa das suas reas de atuao. Segundo Barbosa (2005, p.389):
necessrio lembrar que o que denominamos de comando na verdade um espao de negociao permanente, construdo a partir das cadeias. No possvel pensar em uma organizao hierrquica rgida, com lideranas acima dos donos do morro. Trata-se de grupos que se apresentam como blocos territoriais, onde no existe uma oposio segmentar que possibilite a articulao de um sistema piramidal.

Mesmo os contatos para a obteno de drogas so independentes da participao dos comandos, de modo que cada dono de morro tem o seu matuto (fornecedor) e se no o tiver, depende de outros donos aliados que o fortalecem com a droga (BARBOSA, 1998). Barbosa (2005) coloca que a rede do trfico de drogas composta por diversas articulaes singulares quanto a lucro, riscos e mecanismos de negociao, havendo distintos operadores nos processos de intermediao da droga at se chegar ao comrcio varejista
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que, por sua vez, tambm possui o seu prprio lucro, riscos e mecanismos de negociao. Para Misse (2003, p.6):
A estrutura dos grupos locais do varejo de drogas foi sempre baseada no sistema de consignao de vendas, a partir do dono ou gerente geral. A mercadoria adiantada para os subgerentes e o processo continua at os vendedores diretos, os vapores. O movimento de retorno do pagamento baseado na noo de dvida e deve ser feito, impreterivelmente, dentro de um prazo mnimo. O no-pagamento interpretado como banho (logro, furto ou falha) e o devedor, na primeira reincidncia, morto num ritual pblico de crueldade. O sistema de consignao articula-se, assim, a uma hierarquia mortal de credor/devedor .

Assim como no movimento, a hierarquia do trfico de classe mdia remete a uma espcie de pirmide dos fluxos comerciais, tambm marcada por relaes de crdito. No entanto, os empreendimentos so individuais, havendo associaes pontuais cuja validade dos contratos firmados refere-se apenas s transaes em questo. No h uma hierarquia de mando, mas apenas de status, uma vez que no se configura qualquer organizao em torno de um territrio, mas um emaranhado de relaes, atravs das quais circulam diferentes tipos de capitais, produzindo hierarquias fluidas e dinmicas. Estar por cima ou por baixo diz respeito a uma situao que pode ou no ser alterada pelos rearranjos relacionais contingenciais que caracterizam a instabilidade desse mercado. A amizade ou camaradagem recobre os negcios de modo que, mesmo nas transaes hierarquicamente verticais, est embutida uma perspectiva de cooperao horizontal que evoca valores relativos ajuda recproca e fidelidade palavra empenhada. O aprofundamento da dimenso da circulao da confiana fundamental para a compreenso da viabilidade de uma sociabilidade normalizada nas interaes que compem essas redes do trfico de drogas. Sempre h um risco envolvido e poucas garantias em jogo, uma vez que preciso confiar que a qualidade e a quantidade da mercadoria so as combinadas e, principalmente, confiar que os devedores pagaro seus dbitos, at porque as transaes no atacado costumam ser efetuadas a crdito.
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Ainda assim, o bom funcionamento desse mercado freqentemente atrapalhado pelos problemas de observao dos contratos firmados. Segundo Gambetta (2000), a confiana o nvel particular de probabilidade subjetiva avaliado pelo agente sobre o comportamento do outro. Central para essa noo a incerteza sobre tal comportamento, uma vez que a confiana s relevante se houver uma possibilidade de traio. Nas relaes cooperativas possvel economizar confiana com base nos interesses e nas potenciais retaliaes que tornam a traio uma opo custosa (GAMBETTA, 2000). No caso das redes do trfico de drogas estudadas, em se tratando de um comrcio ilegal, no h qualquer regulamentao das atividades capaz de produzir alguma garantia de que o outro cumprir com a sua parte dos contratos e a ausncia de uma cultura de cobrana violenta nesse meio intensifica essa incerteza. , portanto, limitada a possibilidade de se economizar confiana, fazendo-o apenas com base nos benefcios da troca de interesses e na conscincia de que a traio acarreta custos sociais para o traidor, abalando a sua reputao entre seus pares. Jnior, um dos informantes pertencentes rede social estudada, confessou j ter integrado o movimento em um morro nas imediaes do apartamento de classe mdia onde mora com os seus avs, mas atualmente privilegia-se dos contatos obtidos nessa poca para vender maconha, como autnomo, na pista. Quando perguntado sobre a diferena mais marcante entre essas duas experincias, ele respondeu: L no morro, se o patro falar que um maluco vacilou, tu tem que apagar o cara e isso a. Mas agora tem um cara a me devendo mil e quinhentos h meses, um outro a tambm no erro. O que que eu vou fazer, sair matando? Esse discurso aponta para o papel exercido pela hierarquia de mando na construo dos modos violentos de sociabilidade. O carter individual dos empreendimentos nas redes do asfalto isola e desorganiza os traficantes, dificultando o uso da violncia pela ausncia do respaldo de um grupo, gangue ou quadrilha. As formas de organizao desse trfico parecem determinantes na manuteno de uma sociabilidade normalizada, uma vez que qualquer atitude violenta parte de um indivduo que dever responsabilizar-se sozinho por
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seus atos. Mesmo que exista a vontade de realizar um acerto de contas violento quando se leva uma volta, falta a disposio para faz-lo. Tendo em vista essas consideraes, possvel enquadrar os trficos do morro e da pista, respectivamente, nos modelos propostos para dar conta das diferentes formas emergentes de distribuio do crack por Jonhson, Hamide e Sanabria (1992). Os autores distinguem entre modelo empresarial (business model), caracterizado por uma estrutura hierarquicamente estratificada, por relaes empregador-empregado, verticalidade dos fluxos de capital, distribuio dos territrios para a atuao e fixidez dos preos para a venda; e o modelo freelance, no qual os atores cooperam voluntariamente e se associam em transaes pontuais, cujos termos do acerto so negociados entre as partes, podendo ou no se estender por relaes comerciais mais regulares, havendo uma ampla diversificao de parceiros e as drogas sendo pagas vista ou em consignao, dependendo das circunstncias. Devo ressaltar que tais categorias no abarcam algumas diversificaes intermedirias das redes do narcotrfico no Rio de Janeiro. Barbosa (2005) assinala a existncia das esticas, isto , pontos de venda no asfalto subordinados aos grupos que dominam o trfico nos morros, que no devem ser confundidos com aqueles que tambm trabalham no asfalto, porm o fazem por encomenda telefnica. Tais articulaes hbridas aumentam a dificuldade na realizao de um recorte suficientemente preciso para demarcar o que pode ser compreendido no trfico da pista. No entanto, as redes que estudei aproximam-se mais das tais encomendas telefnicas do que das esticas, embora adquiram feies bem mais complexas e passem a compor uma modalidade especfica do mercado ilegal de drogas com extenses do varejo ao atacado e com uma ampla variedade de drogas sendo comercializadas. Outros dois conceitos que procedem no contraste entre o mercado ilegal de drogas do morro e o da pista so os de crime em organizao (crime in organization) e crime em associao (crime in association), ambos de Ruggiero e South (1995), que remetem a dois modos de trabalho criminoso (criminal work) e a dois modelos de organizao e estrutura. No primeiro, aplicvel ao trfico do morro, prevalece uma estrutura vertical e hierrquica de estilo indusCarolina Christoph Grillo O morro e a pista DILEMAS 139

trial ou corporativo, no qual ocorre a venda da fora de trabalho criminosa (criminal labour). J o conceito de crime em associao sintetiza a estrutura predominantemente horizontal e no hierrquica encontrada no trfico da pista, implicando numa diviso de trabalho tcnica e no social, fundada na distribuio das habilidades individuais. Os modelos propostos acima, apesar de no apresentarem correspondncias precisas em relao configurao observvel das formas aqui comparadas desse empreendimento ilegal, ajudam-nos a visualizar melhor as suas diferenas. Essas distintas dinmicas organizacionais contribuem para o abismo entre os modos de sociabilidade encontrados nessas duas modalidades da prtica do trfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro.
5 A rede social estudada s inclui poucos traficantes de cocana em suas margens, apesar de conter diversos usurios. Esses traficantes no se propem a vender essa droga, alegando diversas razes, dentre as quais: o medo de usar demais e se derramar (descapitalizar-se, falir); o problema dos viciados, que ligam durante a madrugada e vivem devendo; o carma que vem com a venda dessa droga. A participao mais recorrente da cocana nas transaes comerciais praticadas pelos traficantes estudados a exportao para a Europa, onde ela vendida, gerando um capital revertido na compra de drogas sintticas e cannabis de alta qualidade a serem importados de volta ao Brasil. Para essa operao, a cocana deve ser pura e, portanto, no comprada nos morros da cidade. Em um caso narrado pelos informantes, um empreendimento dessa ordem resultou em prejuzo, pois a cocana enviada, comprada no morro do Turano (no Rio Comprido, Zona Norte da cidade), no apresentou a qualidade exigida no mercado europeu.

Entre o morro e a pista O morro tem sido a principal fonte (apesar de no ser a nica) para a aquisio da maconha e da cocana5 revendidas na pista, ao passo que as drogas sintticas (ecstasy, MDMA, LSD etc.) e as verses de luxo da cannabis (haxixe, charas, skank, plen) so adquiridas diretamente no mercado internacional de drogas por traficantes de classe mdia e alta, sem passar por qualquer envolvimento com o trfico das favelas. Ainda assim, os atores sociais envolvidos no trfico desses diferentes tipos de droga so muitas vezes os mesmos, de modo que estas ramificaes dos fluxos comerciais no compem redes separadas. Na rede social estudada, praticamente todos os traficantes j comercializaram drogas paralelamente por essas duas vias, o que no a regra, havendo outros que se especializam. Mesmo o abastecimento da maconha exclui, com freqncia, as redes operantes nas aglomeraes de moradia de baixa renda, efetuando-se por meio dos contatos entre os traficantes de classe mdia e atacadistas de outros estados. Ao longo da pesquisa foram relatadas algumas conexes dessa ordem, mas ainda assim a maconha obtida no atacado dos pontos de venda de drogas implantados nas favelas a que predomina no trfico do asfalto no Rio de Janeiro. Em algumas das trajetrias colhidas em campo, o contato e o contexto (estima) de que desfrutavam junto aos
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traficantes do morro foi o que possibilitou o incio de uma carreira no trfico de drogas. Luis Antnio, que de classe mdia e morador do Rio Comprido, contou que, quando adolescente, apesar de nunca ter formado (integrado) no movimento, andava com os moleques de l e que j at tinha segurado fuzil algumas vezes, para no ficar marcando bobeira na boca, mas que, por sorte, nunca acontecera nenhum imprevisto enquanto ele estava l, seno ele teria que trocar tiro. Quando estudou Comunicao numa faculdade particular colada ao morro que freqentava, Luis Antnio e seu amigo Rodrigo costumavam tirar onda (gabar-se) com seus colegas de turma do contexto que tinham no Turano e se sentiam to superiores por isso que no se integraram bem e acabaram por abandonar o curso. Jnior, Rodrigo, Luis Antnio e outros rapazes ligados rede de relaes estudada privilegiavam-se dos bons contatos em alguns morros para crescer no trfico, pegando muitos quilos a crdito e os revendendo para outros traficantes. O status adquirido por conta desses contatos, inclusive, colocou-os em boa posio quando passaram a freqentar festas rave e vender drogas sintticas. No entanto, essas interaes de traficantes da pista e do morro no ocorrem sempre de maneira to tranqila. Os atores nem sempre se conhecem bem e, mesmo que sejam camaradas, no movimento impera a desconfiana, de maneira que as transaes ocorrem sob a insegurana e o receio dos playboys, o que se intensifica com os momentos de tenso experimentados quando eles esto na boca, como no seguinte caso narrado em campo:
Joo vinha pegando planta em bocas prximas estrada Baro de Petrpolis, no Rio Comprido, utilizando-se do contexto de seus amigos Jnior e Mocot. Cada vez ele era levado para um movimento diferente e acabou conhecendo Bebeto, gerente da maconha nos Prazeres. Este se interessou por uma balana digital de alta preciso de Joo, que concordou em formar (trocar o objeto por droga). No acordo faltaram R$50 que Joo deveria pagar depois. Na semana seguinte, ele foi junto com Bernardo renovar a carga com Bebeto e no o encontrou. Enquanto esperava a planta, percebeu que um maluco, que nem era da boca,
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mas parecia ter alguma relao, comeou a reclamar com o vapor sobre a presena deles e este o dispensava, dizendo: Vai l ento falar com os atividade! Vai! Tenso com a situao, Joo resolveu estabelecer uma relao de confiana com o vapor e lhe entregou R$50, dizendo: Quando voc encontrar o Bebeto, entrega isso pra ele e diz que foi o playboy da balana que deixou, pelo que ficou faltando. Ele vai saber quem eu sou. O vapor aceitou o dinheiro e a tenso se dissolveu. Quando voltaram alguns dias depois, Joo encontrou Bebeto e comentou que confiara os R$50 a um vapor. O gerente falou que no tinha recebido nada e mandou chamar o tal vapor para coloc-lo diante de Joo. Nesse meio tempo Joo se desesperou, pois agora seria a palavra dele contra a do vapor, ou seja, estava numa fria. No entanto, o vapor confirmou ter recebido o dinheiro e jurou tlo entregue a Bebeto que acabou se lembrando de t-lo recebido. Apesar da desconfiana mtua que permeia esse trnsito entre o morro e o asfalto, entre o traficante pobre e o de classe mdia, em alguns casos desenvolve-se algum nvel de confiana ainda que respaldado na ameaa potencial de uso da violncia produzindo relaes cooperativas e de crdito. Como Joo e Bernardo estavam renovando a compra de mercadorias com freqncia, o gerente passou a deixar parte da planta no fio (crdito), empurrando mais do que eles tinham em dinheiro para pagar e trocando os nmeros de telefone celular. Joo comentou que no gostava de saber que o seu nmero estava na agenda telefnica de Bebeto (gerente), afinal vai que o cara roda, ou t grampeado... Certa vez, perguntei por que Bebeto confiava neles e Joo respondeu: Se bobear mais fcil ele me deixar dever R$300 do que deixar um fodido do morro dever R$10, porque ele t ligado que eu no vou querer ficar devendo pra eles, no. Tem o Jnior... D pra eles correrem atrs. Eles sabem que nem que eu me enrole, tenho de onde tirar pra pagar. Agora, o morador que vai e se enrola pode no ter mesmo como pagar, a eles tem que apagar o cara pra manter a moral.

A competio
Apesar de a principal fonte de obteno da maconha vendida na pista serem as redes que operam nas favelas da cidade, estas, por sua vez, no so integradas, de maneira que o funcionamen142 DILEMAS O morro e a pista Carolina Christoph Grillo

to de cada movimento independente dos demais. Portanto, no prudente que o traficante da pista fique explanando (tornando visveis) as suas vendas no varejo nas imediaes de um movimento que no seja o mesmo em que ele comprou a droga. Nesse caso, no faz diferena se a planta foi adquirida em um morro ou com um atacadista do asfalto, pois essa competio no ser bem interpretada. No comum que ocorram problemas como esse, pois a segregao social costuma alienar os traficantes do morro de informaes desse tipo. Contudo, houve um caso narrado no qual essa questo aparece. Cad ainda morava com os seus pais no Mier, bairro da Zona Norte da cidade, e vendia maconha para os seus amigos e conhecidos da rea. Os metros [quilogramas de maconha prensada] que movimentava eram comprados em contatos da pista ou, por vezes, no Turano, no costumando manter relaes comerciais nos morros prximos sua casa. Certa vez, ele apareceu desesperado e dizendo que no poderia voltar para a casa de seus pais por algum tempo, pois os caras do movimento l da rea haviam matado um de seus clientes que comprava pedaos maiores para a revenda no varejo. P, o maluco era tranqilo, morava com os coroas dele, j meio velhos, vendia pouquinho, s pra fazer um dinheirinho e tirar o de fumar. Nem explanava tanto. Mas sei l o que foi... Acho que ele tava vendendo pedao pequeno e o movimento era no final da rua dele. Os caras ficaram sabendo e acharam que tinham que apagar o cara. Agora eu t bolado, por que era eu que vendia pra ele, n...

Essa foi a nica histria desse tipo que chegou a meus ouvidos. Porm, suponho que os traficantes da pista, especialmente os que moram bem prximos a uma boca, sejam cuidadosos para evitar tais situaes. Uma das razes pelas quais esses problemas no se repetem a diferena entre as quantidades vendidas no varejo. No movimento costumam ser comercializadas trouxinhas de R$ 2, R$ 5, R$ 10 e no mximo de R$15, contendo pesagens incertas de farelos de maconha prensada, isto , medidas no olho e enroladas em pedaos de plstico com a quantidade que se supe valer o preo cobrado. J nas redes estudadas, no se vende um peso inferior a 25g, que custa entre R$50 e R$70, dependendo da qualidade ou da relao entre oferta e procura. Os pedaos fornecidos no varejo, que tambm podem ser de 50g, custanCarolina Christoph Grillo O morro e a pista DILEMAS 143

6 O porte de diversas unidades embaladas separadamente pode enquadrar o consumidor como traficante. Recomenda-se ao usurio, portanto, abrir as trouxinhas e as juntar numa s, o que nem sempre feito, dada a tenso envolvida no processo de compra e porte da droga sob tais circunstncias. 7 Ver Misse (1999) sobre a histria social do banditismo nos morros do Rio de Janeiro e a corrupo, que afetam, nesse caso, os argumentos de Reuter.

do o dobro, vm cortados em uma nica pedra (no mximo com uma lasquinha para compensar um corte impreciso) e embalados em um filme plstico. Desta maneira, os clientes que sustentam essas distintas redes do mercado ilegal de drogas no so exatamente os mesmos, pois o consumidor que compra peso e possui contatos na classe mdia o usurio de mesma classe que cultiva o hbito de fumar maconha com bastante freqncia. Aquele que vai at o movimento, ou morador da favela ou um consumidor mais espordico da droga, pois considera arriscado sair de l com muitas mutucas6, devido ao sufoco promovido pala polcia nas sadas dos morros e, portanto, ainda mais incmodo ter que voltar sempre. Os clientes dos traficantes da pista s recorrem s bocas de fumo quando h uma seca, isto , uma interrupo temporria no fornecimento de maconha com os contatos conhecidos. Reuter (1983) demonstrou, por meio da anlise de distintos mercados ilegais, que os custos resultantes do uso da violncia para a supresso da competio excedem os benefcios do engajamento em prticas monopolistas fundadas na coero pela fora, apresentando dados que contrariam as especulaes oficiais de que os mercados ilegais tendem naturalmente a essas disputas violentas (REUTER, 1983). No foram observadas quaisquer tentativas de manuteno de uma hegemonia sobre um territrio nas redes do trfico da pista, salvo na reportagem de jornal apresentada na sesso 3 deste artigo. Mesmo nas relaes entre a pista e o morro, a competio no parece ser importante, sendo privilegiada a cooperao entre as redes concorrentes, promovendo lucros em vez de prejuzos. Se de fato nas redes de trfico operantes nas favelas ocorrem freqentes disputas por territrios para a implantao dos pontos de venda de drogas e os traficantes se utilizam de seu poder blico para tais fins, isso se deve a uma especificidade histrica e cultural dessas articulaes do mercado ilegal de drogas nas aglomeraes de moradia de baixa renda no Rio de Janeiro7. Como o trfico da pista opera sem uma fixao espacial definida e, ainda, sobre o asfalto, que alheio s tais disputas territoriais travadas, mantido um distanciamento conveniente e a convivncia pacfica entre essas distintas modalidades do narcomercado costuma ser preservada.
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Concluso Ainda que as redes do trfico de drogas tratadas no presente artigo apresentem-se de maneira distinta no que se refere a sua implantao espacial e a suas estruturas hierrquica e organizacional, constituindo-se atravs de sociabilidades particulares a cada uma dessas modalidades do comrcio em questo, alguns pontos de contato significativos permitem conceber o trfico de drogas ilcitas como um grande conjunto de redes que engloba os diferentes modos de atuao no mercado. Foi observada a interlocuo entre os traficantes da pista e do morro, demonstrando a complementaridade que se constitui, apesar da concorrncia no mercado. A pesquisa considerada delimita o seu objeto, isto , o trfico de drogas da pista, praticado principalmente por jovens de classe mdia, pela sociabilidade que o distingue das demais modalidades desse mercado. Diante da constatao de que o emprego da violncia evitado e condenado nessa vertente do trfico, surgiu a necessidade de se compreender as circunstncias sob as quais isso possvel e que se evidenciam quando comparadas as dinmicas das redes do trfico da pista e do morro. Tratando-se aquele de um comrcio ilegal operado atravs de redes relacionais pulverizadas, sem uma demarcao territorial reconhecvel e caracterizado por uma postura de encobrimento das atividades ilcitas, a relao com a sociedade no passa pela subjetivao de uma identidade criminosa, tal como entre os bandidos do movimento, mas pela manipulao da informao social sobre o estigma que os torna desacreditveis (GOFFMAN, 1988) ou sobre o seu comportamento secretamente desviante (BECKER, 1991), e a recusa ao uso das armas tornase uma estratgia de distino. Os indivduos estudados no aceitam a categoria traficante para design-los, apesar de se reconhecerem enquanto praticantes de atividades comerciais classificveis como trfico de entorpecentes. A rejeio desse rtulo se d pela associao miditica da palavra traficante com o bandido do morro, do qual eles fazem questo de se distinguir. Os comerciantes de drogas que operam no asfalto so beneficiados em relao aos seus equivalentes pobres, por se privilegiarem da possibilidade de no se submeter aos proCarolina Christoph Grillo O morro e a pista DILEMAS 145

cessos da sujeio criminal (MISSE, 1999). Misse desenvolve esse conceito de modo a abranger tanto os processos de criminalizao preventiva dos tipos sociais potencialmente criminosos, quanto os de subjetivao dos rtulos que lhes so atribudos. Os traficantes que estudei incorporam talvez um estigma que os desacredita junto queles que tomam conhecimento de suas prticas. Porm, lhes reservada a possibilidade de abandono desse rtulo, oportunidade essa que no se quer sacrificar atravs da posse de armas e da identificao com prticas violentas que lhes arrancariam da classe dos to somente passadores de drogas. Em um artigo no Jornal do Brasil, o desembargador Siro Darlan comenta sobre a facilidade com que Joo Guilherme Estrela, ex-traficante de drogas de classe mdia, teve a sua regenerao publicamente aceita, ao passo que Tuchinha, ex-traficante do morro, jamais deixou de ser percebido como um bandido, apesar do empenho devotado nessa empreitada8. O repdio ao emprego da fora at mesmo para a cobrana dos dbitos envolve, portanto, um clculo de custo e benefcio que lhes acessvel, dadas as circunstncias privilegiadas sob as quais praticam o trfico de drogas. A desigualdade que persiste na sociedade brasileira reproduz-se tambm no narcomercado.

8 Ver DARLAN, Ciro, Meu nome no Tuchinha, Jornal do Brasil, 10/02/2008

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