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Ficcoesmodernistas Almada Negreiros

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IDENTIDADE

SRIE CULTURA PORTUGUESA

FICES MODERNISTAS:
Um estudo da obra em prosa de Jos de Almada Negreiros 1915-1925

ELLEN W.SAPEGA

FICES MODERNISTAS: Um estudo da obra em prosa de Jos de Almada Negreiros 1915-1925

MINISTRIO DA EDUCAO
1992

ISBN 972 - 566 -170 2

Na sua forma inicial, este ensaio foi apresentado como tese de doutoramento em Literatura Portuguesa em Vanderbilt University (E.U.A.). A recolha da matria includa nele resulta, em grande parte, das investigaes que a autora fez em Portugal, estas sendo patrocinadas pela Fulbright-Hays Foundation e pela Fundao Calouste Gulbenkian. No ensejo, a autora agradece o apoio recebido dos indivduos ligados a estas instituies, assim como do orientador da tese, o Professor Doutor Alexandrino. E. Severino e dos muitos outros que constribuiram formulao das ideias nela contidas, entre eles, o Arquitecto Jos de Almada Negreiros e a sua famlia, o Pintor Lima de Freitas, o Professor Doutor Fbio Lucas, e o Doutor Laureano Silveira.

FICES MODERNISTAS: Um estudo da obra em prosa de Jos de Almada Negreiros 1915-1925

INSTITUTO DE CULTURA E LNGUA PORTUGUESA

SAPEGA, Ellen W. Fices modernistas: um estudo da obra em prosa de Jos de Almada Negreiros 1915-1925/Ellen W. Sapega. Lisboa: Ministrio da Educao, Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa, 1992 140 p., 16 x 23 cm (Identidade: cultura portuguesa) Crtica Literria Cultura Literatura Almada Negreiros

Ttulo FICES MODERNISTAS: Um estudo da obra em prosa de Jos de Almada Negreiros 1915-1925 1. edio 1992 INSTITUTO DE CULTURA E LNGUA PORTUGUESA MINISTRIO DA EDUCAO E CULTURA Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa Diviso de Publicaes Praa do Prncipe Real, 14, 1. 1200 Lisboa Direitos de traduo, reproduo e adaptao reservados para todos os pases Tiragem 3 000 exemplares Capa Tcnica mista sobre papel de Almada Negreiros, 1938. Dim. 65 x 50 cm. Coleco Particular Composio e impresso Grfica Maiadouro Rua Padre Lus Campos, 686 4470 MAIA
Depsito legal n. 53 305/92 ISSN 0871-4428

NDICE
Introduo.........................................................................................................................7 Captulo I Os limites da narrativa almadiana: da influncia simbolista em Frisos experincia futurista de Saltimbancos .................................................................14 II Primeiras tentativas sensacionistas: o percurso de aprendizagem seguido pelo narrador n A Engomadeira .........................................................................35 III A transitividade do sujeito literrio: K4 O Quadrado Azul como o culminar do projecto sensacionista......................................................................55 IV A ingenuidade entendida como processo didctico: o conto jornalstico dos anos 20 ..........................................................................................................72 V Nome de Guerra: experincia nica e ltima no projecto da fico Almadiana ...........................................................................................................90 VI A Fico da Ingenuidade depois de Nome de Guerra ...................................111 Bibliografia...................................................................................................................123

INTRODUO
AS MARCAS DA FICO ALMADIANA No mbito da cultura portuguesa, Jos de Almada Negreiros foi, sem dvida, uma das figuras mais dinmicas e criativas do sculo XX. Quando da sua morte em 1970, Almada deixou uma vasta obra cuja importncia e originalidade testemunham mais de cinco dcadas de produo artstica. Alm disso, o pintor dos grandes murais das gares martimas de Alcntara e da Rocha do Conde de bidos tambm lembrado como um provocateur, um homem que realizou uma srie de intervenes pblicas caracterizadas, sobretudo, pela sua vontade de chocar os gostos pacatos da burguesia da sua poca, fazendo com que a sociedade portuguesa despertasse para as realidades scio-culturais dos tempos modernos. possvel, de facto, caracterizar toda a vida de Jos de Almada Negreiros como vivida sob o signo de uma vontade incansvel de renovar o discurso artstico do seu pas. luz das suas muitas e variadas actividades ao longo do sculo, torna-se claro que Almada visou sempre ocupar um lugar de preeminncia nos debates culturais do dia, este lugar representando, para ele, um espao onde pudesse comunicar a sua viso extremamente pessoal daquilo em que consistia ser um portugus a viver no sculo XX. Hoje, com a perspectiva de mais de vinte anos sobre a morte de Almada Negreiros, podemos afirmar que os seus esforos no foram em vo, pois os seus quadros e murais so considerados entre os mais importantes produzidos neste sculo em Portugal e Almada, depois de Fernando Pessoa, uma das mais conhecidas figuras culturais do modernismo portugus. luz da sua importncia cultural, no surpreende o facto de a obra plstica almadiana ter sido o tema de vrias exposies nacionais e internacionais e a sua carreira artstica cuidadosamente tratada sob a forma de uma biografia. 1 curioso notar, contudo, a relativa escassez de monografias crticas dedicadas produo
Entre as mais importantes exposies da obra plstica de Almada Negreiros, assinalam-se a exposio da Fundacin Juan March em Madrid, (Dezembro de 1983 a Janeiro, de 1984) e uma importante exposio montada pela Fundao Calouste Gulbenkian (Julho a Outubro de 1984). A biografia, at ao momento, definitiva de Almada Negreiros foi publicada em 1974 por Jos Augusto Frana (Almada. O Portugus sem Mestre. Lisboa: Estudos Cor, 1974; rpt. in Amadeo e Almada. Lisboa: Livraria Bertrand, 1983.)
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literria do autor de Nome de Guerra. Deve-se isto, em parte, ao facto de Almada ser conhecido, hoje em dia, principalmente pela sua obra plstica ou pelas suas manisfestaes pblicas no admira assim que a prosa e a poesia do Poeta dOrpheu, Futurista, e Tudo, sejam, regra geral, relegadas para as margens da histria literria ou consideradas como secundrias. De facto, no ser demais afirmar a existncia de uma tendncia geral de tratar esta obra como uma espcie de precursor da verdadeira produo plstica do autor. Se prestarmos ateno, no entanto, vida e obra de Almada Negreiros, torna-se evidente que o homem, to conhecido hoje em dia como pintor e desenhador, fez a sua estreia na vida artstica principalmente como escritor. Sendo j reconhecida sua colaborao literria no primeiro e no terceiro nmeros da revista Orpheu, assim como a sua extensa actividade junto da revista Portugal Futurista, notemos que, para alm desta participao nas principais revistas modernistas do dia, Almada tambm publicou em separata as novelas A Engomadeira e K4 O Quadrado Azul nos anos imediatamente anteriores sua partida para Paris em 1919. De volta a Portugal em 1920, Almada comeou, no ano seguinte, a assinar uma crnica regular nas pginas do Dirio de Lisboa, colaborou frequentemente na revista Contempornea e publicou o poema em prosa A Inveno do Dia Claro pela editora Olissipo de Fernando Pessoa. Em 1925, Almada escreveu o romance Nome de Guerra, que s seria publicado mais de dez anos depois, e a terminou, no fundamental, toda a produo literria almadiana.2 Perante este diverso corpus de textos literrios, natural que surja uma srie de perguntas difceis de solucionar para quem pretenda investigar a vida e obra de Almada Negreiros. Aceite o seu interesse inicial no campo das letras, o que levou o autor de Nome de Guerra a deixar to abruptamente a escrita logo depois de ter elaborado o seu primeiro, e nico, romance? Coloca-se tambm outra pergunta acerca da influncia que este aparente abandono da palavra literria teve sobre a sua subsequente produo plstica. Para responder a estas e outras perguntas, imprescindvel reconhecer, desde j, que a obra escrita de Almada Negreiros precede e, da, serve como espcie de pr-texto dos seus j famosos quadros e murais, a maior parte deles produzida depois de 1925. Levando em conta a primazia cronolgica desta escrita almadiana, nossa inteno, neste estudo, examinar os textos escritos nos primeiros anos da sua actividade criativa para isolar e identificar as razes histricas e estticas do projecto artstico de Jos de Almada Negreiros.

Alm destes textos publicados em vida por Almada, notemos a possvel existncia de alguns inditos dele que aparecem citados nas tbuas bibliogrficas dA Engomadeira e K4 O Quadrado Azul: O Moinho, 23, 2. Andar, A Civilizada (dramas); O Mendes (novela); Jos (romance).

Optando principalmente pela anlise dos textos escritos em prosa, veremos que, desde o seu incio, a obra de Almada Negreiros consiste, essencialmente, numa srie de tentativas para alcanar uma nova linguagem capaz de descrever, em termos adequados, as mltiplas contradies que tinham que ser enfrentadas pelo homem do sculo XX. Almada foi, com efeito, o primeiro escritor portugus deste sculo a ousar incorporar, na fico, uma viso narrativa caracterstica da modernidade, na qual se destacam as ironias implcitas num mundo que se apresenta ao artista como radicalmente fragmentado. Por meio das suas vrias experincias com a forma narrativa, pelo continuado questionamento dos problemas de enredo, de personagem e de descrio mimtica, Jos Almada Negreiros deve ser reconhecido, de facto, como a figura que mais contribuiu para a criao de um discurso abertamente vanguardista no campo da fico portuguesa. Alm disso, imprescindvel notar que os textos almadianos formam um corpus ficcional coerente e vlido, no sentido em que oferecem ao leitor uma obra rica em histrias e imagens que nos cativam e que permanecem no nosso imaginrio. Reconhecendo as fortes tendncias vanguardistas evidentes em toda a obra escrita de Almada Negreiros, grande parte do presente estudo consiste num esforo para avaliar como nela transparecem as vrias teorias vanguardistas relacionadas com o problema da subjectividade. Com efeito, possvel entender o surgir dos novos meios de comunicao praticados pelos artistas e escritores modernistas como resultado da procura de uma voz ou de uma viso potica, capaz de comunicar uma nova relao entre o sujeito e a experincia do real. 3 Assim, ao analisar textos almadianos construdos a partir de uma supresso total da subjectividade autorial, assim como casos especficos nos quais o eu do autor domina e engloba todo o processo narrativo, nossa esperana determinar os sucessivos momentos de um processo de formao de uma subjectividade pessoal almadiana facilmente identicvel. nossa opinio, de facto, ser esta a subjectividade que acabou, depois de 1925, por determinar a vida e dominar a obra de Almada Negreiros. Para levar a cabo este tipo de esforo crtico vimo-nos obrigados, antes de mais, a avaliar um grande nmero de factores histricos e estticos que informaram a produo textual do autor estudado. Deste modo, o primeiro captulo do estudo consiste numa tentativa de inserir a obra em prosa de Almada
Este fenmeno, de carcter fundamentalmente europeu, tratado em vrios livros referidos na bibliografia deste estudo, entre os quais devem ser assinalados Peter Brger, A Theory of the Avante-Garde, trans. Michael Shaw (Minneapolis: Univ. of Minnesota Press, 1984) e Stephen Kern, The Culture of Time and Space: 1880-1918, (Cambridge: Harvard University Press, 1983). Para um tratamento da experincia nacional portuguesa durante o perodo da vida de Almada Negreiros, veja-se Joel Serro, Almada e a sua poca, in Almada, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 31-39.
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Negreiros num contexto global modernista, avaliando-a luz das j conhecidas influncias europeias, que so, por um lado, a herana simbolista e, por outro, o entusiasmo geral sentido face ao gesto libertador da experincia futurista. A confrontao textual entre os curtos poemas em prosa ps-simbolistas que formam o conjunto intitulado Frisos, publicado em Orpheu 1, e a experincia radical de escrever segundo as regras futuristas da palavra em liberdade que esto patentes na novela Saltimbancos, publicada em Portugal Futurista, servirnos- para revelar as essenciais insuficincias formais de ambos os modos de organizar um texto. Torna-se evidente, assim, a necessidade autorial de descobrir um espao como que intermedirio, situado entre estes dois conceitos da subjectividade, no interior do qual Almada trabalhar a forma e a funo narrativas do seu eu literrio. Uma vez estabelecidos os limites da subjectividade no interior dos quais se inscreve a fico experimental almadiana, passamos, nos captulos II e III para a leitura da A Engomadeira e K4 O Quadrado Azul, as duas novelas sensacionistas escritas por Almada entre 1915-1916. nossa convico que estas duas novelas so essencialmente incompreensveis se no analisadas em termos da sua estrutura e do pensamento esttico que as determina e, por estas razes, as vrias teorias de Fernando Pessoa que informam a prtica sensacionista so citadas extensivamente nestes captulos. Alm de ilustrar a grande influncia que o autor dA Passagem das Horas teve nos primeiros escritos almadianos, este mtodo de abordagem textual serve tambm para reinserir estas novelas sensacionistas no contexto esttico no qual foram escritas. Deste modo, ser preciso aproximar estes dois textos individualmente, como exemplos de uma fico narrativa independente, porque s por meio de uma abordagem pormenorizada das vrias estratgias narrativas experimentadas NA Engomadeira e K4 O Quadrado Azul, se pode compreender as audazes experincias formais que as caracterizam. Uma vez reconhecidas as propostas tericas que contribuem para a instabilidade formal de A Engomadeira, este mesmo elemento passa a constituir um ncleo de grande interesse no mbito deste estudo. Com, efeito, medida que testemunhamos uma sucessiva desmontagem do conceito da subjectividade narrativa nesta novela, assistimos, simultaneamente, ao surgir de um eu espontaneamente autntico, o qual optamos por designar por o eu sensacionista almadiano. Logo a seguir, em K4 O Quadrado Azul, as possibilidades de este mesmo eu poder referir o inefvel so ento exploradas at ao ponto do autor se encontrar beira do silncio que , no fim de contas, a descoberta e a contemplao do abstracto. As mltiplas lies aprendidas durante a sua fase sensacionista contribuem, sem dvida, para a formao terica do novo rumo esttico seguido por Almada a partir dos anos 20. Assim, na segunda parte do nosso estudo, quando
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examinarmos a escrita que geralmente tem sido denominada pelo termo ingenuidade, o nosso tratamento dos contos publicados por Almada em vrios jornais no incio da dcada dos 20 e de Nome de Guerra, romance escrito em 1925, remeter-nos-, vrias vezes, ao perodo inicial da experimentao sensacionista. Em ambos os casos, parece-nos que o autor est a escrever uma espcie de resposta s perguntas levantadas em A Engomadeira e K4 O Quadrado Azul. Com efeito, em contas como O Cgado e O Homem que No Sabe Escrever manifestam-se as primeiras intuies autoriais da ingenuidade como possvel soluo para os problemas narrativos levantados pela teoria sensacionista. A partir de uma leitura de O Cgado que se aproxima da fbula como alegoria de Almada ficcionista, veremos, no quarto captulo, que este conto jornalstico de Almada Negreiros tambm marca o incio de uma nova fase da sua fico. Com efeito, pelo simples facto de a histria do animal ser j ironicamente contada por um narrador omnisciente, opera-se uma deslocao autorial para o exterior do enredo que possibilita, na prpria linha narrativa, um acto de avaliao final, sendo esta uma qualidade que antes faltava na prosa sensacionista almadiana. Em conjunto com esta nova perspectiva, os contos jornalsticos da dcada de vinte caracterizam-se por outras transformaes, tanto de temtica como de tom, que parecem surgir em consequncia da mudana do pblico leitor escolhido pelo autor. Aparecendo, sem excepo, nas pginas de jornais e revistas de grande circulao, o conto almadiano estrutura-se em torno de um estilo didctico, cujo fim o de mostrar ao leitor o imperativo de reinventar a inocncia. Esta contnua procura da inocncia leva o autor construo de uma cuidadosamente controlada viso artstica do mundo, que, em nossa opinio, serve como fundamento s famosas teorias da ingenuidade que Almada comea a elaborar nessa mesma altura. Entre os mais conhecidos textos ingnuos almadianos contam-se, sem dvida, os poemas Histoire du Portugal par Coeur e A Inveno do Dia Claro, ambos de extrema importncia para a nossa leitura da fico almadiana. Se o primeiro, escrito em Paris em 1919, serve como prenncio demanda das origens evidente nos contos jornalsticos, A Inveno do Dia Claro apresenta uma viso madura do universo ingnuo do autor. Este universo ser tratado, logo a seguir, no romance Nome de Guerra, a anlise do qual constitui o quinto e ltimo captulo do nosso estudo. Em Nome de Guerra, h, de facto, um regresso a alguns dos elementos essenciais que deram forma ao enredo de A Engomadeira mas, mais uma vez, o emprego de uma tcnica narrativa diferente faz com que este romance tenha uma singeleza de propsito que o afasta do universo mltiplo explorado na
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novela da dcada anterior. Com efeito, medida que narrador se empenha em contar a iniciao do seu protagonista na ordem da ingenuidade, Nome de Guerra narra de uma vez por todas as histrias que tanto obcecaram Almada ao longo da sua carreira de ficcionista. Contudo, junto com as vrias situaes e imagens incorporadas das anteriores experincias narrativas do autor, surge, neste romance, um novo dilema autorial intimamente ligado problemtica da intransmissibilidade de ser que, em ltima anlise, leva a uma confuso dos estatutos de narrador e de personagem. Parece-nos, finalmente, que o reconhecimento autorial deste impasse narrativo contribui, em grande parte, para a sensao de finalidade patente em Nome de Guerra, alm de fazer com que este romance encapsule, de certo modo, todo o projecto de Almada Negreiros ficcionista. interessante notar, portanto, que o esforo literrio almadiano chega ao seu fim apenas depois de ter completado a reavaliao do seu percurso de autor. Da sermos levados a concluir que as possibilidades narrativas e o conceito de fico patentes na obra em prosa de Almada s podem ser resumidos em termos de uma busca que, uma vez completa, no precisa de ser repetida ou reelaborada pela palavra escrita. Deve-se isto, em parte, ao facto de o projecto almadiano assumir os contornos de um projecto fictcio maior que se estende, j dos textos em questo, at vrios outros elementos da produo artstica almadiana. Como o caso em qualquer leitura efectuada a partir de uma definida perspectiva crtica, seleccionmos para este estudo os textos que mais nos pareciam falar do projecto almadiano e notmos que a nossa seleco, de maneira alguma esgota a produo literria do autor. Verificar-se-, especialmente, a ausncia de quaisquer referncias obra dramtica de Almada Negreiros, assim como poucas sua vasta produo ensastica. A deciso de deixar margem a primeira surge de um desejo de nos limitarmos a uma pesquisa concentrada no conceito de fico tal como ilustrado na prosa almadiana; por conseguinte, exclumos o drama devido aos problemas que se poderiam levantar face a um outro gnero que se estrutura a partir de uma orientao textual diferente. No caso dos ensaios, de recordar que todos pertencem a um perodo posterior quele que constitui o ncleo deste estudo, sendo tratados, por isso, apenas na concluso. Quanto escolha dos textos que entram na nossa anlise de uma maneira oblqua, a maioria deles consistindo nos poemas e manifestos escritos por Almada no perodo compreendido na nossa pesquisa, a poesia seleccionada em cada captulo revela a nossa inteno consciente de nos servirmos dos textos contemporneos fico que poderiam facilitar a nossa leitura do momento. Foi pura coincidncia a maioria dos poemas citados ser, essencialmente, poemas narrativos ou dialgicos, mas este facto, uma vez reconhecido, levanta um problema essencial da produo potica almadiana: medida que fomos
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elaborando este estudo, tornou-se-nos mais e mais evidente que a maior parte da obra de Almada, ainda que concebida sob outras formas, se relaciona com as propostas narrativas que definimos aqui. nossa opinio, de facto, que toda a obra almadiana essencialmente narrativa, isto , que surge de um forte impulso a fixar ambientes e de contar histrias. Um fim desse acto de contar histrias o de iluminar para o leitor/espectador vrios novos contornos da experincia. Deste modo, um propsito subentendido das nossas leituras da fico almadiana reside na vontade de isolar os determinados momentos da evoluo esttica almadiana que, depois das datas em questo, vo reaparecer intactos na sua obra sob outras guisas no imediatamente reconhecveis. No h dvida que Almada, tambm na sua obra plstica, nunca pretendeu esconder ou ignorar o facto de a sua viso apenas consistir numa organizao conscientemente pessoal da experincia, e, na concluso do nosso estudo, veremos como, depois de 1925, o pintor continua a servir-se das vrias estratgias narrativas descobertas no processo da elaborao da sua fico. Com efeito, a obra em prosa representa os primeiros passos de Almada Negreiros na criao de um universo outro, produto da sua prpria fico. Trabalhando num contexto crtico surgido da investigao pormenorizada dos elementos temticos e formais comuns sua obra em prosa, torna-se ntido que estas mesmas propostas narrativas informam, de certo modo, todas as fices almadianas. Assim, ao optarmos pela anlise dos temas e estruturas das vrias fices almadianas, pretendemos identificar os principais mecanismos utilizados pelo autor na construo do seu universo artstico. Finalmente, imprescindvel reconhecer que a extraordinria riqueza deste universo almadiano resulta de uma feliz confluncia de ideias, gneros e meios que, quando apreciados na sua totalidade, nos apresentam uma das mais aliciantes obras do modernismo portugus. Junto com Fernando Pessoa, Mrio de SCarneiro, Amadeo de Souza Cardoso e outros companheiros do movimento artstico iniciado pelo Orpheu, Jos de Almada Negreiros no hesitou nunca em aceitar o desafio da aco modernista, interpretando a chamada para a renovao da arte e da literatura do seu pas sempre de um modo muito pessoal. Assim, ao lembrarmos o comentrio de Jos Augusto Frana que Dentro de Orpheu, propriamente no houve literatura de fico... Nem podia haver: o Orpheu no dava fico era fico, 4 esperamos, antes de mais, contribuir, com este estudo, para a melhor compreenso de alguma das fices concretas surgidas desta fico maior, que era o movimento modernista portugus.
Jos Augusto Frana, Nota de Releitura de A Confisso de Lcio e de Nome de Guerra, in Estrada Larga, vol. I, ed. Costa Barreto (Porto: Porto Editora, n.d.), p. 497.
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CAPTULO I
OS LIMITES DA NARRATIVA ALMADIANA: DA INFLUNCIA SIMBOLISTA EM FRISOS EXPERINCIA FUTURISTA DE SALTIMBANCOS O movimento modernista em Portugal, aventura literria de grandes repercusses que se estendem at aos nossos dias, manifestou-se publicamente, pela primeira vez, em Maro de 1915, quando foi lanado o primeiro nmero da revista Orpheu. Dois anos mais tarde, quando a revista Portugal Futurista foi apreendida pela polcia, podemos considerar a primeira etapa deste movimento como que terminada. Nesse curto prazo temporal, porm, a maior ruptura jamais conhecida nas letras portuguesas foi inciada e o terreno foi preparado para as subsequentes incurses no projecto renovador da literatura portuguesa. Assim, Eduardo Loureno comenta que, para essa gerao, Orpheu era a sua infncia e como acontece aos homens eles iam preparar-se no resto da vida para merecer essa infncia. 1 Embora o caminho para a modernidade se revelasse em Orpheu 1 de maneira um pouco contraditria, no h dvidas quanto importncia desta revista como uma pedra de toque na ruptura lingustica, temtica e, sobretudo, epistemolgica que foi o modernismo portugus. Contraditria, digamos, porque o primeiro nmero de Orpheu continha em si muito pouco que se afastasse dos padres simbolistas e decadentistas j conhecidos em Portugal. Com a excepo da Ode Triunfal de lvaro de Campos, a colaborao dos outros poetas na revista demonstra a continuada existncia de fortes ligaes com um passado prximo. Alguns dos nomes aparecidos no primeiro nmero de Orpheu teriam, alis, muito pouco a ver com a histria do movimento que tomou esse nome, e, com a excepo de Fernando Pessoa, Mrio de S-Carneiro e Jos de Almada Negreiros, a incluso [dos outros colaboradores] no grupo um facto histrico, mas sem consistncia profunda. 2 No caso destes trs poetas citados, os valores ps-simbolistas e decadentistas patentes em Orpheu 1

1 Eduardo Loureno, Orpheu ou a Poesia como Realidade, in Tetracrnio (Lisboa, Fevereiro, 1955), p. 31. 2 Loureno, Orpheu ou a Poesia p. 39.

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seriam contestados gradualmente, no segundo nmero da revista, assim como em outras publicaes que seguiriam. A reaco pblica provocada por Orpheu 2 serve, no entanto, para revelar a presena de uma ameaa aos valores estticos do dia, uma ameaa implcita, mas muito bem compreendida pela imprensa da poca:
O que se conclui da literatura dos chamados poemas subscritos por Mrio de S-Carneiro, Ronald de Carvalho, lvaro de Campos e outros que eles pertencem a uma categoria de indivduos que a cincia definiu e classificou dentro dos manicmios, mas que podem sem maior perigo andar fora deles 3

Desta e doutras reaes que se empenham em neutralizar o contedo de Orpheu perante o pblico, notemos, portanto, que desde o incio do projecto, um esprito de provocao, se no a prpria palavra provocatria, est presente. neste clima de provocao, pois, que a audacidade ser cultivada, com subsequentes tentativas artsticas de expressar pela palavra potica as mltiplas crises de f sofridas pelo homem do sculo XX. Se bem que no houvesse um verdadeiro movimento futurista em Portugal, a influncia desta escola sentida na obra de quase todos os modernistas durante o perodo 1915-1917, guiando poetas e pintores na procura de uma arte individual, autntica e contempornea. nossa opinio que as vrias manifestaes denominadas futuristas na altura de Orpheu constituem apenas uma srie de momentos isolados, aos quais falta a coerncia esttica ou histrica para serem considerados como revelantes de um programa futurista bem definido, mas no h dvida que a influncia ideolgica do futurismo desempenhou um papel importante na formao esttica dos modernistas portugueses. Assim, numa tentativa de traar as origens da gerao de Orpheu e de identificar as influncias dessa gerao nos escritores que a seguiram, Fernando Guimares comenta, com toda a razo, que um dos aspectos mais importantes do projecto modernista consiste na inteno manifestada pela gerao modernista duma diversificao de opes literrias que constituem verdadeiros embries de correntes literrias, todas elas divididas entre um fundo comum simbolista e a influncia mais recente do Futurismo. 4 a partir deste
Os poetas de Orpheu foram j cientificamente estudados por Jlio Dantas h 15 anos ao ocupar-se dos artistas de Rilhafoles, A Capital, 30 Maro 1915, p. 1; citado em Nuno Jdice, A Era do Orpheu (Lisboa: Teorema, 1986), pp. 60-64. 4 Fernando Guimares, O Modernismo e a Tradio da Vanguarda, in Simbolismo, Modernismo e Vanguardas (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1982), p. 21.
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conceito de simbolismo e de futurismo como duas correntes importadas que influenciaram o pensamento esttico nos primeiros anos de experimentao modernista que iniciamos o nosso estudo da obra em prosa de Jos de Almada Negreiros. No primeiro nmero de Orpheu, Almada publicou um texto em prosa ligado ao simbolismo e ao decadentismo Frisos , de facto, um texto exemplar da influncia do paulismo, escola teorizada e brevemente praticada por Fernando Pessoa. Em 1917, porm, encontramos Almada a publicar, em Portugal Futurista, um texto intitulado Saltimbancos, onde surge patente a teoria da palavra em liberdade de Marinetti. Veremos assim, nestes dois textos, exemplos do que poderamos designar por textos-limites na prosa experimentalista de Almada. Sendo dos mais problemticos textos do autor no que se refere noo de gnero, a anlise que deles faremos servir como introduo a algumas das preocupaes a partir das quais este estudo se estruturar: Frisos e Saltimbancos so dificilmente considerados narrativas mas, ao mesmo tempo, ultrapassam os limites do que, regra geral, se tem considerado poesia em prosa. Deste modo, Frisos e Saltimbancos no s imitam as j aceites influncias histrico-estticas do modernismo portugus mas, ao mesmo tempo, constituem duas experincias do autor com os prprios limites da prosa, especialmente com os que dizem respeito temporalidade e. plasticidade da escrita. Ainda que Frisos tenha sido geralmente classificado pela crtica como um texto palico que acha a sua inspirao principal nas correntes decadentistas e simbolistas, 5 temos de reconhecer nele um incipiente esforo para a renovao desses cdigos. Assim, na nossa anlise do texto, pretendemos isolar os aspectos pelos quais o autor j levado a modificar algumas tendncias aceites pelo paulismo. Consideramos Frisos um texto que se caracteriza por um jogo de tenses surgidas de um passado simbolista-decadente e de um futuro renovador que era ainda incgnito e apenas pressentido. Estas tenses revelam, alis, uma postura incerta quanto ao papel do eu potico no texto, no sentido em que o problema da relao entre a subjectividade e a objectividade da escrita levantado sem ser solucionado. luz da existncia deste problema que, em 1915, continua por resolver, Frisos aparece como um texto representativo de uma crise ideolgico-esttica subjacente estreia pblica do modernismo. Numa abordagem geracional, se tomarmos Frisos como representativo do conjunto de textos que formaram Orpheu 1, podemos assinalar a presena das tenses entre uma herana simbolista e um sonho vanguardista mas, ao mesmo
5 Jos Augusto Frana, resp. ao Inqurito sobre o significado histrico de Orpheu in Modernismo e Vanguarda, Vol. II of Cadernos da Colquio/Letras (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1984, p. 19.

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tempo, no que se refere relao do autor com o texto, podemos tambm encontrar certos aspectos que apresentam, em estado embrinico, algumas das preocupaes formais, temticas e lingusticas que seriam desenvolvidas na obra posterior de Almada. Lembrando que as razes do paulismo antecedem o aparecimento de Orpheu e remetem para o movimento saudosista, citamos um artigo publicado por Fernando Pessoa em 1912, na revista A guia do Porto. Em resultado da colaborao breve que Pessoa teve com os saudosistas, publicaram-se dois artigos intitulados A Nova Poesia Sociologicamente Considerada e A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicolgico. 6 No segundo destes artigos, Pessoa tenta descrever a esttica saudosista que considera como que principiando o auge do maior perodo de sempre na poesia portuguesa. A culminao do movimento sonhado por Pessoa seria o paulismo, uma corrente na qual o aperfeioamento do saudosismo levaria a um estilo potico cujo:
arcaboio espiritual composto de trs elementos vago, sutileza e complexidade Implica simplesmente uma ideao que tem o que vago ou indefinido por constante objecto e assunto, que traduz uma sensao simples por uma expresso que a torna vivida, minuciosa, detalhada, mas detalhada em elementos interiores, sensaes Finalmente, entendemos por ideao complexa a que traduz uma impresso ou uma senao simples por uma expresso que a complica acrescentando-lhe um elemento explicativo, que, extrado dela, lhe d um novo sentido. 7

Observamos, pois, como, neste momento, o poeta e teorizador do paulismo est preocupado com a ideia de encontrar um equilbrio entre a subjectividade e a objectividade, propondo uma poesia que se estruturasse a partir de uma curiosa mistura de intelectualizao de um sentimento e vice-versa. Assim, Jacinto do Prado Coelho caracteriza o paulismo pela voluntria confuso do subjectivo e do objectivo, pela associao de ideias desconexas, pelas frases nominais,

Fernando Pessoa, A Nova Poesia Sociologicamente Considerada e A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicolgico, A guia, n.os 4, 5, 9, 11 e 12, 2. srie, Porto, 1912. 7 Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa, in Textos de Crtica e de Interveno (Lisboa: tica, 1980) pp. 49-51.

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exclamativas, pelas aberraes de sintaxe... pelo anseio de outra coisa, um vago alm, (ouro, azul, Mistrio.) 8 No h dvida que esta concepo da poesia que , essencialmente, de raiz simbolista influenciou Almada na elaborao de Frisos. Antes de passar anlise dos vrios aspectos palicos presentes no texto, porm, cabe dizer algumas palavras introdutrias quanto prpria forma de Frisos. Quando apareceu nas pginas de Orpheu, Frisos no trazia qualquer sub-ttulo que indicasse o gnero do texto e, do subttulo que o acompanha, s podemos colher o facto de o autor se considerar um desenhador, antes de um escritor. Na mesma poca, porm, Fernando Pessoa refere-se a Frisos como uma srie de contos 9 e, nos anos seguintes, a crtica tem empregado vrias classificaes para descrever este conjunto de pequenos textos em prosa. Em 1970 e em 1985, vmo-los includos no volume de Poesia das Obras Completas de Almada Negreiros e, em outros lugares, so considerados como poemetos, poemas em prosa, parbolas, prosas poticas ou prosas. 10 Esta dvida, se no confuso, quanto colocao de Frisos num gnero pr-definido, deve-se, em parte, ao facto de este texto consistir em doze textos mais curtos, os quais chamaremos quadros. 11 Alguns destes quadros so muito parecidos com o conceito geral do poema em prosa mas, em outros quadros, encontramos elementos caractersticos da prosa narrativa, ou seja os elementos significativos destes quadros so os de cena, personagem e enredo. Assim, -nos preciso comear a anlise de Frisos pela anlise em separado destes quadros para, depois, podermos aproximar-nos do conjunto como formando um texto especfico e nico ao qual Almada deu o ttulo global de Frisos. Dos doze quadros constitutivos de Frisos isolamos, inicialmente, cinco do grupo devido ao facto deles no incluirem quaisquer estruturas narrativas. Considerando-os, desde j como exemplos do poema em prosa, notemos que, no sub-ttulo de um destes quadros, l-se que consiste na Traduo de um
8 Jacinto do Prado Coelho, Modernismo, in Dicionrio de Literatura (Porto: Livraria Figueirinhas, 1965), p. 656. 9 Fernando Pessoa, Cartas a Armando Crtes Rodrigues (Lisboa: Confluncia, 1945), p. 64. 10 Estas classificaes provm, respectivamente, de Maria Aliete Galhoz, O Momento Potico de Orpheu, in Orpheu, 3. reedio do Vol. I (Lisboa; tica, [1958]), p. XLVI; Dulio Colombini, Almada Negreiros (So Paulo: Boletim N. 10, Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 1978), p. 12; J.A. Frana, Almada O Portugus sem Mestre, rpt. in Amadeo e Almada (Lisboa: Bertrand, 1983), p. 191; D.M. Ferreira, Hospital das Letras, p. 170; Joo Gaspar Simes, Vida e Obra de Fernando Pessoa, 4th. ed., (Lisboa: Bertrand,1981), p. 242 e Maria Manuela Ferraz da Silva, Jos de Almada Negreiros Sua Posio Histrico-Literria, diss. de lic., Coimbra, 1967, p. 210. 11 Outro texto, intitulado Silncios que apareceu em Portugal Artstico, N. 1, Maro de 1914, p. 7, identificado como do livro Frizos a sair brevemente, mas no chegou a ser includo na verso de Frisos publicada em Orpheu 1.

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poema de uma lngua desconhecida. 12 Em outros dois, a palavra cano aparece no ttulo revelando uma certa ligao com a poesia popular, aspecto ao qual voltaremos em breve. Os dois que restam, intitulados Runas, e Trevas, consistem em descries estticas, ambas de paisagens, que se destacam pelo alto grau de subjectivizao da natureza conseguido por uma viso muito pessoal imposta pela voz potica. Em Runas, observamos como um passado distante, habitado por seres lendrios, sobreposto s runas, no momento em que o poeta contempla a cena; em Trevas, descreve-se um terror, tipo pesadelo, que o poeta sente noite, enquanto ainda acordado. Assim concluimos que, nestes dois quadros, a paisagem apenas serve como base a partir da qual o poeta se lana numa anlise de um estado psquico pessoal e que as descries assim construdas resultam da sobreposio da subjectividade do sonho potico aproximao objectiva da natureza. Esta subjectivizao da natureza leva-nos a concluir que de um universo palico que se trata nestes quadros porque o poeta est, com efeito, a projectar as suas experincias ntimas no mundo exterior objectivo, ou seja, a natureza funciona sempre, em Frisos, como o espelho da alma. Da as imagens e as metforas resultantes parecerem invulgares e, muitas vezes, exageradas. Tambm tpicos da viso paulista so as cores e o prprio som das palavras que se destacam como elementos funcionais desta escrita. Vejamos um exemplo disso em Trevas: A lua uma laranja doiro num prato azul do Egypto com prolas desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiados na brisa eram um bailado de esttuas de sonho em vitraes azues. Mos ladras de sombra levaram a laranja, e o prato enlutou-se. 13 Neste mesmo quadro, alis encontramos uma chave para a compreenso do papel da natureza no universo paulista quando notamos que, no fim, o eu do poeta se desvela finalmente: Doem-me os cabellos, fecham-se-me os olhos e quatro anjos levam-me a alma... Mas a cigarra em algazarra de alem do monte vem dizer-me que tudo dorme em silncio na escurido. 14 Embora o eu do poeta entre no quadro de uma maneira oblqua, fazendo a sua presena sentida apenas pelo emprego do complemento indirecto do verbo, no h dvida que tudo o que se experimenta do mundo natural filtrado pela conscincia potica, assim dando forma a uma descrio extremamente subjectivizada. Voltando agora a nossa ateno para os quadros de Frisos que mais se aproximam de contos, vejamos que as mesmas caratersticas lingusticas dos poemas em prosa so postas ao servio de uma temtica tpica do paulismo, no sentido em que valorizam o sonho sobre a realidade. Pela apresentao de vrias
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Jos de Almada Negreiros, Frisos, in Orpheu (1915; Lisboa: tica, [1958], p. 73. Almada Negreiros, Frisos, p. 78. 14 Almada Negreiros, Frisos, p. 78.

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personagens agindo ou reagindo segundo as leis de uma estrutura narrativa (isto , em termos de um conflito e da sua resoluo), observamos como, nestes quadros, a temtica quase s amorosa, de amor de malcia e no de pecado, brinco ligeiro e fatalidade, juntamente, nas veias dos seus pares jovens. 15 Com efeito, cada texto ilustra uma faceta diferente do amor: os cimes, o desejo e o prprio sonho desfeito pelo amor. Parece-nos evidente que no estamos perante a imagem do amor como a garantia da plenitude e que, pelo contrrio, estes quadros retratam sempre o despertar de uma inquietude face ao objecto desejado, ou seja, que o amor realizado s pode conduzir a uma destruio ou a um fracasso final. Pela utilizao de uma temtica que lembra o problema tratado repetidas vezes na obra em prosa de Mrio de S-Carneiro, o amor serve para retratar a relao ambgua entre o sujeito e o mundo exterior. O desejo, portanto, sempre mais importante do que a posse e a consumao amorosa implica, por definio, a prpria destruio do ser. Note-se ainda que a aco de todos os contos acima referidos se desenrola em espaos mticos que pertencem ao reino do sonho em vez da realidade prxima do poeta. As personagens so, na sua maior parte, j conhecidas na tradio literria e, nestes quadros, encontramos Ado e Eva, Pierrot e Colombina (que aparecem, alis, em dois quadros), ciganos, amazonas e pastoras. Deste modo, o tema amoroso apresentado como um sonho dentro do sonho, ou seja, na aluso a um espao mtico-pastoral. Podemos, portanto, resumir a necessidade imperativa de manter o sonho pelo exemplo de uma deciso tomada no fim do quadro intitulado A Sesta: ao acordar de um sonho fingido, Colombina rompe o encanto do desejo e, para restaurar a paz, ficou combinado que Ella dormisse outra vez. 16 Chegamos concluso, pois, que, nestes quadros, a felicidade s pode ser atingida pelo abandono ao sonho do amor e nunca pela sua concretizao. H, no entanto, uma ligeira diferena entre os quadros que apresentam personagens clssicas e os que utilizam figuras populares e, no segundo caso, possvel distinguir um certo afastamento lingustico dos padres paulistas. Este afastamento tambm visvel nas duas canes includas em Frisos que, como dissemos, lembram as formas da poesia popular. Em Cano da Saudade, encontramos, de facto, um marcado desnivelamento entre o tema e a linguagem que o comunica: A Cano da Saudade... caracteriza-se por um profundo sentir da incapacidade e solido humanas, uma linguagem leve, mas certeira, contrastando com o sentimento de angstia com que o texto nos

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Galhoz, O Momento Potico de Orpheu, p. XLVI. Almada Negreiros, Frisos, p. 74.

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marca. 17 Neste caso nico do eu potico falar abertamente, no surpreende que o seu tema seja a explicao da sua concepo do amor: Eu amo a noite, porque na luz fugidia as silhuetas indecisas das mulheres so como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Em amo a lua do lado que eu nunca vi. Se fosse cego amava toda a gente. 18 Mais uma vez, a influncia simbolista est em evidncia pela ideia de o sonho valer mais do que a realidade, esta ltima, para o poeta, existindo apenas para contaminar a sua concepo de beleza. impossvel, todavia, ignorar que para comunicar esse sentido misterioso do amor o poeta emprega uma linguagem simples e directa e, em vez de utilizar a metfora complicada e a imagem invulgar, a linguagem deste quadro valoriza uma fala coloquial que podemos considerar, alis, como uma das caractersticas da escrita vanguardista. Nos quadros que se destacam pela utilizao de personagens e de formas populares, a viso palica do amor comea a desmoronar-se, embora o sonho continue a ser a imagem prevalescente do amor. O sonho do amor nestes quadros retratado como um sonho alegre, tpico da paixo inocente. nestes quadros, alis, que tambm encontramos uma maior inovao formal, o melhor exemplo disso surgindo no quadro intitulado Primavera. Neste quadro, uma pastorinha, ao tomar banho, entrega-se sensualidade do momento e revive, em forma de devaneio (este estado sendo, alis, o equivalente de um sonho acordado), alguns encontros sexuais prvios. O narrador omnisciente deste quadro revela estes pensamentos por meio de uma srie de verbos na terceira pessoa do pretrito simples: sentiu, lembrou-se. No meio do conto, porm esta perspectiva narrativa muda subtilmente e notamos que comea a ser utilizado o discurso indirecto livre, comunicativo de uma perspectiva ntima: Abanou a frente para lhe fugir o pecado, mas foi dar consigo na sachristia a deixar o Senhor Prior beijar-lhe a mo e depois a testa... porque Deus bom e perda tudo... e depois as faces e depois a boca e depois... fugiu... No devia ter fugido. (elpsis no original) 19 Comeamos, com efeito, a ouvir os pensamentos da pastora, na forma de um julgamento posterior (que j pertence ao presente do narrado) situao vivida na memria. Notemos, ao mesmo tempo, que a frase porque Deus bom e perda tudo, pertence s memrias que a pastora tem do incidente, vindo assim de um dilogo acontecido antes do tempo do narrado. Ambos estes comentrios sobre a situao surgem no texto sem qualquer interveno directa da parte do narrador e, no mesmo pargrafo, tambm
Carlos Capela Schmidt, Uma Trajectria: Almada Negreiros ou Almada Negreiros: Uma Trajectria ou Vice-Versa, Estudos Portugueses e Africanos [Campinas, S.P.], 4 (1984), p. 184. 18 Almada Negreiros, Frisos, p. 75. 19 Almada Negreiros, Frisos, p. 77.
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encontramos exemplo de um dilogo interior verbalizado, includo no texto sem aviso, no meio da narrativa na terceira pessoa: e lhe perguntou se vira por acaso uma borboleta branca a voar muito, uma borboleta muito bonita! Que no, que no tinha visto mas o boieiro desconfiado foi procurando sempre, e at mesmo por debaixo dos vestidos. 20 Estes trechos revelam o brotar de uma tendncia para a experimentao formal a sintctica na narrativa que ser desenvolvida mais atrevidamente na obra almadiana posterior a Frisos, mas fica j assinalada a presena, na escrita paulista de Almada, de uma tcnica que, posteriormente, ser chamada a interseco ao nvel da sintaxe. 21 Esta mudana entre perspectivas e pontos de vista tem, sobretudo, o efeito de chamar a ateno para o facto de as realidades aludidas nos quadros (isto , as personagens e o mundo que habitam) existirem apenas como elementos de um universo imaginrio criado pelo poeta. Quando o leitor se v obrigado a participar na recomposio da ordem dos acontecimentos e a interpretar as vrias falas includas no texto, uma anlise dos recursos tcnicos da escrita torna-se imprescindvel. Esta tcnica, ensaiada em Frisos, de cortar e reordenar os elementos romnticos do texto segundo uma ordem nova aproxima-se, de certo modo, das tcnicas da pintura cubista, pois: o que faz do conjunto destes elementos um texto modernista... a ironia: a montagem dos elementos velhos na construo de um texto novo. 22 E, tal como acontece no cubismo, reparamos, no fim da nossa leitura de Frisos, no facto de termos estado a contemplar uma superfcie totalmente plana: no ltimo quadro do conjunto, intitulado A Taa de Ch, um comentrio do narrador obriga-nos a voltar ao incio do texto e, na segunda leitura, evidente que estes frisos so exactamente o que o ttulo nos diz, ou seja, assemelham-se a uma banda ou tira pintada. 23 A Taa de Ch, uma narrativa descritiva de um episdio acontecido entre uma gueisha e seu amante na hora da morte deste. Terminada a agonia do amante, o tempo do narrado muda para a manh seguinte e os vizinhos vm em bicos dos ps espreitar por entre os bambs, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim. 24 O episdio narrativo termina assim, com uma imagem de movimento ritmado comunicado pelo verbo abanar empregado num tempo progressivo. Esta aco imediatamente parada, no entanto, pela adio de mais uma frase que transfere toda a aco
Almada Negreiros, Frisos, p. 77. scar Lopes, Almada Negreiros, in Literatura Portuguesa, vol. VIII de Histria Ilustrada das Grandes Literaturas, ed. A. J. Saraiva (Lisboa: Estudos Cor, 1973), p. 692. 22 Isabel Allegro Magalhes, Almada: Mima-Fataxa em dois tempos, Colquio/Letras, 95 (1987), p. 52. 23 Dicionrio Prtico Ilustrado, (Porto: Lello & Irmo), 1986, p. 543. 24 Almada Negreiros, Frisos, p. 82.
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para um plano esttico: A estampa do pires igual. 25 Este comentrio irnico sobre a situao exige que se faa uma segunda leitura do quadro e o ttulo do conto, neste momento, ganha relevo. Torna-se evidente que o episdio narrado resultou de um desenvolvimento imaginrio, pela parte do narrador, quando contemplava o desenho de uma taa. Da que, na segunda leitura de A Taa de Ch, certas imagens se esclaream quanto sua funo literal, em vez de metafrica, como, por exemplo, a descrio da gueisha em termos de porcelana transparente como a casca de ovo da Ibis. 26 Temos de reconhecer, no fim de contas, que a frase final de A Taa de Ch tem uma funo relativa ao conjunto total de quadros tanto como a tem em relao leitura do quadro isolado. Pela sua colocao como a frase com que termina Frisos, a observao que A estampa do pires igual traz a sbita revelao que estvamos a contemplar toda uma srie de estampas decorativas e estticas e, da mesma maneira que voltmos ao ttulo uma vez chegados ao fim do quadro, agora voltamos ao incio do conjunto para encontrar outra referncia ao texto como um objecto visual e, da, esttico: Frisos / Do desenhador Jos de Almada Negreiros. 27 Um crculo de leitura completa-se ao comear de novo e, na segunda leitura de Frisos, a nossa distncia recm-adquirida dos acontecimentos narrados obriga-nos a Substituir... a emoo por aquilo que costuma ser a sua origem a leitura. 28 Ainda que esta nfase final posta no prprio acto de ler se aproxime de uma posio vanguardista da literatura, temos de notar que Frisos, em geral, continua a ser um texto muito mais ligado a uma concepo simbolista, no sentido de transcendental, da escrita. Deve-se isto, em parte, ao sentimento de alienao que o eu potico comunica e, da, ao subjectivismo que permeia todo o texto. Com efeito, no paulismo, como no simbolismo, o artista queria exilar-se da sociedade mundana cultivando imagens cosmopolitas no desejo de fugir realidade prxima. Visto, porm que o paulismo tentou explorar todas as possibilidades do sonho como uma fora libertadora, o momento era propcio para introduzir um sonho do futuro. Preparar-se para o futuro obriga, pois, que o poeta leve em conta a sua situao concreta presente. Assim, no projecto futurista de Marinetti, os poetas de Orpheu encontraram a inspirao necessria para poderem sair da marginalidade auto-imposta e conferir um valor mais objectivo e vital sua arte.

Almada Negreiros, Frisos, p. 82. Almada Negreiros, Frisos, p. 80. 27 Almada Negreiros, Frisos, p. 67. 28 Fernando Guimares, Acerca da Poesia de Almada Negreiros, Colquio, N. 60 (1970), p. 34.
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No h uma data concreta que marque a ultrapassagem da prtica paulista e temos de lembrar que o paulismo era, na histria do modernismo portugus, uma escola de transio. 29 J em Frisos, observamos como a cultivao de motivos pictricos arrancou a escrita tradio narrativa cronolgica: o espao literrio circular que caracteriza o conjunto de quadros na sua totalidade sobrepe-se a quaisquer estruturas temporais dos quadros individuais. No por acaso, pois, que o elemento plstico serve, em Frisos, como a base da segunda e mais vanguardista leitura do texto pela incorporao de motivos plsticos que todos os poetas de Orpheu tentam conseguir uma maior objectividade potica. Por isso, comenta Maria Aliete Galhoz que: Convvio de plsticos e poetas, Orpheu cria-se um clima estimulante de interesses discutidos e conhecimentos partilhados que o leva ao invulgar de certas experincias estticas, tentadas a partir de princpios possveis de iguais e da utilizao de processos semelhantes. 30 Deste convvio, brota, alis, uma questo debatida tanto pelos escritores como pelos pintores no incio deste sculo: como retratar o fluxo do tempo na arte e, mais globalmente, em que consiste, exactamente a apreenso temporal do ser que vive no mundo moderno, transformado pela tecnologia? A questo da temporalidade est, por sua prpria natureza, intimamente ligada ordem da prosa. Numa narrativa, a sequncia linear das palavras, assim como o curso temporal dentro do qual se efectua uma leitura do texto conferem naturalmente a esse texto um elemento cronolgico. A subverso desta ordem implica, em princpio, que a criao se afaste da representao mimtica da realidade externa ao texto. Este afastamento do mimetismo j comeara, alis, na prosa simbolista que, em oposio s escolas realistas e naturalistas, comeou a explorar os valores preeminentes da linguagem como elemento principal do texto. No h dvida que Frisos se estrutura luz deste princpio da autonomia lingustica do texto, mas temos de reparar no facto de o texto se fechar sobre si prprio, tornando-se esttico, se no puramente decorativo. Pelo facto de a realidade exterior ser banida do texto, a prpria estrutura torna-se reveladora da alienao ps-simbolista, donde inferimos que Frisos , no fim de contas, um texto-objecto que consiste, essencialmente, na subjectivizao da realidade. Em termos temporais, a subjectividade faz-se sentida num retrato do tempo como ntimo e pessoal, ou seja, a voz potica que estrutura o texto recusa-se a encarar o tempo como uma instituio pblica, reconhecida e vivida por todos, indiferente a qualquer situao particular.

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George Rudolf Lind, A Teoria de Fernando Pessoa (Porto: Inova, 1970), p. 51. Galhoz, O Momento Potico de Orpheu, p. XXXV.

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Afastando-se deste desejo de apenas retratar os tempos ntimos do ser, isto , de encontrar em tudo um alm, 31 a teoria futurista empenhou-se na celebrao do mundo contemporneo e presente. A nfase posta pelos futuristas no mundo exterior baseia-se, no entanto, numa nova teorizao dos elementos do tempo pblico. Em 1909, Marinetti reconheceu que a revoluo industrial introduziu, nos pases europeus, uma nova concepo pblica do tempo, chamando a ateno para o facto de o homem moderno viver numa multiplicidade de tempos simultneos. Pela inveno do telgrafo, do telefone, do cinema e do avio, o homem do sculo XX podia estar ou, pelo menos, sentir que estava em todos os lados ao mesmo tempo. Da que o culto futurista da velocidade se empenhasse na celebrao da capacidade de o homem se desdobrar, no s esttica ou espiritualmente (como faziam os simbolistas), mas tambm fisicamente: Ns queremos exaltar o movimento agressivo, a insnia febril, o passo da corrida, o salto mortal, a bofetada e o soco. 32 Esta apreenso em simultneo da experincia possibilitou no apenas o surgir de inmeras perspectivas, fisicas e psicolgicas, a partir das quais se aproximava de um tema, mas tambm obrigou o artista a efectuar um corte radical com a sua herana esttica a nova arte tinha que ser imposta pela violncia contra a tradio. Sob a influncia da teoria futurista, Almada publicou, nos anos 1915-17, vrios manifestos que documentam o entusiasmo do autor pelos projectos renovadores de Marinetti. De grande valor histrico, estes manifestos revelam a posio de vanguarda (no sentido militar da palavra) assumida pelos modernistas contra a arte institucionalizada e aburguesada da Primeira Repblica Portuguesa, dando-nos uma ideia dos conflitos hostis ocorridos entre o grande pblico e os escritores e pintores de Orpheu. O primeiro destes manifestos, intitulado Manifesto Anti-Dantas e por extenso, data de 1915 e ali que o autor se declara futurista pela primeira vez. Neste manifesto e nos que o seguiram (Manifesto da Exposio de Amadeo de Souza-Cardoso, Conferncia Futurista, Ultimatum Futurista s Geraes Portuguesas do Sculo XX e Os Bailados Russos em Lisboa), 33 a tendncia de criticar a situao cultural leva-nos a classificar estes textos como subgneros que no
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Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicolgico, in Textos de Crtica, p.

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F. T. Marinetti, Fundao e Manifesto do Futurismo, in Antologia do Futurismo Italiano: Manifestos e Poemas, ed., trans. Jos Mendes Ferreira (Lisboa: Editorial Vega, 1979) p. 49. 33 Todos estes manifestos, com a excepo do ltimo, encontram-se reunidos em Jos de Almada Negreiros, Textos de Interveno, vol. 6 de Obras Completas (Lisboa: Estampa, 1972), pp. 9-39. Os Bailados Russos aparece em Portugal Futurista, (1917; rpt. Lisboa: Contexto, 1982), pp. 1-2.

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pertencem propriamente criao literria do autor: Linguagem de agresso e de interpelao, o manifesto precede a obra, tentando criar o clima propcio ao aparecimento dessa obra, como que anestesiando o pblico pela violncia da linguagem. 34 Cumprindo os pontos do manifesto de Marinetti que clamam pela destruio dos museus, das bibliotecas e das academias, num tom agressivo caracterstico do discurso poltico futurista, nota-se ainda, nestes manifestos, a ausncia de uma tentativa de criar uma nova expresso literria que substituisse os antigos modos de expresso e que cantasse as glrias da vida moderna. No Manifesto Tcnico da Literatura Futurista, datado de 11 de Maio de 1912, Marinetti apresentou uma srie de regras gerais a partir das quais esperava construir uma verdadeira linguagem futurista. Ali, e em outro texto publicado no ano seguinte, o fundador do futurismo prope uma quebra total da sintaxe da frase para livrar o texto potico do constrangimento da lgica, esta sendo substituda pela analogia: Tal como a velocidade area multiplicou o nosso conhecimento do mundo, a percepo por analogia torna-se cada vez mais natural para o homem. 35 Assim, a nova escrita futurista consistir na imaginao sem fios e nas palavras em liberdade, visando libertar a literatura do j velho problema da subjectividade. Por isso, Marinetti quis, por meio destas tcnicas, substituir o verso livre simbolista que considerava como j ultrapassado: O verso livre depois de ter tido mil razes para existir est destinado de hoje em diante a ser substitudo pelas palavras em liberdade. 36 Os pontos fundamentais deste novo projecto lingustico eram essencialmente: a destruio da sintaxe e a disposio do substantivo ao acaso (este substantivo ter, porm, o seu duplo a que estar ligado pela analogia), o uso do verbo no infinitivo (para que se adapte elasticamente ao substantivo, a abolio do adjectivo, do advrbio e da pontuao (que pressupem a meditao, a unidade de tom e a interrupo, todas caratersticas que anulam o estilo vivo da frase) e a destruio do eu psicolgico, que ser substitudo pela obsesso lrica da matria. 37 Almada, sem dvida, conhecia bem estes manifestos porque, na revista Portugal Futurista de 1917, publicou dois textos, nos quais a teoria da palavra em liberdade adaptada lngua portuguesa:

Nuno Jdice, O Futurismo em Portugal in Portugal Futurista, p. XI. Marinetti, Manifesto Tcnico da Literatura Futurista, in Antologia do Futurismo Italiano, p. 110. 36 Marinetti, Destruio da Sintaxe / Imaginao sem Fios / Palavras em Liberdade, in Antologia do Futurismo Italiano, p. 127. 37 Marinetti, Manifesto Tcnico da Literatura Futurista, pp. 109-117.
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Mima-Fataxa e Saltimbancos so literariamente os mais inovadores que a revista contm. Assimilando-os e utilizando-os a seu modo, esto presentes elementos vanguardistas fundamentais e, confrontando-os com os Frisos de Orpheu 1, visvel uma grande distanciao do autor em relao sua posio de 1915. 38

A novela Saltimbancos, especialmente reveladora da grande distncia esttica percorrida por Almada entre Orpheu 1 e Portugal Futurista. Nesta novela escrita em 1916, o autor empenha-se, uma vez mais, em desafiar os valores sequenciais, isto , cronolgicos, inerentes prosa. Tal como Frisos, Saltimbancos procura subverter a temporalidade da prosa por meio da incorporao de motivos plsticos. Como aconselhou Marinetti, o emprego da palavra em liberdade em Saltimbancos visa suplantar a poesia do humano com a poesia das foras csmicas, e, ao mesmo tempo, a estruturao analgica do contedo desta novela revela um fim parecido aos fins dos pintores futuristas que tentaram retratar a simultaneidade dos estados de alma numa obra de arte. 39 Entendemos o prprio subttulo de Saltimbancos, Contrastes simultneos, como uma referncia s experincias visuais da poca e notemos tambm que consiste num eco, de homenagem consciente, do ttulo de uma exposio do pintor francs Robert Delaunay, exilado, com a sua mulher, em Portugal entre 1915-16. 40 As tcnicas da pintura vanguardista e da palavra futurista so, assim, postas ao servio da criao de uma novela na qual as experincias de vrias personagens so apresentadas como simultneas e pertencentes a um tempo presente ampliado para incluir uma grande variedade de espaos. Devido simultaneidade que caracteriza a estrutura temporal da novela, muitos

Teolinda Gerso, Para o Estudo do Futurismo Literrio em Portugal, in Portugal Futurista, p. XXXII. O poema Litoral, escrito em 1916 e publicado em separata e no jornal O Heraldo, de Faro, tambm pode ser considerado como pertencendo prtica almadiana da palavra em liberdade. 39 Marinetti, O Esplendor Geomtrico e Mecnico e a Sensibilidade Numrica, p. 142; Boccioni, Carr, Russolo, Balla, Severini, Prefcio ao Catlogo das Exposies de Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Munique, Hamburgo, Viena, etc., in Antologia do Futurismo Italiano, p. 95. 40 Delaunay, entusiasta da arte simultnea, j tinha exposto a sua obra na Galeria Sturm em Berlim em 1913 sob o mesmo ttulo e a mulher de Delaunay Sonia Delaunay Terk, participara tambm na criao de arte simultanesta, ilustrando um livro simultneo de Blaise Cendrars La Prose du Transsibirien et de la petite Jehanne de France em 1913. Note-se, tambm, que ambos Cendrars e Apollonaire so representados em Portugal Futurista, pela incluso de alguns dos seus poemas inditos, publicados por Sonia Delaunay Terk.

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consideram Saltimbancos um exemplo do poema em prosa. 41 Note-se, todavia, que Saltimbancos tem personagens, cenas e, at, o que podemos considerar um desenvolvimento narrativo. Atravs da elaborao de vrios grupos ou cadeias de imagens contrastivas, a linha do discurso culmina em duas cenas que so descritas em termos temporais e imediatos, isto , como sequncias narrativas. Por meio de uma tcnica semelhante s tcnicas cinematogrficas (e lembremos que, nessa altura, o cinema se desenvolvia tambm sob a influncia da teoria simultanesta), apresentam-se, na linha narrativa de Saltimbancos, vrias cenas preliminares aco que, depois, so integradas num momento dramtico, culminante da histria. Este facto explica a nossa deciso de tratar este texto como uma narrativa, sujeitando-o a uma anlise da sua estrutura temporal. , de facto, pela anlise do modo como as personagens agem no tempo que podemos chegar a algumas concluses provisrias acerca da significao ou do tema da novela. Assim, destacamos, desde j, um elemento fundamental para a compreenso deste texto de Almada: a participao activa do leitor-espectador obrigatria e o leitor desempenha o papel de um colaborador na novela, interpretando as imagens visuais apresentadas pelo narrador. Alm de uma diviso do texto em trs trechos separados e numerados, no existem quaisquer anotaes que facilitem referncias ao corpo de Saltimbancos. No h divises em pargrafos, falta a pontuao e todas as palavras so escritas em letra minscula. No possvel julgar onde as frases comeam ou terminam e o prprio texto parece que comeou j no meio de um discurso prvio: no texto de Almada o leitor atirado para dentro, sem dele poder distanciar-se, perspectiv-lo, olhando-o de fora; a sua viso fragmentria e catica, porque no conseguir obter uma viso do conjunto. 42 Da o leitor encontrar-se, desde o incio de Saltimbancos, como que no interior e todavia ainda fora de uma descrio do ambiente fsico de um quartel. Esta posio contraditria conseguida, nas primeiras oito linhas, por meio de uma lista de substantivos referentes aos objectos que compem a cena: uma casa, um telhado, uma guarita, janelas, um muro, um mastro sem bandeira e o mar longe do quartel. Ainda que referidos no texto, estes objectos no se combinam de uma maneira que nos deixe imaginar a sua disposio fsica. Alm da falta de pontuao que destri a ordem frsica de sujeito e objecto, o emprego
Duas leituras de Saltimbancos que distinguem elementos poticos da prosa como, por exemplo, o ritmo da escrita e a escolha e ordem das imagens so: Vera Vouga, Almada Negreiros, Saltimbancos: de outro texto, outra leitura, Comunicao lida no Primeiro Simpsio de Estudos Portugueses Dimenses da Alteridade nas Culturas de Lngua Portuguesa: O Outro, Lisboa, Dez. 1985 e Fernando Alvarenga, A Arte Visual em Fernando Pessoa (Lisboa: Editorial Notcias, 1984), pp. 26-29. 42 Teolinda Gerso, Para o Estudo do Futurismo Literrio em Portugal, p. XXXII.
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subversivo da preposio nega-nos acesso a uma perspectiva fixa da cena e os substantivos livres so dispostos atravs de uma srie de frases preposicionais que apontam para direces incgnitas: por todos lados, para baixo, por detraz, no meio, de fora, por dentro. Assim, o leitor confrontado com uma srie de objectos familiares e fceis de reconhecer, mas que so impossveis de dispor em cena. Deste modo, o narrador apresenta uma cena que no podemos ver, mas que podemos sentir. Contribuindo tambm para esta evocao, em vez da descrio, da cena, as cores quentes (o amarelo e o vermelho) prevalecem e, associadas a locues do tipo ao sol e do sol, o adjectivo comunica uma sensao geral de luz e de calor. 43 O primeiro contraste que surge quebrando o plano visual do discurso ocorre no momento em que os soldados que habitam o quartel aparecem em cena neste momento as cores mudam de tom. Ainda que no haja nenhuma ruptura de pontuao ou sintaxe no fio narrativo, tudo, de repente, se torna cinzento, com os soldados referidos por imagens como brim cinzento, da cr das areias dos pinheiros e sujos de chumbo. Estes soldados esto curvados pra sombra e reparamos imediatamente no facto de esta nova cadeia de imagens se estruturar a partir no s de cores, mas tambm de preposies que contrastam entre si. Ainda que continuem a servir de ligao principal entre os substantivos, as preposies mais comuns na descrio dos soldados so contra e sem, opondo-se assim s preposies ao, por ou dentro que caracterizam o incio: ...um cinzento numerado sem nome sem alma sem licena de ter alma... 44. Neste primeiro contraste, criado por recursos lingusticos e imagticos, estabelece-se uma diviso entre a natureza e o elemento humano. Depois, quando o espao descrito se alarga abruptamente para incluir uma dimenso psicolgica, a diviso implcita entre o mundo e a conscincia humana mantida. Com efeito, medida que as imagens da narrativa continuam a amontoar-se, o contraste estabelecido no incio de Saltimbancos est continuamente em evidncia, sendo ampliado pouco a pouco para incluir mais elementos de cena, mas aludindo sempre impossibilidade de o ser humano apreender ou participar no mundo puro da natureza. Uma vez estabelecido o contraste sol/cinzento, a introduo da locuo preposicional na distncia lana a narrativa para uma nova dimenso temporal e espacial. Na distncia reporta-se, com efeito, a um plano que existe simultaneamente fora dos limites cnicos do quartel e fora do tempo
43 Marinetti explicara, alis, que: O perfil [do adjectivo atmosfera] desafia-se, espalha-se sua volta, iluminando, impregnando e envolvendo toda uma zona de palavras em liberdade. Destruio da Sintaxe, p. 130. Notemos tambm que o futurismo renega todas as cores esbatidas, pugnando sobretudo por uma visibilidade veloz como que chapeada com luz solar, s vezes. Alvarenga, p. 64. 44 Jos de Almada Negreiros, Saltimbancos, in Portugal Futurista, p. 15.

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presente do narrado. Por meio da associao analgica, o calor do sol desperta uma nostalgia pelo campo:
... outro brim de triturar saudades folhas mortas no campo verde e sol com sombra azul dos pinheiros solteiros encostados nostalgia do fresco da tarde na distncia na agua nos gyrasoes e na outra freguesia com raparigas a cantar encima dos carros de bois cheios de papoilas ao sol...) 45

Assim, aos poucos, observamos como o discurso se concentra na situao pessoal de um soldado annimo, atravs de um ponto de vista como que dividido: ... casar tarde com ela no por culpa delle nem por culpa della por culpa do cinzento cr de chumbo do brim [...] e ella sosinha sentada no poo espera dle a atirar pedras pr fundo da agua salbra... 46 Aqui o princpio de associao livre cria um monlogo interior, dentro do qual o passado (as memrias) e o futuro (as expectativas) so ligados, com o resultado de o presente do narrado ser temporally thickened. 47 importante reconhecer que a introduo do elemento psicolgico de Saltimbancos revela o ntimo de um ser annimo e pouco individualizado. Temos a sensao, por isso, que a matria apresentada familiar, se no banal, ainda que no seja contada da forma habitual. Temos de concluir, de facto, que o contedo imagtico de Saltimbancos pouco ou nada tem a ver com o projecto futurista de celebrar o mundo industrializado e que, pelo contrrio, a histria se estrutura ironicamente pela utilizao de imagens que lembram uma viso buclica da provncia portuguesa. Assim, notemos que a novidade desta escrita no reside no contedo das imagens mas, pelo contrrio, na combinao dos dois tempos, assim como dos dois espaos fisicamente distantes. Neste intervalo psicolgico, as experincias interiores e exteriores misturam-se toa: ...alli ssinha nos lenos de linho sem dormir em passo accelerado marche 1 2 1 2 1 2 1 2 1 2 1 2 1 2 1 2 direita rodar em frente da capellinha aos domingos sem ninguem pra se casar... 48. J negado o acesso interveno directa do narrador, o prprio leitor, neste momento, que separa, do tempo presente, os trechos relativos memria, num acto de compreender que tudo o que se passa
Almada Negreiros, Saltimbancos, p. 16. Almada Negreiros, Saltimbancos, p. 16. O espao representado pela elpsis, nesta citao, corresponde a dezasseis linhas de texto. 47 Stephen Kern, The Culture of Time and Space: 1880-1918 (Cambridge: Harvard University Press, 1983), p. 86. 48 Almada Negreiros, Saltimbancos, p. 16.
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fora dos confins do quartel acontece ao mesmo tempo que o soldado participa na instruo militar. Neste trecho do texto, quase todos os vestgios do tempo cronolgico so abolidos do discurso, enquanto que os contrastes revelam, ad infinitum, a multiplicidade de sensaes contidas num breve instante. Da que a linha narrativa mude outra vez e uma certa ordem temporal exterior reaparece. No fim da primeira parte, o foco da narrativa regressa ao tempo presente e fixa-se na descrio detalhada do acto da cobrio de uma srie de cavalos, com as imagens anteriormente apresentadas sintetizando-se de uma maneira cinematogrfica: no acto de juntar os cavalos com as guas, a consumao do desejo sexual conduz a uma resoluo temtica da primeira parte da novela, no sentido em que serve para recordar a impossibilidade dessa mesma resoluo na parte relativa ao soldado e sua namorada. Por isso, importante notar que o prazer sexual descrito em termos do mundo natural dos cavalos: ...e o focinho a roar pelo dorso da egua numa aceitao de delirante e maravilha e o cavallo a perder as foras num desiquilbrio de fraco sobre a egua... 49 Deste modo, as imagens cultivadas antes desta cena podem ser entendidas como que formando uma espcie de preparao para o fim da primeira parte e a descrio do prazer sexual dos cavalos reala a distino entre o mundo e a experincia humana. Conferindo ainda mais fora a este contraste, a cena termina com outra viragem para a experincia humana, desta vez para a perspectiva de uma rapariga do povo que observa a cena fora dos muros do quartel. A primeira parte de Saltimbancos termina quando a espectadora da cena forada a sair e a atender a chamada de seus pais: ...mas de repente do lado de fra gritaram por zra e o canto do picadeiro ficou vazio na transparncia mais longe do ar do sol pesado e quente sobre o vcuo depois do azul. 50 A segunda e a terceira partes de Saltimbancos tm lugar longe do quartel e consistem principalmente em vrias imagens da personagem que foi apresentada na cena da cobrio dos cavalos. Na segunda parte da novela, uma variedade de perspectivas diferentes serve para retratar a rapariga chamada zra quando est a lavar roupa no cume de um monte. Sabemos, atravs dos pensamentos dela, que, num tempo anterior, voltou a casa sem ter apanhado lenha. Como castigo, os pais negaram-lhe o almoo. Juntando-se perspectiva do passado, encontramos tambm outra perspectiva, pertencendo este ao presente do narrado mas revelando a cena de uma distncia longnqua. Quando passa um comboio por baixo do monte, o rio onde zra se encontra descrito da maneira seguinte: ...todos acham bonito visto de l de cima do moinho como o estilhao de um espelho deitado para cima entre as rvores sem tronco no vale
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Almada Negreiros, Saltimbancos, p. 17. Almada Negreiros, Saltimbancos, p. 17.

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verde-escuro... 51 De novo, a natureza parece ocupar um espao afastado do comboio, isto , da civilizao, e nem a perspectiva de zra, nem a dos viajantes, pode ser considerada verdadeira, no sentido de nica. Depois deste pequeno intervalo esttico, no qual no se representa qualquer cena de aco cronolgica, a terceira parte da novela concentra-se em certos aspectos da vida de zra e da sua experincia como parte de um grupo de saltimbancos itinerantes. Nesta terceira parte, a narrativa volta tcnica cinematogrfica que foi ensaiada na primeira parte, comeando pela descrio da situao presente, seguida depois por uma longa divagao pelos pensamentos e pelas memrias de zra que aludem s noites passadas na roulotte da famlia, aos muros do quartel e ao terror que ela sentiu uma noite quando encontrou um homem nu num bosque. A narrativa fixa-se depois numa cena de carcter imediato e dramtico, na qual descrito o espectculo do grupo de saltimbancos e ouvimos a msica intercalada com a voz do pai:
... nem gorgta nem cinco reis filhos da por causa da zra toca-me essa caixa puta estupor trrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr-pum-catapum-catapum pedrada catapum-pum-pum e ultimo de acetilene la-ri-sol as escuras sol-sol-sol filhos da putapum-pum trrrrrrrrrrrrrr-la-la-lalalalala-pum 52

Deste modo, na ltima cena de Saltimbancos, a derradeira chegada a um tempo presente ampliado revela outra vez que uma multiplicidade de emoes e perspectivas contribuem simultaneamente para o retrato do que, na superficie, poderia chegar at ns como uma imagem simples. Nas duas cenas vivas e presentes de Saltimbancos, assistimos mesma tentativa de retratar uma aco em funo do ponto de vista dos seus participantes e torna-se claro que, para estes, o mundo apenas existe em termos da experincia humana, ou seja, medida que o ser age dentro dele. Dito de outro modo, as exigncias de ordem humana (sejam institucionais, como o exrcito ou a famlia, sejam pessoais, como o medo, a fome ou a solido) fazem com que a integrao do ser no mundo exterior das coisas e da natureza seja impossvel. Esta tese implica, portanto, que tambm impossvel que um artista consiga captar a realidade objectiva na arte e, por conseguinte, aponta para uma contradio fundamental entre a inteno formal e o tema (inconscientemente?) comunicado em Saltimbancos. Ao aludir impossibilidade de chegar a uma compreenso completa de qualquer momento presente devido interveno de pontos de
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Almada Negreiros, Saltimbancos, p. 18. Almada Negreiros, Saltimbancos, p. 19.

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vista surgidos do passado histrico e pessoal ser, a meta da palavra em liberdade, isto , a libertao do texto da presena do autor, tambm se torna impossvel. No h dvida, pois, que os contrastes revelados em Saltimbancos revelam um constat da impossibilidade de descrever, merc da pulverizao do ponto de vista o qual, em resultado do simultanesmo das perspectivas, acaba por irrevogalmente a si mesmo se destruir. 53 Esta impossibilidade fica claramente exposta, porm, devido excluso de dois pontos de vista fundamentais. Com efeito, a multiplicidade de perspectivas em Saltimbancos no pode ser considerada total em razo da ausncia gritante das perspectivas do narrador e do leitor. Visto que estes dois pontos de vista se salvam do processo de pulverizao, somos levados a inferir que o eu do narrador e o eu do leitor esto presentes em toda a parte da novela e que a sua prpria ausncia da narrativa chama a ateno para a sua funo essencial. Como j observmos, Saltimbancos s pode funcionar como uma narrativa quando o leitor aceita o desafio de ligar as imagens para tirar delas um sentido possvel. O princpio analgico depende da interveno directa do leitor no texto e, assim, este leitor obrigado a tentar descobrir ou inventar uma inteno que fornea coerncia s analogias. Esta operao, na qual se questionam as intenes do autor implcito, revela, no fim de contas, que os verdadeiros participantes na aco da novela so o autor implcito e o leitor implcito. Da que o texto venha a simbolizar o mundo, o que significa que apenas existe em funo das prprias exigncias pessoais destas duas personagens ausentes. Repare-se agora que, ao tentarmos traar algumas afinidades entre Saltimbancos e Frisos, ressalta a preocupao de a palavra plstica ser levada s ltimas consequncias em Saltimbancos, medida que vemos negada qualquer possibilidade de uma descrio mimtica do mundo. Deste modo, a explorao das possibilidades da imagem visual como elemento constituitivo da escrita, j em evidncia em Frisos, chega beira da objectivizao, no sentido em que as imagens incorporadas no texto de Saltimbancos so apresentadas como que livres da interveno autorial que caracterizava a plasticidade de raz simbolista, patente no texto de estreia de Almada. Mesmo assim, notemos que embora o sujeito de Saltimbancos, sob a inspirao futurista, ficasse efectivamente banido do texto, este sujeito no deixa desempenhar um papel essencial em relao compreenso do texto. Quer isto dizer que nem atravs da prpria teoria da palavra em liberdade o autor consegue libertar a escrita do elemento subjectivo humano, facto este que nos prepara para a leitura das duas novelas sensacionistas de Almada Negreiros que consistem numa explorao das mltiplas possibilidades para retratar o sujeito dentro do mundo.
David Mouro-Ferreira, Almada Ficcionista, in Almada (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985), p. 90.
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Em concluso, notemos que, por muito diferentes que sejam Frisos e Saltimbancos quanto ao grau de interveno do narrador nos textos, em ambos os textos comentados neste captulo, esta escrita chega-nos hoje como que consistindo apenas em exerccios elaborados a partir de modelos estrangeiros. Deve-se isto, em parte, nfase excessiva posta nos aspectos visuais que faz com que o texto tenha uma forma esttica. Frisos um texto circular e fechado; o fim de Saltimbancos o de captar uma sensao de simultaneidade de aces e de pensamentos pela utilizao de imagem livre. A temtica de ambos toma sempre um lugar secundrio em relao questo da forma e a fidelidade ao padro exemplar (seja simbolista ou futurista) faz com que os elementos narrativos tenham pouco interesse. Por isso, quando algumas das personagens apresentadas em Frisos e Saltimbancos reaparecem em outros textos assinados pelo autor, assumem uma forma to diferente que se tornam quase irreconhecveis. Isto o caso da figura de Mima-Fataxa, uma cigana ultraromntica em Frisos a quem Almada dedica um poema futurista em 1917, assim como no caso dos saltimbancos e dos Pierrots e Arlequins que o autor pintar nos anos seguintes. Com efeito, a maioria das personagens de Frisos e de Saltimbancos so to estticas como os textos nos quais se encontram inseridas. Deve-se isto, principalmente, falta de qualquer tentativa de retratlas em termos das foras de mudana que operam sobre elas. A mudana do ser no tempo , pois, um elemento bsico da prtica narrativa. Deste modo, ainda que escritos em prosa e incorporando certas caractersticas da prosa de fico como a construo de cenas e personagens, reconheamos que os recursos narrativos em Frisos e Saltimbancos so forosamente limitados. Nas duas outras novelas que Almada publicou na dcada de 1910-20, o elemento temporal adquire um cariz mais importante e o problema do eu abordado abertamente atravs do desmascaramento do autor implcito do texto como personagem. Deste modo, observamos que as preocupaes formais da prosa almadiana mudam subtilmente. Uma nova nfase posta no conceito de transformao indica o despertar de um interesse profundo no apenas nas estruturas da fico mas, mais especificamente, na criao de uma fico do ser. No coincidentemente, Almada chamar estas novelas interseccionistas ou sensacionistas, indicando um afastamento dos padres lingusticos futuristas e uma certa recuperao da subjectividade do texto, no sob a viso simbolista de um eu potico exilado do mundo material mas, pelo contrrio, atravs da incorporao, no texto, de uma subjectividade dinmica e transitria, que confere a estas novelas o estatuto de serem autnticos exemplos de fico vanguardista escrita em lngua portuguesa.

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CAPTULO II
PRIMEIRAS TENTATIVAS SENSACIONISTAS: O PERCURSO DE APRENDIZAGEM SEGUIDO PELO NARRADOR NA ENGOMADEIRA Saltimbancos, exemplo da prtica fiel dos padres lingusticos do futurismo, um texto nico dentro do universo literrio de Almada Negreiros exactamente porque, nele, o autor no se retrata a si prprio como uma personagem da fico, nem alude sua viso pessoal como a fora organizadora do discurso. Como vimos, uma das contradies centrais da novela surgiu em consequncia da excluso do ponto de vista do eu, o que no teve o fim desejado de banir a subjectividade do texto. Ao contrrio, a ausncia do ponto de vista do autor implcito apontou sempre para o problema fundamental do relacionamento do sujeito (o autor implcito) com o objecto (as situaes descritas no texto) e a procura pela psicologia da matria teve o efeito final de forar uma confrontao extratextual entre o leitor e o autor. Estas observaes, obviamente, implicam que o texto fracassa como um objecto independente, com as contradies ligadas supresso do eu revelando, no fim de contas, a presena de um princpio interpretativo que desmente a objectividade da palavra futurista e que revela o perigo da subjectividade que ameaa contaminar a escrita, mesmo quando criada segundo as regras da liberdade da palavra. Dentro do espao demarcado pela inspirao simbolista de Frisos, por um lado, e a experincia futurista de Saltimbancos, por outro, inscreve-se a fico mais original e autnoma de Almada Negreiros. No admira, pois, que esta seja uma fico onde o problema da subjectividade de um texto literrio explorado por meio do desvendamento do autor implcito dos discursos. Nas outras duas novelas publicadas em 1917, o narrador explicitamente identificado e, em ambas, revela-se como um artista plstico. Afastando-se das estruturas narrativas de Frisos ou de Saltimbancos, as duas novelas sensacionistas de Almada, A Engomadeira e K4 o Quadrado Azul, representam o desenvolvimento de uma fico preocupada com os problemas das origens do texto, da criao de personagens e da dicotomia entre o ser social e o ser essencial. Ainda que o aparecimento destas preocupaes assinale uma certa mudana de propsito pela parte do autor, isso no quer dizer que Almada, na sua obra sensacionista, abandone as outras preocupaes j referidas. O valor plstico da
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linguagem, elemento fundamental para a criao da realidade do texto, e a subverso das regras temporais da narrativa tradicional continuam, alis, a contar-se entre os principais elementos estruturais do texto. A partir da descoberta do eu como o organizador explcito da experincia, no entanto, estes elementos passam a constituir um repertrio de sub-linguagens, sendo postos ao servio de um projecto maior, que se orienta no sentido da criao de uma fico do ser. Na escrita sensacionista almadiana, vemos iniciado, com efeito, um projecto de mitificao do autor implcito do texto que leva, no fim de contas, criao de uma personagem que ainda pertence ao espao da fico mas que, pelo facto de muitos dos seus traos serem parecidos com os de Almada Negreiros, o autor emprico da novela, consideramos aqui como a primeira encarnao do j famoso Almada-Mito. 1 Na primeira das novelas sensacionistas, A Engomadeira (datada a 1915 mas s publicada em 1917), veremos claramente as etapas que levam construo e revelao do que se poderia chamar o eu sensacionista de Almada. Antes de analis-la, porm, ser-nos- indispensvel voltar a ateno mais uma vez para os manifestos de teor futurista. Ali, encontraremos as primeiras indicaes da presena e da subsequente importncia esttica do projecto surgido da dificuldade de s ser aquilo que j somos. 2 Ainda que sejam importantes documentos para a compreenso do movimento futurista em Portugal, os quatro manifestos de Almada divergem radicalmente de uma proposta fundamental expressa na obra de Marinetti. Ao mesmo tempo que assistimos a uma tentativa para dessacralizar a arte e destruir a tradio fundada no conceito de beleza, todas as proclamaes futuristas de Almada so feitas em funo da presena de um autor que se encontra em combate com a sociedade. No Manifesto Tcnico da Literatura Futurista, Marinetti achou a sua inspirao na matria e as ideias contidas ali vieram de uma fonte impessoal: Isto foi o que me disse a hlice, num turbilho, enquanto voava a duzentos metros, sobre as potentes chamins de Milo. 3 Por outro lado, o Manifesto Anti-Dantas de Almada inspira-se numa personalidade e, por isso, a recusa da tradio implica a afirmao da individualidade do autor. Como uma das grandes preocupaes de Almada a perda de originalidade nas artes e letras portuguesas, todos os seus manifestos so organizados a partir do ataque pessoal e da auto-defesa ali implcita: Eu sou aquele que se espanta da prpria personalidade e creio-me, portanto, como portugus, com o direito de

Eduardo Loureno, Almada-Mito e os Mitos de Almada, in Os Anos 40 na Arte Portuguesa (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1982), pp. 45-47. 2 Loureno, Almada-Mito, p. 45. 3 Marinetti, Manifesto Tcnico da Literatura Futurista, p. 109.

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exigir uma ptria que me merea. 4 Permitir-nos- esta afirmao concluir que o autor visa atingir uma psicologia da matria? Pelo contrrio, nos textos futuristas de Almada h uma hiper-sensitividade do eu que, em constante oposio com a sociedade, tentar elevar o seu poder individual a um plano mtico. Neste processo da mitificao do indivduo, o eu do poeta integrar-se, finalmente, no mecanismo narrativo, fazendo-se parte essencial da fico. Embora o poema A Cena do dio, escrito em Maio de 1915, tambm possa ser considerado, nalguns aspectos, um texto futurista, interessa-nos reconhecer aqui como o autor utiliza esse texto para afirmar a importncia do seu eu. Pela primeira vez, vmo-lo a incluir uma imagem de si prprio como parte da fico que pretende criar. 5 O poema abre com uma srie de declaraes acerca de quem o sujeito falante e, nelas, assistimos criao da imagem do autor, seguida imediatamente pela divinizao dele: Ergo-Me Pederasta apupado dimbecis, / Divinizo-Me Meretiz, ex-lbris do Pecado, / e odeio tudo o que no Me por Me rirem o EU! 6 Estes versos preliminares so extremamente importantes para a compreenso do projecto do poeta porque, alm de apresentar a construo (Ergo-Me) e a mitificao (Divinizo-Me) da voz potica, estabelecem a oposio entre o poeta e a sociedade, assim como explicam as razes pelas quais o dio ser cantado: os outros no levam a criao do poeta (isto : o seu eu) a srio. Por se terem rido dos esforos criativos do autor, tudo e todos sero o alvo do desprezo potico ao longo do poema. Que A Cena do dio serve como resposta e contestao aos crticos dos modernistas torna-se evidente com os versos seguintes, que aparecem exactamente no meio do poema:
Tu arreganhas os dentes quando te falam dOrpheu e pes-te a rir, como os pretos, sem saber porqu. E chamas-me doido a Mim que sei e sinto o que Eu Escrevi! Tu que dizes que no percebes; rir-te-has de no perceberes? 7

4 Jos de Almada Negreiros, Ultimatum Futurista s Geraes Portuguesas do Sculo XX, Textos de Interveno, p. 31 5 Para um comentrio detalhado dos recursos retricos utilizados neste poema, v. Gregory McNab, The Poet Strikes Back: Almada-Negreiros in the Cena do dio, Luso-Brazilian Review, 16 No. 1 (1979), pp. 41-52. 6 Jos de Almada Negreiros, A Cena do dio, in Poesia, vol. 1 de Obras Completas (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985), p. 47. 7 Almada Negreiros, A Cena do dio, p. 56.

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Como j dissemos, a resposta do autor aos seus crticos consiste principalmente em levantar a sua voz omnipotente sobre a mediocridade burguesa. Por isso, o eu refora-se no incio do poema pela repetio de versos comeados pelas palavras Sou ou Hei-de, que esboam um plano de destruio ao mesmo tempo que propem a construo de uma arte nova, agora baseada na fora e na agressividade: Hei-de Alfange-Mahoma / cantar Sodoma na Voz de Nero! 8. Ao cantar o seu dio, o poeta apropria-se de qualidades sobre-humanas e o leitor percebe que, alm de ocupar um lugar marginalizado da tica contempornea (Pederasta e Meretriz), pertence ao reino do mito (Sou Pan-Demnio-Trifauce enfermio de Gula! / Sou Gnio de Zaratustra em Taas de Mar Alta! / Sou Raiva de Medusa e Danao do Sol! 9 e engloba todas a pocas histricas (O meu dio tem tronos dHerodes, / histerismos de Clepatra, perverses de Catarina! 10). Nesta apropriao do mito e da histria, vemos como o poeta se apresenta, por meio de aluses intertextuais, como uma personagem literria. Ao inserir-se na tradio ocidental, esta personagem ser, ento, capaz de modific-la. Em contrapartida, o alvo do dio potico concretiza-se noutra personagem medida que vai lanando os seus insultos. Com efeito, o poema torna-se dialgico pelo uso de linguagem de valor activo (vocativos, apstrofes, interjeies) 11 para, por fim, se concretizar numa troca de insultos entre o ser mtico do poeta e um bom burgus lisboeta:
E tu, meu rotundo e panudo-sanguessugo, meu descreditado burgus apinocado da rua dos bacalhoeiros do meu dio coa Felicidade em cada a servir aos dias! 12

Esta breve anlise de A Cena do dio leva-nos a afirmar que, ao incorporar o seu eu no discurso, Almada encontrou uma maneira de se referir situao nacional especfica. Uma vez liberto das constries dos modelos estrangeiros, seria possvel a criao de uma fico original e, j consciente da distncia do modelo futurista implcita na incorporao do eu nA Cena do dio, o autor assina o poema Jos de Almada Negreiros poeta sensacionista. Note-se tambm que, na mesma apresentao do poema, o poeta presta
Almada Negreiros, A Cena do dio, p. 47. Almada Negreiros, A Cena do dio, p. 47. 10 Almada Negreiros, A Cena do dio, p. 48. 11 Teresa Rita Lopes, Pessoa, S-Carneiro e as trs dimenses do Sensacionismo, in Modernismo e Vanguarda, vol. II de Cadernos da Colquio / Letras (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1984), p. 34. Neste artigo, a autora reconhece o valor activo, da linguagem sensacionista na poesia de S-Carneiro. 12 Almada Negreiros, A Cena do dio, p. 56.
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homenagem escola criada por Fernando Pessoa, em nome de um dos heternimos do poeta, e chama a ateno para a multiplicidade do ser, um dos conceitos bsicos do sensacionismo: A lvaro de Campos / a dedicao intensa de todos os meus avatares. 13 Nesta fase da nossa anlise e na sequncia do comentrio de Almada sobre Pessoa, ser-nos- til falar aqui das formulaes do mesmo Pessoa no que respeita teoria sensacionista. O sensacionismo representa a terceira e ltima fase da aventura potica vivida por Fernando Pessoa durante os anos 1913-17, um perodo dentro do qual o poeta sonhou com a criao de um movimento literrio nacional que rivalizasse com as escolas europeias contemporneas. Podemos afirmar que a teorizao do paulismo, do interseccionismo e do sensacionismo representava, para Pessoa, uma soluo para um problema comum a todos os artistas modernistas: como fazer circular as suas ideias estticas no interior de um meio que era hostil inovao. De facto, em certo momento, o sensacionismo representava, para o seu criador, a reconstruo da literatura e da mentalidade nacionais. 14 Depois da fase decadentista da sua obra, que era o paulismo com o qual se estreou como poeta, Pessoa passou a sonhar com a ideia de uma arte interseccionista, mas este movimento, no seu primeiro entusiasmo, aproximava-se tanto do movimento anterior que podia ser considerada como uma espcie de paulismo a srio. 15 Pessoa escreveu Chuva Oblqua, o poema-programa do interseccionismo, em 1914 e publicou-o no ano seguinte, no segundo nmero de Orpheu. Inferindo uma teoria interseccionista a partir deste conjunto de poemas, vemos que o alm paulista continuou a ser o fim desejado pelo poeta e que, na tentativa de aperfeioar o paradigma anterior, o alm, nesse momento, seria atingido atravs da interseco de imagens provenientes da subconscincia do poeta com as da realidade que o circundava. 16 Temos de reconhecer, no entanto, que esta primeira fase do interseccionismo, onde a chegada a um estado de sonho-xtase ainda tomava precedncia sobre a realidade, teve pouca durao e, j em 1915, Pessoa admitiu que estava pronto de abandonar o seu projecto, reconhecendo-o como um mrbido perodo transitrio, de grosseria.17 Um ano mais tarde, quando vemos uma teorizao do interseccionismo reaparecer nos escritos ntimos do poeta, essa escola foi referida como uma maneira de realizar a arte sensacionista e, neste momento, a importncia do alm fora substituda pelo processo de desmontagem, ou seja,
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Almada Negreiros, A Cena do dio, p. 47. Fernando Pessoa, Movimento Sensacionista, in Exlio, Abril de 1916, p. 46. 15 Lind, p. 56. 16 Lind. pp. 60-61. 17 Fernando Pessoa, Cartas a Armando Crtes Rodrigues, p. 40.

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o binmio realidade-sonho cedeu em favor de uma fuso equilibrada dos dois elementos: Interseccionismo: o sensacionismo que toma conscincia de cada sensao ser, na realidade, constituda por diversas sensaes mescladas. 18 Na transio do decadentismo para a poesia agressivamente moderna produzida pelo sensacionismo, o que se conservou do primeiro era, fundamentalmente, a decomposio de uma situao inicial nos seus vrios aspectos objectivos e subjectivos. No de estranhar, pois, que haja, nesta tentativa de desmontar uma cena, alguma afinidade com o projecto futurista. Pessoa, tal como Marinetti, reconheceu que a arte do sculo XX tinha que reflectir as inovaes tecnolgicas que contribuiram para que a poca fosse uma poca de comunicaes quase simultneas, de mltiplas diferenas contidas num reduzido espao de tempo:
A nossa poca aquela em que todos os pases, mais materialmente que nunca, e pela primeira vez intelectualmente, existem todos dentro de cada um, em que a sia, a Amrica, a frica e a Ocenea so a Europa, e existem todos na Europa. Basta qualquer cais europeu mesmo aquele cais de Alcntara para ter ali a terra em comprimido. 19

Convm lembrar todavia, que ainda que o futurismo e o sensacionismo tenham nascido da mesma necessidade de exprimir artisticamente uma concepo do mundo cosmopolita do sculo XX, os dois programas divergiram num ponto fundamental: o papel que a subjectividade do poeta desempenharia neste projecto. Enquanto Marinetti e os futuristas queriam produzir a arte em funo de um princpio de excluso (isto : a subjectividade, a histria e a lgica deviam ser banidas do texto), Pessoa esperava criar uma escola literria totalizante, capaz de admitir tudo: ao passo que qualquer teoria literria tem, em geral, por tpico excluir as outras, o Sensacionismo tem por tpico admitir as outras todas. Assim, inimigo de todas, por isso que todas so limitadas. O Sensacionismo a todas aceita, com a condio de no aceitar nenhuma separadamente. 20 Deste desejo de incorporar o mais possvel na teoria sensacionista, surge uma crtica explicitamente dirigida ao exclusivismo do futurismo. Em carta a Marinetti, Pessoa escreve, traduzindo para o ingls as palavras de Raul Leal: It is
Fernando Pessoa, Pginas ntimas e de Auto-Interpretao, ed. Georg Rudolf Lind and Jacinto do Prado Coelho (Lisboa: tica, n.d.), p. 187. 19 Pessoa, Pginas ntimas, p. 113 20 Pessoa, Pginas ntimas, p. 159.
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therefore necessary that the Future should be the supreme synthesis of all that has been lost and all that exists still, so that it may engender the Infinite, to which nothing is ever lacking, from which no single aspect of Existence is absent.21 Na fuso de vrios tempos histricos, uma subjectividade acaba novamente por ser admitida no universo textual, mas agora, temos de considerla como uma subjectividade fingida, baseada como no preceito de sintetizar tudo o que alheio ao poeta, sob a viso do seu eu. Esta nfase posta na conscincia como a fora que totaliza a experincia faz com que haja uma deslocao fundamental na esfera em que trabalhariam os sensacionistas:
A decomposio do modelo que [os futuristas] realizam (fomos influenciados, no pela sua literatura se que tm algo que com literatura se parea mas pelos seus quadros), situmo-la ns na que julgamos ser a esfera prpria dessa decomposio no as coisas, mas as nossas sensaes das coisas. 22

Ainda que estes comentrios de Pessoa acerca do sensacionismo se dirijam fundamentalmente a uma teoria da poesia objectiva, a revalorizao do eu e a sua subsequente ficcionalizao sob a teoria sensacionista tambm trazem consigo vrias implicaes narrativas. Voltando a ateno mais uma vez para a prosa de Almada, observamos que a importncia dada imagem visual que se filtra pelo espelho da conscincia lembra a tcnica cinematogrfica experimentada em Saltimbancos mas com uma diferena fundamental: agora a imagem de uma conscincia mediadora ser includa no texto. , portanto, a presena desta conscincia, ou seja, a presena de um narrador, que constitui a fora organizadora das duas novelas sensacionistas de Almada. Segundo uma teoria da narrativa proposta por Peter Brooks, este gnero consiste essencialmente na recuperao de um passado (de um indivduo ou de um povo) atravs da sua integrao no presente, efectuada por meio do acto de contar uma histria. 23 o prprio processo de contar que confere s aces uma significao e lhes d valor metafrico que podemos interpretar como o
Fernando Pessoa, Pginas de Esttica, Teoria e Crtica Literria, ed. Georg Rudolf Lind and Jacinto do Prado Coelho (Lisboa: Atica, n.d.), p. 166. Quanto questo da verdadeira autoria deste texto, inicialmente atribudo a Fernando Pessoa, veja-se Jos Augusto Frana, A Arte em Portugal no Sculo XX, nota 163, p. 540. 22 Pessoa, Pginas ntimas, p. 137. 23 Peter Brooks, Reading for the Plot: Design and Intention in Narrative (New York: Vintage Books, 1985), p. 311.
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tema da escrita. Nisto vemos que os futuristas, com o desejo de libertar as palavras da sua ligao com qualquer conscincia subjectiva, origem da escrita, negaram a possibilidade de haver narrativas vanguardistas. Alis, a prpria interdio contra a conjugao do verbo torna impossvel o desenvolvimento temporal no interior do qual se construiria uma narrativa. Pelo contrrio, parecenos que a teoria sensacionista, ao reafirmar a necessidade de incluir a histria e a subjectividade no texto, admite a possibilidade de criar enredos numa literatura que vise retratar as contradies do mundo moderno. Assim, na anlise seguinte que traa as vrias etapas do desmascaramento que sofre o autor implcito durante o decorrer dA Engomadeira, veremos um exemplo concreto de uma narrativa sensacionista. Na apresentao dA Engomadeira, datada de 17 de Novembro de 1917, Almada dirige-se a Jos Pacheco, explicando as suas intenes ao escrever a sua Novela Vulgar Lisboeta:
Reli-a, e se bem que a accelarao de imagens seja por vezes atropelada, isto , mais espontneamente impressionista do que premeditadamente, no desvia contudo a minha inteno metal-sinttica Engomadeira em todos os seus 12 captulos onde interseccionei evidentes aspectos da desorganizao e descarcter lisboetas. 24

Neste trecho, de dupla significao, vemos o autor da novela revelando que pretende utilizar uma tcnica interseccionista e apontando para um fim temtico do texto: o de criticar a vida lisboeta, tal como fizera em A Cena do dio. Ao transformar o verbo descaracterizar num substantivo, podemos compreender a palavra descarcter em termos ticos e morais, como que resumindo as qualidades de uma populao que no possui suficiente fora de vontade para ter carcter ou individualidade e que, por isso, s pode ser descrita a partir das suas deficincias. No admira, pois, que no desenvolvimento subsequente do enredo, vejamos algumas das situaes e personagens que j haviam sido utilizadas como smbolos tpicos da burguesia no poema anteriormente comentado. Quando reaparecem na novela, porm, estes smbolos so ampliados e desenvolvidos com o fim de revelar e, da, criticar os motivos que ficam atrs das posturas que as personagens assumem na vida pblica.

Jos de Almada Negreiros, A Engomadeira in Contos e Novelas vol. 1 de Obras Completas (Lisboa: Estampa, 1970), p. 55.

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Alm disso, e mais importante para a compreenso das imagens e da estrutura dA Engomadeira, a palavra descarcter traz consigo outro sentido, que diz respeito aco de descaracterizar, ou seja, de tirar o carcter a uma pessoa. Deste significado, podemos inferir que assistiremos a um progressivo desmantelamento das personagens, medida que vemos tiradas as muitas camadas (sociais, polticas e morais) que as compem. A revelao final ser, ento, a falta de coerncia que est na base de todo o ser humano. Nenhuma personagem da novela estar livre deste processo de desmontagem da personalidade o prprio narrador inclusive. Assim, pela anlise das transformaes do narrador dA Engomadeira, que comea por narrar numa terceira pessoa omnisciente e termina num eu autobiogrfico, poderemos traar a construo e a evoluo do eu sensacionista de Almada Negreiros cuja viso domina em ambos A Engomadeira e K4 O Quadrado Azul. Este mtodo de abordar o texto a partir das vrias encarnaes do sujeito falante tambm se provar muito til pelo facto de, medida que a voz narrativa passa por vrias etapas ou estados de ser, as imagens que utiliza para descrever a realidade sofrerem algumas transformaes paralelas. Assim, veremos como a tcnica de interseco simples (do presente com o passado ou da fala com o pensamento, por exemplo) levada, finalmente, multiplicidade desenfrenada que caracteriza as ltimas consequncias do sensacionismo almadiano. Os primeiros trs captulos dA Engomadeira, que servem como uma preparao para a desmontagem que se seguir, caracterizam-se por uma tcnica de interseco ao nvel da linguagem que serve para revelar as vrias hipocrisias praticadas pelas personagens apresentadas. Esta seco da novela faz lembrar as caricaturas to tpicas do grupo dos artistas humoristas e a descrio que surge do olhar frio do narrador omnisciente corrobora a hiptese de que assistimos a trs cenas sadas da pena de um desenhador que retrata a vida do quotidiano lisboeta. 25 Isto explica tambm porque todas as personagens principais da novela so apresentadas como esteretipos genricos: a engomadeira, a me dela (descrita como a senhora do chapu), o barbeiro e o senhor Barbosa. Atravs de uma escrita baseada na oralidade, esta introduo ao ambiente em que decorrer toda a aco dA Engomadeira inclui vrios elementos sociopolticos da capital portuguesa durante os anos da Primeira Repblica: as greves constantes, a superficialidade do debate entre monrquicos e republicanos e as falsas aspiraes cultura pela parte da burguesia so evocadas com humor e
A cultivao da caricatura e da arte humorstica representa, alis, o incio do projecto modernista nas artes visuais para vrios pintores portugueses. Para um resumo das semelhanas de propsito partilhadas pelos humoristas e os paulistas, v. Jos Augusto Frana, Humoristas e Modernistas, in A Arte em Portugal no Sculo XX (Lisboa: Livraria Bertrand, 1974), pp. 33-51.
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ironia. Assim, a engomadeira declara-se monrquica, desde que um dia as outras todas se confessaram democrticas, 26 e a arte de passar a ferro surge em contraponto arte de Wagner. Num trecho em que o estilo indirecto livre utilizado para interseccionar os pensamentos do senhor Barbosa com uma conversa entre ele e o barbeiro, vemos claramente revelada a falsidade do discurso daquele, assim como a mesquinhez dos seus motivos:
Ir ao barbeiro um dever to penoso como assistir aos Sinos de Corneville, representado pelos velhinhos do Asylo de Mendicidade. Apesar disto o senhor Barbosa pedia a barba bem escanhoada porque depois do jantar ia ao Asylo de Mendicidade ouvir os velhinhos cantar aos Sinos de Corneville e que o Presidente da Repblica tambm ia. E depois de ter esboado ao barbeiro o argumento da pea disse-lhe que gostava imenso da msica mas p darroz na cara no! que no era desses! 27

De facto, esta personagem parece ser a ficcionalizao daquele bom burgus a quem o poeta se dirigia na Cena do dio e, por isso, no nos admira v-lo no captulo seguinte a passear um domingo tarde na Avenida para ouvir a msica e, ao mesmo tempo, para conhecer as raparigas. A nica figura destes captulos que parece ter alguma ideia da superficialidade da vida e que sofre uma sensao de terror implcito perante a questo da existncia a engomadeira que, logo no primeiro captulo, no tinha poltica; tinha era medo de morrer: 28 O tdio que ela sente lembra o tdio do autor de A Cena do dio, comunicado nestes versos do poema: tdio do domingo com botas novas / e msica nAvenida! 29 Quanto engomadeira: Dos domingos no gostava sentia uma coisa que era amarelo para dentro e para fora que era sujo E hoje, se no fsse a estreia das botas de canno alto, teria ficado na cama com certeza. 30 A engomadeira, alis, a nica personagem nestes captulos que experimenta directamente a interseco de sensaes variadas como, por exemplo, quando ela ouviu a msica acabar nos olhos contentes do senhor Barbosa que estava admirado de a ver por ali. Ela
Jos de Almada Negreiros, A Engomadeira (Lisboa: [edio do autor], 1917), p. 7. Todas as citaes seguintes, se no devidamente documentadas, viro desta primeira edio da novela. 27 Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 8. 28 Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 7. 29 Almada Negreiros, A Cena do dio, p. 53. 30 Almada Negreiros, A Engomadeira, pp. 9-10.
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ficou um nada comprometida com a impresso de que estava a ouvir os Sinos de Corneville tocados por um barbeiro cuja flauta fosse a navalha de barba. 31 Nos outros exemplos de interseco que encontramos nesta primeira parte da novela, o narrador que corta e reorganiza os planos temporais e verbais dos que falam com o fim de revelar as falsidades base das conversas. possvel inferir, portanto, que, enquanto os outros vivem na superfcie, a engomadeira habita um mundo diferente onde h recortes constantes entre os sentidos e os tempos. Quando o narrador e a engomadeira se encontram no Captulo IV, ser esta personagem enigmtica a que lana o narrador no caminho da aventura sensacionista. Neste captulo, que comea com a frase: Eu tinha-a encontrado quando passeava..., 32 o narrador coloca-se no texto como uma personagem secundria, um dos muitos amantes que a engomadeira traz para o seu quarto independente na Rua do Alecrim. A partir deste momento, o tom impessoal e o olhar frio da escrita satrica so substitudos por uma narrativa de primeira pessoa. Este novo narrador procurar apreender a realidade apenas em funo das sensaes que recebe dela, assim puxando o enredo da novela mais e mais para os lados da fantasia. Como uma indicao da nova fase narrativa que se inicia neste momento, h uma cena de surpreendente teor surrealista, 33 em que uma interminvel proliferao de chaves vem encher o quarto da engomadeira:
Chego-me junto da cama levanto as roupas e zs, uma chave da altura de um mancebo apurado para cavallaria. A propria cama se a gente reparasse bem era um pedao de uma chave de que eu tambm fazia parte. Cansado j deste ambiente e at com medo de tudo isto fui abrir de novo a caixa de lata para lhe pedir que se aviasse mas, longe do que eu queria comearam a transbordar chaves e mais chaves desta vez todas eguaes. E j estava o oleado todo coberto de chaves e ia crescendo o monte cada vez mais e at j nem podia mexer-me com chaves at ao pescoo quando ela entrou e to serenemente por cima de
Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 10. Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 11. 33 Surpreendente, porque Almada, no s com esta cena surrealizante, antecipou-se, de alguns anos, ao manifesto surrealista de Andr Breton. Como afirma Maria de Ftima Marinho, no entanto. bom, no esquecer que Almada adere, conscientemente, a muitos dos ditames de Marinetti, de que, alis, o surrealismo tambm devedor. , por isso, difcil afirmar categoricamente que tal ou tal caracterstica indubitavelmente surrealista. O Surrealismo em Portugal (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987), p. 148.
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todas aquellas chaves como se no fosse nada com ela at que eu lhe perguntava quasi louco a razo de tantas chaves. Afinal era para brincar aos soldadinhos, mas disse-me muito apoquentada que no lhe fizesse mais perguntas porque ultimamente andava muito desgostosa da sua vida. 34

Neste episdio (onde, quando lido na sua totalidade, a palavra chave aparece no menos de vinte e cinco vezes), David Mouro-Ferreira atribui s chaves vrios significados simblicos e metafricos o religioso, o social, o sexual mas um comentrio acerca da funo mundana da chave que revela a importncia estrutural desta cena: O simbolismo da chave est por um lado em ntima relao com o duplo papel de abertura e de encerramento; e, se atravs de um episdio como este realmente se encerra todo um ciclo da novelstica tradicional, um novo ciclo tambm atravs dele se entreabre. 35 luz desta observao, podemos interpretar esta cena como anulando o conceito realista de recriar o espao do narrado com verosimilhana. Ao trazer o narrador para o quarto dela, a engomadeira oferece-lhe a chave (ou melhor: as chaves) para o universo sensacionista (um universo com mltiplas possibilidades de abertura) e, a partir deste momento, ele ir-lhe- roubando os seus poderes. Estes poderes incluem no s o poder de reorganizar a experincia a seu gosto, mas tambm o de organizar o texto em torno de si prprio. Uma vez reconhecido que h um mundo em todas as coisas, cada mundo contm em si uma infinitude de mundos, 36 o narrador comea a apropriar-se do lugar da engomadeira como o foco narrativo. Quando chegamos ao sexto captulo da novela, torna-se claro que aquele eu que surgiu dois captulos antes est a escolher a informao que ser includa em, ou excluda de, o texto. As outras personagens s tm agora importncia na medida em que cruzam o caminho do narrador e, regra geral, elas no so imediatamente reconhecveis quando descritas segundo esta nova perspectiva. Assim, a senhora loira e chique conhecida pelo narrador em Sintra acaba por ser a me da engomadeira, j casada com o barbeiro. Curiosamente, durante este intervalo dentro do qual o narrador mudou o foco temtico da novela para si prprio, a engomadeira encontra-se na cama h perto de ano e meio. Quando ela se levanta e vai janela: a primeira impresso foi de que o Alecrim que dantes subia pr quelle
Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 13. David Mouro-Ferreira, Almada Ficcionista, p. 94. 36 Eduardo Prado Coelho, introd., A Engomadeira: Novela Vulgar Lisboeta, de Jos de Almada Negreiros (Lisboa: Rolim, 1986) p. 11.
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lado agora era ao contrrio subia pr outro lado. 37 Com efeito, a inclinao de perspectivas mudou definitivamente e, na segunda metade de A Engomadeira, a personagem da engomadeira e a sua histria pessoal quase desaparecem por completo. A transferncia do ponto de vista da terceira para a primeira pessoa, que implica uma mudana do foco da novela, levanta uma srie de novas consideraes que dizem respeito ao problema da autoridade do narrador. No momento em que o leitor depara com a dificuldade de reconhecer as personagens previamente apresentadas, tem de voltar ao incio do texto procura de pistas que devolveriam uma lgica ao enredo. Ao ler os primeiros captulos de novo, levanta-se a questo acerca de quem est a organizar o discurso e de onde vem a sua informao. Uma vez que se desconfia do narrador omnisciente, a ateno volta-se para sua presena como organizador do texto e ele torna-se to problemtico como o narrador de primeira pessoa. Esta deslocao de perspectivas, surgida das duas vozes diferentes do narrador, evidencia como a escrita da novela , no fim de contas, uma escrita reflexiva 38 . Com isto, queremos dizer que, antes de mais nada, as palavras do narrador apontam para si prprias, em lugar de se referirem transparentemente a quaisquer objectos ou acontecimentos ocorridos no mundo exterior. A temtica da novela abandona, neste momento, a tentativa de reconstruo de um mundo exterior referencial e passa a organizar-se em torno de uma rede complexa de relaes internas. Um primeiro resultado desta deslocao que, antes de serem comparadas ou contrastadas com o mundo emprico, as imagens tm de ser compreendidas no interior da estrutura fechada do texto. Assim, a ordem temporal de causa e efeito desaparece dA Engomadeira, sendo substituda por uma ordem que recorre a uma memria no cronolgica, onde as coisas e os seres se afirmam sobretudo por via da sua forma, e, tambm, por via da sua durao.39 Deste modo, o leitor obrigado a suspender o desejo de encontrar uma lgica nas aces das personagens at que todo o sistema de referncias seja exposto. Num desenvolvimento complementar fragmentao do enredo dA Engomadeira sob o conceito de reflexividade, a voz narrativa comea a falar mais e mais de si prpria, assim desmentindo o seu papel como apenas mais uma personagem na novela para revelar-se como o criador de um universo fechado, cujos limites so os do texto. No admira pois que o eu do narrador
Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 18. Joseph Frank, Spacial Form in Modern Literature, in The Widening Gyre: Crisis and Mastery in Modern Literature (Bloomington: Indiana University Press, 1963), p. 13. 39 Alfredo Margarido, A Engomadeira ou o Sentido da Vulgaridade, Jornal do Fundo, 28 Abril 1963, p. 7.
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adquira ento algumas caractersticas de um eu autobiogrfico. Assim, no dcimo captulo, interrompe-se o curso do enredo para o narrador explicar o que j adivinhmos: Talvez o leitor no saiba mas eu tambm sou conhecido como caricaturista. 40 Na informao que se segue, este narrador dirige-se directamente ao leitor implcito, explicando que nasceu a 7 de Abril, foi educado em Campolide e frequentador de uma tertlia literria no caf A Brasileira do Chiado. Pela semelhana entre estes factos e os dados biogrficos de Almada Negreiros, podemos inferir que, no fim dA Engomadeira, o narrador se desmascara totalmente, identificando-se como o autor da novela. Note-se ainda que precisamente neste momento que ele se dirige ao leitor, numa admisso aberta de que est a trabalhar dentro dos limites de uma estrutura literria. O desmascaramento do narrador como autor da novela traz consigo mltiplas referncias a certos aspectos da vida desta personagem que no chegaram a ser includos no enredo da novela e estas referncias, em conjunto com a prpria narrao da cena do nascimento do autor, indicam como os ltimos captulos dA Engomadeira se libertaro das exigncias estruturais do enredo. O discurso que prevalece nos ltimos trs captulos da novela oscila tanto entre trs vrtices diferentes os vestgios de um enredo plausvel, a pura fantasia e a exposio de uma filosofia da arte e da vida que seria impossvel fixar uma significao exclusiva informao ali exposta. Mesmo assim devemos lembrar que a revelao do autor no dcimo captulo alude presena de uma conscincia superior que esteve em todas as partes da novela, mesmo nas que foram narradas na terceira pessoa. legtimo, ento, inferir que esta conscincia que deu incio escrita possua uma razo profunda por ter contado tudo o que contou. Por isso, o que o narrador nos diz sobre si prprio no fim dA Engomadeira de grande importncia para qualquer compreenso da fico que resultou dos seus esforos. Esta considerao leva-nos a examinar mais cuidadosamente o que o narrador revela nos trechos autobiogrficos e imediatamente descobrimos que tambm ele uma criao literria, visto que os dados acerca do seu nascimento so ficcionais. A data de nascimento referida no texto (7 de Abril) corresponde data de nascimento de Almada Negreiros (o autor emprico), mas a ideia de ter nascido a bordo de um paquete no alto mar diverge dos factos histricos. claro que esta mentira contribui para a criao de um narrador de origem sensacionista porque, nascendo no alto mar, no pertenceria a qualquer pas. Atravs desta aluso s suas origens, o narrador torna-se o mais cosmopolita possvel capaz de ter desembarcado em qualquer cais do mundo. Outra
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Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 22.

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consequncia bvia que este autor tambm aparece no texto como um ser totalmente desenrazado, sem a obrigao de manter os ps em terra firme. Na interminvel fragmentao do mundo referencial que levada ao cabo nestes captulos, veremos estas concluses corroboradas. no penltimo captulo da novela que o narrador admite que os poetas vivem num mundo inteiramente mais perfeito que pertence a uma histria imensa, muito mais antiga que a nossa, 41 para depois fazer um esforo para aproximar-se de uma explicao daquilo em que consiste esse mundo. Como o narrador j admitira antes que tal explicao graficamente impossvel (Teoricamente irrealizavel de planos que apenas practicamente existem mveis na fantasia 42), tentar ilustrar a sua concepo do mundo atravs do emprego de vrios tipos de discurso, nomeadamente os trs tipos (a continuao do enredo, o fantstico e o terico) acima referidos. Assim, algumas das imagens apresentadas nos captulos anteriores sero explicadas (o senhor Barbosa explicitamente referido como O senhor Barbosa que por senhor Barbosa toda a gente) 43 outras sero repetidas (a inverso de perspectivas que agora caracteriza o mundo em geral repete-se numa aluso ao Chiado como uma ponte levadia e h um caso da gua do contador cair para cima) e outras sero reelaboradas. A cena das inmeras chaves acha o seu par e a sua explicao numa viso dos pregos de uma escada, cada uma delas contendo dentro si um mundo:
Achei mesmo dois mundos diferentes dentro do mesmo prego um era a cabea do prego, o resto era o outro. O que me interessou mais foi justamente o que era apenas a cabea do prego. E logo havia outro mundo noutra cabea de prego... e outro numa cabea de prego maior... e outro noutra cabea de prego ainda maior, e outro numa cabea de prego da altura da Torre Eiffel e um prego cuja cabea fsse a Terra e apesar disso ainda houvesse outros pregos muitissimo maiores. (elpsis no original) 44

Esta ideia da complexidade inerente aos objectos mais simples ser repetida ao longo deste captulo como que provando que a lgica do prego (assim como a da chave) aplicvel a tudo e a qualquer coisa.
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Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 27. Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 18. 43 Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 27. 44 Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 27.

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Constantes referncias presena da engomadeira como a amante do narrador so intercaladas nas vrias divagaes tericas e fantsticas do discurso, o que pode ser interpretado como uma revelao de que ela ainda lhe serve como fonte de inspirao. Quando a engomadeira aparece no dcimo captulo com a boca pintada de verde esmeralda, a cor estranha dos seus lbios vem a constituir um smbolo maior: h uma promessa da infinitude contida nos lbios (a simples superfcie que, alis, implica outras profundidades) desta mulher. A cor explicada em outra parte em termos de todas as infinitas vidas sintetizadas na cor verde 45 e o narrador exclama: Ah! e que lindos so os limos do poo de Jerusalm! 46 impossvel, porm, que a engomadeira se livre do processo de multiplicao que ela prpria desencadeou e, finalmente, o narrador comea a perd-la de vista: primeiro, h um episdio em que ele procura a amante por toda a parte, s para saber que ela est em outra e, pouco depois, o corpo da engomadeira comea a misturar-se com o corpo da cozinheira. Nada se salva num mundo onde tudo existe num estado de infinita desagregao, mas o progressivo desaparecimento da engomadeira tambm implica o fim da inspirao e, consequentemente, o fim da narrativa. A conscincia disto talvez explique o desespero com que o narrador tenta fazer-se entender, fechando o penltimo captulo com a aplicao das suas teorias religio, poltica, histria e, at, defesa de um desenho seu. Ao abrir-se o captulo final dA Engomadeira, a prpria novela j terminou, sendo isto verificvel no facto de o mundo fragmentado dos captulos anteriores aparecer agora recomposto. O ponto de vista voltou terceira pessoa e, sob o olhar objectivo de um narrador annimo, -nos contada a histria de um ano grotesco e deformado. Este ano vive num estado de auto-exlio e renncia, recusando-se a entreter os outros ou a viver custa deles, pedindo esmola: O ano j no era o mesmo morrera o bobo das tabernas, o poeta mendigo das torres 47. A razo da sua mudana provm da ideia de que, no momento da narrao, ele possui um mais elevado grau de sabedoria, explicado pelo narrador como: um orgulho de saber uma coisa que os outros no sabiam. 48 Assim, a nica coisa que resta para este ano o abrigo de uma torre (personificada numa mulher) mas, uma noite quando ele regressa torre cambaleando como um bbado, ela tambm o rejeita:

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Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 28. Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 23. 47 Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 29. 48 Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 29.

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A torre, porm, vomitou na rua um ano corcunda emmaranhado nas vestes e que foi parar defronte num marco geodsico sobre o precipcio. No peito cavdo e n sujo de cabellos negros a branquear repousava obscno o verde esmeralda postio do lbios de uma mulher. 49

Estas frases com que termina enigmaticamente A Engomadeira deixam-nos com a noo de que este ltimo captulo funciona como uma alegoria das aces ocorridas nos captulos anteriores, o ano representando o poeta-narrador e a torre a engomadeira. Para corroborar a hiptese de que este captulo constitui um eplogo que resume a aco da novela, podemos afirmar que o reconhecimento do seu estado invulgar e deformado (isto , a sua sabedoria) levou o ano a escrever a histria da torre. Finalmente, ele acha-se obrigado a renunciar sua criao ou a ser rejeitado por ela. Depois deste momento, ou seja, depois do fim, nada mais lhe resta do que a simblica lembrana da mulher que o inspirou tatuada no corpo e o nosso narrador vem parar defronte da torre, tornando-se um marco geodsico que tapa o precipcio. Assim, o ano convertese num texto, se no no texto: um objecto que, como um marco geodsico, lembra o esforo humano de medir, dividir e organizar o espao e o tempo, cujos limites sero sempre arbitrrios. Uma vez terminada a anlise cronolgica dA Engomadeira (isto : a leitura da novela que segue a ordem em que so apresentados os captulos), preciso consider-la na sua totalidade, como um sistema fechado de referncias, para avaliar a estrutura do texto. Da reconhecermos que as foras que dominam o desenvolvimento da narrativa so foras de progresso e de transformao. Em contraste com os dois textos j comentados (Frisos e Saltimbancos), a Novela Vulgar Lisboeta no se baseia formalmente no conceito da circularidade interminvel do texto nem na noo da simultaneidade dos momentos retratados, antes seguindo um percurso linear. Ainda que esta linha narrativa no possa ser considerada como recta, as curvas e os desvios da narrao dA Engomadeira conduzem-nos finalmente a um desfecho que totalmente distinto do incio. Voltando definio da arte narrativa como o processo de transformao de uma metfora incialmente cega para uma metfora final iluminada, no sentido em que a sua significao lhe devolvida pelo acto metonmico de contar, 50 podemos ento concluir que, sob a influncia sensacionista, A Engomadeira representa a primeira experincia de prosa propriamente narrativa na obra de Almada Negreiros. As vrias
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Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 30. Brooks, p. 27.

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metamorfoses do narrador, tal como a transformao paralela do mundo que ele habita, apontam para a presena de uma fora que propulsiona o texto para um fim revelador de uma sabedoria novamente adquirida. Por isso, convm agora examinar os dois plos (o incio e o fim) dA Engomadeira para chegar a uma compreenso da sabedoria que o texto visa comunicar. O tom inicial da voz crtica, assim como as cenas humorsticas da vida quotidiana lisboeta, revelam as intenes satricas do narrador quando comea a contar a sua histria. Alm de criticar a hipocrisia fundamental das personagens apresentadas nos primeiros captulos, pelo retrato do ambiente em que elas actuam, complementar s personalidades descritas, parece-nos que este narrador tambm est parodiando os gneros de literatura populista e naturalista to populares na poca. Sobreposto ao estilo leve da stira com que se abre A Engomadeira, no fim, encontramos um episdio alegrico carregado de uma significao que diz respeito arte como representando uma salvao do abismo. Leva-nos isso a concluir que a viagem ao mundo sensacionista mltiplo que testemunhmos nas pginas intermdias, o mundo de possibilidades infinitas onde qualquer superfcie esconde a promessa de profundidade, teve o fim de abrir os olhos do narrador s possibilidades transcendentais da criao artstica. Em outras palavras, A Engomadeira uma espcie de Bildungsroman no qual a prpria criao do narrador (a novela que vai escrevendo) amadurece em consequncia das lies sensacionistas. Curiosamente, este amadurecimento do olhar do narrador ficou reconhecido por Fernando Pessoa e, entre dois textos acerca da obra de Almada Negreiros, o fundador da escola sensacionista mudou de opinio quanto a esta obra. Em 1913, em ocasio da primeira exposio de caricaturas de Almada, Pessoa concedeu-lhe as qualidades de inteligncia e talento mas comentou: Que Almada Negreiros no um gnio manifesta-se em no se manifestar. Para o autor do artigo, o gnio consistiria em aquele que, quer faa stira pelo dio, quer pelo desprezo, quer pelo interesse ftil, nos d o alm-odioso, o almridculo, o alm-ftil. 51 Embora expressa em linguagem paulista, que o poeta abandonaria dentro em breve, a ideia de Pessoa ficou bem clara. Naquela altura, no podia conferir o mais alto grau de estima artstica obra de Almada exactamente porque este se recusava a manifestar-se, ou seja, a revelar-se a si prprio nas suas criaes. Assim, Almada no conseguiu transcender a banalidade que retratava. Trs anos mais tarde, numa projectada Antologia de Poetas Sensacionistas, Pessoa voltou avaliao da obra de Almada para escrever: Jos de Almada Negreiros mais espontneo e rpido, mas nem por isso deixa de ser
Fernando Pessoa, As Caricaturas de Almada Negreiros, in A guia III, 2. srie (1913), rpt. in Textos de Crtica e de Interveno (Lisboa: tica, 1980). pp. 100-101.
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um homem de gnio. Ele mais novo do que os outros, no s em idade como tambm em espontaneidade e efervescncia. 52 Deste comentrio, podemos inferir que o mesmo movimento que observmos no texto dA Engomadeira, a transformao da stira em alegoria, no s fora pressentido por Pessoa, como o impressionara bastante, dado que, em 1916, considera Almada um escritor de gnio. Note-se, no entanto, que tanto Pessoa como Almada ficaram com certas reservas quanto obra deste. Se Pessoa chama a ateno para a espontaneidade e a efervescncia de Almada, o prprio autor dA Engomadeira tambm comentara que, na novela, havia uma accelerao de imagens por vezes atropelada, querendo dizer que elas apareceram de uma maneira mais espontaneamente impressionista do que premeditadamente. 53 De facto, Almada parece admitir que, em certa medida, perdera o domnio sobre a criao das imagens e que, como resultado, o texto se desenvolvera independentemente da interveno do narrador. Esta ideia reformulada por Eduardo Prado Coelho quando observa que: [a] subjectividade excessiva desenrola-se, na ausncia de qualquer sujeito estvel, como uma espcie de exaltao do texto, de empolamento das palavras solta. 54 Levando em conta estas noes quanto instabilidade do narrador e a sua incapacidade de controlar as imagens que contribuem para a criao do universo sensacionista retratado nA Engomadeira, voltemos a ateno, mais uma vez, para o penltimo captulo, no qual o narrador/autor implcito justifica o seu projecto, momentos antes de abandon-lo. Parece-nos muito significativo que o desenho referido no texto deste captulo explicitamente identificado como um Cristo por mim publicado numa revista de rapazes a Ideia Nacional cuja nica particularidade para os outros foi ser verde e no ter cabea. 55 Ora, este desenho apareceu na capa do nmero da revista dedicada Semana Santa de 1916 (20-4-1916), um facto que nos leva a desconfiar da suposta data da escrita dA Engomadeira (7 de Janeiro de 1915) e a afirmar que este captulo, pelos menos, no foi escrito at depois de Abril de 1916. Deste modo, a carta de apresentao da novela tem de ser considerada como mais um exemplo das muitas fices autobiogrficas simultaneamente contidas e desmentidas na novela. Deduzimos, pois, que esta novela, foi escrita sobre um perodo de tempo bastante longo e que, por isso, a incoerncia e a instabilidade do narrador

Pessoa, Pginas ntimas, p. 149. Para uma anlise mais desenvolvida desta aparente mudana de opinio, veja-se Ellen W. Sapega, Fernando Pessoa e Jos de Almada Negreiros: Reavaliao de uma amizade esttica Colquio/Letras 113-114 (Janeiro-Abril 1990), pp. 169174). 53 Almada Negreiros, A Engomadeira, in vol. 1 de Obras Completas, p. 55. 54 Eduardo Prado Coelho, introd., A Engomadeira (Lisboa: Rolim, 1986) p. 11. 55 Almada Negreiros, A Engomadeira, p. 28.

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devem-se, em parte, ao prprio desenvolvimento da teoria sensacionista que, durante esse tempo, estava sempre a mudar e a ser repensada. sobretudo nossa opinio que, qualquer que seja a razo pela espontaneidade do narrador, o facto de ele ter perdido o domnio sobre o texto faz com que o produto final, ou seja, a novela na forma que a conhecemos, revele um verdadeiro processo de aprendizagem literria. Pelo facto de A Engomadeira deixar transparecer as etapas prticas resultantes da evoluo da teoria sensacionista, imprescindvel reconhec-la como um texto fundamental compreenso da obra do autor. Nesta novela, Almada experimentou uma srie de tcnicas novas, relativamente sua prosa: a incorporao do ponto de vista subjectivo de um autor implcito que, contudo, tem pouco ou nada a ver com o autor emprico; a criao de um universo literrio composto por uma srie de leis internas ao espao do narrador; o primeiro esforo para desenvolver um enredo e para contar uma histria, na qual o desfecho difere radicalmente do incio, ou seja, no qual ocorre uma verdadeira transformao narrativa. As primeiras destas tentativas surgiram directamente das teorias sensacionistas. Parece-nos que a terceira, a presena de um enredo que mudou no decorrer da aco e acabou por dizer respeito ao poder metafsico da escrita, na sequncia das outras. Dito de outro modo, uma condio essencial para o atingir da revelao final era a de o prprio sujeito ter perdido a sua estabilidade. Assim, o processo de sacrifcio, em que o poder do narrador rendeu-se s leis do texto, levou ao subsequente reaparecimento deste narrador como a primeira manifestao de um verdadeiro eu literrio na obra de Almada Negreiros. Encontraremos este eu logo, j de seguida, em outra novela sensacionista K4 O Quadrado Azul.

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CAPTULO III
A TRANSITIVIDADE DO SUJEITO LITERRIO: K4 O QUADRADO AZUL COMO O CULMINAR DO PROJECTO SENSACIONISTA Os comentrios acerca da espontaneidade de mtodo nA Engomadeira, quer apaream como parte da narrativa, quer sejam externos ao texto, podem ser considerados como que formando uma espcie de apologia do desequilbrio do argumento da Novela Vulgar Lisboeta. A mudana de foco que ocorreu no enredo, no sentido em que a histria comeou com o tom satrico de crtica social e terminou com a revelao de um universo infinitamente mais perfeito, que s pode ser aludido metafrica ou alegoricamente, serve como a verificao de que h, de facto, uma certa incoerncia temtica nesta primeira narrativa de Almada Negreiros. Ainda que seja possvel assinalar a recorrncia de certas imagens ao longo do texto, isto nos parece ser o resultado da obsesso recalcada e no de uma estratgia narrativa lucidamente raciocinada pelo autor. Da sermos levados a inferir que A Engomadeira, depois de escrita, nunca foi revista, sendo ainda possvel que nem todos os captulos fossem escritos ao mesmo tempo, ou seja, que os captulos finais fossem escritos num tempo bem posterior a Janeiro de 1915. Encontramos, alis, a corroborao desta ideia no Captulo XI, quando o narrador refere um desenho seu que s foi publicado em 1916. Nas fissuras criadas pelo desequilbrio do enredo dA Engomadeira, nos momentos em que a histria desaparece de vista, o desenvolvimento do prprio mecanismo narrativo torna-se evidente e observamos claramente como o olhar do narrador muda em relao ao mundo exterior objectivo que descreve. Desta maneira, as vrias etapas da teorizao sensacionista que constituem uma fora subjacente, propulsionadora do enredo, revelam-se claramente ao nvel textual e testemunhamos, finalmente, a chegada a um discurso que se poderia chamar o discurso sensacionista maduro. Neste captulo, poderemos examinar com mais detalhe como funciona e quais as implicaes profundas deste discurso j maduro porque, ao longo do texto de K4 O Quadrado Azul, a narrativa assenta tripartidamente sobre os conceitos de um enredo plausvel, de fantasia e de teoria metafsica. Sendo trabalhada mais cuidadosamente, esta novela tem o rigor estrutural que faltava no texto anterior e, assim, os problemas do desequilbrio do texto so
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evitados. Ao mesmo tempo, porm, veremos que o equilbrio e o rigor do discurso empregado em K4 O Quadrado Azul leva para um fim inesperado, ainda que perfeitamente lgico segundo a teorizao sensacionista. Almada, com efeito, atravs do exemplo prtico de K4 O Quadrado Azul, chega beira de uma teorizao abstracta da arte, conceptualizando por meio da palavra escrita, j em 1917, todo o percurso de emancipao esttica que leva dum quadro como a Mulher de Azul [de Oskar Kokoschka (1919)] aos azuis monocronizantes de [Yves] Klein. 1 Quando da sua publicao, K4 O Quadrado Azul teve repercusses imediatas na vanguarda portuguesa da poca, todas elas artisticamente concebidas: h referncias novela em poemas de dois dos Futuristas de Faro 2 e o pintor Eduardo Viana incluiu a capa da novela numa natureza morta pintada por ele em 1917. 3 curioso notar, todavia, que a novela K4 O Quadrado Azul tem solicitado poucos comentrios nos anos decorridos desde a sua publicao em 1917 e que os depoimentos da crtica, quando chamada a debruar-se sobre a novela, divergem radicalmente acerca do seu valor literrio. Significativamente, scar Lopes considera que K4 O Quadrado Azul [se] inclui entre as produes desta gerao que interessam mais pela agressividade irritante contra o senso-comum prevalecente do que pelo conseguimento literrio, enquanto que David Mouro-Ferreira elogia-o pela sua devastadora novidade. 4 Como veremos na anlise seguinte, esta gama de reaces novela, assim como o aparente desacordo acerca da qualidade da novela, indicam no s a dificuldade inerente leitura de K4 O Quadrado Azul mas tambm revelam a ambio do projecto que Almada prope ali. Com efeito, esta novela foi j considerada como inclassificvel se no o entendermos como um acto de dilogo polmico com a Literatura, Cultura e Histria, que criticamente reflecte. 5 Como um exemplo da segunda fase do sensacionismo, K4 O Quadrado Azul , antes de tudo, um texto que procura ser um objecto, isto : prope uma viso totalizante e independente que, em vez de ser analisada, deva criar
Alberto Pimenta, Almada-Negreiros e a Medicina das Cores, Colquio/Letras 79 (1984), p. 28. 2 Veja-se Saudaes, escrito por Kernoc e Orientes por Nesso, ambos publicados em 1917 e reproduzidos em Poesia Futurista Portuguesa (Faro 1916-1917), ed. Nuno Jdice (Lisboa: A Regra do Jogo, 1981), pp. 61 e 105, respectivamente. 3 Eduardo Viana, K4 O Quadrado Azul, Cento de Arte Moderna, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa. 4 scar Lopes, Almada Negreiros e David Mouro-Ferreira, Almada Ficcionista, p. 89. 5 Vera Vouga, K4 O Quadrado Azul Pr-se a Nascer Outra Vez, Cadernos do Centro de Estudos Semiticos e Literrios [Porto], 1 (1985), p. 32.
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reaces imediatas no leitor no que respeita s sensaes que desperta. luz deste facto, observamos que o autor, mais uma vez, est a lutar com o problema da objectivizao da literatura mas, afastando-se das tcnicas j experimentadas em Saltimbancos, onde a objectividade foi procurada pelo uso de cada palavra como que independente das outras e criando uma totalidade apenas analogicamente compreensvel, K4 O Quadrado Azul narra abertamente uma histria inconfundvel, ao mesmo tempo que nega a possibilidade de haver aproximaes racionais ao seu contedo. Deve-se isto, em grande medida, ao papel esmagador e herico desempenhado pelo objecto aludido no ttulo o quadrado azul. Esta forma geomtrica extremamente simples mas contm uma variedade infinita de significaes. Como na arte abstracta, o quadrado de Almada aposta na possibilidade de encontrar uma libertao da realidade (das relaes tradicionais entre o tempo e o espao) atravs da celebrao da cor e da forma como foras omnipotentes. Convm lembrar como, no caso dA Engomadeira, um dos problemas inciais do sensacionismo foi revelado quando o processo de decomposio, mesmo aplicado aos objectos mais simples, ilustrou os perigos de uma teoria baseada no conceito de sentir tudo de todas as maneiras. 6 Se continuarmos a analisar a obra de Almada que data do perodo 1915-17 em termos de pensamento pessoano, somos levados a considerar K4 O Quadrado Azul como organizado em torno de uma conceptualizao mais rigorosa da teoria sensacionista, como pertencendo no sensacionismo geometrizado que Pessoa comeou a desenvolver em 1916. Como j foi assinalado, era impossvel formar uma escola literria que tinha como a sua nica regra no ter regra nenhuma, mas que [tinha] por tpico admitir as outras [correntes literrias] todas. 7 Ao proclamar uma arte que visava incorporar as tendncias estticas mais diversas e at contrrias, o poeta correu o risco de chegar at aos limites da expresso ao silncio ou insensatez, dois estados aludidos, alis, no desfecho dA Engomadeira. Talvez por causa da conscincia deste perigo, Pessoa props, em 1916, um programa para regular o sensaciomsmo. Atravs da observao analtica da sensao, Pessoa chegou concluso de que cada sensao consistia em seis componentes distintos. A partir desta descoberta tornou-se possvel ento realizar na arte a decomposio da realidade nos seus elementos geomtricos psquicos 8 e da precaver-se contra a proliferao interminvel das imagens que poderiam surgir como ligadas a qualquer sensao.
lvaro de Campos, Passagem das Horas, Poesias (Lisboa: tica, 1980), p. 222. Pessoa, Pginas ntimas, p. 159. Quanto impossibilidade deste projecto, veja-se o comentrio de G. R. Lind: Mau ponto de partida para uma nova corrente literria! Porque uma arte que fosse apenas a sntese de pocas anteriores, tinha por fora que ser eclctica e de contornos mal definidos. Teoria Potica de Fernando Pessoa, p. 165. 8 Pessoa, Pginas ntimas, p. 186.
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Ao tentar isolar os elementos constituitivos da sensao, foi preciso objectivar as reaces subjectivas ligadas sensao e, assim, Pessoa chegou concluso de que as ideias se representariam por linhas, as imagens mentais por planos e as imagens de objectos por slidos 9. Atravs da sobreposio das linhas e dos planos, chegou a imaginar a construo de um objecto geomtrico tri-dimensional, ao qual deu o nome do Cubo de Sensao. Os lados deste cubo foram ento descritos como:
a) sensao do universo exterior; b) sensao do objecto de que se toma conscincia naquele momento; c) ideias objectivas com o mesmo associadas; d) ideias subjectivas com o mesmo associadas (estado de esprito naquele momento); e) temperamento e base mental da entidade perceptiva; f) o fenmeno abstracto da conscincia. 10

Segundo este modelo, tornou-se possvel entender a perspectiva do artista como resultando de uma de trs maneiras de encarar ou representar o cubo. Dependendo da posio assumida pelo artista para com o cubo, o texto resultante estruturar-se-ia a partir de uma orientao em que um, dois ou trs dos lados do cubo fossem vistos ao mesmo tempo. significativo, pois, ser fisicamente impossvel que apaream mais de trs lados ao mesmo tempo, um facto que nos lembra mais uma vez o discurso sensacionista tripartidrio das novelas de Almada. Agora podemos considerar este discurso como que construdo a partir da sobreposio de ideias, imagens mentais e imagens de objectos. Parece-nos neste momento que a aproximao da teoria pessoana prtica de Almada ultrapassa a dimenso meramente analtica alm das semelhanas entre o discurso de Almada e a teoria de Pessoa, vemos que aquele escolheu a prpria imagem de um cubo como a inspirao formal da sua novela K4 O Quadrado Azul. Isto , a apresentao na pgina deste texto lembra o objecto aludido no ttulo: as vinte pginas de prosa cerrada que compem o texto formam uma totalidade compacta e densa, um objecto slido em si, devido ao facto de no conter nenhuma diviso em captulos ou pargrafos. Antes de considerar esta escrita como futurista, porm, necessrio notar que, ainda que este formato lembre a tcnica da palavra em liberdade que Almada experimenta em Saltimbancos, s nas ltimas pginas que o autor deixa de respeitar as convenes de pontuao e de sintaxe. Veja-se tambm, ao contrrio do exemplo da novela futurista, que o curso do tempo ter
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Pessoa, Pginas ntimas, p. 182. Pessoa, Pginas ntimas, p. 181-82.

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um lugar de destaque em K4 O Quadrado Azul. Da sermos levados a admitir que esta novela no se trata de uma aplicao da ortodoxia futurista mas, pelo contrrio, de uma violenta experincia em que esta assumida como parte de um todo sistematicamente posto em causa na sua reelaborao textual. 11 Atravs de uma anlise de K4 O Quadrado Azul que procura entender, no contexto da novela, alguns dos nveis de significao da imagem do quadrado azul, verificaremos que o modo futurista de se exprimir resulta de uma aventura vivida pelo narrador/protagonista e que essa aventura ser contada por ele, dando forma ao enredo da novela. Neste sentido, o quadrado desempenhar um papel na histria, aparecendo como um objecto simultneamente concreto e sonhado, pertencente ao mundo emprico e catalizador da aventura de sabedoria que viver o narrador. Sero as lies aprendidas luz do quadrado que conduzem o narrador ao desfecho iluminado que, primeira vista, parece inspirar-se na teoria futurista. Assim, a avaliao da viso futurista em K4 O Quadrado Azul tem, necessariamente, que comear pela anlise da situao inicial da histria onde o leitor apresentado com o ambiente que ser transformado pela escrita. H algumas semelhanas com A Engomadeira que saltam imediatamente vista quando comeamos a leitura de K4 O Quadrado Azul: de um ponto de vista aparentemente objectivo, a filha de um Marqus apresentada como um ser pouco satisfeito com a vida banal das superfcies. Como foi o caso com a novela anterior, assistimos a uma cena em que a sociedade da poca apresentada nossa avaliao, mas, na segunda pgina K4 O Quadrado Azul, o narrador revela-se e no h qualquer tentativa de esconder o facto de esta novela tratar exclusivamente as experincias vividas pelo eu que fala. Assim, deduzimos que a histria comea com a descrio dessa mulher devido ao papel importante que ela desempenhar no caminho do narrador para a sabedoria, uma ideia que corroborada logo a seguir, quando sabemos que a filha do Marqus , de facto, o duplo do narrador:
E pouco a pouco como dois astros perdidos no infinito e cujas trajectrias, anticipadamente traadas por Aquele que tudo rege, forosamente um dia se ho-de cruzar, assim tambm as nossas duas almas, j por vrias vezes a tinha pressentido, era inevitvel que mais cedo ou mais tarde no viessem a encontrar-se face a face. E ainda bem para mim, no me enganei! 12
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Vouga, K4, p. 34. Jos de Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul (Lisboa: Edio do Autor, 1917), p. 4.

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Na primeira edio da novela, esta citao constitui o fim da primeira pgina do texto, alm de servir como exemplo de vrios elementos lingusticos e temticos exclusivos ao incio da novela. De facto, essencial notar que as cenas iniciais formam uma seco distinta ao resto do texto e, por isso, so apresentadas parte, incritas numa caixa e com caracteres tipogrficos de tamanho diferente de aqueles que sero utilizados nas pginas seguintes. 13 Tambm, no fim desta seco, encontramos a indicao para os leitores de que a histria continua, lembrando a tcnica dos romances seriais ultra-romnticos dos jornais. Quando visto em conjunto com a presena de imagens de luxria e de metforas excessivamente rebuscadas, reconhecemos facilmente como h um alto grau de desnivelamento entre a forma e a linguagem nesta seco da novela. Este incio parece muito estranho num texto que, visualmente, lembra um texto futurista e temos a impresso que estamos a ler uma pgina que ainda pertence ao cdigo paulista de Frisos, ou seja, que remete a uma fase abandonada dois anos antes da escrita de K4 O Quadrado Azul. Da mesma maneira, a cena e as personagens (a filha dos Marqueses que aparece num quimono crepe da China, atravs do qual no passava o perfume penetrante da sua alma raffine 14), tambm pertencem a um mundo j renunciado pelos vanguardistas. Ainda que uma explicao possvel para este incio to estranho ao universo literrio de Almada seja a de inferir que o trecho inicial constitui mais uma pardia, convm notar, todavia, que a amargura ou o riso, to importantes criao satrica, esto ausentes nesta primeira pgina da novela. Permite-nos isto consider-la como que constituda por uma tentativa de reproduo, ao nvel da imagem, do estilo paulista. Levando isto em conta, verificamos ento que estamos a assistir a uma tcnica muito mais subtil do que aquela que caracterizava o incio dA Engomadeira porque, em vez de ser abandonada ou sacrificada teoria que segue, a escrita j ultrapassada, que reproduzida na primeira pgina de K4 O Quadrado Azul, ser reavaliada e contestada nas pginas subsequentes. Dito de outro modo, os elementos paulistas que caracterizam a primeira pgina esto presentes ao longo do todo o texto como uma lembrana do mundo anterior e ignorante de o quadrado azul. Neste sentido, no ser demais sublinhar a importncia do tema do duplo, uma referncia implcita ao universo literrio de S-Carneiro. Em grande medida, o desenvolvimento narrativo de K4 O Quadrado Azul ser efectuado em torno dos
Deve-se notar, porm, que, na segunda e na terceira edies de K4 O Quadrado Azul, publicadas pela Estampa em 1970 e a Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 1989, no h indicao tipogrfica qualquer da separao desta parte da novela do texto que se seguir. 14 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 4.
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temas paulistas trabalhados pelo autor de A Confisso de Lcio. Da o enredo ser construdo a partir dos recursos estilsticos e temticos de reflexo, repetio e transferncia. Segundo as convenes do universo literrio de S-Carneiro, o acto de encontrar, na vida, o duplo que foi to desejado no sonho implicou sempre um desenlae fatal do enredo, ou seja, a perda e o aniquilamento do ser. Em K4 O Quadrado Azul, no entanto, o encontro tem um resultado oposto e vemos que liberta o narrador, no sentido em que s depois deste momento que ele se torna capaz de experimentar as revelaes do quadrado. Assim, quando a novela recomea na segunda pgina, o quadrado azul aparece ao narrador como a consequncia directa do encontro com o seu duplo:
De feito, Eu, que tantas vezes me excomungra por esta injustia de Deus me ter feito homem, e mais ainda por esta infmia de Deus me ter nascido portuguez, j me transpunha em regosijos por esta realizao prtica da minha inteligncia expressa em amante admiradora. Sei apenas que um dia a achara extraordinariamente parecida com o meu desejo de imperar predominantemente-ruivo de esfera de cobre em brza e dilatada a tal ponto que me pareceu a memria de me ter mascarado de amante para mim; mas sempre que a quizra recordar definia-se-me sinteticamente em quadrado azul, azul no sei qu. 15

Numa primeira tentativa de assinar uma significao ao quadrado, podemos deduzir que o objecto geomtrico surge na narrativa como a abstraco da inteligncia e do desejo do narrador, duas coisas que ele diz ter encontrado espelhadas na figura da sua amante. Note-se tambm que a equilibrao do discurso efectuada exactamente no momento em que surge o quadrado: o tom passadista abandonado a favor da cultivao de imagens mais audazes, tpicas do vanguardismo. Disso podemos inferir que, quando a forma e o contedo da novela convergem numa relao harmoniosa em torno da figura do quadrado, a novela pode comear de novo, propondo um desenlace diferente de, no sentido em que ser uma espcie de emenda posterior ao modelo paulista. Ao descobrir-se reproduzido na inteligncia da sua amante, o narrador chega a uma concluso fundamental acerca da relao do homem com o tempo: os olhos dElla encaixavam-se justa dentro dos meus nesta necessidade de
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Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 5.

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que h de haver dois a ser infinito. E as formas diluam-se-lhe para turvaes de absinto em suspenses acesas de espasmos venenosamente ricos de quadrado azul. 16 Desta maneira, o problema de como o infinito se torna representvel introduzido na novela e, atravs do quadrado, o narrador apercebe a maldio da humanidade condenada ao prolongamento indefinidamente-desespero da noo do instante. 17 Assim, num segundo nvel de significao, o quadrado serve como um objecto de transferncia, deslocando o problema pessoal da relao do ser com o Outro para um nvel mais objectivo em que se questiona o problema da percepo humana do espao e do tempo. Ao aludir dialctica eternidade-instante, o quadrado aparece como a sntese destes dois plos, como a representao do infinito. O problema do infinito, isto , da sua compreenso e da sua subsequente representao, ocupar grande parte do discurso de teor filosfico que o narrador se v levado a desenvolver quando contempla o quadrado azul. Pelo esboo de uma teoria do infinito, o narrador consegue resolver, sob o conceito da velocidade, o conflito eternidade-instante. Neste elogio da velocidade temos uma indicao de como vai chegar concluso futuristicamente concebida da novela. O quadrado, neste momento, serve como lembrana das contradies da existncia humana, do homem condenado a experimentar a vida numa srie de momentos-instantes sem sentido profundo, ao mesmo tempo que anseia sempre chegar a uma compreenso totalizante da vida. Esta compreenso implicaria, alis, o atingir da eternidade (isto sendo, no coincidentalmente, o desejo de SCarneiro). Quando o narrador aproveita a teoria da velocidade para ligar o futuro com o presente e com o passado, o conflito instantaneamente resolvido e depois comunicado pela frase-chave da novela: A eternidade existe sim, mas no to devagar. 18 H, nesta frase e nas descobertas associadas com o quadrado toda a alegria de uma emancipao esttica que liberta o narrador das limitaes impostas nele pelos conceitos tradicionais do tempo e do espao, possibilitando-lhe a leitura dum universo escrevendo-se instante a instante a caminho dum sentido final. 19 Uma vez que o futuro entendido como a sntese do passado, observamos pela primeira vez o aparecimento de um conceito que ser fundamental na obra literria posterior de Almada a ligao do pensamento futurista com o conceito do regresso s origens mticas do ser:

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Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 5. Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 7. 18 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 10. 19 Alberto Pimenta, p. 27.

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O prprio conceito de futuro em Almada atesta marcas de um tempo mtico, ponto-sntese e, em simultneo, metamorfose ltima de todos os prvios tempos, ou seja, numa espcie de eternidade. Dilatao mxima do presente, o futuro encarado como um estado de vivncia que O Poeta de Orpheu, futurista, e tudo deseja colectivo e actuante e do qual ele prprio se faz arauto e profeta. 20

neste sentido que se encaixam os toques futuristas e a temtica paulista no mesmo texto. luz da teoria da velocidade como o segredo da eternidade atingida, as duas datas diferentes atribudas novela (Lisboa 1917 Europa Modelo 1920 21) comunicam a esperana de que velocidade faa com que a novela seja eterna. Tambm compreendemos melhor porque o fim da histria passa para acontecimentos internacionais que so comunicados por uma escrita tripogrfica que lembra um telegrama. Foi a mquina telegrfica que, pela velocidade da transferncia, possibilitou a comunicao quase simultnea por todo o globo, juntando povos distantes instantaneamente, demonstrando que o tempo uma funo do espao e possibilitando a realizao do momentosntese com que sonhavam os paulistas. Na seco filosfica de K4 O Quadrado Azul, temos de reconhecer, sobretudo, que todas as ideias desenvolvidas pelo narrador surgiram espontaneamente, como consequncia do momento-instante vivido luz do duplo e do quadrado azul. O quadrado sentido e vivido, mas no analisado ou explicado. Assim, o resultado deste flash de sabedoria experimentada pelo narrador comunicado por um discurso que muito mais irracional do que filosfico, quer dizer caracteriza-se pela observao intuitiva e instantnea e no pelo raciocnio intelectual. Consistindo numa montagem catica e contraditria, quase toa, de uma srie de frases que dizem respeito relao do homem com o universo, o pensamento do narrador, nesta seco, foge s regras do discurso lgico e o leitor que procure uma compreenso analtica da informao ali fornecida tem por definio, que fracassar. Por isso, convm lembrar neste momento que K4 O Quadrado Azul constituda no s pelos voos da imaginao filosfica, mas que tambm inclui vrias seces narrativas e que , alis, nestas seces que se encontram as revelaes metafsicas do quadrado. Num processo muito parecido a uma tcnica utilizada pelos cubistas, as fronteiras tradicionais entre o objecto da escrita (o enredo) e o fundo (a
20 Celina Silva, Ntulas para o Estudo do Primitivismo em Almada Negreiros Um AntiSaudosismo?, Nova Renascena, 18 (1985), p. 163. 21 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, pp. 3 e 18.

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filosofia) tm sido eliminadas, mas no podemos esquecer que o quadrado , sobretudo, um objecto fsico. Assim, considerando este quadrado como mais um elemento numa novela que conta com um mundo concreto, vejamos como as revelaes vividas pelo narrador luz do quadrado se encaixam no tempo pblico da histria. Quando o quadrado aparece na novela como um objecto fsico, vem numa carta enviada para o narrador: Quando voltei outra vez havia uma carta registada para mim... Dentro s estava um quadrado azul. 22 No espao representado aqui pela elipse, v-se includo, no texto, o carimbo que supomos pertencer ao envelope dessa carta, onde se lem as palavras Vigo-Pontevedra e a data 15 08 16, com a clarificao 1. Exp. 23 Neste gesto futurista de misturar vrios caracteres tipogrficos, h uma tentativa de provar que tal carta existiu como elemento do mundo concreto da novela. Uma vez provada a realidade fsica da carta, o narrador abandona, contudo, essa realidade e inicia a elaborao do trecho filosfico acima referido. Como j dissemos, esse trecho consiste na recriao dos sentimentos que o quadrado azul lhe despertou. Por isso interessante notar que a primeira impresso que o narrador tem do quadrado a das suas caractersticas fsicas e que, enquanto a cor se mantm pura e imutvel, as dimenses desse objecto parecem estar num constante estado de transformao:
A luz espalhou-se igual por todo o quarto sem fazer sombras por detraz dos mveis transparentes de mdo nas veias cas de azul quadrado. Talvez que o azul que fsse quadrado mas havia tambm e por toda a parte um s quadrado azul que enchia o quarto todo e sempre com um dos vrtices onde Eu fitsse. 24

Esta imagem do quadrado com os vrtices sempre a mudar, ou seja, apresentado, sem parar, os planos diferentes para serem avaliados, lembra a
Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 6. muito interessante notar uma coincidncia entre a cidade de origem desta carta e as Odes Sensacionistas de lvaro de Campos que tanto inspiraram Almada. Quando da publicao de Orpheu, Fernando Pessoa quis dar uma ideia de individualidade do lvaro de Campos e pediu a Alfredo Guisado papel do Casino de Vigo, no qual copiou o texto da Ode Triunfal. Por algum tempo, circulou a noo que lvaro de Campos foi originrio da Galiza. Assim, a escolha de Vigo como cidade de origem do quadrado azul pode ser considerada como constituindo uma aluso ao primeiro grande poema sensacionista que chegou s mos dos companheiros de Orpheu via aquela cidade em 1915. (Veja-se Um indito de Fernando Pessoa, ed. Franois Cortex, Colquio, 48 (1968), p. 60.) 24 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 7.
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teoria do Cubo de Sensao, e, j luz dessa teoria, podemos supor que o tamanho, a forma e a cor do quadrado correspondem a um dos lados do Cubo: s ideias objectivas com [ele] associadas. Da mesma maneira, a descrio do estado de esprito do narrador, que d origem s indagaes acerca da representao do infinito, surge como consequncia as ideias subjectivas com o mesmo associadas. Durante o monlogo, que provm da tentativa de o narrador explicar as ideias subjectivas associadas ao quadrado azul, referncias realidade externa, assim como passagem do tempo, desaparecem do texto. S que duas frases, intercaladas no meio discurso filosfico, tm o efeito de demonstrar que o mundo objectivo ainda existe: Na manh seguinte quando recordei o quadrado azul j no era sobre a secretria. Havia era uma carta que Eu ainda no tinha aberto. 25 Esta observao levar-nos-ia a concluir que o quadrado de facto nunca existiu, que s surgira da imaginao do narrador, se no fosse que, ao abrir a carta (de novo), ele encontra uma letra graphologicamente musical, 26 e, no fim, aparece o quadrado mais uma vez. A segunda leitura da carta corrobora a presena do quadrado azul e, por isso, as duas leituras so quase iguais. Inspirado pela letra auditiva-visual, o narrador experimenta as mesmas sensaes que experimentara no dia anterior e continua a desenvolver a narrativa segundo a perspectiva puramente subjectiva. Ao sublinhar o facto de a carta ser lida pelo menos duas vezes, vemos como, depois do tema do duplo, a repetio surge como um factor importante na estruturao do enredo. A frase que alude passagem do tempo deve ser entendida portanto como prova de que o narrador est a experimentar dois tempos diferentes no momento em que escreve a novela: o tempo pblico no qual continuam a passar os dias, as horas e os minutos e o tempo ntimo que o quadrado lhe tem revelado. Assim, notemos que os trechos referentes ao fluxo do tempo so sempre expressos num tempo passado e que nos que falam subjectivamente do quadrado o tempo presente utilizado. Podemos inferir que o momento da escrita pertence a um tempo posterior aos acontecimentos que o narrador est descrevendo e que, na tentativa de expor pela palavra o que sentiu quando viu o quadrado, ele sente tudo de novo com tanta fora que passa ao emprego do tempo presente. Dito de outro modo, as pginas e pginas filosficas surgidas da descrio do quadrado constistem no s na recriao de um tempo vivido anteriormente, mas tambm so comunicativas da reexperincia de tal momento vivida pela repetio, por escrita, daquele momento. Da que deduzimos que o discurso filosfico de K4 O Quadrado
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Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 9. Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 9.

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Azul consiste, essencialmente, no alargamento pela escrita de um estado que, originalmente foi sentido, talvez, s na durao de um instante. A verificao de que estamos a ler uma srie de amplicaes do instante vem quatro pginas depois de o narrador ter aberto a carta pela segunda vez. Quando ele volta a empregar o tempo passado para observar: A creada veio trazer-me numa bandeja de cristal contente a rir cerimonia uma imensidade de compotas e refrescos, 27 entendemos como, na verdade, pouco tempo pblico tem passado. Com a entrada da criada, o narrador devolvido ao tempo cronolgico da histria mas, tal como aconteceu nA Engomadeira, regressa ao mundo num estado transformado. Desta vez, quando o discurso vira do vrtice plausvel do enredo para um vrtice fantstico, -nos explicado que a transformao resultou directamente dos poderes separativos do quadrado azul, ou seja, da prtica sensacionista. Com efeito, o quadrado azul tem o poder de decompor a realidade nos seus elementos geomtricos psquicos:
Esta vontade que me ocorria de quando saisse de manh pr passeio eu no saisse todo, saisse s metade por exemplo, ou s as pernas, ou s a Inteligncia desalojada do crebro, ou s a sensualidade, ou s o desejo de ser um fio onde estivssem enfiados os valores interessantes das formas em geral resolve-se excedentemente no quadrado azul. 28

Por isso, quando a criada entra no quarto e o narrador se encontra na presena de outra pessoa, ele percebe que mudara fisicamente:
Eu ia pouco a pouco enchendo-me daquela estranheza de nunca ter estado naquelle quarto e pra sentir melhor esse palpitar nervoso do meu corao levei a mo sobre o meu peito mas tinha um seio de mulher. Ella descerrou as janelas cautelosamente e ento reparei espantado que estando eu todo descoberto o meu corpo n era de mulher. 29

Ao descobrir que o corpo, os movimentos e as vontades fsicas so os de uma mulher, o narrador corre ao espelho onde v imediatamente que: Eu era a
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Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 13. Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 12. 29 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 13.

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minha amante! 30. Quando o acto de transferncia que era desejada desde a primeira pgina da novela finalmente realizado, observamos que o tema do duplo reaparece e que continua a ser estreitamente ligado teoria do quadrado, ou seja, teoria sensacionista. Notemos, todavia, que s o corpo e as reaes externas do narrador mudaram e que, no seu interior, o narrador continua a pensar como a mesma pessoa: Mas a inteligncia era absolutamente a minha. 31 Com efeito, neste momento, o narrador conseguiu o estado que as personagens da obra de S-Carneiro ansiavam: experimenta fisicamente a transferncia da sensibilidade para um corpo feminino. No admira ento que reapaream alguns toques paulistas no texto, esta vez comunicados num tom humorstico:
Fui inconscientemente abrir um dos guardavestidos e vi-a ter todos os gestos que se teem pra se escolher um vestido que v bem com a disposio do accordar mas o vestido preferido era o meu corpo molle. Nisto entrou a creada ainda toda na e ajudou-me a vestir-lhe o meu corpo molle tendo ficado muito contente com ella por ter resolvido pr hoje aquelle vestido que lhe ficava to bem. Eu quiz dizer qualquer coisa que me no lembra mas a minha bcca disse sem querer em italiano: traga-me os sapatos de velludo! 32

Assim, deparamos com o facto que, alm de se encontrar dentro do corpo de uma mulher, o espao que o narrador habita j diferente. Agora encontra-se em Itlia, lugar paulista, por excelncia. Este retorno ao mundo paulista nas ltimas pginas de K4 O Quadrado Azul indicativo da importncia dessa escola potica como elemento fundamental na estruturao do enredo. Mais interessante ainda o facto de a obra de S-Carneiro servir como pr-texto, se no duplo da histria que o narrador se viu obrigado a contar, visto que, num pequeno dilogo que ocorre no fim da novela o interlocutor ausente com quem o narrador fala o companheiro dos tempos de Orpheu, j morto em 1916:

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Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 14. Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 14. 32 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, pp. 14-15.

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No te lastimes, meu polidor de unhas, eu no te serei ingrato como os outros. Eu saberei transparecer em ti esta minha paixo ardente por esse teu gesto curvado de espelhar as unhas em que escondes por vergonha todos os desejos intimos de meio mundo que te usa. 33

Referindo-se a S-Carneiro pelo nome de polidor das unhas, uma imagem que, assim como as atitudes de vergonha e ingratido, caracteriza os ltimos poemas de S-Carneiro, o narrador de K4 O Quadrado Azul revela como, ao deixar transparecer em S-Carneiro a sua paixo ardente, se tornou possvel atingir o sonho paulista a deslocao fsica da subjectividade. No entanto, no podemos esquecer que agora o paulismo, tal como o futurismo, representa s um dos muitos elementos de K4 O Quadrado Azul, novela sensacionista por excelncia onde uma variedade de tendncias estticas filtrada pela paixo ardente do narrador. Graas ao quadro azul, verdadeiro Cubo de Sensao, o narrador encontra-se finalmente num estado liberto, tendo conseguido a deslocao fsica da sua subjectividade. Ainda que a subjectividade se mantenha sempre ligada viso do seu eu (a Inteligncia do narrador transferida para o corpo do Outro), este eu existe agora como uma relao, deixando de ser um valor imutvel. Pelo facto de ter havido uma verdadeira troca fsica entre o corpo do narrador e o da sua amante, o narrador de K4 O Quadrado Azul consegue viver o Outro e da que a histria chegue ao seu fim com a personagem tornando-se completamente mvel. Temos de reconhecer, neste momento, que a histria contada em K4 O Quadrado Azul trata, no fim de contas, da descoberta da transitividade e distributividade social (e no a singularidade pura) do senso do eu e do tu 34. Em termos de enredo, a subjectividade acaba por funcionar como um recurso estilstico desligado do conceito do narrador como indivduo e, na ltima transformao dele, este movimento perptuo do sujeito confirmado: A minha amante no uma mulher, Puff! A minha amante a velocidade que Eu monto. Bravo!! 35 Assim assistimos, em forma narrativa, ao eu sensacionista que George Rudolf Lind descreveu como base das odes sensacionistas de lvaro de Campos: O Eu potico identifica-se com todas as coisas, e deixa-se levar pelo dinamismo delas at um delrio vertiginoso, no auge do qual as coisas
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Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 14. scar Lopes, Almada Negreiros, p. 691. 35 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 17.

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isoladas perdem os contornos e se fundem com o Eu sensvel numa fora abstracta, na energia que faz mover o universo. 36 O eu sensacionista , com efeito, o quadrado azul, e vice-versa. A forma e a cor puras fundem-se neste objecto para significar a identificao total do eu com o Outro: a identificao de sujeito e de objecto, a coincidncia dos opostos, num acto de criao pura de silncio das formas a priori para atingir a dimension immatrielle de lunivers, 37. Da que surge a definio do gnio que foi profetizada no subttulo da novela: Poesia Trminus / Diz-se Aqui o Segredo do Gnio / Intransmissvel. 38 Produto da subjectividade mvel, abstracta e colectiva, ser gnio consiste no princpio de abandonar-se para se ser: Ser gnio quer dizer reproduzir-se igual a si prrpio, exageradamente a si prprio. Logo: no h gnios. 39 A proclamao e subsequente negao da existncia de gnios constitui uma admisso pela parte do narrador da sua descoberta e do fracasso ltimo do seu projecto. No existe uma arte que seja capaz de reproduzir a subjectividade de uma maneira puramente objectiva e o narrador v-se obrigado a condenar todos os mtodos existentes de expresso artstica porque no conseguem captar a essncia, isto , a pureza do instante:
O gramafne, o cinematografo, a Arte e a lynotipe reproduzem os sentidos, as qualidades, os defeitos, a sensibilidade, a ideia mas tudo subjectivamente, tudo deficientemente, tudo convencionalmente. Invente-se a machina de reproduzir o crebro! industrializa-se o gnio! e coa morte perptua do subjectivismo, da deficincia e do convencionalismo proclamar-se-ha a paz definitiva erguida de entre todos os crebros absolutamente iguaes pra dentro. 40

A paz definitiva, a identificao total com o universo, o crebro industrializado e, na ltima anlise, o quadrado azul so todos ilustrativos do silncio perfeito do instante-eternidade. Que um fracasso na tentativa de recuperar este silncio total pela escrita inevitvel vem reiterado vrias
Lind, p. 189. Pimenta, p. 26., O autor est a referir-se aqui pintura Monochrome Blue de Yves Klein (1959), que considera como ilustrativa da aflio do mistrio que Almada sofre em K4 O Quadrado Azul. 38 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, pp. 3 e 18. 39 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 16. 40 Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 17.
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vezes no fim da novela pela repetio da frase: Oh! Puff! como Eu odeio a Humanidade que se exprime! 41 No temos outra alternativa se no concluir que o narrador, j identificado como o poeta Jos de Almada-Negreiros (e nisto entendemos que a novela resultou de uma tentativa de industrializar o seu crebro), inclui-se na categoria da Humanidade que se exprime, pois tambm acabou por contar uma histria. Nesta auto-condenao, inscreve-se o fim do experimentalismo novelstico: a descoberta, luz do quadrado azul, do facto de que a realidade, quando reduzida a um sistema de relaes (de forma, de cor, de sensaes) demonstrou como viver o instante essencial, assim como , por definio, incaptvel pela palavra, seja paulista, futurista ou sensacionista. Com efeito, o narrador, no fim de K4 O Quadrado Azul tem entrado num beco sem sada de onde s se pode recuar. Poesia Trminus / Diz-se Aqui o Segredo do Gnio / Intransmissvel. Assim, o fim da pesquisa revelado, no sentido em que descoberto o segredo da relao pura, do momento-instante-eternidade, mas que este segredo continua a ser, infelizmente, impossvel de comunicar. Terminada a nossa leitura de K4 O Quadrado Azul, notemos sobretudo como a mitificao do eu potico, sob o signo do sensacionismo, levada s ltimas consequncias narrativas: ao desenvolver um conceito da subjectividade fingida que, alis, tambm constitui uma das marcas mais originais dA Engomadeira, o narrador de K4 O Quadrado Azul sintetiza e incorpora tudo o que lhe alheio e assim acaba por perder-se. Da esta novela narrada na primeira pessoa descentralizar-se e passar a contar a histria do eu em termos da sua existncia como uma relao instvel. Observamos tambm que, complementando esta tendncia para a pureza da relao, as imagens visuais comunicadas na novela passam para os lados abstractos da arte. Deste modo, entendemos K4 O Quadrado Azul como uma espcie de texto-sntese das experincias literrias vividas pelo autor no perodo 1915-17, ou seja, como que ilustrativo do percurso esttico vivido pela gerao de Orpheu que se inicia no paulismo, se transforma luz do futurismo e, finalmente, se desemboca numa intuio do abstraccionismo, implcito, alis, na teoria sensacionista. Como comenta Fernando Alvarenga:

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Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 16.

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as snteses das snteses sensacionistas tendem a evaporar as realidades prprias dos estmulos das sensaes, e a integrar, em troca delas, as realidades outras que so crescentemente as do homem em aco de as escolher pela mediao artstica, recriando-as... Da que o processo totalizante se condense e, como que paradoxalmente, se dissolva, assim condensandodissolvendo o Futurismo e os demais ismos conjuntos, e por consequncia podendo prenunciar mesmo algumas expresses do Abstracionismo. 42

Em ltima anlise, K4 O Quadrado Azul, texto com que termina a fase de experimentao futurista-sensacionista na obra de Almada Negreiros, simultaneamente comunicativo da descoberta e da perda de uma noo de momento-origem. Depois de t-lo escrito, a nica hiptese que restava ao autor era a de procurar uma nova maneira de se exprimir, ou seja, de tentar aludir necessidade de viver o instante. Assim, concluimos que, para Almada a prtica sensacionista possibilitou, e de certo modo obrigou, a conceptualizao da teoria da ingenuidade que fundamental sua obra posterior. Tendo j reconhecido que fundir os opostos, num acto de comunicao total com o universo, s pode conduzir ao silncio implcito na abstraco, a criao e a comunicao tornam-se imprescindveis e, por conseguinte, os valores estticos utilizados pelo autor, nos anos 20, mudam de forma radical. Com efeito, o projecto esttico iniciado depois K4 O Quadrado Azul se orienta no sentido, no de descobrir mas, mais especificamente de inventar uma imagem do dia claro. Embora a teoria e a prtica ingnuas que examinaremos nos captulos seguintes se afastem formalmente dos textos sensacionistas dos anos 10, no h dvida que as lies aprendidas luz do quadrado azul informam o novo rumo esttico seguido por Almada a partir de 1920. Por isso, ainda que estruturado segundo uma viso radicalmente diferente que A Engomadeira ou K4 O Quadrado Azul, encontramos, no meio do famoso poema da ingenuidade intitulado A Inveno do Dia Claro a reiterao textual da grande descoberta do narrador de K4 O Quadrado Azul: A eternidade existe sim mas no to devagar! 43

Alvarenga, pp. 54-55. Jos de Almada Negreiros, A Inveno do Dia Claro, in Poesia, vol. 1 de Obras Completas (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985), p. 185.
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CAPTULO IV
A INGENUIDADE ENTENDIDA COMO PROCESSO DIDCTICO: O CONTO JORNALSTICO DOS ANOS 20 Na escrita almadiana dos anos 20, poca iniciada, em nossa opinio, luz de e em reaco s lies aprendidas pela experincia do quadrado azul, a imagem que o autor nos fornece do leitor implcito aparece de forma radicalmente transformada. Lembremos, pois, que Almada recomenda, em K4 O Quadrado Azul, que a sua novela seja lida pelo menos duas vezes prs muito intelligentes e daqui pra baixo sempre a dobrar, 1 conselho que indica, alis, um certo elitismo quanto noo do tipo de leitor a quem o autor se dirige. Depois de uma breve estada em Paris, porm, quando volta a Lisboa em 1920, Almada comea a aproveitar as muitas revistas da poca, assim como jornais dirios, como os lugares preferidos para a publicao dos seus textos. Acompanhando esta mudana na escolha do meio de comunicao e, da do leitor implcito, assiste-se tambm, neste momento, ao brotar de um novo tom e de uma nova temtica na obra almadiana que, pelo abandono do estilo agressivo e satrico, primeira vista, parece surgir como contestao s tcnicas empregadas nas novelas e poemas anteriores. costume referir a obra literria de Almada, escrita a partir de 1919, pelo adjectivo ingnuo porque, atravs do emprego de um tom claro e de umas formas simples, o autor procura comunicar a inocncia de uma viso depurada, infantil e quase primitiva da realidade. A aceitao geral do termo ingnuo tambm provm de um ensaio publicado por Almada em 1939, intitulado Elogio da Ingenuidade ou as Desventuras da Esperteza Saloia, no qual o autor tenta expor a sua teoria da arte em forma discursiva. 2 Este ensaio posterior poca que nos interessa aqui, no entanto, e, pelo muito que nele se diz e que j pode ser entendido pela leitura dos textos escritos por Almada Negreiros nos anos 20, parece-nos vlido afirmar que a prtica criativa da ingenuidade antecede e prepara o caminho para o discurso terico que Almada desenvolver nas dcadas seguintes.
Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 19. Jos de Almada Negreiros, Elogio da Ingenuidade, Revista de Portugal, n. 6 (1939), rpt. in Obras Completas, vol. V, Ensaios (Lisboa: Estampa, 1971), pp. 115-127.
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Neste captulo, examinaremos alguns dos primeiros textos nos quais surge a viso ingnua do autor, sendo todos eles textos jornalsticos que, sem dvida, chegaram a um grande pblico ledor. Uma vez que grande parte da obra que data deste perodo apareceu em jornais ou revistas como, por exemplo, o Dirio de Lisboa, ABC, Domingo Ilustrado e Ilustrao Portuguesa, deduzimos que Almada est a dirigir-se, muitas vezes, ao homem mdio, ou seja, quele burgus lepidptero que foi alvo dos seus ataques futuristas. Neste sentido, pelo facto do conto jornalstico almadiano ser dirigido ao mesmo leitor implcito que ocupava a ateno do autor nos seus manifestos polticos, possvel considerar este gnero particular na obra almadiana como que exercendo uma funo parecida funo do manifesto poltico, ou seja, prepara o pblico para a obra ingnua que se seguir. Em contraste, porm, com os manifestos futuristas notemos, desde j, que estes manifestos da ingenuidade so textos literrios e no intervenes pblicas. De facto, a maioria dos contos jornalsticos consistem em pequenos relatos ou fbulas que apresentam as opinies do autor sob a forma de uma moralidade. Assim, observamos como, na segunda fase da sua produo literria, h, na obra de Almada, uma tentativa de cultivar uma forma de expresso na qual as preocupaes estticas e sociais existem em confluncia. Devido ao facto de o brotar do estilo ingnuo assinalar uma espcie de ruptura estilstica na obra em prosa de Almada Negreiros, parece-nos imprescindvel, antes de passar avaliao dos contos jornalsticos, traar algumas das caractersticas gerais deste estilo, assim como do pensamento que informa a escolha da voz narrativa ingnua. nossa opinio, com efeito, que, em quase todos os textos ingnuos de Almada, as mltiplas tentativas de comunicar a importncia e a necessidade da viso que o autor tem do mundo apontam para a presena do elemento didctico. Este elemento constitui, no fim de contas, um dos mais importantes elementos estruturais do texto. Na tentativa de mostrar, aos leitores, em que consiste a ingenuidade e de demonstrar como chegar a este estado, os narradores ingnuos assumem, regra geral, uma posio afastada da realidade que descrevem. Da surgir a singeleza do propsito patente na depurao e na simplicidade. Se tomarmos o poema Histoire du Portugal par Coeur como exemplo desta nova relao didctica entre o autor e o leitor implcitos, ser possvel isolar algumas das caractersticas principais desta nova fase de produo literria de Almada Negreiros. Escrito em Frana em 1919, Histoire du Portugal par Coeur comunica, sobretudo, uma nova aproximao textual do problema da ptria e, consequentemente, diz respeito aos problemas da identidade do autor e da realidade com que tenciona construir a sua viso globalmente criativa. Este
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poema foi publicado na revista Contempornea em 1922, a mesma revista em que foi publicado grande parte do poema sensacionista A Cena do dio. Notemos, no entanto, que a verso deste ltimo poema, escrito em 1915, aparece nas pginas da revista em forma incompleta, sendo tambm publicado em separata, enquanto, Histoire du Portugal par Coeur ocupa, no segundo nmero de Contempornea, um lugar de destaque e aparece illustre aux couleurs nationales par almada. 3 As diferenas grficas entre as duas maneiras de apresentar estes poemas revelam, alis, a nova orientao do projecto modernista que, nos anos 20, tinha a revista Contempornea como a sua portavoz: Tratava-se de uma revista moderna, de excelente aspecto grfico mas no revolucionria. Afirmar Afonso de Bragana na crnica de apresentao que os seus colaboradores no eram futuristas, mas apenas contemporneos, queria dizer exactamente isso. 4 Sendo uma publicao que, como Orpheu, se proclamava elitista (Revista feita expressamente para gente civilizada), a Contempornea tambm assumia abertamente, como uma misso sua, o didatismo (Revista feita expressamente para civilizar gente 5). Este duplo propsito, de renovar as artes e as letras portuguesas, mas tambm de comunicar as novidades de uma maneira civilizada, revela como os contornos do projecto modernista se transformaram a partir da segunda dcada da sua existncia. Com efeito, o tom agressivo substitudo pela preocupao, pela parte dos autores e dos artistas, de serem entendidos. luz destas diferenas, a nossa leitura de Histoire du Portugal par Coeur tentar descobrir exactamente em que consiste esta mudana de perspectivas e propsitos. Na sua biografia de Almada Negreiros, Jos Augusto Frana observa que, durante a sua estada de ano e meio na capital francesa, Almada desenvolveu uma perspectiva de si prprio 6 e as indicaes da presena desta nova perspectiva que encontramos em Histoire du Portugal par Coeur resultam da adopo de uma viso exteriorizada daquilo que Portugal. Pela palavra exteriorizao, queremos referir-nos ao assumir de uma perspectiva afastada e distante da realidade concreta, como que ignorante dos elementos culturais e socio-polticos do mundo da burguesia portuguesa que, nas novelas sensacionistas, indicavam a presena do mundo emprico e imediato do autor. Ao afastar-se do quotidiano, o processo sensacionista de desmontagem perde o sentido e acaba por ser substitudo por uma tcnica baseada na memria, ou seja, na recriao de uma realidade perdida.
Jos de Almada Negreiros, Histoire du Portugal par Coeur, in Poesia, vol. 1 de Obras Completas, (Lisboa; Imprensa Nacional Casa da Moeda), p. 109. 4 Jos Augusto Frana, Almada. O Portugus sem Mestre, p. 257. 5 Contempornea 3 (1922), p. 1. 6 Frana, Almada. O Portugus sem Mestre, p. 223.
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Em conjunto com o conceito de afastamento do poeta daquilo que est a descrever, vemos surgir igualmente, em Histoire du Portugal par Coeur, um conceito do texto como lugar para a inveno puramente criativa. Pelo facto de este poema ter sido revisto frequentemente pelo autor, sendo redigido primeiro em prosa e depois em verso, observamos como o acto criativo entendido por Almada, neste momento, como uma espcie de processo, uma busca de forma e da linguagem mais adequadas comunicao do retrato do mundo que o autor est a imaginar. 7 Uma reescrita implica sempre uma conscincia aguda de textualidade e o alto grau de aluses intertextuais em Histoire du Portugal par Coeur aponta para a ideia de que o autor j se considera como que habitando um universo criativo constitudo, sobretudo, pela palavra escrita. 8 Alm disso, o facto de Histoire du Portugal par Coeur ser escrito em francs, uma lngua tambm exterior ao autor, indica desde j a tendncia para a concepo da linguagem como elemento constitutivo do texto:
O facto de Almada no dominar perfeitamente o francs... ser usado em nome de uma liberdade total, uma vez que o cdigo no inteiramente conhecido, permitindo todas as exploraes, todas as aventuras transformativas em torno dessa opacidade que a lngua estrangeira, e tambm estranha, oferece como corpo de figuraes mltiplas. 9

Passando agora para o contedo ou a ideia do poema, assistimos representao, ao nvel do tema, das referidas qualidades de exteriorizao. Num prefcio de Histoire du Portugal par Coeur escrito em portugus para a verso de 1922, o autor explica que escolheu a lngua francesa para o seu poema porque foi assim que ensinei aos extrangeiros a Raa onde nasci. 10 Este poema, em teoria, no dirigido aos portugueses, um facto que nos ajuda a compreender porque a imagem de Portugal comunicada nele se afasta tanto da imagem do pas que foi desenvolvida em A Cena do dio. Se, no poema de
As primeiras duas verses de Histoire du Portugal par Coeur encontram-se em Parva (em latim) N. 1, jornal manuscrito redigido por Almada Negreiros em Maio de 1920. Celina Silva, em Da Histoire du Portugal par Coeur ao Encontro da Ingenuidade, diss. de mestrado, Porto, 1986, explora em muito detalhe as mltiplas verses deste poema e grande parte da nossa informao, assim como a inspirao para a nossa anlise do poema, vem desta fonte. 8 Silva comenta que, alm de aluses sua prpria obra anterior, prtica que j vimos como bastante comum escrita almadiana, o poeta [convoca] outros fragmentos textuais, de Cesrio, por exemplo, de Apollinaire, das supersties, das lendas e do sebastianismo, Silva, Da Histoire, p. 108. 9 Silva, Da Histoire, p. 110. 10 Almada Negreiros, Histoire du Portugal par Coeur, p. 110.
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1915, Almada quis criticar os costumes sociais da Primeira Repblica e gerar polmicas com os seus leitores, em 1919 est a imaginar um lugar distante com o fim de o dar a conhecer aos leitores no iniciados nessa realidade. Assim, a ptria ocupa o lugar mais distante daquele onde o autor e os seus leitores implcitos se encontram: Le Portugal se trouve l-bas, dans un endroit du SudOuest de lEurope le plus loign de Paris. 11 A evocao deste Portugal distante baseada, portanto, na reconstituio das memrias que o poeta tem do seu ponto de origem. Temos a sensao, de facto, que o pas retratado neste poema no existe e nunca existiu. Como o ttulo do poema revela, o verdadeiro elemento constituitivo de Histoire du Portugal par Coeur o corao do poeta: ao jogar com uma dupla significao da palavra coeur, Almada descreve um lugar que s pertence memria e, filtrando as memrias pelo corao, apresenta a ptria segundo padres que so, na sua essncia, atemporais. Os factos geogrficos mencionados no poema so o sol, o mar e o rio Tejo, todos eles to estereotpicos que uma imagem quase turstica, para consumo e exportao, criada. Por outro lado, os factos histricos muitas vezes ganham razes mticas: Notre premier Roi fut un giante. On dit que, de ce fait, il fut Roi. 12 Deste modo, inferimos que a acepo em que o autor est a empregar a palavra histria no ttulo do poema remete sobretudo para a sua significao como fbula ou fico; Histoire du Portugal par Coeur nada tem a ver com um Portugal que seja uma entidade poltica ou social e da afirmarmos que o tom ingnuo deste poema posto ao servio do inventar de uma ptria (uma origem) que sirva ao poeta como oposio e contraste realidade emprica. imprescindvel comentar, finalmente, como a viso exteriorizada da ptria desenvolvida em Histoire du Portugal par Coeur no s depende da noo de afastamento em termos espaciais e temporais, mas tambm implica que o autor se considera como um ser totalmente isolado. Ao recriar e da inventar a sua origem, o poeta , no fim de contas, autor de si prprio. S assim tem a liberdade de inventar o seu passado e o seu futuro. No que parece uma actividade contraditria, porm, o poema, na verso definitiva publicada na Contempornea, acaba por ser dedicado comunidade: Sejam quaes forem os Portuguezes, todos podem julgar a minha HISTOIRE DU PORTUGAL PAR COEUR. E se houver entre Portuguezes quem no tenha uma iniciao litterria, tanto melhor, para poder julgar o que eu quiz escrever por Ns todos. 13 Ao pedir a participao activa dos seus leitores, o poeta formula, pois, um convite colectividade para compartilhar a solido do projecto potico.
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Almada Negreiros, Histoire du Portugal par Coeur, p. 112. Almada Negreiros, Histoire du Portugal par Coeur, p. 116. 13 Almada Negreiros, Histoire du Portugal par Coeur, p. 110.

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Utilizando a Histoire du Portugal par Coeur como texto representativo da estreia de uma teoria da ingenuidade, torna-se claro como, na escrita posterior a K4 O Quadrado Azul, a vocao de Almada ser a de caminhar como obstinao para a sua origem, para esse lugar onde tinha sido concebido e donde tinha sido expulso, lugar ao mesmo tempo pontual e infinito, onde o individual se articula com o universal, o problemtico com o pontual, o evidente com o enigmtico. 14 Em suas observaes acerca das razes tericas da ingenuidade almadiana, Eduardo Loureno observa que o nico sentimento do mundo para Almada estava na fbula que dizia que O mundo foi feito para Almada Negreiros... [porque] quem no pensar que o mundo foi feito para ele, no tem mundo. 15 Parece-nos lcito, ento, dar voz a um preceito subentendido aqui, inferindo que, assim, tambm era necessrio pensar que o mundo foi feito por Almada Negreiros, criado por ele, atravs da expresso artstica. S por isso, Loureno pde observar em Almada a contnua afirmao da unidade indestrutvel entre a essncia humana e a liberdade, mesmo se a nica expresso dele era para ela a Arte. No como mero resultado, o que seria fetichismo, mas como gesto original que no s renova o mundo mas no-lo d a ver. 16 Resumindo brevemente, notemos como as essncias filosficas da ingenuidade consistem, sobretudo, na procura ou na recriao, atravs do gesto criativo, de uma origem perdida. Quanto funo da linguagem ingnua, e lembrando que a preocupao com a autencidade se manifesta em toda a obra de Almada por meio de repetidas declaraes anti-acadmicas, assim como a celebrao constante da fala coloquial e popular, cremos que uma diferena fundamental entre o sensacionismo e a ingenuidade pode ser explicada em termos da imagem criada pelo discurso coloquial. A linguagem coloquial teve um papel de destaque tanto nas novelas sensacionistas como em Frisos, onde observmos que a apresentao do dilogo em forma livre, isto , independentemente da interveno do narrador, e os temas populares constituiram os mais notveis afastamentos do padro simbolista. A proliferao interminvel de vocbulos que deu um aspecto surrealista ao universo da prosa experimental desaparece, contudo, da obra ingnua de Almada no momento em que se substituem imagens construtivas por imagens que surgem em consequncia das tentativas de desconstruir o mundo. No esqueamos, pois, que uma das principais lies aprendidas pelo narrador de K4 O Quadrado Azul dizia respeito ao silncio que ser sempre o fim de uma desmontagem da realidade descrita; por isso foi preciso virar as costas noEduardo Loureno, Almada Ensasta? in Almada (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985), p. 79. 15 Loureno, Almada, Ensasta? p. 84. 16 Loureno, Almada, Ensasta? p. 85.
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expresso implcita na identificao do ser com o universo, ou seja, do sujeito com o objecto. Entendemos, portanto, porque a obra almadiana adquire a simplicidade formal que muitas vezes faltava na tentativa entusiasmada de produzir a arte segundo as regras da enumerao catica: depois de K4 O Quadrado Azul, o poeta revela-se na conscincia de que o fim que deseja, a identificao com a matria do universo, s pode ser aludido por meio de uma construo formal cuidadosamente pensada. Deste modo, notemos que, pela primazia dada forma depurada como a nica maneira de aludir ao indizvel, o projecto ingnuo de Almada diverge radicalmente da poesia de Alberto Caeiro, heternimo pessoano com quem tem sido comparado. Para Caeiro, a ruptura entre o ser e a matria nunca ocorreu e a identificao com a realidade total e nica enquanto que, na escrita ingnua de Almada, a ruptura entre o ser e a natureza encarada como j definitiva, visto que o poeta tenta permanentemente efectuar a reintegrao com as origens. Por isso, a prtica ingnua almadiana, ou seja, os gestos pelos quais Almada tenta ilustrar a sua filosofia da ingenuidade, varia consideravelmente entre os diversos textos. Praticando assiduamente gneros to diversos como os da poesia lrica, do poema em prosa, da crnica, do teatro, do ensaio, do conto e, at do romance, o autor compromete-se a uma experimentao exaustiva de vrias formas literrias, sempre com a ideia de ensinar a sua teoria da ingenuidade. A contradio que assinalmos em relao Histoire du Portugal par Coeur, que consiste na tenso surgida da solido do autor que quer que a sua viso seja a base para um acto colectivo, , sem dvida, um elemento subentendido em toda a obra de Almada escrita sob o signo da ingenuidade. Assim, ao deduzir que o acto de escrever adquire o poder de neutralizar o isolamento implcito no qual o autor se encontra, a deciso de aproveitar jornais de grande circulao como os primeiros lugares para a publicao dos textos ingnuos faz um sentido particular. Atravs do jornal dirio ou semanal, Almada podia fazer chegar a sua teoria ao maior nmero de leitores. Por isso, o teor didctico do conto jornalstico , sem dvida, bastante exagerado, constituindo um dos mais importantes elementos do gnero. Voltando agora a ateno para alguns exemplos especficos destes contos, vejamos, pois, como so ilustradas vrias situaes dramticas, nas quais os protagonistas so apresentados pelo olhar de narradores objectivos, afastados e exteriores a tudo que contam. Esta relao do narrador com a personagem alude, alis, a outra relao importante para o funcionamento destes contos como fbulas moralizantes: aquela que liga o autor implcito (o mestre) ao leitor implcito (o aluno) quando tenta comunicar as suas lies de ingenuidade.

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At 1988, a maior parte da obra jornalstica de Almada podia ser considerada como indita pelo facto de, depois de publicados, estes textos no terem sido recolhidos ou reeditados. * Com a excepo do conto intitulado O Cgado, nenhum outro exemplo de um texto de fico jornalstica foi includo na edio das Obras Completas de Almada Negreiros que foi publicada em 1970 pela Estampa 17 e, por isso, curioso notar como O Cgado, exemplo nico de estilo jornalstico, veio a ser escolhido vrias vezes como uma espcie de texto exemplar da prosa almadiana. Inclumos este conto sob a rubrica de jornalismo por que apareceu na revista populista ABC em Junho de 1921,18 mas, j incorporado em trs antologias, O Cgado tambm , agora, um dos textos mais conhecidos do autor, solicitando, assim, muitos comentrios crticos, alguns que o consideram como tpico da escrita almadiana e outros como notvel pela sua diferena. 19 A exemplaridade de O Cgado assinalada, alis, por comentrios que podem parecer to divergentes como a observao de Massaud Moiss que, embora este texto seja o nico passvel de ser classificado de conto,... nem por isso deixa de patentear as constantes que as demais narrativas revelam, 20 e o comentrio de David Mouro-Ferreira que a coerncia narrativa [deste conto]... assinala um definitivo armistcio na guerra por [Almada] movida contra as imposturas ou as convenes da intriga, do ponto de vista, das personagens. Como veremos pois, O Cgado, assim como os outros contos jornalsticos do seu autor, representa ambas as qualidades de continuao e de diferena dentro do mbito do projecto literrio de Almada, ou seja, revela como a nova perspectiva ingnua do autor serve, sobretudo, para aludir a fins muito parecidos aos que motivaram a obra sensacionista. Em contraste com a audcia estrutural e lingustica das novelas anteriores, O Cgado to simples que, primeira vista, difcil encontrar nele quaisquer pontos de contacto com o sensacionismo. Neste conto, um homem identificado como muito senhor da sua vontade abandona a sua famlia e a comunidade para seguir um cgado que pensa ter desaparecido num buraco no cho. Pelo retrato deste acto obcecado, fcil ver como O Cgado consiste
Jos de Almada Negreiros, Artigos no Dirio de Lisboa. vol. III de Obras Completas (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1988). 17 Jos de Almada Negreiros, O Cgado, in Contos e Novelas, vol. 1 de Obras Completas (Lisboa: Estampa, 1970), pp. 109-116. 18 Almada Negreiros, O Kgado, ABC, 30 de Junho de 1921, pp. 6-7. 19 Alm de aparecer no volume I das Obras Completas, este conto tambm includo em Antologia do Conto Fantstico Portugus. ed. Fernando Ribeiro de Mello (Lisboa: Edies Afrodite, 1974), pp. 337-344; O Conto Portugus, ed. Massaud Moiss (So Paulo: Cultrix, 1975), pp. 205-213; Edoi Lelia Doura: Antologia das Vozes comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa, ed. Herberto Helder (Lisboa: Assrio e Alvim, 1985), pp. 141-144. 20 Moiss, O Conto Portugus, p. 209 e Mouro-Ferreira, Almada, Ficionista, p. 97.
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numa critica pardica da actividade irracional, na qual a vontade acaba por dominar a vida de um homem. O conto torna-se um pouco mais problemtico, porm, quando reconhecemos como , essencialmente, uma alegoria aberta, que se pode aplicar a muitas situaes diferentes. No h, pois, aquela transparncia que surge numa alegoria que se refere a uma situao ou a um universo real e nico, correspondente aos acontecimentos referidos no enredo. Como s diz respeito aos perigos de no manter um equilbrio de perspectivas na vida, O Cgado, antes de ganhar um valor estritamente alegrico, uma fbula que ilustra a presena de duas foras dominantes na vida: a vontade e a busca. Assim, entendemos o cgado como representativo da descoberta do invulgar e de uma novidade que o homem quer, por fora, demonstrar aos outros. o smbolo da possvel existncia de outras realidades (de outras ordens de conhecimento) e o homem pensa que, conseguindo capt-lo, pode aliviar um pouco o cansao da rotina diria. A busca que se desencadeia , no entanto, muito mais complicada do que o homem pensara e o protagonista imediatamente obrigado a escolher entre a comodidade do j conhecido e a possibilidade de atingir o novo e o diferente. Uma vez resolvido a seguir o cgado, a obsesso cresce de tal modo que, durante a busca, toda uma srie de descobertas resultantes do processo utilizado pelo homem passam desapercebidos:
Inclusiv, a propria descoberta do centro da Terra, que to bem podia servir de regosijo ao que se aventura pelas entranhas do nosso planeta, passou infelizmente desapercebida ao homem que era muito senhor da sua vontade. O buraco do Kgado era efectivamente interminavel. 21

E, quando finalmente chega ao fim do buraco, no tem outra alternativa seno recuar perante a descoberta de uma realidade estranha, diferente e insuportvel:
Era um pas estrangeiro, muito estrangeiro; homens, mulheres, arvores, montes e casas tinham outras propores diferentes da (sic) que le tinha memria. O sol tambm no era o mesmo, no era amarelo, era de cobre cheio de azbre e fazia barulho nos reflexos. 22

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Almada Negreiros, O Kgado, p. 6, col. 2. Almada Negreiros, O Kgado, p. 7, col. 1.

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Estas duas etapas da viagem do protagonista so, curiosamente, muito parecidas com as etapas da aventura sensacionista vivida por Almada que comentmos nos captulos anteriores. Foi talvez esta semelhana a que levou David Mouro-Ferreira a considerar O Cgado como possvel alegoria ou aplogo do que... estava acontecendo com Almada ficcionista: sua viagem aos antpodas da fico, realizada atravs desse progressivo escavar a terra que tivera como etapas A Engomadeira, K4 O Quadrado Azul e Saltimbancos... 23 NA Engomadeira, o processo utilizado acabou, a meio caminho, por tomar precedncia sobre o enredo da novela. Em K4 Quadrado Azul, outra ordem da experincia, que foi caracterizada, em dado momento, como esfera de cobre em brza, 24 tambm foi revelada ao narrador e ele percebeu, no fim da novela, como essa realidade, sendo incaptvel pela palavra, tambm era insuportvel. O caso narrativo de O Cgado, , porm, bem diferente das outras novelas: a fbula narrada na terceira pessoa e refere-se a experincias que so exteriores ao narrador. Desta forma, podemos assistir objectivamente reaco da personagem e saber quais as suas tentativas para remediar a situao. Pela primeira vez no corpus da fico almadiana, possvel testemunhar o tempo posterior descoberta e assistimos ao desenlace do drama do ser procura da novidade. Por isso extremamente importante a revelao de que, ao chegar a este outro mundo, o protagonista sente a falta de tudo o que deixara, d-se conta do seu enorme sacrifcio e tenta iniciar um regresso ao ponto de partida. Ao sair do buraco, o protagonista s pensa em voltar a casa para descansar, ver a famlia e regressar vida, tal como vivia, mas da irrompe precisamente a moralidade da histria: a realidade que deixara j no existe e no lugar do conforto prometido pela ideia de um regresso s origens, o homem encontra o maior monte da Europa, feito por le, aos poucochinhos, s psadas de terra, uma por uma. 25 Assim, um nova procura iniciada, uma procura das origens, mas na tentativa de restituio da realidade ao seu estado anterior, comunica-se a impossibilidade implcita dessa tarefa: Comeavam j a aparecer as cruzes das torres, os telhados das casas, os cmes os montes naturais, a casa da sua famlia, muita gente suja de terra, por ter estado soterrada, outros ficaram aleijados, e o resto como dantes.26 Pelos adjectivos suja e aleijados, entendemos a impossibilidade de haver uma restituio completa do normal a aventura deixou marcas indelveis. E, para sublinhar o desaparecimento do mundo pr-cgado, na ltima pasada de terra que o homem devolve ao

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Mouro-Ferreira, Almada Ficcionista, p. 97. Almada Negreiros, K4 O Quadrado Azul, p. 5. 25 Almada Negreiros, O Kgado, p. 7, col. 2. 26 Almada Negreiros, O Kgado, p. 7, col. 2.

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buraco, encontra, mais uma vez, o cgado. Assim, a novidade incmoda ainda existe para se tratada. Trata-se, para o leitor, de adivinhar as reaes do homem perante o caso de ironia dramtica ilustrado pelo reaparecimento do cgado, tal como de o levar a assumir a responsabilidade de decidir exactamente o que este animal representa. David Mouro-Ferreira, ao desenvolver a metfora do cgado como alusivo experincia literria de Almada, considera-o como representativo da existncia do inevitvel cgado de toda a criao novelstica o conjunto das suas convenes e das suas imposturas. 27 Temos de lembrar, no entanto, que o cgado foi o objecto que desencadeou a procura, o homem no estava a fugir dele. Deduzimos, com efeito, que, ao encontrar o animal outra vez, este homem volta a enfrentar o inicial problema da novidade, tendo apenas aprendido que ter muita vontade de capt-la no suficiente. Talvez desistir da busca e contar a histria do cgado seja o que preciso. Neste momento, a semelhana entre o impasse ontolgico implcito no reaparecimento do animal e o problema de comunicar as revelaes vividas luz do quadrado azul convida-nos a fazer uma rpida comparao entre os dois textos. Num evidente contraste com a novela anterior, onde o eu sensacionista estava sempre em evidncia, a impessoalidade do narrador omnisciente da terceira pessoa em O Cgado faz com que este conto comunique o impasse pelo uso de um tom ironicamente cmico. Subjacente ao humor, porm, podemos detectar alguns traos de amargura no fim do conto. Deve-se isto ao cair na tentao de relacionar Almada com o protagonista do conto, da fazendo com que a ironia se relacione com um problema existencial. Num acto de desdobramento, ao projectar-se em ambos os papeis de narrador omnisciente e de personagem, o autor revela um conhecimento ntimo do problema do protagonista, ao mesmo tempo que consegue manter-se livre e afastado do dilema sofrido por ele. nesta relao entre o narrador e a personagem que encontramos, alis, uma chave para a compreenso do acto irnico como base comunicativa da ingenuidade nos contos jornalsticos de Almada Negreiros. Contada em forma de anedota, a narrativa de O Cgado depende da separao do objecto do humor do observador da aco. Devemos notar, contudo, que a utilizao de uma anedota serve, muitas vezes, para rirmos de ns prprios ao mesmo tempo que rimos dos outros. A anedota irnica simultaneamente pessoal e universal: embora a emoo nunca entre em jogo, devido exteriorizao do assunto, o efeito final diz sempre respeito a uma situao interior; por isso que nos rimos dela. Na primeira leitura de O Cgado, a nossa reaco histria talvez seja a de rir do homem muito
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Mouro-Ferreira, Almada Ficcionista, p. 97.

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senhor da sua vontade, mas depois, ficamos um pouco incomodados quando nos perguntamos acerca de quem este homem, vtima de si prprio na procura obcecada do cgado o autor, ou somos ns? A depurao do tema sob o signo da ingenuidade, patente nas qualidades anedticas de O Cgado, acha um certo apoio e paralelo nos esforos do narrador para contar os acontecimentos da sua histria atravs da mais simples linguagem possvel. Nota-se isto particularmente na repetio de frases e vocbulos ao longo do texto (sempre que se l a palavra homem, por exemplo, segue-se a frase adjectival muito senhor da sua vontade) que d uma qualidade infantil ou primitiva escrita. Assim, o universo literrio criado pela linguagem simples reduzido ao tamanho do cdigo limitado e qualquer associao com o mundo emprico eliminada. Por isso, nem somos tentados a questionar a validez da prpria histria que, em princpio, consiste em relatos fantsticos: No creio que haja alterao das leis da realidade neste conto. A sua verosimilhana absolutamente textual, por isso potica. 28 Face existncia destes truques retricos da ingenuidade, no devemos, no entanto, cometer o erro de afirmar este estilo como transparente. Este conto , de facto, tudo menos ingnuo, na acepo da palavra como inocente, e, pelo contrrio, estrutura-se em torno de um complexo nivelamento de ironias. Estas ironias revelam, entre outras coisas, como o narrador (que j podemos considerar como ilustrativo da personagem depois de ter atingido um estado iluminado) considera que o retorno a uma origem pura e intacta impossvel. Voltando agora a ateno para outro conto, tambm publicado por Almada em 1921, observamos como ao problema do ser natural e, consequentemente, da linguagem autntica dado um tratamento particular. Ainda que O homem que no sabe escrever 29 tenha um protagonista mais individual do que o homem muito senhor da sua vontade de O Cgado, este relato tambm depende de uma tcnica de exteriorizao conseguida por meio do relato anedtico, para referir um problema que pode ser considerado ntimo relativamente ao seu autor. Sabemos desde o incio do conto quem este homem que no sabe escrever: chama-se Domingos Dias Santos e vive numas guas furtadas na Rua do Alecrim. Alm disto, os factos mais importantes quanto ao passado deste homem so contados logo no segundo pargrafo, assim como o problema que est a confrontar: Tinha a instruo primria, o curso dos liceus, com sexto e stimo de letras, depois Coimbra at ao fim, com trs anos a mais, e no sabia escrever o seu desgosto. 30 Aprender a escrever a meta da vida do
E. M. de Melo Castro, nota introdutria a O Cgado, in Antologia do Conto Faststico Portugus, 337. 29 Jos de Almada Negreiros, O homem que no sabe escrever, in Artigos no Dirio de Lisboa. 30 Almada Negreiros, O homem, p. 29.
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Domingos porque, sem saber isto, estava exactamente como tivesse nascido hoje, sem nada. 31 Pela importncia dada formao desta personagem, inferimos que o tipo de escrita desejada por ele consiste em muito mais do que saber manipular a palavra, ou seja, seguir as regras da gramtica. Assim, desde o incio do conto, antecipamos o momento quando ser revelado a moralidade da histria que, desde j, esperamos ser o segredo da expresso literria. No desenvolvimento subsequente do enredo fcil ver os erros que Domingos comete quando se pe a escrever e, visto que todos os erros so muito bvios, a situao retratada cmica. A primeira coisa que este homem faz adquirir o material necessrio para o acto fsico que a escrita: tinta, papel, uma caneta, trs aparos e uma folha de mata borro. S depois que repara no facto que no pensara num tema e, procedendo de uma maneira contrria, comea a procurar um assunto sobre o qual pode escrever. Passando por temas possveis como uma dissertao sobre o outono, uma apologia da humildade ou uma tirada de sinceridades individuais e regionais, 32 Domingos decide que preciso usar a imaginao e opta por uma histria sobre o Egipto antigo. Mesmo assim, no consegue escrever palavra nenhuma porque no confia bastante na imaginao, pelo que no consegue ultrapassar o academismo: [reconheceu]-se sem dados bastantes, no s para atingir a temperatura do Egipto por aquelas idades antes de Cristo, como tambm para manter um certo rigoroso de indumentria e Histria, sem as quais ningum seria susceptvel de convencimento. 33 O projecto fica ento adiado, at ao dia seguinte, quando pode consultar a biblioteca. Atravs da informao includa na primeira parte, de O homem que no sabe escrever, o narrador apresenta todos os elementos necessrios para estabelecer uma forte crtica da educao como aquilo que rouba ao homem o poder de pensar criativamente. Assim, quando a criada entra no quarto de Domingos, descrita como uma pessoa natural, que no est em servio, 34 a cena j est preparada para a introduo da moralidade esperada, ou seja, para o elogio do ser natural e a revelao das bases da escrita ingnua. A criada, que, de facto, no sabe os nmeros e as letras, 35 precisa de algum que lhe traduza para a escrita os pensamentos dela e os mecanismos para um desenlace feliz esto todos em ordem. Neste momento, porm, as expectativas do leitor so invertidas e a criada, em vez de mostrar-se como uma poetisa natural, dita uma carta to cheia de frmulas que o desenlace acaba por ser absurdo: Estimo que ao receberes esta te v encontrar de boa sade em companhia da tua me e da sua irm a quem mando
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Almada Negreiros, O homem, p. 29. Almada Negreiros, O homem, p. 30. 33 Almada Negreiros, O homem, p. 31. 34 Almada Negreiros, O homem, p. 32. 35 Almada Negreiros, O homem, p. 32.

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muitas e muitas saudades... 36 A esperana de haver uma lio aprendida luz da naturalidade da criada frustrada no fim do conto e a nica moralidade possvel situa-se fora da aco do enredo, no reconhecimento da ironia da situao: nem o ser educado, nem o ser iletrado, tm a mnima ideia em que consiste a expresso literria. A falta de aprendizagem reiterada no ttulo do conto, alis, onde o verbo saber aparece no tempo presente; se o Domingos tivesse aprendido qualquer coisa sobre a escrita, este ttulo seria, logicamente: O homem que no sabia escrever. Assim, suspeitamos que O homem que no sabe escrever tambm , essencialmente, outro exemplo da fbula anedtica, na qual no h uma lio moral, nem momentos de iluminao epifnica. Neste conto, o Domingos no sabe escrever, a criada no sabe escrever, nenhum deles aprende a escrever, e, por isso, o enredo s pode ser resumido como consistindo numa narrativa que conta a histria de uma(s) no-narrativa(s). Pela tcnica da negatividade, isto , pela manipulao da ironia resultante da exteriorizao da moralidade do conto. O homem que no sabe escrever demonstra uma srie de erros e caminhos falsos para a escrita. De facto, em ambos O homem que no sabe escrever e O Cgado, os dramas dos protagonistas resultam directamente de situaes (nunca resolvidas no texto, alis) nas quais o no-desenlace dos contos depende de protagonistas que no confiam nos poderes da imaginao, da palavra e da criao artstica, como meios comunicativos. Da mesma maneira que o enredo de O homem que no sabe escrever se refere a uma situao em que o protagonista no pode narrar, j foi efectivamente demonstrado como o protagonista de O Cgado subestima a si mesmo, ao seu poder de fala, sua capacidade de narrar, convencer os seus ouvintes. 37 Este homem, muito senhor da sua vontade, perdeu o controle sobre a situao do cgado exactamente porque a ideia de contar a histria do animal no lhe bastava e, sempre que considerou a hiptese de contar a histria do animal, a vontade lhe ditou que continuasse procura: J no se trata de eu ser incompreendido com a histria do kgado, no, agora trata-se apenas da minha fora de vontade. 38 Como j observmos, porm, a vontade acabou por prestar pouca ajuda ao homem e, assim, no fim do conto, enfrenta o mesmo problema que se lhe apresentou no incio. Pelo desenvolvimento destes dramas por meio de um tom que ridiculariza os protagonistas, assistimos a dois casos de o ser que se encontra paralisado face palavra. Devemos lembrar, porm, que a estas personagens
Almada Negreiros, O homem, p. 32. Carlos Eduardo Schmit Capela, Novas Consideraes Acerca dO Cgado ou A Respeito da Mola Propulsora, Estudos Portugueses e Africanos [Campinas, S. P.], 5 (1985) p. 86. 38 Almada Negreiros, O Kgado, p. 6, col. 1
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negado o acesso palavra literria por um narrador omnisciente que no s testemunha mas tambm inventou os dramas. Deste modo, os contos so ilustrativos de uma simultnea negao e afirmao da linguagem. , com efeito, por causa dos paralelos e dos contrastes implcitos entre o narrador das fbulas e os protagonistas que podemos detectar a presena de um tema exterior aos enredos e chegamos concluso que o humor anedtico est a ser utilizado para se referir sempre mesma situao e ao mesmo problema: como voltar a uma expresso artstica autntica depois de ter sido negado acesso vida originria que existia antes de ter visto o cgado ou antes de ter recebido uma educao nos cdigos da sociedade. Assim, somos levados a concluir que, no conto jornalstico almadiano, a teoria da ingenuidade s pode ser ilustrada atravs da prtica demonstrativa. Ao retratar personagens que sofrem a angstia da solido e para quem o quotidiano vazio de significao, o poder do acto criativo apresentado como a nica soluo possvel. Os fracassos vividos pelos protagonistas esto intimamente ligados a uma incapacidade, pela parte deles, de confiar num mundo imaginrio ou fantstico. O narrador e os leitores testemunham porm as crises de uma perspectiva exterior e afastada e por isso entendem exactamente o que as personagens no conseguem entender. E, porque as solues para os dilemas vividos nos contos so apenas contadas nas entrelinhas, imprescindvel reconhecer a ironia do olhar do narrador, pois s a partir deste reconhecimento que o didatismo destes contos pode funcionar. Todos os contos jornalsticos de Almada dependem do reconhecimento de moralidades que so exteriores ao enredo, quer dizer, nunca so apreendidas pelos protagonistas. s vezes, a moralidade ilustrada pela pardia, exemplo que encontramos no conto A galinha preta e a futura gerao, onde uma aproximao pseudo-cientfica no consegue explicar as actividades instintivas da galinha:
Na impossibilidade de darmos j hoje uma explicao conveniente acerca destes deslocamentos repentinos e inesperados, cumprenos entretanto constatar que, ainda que a velocidade que chegam a atingir nos parea, por vezes, desnecessria, contudo, no devemos nunca descrer de que a nossa razo esteja minguada em comparao com o instinto da galinha. 39

Jos de Almada Negreiros, A galinha preta e as futuras geraes in Artigos no Dirio de Lisboa, p. 70.

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Outras vezes, a incluso de uma frase final que introduz a nota irnica, invertendo aquilo para que o conto nos preparava. No conto intitulado O que se passou numa sala encarnada, o narrador espreita um quarto atravs da janela e descreve as transies de poder poltico que vo ocorrendo no interior. A circularidade e a falta de progresso destacam-se neste conto quando os grupos sucessivos se revelam como sendo sempre iguais. No fim da histria, no entanto, o narrador faz explcita a sua perspectiva privilegiada da situao, concluindo: Estes factos davam-se exclusivamente na capital, e a provncia apenas tinha conhecimento destes pelos jornais. 40 A oposio entre a testemunha ocular e a reportagem jornalstica introduz um tema exterior aos acontecimentos atravs de uma nota de desconfiana quanto aos jornais como fontes da verdade. Antes de examinar em mais detalhe como esta aluso se refere ao jornalismo como uma forma particular da escrita, devemos notar primeiro que uma caracterstica bsica de todos estes contos a desconfiana geral na palavra escrita. Ainda que a palavra literria seja apresentada como uma possvel (e, talvez, nica) via de salvao, notemos que a questo mais profunda do que o simples acto de nomear. Saber nomear sem saber imaginar, foi, alis, o problema principal do Domingos em O homem que no sabe escrever e a conscincia da duplicidade da palavra talvez explique porque estes contos apresentam sempre uma situao para ser reavaliada depois de terminada a leitura, antes de teoria da ingenuidade ser apontada directamente pelo enredo ou por uma exposio analtica. Pelo exemplo do conto O Diamante, que foi publicado duas vezes no mesmo ano, 41 vejamos como o autor considera a arbitrariedade e a duplicidade como inerentes palavra. Neste conto, o narrador joga com a palavra roda, trivializando um signo que, no seu uso principal, se refere a uma inveno que considerada como um dos principais objectos que lanou o homem a caminho da civilizao. Em O Diamante, porm, a palavra roda j perdeu a sua significao principal e, em vez de se referir a um objecto til, aplicado a dois exemplos de objectos perfeitamente inteis. O narrador explica como os pretos selvagens que trabalham nas minas do Transvaal ficam muito contentes se conseguem trocar o salrio inteiro por uma roda de bicicleta. Depois de examinar este caso flagrante da barbaridade, o mesmo narrador passa para o lado civilizado da experincia e descreve um grande senhor que usa um alfinete ostentivo, feito de diamantes e a que, devido sua forma circular, ele chama uma roda. Em ambos os casos,
Jos de Almada Negreiros, O que se passou numa sala encarnada in Artigos no Dirio de Lisboa, p. 55. 41 Jos de Almada Negreiros, O Diamante, Contempornea, 3 (1922), p. 113 e Dirio de Lisboa, 5 de Setembro de 1922, p. 70.
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as rodas j no so rodas no sentido vulgar da palavra e notamos como roda agora adquiriu uma segunda significao que , sobretudo, oposta primeira: no contexto do conto, roda quer dizer bugiganga. Se, na acepo original conferida palavra roda, possuir uma roda significava pertencer a um nvel superior de civilizao por ter acesso ao poder do movimento rpido, na segunda e nova acepo que lhe conferida em O Diamante, ter uma roda significa possuir uma superioridade falsa o poder da compra. A inutilidade deste poder e a sua corrupo so ilustradas, alis, atravs da sua aplicao a objectos falsos e insignificantes. Atravs do humor negro, este conto apresenta uma crtica social trabalhada em vrios nveis: a explorao do trabalho indgena, o colonialismo, a explorao comercial do africano e a perda de valores pela civilizao avanada. Mesmo assim, no muito claro se o narrador considera o senhor civilizado como to selvagem quanto o africano ou se o africano est a ser apresentado como j estragado pela cultura material dos civilizados. O leitor pode escolher entre estas duas possibilidades, ou pode aceitar ambas, mas tambm tem de reconhecer que, alm da oposio selvagem-civilizado, existe uma terceira possibilidade a do estado ingnuo. A ingenuidade no , pois, nem um estado natural (selvagem), nem um educado (civilizado), mas consiste na ultrapassagem dos dois estados, ou seja, o assumir consciente da inocncia. A ingenuidade a perspectiva do narrador, claro, o nico para quem as vrias acepes da palavra roda so evidentes. Concluindo, portanto, que, em todos os contos, a mesma desconfiana quanto palavra na sua capacidade de nomear o mundo se revela como o tema subjacente aos enredos, compete-nos agora perguntar quais as razes que levaram o autor a escolher um jornal dirio como o lugar principal da publicao destes contos. Lembrando a aluso especfica, em O que se passou num sala encarnada, ao jornalismo como acto corruptor dos factos, encontramo-nos face a uma contradio ou, pelo menos, mais um caso de ironia dramtica conscientemente criado pelo autor dos contos. Levando em conta o comentrio de Jos Rgio que A ironia castiga e ensina Almada Negreiros um ironista por vezes subtilssimo, 42 podemos afirmar, de facto, que Almada est a ensinar e castigar tanto os leitores como os editores destes contos. Por isso, o conto jornalstico almadiano um gnero particularmente bem sucedido. Atravs de uma srie de desafios que lana ao leitor, por meio das j destacadas ironias que o obrigam, depois de terminada a primeira leitura, a pensar naquilo que os contos no dizem, observamos como o autor incorpora nos seus textos
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Jos Rgio, As Correntes e as Individualidades da Moderna Poesia Portuguesa, diss. de lic. Coimbra, 1925 (Coimbra: edio do autor, 1925), p. 57.

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jornalsticos um acto de anlise posterior leitura que, regra geral, pouco caracterstico deste tipo de escrita. Ao convidar os leitores a assumirem com ele a perspectiva iluminada do narrador ingnuo. Almada consegue questionar o papel tradicional do jornalismo como uma forma de comunicao que depende de reportagens noticiosas sobre o mundo. Isto, em conjunto com as frequentes crticas sociais incorporadas nos enredos dos contos, leva-nos ento a afirmar que estes contos so to, se no mais, radicais e agressivos contra os valores estabelecidos da sociedade como os manifestos futuristas da dcada anterior. Aproveitando agora um dos mais populares meios de comunicao, Almada consegue virar o sistema contra si prprio quando, pelo acto irnico, aproveita as existentes estruturas jornalsticas para proclamar a sua viso de uma nova e diferente ordem a ordem da ingenuidade.

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CAPTULO V
NOME DE GUERRA: EXPERINCIA NICA E LTIMA NO PROJECTO DA FICO ALMADIANA As primeiras manifestaes literrias da teoria almadiana da ingenuidade o poema Histoire du Portugal par Coeur e os vrios contos jornalsticos que examinmos no captulo anterior so especialmente interessantes de um ponto de vista da evoluo esttica. A sua misso didctica faz com que a nova tcnica de organizao do universo da escrita transparea ao nvel do tema. As constantes aluses ao estado ingnuo como uma perspectiva conscientemente assumida revela, em ltima instncia, que a inocncia procurada pelas personagens dos contos, e j atingida pelos narradores, consiste num estado posterior queda, ou seja, serve para corrigir os erros da educao e das regras da sociedade. Deste modo, a nfase temtica nos preceitos bsicos da ingenuidade revela a teoria da ingenuidade em forma discursiva. Seria, contudo um grave erro considerar, por isso, que a ingenuidade consiste apenas num recurso tcnico segundo o qual a viso do autor apresentada tematicamente no texto. Lembremos pois que o problema apontado sempre pela temtica da ingenuidade diz respeito importncia fundamental da palavra literria na sua capacidade de criar um mundo outro, no interior do qual as leis da ingenuidade sejam imutveis. Deste modo parece-nos vlido afirmar que a ingenuidade almadiana visa ser uma fico totalizante, no sentido em que refere os conceitos de origem, de processo e de fim. Uma vez que a ingenuidade em si se desenvolve rapidamente num sistema ontolgico, possvel identificar como caractersticas desta escrita a linguagem ingnua, a temtica ingnua, a imagem ingnua e o pensamento ingnuo. O fim antecipado pela escrita que pe em prtica as leis deste sistema sempre a reintegrao harmoniosa com a matria mas, notemos desde j, este estado apenas pode ser atingido no interior de um contexto ficcional, ou seja, quando o leitor aceita as regras do sistema proposto pelo autor. Estas consideraes levam-nos a afirmar que a ingenuidade, em termos prticos, muito parecida com o sensacionismo: os dois sistemas representam uma maneira de organizar e apresentar, textualmente, isto , de uma maneira outra, uma srie de experincias que so conferidas com uma significao nova e vital por meio do prprio acto de escrever. Tal como foi o caso do
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sensacionismo, os narradores ingnuos aconselham uma pesquisa feita pelas margens fantsticas da realidade, assim como a procura das possibilidades poticas implcitas na experincia vulgar. Da inferirmos que ambos os sistemas tm com raiz comum uma viso imaginada do mundo. Visto que as realidades comunicadas pelos textos ingnuos ou sensacionistas apenas so vlidas em relao a uma srie de leis particulares ao inverso do texto, necessrio um alto teor de auto-conscincia textual para que estas leis tenham validade nos textos criados luz de ambos os sistemas. Da que o leitor seja constantemente lembrado do papel da palavra como instrumento criador do mundo apresentado. No h dvida que, neste aspecto, a ingenuidade, tal como o sensacionismo, pertence ordem da fico moderna. Fico porque as configuraes imediatas do projecto se referem ao presente, moderna porque este projecto imediato e renovador no tenta esconder as suas razes ficcionais. Ainda que a fico ingnua de Almada se afaste estruturalmente da escrita sensacionista, caracterizando-se por uma viso unitria, patente na disciplina de um nico ponto de vista, de uma nica intriga, at de uma nica personagem, 1 lembremos que os contos ingnuos assentam sobre um discurso dialgico que surge como consequncia destes textos aparecerem nas pginas de um jornal. Com, efeito, muitas das ironias cultivadas nestes contos ganham fora quando o texto contraposto ao lugar onde se encontra publicado. As condies materiais de publicao fazem do conto ingnuo uma espcie de anti-reportagem jornalstica sobre o mundo. Podemos afirmar, de facto, que uma caracterstica da fico ingnua a de levar em conta e aproveitar o conflito surgido entre a viso proposta nos confins do texto e o lugar ou gnero imediato, no qual se encontra inserido. Assim, levando em conta esta caracterstica bsica da viso do autor, de esperar que encontremos indcios de um semelhante grau de crtica e de avaliao nos outros gneros cultivados por Almada durante o perodo da prtica literria ingnua como, por exemplo, o drama. Embora uma anlise aprofundada da produo dramtica do autor no faa parte do nosso estudo, no podemos deixar de assinalar que tambm o drama almadiano se funda numa autoconscincia textual em conflito com as regras tradicionais do gnero. Voltemos, no entanto, a nossa ateno para Nome de Guerra, o romance publicado por Almada em 1938, treze anos depois do ano em que foi escrito. Nome de Guerra o nico romance publicado por Almada e, com A Confisso de Lcio de Mrio de S-Carneiro (1914), conta-se como um dos dois nicos romances produzidos pelo modernismo portugus. Geralmente considerado pela crtica como um romance de aprendizagem, no qual contada a histria da iniciao do protagonista na vida adulta, Nome de Guerra tambm, e sobretudo, a histria de um indivduo e da sua iniciao na ordem da ingenuidade. Este romance nico de Almada , com efeito, a suprema fico
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Mouro-Ferreira, Almada Ficcionista, p. 97.

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ingnua, ou seja, consiste numa explicao narrativa, isto , na representao (acting out) da j preexistente fico da ingenuidade. Assim, ao nos empenharmos na anlise de Nome de Guerra segundo os padres da fico narrativa, prestando ateno em particular aos aspectos da fico almadiana que tm estruturado o nosso estudo at este ponto (o papel da plasticidade da linguagem na criao de personagens e ambientes, a conscincia do tempo de narrao como independente de um tempo cronolgico realista e, sobretudo, a questo da identidade que se liga sempre com o problema do nome) esperamos chegar a algumas concluses provisrias acerca de um duplo papel desempenhado por Nome de Guerra no mbito geral da fico almadiana. Com efeito, Nome de Guerra no apenas um caso nico, mas tambm o caso ltimo na produo narrativa almadiana, no sentido em que marca o fim das incurses do autor no campo da prosa de fico. Para compreender como e em que medida Nome de Guerra prope ilustrar a fico da ingenuidade de uma maneira definitiva, -nos til comear a nossa anlise do romance por uma rpida comparao entre romance e o poema em prosa A Inveno do Dia Claro, publicado por Almada em 1921. Este poema , essencialmente, um manifesto potico da ingenuidade, no sentido em que conta as etapas percorridas pelo poeta numa viagem que conduz espiritualmente clareza imaginada da ingenuidade. Atravs da metfora da viagem, o prprio poeta que constri o caminho da ingenuidade medida que vai inventando o dia claro e, note-se bem, este ttulo refere uma inveno e no uma descoberta. Parece-nos especialmente importante que o seu projecto se divida numa estrutura tripartidria. De facto, o nmero trs est sempre em evidncia na estruturao da escrita ingnua, talvez porque, neste nmero, se comunique um conceito de srie, de transformao e de mudana. Notemos pois que, antecedendo as trs partes do poema (Andaimes e Vsperas, A Viagem ou o que no se pode prever. O Regresso ou o Homem Sentado), h uma teorizao explcita do papel da linguagem na construo do percurso a seguir:
Cada palavra um pedao do universo. Um pedao que faz falta ao universo. Todas as palavras juntas formam o universo. As palavras querem estar nos seus lugares!... Ns no somos do sculo de inventar as palavras. As palavras j foram inventadas. Ns somos do sculo de inventar outra vez as palavras que j foram inventadas. 2

Jos de Almada Negreiros, A Inveno do Dia Claro, in Poesia, vol. 1 de Obras Completas (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985), p. 158.

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Em conjunto com esta teorizao explcita da linguagem como a matria prima com a qual o universo ingnuo ser construdo, observamos como esta teoria tambm posta em prtica. H, de facto, em A Inveno do Dia Claro, uma confluncia perfeita entre o que o poeta diz e a maneira como o diz. Assim, medida que se desenvolve a metfora da viagem que necessariamente leva o poeta para longe da origem-matriz, representada na figura da me, o mbito da verdade encontrada acaba, alis, por interiorizar-se, numa deslocao do mundo da experincia: Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, so as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo universo. 3 Se, em A Inveno do Dia Claro, o prprio poeta que se inicia numa vida interior por meio da viagem, em Nome de Guerra, este conceito de viagem espiritual exteriorizado, contado em forma de uma histria, e, assim transferido para um plano narrativo. As semelhanas entre os dois textos so, no entanto, notveis. Numa advertncia que antecede o corpo de Nome de Guerra, encontramos uma espcie de apologia prvia de tudo o que seguir, explicando que a matria tratada pura e simplesmente da ordem da fico: O leitor h-de ver que o autor no forte em cincia, de modo que tudo quanto ficar escrito no ter absolutamente nada de cientfico. Ser exactamente nem cientfico nem falso, ao mesmo tempo. O AUTOR. 4 Este aviso no consiste numa negao da veracidade dos acontecimentos do narrado, mas reconhece a impossibilidade de demonstr-los segundo as regras da lgica, transmitindo, desde j, uma evidente falta de f, pela parte do autor, quanto hiptese de tratar a vida humana por meio da escrita analtica. De facto, vemos respeitado aqui um sentimento que caracteriza o prefcio de A Inveno do Dia Claro, onde o poeta descreve o desespero sentido face aos livros que encontra numa livraria, lamentando o facto de no poder pr cincia na minha vida, embora tivesse imaginado que havia tratados da vida das pessoas, como h tratados da vida das plantas, com tudo to bem explicado, assim parecidos com o tratamento que h para animais domsticos... 5 Leva-nos isto a deduzir que a tarefa do narrador de Nome de Guerra no ser a de escrever um tratado sobre a vida das pessoas e que, pelo contrrio, na advertncia com que se abre o
Almada Negreiros, A Inveno do Dia Claro, p. 171. Para uma anlise textual deste poema, v. Jorge de Sena, Almada Negreiros Poeta, introd., Poesia, vol. I de Obras Completas de Jos de Almada Negreiros (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985), onde o autor ilustra muito claramente como A Inveno do Dia Claro um livro que tem, muito mais do que parece primeira vista, uma estrutura muito slida, que assenta, digamos, numa relao do poeta com sua Me, p. 14. 4 Jos de Almada Negreiros, Nome de Guerra, vol. 2 de Obras Completas (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1986), p. 25. 5 Almada Negreiros, A Inveno do Dia Claro, p. 153.
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romance, dirigida ao leitor e justamente assinada pelo autor, o narrador revela que o livro consiste na criao de uma fico do ser, ou seja, , antes de mais, um acto de pr as palavras no seu lugar. O enredo da histria contada em Nome de Guerra bastante simples e consiste principalmente nos acontecimentos ocorridos em mais ou menos trs semanas da vida do protagonista. Um homem com trinta anos que se chama Lus Antunes chega a Lisboa da pr vncia e, da em adiante, passa por uma srie de experincias que lhe revelam a existncia de uma realidade outra, o acesso qual lhe fora vedado pela educao que recebera da famlia e da sociedade. A par deste enredo, temos de reconhecer, no entanto, que mais de metade do romance consiste num discurso afastado destes acontecimentos, desenvolvido abertamente pelo narrador. Este narrador comenta e interpreta tudo o que vai acontecendo com Antunes, organizando a informao acerca das experincias vividas pelo protagonista em trs etapas distintas, sendo o incio de cada uma assinalado pelo narrador como um nascimento. H, de facto, em Nome de Guerra, uma histria como que dupla, verificvel na presena de dois fios temporais diferentes: alm do tempo que o protagonista experimenta, temos de reconhecer a existncia do tempo do narrador, no qual o enredo se encontra encaixado. Para compreender a relao do narrador com Antunes, ser-nos- til citar, outra vez, o prefcio de A Inveno do Dia Claro, onde o poeta compara a experincia de uma vida com o enredo de um romance:
Mas eu andei a procurar por todas as vidas uma para copiar e nenhuma era para copiar. Como o livro, as pessoas tinham princpio, meio e fim. A princpio o livro chamava-me, no meio o livro deu-me a mo, no fim fiquei com a mo suada do livro de me ter estendido a mo. Talvez que nos outros livros... mas os ttulos dos livros so como os nomes das pessoas no quer dizer nada, s para no se confundir. (elipse no original) 6

As duas ideias comunicadas aqui a intransmissibilidade do ser e a arbitrariedade do nome constituem o ncleo do enredo de Nome de Guerra, romance cujo prprio ttulo alude ao nome falso, conscientemente adoptado e, da precisando de um acto, ou de uma srie de actos, que lhe confiram significao.
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Almada Negreiros, A Inveno do Dia Claro, p. 154.

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Por isso, antes de nos dar a conhecer a situao particular do protagonista de Nome de Guerra, o narrador esboa, nos primeiros captulos, os termos gerais da questo da identidade. No primeiro captulo, intitulado As pessoas pem nomes a tudo e a si prprios, o problema da realizao plena da identidade, face s falsas imagens que a sociedade nos tenta impor, explicado como sendo o resultado inevitvel do primeiro nascimento (o nascimento fisico) do ser: nascer homem ou mulher uma questo de natureza, mas nascer dentro de uma famlia particular uma questo da sociedade e da histria ou, nas palavras do narrador, da existncia. a partir desta inescapvel sede pela denominao familiar que o narrador pretende comear a sua histria, pois natureza e vida junta-se-lhes ainda por cima a existncia e complicou-se o problema. 7 O nome carece de uma verdadeira razo existencial, sendo a questo da identidade uma imposio das regras da sociedade. Neste problema complicado, encontramos uma metfora inicial, apresentada em forma cega. Mais tarde, atravs de um acto de ilustrao e de transferncia, efectuado pelo contar da histria, esta metfora ganha uma nova fora viva e vemos que o signo, isto , o nome, toma um novo significado. Inferimos, portanto, que este narrador sabe muito bem aonde quer levar o fio narrativo da sua histria e que est, de facto, a orientar o caminho do leitor nesse sentido. Da incluir, na apresentao geral do problema, ambos os nomes de Lus e Judite, como exemplos arbitrrios da teoria do nome: A vaca Pomba, Estrela, Aurora, ou Vitria como uma pessoa podia apenas ser Jos, Maria, Lus ou Judite. a domesticidade que leva a estas designaes e para evitar o oprbrio da fria enumerao. 8 Os subsequentes nascimentos de Antunes que so ilustrados na histria contada em Nome de Guerra resultam de tentativas bem conseguidas no cumprir de uma obrigao com que todos nascemos a obrigao de reajustarnos ao nome de uma maneira pessoal, restituindo-o com significao:
Das duas uma: ou as pessoas se fazem ao nome que lhes puseram no baptismo, ou ele tem de seu bastante para marcar cada um. Ser imprudente deduzir o nome prprio atravs das fisionomias ou dos caracteres; no entanto, uma vez conhecido o nome prprio de uma pessoa, ficamos logo convencidos de que este lhe assenta muito bem. 9

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Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 28. Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 27. 9 Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 27.

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Esta tarefa implica um esforo totalmente individual, porm, e, como foi explicado no segundo captulo (A sociedade s tem que ver com todos, no tem nada que cheirar com cada um), o narrador cr, sobretudo, que O nosso ntimo pessoal inatingvel por outrm. 10 Assim, visto que j postulada a impossibilidade de copiar ou modificar a vida do Outro, o narrador ser obrigado a criar uma personagem fictcia para ilustrar o conflito entre a sociedade e o ntimo pessoal do ser. A partir de um preceito que dita que somos todos exactamente iguais devido nossa diferena, desperta-se a possibilidade de criar uma personagem-modelo. A rvore genealgica do ser sempre nica mas, pelo facto de ter sempre o mesmo tamanho, torna-se vivel a criao de uma personagem estereotpica, sendo uma reproduo consciente da sua falsidade, maneira de um desenho:
O autor destas pginas tambm desenha, e no sabe expressar por palavras a extraordinria impresso que recebe sempre que copia o perfil de qualquer pessoa. A natureza chega to complexa s feies de cada um que somos forados a no poder aceitar cada qual resumido ao lugar em que a sociedade o pe. Atravs dos sculos, uma linha nica e incessantemente seguida acabou por tornar inimitvel o perfil de cada um. Essa linha passa agora desde o alto da testa at por baixo do queixo, e s vezes lembra a de outros, mas intransmissvel. 11

Observamos que, para ultrapassar o problema da intransmissibilidade do ser, o narrador, j identificado tambm como o autor implcito do romance, se expressa por meio de valores plsticos. Nisto, encontramos uma primeira indicao de como, falsidade da palavra, vai-se opor o poder restitutivo da faculdade sensvel de ver, com o qual o narrador espera dar nova vida ao signo. Desde o prprio ttulo do romance, uma noo do signo como falsidade e, at, traio, abertamente assumida e, por isso, no surpreende que o ttulo do terceiro captulo seja Uma Judite que no se chama assim. Ao revelar o facto de a mulher responsvel pela iniciao do protagonista usar um nome falso, repete-se, ao nvel do enredo, a informao j dada no ttulo e nos captulos I e II:

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Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 29. Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 30.

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Esta Judite ignorava que tivesse havido outra e clebre, quanto mais um Holofernes. Ningum a conhecia por outro nome... Conseguira depois de srios trabalhos aparentar toda uma naturalidade para esse nome de mulher, sem denunciar que escondia o autntico. Mas aquilo agora j estava feito. 12

Judite , com efeito, um exemplo de um estado ambguo que se pode descrever como sendo aquilo de mo-se-chamar-assim e, deste modo, simboliza a arbitrariedade bvia, do signo. Esta mulher revela, ao mesmo tempo, porm, uma ignorncia total da rede de associaes histricas e intertextuais implcitas no nome que adoptou, assim sendo apresentada no texto como uma prova ao vivo da confuso em torno do poder do nome. Como veremos, a etapa existencial que Antunes vive em relao com Judite, isto , o tempo que cai entre o segundo e terceiro nascimentos do protagonista, caracteriza-se pela confuso de nomes, num tapar da realidade, conseguido pelo uso de nomes falsos. Assim, Antunes conhece Judite depois dela ter adoptado o nome falso e arbitrrio e o narrador tambm pe em dvida o cabimento do nome do meio que ela habita: Chamam-se clubes a umas casas abertas toda a noite e nas quais a razo mais forte o jogo. 13 Note-se, pois, que a razo do jogo, elemento que caracteriza a vida nocturna lisboeta , deste modo, includo tambm no tema da construo da personalidade e do problema de ver: O annimo sabe ver. at condio para saber ver: ser annimo. Mas proceder como annimo contra as regras do jogo. 14 Podemos caracterizar todo o tempo transcorrido entre o segundo e o terceiro nascimentos de Antunes como uma tentativa pela parte dele para ganhar controle sobre um jogo, o prmio do qual seria o atingir de um estado como que super-annimo, no qual os limites do Outro e da suplementaridade da palavra sero ultrapassados. Esta fase iniciada quando Antunes se d conta de Judite como o Outro sexual e psicolgico mas importante notar que a conscincia e no a posse de Outro que inicia a segunda fase da vida de Antunes: Ora o Antunes amava a verdade acima de tudo e no tinha necessidade de estar a mentir a si prprio e, portanto, disse a verdade: aquele corpo nu de mulher foi o mais belo espectculo que os seus olhos viram em dias da sua Vida! 15 Um segundo nascimento est a ocorrer mas no comunicado no enredo da histria e Antunes no tem conscincia da importncia terica do momento at
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Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 31. Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 33. Os sublinhados so nossos. 14 Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 32. 15 Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 66.

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muito depois. atravs do ttulo que o narrador d ao captulo, segunda vez que se nasce, assiste-se ao prprio nascimento, que o leitor informado acerca do segundo nascimento do protagonista. Torna-se evidente, portanto, o papel funcional dos ttulos: atravs deles, o narrador visa orientar e manipular a nossa leitura da histria de Antunes. Estes comentrios irnicos contribuem, por outro lado, para a constituio do que j foi chamado um outro texto-paralelo, sobreposto e simultaneamente distanciado do texto romanesco. 16 Ao comentar as aces de Antunes a partir de uma perspectiva distanciada da narrativa atravs de observaes s vezes contraditrias, desnecessrias ou irnicas, o narrador faz com que a leitura do romance se torne dupla, no sentido em que h em simultneo uma construodesconstruo da realidade ficcionada. 17 A maioria das vezes, os ttulos apenas tm sentido quando so lidos os captulos que apresentam e notemos, tambm, que a prpria diegese dos captulos muitas vezes ganha um sentido outro, que diz respeito teoria da personalidade, apenas quando confrontada com estes ttulos. Desta tendncia para explicar ao leitor o que a histria deveria ilustrar, observamos como a personagem construda pelo narrador incapaz de avaliar o que est a acontecer sua volta. Mas, luz da teoria do nome, este estado natural, pois Antunes vive num tempo social, entre o primeiro e o terceiro nascimentos, e, assim, perdeu a faculdade de ver. O narrador, pelo contrrio, v muito claramente a significao das aces do protagonista e transmite a sua crtica distanciada ao leitor atravs dos comentrios que sobrepe aco da histria. A presena destes ttulos, e o modo como funcionam, levanta ainda uma outra questo muito curiosa porque o seu tom didctico e autoritrio trai uma desconfiana bsica quanto ao poder explicativo da narrao propriamente dita. O narrador sente a necessidade de suplementar a narrao com mais palavras, e a significao do texto vai-se gerando numa zona intermediria, criada atravs da confrontao dos dois textos. 18 Lembremos pois que o narrador j comentara que um nome suposto facilita... e se facilita... porque o nome verdadeiro transtorna ou transtorna-se. Haver assim necessidade de mentira para defender a verdade? 19 Os ttulos parecem ter, de facto, uma funo igual funo de facilitar, que prpria do nome de guerra: revelam a imposio

Maria de Ftima Candeias, Nome de Guerra ou a subverso Irnica do Romance, Cadernos do Centro de Estudos Semiticos e Literrios [Porto], 1 (1985), p. 42. 17 Candeias, p. 51. 18 Veja-se, como exemplos particulares disto, os ttulos dos captulos XXVI, XXXIV, XLI, XLII, LI todos consistindo em descries explcitas da aco que seguir e comeados por frases como Onde se comea..., Onde se mostra..., Aqui se diz..., etc 19 Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 31.

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consciente e explcita de uma ordem outra e diferente sobre a palavra primria da histria e, assim, revelam uma tentativa de controlar o jogo do texto. Parece-nos, j, que bastante claro que este narrador no tem a mnima vontade de se esconder atrs de uma fachada realista que apresentasse as personagens criadas por ele como indivduos. Ao mesmo tempo, porm, no nos parece lcito afirmar que Nome de Guerra um romance de tese tradicional, no qual, al trmino del discurso, el lector percibe que ha sido manipulado por el narrador de tal forma, que sin darse cuenta ha aceptado el sistema de vida, o en su defecto lo rechaza tras hacer un examen y anlisis del modelo sugerido. 20 Afastando-se destas duas maneiras de organizar a estrutura do romance, notemos como a presena do narrador est sempre em evidncia, lembrando aos leitores que de uma fico que se trata. Atravs de vrios truques como o de referir Antunes no menos de dezanove vezes como o protagonista nos ttulos dos captulos (e, alis, nunca pelo nome prprio) e s outras pessoas que modificam a vida dele como personagens (como, por exemplo, no ttulo ao captulo LII: Onde se sabe que as trs vidas do protagonista passam todas nos mesmos stios e com as mesmas personagens), ficamos com a sensao que a realidade no livro passa sempre pela realidade do livro.21 Assim, no nos surpreende encontrar, no incio do captulo XXII, uma referncia explcita histria de Antunes como existindo apenas dentro do mbito de estruturas ficcionais: Quando o Antunes chegou ao fim do captulo precedente, estava diante da nica porta aberta quela hora. 22 Vejamos outro exemplo especfico desta relao dialgica entre o narrador e o seu texto no captulo XXVII, intitulado Finalmente na sua nova vida comea a prosa. O episdio contado neste captulo ocorre depois de Antunes ter procurado, encontrado e acompanhado Judite a casa. Assim, o captulo comea da maneira seguinte:
H cinco dias que a Judite e o Antunes no saam do quarto. Desde que ela cantara a cantiga da mezinha para o fazer dormir. Durante esses cinco dias, tiveram a noo de viver no cu: Ele e a Judite, os dois s no mundo, longe de todos, eram verdadeiramente felizes. 23

Mara ster Martnez, Nome de Guerra: Una Novela de Tesis, Nova Renascena, Vol. III (1983), p. 162. 21 Eduardo Prado Coelho, Sobre Nome de Guerra, Colquio, N. 60 (1970) p. 36. 22 Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 85. 23 Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 103.

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Embora parea que este casal tem tudo o que necessita, sabemos mais adiante que uma coisa essencial faz falta para que a vida no cu esteja completa: o dinheiro. Numa tentativa de resolver o problema, Antunes sai, no fim do captulo, para mandar um telegrama pedindo a ajuda financeira dos pais, assim pondo um fim ao idlio vivido a dois. luz desta informao, interpretamos a frase na nova vida comea a prosa, como utilizando a palavra prosa no sentido que se refere quilo que material, vulgar, destitudo de poesia. 24 Contudo a escolha da palavra prosa para significar a contaminao da relao amorosa entre Judite e Lus traz consigo outras implicaes mais subtis. Parecenos evidente que um uso mais vulgar da palavra prosa tambm est em jogo quando lembramos que estes ttulos servem como comentrios sobre o texto como fico. Com efeito, no fio narrativo, h um intervalo de cinco dias entre o fim do captulo XXVI e o incio do captulo XXVII. Deste modo, o ttulo bem literal, visto que a prosa, a escrita que relata a histria, est a comear de novo. Entre as duas possveis interpretaes da palavra prosa, encontramos, ento, um exemplo da zona dialgica do romance, na qual a aluso vida prosaica, vazia de poesia, se refere tambm ao prprio projecto do narrador, ou seja, escrita do romance. Assim, possvel ler, neste ttulo, um comentrio irnico sobre a situao do protagonista, assim como uma referncia explcita organizao de enredo da histria. Neste momento, j que demonstrmos como o narrador, situando-se fora da diegese dos captulos, dialoga com o leitor por meio dos seus comentrios sobre a aco do enredo, preciso reconhecer como alguns aspectos internos, ou seja, prprios da histria de Antunes, tambm so particularmente reveladores da opinio do narrador. Lembrando que o segundo nascimento se articula com sua relao com o Outro, observamos que esta relao tem o efeito de limitar, em vez de expandir, os horizontes da experncia. Assim, o mundo concreto de Antunes vai-se estreitando at ao momento em que consiste em apenas dois lugares: E ia para o hotel, muito devagar, para o hotel ser mais longe. A sua Lisboa era entre o hotel e o clube. Quando j avistava o hotel, voltava para trs, devagar, para o clube ser mais longe. 25 Antunes est, neste momento, a ficar preso a uma realidade estreita, representada tanto pela figura de Judite como pela lembrana da namorada que deixara na provncia e que lhe manda recados em cartas da me. A libertao definitiva ocorre, alis, como consequncia destas cartas porque, depois de muito tempo em que se recusa a abri-las, Antunes l todas de uma vez e, na ltima, sabe que j morrera Maria, a rapariga da provncia: Quando o Antunes leu morreu a Maria, ele viu mais outras palavras que l no estavam. Ele leu na sua vida mais do que diziam as cartas e o telegrama. Na sua vida estava escrito assim: morreu a Maria, acabou-se a
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Dicionrio Prtico Lelo, p. 962. Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 91.

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Judite. 26 Desta sequncia, inferimos que o fim destas duas mulheres est ligado pela nica razo de ambas representarem o Outro para Antunes e, da que estas personagens, em vez de existirem no romance como indivduos, sejam meras funes narrativas, no sentido em que apenas servem como projeces do protagonista: O mediador a presena de Judite , assim, reduzido e como que fixado aos pronomes possessivos que so sucedneos dos substantivos prprios e representativos das pessoas, neste caso o protagonista. 27 Judite e Maria so, de facto, os mecanismos que conduzem o protagonista para uma nova ordem da experincia e deix-las implica alcanar a libertao da famlia e da sociedade, ou seja, merecer o terceiro nascimento. Por isso, depois de Antunes ter nascido pela terceira vez:
... a Judite j no lhe dizia mais nada. Conseguiu v-la como a uma actriz que representasse um papel e apenas este papel lhe interessasse, independentemente da actriz. Tudo quanto ficara da companhia que ela lhe fizera era como a lembrana de um leitura algures. 28

Deste modo, todas as personagens em Nome de Guerra, com a possvel excepo de Antunes, demonstram uma aguda falta de individualidade, isto , existem como foras ou funes que propulsionam a narrativa para o fim revelador. No podemos ignorar, todavia, a presena do que chamaremos um falso realismo que caracteriza muitas pginas do romance. De facto, para um dos primeiros crticos de Nome de Guerra, o livro destaca-se pela fidelidade do retrato que oferece de um certo tipo de vida lisboeta: o romance tem a virtude de possuir o que o autor lhe quis dar o retrato fiel da vida nocturna e daqueles para quem a noite comea ao raiar da aurora. 29 Este retrato fiel conseguido, em nossa opinio, por meio de duas tcnicas empregadas pelo narrador: a tendncia de contar breves episdios de aco (quase todos ocorrendo no clube) como se pertencessem ao gnero do conto anedtico (isto , livres de qualquer anlise profunda dos possveis motivos para os actos descritos) e outra tendncia que consiste em descries feitas a partir de um ngulo de objectividade plstico-discursiva em que o autor deliberadamente se coloca. 30 O melhor e mais citado exemplo deste olhar plstico a descrio feita de Judite, no captulo XXXVII, intitulado Uma das maneiras de no ver uma coisa pr-lhe outra diante:
Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 171. Fernando Guimares, Um Romance de Almada Negreiros: Nome de Guerra, in Simbolismo, Modernismo e Vanguardas, p. 57. 28 Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 186. 29 Marques Fernandes, recenso de Nome de Guerra, O Diabo, 22 de Abril 1938, p. 7. 30 David Mouro-Ferreira, Nome de Guerra, in Hospital das Letras, p. 202-203.
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Sem dvida, a Judite era um achado rarssimo de cor e de forma. Desde o primeiro dia em que a vira at hoje ia uma grande diferena. A nova era mais justa do que a primeira. Tinha um pescoo horrvel, sem ligao da nuca com as costas. Uma cova em triangulo entre as omoplatas e a falha do pescoo. E aqui a cor era ordinria. Porm, a nuca perfeita de redondeza, nem saliente, nem retrada. O tronco era uma verdadeira maravilha. Era todo o segredo da sua formosura. Os seios hediondos, partidos, duas excrescncias inutilizadas. O busto curto mas slido. Os ombros grandes e largos, levemente subidos. Os braos apertavam, desde o ombro at ao pulso, por uma forma ridcula e sem distncia. As ancas cerradas, entre menina e mulher. A linha dos ombros mais larga do que a das ancas, conforme a robustez do tronco. O ventre, bem posto, era contudo mais admirvel do que formoso, mais escultural do que atraente. O umbigo, o sexo, as virilhas, era tudo infantil, inocente. As coxas que rompiam, audaciosas. A cor das coxas era clara e a do ventre incomparavelmente menos clara. Via-se que era filha de uma pessoa muito branca e de outra bastante morena. Mas a mistura no estava bem feita; a sua pele ia desde o mrmore rosa-plido, at ao tijolo sujo. As costas, genialmente bem divididas por um nico vinco, firme, vertical, helnico, separando duas metades simtricas, amplas, at aos rins longos. Umas ndegas de rapaz. As pernas, se tinham algum atractivo, no pertenciam contudo maravilha daquele tronco, esse acaso feliz da natureza. As barrigas das pernas, grosseiras, saltimbancanescas. Os joelhos estropiados. Os ps horrveis, o pior de tudo, juntamente com as mos. Estas davam a impresso de no fecharem, desajeitadas incompletas, mal terminadas, falhas de pacincia. Os dedos no se punham direitos. As unhas rodas at para l do meio. Enfim, as extremidades pssimas. Dir-se-ia que a desordem da sua vida ia dar cabo daquela obraprima da natureza e comeara j a sua destruio pelas extremidades.

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A cabea tambm era incompleta, mas tinha qualquer beleza que se ligava com o tronco. A testa pequenssima ao alto e ao largo. Bons cabelos lisos, mal comeados na frente, como remoinhos. As orelhas pobres, minsculas e engraadas. Uma boca ingnua, sem a sua maldade, e um jeito pndego ao canto da direita, autntica boca de rua. Bons dentes, curtos, j separados, e as gengivas gastas. Os olhos mopes no davam o encanto prometido. O nariz pequeno e perfeito. O perfil desde o fim da testa, com a boca fechada, at ao busto, era formidvel de inteireza e de caracter meridional, peninsular, portugus. Bastante viril e, sem por isso, ser masculino. Parecido com os dos pajens do sculo XV. 31

Com a sua tpica astcia ao examinar a organizao visual de obras de arte, Jos Augusto Frana comenta, com toda a razo, que esta descrio de Judite o mais ntido retrato que qualquer literatura capaz: ao desenh-lo, a mo no se levanta do papel, e ele vem nascendo, seguro, firme, sem uma excrescncia, sem uma falta. 32 Ainda que o incio deste trecho esteja ligado aos pensamentos de Antunes, a perfeio deste retrato plstico da escrita leva-nos a atribu-lo ao narrador, numa confirmao da informao pessoal j oferecida de que o autor destas pginas tambm desenha. Como esta descrio de Judite demonstra, e devemos notar que esta apenas um de muitos exemplos do alto grau de plasticidade no discurso do narrador, a faculdade sensvel de ver desempenha um papel importantssimo na criao do mundo representado em Nome de Guerra que, pela linguagem plstica utilizada pelo narrador, cria a sensao, nalgumas cenas, de se referir a uma realidade emprica. Lembremos tambm que a faculdade de ver desempenha um papel chave na estruturao do enredo. Antunes, alis, quando vivendo uma relao com o Outro, ainda no v com claridade tudo o que est a acontecer sua volta porque continua a reagir como um participante activo do jogo da sociedade, a sua falta de astcia ilustrando que s o annimo sabe ver. Deste modo, muito significativo o facto de o protagonista, quando se afasta de Judite, na terceira parte do romance, conseguir ver no apenas uma imagem ntegra e completa do seu meio (Lisboa), mas tambm perspectiv-lo segundo uma viso histrica:
Almada Negreiros, Nome de Guerra, pp. 144-45. Jos Augusto Frana, Nota de Releitura de A Confisso de Lcio e de Nome de Guerra, p. 496.
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O rio movia-se com um certo rebulio, que dava a ideia tambm de ir fechar por hoje. Em todo o caso via-se bem que era domingo, pois o rudo era diferente dos dias teis. No fundo dos ptios os andares mais baixos acendiam as luzes. O Antunes descobriu que a noite nascia da terra. Um transatlntico imenso custava deslocar-se do cais, como um mau pensamento leva tempo a deixar-nos. O resto do dia juntava-se todo a Oeste. A outra margem perdia o volume e achatava-se num plano. Cada vez ia cabendo mais tudo dentro de uma s olhadela. Poder-se-ia ver Portugal inteiro de uma s olhadela, como no mapa, em aeroplano? Palmela e Almada. De c Sintra e Santarm. Mouros, Afonso Henriques. Os cruzados. E desde ento at hoje. At aqui a esta gua-furtada. At mim. Tanta gente e tantos sculos encarreirados por aqui: as quinas. Aviz, caravelas, o pelicano, a esfera armilar, Filipes, azul e branco, encarnado e verde, e continua. Nada para mim. Portugal. 33

Estas impresses globalizantes, comunicadas por meio de uma escrita como que telegrfica, transmitem uma espcie de viso cubista da situao nacional portuguesa, na qual a metfora do pas surge da ideia de contempl-lo desde uma perspectiva area, eliminando os detalhes no essenciais da paisagem e possibilitando uma apreenso simplificada e atemporal do objecto contemplado. 34 Podemos afirmar, de facto, que a ltima parte deste trecho representa um exemplo surpreendentemente bem conseguido, no sentido de comunicativo, da escrita futurista da palavra em liberdade. Notemos, no obstante, que esta viso de compreenso total, quer dizer, o sumrio da experincia (histrica e pessoal) anterior, logrado apenas quando o sujeito observador se situa num plano exterior quilo que contempla. Como a penltima frase do trecho acima transcrito sublinha, o protagonista sente-se completamente isolado do seu meio, tendo j cortado relaes com a famlia, assim como com os jogadores do clube.
Almada Negreiros, Nome de Guerra, pp. 192-93. A comparao entre a perspectiva cubista e uma paisagem vista dum avio bastante comum, alis, como vemos ilustrada neste comentrio de Gertrude Stein: ... when I looked at the earth I saw all the lines of cubism made at a time when not any painter had ever gone up in an airplane. I saw there on the earth all the mingling lines of Picasso, coming and going, developing and destroying themselves... Citado em Stephen Kern, The Culture of Time and Space: 1880-1918, p. 245.
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Podemos inferir, de facto, que Antunes experimenta uma espcie de morte narrativa quando do seu terceiro nascimento, verificvel no facto de ele afastar-se da vida participante, na qual era impossvel avaliar a significao dos seus actos e, da, reconquistando a habilidade de ver de uma maneira totalizante. Assim, tudo o que ocorre depois do terceiro nascimento de Antunes funciona como um eplogo aco da sua histria vivida luz do Outro. A leitura do fim da narrativa confirmar o significado deste nascimento. Na ltima parte, o narrador volta a intrometer-se directamente nas pginas de romance e, pela primeira vez desde o Captulo V, adopta a primeira pessoa singular do verbo:
Quantas vezes o sol com a sua mania da pontualidade deixou por acabar a soluo da humanidade numa gua-furtada? Doce espectculo da humanidade sem o contacto das gentes. Saudvel refgio que enche o quadro sem nada nas gavetas. ltimo patamar do mundo para descer ou subir, escolha, nossa escolha. A nossa vontade est-se a procurar no inconsciente da madrugada. Ou no da vontade que se trata, s do inconsciente, to necessrio nestes dias to certos. Porque no me hei-de explicar, se tenho em mim os dados? Hei-de morrer sem saber dizer-me tudo? Hei-de acabar por no me dar a conhecer nem a mim nem aos outros? 35

medida que explica as razes pelas quais contou a histria de Antunes, o narrador procura justificar-se e pe-se, no surpreendentemente, a duvidar outra vez da eficcia das prprias palavras da histria para comunicar as suas ideias. Terminada a histria, pode, porm, intervir directamente na narrativa. Pelo contedo dessa confisso, verifica-se que a histria de Antunes existe apenas como uma maneira de o narrador dizer-se e, da, evidente que o protagonista existe como mera criao explicativa. Dito de outro modo, o narrador de Nome de Guerra o verdadeiro protagonista deste romance, ou seja, na figura do narrador, e no na de Antunes, que encontramos os traos de uma personagem que individual e coerente e que, acima de tudo, tem uma histria para contar. Neste momento, tornar-se claro que o narrador se considerava obrigado a inventar uma histria uma fbula ilustrativa das suas descobertas para poder transmitir a sua sabedoria ao leitor. Desde o incio do romance, este

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Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 201.

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narrador se encontra no estado afastado que a ingenuidade e, por isso, recorre a uma tcnica parecida com a do conto anedtico para demonstrar a sua tese. Deste modo, no demais sublinhar que a histria que o narrador inventa , no fim de contas muito parecida com a histria dA Engomadeira. Ambas as histrias tm lugar no mesmo meio nas margens da sociedade lisboeta dos anos da Primeira Repblica e, por isso, incorporam uma forte crtica de costumes, baseada no conceito das aparncias da poca serem superficiais e vazias de sentido. As semelhanas entre a histria de Antunes e o enredo da Novela Vulgar Lisboeta no param a: pois tanto nA Engomadeira como em Nome de Guerra, o que nos entrega o autor so documentos onde, de uma forma peculiar, as personagens principais (e algumas laterais), fazem a sua entrada na vida. 36 Se desenvolvermos um pouco mais esta ideia formulada por Alfredo Margarido, observamos tambm que, em ambos os casos, por meio do contacto com o Outro, uma mulher enigmtica de uma moralidade duvidosa, que se revela a existncia de um mundo outro, ou seja, de uma realidade secreta. Os respectivos protagonistas, uma vez iniciados nesta outra ordem de conhecimento tm, finalmente, que rejeitar, ou ser rejeitados por, a mulher outra. Lembremos, pois, que num caso contrrio, o de identificao e transferncia total com o Outro que foi ilustrado em K4 O Quadrado Azul, o narrador foi levado contemplao do silncio pela abstraco. Embora as aventuras amorosas contadas em Nome de Guerra e A Engomadeira sejam semelhantes, os padres estticos, segundo os quais se organizam os discursos das narrativas, so consideravelmente diferentes. Se A Engomadeira, exemplo primrio da prosa sensacionista um Bildungsroman em que o prprio enredo passa pelo processo de amadurecimento, em Nome de Guerra, j considerado como o nico romance de aprendizagem que se escreveu em Portugal, 37 este mesmo processo, por meio de experincia ingnua, exteriorizado. No h dvida que o enredo de Nome de Guerra foi preconcebido pelo narrador e que o desfecho, o atingir da sabedoria ingnua pela parte de Antunes, foi preparado desde o primeiro captulo do romance. Da explicar as razes porque h, no romance de Almada, uma singeleza de propsito e a subsequente criao de um universo nico e unitrio que o afasta do universo mltiplo e dinmico de A Engomadeira. No podemos esquecer, no entanto, que, em Nome de Guerra, h uma diviso bsica em dois que mantida ao longo da narrao da histria de Antunes. O j comentado dialogismo deste romance , em nossa opinio, o elemento que mais contribui para o facto de Nome de Guerra ser a culminao e o fim do projecto narrativo de Almada Negreiros, ou seja, neste aspecto que podemos detectar o fim do projecto audacioso que fora iniciado pelo autor em
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Alfredo Margarido, A Engomadeira ou o Sentido da Vulgaridade, p. 7. Frana, Nota de releitura, p. 495.

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1915. Para compreender a importncia do aspecto dialgico que surge em consequncia dos comentrios fornecidos pelo narrador sobre a histria de Antunes, sernos- til citar alguns trechos relevantes das primeiras recenses crticas de Nome de Guerra, nas quais este mesmo aspecto considerado o ponto fraco do romance. Lembrando que o romance apenas foi publicado em 1938, depois de ter sido escrito em 1925, no surpreende que as primeiras abordagens crticas do texto fossem elaboradas pelo grupo de Presena. Os presencistas consideravamse como continuadores do movimento iniciado em 1915, ou seja, como a segunda gerao modernista e, de facto, em termos de crtica literria, o movimento associado com a revista coimbr desempenhou um papel de destaque na divulgao da obra dos poetas de Orpheu. As diferenas entre as duas geraes, so, no entanto, bastante marcadas para que haja um certo desentendimento, pela parte dos presencistas, quanto ao papel do narrador de Nome de Guerra. Assim, vemos Jos Rgio, numa recenso publicada na prpria revista Presena, a explicar que, no romance, a iluso destruda ou suspensa, devido aos muitos exemplos da inoportuna interveno do autor entre aos seus personagens [que] esto nas pretenses metafsicas ou moralistas de tantos captulos e pginas. Rgio conclui, pois, que em Nome de Guerra, no foi suficientemente cortado o cordo umbilical entre o autor e o seu retrato projectado em figura independente. 38 No mesmo ano, numa receno publicada na Revista de Portugal, Vitorino Nemsio tambm se queixa do teor anti-realista em Nome de Guerra, tentando negar-lhe o prprio estatuto de romance:
Nome de Guerra no propriamente um romance. A vida que nle pulsa, e considervel, no se representa sempre, no est revitalizada segundo as leis do gnero. Em vez de deixar desenrolar-se inteiramente aos olhos do leitor a histria de Antunes e Judite, Almada preferiu dar-lhe um mnimo de tpicos e recobri-los da refraco psicolgica que a vida produz no Antunes. Os actos se no esto ausentes, esto esquematizados certo que qusi sempre de uma maneira psicolgicamente precisa, mas a que falta a progresso lenta e natural do acontecer. 39
Jos Rgio, recenso de Nome de Guerra de Jos de Almada Negreiros, Presena, Vol. 3, Nos. 53-54 (1938), p. 26-27. 39 Vitorino Nemsio, recenso de Nome de Guerra de Jos de Almada Negreiros, Revista de Portugal, 3, Abril 1938, p. 453.
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Seguindo a mesma linha de pensamento esttico, Adolfo Casais Monteiro acha o nico defeito grande de todo o romance no facto de Antunes no ser uma personagem viva e Joo Gaspar Simes conclui:
Para que Jos de Almada Negreiros tivesse aproveitado todas as belas qualidades que revela como romancista bastaria ter evitado certa precipitao de aco, certa prolixidade de frase, certo abuso do estilo conceituoso e certas divagaes de uma filosofia que quanto no potica corre o risco de ser verbalista. 40

Todos estes comentrios revelam sub-repticiamente o pensamento esttico que informa a produo literria dos presencistas, isto , o desejo de encontrar, no romance, um retrato psicologicamente preciso das personagens surge como consequncia de uma f na possibilidade de reproduzir a emoo sinceramente na literatura. Note-se, portanto, que h, no caso de Nome de Guerra, uma acentuada divergncia entre as normas literrias em voga no momento da sua publicao e os padres estticos que esto presentes em toda a fico almadiana. Nome de Guerra , tal como Jos Rgio reconhece, um romance modernista exactamente por causa dos seus defeitos romanescos:
Por defeitos do romance entendo caractersticas ligadas com o que chamarei gongorismo modernista, falta de melhor designao... Conceptismo e cultismo... sempre foram tentaes do Almada excntrico e futurista... isto tentando a duplamente deformar a realidade. Sempre, reconheamo-lo o conceptismo e o cultismo tomaram em Almada Negreiros tonalidade muito pessoal (como, alis, a tomaram em Mrio de S-Carneiro, em Fernando Pessoa, e, mais abaixo de nvel, em Antnio Ferro)... 41

No h dvida que o percurso esttico seguido por Almada muito diferente do percurso dos presencistas e que a lio ingnua aprendida por Antunes em Nome de Guerra encontra as suas origens na prtica sensacionista. Por isso,
Adolfo Casais Monteiro, O Romance e os seus Problemas (Lisboa: Biblioteca de Cultura Contempornea, 1950), pp. 285-86; Joo Gaspar Simes, recenso de Nome de Guerra de Jos de Almada Negreiros, Dirio de Lisboa, 10 Fevereiro 1938, p. 4. 41 Rgio, recenso de Nome de Guerra, p. 26.
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imprescindvel reinserir este romance no contexto em que foi escrito e avali-lo luz do projecto narrativo vivido pelo autor entre os anos 1915-1925. Como o nosso estudo demonstra, Almada nunca quis dar sua obra as caractersticas realistas ou psicologicamente precisas de uma literatura viva, no sentido em que os de Presena entenderam a palavra, antes interessando-se pelos problemas de uma fico do ser que explorasse, ao mesmo tempo, as relaes entre o autor, o leitor e o texto. Deste modo, todo o projecto literrio de Almada, Nome de Guerra inclusive, empenha-se na criao de um mundo potico no qual o leitor, como participante activo no texto, seja um elemento ntegro da fico. Este pois o mbito da poesia revolucionria de Orpheu, que Eduardo Loureno define como:
... um acto potico no qual nos parece eliminada, cristal vivo, a distncia imemorial entre o poema e a realidade por ele aludida. nessa no distncia que a revoluo consiste. o poema mesmo que cria a realidade depois de o ter lido. No descrio, nem comentrio, nem aluso, nem smbolo. imediatamente a respirao, a expirao potica do mundo. Tudo o que eles tocam levanta voo nossa frente. A poesia no vem depois do mundo, imagem tranquila ou sublime desse mundo. O mundo que h esse que o poema faz existir ou inexistir. 42

Este comentrio, que nos parece bastante fcil de aplicar s realidades sensacionistas criadas por Almada nA Engomadeira e em K4 O Quadrado Azul, tambm nos ajuda a entender a funo da relao dialgica estabelecida entre o narrador, o protagonista e o leitor em Nome de Guerra. Com efeito, o narrador de Nome de Guerra, ao contrrio do que pensaram os crticos presencistas no Almada Negreiros, quer dizer, no o autor emprico do romance. Pelo facto de a voz do narrador ser a nica voz que ouvimos ao longo do romance, temos de concluir que esta voz a nica realidade do romance. Ao projectar-se simultaneamente como personagem e como o criador supremo da fico, o narrador obriga o leitor a entrar no jogo do texto, pois uma vez que o autor o objecto da fico, o leitor tambm passa a s-lo: o poema atingenos annimo. O sujeito dele no o seu autor, nem a sua conscincia da qual s temos como prova o prprio poema. O sujeito do poema cada um de ns,
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Eduardo Loureno, Presena ou a contra-revoluo do modernismo, in Estrada Larga, Vol. 3, p. 239.

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como conscincia ledora. 43 Esta ideia corroborada, alis, na prpria plasticidade da linguagem do narrador que, lembremos, est sempre em evidncia na fico almadiana. Pela sua natureza visual, esta linguagem plstica pressupe que haja um dado espectador a contemplar as cenas por ela apresentadas. Assim, Nome de Guerra, ao incluir na sua prpria estrutura os estatutos do autor, leitor e personagem, passa a conter, dentro de si, um microcosmos inteiro, ou seja, um mundo outro. Dito de outro modo, este romance, tantas vezes considerado como um romance existencialista, 44 antes de se referir a uma situao existencialista do ser humano, refere a sua prpria existncia como criao literria e da as vrias experincias narrativas que possibilitaram esta criao.

Loureno, Presena ou a contra-revoluo, p. 243. Num artigo intitulado Da simpatia e do sagrado nalguns livros recentes de fico em prosa, Colquio, 12 (1961), pp. 59-62, scar Lopes comenta algumas razes pelas quais Nome de Guerra foi redescoberto nos anos 50 pelos literatos existencialistas portugueses.
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CAPTULO VI
A FICO DA INGENUIDADE DEPOIS DE NOME DE GUERRA A partir de 1925, depois de escrito o romance Nome de Guerra, podemos considerar como bem definidos os contornos do projecto artstico de Almada Negreiros. Vemos indicada, j neste romance, a maturidade plena do autor quando revela a percepo clara dos mecanismos que estruturam a organizao e a transmisso de um conhecimento pessoal atravs da criao artstica. Resolve-se, assim, o problema da subjectividade artstica que antes estava sempre em evidncia na prosa almadiana. Lembremos, pois, que, desde 1915, Almada experimentava vrias estratgias narrativas com o fim de descobrir um modo de comunicao adequado para relacionar o sujeito com o objecto, isto , para inserir o seu eu individual num mundo caracterizado pela fragmentaridade da experincia moderna. Como j afirmou Maria Antnia Reis, os contos e novelas de Almada consistem no s em textos de um questionamento do sujeito, eles so tambm os textos de um sujeito que a si prprio se busca 1 e, a nosso ver, no resta dvida de que, depois da elaborao de Nome de Guerra, este sujeito almadiano chegou ao fim da sua procura. Contudo, no caso da personalidade artstica de Almada Negreiros, o fim de uma procura do eu autorial no assinala o trmino do acto de criao; pelo contrrio, marca o incio de um longo perodo de fruio das possibilidades estticas implcitas na descoberta deste sujeito. Deve-se isto, principalmente, s mltiplas lies da subjectividade apreendidas pelo autor da Cena do dio durante a sua carreira de escritor. Se as vrias experincias narrativas ensaiadas na sua fico curta dizem respeito falta da coerncia e de estabilidade do eu autorial, depois, em Nome de Guerra, Almada conseguiu apontar directamente para as possibilidades implcitas que se nos apresentam quando a arbitrariedade essencial do ser devidamente reconhecida. A preocupao central de Nome de Guerra resume-se, assim, problemtica de como contar a histria de uma vida se a traio implcita do nome, ou seja, da palavra, est inevitavelmente associada aos esforos
1 Maria Antnia Reis, As Fices de Almada introd., Contos e Novelas, vol. IV de Obras Completas de Jos de Almada Negreiros (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1989), p. 16.

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desempenhados por qualquer um neste sentido. Esta problemtica deixa-se transparecer ao nvel do enredo do romance quando o narrador ilustra a impossibilidade de um sujeito individual ter sucesso em modificar ou transformar o destino do outro. Presente desde o incio, esta noo vem reiterada, alis, na prpria moralidade com que encerra o romance: No te metas na vida alheia se no queres l ficar. 2 Corroborando esta afirmao, a ligao explcita dos conceitos dizer-se e conhecer-se, feita pelo narrador nas ltimas pginas do romance, aponta para uma resoluo do mistrio do ser que s pode residir no prprio gesto activo da auto-inveno e nunca na vontade de captar o outro. Por isso, h, nos ltimos captulos, numerosas referncias aos processos de criao e de interpretao, a maior parte delas referindo uma noo de leitura como que generalizada, que consiste em ler o universo em vez de um livro qualquer. Esta noo da necessidade de se efectuar uma leitura activa do mundo vem registada, primeiro, no momento em que o protagonista procura sossego nas pginas de um livro:
Abriu um livro. No conseguiu entrar no texto. Estava apenas impresso o papel branco, morto, gelado, sem gerar iluso aquela composio tipogrfica. No se estabelecia a ligao entre o autor e leitor. A tinta negava-se a deixar de ser tinta, a parecer-se com qualquer efeito de combinao de palavras. 3

Algumas pginas depois, quando finalmente encontramos Antunes a conseguir a leitura da sua realidade, o narrador descreve esta leitura activa de uma maneira que faz lembrar a manifestao terica da ingenuidade, como foi apresentada em A Inveno do Dia Claro:
Anoitecera. O Antunes tinha-se deixado ficar janela. A ver aparecer as estrelas e a Lua. Aquilo parecia-lhe uma histria verdadeira... Se no so infinitos os astros, so infinitas as combinaes possveis entre eles. Exactamente como as palavras: o nmero de palavras no infinito, mas infinito o nmero de efeitos, conforme a disposio das palavras. Com vinte e seis letras do alfabeto escrevem-se todos os idiomas e no ficam escritas todas as palavras nem definitivos os dicionrios. A janela daquela gua-furtada era um olho a ler este assunto no fimamento. 4
2 3

Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 214. Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 191.

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Com efeito, no fim de Nome de Guerra, h uma restituio do valor significativo das coisas que, no incio do romance, se caracterizavam pela falsidade dos nomes de guerra. A capacidade de ver/ler o universo fundamental para esta resoluo e Antunes consegue, finalmente, ver o mundo sua volta uma vez que compreende que a sua participao activa na criao das fices da vida necessria. Assim, o protagonista ganha o poder de escrever a fico em que vive e viver, sempre com a possibilidade de mud-la quando quiser. Este o estado super-annimo de que falara o narrador no incio do romance e consiste, lembremos, em assumir o controle das regras do jogo. Note-se tambm que este o estado em que se encontrava, desde sempre, o narrador. Na terceira parte de Nome de Guerra, encontramos, de facto, todas as indicaes de que, ao longo do romance, apenas temos estado a assistir a um processo de transferncia narrativa cujo fim o de enredar o leitor na fico da ingenuidade. Esta tranferncia lograda pelo narrador atravs da representao da histria de Antunes, o contar da qual serve para ilustrar as sua teorias da identidade. Desta maneira, a metfora inicial, apresentada em forma cega e vazia de poder comunicativo, restaurada com fora medida que o narrador se prope a resolver o problema inicial do romance por meio do exemplo de Antunes. Assim, no fim de Nome de Guerra, quando o protagonista supera a sua inquietao existencial e descobre uma maneira nova de extrair sentido do universo, ocorre, finalmente, um momento em que a perspectiva de Antunes alinha perfeitamente com a do narrador:
As ocasies no se procuram, encontram-se. E quem , alm de ns mesmos, que lhe h-de dar o propsito? S quem no h-de encontrar-se antes de chegar ao fim que foge da realidade com medo de ser mordido por ela! Mas eu no tenho medo de viver. O meu medo incomparavelmente maior do que esse: tenho medo de no viver! 5

Ao reconhecer, nesta correspondncia final de perspectivas, o fim da histria independente de Antunes, torna-se necessrio examinar mais de perto o estatuto desta histria como uma histria dentro da histria, ou seja, como apenas uma parte de um gesto narrativo maior. Lembremos, pois, que o texto apresenta essencialmente dois distintos nveis de discurso que esto sempre em
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Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 195. Almada Negreiros, Nome de Guerra, p. 213.

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evidncia, tanto nos ttulos dos captulos como tambm em vrias outras referncias ao acto da escrita feitas pelo narrador. Alm disto, este mesmo narrador insiste em incorporar, na sua narrativa, um tempo anterior ao aparecimento do protagonista, assim como um curto perodo narrativo posterior ao seu desaparecimento. No h dvida, assim, que esta interveno directa do narrador nas partes do romance pertencentes moldura meta-Ficcional da histria de Antunes surge de uma necessidade autorial de confiar na existncia de uma realidade ingnua, habitada por este mesmo narrador. Como comenta Peter Brooks: only the fully framed tale presents the possibility of life outside the frame, within what the text presents as reality. 6 luz desta observao legtimo concluir que a perspectiva do narrador annimo, ele que desde sempre conseguiu ver claramente todas as etapas do percurso seguido por Antunes, representa aquilo que o autor pretende apresentar como uma autntica realidade. Esta observao de Brooks acerca da tcnica da histria dentro da histria, leva-nos a concluir que o projecto autorial de situar a histria de Antunes no interior de uma bem definida moldura narrativa surge da necessidade de fazer com que a teoria da identidade ingnua seja uma narrativa coerente e vital. Ao provar a necessidade de ver ao longe, este narrador revela-se orgulhoso da sua sabedoria ao mesmo tempo que, pelo acto conscientemente assumido de contar a histria de Antunes, tenta implicar o leitor tambm na situao por ela narrada. Podemos afirmar, de facto, que um fim subentendido de Nome de Guerra consiste numa vontade autorial de captar o leitor na ordem de ingenuidade medida que o obriga a ouvir a sua histria. 7 Nos ltimos trechos do romance, porm, quando os pensamentos de Antunes tendem a confundir-se com os do narrador, o projecto autorial de elaborar uma histria dentro da histria complica-se mais ainda. Com efeito, a parte final de Nome de Guerra comunica uma resoluo narrativa extremamente ambgua do problema da identidade pelo facto de a moldura da histria de Antunes sofrer uma deslocao subtil e enigmtica. Nos ltimos captulos do romance, virtualmente impossvel distinguir a personagem de Antunes de a do narrador e este facto obriga-nos a questionar o trajectrio final do protagonista. Ao testemunhar o desaparecimento final do protagonista somos
Brooks, Reading for the Plot, p. 229. Para esclarecer este ponto, convm citar aqui uma passagem do livro de Brooks acerca das razes pelas quais um autor opta por utilizar a tcnica da histria dentro da histria: There can be a range of reasons for telling a story, from the self-interested to the altruistic. Seduction appears as a predominant motive, be it specifically erotic and oriented toward the capture of the other, or more nearly narcissistic, even exhibitionistic, asking for admiration and attention. Yet perhaps aggression is nearly as common, and, of course, often inextricably linked to the erotic: a forcing of attention, a violation of the listener. Reading for the Plot, p. 236.
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levados a perguntar-nos se este, ao conseguir nascer pela terceira vez, tem finalmente passado para o espao do real, habitado pelo narrador, ou se, pelo contrrio, o narrador tem j renunciado sua perspectiva afastada e annima, optando por participar activamente na sua fico. Parece-nos mais aliciante a segunda hiptese, visto que, de resto, as teorizaes da identidade e da realidade desenvolvidas pelo narrador so, no fim, inextricavelmente ligadas ao processo de ganhar controle sobre a vida, assumindo-a como jogo ou fico. Alm disto, a identificao final do narrador com a personagem marca o fim da prpria separao narrativa entre realidade e fico e, por conseguinte, tanto a moldura da histria, como a realidade do narrador, tm, por fora, de desaparecer. No resta dvida que, nas pginas finais de Nome de Guerra, os dois espaos narrativos so contaminados um pelo outro, ou seja, o real j foi atingido pela fico e vice versa. neste momento que a moralidade com que fecha o romance ganha mais um significado irnico, pois s podemos concluir que o narrador acabou por meterse na sua fico alheia, e l ficou. Como foi o caso nas duas narrativas sensacionistas almadianas, a relao entre personagem e narrador em Nome de Guerra revela-se, em ltima anlise, pouco estvel. Mais uma vez, o gesto artstico de dizer passa a ser um exerccio, abertamente assumido, de dizer-se, mas tambm exactamente nesta confluncia do sujeito e do objecto da fico que reside a verdadeira importncia de Nome de Guerra como um texto modernista. medida que o narrador de Nome de Guerra entra na histria que est a contar, passa a ser o prprio objecto dessa mesma fico e as suas afirmaes acerca da identidade e a realidade ingnuas relacionam-se directamente com o processo ficcional. Deste modo, o acto de assumir a identidade existencial explicitamente ligado ao acto de contar uma histria. J que impossvel aceitar a utilidade narrativa de fins definitivos ou de molduras completas, o narrador parece reconhecer que a nica maneira de contar a histria de Antunes a de assumi-la como a sua prpria para, depois, poder cont-la de novo. Finalmente, esta nova nfase posta no acto de contar, ou seja, na transmisso da histria da ingenuidade, revela, mais uma vez, uma desconfiana, tipicamente modernista, nos recursos narrativos tradicionais. Nome de Guerra narra, de uma vez por todas, a histria da identidade do sujeito que tanto obcecava Almada Negreiros. Pela prpria forma da histria de Antunes, que consiste no desenvolvimento narrativo de uma srie de acontecimentos ao longo de um determinado perodo temporal, a histria de Antunes revela o desejo de mostrar um caminho linear para a metfora comunicativa que a fico da ingenuidade. Deste modo, especialmente significativo que o prmio ganho pelo protagonista seja o poder de ver. Temos
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de lembrar, de facto, que este prmio, o estado super-annimo atingido por Antunes no fim do romance, precedido pela tentativa de ler o universo, ou seja, as leis paradigmticas da fico da ingenuidade tm que se tornar operantes antes de passarem a constituir uma aproximao visual do universo ingnuo. Assim, a sabedoria comunicada na histria dupla do narrador e do protagonista de Nome de Guerra pode ser considerada como que consistindo numa apresentao textual de algumas das possveis razes pelas quais, depois de 1925, o acto de trabalhar a palavra literria substitudo, no universo criativo de Almada Negreiros, por uma pesquisa que se orienta num sentido intensamente visual. Como observa Jos Augusto Frana, num prefcio ao romance elaborado em 1987:
Nome de Guerra acaba em si prprio, obra circular que , ou parablica, feita com a pontaria propositada dum romance de Salvao.// Esse o seu sentido final, na demanda do heri. Ao mesmo tempo um romance do Ver; uma definio confunde-se com a outra, numa idntica diligncia.// O Ver tem para Almada Negreiros uma significao absoluta, para alm do funcional ou descritivo: o Ver ao longe, seu ltimo estado, define o alcance da capacidade do homem de quem tal se exige. 8

De facto, com este romance circular, as incurses de Almada Negreiros no campo da prosa de fico chegam ao seu fim e, nos anos seguintes, at sua morte em 1970, a orientao visual-plstica para que aponta o fim do romance tomar precedncia sobre a criao literria. Com a excepo da cultivao espordica da poesia lrica e do drama, a restante obra de Almada cai no mbito da pintura e do desenho. 9 Ao mesmo tempo, porm, o interesse de Almada pelo ensaio como meio de comunicao cresce e observamos que, curiosamente, muitos dos temas e imagens referidos neste trabalho como parte do universo ficcional almadiano reaparecem nos
8 Jos Augusto Frana, Almada Negreiros e o Nome de Guerra, introd., Nome de Guerra de Jos de Almada Negreiros (Lisboa: Crculo de Leitores, 1987), p. XXII. 9 Com a excepo do poema As Quatro Manhs, comeado em 1915 e publicado em 1935, o volume Poesia das Obras Completas de Jos de Almada Negreiros regista apenas sete poemas com datas posteriores a 1925. Embora vrios outros poemas sem data paream ter sido escritos depois de 1925, nenhum deles se conta, em nossa opinio, entre a obra potica mais original do autor. Diferente o caso da obra dramtica do autor, a maior parte dela sendo escrita depois dessa data. Contudo, pela sua orientao extremamente visual e no textual, deve ser do drama almadiano aproximado mais em termos do seu estatuto como experincia teatral ou, at, como uma espcie de happening.

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ensaios do autor, agora sob uma perspectiva abertamente confessional e ntima. Encontramos um exemplo disso, que particularmente interessante, no ensaio intitulado Modernismo que consiste na transcrio de uma conferncia lida na festa de encerramento do II Salo de Outono de 1925. Quando chamado a falar publicamente acerca do grupo modernista e do projecto iniciado com a publicao de Orpheu, Almada opta por narrar a histria modernista de uma perspectiva pessoal, na qual surge uma srie de confisses que se relacionam facilmente com as etapas da fico almadiana que destcamos neste estudo. Com efeito, se o comentrio que De comeo havia mais entusiasmo do que sentido 10 nos lembra as experincias dA Engomadeira ou de K4 O Quadrado Azul, tambm podia facilmente servir como referncia aventura do homem muito senhor da sua vontade que encontrmos em o Cgado. Numa revelao mais surpreendente ainda, no mesmo ensaio, o autor conta, mais uma vez, o enredo de Nome de Guerra, ou seja, iniciao na ordem da ingenuidade, agora como parte da sua autobiografia:
Quando, no fim do ano lectivo 1910-1911 terminei o curso dos liceus e sa do Colgio para onde fui interno desde a idade dos seis anos, vi pela primeira vez diante de mim uma nica coisa e da qual ningum me tinha falado. Essa nica coisa que estava diante de mim era a vida, a realidade da vida. Antes de eu chegar a v-la pela primeira vez nunca ningum se lembrou de me prevenir de que ela surgiria um dia pela minha frente. Com certeza que se esqueceram de me avisar porque no creio que os mestres e os amigos desejassem o meu mal. Mas a verdade que, de um dia para o outro, eu tinha sido posto de repente, nem mais nem menos, do que na realidade deste mundo, essa perigosa surpresa para quem tenha apenas o curso dos liceus. No me foi necessrio muito tempo para perceber que no havia afinal ligao possvel entre o meu curso e a realidade da vida que estava na minha frente, de modo que no tive outro remdio seno dar por escusados aqueles dez anos consecutivos que levei a estudar metido no colgio. 11

Parece-nos bastante significativo que, neste ensaio, o autor continue a incorporar histrias que se relacionam intimamente com as suas fices anteriormente elaboradas. Alm disso, notemos que nesta comunicao Almada
10 Jos de Almada Negreiros, Modernismo, in Textos de Interveno, vol. 6 de Obras Completas (Lisboa: Estampa, 1972), p. 64.

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assume um confessionalismo auto-biogrfico no qual inclui, tambm, vrios elementos paradigmticos do modernismo em geral. Alm da vontade de autodenominao patente no ttulo, um gesto tipicamente vanguardista, todos os esforos do autor se concentram em torno da ideia de ser o prprio artista que inventa uma corrente literria para depois poder passar a escrever a histria desse movimento. Assim, o autor assume abertamente a dupla funo de criador e crtico, ou seja, de ser simultaneamente o sujeito e o objecto do seu enunciado, como j ocorrera no caso narrativo de Nome de Guerra. A par desta vontade de se auto-conferir um lugar na histria, o j referido confessionalismo tambm revela a f que o autor tem no seu eu potico como uma fora criadora, pois, em vez de acreditar na existncia do sujeito como um ser ntegro, capaz de comunicar uma verdade nica e transmissvel, acaba por fazer da sua vida a arte e a da sua arte a vida. Levanta-se, deste modo, a dupla questo de saber at que ponto devemos considerar todas as fices almadianas como sendo essencialmente autobiogrficas ou, por outro lado, em que medida que a figura pblica que conhecemos apenas uma criao literria, resultando de uma entrega total vontade de ser uma personalidade modernista. nesta questo, alis, impossvel de resolver, que transparece toda a ambiguidade e a ironia do projecto modernista que consiste, sobretudo, no assumir da arte como projecto de vida, ou seja, como a nica realidade acessvel. Assim, imprescindvel reconhecer que as fices almadianas so continuadas, nos anos posteriores ao perodo da cultivao da prosa que analismos neste estudo, pela tentativa de o autor inventar o meio, no interior do qual ser possvel existir o seu eu modernista. Como o prprio Almada comenta no ensaio acima referido, em Portugal, No h nada. necessrio inventar o prprio meio da Arte. 12 Por isso, nos muitos ensaios elucidativos do pensamento almadiano posterior a 1925, assistimos a continuadas tentativas de explicar aos leitores como a simplicidade da sua aproximao ingnua da experincia pode servir como chave para a nova inveno ou descoberta do mundo. Como observou Eduardo Loureno, Que seja sobre arte, poltica, amor, civilizao, Europa, Portugal, sempre o discurso Almada tender a mostrar que o importante na nossa relao com esses temas descobrir a palavra-nica que os resume e por detrs dela a ingenuidade paradisaca que a anula como fonte de perplexidade ou dvida. 13 Alm desta f na sua viso ingnua, sempre em evidncia na obra almadiana escrita depois da dcada de vinte, a produo ensastica de Almada
Almada Negreiros, Modernismo, p. 58. Almada Negreiros, Modernismo, p. 63. 13 Eduardo Loureno, Almada, Ensasta? In Almada (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985), p. 83.
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Negreiros tambm revela, a nosso ver, duas vertentes fundamentais que, at esse momento, tinham orientado a sua fico. principalmente nos artigos publicados nos primeiros dois nmeros da revista Sudoeste, assim como na conferncia intitulada Direco Unica, que Almada tenta desenvolver mais as suas observaes acerca da relao que o indivduo mantm com a colectividade. Lembremos, pois, que foram essencialmente os aspectos mais contraditrios desta relao que serviram de pano de fundo ou metfora globalizante para A Inveno do Dia Claro e Nome de Guerra, visto que transparece, em ambos os textos, uma conscincia aguda das tenses surgidas em consequncia da necessidade de o indivduo se inserir no conjunto de leis e regras que caracterizam a sociedade em geral. Assim, em tais ensaios como Prometeu, Almada explora os fundamentos filosficos desta metfora enquanto elabora uma srie de comentrios acerca das colectividades materiais, s quais pertencem as instituies da famlia e a nao, e as espirituais que ele caracteriza como representadas pelo individual ou o universal. Quando explica que O pessoal que representa toda a integridade de cada ser humano sobreposto ao indivduo, 14 h poucas dvidas quanto continuada recorrncia s sabedorias j artisticamente adquiridas pelo autor ao longo da sua carreira de ficcionista. Mais interessantes, dado o propsito deste estudo, so os ensaios pertencentes outra vertente do pensamento almadiano, ou seja, os que seguem uma linha de pensamento passvel de classificao como reflexes sobre o papel especfico do artista no sculo XX. A este grupo pertencem, principalmente, os ensaios O Desenho (1927), Elogio da Ingenuidade ou as Desventuras da Esperteza Saloia (1936) e Prefcio ao Livro de Qualquer Poeta (1942). nestes textos, alis, que Almada elabora, em forma discursiva, uma teorizao mais completa do seu prprio eu ingnuo de poeta, qual tambm tinha chegado intuitivamente no fim de Nome de Guerra. Assim, ao explicar, no Elogio da Ingenuidade, a diferena entre a Arte e a Poesia (O que se deseja dizer a Poesia; a maneira que se emprega para dizer a Arte 15), Almada reconhece uma diviso, aparentemente insupervel, entre a viso primria do poeta e o acto de tentar comunic-la pela arte. Perante este impasse, o autor no hesita, no entanto, em afirmar que o poeta tem sempre de optar pelo risco da arte, ou seja, deve sempre procurar captar o novo atravs do gesto criativo de reaver-se que a ingenuidade exige:

Jos de Almada Negreiros, Prometeu, in Ensaios I, Vol. 5 de Obras Completas (Lisboa: Estampa, 1971), pp. 73-74. 15 Jos de Almada Negreiros, Elogio da Ingenuidade, in Ensaios I, Vol. 5 de Obras Completas (Lisboa: Estampa, 1971), pp. 121.

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A posio do poeta a de reaver-se consecutivamente. A sua ignorncia sua, a sua ingenuidade sua, todas as condies em que foi gerado so suas, e aps toda a experincia e conhecimento, a posio do poeta ainda a de reaver-se, reaver a sua ignorncia, reaver a sua ingenuidade, reaver todas as condies em que foi gerado. 16

Implcita neste processo potico de reaver-se se est, sem dvida, a contnua reinveno da realidade do artista, pois a constante procura da inocncia revela uma tendncia preponderante de acreditar no sujeito como a nica realidade merecedora de interesse potico. Por isso, Almada pode afirmar, no Prefcio ao Livro de Qualquer Poeta, que A realidade somos ns, enquanto continua por explicar que a criao consiste, em grande parte, nas histrias que este mesmo sujeito conta quando se reinventa: Mentira e simpatia a Poesia. 17 Deste modo, grande parte da obra ensastica de Almada vem confirmar teoricamente a importncia da espontaneidade, esta sendo uma qualidade que antes deu forma fico do autor. Assim, podemos afirmar que este recurso potico de valorizar a inocncia tem, antes de mais, o fim de captar ou de surpreender uma realidade nova, os contornos da experincia da adquirindo uma nova vitalidade. Como observou o poeta Fernando Guimares, a constante demanda das origens, evidente na ingenuidade almadiana, serve, de facto, para aproximar algumas das diversas qualidades que caracterizam o todo da obra almadiana:
A criao artstica disse-o, para sempre, Almada comear ou, por outras palavras, aquele momento de reaver a inocncia. Diversificadamente, esta poder ser a candura infantil, a tonteria popular, uma espontaneidade que se no quer vigiada e estaria prxima de um certo surrealismo ou aquele j apontado regresso s origens duma cultura que nossa e que Almada disignar emblematicamente por ingenuidade homrica. 18

No resta dvida que esta tendncia almadiana de se re-inventar por meio do gesto artstico se repete, sem parar, nos anos posteriores ao perodo
Jos de Almada Negreiros, Elogio da Ingenuidade, p. 122. Jos de Almada Negreiros, Prefcio ao Livro de Qualquer Poeta, Atlntico, N. 2, 1942, pp. 257 e 260. 18 Fernando Guimares, Almada Negreiros, Poeta in Almada (Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1985), p. 115.
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compreendido por este estudo. Embora seja possvel citar mltiplos exemplos da sua j famosa obra plstica para ilustrar a importncia que a descoberta da ingenuidade teve na obra almadiana, mencionaremos aqui, em jeito de concluso, apenas alguns pontos de contacto mais bvios entre a fico e a pintura de Almada Negreiros. Tanto nas imagens da vida quotidiana lisboeta expressas nos frescos da Gare Martima da Rocha do Conde de bidos, como no reconstruir de alguns mitos e fbulas tipicamente portugueses na Gare de Alcntara, somos continuamente confrontados com imagens do mundo ingnuo almadiano, sendo este um mundo simultaneamente imaginado, criado e habitado pelo artista. Alm disso, estes frescos incorporam, na sua temtica, alguns dos momentos mais originais da fico almadiana, as tcnicas expressionistas patentes na primeira lembrando-nos da Lisboa retratada nA Engomadeira ou em Nome de Guerra, enquanto a inocncia conscientemente assumida na segunda nos remete directamente para o conto jornalstico ou para o poema Histoire du Portugal par Coeur. Notemos, alm disso, que o abstraccionismo intudo e subsequentemente abandonado em K4 O Quadrado Azul retomado por Almada, nos seus ltimos anos, quando, a partir da dcada de cinquenta, o pintor se entrega pesquisa obsessiva da proporo 9/10 e procura da geometria harmoniosa do universo, contida no enigmtico ponto da Bauhtte. Finalmente, numa confluncia como que perfeita entre as lies do sensacionismo, que chegaram sua culminao nas ltimas pginas de K4 O Quadrado Azul, e a inspirao ingnua, que veio depois a ocupar o seu lugar, Almada escolheu, para o seu ltimo trabalho, o termo que melhor resume toda a sua carreira artstica, optando por chamar, o mural genial, que decora o trio da Fundao Calouste Gulbenkian, pelo ttulo Comear. Esta recorrncia posterior de muitos dos mesmos temas e imagens que identificmos na obra em prosa almadiana leva-nos, finalmente, a considerar que o universo esttico de Almada Negreiros tende para a criao de um eu potico auto-gerado que se vai concretizando sucessivamente em histrias. Estas, sendo diferentes, remetem em ltima instncia para esse ncleo criador. Uma vez que o leitor/espectador consinta em entrar neste universo, as possibilidades para a sua compreenso so ilimitadas. Como j vimos em referncia aos mundos particulares do sensacionismo e da ingenuidade, torna-se possvel, ento, defender que toda obra de Almada Negreiros consiste na criao de uma fico totalizante, que no conhece os seus prprios limites e, por isso, se vai gerando a si prpria e alargando o seu mbito a cada passo. Em 1965, quando Almada foi chamado para depor sobre o Orpheu e a aventura potica e artstica inciada pelo grupo que se formara em torno dessa revista cinquenta anos antes, no de surpreender que optasse por assinalar a
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problemtica da identidade que estava nas origens do modernismo portugus. Muito relevante para os fins deste estudo, encontramos, entre as muitas observaes do autor, a seguinte caracterizao deste grupo to dspar, mas to unido na sua inteno de renovar a arte portuguesa:
os meus inesquecveis companheiros de Orpheu foram os meus precisamente por nos ser comum uma mesma no-identidade, um mesmo escorraar comum que a vida nos fazia. Absolutamente mais nada de comum. ramos reclusos da mesma cela de priso... Era a arte que nos juntava? Era. Arte era a soluo comum. Era o neutro entre ns. 19

Nesta confirmao da necessidade modernista de criar a prpria identidade atravs da arte, Almada reitera, no fim da sua carreira, aquilo que norteara grande parte do modernismo portugus a necessidade de encontrar, no gesto artstico da criao, uma sada da metafrica cela de priso onde se encontrava com os seus companheiros que tambm sofriam a sua no-identidade. No caso de Almada Negreiros, um dos primeiros passos neste sentido de uma possvel libertao seria efectuado pela fico. Ao contar histrias, sobre o seu meio e tambm sobre o seu ser, Almada conseguiu inventar a sua identidade, esta inveno possibilitando, em ltima anlise, a descoberta da liberdade da criao. Por isso, para estas narrativas reveladoras da consolidao da personalidade esttica de Almada Negreiros que devemos olhar se quisermos assistir descoberta e ao aperfeioamento do mundo em que Almada para ns ainda vive.

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Jos de Almada Negreiros, Orpheu 1915-1965 (Lisboa: tica, 1965), p. 3.

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BIBLIOGRAFIA*

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* Esta bibliografia engloba todos os ttulos includos nas notas e completada por referncias das outras obras lidas e consultadas durante a preparao deste volume.

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