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Um porto no capitalismo global: Desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro
Um porto no capitalismo global: Desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro
Um porto no capitalismo global: Desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro
E-book301 páginas3 horas

Um porto no capitalismo global: Desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro

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Sobre este e-book

A análise do desenvolvimento do processo de acumulação primitiva na zona portuária do Rio de Janeiro é o tema desta obra, que apresenta a história da região desde o surgimento do porto. De maior mercado de escravos do mundo a escoadouro de açúcar, ouro e café, até objeto de grandes empreendimentos imobiliários e turísticos da contemporaneidade, especialmente o projeto Porto Maravilha, que antecede os Jogos Olímpicos realizados em 2016, o local foi palco de múltiplas transformações.

Os autores buscam mostrar que os processos de incorporação e reincorporação da região acompanham a dinâmica de acumulação de capital naquele espaço desde a criação do porto no final do século XVI até os dias atuais. Dessa forma, a área representa uma espécie de lugar-síntese em que se evidenciam as diversas etapas do processo histórico brasileiro e mundial.

No primeiro capítulo da obra, são apresentadas as principais teorias da expansão capitalista. No segundo, são exploradas as relações entre o porto e a cidade. Nos capítulos 3 e 4, as diferentes fases da história da zona portuária são destrinchadas para análise, tendo como orientação as mudanças na legislação que rege seu funcionamento. No capítulo final, os autores discutem a crise atual e a reinvenção da acumulação financeira nesse território.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de jul. de 2020
ISBN9788575597750
Um porto no capitalismo global: Desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro

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    Um porto no capitalismo global - Guilherme Leite Gonçalves

    I

    DA ACUMULAÇÃO PRIMITIVA À ACUMULAÇÃO ENTRELAÇADA: DESENVOLVIMENTOS DA TEORIA MARXISTA DA EXPANSÃO CAPITALISTA

    O processo contínuo de expansão capitalista, ainda que empiricamente evidente, não é trivial do ponto de vista analítico. Entendê-lo, em toda sua abrangência e complexidade, exige reconstruir alguns conceitos básicos da economia política marxista. É o que busca o presente capítulo. Inicialmente, apresentam-se as variações e reformulações pelas quais passa o conceito de acumulação primitiva desde que Marx buscou refletir sobre ele. A seguir, discute-se um aspecto menos explorado no campo da economia política marxista: o papel dos instrumentos regulatórios na construção das condições necessárias à acumulação capitalista. Os diferentes argumentos desenvolvidos cristalizam-se, ao final do capítulo, em torno do conceito de acumulação entrelaçada.

    Percurso conceitual da noção de acumulação primitiva

    Em Marx[1], a acumulação primitiva é tratada como um ato originário, anterior ao movimento que é a marca central do capitalismo: o circuito ininterrupto no âmbito do qual dinheiro é transformado em capital e que, por meio deste, se faz mais-valor e vice-versa. De acordo com o autor, existe, portanto, uma acumulação prévia que é o ponto de partida para o modo de produção capitalista[2]. Como o pressuposto para a produção capitalista é a transformação de bens materiais ou imateriais em valor e isto só é possível pelo divórcio entre os trabalhadores e a propriedade das condições de desenvolvimento do trabalho, Marx[3] conclui que a acumulação primitiva é o processo histórico de separação entre o produtor e os meios de produção.

    A acumulação primitiva é um ato de expropriação em dois níveis: nos espaços de acumulação na Europa, onde o capitalismo industrial emergiu originalmente, imensas populações foram privadas dos meios utilizados para garantir sua reprodução física e social. A consequência imediata foi a criação de uma massa de trabalhadores livres para vender sua força de trabalho. Juntamente com a separação dos produtores e dos meios de produção na Europa, a expansão capitalista foi alimentada pelo colonialismo e pela concentração do capital mercantil. Para Marx[4], ambos os processos não são exatamente uma libertação idílica, como descrito, muitas vezes, pelos clássicos da economia política, sobretudo Adam Smith. Envolve conquistas imperiais, colonizações, pilhagem, assassinatos, roubo e intervenções regulatórias, isto é, violência diretamente não econômica. Como resultado, obtém-se a monopolização da propriedade dos meios de produção por um pequeno grupo, apto a comprar a força de trabalho que se encontra disponível no mercado e, portanto, em condições de desencadear o processo de criação de valor.

    Baseando-se no conceito de acumulação prévia (previous accumulation) cunhado por Smith, Marx[5] refere-se a esse processo como a assim chamada acumulação primitiva para iluminar tanto o caráter violento da acumulação, quanto sua persistência na história do capitalismo. No transcurso dessa história, a expropriação do trabalhador tem sido o pressuposto da lei natural da produção, de modo que os expropriados são permanentemente reproduzidos como trabalhadores, isto é, vendedores de sua força de trabalho, enquanto os donos dos meios de produção são alçados à condição de apropriadores do mais-valor.

    Embora a lógica dessa lei econômica exija a violência dissimulada do fetichismo da mercadoria, Marx[6] afirma, todavia, que, mesmo na normalidade capitalista, a violência direta não econômica continua a ser usada, ainda que apenas como exceção. Essa excepcionalidade é, porém, qualitativa, e não quantitativa. Nesse sentido, Marx[7] conclui que, quando a produção capitalista já está estabelecida, a expropriação não cessa, mas passa a se reproduzir em escala progressivamente maior, conforme se desenvolvem cada vez mais formas específicas de concentração do capital e da propriedade privada. Portanto, repete-se a lógica da acumulação violenta originária e primitiva, agora como uma expropriação contínua, condição para que a acumulação do capital leve à permanente concentração da riqueza.

    Luxemburgo identifica esse fenômeno como fator determinante da dinâmica do desenvolvimento do capitalismo. Ela sustenta que apenas uma parte do movimento da acumulação realiza-se a partir de um processo puramente econômico entre capitalistas e trabalhadores nos espaços de produção do mais-valor[8]. Nesse âmbito, conforme suas palavras, domina a paz, a propriedade e a igualdade como formas, isto é, a apropriação da propriedade alheia transforma-se em direito de propriedade; a exploração, em troca de mercadorias; e a dominação de classes, em igualdade[9].

    No entanto, como apenas uma parte relativa e limitada do mais-valor pode ser apropriada nesse trânsito interno, ou seja, no local de sua produção, Luxemburgo[10] sustenta que o sistema sempre necessita recorrer a um fora não capitalista para realizá-lo por completo. Essa outra dimensão da acumulação opera no cenário mundial e não se verifica por meio das formas sociais da dissimulação. A autora afirma que, no fluxo entre o capital e os espaços não capitalistas, os métodos empregados não dispensam a violência explícita como a política colonial, o sistema de empréstimos internacionais, a política de interesses privados e a guerra[11].

    A partir das considerações de Luxemburgo, Harvey[12] desenvolve o argumento que a acumulação baseada na violência não é uma etapa originária ou um ato passado, mas um processo que se repete permanentemente no curso do capitalismo. Por essa razão, ele passou a denominá-la acumulação por despossessão. Harvey[13] sustenta que a sobreacumulação em um sistema territorial específico é resultado tanto do excedente de trabalho, na forma de desemprego, como do excedente de capital, conforme materializado na abundância de mercadorias que não podem ser vendidas sem perdas, na inutilização da potencialidade produtiva e no excesso de capital desprovido de possibilidades de se tornar rentável. De acordo com o autor, esse excedente pode ser absorvido, quer por ajustes temporais (investimentos de capital em projetos de longo prazo), quer por ajustes espaciais (abertura de novos mercados, capacidades produtivas, possibilidades de recursos e trabalhos em outros lugares), quer por uma combinação de ambos[14]. Quando esses ajustes temporal-espaciais não se dão por meio da reprodução ampliada sobre uma base sustentável, Harvey[15] afirma que a acumulação passa a recorrer a outros meios, a acumulação por despossessão.

    Trata-se de um capitalismo de rapina que, conforme Harvey[16], retoma as práticas predatórias e a violência política da acumulação primitiva. Dörre[17] mostra que, implicitamente, Harvey não reduz a acumulação por despossessão exclusivamente às práticas canibalescas, fraudulentas ou de rapinagem, como descrito por Marx e Luxemburgo. Essas práticas podem ou não se realizar nas formas contemporâneas da expansão capitalista. O fator decisivo e específico é que a acumulação do capital sempre se dá por meio de diferentes estratégias de intervenções estatais.

    Esse é precisamente o ponto de partida para os estudos de Dörre sobre o teorema da expropriação capitalista do espaço (kapitalistische Landnahme)[18]. Sua premissa é que o capitalismo é uma economia de mercado que se autonega continuamente[19]. Para Dörre[20], o pensamento econômico liberal, baseado na ideia de concorrência e eficiência como ausência de coação e regulação, mascara tanto a dinâmica capitalista quanto a dimensão político-estatal de seu próprio projeto. Se é verdade que o liberalismo ortodoxo contesta a ideia do Estado como fórum que determina as regras do jogo e como árbitro que vela por sua aplicação, também é certo que os atores de mercado operam com base em mecanismos de cooperação (opostos à concorrência) e dependem de previsibilidade e experiências com estabilidades sociais elementares para se desenvolver.

    Por essa razão, Dörre[21] sustenta que a tese da economia pura de mercado desempenha funções ideológicas, ao ocultar as relações de poder e política que permeiam as relações de troca, e estratégicas, na medida em que, em situações de crise, pode-se sempre atribuir a culpa da crise aos erros da regulação existente e clamar por ondas de desregulamentação, que são necessariamente movimentos de regulamentação em outros termos. Desse modo, a intervenção político-regulatória, seja ela desencadeada em nome da regulação, ou paradoxalmente em nome da desregulamentação, é uma constante no desenvolvimento do capitalismo[22].

    Na esteira de Harvey, o modelo da expropriação capitalista desenvolvido por Dörre entende que a acumulação do capital sempre encontra barreiras temporal-espaciais que precisam ser superadas para sua continuidade. A ideia de impossibilidade de realização completa do mais-valor em seu lugar de produção e de limites na capacidade de absorver a demanda e a oferta em um determinado espaço é retomada para demonstrar que a acumulação do capital exige, para sua perpetuação, novos territórios não mercantilizados que poderão prover novos recursos, matérias-primas e mercados de trabalho[23]. Dörre assume o argumento de Harvey segundo o qual os espaços não mercantilizados não se resumem a territórios ou modos de produção já existentes, o que tornaria o processo de expansão do capital um fenômeno irreversível e que tenderia, portanto, a se esgotar. Diferentemente, a necessidade constante de superar as fronteiras da acumulação leva o capitalismo a produzir espaços não mercantilizados, que ele, posteriormente, expropriará. Com isso, indica o autor, "a cadeia de expropriações torna-se, em princípio, infinita"[24].

    A compreensão de que a acumulação capitalista se sustenta num movimento contínuo de criação e expropriação permanentes de espaços não mercantilizados encontra sua inspiração empírica no estudo da passagem do fordismo para o capitalismo financeiro, e tem como axioma uma interpretação positiva do período do pós-Segunda Guerra até os anos 1970 – os Trinta Gloriosos – na Europa Ocidental, Japão e nos Estados Unidos. Harvey[25] mostra que o fordismo construiu, por meio de investimentos em infraestrutura, em qualificação da força de trabalho e também em fábricas e máquinas, condições para a exploração econômica em um determinado espaço. Esses investimentos só puderam ser amortizados a longo prazo, o que fez do Estado peça-chave para os movimentos do capital, já que este, ao absorver excedentes por meio de investimentos em bens públicos, em ciclos longos, criou uma estratégia de desarme do dispositivo da sobreacumulação[26].

    Dörre[27] interpreta os investimentos do Estado na produção de bens públicos como a formação de um fora que, apesar de contribuir para o desempenho das atividades econômicas, é, num primeiro momento, inacessível à acumulação privada. Com isso, são construídas as condições para uma nova expropriação capitalista. Isto é, depois que os investimentos públicos – em estradas, aeroportos, oferta de energia, telecomunicações, assistência à saúde etc. – são amortizados, tornando-se um obstáculo para a valorização do capital, a produção desses bens e serviços vai passando, paulatinamente, às mãos de atores privados do mercado. Desse modo, quando o controle de bens e serviços que antes eram produzidos pelo Estado migram para empresas privadas, abrem-se novos campos para o investimento de capitais excedentes que podem então ser convertidos em meios para produzir valor. Isso só é possível, no entanto, porque as relações de propriedade mudaram e, consequentemente, os então produtores de serviços públicos, quais sejam, os atores e agências estatais, foram separados dos meios de produção que passaram, via privatização, às mãos de empresas privadas.

    Juntamente com as privatizações, Harvey[28] considera a financeirização um dos mecanismos centrais dos processos contemporâneos de acumulação por despossessão no âmbito do capitalismo neoliberal[29]. A financeirização, entendida por Harvey como o aumento exponencial das transações financeiras desde os anos 1980, cria novos instrumentos de despossessão de famílias e indivíduos, promovendo uma redistribuição da riqueza de baixo para cima na pirâmide social. O caso mais evidente é o das bolhas imobiliárias, como as ocorridas no final dos anos 2000 nos Estados Unidos e na Espanha, e que levaram a uma transferência sem precedentes da poupança das famílias de renda média e baixa para instituições financeiras; além do comprometimento da renda futura dessas famílias pelos juros das dívidas contraídas e que continuaram existindo mesmo depois da entrega ao sistema financeiro dos bens financiados e hipotecados. Caso semelhante vem ocorrendo com muitos fundos de pensão que, depois de perdas sucessivas em suas aplicações financeiras, já não são mais capazes de garantir a aposentadoria de quem contribuiu durante toda a vida profissional para a formação do respectivo fundo. Da mesma forma, a manipulação recorrente que se verifica nas transações baseadas em cálculos de preços e avaliações do valor de ações e títulos são mecanismos que, no âmbito do processo de financeirização, trazem imensa riqueza para poucos à custa de muitos[30].

    Dörre[31] também se dedica ao estudo da financeirização, tratando-a como uma nova formação capitalista caracterizada pelas políticas neoliberais de austeridade e pela produção da precarização do trabalho. Pode-se dizer que o mérito de seu trabalho é conferir feições macrossociológicas à tese desenvolvida por Harvey no âmbito da economia política. Ou seja, apoiando-se no postulado de que o capitalismo compreende a expansão permanente da acumulação do capital pela expropriação de espaços não mercantilizados, sejam eles previamente existentes ou produzidos ativamente, Dörre[32] deduz que o capitalismo funciona com base em uma dialética dentro-fora, segundo a qual os limites de sua capacidade interna de acumulação exigem a expropriação permanente de um fora ainda não mercantilizado – áreas, terrenos ou ambientes sociais que ainda não produzem primariamente valor.

    O principal problema dos modelos de Harvey e Dörre é o risco de apresentar a expropriação ou despossessão como uma externalidade, isto é, um processo que opera fora do núcleo da acumulação capitalista[33]. Na verdade, como já vimos em Marx, a concentração e centralização do próprio capital exigem violências permanentes contra o trabalho vivo. Nesse sentido, a expropriação não pode ser vista como uma dinâmica distinta, mas como parte constitutiva da própria acumulação baseada na exploração do trabalho assalariado e na apropriação do mais-valor. Pradella[34] mostra que essa incorporação da acumulação primitiva ao desenvolvimento do capitalismo está relacionada com a concentração de capital em todo o mundo. Ao mesmo tempo que esse processo contribuiu para a constituição da indústria britânica, transformou as relações globais de produção. Se, de um ponto de vista teórico, isto significa que Marx já tinha incluído a acumulação primitiva no seu conceito de capital, de um ponto de vista empírico, é possível assumir que as expropriações, assim como o trabalho não livre, continuam desempenhando papel essencial na expansão capitalista em escala global[35].

    O pressuposto de que as expropriações fazem parte da acumulação do capital é importante para compreender em profundidade a violência da financeirização. Como visto, a principal característica desse estágio avançado do capitalismo reside no fato de que a acumulação dá preferência aos imperativos de propriedade, cada vez mais associados à reprodução do capital fictício, em detrimento da revalorização produtiva direta. O capitalismo torna-se, assim, essencialmente rentista. Nessas condições, os proprietários de ações reivindicam seu direito sobre a renda derivado da propriedade de seus títulos e, assim, apropriam-se de parcela crescente dos lucros retirados da produção.

    Simultaneamente, por causa da tendência de concentração de capitais, os capitalistas estão se configurando cada vez mais como grupos de investimento associados a fundos e trusts. Distanciados das atividades produtivas, aguardam confortavelmente seus ganhos, capturando parte do mais-valor criado na economia. Se delegam a exploração do trabalho assalariado a terceiros, não abrem mão dos excedentes que serão apropriados como renda. O resultado é bem conhecido desde a década de 1980: diminuição da participação dos salários na renda nacional da maioria dos países e ataques aos direitos dos trabalhadores[36].

    A financeirização libera os capitalistas da necessidade de lidar concretamente com os inconvenientes da acumulação produtiva: extrair mais-valor da força de trabalho viva. Ao mesmo tempo, em razão da concorrência entre capitais consorciados, o capitalismo precisa ampliar essa extração para remunerar tamanha quantidade de capital concentrado. Assim, não apenas se extrai o mais-valor dos trabalhadores, eles são expropriados de seus meios de subsistência. Se agora há algo de novo, é apenas o ritmo e escala da expropriação.

    Ainda que iluminadoras para entender, sob uma lente clássica, mas renovada, dinâmicas contemporâneas do capitalismo, sobretudo no hemisfério Norte, a dialética dentro-fora da acumulação capitalista que emerge da combinação de postulados desenvolvidos por Harvey e Dörre necessita ser ampliada e complementada para a compreensão de diferentes feixes de processos e relações que vão conformando, historicamente, o capitalismo global desde a época colonial.

    Como visto, para Marx, o ponto de partida da acumulação capitalista implicou a necessidade de separação entre produtores e meios de produção. Além dessa expansão capitalista interna, Marx[37] refere-se ao fato de que a acumulação primitiva também dependeu de uma expansão externa, cuja principal força propulsora foi o colonialismo. Em suas palavras:

    A descoberta de terras com ouro e prata na América, a dizimação, escravização e soterramento da população nativa nas minas, a exploração inicial e o saqueamento das Índias Ocidentais, a transformação da África numa área comercial de caça aos de pele negra caracterizam a aurora da era capitalista de produção. Estes processos idílicos são elementos centrais da acumulação primitiva.[38]

    Marx parece entender que, paralelamente à transição do feudalismo para o trabalho assalariado na Europa Ocidental e com o impulso industrializante, a acumulação primitiva se desloca gradativamente da Europa para as colônias. Afinal, pelo colonialismo abriam-se espaços até então inimagináveis para a expansão e anexação capitalista de territórios não capitalistas que, fisicamente, eram muito maiores que aqueles primeiros espaços de expansão do capitalismo no interior da própria Europa.

    Atualmente há um acirrado debate entre teóricos da acumulação primitiva a respeito da compreensão de Marx sobre o papel do colonialismo no capitalismo e sobre a forma mais adequada de interpretar o lugar das colônias na expansão da acumulação. Para alguns, o colonialismo pode ser tratado como parte do processo de acumulação de capital, mas não como acumulação capitalista, na medida em que, no âmbito do colonialismo, aquilo que é distintivo do capitalismo, a extração do mais-valor, não teve lugar. Para outros, a acumulação capitalista fundada na extração do mais-valor também podia acontecer nas colônias[39].

    Em que pese sua relevância, esse debate parece passar ao largo do essencial: a indiscutível interpenetração entre os processos de acumulação de capital – chamemos de capitalista ou não – que se davam no bojo do colonialismo e a expansão do capitalismo industrial na Europa. Como já se encontra fartamente documentado, pelo menos desde o trabalho pioneiro de Williams[40], o capital acumulado na exploração colonial e no tráfico de pessoas escravizadas[41] financiou não apenas a construção de bibliotecas, óperas e outras joias do Iluminismo europeu, mas também o desenvolvimento de inventos como a máquina a vapor[42]. Em muitos casos, em uma única viagem, navios alimentavam o comércio trilateral, levando mercadorias manufaturadas das fábricas inglesas para serem trocadas por pessoas escravizadas na costa africana, que eram por sua vez trocadas nas Américas por commodities tropicais, as quais eram depois vendidas na Europa ou mesmo processadas nas mesmas fábricas inglesas. Da mesma forma, os acordos comerciais leoninos para as colônias e, dependendo do caso, para os impérios coloniais fragilizados, como foi o caso do tratado de 1810 entre Inglaterra e Portugal, no momento em que este último era acossado pelas guerras napoleônicas, estabeleciam uma divisão de trabalho global que garantia a acumulação industrial inglesa e transferia capital das colônias e dos países europeus mais débeis para a Inglaterra[43].

    A inseparabilidade dos processos de acumulação observados nas colônias e na Europa Ocidental foi objeto de vasta discussão entre os teóricos da dependência ao longo dos anos 1970, e encontra no trabalho de André Gunder Frank[44] uma formulação particularmente bem sistematizada. O autor parte da noção de superexploração como desenvolvida por Marx[45] e retomada por Marini[46] para se referir à conversão do mínimo necessário à subsistência do trabalhador em fundo de acumulação do

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