Processo Civilizador nas Exposições de Motivos dos CPCs: um ensaio
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Sobre este e-book
Neste livro, analisa-se a possibilidade de aplicação do conceito de processo civilizador de Norbert Elias à evolução dos códigos de processo civil brasileiros. Mais detidamente, analisam-se as exposições de motivos dos códigos de processo civil de 1939, 1973 e 2015 e o pensamento de seus criadores, partindo de uma concepção autoritária do Direito em direção a um ideário mais democrático, mais condizente com a contemporaneidade.
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Processo Civilizador nas Exposições de Motivos dos CPCs - BRUNO SAMPAIO DA COSTA
O PROCESSO CIVILIZADOR SEGUNDO NORBERT ELIAS
O que é ser civilizado? Como se atinge um patamar considerado aceitável de civilidade? Quem define nossos padrões de civilidade, nós ou a sociedade? Nossos comportamentos, anseios, repulsas são instintivos ou são aprendidos? Norbert Elias buscou responder a esses questionamentos em suas obras, e foi bem-sucedido, sobretudo em seu livro homônimo, analisado adiante.
Elias parte da premissa de que as sociedades caminham segundo um padrão definido, passível de ser descrito em minúcias. Esse movimento, que denominou processo civilizador, permite identificar a evolução das relações sociais, o aprimoramento dos comportamentos interpessoais, bem como a complexificação das instituições estatais ao longo das gerações.
Neste livro, busca-se, sobretudo, demonstrar a incidência no Direito ‒ mais especificamente, nas exposições de motivos dos códigos de processo civil brasileiros de 1939, 1973 e 2015 ‒ dos mesmos mecanismos civilizatórios incidentes na jornada histórica das sociedades ocidentais. O Direito é um segmento da vida social destinado a prevenir e solucionar conflitos surgidos no âmbito da coletividade. Logo, a mesma dinâmica aplicada à jornada civilizatória da sociedade em geral pode ser aplicada às ciências jurídicas.
A análise mais detida do pensamento dos criadores das exposições de motivos e de tais códigos de processo civil brasileiros permite verificar uma evolução civilizatória de uma concepção autoritária do Direito até o ideário democrata atual. Trata-se de uma jornada jurídica que reflete, influencia e se retroalimenta de sua contraparte social, de uma sociedade patriarcal e autoritária para uma evolução democrática e pluralista.
Donde se conclui pela aplicação do conceito de processo civilizador ao Direito e, em especial, ao processo civil, reconhecidamente às exposições de motivos dos códigos de 1939, 1973 e 2015.
O PENSADOR E SEU TEMPO
Norbert Elias nasceu judeu em 1897 na cidade de Breslávia, parte do Império Alemão, atualmente pertencente à Polônia. Ele faleceu em 1990, aos 93 anos, em Amsterdam, Holanda. Apesar de ter tido uma vida marcada por tragédias, conseguiu construir uma obra eloquente e também muito produtiva⁷.
Formado em Medicina, Filosofia, Sociologia e Psicologia⁸, Elias era professor assistente na Universidade de Frankfurt⁹ quando publicou seu primeiro livro, A Sociedade de Corte, no ano de 1933. Todavia, a ascensão de Hitler e do nazismo, iniciada em 1935, obrigou-o ao exílio na Inglaterra, onde publicou sua obra-prima: O Processo Civilizador¹⁰. Escrito originalmente em alemão, sua distribuição e publicação não foram possíveis nos países germânicos, dada a origem judia de seu autor. Com isso, a obra permaneceu desconhecida por cerca de 30 anos, somente vindo a lume em 1969, quando foi traduzida para o inglês e o francês.
Norbert Elias é considerado, simultaneamente, o último dos sociólogos clássicos e o primeiro entre os contemporâneos. Isso em razão de seu objeto de estudo, as tendências de longo prazo (long term trends), se perpetuar no tempo, estando, portanto, associado à Sociologia clássica. Seus trabalhos são desenvolvidos a partir de pesquisa etnográfica¹¹ e empírica, verdadeira inovação para sua época.
Nesta análise de longo prazo, as classes sociais sempre tiveram, na Sociologia, papel central de estudo e observação. Assim foi desde seu reconhecimento como ciência pelas mãos de Émile Durkheim¹², que formalmente criou a disciplina Sociologia; antecedido por Karl Marx¹³, para quem a História deve ser vista sob o ângulo da luta de classes, naquilo que se convencionou denominar materialismo histórico. Marx foi criticado posteriormente por Max Weber¹⁴, que entendia o fenômeno da sociedade de classes sob os aspectos econômico (oportunidade na vida, ascensão, riqueza), social (status, prestígio social) e político (partidos e organização políticos), sendo que cada um deles cria diferentes tipos de ordenamento, hierarquização e diferenciação social.
Em O Processo Civilizador¹⁵, Elias analisa a sociedade e sua evolução tendo em conta as lentas transformações e tendências de longo prazo – em diálogo com o triunvirato da Sociologia clássica: Durkheim, Weber e Marx . Em sua obra, o processo civilizador é moldado segundo uma lógica de apropriação de comportamentos considerados desejáveis por classes sociais mais baixas, que se espelham nos mais altos estratos da sociedade. Essa ideia, portanto, dá continuidade e reforça a concepção tradicional, que vem desde os fundadores da Sociologia, de que a classe social é a categoria mais importante para se entender a influência do comportamento da dinâmica social e as questões sociais, políticas, econômicas e religiosas.
Não obstante a justa denominação de último dos sociólogos clássicos, ainda que tardiamente atribuída, a importância de Elias para as Ciências Sociais em geral e para a Sociologia em particular vai muito além de marcar o fim de uma era. Na verdade, sua grande contribuição para o estudo da humanidade foi a sedimentação de que a investigação sociológica pode ser empírica¹⁶.
A metodologia de estudo dos fenômenos sociais – empirismo – fundamentou-se no estado da arte das Ciências Sociais de seu tempo (não apenas Sociologia, mas também História, Antropologia, Psicologia e Filosofia), desenvolvendo uma teoria singular e original, pois suas ideias permeavam esses campos do saber, em um enfoque inovador e multidisciplinar.
Seu método de estudo em O Processo Civilizador foi o etnográfico. O autor pesquisou em livros de etiqueta, destinados a instruir os filhos das altas classes, as regras de conduta sociais. A análise de vasta quantidade de livros de etiqueta franceses escritos entre o final da Idade Média e o século XVII é única e deveras original. Seus capítulos consistem no exame de comportamentos cotidianos, como a postura à mesa; limites e pudores sobre as funções fisiológicas, como urinar, defecar, assoar o nariz, e cuspir; comportamento sexual; relacionamento entre homem e mulher; desestímulo à agressividade¹⁷.
Com o auxílio do método empírico, Elias pôde demonstrar suas teses de modo brilhante, e ainda ajudou a consolidar a validade de tal estratégia investigativa não apenas para o campo da Sociologia, mas também para as Ciências Humanas, inclusive a Ciência do Direito. Esse método de investigação científica foi definitivamente apropriado pelos sociólogos contemporâneos, como Giddens¹⁸, Bauman¹⁹ ou Bourdieu²⁰, categorizados como aqueles cuja produção intelectual se deu após a Segunda Guerra Mundial. Tomemos como exemplo Ulrich Beck²¹, que focou sua pesquisa sociológica no empirismo, na coleta e análise de dados e nas conclusões advindas desses dados, deixando de lado a verificação dos processos/tendências de longo prazo (objeto de estudo dos sociólogos clássicos).
Assim, não é exagero pontuar que o último dos sociólogos clássicos – em seu objeto de estudo – foi também o primeiro dos sociólogos contemporâneos – em sua metodologia de estudo –, servindo de elo entre duas gerações de pensadores sociais.
Ademais, sua formulação original de Sociologia figuracional²² foi incorporada ao discurso acadêmico, contribuindo para diversificar as abordagens acerca de temas contemporâneos. De acordo com essa concepção, os sociólogos devem estudar as figurações dos seres humanos. Eles se debruçam sobre as longas cadeias de interdependência, nas quais nos encontramos desde nosso nascimento. Com isso, advogam a inexistência da dicotomia muito popular na Sociologia entre indivíduos e sociedade, já que a existência do indivíduo é condição para a existência da sociedade, e vice-versa.
A partir dessa constatação, Elias desenvolve a ideia de figurações de interdependência. Elas são emoções constantes, e nas suas mudanças podemos reconhecer elementos recorrentes, aos quais os sociólogos devem se ater. Daí as denominações Sociologia figuracional ou Sociologia processual. Os processos sociológicos são cegos, imprevisíveis, não desejados e não planejados. Alguns exemplos são o processo civilizador; o processo de formação do Estado; a racionalização de Weber; a solidariedade orgânica de Durkheim; a luta de classe de Marx. Não obstante, tais processos possuem uma estrutura própria que pode ser reconhecida, descrita, interpretada, explicada.
Certo é que, em todas as suas obras, Elias deixa claro que seu objeto de estudo é a civilização²³, ou melhor, seu conceito. Neste diapasão, o estudioso criou uma teoria abrangente na qual tentou responder a problemas relevantes ainda pendentes. Em seus livros, a concepção subjacente de civilização e sua elaboração do processo civilizador se fazem presentes e embasam sua pesquisa sociológica, ainda que os assuntos abordados sejam os mais diversos possíveis e não aparentem quaisquer conexões entre si.
Por exemplo, Elias analisou a relação entre cavalheiros, oriundos das classes altas – apesar de nem sempre muito ricos, mas com ligações na sociedade da Corte –, e marujos, oriundos das classes baixas urbanas – essencialmente artesãos altamente especializados e com habilidades desenvolvidas desde a mais tenra idade para a vida no mar, em navios feitos por eles e para eles. Tendo sempre em conta um processo civilizador mais amplo e abrangente, medido em séculos, o autor estudou as disputas e conflitos latentes e existentes quando se juntam por cerca de 300 anos – séculos XVI a XVIII – pessoas egressas de classes sociais distintas, com perspectivas de vida e ascensão social díspares²⁴.
É também visível a temática do processo civilizador quando o autor aborda as relações sociais entre grupos de moradores de uma pequena cidade industrial da Inglaterra em Os Estabelecidos e os Outsiders²⁵. Na obra, Elias descreve as interações sociais mais próximas e afetuosas entre os residentes estabelecidos dos bairros mais tradicionais, contrapondo-as à frouxidão e ao distanciamento das relações humanas existentes entre os outsiders, moradores do bairro mais recentemente construído ‒ e pobre ‒ de uma intencionalmente anônima cidade inglesa. Ele analisa, sobretudo, as consequências palpáveis na vida real dos indivíduos, medidas através de indicadores sociais e de desenvolvimento humano, como índices de criminalidade, taxas de divórcio, evasão escolar e similares.
Em seu derradeiro livro, A Solidão dos Moribundos²⁶, Elias retorna à temática do processo civilizador. O autor avalia que nossa dificuldade para permanecer no mesmo ambiente daqueles que estão prestes a morrer decorre de sentimentos de repulsa, vergonha, embaraço, repugnância, e até mesmo nojo, que emergiram no Ocidente ao longo processo civilizador. Tais sentimentos estão hoje tão enraizados em nossos subconscientes, que sequer nos damos conta de sua existência. Reputamo-los naturais, quando, na verdade, a hesitação em olhar, tocar, limpar, lavar e cuidar, mesmo de nossos pais e avós moribundos, é aprendida.
A morte é um dos grandes perigos biossociais na vida humana. Como outros aspectos animais, a morte, tanto como processo quanto como imagem mnemônica, é empurrada mais e mais para os bastidores da vida social durante o impulso civilizador. Para os próprios moribundos, isso significa que eles também são empurrados para os bastidores, são isolados.²⁷
A propósito, em outras culturas existentes no mundo, por assim dizer, em outras etapas do processo civilizador²⁸, esses sentimentos se apresentam em sentido diametralmente oposto, permitindo aos indivíduos desempenhar pequenos gestos amáveis em benefício dos entes queridos que estejam à beira da morte.
O tópico do processo civilizador perpassa praticamente todos os escritos de Norbert Elias: Sociedade de Corte, Mozart, Os Alemães, A Sociedade dos Indivíduos, Sobre o Tempo, Sociologia do Esporte e Processos Civilizatórios. Contudo, ele é, por vezes, abordado sob perspectivas diversas e não relacionadas entre si. São padrões de comportamento e tendências verificadas a longo prazo consistentes em um movimento com direção determinada em um processo geral e reconhecível definido por Elias como processo civilizador.
A EVOLUÇÃO E CONSOLIDAÇÃO DO HABITUS ATRAVÉS DAS GERAÇÕES
Para abordar a temática do processo civilizador, Elias não se furta a analisar as mais variadas acepções e conceitos do termo civilização
²⁹, já que esta palavra carrega em si muitos significados, por vezes contraditórios, todos com conteúdo valorativo e ético muito expressivos. Um exemplo é o conceito histórico que antagoniza civilizados e selvagens, o qual, ainda que válido, tem sido muitas vezes utilizado como discurso legitimador do colonialismo. Há, ainda, a acepção moralista, usada frequentemente como arma no discurso político, como síntese da conduta digna e louvável, quando, por exemplo, diz-se que civilizados olham para os necessitados em determinada sociedade com piedade e benevolência, ou que os animais de criação para consumo humano são tratados dignamente, sem sofrimento.
As redes semânticas associadas à civilização também podem ser utilizadas para expressar características pessoais, como quando se diz que o homem civilizado não é honesto, correto, justo, ou que esconde seus sentimentos. Nesse sentido, o termo civilizado
é tomado por superficialidade, desonestidade ou hipocrisia. A complexidade das relações em uma sociedade mais interdependente e com funções diferenciadas importa relações humanas mais intricadas. Deixa de haver lugar para amizades desinteressadas ou inimizades capitais. As relações passam a ser ambivalentes e podem abranger uma acepção negativa, permeada pela falsidade ou pela busca do interesse