Memórias Fictícias: Existem Segredos Que Não Deveriam Ser Guardados
De Carina Corá
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Memórias Fictícias - Carina Corá
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Primeiro Diário
Érus
Por Coralina de Lilá
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Primeira Carta
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Eu resolvi acatar os seus conselhos e parar de perturbar-me com a minha própria história. Minha mente tem sede de respostas ao universo de dúvidas que se abre diante de mim. É como se a certeza fosse uma vitória a qual eu nunca poderia alcançar.
Escrevo esses relatos da forma mais fiel possível, vasculho os cantos remotos da lembrança. Tento recordar datas, fatos, algo a provar a verdade que não consigo encontrar. Porém, para meu desespero, relembro perfumes, toques, sensações diversas e abstratas. Nada é concreto, nem mesmo eu...
Eu preciso do real, preciso voltar à superfície de mim mesma. Quanto mais fundo eu mergulho, mais perco a noção de onde é o chão e de onde é o céu. Estou sem rumo, não sei a direção do que procuro, e nem ao menos sei mais quem estou a buscar.
Foi então que decidi escrever, anotar cada ação, passo, palavra dessa história, da minha história. Esse foi o modo que encontrei para analisar minha vida e confirmar sua existência.
Seja bem-vindo, meu caro livro, às minhas memórias fictícias.
29 de fevereiro
Coralina de Lilá
I
O carro andava vagarosamente pela estrada de chão batido. Consegui compreender que estávamos chegando pelo ruído típico dos pneus roçando o cascalho molhado – um som tão familiar que poderia tornar aconchegante até a mais desconfortável situação. E digamos que esse não era um momento muito agradável.
Minha mãe jurava estar vendo-me adormecida no banco de trás, mas eu estava totalmente alerta aos seus movimentos, aos seus pensamentos. Via como ela estava ansiosa, aflita. Os primeiros passos de uma criança em direção à adolescência são dados quando percebe que os seus pais são mais indefesos e carentes do que ela. É quando tudo começa a perder seu encanto...
Confesso que tentei continuar a magia da forma mais errônea possível. E é sobre isso que essa história trata, o meu desespero em não morar nesse mundo tão sem cor, tão vazio. Era como se, desde que eu começara a viver, estivesse morrendo aos poucos. Inventei um mundo meu, onde ninguém poderia alcançar-me e arrancar-me para a morte, morte de estar em um universo de realidades cruas.
Eu observava a chuva batendo nas janelas do carro. Era tão maravilhoso ver os pingos caindo e escorrendo lentamente, como se estivessem cansados e sonolentos. Ao encontrar os pingos pequenos pelo caminho, os maiores os englobavam e ganhavam velocidade, como se estivessem caçando e se alimentando o suficiente para obter agilidade e desaparecer. Estranho, as gotinhas pareciam tão vivas, até mais do que eu. E nós, seres racionais nos consideramos para dizer que as pobres gotas não pensam, não falam, não sentem. Talvez alguém esteja a me observar lá fora, a achar estranho cogitar que eu realmente exista. É muito fácil para o homem ter certeza de tudo, eu também a tinha antes do que aconteceu... Acredite, quando somente sua teoria e pensamentos são os corretos, se o seu mundo rachar, você cai de um precipício ao invés de levar um simples tombo.
Chega de dar pistas, nem mesmo eu sei o que está por trás desse enigma que formo. Espero que você possa perdoar-me pela minha ignorância e minhas fases de plena estupidez. Eu não sou assim, somente estive assim. Tenho de ser sincera com você, contarei-lhe os meus detalhes mais vergonhosos, é a única maneira de curar-me.
II
Minha mãe estacionou o carro, virou-se para trás e falou em um sussurro:
– Coralina, sei que está acordada. Pare de me analisar, por favor! Temos que tentar, eu acredito que isso seja o melhor para nós.
– Mãe, eu sei. Está tudo bem comigo, vai ser ótimo morarmos aqui. Pior do que antes não será!
Fui estúpida com minha mãe, estava completamente em desordem de ideias; não podia dissimular minhas ações e tom de voz para parecer delicada e grata. Acabei machucando-a, ela que tentava tanto me dar uma vida ideal.
– Tem mais uma coisa que não lhe contei porque tinha medo que você desistisse dessa oportunidade de vida.
– O quê, mãe? E que grande oportunidade de vida é essa? Só porque viemos para um lugar menos bárbaro não quer dizer que viemos para a civilização!
– Essa senhora que viemos cuidar, ela é... uma pessoa bastante devota e religiosa, digamos assim.
– Mãe, vamos morar com uma freira? – ironizei.
– Digamos que sim.
– Pelo amor de Deus, uma freira na família; como? Será que eu posso ser portadora desse gene defeituoso?
– Cale a boca, Coralina! Mais respeito, quem lhe ensinou a julgar assim as pessoas? Nós vamos morar aqui sobre todas as regras da dona da casa, você entendeu? Nem que você tenha que rezar o terço todas as manhãs! Saia do carro, pegue sua mala e vamos para o nosso lar!
– Lar?
Ela esmurrou a porta do carro, e foi-se em direção à casa. Foi a primeira vez que vi aquela imagem, a primeira vez das tantas próximas que me choquei com a profundidade do que eu enxergava. Aquele cenário dizia tudo, não precisava de palavras para se entender o que se passara ali e ainda se passaria. A casa, o bosque e até mesmo os portões de cor branca tinham alma e podiam ler a nossa.
O caminho estreito de cascalho levava a uma cerca branca mal pintada. Havia um jardim colorido que circundava a região. Ao levantar os meus olhos para apreciar a casa amarela, me senti levada por uma corrente de energias indeterminadas, nunca um sentimento fora tão desconhecido e tão difícil de desvendar.
A casa tinha dois andares e uma varanda que nunca fora utilizada. Era simples e, ao mesmo tempo, parecia ter sido construída para o cenário de um conto de fadas. O que me chocou profundamente foram as janelas formadas por quatro quadrantes emoldurados por madeira escura e que não deixavam transparecer o interior da casa, pois estavam cobertas por grossas cortinas cor de tijolo. Aqueles olhos nas paredes afrontavam-me, alertavam-me sobre algo que estava por vir. Naquela época, mesmo que eu tivesse compreendido o recado, não teria lhe dado atenção. Era tola demais para acreditar nos conselhos de uma velha casa.
Olhei o bosque úmido nos arredores do terreno. Estava procurando algo ainda mais inesperado, como se realmente estivesse em uma história. Acabei encontrando. No telhado havia uma torre... Suas paredes não eram pintadas e não havia janelas. Era um quarto deslocado, completamente diferente do resto da casa.
Quando saí do devaneio, abri o porta-malas, retirei minha bagagem e andei até a soleira. Foi quando ela abriu a porta.
III
Irmã Bianca Giacomina era uma criatura miúda, velha como seu lar e pálida na luz escassa do aposento. Nos seus cabelos brancos percebiam-se traços do ruivo que um dia embebera os fios de seda. Seu rosto era composto de um papel delicado, como se pudesse ser rasgado a qualquer momento. Suas mãos eram trêmulas e pequenas. Giacomina tinha um rosto puro, perfeito, nariz fino, lábios grossos. Fora uma boneca em sua juventude e nem mesmo o tempo apagara esses traços. Era leve por completo, no olhar, no falar, no andar. Mas eram os seus olhos que iluminavam seu ser. Quando se mirava o seu olhar, esquecia-se de observar o resto da face. Esquecia-se de que era uma velha quem possuía aqueles olhos. Eles eram uma piscina de um azul denso e líquido, tão sinceros e perturbadores.
O que me fez afundar em meus preconceitos foi testemunhar a presença dessa freira cujo olhar estava cheio de cinismo e malícia. Senti em seus olhos de cristal que queria testar-me. E, no momento seguinte, o relance de provocação deu lugar a um brilho de compreensão inexplicável. A expressão facial ficara impassível, o meio sorriso sempre estampado no rosto envelhecido. Porém, seus olhos revelavam sua personalidade ambígua, eles não escondiam o que estava por detrás de sua castidade.
Sua boca se abriu, e ela me falou baixo, sem que minha mãe pudesse ouvir:
– Que pensa da minha torre?
– Ela não combina com a casa, irmã.
Assim como seus atos não combinam com sua alma
, pensei ao entrar em meu novo lar.
IV
Nosso primeiro jantar naquela mesa de madeira enorme não contou com a presença de Giacomina. Por um momento fiquei decepcionada, queria poder estudá-la a noite inteira, queria entender o que se passava pela sua mente. Por outro lado, fiquei grata por ter um momento sem sua perturbadora presença, pois sabia que ela também estava observando todos os meus movimentos.
Enquanto minha mãe cozinhava, fiquei sentada à mesa, observando-a. Tarsila era uma mulher bonita, tinha trinta e nove anos, mas parecia tão cansada... Ela era de estatura mediana, seus cabelos eram castanho-avermelhados, sempre presos em um coque. Seus olhos eram verde água e, quando eu olhava no fundo deles, sentia-me protegida. Quanta culpa exalava de minha mãe, eu chegava a tocar seu remorso. Remorso por não realizar seus sonhos, por não construir a vida maravilhosa para sua filha, por não conseguir me proteger de todos os males. Eu queria poder abraçar mamãe e dizer-lhe que a compreendia, que ela deveria esquecer toda essa angústia, que eu amava a nossa vida justamente por tê-la como mãe. Sei que deve ser difícil para você entender,