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O centenário do PCB e a esquerda marxista na atualidade (setembro 2022)

www.marxismo.org.br 13 TEORIA O centenário do PCB e a esquerda marxista na atualidade Parte 2: Do golpe de 1964 à defesa da Nova República MICHEL GOULART DA SILVA N a primeira parte deste artigo, publicada na edição anterior, discutimos o processo de elaboração teórica e política da revolução por etapas e da colaboração de classes por parte do PCB, desde a sua fundação até a década de 1950. Nesta segunda parte, analisaremos os desdobramentos dessas elaborações na política do partido diante do golpe e da ditadura iniciada em 1964 e como impactou o PCB diante da Nova República. Essas elaborações teóricas e políticas se mostraram desastrosas, em especial por ter sido um dos fatores que explica a derrota dos trabalhadores que levou à vitória dos militares e da burguesia no golpe de 1964. O próprio PCB assumiu os seus equívocos, diante da derrota. No ano seguinte ao “A vitória do golpe militar pôs a descoberto muitas de nossas mais sérias debilidades. Fomos colhidos de surpresa pelo desfecho dos acontecimentos e despreparados não apenas para enfrentá-los, como também para prosseguir com segusas atividades nas novas condições criadas no País. ça depositada no ‘dispositivo militar’ de Goulart. Também falsa era a perspectiva, que então apresentávamos ao Partido e às massas, de uma vitória falsa e imediata. Nossas ilusões de classe, nosso reboquismo em relação ao setor da burguesia nacional que estava no Poder, tornaram-se evidentes”`1. O PCB também parecia desiludido com a burguesia “progressista”, demonstrando até certo ponto um sentimento de traição: “Uniam-se os reacionários e entreguistas, que conseguiam atrair para seu lado amplos setores da burguesia nacional e da pequena burguesia urbana, descontentes com a situação e que não concordavam com as crescentes ameaças ao regime constitucional vigente. As forças da direita armavam-se e preparavam aceleradamente o golpe”2. Portanto, durante décadas, o PCB teorizou sobre relações econômicas e sociais inexistentes e desenvolveu uma política ilusória, não preparando os trabalhadores para o processo de acirramento da luta de classes. Os trabalhadores eram enganados a enxergar seus algozes como aliados na construção de uma sociedade futura, sendo iludidos de que os seus interesses contraditórios com a burguesia eram secundários em relação ao embate com os “resquícios feudais”. Quanto à burguesia, ainda que com todas as divergências que pudesse ter entre as várias frações, “apavorada diante do movimento de massas, que se radicalizava antes de 1964, escapando das mãos dos pelegos, conseguiu unir suas forças, para promover contra João Goulart o golpe que, em última instância, era dirigido contra as massas”3. Esse balanço do contexto do golpe, feito por um dos grupos trotskistas que se reorganizou durante a ditadura, também contém elementos de uma dura crítica à atuação do PCB. Segundo a Organização Comunista 1º de Maio, durante o período anterior a 1964, o PCB: “[...] havia conseguido impor a setores das massas a ilusão da tomada do poder preparado para aparar e rebater os golpes que sempre estão sendo tramados pelos 14 Setembro de 2022 inimigos nem para a tomada do poder, pois, verdadeiramente, não o colocava como objetivo”4. Embora o PCB tenha chegado em falar sobre uma “surpresa no desfecho”, se referindo ao golpe e ao papel da burguesia, para os marxistas nada daquilo era novidade. Os trotskistas, que se constituíram como corrente independente do PCB desde o começo da década de 1930, demonstraram em diversas análises a incapacidade da burguesia em fazer qualquer transformação na sociedade brasileira, defendendo a necessidade de organização independente dos trabalhadores e luta pela revolução socialista. Sobre a burguesia, os fundadores do trotskismo no Brasil neiro de 1931: “Nenhuma fração da burguesia, por mais liberal que seja o seu rótulo, pode efetivar as promessas democráticas. A luta de classes é mais poderosa do que as abstrações do liberalismo político. Na fase imperialista do capitalismo a democracia burguesa – democracia formal – não passa não tem mais interesse direto na realização das reivindicações democráticas”5. Os trotskistas também chamaram a atenção para o fato de que as particularidades do desenvolvimento capitalista não poderiam ser um fator determinante no processo de transformação política e social. Essas particularidades deveriam ser vistas como parte do processo internacional de dinâmica do capitalismo, ou seja, a revolução em um país invariavelmente seria parte da revolução mundial. Nesse sentido, os marxistas não poderiam subordinar suas táticas e muito menos sua estratégia às particularidades do desenvolvimento econômi- aos interesses da burguesia nativa, mas analisar sua dinâmica e interesses diante do imperialismo. Em 1933, os trotskistas “[...] o dogma centrista da subordinação da atividade dos partidos comunistas aos caracteres gerais do desenvolvimento capitalista, isto é, da subordinação da estratégia revolucionária, em cada país, a um tipo abstrato de capitalismo nacional, leva uma medida de idealismo aos partidos comunistas para a avaliação das forças da revolução e das suas tarefas imediatas. A distinção dada pelo programa da IC entre países maduros e países não maduros para o socialismo nada tem de marxista”6. Contudo, os erros cometidos pelo PCB não que o partido mudasse as bases de sua política. Para o partido, o fato de sua política de colaboração de classes ter colocado o proletariado a reboque dos interesses e movimentações da burguesia parecia ser o menor dos problemas. Pelo contrário, diante do golpe de 1964, o PCB faz o balanço de que suas moderadas críticas a João Goulart teriam enfraquecido o go- verno e ajudado na ação dos golpistas: “Nossa atividade em relação ao governo de Goulart era orientada, na prática, como se sua política fosse quase inteiramente negativa. Desprezávamos seus aspectos positivos de grande importância, como, em sua política externa, a defesa da paz, da autodeterminação dos povos, do princípio de não-intervenção, o desenvolvimento das relações diplomáticas e comerciais com os países socialistas, e, sua política, interna, relativo respeito às liberdades democráticas, o atendimento de reivindicações dos trabalhadores”7. Portanto, para o PCB, João Goulart não teria sido derrubado por sua política vacilante em relação ao imperialismo e sua tares respeitariam a democracia burguesia, mas por suas medidas pretensamente progressistas. O erro do PCB, por sua vez, não estaria em se negar a organizar os trabalhadores de forma independente do governo, mas de não ver os esforços de Jango para aplicar suas medidas pretensamente progressistas. O PCB assim fazia um balanço: “Concentrando nosso fogo no governo, exigíamos medidas cada vez mais avançadas, sem levar em conta nossas próprias debilidades e a fraqueza do movimento nacionalista e democrático, bem como a efetiva correlação de forças sociais que então existia, o que põe a nu a persistente em nossas atividades”8. Em outras palavras, os trabalhadores não estavam prontos para uma luta mais avançada, mas o PCB parecia esquecer que esse avanço na organização e na consciência era tarefa do próprio partido. Essa postura teve continuidade ainda durante a ditadura, em particular na política de alianças com a burguesia. Os trabalhadores deveriam aproveitar os embates internos dentro das classes dominantes e, a partir disso, se aliar às frações que se colocassem na oposição a aspectos da ditadura. Em “A burguesia nacional participa da frente antiditatorial, embora sua oposição ao regime seja limitada. Outros setores das classes dominantes, cujos interesses são construídos pela política do governo ditatorial, podem participar de ações contra o regime e ser úteis à ativação e fortalecimento da frente antiditatorial”9. Essa compreensão levou a que, durante a ditadura, a política do PCB tenha passado à completa integração do partido à institucionalidade burguesa, priorizando a intervenção dentro do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição consentida da ditadura, e a construção da unidade com o sindicalismo pelego. O centro da política continuava a passar pela unidade com a burguesia: “Na luta contra a ditadura fascista, os comunistas consideram necessário aglutinar todas as forças que, em maior ou menor grau, estão em contradição com o regime, incluindo não só o MDB, a Igreja e a burguesia não monopolista, mas também setores das FFAA, da ARENA e até mesmo de alguns representantes dos monopólios, descontentes com o caráter fascista assumido pelo regime”10. www.marxismo.org.br Em relação à dinâmica da revolução, pouco mudou na sua perspectiva em relação ao desenvolvimento capitalista, relacionando-o à defesa da democracia: “O caminho da revolução brasileira, orientado para o socialismo, é democrático e nacional. Ele exige a mais completa democracia e a supressão dos obstáculos históricos que impedem o progresso nacional, a supressão da dominação imperialista, monopolista e latifundiária”11. Portanto, o PCB trabalhava na lógica do combate indireto contra a ditadura, institucionalizado e tendo como centro a “frente democrática e sua inserção no sistema político-institucional”12. O PCB acabou priorizando a unidade ampla a todo custo, inclusive do ponto de vista partidário e sindical, se afastando dos setores combativos que construíam o PT e da CUT. Em 1981, o PCB chegou a denunciar que “multiplica-se no seio da classe operária e do movimento sindical a ação de correntes ‘esquerdistas’ que, no geral, se orientam por posições que não favorecem a unidade do proletariado e sua necessária aliança com outras forças sociais”`13. O “esquerdismo” aqui criticado nada mais era do que a defesa da independência em relação ao PMDB e ao sindicalismo “pelego”. Essa postura do PCB fez com que o partido seguisse dentro do PMDB até conseguir sua legalização, em 1985, e permanecesse na CGT, central onde se reunia o “sindicalismo de resultados”, até 1990, quan- Portanto, analisando sua trajetória, não é surpresa o processo que levou o partido, no começo da década de 1990, diante do esfacelamento do stalinismo e do colapso da União Soviética, ao completo abandono de uma perspectiva revolucionária. Esse processo se desenvolveu ao longo de décadas, desde que o partido começou a construir 15 do, seríamos cada vez mais residuais, e não íamos dar uma resposta ao capitalismo que aí está, sem persmente na sociedade brasi16 leira” . Em sua busca evitar se isolar, o PPS chegou a se tornar um aliado de partidos de direita, compondo governos de diferentes matizes ideológicas e, inclusive, defendendo o impeachment de Dilma em 2016. Na década de 1990, marcada pela ofensiva ideológica e econômica do capitalismo em todo o mundo, viu-se extremas sua política de colaboração de classes, ainda na década de 1920. Nesse sentido, foi uma caminhada lógica a completa destruição do partido em seu congresso de 1991. Nesse congresso, o PCB abandonou formalmando em sua resolução: “As concepções de ditadura do proletariado, de monopólio do poder pelo partido único, da predominância dos quadros sobre a participação das massas, produtos de uma época determinada, tudo isso exauriu-se. Há que buscar uma nova forma-partido, com um anova teoria e nova cultura, extraída da rica herança teórico-política do movimento socialista e da nova realidade do mundo, resgatando a melhor tradição do pensamento marxista”14. Roberto Freire, então líder do partido e um dos principais articuladores da transformação do PCB em PPS, dizia ser necessário “começar a discutir qual o socialismo que queremos”, propondo que fosse algo entre “o modelo do socialismo real, de centralização política e econômica” e o esgotado social-democrata15 “se continuássemos nessa posição estrita e dogmática, íamos continuar vegetan- construção de organizações revolucionárias, em consequência da fragmentação e do abandono quase generalizado do referencial teórico marxista. No caso do PCB, um pequeno grupo dissidente iniciou o que foi chamado de “reconstrução revolucionária”, mas, apesar de alguns avanços, é comum a esse grupo esbarrar em resquícios do stalinismo. Um exemplo disso pode ser visto nas resoluções do congresso de 1996, em que corretamente critica a integração do partido às instituições do Estado na década de 1980. Contudo, ma que, no período anterior ao golpe de 1964, a aliança com “frações da burguesia industrial criou as condições, à época, para o desenvolvimento de importante trabalho de conscientização e politização das massas”17. Em sua equivocada avaliação, era correta uma aliança, ainda que tática, com a burguesia e isso, inclusive, teria sido importante no processo de organização dos trabalhadores. Esse breve panorama mostra a urgência de se construir uma verdadeira organização revolucionária no Brasil. Para tanto, é fundamental fazer um balanço profundo da trajetória do PCB e sua política stalinista, mostrando seus erros e traições. Outro aspecto central passa por reconhecer e estudar a fundo as contribuições dos trotskistas, que, mesmo nadando contra a corrente, ao longo do século elaboraram políticas corretas em conjunturas adversas, entre outras coisas analisando o bonapartismo getulista, defendendo a necessidade da independência de classe na luta contra a ditadura e reivindicando a construção de uma internacional operária. Existe também a necessidade de se conectar às massas trabalhadoras, elaborando um programa que ligue as demandas mais sentidas com a necessidade da transição para a ditadura do proletariado. Somente sob essas bases mínimas será possível construir um verdadeiro partido revolucionário, operário e internacionalista. cionárias. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 392. 4 Organização Comunista 1º de Maio. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado [janeiro de 1971]. In: Daniel Aarão Reis Filho & Jair Ferreira de Sá (org.). Imagens revolucionárias. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2006, p. 393. 5 Aos trabalhadores do Brasil. In: Fúlvio Abramo; Dainis Karepovs. Na contracorrente da História: documentos do trotskismo brasileiro (1930-1940). 2ª ed. São Paulo: Sundermann, 2015, p 58. Liga Comunista [prov.]. Projeto de teses sobre situação nacional [prov. 1933]. In: Fúlvio Abramo; Dainis Karepovs. Na contracorrente da História: documentos do trotskismo brasileiro (1930-1940). 2ª ed. São Paulo: Sundermann, 2015, p. 125. 7 Resolução política do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (1965). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 25. 8 Resolução política do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (1965). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 25. 9 VI Congresso do PCB (dezembro de 1967). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 73. 10 Resolução política do CC do PCB (dezembro de 1975). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 169. 11 Teses para um debate nacional pela legalidade do PCB (maio de 1981). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 280. 12 Marco Aurélio Santana. Homens partidos comunistas e sindicatos no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 245. 13 Teses para um debate nacional pela legalidade do PCB (maio de 1981). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3. 14 Declaração política do IX Congresso do PCB. In: Roberto Freire. O que mudou no PCB? Brasília: Novos Rumos, 1991, p. 111. 15 Roberto Freire. O que mudou no PCB? Brasília: Novos Rumos, 1991, p. 31. 16 Roberto Freire. O que mudou no PCB? Brasília: Novos Rumos, 1991, p. 31-2. 17 PCB. Resoluções do XI Congresso. Rio de Janeiro, março de 1996, p. 10. Desaparecidos Ditadura Militar - Guerrilha do Araguaia NOTAS Resolução política do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (1965). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 24. 2 Resolução política do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (1965). In: Edgard Carone (org.). O PCB (1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, vol. 3, p. 26. 3 Organização Comunista 1º de Maio. Algumas considerações sobre a formação da direção revolucionária do proletariado [janeiro de 1971]. In: Daniel Aarão Reis Filho & Jair Ferreira de Sá (org.). Imagens revolu1 6